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O CINEMA E SEU DUPLO
Por
Ivan Capeller
Tese apresentada ao curso de
Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutor.
Orientadora: Maria Cristina Franco Ferraz
Niterói
2010
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2
Para Maria Cristina Franco Ferraz
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RESUMO: Uma tentativa de sistematização das relações do cinema com a História.
Quatro níveis possíveis de leitura da historicidade de um filme são analisados de acordo
com o seu modo particular de inscrição do tempo na película, confrontando o caráter
documental que todo filme apresenta ao seu aspecto codificado de texto a ser
interpretado. A tensão assim estabelecida no filme entre os seus processos (técnicos) de
reprodução cinemática e os seus códigos (estéticos) de representação cinematográfica é
pensada como um eixo para a reflexão cinematográfica da (e sobre a) História que se
projeta ao longo de toda a história do cinema como um traço característico de sua
mímesis traço esse que possibilita o seu posterior rastreamento a partir dos elementos
auto-reflexivos que se inscrevem, ora como documento, ora como texto, na película, de
forma intencional ou não.
ABSTRACT: An attempt to put into a more systemic perspective all the possible
relations between cinema and history. Four levels of historicity are proposed for film
studies according to the particular way that each one of them inscribes time into film.
The documental aspect inherent to film is discussed in relation to its linguistically
codified character, unveiling the tension between its (technical) processes of cinematical
reproduction and its (aesthetical) codes of cinematographical representation, and
pointing to the fact that its indicial traces always allow for history, in a self-reflexive
discourse, to inscribe itself, either as a document or as a text, unintentionally or not, in
film.
PALAVRAS-CHAVE: História; Cinema; Mímesis.
KEY WORDS: History, Cinema, Mimesis
4
O CINEMA E SEU DUPLO
INTRODUÇÃO: A EXPERIÊNCIA DO CINEMA
- Da experiência do cinema como experiência histórica p. 3
- Da história da experiência cinematográfica p. 5
- Da experiência cinematográfica da história p. 10
- Da mímesis cinematográfica à cinemática da mímesis p. 12
CAPITULO 1: ENTRE A DURAÇÃO E O INSTANTE
- Diferimento temporal e historialidade p. 18
- A emergência do tempo cinemático p. 30
- Do instante: o cinema contra o tempo p. 38
- Da duração: o cinema encontra o tempo p. 45
- "Le Temps Détruit Tout" ou como interceptar um instante? p. 60
- "One Continuous Moment" ou como prolongar um instante? p. 64
- Tempo do dispositivo, tempo do enunciado, tempo da enunciação p. 69
CAPITULO 2: CINEMÁTICA DA MIMESIS
- A experiência cinematográfica entre signo e objeto p. 74
- A teoria da Mímesis entre imitação e narração p. 81
- A tríplice mímesis p. 85
- Espectros da Caverna: modelo, cópia, simulacro. p. 99
- O Simulacro como “mise-en-abyme” da imagem p. 104
- Isto (não é (o que é)) p. 109
- Simulação e simulacro p. 112
- Cinemática da mímesis p. 118
- Pragmática da experiência cinematográfica p. 131
CAPITULO 3: GEOLOGIA DO CINEMA
- A imagem cinematográfica entre o som e o sentido p. 150
- O silêncio e sua sombra p. 157
- Da cinestesia à sinestesia: o componente gerativo do cinema p. 162
- O princípio do assincronismo revisitado p. 173
- A escuta de Ulisses p. 182
- A pátina do filme: o componente transformacional p. 193
- Experiência histórica do cinema, experiência cinematográfica da história p. 199
- Da reprodução cinemática do tempo... p. 210
- ...à representação cinematográfica da História p. 213
- Geologia do cinema: o componente diagramático p. 216
CONCLUSÃO: ENTRE O OBJETO E SEU DUPLO
- "The time is out of joint": Res gestae e Historia rerum gestarum p. 221
- Do dispositivo cinematográfico como máquina p. 227
- Técnica e ciência enquanto "representação" p. 235
- A máquina de guerra do cinema, entre a magia e o positivismo p. 244
BIBLIOGRAFIA p. 252
5
INTRODUÇÃO
A EXPERIÊNCIA DO CINEMA
Le réel arrivé à l'esprit n'est dejà plus du réel
Robert Bresson
Ao pensarmos no cinema e em seu duplo, temos a tendência de pensar
efetivamente em suas representações no cinema, em seu extenso repertório de
figurações imaginárias e situações-padrão (vampiros, clones, gêmeos),
analisando-as em função dos processos de identificação imaginária que o
espectador possa vir a estabelecer. Pensamos o duplo no cinema, e não sem
razão, na medida em que o duplo é certamente um de seus temas centrais.
Por que o duplo adquire essa importância no cinema? Haverá uma
relação mais profunda do cinema com o duplo, para além do simples (e
eloquente) fato de ser o cinema um meio privilegiado para a sua expressão?
