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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
FERNANDO GREGIANIN TESTA
DEUS SOB AS COISAS: O PENSAMENTO ESPIRITUAL DE CHIARA
LUBICH SOBRE A NATUREZA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
FERNANDO GREGIANIN TESTA
DEUS SOB AS COISAS: O PENSAMENTO ESPIRITUAL DE CHIARA
LUBICH SOBRE A NATUREZA
Dissertação apresentada ao programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências da Religião da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como requisito para a obtenção do título de Mestre
em Ciências da Religião.
Campo de conhecimento: Ciência da Religião
Orientação: Prof.Dr.Eduardo Rodrigues da Cruz
SÃO PAULO
2010
ii
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TESTA, Fernando Gregianin
Deus sob as coisas: o pensamento espiritual de Chiara Lubich sobre a natureza.
2010.
161 f.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Rodrigues da Cruz
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
iii
FERNANDO GREGIANIN TESTA
Deus sob as coisas: o pensamento espiritual de Chiara Lubich sobre a natureza
Dissertação apresentada ao programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências da
Religião da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como requisito para a obtenção do
título de Mestre em Ciências da Religião sob
orientação do Prof. Dr. Eduardo Rodrigues da
Cruz .
Campo de conhecimento: Ciências da Religião.
Data de aprovação:
_____ / _____ / 2010.
Banca examinadora:
_________________________________
_________________________________
_________________________________
iv
Dedicatória
A Deus.
Aos meus pais e irmãos.
Aos amigos e amigas de caminhada.
vi
Agradecimentos
A Chiara Lubich, por tudo aquilo que está escrito
neste trabalho.
À CAPES, pela bolsa de estudos que viabilizou
este estudo.
Ao Programa de Ciências da Religião da PUC-SP,
professores e funcionária que sempre acolheram.
Ao orientador Prof. Dr Eduardo R. da Cruz, por ser
verdadeiro mestre e conselheiro científico e intelectual.
A João Manoel, pelos conselhos e provocação que
resultou nessa dissertação.
A todos os colegas, companheiros e amigos e
companheiras que acompanharam estes anos de estudo,
especialmente àqueles da comunidade dos Focolares.
Em especial a Marcos, Fabiano, Geison, Rhino, Cláudio,
Marconi, André, Allan, Valdecir, Celso, Aloizio, William,
Jaqueline e Flávio, Diego e Fabi, Hugo, Cristiano e Dênia.
Ao pessoal da Voice Technology Ltda, pelo suporte
oferecido.
vii
Resumo
Este estudo versa sobre o pensamento de Chiara Lubich sobre a natureza
física em chave filosófica e teológica. Católica italiana e fundadora do Movimento
dos Focolares, possui uma reflexão sobre a natureza que parte do mundo da vida do
cristianismo para interpretar progressivamente todas as realidades humanas e
naturais. Após discorrer sobre as origens históricas e a estrutura básica de sua
espiritualidade, esta dissertação apresenta alguns escritos do período místico, em
especial os que têm por objeto a criação e a natureza. A profundidade teológica da
espiritualidade, então, é discutida por meio dos aspectos da Unidade e Jesus
abandonado. A unidade pode ser entendida tanto como presente na Trindade pela
pericorese quanto com a presença de Cristo na comunidade. Jesus Abandonado se
refere a uma particular compreensão da Cruz de Cristo. A relação entre estes
aspectos e sua compreensão que se na comunidade pela ação do Espírito
indicam que a própria aproximação ao mistério do evento pascal é trinitária. Essa é a
fonte teológica de onde Lubich parte para entender a natureza. As semelhanças do
pensamento de Lubich com o franciscanismo são apresentadas. Sua compreensão
da criação se exprime, portanto, em estilo boaventuriano. Essa concepção trinitária é
experimentada pela autora em chave mística e molda uma representação da
estrutura real do mundo. Seu específico pensamento religioso para a natureza é que
os objetos, relações, eventos naturais e o cosmo são concebidos em uma
dinamicidade trinitária e possuem, com isso, uma ontologia trinitária. Essa
concepção da natureza se orienta para detectar aquelas conexões de sentido: a
ontologia trinitária é uma heurística que parte do mistério Trinitário para
compreender a natureza. Ainda, este pensamento religioso de Lubich é realista
crítico: os conhecimentos científicos e religiosos exprimem a estrutura trinitária da
realidade, por meio de seus respectivos métodos e conscientes de sua
provisoriedade. Distinto de outras formas cognitivas a religião também é estudada
no seu aspecto natural por meio das ciências cognitivas, que são interpretadas
dentro do mesmo quadro realista crítico da ontologia trinitária. Enfim, é apresentado
um paralelismo entre os procedimentos epistêmicos da religião, como pode ser visto
em Lubich, e das ciências naturais, reforçando tanto a idéia da autonomia do
pensamento religioso quanto de seu estatuto epistêmico positivo.
Palavras-chave
Chiara Lubich, Focolares, natureza, Trindade, ontologia, ciência, realismo
crítico, ciências cognitivas.
viii
Abstract
This study focuses on Chiara Lubich's thought on physical nature using
phylosophical and theological key points. Italian, catholic and foundress of the
Focolare Movement, Chiara’s reflection is on nature starting from a Christian life-
world in order to progressively interpret all of human and natural reality. After going
through the historical roots and the basics of Chiara Lubich’s spirituality, some
mystical writings are presented, especially those concerning the Creation and nature.
The theological depth of spirituality is, then, discussed by means of the aspects of
Unity and Jesus Forsaken. The first can be understood as the unity of the Trinity, fruit
of perichoresis but also as the presence of Christ in the community. The second, a
particular understanding of the Cross of Christ. The relationship between these two
aspects and their understanding that occur in the community through the action of
the Spirit indicate that the very approach to the mystery of the paschal event is
trinitarian. This is the theological source from where Lubich understands nature. The
similarities between Chiara Lubich’s thought and the franciscan tradition are
presented. Her understanding of the Creation is expressed, then, in boaventurian
style. This conception of the Trinity is experienced in a mystical form and forges a
representation of the actual structure of the world. Her specific religious thought on
nature is that the objects, relationships, natural events and the whole cosmos are
conceived in a dynamism of the Trinity and have, thus, a Trinitarian ontology. This
conception about nature is oriented to detect those connections of meaning: the
trinitarian ontology as a heuristic method that evolves from the Trinitarian mystery to
understand nature. Still, the religious thought of Lubich has characteristics of critical
realism: scientific and religious knowledge express the Trinitarian structure of reality
through their respective methods and awareness of their provisional status. Religion
is also studied in its natural appearance by means of the cognitive sciences, which
are interpreted within the same critical realist framework of the trinitarian ontology.
Finally, a parallel is drawn between epistemic procedures of religion, as it can be
seen in Lubich, and natural science reinforcing both the idea of the autonomy of
religious thought and its positive epistemic status.
Key-words
Chiara Lubich, Focolare, nature, Trinity, ontology, science, critical realism,
cognitive sciences.
ix
Sumário
...........................................................................................................INTRODUÇÃO 13
.............................................CAP 1 – A ESPIRITUALIDADE DE CHIARA LUBICH 18
................................................................................................1.1 – INTRODUÇÃO 18
........1.2 – AS ORIGENS: A GUERRA E A REDESCOBERTA DO CRISTIANISMO 20
..............................................................................................1.2.1 – Deus é Amor 23
...............................................1.2.2 – Uma espiritualidade a partir do Evangelho 24
..................................................................................................1.2.3 – A Unidade 25
....................................................................................1.2.4 – Jesus Abandonado 29
................................................................................1.3 – A ILUMINAÇÃO MÍSTICA 31
..................................................................................................1.4 - CONCLUSÃO 35
CAP 2 – DA ESPIRITUALIDADE LUBICHNIANA A UMA ONTOLOGIA
.......................................................TRINITÁRIA: O CASO DA CRIAÇÃO 36
.................................................................................................2.1 - INTRODUÇÃO 36
.............................................................................2.2 – O ABANDONO DE JESUS 37
..........................................................2.2.1 – O abandono na teologia de Marcos. 38
......................................................2.2.2 – O Crucificado-Ressuscitado em Paulo 42
................................2.3 – O EVENTO PASCAL: ACONTECIMENTO TRINITÁRIO 46
...................................................................................2.3.1 – Método da Analogia 46
.....................................................2.3.2 – A Estrutura Trinitária do Evento Pascal 48
............................................2.4 – A TRINDADE E A CRIAÇÃO EM BOAVENTURA 53
..................................................................................................2.4.1 - A Trindade 53
...................................................................................................2.4.2 – A Criação 57
..........................................................................................2.4.3 – Considerações 61
................................................2.5 – TRAÇOS DE UMA ONTOLOGIA TRINITÁRIA 63
.....................................................................................................2.6 – A CRIAÇÃO 71
......................................2.6.1 – Criação trinitária: a imagem do Sol e dos Raios. 73
............................................................................2.6.2 – A criação e o sofrimento 76
................................................................................2.6.3 – A criação e a Unidade 80
..................................................................................................2.7 - CONCLUSÃO 82
CAP 3 - CONHECIMENTO ENTRE EXPERIÊNCIA RELIGIOSA, TEOLOGIA E
.....................................................................................................CIÊNCIA 84
.................................................................................................3.1 - INTRODUÇÃO 84
3.2 - ASPECTOS DE UMA EPISTEMOLOGIA TEOLÓGICA DO CONHECIMENTO
.......................................................................................................RELIGIOSO 85
..............................................................3.2.1 - O problema e sua caracterização 85
...........................................3.2.2 - O lugar da mística no conhecimento religioso 87
................3.2.3 - Conhecimento por familiaridade e conhecimento proposicional 89
xi
..........................................3.2.4 - Conhecimento como aproximação ao mistério 92
.................................3.2.5 - Conhecimento como produto do desejo de verdade 94
..................3.3 - O CONHECIMENTO RELIGIOSO NAS CIÊNCIAS COGNITIVAS 97
.......................................................3.3.1 - As ciências cognitivas sobre a religião 98
.............................3.3.2 - Considerações teológicas sobre a cognição religiosa 102
...............................................................................3.4 - REALISMO E RELIGIÃO 105
............................................3.5 - REALISMO CRÍTICO E CIÊNCIAS NATURAIS 107
...............................................................................3.5.1 - Tentativa de definição 107
....................................................3.5.2 - Realismo crítico como visão de mundo 110
...........................................3.5.3 - Realismo crítico entre explicação e predição 111
.................................................................3.5.4 - Um meta-modelo para ciência 114
................................................................................................3.6 - CONCLUSÃO 116
3.7 - EXCURSUS SOBRE O ASPECTO PROVISÓRIO DO CONHECIMENTO E A
...........................................................................TRAGÉDIA DE CONHECER 119
..........................................................................................................CONCLUSÃO 122
.......................................................................................................REFERÊNCIAS 127
..............................................................................TEXTOS DE CHIARA LUBICH 127
.......................................................................REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 128
.............................................................................REFERÊNCIAS NA INTERNET 135
..........................................................................BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA 136
...............................................................ANEXO – TEXTOS DE CHIARA LUBICH 141
...................................................................................IMAGEM DO SOL E RAIOS 141
....................................................RELATO DA CONTEMPLAÇÃO MÍSTICA 1949 142
.................................................................TRINDADE, ONTOLOGIA E CRIAÇÃO 155
xii
INTRODUÇÃO
Este trabalho procura estudar o pensamento de Chiara Lubich sobre a
natureza. Católica italiana e líder carismática, nasceu em Trento em 1920 e falecida
em Roma, 2008 durante o período desta pesquisa. Sua existência durante o século
XX viu os horrores da II guerra e o nascimento de um movimento religioso ao seu
redor, o Movimento dos Focolares.
Em 1990, iniciou a Escola Abbà juntamente com o bispo alemão Klaus
Hemmerle e alguns professores e especialistas. Esta escola pretendia ser um
“centro de estudos de caráter interdisciplinar que aprofunda no nível científico e
segundo a metodologia própria do carisma da unidade, as intuições originais
deste” (FOCOLARI, 2007). Naquele mesmo ano eu ingressava na Escola de
Engenharia Eletrônica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, no ano
seguinte, partia para um período de convivência e formação para jovens dos
Focolares.
Entre as várias elaborações da Escola Abbà a convicção, particularmente
instigante, de que a espiritualidade de Chiara Lubich produz uma nova cultura. Esta
produção se espalharia por um espectro impressionantemente largo: política,
economia, arte, mídia, pedagogia, psicologia, sociologia, medicina, direito,
arquitetura, ciências ambientais, esporte, estendendo-se até às ciências naturais.
Nos anos em que esta idéia se tornava mais popular dentro do próprio Focolares, eu
me indagava sobre o modo como isto seria possível nas ciências exatas, dada a
metodologia rigorosa com a qual acontece a produção de conhecimento nestas
disciplinas. A relação entre aquilo que se vivia na comunidade e meus próprios
estudos em engenharia, e em geral para as ciências físicas e biológicas, haveria de
se tornar gradativamente para mim, de uma intuição em um problema. A idéia de
uma física inspirada em uma experiência religiosa é tão contra-intuitiva, para uma
mentalidade moderna, quanto interessante.
Logo, perguntas necessariamente se colocam diante de nós: de que maneira
Chiara Lubich entende o mundo natural? Como se posiciona tal entendimento em
relação às ciências naturais, conhecimento mais do que estabelecido na
modernidade quando o que está em jogo são afirmações sobre a natureza? Estas
perguntas gerais que movem nossa pesquisa.
A influência na cultura e na sociedade que nasce da práxis dos Focolares foi
estudada principalmente no aspecto da Economia de Comunhão (EdC)
1
. Porém, de
forma sistemática e, principalmente, sob o enfoque da Ciência da Religião, pouco se
estudou o pensamento da natureza, o mundo físico, o cosmo, presente nos escritos
da Lubich. Esse não está absolutamente ausente, pelo contrário, ocupa um lugar
específico, é perfeitamente caracterizável e está articulado com a totalidade de sua
doutrina espiritual.
Fabio Ciardi, membro da Escola Abbà, em um artigo publicado na revista
Nuova Umanità, principal meio de publicação da Escola, analisa sob o enfoque da
teologia espiritual a particular e importante experiência para Lubich e companheiras
que início à compreensão de que nos propomos a estudar. Esta experiência
mística, conhecida como “Paraíso de 1949”, populou os espíritos daquele grupo
marcando-os fortemente. Referindo-se à Lubich, Ciardi observa que existiram dois
fatos pródromos àquela experiência: “uma particular compreensão da Palavra de
Deus e a percepção de Deus sob as coisas” (CIARDI 2006, p.155-180). Esta
percepção de Deus sob as coisas é dita de maneira explícita pela autora em um
artigo de Gérard Rossé onde afirma que “Tinha a impressão de perceber, talvez por
uma graça especial de Deus, a presença de Deus sob as coisas. (...) Via, em certo
modo, creio, Deus que sustenta, que rege as coisas” (LUBICH apud ROSSÉ 2001,
p.830).
Gérard Rossé, exegeta e teólogo, interpreta não somente a experiência
mística, mas os aspectos principais da espiritualidade dentro de um quadro
teológico-exegético. Sua preocupação é aproximar o pensamento da autora à
teologia presente em João ( ROSSÉ 1994, 1996a) e em Paulo (Cf ROSSÉ 1996b;
1997) e esta espiritualidade com a eclesiologia de comunhão (Cf ROSSÉ 2000).
14
1
Para saber mais sobre a EdC ver http://www.edc-online.org/ e em particular: BRUNI,
Luigino. Comunhão e as novas palavras em Economia. Vargem Grande Paulista: Editora Cidade
Nova, 2005; LUBICH, Chiara. Economia de Comunhão história e profecia. Discursos escolhidos.
Vargem Grande Paulista: Editora Cidade Nova, 2004.
Para um estudo acadêmico ver dissertação de João Manoel Motta (2004) e o site
internacional da EdC em http://www.edc-online.org/.
Entretanto, ele também reflete o tema da criação nos escritos místicos (ROSSÉ
2001) pois apresenta a imagem original que Lubich se utiliza para explicar a criação
como um desdobramento do amor de Deus Pai que cria “olhando” o Filho. Nesta
imagem Lubich Deus como um sol no qual existem raios convergentes que geram
no seu interior, num ponto focal, o Filho. A criação seria formada por raios
divergentes em continuidade aos primeiros, que seriam o sustentáculo a tudo o que
vive e existe. Rossé afirma que as descrições de Lubich se movem dentro de uma
lógica trinitária, onde a ordem do mundo estaria posta dentro da relação amorosa
das coisas à imagem da Trindade. Na imagem, os raios que ligam a criação ao
Verbo e dão seu sustentáculo, podem ser interpretados como expressão da
sabedoria de Deus presente no mundo, isto é, o próprio Deus. Os escritos de Lubich
desse período são carregados de imagens e figuras, como visões intelectuais, sendo
este um estilo mais raro nos seus escritos, que geralmente têm como preocupação
principal a instrução e o fortalecimento da daqueles que a acompanham,
discursos públicos acerca de questões contemporâneas ou de reflexões em forma
confessional.
Piero Coda, teólogo, também procura entender as consequências de tal
inspiração para o pensamento teológico. Nele podemos identificar uma série de
temas que procuram articular a teologia com vistas ao pensamento científico
contemporâneo. Certamente, ele é o autor colaborador de Lubich que mais tem a
preocupação de que esta teologia esteja em conformidade ao pensamento
contemporâneo. Neste sentido, ele escreveu diversos artigos, abordando temas que
se entrelaçam formando a idéia central a partir do Crucificado/Ressuscitado
conforme a inspiração de Lubich. Piero Coda assume a posição de que a teologia
pode ser repensada a partir de suas próprias bases, mas com uma linguagem que a
torna analogicamente acessível à mentalidade científica contemporânea. Ainda, que
está dado por certo que as ciências naturais têm uma interpretação do mundo que é
correta, mas não definitiva em modo absoluto. De certa forma, esta posição é a mais
próxima à nossa, que caracterizaremos como sendo o realismo crítico.
Podemos interpretar que a Escola Abbà, à qual a própria Lubich participava,
procurou elaborar o sentido teológico implícito na experiência espiritual citada e dar
uma sustentação doutrinal à compreensão desta mesma experiência. Estes autores
15
são nossos interlocutores por abordarem a questão da natureza nos escritos de
Lubich, especialmente os do período místico do verão de 1949
2
, mas nos
serviremos de outros para um quadro mais completo que sai da teologia
propriamente dita para a filosofia e as ciências cognitivas.
Portanto, para chegar aos nossos objetivos, pensamos que uma correta
metodologia não deveria descartar os termos próprios da autora Lubich, isto é,
deveríamos incluir dentro da pesquisa o próprio discurso do crente, o que em termos
acadêmicos significa encontrar uma teologia que explique o que em Lubich está em
termos religiosos. Ainda, uma vez que nossa discussão final tem a ver com a
interação com o pensamento científico contemporâneo, é necessário colocar a
ciência dentro desse quadro. Portanto, a dissertação deve incluir também um debate
sobre epistemologia da ciência e da religião. Somos bem cientes da dificuldade e o
risco desta tarefa. Nem todos os colegas de Ciências da Religião e da Teologia
concordariam que uma argumentação teológica seja pertinente para um estudo
científico do fenômeno religioso. Entretanto, primeiramente achamos que este modo
faz justiça ao objeto de estudo. Em segundo lugar, é necessário superar uma atual
fragmentariedade das disciplinas em vistas de um entendimento mais robusto da
realidade que nos circunda. Descartar a teologia desta tarefa, uma disciplina de
séculos de reflexão é, no mínimo, questionável e, em alguns casos, preconceituosa.
No primeiro capítulo procuramos apresentar um breve panorama do histórico
de Lubich e de seu movimento espiritual. Situaremos os textos que se referem à
natureza dentro do contexto em que foram produzidos, em vistas a familiarizar o
leitor com a autora e também os aspectos da espiritualidade que são os mais
centrais, pois são importantes para entender o pensamento sobre a natureza física.
O segundo capítulo aborda principalmente a questão teológica de fundo.
Havendo um contínuo entre a espiritualidade de Lubich e seu pensamento da
natureza, nossa hipótese é que um específico conhecimento religioso que nasce
da experiência vital de Lubich e a constituição da comunidade cristã. Ao traçar os
vínculos teológicos do pensamento espiritual de Lubich, mostraremos também que o
16
2
A revista Nuova Umanità possui alguns poucos artigos traduzidos para o português na
edição brasileira análoga, sob o nome de Abbà, da Editora Cidade Nova, em Vargem Grande
Paulista.
pensamento da natureza tem um fundamento na reflexão cristã tradicional sobre a
criação, naturalmente, com uma ênfase particular de Lubich. Em particular, esta
reflexão teológica indica que o pensamento de Lubich opera na conceitualização do
mundo e seus aspectos particulares conforme sua experiência religiosa que tem
características trinitárias. Apesar de manter um estilo próprio, uma a clara
referência ao franciscanismo em Lubich que também exploraremos neste capítulo.
No terceiro capítulo procuraremos investigar os aspectos epistemológicos
presentes na forma de pensamento religiosa e sua analogia com as ciências
naturais. Aqui nos afastaremos dos interlocutores dos Focolares. Inicialmente
caracterizaremos o pensamento religioso e indicaremos suas características
conforme recentes pesquisas das ciências cognitivas da religião. Mostraremos seu
caráter realista e indicaremos que na ciência contemporânea o aspecto de realismo
também está presente e argumentaremos, enfim, que este realismo é crítico, isto é,
que o realismo não nega o reconhecimento da própria provisoriedade e estar
continuamente em revisão.
Com este trabalho pensamos contribuir para um melhor desenvolvimento nas
ciências das religiões e na teologia, em um frutífero diálogo entre as diversas formas
de saber no respeito aos seus métodos disciplinares, superando a dificuldade do
atual estado dicotômico entre razão e crença, infelizmente bastante comum nos dias
de hoje.
17
CAP 1 – A ESPIRITUALIDADE DE CHIARA LUBICH
1.1 – INTRODUÇÃO
Nosso estudo se refere ao pensamento de Chiara Lubich sobre a natureza.
Entretanto, este pensamento não pode ser entendido separadamente daquilo que a
autora chama de espiritualidade: sua interpretação específica do cristianismo que se
traduz em uma forma de vida. No espaço entre a compreensão do cristianismo e a
forma de vida específica que se constituiu é que nasce o conhecimento da natureza.
Aqui não é possível, e nem é nosso objetivo, apresentar em detalhes esta
espiritualidade em sua abrangência completa, mas queremos mostrar em que
condições este espaço vital aparece, pois é nele que tanto a experiência de Deus se
manifesta como a compreensão do mundo se articula e se explicita. É necessário
apresentar alguns detalhes históricos, mas principalmente, alguns textos da autora
que podem ser considerados como os mais ilustrativos de sua experiência, de seu
entendimento do cristianismo. Após isto, estaremos em condições de entender os
escritos mais místicos e aqueles que se referem especificamente à natureza.
Portanto, este capítulo tem por objetivo principalmente introduzir o leitor não
conhecedor da espiritualidade dos Focolares a se familiarizar com os termos de
Lubich para posteriormente entender as argumentações teológicas que serão feitas
no próximo capítulo. É necessária esta apresentação porque o próprio pensamento
da natureza não está desarticulado do resto da espiritualidade, mas lhe é, por
assim dizer, uma extensão contínua. Não é possível entendê-lo sem a
espiritualidade.
Do conjunto de pontos articulados que formam a espiritualidade, o primeiro é
a experiência fundamental de que Deus é amor. No meio das circunstâncias da
guerra, o Deus vivo se manifesta para Lubich e companheiras como o “único ideal
que não passa” e que a “ama imensamente”. Dessa experiência de se seguiram
outras compreensões que iriam atravessar diversos mistérios do cristianismo,
sempre em contínua articulação com a forma de vida que se delineava. Com o
gradativo entendimento e a práxis que ele impelia, e vice-versa a práxis que
implicava em ulterior entendimento, se constituiu um círculo tal que o mundo inteiro
se tornou interpretável sob a ótica da experiência cristã. Portanto, ao dizer que um
18
determinado ponto da espiritualidade é uma “idéia”, “pensamento”, não queremos
dizer somente que foi uma conceitualização mas que o entendimento do ponto em
questão está sempre e continuamente articulado com uma vivência objetiva. Por
exemplo, Lubich e companheiras, ao entender que deviam o amor recíproco umas
às outras, iniciam atos concretos que manifestem esta compreensão e, vice-versa,
ao traduzir em atos concretos, Deus se manifesta a elas, de acordo com o
testemunho de Lubich. Esta articulação se mostrará mais clara à medida que
avançarmos com a apresentação da espiritualidade.
Em seqüência à irrupção de Deus-Amor na vida daquelas jovens, os
principais pontos desta espiritualidade são, sem sombra de dúvida, a idéia de
unidade e a figura de Jesus abandonado. É por meio deles que nos moveremos em
direção a uma compreensão gradativa de como a natureza será interpretada em
Lubich, quando utilizaremos principalmente os escritos do período místico da autora
do verão europeu de 1949. Auxiliados pela centralidade dos dois aspectos acima no
conjunto da espiritualidade veremos que em tais escritos se reflete a específica
compreensão de Trindade da autora que se espalha por todo o mundo natural
concebendo as coisas como sujeitas à lei do amor recíproco. Tal procedimento
reveste o mundo do que chamaremos, a partir de então, de uma ontologia trinitária.
Não foi arbitrária a escolha do centro da espiritualidade de Lubich como
sendo a Unidade e Jesus Abandonado: a própria autora afirmou em diferentes
ocasiões este ser seu cerne. Em síntese, a unidade se refere à presença de Cristo
no meio da comunidade em virtude do amor recíproco, conforme João 13,34 onde
se “Um mandamento novo eu vos dou: amai-vos uns aos outros. Como eu vos
amei, vós também amai-vos uns aos outros”
3
e Mateus 18,20 “Pois onde dois ou três
estiverem reunidos em meu Nome, eu estou no meio deles”. Para Lubich, estar
unidos no nome de Cristo significa estar unidos no seu amor, isto é, na caridade, em
especial, a recíproca entre os cristãos. Jesus abandonado se refere àquele particular
momento no qual Cristo descrito em Marcos 15:34, onde se “E às três horas
Jesus gritou com voz forte: ‘Eloi, Eloi, lamá sabactáni?” que significa: ‘Meu Deus,
meu Deus, porquê me abandonaste?’” e também em Mateus. Faremos uma
discussão pormenorizada do abandono no próximo capítulo. A interpretação
19
3
Todas as citações da Bíblia são extraídas da TEB - Tradução Ecumênica Brasileira
espiritual que Lubich faz é que o Abandonado é revelação do Amor de Deus para os
homens e, por consequência, o modo e a intensidade com a qual todo cristão é
chamado ao mandamento do amor: até dar a vida. A partir de então, Jesus
Abandonado será a a chave para a Unidade e mesmo sua “garantia”.
Que sejam estes os dois pontos da espiritualidade mais importantes, isto
pode ser lido no livro que justamente recebe o título Unidade e Jesus abandonado:
O livro de luz, que o Senhor escreve na minha alma tem dois aspectos: uma
página de luminoso misterioso amor: Unidade. Uma página luminosa de
misteriosa dor: Jesus Abandonado. São dois aspectos de uma única
medalha.
4
(LUBICH 1984, p.67)
Ao se referir sobre a centralidade da unidade na vida espiritual, ela diz:
A unidade é a nossa vocação específica. A unidade é aquilo que caracteriza
o Movimento dos Focolares. A unidade e não outras idéias ou palavras que
podem, de alguma maneira, exprimir outros divinos e esplêndidos modos de
ir a Deus (...). A unidade é a palavra síntese da nossa espiritualidade. A
unidade, que para nós recolhe em si, qualquer outra prática ou
mandamento, qualquer outro comportamento religioso. (LUBICH 1984, pp.
26-27)
5
E acerca da exclusividade de Jesus Abandonado, ela se refere a ele até
mesmo como esposo da alma
6
:
Tenho um esposo sobre a Terra: Jesus Abandonado. Não tenho outro
Deus além dele. Nele está todo o Paraíso com a Trindade e toda a terra
com a Humanidade (LUBICH 2003a, p.138)
Estes dois pontos sintetizam a vivência do cristianismo da autora, servem
para compreender as relações trinitárias e também servem para entender as
relações entre as pessoas. É por meio deles que se manifesta a experiência e a
compreensão do que é o Deus de amor para aquele grupo de jovens.
1.2 – AS ORIGENS: A GUERRA E A REDESCOBERTA DO CRISTIANISMO
A história do Movimento dos Focolares está intimamente relacionada com a
de Chiara Lubich, fundindo-se mesmo em alguns momentos. Esta fusão acontece de
20
4
Il libro di luce, che il Signore va scrivendo nella mia anima, ha due aspetti: una pagina
lucente di misterioso amore: Unità. Una pagina luminosa di misterioso dolore: Gesú Abbandonato.
Sono due aspetti di un’unica megalia. (Carta de 30/3/48)
5
L’unità è la nostra specifica vocazione. L’unità è ciò che caratterizza il Movimento dei
Focolari. L’unità e non altre idee o parole che possono, in qualque maniera, esprimere altri divini e
splendidi modi di andare a Dio (...). L’unità è la parola sintesi della nostra spiritualità. L’unità, che per
noi racchiude in ogni altra realtà soprannaturale, ogni altra pratica o commandamento, ogni altro
atteggiamento religioso.
6
Para aprofundamento do tema da expressão da união mística como experiência esponsal e
esvaziamento de si em Lubich, ver Fabio Ciardi (1998; 2000; 2007).
maneira clara nos primórdios, onde o próprio termo Focolare não existia e onde o
processo de institucionalização junto à Igreja Católica não estava ainda em curso.
Neste momento, talvez mais do que em outros, é onde se mais nitidamente a
experiência genuína de Lubich por meio da transparência e imediatez em seus
escritos e por meio da espontaneidade nas ações.
A circunstância que permitiu tal expressão vital foi a cidade de Trento ao final
da Segunda Guerra. Trento se encontra em um vale da região das cadeias
montanhosas das Dolomitas e era estratégica, pois se situava na rota de fuga dos
alemães para o Brennero, sofrendo um forte bombardeio no ano de 1944. Foi no
meio desta situação trágica que Lubich faz a descoberta de que tudo passa e
Deus permanece, um Deus que se manifestou como Amor, e que provocou uma
reviravolta na sua vida e daquelas que a acompanhavam. Na verdade, antes
era possível observar o ardor e o carisma de Lubich que se manifestava no seu
crescente empenho na Ordem Terceira Franciscana. Esta herança franciscana
permanecerá mesmo após a distinção dos Focolares do franciscanismo, como
mostraremos no Capítulo 2.
Em seu livro sobre a história de Lubich e do Movimento dos Focolares de
título Un Popolo Nato dal Vangelo, Michele Zanzucchi, jornalista, e Enzo Fondi,
médico e um dos primeiros colaboradores de Lubich, assim comentam este período:
Entre as duas guerras mundiais, a Igreja trentina vivia, portanto, uma
renovada vivacidade associativa, que se concentrava principalmente na
Ação Católica e na Ordem Terceira Franciscana, em particular aquele
capuchinho, mas também nos frades menores. Não é, portanto, um caso
fortuito que Chiara tenha crescido justamente nestes dois ambientes
associativos, mesmo que em um segundo momento distinguiu-se
nitidamente. (ZANZUCCHI 2003 p.43)
Silvia Lubich, seu nome de batismo, era a segunda de quatro filhos de Luigi e
Luigia Lubich. O pai era comerciante de vinhos, ex-tipógrafo, antifascista férreo e
socialista. A mãe também trabalhava em uma tipografia sob a direção de Cesare
Battisti, revolucionário marxista, católica fervorosa e inabalável de um catolicismo no
qual muito provavelmente Silvia foi educada. Seu irmão Gino, que era médico e
trabalhava em um hospital em Trento se empenhou como partigiano na resistência
por meio das Brigadas Garibaldi, uma guerrilha comunista, e depois se tornou
redator do jornal Unità aderindo, muito mais tarde, ao catolicismo, não por menos,
por influência de Silvia (ibidem, p.44).
21
Após tentativas frustradas de ingressar na universidade católica para seguir
estudos de filosofia, sua paixão original, Silvia se viu obrigada a lecionar, atividade
que desenvolveu em diversos colégios da região nos anos de 1938 até 1943. Foi
neste período e contexto que ela se empenhou cada vez mais no acompanhamento
dos jovens da Ação Católica, mas principalmente, aumentou seu envolvimento na
Ordem Terceira Franciscana. Em 1943 lecionava na Obra Seráfica
7
em Trento onde
era mestre das noviças e o padre Casimiro Bonetti, capuchinho, a acompanhava
como diretor espiritual. Ao ato de se tornar terciária franciscana, ela escolhe por
nome Chiara. Este ano foi decisivo para a jovem Lubich, pela decisão de doação a
Deus por meio de um voto de consagração. No retorno de uma viagem a Loreto,
cidade de peregrinação popular por conter a suposta casa da família de Nazaré,
entendeu que Deus a chamava a um tipo de consagração diverso daqueles
disponíveis como modelo na época (ibidem, p.49), uma outra via que se definiria
como sendo a própria dos focolares.
Neste período se formava ao redor de Chiara um pequeno grupo, que em
parte eram suas amigas e em parte alunos que ela continuava a se corresponder,
atraídos pelo magnetismo de sua personalidade carismática, afetiva e contagiosa, e
devido às suas atividades na Igreja local.
Contagiosa, exatamente assim: nenhum outro adjetivo parece mais correto
para indicar aquilo que aconteceu nos poucos messes sucessivos. Chiara,
pelas responsabilidades assumidas tempos na Ação Católica e na
Ordem Terceira franciscana da cidade, se encontrava em aproximar jovens
mais ou menos de sua própria idade. Aconteceu assim que algumas dessas
quiseram em pouco tempo seguir a sua mesma estrada: Natalia
Dallapiccola, depois Doriana Zamboni e Giosi Guella; em sequencia
Graziela De Lucca e as duas irmãs Gisella e Ginetta Calliari, Bruna Tomasi
e Aletta Salizzioni; e outro par de irmãs, as Ronchetti: Valeria e Angelella...
Tudo acontecia não obstante a estrada do focolare fosse completamente
indefinida, a não ser o “radicalismo evangélico absoluto” proposto por
Chiara” (ibidem, p.51)
Estas seriam as primeiras companheiras de Chiara para a constituição da
primeira casa dos focolares em um pequeno apartamento ocupado por elas, situado
na Piazza Cappuccini em Trento. Foi durante este início comunitário que começaram
a aparecer as primeiras intuições do que viria posteriormente a se estruturar em uma
espiritualidade, inclusive no seu aspecto mais doutrinário, por assim dizer.
22
7
A Obra Seráfica era um instituto para órfãos, organizado pelos padres Capuchinhos.
1.2.1 – Deus é Amor
A primeira e fulgurante experiência e que continuamente é repetida nos
diversos relatos das origens dos Focolares, tanto por Lubich como pelos membros
do movimento ou colaboradores, é a constatação do imenso amor de Deus por ela e
por todos. Assim ela se refere a esta descoberta:
Os bombardeios continuavam e com eles desapareciam aquelas coisas ou
pessoas que constituíam o ideal de nossos jovens corações. Uma amava a
casa: a casa foi destruída. Outra preparava-se para casar: o noivo não
voltou mais da frente de batalha. O meu ideal era o estudo: a guerra me
impediu de freqüentar a universidade.
Cada acontecimento nos tocava profundamente. Era clara a lição que Deus
nos oferecia com as circunstâncias: tudo é vaidade das vaidades. Tudo
passa.
Ao mesmo tempo, Deus colocava no meu coração, em nome de todas nós,
uma pergunta e, com ela, a resposta: Existirá um ideal que não morre, que
nenhuma bomba pode destruir, ao qual possamos nos doar por completo?
Existe sim: É Deus.
Decidimos fazer de Deus o ideal de nossa vida. Deus, que em meio à
guerra, fruto do ódio, manifestava-se a nós por aquilo que ele é: Amor.
Nossos pais refugiaram-se nos vales. Nós continuamos em Trento. Umas
por causa de trabalho ou de estudo, eu, principalmente para acompanhar o
Movimento que nascia. Hospedamo-nos num apartamento de poucos
cômodos.
Encontramos o ideal pelo qual viver: Deus, Deus amor. (LUBICH 2003a p.
42-43)
Esta experiência fundamental de Deus, constitutiva da própria experiência da
cristã, tornou-se para este pequeno grupo o ponto central e o início de uma vida
nova. Naqueles anos, “antes do Concílio Vaticano II, era claro para o povo
principalmente que Deus é Aquele que é, e que Jesus nos salvou” (ibidem, p.95).
Falar de amor soava estranho à época, e poderia ser interpretado equivocadamente.
A descoberta de um Deus que ama infinitamente muda completamente a perspectiva
do indivíduo sobre sua vida e sobre os outros. Lubich continua:
Quando uma jovem sabe que é amada, a vida muda para ela: tudo parece
mais lindo ao seu redor e cada detalhe ganha importância. Ela mesma é
levada a ser melhor e mais condescendente com os outros. Infinitamente
mais forte é a experiência do cristão, quando alcança uma compreensão
mais profunda da verdade que Deus é Amor (...)
E, sem tardar, com a revelação, com a declaração de amor do seu Deus, a
alma não sabe resistir senão declarando a ele o próprio amor. E assim tem
início a subida rumo à meta para a qual todos somos chamados: ser
cristãos perfeitos, ser santos. Deus amor, crer no seu amor, responder ao
seu amor amando, são os grandes imperativos de hoje. São o essencial que
a geração atual espera. (ibidem, p.96)
23
O fascínio explícito de tal descoberta transparecia e se traduzia também nas
atividades que elas executavam. Com a escassez gerada pela guerra e o
conseqüente aumento das necessidades básicas, aquelas jovens mulheres
começaram a organizar víveres e entregar aos pobres e desalojados, isto é, deveria
se traduzir em ações. Em um escrito por título Pequeno Tratado Inócuo, de 1950,
Lubich comenta:
Inicialmente Deus era para nós um simples nome porque não o víamos.
Acreditávamos somente na sua existência e a nele eterno era reforçada
pela demonstração da vaidade e transitoriedade de todo o resto.
Deus se manifestou à alma quando o amamos.
Compreendemos logo que amá-lo não significava somente um sentimento,
mas um ato. (LUBICH apud GIORDANI 2007 p.3-4)
8
Este “ato” era o de fazer a vontade de Deus, em conseqüência à própria
experiência do Amor de Deus que se traduzia necessariamente na assistência aos
desabrigados e pobres naqueles tempos de ruínas. Isto levaria Lubich e
companheiras a redescobrir a profundidade do evangelho na vida concreta.
1.2.2 – Uma espiritualidade a partir do Evangelho
Lubich comenta que entre uma sirene de alarme e outra, sinal para que a
população se dirigisse aos abrigos antiaéreos, levavam somente um livro: o
Evangelho. Da sua leitura resultavam as descobertas para elas fulgurantes e nos
relatos dos primórdios dos Focolares é freqüente citar fatos que mostram passagens
do Evangelho que eram imediatamente colocadas em prática.
Líamos: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 19,19). O próximo.
Onde estava o próximo?
Estava ali, ao nosso lado. Estava naquela velhinha que, a duras penas,
arrastando-se, chegava toda vez ao refúgio. Era necessário amá-la como a
si mesmos portanto, ajudá-la toda vez, amparando-a.
O próximo estava ali, naquelas cinco crianças assustadas, ao lado da mãe.
Era necessário tomá-las no colo e acompanhá-las de volta para casa.
O próximo estava ali naquele doente preso em casa, sem possibilidade de
se tratar, precisando de cuidados. Era necessário ir até ele, providenciar
remédios para ele.
Líamos: “Tudo o que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos,
a mim o fizestes” (Mt 25,40).
24
8
Dapprima Dio per noi era un semplice nome perché non Lo vedevamo. Credevamo soltanto
alla Sua esistenza e la fede in Lui Eterno era rafforzata dalla dimostrazione lampante della vanità e
transitorietà di tutto il resto. Dio si manifestò all’anima quando Lo amammo. Comprendemmo subito
che amrLo non significava solo un sentimento, ma un atto.”
Por causa das circunstâncias terríveis, as pessoas à nossa volta tinham
fome, sede, estavam feridas, não possuíam roupas, nem casa. Então,
preparávamos panelões de sopa que distribuíamos entre elas (LUBICH
2003a p.44).
Todo esse impulso de generosidade se tornou rapidamente contagioso,
provocando o mesmo radicalismo ao amor em quem as encontrava. Segundo
Lubich, provocava também a generosidade do próprio Deus que se manifestava com
sua providência, como uma resposta àqueles atos, conforme o conhecido relato:
Um dia, um pobre pediu um par de sapatos mero quarenta e dois. Uma
de nós, diante do sacrário na igreja, formulou esta oração: “Dá-me, Senhor,
um par de sapatos número quarenta e dois para ti, no pobre”. Saindo da
igreja, uma moça, amiga sua, lhe entregou um pacote. Ela o abriu. Dentro,
havia um par de sapatos número quarenta e dois. Este é apenas um dos
milhares de exemplos. “Dai e vos será dado” (Lc 6,38) lemos num outro dia
no Evangelho. Dávamos. havia um ovo em casa para todas? Nós o
entregávamos ao pobre. E eis chegar pela manhã um pacotinho de ovos.
Era assim com diversas coisas. Jesus prometera e agora cumpria. O
Evangelho era, portanto, crível, verdadeiro (ibidem, p.44).
Entendemos que estas experiências davam uma “empiria” à vivência do
evangelho tal que, além do contágio e do entusiasmo acima, ressaltavam o realismo
da vivência cristã, cunhadas pela exclamação “Eram um pequeno eco das palavras
dos apóstolos: Cristo ressuscitou. Aqui se dizia: Cristo está vivo!” (ibidem, p.44).
Entretanto, algumas passagens das escrituras logo cedo se apresentaram
como prediletas ou, talvez, particularmente destinadas àquele grupo. Estas eram
aquelas que falavam do irmão e do amor recíproco. Como resposta à pergunta
sobre qual seria a vontade de Deus que ele gostaria que fizessem de modo especial,
lhes pareceu ser a passagem de João 15,12-13, onde se sobre o mandamento
novo: “Eis o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.
Ninguém tem maior amor do que aquele que se despoja da vida por aqueles a quem
ama.” A partir de então, o mandamento do amor recíproco ocuparia uma posição
especial na espiritualidade de Lubich e os Focolares (ibidem, p.45). Ao amor
recíproco se sucederia a presença de Cristo na comunidade de fiéis e, nos termos
de Lubich, a unidade.
1.2.3 – A Unidade
“A unidade é nossa vocação específica” (LUBICH 2003a, p.55), ela é a
“palavra síntese”, “esta é a finalidade para a qual nascemos, o escopo para o qual
25
ele (Deus) nos suscitou” (ibidem, p.59). Assim Lubich define o propósito de seu
movimento espiritual. Esta centralidade da unidade teve um início histórico na leitura
de João 17,11-21, por ocasião de uma fuga daqueles bombardeios na cidade de
Trento (ibidem, p.42) e com o passar do tempo se definiu cada vez mais central até
se tornar a “vocação específica”: “Essas palavras constituem a ‘carta magna’ da
nossa vida e de tudo o que está por nascer em torno de nós” (ibidem, p.56).
Vejamos nos termos da própria autora:
Unidade: palavra divina. Se, a um dado momento, ela fosse pronunciada
pelo Onipotente, e os homens a pusessem em prática nas suas mais
variadas aplicações, veríamos o mundo de repente parar em sua andança
geral, como em uma brincadeira de filme, e retomar a corrida da vida na
direção oposta. Inúmeras pessoas retrocederiam no caminho largo da
perdição e se converteriam a Deus, entrando pelo estreito... Veríamos
famílias desmembradas por discórdias, arrefecidas pelas incompreensões,
pelo ódio, cadaverizadas pelos divórcios, recomporem. As criaas
nascerem em um clima de amor humano e divino, e se forjarem homens
novos para um amanhã mais cristão.
As fábricas, ajuntamentos muitas vezes de “escravos” do trabalho, em um
clima de tédio, se não de blasfêmia, tornarem-se um lugar de paz, onde
cada um faz a sua parte para o bem de todos.
As escolas ultrapassarem a breve ciência, colocando conhecimentos de
toda espécie a serviço das contemplações eternas, aprendidas nos bancos
escolares como em um desvendar-se cotidiano de mistérios, intuídos a
partir de pequenas fórmulas, de simples leis, até mesmo dos números...
Os parlamentos se transformarem em um lugar de encontro de homens a
quem interessa mais o bem de todos do que a parte que cada um defende,
sem enganar irmãos ou pátrias.
Em suma, veríamos o mundo tornar-se melhor e o Céu descer como por
encanto sobre a terra e a harmonia da criação servir de moldura à concórdia
dos corações.
Veríamos... É um sonho! Parece um sonho!
Contudo, Tu não pediste menos quando rezaste: “Seja feita a tua vontade
na terra como no Céu” (Mt 6,10). (ibidem, p.143)
A unidade tem uma abrangência universal, principalmente nas relações
humanas, sendo levada a cabo na sua conseqüência para a sociedade, mas
também e este é o ponto que nos interessa para interpretar a própria natureza
produzindo um conhecimento sobre a natureza. Na citação acima, este modo está
presente na fórmula sintética nos termos do parágrafo onde se que os efeitos da
unidade nas escolas as levaria a “ultrapassar a breve ciência” em direção às
“contemplações eternas”. A Unidade, que tem abrangência universal, encontra sua
origem no desejo de Deus para a humanidade.