Entre o cinema e seu duplo sempre a possibilidade e o risco de um
encontro, a ser exorcizado ou diferido. Há, portanto, uma questão a ser
pensada: a questão do duplo do cinema, que o deve ser confundida com a
questão do duplo no cinema. Entre uma e outra, deslizam inadvertidamente as
categorias do real e do imaginário, pois é nesta disjunção que o duplo emerge
pouco a pouco, em três estágios distintos: a princípio, no realismo da
representação cinematográfica, que aparece como um meio privilegiado para a
sua aparição e para o povoamento do imaginário “mudo” do cinema,
produzindo a inequívoca sensação anímica do unheimlich, através de suas
sombras e seus sósias, de seus Golens e Nosferatus. Em seguida, nos novos
cinemas modernistas dos anos 1960 e 70, que se utilizam do duplo para
reconfigurar as estruturas simbólicas da representação cinematográfica,
desloca-se a ênfase em seus aspectos especificamente imaginários (trucagens,
reflexões especulares, sombras e efeitos óticos) para os seus aspectos
eminentemente simbólicos e estruturais (montagem por repetição/montagem
por divergência, presença/ausência de um sujeito do olhar, auto-reflexividade
do signo), fundamentais à concepção de filmes tão díspares entre si como O
6
Inquilino (197?), de Roman Polansky, ou Mr. Klein (197?), de Joseph Losey.
Por fim, no advento da tecnologia digital e da estética hiper-realista, ligada à
revitalização comercial dos filmes de gênero ligados à science-fiction e ao
terror. Enquanto a auto-reflexividade do cinema modernista emerge na
superfície do filme como estrutura subjacente da representação, a auto-
reflexividade do filme hiper-realista permanece aparentemente submersa,
como a do filme narrativo clássico, apenas para melhor ressaltar a onipresença,
dentro e fora da imagem, do duplo como sua condição estrutural,
simultaneamente instrumento real da reprodução e efeito imaginário da
representação, realizando-o não apenas como signo de uma representação, mas
como ambivalência fundamental, e permanente oscilação entre o real e o
imaginário.
O duplo é uma potência da imagem, à espreita em qualquer tipo de
organização simbólica da visualidade. Conformando-se à lógica identitária do
campo da representação, no mesmo movimento de reprodução material de si
mesmo que a priva de sentido, o duplo ameaça a estabilidade cognitiva da
imagem, pois se sua inscrição em um campo qualquer da representação
(visual, auditivo, textual, corporal...) é sempre o resultado de uma operação de
ocultação de um antagonismo entre as suas condições materiais de reprodução
e os códigos sócio-culturais de representação em que esta se inscreve, tal
antagonismo deve ser considerado como constitutivo da própria imagem.
Toda imagem é auto-referencial, na medida em que testemunho de
suas próprias condições de reprodução material, além (ou, melhor dizendo,
aquém) de seu conteúdo representacional, do objeto de sua representação.
Toda imagem é o véu que recobre o real de um antagonismo. Se as
contradições e discordâncias teóricas acerca do cinema são um reflexo
eloquente dos efeitos deste antagonismo na constituição histórica do cinema
como prática social, a auto-reflexividade no cinema não é apenas uma
possibilidade estilística ligada ao(s) modernismo(s) e a pesquisas semiológicas
sobre meta-linguagem. Trata-se, antes, de sintoma do processo de constituição
da imagem como objeto de sutura entre o real de uma operação material e sua
inscrição simbólica em um código representacional qualquer.
7
A auto-reflexividade aponta para o caráter duplamente ambíguo da
imagem cinematográfica (que é sempre e ao mesmo tempo, signo e objeto,
texto e sensação), e para a sua ambivalente inserção na história, como imagem
pertencente a uma sequência narrativa, por um lado, e como imagem
diretamente referida à história (de suas condições de produção), por outro. Se
pensar a história do cinema é pensar o cinema teoricamente
1
, pensar a teoria
do cinema como um problema fundamentalmente histórico é pensar também, e
necessariamente, uma teoria da história. Uma análise da questão do duplo no
cinema deve ser, portanto, capaz de articular uma teoria do dispositivo
cinematográfico que permita pensar a experiência histórica do cinema como
um duplo da experiência da história.
Da experiência do cinema como experiência histórica
Apesar dos inúmeros dispositivos técnicos de reprodução de imagens e
de sons que apareceram antes e depois da invenção do cinematógrafo, o
dispositivo cinematográfico continua ocupando uma posição central para a
reflexão teórica no campo da comunicação. Simultaneamente arte sofisticada e
indústria complexa, o cinema, como objeto de estudo, requer uma investigação
teórica transdisciplinar que exige a conjugação de séries distintas de
articulação conceitual: técnica e estética, social e econômica, psíquica e
política. Eis porque se faz necessária a aplicação rigorosa de certas noções
conceituais ao estudo do cinema: sem uma investigação preliminar acerca dos
problemas epistemológicos e ontológicos que a simples presença de uma
imagem levanta, não é possível sequer iniciar uma reflexão teórica séria a seu
respeito.
Deve-se buscar um método de aplicação analítica dos conceitos que
possa pensar o cinema, como um objeto complexo, a partir de suas múltiplas
determinações. Esta metodologia deve apoiar-se em conhecimentos relativos
tanto à prática quanto à teoria cinematográficas, não para reforçar
epistemologicamente os pressupostos conceituais desta dicotomia, mas sim
para demonstrar, ao contrário, sua artificialidade metodológica. Entre o filme
1
Como bem o observa Gaudreault, André : Cinéma et Attraction – Pour une nouvelle histoire du
cinématographe, CNRS Editions, Paris, 2008, p.24.
8
como objeto e o filme como texto, ou seja, entre o complexo desenvolvimento
de sistemas sócio-técnicos de reprodução de filmes (da filmagem à sala de
projeção) e o não menos complexo sistema de apreensão mental do conteúdo
representacional do que é projetado na tela (do roteiro à mente do espectador),
uma disparidade objetiva, que deve ser compreendida como uma disjunção
constitutiva do imaginário e do real de qualquer filme.