26
Certamente a referência mais freqüente e com mais ênfase à unidade, por
possuir um forte aspecto moral, é a unidade entre as pessoas, fruto do vínculo da
caridade recíproca que chama a presença de Cristo na comunidade, conforme a
passagem “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, estou eu no
meio deles” (Mt 18,20). outras referências à unidade que tomam termo mesmo
de “fraternidade universal”, que, em geral, procuram ser uma tradução da
compreensão original da unidade para termos mais laicos e acessíveis à sociedade
secular.
9
A unidade, portanto, é em primeiro lugar uma graça: a presença de Cristo no
meio da comunidade. A interpretação mais comum desta passagem fora do
ambiente dos Focolares aponta mais a presença de Cristo na assembléia da Igreja,
em geral se referindo ao culto, mas Lubich reinterpreta a unidade como sendo a
presença de Cristo por ocasião do amor recíproco, sendo quase mesmo a
continuação do imperativo do amor cristão.
A unidade! Mas quem poderá se arriscar de falar dela? É inefável como
Deus. Se sente, se vê, se goza, mas é inefável. Todos gozam da sua
presença, todos sofrem com a sua ausência. É paz, gáudio, amor, ardor,
clima de heroísmo, de suma generosidade. É Jesus entre s. (LUBICH
1981).
10
Lubich relata desta maneira a ocasião da descoberta da unidade e seu
chamado a colaborar na sua realização:
Com minhas novas companheiras, encontrei-me um dia num porão escuro,
de vela acesa e o Evangelho na mão. Abri-o. E estava a oração de Jesus
antes de morrer: “Pai [...] que todos sejam um” (Jo 17,11-21). Era um texto
difícil para a nossa competência, mas aquelas palavras pareciam iluminar-
se uma a uma e nos punham no coração a certeza de ter nascido para
aquela página do Evangelho.
Na festa de Cristo-Rei, encontramo-nos ao redor de um altar. Dissemos a
Jesus: “Tu sabes como é possível realizar a unidade. Aqui estamos. Se
queres, serve-te de nós”. A liturgia do dia nos fascinou: “Pede”, dizia ela. “e
eu te darei as nações como herança, os confins da Terra como
propriedade” (Sl 2,8) (idem, 2003a p.42)
27
9
Para uma interessante contruibuição mais substancial em termos de “fraternidade” feita por
algum colaborador dos Focolares que possui a característica da tradução para uma linguagem
secular e universalmente aceita do conceito de unidade em campo político é Antonio Maria Baggio
(BAGGIO 1997, 2006 e 2008). Para o campo econômico, ver Luigino Bruni (2005).
10
“L'unità! Ma chi potrà azzardarsi di parlare di lei? E' ineffabile come Dio. Si sente, si vede, si
gode ma è ineffabile! Tutti ne godono della sua presenza, tutti ne soffrono della sua assenza. E' pace,
gaudio, amore, ardore, clima di eroismo, di somma generosità. E' Gesù fra noi.”. Todas as traduções
do italiano são livres.
A partir da descoberta da vocação à unidade, e de sua relação com o vínculo
da caridade fraterna, Lubich iniciará a construção do que ela chamaria, mais
recentemente, de castelo exterior, em referência ao castelo interior de Teresa
D’Avila: uma presença de Cristo com menos ênfase na interioridade do crente, e
mais na exterioridade da comunidade. O castelo exterior é a própria unidade, a
presença de Cristo na comunidade. Lubich chamará sua espiritualidade de
comunitária, ou coletiva (ibidem, p.69-74).
Se estamos unidos, Jesus está entre nós. E isto vale! Vale mais do que
qualquer outro tesouro que nosso coração possa ter: mais do que a mãe, o
pai, os irmãos, os filhos.
Vale mais do que a casa, o trabalho, os bens; mais do que as obras de arte
de uma grande cidade como Roma; mais do que os nossos afazeres, mais
do que a natureza que nos circunda, com as flores e os campos, o mar e as
estrelas; vale mais do que a nossa própria alma.
Foi Ele que, inspirando os seus santos com suas verdades eternas, marcou
época em cada época.
Esta é também a sua hora: não a de um santo, mas Dele, Dele entre nós,
Dele vivendo em nós, que edificamos, em unidade de amor, o seu Corpo
Místico.
Mas, é preciso dilatar o Cristo, fazê-lo crescer em outros membros;
tornarmo-nos, como Ele, portadores de Fogo. Fazer de todos um e em
todos o Um!
Vivamos, então, na caridade, a vida que Ele nos dá momento por momento.
É mandamento fundamental o amor fraterno. Por isso, tem valor tudo o que
é expressão de sincera e fraterna caridade. Nada do que fazemos tem valor,
se nisso não sentimento de amor pelos irmãos; pois Deus é Pai e tem no
coração, sempre e unicamente, os filhos. (ibidem, p.145)
O mandamento do amor ao próximo se tornará também recíproco e se
configura, segundo o entendimento de Lubich, a comunidade cristã, a Igreja local,
que mantém viva a presença de Cristo entre os fiéis. Com esta presença se verifica
a Unidade. uma distinção mais pedagógica ou espiritual, do que teológica, entre
unidade e Jesus no meio da comunidade, no dizer de Lubich e dos Focolares, mas
para os efeitos deste trabalho, consideraremos principalmente o sentido teológico de
unidade.
Para que este amor fraterno possua uma “garantia” de continuidade ele
deveria ser alimentado pelo aspecto do inevitável sofrimento que o acompanha. Ali
se encontra a especial compreensão do seguimento de Cristo crucificado.
28
1.2.4 – Jesus Abandonado
Jesus abandonado esteve presente desde o início do despertar espiritual de
Lubich e companheiras. A compreensão específica do abandono inicia com um fato
ocorrido em 24 de janeiro de 1944, quando uma delas, em virtude daquele trabalho
com os pobres, havia contraído uma infecção na face. Na ocasião, um sacerdote
que vinha entregar a comunhão e este pergunta a Lubich qual seria o momento em
que Jesus mais havia sofrido. O sacerdote comenta, então, que lhe parecia que o
maior sofrimento teria sido quando Cristo, na cruz, bradou “Meu Deus, meu deus,
porque me abandonaste?” (Mc 15,34). A resposta daquelas jovens que queriam
dedicar suas vidas a Deus foi imediata: “Se a maior dor de Jesus foi o abandono por
seu Pai, nós o escolhemos como Ideal e o seguimos assim”
11
(LUBICH 1984, p.
50-52; ver também GIORDANI 2007, p.122).
Jesus no particular do momento do grito na cruz passará a ser de orientação
para o entendimento da qualidade e da intensidade do amor cristão pois, para
Lubich, este foi o momento em que ele mais amou. A partir de então se seguiu uma
gradativa experiência da cruz de Cristo na expressão do abandono como a chave
para a unidade com Deus e com os irmãos por ser condição e garantia do vínculo da
caridade tornando-se um dos pontos centrais na espiritualidade dos Focolares.
A unidade pedia uma dedicação exclusiva e intensa, implicava em atos
concretos e com freqüência exigiam tudo. Gradativamente Lubich compreendeu que
a unidade somente seria possível se os indivíduos tivessem como modelo aquele
ato de amor irrepetível, que demonstra seu ápice mesmo, o oferecimento de si que
Cristo consuma na cruz, a doação completa no seu extremo: Jesus abandonado.
Jesus abandonado, no momento do maior sofrimento se apresentava, assim, como
aquele que deveria ser seguido, imitado no sentido do exemplo do amor até o fim.
Ele nos ensina a anular o que dentro de nós e fora des, para “fazer-
nos um” com Deus; ensina-nos a fazer calar os pensamentos, os apegos, a
mortificar os sentidos, a pospor até as inspirações para podermos “fazer-
nos um” com nossos próximos, ou seja, para servi-los e amá-los. (LUBICH
1985, p.63)
A virtude, que une a alma a Deus é a humildade o aniquilamento. (...) A
unidade da alma com Deus, que nela está presente, pressupõe o
aniquilamento total, a humildade mais heróica. (idem, 2003, p.57).
29
11
“Se il più grande dolore di Gesú è stato l’abbandono da parte del Padre suo, noi lo
scegliamo come Ideale e lo seguiamo cosí”.
Esta experiência, antes de ser uma especulação intelectual, era uma relação
pessoal, existencial e única com o Abandonado.
Estou convencida de que a unidade, no seu aspecto mais espiritual, mais
íntimo, mais profundo, não pode ser entendida senão por aquela alma que
escolheu como sua herança na vida... Jesus Abandonado, que clama “Deus
meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (idem,1985, p.72)
Os dois “aspectos de uma única medalha”, isto é Jesus abandonado e a
Unidade, fixaram-se como os pontos cardeais nos quais se sustentava a
espiritualidade de Lubich e por meio dos quais se impulsionaria a ação daí para
frente de todo o movimento nascente.
O livro de luz, que o Senhor vai escrevendo em minha alma, tem dois
aspectos: uma página luzente de misterioso amor, a unidade; e uma página
luminosa de misteriosa dor, Jesus Abandonado. São dois aspectos de uma
única medalha. (idem, 2003a, p. 65)
Toda a dor ou sofrimento que se apresentava era, portanto, uma
apresentação de um aspecto da dor do próprio Cristo na cruz. Mas em especial
aquela “misteriosa dor” que fez Jesus gritar a pergunta do abandono é que exerceria
um fascínio, pelos seus aspectos de ser imitável, de exigir uma exclusividade
esponsal e de ser condição para a unidade com Deus e com os irmãos.
Após o período iluminativo de 1949, que retomaremos em seguida, Lubich
afirmará em uma difundida meditação, sob o título tirado de Paulo “Não conheço
senão Cristo e Cristo crucificado”, a intensidade desta escolha fundamental:
Tenho um Esposo na terra: Jesus Abandonado. Não tenho outro Deus
além Dele.
Nele está todo o Paraíso com a Trindade e toda a terra com a Humanidade.
Por isso, o seu é meu e nada mais.
Sua é a Dor universal e, portanto, minha.
Irei pelo mundo à sua procura em cada instante da minha vida.
O que me faz sofrer é meu.
Minha, a dor que me perpassa no presente. Minha, a dor de quem está ao
meu lado (ela é o meu Jesus). Meu, tudo aquilo que não é paz, gáudio,
belo, amável, sereno... Numa palavra: aquilo que não é Paraíso. Pois eu
também tenho o meu Paraíso, mas ele está no coração do meu Esposo.
Outros Paraísos não conheço. Assim será pelos anos que me restam:
sedenta de dores, de angústias, de desesperos, de melancolias, de
desapegos, de exílio, de abandonos, de dilacerações, de... tudo aquilo que
é Ele, e Ele é o Pecado, o Inferno.
Assim, dessecarei a água da tribulação em muitos corações próximos e
pela comunhão com meu Esposo onipotente – distantes.
Passarei como Fogo que devora tudo o que de ruir e deixa em a
Verdade.
30
Mas é preciso ser como Ele, ser Ele no momento presente da vida. (ibidem,
p.139)
Como vemos, Jesus abandonado tornou-se a pedra angular, ponto
fundamental, ao lado da unidade e mesmo a condição para “obtê-la”. “Eis o antídoto
da morte: Jesus crucificado e abandonado”, dirá Giordani (GIORDANI 2007, p.124).
Retornaremos às nuances e à profundidade teológica da compreensão de Jesus
abandonado no próximo capítulo, nos três aspectos que ele encerra: o seguimento
de Cristo no seu aspecto interior e esponsal, o modo do amor, e a condição para a
unidade.
As redescobertas do cristianismo que Lubich fez e comunicou às outras
pessoas de Deus que é amor; de que devemos fazer a sua vontade; de sua vontade
é amor ao próximo; e de que este amor ao próximo implica e se molda na Cruz;
constituíam a primeira etapa de um pequeno movimento, localizado aos arredores
de Trento, para uma segunda etapa de grande difusão pelo mundo. A fase crítica
desta passagem foi a experiência mística de 1949. Este período inicial até que inclui
o período místico constituem, ainda hoje, uma espécie fundação para os membros
do Movimento dos Focolares, como um relato mitopoético de origem, real portanto, e
continuamente relido e mantido. Serão nos textos místicos que encontraremos as
principais e mais importantes referências à natureza e sua articulação com o que
apresentamos até aqui da espiritualidade.
1.3 – A ILUMINAÇÃO MÍSTICA
Após aqueles primeiros anos nos quais se redescobriam e se viviam algumas
das verdades fundamentais do cristianismo e, contemporaneamente, se observava o
nascimento do movimento para o qual se trabalhava intensamente, Lubich, por
ordem médica, se encontrou na necessidade de descanso (ZANZUCHI 2003 p.94).
Assim, se deslocaram para um chalé em Tonadico, na cadeia de montanhas das
Dolomitas, recebido em herança por uma das companheiras, para repouso durante o
verão de 1949. “Foi após um encontro entre Giordani e Lubich que se abriu o
momento carismático mais fértil de inspiração para Chiara. Um período de
intensíssima comunhão com Deus e entre os membros do núcleo mais estreito dos
focolares.” (ibidem, p.95). Neste encontro, Giordani propõe se ligar a Lubich
semelhantemente ao modo com o qual os indivíduos casados faziam com Catarina
31
de Sena. Em resposta, Lubich propõe um pacto de amor recíproco, isto é, que por
meio do “vazio de amor”, Cristo, presente na alma de cada um, é que realizaria a
unidade entre eles, conforme a vida de caridade nos anos anteriores vinha sendo
vivida. Após a comunhão eucarística, então, é que Lubich diz ter feito uma
experiência mística para ela extraordinária: “E naquele momento me encontrei no
seio do Pai” (LUBICH apud ROSSÉ 2009b, p.502). Nos dias e meses seguintes se
desdobraria a experiência mística em toda intensidade e profusão e que se repetiria
nos dois anos seguintes (ZANZUCHI 2003 p.95). É nos textos escritos que se
preservaram desse período que podemos ler, por meio das citações presentes na
revista Nuova Umanità e outras fontes menores, os principais textos referentes ao
pensamento de Lubich sobre a natureza. Este período ficou conhecido como
“Paraíso de 49” que se espalhou gradativamente também para o resto do movimento
nascente em virtude da espiritualidade ser eminentemente coletiva.
Para uma descrição mais pormenorizada, e nos termos da própria Lubich
sobre este período, ver a tradução de artigo em Nuova Umanità nos anexos sob o
título Relato da contemplação mística 1949. Nele, Lubich relata com detalhes a
intensa comunhão com a Palavra de Deus, o Evangelho, com os irmãos, e com a
Eucaristia.
No fragmento que segue, Lubich descreve um momento em que percebe a
presença de Deus sob as coisas que, pensamos, permitiu como que uma
reconciliação com a natureza. Este é, para efeito da nossa tese, seu principal
testemunho. O texto aparece em duas publicações distintas (ROSSÉ 2001, p.830;
CIARDI 2006, p.830). Aqui compusemos o trecho completo, que acreditamos fazer
parte de uma meditação ainda maior:
Eu percebi que não era tudo chama somente dentro de mim
12
mas, de certo
modo, também fora de mim.
13
Tinha a impressão de perceber, talvez por
uma graça especial de Deus, a presença de Deus sob as coisas. Portanto,
se os pinheiros estavam inundados pelo sol, se os córregos caíam nas
cascadas brilhando, se as margaridas e outras flores e o céu estavam em
festa pelo verão, mais forte era a visão de um sol que estava sob todo o
criado. Via, de certa forma, creio, Deus que sustenta e rege as coisas. E
Deus fazia de tal forma que elas não fossem assim como nós as vemos;
estavam todas ligadas entre elas pelo amor, todas, como dizendo, umas das
32
12
Fábio Ciardi explica que chama, aqui, se refere à palavra do Evangelho quando cai na
alma, se transforma em fogo, em chama, em amor (CIARDI 2006, p.173).
13
Até aqui, CIARDI 2006, p.830. Daqui em diante, ROSSÉ 2001, p.830.
outras enamoradas. Portanto, se o córrego acabava no lago era por amor.
Se um pinheiro se erguia ao lado de outro era por amor. E a visão de Deus
sob as coisas, que dava unidade ao criado, era mais forte que as próprias
coisas; a unidade do todo era mais forte que a distinção das coisas entre
elas.
14
(CHIARA apud ROSSÉ 2001, p.830).
Lubich relata em chave confessional: para ela, a experiência tem uma alta
densidade de realismo, isto é, a mística e a contemplação eram fruto da vivência
evangélica assim como seus frutos de conversão e de formação de comunidade.
Esta experiência mística não tinha somente uma utilidade alegórica para entender
Deus, mas era, por assim dizer, desvelação para mostrar a verdadeira realidade das
coisas: Deus que as sustenta.
Giordani também parece concordar que havia um aspecto contemplativo na
natureza circundante ao escrever sobre aquele período:
E eno, quando se ia à campanha, aquelas florestas alpinas se
transfiguravam em catedrais, aqueles cumes pareciam picos de cidades
santas, flores e ervas se coloriam com a presença de anjos e santos: tudo
se animava em Deus. Caíam as barreiras da matéria. Esta também era uma
forma daquela reconciliação de sagrado e profano, por meio da qual,
eliminado o feio, o mal, o deformado, se recuperavam por todas partes os
valores de beleza e de vida da natureza, em todos os seus aspectos.
Os seus discursos [de Lubich], como as obras, resultavam em um assíduo
desmantelamento de detritos mortuários para restabelecer a comunicação,
para si tão simples, da natureza com a sobrenatureza, da matéria com o
espírito, da terra com o Céu. Uma duplicação dos valores da existência na
terra; um abrir a passagem ao paraíso.
15
(GIORDANI 2007 p. 153)
É difícil distinguir se Giordani utiliza um artifício literário poético para exprimir
estados de espírito, o que lhe concederia uma certa licença na escrita; ou se ele
33
14
Io avvertii che non era tutto fiamma solo dentro di me [riferimento alla Parola del Vangelo]
ma, in certo modo, anche fuori di me. [até aqui, CIARDI 2006. p.173] Avevo l'impressione di percepire,
forse per una grazia speciale di Dio, la presenza di Dio sotto le cose. Per cui se i pini erano inondati
dal sole, se i ruscelli cadevano nelle loro cascatelle luccicando, se le margherite e gli altri fiori ed il
cielo erano in festa per l'estate, più forte era la visione d'un sole che stava sotto a tutto il creato.
Vedevo, in certo modo, credo, Dio che sostiene, che regge le cose. E Dio faceva che esse non
fossero così come noi le vediamo; erano tutte collegate fra loro dall'amore, tutte, per così dire, l'una
dell'altra innamorate. Per cui se il ruscello finiva nel lago era per amore. Se un pino s'ergeva accanto
ad un altro era per amore. E la visione di Dio sotto le cose, che dava unità al creato, era più forte delle
cose stesse; l'unità del tutto era più forte che la distinzione delle cose fra loro.”
15
“E allora quando s’andava in campagna quelle foreste alpine si trasfiguravano in cattedrali,
quelle cime parevano picchi di città sante, fiori ed erbe si coloravano della presenza di angeli e di
santi: tutto s’animava in Dio. Cadevano le barriere della materia. Era anche questa una forma di quella
riconciliazione di sacro e di profano, per cui, eliminato il brutto, il male, il deforme, si ricuperavano
d’ogni parte i valori di bellezza e di vita della natura, in tutti i suoi aspetti.
I discorsi di lei (Chiara), come le opere, risultavano un assiduo sgombero di detriti mortuari per
ristabilire la comunicazione, per così semplice, della natura con la soprannatura, della materia con
lo spirito, della terra col Cielo. Una duplicazione dei valori dell’esistenza in terra; un aprire il valico al
paradiso.”
descreve as coisas assim como ele as experimentava, isto é, se ele mesmo
experimentou algum tipo de contemplação ou êxtase. O mais provável, nos parece,
é que Giordani tenta descrever em chave literária o que Lubich na época vivia
pessoalmente e comunicava aos que lhe estavam próximos, dado que o espírito
daquele grupo era essencialmente comunitário e a vida era compartilhada. Isto se
torna mais claro se notarmos que sua descrição da natureza é semelhante à da
própria Lubich. O argumento sobre o qual se debruçavam estas visões era, em
primeiro lugar, as realidades de Deus, Jesus, o Espírito Santo, o paraíso, o inferno,
Maria, em suma, diversas imagens sobre aquilo que o próprio cristianismo contém.
O tema da Criação nestes relatos místicos é frequente. Neles, a criação tem
sua consistência porque nasce do interior do próprio Deus e ela também está
destinada, na visão escatológica, a permanecer em Deus. Assim Lubich via:
Eu esperava que Tu [Deus] um a um me mostrasse os santos e vi, ao invés,
todo o Paraíso na sua veste florida e estrelada e variopinta com os mares,
com os montes, com os lagos, com as estrelas, com o sol, com a lua, com
os vales e todo o Paraíso.
16
(LUBICH apud ROSSÉ 2009a, p.370)
O aspecto extraordinário destas experiências não deve ser interpretado como
parte de uma revelação especial, mas que é a expressão sensível, intelectual, de
realidades que estão ancoradas na e que fazem parte da constituição da própria
comunidade eclesial (ROSSÉ 2009b, p.502). Entendemos que as experiências
místicas seriam como um caso especial para o conjunto inteiro da experiência cristã,
que dá o caráter de objetividade empírica na vivência concreta da caridade.
Estas verdadeiras contemplações, que de início começaram absolutamente
inesperadas tomando Lubich de surpresa, passaram a se tornar quotidianas e deram
alento e força para aquele pequeno grupo e foram nos anos seguintes e pensamos
que foi, em parte, o motivo de um início da expansão do movimento ainda nascente.
Zanzucchi afirma que este período é paradoxal. Por um lado a crescente
investigação por parte da Igreja, em vistas a um melhor e mais aprofundado estudo
do movimento por suas características diferentes do associativismo católico da
época, causaria não poucos sofrimentos aos dirigentes do movimento, mas também
34
16
Io m’attendevo che Tu ad uno ad uno mi mostrassi i santi e vidi invece tutto il Paradiso
nella sua veste fiorita e stellata e variopinta con i mari, con i monti, con i laghi, con le stelle, col sole,
con la luna, con i viali e tutto il Paradiso.”
esse veria um crescimento vertiginoso em um período que iria, aproximativamente
de 1949 até quinze anos mais tarde (ZANZUCCHI 2003, p.96). O período místico,
entretanto, não se prolongaria por todo esse período. Ele se repetiu ainda em 1950,
e naquele ano foi “truncado” pelo próprio Giordani por preocupar-se pela saúde de
Lubich em sua última viagem feita às Dolomitas. Foi nesta ocasião que Chiara
escreveria a meditação, citada acima, que começa com “Não conheço senão
Cristo e Cristo crucificado”. Após este período, o que se viu foi constituição das
“Mariápolis”, a expansão do pequeno movimento, para outras regiões da Itália, da
Europa e para as Américas e ao Brasil.
1.4 - CONCLUSÃO
Procuramos apresentar muito brevemente a situação histórica em que
ocorreu o início do Movimento dos Focolares, a estrutura fundamental da
espiritualidade, em particular os dois pontos fundamentais de Unidade e Jesus
Abandonado, e a relação desses pontos com a comunidade nascente. Também
mostramos alguns trechos do período místico de Lubich, onde a questão da Criação
se torna presente. Retomaremos mais textos desse tipo adiante, quando
delinearemos a questão teológica que está por detrás. À medida que as
compreensões do cristianismo iam se delineando, também se intensificava uma
particular vivência comunitária. Esta relação entre a espiritualidade, entendida como
uma particular interpretação do cristianismo, e formação de um grupo comunitário
com sua linguagem compartilhada é de especial importância para esta dissertação.
Ela indicará algumas analogias entre a explicação científica do mundo natural e a
religiosa.
35
CAP 2 – DA ESPIRITUALIDADE LUBICHNIANA A UMA ONTOLOGIA
TRINITÁRIA: O CASO DA CRIAÇÃO
2.1 - INTRODUÇÃO
Devemos entender qual é a seriedade teológica que por um lado parte da
experiência de Lubich descrita e, por outro, procura exatamente explicar a esta
experiência. Em outras palavras, investigaremos o modo com o qual o mundo da
vida próprio de Chiara Lubich se exprime na tentativa de explicar tanto sua própria
experiência e, dentro desse quadro, o mundo físico natural. Assim, exploraremos os
conceitos centrais de unidade e Jesus abandonado e sua relação com a criação. A
experiência espiritual de Lubich e companheiras, portanto, nos servirá como pano de
fundo orientador para moldar uma teologia da criação e fornecer subsídios para
caminhos de diálogo com as ciências naturais no terceiro capítulo. Por outro lado, a
experiência nos servirá também como objeto teológico enquanto afirmações sobre o
mundo natural. A hipótese orientadora é que a vivência concreta de uma
espiritualidade poderia produzir um conhecimento religioso e teológico que tem uma
reserva interna extra, por estar fundado, além da tradição e escrituras, também
numa experiência concreta coletiva objetiva. É a própria religião que pensa a si
mesma e o mundo.
Entendemos que o aspecto objetivo na experiência religiosa é algo que está
imediatamente próximo ao indivíduo, algo que lhe é evidente, que acontece agora e
já. A experiência religiosa é concreta porque é empiricamente verificada, não
mecanicamente como nas ciências naturais, mas nas relações de sentido: ao amar
as pessoas como recomendado nas escrituras o sujeito verifica a alegria de uma
vida nova, a motivação nas ações ao invés da repetição automática, o propósito
para o que se faz, a manifestação de Deus nas circunstâncias, e - importante para
nosso estudo - um novo entendimento do mundo. Ainda essa experiência é coletiva,
pois as mesmas relações de sentido são confirmadas pelos amigos, colegas e
irmãos.
A tarefa de caracterizar este entendimento e conhecimento religioso do
mundo, um conhecimento sub specie aeternitatis, nos coloca imediatamente em
36
uma dificuldade. Onde encontrar uma teologia sistematizada que nos sirva como
explicação de uma espiritualidade que nasce principalmente como uma vivência? Se
houver, conforme os comentadores colaboradores de Lubich, realmente uma
originalidade nesta espiritualidade, esta teologia não existe, ela não poderá ser
encontrada “pronta para uso” por assim dizer. Como saída desse problema, é
necessário que nos proponhamos uma tarefa bem mais arriscada: recortar em
alguns autores aqueles conceitos que dêem conta, para nossos propósitos, o lado
teológico da estrutura da espiritualidade. Felizmente esta tarefa foi realizada, em
grande parte, pelos próprios colaboradores de Lubich, em especial aqueles que se
dedicaram a pensar sua espiritualidade “coletiva” no que foi chamado de Escola
Abbà. É principalmente por meio deles que nos moveremos em direção à
elaboração do que foi chamado de uma ontologia trinitária que é utilizada para a
compreensão do mundo criado.
2.2 – O ABANDONO DE JESUS
Dada a centralidade do grito de abandono na espiritualidade da unidade, é
necessário enquadrar teologicamente o grito do abandono de Jesus não somente
como um particular presente no evangelho de Marcos (e Mateus que o segue), mas
mostrar a viabilidade da idéia que o abandono é uma chave interpretativa válida para
o inteiro fato da paixão e morte de Cristo, conforme parece ser o caso em Lubich.
Isto implica que o grito do abandono conteria uma densidade teológica tal que
permitiria entrar no centro da revelação: nele estaria explicado o amor de Deus pelo
mundo ao dar seu Filho para a salvação dos homens até a renovação do cosmo.
Evidentemente, somente é possível pensar o abandono a partir da no
ressuscitado, o que implica em reconhecer o fato histórico da ressurreição. O
próprio atravessamento do mal implica numa intensidade de amor da parte de Deus
que reflete, na experiência do homem Jesus, em um abandono. É desta forma que o
Abandonado se aproxima da experiência humana de se sentir distante de Deus. A
relencia desta aproximação deve ficar clara: para Chiara Lubich, Jesus
abandonado, o “esposo da alma”, é principalmente aquele que revela o Deus-Amor
que sustenta a realidade do mundo.
37
2.2.1 – O abandono na teologia de Marcos.
Qualquer aproximação à compreensão do grito do abandono deve levar em
conta em especial o dado literário e histórico. Este estudo foi elaborado em especial
por Gérard Rossé em dois livros: O Grito de Jesus na Cruz (ROSSÉ 1984) e o mais
recente Maledetto l’appeso al legno (ROSSÉ 2006a). Este último atualiza o primeiro
com os estudos mais atuais e será sobre este que referiremos nas próximas
páginas, com a intenção de investigar tanto o fato histórico objetivo quanto o
teológico que nasce dele.
O grito de Jesus aparece no evangelho de Marcos e Mateus. Mateus tinha em
mãos a redação de Marcos como uma sua fonte e, portanto, o segue no relato.
Porém, os outros evangelistas, João e Lucas, apesar de também possuírem o texto
de Marcos como fonte disponível e dele se utilizarem, não incluem aquelas palavras
dramáticas. As razões dessa omissão se explicam pelas teologias de cada autor, “as
palavras de Jesus na cruz adquirem todo o seu significado à luz do inteiro evangelho
e precisamente à luz da visão teológica do evangelista” (ROSSÉ 2006a p.60).
Portanto, não seria correto tentar concordar os quatro evangelhos sinóticos na
tentativa de reconstrução histórica objetiva do que Jesus teria pronunciado nos
momentos anteriores à sua morte, sobrepondo as palavras atribuídas a Jesus em
cada um dos livros. As intenções dos evangelistas não são as de apresentar uma
resenha histórica dos fatos. Rossé é claro:
As palavras de Jesus na cruz podem ser interpretadas adequadamente
somente no interior do Evangelho no qual são lidas; em outros termos, se
se leva em consideração o pensamento teológico próprio do evangelista
que as transmite ou as escreve, sem misturar com aquelas dos outros.
(ididem, p.63)
Tomando o evangelho de Marcos, que é o relato mais antigo da paixão que se
tem disponível (ibidem, p.64), Rossé se pergunta, portanto, como podemos
interpretar o versículo. Marcos no seu Evangelho está interessado em “trazer à luz a
identidade para a Daquele que morre e o significado de sua morte” (ibidem, p.30).
O relato, escrito no ano 70 e, portanto, 40 anos após a morte de Cristo ocorrida em 7
de abril do ano 30 (ibidem, p.68), escreve em base a uma tradição oral da paixão
mais antiga, que provavelmente remonta à primeira Igreja de Jerusalém (ibidem, p.
31). Tudo indica que temos diante de nós a mais antiga compreensão e
interpretação do ocorrido sobre o Gólgota (ibidem, p.71).
38
A tese central de Rossé é que sobre a morte de cruz pesava, na época, uma
maldição da lei, de acordo com o livro do Deuteronômio (Dt 21,22), especialmente
quando esta morte era conforme a vontade e juízo do Sinédrio, em particular sob
acusação de blasfêmia (Cf. Mc 14,60-65). A sanção da lei que apresentava esta
maldição diz:
“Se um homem, por seu pecado, tiver incorrido na pena de morte, e tu o
tiveres feito morrer enforcado numa árvore, seu cadáver não passará a
noite na árvore; deves enterrá-lo no mesmo dia; pois o enforcado é uma
maldição de Deus. Não tornarás impura tua terra, que o Senhor teu Deus, te
deu em patrimônio.” (Dt 21, 22).
Na época da crucifixão de Jesus, o entendimento desta passagem não estava
restrito ao enforcamento, conforme descrito no texto sagrado, mas era estendida
também para a crucifixão. Rossé afirma que havia uma crucifixão já praticada dentro
do próprio judaísmo (Cf. ROSSÉ 2006a, p10) que estava sob a maldição
determinada em Dt 21,22. Os pergaminhos descobertos nas grutas de Qumran,
próximo ao mar morto, especialmente o texto conhecido como Rolo do Templo,
confirmariam essa tese. Referindo-se aos delitos de traição ou blasfêmia contra o
povo de Israel nesse pergaminho se lê que aquele que comete estas faltas:
o pendurarás ao madeiro, e morrerá (...). E não deixarás o seu cadáver
sobre o madeiro durante a noite, mas deverás sepultá-lo no mesmo dia,
porque são malditos de Deus e dos homens aqueles que são pendurados
no madeiro, e tu não contaminarás a terra que te dei em herança.
17
(ROSSÉ
2006a p.11)
Se tal era a compreensão da época, portanto, não se poderia excluir a
hipótese de que o próprio Sinédrio pudesse condenar alguém à crucifixão em nome
da Lei (Dt 21,22s), com a acusação de blasfemador e falso profeta. Esta idéia pode
ser confirma no diálogo de Justino com o hebreu Trifão, onde este último diz:
“Aquele que vocês chamam de Cristo foi sem honra nem glória, tanto de incorrer na
extrema das maldições previstas na Lei: foi de fato crucificado.” (ibidem, p.13). Uma
vez que os profetas, apesar de também serem perseguidos, eram mortos por
apedrejamento (ibidem, p.16), o Messias não poderia ser entregue à crucifixão e era,
portanto, incompreensível para aqueles que seguiam Jesus sua morte numa cruz,
questionando, desse modo, sua própria missão. Em suma, aquele que morria nestas
condições era um maldito de Deus. O amaldiçoado não pode ser um profeta e muito
menos o messias (Cf ibidem, p.16 e p.18).
39
17
Extraído de Qumram 11 Q 19 LXIV 6-13
Entretanto, a igreja nascente, certamente a partir da experiência pós-pascal,
sofreu uma inflexão na compreensão do significado desta morte por crucifixão.
Antes, Cristo morreu por s e pelos nossos pecados (Cf 1Cor 15,3: de tradição
prepaulina, Cf. ROSSÉ 2006a, p.18), agora, ele morre para os sem Deus (Cf Rm
5,6). Anunciar um Messias crucificado era de fato como Paulo afirmava, “escândalo
para os judeus”.
O mesmo escândalo da cruz faz de fundo para quem escreveu o relato
primitivo da paixão que depois Marco retomará na composição do seu
Evangelho. Somente em um contexto histórico semelhante poderia se
formar um relato da paixão que tem o seu momento forte naquele grito de
abandono tomado do Salmo 22 que não tem iguais nos Salmos de
lamentação. (ROSSÉ 2006a p.29).
A interpretação pré-Marcos da morte de Cristo, por meio da aproximação com
o Sal 22, tornou possível à primeira comunidade cristã, especialmente a judaica,
entender a morte numa cruz para além do escândalo. De acordo com o texto do
salmo, o protagonista não morre amaldiçoado por Deus, mas é o servo sofredor, e
termina em esperança no seu Deus. No texto de Marcos, este servo sofredor
desembocará no martírio, pois Cristo de fato morre e, no mais, sem a consolação
divina. Foi esta teologia do martírio, que reaparece em Marcos, que permitiu a
compreensão do sentido da paixão e morte de Jesus para a igreja primitiva. É a
única palavra de Jesus no relato da paixão de Marcos, retirada do Sal 22,1, que
interpreta a morte de Cristo e dá seu significado (ibidem, p.88-89).
Jesus morre gritando o seu “porquê?” a Deus. O evangelista, que sabe que
Jesus é o Justo, não faz nada para atenuar a singularidade da sua morte
que se resolve, ao final das contas, seja de uma teologia do martírio, seja
dos Salmos de lamentação que acabam de qualquer maneira, em uma
oração de fé e louvor.
Deste fato singular, mais do que deduzir conclusões sobre a historicidade
do grito articulado emitido por Cristo, convém deter a atenção sobre a
compreensão de que está sob o texto, e sobre a reflexão teológica
iniciada neste texto pelo narrador.
De fato, no Evangelho de Marco (e de Mateus que o segue), o grito de
abandono, a única palavra do Crucificado, deve ser posta em relação com a
morte de Jesus, e esta última recebe dela seu significado. (ibidem, p.87)
Ora, uma vez que interessa menos se as palavras foram pronunciadas ou
não, como compreender teologicamente o abandono? Primeiramente, o grito de
abandono, posto na boca de Jesus por Marcos ao escrever seu Evangelho, fala a
partir da e da experiência do ressuscitado que tem suas raízes na interpretação
feita pela comunidade antes dele. Ao longo do seu Evangelho, Marcos apresenta um
40
Jesus que vem para fazer a vontade do Pai e que tem uma relação única com ele.
Portanto, é menos o Deus do antigo testamento, da aliança, e mais aquele Deus que
o próprio Jesus chamava de Abbà, isto é, o grito parte da relação única daquele que
se identificava com o próprio anúncio (ibidem, p.93-95). Aquele que anunciava o
Reino, e que agora morria em situação trágica, é o que ressuscita, aquele que deu a
vida a recebe de volta.
O lugar do grito de abandono no relato da paixão indica o modo com o qual a
comunidade interpretou a morte de Cristo. Em sua narrativa, Marcos se utiliza
daquela palavra após uma gradativa sequência de mal-entendidos (agonia no
getsêmani, abandono dos discípulos, negação de Pedro; a multidão que faz troça)
que produzem a desqualificação da sua condição messiânica com uma ironia final
que nega a Jesus qualquer relação com Deus: “Deixai, vejamos se Elias vem tirá-
lo!” (Mc 15,35-36; Cf. ROSSÉ 2006a, p.45). A este progressivo distanciamento do
primeiro sentido que aponta para o silêncio de Deus no cume da paixão, está
associado um progressivo segundo sentido crescente de salvação. A obediência de
Jesus àquele que lhe era íntimo se torna, no momento culminante da morte, uma
pergunta sobre o próprio Deus, ali “a cristologia se torna teologia” (ROSSÉ 2006a, p.
98).
Jesus morreu sob o signo da obediência filial radical ao Pai. A história da
sua morte história de solidão, de sofrimento e de abandonos é no mais
profundo uma história de amor entre o Filho e o Pai. Nesta história, o grito
do abandono é paradoxalmente a culminação da unidade entre Jesus e seu
Deus. Na compreensão de fé, portanto, tudo se inverte em um golpe só: o
extremo do abandono é, na realidade, plenitude de amor. No momento no
qual aparece abandonado, ele é mais do que nunca identificado com a
vontade divina e transparente do Pai. Naquele momento, Jesus introduz na
sua extrema solidariedade com a condição humana de afastamento de
Deus, de situação não-escatológica, na sua plena comunhão filial com o
Pai. (ibidem, p.99).
O Filho de Deus é uma única e a mesma pessoa que se apresenta
historicamente em sua dupla face de Abandonado e Ressuscitado, a primeira face
sendo condição para a segunda. A resposta de Deus à pergunta de Jesus efetuada
no abandono acontece com a ressurreição. Até o momento da morte, é Jesus que
atua, e que, como em dores de parto, gera os homens a filhos de Deus. Após a
morte, é o próprio Deus que atua, ressuscitando-o pelo poder do Espírito Santo e
restabelecendo por completo a nova aliança, onde a morte não tem mais lugar. Ali o
não-sentido do mal e do sofrimento foram invertidos a partir de seu interior.
41
A resposta de Deus advém justamente na morte e é, portanto, uma vitória
sobre a morte com tudo o que ela comporta: afastamento de Deus e perda
da vida; ela consiste em um ato criador, a ressurreição. Por isto, o último
forte grito (Mc 15, 37a), na intuição de de algum Pai da Igreja, é
compreendido como o grito do parto da nova criação. (ibidem, p.88).
A jovem comunidade cristã somente pôde entender o fato da morte de Jesus
após o evento pascal da ressurreição e, logicamente, com a efusão do Espírito
Santo. O grito de abandono em Marcos, e na comunidade antes dele, interpreta a
morte de Jesus na cruz, e não se constitui em uma experiência passageira, talvez
psicológica, que se resolve antes da morte (ibidem, p.88). O grito do abandono se
insere no entendimento da e faz parte do acontecimento de salvação, que faz
participar o fiel na vida de Deus.
Podemos observar que isto nos remete gradualmente à manifestação do que
chamaremos de estrutura trinitária do evento Pascal, experimentada pelo crente no
interior da comunidade. O acesso à experiência e compreensão do abandono de
Cristo acontece no interior da comunidade, o lugar teológico. Mas antes de
entrarmos definitivamente neste tema, vejamos como Paulo interpreta a figura do
Crucificado, pois este ocupa lugar central em sua teologia.
2.2.2 – O Crucificado-Ressuscitado em Paulo
A tradição pré-paulina mostra uma reflexão histórico-salvífica sobre a morte
de Cristo, mas será somente em Paulo que a formulação se tornará mais precisa
(ROSSÉ 2006a, p.17). Tirando a dimensão revelativa justamente do significado
impactante que o crucificado tinha para o hebreu, Paulo reafirma, por meio de outras
figuras, que é através do paradoxo da cruz se compreende o agir de Deus. Podemos
ver a primeira carta aos Coríntios (Cf 1Cor 18-31), referindo-se à cruz com o termo
“loucura” e “escândalo”:
Com efeito, a linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas
para os que estão sendo salvos, para nós, ela é poder de Deus. (1 Cor,
18ss).
Nós, porém, pregamos um Messias crucificado, escândalo para os judeus,
loucura para os pagãos, mas para os que são chamados, tanto judeus como
gregos, ele é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. (1 Cor 23-24).
Em Paulo, Cristo surpreende e muda a imagem de Deus que o homem
poderia fazer dele, não sendo mais um Deus forte e potente, mas além de todas as
possíveis representações e expectativas (ROSSÉ 2006a, p18-19). “A cruz de Jesus
42
coloca em crise todos os sistemas religiosos construídos pelo homem para conhecer
e atingir o Ser Supremo” (ibidem, p.21). Deixando-se engolir pelo mal humano,
Cristo se solidariza com a condição humana de distanciamento de Deus.
Jesus crucificado revela que qualquer situação de não-Deus pode ser
transformada em comunhão plena com Deus; nele, Deus manifesta a Sua
presença lá onde o homem já não espera Deus. (ibidem, p.20).
O Crucificado mostra o amor ilimitado até ao ponto de parecer escandaloso,
que é capaz de ser onde não existia mais Deus. O evento-Cristo, na potência
salvífica de sua morte e ressurreição indicam que essa mesma morte não tem mais
poder, pois, mesmo que devamos ainda morrer, o sentido de aniquilação que a
morte traz para o indivíduo é transformado em seu interior pela derivação do sentido
que a morte foi para o Cristo. Isto o fiel experimenta concretamente, isto é, é
reproduzível no dia-a-dia da comunidade e pessoalmente em suas pequenas
“mortes” quotidianas transformadas em potenciais ao amor. Assim o Crucificado
assume um aspecto de intenso realismo. Pela ressurreição de Cristo, Deus opera a
inversão do sentido na morte e no crucificado ele se manifesta como aquele que “faz
viver os mortos e chama à existência o que não existe” (Rm 4,17). A participação do
fiel na morte de Cristo, uma participação existencial, é a condição para que o mesmo
Deus que ressuscitou Cristo ressuscite também o fiel formando uma “nova criação”.
O evento escatológico é futuro, mas, inaugurado no evento pascal de Jesus,
atua como força de transformação no mundo presente, no íntimo do
homem que se abre à sua ação. (ROSSÉ 2006a, p.23)
A vida, a ressurreição, somente é possível por meio da participação na morte
com Cristo. Esse paradoxo, isto é, que o sofrimento e a morte são condições para a
solução do próprio sofrimento e morte, um tema que permanece constante na obra
de Paulo, será resgatado por Lubich quando esta afirma que Jesus abandonado é a
condição para a Unidade. A Unidade definitiva é somente futura, mas ela atua no
presente com a constituição da comunidade e a alegria experimentada pelo fiel ao
sequir Cristo presente na comunidade.
Paulo foi sempre marcado pela desconcertante revelação que teve em
Damasco: Jesus crucificado, o maldito de Deus pendurado no madeiro, é o
filho de Deus. O ‘escândalo da cruz’ condicionará o seu pensamento e a sua
existência. O apóstolo, certo, retomará também afirmações de
tradicionais sobre a morte de Jesus (cf. 1Cor 15,3), porém, mais do que
qualquer outro, ele insistirá sobre o paradoxo de um Cristo crucificado.
(ibidem, p.28)
43
A participação na cruz e na morte de Cristo, para Paulo, é condição para a
ressurreição junto a Cristo - “se morremos com Ele (Cristo) também ressuscitaremos
com Ele” (2Tm 2,11). Esta participação se reveste de uma materialidade forte, pois
se trata de fato da morte física. O corpo que é corruptível deve apodrecer, para que
um novo corpo ressurrecto seja dado (Cf. ROSSÉ 2006b). Apesar de usar
terminologias gregas, Paulo não reflete de acordo com categorias helênicas, onde
separação entre corpo e alma/espírito, mas semíticas, onde a pessoa é
entendida de modo unitário (ROSSÉ 2006b, p.249). “Paulo não opõe no homem o
corpo à alma, mas dois tipos de corporeidade da mesma pessoa, entre o presente e
o futuro, entre a história e o Escathon” (ibidem, p.346). Para o pensamento paulino,
pensar na permanência do indivíduo separadamente do corpo, como o pensamento
contemporâneo tenta fazer ao identificar a mente e seus processos informacionais
no cérebro, soa como algo totalmente estranho. Pensar o corpo como parte material
distinta do eu é uma abstração. O corpo ao ser unido aos sofrimentos de cristo em
vista de participar na sua morte e também na sua ressurreição indica, no
pensamento paulino, que é a pessoa inteira em condições corporais-espirituais que
é transformada, pois o corpo é a pessoa inteira. O mesmo argumento vale para
quando Cristo diz “este é meu corpo”, que também reflete esta forma de pensar (cf
ROSSÉ 2006b, p.350).