O cinema será considerado aqui como um objeto de estudo
paradigmático em relação a outros objetos passíveis de uma teoria da
comunicação, e isto por dois motivos. Primeiro, por situar-se historicamente
em posição estratégica, já que suas origens estão indissoluvelmente ligadas ao
próprio processo de expansão das sociedades industriais modernas; seu
desenvolvimento e maturação acompanham todas as modificações (técnicas,
culturais, econômicas) pelas quais passaram tais sociedades ao longo do
último século. Em segundo lugar, porque o cinema se apresenta atualmente,
para o pesquisador, como um objeto exaustivamente investigado em diversas
áreas distintas de pesquisa, que fornecem uma miríade de dados empíricos e
categorias conceituais, formulando questões específicas (tanto em termos
práticos quanto teóricos) e respondendo a necessidades conjunturais próprias.
Nossas hipóteses procuram distanciar-se tanto da hipostasia tecnicista
(ou economicista) que considera o aparato mecânico, em sua reprodutibilidade
técnica, como a última instância determinante de todo o processo de
comunicação, quanto da hipostasia estetizante, de sentido diametralmente
oposto, que procura subordinar a totalidade do aparelho/aparato
comunicacional a seus aspectos linguísticos e semiológicos. Procuramos,
assim, adensar uma perspectiva teórico/histórica que não se reduza à mera
descrição acrítica dos dispositivos tecnológicos de comunicação
2
, ao mesmo
tempo em que buscamos assimilar todas as contribuições válidas, da análise
semiológica e/ou das diversas estéticas do cinema, que foram propostas,
procurando não cair no idealismo normativo que, com muita frequência, as
caracteriza. Geralmente baseadas em uma suposta imanência do texto fílmico
aos próprios modos discursivos que o engendram, ignorando, assim, fatores e
2
Como é o caso, a meu ver, de Mannoni, Laurent: A Grande arte da luz e da sombra – Arqueologia do
cinema, Ed. UNESP/SENAC, São Paulo, 2003.
9
problemas concretos exteriores à dimensão específica do discurso, mas que
também atuam na produção do filme como texto, tais teorias têm, no entanto,
o mérito inequívoco de postular a centralidade da problemática da
representação no cinema.
Da história da experiência cinematográfica
Certas tendências recentes de pesquisa postulam a impossibilidade
epistemológica de uma história geral do cinema, apostando na multiplicação
de pontos de vista específicos sobre os mais diversos aspectos deste
multifacetado objeto de estudo, como se a história do cinema fosse apenas um
agregado desconexo e incoerente de saberes (mais ou menos científicos) e
práticas (mais ou menos industriais), técnicas (mais ou menos complexas) e
estilos (mais ou menos artísticos): “Os pesquisadores do assunto costumam
dizer que não há uma história do cinema, apenas histórias de cinema
3
”.
Embora a historicidade intrínseca ao cinema, como fato social, não seja
negada como tal, a renúncia apriorística à sua elaboração conceitual não deixa
de ser sintomática do impasse em que frequentemente se encontra o
pesquisador dessa área. Ora ele tende a enfatizar os aspectos científicos do
cinema como dispositivo
técnico, ora concentra-se em seus aspectos
lingüísticos, descrevendo-o em termos semiológicos como mensagem estética.
Ora, ainda, investiga o seu vel de organização econômica e industrial em
determinado período da história, ou indaga acerca do impacto social que o
cinema inegavelmente exerce sobre a cultura e a memória.
No campo da teoria, como reação à forte influência pós-estruturalista na
teoria do cinema dos anos 1970/80 e, sob o discutível argumento da
necessidade de renovação empírica do estudo “pragmático” de casos
“particulares”, tais tendências caracterizam-se por certa desvalorização
implícita da possibilidade de pensar o cinema em suas articulações mais
amplas com a sociedade e com a história, apresentando o seu confinamento e
3
“Researchers are fond of saying that there is no film history, only film histories”, in
Bordwell&Thompson, Film History – An Introduction, McGraw Hill, New York, 2003, p.2. O negrito é
dos autores.
10
especialização nos departamentos universitários de film studies como uma
benéfica alforria do que denominam de “Grande Teoria
4
”.
Não há dúvida de que não é mais possível considerar o cinema como um
objeto de pesquisa que dispensa maiores definições, como era o caso em
meados do século passado. Para os autores das primeiras grandes histórias do
cinema
5
, como os clássicos estudos de Georges Sadoul
6
e de Jean Mitry
7
, a
possibilidade de se escrever uma história geral do cinema não era sequer
discutida, que por demais auto-evidente. Uma breve explicação preliminar
acerca do funcionamento e das origens técnicas do dispositivo era considerada
suficiente. Em seguida, procedia-se a uma repartição do tema em que o
cinema, ou melhor, a “sétima arte”, era estudada a partir de duas premissas
que permaneciam impensadas: a de nação (cinema francês, alemão,
americano, russo ou soviético...) e a do estilo (cinema expressionista,
impressionista, surrealista, modernista...).
Tais premissas já colocavam, embora de forma ainda pouco clara e
enviesada, uma dupla questão fundamental para a compreensão do cinema
como objeto de estudo: a do filme como mercadoria (e a do cinema como um
dispositivo de reprodução industrial de cópias de um mesmo produto), e a do
filme como obra, texto ou mensagem decifrável a partir de um ou mais
códigos ou chaves de leitura (e a do cinema como gênero artístico de
linguagem e/ou modo simbólico de representação). No entanto, se estas
questões eram subjacentes a essas histórias clássicas do cinema,
permaneciam ainda impensadas em suas implicações históricas mais
importantes: ao filme como mercadoria superpunha-se o filme como texto, de
tal forma que o primeiro era, geralmente, encoberto pelo segundo.