Como ser corporal, o homem atual pertence ao universo; e a natureza
biologico-material do nosso corpo submete o homem às leis físicas deste
mundo; ele é um “ínfimo pó” em um universo infinitamente grande que o
domina por todos os lados. Mesmo assim, o homem tem a capacidade de
entender e dominar este “tudo” que é a criação. Na ressurreição, a relação
se inverte: o homem domina o universo que não será mais exterior à ele. O
espaço como distância que separa, o tempo como duração que fragmenta a
existência, não têm mais sentido na ordem da ressurreição. Estes são
unificados em Cristo ressuscitado. Nele, de fato, o Recapitulador, presente
em cada ponto do criado porque o criado se encontra nele, cada oposição,
distância e separação são superadas e o homem ressuscitado encontra um
universo e uma humanidade reconciliados. (ROSSÉ 2006b, p.351)
A extensão dos efeitos do Crucificado-Ressuscitado, o evento-Cristo, em
Paulo, são cósmicas. Com a ressurreição de Cristo se inaugura a inversão entre o
sujeito e a materialidade natural que o circunda e do qual ele é constituído. Agora é
ele que dispõe de sua materialidade ressurrecta na lógica do amor, pela libertação
operada pela ressurreição. Apesar de permanecer sempre uma esperança
escatológica, ele aponta aqueles “germes de ressurreição” no presente,
atualizando a vida concreta a lógica da ressurreição por meio daquelas pequenas
44
mortes e ressureições que constituem a vida diária da caridade fraterna. Ora, para
que isto se verifique no fiel, ele deve, conforme Paulo, participar nos sofrimentos de
Cristo e ressurgir com ele. Assim, o tempo presente, visto como que “por meio de
um espelho”, isto é, de maneira difusa, apresenta as condições para a
ressurreição, a nova criação, inaugurada na morte e ressurreição de Cristo, pela
qual o Espírito foi derramado no mundo. Assim, a própria criação e todo o mundo
natural – também será libertada pela ressurreição:
Eu estimo, com efeito, que os sofrimentos do tempo presente não têm
proporção com a glória que deve ser revelada em nós. Pois a criação
espera com impaciência a revelação dos filhos de Deus: entregue ao poder
do nada não por vontade própria, mas pela autoridade daquele que lha
entregou -, ela guarda a esperança, pois também ela será libertada da
escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos
de Deus. Com efeito, sabemos: a criação inteira geme ainda agora nas
dores do parto. E não ela: também nós, que possuímos as primícias do
Espírito, gememos interiormente, esperando a adoção, a libertação para o
nosso corpo. (Rm 8, 18-23)
Em Paulo a ressurreição se reveste de um realismo do qual o fiel não pode se
eximir: os sofrimentos dele são participação na relação da morte e ressurreição de
Cristo que têm alcance cósmico. Portanto arriscaríamos que a lei de morte e
ressurreição, conforme entendida por Paulo, pode ser inferida para todo o criado: se
o criado está hoje crucificado, então ele será libertado pela ressurreição. Esta
participação nas dores do parto podem adquirir várias formas: o esforço e o trabalho
para elucidar as leis naturais pode ser uma maneira de ver o que está em germe
na criação e, no entanto, pelo seu caráter dificultoso, uma maneira de gemer. Se for
assim, a libertação definitiva traria também um conhecimento definitivo das leis do
mundo, sua lógica não mais seria vista “por meio de um espelho”, mas “face a
face”.
Outro aspecto do pensamento paulino sobre o paradoxo da Cruz é a
associação de dependência recíproca entre o indivíduo e a comunidade. A unidade
da comunidade, representada como o corpo de Cristo, não pode estar dividida pela
discórdia, pois isto seria dividir o próprio Cristo (Cf. 1Cor 1,13). Por um lado o corpo
de Cristo, ressurreto, se torna visível na comunidade onde o indivíduo que dela
participa é o templo do Espírito (Cf. 1 Cor 3,16s; 1 Cor 6,19). A sabedoria de Deus,
que se manifesta pelo Espírito, e que é loucura para o modo de pensar deste
mundo, é orientada à unidade da comunidade, a colocar os dons deste Espírito a
serviço da comunidade. Os membros individuais compõem o corpo de Cristo que é a
45
Igreja. O mesmo se com os dons do Espírito, que são para a edificação da
comunidade. A associação entre manifestação do Espírito, a lógica da cruz e a
unidade da comunidade está estabelecida claramente em Paulo. Esta mesma
associação parece estar presente na experiência espiritual-comunitária em Lubich
no binômio Abandonado-Unidade, onde o primeiro é o aspecto individual, o segundo,
o coletivo.
2.3 – O EVENTO PASCAL: ACONTECIMENTO TRINITÁRIO
Para podermos avançar em direção à compreensão da ontologia trinitária é
necessário apresentar o acontecimento pascal em sua estrutura trinitária, pois é a
partir daí que o pensamento de Lubich se move em direção à natureza. De certa
maneira, indicamos acima quando apresentamos o crucificado em Paulo. Agora
procuraremos mostrar como a kenose do Filho de Deus se inicia na livre decisão no
interior da Trindade (BALTHASAR 1974) e se manifesta na paixão, morte,
ressurreição e Pentecostes em toda força Trinitária. Somente assim a ontologia
trinitária como modo de interpretar o mundo pode não se reduzir a um esquema
metafísico puro, mas de manter sua seriedade teológica originária.
2.3.1 – Método da Analogia
Certamente o princípio de identidade, tal como quando se diz X é Y, é
insuficiente e, mais ainda, inexato para o dizer teológico. Por outro lado, uma
teologia de inspiração dialética, de marca racionalista, também seria imprópria por
fazer violência, neste caso, ao nosso próprio objeto de investigação que é a
experiência e o conhecimento da natureza confessada nos textos de nossa autora.
Pensamos que a via do dizer por analogia seria a mais apropriada, por salvaguardar
o típico “já” e “ainda não” presentes em toda a economia da salvação do qual se
pode ver um reflexo nas expressões místicas que, se por um lado dizem da união e
da reconciliação portanto o “já” por outro renunciam a estas mesmas
manifestações em vistas da ação no mundo orientadas na caridade portanto o
“ainda não”. Este duplo se manifesta precisamente na analogia do dizer da natureza
em Chiara Lubich mas originalmente está presente no fazer teológico ao longo da
história. Sobre a analogia, o Dicionário Crítico de Teologia diz:
46
Na teologia, analogia designa a distância entre o conhecimento que o
homem tem de Deus e o próprio Deus. Exprime duas exigências: respeitar a
transcendência absoluta de Deus, inefável e incognoscível, e ao mesmo
tempo conservar no discurso da um mínimo de pertinência inteligível. A
combinação desses elementos antagonistas deu lugar a diversas sínteses,
em que se inscrevem as vicissitudes da linguagem teológica. (LACOSTE
2004, v.analogia, p.120)
Esta maneira de proceder por analogia é particularmente importante para se
evitar o equívoco de se elevar a Trindade a estrutura metafísica e, com isso, criar um
“telhado de vidro” o qual pode facilmente ser rejeitado por completo no momento em
que tenta dizer algo sobre as ciências naturais e ainda criar um problema teológico
maior, fazendo afirmações contundentes sobre Deus sem uma sempre salutar
consciência apofática.
Em Vastidões Infinitas, Alexandre Ganoczy reconhece que a analogia é útil
também para elaborar um discurso que tenda à unidade do conhecimento. Ali, ele
mesmo procurou interpretar, por meio de um procedimento analógico, diferentes
teorias científicas.
Ao combinar e comparar entre si afirmações de cientistas naturais e
teólogos acerca dos temas ou complexos temáticos mencionados, espero
sugerir que, por força de uma analogia, fundamentada na realidade, suas
formas de apresentação no mínimo não se contradizem. (GANOCZY 2005,
p.28).
Em outra publicação posterior, Il Creatore Trinitário, ele se utilizará a
metafísica do filósofo alemão Heinrich Rombach para, a partir dela, entender a
dinâmica trinitária imanente e a relação com o mundo. Ali ele acaba, nesse
processo, por abandonar uma reflexão sobre o sofrimento, especialmente o de
Cristo. Ora, por quanto veremos adiante, isto parece afastá-lo da centralidade do
evento Pascal um evento trinitário como o lugar vital de onde a experiência cristã
não pode deixar de refletir, apesar de ser urgente a teologia se atualizar na tentativa
de uma aproximação com as ciências naturais, esforço central de Ganoczy no
trabalho citado.
O uso da analogia que faremos está vinculado à experiência da concreta e
histórica – no sentido do evento-Cristo que é histórico e no sentido que ele se repete
objetivamente para o agente dentro da comunidade da Igreja e que servirá de
heurística para a teologia trinitária, para a criação e depois para interpretar o dizer
das ciências naturais. Isso porque queremos mostrar que se a analogia é antes de
47
tudo um instrumento intelectual de compreensão, ela não deve estar desenraizada
do profundo sentido do que se diz, sob pena de permanecer pura especulação. É
particularmente importante se olharmos o dado empírico apresentado no capítulo
anterior: a explicitação da experiência, muitas vezes em forma narrativa, aponta não
para puras cognições em Chiara Lubich, mas antes, para uma confissão, uma
declaração de fé, e uma constituição de comunidade de sentido. Se por um lado é
necessário reduzir a experiência religiosa a conceitos no momento da aproximação
comparativa com as ciências naturais, a analogia permite, por outro lado, preservar
o dado real tanto do conhecimento científico enquanto possuidor de autonomia
quanto da religião no seu aspecto objetivo, histórico e existencial. Em outras
palavras, preservada a autonomia dos saberes, a analogia permitiria ainda uma
interferência mútua possivelmente construtiva.
2.3.2 – A Estrutura Trinitária do Evento Pascal
Se retomarmos a narrativa em Marcos e o entendimento do crucificado em
Paulo, poderemos notar que no evento Pascal se explicita como um acontecimento
trinitário: Cristo atua, na obediência, fazendo sua a vontade do Pai, sob o impulso do
Espírito, “até o fim” (Cf. Jo 13,1); o Pai, como resposta a este amor incondicional do
Filho, o ressuscita pelo Espírito (notemos que esta forma de dizer é ela mesma
também analógica). Isso acontece para a salvação dos homens, que são incluídos,
desse modo, no próprio mistério, na relação com o Pai (Cf. Jo 15,15). Tudo isso é
reconhecível somente no dom do Espírito que é distribuído aos discípulos, e é a
partir da Pentecostes que se constitui a comunidade o corpo de Cristo conforme
Paulode onde se entende a participação de Deus na história dos homens como o
Emanuel, o Deus conosco. Piero Coda diz em uma fórmula sintética esta relação
entre a compreensão da Trindade e a manifestação desta no evento-Cristo:
O mistério pneumático-eclesial é o milieu hermenêutico que nos permite
penetrar o mistério pascal na sua realidade profunda de projeção criada ( ou
temporalização histórico-salvífica) do mistério transcendente da Trindade; e
que, doutra parte, a Trindade é o paradigma incriado e a origem que funda o
evento pascal como vértice da economia criativo-salvífica que instaura o
mistério pneumático-eclesial em tensão para o éschaton. (CODA 1984, p.
127).
A manifestação do Espírito nos indivíduos, este que é mais íntimo à pessoa
do que a ela mesma, é o que permite mesmo investir rumo ao centro do mistério
48
cristão. Isto aponta novamente para estrutura trinitária do evento pascal conforme o
que procuramos mostrar acima na teologia de Marcos em sua reinterpretação da
maldição da cruz presente no Deuteronômio para a do servo sofredor: esta
reinterpretação se no interior da constituída comunidade e da experiência
pneumatológica. Piero Coda cita a Comissão Teológica Internacional - CTI, que
sintetiza em um denso parágrafo, esta estrutura trinitária presente no mistério da
salvação:
“A economia da salvação manifesta que o Filho eterno assume na sua
própria vida o evento ‘kenótico’ do nascimento, da vida humana e da morte
na cruz. Esse evento, no qual Deus se revela e se comunica de modo
absoluto e definitivo, diz respeito de alguma forma ao ser próprio de Deus
Pai, enquanto é o Deus que realiza esses mistérios e os vive como seus em
união com o Filho e com o Espírito Santo. Com efeito, não só no mistério de
Jesus Cristo, Deus Pai se revela e comunica a nós livre e gratuitamente,
mediante o Filho e no Espírito Santo, mas o Pai com o Filho e o Espírito
Santo conduz a vida trinitária de uma forma profundíssima e ao menos
segundo nosso modo de pensar de certa forma nova, enquanto a relação
do Pai com o Filho encarnado na consumação do dom do Espírito é a
própria relação constitutiva da Trindade. Na vida íntima do Deus trinitário
existe a condição de possibilidade destes eventos, que pela
incompreensível liberdade de Deus nos são oferecidos na história da
salvação pelo Senhor Jesus Cristo. Portanto, os grandes acontecimentos da
vida divina de Jesus traduzem claramente para nós, e enriquecem com uma
nova eficácia em benefício nosso, o diálogo da geração eterna, no qual o
Pai diz ao Filho: ‘Tu és o meu Filho, hoje eu te gerei’ (Hb 5,5)” (CTI, TCA,
apud CODA 1984, p.130).
Notemos alguns pontos: a kenose “diz respeito de alguma forma ao ser
próprio de Deus Pai”. O evento-Cristo possui sua condição de possibilidade na
mútua doação intra-trinitária e por isso mesmo é que a revelação e a salvação
manifestam características trinitárias. A encarnação do Filho em sua kénose é vista
como um continuum que parte da decisão interior na Trindade, que tem seu
pressuposto último o intensíssimo amor trinitário, até o cume da morte na cruz. Coda
dirá que “a autocomunicação da Trindade se por meio da kenose e do Espírito
Santo” (CODA 1984, p.129).
O reconhecimento desta estrutura trinitária na kénose da segunda pessoa
aparece explicitamente também em Hans Urs Von Balthasar em seu Mysterium
Paschale. Ele comenta que nas doutrinas da kénose compreendidas classicamente
“falta simplesmente uma dimensão: a dimensão trinitária” (BALTHASAR 1972, p.18).
Assim, ele entende que:
O último pressuposto da quênose é o “desprendimento” das pessoas
divinas (enquanto relações puras) no seio da vida intratrinitária do amor. Há,
portanto, uma quênose fundamental que é dada simultaneamente com a
49
criação enquanto tal, pois Deus assumiu desde toda a eternidade a
responsabilidade de seu êxito (mesmo não obstante a liberdade do homem)
e, prevendo o pecado, “contou” também com a cruz (enquanto
fundamentação da criação): (ibidem, p.24)
E ainda, Von Balthasar cita Bulgakov neste sentido:
“A cruz de Cristo está inscrita na criação do mundo desde sua
origem” (BULGAKOV apud BALTHASAR p.24)
A kenose originária no interior da Trindade é presente, de alguma maneira,
na criação e, portanto, esta mesma criação contém os traços trinitários do evento
pascal. A compreensão do mundo natural na chave da estaria, portanto, elucidado
estas formas fundamentais do mundo. A estrutura trinitária do evento pascal, a
revelação do amor de Deus para o mundo, se apresenta, portanto, também como
estrutura do próprio mundo que se tornará visível àquele que crê em sua
aproximação espiritual, isto é, real.
Se as pessoas da Trindade em sua comum vontade acordam sobre a
encarnação, elas devem acordar também sobre a morte do Cristo. Assim, o
acontecimento é trinitário em sua origem e em sua consumação, pois parte do
interior de Deus. A kénose está inscrita dentro da lógica amorosa trinitária, pois “O
despojamento de Deus tem sua possibilidade ôntica no eterno esvaziamento de
Deus, isto é, sua doação tripessoal”. (BALTHASAR 1972, p.19). Em outras palavras,
a kénose está imbricada no dizer que Deus, aquele que É, é Amor.
Anne Hunt, ao comentar a obra de Von Balthasar, reconhece isso: que tanto a
kenose ocupa um lugar central como que todo o acontecimento pascal é trinitário.
Balthasar reconhece que a descida representa a solidariedade de Jesus
com o pecador na sua morte, na sua radical separação de Deus, na sua
desolação infernal e extrema solidão como um ser-somente-para-si, e na
sua completa impotência de redimir a si mesmo. Para Balthasar, o mistério
essencial da descida ao inferno é que Deus ele mesmo (na pessoa
encarnada do Filho) experimenta o abandono de Deus e o estranhamento
de Deus. É isso o que constitui o mistério de nossa salvação e mesmo a
glória do Senhor. Aqui, portanto, no mistério da descida aos infernos, está o
nexo da Cristologia, o mistério pascal, a Trindade e a soteriologia. Para este
abandono de Deus, este abandono do Filho pelo Pai na descida, é possível
somente porque, no ponto da sua maior separação Pai e Filho estão unidos
em um amor imortal pelo Espírito. Na ressurreição, a revelação da Trindade
é decisiva. Ela revela que, mesmo naquele momento da maior separação,
Pai e Filho estão unidos. (HUNT 2005, p.50)
Enquanto a kénose e seu cume no abandono – é a condição para a
ressurreição e simultaneamente para efusão do Espírito Santo, analogamente, uma
50
“kénose” pessoal inclusive num abandono é a condição para a pessoa em sua
constituição de relações na comunidade. O Cristo, em sua existência terrestre,
conforme o ponto de vista da fé o apresenta, é uma existência para a doação, para o
amor. “É a própria existência de Cristo, em todo o seu desenvolvimento culminante
na cruz que revela o mistério trinitário. Esta dimensão revelativa-existencial (em
sentido dinâmico-evolutivo) é a dimensão mais profunda do mistério
soteriológico” (CODA 1984, p.134). Piero Coda resume suas reflexões sobre o
evento pascal nos seguintes termos:
O evento pascal, justamente enquanto evento cume da salvação (o
“propter nos” divinizador-humanizador) é a revelação suprema ( em nível
“existencial-eventual” primeiro, e a seguir, verbal-interpretativo) da
pericorese teândrica do Cristo total (Cabeça e membros, Ekklesia e cosmo),
qual revelação-participação da pericorese trinitária. (ibidem, p.142)
Na tensão entre esvaziamento de si e a pericorese trinitária a primeira é
condição para a segunda. A kénose, enquanto amorosa, é da mesma essência
divina, onde o Amor é a natureza de Deus.
Quer que se tome o viés da soteriologia, da kénose, da eclesiologia na
comunidade nascente, da cristologia ou pneumatologia, a estrutura trinitária aparece
como fundo se quisermos manter o dado tipicamente cristão. Este núcleo teológico é
revivido pelos fiéis na Igreja nascente, mas também se repete ao longo da história
da Igreja onde o próprio Espírito reapresenta estas mesmas verdades fundamentais.
Esta é a chave de leitura para entender a constituição da comunidade ao redor de
Chiara Lubich que se por um lado é em virtude de seu carisma particular, o é
somente em sentido subsidiário, pois este é o carisma da própria Igreja (ROSSÉ
2009a, 2009b e 2009c).
O evento pascal que se abre em sua estrutura trinitária se torna modelo para
o indivíduo no seu devir pessoa enquanto abandono-ressurreição – o estarmos
crucificados com Cristo para vivermos com Ele de Paulo e é também modelo para
a comunidade enquanto trinitário-pericorético. Vice-versa, a comunidade é o lugar
hermenêutico para se entender o evento pascal e a própria estrutura trinitária.
Assim, é possível que nas diferentes concretizações da experiência cristã se revele
uma compreensão não somente do próprio ato de (o revelativo ou o soteriológico)
ou da comunidade (o eclesiológico), mas também o cósmico (a criação). Seria
realmente estranho se o evento Pascal não tivesse consequências para o mundo
51
criado inteiro, que não contivesse uma extensão cósmica. Não poderia ser diferente:
o evento pascal deve incluir dentro de si, se quiser ter valência realista (e que maior
realismo poderia haver do que o próprio evento-Cristo para o cristão?), toda a
criação e o mundo natural. A Trindade, conforme compreendida pela comunidade na
revelação ocorrida no evento pascal, possui um aspecto cosmológico. O mundo
natural sofre, assim, como que uma “sobreposição” do dado da em um sentido
semelhante à sobreposição da teoria sobre o dado. Não se trata de forçar algo que é
estranho ao próprio dado natural, mas, contrariamente, de revelar sua estrutura
interna que vem à luz sob a ótica da experiência cristã. Neste sentido podem ser
relido o trecho de Romanos: “A criação espera com impaciência a revelação dos
filhos de Deus” (cf. Rm 8,19-22). O lugar que as ciências naturais se colocam em
relação a este conhecimento será tratado no próximo capítulo, mas podemos
adiantar algo. A experiência comunitária-existencial performa aquelas modificações
da subjetividade que permitem a interpretação da natureza em chave trinitária; o
mundo natural contém os vestigia trinitate, mas agora entendido em ênfase e
características próprias de Lubich. As ciências naturais e seus conhecimentos são
interpretados enquanto conformes ou explicitadores da chave trinitária: o dinamismo
e a interdependência dos seres, seus mecanismos, suas relações e autonomias, seu
vir-a-ser e deixar-de-ser são entendidos como uma parte da verdade e servem de
estímulo para a contínua aproximação e explicação desta. Em última instância, é
sempre a mesma Verdade que está em jogo.
Se recordarmos a apresentação da estrutura da espiritualidade apresentada
no primeiro capítulo, fica claro agora o vínculo entre o abandono de Cristo e a
unidade. Jesus abandonado é o modo amoroso com o qual se participa do agir de
Deus no mundo em vistas da Unidade, que é a presença de Cristo e do Espírito na
comunidade. A estrutura trinitária se apresenta na espiritualidade lubichniana no
movimento abandono-unidade-distinção. Este movimento dinâmico percebido no
nível antropológico é agora percebido no nível físico-biológico. A lógica do
abandono-unidade-distinção, é encadeada e difusiva porque ela faz parte da própria
lógica amorosa de Deus, que é o sumo bem, difusivo por si mesmo. Fica claro que
isto nos remete à tradição franciscana presente em Lubich.
52
2.4 – A TRINDADE E A CRIAÇÃO EM BOAVENTURA
Certamente esta dissertação sobre o pensamento da natureza presente nos
textos de Chiara Lubich ficaria incompleta se não abordássemos a herança
especificamente franciscana. Esta tradição, que também pensa a Trindade e a
Criação, influenciou diretamente o pensamento da autora. Se até agora procuramos
articular a teologia trinitária que nasce da figura do Abandonado e da Unidade, o
específico vínculo que esta tem com a criação se dará em termos franciscanos, em
especial, da teologia de Boaventura. Para mostrar estas semelhanças com o
franciscanismo, apresentaremos uma curta síntese do seu pensamento com a ajuda
da publicação Simply Bonaventure: an introduction to His Life, Thought and Writings
da teóloga Ilia Delio (2001), entre outros
18
.
2.4.1 - A Trindade
O pensamento de Boaventura é “circular”: viemos de Deus, existimos em
relação a Deus e retornamos a Deus. A estes três momentos, Boaventura chama de
emanatio, exemplaritas e consummatio. A origem deste círculo é a Trindade, de
onde a emanação está associada ao princípio fontal, o Pai, que ama completamente
o Filho e que é exemplo e modelo para o mundo e o Espírito que provêm do Pai e do
Filho é o vínculo de amor entre eles. Assim como Pai é a fonte e fim imanente das
emanações trinitárias ele também é de toda a criação. (DELIO 2001, p.40-41). Na
prestigiada New Catholic Encyclopedia, J. M. Hammond diz que a teologia de
Boaventura é simultaneamente Trinitária e cristológica por meio da articulação da
“emanação (emanatio: como as coisas provêm de Deus), exemplaridade
(exemplaritas: como as coisas refletem a Deus) e consumação (consumatio: como
as coisas retornam a Deus)” (HAMMOND 2002, p.484).
Boaventura diz que se o bem é auto difusivo, Deus, o sumo bem, é portanto
sumamente difusivo (DELIO 2001, p.41). Com a difusão (emanatio), Deus Pai gera o
Filho de uma maneira completa esta suma bondade difusiva é o fundamento do Ser:
Nos seus escritos, o Pseudo-Dionísio afirma que Deus é bondade auto-
difusiva; Deus não é somente o Ser mas Deus é aquela Bondade que está
além do Ser, e da qual nasce o Ser. Mesmo que este conceito seja útil para
53
18
Sobre a metafísica de Boaventura, ver também Delio (1999). Sobre uma relação de
Boaventura com o pensamento evolucionista, ver Delio (2008).
o filósofo, Boaventura aparentemente estava impressionado pela noção da
bondade última (ultimate) divina (que é realmente um conceito platônico).
(ibidem, p.41).
Enquanto para Boaventura, a bondade é o fundamento do ser, para Chiara
Lubich será a relação, constitutiva da Trindade. Para Boaventura, entretanto, o sumo
bem é de fato a caridade. Delio afirma que, para Boaventura, “A caridade é o
supremo conteúdo do bem, a forma mais alta de bem. Logo, se Deus é bom, então
Deus é também caridade ou amor. Onde plenitude da divindade plenitude de
caridade” (ibidem, p.42). A auto-comunicação divina estaria fundada no fato de que
Deus é amor, onde a relação é necessária para que o amor mesmo exista. Sendo
bom, Deus é necessariamente auto-comunicativo, e dizer que Deus é amor é afirmar
que ele é pessoal. “A Trindade, portanto, é simultaneamente bondade auto-
comunicativa e amor pessoal. Para Boaventura, estas duas características
essenciais da natureza de Deus estarão colocadas na origem das pessoas
Divinas.” (ibidem, p.43). A auto-comunicação trinitária que se inicia no Pai, e que é
figurado como uma fonte infinita, inextinguível e inatingível de amor e vida, é em
última instância, a de toda a realidade (ibidem, p.44). No pensamento de
Boaventura, o Pai, não gerado, se torna o mistério último que justamente no ato de
gerar o Filho se doa completamente, se esvazia neste ato gerativo. “Dizer que o Pai
é ‘bondade auto-difusiva’ é dizer que o ‘self’ do Pai é identificado pela natureza do
bem ser ‘difusivo’ ou comunicar ele mesmo a outro.” (ibidem, p.44-45). A auto-
difusão é prerrogativa somente do Pai, e não do Filho ou do Espírito.
Notemos que a auto-difusão do bem, que é a caridade, no Pai, implica numa
doação do Pai por completo. Se dizemos que a doação é completa, então parece
correto dizer que este é o pressuposto último da kénose, pois não há nada que o Pai
não comunique ao Filho, pois seria mesmo estranhoe não conforme as escrituras
pensar num Pai que reservasse algo para si que não comunicasse ao Filho. A
natureza do bem é ser auto difusivo e assim podemos estabelecer uma analogia
entre a auto-comunicação e a kenose. O Pai, ao se esvaziar completamente na
geração do Filho é a imagem da fonte inextinguível. O mistério do Pai é, portanto,
plenitude e esvaziamento; riqueza (em bondade) e pobreza (pela própria natureza
da difusão ou kénose) (ibidem, p.45).
54
Poderíamos traçar paralelos desta forma de pensar, isto é, que para a
plenitude seja necessário o esvaziamento, com o conceito de coincidentia
oppositorum. Pode-se ver semelhanças entre o pensar do Abandono, conforme
apresentado anteriormente no dizer de Lubich, e o esvaziamento que é a plenitude
do ser em Deus-Pai, no dizer de Delio. A revelação trinitária mostra o constante
duplo presente: plenitude e esvaziamento, ser e não ser. A coincidência dos opostos
reaparece em Lubich em outros termos, como é/não é, tudo/nada, mas contém em si
a mesma estrutura lógica.
Um aspecto importante no pensamento franciscano é o lugar do Filho na
Trindade: ele é colocado ao centro. Como imagem do Pai e o modelo da criação, o
Filho é o destinatário da difusão do bem, do amor, por parte do Pai. Ele é “tudo o
que o Pai é no Uno além do próprio Pai” (ibidem, p.45). Nesta relação se estabelece
a possibilidade e o entendimento de todas as outras relações na realidade. (ibidem,
p.45). Como o Filho é a perfeita imagem do Pai, ele reflete suas propriedades, ele
também é fonte para outros. Se o Pai é bom, então também o Filho; Se o Pai é
pobre, então também o Filho.
Boaventura se utiliza do termo Palavra para pensar o Filho. Fazendo distinção
entre a palavra enquanto pensada, o conceito, o pensamento ele mesmo, e a
palavra enquanto termo escrito ou dito. Analogamente, o Pai estaria para a Palavra
enquanto idéia, ou, em termos boaventurianos, palavra mental, enquanto o Filho
estaria para a palavra efetiva, a palavra causal. Assim, a eterna autoconsciência do
Pai, isto é, as idéias eternas do Pai, estão expressas completamente na Palavra, no
Filho. Ao concentrar completa e totalmente todas as idéias do Pai, o Filho é também
o arquétipo de tudo o que é criado, como causa exemplar da criação e de tudo o que
existe, um conceito central no pensamento de Boaventura. (ibidem, p.46).
A efetividade do termo Palavra, e seu lugar central no pensamento de
Boaventura é que ela expressa tanto a intencionalidade (do Pai) e a concretude (do
Filho inclusive em sua encarnação). (ibidem, p.47) O conteúdo desta Palavra é
múltiplo, infinito, multifacetado e completo, por ser exatamente o próprio Filho
unigênito de Deus (ibidem, p.47). Retomaremos esta imagem adiante, ao discutir o
relato da experiência mística que Lubich no início do verão de 1949. Ali, ela afirma
55
que na visão do Pai emanavam infinitos tons por todas as partes que se
concentravam convergindo para um centro onde estava o Verbo. A multiplicidade de
tons, a totalidade, indicaria que Deus, ao gerar seu Filho, não preserva para si nada
a não ser a própria geração que o faz ser, exatamente, Pai. A Palavra, sendo a
expressão concreta do Pai, (cf Jo 14,8-9), não pode deixar também de ser
expressão concreta da criação. A forma concreta no mundo dessa expressão é a
encarnação da Palavra em Cristo que é verdadeiramente homem e verdadeiramente
Deus.
Segundo Alexandre Ganoczy em seu Il Creatore Trinitario, a função do
Espírito Santo na Trindade, sem o qual não podemos pensar a Trindade, é aquela de
“‘amor produzido’, a primeira e última relação de amor entre Pai e Filho” (GANOCZY
2003, p.107), mas sem atribuir a ele uma passividade total. Primeiramente por meio
da utilização freqüente do prefixo con- (“consubstantia”, “convenientia”) mas
principalmente com a idéia de pericorese é que, segundo Ganoczy, Boaventura
escapa de estabelecer uma hierarquia na Trindade. O termo circumincessio, que
traduz o grego pericorese, contém no prefixo a indicação de um círculo, reclamando
a imagem de uma cooperação de todos os participantes (ibidem, p.107). A
aproximação de Deus a um conceito essencialmente dinâmico, incluindo o Espírito e
igualando-o às outras pessoas mesmo que não atribuindo a mesma função, é
efetuada por Boaventura ao descrever Deus como suma atualidade associada ao
amor (ibidem, p.110). O Espírito, juntamente com o Filho, seria, portanto, aquele que
confere o caráter de Amor e Vínculo à Trindade e, desta forma, poder-se-ia dizer que
participa da confirmação do Pai como tal e do Filho como tal. É nele que a unidade
trinitária adquire sua atualidade e efetividade e, simultaneamente, a “recompensa”
ao Pai e ao Filho em sua doação completa.
Delio, apresentando Boaventura, se utiliza da analogia antropológica da
relação entre duas pessoas para pensar o Espírito. Em uma relação, esta marca as
duas pessoas e confere a elas o próprio da relação: a amizade, o amor, etc. Este
vínculo não é ilusório, mas real, é a própria amizade, o próprio amor (DELIO 2001, p.
49). Em modo superlativo o mesmo acontece em Deus, onde o vínculo de amor que
existe entre o Pai e o Filho se torna ele mesmo pessoal e único, recebendo,
portanto, do Pai e do Filho, a própria natureza divina. A bondade do Pai é
56
comunicada pelo modo da natureza, o que gera o Filho, e pelo modo da vontade
livre, o que procede no Espírito. “O Pai e o Filho são um em fecundidade na divina
vontade” (ibidem, p.49). A íntima relação entre eles é de tal forma intensa que o
vínculo do amor não é algo que está somente para qualificar esta relação, mas
que os faz mesmo ser Pai e Filho e Espírito de modo divino.
Se a ação criadora é participada pelas três pessoas, é de se supor que, uma
vez que o mundo adquire a forma através do Filho, este mundo contenha de alguma
maneira também algo das outras pessoas. Os vestigia trinitate de Boaventura são
exatamente isso. J.M.Hammond, afirma que no pensamento de Boaventura uma
diferenciação na função criadora para cada uma das pessoas na Trindade ao falar
da analogia universal presente como estes vestigia.
Cada criatura tem Deus como sua causa eficiente, exemplar e final, e,
portanto, cada criatura é um vestígio refletindo a apropriação Trinitária de
poder (Pai), sabedoria (Filho), e bondade (Espírito). Portanto, a constituição
interna de todas as coisas, como determinada pela tripla causalidade, é
uma analogia com o poder, sabedoria e bondade de Deus. (HAMMOND
2002, p.487)
Havendo uma causalidade distinta para cada uma das pessoas da Trindade
na criação, por meio das quais se apreende a forma trinitária das vestigia, uma
diferenciação também nas “funções” de cada uma das Pessoas da Trindade no ato
criador. Há de se notar, entretanto, que na forma de pensar medieval típica da época
de Boaventura uma necessidade lógica do pensamento implica uma necessidade
metafísica e ontológica. O medieval pensa o universal para depois pensar o
particular dentro desse universal. É nesse sentido, inclusive, que devem ser
entendidas as famosas provas ontológicas, onde uma necessidade lógica implica em
uma necessidade existencial. diferenciação nas ações no ato criativo trinitário,
apesar de serem uníssonas na vontade.
2.4.2 – A Criação
A criação em Boaventura ocupa um lugar central em sua doutrina e está
articulada com sua teologia da Trindade. Para ele, a criação nasce do mistério da
geração da Palavra pelo Pai, “é uma expressão limitada do amor ilimitado entre o
Pai e o Filho, emergindo desta relação e explodindo em ‘milhares de formas’ no
universo” (DELIO 2001, p.54). Para isso ele usa o termo emanação, um termo neo-
57
platônico. Entretanto, não alguma restrição de necessidade imposta a Deus no
ato criativo, pois o ato da criação nasce da profundidade livre de Deus. Ele deseja
criar pelo amor e, assim, quer compartilhar suas riquezas com um outro, a
humanidade. Sendo a Palavra a Arte do Pai por ela expressar todas as idéias
divinas, “Quando aquela Palavra é ouvida no tempo, a tela da criação se desdobra.
O Deus triuno é então revelado como um Artista divino, e a criação, como a
expressão finita das infinitas idéias do Artista.” (ibidem, p.55). Esta obra de arte
manifesta a glória do Criador, e o homem, também ele criado e como cume da
criação, é a testemunha consciente desta glória. Boaventura utiliza freqüentemente
imagens e figuras. Por exemplo, a imagem de uma fonte da qual brota um rio que
purifica e frutifica a terra e retorna a sua origem, para mostrar como o ato criador de
Deus opera no mundo, partindo da fonte que é o Pai e retornando à sua origem.
Notemos o uso da analogia em Boaventura e, como veremos, também em Lubich
por meio das imagens.
A ordem e a beleza que podem ser observadas na criação são indicativas,
para Boaventura, que a natureza tem um sentido e um propósito que se inscreve na
lógica circular de origem, trajetória e destino final. Apesar de partir de uma
cosmologia ptolomaica, onde todas as coisas estão ordenadas fixas e estáticas, ele
observa que as formas no mundo são ordenadas e destinadas a um destino final,
assumindo uma trajetória. Há, portanto, uma conexão entre os eventos históricos e a
ordem teleológica, de modo que um foi feito para o outro. (ibidem, p.55-56). O
mundo, portanto, não pode deixar de ter um início e fim, o que implicaria que ele
seria eterno e que não poderia haver a ordem na criação nem sentido, por ter
perdido, neste caso, sua a relação com Deus. Além da idéia de trajetória, é a relação
que constitui o cerne da sua doutrina da criação pela própria concepção trinitária de
sua teologia (ibidem, p.56), uma comunhão de relações. “Ele não viu o mundo
material como uma “matéria bruta”, isto é, sem vida e inerte. Pelo contrario, porque o
mundo material foi criado por Deus, ele é como a própria Trindade, dinâmica e
relacional” (ibidem, p.56). O mundo, em suas mudanças, portanto, é inscrito dentro
da história teológica, fundindo numa única idéia a história humana, a natural e a
teológica. Novamente com uma figuração, Delio exemplifica este estado de coisas:
Cada grão de areia, cada estrela, cada verme, reflete a Trindade como sua
origem (causa eficiente), razão de existência (causa formal) e fim para o
58
qual é destinado (causa final). Tudo o que existe, portanto, reflete o poder,
sabedoria e bondade da trindade. (ibidem, p.61).
Para explicar o modo com o qual Deus cria, Boaventura se utiliza da idéia do
hilemorfismo (ibidem, p.57). Segundo esta doutrina, de origem aristotélica, todas as
coisas finitas são metafisicamente compostas, constituídas por matéria e forma no
momento de sua criação. Diversamente de Aristóteles, para Boaventura a forma não
é una, mas múltiplas e criadas por Deus junto com a matéria nos objetos. A forma é
a expressão concreta de uma coisa, enquanto a matéria é o conteúdo dessa
expressão. Enquanto a matéria permanece a mesma, a forma é mutável e o
movimento ou a mudança acontece pela atualização da matéria por novas formas. A
matéria indica o estado de potencialidade das coisas, não necessariamente
relacionado às coisas físicas como a mentalidade moderna pensa, mas indica um
princípio lógico. A forma indica um princípio, ou estado, de atualidade, a expressão
concreta de uma coisa. A “matéria não é nem espiritual ou corporal, mas pode ser
informada tanto por formas espirituais ou corporais” (ibidem, p.57). As formas,
portanto, subsistem tanto no mundo, enquanto formas criadas (exemplatum), e na
eternidade (exemplar), nas Idéias divinas, enquanto Formas exemplares
(HAMMOND 2002, p.488). Boaventura afirmava que todas as coisas subsistem
nesta composição metafísica, com exceção da alma humana, a única que subsiste
somente em forma, o que permitiria, assim, explicar a imortalidade da alma.
Esta relação matéria-forma não é estática, pois tanto a matéria é ativamente
potencial, quanto a forma infunde nela novas potencialidades, criando uma cadeia
entre as coisas (HAMMOND p.488). Isto reforça a dinamicidade na interpretação da
criação do natural, pois ela seria
carregada com uma miríade de possibilidades ou ativas potencialidades
inseridas por Deus no início da criação. Quando Deus cria, Deus não traz à
tona novas essências, mas Deus leva a completar ou atualizar o que está
incompleto ou em potência. Na criação, portanto, o que está implícito (o
potencial) é tornado explícito (atualização do potencial) pelo poder,
sabedoria e bondade de Deus. (DELIO 2001, p.57-58)
Esta idéia é chamada de princípios seminais. Por faltar à matéria uma
perfeição final, ela fica aberta e orientada à forma mais alta que é o espírito humano.
Ela é, assim, gradualmente perfectível. Aqui, Delio que a liberdade joga papel
central, pois a característica liberdade humana de se abrir a Deus modula a
perfectibilidade da matéria. “A matéria está direcionada ao espírito, mas somente
59
aquele que é matéria e espírito pode unir o mundo material com Deus” (ibidem, p.
59), isto é, o homem. Desta forma, o mundo natural participa da jornada do homem
em direção a Deus, onde este nos persuade a retornar a ele pelo amor.
O exemplarismo, um conceito de ascendências platônicas, sustenta que as
coisas o cópias, réplicas, de um modelo mais perfeito, seu exemplo. Para
Boaventura, o modelo das coisas está localizado na mente de Deus,
especificamente, na Palavra de Deus. “Todas as idéias divinas do Pai são expressas
em Uma (divina) Palavra. Claro, existe realmente uma única idéia, e esta idéia é o
infinito conteúdo do auto-conhecimento de Deus” (ibidem, p.60). O exemplo de toda
a criação é a Palavra, por ser o “pensamento” encarnado de Deus onde tudo o que é
possível de existir, existe na Palavra. A Palavra é o centro das idéias divinas e assim
como a Palavra exprime o Pai, ela é o exemplo de tudo o que existe o pode existir.
“Quando a Palavra se tornou carne, o centro da Trindade no qual a verdade de toda
realidade existe, aparece no centro da criação; portanto, a verdade da criação é
revelada” (ibidem, p.60). Neste sentido, Delio usa a imagem da luz atravessando os
vitrais de uma catedral para exprimir a presença de Deus na criação. Semelhante à
luz que se difrata ao atravessar os vidros de uma catedral, a luz divina através da
Palavra se difrata no universo, produzindo a variedade das coisas, estas, refletindo
um particular da Palavra. (ibidem, p.60). As semelhanças com a imagem do sol e
raios de Lubich é clara, o que aponta a tradição franciscana comum presente nas
duas autoras.
Segundo Boaventura, a Trindade brilha em três níveis: vestígio, imagem e
similitude. A imagem é encontrada somente no intelecto do ser humano; a similitude
pode ser vista na pessoa humana como um todo, enquanto vestígio é a forma mais
distante de reflexão de Deus, e é a que se encontra em todas as criaturas. (ibidem,
p.61).
Cada criatura é uma “pequena palavra”, uma expressão “contraída”, para usar
um termo de Nicolau de Cusa, da expressão infinita da Palavra. O mundo torna-se,
assim, uma teofania sacramental, um livro no qual lemos a Glória de Deus.
Entretanto, este livro tornou-se incompreensível aos homens em virtude do pecado,
como um livro escrito em uma língua estrangeira. Com a encarnação, o livro escrito
60
“internamente”, a Palavra, aparece no centro da criação como o fundamento desta
criação. Assim, para quem se aproxima de Cristo, a expressão implícita da Trindade
no mundo se torna explícita. Delio afirma que segundo Boaventura, este processo
de progressiva transparência da visão de Deus no mundo natural pode ser
observada claramente na vida de Francisco de Assis.
Francisco foi capaz de apreender a profundidade real da criação porque ele
entrou profundamente na Palavra encarnada. Lá, no centro do seu ser, e
agora, no centro da criação, ele descobriu a verdade dele mesmo e de toda
a criação em Deus. Por meio do seu relacionamento com Cristo, Francisco,
podemos dizer, experimentou uma transformação de consciência em virtude
da graça. Sua lucidez (awareness) do mundo criado mudou. O mundo
criado não é mais um livro ilegível a ele; pelo contrário, cada aspecto da
criação falava a Francisco do amor de Deus revelado em Jesus Cristo.
Francisco foi capaz de ler as “palavras da criação” como um livro de Deus.
Vermes da terra, brotos e galhos das árvores, pobres mendicantes e
leprosos, todos falavam a ele do amor de Deus manifestado em Cristo. E
ele fez de todas as coisas uma escada para subir e abraçar Aquele que é o
mais desejável. (ibidem, p.63, grifo nosso)
Francisco teve condições de perceber a estrutura fundamental da criação, isto
é, as conexões de sentido presentes até mesmo nas coisas mais abjetas. Delio
afirma que “Cristo pertence à própria estrutura da realidade: como Palavra, à
realidade de Deus; como Palavra encarnada, à realidade do universo criado por
Deus. É Cristo que revela ao mundo seu sentido próprio.” (ibidem, p.63). Ao
aproximar-se de Cristo a percepção de Deus no mundo se torna progressivamente
clara para o indivído e, acrescentaríamos, também para a coletividade. A
“transformação da consciência em virtude da graça” de que Delio fala acima, do qual
participa a estrutura trinitária do evento-Cristo, é o modo com o qual uma
epistemologia do conhecimento religioso poderá ser elaborada, como procuraremos
fazer no Capítulo 3.
2.4.3 – Considerações
Este aspecto de transformação da subjetividade em virtude da aproximação a
Cristo, ou em outros termos, em virtude da experiência religiosa, e que tem como um
seu subproduto a transparência do mundo natural, parece explicar bem o caso de
Chiara Lubich. De uma fonte não publicada, Lubich diz que Jesus Abandonado que
se identifica com este sofrimento e negação transmuta o mal cósmico em amor.
Assim, todo o criado e também os seres mais desprezíveis e nojentos
cantam ao Amor. Verdadeiramente Jesus Abandonado se fez feio para tudo
61
embelezar, pecado para tirá-lo da terra e fazer de tudo Deus; dor para tirar o
mal do mundo e reduzir a dor em amor.
19
Mesmo no caso do drama do mundo, da dor e sofrimento ainda presente, esta
transformação na transparência permanece e é justamenteque esta se coloca de
modo explicativo mais forte. Como vemos, as semelhanças com a tradição
franciscana se fazem claras também nas imagens utilizadas.
A tradição franciscana possui um lastro de experiência a partir do qual nasce
uma mística para o mundo natural que está certamente enxertado na tradição da
Igreja. No caso de Boaventura, profundo franciscano e também pensador, este
enxerto se na sua utilizão de categorias agostinianas. Entretanto, o
franciscanismo também traz algo de novo. Ele afirma que Francisco é aquele que
mais perfeitamente se aproximou de Cristo e por isso consegue por um lado criar
uma comunidade ao seu redor e por outro inaugurar toda uma corrente espiritual da
natureza dentro da Igreja.
Talvez, esse aspecto místico associado ao mundo natural onde Deus se
manifesta em formas de vestigia, contribuiu para que o franciscanismo
historicamente estivesse associado à experiência empírica que precede a
formulação do método científico mais tarde na modernidade. Se a experiência do
mundo, mesmo que interpretada dentro de um quadro intelectual especulativo como
tipicamente o faz o medievo de Boaventura, poderia mostrar neste mundo os traços
da presença de Deus, então poderíamos dizer, de forma análoga, que a experiência
mística do mundo que Chiara Lubich faz naquele verão de 1949, não deveria ser,
para ela, absolutamente incompatível com o conhecimento científico que parte do
dado natural. Não será possível investigar essa hipótese neste trabalho por
limitações de escopo, mas se assim for, o conhecimento científico (ciências duras,
como a física, biologia, etc) seria uma espécie de gradual desvelação das
imbricadas relações entre o mundo e Deus. Haveria, portanto, uma transcendência e
mesmo uma contemplação no conhecimento do mundo natural.
62
19
“Così tutto il creato e anche gli esseri più spregevoli e schifosi cantano all'Amore.
Veramente G. A. s'è fatto brutto per tutto abbellire, peccato per toglierlo dalla terra e far di tutto Dio;
dolore per togliere il male dal mondo e ridurre il dolore ad amore.”
2.5 – TRAÇOS DE UMA ONTOLOGIA TRINITÁRIA
Tentemos, agora, definir melhor o que parece emergir do pensamento
religioso em Lubich à luz da teologia até agora delineada. Para procurar entender
como Lubich se refere ao mundo natural, esboçaremos a idéia de ontologia trinitária,
que de certa forma apareceu anteriormente. Este termo é utilizado por alguns
colaboradores de Lubich, mas aqui usaremos com um sentido específico. Com este
termo entendemos duas concepções que se relacionam. Primeiramente, a forma
originária de se pensar a própria Trindade. Neste caso, ontologia trinitária, se refere
à compreensão da Trindade imanente, é a maneira de representar mentalmente a
Trindade. Em segundo lugar, a entendemos como uma particular maneira de
conceber o mundo na sua totalidade e as coisas na sua particularidade. Certamente
esta segunda maneira de pensar a ontologia trinitária depende e está vinculada à
primeira e ambas emergem da experiência espiritual individual-coletiva de Lubich e
companheiras. Portanto, um vínculo entre o conhecimento religioso, isto é, uma
epistemologia religiosa e a concepção das coisas, sua ontologia.
Na leitura de diversos textos de Lubich, a impressão de fundo que emana é
que todas as atividades humanas estão vinculadas à experiência religiosa e
adquirem sentido somente dentro dela. Talvez possamos enunciar uma regra geral:
quanto mais intensa e profunda for a experiência religiosa, tanto mais os outros
aspectos da vida serão condicionados por ela e interpretados dentro dela. Também o
entendimento do mundo natural fica condicionado da mesma maneira e é isto o que
podemos observar quando a autora se refere à criação. Talvez esteja um modo de
o cristianismo reencontrar seu lugar um lugar vital em relação tanto às ciências
naturais quanto à ação ecológica. A compreensão da natureza como criação, em
modo sacramental, fundamentada pela intensidade e profundidade da experiência
religiosa e que evidencia uma visão de mundo, neste caso trinitária, pode ser
tomada como um conhecimento específico não redutível a outras formas de
apreensão, tal como a estética ou a científica.
O preceito do amor ao próximo pressupõe inevitavelmente o sofrimento,
certamente em vistas à ressurreição na unidade, pois para amar é necessário o
esvaziamento de si, como o modelo perfeito que é Jesus no abandono, que
63
experimenta o extremo da ausência de Deus. Paradoxalmente, é neste extremo que
acontece a inversão de que Deus-Pai ressuscita Cristo, como uma resposta de amor
distribuindo o Espírito aos homens, e nisto se esconde todo o mistério Pascal e é
que compreendemos quem é Jesus, somente é que vemos o Cristo. Lubich dirá
que “Jesus é Jesus abandonado. Jesus abandonado é Jesus”
20
, mostrando que a
revelação de Cristo está no mistério pascal, pois o Ressuscitado traz consigo as
marcas do Abandonado (Cf. Jo 20,27): é sempre a mesma pessoa. Ora, se é por
meio do abandono, do extremo esvaziamento, que se manifesta o próprio ser, então,
é neste nada por amor que o ser se define. E se isto vale para o Cristo, muito mais
para os homens, e se vale para os homens, o vale também para a criação, pois esta
possui a marca da trindade. Este nada, não é um vazio qualquer desprovido de
matéria, mas é o nada que está vinculado ao amor, justamente por não ser (para si)
é que é (para o outro), é amor. Lubich dirá que “Jesus abandonado, porque não é, é.
Nós somos se não somos. Se somos, não somos.”
21
(LUBICH apud BLAUMEISER
2000, p.787). É um nada em vistas à ressurreição e à nova criação na sua estrutura
trinitária.
Em um discurso por ocasião da entrega do título de doutorado honoris causa
em filosofia na Universidade Jean-Baptisete de La Salle, no México, e na Pontifícia
Universidade de Manila, nas Filipinas, Chiara Lubich discorre sobre a ontologia
trinitária. Dada a relevância para o tema, selecionamos parte desse texto que está
presente no anexo “Trindade, Ontologia e Criação”. Este texto, apesar de ser
declarado como sendo de autoria de Lubich, contém uma estranha densidade
filosófica não presente em outros textos. Isto levou a alguns pensarem que haveria
alguma contribuição de colaboradores em sua elaboração. A hipótese não é
estranha, mas, se Lubich o assumiu como seu, é porque ao menos encontrou nestas
formas de se expressar parte genuína de seu próprio pensamento. Negar isso seria
admitir que ela teria sido constrangida quando ao contaúdo, o que é extremamente
improvável. Portanto, ainda consideramos relevante sua utilização aqui como
expressão de seu pensamento.
64
20
Tirada de fonte interna do Movimento dos Focolares, sem publicação.
21
“Gesù Abbandonato, perché non è, è. Noi siamo se non siamo. Se siamo non siamo.”
Neste discurso, ela diz que duas são as contribuições da espiritualidade para
a filosofia atual. A primeira, uma ontologia trinitária e, em seguida, o sentido da
criação. Após reconhecer que o ser é universal e está presente nas diversas línguas,
ela aponta que também a existência subjetiva na consciência é “confissão do Ser
Absoluto, da Luz puríssima que não conhece sombra nem erros” (LUBICH 2003a, p.
265) . O Ser Absoluto, Deus, é raiz para a existência, inclusive para o não humano e
daí a pergunta que ela se faz: “Será verdade que a consciência de si e a afirmação
do ser como realidade em si, chegando ao reconhecimento do ser Absoluto, não
poderiam coexistir?” (ibidem, p.265). Mas, neste mesmo texto, a autora reconhece
na revelação a direção para uma solução contínua entre existência subjetiva e
existência das realidades naturais. Isto é, que a experiência do Abandono aponta
solução para a retomada tanto do sentido da existência subjetiva quanto da
reconciliação com as realidades objetivas. No primeiro caso ela afirma que o
equívoco estaria na luta contra tudo aquilo que é o não-eu, pois a figura do
Abandonado no momento trágico da Paixão mostra que a existência se resolve na
doação de si: paradoxalmente, quando o ser se esvai, aí que ele é em plenitude.
Ele [Jesus Abandonado] nos revela – com o seu ser reduzido a nada, aceito
por amor ao Pai, ao qual volta a se entregar (“Em tuas mãos entrego o meu
espírito” [Lucas 23,46]) que eu sou eu não quando me fecho ao outro,
mas quando me entrego, quando me perco no outro por amor. Se, por
exemplo, tenho uma flor e a dou, claro que me privo dela, e assim, nesse
privar-me, perco alguma coisa de mim o não-ser); na realidade,
justamente porque dou essa flor, cresce em mim o amor (o ser). Portanto, a
minha subjetividade é quando, por amor, não-é, ou seja, quando se
transfere totalmente ao outro, por amor.
Jesus Abandonado é a revelação máxima da consciência como afirmação
de si próprio, enquanto se doa ao outro, a uma alteridade que, em sua
extensão máxima, é justamente o ser. A autêntica consciência de si é
aquela que surge da comunhão com o ser: uma comunhão na qual a
consciência parece perder-se, mas, com efeito, se encontra, é. (ibidem, p.
266)
A ontologia trinitária se apresenta na autora com aspectos de simultaneidade
do ser/não-ser, ao afirmar que o amor é e não é ao mesmo tempo. Para amar, é
necessário a kénose, que é um não ser que tem sua raiz na auto-doação infinita das
pessoas da Trindade. Mas é justamente este não-ser que é necessário para ser.
Brincando com a famosa afirmação de Descartes, os comentadores afirmam que ela
deveria ser reescrita como: “amo, logo, sou”. Gérard Rossé, ao comentar o texto do
65
pacto do amor recíproco
22
entre Lubich e Giordani, e posteriormente as outras
companheiras, afirma que este nada nasce da compreensão de Jesus abandonado.
Este nada não se acrescenta ao amor como se fosse um terceiro elemento,
mas exprime exatamente a qualidade do amor. Este “nada”, ainda, não é
vivido como relação privada com Jesus eucaristia, mas foi atuado na
reciprocidade. Enfim, este “nada” tem um vulto preciso: Jesus abandonado
que constitui a qualidade e a medida do “nada”. De fato, lemos em outra
parte do texto: “Nós devemos ser a nulidade de Jesus abandonado, que é
infinita nulidade. Então em nós repousará o Espírito Santo.” (ROSSÉ 2000,
p.23)
Rossé mostra que o nada é, primeiramente, a realidade do batismo de estar
co-morto com Cristo participando, assim, de sua ressurreição (Rm 6,5-11). Em
segundo, que a vida do ágape atualiza a realidade batismal e em terceiro, que o
Abandonado é a dimensão escatológica do ágape. (ROSSÉ 2000, p.24). Está claro
que uma questão moral está colocada, o próprio imperativo do ágape é, de certa
forma, moral. Entretanto, a este respeito, Rossé afirma que não existe uma moral da
perfeição pessoal, ou mesmo, diríamos, das virtudes, mas no não-ser que
caracteriza a dinâmica do ágape a purificação é obra de Deus. (ibidem, p.31). Nele o
indivíduo perde seu eu e o recebe de volta da parte de Deus, isto é, Deus “não se
contenta de um ‘homem virtuoso’, Ele quer uma ‘criação nova’ que somente o nada
do amor recíproco permite criar” (ibidem, p.31). Para o comentador, aqui se
aproxima da ética Paulina, por ser uma ética tipicamente comunitária e eclesiológica,
como pudemos mostrar acima. É uma moral, portanto, não fixada em binômios
certo/errado, deve/não-deve, ou pecadística, mas uma moral do imperativo do amor
que estaria mais para a afirmação agostiniana: ama e faz o que queres.
Segundo Piero Coda (2006), esta dinâmica do ágape é a dinâmica da vida
trinitária revelada por Cristo que, ao longo da história da Igreja, foi gradativamente
compreendida em diferentes aspectos. Traçando um caminho de Agostinho, Tomás
de Aquino, Boaventura, e místicos, Tereza de Ávila, João da Cruz, ele argumenta
que Lubich faz uma interpretação original do mistério trinitário (CODA 2006, p.
548-549). Segundo ele, a principal originalidade estaria que o pacto do amor
recíproco é o “lugar eclesiológico onde Deus se a conhecer e é amor recíproco
66
22
O pacto do amor recíproco de que se fala era um comprometimento pessoal de cada um
que participava nele de estar prontos a amar até a intensidade e profundidade do abandono, isto é, a
modelo de Cristo, que assume as características de um exercício espiritual. Feito pela primeira vez
naqueles anos de 1949, foi assumido posteriormente por todos os membros dos Focolares onde é
enunciado, para os católicos, após a comunhão eucarística.
consumado na unidade pela eucaristia” (ibidem, p.549). Em analogia à interioridade
agostiniana ou ao castelo interior de João da Cruz, o castelo exterior da
comunidade, novamente, o “lugar” em que é possível receber o pensamento de
Cristo, que renova o pensamento teológico. Hubertus Blaumeiser (2000), professor
de teologia na Pontificia Università Gregoriana, concorda neste ponto: o lugar da
teologia está no interior da comunidade eclesial que se forma sob o vínculo da
caridade, da unidade. Parece que para esta teologia, seu “lugar” não é uma
condição social, mas a condição existencial desse nada do Abandonado. A falta
material ou a exclusão política se apresentariam, antes, como a face do Abandonado
que deve ser abraçado, mas somente se transformaria no lugar teológico quando o
objeto do amor, neste caso os pobres ou excluídos, se transformassem também em
sujeitos de amor e se instaurasse a reciprocidade que é condição para a unidade,
onde a satisfação das necessidades materiais é evidentemente a primeira coisa a
ser superada. Segundo os comentadores, é que se poderia fazer teologia “de
Jesus”, ao contrário de uma teologia “sobre Jesus”, pois seria antes o próprio Jesus
na comunidade que iluminaria os indivíduos, produzindo uma argumentação
inspirada. Entretanto, nós diríamos que estas condições definem um tipo específico
de teologia, que não necessariamente invalida as outras, ou seja, não é
absolutamente a única “condição subjetiva subjacente a qualquer esforço de
conhecimento teológico” (BLAUMEISER 2000, p.775). Esta própria teologia deve se
alimentar e entrar em diálogo com as outras, sob risco de criar um discurso
desconectado da realidade objetiva, como de certa forma diz Rossè: “Se em uma
espiritualidade de comunhão o irmão é mediador de Deus, o são também os vários
carismas para o ‘carisma da unidade’” (ROSSÉ 2000, p.34). Estas argumentações
mostram, entretanto, a premência da tensão abandono-unidade para os
colaboradores, indicando a dependência vital que existe da espiritualidade (Cf
CODA 1996a; 1999; 2000). De qualquer forma, seria mesmo difícil conceber uma
teologia que não nasça de alguma comunidade. Foi o que também procuramos
mostrar acima ao discutir o abandonado em Mateus e Paulo, onde a compreensão
do abandono em chave de servo sofredor para Cristo nasce justamente na
comunidade, que é o contexto pneumatológico-eclesial. Isto será importante ao
discutirmos, no próximo capítulo, a questão da transmissão de conceitos contra-
intuitivos em sua capacidade de fixação subjetiva.
67
Mas retornemos à ontologia trinitária. Na mesma ocasião da entrega de
doutorado Honoris Causa em teologia em Manila, Lubich sintetiza sua concepção da
Trindade:
O Pai gera por amor o Filho, “perde-se” nele, vive nele, faz-se de certo
modo “não-ser” por amor e, justamente por isso ele é, é Pai. O Filho,
enquanto eco do Pai, retorna por amor ao Pai, “perde-se” nele, vive nele,
faz-se de certo modo “não-ser” por amor e justamente fazendo assim é, é
Filho; o Espírito Santo, que é o recíproco amor entre Pai e Filho, seu vínculo
de unidade, faz-se, Ele também, de certo modo, “não-ser” por amor e
justamente por isso é, é o Espírito Santo. (LUBICH 2003a, p.259)
Notemos que o Pai gerador, o Filho como resposta e o Espírito como vínculo
contém a mesma apresentação da Trindade como apresentada em Boaventura.
um ligeiro acréscimo ao atribuir também ao Espírito a ação de amor e de
esvaziamento. O tema do esvaziamento, o não-ser, está presente, entretanto, nas
três Pessoas, mesmo preservando suas características originais.
Está claro que o “não-ser” nasce da compreensão do Abandonado que se
esvazia de si, a kenose, que, porém, na Trindade, não é um rebaixamento, mas
expressão do próprio ser divino. Ficaria mesmo estranho atribuir um rebaixamento
no interior da Trindade. A doação completa de si apresenta uma face propriamente
kenótica somente no mundo, onde a contingência é a condição da existência
objetiva, que não existe na Trindade imanente. O fato da experimentação do
abandono por parte de Cristo mostra, entretanto, o continuum entre a doação de si e
a kenosis que estava posta anteriormente na Trindade, como mostramos na
discussão com Von Balthasar em Mysterium Paschale. No texto de Lubich acima, o
não-ser (ou o nada) está vinculado à doação de si, ao perder-se, esvaziar-se
completamente para um outro e que, justamente por isso, produz a identidade de si
o ser. O Pai é Pai justamente na geração do Filho e isto ele o faz completa e
intensíssimamente. Viceversa, o Filho responde a esta geração amorosa
completamente e justamente por isto ele é, é Filho. O Espírito, em seu proceder, não
é para si, mas para o Pai e o Filho. Ciardi articula da seguinte maneira esta
ontologia:
Jesus abandonado é o modo de ser de Deus. É a tradução em experiência
humana da experiência intratrinitária onde cada uma das divinas Pessoas,
na mútua relacionalidade, se faz “nada por amor” para afirmar as outras.
Jesus, que vem da Trindade, justamente no momento do abandono revela
que cada uma das três Pessoas vive para a outra, vive na outra, vive da
outra. (...) A identidade de cada uma das Pessoas se exprime em afirmar a
outra. (CIARDI 2006, p.173)
68
Também Piero Coda concorda com este estado de coisas para a Trindade.
Ele comenta:
a transcendência de Deus em direção ao O/outro, em Si e “fora” de Si, para
ser como é real, não pode não comportar uma total kénose de Si, na
qual Ele “é” justamente porque Se dá, e portanto “não é”. Somente Deus
pode dar Deus, e portanto, somente Deus (o Verbo encarnado) pode
“perder” Deus no doá-Lo – justamente assim sendo Si mesmo. O evento do
abandono de Jesus Cristo abre sobre esta abissal profundidade da
ontologia trinitária da dedicação que diz que o Ser de Deus e na sua
interioridade, pelo evento da encarnação, é dito em liberdade também do
ser do homem e do criado. (CODA 2004a, p.209)
Se na Trindade a identidade de cada uma das Pessoas se exprime em afirmar
a outra, como Ciardi diz acima, então é na relação do amor que se instaura a
atualidade do ser. Seria equivocado tentar definir o que vem antes, o esvaziamento
ou o amor, pois é a relação que está colocada. Rossé comenta a espiritualidade
coletiva neste aspecto trinitário com as seguintes palavras:
A relação vivida na dimensão pascal do ágape se torna o ser que me faz
ser. Em outros termos, sou eu mesmo quando sou amor, isto é, um "nada",
isto é, relação, que é ao mesmo tempo dom de mim e acolhida do outro:
então sou (em) plenitude. A relação é, portanto, o meu ser, a minha
verdadeira identidade é amor. Isto significa: na vida de unidade, quando vivo
o 'nada' como relação, eu sou a realização humano-divina do desígnio de
Deus sobre mim: sou amor personalizado. (ROSSÉ 1996b, p.539)
O amor tem sua possibilidade somente numa relação, é essencialmente uma
relação que pressupõe o nulla de cada um dos amantes e é esta mesma relação
que sustenta a existência de cada ente. Se podemos dizer que o momento lógico
anterior à relação é ele também existente, entretanto, ele é existente somente por
sua potencialidade ao amor. Mas a realização de tal potencialidade está somente na
realização (atualização) da relação, é aí que vemos o que antes estava em potência.
Assim, a identidade individual está na efetivação desta relação amorosa. No mundo,
esta relação inclui o sofrimento, se apresenta em sua face propriamente kenótica e o
atravessa, um nada. Assim, podemos nos perguntar, o que é a permanência? É a
possibilidade ainda aberta de se tornar “trinitário”. O que é a mudança, o
movimento? É a atualização do ente em ser trinitário. A irrupção do novo acontece
em virtude do aparecimento de um terceiro que nasce da relação trinitária entre
homem e homem, entre homem e criação, entre coisa e coisa.
Em Boaventura o mundo, entendido dentro de sua trajetória de origem e
retorno a Deus seguem o modelo exemplar do Verbo. Porém, para ele, a mudança
no mundo acontece por meio do hilemorfismo: Deus atualiza por meio de formas à
69
matéria. Na ontologia trinitária em Lubich, a mudança, a atualização, a criatividade e
a evolução no mundo aparece em virtude da reprodução particularizada da lógica
kenótica-pericorética presente na Trindade que agora se observa no mundo. O
mundo e as coisas particulares têm sua existência sustentada porque são para, se
colocam em relação com seu entorno, com o outro. As coisas são, porque se
“esvaziam” para receber assim sua identidade como que “de fora”. De maneira
semelhante a Boaventura, no qual na qualquer coisa é vestigia trinitate, por ser
imagem reproduzida da própria Trindade. Assim, para tudo o que é natural, isto é,
não produto da ação humana, aparece nestas relações a prefiguração de fundo
trinitária, que pode ser colhida somente pelo espírito humano que estiver sob a
graça e também em sintonia com o amor de Deus, isto é, também ele amar. O
conteúdo religioso-teológico e justamente por isso real do mundo natural, sua
essência, para Lubich se torna a própria estrutura trinitária que lhe é subjacente.
Poderíamos arriscar mesmo a distinguir alguns momentos lógicos desta
estrutura: geração, recepção, retorno, vínculo e distinção. No momento geração, o
ente atua análogo à figura do Pai, no momento de recepção e retorno, atua como
Filho, no momento do vínculo, aparece o Espírito, emergindo como terceiro e
conferindo a identidade própria da estrutura trinitária. Cada momento chama o outro.
Ao atingir a unidade no vínculo, ocorre a distinção da estrutura, a multiplicação em
novos entes em termos boaventurianos, novas formas e novas permanências e
potencialidades – nova matéria.
Analogamente à constituição da comunidade pela irrupção do novo que é o
Espírito, e que em última instância nasce do brado de Jesus na cruz e da ação de
Deus na ressurreição, o novo acontece no mundo quando cada ente se coloca na
dimensão trinitária que é sua verdadeira vocação.
Como dissemos, dois modos de se referir à ontologia trinitária, na primeira
e origiria, a compreensão da Trindade, a segunda, por derivão, uma
compreensão do mundo. Uma vez feita a indução da experiência religiosa para uma
reflexão teológica o próximo passo, para Lubich, é fazer uma dedução, para as
outras realidades humanas. Se bem que indução/dedução estão sempre
simultaneamente relacionadas, pois a experiência religiosa não é de uma vez por
70
todas, mas um ato contínuo ao longo de uma vida que está inevitavelmente
entrelaçada pelos eventos do quotidiano. A interpretação da natureza se colocará
dentro desta perspectiva.
2.6 – A CRIAÇÃO
A relação intra-trinitária, constitutiva da Trindade, se apresenta como modelo
e fundamento do real. A questão e o projeto é colocado de maneira clara por Coda
(2004b), que de resto, é o entendimento deste inteiro capítulo:
Convém repensar o evento da criação na interioridade do
Evento trinitário que é Deus mesmo. O que implica: a marca de
rlacionalidade recíproca e sistêmica que estrutura radicalmente
a criação à “imagem e semelhança” do Criador, que é
Unitrindade; e mais, o envolvimento de Deus na realização da
“plena estatura” da criação e, de consequência, aquela da
criação na vida de Deus, em resposta à gratuita vocação que
Dele provém.
23
(CODA 2004b, p.234)
Em Lubich, a percepção do fundamento do real se por um viés místico, e
os textos, portanto, refletem estas experiências: estão carregados de imagens e
figuras. Estes escritos apresentam a Trindade como um modelo para o mundo criado
o qual se desenvolve para uma ontologia das coisas criadas. Ao analisar estes
textos, devemos ter em mente a apresentação desta ontologia acima que agora se
refletirá para o mundo criado.
Se a vida do homem adquire sentido e existe no amor, a modelo de Cristo que
“morreu por mim”, e, portanto também o homem, se quiser ter a vida – ou diríamos o
ser também deve amar, então o mundo criado participa desta interpretação: as
coisas têm sua existência dentro do amor. O sentido religioso de cada coisa está no
fato que elas foram feitas umas para as outras, elas têm seu ser num outro. Rossé
resume bem esta situação:
Se Deus é o Ser e, enquanto o ser, a lei do criado, então Deus é o
verdadeiro real do criado. Entre o Ser que é Deus e o ser comunicado,
71
23
Mesmo que a preocupação central do extenso volume Il Logos e il Nulla, de Piero Coda
tenha por núcleo a questão do diálogo com as religiões, e portanto não tenha os mesmos temas que
nossos, notamos que a preocupação não lhe é estranha. De fato, a tese de que a Trindade funda
tanto uma estrutura do real quanto um modo de conhecimento deste mesmo real é compartilhada por
nós. (ver CODA 2004b, p.221-257).
Para uma apresentação do pensamento de Coda sobre as religiões, ver Brendan LEATHY
(2007).
mesmo na mais grande distinção, existe um parentesco profundo. E este
ser se exprime na ordem-relação. A matéria não tem verdadeira
consistência sem Deus. O caos seria justamente uma matéria reduzida a si
mesma sem a ordem. (ROSSÉ 2001, p.829)
A ordem do mundo existe dentro da interpretação religiosa desse, que é em
modo contemplativo, sacramental e reconciliatório. Pelo conhecimento religioso,
também a ordem presente nas leis naturais assume um sentido novo além do
mecânico. Estas têm seu fundamento na “lei” do amor divino, que é aquela que
provê a ordem do mundo e a lei religiosa da natureza, a lei do Amor, é perceptível
somente àquele que existencialmente e no concreto de sua vida pratica e vive o
amor ao próximo conforme a Cristo. Para este, a ordem do mundo se abre a um
entendimento de qualidade distinta das leis naturais e que, no entanto, sentido
justamente às leis naturais. “Olhando a natureza, parece-nos que Jesus também
a ela o seu Mandamento Novo.” (LUBICH 2003a, p.187). A ordem do mundo é
entendida em chave religiosa, o mandamento do amor recíproco vale para a
natureza, é esta a vontade de Deus para o mundo, e é este também o seu
sustentáculo. De maneira semelhante à doação de sentido para a existência
subjetiva, será no mistério da Cruz que, para Lubich, a existência das coisas adquire
seu sentido.
Jesus Abandonado experimentou em si, e assumiu em si, o não-ser das
criaturas separadas da fonte do ser: tomou sobre si a “vaidade das
vaidades” (Eclesiastes 1,2).
Ele se apropriou por amor desse não-ser, que podemos chamar de
negativo, e o transformou em si mesmo, naquele não-ser positivo que é o
Amor; como revela a ressurreição. Jesus Abandonado fez com que o
Espírito Santo se estendesse por toda a Criação, tornando-se assim “mãe”
da Nova Criação. (ibidem, p.268)
O estado de alienação que cada coisa natural tem em si, e que no homem se
reflete em termos de angústia, é resolvido no seu interior por meio da inversão de
sentido operada pela cruz. A Nova Criação inaugurada na cruz é o convite ao
indivíduo a perceber a reconciliação com a natureza que é operada não por meio da
negação da dor e do sofrimento, mas atravessando-os pelo amor. Se no homem
este convite é a um tempo só trágico e libertador, no mundo não-consciente e criado,
este convite é intestino, esperando “a manifestação dos filhos de Deus” (Rm 8,19),
isto é, que no amor recíproco e no cuidado da natureza se manifeste o que está
implicitamente colocado na própria estrutura trinitária da realidade. Lubich mostra o
vínculo de responsabilidade do ser humano com a criação ao colocá-lo, de modo
72
semelhante à Boaventura, como centro da Criação. A desvelação mesmo que
“como por um espelho” (1Cor 13,12) da estrutura trinitária do mundo criado está
vinculada à participação do próprio homem no amor recíproco, isto é, que ele viva
“trinitariamente”. Lubich diz:
Se nós vivemos no amor recíproco, que traz Cristo para o meio de nós, e
nos alimentamos da Eucaristia, que nos faz ser Cristo individual e
comunitariamente, e por isso Igreja, podemos entender e perceber a
presença do Espírito de Deus no coração de todos e de cada um dos seres,
e em todo o cosmo.
E, por meio do Espírito Santo, podemos intuir que existe uma relação
esponsal entre o Incriado e a Criação, porque o Verbo, ao encarnar,
colocou-se ao lado da Criação, divinizando-a e recapitulando-a em si.
É uma visão ampla e majestosa que nos leva a pensar no ingresso, um dia,
de toda a Criação no seio do Pai. (LUBICH 2003a, p. 268)
Uma vez que estamos no tempo, conforme o pensamento de Boaventura, nos
encontramos no trânsito da origem para o destino final da recapitulação de tudo em
Cristo. A potência do amor está colocada na estrutura trinitária, por assim dizer,
“inconsciente” no mundo natural que se torna, por meio do homem, em consciência
de si, sentido da existência, e desvelação da natureza. É posto no homem, portanto,
a responsabilidade sobre o mundo criado, um pensamento tipicamente franciscano,
como pôde ser visto nas afirmações acima de Delio, no qual o homem é o centro da
criação não para dominá-la, mas para aperfeiçoá-la e conduzí-la de volta a Deus.
2.6.1 – Criação trinitária: a imagem do Sol e dos Raios.
Para exemplificar melhor quanto foi dito até aqui, utilizaremos o seguinte texto
de Lubich no qual ela se exprime, novamente em chave mística, com a forte imagem
trinitária que segue e de onde as semelhanças franciscanas reaparecem. Vejamos o
texto
24
:
O Pai possui uma expressão de Si fora de Si, feita como de raios
divergentes, e uma dentro di Si feita de raios convergentes no centro, em
um ponto que é o Amor: Deus no infinitamente pequeno: o Nada-Tudo do
Amor! O Verbo.
Os raios divergentes são Jesus: por meio de Jesus o Pai chega a todos os
filhos fora de Si em qualquer ponto que estes se encontrem.
Estes, à medida que se aproximam a Deus, caminhando na vontade de
Deus (sendo Jesus), se aproximam entre eles.
73
24
Remetemos o leitor ao anexo Imagem do sol e Raios, onde os textos presentes em Rossé
e em Blaumeiser são colocados lado a lado.
Os raios convergentes no coração do Sol, que é o Pai, são a Palavra de
Deus. Verbo que converge no Verbo.
O Pai diz: “Amor” em infinitos tons e gera a Palavra, que é amor, dentro de
Si, o Filho, e o Filho o qual é, eco do Pai, doz “Amor” e volta ao Pai!
Mas todas as almas que estão no Seio do Pai (que chegaram caminhando
ao longo do raio externo, sendo “Jesus”) respondem ao eco do Pai (=
respondem ao Pai), aliás, são também essas Palavras do Pai, que responde
ao Pai.
Assim todo o Paraíso é um canto que ressoa de cada lado: “Amor, amor,
amor, amor”.
(...)
Os raios que partem do Pai (do coração do Pai), e são divergentes, chegam
também a toda a criação, à matéria, à qual dão a Ordem, que é Amor, Vida,
a Idéia: o Verbo.
Ao final, as Idéias voltarão pelo raio ao genitor delas e, passando pelo Sol,
de divergentes se tornarão convergentes e o seu encontro formará o
Paraíso feito todo de substancia de amor. E haverá de cada coisa a Idéia
como era, antes da criação, ab aeterno, no Verbo.
Compreendi que do Pai saíram aqueles raios divergentes quando criou
todas as coisas e aqueles raios deram Ordem que é Vida e Amor e
Verdade; as Idéias das coisas estavam no Verbo e o Pai as projetava fora
de Si.
Ora, ao final, o Pai retirará aqueles raios que de divergentes se tornarão
convergentes e se encontrarão no Seu Seio. (LUBICH apud ROSSÉ 2009b,
p.514-515)
Do lado de do Paraíso [isto é, fora do Seio do Pai] permanecerá o
inferno. (...) Permanecerá como a matéria sem a vida, sem ordem, sem
amor. (LUBICH apud BLAUMEISER 1997)
Nesta meditação podemos notar três momentos. No primeiro, está descrita na
imagem a geração do Filho único de Deus como a expressão íntima, interna, do Pai
por meio dos raios convergentes, ilustrando a Trindade, por assim dizer, imanente.
Se lembrarmos das considerações anteriores acerca da Trindade, os raios
desenham o movimento donativo em direção à geração do Filho internamente e o
retorno do Filho em relação ao Pai. Posteriormente, o gerado, o Filho, também ama
e, num movimento de retorno ao Pai, uma resposta completa de si. Nisto, mesmo
que a referência ao Espírito Santo não seja explícita, ela está como pano de
fundo, pois o pensamento não é dual, mas trinitário (Cf ROSSÉ 2001, p.824, nota 1),
levando-se em consideração a totalidade do pensamento de Lubich. A geração é
apresentada por meio dos raios e dos “infinitos tons”, que podem indicar uma
multiplicidade, mas também uma totalidade. Conforme Boaventura, o Verbo, é a
expressão concreta das idéias do Pai que Lubich apresenta na figura do sol e dos
raios convergentes, onde cada raio está para cada idéia, onde todas se concentram
num ponto único que as recolhe numa plenitude múltipla que é o Filho.
74
Em seguida, num segundo momento, a imagem do sol se volta para fora e
estes raios, em seqüência àqueles raios convergentes, explodem e produzem
mundo com sua Ordem, Verdade e Amor. Aqui a imagem mostra que Deus cria
“olhando” o Verbo, em referência à afirmação do credo Niceno-Constantinopolitano:
“Por meio Dele (Cristo) todas as coisas foram criadas” mas também à imagem
franciscana segundo a qual cada coisa tem seu modelo e sua idéia no Verbo. Na
linguagem de Lubich, o raio é também imagem da vontade de Deus para cada ser
humano, onde, seguindo-o, ele realiza o próprio desígnio e se aproxima de Deus,
onde os raios se tornam também mais próximos uns dos outros, aproximando as
pessoas. “Sentíamos por dever caminhar cada um sob o raio da divina vontade,
variada para cada um, mas una como a substância do sol na multiplicidade dos
raios.” (LUBICH apud BLAUMEISER 2000, p.782). O raio está para uma “idéia” de
Deus para as coisas, uma “palavra” de Deus, que no caso do ser humano, é
fortemente palavra de Deus, pois seu destino é se tornar outro Cristo. Se Cristo é a
única Palavra dita em “infinitos tons”, cada ser humano é palavra em um sentido
particular e em via de se tornar perfeito e completo. Analogamente, para as coisas
naturais, seu destino escatológico é também retornar de onde saíram, de Deus, o
que lembra a afirmação paulina em Romanos onde a criação aguarda a
manifestação dos filhos de Deus em vistas de sua própria libertação (Rm 8,19-22).
A trajetória da criação, de saída e retorno a Deus sob a causa exemplar do Verbo,
novamente franciscana, reaparece na imagem.
Isto nos conduz ao terceiro momento, no retorno de todas as coisas a Deus
ao “Seio do Pai”, como Lubich gosta de dizer, momento no qual ele retirará os raios
que de “divergentes se tornarão convergentes”, momento este que se cumpre no
éschaton. No interior de Deus, a comunhão de cada coisa será completa e se
revelará seu sentido final. Talvez possamos pensar os próprios raios como
expressão da vida do Espírito presente no mundo que, ao retornarem ao final
escatológico do mundo, trazem para o interior da comunhão com Deus todas as
coisas, no momento em que Deus se torna tudo em todos. Aqui se completa o
mesmo círculo presente em Boaventura.
Fora desta comunhão, está colocada a expressão inferno e a permanência de
uma matéria “sem vida, sem ordem, sem amor”. Se na interpretação do mundo
75
natural a presença de Deus sob as coisas é a vida que sentido ao todo e a cada
coisa, na versão infernal, o cosmo está lá, mas ele se apresenta desprovido de
sentido, vazio, como expressão de seu próprio reverso. “No inferno os danados
verão o céu com as estrelas e será tudo vazio: faltará a presença de Deus sob tudo;
verão as coisas todas vazias, sem o Amor que está embaixo”
25
(LUBICH apud
CIARDI, 1997, p.567). Atinge, portanto, o oposto do propósito para o qual as coisas
foram criadas, a unidade. Esta ruptura das coisas em seu próprio ser, alienação
completa de si e do outro, é irreversível e sempre maior. Na imagem desse não-
lugar, a matéria é informe, vazia, desarmonia completa, infinita e progressiva. “E
cada parte desta matéria informa chamará a Forma desesperadamente. Possuirá
um desejo: aquele de amar: é feita para amar e não poderá mais amar” (idem, p.
569). A Forma são as idéias de Deus sobre cada coisa, uma “palavra” da Palavra
que é o Filho. Esta ruptura e alienação completa atinge não somente de fora como
algo que esta para atrapalhar, mas de dentro, em sua própria constituição
desestruturando profundamente e removendo a Ordem, a Verdade, a Vida.
Porém não é esta, em parte, uma descrição da experiência do próprio pecado
presente no meio do mundo? O termo “inferno” é a expressão do pecado levado até
as últimas consequências. Entretanto, na história uma reversão foi operada através
da Cruz na qual o Abandonado assume sobre si todo o mal do mundo e Deus, ao
ver o mal, a imagem da cruz e, onde quer que veja a cruz, seu Filho, que é o
Paraíso (BLAUMEISER 1997, p.569). A interpretação do inferno, portanto, se torna
harmoniosa com a presença do Amor de Deus, pois a rejeição a este Amor é a
causa do próprio inferno. Isto nos conduz ao tema do sofrimento na natureza.
2.6.2 – A criação e o sofrimento
Se lembrarmos da articulação acima sobre o mandamento novo, veremos que
um dos aspectos essenciais é sua pressuposição de “ir até o fim”, de dar a vida por
seus amigos (Cf Jo 15:13), o que em termos lubichnianos pode ser dito “até a
medida do abandono”, uma vez que é Jesus abandonado a medida e a explicação
para do amor. A esta lei do amor Lubich se refere nos seguintes termos:
76
25
In inferno i dannati vedrano il cielo con le stelle e sarà tutto vuoto: mancherà la presenza di
Dio sotto tutto; vedranno le cose tutte vuote, senza l’Amore che c’è sotto
Fiquei observando duas plantas e pensei na polinização. Antes de ela
acontecer, as plantas crescem para o alto, como que amando a Deus com
todo o seu ser. Depois se unem, como que amando-se reciprocamente,
assim como as Pessoas da Trindade se amam. De duas tornam-se uma só.
Amam-se até o abandono, até perder a sua personalidade por assim dizer
– como Jesus no abandono. (LUBICH 2003a, p.187)
A analogia com as verdades de fé, no caso o amor até o abandono,
funcionam como método para interpretar a natureza em seus fenômenos. Mas, para
que o amor possa existir na natureza, a natureza deve ela mesma ser um nulla, isto
é, sofrer uma kénose de si, ela mesma deve “seguir” Cristo justamente porque Cristo
é o modelo da criação (1Cor 15,28). Esta kenose, este nada, porém, o é um vazio
sem sentido, é o vazio que o próprio Cristo no seu abandono experimenta em
maneira absoluta e que, por sua vez, é o modo da expressão do amor de Deus.
Assim, o criado é um nulla, e justamente por isso, cheio de Deus. uma tensão
entre o nada da criação e a plenitude da criação que se resolve no conceito de nada
por amor. Por um lado “a visão do criado como nada quer antes de tudo evidenciar a
diferença radical entre o criado e o Incriado, entre o mundo e Deus: o mundo de fato
não é Deus”
26
(ROSSÉ 2001, p.827). Por outro lado, Lubich fala em termos agudos:
“Deus, criando, não fez outra coisa que revestir o nada de Si, participar ao nada Si.
Deus é aquele que é. Tudo aquilo que é, é Deus; Deus: Criador; Deus:
criação” (LUBICH apud ROSSÉ 2001, p.829). Não devemos nos equivocar ao achar
que isto conduz a um tipo de panteísmo, mas diz a densidade divina presente na
criação (ROSSÉ 2001, p.829). É que a criação, sendo um nada diante de Deus,
daquele que é em absoluto, se torna, por meio da identificação de Jesus
abandonado com o vazio total, com o nada, algo amável. Aquilo que se assemelha,
mesmo que parcialmente, ao Abandonado, tem em si o reflexo daquele abandono do
Cristo. A criação, enquanto criada de Deus, não pode deixar de ter aquela
característica de kénose trinitária. Assim, a criação é a imagem do Abandonado, tem
sua existência e subsistência exatamente porque é um nada por amor. Justamente
por esta participação da criação ao Abandonado, ela também participará, por meio
do concurso humano, da ressurreição.
Isto pode ajudar a entender o tema da criação a partir do nada. Deus, ao criar,
tira as coisas de si, mas para isto, ele continua a amar: ele se esvazia por amor e,
77
26
La visione del creato considerato come “nulla” vuole prima di tutto evidenziare la differenza
radicale tra il creato e l’Increato, tra il mondo e Dio: il mondo appunto non è Dio (e questo è un
pensiero originale della Rivelazione biblica).
portanto cria. Não um esvaziamento de Deus para deixar que as coisas existam
no sentido da ausência. Mesmo que se queira dar ênfase à autonomia do mundo
natural, esta interpretação nos leva a considerar o mundo como vazio da presença
divina. Para Lubich, Deus se esvazia por amor, e por isto cria. Não é diferente
quando se refere ao Pai que gera Filho: deve doar-se completamente para gerá-lo,
e, portanto, é, por assim dizer, um nada. Assim, o nada da criação, por ser amoroso,
é pleno. A própria criação retorna a Deus de maneira semelhante ao Filho, que, de
eterna gratidão, retorna por amor ao Pai e nisto se doa completamente. Ele faz-se,
por assim dizer, também um nada. A criação é a partir do nada, no sentido que não
preexistiam, mas também a partir do nada por amor e isto é a imagem do verbo. Nos
termos de Lubich:
Houve uma criação e Deus continuamente cria. De fato, a planta que cresce
este ano da semente, nasce de uma morte: portanto de um nada. Mas este
nada é positivo, no sentido que é um nada criado. De fato, a planta não
poderia nascer de um nada não criado. Necessita da semente morta: assim
se como Deus, mesmo continuando a criar do nada, criou uma vez,
no princípio.
27
(CHIARA apud ROSSÉ 2001 p.832)
dois “nada”: o primeiro é a compreensão original daquele nada que é o
esvaziamento de si para que o outro seja, constituintes da Trindade. O outro nada,
se refere à criação a partir do nada. Em Lubich, com o colapso dos dois aspectos
num único significado, ela pode ampliar o conceito aplicando-o a diversas situções.
A creatio ex nihilo é modificada para uma creatio ex nihilo amoris (Cf. ROSSÉ 2001,
p.831; CODA 2003): “Quando Deus criou, criou do nada todas as coisas porque as
criou a partir de Si: do nada significa que não preexistiam. Tirou-as de Si porque
criando-as morreu de amor, amou e portanto criou”
28
(LUBICH apud ROSSÉ 2001,
p.831). Amar é um esvaziamento, portanto, um nada. A criação, sendo um ato
amoroso de Deus, é a partir do nada. Ao pensarmos o evento (histórico-teológico)
Jesus Cristo e a revelação de Deus como ágape, constitutivos da Revelação,
devemos pensar o conceito de nada como um nada relacional, trinitário (CODA
2003, p.66-67). “O ex nihilo do ato da criação é a plenitude com a qual Deus
78
27
Ci fu una creazione e Dio continuamente crea. Infatti la pianta che cresce quest'anno dal
seme nasce da una morte: dunque da un nulla. Ma questo nulla è positivo nel senso che è un nulla
creato. Infatti la pianta non potrebbe nascere da un nulla non creato. Ha bisogno del seme morto: così
si vede come Dio, pur continuando a creare dal nulla, ha creato una sola volta, al principio.
28
Quando Dio creò, creò dal nulla tutte le cose perché le creò da Sé: dal nulla significa che
non preesistevano. Le cavò da Sé perché creandole morì d'amore, amò e perciò creò.
comunica Si mesmo, não menos, àquilo que não é Si.”
29
(idem, p.67). Aquilo que
não é Deus e é um nada recebe sua existência justamente de Deus. A relação entre
Deus e o mundo é como a relação do amor recíproco no qual é necessário o
esvaziamento de si para amar concretamente: para que o mundo seja, é necessário
o esvaziamento amoroso de Deus.
Cada esvaziamento de si por amor é a criação continuada. Por isso podemos
dizer que o verdadeiro ato criativo, aquele que confere o ser, é simultaneamente
kenótico e amoroso. “Cada nada criado é um sinal de amor, da lei divina impressa
nas coisas”
30
(ROSSÉ 2001, p.832). Uma terceira identificação com o nada na
criação se refere ao sofrimento. Como este está inscrito na compreensão de Jesus
Abandonado, aquele que se fez nada por amor por primeiro, o nada que é o
sofrimento natural se torna também participado na lógica trinitária: é um nada, mas
por amor, deixa de ser negação-de-si para se tornar encontro-de-si.
Paradoxalmente, é a morte que a vida, a lei natural da evolução tem assim uma
analogia forte com a kénose divina: para que a vida seja possível é necessário a
morte, e este é o inusitado reflexo da Sabedoria da Cruz (ibidem, p.832).
Pelo fato de Cristo ter vindo ao mundo, em continuação à lógica amorosa
trinitária, e experimentado de maneira única o abandono, ele ressignifica todo o
sofrimento presente no mundo, até o extremo, que é a morte. Daí o sofrimento ainda
presente hoje é sacramento da vida trinitária. Este aspecto cruciforme não se
restringe à vida humana, à história, mas também a toda criação. O sofrimento
natural, mesmo que não humano, obtém daí interpretabilidade e sentido. Dentro da
lógica do abandono ele abre uma janela de possibilidade de sair da existência
puramente imanente para um novo ser, para a nova criação, que é seu verdadeiro
ser. Assim, análoga à situação presente na interpretação da Trindade, onde a
kenose, entendida como esvaziamento por amor, um não-ser-para-si amoroso para
ser-para-outro, e que é a condição de possibilidade para a Unidade em Deus, o
sofrimento presente no mundo natural se torna, justamente, a possibilidade para que
ele se apresente em chave amorosa e, portanto, de Unidade.
79
29
L’ex nihilo dell’atto della creazione è la pienezza con cui Dio comunica Se stesso, non di
meno, a ciò che non è Sé.
30
Ogni nulla creato è quindi segno d'amore, della legge divina impresa nelle cose.
2.6.3 – A criação e a Unidade
O entendimento da Unidade em Lubich pode assumir diferentes nuances
conforme o contexto em que é utilizado. Estas nuances as mostramos no Capítulo 1,
distinguindo-as como a vocação específica de Lubich e Focolares ou como
fenômeno que ocorre quando Cristo e o Espírito de Deus se torna presente na
comunidade em virtude da caridade recíproca (Mt 18,20). Entretanto, o teólogo dirá
que esta é a vida comunicada por Deus na revelação. Neste sentido, a verdadeira
unidade tem sua raiz no próprio Deus. Enfim, a unidade por excelência é Deus: o
Uno. Ora depois do que vimos acima quando discutimos a estrutura trinitária do
evento-Cristo, devemos entender que a simultaneidade da unidade e Trindade de
Deus é possível ser pensada, justamente, no interior do mistério da revelação de
Cristo e na efusão do Espírito. É ali que se compreente o pressuposto último da
Unidade, inclusive para a interpretação de Lubich. Unidade perfeita, portanto, existe
somente na Trindade. Enfim, a Unidade diz o Amor de Deus, ele é Uno, porque Amor
e só é Amor, porque Uno.