Um bom exemplo dos problemas de caráter propriamente historiográfico
causados pela falta de uma articulação conceitual mais clara destes distintos
níveis de abordagem teórica do cinema é a temática da proeminência mundial
4
Ver Bordwell, David: “Contemporary Film Studies and the Vicissitudes of Grand Theory”, in Bordwell,
David e Carrol, Noël (orgs.): Post-Theory: Reconstructing Film Studies, The University of Wisconsin
Press, Madison, 1996.
5
Brasillach, Robert e Bardèche, Maurice: Histoire du Cinéma en deux volumes, Les Sept Couleurs, Paris,
1964.
6
Sadoul, Georges: História do cinema mundial, das origens aos nossos dias (3 vols.), Lisboa, Livros
Horizonte, 1983.
7
Mitry, Jean: Histoire du Cinéma, Tomes I-III, Paris, Éditions Universitaires, 1967-1973.
11
da indústria cinematográfica norte-americana sobre as demais, em termos não
apenas econômicos como também estéticos. Em “Towards a Positive
Definition of World Cinema
8
”, Lucia Nagib defronta-se com esta espinhosa
questão, demonstrando de que modo os grandes modelos de abordagem teórica
do cinema, tais como a semiologia, a psicanálise e os estudos culturais, se
inspiraram abertamente no modelo hollywoodiano de cinema, esgotando-se na
mesma medida em que este modelo demonstrou seus limites práticos e
teóricos.
Entretanto, a recusa apriorística do modelo hollywoodiano é
extremamente difícil de ser observada, até mesmo por autores que, após
procederem a uma definição clara e precisa deste modelo
9
, não conseguem
desvencilhar-se inteiramente de sua aplicação paradigmática a outras
cinematografias. É assim que David Bordwell, por exemplo, afirma que as
estratégias de filmagem do famoso cineasta japonês Yasugiro Ozu “violavam
consistentemente a tradicional montagem hollywoodiana em um eixo de 180°
de continuidade
10
”, como se Hollywood fosse central para Ozu, e isto no
mesmo volume em que nega preliminarmente, conforme a frase citada em
nosso primeiro parágrafo, a própria possibilidade de uma história geral do
cinema que não seja mais do que um agregado de histórias particulares.
O problema a evitar aqui, ainda segundo Lucia Nagib, é o de uma
abordagem histórica do cinema organizada em termos binários, isto é, a partir
de uma oposição entre a indústria cinematográfica norte-americana e as
demais, o que conduziria a teoria do cinema a uma inevitável polarização entre
a linguagem cinematográfica dominante, definida pelos padrões técnicos e
estéticos de produção estabelecidos por Hollywood, e as demais expressões
artísticas possibilitadas pelo cinema como dispositivo técnico. Evitar o
binarismo seria, então, uma espécie de “liberação epistemológica” pela qual
estariam passando, ou assim deveriam estar, a história e a teoria
cinematográficas, liberação do jugo (estético e cnico, histórico e conceitual,
teórico e prático) imposto pela cinematografia hollywoodiana às outras
8
Nagib, Lucia: “Towards a Positive Definition of World Cinema”, in Remapping World Cinema
Identity, Culture and Politics in Film, Wallflower Press, 2006.
9
Bordwell, David: The way Hollywood tells it – Story and style in modern movies, University of
California Press, 2006.
10
In Bordwell&Thompson, Film History – An Introduction, McGraw Hill, New York, 2003, p.249.
12
cinematografias, aliada à renovação do quadro teórico e conceitual que
permite definir o objeto mesmo desta historiografia, alargando o seu âmbito
tanto em termos estritamente histórico-geográficos (novos cinemas nacionais)
como em termos tecno-estéticos mais amplos (novas tecnologias e novas
formas de linguagem e expressão audiovisuais).
Pressupor, porém, que a mera ampliação do âmbito e do escopo dos film
studies possibilita a superação automática do binarismo ou dualismo que
caracteriza a história e a teoria tradicionais do cinema não é muito prudente,
na medida em que a mudança que se verifica nesta área de pesquisa, nos
últimos vinte e cinco anos, pode ser descrita como uma inflexão do universal
em direção ao particular. Assim é que as formas mais tradicionais de narrativa
da história do cinema vêm sendo gradativamente nuançadas por uma contra-
perspectiva que enfatiza o pluralismo intrínseco às diversas experiências
cinematográficas e seu caráter fragmentário e descontínuo.
Em outras palavras: a oposição entre cinema hollywoodiano e outras
cinematografias não se configura como binária, se, com isto, apenas se opõe o
uno ao plural, de tal forma que, à forma identitária construída pelo modelo
dominante, opõem-se sucessivas contra-identidades igualmente modelares,
apresentando-se sempre sob a forma unitária da identidade. Escamoteia-se,
assim, a diferença real e operante a ser pensada dentro do e a partir do cinema
que o próprio dispositivo cinematográfico aciona em todo e qualquer filme, e
que diferencia o cinema de si mesmo em cada uma das re-atualizações
concretas do seu dispositivo (digamos, a cada volta de um rolo de negativo, no
chassis de uma câmera), tornando-se impossibilitada qualquer definição
historicamente mais precisa do seu conceito.