Ao interpretar a natureza, esta tensão entre unidade-distinção reaparece.
Enquanto expressão dos vestigia de Deus, a Unidade na natureza mostra seu
caráter amoroso, dom de Deus para o homem. A Unidade na natureza foi colhida por
Lubich sensivelmente em chave mística e expressa nos textos que temos acesso.
Certamente não se trata de um panteísmo, mas o modo de exprimir a densidade
divina presente na natureza. É desse modo que podemos entender este importante
trecho, do início de seu período místico de 1949 e apresentado anteriormente no
Capítulo 1, no qual Lubich diz experimentar uma particular presença de Deus que se
manifesta sob as coisas e presente na natureza. Reapresentamos o texto da página
33.
Eu percebi que não era tudo chama somente dentro de mim
31
mas, de certo
modo, também fora de mim.
32
Tinha a impressão de perceber, talvez por
uma graça especial de Deus, a presença de Deus sob as coisas. Portanto,
se os pinheiros estavam inundados pelo sol, se os córregos caíam nas
80
31
Fábio Ciardi explica que chama, aqui, se refere à palavra do Evangelho quando cai na
alma, se transforma em fogo, em chama, em amor (CIARDI 2006, p.173).
32
O texto aparece em duas publicações distintas, inicialmente e mais longamente em ROSSÉ
2001, p.830 e posteriormente em CIARDI 2006, p.830. Este último, sem a parte final, mas
acrescentando a primeira frase. Aqui compusemos o trecho completo, que acreditamos fazer parte de
uma meditação ainda maior.
cascadas brilhando, se as margaridas e outras flores e o céu estavam em
festa pelo verão, mais forte era a visão de um sol que estava sob todo o
criado. Via, de certa forma, creio, Deus que sustenta e rege as coisas. E
Deus fazia de tal forma que elas não fossem assim como nós as vemos;
estavam todas ligadas entre elas pelo amor, todas, como dizendo, umas das
outras enamoradas. Portanto, se o córrego acabava no lago era por amor.
Se um pinheiro se erguia ao lado de outro era por amor. E a visão de Deus
sob as coisas, que dava unidade ao criado, era mais forte que as próprias
coisas; a unidade do todo era mais forte que a distinção das coisas entre
elas.
33
(CHIARA apud ROSSÉ 2001, p.830)
A visão é a partir do Uno de Deus e, de certa forma, escatológica. Rossé
(2001) vincula esta percepção à Sabedoria, que estava com Deus no momento de
sua criação (ROSSÉ 2001, p.821-822; Pr 8,22-26; Sab 7,26). Ao invés de tornar-se
uma sofiologia, a sabedoria é identificada com Cristo, existindo desde sempre no
interior de Deus em sua intimidade, se manifesta no mundo em sua variedade e
unidade, idéia que aparecere com força na imagem do sol e dos raios. Lubich
repetirá em outra ocasião a mesma percepção:
Lembro que naqueles dias a natureza me parecia toda envolvida pelo sol.
No aspecto físico era assim, mas me parecia que um sol mais forte
envolvesse a natureza, a embebesse, de modo que me parecia toda
“enamorada”. Via as coisas, os rios, as plantas, os prados, a relva, ligados
entre eles por um vínculo de amor, no qual cada um tinha um porquê de
amor em relação aos outros.
Era um fenômeno semelhante, contudo universalizado, ao que se passou
comigo quando eu tinha 20 anos e voltava da Obra Seráfica
34
cantando as
ave-marias do rosário. Nessa ocasião tive a impressão de ver uma flor de
castanheiro-da-índia animada por uma vida superior, que a sustentava por
baixo, e que parecia vir na minha direção. (LUBICH 2008)
O amor que liga todas as coisas pode ser identificado com Cristo, que é
modelo para a criação, “por meio do qual todas as coisas foram criadas”, com o qual
cada coisa tem uma ligação profunda. É nesta filiação que a criação é
compreensível e não permanece como um caos indeterminado. Rossé comenta
Em outros termos, atrás de cada coisa está a presença escondida o Uno. E
este Uno presente sob cada coisa faz de tal forma que o criado não seja
81
33
Io avvertii che non era tutto fiamma solo dentro di me [riferimento alla Parola del Vangelo]
ma, in certo modo, anche fuori di me. [até aqui, CIARDI 2006. p.173] Avevo l'impressione di percepire,
forse per una grazia speciale di Dio, la presenza di Dio sotto le cose. Per cui se i pini erano inondati
dal sole, se i ruscelli cadevano nelle loro cascatelle luccicando, se le margherite e gli altri fiori ed il
cielo erano in festa per l'estate, più forte era la visione d'un sole che stava sotto a tutto il creato.
Vedevo, in certo modo, credo, Dio che sostiene, che regge le cose. E Dio faceva che esse non
fossero così come noi le vediamo; erano tutte collegate fra loro dall'amore, tutte, per così dire, l'una
dell'altra innamorate. Per cui se il ruscello finiva nel lago era per amore. Se un pino s'ergeva accanto
ad un altro era per amore. E la visione di Dio sotto le cose, che dava unità al creato, era più forte delle
cose stesse; l'unità del tutto era più forte che la distinzione delle cose fra loro.”
34
Um Instituto de Trento, onde Chiara ensinava, ainda muito jovem.
uma multiplicidade desordenada, uma absurda aproximação de coisas.
(ROSSÉ 2001, p.829).
O Uno, aqui, não se refere exatamente a um platonismo, se bem que
referências platônicas ou neo-platônicas poderiam mesmo ser traçadas, mas parece
ser mais exato dizer que o modelo da criação é Cristo. A idéia de que a
multiplicidade pertence a um criador e que tem por modelo o Filho, que esta criação
é um nada comparado ao criador, mas, justamente por isso é semelhante ao seu
modelo, traz a marca da unidade do modelo. Desde sempre a criação traz em si, por
esta presença do Verbo, uma chamada ao Uno de onde vem e para onde se destina
no eschaton (Ver ROSSÉ 2001, p.832; CODA 1998, p.73). A enorme transcendência
de Deus em relação à criação é garantida, mas também é dada uma possibilidade
de criatividade interna (dinâmica da unidade-distinção) que tem a capacidade de
retornar à sua origem, recapitulando a história de sua trajetória.
2.7 - CONCLUSÃO
Começamos este capítulo mostrando que a compreensão do abandono
presente em Marcos e Paulo modificava o sentido da maldição, presente na lei, para
a teologia do servo sofredor. Com isso a compreensão dos primórdios da Igreja
mostra que a surpresa da morte e ressurreição de Cristo ressignificava o sentido do
sofrimento e, principalmente, mostrava a verdadeira face do amor de Deus para os
homens. Em seguida, mostramos que, no interior da comunidade que manifesta a
presença do Espírito, esta mesma morte e ressureição é uma ação que parte do
comum acordo, por assim dizer, da própria Trindade. A kenose stricto sensu que
acontece na encarnação e se consuma na morte por abandono possui uma
equivalente lato sensu na própria Trindade: o pressuposto último desta kenose é o
“desprendimento” das pessoas na doação intra-trinitária, condição para a pericorese.
O segundo ponto foi o exemplarismo para a criação, onde Cristo é o modelo e
“por meio dele todas as coisas foram criadas, para nossa salvação”. Esta estrutura
trinitária do evento pascal mostra que a criação também contém a estrutura trinitária.
Primeiramente porque o homem con-crucificado com Cristo espera a manifestação
escatológica da ressureição de seu corpo e do cosmo: o criado se insere no interior
da lógica trinitária. Em seguida, reconhecido que o evento-Cristo é um evento
trinitário, e, por outro lado, que o modelo da criação é Cristo devemos admitir que é
82
razoável dizer que a estrutura do Criado também é trinitária. Porque se Cristo mostra
a verdadeira face amorosa de Deus, assim, se ele é modelo para a Criação, esta
reflete também a face amorosa de Deus, mesmo que subsidiariamente, em vestigia.
Com Paulo “a criação geme a manifestação dos filhos de Deus”. Esta aproximação
da criação como evento trinitário é a visão a partir da unidade.
Ora, se o fundamento da criação é esta mesma estrutura, então o
reconhecimento dos fatos do mundo natural expressos pela consciência religiosa
correta formula uma compreensão desta mesma natureza com a ontologia trinitária.
Este conhecimento, sub specie aeternitatis, se manifesta na experiência religiosa
também em fenômeno místico, por meio das imagens apresentadas por Lubich,
como um condensado intelectivo, uma “empiria” para o conhecimento religioso
juntamente com a constatação das experiências quotidianas orinárias do
cristianismo. É neste espaço entre a compreensão do cristianismo e a forma de vida
específica que se constituiu com Lubich e companheiros e companheiras é que
nasce o conhecimento da natureza. A percepção da unidade do criado e o sentido
da contingência, com o sofrimento e a finitude, é esse conhecimento específico não
redutível a outras formas cognitivas, tal como a estética ou a científica, e fala da
densidade divina presente na natureza.
A ontologia trinitária compreende, assim, o sentido presente na natureza e
que fica velado às ciências. Este “velar” é compreendido no momento do Abandono,
pois somos finitos e pecadores. o “desvelar” é possibilitado pela vivência da
unidade pelo amor. O que é vivido no mundo humano pela comunidade espelha a
realidade do mundo físico, seu ser trinitário. Se constitui, desta maneira, uma
heurística desta ontologia trinitária para o mundo natural que parte do evento-Cristo
como experimentado pelo sujeito na comunidade e se orienta na inelecção religiosa
do mundo. Será tarefa do próximo capítulo investigar e caracterizar este
conhecimento religioso, sua “justificação”.
83
CAP 3 - CONHECIMENTO ENTRE EXPERIÊNCIA RELIGIOSA,
TEOLOGIA E CIÊNCIA
3.1 - INTRODUÇÃO
No capítulo anterior, buscamos uma via teológica particular para explicar o
que podemos entender por conhecimento religioso da natureza. Vimos a maneira
pela qual a ontologia trinitária concebe o mundo em suas estruturas de sentido,
como parece ser o caso de Chiara Lubich quando, após se empenhar em uma via
religiosa cristã de características comunitárias, faz uma experiência mística intensa
no verão de 1949, a ponto de dizer “[Eu] via, de certa forma, creio, Deus que
sustenta e rege as coisas”. Certamente, para a pessoa religiosa, tal estrutura de
sentido se reveste de aspectos de intenso realismo, pois para ela, mais real do que
o mundo como dado, é o que lhe “está por detrás” e que lhe sentido e significado,
o “sagrado”, como diria Eliade.
A religião fornece explicações para o mundo natural em Lubich. Após aqueles
eventos nos quais ela relata uma experiência religiosa, ela procura explicar como o
mundo é, como o Paraíso, Deus, Trindade, como entidades e relações religiosas
operam e qual a relação desses conceitos com a vida prática. Como podemos
caracterizar essas explicações de modo que seu estatuto de conhecimento seja
plausível? Seriam essas explicações justificadas? Teriam elas um fundamento? De
que modo a religião conhece? Um primeiro problema será aprofundar mais a
questão do que venha a ser esse conhecimento religioso. Dessa maneira veremos
alguns modos de caracterizar o pensamento religioso, sua característica específica,
aquilo que o distingue de outros modos de conhecimento. Mais do que sermos
exaustivos e completos no argumento, mostraremos a plausibilidade da religião em
seu modo de pensar.
Nos últimos anos, os conceitos religiosos também foram alvo de escrutínio
por parte da psicologia cognitiva da religião. Nomes tais como Justin Barrett, Pascal
Boyer, Stewart Guthrie, Ilkka Pysiäinen, são apenas alguns entre outros que
trabalharam o assunto. As ciências cognitivas têm, por um lado, suporte da
neurofisiologia humana e, por outro, da psicologia da mente em um recorte
84
darwiniano. Esses estudos indicam que o pensamento religioso não é arbitrário ou
completamente definido pelo contexto cultural, mas indicam que a religião, no seu
aspecto cognitivo, repousa sobre um substrato natural concreto. Dada a relevância
dessas pesquisas para a caracterização do conhecimento religioso, a segunda
tarefa deste capítulo será mostrar a estrutura dos conceitos religiosos presente
nesses autores e como eles podem esclarecer o pensamento da natureza em Chiara
Lubich.
Uma vez que a pessoa religiosa se depara com a natureza e o mundo físico
uma pergunta se coloca: como ela entende a investigação científica, atribuindo-lhe
um valor positivo, e ainda preservar a estrutura de sentido, ou melhor, ainda vê nisso
uma contribuição à sua própria experiência religiosa? Veremos como uma
determinada concepção de realismo pode incluir diferentes modos de entendimento
do mundo nos quais tanto a religião e a ciências naturais se enquadram. Além do
mais, é a própria experiência religiosa que reclama um realismo. É um tema clássico
no debate entre religião e ciências, especificamente na proposta do realismo crítico
como usado por Ian Barbour e outros: religião e ciência mostram aspectos
complementares da mesma realidade por meio de métodos próprios e não
necessariamente conflitantes mas possivelmente conciliáveis.
3.2 - ASPECTOS DE UMA EPISTEMOLOGIA TEOLÓGICA DO CONHECIMENTO
RELIGIOSO
3.2.1 - O problema e sua caracterização
A caracterização da religião como produtora de conhecimento, em particular
em relação à natureza física, talvez seja uma tarefa que somente possa ser iniciada,
dada a sua complexidade. De que forma podemos caracterizar o conhecimento
religioso? Esta pergunta pelo método é colocada lucidamente por Zagzebski (2008),
mesmo que não aplicado ao conhecimento religioso especificamente, mas ao
conhecimento em geral. Ela indica três vias possíveis para uma epistemologia:
Deveríamos incrustar o conceito de conhecimento em uma teoria de fundo
normativa porque ele é um conceito normativo? Ou, em vez disso,
deveríamos incrustá-lo em uma teoria de fundo metafísico supondo que a
85
metafísica é mais fundamental que a epistemologia? Ou deveríamos
incrustá-lo em uma teoria científica pela razão de o conhecimento ser um
fenômeno natural? (ZAGZEBSKI 2008, p.176)
No Capítulo 2 procurou-se mostrar que, em certo sentido, uma metafísica
teológica: a Trindade é o modelo do real, fundando, assim, o conhecimento religioso
do mundo parcialmente em uma metafísica, como no caso de Boaventura em que
sua explicação teológica adota o hilemorfismo dos objetos naturais. Mas também
podemos entender o conhecimento religioso por meio de uma teoria científica, pois o
conhecimento religioso pode ser observado mediante de seus efeitos naturais.
Nesse sentido, interpretaremos, mais adiante, os resultados das recentes pesquisas
em ciências cognitivas para a religião: conceitos intuitivos religiosos são naturais e
passíveis de serem analizados segundo o método científico. Por sua opção,
Zagzebski opta por elaborar uma teoria ética das virtudes intelectuais, associando o
conhecimento em geral na correta disposição do sujeito cognoscente
35
. Isto também
se justificaria para o conhecimento religioso, porque existe uma disposição
intelectual correta, um comportamento correto, para a geração do conhecimento do
mundo natural sob o prisma religioso. Algo semelhante acontece nas ciências
naturais, em que um ethos científico para o qual cada pesquisador tem que se
comprometer. Os dados devem se referir a experimentos objetivos e factuais, os
modelos devem enquadrar tais dados, o todo deve ser submetido à avaliação dos
pares. Com esse código de conduta intelectual o cientista deve se comprometer, sob
pena de perder credibilidade ou mesmo ser excluído da comunidade científica em
caso de irregularidades graves.
Entretanto, empreenderemos, de certa maneira, uma quarta via. Em
continuidade ao que foi apresentado no Capítulo 2, nossa tarefa é encontrar um
modo de caracterizar as proposições sobre os objetos naturais a partir do Evento-
Cristo, onde levaremos em consideração sua estrutura trinitária. Uma vez que a
ontologia trinitária é plausível dentro do discurso do crente é necessário que se
busque outra justificação externa ao próprio discurso religioso ou teológico?
Entendemos que não podemos buscar outra fonte de justificação, por assim dizer,
que esteja fora do próprio discurso religioso. Se não fizéssemos assim, estaríamos
86
35
Para um estudo aprofundado sobre conhecimento como um ato de virtude ver Virtues of
the Mind: An Inquiry into Nature of Virtue and the Ethical Foundations of Knowledge (ZAGZEBSKI
1996) e também o artigo Virtues of the Mind (ZAGZEBSKI 2000).
assumindo de imediato outros pressupostos que não a própria fé (Cf . MACDONALD
2005, p.374-375). Essa escolha coloca o investigador em uma situação ao mesmo
tempo privilegiada e em desvantagem. Situação privilegiada porque supõe que o
sujeito crente tem acesso a “informações” que o secular não possui. E situação em
desvantagem porque quando ele quiser dialogar com o secular, terá de traduzir o
discurso interno de seu grupo de forma que se torne inteligível externamente, o que
impõe um custo intelectual extra aos crentes. Para desenvolver esse tema,
abordaremos o problema por meio de diferentes pontos de vista. Mais do que uma
argumentação lógica rigorosa, procuraremos mostrar modos de entender o que vem
a ser conhecimento religioso da natureza. Mais uma vez, portanto, utilizaremos do
método analógico para falar.
3.2.2 - O lugar da mística no conhecimento religioso
Inicialmente, precisemos o lugar da mística. Ela ficaria certamente ao lado da
experiência; entretanto, a mística tem características específicas que a distinguem
da experiência religiosa ordinária. Sua análise fenomênica detalhada extrapolaria os
objetivos desta dissertação. Focaremos na concepção clássica cristã de mística, por
servir mais adequadamente à explicação dos fatos, como apresentados por Lubich,
e por estar em harmonia com o Capítulo 2. Um entendimento inicial pode ser visto
no verbete mística, de Huot de Longchamp, no Dicionário Crítico de Teologia de
Yves-Lacoste. Ali ele diz que a mística é
uma percepção de Deus por assim dizer experimental, de uma verdadeira
festa da alma por ocasião do advento interior de Cristo: ela consiste “numa
experiência da presença de Deus no espírito, pelo gozo interior que dela
nos um sentimento intimíssimo” [Tauler, Sermão XII, 1] (LONGCHAMP
in YVES-LACOSTE 2004, p.1162).
Notemos as semelhanças entre a mística e a experiência empírica: ela o
caráter de concretude e objetividade, é realmente experiência, praticamente fato.
Longchamp continua com a definição, agora, com o acento no conhecimento:
Trata-se, pois, de uma tomada de consciência toda particular do mistério de
Cristo, e é para evocá-lo que o termo entrou com Clemente de Alexandria
(160-220) no vocabulário cristão: é mística o conhecimento do mistério, isto
é, aquele que leva além da letra da Escritura e dos sinais da liturgia, até à
realidade mesma daquilo que uma e outra designam, e que está oculto em
Deus. (ibidem, p.1162, ênfase nossa).
87
uma particular associação entre a experiência mística, mistério cristão e
conhecimento. A mística é um olhar, um tocar para dentro do mistério. A mística
chega mesmo ao “conhecimento do mistério”. Se a teologia chega por meio do
exercício da razão, a mística chega em virtude de um dom de Deus. Assim,
enquanto para o teólogo o conhecimento do mistério é codificado em termos
proposicionais, na mística esse conhecimento existe por familiaridade ao mistério. A
mística é como um condensado de empiria para o conhecimento religioso. Se a
origem do pensamento religioso for o próprio mistério, então a mística fornece os
elementos iniciais sobre os quais a razão teológica pode se debruçar. Mas como a
pessoa que faz a experiência mística se põe a falar, ela deve fazê-lo utilizando de
imagens e figuras de linguagem que, se nunca conseguem expressar exatamente o
que foi percebido, ao menos falam analogicamente, pois de alguma maneira sempre
é necessário falar, como o caso da imagem do sol e raios em Lubich, estudados no
Capítulo 2.
Apesar de nos interessarmos principalmente por aqueles aspectos místicos
religiosos que se referem à natureza em Lubich, não atribuimos a eles alguma
característica excessivamente privilegiada, de tipo revelatória. Esse condensado de
“empiria” religiosa precisa ser interpretado dentro de uma determinada teologia. A
relação entre a mística e a teoria teológica que a explica é a da circularidade, como
num círculo hermenêutico: a mística toca o que a teologia pensa e esta a interpreta.
Mas a mística é ambivalente. Apesar de a mística ser distinta da experiência
religiosa como um todo, ela deve ser entendida no contexto da experiência cristã de
fé na qual o indivíduo se insere e na comunidade se manifesta sob pena de se tornar
ela mesma um velamento de Deus, e não uma aproximação a ele. De certa forma, a
experiência mística genuína serve para o sujeito que a recebe de Deus, mas tem
uma função importante dentro da comunidade. É bem conhecida a passagem de
Paulo, em que ele reprovava o falar em línguas caso não haja alguém para traduzir
e servir à edificação da comunidade . Por isso o período místico especial do verão
de 1949, para Chiara Lubich, a espiritualidade como codificada nos manuais do
Movimento dos Focolares e o conhecimento da natureza adquirem sentido se
estiverem inseridos na vivência da na comunidade, isto é, a Igreja. Rossé
comenta esta relação:
88
(...) a mística cristã, mesmo se pode fruir de luzes extraordinárias, não se
distancia da fé. A mística autência, como fenômeno particular, não é diversa
da visão de (dada pela Revelação), mas é esta mesma vivida com
mais clareza e intensidade. Para a Revelação (de modo especial Paulo e
João) existe consonância entre e mística: um convite, portanto, a não
separar a vida de e experiência mística, pois as duas têm a mesma raiz:
a inabitação da Santíssima Trindade no mais profundo de cada membro do
Corpo de Cristo. (ROSSÉ 2009a, p.353)
Certamente, a mística pode ser de tal forma avassaladora que transforme o
indivíduo em um curto período, e o sujeito precisará de muito tempo para processá-
la subjetivamente. É mesmo possível que determinadas ideias teológicas crescam
justamente nesse contexto. Por ser especial, por possuir um conhecimento por
familiaridade, a mística fornece um material extra para refletir. Na citação acima,
Rossé reconhece que a raiz da mística é a “inabitação da Santíssima Trindade no
mais profundo de cada membro do Corpo de Cristo”, que coincide com a própria
graça: qual maior graça do que a relação com Deus? É a participação na vida do
próprio Deus, e, no entanto, também é o mistério que nunca se extingue pela
reflexão, mas a alimenta.
3.2.3 - Conhecimento por familiaridade e conhecimento proposicional
Outro modo de representar o conhecimento religioso do mundo é em
analogia ao conhecimento por familiaridade, que se distingue de um conhecimento
proposicional, distinção esta proposta inicialmente por Bertrand Russel (1910). O
conhecimento por familiaridade se assemelha àquele que o sujeito tem diretamente
do objeto em questão. Por exemplo, como quando alguém está familiarizado com a
cor amarela ao ver uma parede pintada de amarelo. É diferente de quando alguém
diz ou escreve “a parede de casa é amarela”, que é um conhecimento proposicional.
Outro exemplo é quando alguém estuda a física do som, sua decomposição em
frequências e a matemática que a representa, etc, porém é surdo de nascença. Esse
sujeito tem conhecimentos científicos sobre o fenômeno sonoro, ele poderá estudar
todos os detalhes da Toccatta e Fuga de Bach, mas, se, por alguma razão, vier a
ouvir, devemos admitir que algo lhe acrescenta ao conhecimento do som, isto é,
aquilo que verdadeiramente o faz perceber a música. O contato imediato com o som,
percebido diretamente, é um conhecimento por familiaridade, enquanto o aspecto
científico dele se enquadra dentro de um conhecimento proposicional.
89
A ex posição do indivíduo ao Crist ianismo considerado pelos seus
especialistas como autêntico produz nesse sujeito um conhecimento por
familiaridade. O indivíduo que se aproxima da comunidade de e se insere nela se
torna “testemunha” de algo que lhe era desconhecido anteriormente. Esse algo é o
conhecimento associado à fé, à caridade e à esperança, ao mistério. Ele está
presente em algumas passagens bíblicas: “Já não é por causa da tua declaração
que cremos, mas nós mesmos ouvimos e sabemos (...)” (Jo 4,42). Está
normalmente associado ao reconhecimento de que Jesus era filho de Deus e
salvador. Essa estrutura do conhecimento, quando no texto bíblico se diz que “crê”,
nos parece ser algo semelhante ao conhecimento por familiaridade. No caso do
conhecimento religioso da natureza, ele permite que determinados eventos naturais
que não teriam sentido dentro de um quadro da razão natural sejam conectados com
uma rede de sentido dentro do conhecimento religioso.
Ele é a origem, mais do que destino, de um tipo de racionalidade que, caso
venha a se desenvolver, pode se traduzir em teologia. O problema do mal natural é
um bom exemplo, pois é interpretado como sendo portador de sentido e significado:
a face do Abandonado para a ontologia trinitária. Esta ontologia serve inicialmente
para entender os fatos naturais, isto é, ela não é deduzida a partir dos fenômenos
naturais, mas, ao contrário, serve para interpretá-los em direção ao seu núcleo de
verdade. O evento-Cristo foi sempre compreendido em sua materialidade e
objetividade; portanto, um componente objetivo na origem da ontologia trinitária.
O todo se orienta para uma epistemologia realista.
A distinção entre conhecimento proposicional e por familiaridade é
semelhante àquela apresentada pelas atuais pesquisas em ciências cognitivas no
que concerne os estudos da psicologia da religião, como veremos nas próximas
seções. Quando a informação do mundo chega até o sujeito, ela se funde à
preexistente e se traduz em conhecimento. Se essa subjetividade estiver nas
disposições e motivações da fé, compõem-se os conhecimentos da . Estes
conhecimentos se servem das estruturas naturalmente presentes na cognição
humana, que são evidentemente condições necessárias para a apreensão do
conhecimento religioso.
90
Esse estado de coisas parece ser conforme o que vimos anteriormente sobre
Chiara Lubich e suas proposições sobre a natureza. Ela procurou diversas vezes
continuar os estudos de filosofia e, em um determinado momento, entendeu que
deveria deixá-la por completo para ter tempo para se dedicar ao nascente
movimento dos anos 40-50 e em virtude das circunstâncias da guerra. Nessa
ocasião ela afirma ter “colocado os livros no sótão” e confessa ter entendido Jesus
lhe dizer “Serei eu o teu mestre”. A comunidade dos Focolares interpretou o evento
dentro de um quadro pedagógico-catequético, que indicava a necessidade de se
colocar como prioridade os planos de Deus para cada um, enquadrando a
passagem em chave existencial-espiritual, como é geralmente o interesse comum
dos fiéis. Mas essa passagem não se presta somente para dizer da prioridade das
coisas divinas em relação às humanas, mas a algo mais importante: diz da eleição
do método de conhecimento que Lubich escolhe. Ao “colocar os livros no sótão”,
Lubich elege uma ordem de prioridades, isto é, era mais importante naquele
momento o aspecto prático, existencial, concreto e objetivo da ação no mundo, com
os colegas, que se traduzia em um trabalho com o nascente movimento. O estudo
teológico ou filosófico viria depois. Ela elege primeiramente o conhecimento por
familiaridade, a partir do qual o conhecimento proposicional viria depois. Em verdade
um continuum entre o aspecto religioso e o teológico, entre conhecimento por
familiaridade e proposicional. Um lado dessa ponte epistêmica está na existência
compartilhada do grupo, dentro da experiência intra-subjetiva daquela comunidade
cristã nascente, em que o mistério se manifesta ao sujeito por meio da atualização
na comunidade do evento-Cristo em sua estrutura trinitária de kenose-unidade. No
outro lado estão os conhecimentos teológicos e seculares codificados em textos,
discursos, materiais, apresentações, etc.
Em Lubich, os discursos e reflexões sobre são muito menos frequentes que
aqueles sobre o amor. Lubich tem claras preferências em privilegiar a caridade à
esperança e à fé. Para ela, o amor é mais fundamental do que a fé em primeiro lugar
porque a descoberta fulgurante foi a de Deus-Amor e em segundo lugar, porque é
por meio da práxis do mandamento fundamental do amor ao próximo que se
transforma em vínculo na comunidade é que é origem para o conhecimento de
Deus, da Criação e da natureza. Talvez seja mais correto admitir que uma
simultaneidade de amor-fé-esperança na experiência cristã, de modo que não
91
como separar ou estabelecer uma ordem de prioridade entre eles, pois aparecem
fenomenicamente simultâneos, por se tratar do evento trinitário. De qualquer
maneira, o que parece é que, dado que a experiência religiosa é de fato experiência,
afirmando a prioridade de amar, indica-se tanto o modo para adquirir uma madura,
como o realismo desta fé.
3.2.4 - Conhecimento como aproximação ao mistério
Em um artigo em Religious Studies, Steven D. Boyer
36
(2007) apresenta uma
interessante taxonomia dos diferentes usos conceituais de mistério. No primeiro tipo,
o mistério investigativo, sua característica propriamente misteriosa está na ausência
do conhecimento das causas e de explicações. Mediante da investigação ele pode
vir a ser descoberto e clarificado, como em um problema de matemática, ou quando
não lembramos onde deixamos o telefone celular. A figura prototípica desse tipo de
investigador é Sherlock Holmes, que por meio da investigação de indícios e o uso da
racionalidade, elucida as causas e motivações dos fatos somente inicialmente
misteriosos. Esse é um modo de certa forma prosaico de entender o mistério, quase
como que sinônimo de desconhecimento.
O outro tipo é o mistério revelacional. Nessa categoria, o mistério tem
densidade tal que a investigação e a tentativa de seu esclarecimento racional não
conseguem esgotá-lo. Esse é o sentido bíblico de “mistério”, em que as verdades
escondidas são reveladas, e quando conhecido, o conteúdo desse mistério ainda
permanece. “Enquanto um segredo é escondido dos que estão fora, um mistério é
escondido - e basta. Ele permanece incompreensível até mesmo para aqueles que o
conhecem” (ibidem, p.91). Enquanto o mistério investigativo permanece mistério
porque não é resolvido, o mistério revelacional, como tal, permanece mistério.
Há uma associação entre o conhecimento e o mistério assim entendido.
Este tipo de mistério envolve conhecimento real, e mesmo um
conhecimento que é reflexivamente consciente de sua própria incompletude
ou inadequação. A realidade conhecida é sempre enigmaticamente maior,
ou mais profunda do que nosso conhecimento dela. Em outras palavras, um
mistério revelacional é revelado precisamente como mistério. A propriedade
92
36
Não confundir os dois Boyer: Pascal e Steven. O primeiro trata as ciências cognitivas da
religião, o segundo, fala sobre a taxonomia de ‘mistério’.
definidora do mistério nesse sentido é que seu caráter misterioso não é
removido quando se toma conhecimento dele. (ibidem, p.91)
No nosso entender, esta importante propriedade, a de que o mistério não
nasce porque ainda não se conhece algo, mas justamente porque se veio a
conhecê-lo, ajuda a delimitar o objeto e o método que está em operação no
conhecimento religioso. O mistério aqui se torna progressiva fonte de reflexão do
real. O próprio mistério envolve o que é a realidade, em última instância, sempre
velada e sempre motivo de novo pensar.
Enquanto projeto de taxonomia, Boyer (p.94-95) ainda classifica os tipos de
mistério revelacional. Os mistérios extensivos nos quais a tarefa de esclarecimento é
de tal magnitude que se torna impossível exaurí-lo, como no caso de uma teoria de
todo física, ou do conhecimento em todos os detalhes do espaço cósmico. Esse
modo é aplicável nas situações em que temos de trabalhar com algo que é
infinitamente grande ou complexo. Os mistérios facultativos, nos quais fica evidente
que a razão esclarecedora não é apropriada à tarefa a se pretende, como a
experiência estética, o conhecimento sensível, a reverência a algo sublime como por
exemplo uma enorme cadeia de montanhas. Um terceiro sentido, e talvez o mais
importante para nós, é o mistério dimensional. Neste, a razão está em operação,
mas o conteúdo do investigado não é esgotável por sempre existir algo a mais, uma
qualidade extra, um aspecto novo que não se resume a mais extensão, a uma
percepção extra, ou um sentimento de imensidão. O autor usa uma analogia: um
círculo existe em duas dimensões enquanto um cilindro, apesar de possuir uma
projeção circular, contém uma dimensão a mais. Esse mistério se apresenta como
com algo a mais: por mais que a razão opere, ela não o esgota, mas dele se
alimenta, dele traz inspiração e sentido.
Parece-nos que muito do debate entre ciência e religião está preso a uma
análise da realidade como se essa fosse um mistério investigativo. Para muitos, o
jogo é de ou-ou: ao avançar o conhecimento científico o conhecimento religioso
deve necessariamente encolher. Nesse caso, quando a razão esclarecedora atinge
uma explicação, o mistério desaparece, pois agora sabe do que se trata: ao avançar
a razão e o conhecido, o mistério se encolhe: se trata de um mistério do tipo
investigativo. Entretanto, o mistério dimensional é diferente. Uma vez conhecido, é
93
fonte de inspiração e moto para a própria investigação. A razão religiosa, ao
contrário de encolher o mistério dimensional, é provocada por ele. Na caracterização
do conhecimento religioso o mistério dimensional se apresenta inicialmente como
seu objeto de conhecimento. Em seguida, o mistério dimensional será o lugar de
onde a razão religiosa parte para entender o mundo.
Um mistério dimensional congratula-se com a investigação racional, mas
espera que a própria razão testemunhe uma profundidade insondável ou
dimensão que ela pode investigar ou talvez até mesmo iluminar, mas nunca
explicar ou esclarecer. O exercício da razão aqui não é a remoção de
indefinição ou imprecisão conceitual, é a razoável exploração e contínua
penetração em um tipo de profundidade ou espessura. O conhecimento não
é apenas uma questão de organizar idéias claras e distintas, mas também
uma questão de reconhecer e, finalmente, entrar em um meio desconhecido
ou dimensão - quase como entrar em um novo mundo. A realidade exibe
uma profundidade ou espessura que a razão pode entrar, sem nunca a
expectativa de dominá-la, de exauri-la ou de domesticá-la. Com efeito,
“conhecer” a realidade sem uma consciência desta profundidade
inesgotável seria falsificá-la, (...). O objetivo do “saber” ou da “razão” aqui é
sempre um tipo de penetração, uma ampla habitação deste reino
inexplorado e de inexplorável profundidade. (BOYER, p.99)
A imagem do autor remete à idéia de um tipo de pericorese entre o mistério e
a razão natural que produzirá o conhecimento religioso. O mistério, para o autor,
envolve a realidade, tornando-a insondável. Isso permite aplicá-lo, assim, para a
interpretação religiosa da natureza e para a física, e identificar a realidade com a
própria Trindade. Assim, mantendo a enorme distância entre Deus e a criação, ainda
assim podemos pensar que a expressão de Deus se em imanência e
transcendência. Deus continuamente cria e sustenta o mundo. Os conhecimentos
nas suas diversas formas de apreensão da realidade - estética, científicas,
religiosas, etc., se apresentariam como olhares para o interior da realidade, que, no
entanto, permanece sempre envolta pelo mistério.
3.2.5 - Conhecimento como produto do desejo de verdade
Na tradição filosófica e teológica do ocidente, o desejo sempre assumiu papel
fundamental como motor originário da busca do conhecimento. A afirmação mais
famosa nesse sentido talvez seja a abertura do primeiro livro da Metafísica de
Aristóteles. Agostinho, Tomás e Boaventura, cada um, a seu modo, também
reconheceram no desejo o motor originário do conhecimento. Entretanto, se o
conhecimento está associado ao desejo, bastaria desejar para conhecer? Na
estrutura de pensamento do cristianismo, esse desejo poderia se enganar quanto ao
94
seu objeto tragando o conhecimento consigo, abrindo espaço para a ideia da
necessidade da graça para que ele seja correto. A graça, atuando sobre o desejo,
produziria a vontade correta, que orientaria a intelecção para a verdade, que existe
plenamente em Deus. A graça é, portanto, a garantia para que o conhecimento
seja orientado à verdade. Boaventura parece concordar com isto ao dizer : “A graça
é o princípio da retidão da vontade e da iluminação da inteligência.” (BOAVENTURA
1998, p.300). Ao contrário de se traduzir em um triunfo da razão pela garantia de um
Deus, como o faria muito posteriormente Descartes, Boaventura reconhece que o
conhecimento neste mundo é sempre precário. O erro, portanto, tem sua origem na
situação contingente humana, o que em termos teológicos clássicos diria-se pecado,
sendo necessária, justamente, a graça para o corrigir, se houver consentimento da
vontade humana (Itinerarium I.7: BOAVENTURA 1998, p.299). Parece que a própria
razão e o conhecimento, assim como o desejo, estão marcados pela condição
humana e por isso é que, segundo Boaventura, o processo de conhecimento da
verdade se coloca em um continuum com a santidade e a contemplação. A ideia do
seu Itinerarium Mentis in Deum é a de que a razão, por meio da correta disposição
da vontade pelo auxílio da graça, se coloque em via à contemplação (BONI 2008),
pois para ele, a plena verdade pode existir somente em Deus. Portanto, a graça é o
transcendental mediante a qual a cognição atinge o conhecimento, que se traduz em
Boaventura em argumentações racionais. O exercício da razão se torna um
processo de transcendência, um veículo direcionador à verdade e à santidade. As
proposições, as argumentações, o encadeamento lógico presentes no trecho do
Itinerarium têm o objetivo, como o próprio título diz, de elevar o espírito humano até
o máximo de sua possibilidade e realização. Ao longo desse percurso, a razão
poderá ver nas próprias coisas do mundo físico a forma exemplar, a estampa, o seu
modelo, que é o Criador.
Evidentemente, a situação da epistemologia contemporânea é bastante
diferente da situação medieval da qual Boaventura compartilhava a visão de mundo.
Enquanto o medieval buscava no exercício da razão a maneira para discernir os
logoi spermatikoi (razões seminais) de influência estóica (Cf. BOAVENTURA 1998,
p.302, NdT n.25) que estariam colocados no mundo conforme a vontade divina, o
contemporâneo se diante da dificuldade de estabelecer um fundamento para o
conhecimento. Indicativo disso é a própria variação semântica da palavra verdade
95
entre o tempo de Boaventura e a atualidade. Sua progressiva mudança de conteúdo
mostra de que seu estatuto parece ter hoje se tornado obsoleto, sendo substituída
pela noção mais manipulável de conhecimento e os argumentos de sua justificação
(justified beliefs), fundamento (foundationalism), ou funcionamento correto (proper
function), etc.
A vem de Deus, e brota no contexto histórico, nas circunstâncias de
determinados eventos, variados para cada um: uma apresentação em uma igreja,
uma confissão, um discurso, uma visita de alguém. Entretanto, a ela mesma não
se confunde com tais eventos, ela permanecendo distinta deles, e, por meio deles
nasce e se reforça. Ainda, essa nunca é individualista, mas sempre vinculada à
comunidade. O que faz tais eventos serem qualificados como especias de modo a
reforçar ou mesmo ser o gatilho para o nascimento da no indivíduo, parece ser a
graça. Dessa maneira o discurso sobre a graça e a não é abstrato a ponto de não
ter conexões com a realidade, mas, para o crente, ele está profundamente arraigado
nos eventos históricos e nas coisas objetivas que têm relação direta com o seu
mundo da vida. Para o teólogo Victor Manuel Fernández, a graça possui mesmo
uma dimensão material, atuando no próprio corpo do indivíduo (FERNÁNDEZ 2001).
Enfim, é o próprio evento originário fundante do cristianismo que possui o aspecto
de maior realismo e maior materialidade: a encarnação de Cristo, sua morte e
Ressureição, e a fundação da comunidade a partir desse evento são constituintes do
próprio mistério.
Mas de que maneira podemos conectar a disposição que a graça induz na
vontade para produzir o conhecimento e como isto teria relação com um possível
conhecimento do mundo natural? A epistemóloga Linda Zagzebski (2008) em seu
ensaio no Compêndio de Epistemologia, afirma que o conhecimento é “um estado
altamente valorizado no qual se encontra uma pessoa em contato cognitivo com a
realidade. Trata-se, portanto, de uma relação.” (ZAGZEBSKI 2008, p.153). Em uma
relação, os dois lados estão imbricados. De um lado, a realidade; de outro, o
sujeito cognoscente. Podemos imaginar que a realidade envia informações para o
sujeito que são processadas conforme os quadros prévios, que é a visão de mundo
que o crente possui na fé. De um lado a fé, do outro, os eventos do mundo. Na
formação dos conceitos verdadeiros sobre o mundo natural uma colaboração
96
entre estes dois pólos. O primeiro é o contato existencial com o evento-Cristo,
mistério, a partir do qual a reflexão trinitária parte. O segundo, os eventos do mundo,
incluem os fatos quotidianos experimentados pela pessoa religiosa e os
conhecimentos das ciências e da racionalidade natural. Assim, os conceitos
religiosos nascem da visão de mundo preexistente, que é cristã, mas é reforçada,
corrigida, reorientada, aprofundada e reinterpretada pelas experiências feitas ao
longo da história pessoal e com a colaboração essencial da comunidade.
Devemos notar um determinado círculo hermenêutico: a graça orienta a
vontade no sentido de criar virtudes intelectuais tais que têm por objetivo a
expressão correta da realidade, a verdade, que está definitivamente só em Deus ou,
em forma de vestigia, na criação. Com base nos conhecimentos religiosos o sujeito
interpreta o sentido dos eventos naturais, servindo-se também de conhecimentos
científicos para isso. Estes conhecimentos adquiridos reforçam ou corrigem a própria
abrindo mais espaço à ação da graça, fechando o círculo. Essa circularidade não
conta a desfavor na constituição do conhecimento religioso. A vontade de verdade
que nasce do contato com o evento-Cristo procura a uma interpretação sempre mais
profunda do mistério, o que tende a evitar interpretações relativistas radicais da
natureza e tende a eleger aquelas realistas
37
.
3.3 - O CONHECIMENTO RELIGIOSO NAS CIÊNCIAS COGNITIVAS
No nosso esforço de aproximação e caracterização do conhecimento religioso
da natureza, procuramos a via teológica no Capítulo 2. Na seção anterior, buscamos
caracterizar o conhecimento religioso por meio de figurações: como conhecimento
empírico mediante a mística, como conhecimento por familiaridade, como
aproximação ao mistério e como desejo de verdade por ação da graça. Mas se a
religião produz conceitos então estes também deveriam ter uma manifestação na
estrutura natural humana, isto é, eles poderiam ser estudados por aquelas ciências
que justamente investigam as estruturas dos conceitos conforme eles se manifestam
na mente humana: as ciências cognitivas. Isso é exatamente o que foi estudado em
recentes pesquisas das ciências cognitivas e psicologia evolutiva para a religião, que
97
37
Para um interessante argumento tomista sobre o realismo epistemológico da fé, ver Paul
McDonald Jr (2005).
mostram que o pensamento humano, inclusive o pensamento religioso, possui
algumas características naturais recorrentes. Isto indicaria que a cognição religiosa
não é arbitrária, mas se comporta de modo semelhante às outras faculdades
cognitivas humanas naturais, tal como a manipulação de objetos ou a linguagem.
3.3.1 - As ciências cognitivas sobre a religião
38
Uma primeira distinção nestas pesquisas é entre o conhecimento intuitivo e
conhecimento reflexivo, algo análogo à nossa caracterização do conhecimento entre
familiaridade e proposicional. Enquanto o conhecimento reflexivo está na ordem da
abstração racional, e, dessa forma, utiliza mais o córtex pré-frontal, o conhecimento
intuitivo utiliza circuitos neuronais mais antigos responsáveis pelos pensamentos
autônomos, que por sua vez servirão de suporte para o conhecimento reflexivo. Ao
contrário de sermos formados por mentes tabula rasa igualmente receptivas a
qualquer tipo de ideia, nossas mentes têm “um considerável viés interno (bias built
in), em parte devido a um condicionamento biológico ou como uma previsível
combinação de suporte biológico e típica exposição ao mundo no qual os homens
vivem.” (BARRETT & LANMAN 2008, p.113). Essa tendência interna direciona o
pensamento sugerindo quais as ideias que têm mais aderência e propensão à
propagação e quais as outras que são mais custosas em termos de fixação e
transmissão. A combinação de suporte biológico com ambiente nos quais os homens
vivem produzem o que Barrett chamará de maturationally natural cognitive
systems” (ibidem, p.113).
Boyer (2000) avança nessa mesma ideia adiantando que “as mentes
humanas são equipadas com uma particular ontologia, um conjunto de expectativas
intuitivas sobre os tipos de coisas que podem ser encontradas no mundo” (BOYER,
2000, p.196). É como se nosso “hardware” estivesse predisposto a processar os
dados do mundo de tal modo que facilitou o processo evolutivo da espécie humana,
tornando-o incrivelmente eficaz. Dessa maneira, a cultura é sujeita a uma
modulação natural, uma impregnação de ideias e conceitos intuitivos que têm mais
98
38
Para um estudo mais aprofundado sobre o assunto, remetemos o leitor a outras referências
suplementares: Justin Barrett (1996, 1998, 1999, 2000, 2001, 2009); J. Barrett e Nyhof (2001); Barrett
e Lanman 2008; Pascal Boyer (2009; ). Uma apresentação geral pode ser encontrada em Pascal
Boyer (2004), apesar de suas reticências quanto à validade dos conceitos religiosos.
facilidade de serem absorvidos e transmitidos culturalmente por serem menos
custosos à adesão mental. A transmissão cultural não é simplesmente um
“download” de conteúdos apreendidos durante a história pessoal para dentro da
mente, mas um processo inferencial por meio do qual determinadas maneiras de
pensar são preferencialmente selecionadas e rejeitadas conforme uma ontologia
intuitiva direciona (ibidem, p.195).
O programa de pesquisa que aqui se delineia aponta na direção de identificar
no lado natural da religião, seu vínculo com nossa estrutura biológica. A religião é
entendida como “hard-wired” e assim está estruturalmente colocada na cognição
humana. Essa é a tese central da naturalidade da religião.
O pensamento e a ação religiosos são comuns na história e cultura humana
devido à sua relação com a ocorrência de um particular sistema cognitivo
natural. A religião brota naturalmente do modo como o sistema cognitivo
humano ordinário interage com o ambiente ordinário natural e social
humano. (BARRETT & LANMAN 2008, p.110)
As alterações locais, que são condicionadas pelas circunstâncias culturais e
históricas participam do processo de elaboração da religião, mas não são os únicos
elementos que compõem o pensamento religioso. Um desses elementos são as
condições naturais humanas descritas na tese, a indicar que o lado cognitivo da
religião obedece a certos limites, certos direcionamentos por meio dos quais a
própria cultura se manifesta. O trabalho de Barrett, Boyer e outros intentam mostrar,
mediante testes empíricos rigorosos, o funcionamento destes mecanismos
cognitivos e apontam, com isso, uma das razões do porquê a religião permanece.
Notemos que o termo “religião” assume o tom de um termo técnico para tratar uma
característica evolucionista cognitiva, da mesma maneira como uma árvore é tratada
pelo botânico evolucionista. Isto é, “religião” é uma categoria formal a partir da qual
se delimita um fenômeno humano, aqui, no seu aspecto cognitivo.
Ao tomar a religião como um processo natural, a ideia de crença segue o
mesmo caminho.
No nosso tratamento, tomamos crença como designando o estado de um
sistema cognitivo que guarda informação (não necessariamente em forma
proposicional ou explícita) como verdadeiro na geração de um ulterior
pensamento e comportamento. (BARRETT & LANMAN 2008, p.110)
99
Esses estados mentais assumem uma estrutura externa sem justificação por
serem intuitivos. Seria um equívoco pedir que a própria crença apresentasse razões,
fundamentos, justificativas. Para que elas produzam seus efeitos inferenciais, essas
crenças, e os conceitos intuitivos religiosos, são assumidos como verdadeiros, e
assim servindo para a produção de “ulterior pensamento e comportamento”. Isso
lembra a situação na qual o mistério serve para fornecer um material a partir do qual
o pensamento religioso inicia seu pensamento.
Os indivíduos não percebem que têm um repertório de conceitos intuitivos
sobre o mundo material, biológico, animal e humano. Esse conhecimento tácito não
codificado em proposições contempla propriedades tais como “objetos caem”,
“pessoas têm mente”, “animais se alimentam”, etc. (ibidem, p.111). Boyer chega
mesmo a identificar alguns desses conceitos intuitivos recorrentes transculturais, a
saber: pessoa, objeto, planta, animal, artefato (BOYER 2000, 196-199). Com isso,
notamos que não somente a religião está sujeita à tese da naturalidade, mas
também outras instâncias cognitivas. Desse modo, uma física intuitiva, que pode
ser observada principalmente no aprendizado de crianças, por meio do qual os
objetos naturais têm uma ontologia característica própria, comum a todos os seres
humanos. Certos bebês, antes mesmo de fazerem uso da linguagem verbal, são
capazes de operar máquinas eletrônica, indicando que um conhecimento, mas
não justificação, por este estar associado ao mundo da vida e a um estado
intuitivo de coisas. Essa física intuitiva continua operando na cognição humana até a
idade adulta. Naturalmente, da mesma maneira que a existência de uma física
intuitiva não conta como um argumento que desqualifica a física formal, assim
também os aspectos cognitivos naturais da religião não apresentam um argumento
contrário à teologia.
Segundo Boyer (2000), os conceitos religiosos têm a particular propriedade
de participarem de uma das classes ontológicas simples - pessoa, objeto, planta,
animal ou artefato - e simultaneamente violar alguma das características desta
mesma ontologia. Essa violação pode ocorrer pela supressão de uma das
características ontológicas ou pela incorporação de uma característica de outra
classe ontológica. Por exemplo, para que uma pessoa se torne sagrada, ela deve
violar a obrigatoriedade de localização espacial, isto é, deve poder atravessar
100
paredes. Para que uma planta se torne sagrada, ela pode incorporar a capacidade
de poder ler os pensamentos das pessoas, incorporando características da classe
pessoa. Esse procedimento cognitivo, inicialmente proposto por Boyer, produz
conceitos que são chamados de MCI (minimally counter intuitive), dispositivo
também reconhecido por Barrett e Lanman (2008).
Outra característica fundamental da cognição humana para o caso da religião
e que pode ser observada nos primeiros anos de infância, é a TdM : Teoria da Mente
(ou ToM - Theory of Mind). A TdM é a capacidade de um sujeito modelar os estados
mentais de outro criando uma representação interna, uma “teoria”. Este dispositivo
cognitivo permite que um indivíduo elabore um modelo dos estados mentais de
outros sujeitos que são usados especialmente para produzir inferências sobre as
intenções desses outros indivíduos. Esse dispositivo é particularmente desenvolvido
nos humanos, provavelmente em virtude da vantagem evolutiva que estes tiveram
ao se associarem em grupo, em que o objetivo comum é sensível às intenções
coordenadas dos indivíduos. Alguns sugerem (BARRETT: 2000; BARRETT &
LANMAN: 2008) que essa capacidade de inferir as intenções de outros indivíduos é
de tal modo desenvolvida, dada a natureza social humana, que se torna hiperativa.
A hiperatividade desse dispositivo de inferência intencional foi batizada de HADD
(hyperactive agency detection device), o qual produz conceitos de agência
intencional com um mínimo de evidência à disposição. O nascimento de conceito de
entidades religiosas (anjos, demônios, etc), portanto, pode ser criado intuitivamente
nos indivíduos por meio da ativação coordenada desses dispositivos. Com a
ativação da HADD, a TdM produz inferências sobre uma pessoa MCI (uma pessoa
sem presença física, com uma mente que sabe as intenções das outras pessoas),
que é de tal forma relevante cognitivamente que se torna um conceito religioso.
O conhecimento intuitivo natural nasce de dois modos. O primeiro se pela
prática frequente, do treinamento, (practiced natural cognitive system) como quando
alguém aprende a ler uma partitura ou aprende a jogar xadrez. A estratégia do
xadrez, os movimentos das peças, podem se tornar não reflexivos ao jogador
experiente, e ele adquire, desse modo, uma naturalidade cognitiva por meio da
prática. (BARRETT & LANMAN; 2008, p.113). O modo de se comportar em
determinado contexto cultural, que se torna um conhecimento intuitivo, pode ter
101
origem nos primeiros anos de infância. Essa forma de adquirir crenças implica que o
indivíduo seja exposto inicialmente a um conjunto de regras (as do xadrez, as da
música, as dos modos, etc). Aqui, o sistema cognitivo intuitivo produz crenças
intuitivas sobre o mundo que têm origem num treinamento, correção e interiorização
de conhecimentos exteriores ao indivíduo, a ponto de se tornarem naturais a ele.
O outro modo de adquirir conhecimentos intuitivos é por meio do
amadurecimento natural de uma faculdade biológica ordinária, expondo-a a
determinado ambiente (maturationally natural cognitive system), como, por exemplo,
andar, aprender uma determinada língua ou a manipulão de operações
matemáticas elementares (ibidem, p.113). Os sistemas cognitivos naturais por
amadurecimento restringem e modulam os conhecimentos naturais intuitivos por
prática selecionando aqueles que são mais fáceis de serem aprendidos e
armazenados em desvantagem com aqueles que são mais contra-intuitivos.
3.3.2 - Considerações teológicas sobre a cognição religiosa
Os aspectos da teoria cognitiva para a religião apresentados indicam as
características naturais da crença religiosa mas não conseguem justificar todas as
afirmações religiosas presentes em uma determinada tradição. Em particular, essa
teoria tem dificuldades de mostrar como é que conceitos teológicos sofisticados
emergem da condição natural da cognição humana. É o próprio Barrett que afirma:
Nem todas as crenças religiosas estão ancoradas em crenças não-refletidas
e nascem por causa destas. Por exemplo, que o Deus cristão seja Trindade
e não-temporal tem pouco ou nenhum fundamento não-reflexivo.
(BARRETT 2009, p.82)
Podemos entender que a relação da imediatez e intuitividade de
determinadas crenças presentes no cristianismo podem ser mais facilmente ser
identificadas com determinados mecanismos naturais, tal como a devoção, em geral
popular. Entretanto, como a reflexão trinitária apresentada no Capítulo 2 é distante
da condição natural não-refletida, isso implica em duas coisas. A primeira é que a
teologia pode ser coloca na extremidade reflexiva em relação à religião natural tal
como a física se coloca na extremidade reflexiva em relação à física intuitiva. Nesse
caso, uma continuidade entre a religião “natural” e a teologia e “quanto mais
diferentes crenças (beliefs) não-reflexivas convergirem em uma particular crença
102
reflexiva, mais provavelmente a crença reflexiva será mantida”
39
(ibidem, p.81). A
segunda implicação, mais relevante, é que se a idéia de Trindade é completamente
não-intuitiva, então a experiência religiosa trinitária não é somente fruto da
naturalidade da religião, mas contém um conteúdo extra. Em termos teológicos,
poderíamos arriscar a dizer que é justamente aí que entra o componente revelatório.
Naturalmente, se a concepção teológica for extremamente abstrata, ela terá
dificuldade em se tornar heuristicamente relevante e se deslocando do mundo da
vida. Guthrie (1993) comenta a respeito : “Alguns teólogos tentam entender Deus
não antroporficamente, mas seu Deus ou interage simbolicamente com os humanos
ou não pode ser entendido.” (GUTHRIE 1993, p.177).
No caso de Lubich em sua interpretação da natureza temos o colapso de
duas situações curiosas. A primeira é a detecção agencial por trás dos fenômenos
naturais, pois é Deus quem sustenta as coisas. De certa maneira, isso estaria
próximo à descrição apresentada pelas ciências cognitivas da religião. Por outro
lado, o agente que está por trás não é trivial: é a estrutura ontológica trinitária que
emerge. Se a percepção é intuitiva, a explicação não o é. Isso implica que uma
tensão de fundo que orienta as explicações teológicas sobre o mundo natural, que
podem partir perfeitamente da cognição natural religiosa, em direção a uma verdade
subjacente, sempre passível de revisão. Como pudemos dizer no Capítulo 2, é a
modificação das condições da subjetividade, participada na experiência fundamental
da fé no evento-Cristo, que dispõe o indivíduo a produzir conhecimentos verdadeiros
em relação ao “real”. Se, por um lado, o Deus de Lubich é pessoal, e portanto
antropomórfico e preservando o aspecto natural da religião, por outro ele é
complexo, pois o pensamento trinitário, como explicação do amor que se reflete,
agora, na estrutura do mundo, é um dos temas que requer bastante abstração pela
teologia. Nesse processo, a comunidade assume papel fundamental, corrigindo
eventuais equívocos e confirmando os acertos de maneira muito análoga à função
da comunidade científica na confirmação e verificação de experimentos e teorias
sobre fenômenos.
103
39
The more different non-reflective beliefs that converge on a particular reflective candidate
belief the more likely the reflective belief becomes held.
Interessante notar que a revelação do Deus unitrino implica em uma
elaborada reflexão sobre o que é experimentado intuitivamente. Por um lado o
contato com o evento-Cristo tem um aspecto intuitivo, pois a idéia de Deus é intuitiva
segundo as pesquisas cognitivas da religião apontadas acima. Por outro, a
elaboração consciente, racional e sofisticada de uma idéia da Trindade é algo que
extrapola os limites do que hoje é conhecido dentro da tese da naturalidade da
religião. A linguagem humana e sua racionalidade são o a priori de Deus para
revelar-se a esse homem. Se a graça aperfeiçoa a natureza, seu corolário é que a
natureza é pré-condição para a graça e, portanto, entendemos que as condições
naturais corretas, inclusive cognitivas, predispõe o homem a discernir corretamente
sobre o mundo natural e sobre Deus.
A explicação mais razoável é aquela na qual Deus coloca as condições
suficientes na própria estrutura natural humana para poder criar uma relação com
ele. Barrett (2009) parece concordar nesse ponto:
O cristão talvez argumente que por meio de certos meios (talvez incluindo a
evolução) Deus equipou as pessoas com o equipamento cognitivo como
pré-requisito para ter uma relação apropriada com Deus. (BARRETT 2009,
p.99)
Por meio da prática destas faculdades ordinárias quando em situação
especial, como é o caso do contato vital com a comunidade de fé, a cognição inicia
um processo no qual os estados cognitivos atingidos pelo indivíduo se movem em
direção a um crescente armazenamento de informações tidas como verdadeiras
sobre o mundo, inclusive o natural.
A cada aproximação ao mistério, ao real, os estados cognitivos religiosos
representariam cada vez mais a estrutura própria presente no mundo. Para a
experiência cristã, a estrutura do mundo nasce do próprio Deus e o represernta em
formas de vestitia trinitate. No caso de Lubich, esses estados mentais são as
representações do mundo em forma de ontologia trinitária. O processo no qual
essas ontologias trinitárias nascem no indivíduo, nessas condições corretas, será a
heurística da ontologia trinitária. Esta heurística é disparada na pessoa religiosa
como fruto de uma correta disposição cognitiva: a vontade correta pela graça e
consequente correção do desejo, o contato por familiaridade ao mistério, a
confirmação e o sustento da comunidade, as condições naturais da cognição
104
humana. A heurística da ontologia trinitária procura representar o mundo e entendê-
lo a partir e em direção ao mistério.
3.4 - REALISMO E RELIGIÃO
Emerge naturalmente do que foi dito até aqui que a religião concebe o mundo
como um estado de coisas reais, mesmo que essa realidade esteja envolvida pelo
mistério. De fato, a religião concebe o mundo como real justamente por causa desse
mistério de um modo diferente do que poderíamos chamar de realismo ingênuo da
intuitividade. O caráter realista, para a religião, não reside no simples apresentar-se
das coisas, mas naquilo que a experiência religiosa procura tocar em seu limite.
Esse estado de coisas para a religião pode ser visto em diferentes tentativas
de definições. Elas reconhecem que a pessoa religiosa fala de sua própria crença
como um estado de coisas reais, mesmo que mediadas por linguagens figuradas.
Tome-se, por exemplo, o Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade, em que ele afirma
que “o sagrado equivale ao poder, e, em última análise, à realidade por excelência.
O sagrado está saturado de ser”. (ELIADE 2008, p.18). A partir do reconhecimento
do caráter sério do sagrado, Eliade procura na história comparada das religiões uma
fenomenologia na manifestação desse sagrado de tal forma e esviscerar sua
estrutura intrínseca. O que é importante notar é a participação e o reconhecimento
do caráter realista da experiência do sagrado na constituição da estrutura do mundo
por meio do binômio sagrado/profano presentes no espaço, no tempo, no indivíduo,
no cosmo. Na tentativa de definição do “sagrado”, a fenomenologia clássica
reconhece a propriedade realista para a religião.
40
Ora, isto é patente nas
declarações de Lubich e é isso o que procuramos afirmar: para ela, a experiência de
Deus mostra realidades, Deus mesmo é a realidade que revela a realidade das
coisas.
Esse aspecto realista da experiência religiosa pode também ser visto na ótica
das interpretações das culturas em Clifford Geertz (1978) o qual inclui a noção de
que a religião percebe uma densidade de realismo única por meio dos símbolos
105
40
Para uma interessante apresentação crítica à posição fenomenológica clássica, ver o artigo
de Frank Usarski (USARSKI 2004): Os Enganos sobre o Sagrado em Rever - Revista de Estudos da
Religião.
religiosos. De fato, ele mostra essa densidade mesmo em sua definição, segundo a
qual a religião é
Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes
e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação
de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas
concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações
parecem singularmente realistas (GEERTZ 1978, pp. 104-105)
Interessante notar que para Geertz tende a lançar uma suspeita em relação à
percepção religiosa dos conceitos, eles parecem singularmente realistas”.
Entretanto Geertz reconhece que perguntar-se se esta ou aquela afirmação da
religião é ou não verdadeira, além de, segundo, ele ser pouco relevante para a
antropologia, ela está completamente fora do domínio da investigação científica
dada a auto-limitação da perspectiva científica (GEERTZ 2000, p.123). Outro
aspecto a se notar na definição de religião de Geertz reside em apontar para os
conceitos religiosos, aqueles que se revestem de um particular realismo. O estudo
da mecânica desses conceitos foi estudada nas seções que abordaram as ciências
cognitivas.
Se a experiência religiosa, segundo as ciências cognitivas, em um primeiro
momento é necessariamente irrefletida, à medida que ela se torna pensada, a
pessoa religiosa se torna progressivamente teóloga e esse realismo se torna
progressivamente mais explícito. Boas teologias sempre são conscientes da
precariedade do seu falar sobre Deus e é nesse sentido que toda uma corrente de
teologia apofática nasceu e se desenvolveu nos séculos. A teologia compartilha com
a experiência religiosa o realismo enquanto o “objeto” do que é dito são coisas reais,
pois Deus mesmo é mais “real” do que o próprio mundo natural. Para Lubich,
novamente, Deus é a realidade das coisas. Mas a teologia é também crítica
enquanto tem consciência de que está sempre em constante tentativa de dizer algo
sobre um transcendente que é em si mesmo indizível. Como afirmamos
anteriormente, o procedimento de falar analogicamente é o que preserva tanto o
realismo dos “objetos” quanto o distanciamento e a precariedade do dizer teológico.
Portanto, podemos dizer que esse realismo presente em Lubich não é ingênuo, isto
é, que o contato com a realidade mostra exatamente como ela é, mas é mediada por
modelos, figuras, representações, imagens, metáforas, analogias. Lubich, para falar
da estrutura trinitária do mundo usa figurações, como aquela da imagem do sol e
106
raios. Essa forma de representação realista será chamada aqui de realismo crítico,
como vamos justificar a seguir: a heurística da ontologia religiosa trinitária é um guia
confiável de como as coisas realmente são. uma associação entre a
epistemologia religiosa e a ontologia, sendo que esta última é uma aproximação
confiável da realidade.
Alister McGrath (2005), biofísico e teólogo, resume o realismo crítico para a
religião em duas proposições fundamentais: “1) Deus existe independente do
pensamento humano; 2) Os seres humanos são obrigados a usar modelos ou
analogias para representar Deus, que não pode ser conhecido
diretamente.” (McGRATH 2005, p.89). Neste aspecto formal as teologias são
semelhantes às teorias científicas, daí a utilidade do realismo crítico. Poderíamos
mesmo dizer que retirando-se a capacidade de predição das teorias científicas e
preservando-lhes a capacidade explicativa, teologias competem numa tentativa de
explicar o mundo e Deus de maneira semelhante aos programas de pesquisa em
ciências naturais.
3.5 - REALISMO CRÍTICO E CIÊNCIAS NATURAIS
3.5.1 - Tentativa de definição
O conceito de realismo crítico é parte central no debate entre religião e
ciência atualmente. Andreas Losch (2009) procurou traçar sua origem histórica até a
adoção pelos principais autores. A primeira acepção do termo pode ser remetida aos
pré-socráticos, em que se procuravam aquelas essências do mundo físico para além
das aparências, reconhecendo que a realidade do mundo não era exatamente como
os sentidos apresentavam. Entretanto, somente com Kant o conceito atinge sua
maioridade (LOSCH 2009, p.85-86), ideia que se espalharia no ambiente germânico
em seguida. Segundo Losch, a absorção do termo em ambiente anglo-saxão foi
feita, entre outros, por Roy Wood Sellars, mas que, estranhamente não é citado por
Ian Barbour, que foi quem introduziu o termo no debate ciência-religião (ibidem, p.
87-88) em sua publicação inicial, Issues in Science and Religion, de 1966 e em um
artigo na primeira edição da revista Zygon, dedicada ao assunto, também de 1966.
A única referência que Barbour faz é a Alfred North Whitehead, que, segundo Losch,
107
não é facilmente classificável como realista crítico. Enfim, Losch conclui que Barbour
simplesmente recriou o termo, e diríamos também o conceito, para suas próprias
preocupações. O termo também foi adotado posteriormente por John Polkingorne,
Arthur Peacocke e outros.
Losch um problema de fundo na adoção do termo realismo crítico pelos
advogados do diálogo entre religião e ciência que reside fundamentalmente na
pouca consciência filosófica do que o termo implica. O realismo crítico adotado por
Barbour, pareceria, portanto, uma mera recriação do realismo, adicionando a ideia
de “crítico”, por uma razoável consciência das inevitáveis formas de representação
presentes nas ciências naturais. Pelo fato de que Barbour tem formação inicial em
física, seria natural pensar que as representações teóricas físicas do mundo natural
tenham um aspecto propriamente realista, mas que elas não indiquem exatamente
como o mundo natural é. Isto é, de certa forma, natural para a atividade científica
normal em física. Assim, ao adotar o realismo crítico, Barbour procura dizer
simplesmente que uma realidade física, na qual a atividade científica opera de
forma confiável mas que sempre é passível de reavaliação. Ele procura encontrar
uma posição intermediária que evite o positivismo, o instrumentalismo e o idealismo
(LOSCH 2009, p.89). É o “entendimento do uso dos modelos - que devem ser
tomados seriamente mas não literalmente - que está no coração do realismo crítico
de Barbour” (ibidem, p.89). Levando em conta essas observações, voltemos a esse
último autor.
No volume Religion and Science: Historical and Contemporary Issues
(BARBOUR 1997), uma edição revista e ampliada de um seu famoso volume
anterior, o Religion in an Age of Science, ele apresenta o realismo crítico no contexto
da mudança de pensamento no campo científico operada pelas descobertas da
mecânica quântica. Após discutir a mecânica tradicional, ele indica que a posição de
Niels Bohr, no que concerne à interpretação da dualidade onda-partícula, não era
nem de realismo clássico newtoniano nem instrumentalista (BARBOUR 1997, p.
167-168). Barbour define desta maneira o realismo crítico:
Realistas críticos vêem teorias como representações parciais de aspectos
limitados do mundo conforme eles interagem coms. As teorias permitem
correlacionar diferentes aspectos do mundo manifesto em diferentes
situações experimentais. Para o realista crítico, modelos são abstratos e
seletivos mas tentativas indispensáveis para imaginar as estruturas do
108
mundo a partir das quais emergem estas interações. O propósito da ciência,
nesta visão, é o entendimento, não controle. A corroboração das predições
é um dos testes para a validade do entendimento, mas predição não é ela
mesma um dos objetivos da ciência. (BARBOUR 1997, p.168)
Central no realismo crítico é a idéia de modelo da realidade. Devemos
lembrar o que foi discutido anteriormente sobre o uso do método da analogia.
Modelos científicos são abstrações humanas e não podemos dizer que eles existem
no mundo real como tais, mas que representam, em um grau maior ou menor, o
mundo físico. Assim a relação entre o modelo e a realidade é, de certa forma,
também analógica. Barbour parece seguir a metáfora do mapa para pensar o fazer
científico, o qual diz que os modelos científicos são representações do mundo e
fornecem um conhecimento para se orientar nele. Assim como um mapa nunca é
exatamente como a realidade representada é, modelos científicos também deixam
de fora diversos aspectos da realidade e, no entanto, ainda representam
confiavelmente o mundo real. Em parte, isto tem a ver com a simplicidade do modelo
científico, uma virtude. Outro aspecto do realismo crítico, e dos modelos do mundo
físico, é a ideia de predição. Segundo ele, a predição de novos fenômenos faz parte
do fazer científico, mas ela não é seu objetivo principal. O principal é o
entendimento. Voltaremos mais pormenorizadamente adiante, quando
apresentaremos o pensamento de Imre Lakatos e discutiremos a questão da
predição.
Robert John Russell e Kirk Wegter-McNelly comentam o realismo crítico de
Barbour apontando que essa estrutura de pensamento “inclui uma série de
argumentos que envolvem a epistemologia (que tipo de conhecimento está
envolvido?), a linguagem (como se expressa?) e a metodologia (como o
conhecimento é obtido e justificado?).” (RUSSELL; WEGTER-MCNELLY 2003, p.
49). O realismo crítico se apresenta como uma filosofia da ciência na qual pode-se
dizer que um progresso que no crescente controle da natureza, um indicativo da
validade de uma teoria. Mas o principal é possuir uma crescente capacidade
explicativa.
A metáfora do mapa foi elaborada por John Ziman em seu Conhecimento
Confiável (1996) e retomada em seu mais recente Real science: what it is and what
it means (2002). Para Ziman, a metáfora é particularmente fecunda por indicar a
109
capacidade das teorias científicas serem explicativas. O mapa não é somente um
indicador de como atingir objetivos, mas é explicativo porque teorias formam
conexões entre os fenômenos dispersos no mundo. Um mapa é sempre uma
maneira coerente de compreensão.
No interior de cada taxonomia existe uma explicação em luta para emergir.
(...) De fato, cada mapa é uma teoria. Praticamente cada sentença geral
que alguém possa fazer sobre teorias científicas é igualmente aplicável para
mapas. Eles são representações de uma suposta ‘realidade’. Eles são
instituições sociais. Ele são abstratos, classificam e simplificam inúmeros
‘fatos’. Eles são funcionais. Eles necessitam de habilidades especiais para
sua interpretação. E assim por adiante. A analogia é evidente, muito mais do
que uma metáfora. (ZIMAN 2002, p.126)
Ziman insiste que o mapa’ em relação à ‘teoria possui uma relação
analógica. Mais ainda, a relação da teoria com o mundo possuiria, analogicamente,
as mesmas propriedades de um mapa em relação à situação geográfica que ele
representa: assim como o mapa é análogo à geografia física que ele procura
representar, uma teoria é análoga ao fenômeno que procura explicar.
3.5.2 - Realismo crítico como visão de mundo
Se teorias científicas devem ser explicativas, então elas incluem uma
weltanschauung, uma visão de mundo. Não explicação e entendimento do mundo
sem uma weltanschauung. Esse estado de coisas é descrito bem pelo filósofo
Stefan Bauberger: “Ciência sem interpretação [de suas teorias] não contribui nada
para o entendimento do mundo. Somente interpretações criam weltanschauung
(world views).” (BAUBERGER 2007, p.8). Essa necessidade da interpretação das
teorias também é indicada por Ziman (2002) em um curioso título de capítulo “Em
que, então, podemos acreditar?”
41
:
A ciência produz conhecimento. Isto é algo a mais do que informação
codificada. (...) As miríades de fatos e teorias nos arquivos científicos foram
moldadas pelos requisitos da comunicação interpessoal. Eles devem ter
sentido (meaningful): eles devem ser possíveis de serem entendidos.
(ZIMAN 2002, p.289).
É de se notar que o aspecto comunitário da produção científica é parte
essencial da weltanschauung que dali brota. Em determinado momento, deve haver
uma tomada de consciência dos resultados das pesquisas de modo que a
110
41
“What, then, can we believe?”
explicação emerja e se revele o sentido daquilo que está sendo explicado. Com isso,
no seu aspecto intrinsecamente comunitário, é que propriamente se constitui o
conhecimento.
É nesse nível que teorias e suas interpretações dialogam com a visão de
mundo que nasce de uma forma de vida religiosa que é simultaneamente individual
e coletiva. Esta parece ser a posição de Chiara Lubich. Por meio da analogia das
realidades espirituais experimentadas e confirmadas pelo grupo e a tradição
religiosa, pode-se aproximar dos conhecimentos científicos adquiridos na tentativa
de incorporá-los dentro da própria weltanschauung religiosa. Dado que o
conhecimento científico continuamente está às buscas de uma explicação para o
mundo, não necessidade de haver, em princípio, objeções contra essa
incorporação. Naturalmente, algo se modifica na weltanschauung religiosa nesta
incorporação, mas lembremos que no caso da religião, estamos lidando com um
mistério dimensional no qual a incorporação de um novo aspecto para compreendê-
lo é sempre bem-vindo. Vice-versa, a experiência e o conhecimento religioso podem
servir de fonte inspiradora para a proposta de novos modelos e teorias científicas,
pois no momento exatamente anterior à proposição de uma teoria, qualquer
sugestão vale.
3.5.3 - Realismo crítico entre explicação e predição
Na definição de realismo crítico de Barbour acima, ele indicou que o objetivo
principal da ciência não é o controle, mas a explicação. Nesse caso, como distinguir
a ciência de outros modos explicativos? Por isso um problema para a filosofia da
ciência é encontrar um critério que distinguisse o que é científico, e esta foi a
questão que Imre Lakatos (1979) se colocou. O problema central na filosofia da
ciência para Lakatos é encontrar um critério de demarcação que a distinguisse da
pseudociência
42
. Para isso ele debateu com Thomas Kuhn, Alan Musgrave, Paul
Feyerabend e Karl Popper.
111
42
Lakatos utiliza explicitamente o termo pseudociência com clara intenção depreciativa,
incluindo o marxismo, o freudismo e a religião. Mas lembremos: Lakatos não faz filosofia da
religião, faz filosofia da ciência.
Para uma visão mais completa de sua filosofia da ciência, ver Lakatos (1979).
A ideia central de Lakatos é que a ciência não se pauta pelo falsificacionismo
de Popper ou pelas revoluções científicas de Kuhn (LAKATOS 1978, p.8-12), mas
que a ciência se desenvolve em programas de pesquisa. Contrariamente às
revoluções científicas paradigmáticas, onde inteiros conjuntos de modelos são
descartados no momento em que a ruptura se efetua na história da ciência, o que se
verifica é que teorias que foram substituídas por outras mais sofisticadas continuam
a serem usadas no dia a dia científico. Esses programas competem uns com os
outros para a explicação de fenômenos naturais. Porém, além do poder de
explicação, a principal virtude dos bons programas de pesquisa seria a predição de
novos fatos. Programas degenerativos têm menor sucesso na previsão de novos
fatos, isto é, estes têm de ser adaptados por um grande cinturão de hipóteses
auxiliares, enquanto programas progressivos conseguem incluir um maior número
de fatos com poucas hipóteses auxiliares. Assim, uma teoria científica é constituída
por um núcleo programático, um cinturão de hipóteses auxiliares, e, se participar de
um bom programa, um crescente número de fenômenos previstos e explicados.
Para Lakatos o problema da demarcação entre a ciência e pseudo-ciência poderia
ser resolvido com a adoção de seu critério de predição. Ele é radical nas afirmações:
O que realmente conta são as dramáticas, inesperadas, impressionantes
predições: poucas delas são suficientes para pender a balança; enquanto
teorias estiverem atrás dos fatos, estamos tratando com miseráveis
programas degenerativos de pesquisa. (LAKATOS 2009).
É importante não menosprezar o poder preditivo da ciência. O físico
B.K.Jennings parece concordar com Lakatos nessa questão, mas, estranhamente,
não o cita:
A idéia básica de Popper é correta, modelos não podem ser provados mas
ainda podem ser testados por meio da comparação com as observações.
Entretanto, ao contrário da falsificação estrita, julgamos um modelo pelo seu
poder de predição. Popper reconheceu que os modelos que fazem mais
predições são também os que são mais facilmente falsificáveis por terem
alguma predição que se provou incorreta. Não obstante isto, tais modelos
são preferíveis por conterem mais conteúdo informacional. Isto se move na
direção do poder de predição. Poder de predição simplesmente se refere à
habilidade de um modelo de descrever observações passadas e
especialmente prever novas. Quanto maior a habilidade de fazer as
observações corretas e não fazer as falsas, maior é o poder preditivo.
(JENNINGS 2006, p.6)
Se por um lado, podemos conceder a Lakatos e Jennings que o critério de
predição de novos fenômenos é constitutivo ao fazer científico, não podemos deixar
de apontar que, como dissemos anteriormente, a capacidade de explicação de uma
112
teoria lhe é da mesma maneira essencial. Em outras palavras, retirando da ciência
a capacidade preditiva, esta se torna outra coisa que não boa ciência. E o mesmo
acontece com a capacidade explicativa.
43
Programas de pesquisa diferem muito em sua natureza entre as ciências
naturais e as humanidades e aqui estamos tratando da ciências naturais, tendo em
mente principalmente a física. Somente é possível prever fenômenos com base em
um pressuposto de que a natureza não nos engana, ela permanece a mesma
sempre, não muda de comportamento de modo intrinsecamente imprevisível, ou
melhor, ela não arbitra. A capacidade de predição é possível se esse pressuposto de
não intencionalidade for válido. Ou, para dizer com George Ellis, nenhuma teoria
física explica um bule de chá.
Mesmo se tivéssemos uma satisfatória fundamental física “teoria de tudo”,
esta situação permaneceria intocada: a física ainda falharia em explicar os
produtos do propósito humano, e assim proveria uma descrição incompleta
do mundo ao nosso redor. (ELLIS 2005, p.743)
Uma vez que seres humanos são agentes intencionais, portadores de
liberdade e capacidade de decisão, a possibilidade de uma teoria científica prever
suas ações a modelo das ciências naturais torna-se uma tarefa impossível. Se não
houvesse essa diferença entre as ciências naturais e sua capacidade de previsão e
as ciências humanas, Wilhelm Dilthey não poderia fundamentar estas últimas na
hermenêutica, tomando, assim, certa distância e autonomia em relação às
primeiras
44
. Além disso, a física não pode ser tomada como uma pan-teoria pois
sempre requer uma explicação e uma weltanshauung que dependem de um
contexto que não se limita somente ao aspecto preditivo.
113
43
Seria interessante investigar possíveis nexos entre o poder de predição como um critério
presente nas ciências físicas e o poder de profecia como medida da verdadeira religião no
Cristianismo.
44
Uma discussão sobre a posição de Dilthey e a tradição hermenêutica na definição do
conhecimento científico das humanidades levaria nossa discussão para demasiadamente longe. A
questão particularmente interessante, porém, seria caracterizar as semelhanças e diferenças entre o
conhecimento religioso e o conhecimento fornecido pelas humanidades. Podemos somente sugerir
que a religião no seu aspecto subjetivo e coletivo é percebido pela pessoa religiosa como mais
fundamental do que explicações sobre o mundo e racionalizações. Um exemplo disto é a discussão
entre teologia sobre Jesus e teologia de Jesus que elaboramos no capítulo anterior.
3.5.4 - Um meta-modelo para ciência
Com essa discussão queremos indicar que o duplo pólo presente na ciência,
o preditivo e o explicativo, são constitutivos do fazer científico. Ainda, um meta-
modelo da ciência deve levar em consideração como historicamente a ciência se
desenvolve, isto é, o meta-modelo deve ele mesmo levar em conta a observação e
não permanecer na pura inteleção. Assim, do ponto de vista do realismo crítico, um
meta-modelo para a ciência deve ser consistente com a observação de como a
ciência é feita e de como uma boa ciência deve ser feita. Nesse sentido o realismo
crítico diz que a ciência contém os seguintes aspectos:
Empiria. Estes são os dados do mundo “objetivo”, colhidos pelos sentidos ou
ampliados por instrumentos. São as informações que provêm do “exterior” que serão
arrumadas e colocadas de modo coerente pelas teorias. É interessante notar que a
empiria pode ser tanto especializada por meio de instrumentos sofisticados, dos
quais o exemplo clássico é o telescópio de Galileu, como da experiência sensível do
mundo como ele se apresenta aos indivíduos no mundo da vida (ZIMAN 2002, p.
299).
Modelos e/ou teorias. Todo entendimento do mundo se por meio de
modelos, teorias que são abstrações, "mapas", por meio dos quais um conjunto de
fatos naturais são organizados de maneira “econômica”. Para construir um modelo,
qualquer idéia vale como inspiração (inclusive a arte, a religião, etc). Em um modelo,
quanto menor o número de hipóteses, melhor. Quanto maior o número de fatos
naturais explicados, melhor. Um modelo fornece também um ponto de partida para a
explicação do mundo. Importante em um modelo também é saber qual seu campo
de aplicabilidade, isto é, em que condições ele é válido. Essa idéia levou a alguns a
pensar mesmo que a ciência seria um recorte de teorias dipersas, com áreas
sobrepostas e outras áreas maiores inexploradas (Cf. CARTWRIGHT 1999)
formando mais uma colcha de retalhos com buracos do que uma representação
única do mundo. Pode-se também pensar que uma teoria é formada por um
conjunto de modelos, mas aqui não faremos muita distinção entre esses dois tipos.
Enfim, a relação entre o modelo e o mundo natural, é a da analogia. Em um paralelo
114
com a religião e a teologia, os modelos estariam mais para uma teologia específica,
ou para uma determinada imagem religiosa.
Previsão. Se uma teoria conseguir prever novos fenômenos, melhor. O poder
de previsão de novos fatos funciona como um seletor entre modelos concorrentes,
em um quase-darwinismo entre teorias. É difícil achar paralelos com a religião ou a
teologia, mas podemos arriscar que é naquelas formas de vida experimentadas e
que “deram certo”.
Comunidade. Para uma teoria ser considerada científica ela deve também ser
revista pela comunidade de especialistas. Aqui incluímos a revisão pelos pares, que
funciona como uma confirmação ou refutação das hipóteses teóricas. À medida que
a comunidade aprova/desaprova determinados modelos com base nos critérios
acima, estes acabam prevalecendo ou degenerando-se. É nesse ponto que entra a
idéia de Thomas Kuhn, no qual uma inteira comunidade pensa e reflete dentro de
determinados pressupostos, sua posição paradigmática. Eventualmente, um
conjunto fundamental de hipóteses sobre o mundo é mudado de maneira mais
rápida, produzindo a idéia de “revolução paradigmática”. Entretanto, os modelos
permanecem, como pode ser visto com a mecânica newtoniana, que ainda hoje é
largamente utilizada e ensinada. Grande parte da engenharia atual continua a se
basear em modelos tirados da física de Newton, o que indica que, conhecido o
campo de validade de um modelo e seu grau de precisão, ele ainda pode ser
utilizado. Um excesso de precisão em um mapa pode mesmo torná-lo inútil para nos
guiar.
Podemos resumir dizendo que “te ndo o realismo como parte integral e
significativa dos modelos ao mesmo tempo que mantendo o aspecto de tentativa dos
modelos nos leva ao realismo crítico” (JENNINGS 2006, p.16). Se o realismo crítico
explica a relação analógica entre o modelo e o mundo, na religião ele mostrará a
relação analógica entre o dizer teológico enquanto o extremo racional da religião, e
seus “objetos sobrenaturais” ou a experiência religiosa.
115
3.6 - CONCLUSÃO
Nesse capítulo procuramos caracterizar o conhecimento religioso como
aproximação ao mistério, como um conhecimento por familiaridade, como fruto do
desejo de verdade e em harmonia com as condições naturais da cognição religiosa
humana. Mostramos que o conhecimento religioso possui um caráter realista e é
plenamente consciente da condição provisória do conhecimento humano. Dado seu
caráter realista, o conhecimento religioso entende que a produção científica também
participa deste mesmo caráter de verdade intrínseco e, apesar de seu método ser
distinto da religião e da teologia, ela compartilha semelhanças estruturais: empiria,
teoria, comunidade, fé, etc.
Entendemos que essa é a posição tomada por Lubich, mesmo que
implicitamente, em suas considerações dos conhecimentos científicos. Podemos ver
isso em um texto dos anos 70 sob o título “Reflexões após os vôos espaciais” em
que ela diz:
Não é verdade que a ciência e a caminham cada uma por conta própria.
A fé ilumina a ciência e a ciência pode ser de ajuda à fé.
Tanto uma quanto a outra têm, de fato, um único objeto: a verdade, que
para uma pode ser aquela mais transcendente e invisível, que sustenta todo
o criado; enquanto para a outra aquela visível, que não esgota
perfeitamente a sua tarefa se não descobre a causa do todo.
45
(LUBICH
1978, p.129).
Notemos alguns temas. Inicialmente a declaração da interdependência
entre ciência e fé, em que esta última “ilumina a ciência”. Podemos entender isso por
meio da interação entre a visão de mundo que nasce da experiência da fé: ela
um sentido novo e uma ordenação nos conhecimentos científicos que eles não
tinham antes. Por exemplo, o próprio sentido de racionalidade do mundo pode ser
derivado da concepção de que Deus é a garantia desta ordem, apreensível pela
razão natural. A relação entre a encarnação de Cristo e a razão natural, isto é, que
Cristo assume com a encarnação também a razão natural, pode servir para se
pensar o pressuposto de racionalidade do mundo natural.
116
45
Non è vero che la scienza e la fede camminino ognuna per proprio conto. La fede illumina
la scienza e la scienza può essere di aiuto alla fede. L’una e l’altra infatti hanno un unico oggetto: la
verità, che per l’una può essere più quella trascendente ed invisibile, che regge tutto il creato; per
l’altra quella visibile, che non esaurisce perfettamente il suo compito se non scopre la causa del tutto.”
Outro aspecto é a orientação à verdade. Na citação acima a verdade é o
mesmo “objeto”, tanto para a ciência quanto para fé, mas logo depois especializada,
ou melhor, canalizada para ser vista por meios “mais transcendentes” e outros
“visíveis”. Por meio desta vontade de verdade, a ciência adquire uma orientação que
supera a atual tendência pragmática da produção de artefatos para adquirir um
sentido de serviço. Como esse serviço está intimamente vinculado às comunidade
da qual o pesquisador participa, o sentido ético do trabalho científico certamente
adquire outro valor.
A explicação em chave religiosa é “mais transcendente e invisível, que
sustenta todo o criado” (LUBICH 1978, p.129). Condensando a contemplação
mística e a compreensão teológica da criação, Lubich reconhece, implicitamente, o
lugar específico da cognição religiosa da natureza: perceber o mistério da criação, a
estrutura trinitária do real como mais fundamental do que as próprias leis físicas e
que pode ser percebida pelo místico. Ela continua:
Os místicos tiveram, com freqüência, intuições ou visões intelectuais daquilo
que nós, homens normais, não podemos ver. Eles, mais fortemente do que
o olho observa como distinto e separado: a flor, o céu, a fonte, o sol, a lua, o
mar, a noite, o dia, viram uma Luz amorosa que tudo sustenta e liga, como
se o criado fosse um único canto de amor; como se as pedras e neve,
prados e estrelas fossem no seu mais profundo ser de tal modo fundidos
com Ela e entre eles a resultar um criado como dom ao outro, uns como que
enamorados dos outros.
46
(ibidem, p.129)
Atrás da necessária discrição dizendo se referir à experiência dos místicos o
que Lubich faz é evidentemente comentar indiretamente sobre sua própria
experiência mística. Sem dúvida que a experiência mística se orienta no sentido da
reconciliação, nesse caso com a natureza, mas como pudemos ver, sempre uma
consciência da provisoriedade do que é dito, e isso por se tratar de um dizer
analógico para o interior do próprio mistério. Ainda, esta reconciliação acontece por
meio da chaga do Abandonado, assumindo assim o aspecto trágico completo da
existência humana.
117
46
“I mistici hanno avuto, non di rado, delle intuizioni o visioni intellettuali di ciò che noi, uomini
normali, non possiamo vedere. Essi, più forte di ciò che l’occhio osserva distinto e separato: il fiore, il
cielo, la sorgente, il sole, la luna, il mare, la notte, il giorno, hanno veduto una Luce amorosa che tutto
regge e tutto collega, come se il creato fosse un unico canto d’amore; come se pietre e neve, prati e
stelle fossero nel loro più profondo essere così fusi con Essa e fra loro da risultare l’uno creato in
dono all’altro, gli uni quasi innamorati degli altri.”
Mais adiante, ainda no mesmo texto, ela dirá que a ciência é como uma lente
que captura a luz do sol. A inteligência pode captar algo da realidade, como a lente,
mas é bem diverso o sol na realidade do sol na lente. Trata-se de uma consideração
do lugar da ciência em uma unidade de pensamento: os modelos e teorias servem
para mostrar parcialmente uma verdade. É um conhecimento sub specie naturae,
enquanto o conhecimento religioso o é sub specie aeternitatis.
Rossé (2009a) resume nossa tomada de posição de maneira muito clara:
A Criação, destinada à recapitulação, revela desde a lei divina escondida
que permanece como fundamento das relações entre as coisas, para além
das leis matemáticas e físicas (que a pode revelar): o amor. A recapitulação
universal em Cristo, que é para o universo o seu completamento
escatológico, fará brilhar esta lei de amor escondida entre as coisas, mas
pedirá também para o cosmos uma morte e uma ressureição (“do universo
será retirada a vida” (LUBICH)). Para se tornar aquilo que desde sempre
está no Verbo, também a criação deve seguir Jesus crucificado, estar
associada à sua morte: Jesus abandonado é de fato “o ponto... Onde o
nada se perde no Seio do Pai”
Na recapitulação universal sob obra do Pai em Cristo, o homem receberá
em herança um mundo reconciliado, transformado, liberado de qualquer
separação, de qualquer desarmonia, adaptado à nova condição dos filhos
de Deus. (ROSSÉ 2009a, p.374)
A reconciliação e recapitulação definitiva permanecem na esperança. Mas a
esperança é algo que acontece no presente, transformando a realidade circundante.
Desse modo, a heurística da OT, originariamente disparada pela caridade e
reforçada na fé, alimenta a esperança. A esperança é justamente que o universo,
conforme atualmente apresentado pelas ciências, contenha aqueles germes de
ressurreição que, em um tempo escatológico, Cristo será tudo em todos (Col 3,11).
Mas para que essa ressurreição aconteça, a morte imbricada no universo será
levada até as últimas consequências com um universo crucifixado. A desvelação do
amor de Deus presente na criação, portanto, não nega o sofrimento presente, mas o
ressignifica profundamente.
Quando Lubich exclama ter percebido a presença de Deus sob as coisas,
entendemos, portanto, que a codificação proposicional de um conhecimento
religioso verdadeiro sobre a estrutura trinitária presente no mundo, percebido
intuitivamente e posteriormente transformado em reflexão.