O que é o cinema? Deve-se descrever o cinema como um objeto passivo
e inerte das relações sócio-históricas que o possibilitam, seja como película ou
como texto, como mercadoria ou como discurso? Ou será possível pensá-lo
como um dispositivo apto a estabelecer variados agenciamentos,
historicamente concretos, entre diferentes modelos, técnicas e linguagens?
Deve-se limitar sua definição conceitual a certos critérios técnicos e estéticos?
Se sim, quais? O cinema implica necessariamente o uso da película fotográfica
como suporte, a projeção pública em salas escuras ou o consagrado formato
estético do longa-metragem de ficção? Se não, como podemos defini-lo, quais
13
são os seus limites em relação a outras técnicas e a outras artes, qual seria sua
diferença específica?
Independentemente da resposta que se dê a cada uma dessas questões em
particular, a questão fundamental que permeia a todas, e que invariavelmente
surge quando se procura respondê-las, é a da historicidade intrínseca ao
cinema. E é precisamente o caráter duplo desta historicidade que aparece ao
pesquisador como um fenômeno quase inevitável: o cinema, em qualquer
circunstância, pode sempre ser simultaneamente considerado, por um lado,
como instrumento material de um processo técnico de reprodução industrial de
filmes entendidos como produtos ou mercadorias e, por outro, como efeito
cultural de um ou mais códigos estéticos que propiciam uma forma qualquer
de representação cinematográfica.
A idéia de que o historiador de cinema deve “evitar o binarismo” é,
portanto, uma perspectiva teórica que procura exorcizar o espectro desta
dualidade sobre a história do cinema, pois a oposição entre o cinema
hollywoodiano e outros cinemas apenas reflete, em um nível bem específico
de análise, a oposição mais ampla e fundamental que dilacera a pesquisa nesta
área entre duas possibilidades distintas de inscrição do filme na história: a
genealógica e a arqueológica.
uma oscilação na historiografia do cinema, uma espécie de
movimento pendular entre essas duas formas antitéticas de abordagem teórica.
Enquanto fazer a genealogia do cinema implica definir sua identidade histórica
a partir de suas origens ou proveniências, descrevendo-o como uma prática
social específica em termos tecno-estéticos e/ou sócio-econômicos, estudar sua
arqueologia significa compreender o momento histórico de sua emergência e
relacioná-lo a outras práticas, conceitos, dispositivos e discursos mais ou
menos afins
11
. Afirmar que a história do cinema deslocou-se de uma visada
unitária e universalista em direção a uma abordagem mais pluralista e
fragmentária significa dizer que a abordagem arqueológica do cinema vem se
11
Sobre o conceito de genealogia em Nietzsche, ver Foucault, Michel: “Nietzsche, Genealogy, History”,
in Essential works of Foucault 1954-1984, vol. 2 Aesthetics, Method and Epistemology, (James Faubion,
Ed.) Penguin Books, London, 1998, pp. 369-392.
14
justapondo gradativamente à forma tradicional de sua historiografia,
dominante até meados dos anos 1970.
Da experiência cinematográfica da história
No campo da teoria da comunicação, a recepção do trabalho de Foucault
foi ampla e frutífera: a atual renovação que se verifica na historiografia do
cinema deve muito, com efeito, às novas perspectivas de pesquisa abertas pelo
método arqueológico. Historiadores do cinema, como Tom Gunning, Charles
Musser, Giusy Pisano, André Gaudreault ou Flavia Cesarino Costa,
apresentam um quadro histórico das duas primeiras décadas do cinematógrafo
que é coerente com os estudos de escopo mais amplo que procuram pensar o
surgimento do cinema a partir de suas correlações fundamentais com as
grandes mutações perceptivas e conceituais que marcam a emergência da
modernidade
12
.
No entanto, a leitura que os teóricos da comunicação fazem de Foucault,
tende a ser, muitas vezes, reducionista, pois o enunciado passa a ser
hipostasiado em sua condição de suporte material da significação e remetido à
história dos dispositivos técnicos que possibilitaram o próprio surgimento da
teoria da comunicação como campo de estudos específico
13
. Nesta chave de
leitura, o pensamento de Foucault reaparece subitamente, diante de nossos
olhos, travestido pela retórica publicitária que quer fazer do meio sua própria
mensagem. Situando-se, assim, nessa “terra de ninguém” localizada entre o
idealismo abstrato do signo lingüístico e a materialidade concreta do
dispositivo técnico, o trabalho de Foucault é frequentemente “deslido”, tanto
por historiadores como por teóricos da comunicação.
O ponto de encontro privilegiado dessas duas formas opostas de
“desleitura” é precisamente a história do cinema e sua inerente tensão entre
um olhar genealógico, que pensa diacronicamente a constituição do cinema
como arte, como uma linguagem específica, e um olhar arqueológico, que o
correlaciona sincronicamente a outras técnicas e dispositivos similares. Tal
12
Gumbrecht, Hans Ulrich : A Modernização dos Sentidos, Editora 34, São Paulo, 1998.
13
Ver o volume Materialities of Comunication, editado por Gumbrecht, H.U. e Pfeiffer, K.L., Stanford
University Press, 1994.
15
tensão tende a se manifestar através de duas questões paralelas: a do filme
como objeto histórico de estudo (a teoria e a história do cinema) e a do cinema
como objeto historiográfico de uma possível teoria da história.