118
3.7 - EXCURSUS SOBRE O ASPECTO PROVISÓRIO DO CONHECIMENTO E A
TRAGÉDIA DE CONHECER
A característica provisória do conhecimento e, simultaneamente, sua
orientação à verdade presente no conhecimento religioso e científico, conforme
mostramos no debate do realismo crítico, é parte integrante da heurística da
ontologia trinitária (OT). Sendo a ciência uma atividade humana, seus construtos
participam da condição existencial própria humana. Ainda, o provisório também está
presente na produção científica. Não dúvidas que um dos aspectos da ontologia
trinitária é o problema da teodicéia e o sofrimento humano. O sofrimento abre um
vazio no espírito humano sobre o qual o desejo se orienta no sentido da reparação.
No cristianismo, esta reparação acontece por meio do Amor explicado no evento-
Cristo na sua face de Abandonado. Para a OT no mundo o sofrimento é uma
espécie de a priori para o Amor. A OT leva em consideração esse aspecto trágico
presente até suas últimas consequências: a estrutura Trinitária da realidade implica
que seus derivados também participam da condição trágica, inclusive o próprio
conhecimento.
Em seu livro A Dupla Face: Paul Tillich e a Ciência Moderna, Eduardo R. Cruz
(2008) aponta que a tragédia está vinculada à idéia da ambivalência presente na
ação científica, que é o conceito chave em sua obra. Não será possível esgotar o
assunto aqui, mas preliminarmente, a ambivalência é
uma expressão de uma característica fundamental de toda realidade
(principalmente histórica, mas em complementação com a natural), que se
manifesta em dois aspectos profundamente entrelaçados: primeiro, que a
realidade apresenta uma dupla face, contendo tanto o bem como o mal,
promessas e ameaças. Segundo, cada conquista, cada passo adiante ou
cada mutação envolvem um ganho e uma perda, um sucesso e um fracasso
(CRUZ 2008, p.13).
A ambivalência, em termos teológicos tradicionais, poderia ser aproximada
com o conceito de pecado original, entretanto não se refere a uma questão
simplesmente moral, mas a uma situação ontológica presente na realidade. A
tragédia contém um elemento de grandeza: os esforços do herói solitário em superar
sua condição; de desafio: uma barreira se interpõe entre o herói e suas aspirações;
um elemento de liberdade: o herói opta livremente pela superação; um elemento de
nobreza: estas escolhas são dignas; e um elemento de destino: irremediavelmente
119
ele fracassará. O caráter trágico está relacionado à ambivalência, principalmente na
reflexão da Cruz que revela e supera a ambivalência, pois o símbolo da cruz revela
o caráter doloroso da existência como tal em Jesus, seu aspecto trágico inevitável;
mostra o mal do mundo, pois é o maior pecado que poderia se cometer é condenar
à morte o Filho de Deus. No entanto, é na kenose completa que a inversão de
sentido do caráter trágico da existência e da realidade como tal é superada:
“tragédia é superada no espírito da tragédia” (ibidem, p. 42). A heurística da
ontologia trinitária compreende exatamente esse estado de coisas, pois a vida se
manifesta exatamente onde ela se esvai e isto está implicado no momento de
Abandono, de Unidade e de novidade/supresa presente no nó trinitário.
O aspecto trágico no conhecimento pode ainda ser identificado na distância
entre o conhecido e a realidade. Um permanente halo de ignorância que envolve a
realidade, em função de que nunca poderemos saber se possuímos todas as
informações necessárias em determinado contexto para atingir plenamente certo
conhecimento, apesar de todos os esforços intelectuais laudáveis. É possível
associar essa condição trágica do conhecimento humano também no que inclui a
inescapabilidade do elemento de sorte ou azar na descoberta. Em outras palavras,
não importam os esforços do herói, santo ou cientista, seu conhecimento está
inexoravelmente atrelado ao provisório: se for um santo, será sobre o conhecimento
de Deus, se for um cientista, será sobre os conhecimentos da natureza. Para o
pensamento científico, essa tragédia do conhecimento se manifesta na
impossibilidade de conhecer definitivamente: sempre aparecerão aspectos que
podem ser usados para invalidar modelos apresentados. Para o pensamento
teológico, a crítica apofática sempre afirmará que a linguagem não é suficiente para
falar de Deus. No entanto, ainda somos impelidos a falar de Deus e a elaborar
teorias científicas. Assim, com uma reflexão que parte da OT, podemos entender que
no conhecimento humano persiste uma kenose epistemológica: a medida de nossa
ignorância não pode ser medida, pois sabemos ignorar mais justamente quando
conhecemos mais.
Porém, dado que é por meio da kenose-abandono que o Cristo reconcilia o
gênero humano, o sentido da ignorância se altera a partir de seu interior. Jesus no
momento do abandono, encontra a maior das ignorâncias, a de incompreender os
120
planos do próprio Deus e, no entanto, por meio dessa ignorância ela se manifesta
como salvação. “Eles não sabem o que fazem” (Lc 23:34).
Mas, para além da tragédia presente no conhecimento, ao assumir a
humanidade, Jesus assume também a condição de estar sujeito às leis naturais. A
tragédia presente na cruz se exprime por meio de eventos físicos e biológicos: vigília
e sono, suor, acoites, sede, febre, agonia, morte. Os milagres, que poderiam ser
interpretados como um poder sobre as leis da natureza, em Jesus eram sempre
sinais do Amor - portanto, para os outros - e daí que o texto bíblico apresenta a
tentação de Jesus no deserto em forma de uso de um poder para si. Após a
Ressureição, a lógica da sujeição às leis naturais é invertida: Cristo não está mais
sujeito, mas é, por assim dizer, ele que as coloca a serviço da economia da
salvação, aparecendo e desaparecendo como convém aos discípulos, e inclusive
comendo peixe com eles, a indicar a permanência da materialidade no corpo
ressurreto.
Em Cristo, o atravessamento da Cruz indica a via da reconciliação com a
natureza. Porém, a interpretação deve ser atenta: é justamente por meio das
condições provisórias, precárias, estranhas, indiferentes, doloridas da situação
natural-biológica e do conhecimento que o homem compartilha com todos os outros
seres que se a possibilidade da vida, e não apesar delas. A OT interpreta a dor
natural e o sofrimento daí derivado como condição para o Amor. Deus assume,
assim, a precariedade da natureza e nossa estranheza em relação a ela direciona o
modo de preencher o vazio de sentido que aparentemente a contém. Em Cristo,
acontece um continuum na ruptura da Cruz entre a história natural e a história da
salvação, pois por meio dos mecanismos evolutivos Deus chega ao termo de seu
projeto de salvação.
121
CONCLUSÃO
Inicialmente procuramos apresentar as origens históricas de Lubich e como
se constituiu aquela comunidade ao seu redor. A partir da vivência nessa
comunidade gradativamente Lubich codificou aqueles que são chamados os pontos
específicos de sua espiritualidade, entendida como uma particular interpretação do
cristianismo que se traduz em forma de vida. Entre estes pontos os dois principais,
reconhecidos pela autora, são a unidade e Jesus abandonado.
Estes aspectos da sua espiritualidade serviram para indicar a direção que
tomamos no segundo capítulo, no qual investigamos sua profundidade teológica. Por
meio deles, em chave tipicamente cristã, Lubich reinterpreta o mundo ao seu redor:
relações humanas, constituição da sociedade, história e mundo natural seguem uma
mesma estrutura, a trinitária. Alguns argumentos mostram que essa compreensão
da estrutura trinitária do mundo, em Lubich expressas nos termos de Jesus
abandonado e unidade, é algo teologicamente coerente. 1) A nascente comunidade
cristã reinterpretou a crucifixação de Jesus saindo da maldição presente
anteriormente na Lei judaica para uma revelação do modo e a intensidade do amor
de Deus para os homens. 2) Essa reinterpretação acontece, justamente, na
comunidade, onde a manifestação do fato da ressurreição e da pentencostes
estava em curso. Isto indica que o inteiro a morte e ressurreição de cristo, que
chamamos evento-Cristo, é trinitário. 3) A comunidade é o lugar hermenêutico onde
se penetra no mistério pascal e que serve, a partir daí, para compreender a
realidade profunda da criação. A revelação inclui a estrutura trinitária agora presente
na criação. 4) Boaventura compreende Cristo como modelo do mundo. Lubich
reinterpretará essa tradição franciscana apresentando-a sob a imagem do sol e
raios. Ao exclamar a realidade de “Deus sob as coisas”, ela percebe a estrutura
trinitária presente na Criação em modo místico. Dizer que Cristo é o modelo do
criado é coerente com a estrutura trinitária do mundo criado, pois o evento pascal é
compreendido em chave trinitária também. 5) Com isto se constitui uma ontologia
trinitária: a conceitualização das coisas, eventos, homem, sofrimento e morte,
história, cosmo, relações, etc., lidas em chave trinitária onde os momentos de
kenose-abandono-esvaziamento, pericorese-unidade-retorno e novidade-Espírito-
122
vida se encadeiam em uma rede de significados para o homem que é análoga à
própria estrutura trinitária da criação.
Enfim, no terceiro capítulo mostramos que uma heurística da ontologia
trinitária é compatível com a estrutura natural da cognição humana com o auxílio das
ciências cognitivas. A heurística se caracteriza como um conhecimento específico
não redutível a outras formas. As características deste conhecimento indicam que
ele é análogo a um conhecimento empírico. Ainda, entre empiria religiosa e teologia
uma relação análoga à empiria física e teorias. Uma vez que o conhecimento
religioso é realista crítico, ele interpreta os conhecimentos científicos também como
contribuintes para a constituição de uma visão “estereográfica” da realidade, que
mostra a profundidade do real. Longe de considerar o conhecimento científico como
conflituoso, o conhecimento religioso reinterpreta a ciência como colaboradora à
explicitação sempre mais profunda do real que permanece, em última instância,
sempre um mistério. O conhecimento religioso, que em Chiara Lubich se exprime no
condensado “Deus sob as coisas” é mais um conhecimento percebido do que
codificado proposicionalmente. A compreensão religiosa do mundo, em Lubich, é
harmônica com os conhecimentos estritamente científicos, mas os interpreta por
meio da heurística da ontologia trinitária.
Nossa dissertação tratou de compreender dentro de quadros teológicos e
epistemológicos o pensamento espiritual religioso de Chiara Lubich sobre a
natureza. Como dissemos, ele não é separado de sua experiência vital do
cristianismo. Em suma, a aproximação do indivíduo ao evento-Cristo com a sua
consequente transformação interior, isto é, uma modificação profunda do desejo pelo
efeito da graça a partir do consentimento da liberdade, produz aquelas condições
cognitivas para que este perceba, pelo contato imediato com o mistério, a estrutura
trinitária do próprio evento-Cristo agora presente no mundo criado - no homem
primeiro e na criação em seguida, incluindo a natureza. Essa transformação da
subjetividade acontece pelo vínculo da caridade existente na ordem do mundo da
vida que permite a atualização do evento-Cristo na comunidade e é de tal modo
essencial na constituição do sujeito que se torna seu próprio ser. Isto é análogo ao
Deus trinitário, do qual se diz que é Amor, implicando que seu ser está
inexoravelmente vinculado às relações intratrinitárias. Se a experiência em Lubich é
123
inicialmente intutiva, por familiaridade ao dado de fazendo uso das faculdades
ordinárias da cognição humana, em seguida se tornará progressivamente refletida
em um continuum com essa mesma experiência. Deste modo o evento-Cristo
produz uma consequente epistemologia e ontologia trinitária: um particular modo de
interpretar o mundo ao redor - na vida humana primeiro e na criação e na natureza
em seguida. Os momentos identificados nessa estrutura são a kenose ou Abandono
e a pericorese ou Unidade, dos quais nasce o terceiro momento, o novo, o
inesperado, a criação, a vida, o Espírito. A interpretação da natureza em chave
religiosa é, portanto, uma heurística da estrutura trinitária, uma aproximação do
mistério. Essa aproximação é revestida de uma consciência da inadequação do
próprio conhecido, permancendo uma autocrítica ou consciência apofática - o
momento kenose no conhecimento. No entanto, ela é realista, uma aproximação
verdadeira de como as coisas realmente são - momento pericorese - e imprevisível
nas explicações futuras - momento novo.
A produção científica é interpretada, na heurística da ontologia trinitária, como
outra forma de expressão da mesma realidade. Os conhecimentos científicos são
uma possibilidade de exprimir também aquelas mesmas realidades que a ontologia
trinitária apresenta em chave religiosa. Nessa weltanschauung, a ordem do mundo,
sua racionalidade que é o pressuposto fundamental de toda atividade científica, é
garantida pela estrutura trinitária do mundo, suas vestigia, que se refletem em
crescente capacidade preditiva e explicativa, o que implica em uma crescente
responsabilidade. A percepção da estrutura trinitária do mundo natural reflete
também semelhanças com o pensamento franciscano, especialmente em
Boaventura: Cristo é o modelo do criado, revelando sua estrutura trinitária, pois o
evento-Cristo possui essa mesma estrutura.
O drama e a tragédia na transformação do mundo por meio da técnica que se
utiliza de conhecimentos científicos pode ser superado justamente na unidade
presente nas comunidades científica e religiosas, uma emprestando sua visão à
outra num processo de atualização do próprio evento-Cristo numa única comunidade
simultaneamente científica e de fé. O aspecto de provisoriedade do conhecimento
científico - e também teológico - é interpretado como expressão da kenose presente
no próprio conhecimento.
124
Entendemos que para Lubich uma harmonização dos conhecimentos
religiosos e científicos do mundo, ainda que sua manifestação seja incipiente. Para a
interpretação religiosa do mundo em chave cristã conforme vimos, colocar a relação
com as ciências naturais em chave conflituosa é desconhecer como opera o mundo
da vida próprio do cristianismo.
Para nós, a pesquisa científica, inclusive com seu naturalismo metodológico,
é necessária para poder compreender o mistério que é a realidade que nos circunda.
Isto não implica que devamos assumir um naturalismo metafísico. No caso do
cristianismo, a compreensão do mistério pascal diz que a profundidade da realidade,
inclusive natural, não se reduz a relações mecânicas. As relações mecânicas
expressas e codificadas nos conhecimentos científicos exprimem uma realidade que
fica envolta em mistério, um mistério que continuamente nos intriga e provoca um
desejo de conhecer. A experiência cristã e sua constituição de uma forma de vida
tornam-se, portanto, essenciais e orientadores para a próprio conhecimento da
realidade. Procurar entender o mundo com a inteleção separada da vida é continuar
com a cisão atualmente presente em campo científico com a fragmentação dos
conhecimentos e presente em campo religioso, ao achar que a religião se reduz à
esfera privada e negando a ela qualquer estatuto de conhecimento.
Dada a complexidade do argumento, uma dissertação de mestrado parece
apenas um enunciado de títulos. Demasiados argumentos ficam de fora, que
poderiam contribuir para o debate. Um melhor entendimento de como a estrutura
trinitária pode concretamente ser percebida no mundo natural é algo que foi somente
tocada superficialmente por nossa dissertação. Outro aspecto que futuramente
poderemos trabalhar é uma caracterização propriamente epistemológica da religião
como produtora de conhecimento e sua colocação no atual debate em filosofia do
conhecimento. Diversos autores que debatem a questão da relação da mais
propriamente teológica e sua relação com as ciências naturais tiveram de ser
deixados de lado e que poderiam participar do debate. Esperamos em um próximo
trabalho desenvolver melhor este aspecto.
Pensamos que, apesar dessas inevitáveis lacunas, nossa apresentação de
Lubich em sua compreensão religiosa da natureza pode servir de estímulo para um
125
melhor estudo acadêmico em ciências da religião deste phenomena. Ainda,
pensamos que nosso trabalho também pode contribuir em outro sentido. Para que
uma forma de vida cristã influencie positivamente a sociedade primeiramente ela
deve criar a própria comunidade e as relações, mas em seguida tem de se
transformar em conhecimentos teóricos sobre o mundo a partir daquela forma de
vida. Enfim, um mestrado é o início de uma pesquisa e a tomada de consciência de
sua provisoriedade produz a sensação de que ele deveria ser reescrito no próprio
ato de sua conclusão.
126
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140
ANEXO – TEXTOS DE CHIARA LUBICH
IMAGEM DO SOL E RAIOS
Aqui procuramos fazer a reconstrução do texto original da imagem do sol e
raios divergentes/convergentes na criação a partir dos dois artigos de Blaumeiser e
Rossé. O texto maior aparece recentemente em Rossé (2009), porém, faltando um
fragmento presente em Blaumeiser.
Blaumeiser, p.563
Rossé, p.822
Rossé 2009, p.514
“Il Padre ha un’espressione di Sé
fuori di Sé, fatta come di raggi
divergenti, ed una dentro di Sé,
fatta di raggi convergenti nel
centro, in un punto che è l’Amore:
Dio nell’infinitamente piccolo: il
Nulla-Tutto dell’Amore! Il Verbo.”
Il Padre ha un’espressione di Sé
fuori di Sé, fatta come di raggi
divergenti ed una dentro di Sé,
fatta di raggi convergenti nel
centro, in un punto che è l’Amore:
Dio nell’infinitamente piccolo: il
“Nulla-Tutto dell’Amore! Il Verbo
I raggi divergenti sono Gesù: per
mezzo di Gesù il Padre arriva a
tutti i figli fuori di Sé in qualsiasi
punto essi si trovino.
Questi man mano s’avvicinano a
Dio, camminando nella volontà di
Dio (essendo Gesù), s’avvicinano
tra di loro.
I raggi convergenti nel cuore del
sole, che è il Padre, sono la
Parola di dio, Verbo che
convergono nel Verbo (...?). Il
Padre dice ‘Amore’ in infiniti toni e
genera la Parola, che è amore,
dentro di Sé, il Figlio, ed il Figlio
quale è, eco del Padre, dice
‘Amore’ e torna al Padre.
I raggi convergenti nel cuore del
Sole, che è il Padre sono Parola
di Dio. Verbo che convergono nel
Verbo.
Il Padre dice: “Amore” in infiniti
toni e genera la Parola, che è
amore, dentro di Sé, il Figlio, ed il
Figlio quale è, eco del Padre, dice
“Amore” e torna al Padre!
Ma tutte le anime che sono nel
Seno del Padre (arrivate
camminando lungo il raggio
esterno, essendo “Gesù”)
rispondono all’eco del Padre (=
rispondono al Padre), anzi sono
anche esse Parola del Padre, che
risponde al Padre.
Così tutto il Paradiso è un canto
che risuona d’ogni dove: “Amor,
amor, amor, amor, amor”.
Le idee delle cose erano nel
Verbo ed il Padre le proiettava
fuori di Sé.
141
Compresi che dal Padre uscirono
quei raggi divergenti quando creò
tutte le cose e quei raggi diedero
l’Ordine che è Vita e Amore e
Verità.
Compresi che dal Padre uscirono
quei raggi divergenti quando creò
tutte le cose e quei raggi diedero
l’Ordine, che è Vita, e Amore e
Verità
Compresi che dal Padre uscirono
quei raggi divergneti quando creò
tutte le cose e quei raggi diedero
l’Ordine che è Vita e Amore e
Verità;
le idee delle cose erano nel Verbo
ed il Padre le proiettava fuori di
Sé.
Ora, alla fine, il Padre ritirerà quei
raggi che da divergenti
diverranno convergenti e
s’incontreranno nel Seno Suo.
Ora, alla fine, il padre ritirerà quei
raggi che da divergenti
diverranno convergenti e
s’incontreranno nel Seno suo.
Al di qua del Paradiso [e cioè
fuori del Seno del padre] rimarrà
l’Inferno.
Rimarrà come la materia senza
la vita, senza l’ordine, senza
l’amore.
RELATO DA CONTEMPLAÇÃO MÍSTICA 1949
47
Artigo de Chiara Lubich em Nuova Umanità, de título “O PARAÍSO DE 49”, v.
177 de 2008, sobre o período místico. Em algumas páginas extremamente densas,
Chiara Lubich descreve a experiência mística que ela tinha feito no Verão de 1949,
seis anos depois do início do Movimento dos Focolares, quando os principais pontos
da nova espiritualidade surgiram após um período de intensa vida evangélica.
“O PARAÍSO DE 49”
!
Oberiberg (Suíça), Festa de São Paulo, 30 de junho de 1961
ENTRADA NO PAI
Estávamos procurando viver os princípios da nossa espiritualidade
com grande intensidade: o momento presente, o amor recíproco, a Palavra de Deus.
Procuramos nos identificar com a Palavra de Deus, com a qual fazíamos a
nossa comunhão.
142
47
Notas e tradução de Iracema do Amaral.
!
Segundo quanto Chiara Lubich lembrava.
Eram três as nossas comunhões obrigatórias: com Jesus Eucaristia, com o
irmão, com a Palavra de Deus.
Fazia cinco anos que estávamos meditando e vivendo as Palavras da
Escritura, até que na primavera de 1949 percebi que os efeitos das diversas
Palavras na nossa vida eram quase iguais ou mesmo iguais, como se a substância
de cada palavra fosse "amor".
anos pensávamos que, assim como na Hóstia Santa Jesus está por
inteiro, mas também num seu fragmento, também no Evangelho está Jesus por
inteiro, tal como em cada uma de suas Palavras, com o sentido completo.
Mas era o que experimentávamos.
De forma que foi se apagando em mim o desejo de continuar esta prática, não
porque não era útil ou por negligência, mas porque tinha atingido o seu objetivo
48
.
Não lembro como foi a passagem, mas naquele tempo foi se radicando em
mim num modo forte a convicção, e a prática correspondente, de que Jesus
abandonado de certa forma resumia todo o Evangelho. E que, tendo-o amado, todas
as virtudes teriam florescido.
Ele nos parecia a síntese da ascese que Deus nos propunha e, vivendo Ele,
teríamos podido viver Cristo em nós.
Em Jesus abandonado estavam todos os sofrimentos, todos os amores, todas
as virtudes, todos os pecados (pois Ele se fez "pecado") e nele todos nós nos
reconhecíamos em cada instante da vida.
Ele era a síntese dos sofrimentos físicos, tão próximo da morte, e dos
sofrimentos morais, espirituais.
143
48
Com essas expressões, Chiara não pretende desvalorizar a prática da vivência da Palavra,
mas ressaltar a centralidade de Jesus abandonado que, naquele momento, se tornava o “Tudo”
para ela. Numa anotação sucessiva, com efeito, considerando o conjunto da experiência no verão de
1949, ela escreverá: «É belo o fato de que também a experiência mística mais elevada que vivemos
nunca nos detém na sua contemplação, mas nos estimula a viver a Palavra com intensidade cada
vez maior».
Era a síntese dos amores: Ele era "pai" por nos ter gerado de novo. Era "mãe"
nas dores do parto divino; era irmão, amigo.
Era a síntese das virtudes: o puro, a ponto de estar desapegado de qualquer
consolação divina, Ele, que era Deus; o pobre de tudo... até do sentido da sua
divindade; era o obediente, porque perdia tudo no Pai, que é a sua Autoridade.
De fato, Jesus naquele grito nos parecia ser dor e amor ao mesmo tempo.
Ele se fez "pecado" por nós, pecadores, rebelião, divisão, ex-comunhão, etc.,
por amor. Não sei como conjugar estes dois termos: amor e dor que, em Jesus
abandonado, nos pareciam uma coisa só, de modo que um não teria existido sem o
outro.
Vivendo Jesus abandonado, chegamos a compreender quanto Ele se anulou
e no nada estava a nossa vida. Ser como Ele, por amor dele, aquele nada que
realmente somos. Nós, nada; Ele, tudo.
Naquela época, verificou-se um profundíssimo encontro de almas com Foco
49
,
quando ele veio a Fiera
50
e eu falava com ele, tendo encontrado nele uma alma que
jamais tinha encontrado. Diversamente das “popas”
51
, Foco tinha uma graça
especial para compreender este Ideal que Deus me deu, dando-lhe a importância
que merece.
A sua pessoa trazia claramente uma especial presença de Jesus no nosso
meio, que me deixava feliz e me mostrava as coisas diferentes de como as tinha
visto antes.
Cada encontro com Foco, cada discurso, eu o repetia depois às focolarinas
literalmente e com o mesmo calor que sentia, para fazê-las participar de tudo. Além
dos mais, me parecia que o que não é útil para a humanidade ou pelo menos para
os outros, não tinha valor. Além disso, eu contava tudo para que conservasse a
144
49
Igino Giordani, ilustre escritor, estudioso do cristianismo, político de grande estatura moral.
50
Fiera di Primiero, um pequeno centro da região de Trento, onde Chiara passava um certo
período de repouso.
51
Palavra do dialeto trentino, que significa "crianças", com a qual Chiara chamava as
focolarinas. A sua tradução nos faz pensar nas "pequenas" e nos "pequenos" do Evangelho.
transparência divina e não se acrescentassem elementos "humanos"
52
, que
estragaria tudo.
Lembro que naqueles dias a natureza me parecia toda envolvida pelo sol. No
aspecto físico era assim, mas me parecia que um sol mais forte envolvesse a
natureza, a embebesse, de modo que me parecia toda “enamorada”. Via as coisas,
os rios, as plantas, os prados, a relva, ligados entre eles por um vínculo de amor, no
qual cada um tinha um porquê de amor em relação aos outros.
Era um fenômeno semelhante, contudo universalizado, ao que se passou
comigo quando eu tinha 20 anos e voltava da Obra Seráfica
53
cantando as ave-
marias do rosário. Nessa ocasião tive a impressão de ver uma flor de castanheiro-
da-índia animada por uma vida superior, que a sustentava por baixo, e que parecia
vir na minha direção.
Nesse clima incandescente, em que, dentro de mim as palavras de Deus se
fundiam em Jesus abandonado, "expressão" máxima, para nós, de Jesus, do
Salvador, e a natureza me parecia impregnada de amor, aconteceu a entrada no Pai.
Foco, movido pelo desejo de servir a Deus, me propôs fazer um voto de
obediência.
Eu não via a necessidade disso e esse desejo não se harmonizava com o
meu Ideal que era “vida como Corpo místico” (para mim, expressão máxima da vida
cristã). Mas para não desperdiçar este ato de amor que Foco queria fazer a Deus,
eu lhe fiz a proposta de trocá-lo.
De manhã, na Santa Comunhão, nós dois teríamos pedido a Jesus Eucaristia
que, no nosso nada, pactuasse a unidade.
E foi o que fizemos com uma fé plena e com amor.
Enquanto Foco foi visitar os frades do Convento ao lado da Igreja, eu me
ajoelhei diante do Santíssimo Sacramento para rezar a Jesus, mas me foi
145
52
Humano: no sentido de um nivelamento da experiência cristã com a banalidade de uma
vida não aberta ao divino e por ele plasmada.
53
Um Instituto de Trento, onde Chiara ensinava, ainda muito jovem.
impossível. Não conseguia pronunciar a palavra: Jesus, porque teria sido como
invocar Alguém que eu percebia estar identificado comigo, Aquele que naquele
momento eu era.
Tive a impressão de me encontrar no pico de uma montanha altíssima, a mais
alta possível, que termina numa ponta, numa ponta de alfinete: única e alta, mas que
não era amor (e isso provocou em mim uma momentânea angústia) a ponto de
considerar que, ser até mesmo Deus, mas não ser trino, teria sido um inferno.
E naquele instante despontou nos meus lábios a Palavra "Pai" e reencontrei a
comunhão em meio à surpresa e à alegria.
Contei tudo a Foco e, não sei em que momento daquele dia, como por uma
visão, cujo instrumento foram os olhos da alma, me encontrei in sinu Patris, que se
apresentava a mim como o interior de um sol todo de ouro ou de chamas de ouro,
infinito, mas que não me chocava.
Digamos que esta visão, como bem recordo, ficou clara somente quando
também as “focolarinas” fizeram, sobre o nada delas, o mesmo pacto com Jesus
Eucaristia, para se unirem conosco.
Eu via esta pequena brigada de criaturas no sol.
Desde então chamei de "Alma" aquela Una que unia a todos nós. E por dois
meses, enquanto as visões intelectuais e imaginárias se sucederam o que acho,
embora eu possa errar redondamente)
54
, se falou sempre da Alma.
dentro tínhamos a impressão de nos encontrar no Céu. Havia sobretudo
um respiro infinito, amplo, jamais experimentado, e as nossas almas se sentiam à
vontade.
146
54
Usando a linguagem teológica do tempo, Chiara menciona os modos nos quais Deus pode
se revelar na experiência mística: com "visões" sobrenaturais, que comportam imagens interiores
(visões imaginárias) ou com visões interiores sem alguma imagem (visões intelectuais).
Na Comunhão dos dias seguintes a "Alma" tinha consciência de se comunicar
com Deus e, portanto, de dar passos adiante no divino. Durante o dia essas
"Realidades", assim como eram chamadas e assim as sentíamos, eram vividas por
todas nós unidas de uma forma única, talvez por essas graças especiais.
À tarde, durante a meditação, que durava cerca de meia hora, todas tínhamos
a cautela de deixar a alma na mais absoluta passividade, para que Deus, se assim
desejasse, pudesse comunicar a si mesmo. E as minhas companheiras faziam calar
nelas tudo, inclusive o que podia ser uma inspiração, para que a unidade comigo
fosse perfeita.
E durante a meditação, novas manifestações se sucediam e eu tinha o
cuidado de comunicá-las logo às outras focolarinas, porque as sentia um patrimônio
comum e para que todas pudéssemos nos inserir naquelas novas Realidades.
O FILHO
Creio que no terceiro dia, estando nós no Seio do Pai, tivemos a manifestação
do Filho. Lembro que foi de uma luminosidade extraordinária, mas acho que me
faltam todos os elementos para poder descrevê-la agora.
sei que das paredes do Sol foi pronunciada pelo Pai a palavra: Amor e
esta Palavra, recolhendo-se no coração do Pai, era o Filho.
Fora, à tarde, na natureza, um pôr-do-sol majestoso, que era ainda mais
bonito por causa do grande Sol que resplandecia em nós, parecia confirmar esta
"visão". E pelo que lembro agora, se lembro bem, os longos raios que, como
flechadas de luz, acariciavam o céu azul, enquanto o disco tinha se escondido por
trás das montanhas
55
, nos deram uma idéia do Verbo, como luz do Pai, esplendor
do Pai.
Tudo, naqueles dias, ajudava a compor o “Paraíso” dentro e fora de nós,
parecia que os elementos, os homens e os acontecimentos fossem eles mesmos
147
55
NdT
atores no drama divino que capturou a nossa alma por muito tempo. Como se uma
única Sabedoria divina dispusesse tudo em cenários sempre novos.
Ao se manifestar o Filho, eis uma experiência que, para nós, está impregnada
de conteúdo e é conforme à Verdade
Íamos entrando na Santíssima Trindade e o que se tinha manifestado antes
permanecia, subsistia.
Se agora era a vez do Filho, na nossa alma o Pai permanecia no seu lugar
como Deus, presente.
E a vida vivida antes dessa "entrada" nos parecia mais uma "subida" na
realização da vontade divina, cada um no próprio raio, até chegar a hora da "fusão"
em Jesus e de ser admitidos juntos na casa do Pai.
MARIA
Estávamos convencidas de que, se houvesse outra manifestação, podia
ser aquela do Espírito Santo. Antes de entrar na igreja todas nós tentávamos
adivinhar o que Deus teria feito. E dizíamos o que pensávamos como fruto de um
raciocínio próprio, de uma lógica humana. Mas o dizíamos, convencidas de que não
teria sido assim, porque [aquilo que acontecia] não era obra de um homem, mas de
Deus, cuja lógica nos transcende, a comunhão com Ele não é resultado de um
cálculo nem de síntese humana.
E foi sempre assim.
Naquele dia, compreendi Maria, creio que com uma visão intelectual, como
jamais a tinha visto. E agora se passaram doze anos daquele dia, mas ainda tenho a
nítida impressão de "grandeza" impensável, que esta descoberta da Mãe de Deus
no Seio do Pai suscitou em nós.
148
Como o azul do Céu contém o sol e a lua e as estrelas, assim me pareceu
Maria, feita por Deus tão grande a ponto de conter Deus mesmo no Verbo.
Eu nunca tive um conceito semelhante de Maria, mas ali ficou gravada na
minha alma a sua divina grandeza, num modo que não sei descrever.
Digo só que nenhum raciocínio humano seria capaz de dar uma idéia.
Ali, a visão produzia a convicção.
E nós pensamos que, provavelmente, o Espírito Santo tinha cedido o lugar a
Maria na sucessão dos quadros divinos, porque é seu Esposo. E nos pareceu que o
Verbo queria apresentar a "Alma" a Maria, antes de “desposá-la”. E acho que foi o
que aconteceu, pois a "Alma" não se sentiu como antes, mas se sentiu "Igreja":
aquele pequeno grupo de almas, mergulhados no Seio do Pai, se sentiu Igreja.
O ESPÍRITO SANTO
Creio que foi no quarto dia que, como de costume, todas recolhidas em
meditação diante da bela estátua de Maria
56
, tive a impressão de que saísse do
sacrário uma brisa, em forma de zéfiro e tocava de leve o meu rosto.
Duvidei muito após esse fato físico, mas anos depois constatei que nenhuma
janela podia estar aberta ao lado do sacrário. Aquela "brisa" era como a respiração
de Jesus, a atmosfera do Seu Coração.
Depois eu vi com uma visão imaginária partir do sacrário uma pomba
branca, com asas abertas e voar na altura do rosto [da estátua] de Maria e rodar
várias vezes acima de nós e depois parar como numa atitude de quem ia iluminar,
mas não iluminou.
Compreendi que o Espírito Santo era a atmosfera do Céu, no Seio do Pai.
Saindo, não tive a coragem de dizer às minhas companheiras o acontecido,
mas olhando para o céu vermelho como o fogo, vi, pousados nos fios da luz elétrica,
três passarinhos. E vi outro partir por detrás da igreja e voar por cima de nós. Ainda
149
56
Uma estátua da Virgem, feita de madeira, na Igreja de Tonadico di Primiero;
absorta naquilo que tinha acontecido na igreja, tomei coragem para falar, parecendo
que aqueles três passarinhos eram um símbolo minúsculo de que cada Pessoa da
Trindade é Deus e que o Espírito Santo é Deus.
***
Assim se encerrou o primeiro capítulo dessa história, que mais recordo.
Lembro o resto com uma certa desordem, sem a sucessão direta dos quadros
que foram, se dizia, cerca de cento e cinqüenta.
Eles nos fizeram compreender o Reino dos Céus, porque se tratava de
diversos Céus, um mais lindo do que o outro, ligados sempre à nossa vida de união
com Deus naquela Realidade em que a Alma-Igreja se encontrava –, à comunhão
perfeita entre nós e sobretudo com Jesus Eucaristia.
Naquele tempo eu estava convencida de que Deus tivesse conduzido a
"Alma" pelo Reino dos Céus como numa viagem de núpcias divinas e que todo o
Verbo se teria revelado a mim, segundo as minhas possibilidades de "compreender".
OUTROS QUADROS
No divino abismo de amor e de luz, em que se caminhava, nessa altura eu
esperava que me fossem apresentados os Santos, mas não foi assim. Não estou
certa, mas acho que o único santo que vi "intelectualmente" foi São José.
Outra vez, decidimos "consagrar" acho que foi numa festa de Nossa
Senhora – a "Alma" a Maria.
150
Saímos da igreja com a impressão de que a "Alma" era "sagrada" com Maria,
feita Maria, como se o nosso destino fosse “ser Maria”.
Não sei se foi dessa vez, mas tive essa compreensão de que nós devíamos
ser uma sua pequena reprodução de Maria, assim como Chiaretta, a minha
sobrinha, que na época se parecia muito a mim, parecia ser mais filha minha do que
de sua mãe.
Nós devíamos ser perfeitamente Maria, só filhas dela, outras Ela.
Outra vez vi Maria no Céu na posição– digamosde ancella di Dio: mínima
no infinito, como se estivesse toda recolhida de joelho, em adoração.
Outro quadro, que recordo, é aquele que parecia representar o meu lugar no
Céu. Tive a impressão de estar no centro de um anfiteatro vivo, composto pelas
minhas companheiras (ao meu redor), por jovens, atrás dos quais, em forma radial,
estavam as Ordens Religiosas. Eu dava o e me sentia coberta, mas não sei como
me exprimir, por um véu.
Este quadro me encheu de alegria, mas não me exaltou. Dizia que tinha o
efeito de quando Santa Teresa teve a visão do lugar dela no inferno (se não se
tivesse emendado); eu via o meu lugar no Paraíso (se tivesse correspondido).
Achava lógico que, numa espiritualidade a “Corpo místico”, onde Cristo está entre
nós, tivesse que ver o positivo.
Outra vez, depois da Consagração a Maria, ouvi uma palavra na alma que
significava para mim “em gestação” e me pareceu que Deus quisesse repetir
misticamente com o Alma, consagrada "Maria", uma encarnação.
Céu e terra festejavam, com um tripúdio de alegria inenarrável, o evento e
enquanto subia até San Vittore
57
a minha alma cantava: «Tácita um dia não sei em
151
57
Outra igreja de Tonadico;
qual escarpada...»
58
; enquanto na igreja, e não era comum, se cantava o Magnificat,
e fora a sacristã fechava o cemitério, ressaltando para nós uma presença mais rica
de Jesus na Terra, da vida que venceu a morte, daquele que ressuscitou.
Um dia no Seio do Pai que, para nós, era sempre como o interior de um Sol
infinito, aconteceu uma grande transformação e nos encontramos numa paisagem
celeste, com todos os elementos que compõem a Terra, em cores.
Lembro de árvores, atalhos, nascentes e, creio, flores e passarinhos, e
compreendi que no Alto será como aqui, mas em Deus. Diante dessa nova visão,
que finalmente me revelava o interior do Paraíso, pensei que antes teríamos tido que
sofrer um pouco, não vendo nada. Ao invés, não foi assim. O Céu é sempre Céu e
embora seja imenso, nele não nos sentimos sós.
no Céu nos parecia que todas as vezes que as almas se encontram,
formam entre elas um novo céu espiritual, continuamente diferente, variado e
celestial pela participação da vida Trinitária sempre nova.
Do Paraíso vi a criação. O Pai, olhando no Filho, criou e do Centro do Sol
partiam como que raios divergentes, saindo do Sol.
No final dos tempos Deus teria retirado aqueles raios que de divergentes se
tornariam convergentes e, no seio de Deus, teríamos Céus novos e Terra nova.
Na Terra não existia a idéia do pinheiro, por exemplo, que estava no Verbo,
porque as plantas possuem o próprio ser no homem e o homem, por sua vez, em
Cristo, que reconduz a criação ao Seio do Pai.
152
58
Palavras de Manzoni sobre a Virgem, que se cantavam na igreja (n.d.t.);
No Céu compreendi que a natureza criada tinha o timbre da Trindade. A
matéria era como o Pai, a lei era como o Verbo, a Vida era como o Espírito Santo.
Em contraste, não lembro quando, tive a impressão de compreender um
pouco o inferno.
Pareceu-me entender que Jesus abandonado, naquele grito, que era a
salvação dos redimidos, tivesse sido a justiça dos condenados.
E que Ele, não sei como, eternizasse o inferno.
Do Céu, porém, o infernograças a Jesus abandonado era visto invertido,
no sentido de que cada falta de unidade seria, para os bem-aventurados, unidade e
que em Jesus abandonado o inferno era o Paraíso do Paraíso.
Jesus abandonado, tendo-se feito "pecado", se fez inferno. Mas Ele é Deus e,
no Paraíso, se vê Deus.
Eu achava que, em virtude de Jesus abandonado, o dualismo do Além era
anulado e que Jesus abandonado era a solução, o contato dos dois reinos, onde
num se vive a Vida Eterna e no outro a Morte Eterna.
No inferno nada teria realizado a unidade, porque não existia o amor. No
inferno se estava na impossibilidade de amar.
O inferno era como o cadáver da natureza, que tem olhos para ver, mas não
vêem, ouvidos para ouvir eo ouvem, etc. Tudo construído para tender a Deus, o
Qual eternamente nunca mais poderão alcançar. E cada encontro de almas era para
se separar ainda mais numa divisão cada vez mais trágica.
153
O calor não teria feito unidade com o frio e nunca teria existido o morno.
calor ou só o frio. Fogo e ranger de dentes.
***
Recordo que, nas últimas "realidades" do Paraíso, nós éramos “Corpo místico
de Cristo”.
E lembro que a última "visão" foi esta: todos aqueles Céus, que tínhamos
visto e vivido e possuíamos como a coisa mais sagrada, incrivelmente sagrada, por
intervenção de uma nova dimensão, desapareceram. Mas não foi um apagar-se; foi
um sublimar-se, porque cada um de nós sentia que trazia em si, distintamente, o que
até aquele instante nos pareceu um patrimônio comum.
E voltamos de Fiera com este tesouro no coração.
Eu o queria deixar o Paraíso. Não podia aceitar de ter que me afastar
daquele Céu onde, por cerca de dois meses, vivemos. Não via o motivo e não o
compreendia: não era por apego ou por extravagância, mas por incapacidade de me
adaptar à Terra, depois de me ter acostumado com o Céu. Pensava que Deus não
pudesse desejar isso.
Foi Foco que me deu coragem, abrindo-me os olhos, quando me lembrou de
que Jesus abandonado era o meu Ideal e que devia amá-lo na humanidade que me
esperava. Foi então que, com o coração partido e chorando, escrevi: «Tenho um
Esposo na Terra. Não tenho outro Deus fora dele. Nele está toda a humanidade,
nele a Trindade. O que me faz sofrer é meu. Irei pelo mundo...»
154
TRINDADE, ONTOLOGIA E CRIAÇÃO
O trecho abaixo foi extraído de Ideal e Luz, São Paulo: Brasiliense, 2003.
Páginas 264 a 269, procura mostrar a idéia de ontologia trinitária nos termos da
própria autora e, em seguida, a compreensão da criação.
O carisma da unidade e a filosofia
Existe tabmém uma nova filosofia que jorra da vida do carisma da unidade.
A filosofia, como se diz, é a ciência dos “porquês”, no sentido de que ela
busca sondar as interrogações que o homem se faz e, na medida do possível, tenta
responder a elas.
Assim, depois de anos de uma intensa vivência espiritual, dentro dessa nova
espiritualidade, tomamos consciência de que existe um momento na vida de Jesus
pleno de respostas para cada um dos nossos “porquês”.
É o momento do grande, do imenso “por quê” dirigido por Jesus a Deus, anes
de morrer, naquele seu misterioso grito: “Deus meu, Deus meu, por que me
abandonaste?”.
Numa primeira etapa, todavia justamente quando decidimos segui-lo desse
modo –, não nos sentimos estimulados tanto a meditar e formular a doutrina que
podia estar subjacente a esse grito; em vez disso, descobrimos imediatamente nele
a chave para recompor todo tipo de unidade.
Foi colocando Jesus Abandonado como ideal de vida que se teve a coragem
de correr até lá onde ele está mais presente e amando-o, consumando-o em nós
de trabalhar para lenir as dores e fazer florescer a unidade. Mas Jesus Abandonado
não se apresentou a nós apenas como resposta às questões existenciais do
homem.
155
Ele um Deus que pergunta a Deus o porquê de uma dilaceração que parece
afetar a própria unidade de Deus! é, certamente, por assim dizer, o indagar levado
à sua expressão mais radical, à qual nenhuma indagação humano ousa chegar, e
por isso poderia ser aquele que mais representa a inteligência humana diante do
mistério.
Mas, ao mesmo tempo, Ele grita o seu grande “por quê” justamente para dar-
nos resposta também a muitos dos nossos porquês, objeto da reflexão filosófica,
como a Escola Abbá procura evidenciar.
Relembro, aqui, de modo sumário e simples, dois âmbitos dessa reflexão.
Vejamos o primeiro: o mistério do ser.
Qual a resposta que Ele nos dá?
Qualquer que seja a definição presente nas linguagens das diversas culturas,
a afirmação original do pensamento humano é: o ser é. Estáo reconhecimento do
grande mar da existência no qual o homem se encontra imerso, em comunhão com
todos e com tudo.
É esta a certeza primordial, unitária e simplicíssima, da qual se pode partir
para penetrar nos meandros múltiplos e complexos da realidade.
Tudo pode ser negado, mas o ser, não.
O ser nos é oferecido por tudo o que nos está próximo, que está em volta de
nós (as várias realidades) ou em nós ( a nossa interioridade).
O existir das menores coisas, como também o das maiores, proclama com
todo o próprio ser: o ser é.
E é esse ser comum a todas as realidades, e pelo qual elas não são um
nada que revela, numa manifestação natural, aquele Ser que nenhuma delas é,
mas que em todas se anuncia. O devir delas, os seus limites, o seu próprio cessar
de existir são uma linguagem que expressa que o ser de tudo o que existe tem a sua
raiz num Ser que simplesmente e absolutamente É.
156
Referindo-se ao Sol, são Francisco, com a linguagem do poeta e a
profundidade do místico, dizia: “É de Ti, ó Altíssimo, que ele ganha significado”.
O mesmo se pode dizer da nossa interioridade. A consciência que o homem
tem de si, desde o início da reflexão filosófica, especialmente se iluminada pela fé, é
reconhecimento do ser que, na consciência, é luz e, ao mesmo tempo, é confissão
do Ser Absoluto, da Luz puríssima que não conhece sombra nem erros, e que a luz
mesma que brilha na consciência do homem invoca e procura como sua garantia,
certeza e porto final.
Ou seja, para o homem, dizer “eu” é abrir-se à possibilidade de dizer, na
comunhão com o ser de todas as coisas, que o Ser Absoluto é.
No entanto, o caminho feito pela filosofia no Ocidente viu ofuscarem-se essas
certezas iniciais. A consciência de si foie évivida como antitética à objetividade
do ser. E se fechou ao Ser Absoluto.
Daí a grande crise que marca os últimos séculos.
Ora, podemos nos perguntar: mas será verdade que a consciência de si e a
afirmação do ser como realidade em si, chegando ao reconhecimento do ser
Absoluto, não poderiam coexistir?