Se o cinema, como práxis, não se esgota em uma linguagem ou em um
dispositivo, mas se constitui na imbricação de uma série de mediações
(sociais, técnicas, institucionais e rituais) entre diferentes matrizes culturais e
formatos industriais, entre diversas lógicas de produção e competências de
recepção
14
, não é possível responder à primeira questão sem responder
também à segunda. Isto significa que o cinema não apenas reflete, em seus
variados modos de representação, as possíveis relações pensáveis, isto é,
imaginárias, entre o tempo e a história, mas, sobretudo, reproduz enquanto
fator histórico concreto, determinadas relações reais entre estes dois termos.
Assim, a teoria do cinema coloca para a teoria da história o problema de uma
ontologia do tempo. A possibilidade de uma história geral do cinema deve ser
abordada a partir da questão das relações entre cinema, tempo e história.
Procurando enfrentar tais questões, buscamos uma teoria a-semiótica e
anti-estética da representação cinematográfica. A chave para esta questão não
se encontra, a nosso ver, em nenhuma semiótica específica do filme nem em
qualquer tipo de recuperação estética, teórica ou prática, da representação,
compreendida em seu sentido tradicional como correspondência imitativa ou
re-duplicação de um número (in)determinado de cópias a partir de um suposto
modelo ontologicamente “mais” real. Procuramos antes construir uma
compreensão renovada e materialista da práxis cinematográfica como
cinemática da mímesis.
Uma cinemática da mímesis permite à teoria e à história do cinema
pensar o específico de sua práxis sem considerá-la apenas como expressão
estética (subordinada) de conflitos sociais a se desenrolar alhures (no campo
da economia política, por exemplo), mas também sem encerrá-la em um
suposto domínio da livre expressão artística, organizada em torno de um
pretenso sujeito autônomo. Isto porque o fenômeno da mímesis não se deixa
jamais subjugar inteiramente pelos códigos representacionais que o
14
Ver Martin-Barbero, Jesus: Anos 1990: Pensar a sociedade desde a comunicação”, in Ofício do
Cartógrafo, Ed. Loyola, São Paulo, 2004.
16
conformam socialmente, atuando a partir da própria materialidade (pré-
representacional) que suporta a mensagem, não como veículo semiótico da
representação, mas também como substância produtiva, plasmática, da forma
material que veicula o sentido da representação.
Como revelar, no interior do texto fílmico, a cinemática da mímesis?
Como desfazer a sutura operada pelos mecanismos cinematográficos de
representação e revelar a lógica cinemática da proliferação mimética?
Podemos afirmar que, no caso do cinema, a mímesis atua diretamente no
nível material da reprodutibilidade técnica, isto é, no nível reprodutivo do
dispositivo técnico considerado em si mesmo. Não entra em questão aqui,
ainda, a representação entendida como significação. É exatamente porque a
mímesis atua neste nível que a representação cinematográfica propriamente
dita será possível mais adiante. Uma cinemática da mímesis nos permitirá,
portanto, reconsiderar teoricamente a representação cinematográfica sem
abstrair os fatores materiais (técnicos, econômicos, políticos, culturais)
atuantes na reprodução do filme como mercadoria, mas também sem
considerar estes fatores como determinantes, em última instância, do sentido
da representação (versão forte) ou como seus condicionantes conjunturais
(versão fraca).
Da mímesis cinematográfica à cinemática da mímesis
Em nosso primeiro capítulo, retomaremos, entre a duração e o
instante, o problema dos possíveis regimes de temporalidade da história para,
em seguida, rearticulá-lo à questão do tempo no cinema. Constataremos, com
efeito, que um diferimento constitutivo, como fundamento ontológico do
próprio regime de temporalidade, é comum tanto à teoria da história como à
teoria do cinema, aparecendo sempre sob nomes diversos. Evento e processo,
momento e fluxo, contínuo e descontínuo são algumas das formas com que tal
questão pode ser pensada, em ambos os campos de estudo.
Na parte final deste capítulo, verificaremos de que modo, para a teoria
do cinema, tal tensão pode ser pensada como a necessária disjunção entre o
nível técnico da reprodução cinemática do tempo e o nível propriamente
17
estético em que se representa a sua passagem, e de que modo tal disjunção se
reflete no próprio tecido narrativo de vários filmes construídos a partir de uma
dialética entre a duração e o instante.
A cinemática da mímesis será abordada, no segundo capítulo, em sua
relação com o(s) regime(s) temporal(is) da narrativa e com a narrativa
cinematográfica e seus signos. A partir da convergência, verificada entre
teóricos da literatura (como Luiz Costa Lima) e historiadores (como Paul
Ricoeur), em relação à importância de se re-pensar o conceito aristotélico de
mímesis (tradicionalmente entendido a partir da distinção entre evento real e
fabulação imaginária, fato histórico e história ficcional), apontaremos para as
sucessivas reconfigurações do conceito de mímesis, pensando-as, de forma
sistemática, na teoria e na história do cinema.
Sob a tríplice forma da alegoria, da figura e do simulacro, tais
reconfigurações podem ser aplicadas não aos aspectos visuais como
também aos elementos sonoros e verbais que compõem a textura do filme,
delineando uma linha de fratura, ou disjunção, entre as operações
(cinemáticas) de modulação da matéria (ótica e acústica) do filme, e as
operações (cinematográficas) de codificação dos signos (visuais, verbais e
sonoros) do seu discurso.