Ou, melhor ainda, por acaso a própria crise não nos convoca a aprofundar
tanto o conceito do sujeito quanto o do ser em toda a sua amplitude? E, assim,
compreender que a dificuldade de hoje é, no fundo a invocação de uma solução
nova, madura, na qual o carisma cristão brilhe com toda a sua força?
É que aparece Jesus Abandonado como mestre de luz, de pensamento, de
filosofia (ousaria dizê-lo), justamente sobre este ponto.
Se alguém que pensa que afirmar o eu seja lutar contra tudo o que não é o
eu uma vez que o-que-não-é-o-eu é percebido como limite e, mais ainda, como
ameaça à integridade do eu –, Jesus Abandonado, naquele terrível momento da sua
Paixão, diz-nos que a consciência da sua subjetividade, enquanto parece esvair-se,
tendo-se Ele aniquilado, justamente então está em sua plenitude.
157
Ele nos revela com o seu ser reduzido a nada, aceito por amor ao Pai, ao
qual volta a se entregar (“Em tuas mãos entrego o meu espírito” [Lucas 23,46])
que eu sou eu não quando me fecho ao outro, mas quando me entrego, quando me
perco no outro por amor. Se, por exemplo, tenho uma flor e a dou, claro que me
privo dela, e assim, nesse privar-me, perco alguma coisa de mimo não-ser); na
realidade, justamente porque dou essa flor, cresce em mim o amor (o ser). Portanto,
a minha subjetividade é quando, por amor, não-é, ou seja, quando se transfere
totalmente ao outro, por amor.
Jesus Abandonado é a revelação máxima da consciência como afirmação de
si próprio, enquanto se doa ao outro, a uma alteridade que, em sua extensão
máxima, é justamente o ser. A autêntica consciência de si é aquela que surge da
comunhão com o ser: uma comunhão na qual a consciência parece perder-se, mas,
com efeito, se encontra, é.
Jesus Abandonado ilumina, assim, o ser, revelando-o como amor. E com isso
nos revela que o próprio Ser Absoluto é Amor, como afirma a Primeira Carta de João
(1 João 4,8.12).
É Amor na realidade das três divinas Pessoas, em relação dinâmica Uma com
a Outra, Uma pela Outra, Uma na Outra.
São três as Pessoas da Santíssima Trindade, mas são Um porque o Amor
não é e é ao mesmo tempo.
Ou seja, na relação das Pessoas divinas, porque é Amor, cada uma delas é
completamente, não sendo: porque está toda pericoreticamente na outra Pessoa,
num eterno doar-se.
À luz da Trindade, o Ser se revela se assim se pode dizer como guardião,
em seu íntimo, do não-ser do dom de si: não o não-ser que nega o Ser, mas o não-
ser que revela o Ser como Amor: o Ser que é as três divinas Pessoas.
Na luz de Jesus Abandonado, o sujeito, o ser de todas as coisas criadas, e o
próprio Ser Absoluto encontram, então, uma nova explicação que pode refundar uma
nova filosofia do ser.
158
Era esse o sonho de grandes pensadores do nosso tempo, como Maritain e
Przywara, que entreviam a possibilidade de um progresso na busca da verdade
justamente a partir de uma compreensão do ser como amor, tal como transparece
da cruz do Cristo.
Um segundo ponto que gostaria de abordar é o que se refere ao sentido da
Criação.
Com a revelação judaico-cristã, o mundo é visto como criatura de Deus, de
um Deus pessoal, portanto, como termo de uma relação permanente com ele.
Por isso, ele tem um valor em si e, ao mesmo tempo, uma autonomia própria,
que se realiza historicamente nesse sujeito pessoal que é o homem, capacitado
justamente a estar em diálogo direto com Deus e com os seus semelhantes, e tem a
sua realização escatológica na Pessoa do Verbo encarnado e ressuscitado, o qual
sendo o Tu único do Pai, tudo recapitula em si.
Portanto, segundo a Revelação, o mundo deve ser visto pleno da presença de
Deus em seu Verbo, mediante o Espírito.
Na história do Ocidente, essa concepção cristã do mundo foi gradualmente
substituindo a visão mitológica deste, mas, neste processo, ela foi marcada, em
nosso tempo, pela crise cultural que deu lugar a vários fenômenos, como a
secularização, o secularismo, o pós-moderno.
Conseqüentemente, não se viu mais como Deus possa preencher de si o
mundo. De maneira lenta, então, o mundo, para o homem ocidental, foi se
esvaziando de sentido; o memso se diga segundo algumas correntes de
pensamento – do tempo e da história.
Uma racionalidade cética e fria, que transita entre as coisas sem alcançá-las
em sua origem profunda, tomou o lugar da inteligência amorosa que, pelo contrário,
sabia perceber em sua raiz, isto é, em Deus que contém em si e nutre de si a
Criação –, a verdade e a beleza desta.
159
O gemido das criaturas, de que fala são Paulo (cf. Rom 8,22), parece não ser
mais ouvido, coberto por aquilo que Heidegger chamava de “tagarelice da
existência” e, portanto, de uma cultura “inautêntica” (cf. Heidegger, 1989).
Estamos diante de uma crise irreversível?
Ou então, assistimos à lenta gestação de um mundo novo?
Também aqui Jesus Abandonado é luz para se compreender e viver o sentido
deste drama.
Jesus Abandonado experimentou em si, e assumiu em si, o não-ser das
criaturas separadas da fonte do ser: tomou sobre si a vaidade das
vaidades” (Eclesiastes 1,2).
Ele se apropriou por amor – desse não-ser, que podemos chamar de
negativo, e o transformou em si mesmo, naquele não-ser positivo que é o Amor;
como revela a ressurreição. Jesus Abandonado fez com que o Espírito Santo se
estendesse por toda a Criação, tornando-se assim “mãe” da Nova Criação.
Claro, esse acontecimento ainda está em gestação: mas no Cristo
ressuscitado e, Com Ele, em Maria após a assunção, se completou, e, de certo
modo, já é realidade no seu Corpo místico que é a Igreja.
Se nós vivemos no amor recíproco, que traz Cristo para o meio de nós, e nos
alimentamos da Eucaristia, que nos faz ser Cristo individual e comunitariamente, e
por isso Igreja, podemos entender e perceber a presença do Espírito de Deus no
coração de todos e de cada um dos seres, e em todo o cosmo.
E, por meio do Espírito Santo, podemos intuir que existe uma relação
esponsal entre o Incriado e a Criação, porque o Verbo, ao encarnar, colocou-se ao
lado da Criação, divinizando-a e recapitulando-a em si.
É uma visão ampla e majestosa que nos leva a pensar no ingresso, um dia,
de toda a Criação no seio do Pai.
E podemos desde já identificar alguns preâmbulos desse fato.
160
O corpo, por exemplo, que ao morrer entregamos à terra, não poderíamos vê-
lo, nutrido que foi pela Eucaristia e, por isso cristificado - , como eucaristia da
natureza? De modo que no coração da terra o nosso corpo, embora aparentemente
transformado nela, na realidade age misteriosamente como germe de transfiguração
do cosmo em “novos céus e nova terra”? (cf. Isaías 66,22; 2 Pedro 3,13).
Esses novos céus e essa nova terra certamente ainda estão muito distantes
de sua realização, mas já se pode ver que vão amadurecendo no coração da
Criação, se a olharmos com os olhos do Ressuscitado que vive em nós e entre nós.
Isso ilumina com luz nova e dilata a relação entre os homens e o mundo;
aquela relação que tem justamente a capacidade de transformar as coisas, tal como
se realiza no trabalho e na técnica, e esta é apenas um dos aspectos.
De fato, parece-nos poder afirmar, porque disso temos alguma experiência,
que as intuições mais profundas do pensamento ou da arte, da ciênciaou das
obras nascem da unidade entre nós, unidade que estabelece a presença do
Ressuscitado entre nós e nos faz participar do Espírito de Deus em todas as coisas.
(...)
Eis alguns comentários sobre a minha apaixonada busca de Jesus, Verbo
do Pai, e de tudo quanto Ele, sobretudo em seu abandono, pode ser luz para todos
nós.
161
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140
ANEXO – TEXTOS DE CHIARA LUBICH
IMAGEM DO SOL E RAIOS
Aqui procuramos fazer a reconstrução do texto original da imagem do sol e
raios divergentes/convergentes na criação a partir dos dois artigos de Blaumeiser e
Rossé. O texto maior aparece recentemente em Rossé (2009), porém, faltando um
fragmento presente em Blaumeiser.
Blaumeiser, p.563
Rossé, p.822
Rossé 2009, p.514
“Il Padre ha un’espressione di Sé
fuori di Sé, fatta come di raggi
divergenti, ed una dentro di Sé,
fatta di raggi convergenti nel
centro, in un punto che è l’Amore:
Dio nell’infinitamente piccolo: il
Nulla-Tutto dell’Amore! Il Verbo.”
Il Padre ha un’espressione di Sé
fuori di Sé, fatta come di raggi
divergenti ed una dentro di Sé,
fatta di raggi convergenti nel
centro, in un punto che è l’Amore:
Dio nell’infinitamente piccolo: il
“Nulla-Tutto dell’Amore! Il Verbo
I raggi divergenti sono Gesù: per
mezzo di Gesù il Padre arriva a
tutti i figli fuori di Sé in qualsiasi
punto essi si trovino.
Questi man mano s’avvicinano a
Dio, camminando nella volontà di
Dio (essendo Gesù), s’avvicinano
tra di loro.
I raggi convergenti nel cuore del
sole, che è il Padre, sono la
Parola di dio, Verbo che
convergono nel Verbo (...?). Il
Padre dice ‘Amore’ in infiniti toni e
genera la Parola, che è amore,
dentro di Sé, il Figlio, ed il Figlio
quale è, eco del Padre, dice
‘Amore’ e torna al Padre.
I raggi convergenti nel cuore del
Sole, che è il Padre sono Parola
di Dio. Verbo che convergono nel
Verbo.
Il Padre dice: “Amore” in infiniti
toni e genera la Parola, che è
amore, dentro di Sé, il Figlio, ed il
Figlio quale è, eco del Padre, dice
“Amore” e torna al Padre!
Ma tutte le anime che sono nel
Seno del Padre (arrivate
camminando lungo il raggio
esterno, essendo “Gesù”)
rispondono all’eco del Padre (=
rispondono al Padre), anzi sono
anche esse Parola del Padre, che
risponde al Padre.
Così tutto il Paradiso è un canto
che risuona d’ogni dove: “Amor,
amor, amor, amor, amor”.
Le idee delle cose erano nel
Verbo ed il Padre le proiettava
fuori di Sé.
141
Compresi che dal Padre uscirono
quei raggi divergenti quando creò
tutte le cose e quei raggi diedero
l’Ordine che è Vita e Amore e
Verità.
Compresi che dal Padre uscirono
quei raggi divergenti quando creò
tutte le cose e quei raggi diedero
l’Ordine, che è Vita, e Amore e
Verità
Compresi che dal Padre uscirono
quei raggi divergneti quando creò
tutte le cose e quei raggi diedero
l’Ordine che è Vita e Amore e
Verità;
le idee delle cose erano nel Verbo
ed il Padre le proiettava fuori di
Sé.
Ora, alla fine, il Padre ritirerà quei
raggi che da divergenti
diverranno convergenti e
s’incontreranno nel Seno Suo.
Ora, alla fine, il padre ritirerà quei
raggi che da divergenti
diverranno convergenti e
s’incontreranno nel Seno suo.
Al di qua del Paradiso [e cioè
fuori del Seno del padre] rimarrà
l’Inferno.
Rimarrà come la materia senza
la vita, senza l’ordine, senza
l’amore.
RELATO DA CONTEMPLAÇÃO MÍSTICA 1949
47
Artigo de Chiara Lubich em Nuova Umanità, de título “O PARAÍSO DE 49”, v.
177 de 2008, sobre o período místico. Em algumas páginas extremamente densas,
Chiara Lubich descreve a experiência mística que ela tinha feito no Verão de 1949,
seis anos depois do início do Movimento dos Focolares, quando os principais pontos
da nova espiritualidade surgiram após um período de intensa vida evangélica.
“O PARAÍSO DE 49”
!
Oberiberg (Suíça), Festa de São Paulo, 30 de junho de 1961
ENTRADA NO PAI
Estávamos procurando viver os princípios da nossa espiritualidade
com grande intensidade: o momento presente, o amor recíproco, a Palavra de Deus.
Procuramos nos identificar com a Palavra de Deus, com a qual fazíamos a
nossa comunhão.
142
47
Notas e tradução de Iracema do Amaral.
!
Segundo quanto Chiara Lubich lembrava.
Eram três as nossas comunhões obrigatórias: com Jesus Eucaristia, com o
irmão, com a Palavra de Deus.
Fazia cinco anos que estávamos meditando e vivendo as Palavras da
Escritura, até que na primavera de 1949 percebi que os efeitos das diversas
Palavras na nossa vida eram quase iguais ou mesmo iguais, como se a substância
de cada palavra fosse "amor".
anos pensávamos que, assim como na Hóstia Santa Jesus está por
inteiro, mas também num seu fragmento, também no Evangelho está Jesus por
inteiro, tal como em cada uma de suas Palavras, com o sentido completo.
Mas era o que experimentávamos.
De forma que foi se apagando em mim o desejo de continuar esta prática, não
porque não era útil ou por negligência, mas porque tinha atingido o seu objetivo
48
.
Não lembro como foi a passagem, mas naquele tempo foi se radicando em
mim num modo forte a convicção, e a prática correspondente, de que Jesus
abandonado de certa forma resumia todo o Evangelho. E que, tendo-o amado, todas
as virtudes teriam florescido.
Ele nos parecia a síntese da ascese que Deus nos propunha e, vivendo Ele,
teríamos podido viver Cristo em nós.
Em Jesus abandonado estavam todos os sofrimentos, todos os amores, todas
as virtudes, todos os pecados (pois Ele se fez "pecado") e nele todos nós nos
reconhecíamos em cada instante da vida.
Ele era a síntese dos sofrimentos físicos, tão próximo da morte, e dos
sofrimentos morais, espirituais.
143
48
Com essas expressões, Chiara não pretende desvalorizar a prática da vivência da Palavra,
mas ressaltar a centralidade de Jesus abandonado que, naquele momento, se tornava o “Tudo”
para ela. Numa anotação sucessiva, com efeito, considerando o conjunto da experiência no verão de
1949, ela escreverá: «É belo o fato de que também a experiência mística mais elevada que vivemos
nunca nos detém na sua contemplação, mas nos estimula a viver a Palavra com intensidade cada
vez maior».
Era a síntese dos amores: Ele era "pai" por nos ter gerado de novo. Era "mãe"
nas dores do parto divino; era irmão, amigo.
Era a síntese das virtudes: o puro, a ponto de estar desapegado de qualquer
consolação divina, Ele, que era Deus; o pobre de tudo... até do sentido da sua
divindade; era o obediente, porque perdia tudo no Pai, que é a sua Autoridade.
De fato, Jesus naquele grito nos parecia ser dor e amor ao mesmo tempo.
Ele se fez "pecado" por nós, pecadores, rebelião, divisão, ex-comunhão, etc.,
por amor. Não sei como conjugar estes dois termos: amor e dor que, em Jesus
abandonado, nos pareciam uma coisa só, de modo que um não teria existido sem o
outro.
Vivendo Jesus abandonado, chegamos a compreender quanto Ele se anulou
e no nada estava a nossa vida. Ser como Ele, por amor dele, aquele nada que
realmente somos. Nós, nada; Ele, tudo.
Naquela época, verificou-se um profundíssimo encontro de almas com Foco
49
,
quando ele veio a Fiera
50
e eu falava com ele, tendo encontrado nele uma alma que
jamais tinha encontrado. Diversamente das “popas”
51
, Foco tinha uma graça
especial para compreender este Ideal que Deus me deu, dando-lhe a importância
que merece.
A sua pessoa trazia claramente uma especial presença de Jesus no nosso
meio, que me deixava feliz e me mostrava as coisas diferentes de como as tinha
visto antes.
Cada encontro com Foco, cada discurso, eu o repetia depois às focolarinas
literalmente e com o mesmo calor que sentia, para fazê-las participar de tudo. Além
dos mais, me parecia que o que não é útil para a humanidade ou pelo menos para
os outros, não tinha valor. Além disso, eu contava tudo para que conservasse a
144
49
Igino Giordani, ilustre escritor, estudioso do cristianismo, político de grande estatura moral.
50
Fiera di Primiero, um pequeno centro da região de Trento, onde Chiara passava um certo
período de repouso.
51
Palavra do dialeto trentino, que significa "crianças", com a qual Chiara chamava as
focolarinas. A sua tradução nos faz pensar nas "pequenas" e nos "pequenos" do Evangelho.
transparência divina e não se acrescentassem elementos "humanos"
52
, que
estragaria tudo.
Lembro que naqueles dias a natureza me parecia toda envolvida pelo sol. No
aspecto físico era assim, mas me parecia que um sol mais forte envolvesse a
natureza, a embebesse, de modo que me parecia toda “enamorada”. Via as coisas,
os rios, as plantas, os prados, a relva, ligados entre eles por um vínculo de amor, no
qual cada um tinha um porquê de amor em relação aos outros.
Era um fenômeno semelhante, contudo universalizado, ao que se passou
comigo quando eu tinha 20 anos e voltava da Obra Seráfica
53
cantando as ave-
marias do rosário. Nessa ocasião tive a impressão de ver uma flor de castanheiro-
da-índia animada por uma vida superior, que a sustentava por baixo, e que parecia
vir na minha direção.
Nesse clima incandescente, em que, dentro de mim as palavras de Deus se
fundiam em Jesus abandonado, "expressão" máxima, para nós, de Jesus, do
Salvador, e a natureza me parecia impregnada de amor, aconteceu a entrada no Pai.
Foco, movido pelo desejo de servir a Deus, me propôs fazer um voto de
obediência.
Eu não via a necessidade disso e esse desejo não se harmonizava com o
meu Ideal que era “vida como Corpo místico” (para mim, expressão máxima da vida
cristã). Mas para não desperdiçar este ato de amor que Foco queria fazer a Deus,
eu lhe fiz a proposta de trocá-lo.
De manhã, na Santa Comunhão, nós dois teríamos pedido a Jesus Eucaristia
que, no nosso nada, pactuasse a unidade.
E foi o que fizemos com uma fé plena e com amor.
Enquanto Foco foi visitar os frades do Convento ao lado da Igreja, eu me
ajoelhei diante do Santíssimo Sacramento para rezar a Jesus, mas me foi
145
52
Humano: no sentido de um nivelamento da experiência cristã com a banalidade de uma
vida não aberta ao divino e por ele plasmada.
53
Um Instituto de Trento, onde Chiara ensinava, ainda muito jovem.
impossível. Não conseguia pronunciar a palavra: Jesus, porque teria sido como
invocar Alguém que eu percebia estar identificado comigo, Aquele que naquele
momento eu era.
Tive a impressão de me encontrar no pico de uma montanha altíssima, a mais
alta possível, que termina numa ponta, numa ponta de alfinete: única e alta, mas que
não era amor (e isso provocou em mim uma momentânea angústia) a ponto de
considerar que, ser até mesmo Deus, mas não ser trino, teria sido um inferno.
E naquele instante despontou nos meus lábios a Palavra "Pai" e reencontrei a
comunhão em meio à surpresa e à alegria.
Contei tudo a Foco e, não sei em que momento daquele dia, como por uma
visão, cujo instrumento foram os olhos da alma, me encontrei in sinu Patris, que se
apresentava a mim como o interior de um sol todo de ouro ou de chamas de ouro,
infinito, mas que não me chocava.
Digamos que esta visão, como bem recordo, ficou clara somente quando
também as “focolarinas” fizeram, sobre o nada delas, o mesmo pacto com Jesus
Eucaristia, para se unirem conosco.
Eu via esta pequena brigada de criaturas no sol.
Desde então chamei de "Alma" aquela Una que unia a todos nós. E por dois
meses, enquanto as visões intelectuais e imaginárias se sucederam o que acho,
embora eu possa errar redondamente)
54
, se falou sempre da Alma.
dentro tínhamos a impressão de nos encontrar no Céu. Havia sobretudo
um respiro infinito, amplo, jamais experimentado, e as nossas almas se sentiam à
vontade.
146
54
Usando a linguagem teológica do tempo, Chiara menciona os modos nos quais Deus pode
se revelar na experiência mística: com "visões" sobrenaturais, que comportam imagens interiores
(visões imaginárias) ou com visões interiores sem alguma imagem (visões intelectuais).
Na Comunhão dos dias seguintes a "Alma" tinha consciência de se comunicar
com Deus e, portanto, de dar passos adiante no divino. Durante o dia essas
"Realidades", assim como eram chamadas e assim as sentíamos, eram vividas por
todas nós unidas de uma forma única, talvez por essas graças especiais.
À tarde, durante a meditação, que durava cerca de meia hora, todas tínhamos
a cautela de deixar a alma na mais absoluta passividade, para que Deus, se assim
desejasse, pudesse comunicar a si mesmo. E as minhas companheiras faziam calar
nelas tudo, inclusive o que podia ser uma inspiração, para que a unidade comigo
fosse perfeita.
E durante a meditação, novas manifestações se sucediam e eu tinha o
cuidado de comunicá-las logo às outras focolarinas, porque as sentia um patrimônio
comum e para que todas pudéssemos nos inserir naquelas novas Realidades.
O FILHO
Creio que no terceiro dia, estando nós no Seio do Pai, tivemos a manifestação
do Filho. Lembro que foi de uma luminosidade extraordinária, mas acho que me
faltam todos os elementos para poder descrevê-la agora.
sei que das paredes do Sol foi pronunciada pelo Pai a palavra: Amor e
esta Palavra, recolhendo-se no coração do Pai, era o Filho.
Fora, à tarde, na natureza, um pôr-do-sol majestoso, que era ainda mais
bonito por causa do grande Sol que resplandecia em nós, parecia confirmar esta
"visão". E pelo que lembro agora, se lembro bem, os longos raios que, como
flechadas de luz, acariciavam o céu azul, enquanto o disco tinha se escondido por
trás das montanhas
55
, nos deram uma idéia do Verbo, como luz do Pai, esplendor
do Pai.
Tudo, naqueles dias, ajudava a compor o “Paraíso” dentro e fora de nós,
parecia que os elementos, os homens e os acontecimentos fossem eles mesmos
147
55
NdT
atores no drama divino que capturou a nossa alma por muito tempo. Como se uma
única Sabedoria divina dispusesse tudo em cenários sempre novos.
Ao se manifestar o Filho, eis uma experiência que, para nós, está impregnada
de conteúdo e é conforme à Verdade
Íamos entrando na Santíssima Trindade e o que se tinha manifestado antes
permanecia, subsistia.
Se agora era a vez do Filho, na nossa alma o Pai permanecia no seu lugar
como Deus, presente.
E a vida vivida antes dessa "entrada" nos parecia mais uma "subida" na
realização da vontade divina, cada um no próprio raio, até chegar a hora da "fusão"
em Jesus e de ser admitidos juntos na casa do Pai.
MARIA
Estávamos convencidas de que, se houvesse outra manifestação, podia
ser aquela do Espírito Santo. Antes de entrar na igreja todas nós tentávamos
adivinhar o que Deus teria feito. E dizíamos o que pensávamos como fruto de um
raciocínio próprio, de uma lógica humana. Mas o dizíamos, convencidas de que não
teria sido assim, porque [aquilo que acontecia] não era obra de um homem, mas de
Deus, cuja lógica nos transcende, a comunhão com Ele não é resultado de um
cálculo nem de síntese humana.
E foi sempre assim.
Naquele dia, compreendi Maria, creio que com uma visão intelectual, como
jamais a tinha visto. E agora se passaram doze anos daquele dia, mas ainda tenho a
nítida impressão de "grandeza" impensável, que esta descoberta da Mãe de Deus
no Seio do Pai suscitou em nós.
148
Como o azul do Céu contém o sol e a lua e as estrelas, assim me pareceu
Maria, feita por Deus tão grande a ponto de conter Deus mesmo no Verbo.
Eu nunca tive um conceito semelhante de Maria, mas ali ficou gravada na
minha alma a sua divina grandeza, num modo que não sei descrever.
Digo só que nenhum raciocínio humano seria capaz de dar uma idéia.
Ali, a visão produzia a convicção.
E nós pensamos que, provavelmente, o Espírito Santo tinha cedido o lugar a
Maria na sucessão dos quadros divinos, porque é seu Esposo. E nos pareceu que o
Verbo queria apresentar a "Alma" a Maria, antes de “desposá-la”. E acho que foi o
que aconteceu, pois a "Alma" não se sentiu como antes, mas se sentiu "Igreja":
aquele pequeno grupo de almas, mergulhados no Seio do Pai, se sentiu Igreja.
O ESPÍRITO SANTO
Creio que foi no quarto dia que, como de costume, todas recolhidas em
meditação diante da bela estátua de Maria
56
, tive a impressão de que saísse do
sacrário uma brisa, em forma de zéfiro e tocava de leve o meu rosto.
Duvidei muito após esse fato físico, mas anos depois constatei que nenhuma
janela podia estar aberta ao lado do sacrário. Aquela "brisa" era como a respiração
de Jesus, a atmosfera do Seu Coração.
Depois eu vi com uma visão imaginária partir do sacrário uma pomba
branca, com asas abertas e voar na altura do rosto [da estátua] de Maria e rodar
várias vezes acima de nós e depois parar como numa atitude de quem ia iluminar,
mas não iluminou.
Compreendi que o Espírito Santo era a atmosfera do Céu, no Seio do Pai.
Saindo, não tive a coragem de dizer às minhas companheiras o acontecido,
mas olhando para o céu vermelho como o fogo, vi, pousados nos fios da luz elétrica,
três passarinhos. E vi outro partir por detrás da igreja e voar por cima de nós. Ainda
149
56
Uma estátua da Virgem, feita de madeira, na Igreja de Tonadico di Primiero;
absorta naquilo que tinha acontecido na igreja, tomei coragem para falar, parecendo
que aqueles três passarinhos eram um símbolo minúsculo de que cada Pessoa da
Trindade é Deus e que o Espírito Santo é Deus.
***
Assim se encerrou o primeiro capítulo dessa história, que mais recordo.
Lembro o resto com uma certa desordem, sem a sucessão direta dos quadros
que foram, se dizia, cerca de cento e cinqüenta.
Eles nos fizeram compreender o Reino dos Céus, porque se tratava de
diversos Céus, um mais lindo do que o outro, ligados sempre à nossa vida de união
com Deus naquela Realidade em que a Alma-Igreja se encontrava –, à comunhão
perfeita entre nós e sobretudo com Jesus Eucaristia.
Naquele tempo eu estava convencida de que Deus tivesse conduzido a
"Alma" pelo Reino dos Céus como numa viagem de núpcias divinas e que todo o
Verbo se teria revelado a mim, segundo as minhas possibilidades de "compreender".
OUTROS QUADROS
No divino abismo de amor e de luz, em que se caminhava, nessa altura eu
esperava que me fossem apresentados os Santos, mas não foi assim. Não estou
certa, mas acho que o único santo que vi "intelectualmente" foi São José.
Outra vez, decidimos "consagrar" acho que foi numa festa de Nossa
Senhora – a "Alma" a Maria.
150
Saímos da igreja com a impressão de que a "Alma" era "sagrada" com Maria,
feita Maria, como se o nosso destino fosse “ser Maria”.
Não sei se foi dessa vez, mas tive essa compreensão de que nós devíamos
ser uma sua pequena reprodução de Maria, assim como Chiaretta, a minha
sobrinha, que na época se parecia muito a mim, parecia ser mais filha minha do que
de sua mãe.
Nós devíamos ser perfeitamente Maria, só filhas dela, outras Ela.
Outra vez vi Maria no Céu na posição– digamosde ancella di Dio: mínima
no infinito, como se estivesse toda recolhida de joelho, em adoração.
Outro quadro, que recordo, é aquele que parecia representar o meu lugar no
Céu. Tive a impressão de estar no centro de um anfiteatro vivo, composto pelas
minhas companheiras (ao meu redor), por jovens, atrás dos quais, em forma radial,
estavam as Ordens Religiosas. Eu dava o e me sentia coberta, mas não sei como
me exprimir, por um véu.
Este quadro me encheu de alegria, mas não me exaltou. Dizia que tinha o
efeito de quando Santa Teresa teve a visão do lugar dela no inferno (se não se
tivesse emendado); eu via o meu lugar no Paraíso (se tivesse correspondido).
Achava lógico que, numa espiritualidade a “Corpo místico”, onde Cristo está entre
nós, tivesse que ver o positivo.
Outra vez, depois da Consagração a Maria, ouvi uma palavra na alma que
significava para mim “em gestação” e me pareceu que Deus quisesse repetir
misticamente com o Alma, consagrada "Maria", uma encarnação.
Céu e terra festejavam, com um tripúdio de alegria inenarrável, o evento e
enquanto subia até San Vittore
57
a minha alma cantava: «Tácita um dia não sei em
151
57
Outra igreja de Tonadico;
qual escarpada...»
58
; enquanto na igreja, e não era comum, se cantava o Magnificat,
e fora a sacristã fechava o cemitério, ressaltando para nós uma presença mais rica
de Jesus na Terra, da vida que venceu a morte, daquele que ressuscitou.
Um dia no Seio do Pai que, para nós, era sempre como o interior de um Sol
infinito, aconteceu uma grande transformação e nos encontramos numa paisagem
celeste, com todos os elementos que compõem a Terra, em cores.
Lembro de árvores, atalhos, nascentes e, creio, flores e passarinhos, e
compreendi que no Alto será como aqui, mas em Deus. Diante dessa nova visão,
que finalmente me revelava o interior do Paraíso, pensei que antes teríamos tido que
sofrer um pouco, não vendo nada. Ao invés, não foi assim. O Céu é sempre Céu e
embora seja imenso, nele não nos sentimos sós.
no Céu nos parecia que todas as vezes que as almas se encontram,
formam entre elas um novo céu espiritual, continuamente diferente, variado e
celestial pela participação da vida Trinitária sempre nova.
Do Paraíso vi a criação. O Pai, olhando no Filho, criou e do Centro do Sol
partiam como que raios divergentes, saindo do Sol.
No final dos tempos Deus teria retirado aqueles raios que de divergentes se
tornariam convergentes e, no seio de Deus, teríamos Céus novos e Terra nova.
Na Terra não existia a idéia do pinheiro, por exemplo, que estava no Verbo,
porque as plantas possuem o próprio ser no homem e o homem, por sua vez, em
Cristo, que reconduz a criação ao Seio do Pai.
152
58
Palavras de Manzoni sobre a Virgem, que se cantavam na igreja (n.d.t.);
No Céu compreendi que a natureza criada tinha o timbre da Trindade. A
matéria era como o Pai, a lei era como o Verbo, a Vida era como o Espírito Santo.
Em contraste, não lembro quando, tive a impressão de compreender um
pouco o inferno.
Pareceu-me entender que Jesus abandonado, naquele grito, que era a
salvação dos redimidos, tivesse sido a justiça dos condenados.
E que Ele, não sei como, eternizasse o inferno.
Do Céu, porém, o infernograças a Jesus abandonado era visto invertido,
no sentido de que cada falta de unidade seria, para os bem-aventurados, unidade e
que em Jesus abandonado o inferno era o Paraíso do Paraíso.
Jesus abandonado, tendo-se feito "pecado", se fez inferno. Mas Ele é Deus e,
no Paraíso, se vê Deus.
Eu achava que, em virtude de Jesus abandonado, o dualismo do Além era
anulado e que Jesus abandonado era a solução, o contato dos dois reinos, onde
num se vive a Vida Eterna e no outro a Morte Eterna.
No inferno nada teria realizado a unidade, porque não existia o amor. No
inferno se estava na impossibilidade de amar.
O inferno era como o cadáver da natureza, que tem olhos para ver, mas não
vêem, ouvidos para ouvir eo ouvem, etc. Tudo construído para tender a Deus, o
Qual eternamente nunca mais poderão alcançar. E cada encontro de almas era para
se separar ainda mais numa divisão cada vez mais trágica.
153
O calor não teria feito unidade com o frio e nunca teria existido o morno.
calor ou só o frio. Fogo e ranger de dentes.
***
Recordo que, nas últimas "realidades" do Paraíso, nós éramos “Corpo místico
de Cristo”.
E lembro que a última "visão" foi esta: todos aqueles Céus, que tínhamos
visto e vivido e possuíamos como a coisa mais sagrada, incrivelmente sagrada, por
intervenção de uma nova dimensão, desapareceram. Mas não foi um apagar-se; foi
um sublimar-se, porque cada um de nós sentia que trazia em si, distintamente, o que
até aquele instante nos pareceu um patrimônio comum.
E voltamos de Fiera com este tesouro no coração.
Eu o queria deixar o Paraíso. Não podia aceitar de ter que me afastar
daquele Céu onde, por cerca de dois meses, vivemos. Não via o motivo e não o
compreendia: não era por apego ou por extravagância, mas por incapacidade de me
adaptar à Terra, depois de me ter acostumado com o Céu. Pensava que Deus não
pudesse desejar isso.
Foi Foco que me deu coragem, abrindo-me os olhos, quando me lembrou de
que Jesus abandonado era o meu Ideal e que devia amá-lo na humanidade que me
esperava. Foi então que, com o coração partido e chorando, escrevi: «Tenho um
Esposo na Terra. Não tenho outro Deus fora dele. Nele está toda a humanidade,
nele a Trindade. O que me faz sofrer é meu. Irei pelo mundo...»
154
TRINDADE, ONTOLOGIA E CRIAÇÃO
O trecho abaixo foi extraído de Ideal e Luz, São Paulo: Brasiliense, 2003.
Páginas 264 a 269, procura mostrar a idéia de ontologia trinitária nos termos da
própria autora e, em seguida, a compreensão da criação.
O carisma da unidade e a filosofia
Existe tabmém uma nova filosofia que jorra da vida do carisma da unidade.
A filosofia, como se diz, é a ciência dos “porquês”, no sentido de que ela
busca sondar as interrogações que o homem se faz e, na medida do possível, tenta
responder a elas.
Assim, depois de anos de uma intensa vivência espiritual, dentro dessa nova
espiritualidade, tomamos consciência de que existe um momento na vida de Jesus
pleno de respostas para cada um dos nossos “porquês”.
É o momento do grande, do imenso “por quê” dirigido por Jesus a Deus, anes
de morrer, naquele seu misterioso grito: “Deus meu, Deus meu, por que me
abandonaste?”.
Numa primeira etapa, todavia justamente quando decidimos segui-lo desse
modo –, não nos sentimos estimulados tanto a meditar e formular a doutrina que
podia estar subjacente a esse grito; em vez disso, descobrimos imediatamente nele
a chave para recompor todo tipo de unidade.
Foi colocando Jesus Abandonado como ideal de vida que se teve a coragem
de correr até lá onde ele está mais presente e amando-o, consumando-o em nós
de trabalhar para lenir as dores e fazer florescer a unidade. Mas Jesus Abandonado
não se apresentou a nós apenas como resposta às questões existenciais do
homem.
155
Ele um Deus que pergunta a Deus o porquê de uma dilaceração que parece
afetar a própria unidade de Deus! é, certamente, por assim dizer, o indagar levado
à sua expressão mais radical, à qual nenhuma indagação humano ousa chegar, e
por isso poderia ser aquele que mais representa a inteligência humana diante do
mistério.
Mas, ao mesmo tempo, Ele grita o seu grande “por quê” justamente para dar-
nos resposta também a muitos dos nossos porquês, objeto da reflexão filosófica,
como a Escola Abbá procura evidenciar.
Relembro, aqui, de modo sumário e simples, dois âmbitos dessa reflexão.
Vejamos o primeiro: o mistério do ser.
Qual a resposta que Ele nos dá?
Qualquer que seja a definição presente nas linguagens das diversas culturas,
a afirmação original do pensamento humano é: o ser é. Estáo reconhecimento do
grande mar da existência no qual o homem se encontra imerso, em comunhão com
todos e com tudo.
É esta a certeza primordial, unitária e simplicíssima, da qual se pode partir
para penetrar nos meandros múltiplos e complexos da realidade.
Tudo pode ser negado, mas o ser, não.
O ser nos é oferecido por tudo o que nos está próximo, que está em volta de
nós (as várias realidades) ou em nós ( a nossa interioridade).
O existir das menores coisas, como também o das maiores, proclama com
todo o próprio ser: o ser é.
E é esse ser comum a todas as realidades, e pelo qual elas não são um
nada que revela, numa manifestação natural, aquele Ser que nenhuma delas é,
mas que em todas se anuncia. O devir delas, os seus limites, o seu próprio cessar
de existir são uma linguagem que expressa que o ser de tudo o que existe tem a sua
raiz num Ser que simplesmente e absolutamente É.
156
Referindo-se ao Sol, são Francisco, com a linguagem do poeta e a
profundidade do místico, dizia: “É de Ti, ó Altíssimo, que ele ganha significado”.
O mesmo se pode dizer da nossa interioridade. A consciência que o homem
tem de si, desde o início da reflexão filosófica, especialmente se iluminada pela fé, é
reconhecimento do ser que, na consciência, é luz e, ao mesmo tempo, é confissão
do Ser Absoluto, da Luz puríssima que não conhece sombra nem erros, e que a luz
mesma que brilha na consciência do homem invoca e procura como sua garantia,
certeza e porto final.
Ou seja, para o homem, dizer “eu” é abrir-se à possibilidade de dizer, na
comunhão com o ser de todas as coisas, que o Ser Absoluto é.
No entanto, o caminho feito pela filosofia no Ocidente viu ofuscarem-se essas
certezas iniciais. A consciência de si foie évivida como antitética à objetividade
do ser. E se fechou ao Ser Absoluto.
Daí a grande crise que marca os últimos séculos.
Ora, podemos nos perguntar: mas será verdade que a consciência de si e a
afirmação do ser como realidade em si, chegando ao reconhecimento do ser
Absoluto, não poderiam coexistir?
Ou, melhor ainda, por acaso a própria crise não nos convoca a aprofundar
tanto o conceito do sujeito quanto o do ser em toda a sua amplitude? E, assim,
compreender que a dificuldade de hoje é, no fundo a invocação de uma solução
nova, madura, na qual o carisma cristão brilhe com toda a sua força?
É que aparece Jesus Abandonado como mestre de luz, de pensamento, de
filosofia (ousaria dizê-lo), justamente sobre este ponto.
Se alguém que pensa que afirmar o eu seja lutar contra tudo o que não é o
eu uma vez que o-que-não-é-o-eu é percebido como limite e, mais ainda, como
ameaça à integridade do eu –, Jesus Abandonado, naquele terrível momento da sua
Paixão, diz-nos que a consciência da sua subjetividade, enquanto parece esvair-se,
tendo-se Ele aniquilado, justamente então está em sua plenitude.
157
Ele nos revela com o seu ser reduzido a nada, aceito por amor ao Pai, ao
qual volta a se entregar (“Em tuas mãos entrego o meu espírito” [Lucas 23,46])
que eu sou eu não quando me fecho ao outro, mas quando me entrego, quando me
perco no outro por amor. Se, por exemplo, tenho uma flor e a dou, claro que me
privo dela, e assim, nesse privar-me, perco alguma coisa de mimo não-ser); na
realidade, justamente porque dou essa flor, cresce em mim o amor (o ser). Portanto,
a minha subjetividade é quando, por amor, não-é, ou seja, quando se transfere
totalmente ao outro, por amor.
Jesus Abandonado é a revelação máxima da consciência como afirmação de
si próprio, enquanto se doa ao outro, a uma alteridade que, em sua extensão
máxima, é justamente o ser. A autêntica consciência de si é aquela que surge da
comunhão com o ser: uma comunhão na qual a consciência parece perder-se, mas,
com efeito, se encontra, é.
Jesus Abandonado ilumina, assim, o ser, revelando-o como amor. E com isso
nos revela que o próprio Ser Absoluto é Amor, como afirma a Primeira Carta de João
(1 João 4,8.12).
É Amor na realidade das três divinas Pessoas, em relação dinâmica Uma com
a Outra, Uma pela Outra, Uma na Outra.
São três as Pessoas da Santíssima Trindade, mas são Um porque o Amor
não é e é ao mesmo tempo.
Ou seja, na relação das Pessoas divinas, porque é Amor, cada uma delas é
completamente, não sendo: porque está toda pericoreticamente na outra Pessoa,
num eterno doar-se.
À luz da Trindade, o Ser se revela se assim se pode dizer como guardião,
em seu íntimo, do não-ser do dom de si: não o não-ser que nega o Ser, mas o não-
ser que revela o Ser como Amor: o Ser que é as três divinas Pessoas.
Na luz de Jesus Abandonado, o sujeito, o ser de todas as coisas criadas, e o
próprio Ser Absoluto encontram, então, uma nova explicação que pode refundar uma
nova filosofia do ser.
158
Era esse o sonho de grandes pensadores do nosso tempo, como Maritain e
Przywara, que entreviam a possibilidade de um progresso na busca da verdade
justamente a partir de uma compreensão do ser como amor, tal como transparece
da cruz do Cristo.
Um segundo ponto que gostaria de abordar é o que se refere ao sentido da
Criação.
Com a revelação judaico-cristã, o mundo é visto como criatura de Deus, de
um Deus pessoal, portanto, como termo de uma relação permanente com ele.
Por isso, ele tem um valor em si e, ao mesmo tempo, uma autonomia própria,
que se realiza historicamente nesse sujeito pessoal que é o homem, capacitado
justamente a estar em diálogo direto com Deus e com os seus semelhantes, e tem a
sua realização escatológica na Pessoa do Verbo encarnado e ressuscitado, o qual
sendo o Tu único do Pai, tudo recapitula em si.
Portanto, segundo a Revelação, o mundo deve ser visto pleno da presença de
Deus em seu Verbo, mediante o Espírito.
Na história do Ocidente, essa concepção cristã do mundo foi gradualmente
substituindo a visão mitológica deste, mas, neste processo, ela foi marcada, em
nosso tempo, pela crise cultural que deu lugar a vários fenômenos, como a
secularização, o secularismo, o pós-moderno.
Conseqüentemente, não se viu mais como Deus possa preencher de si o
mundo. De maneira lenta, então, o mundo, para o homem ocidental, foi se
esvaziando de sentido; o memso se diga segundo algumas correntes de
pensamento – do tempo e da história.
Uma racionalidade cética e fria, que transita entre as coisas sem alcançá-las
em sua origem profunda, tomou o lugar da inteligência amorosa que, pelo contrário,
sabia perceber em sua raiz, isto é, em Deus que contém em si e nutre de si a
Criação –, a verdade e a beleza desta.
159
O gemido das criaturas, de que fala são Paulo (cf. Rom 8,22), parece não ser
mais ouvido, coberto por aquilo que Heidegger chamava de “tagarelice da
existência” e, portanto, de uma cultura “inautêntica” (cf. Heidegger, 1989).
Estamos diante de uma crise irreversível?
Ou então, assistimos à lenta gestação de um mundo novo?
Também aqui Jesus Abandonado é luz para se compreender e viver o sentido
deste drama.
Jesus Abandonado experimentou em si, e assumiu em si, o não-ser das
criaturas separadas da fonte do ser: tomou sobre si a vaidade das
vaidades” (Eclesiastes 1,2).
Ele se apropriou por amor – desse não-ser, que podemos chamar de
negativo, e o transformou em si mesmo, naquele não-ser positivo que é o Amor;
como revela a ressurreição. Jesus Abandonado fez com que o Espírito Santo se
estendesse por toda a Criação, tornando-se assim “mãe” da Nova Criação.
Claro, esse acontecimento ainda está em gestação: mas no Cristo
ressuscitado e, Com Ele, em Maria após a assunção, se completou, e, de certo
modo, já é realidade no seu Corpo místico que é a Igreja.
Se nós vivemos no amor recíproco, que traz Cristo para o meio de nós, e nos
alimentamos da Eucaristia, que nos faz ser Cristo individual e comunitariamente, e
por isso Igreja, podemos entender e perceber a presença do Espírito de Deus no
coração de todos e de cada um dos seres, e em todo o cosmo.
E, por meio do Espírito Santo, podemos intuir que existe uma relação
esponsal entre o Incriado e a Criação, porque o Verbo, ao encarnar, colocou-se ao
lado da Criação, divinizando-a e recapitulando-a em si.
É uma visão ampla e majestosa que nos leva a pensar no ingresso, um dia,
de toda a Criação no seio do Pai.
E podemos desde já identificar alguns preâmbulos desse fato.
160
O corpo, por exemplo, que ao morrer entregamos à terra, não poderíamos vê-
lo, nutrido que foi pela Eucaristia e, por isso cristificado - , como eucaristia da
natureza? De modo que no coração da terra o nosso corpo, embora aparentemente
transformado nela, na realidade age misteriosamente como germe de transfiguração
do cosmo em “novos céus e nova terra”? (cf. Isaías 66,22; 2 Pedro 3,13).
Esses novos céus e essa nova terra certamente ainda estão muito distantes
de sua realização, mas já se pode ver que vão amadurecendo no coração da
Criação, se a olharmos com os olhos do Ressuscitado que vive em nós e entre nós.
Isso ilumina com luz nova e dilata a relação entre os homens e o mundo;
aquela relação que tem justamente a capacidade de transformar as coisas, tal como
se realiza no trabalho e na técnica, e esta é apenas um dos aspectos.
De fato, parece-nos poder afirmar, porque disso temos alguma experiência,
que as intuições mais profundas do pensamento ou da arte, da ciênciaou das
obras nascem da unidade entre nós, unidade que estabelece a presença do
Ressuscitado entre nós e nos faz participar do Espírito de Deus em todas as coisas.
(...)
Eis alguns comentários sobre a minha apaixonada busca de Jesus, Verbo
do Pai, e de tudo quanto Ele, sobretudo em seu abandono, pode ser luz para todos
nós.
161
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