No cinema, o nível mimético do simulacro oscila incessantemente entre
sua condição de índice material da reprodução técnica e de ícone modelar e/ou
significante da representação simbólica. Enquanto possibilidade, o simulacro é
o horizonte final de realização do cinema. Enquanto risco, é a própria
constituição histórica do cinema com um espetáculo artístico "sério", como um
"dar-se a ver" tecnicamente padronizado e baseado em modos consagrados de
representação da realidade, o que o coloca em rota de desvio em relação às
suas infinitas potencialidades. Minando os alicerces epistemológicos que
asseguram a um sujeito do olhar a suposta estabilidade de sua posição frente à
imagem, o simulacro avoca para si a pura reprodutibilidade como potência,
colocando-se no lugar da própria produção da realidade. A insistência do
simulacro em emergir como o duplo do dispositivo cinematográfico
demonstra-nos que, em vez de simplesmente espelhar a realidade, a
representação cinematográfica possui a mesma estrutura imaginária que subjaz
18
à própria realidade, a de uma tela protetora em que as imagens se sucedem
umas às outras para encobrir e esconjurar aquilo que seu duplo oculta e
anuncia
no mesmo movimento
como um último véu: o simulacro como o real
da representação.
Como pensar o dispositivo cinematográfico a partir desta tensão
dialógica que o simulacro provoca na imagem? Apenas uma análise precisa
das articulações históricas que se estabelecem, através da prática
cinematográfica, entre a reprodução técnica de imagens e sons e sua inscrição
simbólica no campo da representação estética, pode demonstrar a insistência
crescente com que o simulacro mimetiza a própria mimesis, desautorizando-a
em seu próprio movimento recorrente de auto-reflexão. Se o cinema não
realiza o simulacro em sua plena potência (como o faz a arte do vídeo), aponta
para a sua realização a partir da inexorável tensão, que habita os subterrâneos
da imagem cinematográfica, entre, por um lado, a dinâmica material de
técnicas de reprodução em mutação constante e, por outro, o peso estrutural
das convenções estéticas que reinscrevem o cinema no circuito artístico da
representação.
O cinema contemporâneo de entretenimento para as massas, com sua
estética hiper-realista viabilizada através de tecnologias digitais de
processamento de imagens e sons, não pode ser considerado como um
cinema tematicamente obcecado pela questão do simulacro, mas deve ser
analisado também como um cinema em que a proliferação e a recorrência do
duplo se constituem no real da representação, no mesmo movimento em que se
reflete na imagem representada. No entanto, para que esta questão seja
corretamente dimensionada, de um ponto de vista teórico, a velha oposição
conceitual entre um cinema industrial, baseado em gêneros quase invariáveis
de entretenimento, e um cinema experimental de vanguarda, baseado em
pesquisas e experimentos de linguagem, deve ser completamente descartada,
na medida em que situa a discussão exclusivamente no campo da
representação.
Na parte final do segundo capítulo, demonstraremos como a obra de
Deleuze se constitui em sólida base teórica para o estudo do dispositivo
cinematográfico como um dispositivo mimético analógico, na medida em que
19
se fundamenta em uma lógica duplamente disjunta - das sensações e do
sentido - que possibilita a dupla articulação do plano cinematográfico da
representação estética de signos ao plano cinemático da reprodução técnica de
objetos óticos e acústicos. Esta lógica permite a peculiar combinação de
Bergson e Peirce que caracteriza os seus livros sobre o cinema
15
, mas seus
princípios devem ser buscados na pragmática dos regimes de signos, de
inspiração peirceana, que é descrita em Mille Plateaux
16
.
Uma pragmática da experiência cinematográfica pode, assim, ser
esboçada. O terceiro capítulo, a geologia do cinema, é precisamente uma
tentativa de inserção da práxis cinematográfica nessa pragmática, descrevendo
sucessivamente os seus componentes fundamentais: gerativo,
transformacional, diagramático e maquínico. Trata-se não dos dispositivos
que a possibilitam (efeito-instrumento técnico), como também dos padrões
culturais específicos de recepção do seu discurso (efeito-instrumento estético),
bem como do papel preponderante que o fenômeno da mímesis desempenha na
mediação entre esses dois níveis de inserção histórica do cinema, isto é, de sua
práxis. Enquanto o componente gerativo nos revela o caráter
fundamentalmente audiovisual da mímesis cinematográfica, baseada na
disjunção entre o olhar e a escuta, uma série de estratos ou níveis de
temporalização da experiência cinematográfica nos demonstra como o seu
componente transformacional se baseia na disjunção entre o real e o
imaginário, que caracteriza a sua práxis. O componente diagramático do
cinema, finalmente, nos permite mapear os extratos de um filme, seja para
localizá-los na história do cinema, seja para traçar suas coordenadas e linhas
de força em relação a qualquer evento.
Na conclusão, entre o objeto e seu duplo, retomaremos a teoria do
filme de Kracauer, para demonstrar sua pertinência e validade epistemológica
na tentativa de repensar, no âmbito de uma teoria geral da comunicação, as
relações entre cinema, tempo e história, a partir de uma cinemática da mesis
15
Deleuze, Gilles: Cinéma 1 - L'Image-Mouvement, Les Éditions de Minuit, Paris, 1983 e Cinéma 2 -
L'Image-Temps, Les Éditions de Minuit, Paris, 1985.
16
Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1980.
20
que aponte para o seu componente maquínico como uma nova teoria da
espectatorialidade.
Kracauer tentou pensar o cinema como a mímesis praxeos
17
de nossa
época, mas sua fundamentação ontológica do filme, na textura ótica da
fotografia, prejudicou o alcance histórico e o escopo técnico/estético do seu
trabalho. Se a mímesis cinematográfica for ontologicamente fundamentada a
partir de sua própria cinemática, isto é, a partir de um diferimento temporal
necessariamente constitutivo de suas tensões no plano específico do seu
discurso narrativo (tanto histórico/documental quanto ficcional), sua
reconsideração, no quadro de uma pragmática da experiência cinematográfica,
permitirá a análise da auto-reflexividade como um processo de auto-revelação
do cinema como máquina de guerra acoplada a uma série de aparelhos de
captura.
Como pensar o dispositivo cinematográfico como uma verdadeira
máquina de guerra, sobretudo se este teima em funcionar como aparelho de
captura? Na medida em que o cinema se insere, tanto como linguagem artística
quanto como dispositivo técnico-científico, em um processo mais amplo, seu
papel histórico específico consistiria, a princípio, na padronização do próprio
processo mimético em que se baseia a sutura simbólica constitutiva dos seus
signos - visuais, sonoros, e verbais. No entanto, a sutura operada pelo signo
cinematográfico se faz mais frágil e efêmera à medida que a desrealização da
mímesis atinge com ela suas conseqüências mais radicais: é a própria
cinemática da mímesis que contém os germes da autodissolução da mímesis
cinematográfica como tal, isto é, de sua superação histórica como forma
hegemônica de espetáculo.
Assim, o cinema mantém sempre em aberto, para o espectador, a
possibilidade de pensar seu próprio pensamento como o movimento de
abstração geral dos objetos sensorialmente perceptíveis (e capturáveis) através
de dispositivos miméticos de equivalência. Pensar o cinema como máquina de
guerra é pensar o cinema como máquina de pensar. Repensar a história do
cinema nestes termos implica, portanto, o desejo de repensar o cinema em sua
radicalidade ontológica, não apenas arqueologicamente, em seu vínculo
17
Aristóteles, Poética (50 b 3), in OS PENSADORES, Vol. IV, Ed. Abril, São Paulo, 1973.
21
histórico com as práticas e dispositivos miméticos da sociedade industrial
capitalista do último quartel do século XIX, mas também genealogicamente,
como práxis mimética efetivamente capaz de pensar sua própria mímesis, ao
longo do seu processo temporal de desdobramento. É nesta dupla articulação
do cinema com a história que este trabalho pretende se instalar.
22
CAPÍTULO 1
ENTRE A DURAÇÃO E O INSTANTE
Time is an ocean/
But it ends at the shore
Bob Dylan
Diferimento temporal e historialidade
O problema da passagem do tempo está na impossibilidade última tanto
de negá-lo quanto de afirmá-lo. Trata-se de um dos fenômenos mais
intrigantes e controversos da existência, um objeto de apaziguamento e
esconjuro incessante por parte do pensamento tico
18
e um alvo permanente
de debates filosóficos e científicos acerca de sua real substância. Evidência
inegável aos nossos sentidos, a passagem do tempo é muitas vezes percebida
como uma sensação de perigo ou ameaça iminente, como a realização
inelutável e imprescritível do destino ou como uma manifestação incontrolável
do acaso e do inesperado.
A demonstração do caráter ilusório do tempo e a consequente negação
formal de sua realidade empírica, objetiva e concreta se constituíram em uma
preocupação fundamental para os primeiros filósofos: da ontologia do Ser
eterno e imutável em Parmênides à metafísica das Idéias atemporais perfeitas
em Platão, a demonstração do caráter ilusório do tempo se fez acompanhar por
uma forte desvalorização de todas as percepções empiricamente fornecidas
pelos cinco sentidos. Os famosos argumentos de Zenão de Eléia, discípulo de
Parmênides, expressam eloqüentemente a operação conceitual que enfatiza a
permanência em detrimento da mudança, negando não só a realidade da
passagem do tempo como também, e principalmente, a realidade de todo e
qualquer translado ou movimento perceptível
19
.
O terceiro argumento de Zenão, segundo Aristóteles, “pretende que a
flecha, em seu vôo, esteja imóvel. Deriva-se da suposição de um tempo
18
Ver, por exemplo, Eliade, Mircea: Le sacré et le profane, Ed. Gallimard, Paris, 1965, pp. 60-97.
19
Ver Bornheim, Gerd (trad. e org.): Os Filósofos Pré-Socráticos, ed. Cultrix, São Paulo, 1972, e também
Nietzsche, Friedrich: La Naissance de la Philosophie à L'époque de la Tragédie Grecque, éd. Gallimard,
Paris, 1938.
23
composto de instantes; recusada esta hipótese, cessa o silogismo
20
”. A
decomposição analítica do tempo em seus instantes constituintes fornecia as
bases de sua própria negação. A demonstração - contra todas as evidências dos
sentidos - da impossibilidade gica do movimento da flecha era também uma
demonstração da impossibilidade lógica da passagem do tempo como um
fluxo contínuo, como uma "flecha" que aponta, irreversivelmente, para o
nosso presente, ou seja, cuja direção inexorável determina a inevitabilidade de
nossa própria existência. A irreversibilidade do tempo era relegada, assim, à
condição de mera sensação subjetiva, pura ilusão fenomênica, e sua passagem
objetivamente negada pela razão teórica.
O "empirismo" aristotélico, no entanto, não era capaz de contrapor-se
efetivamente à negação racional dos sentidos. A conhecida resposta de
Diógenes, o cínico, aos argumentos de Zenão - levantar-se e caminhar de um
lado para o outro - apenas ressaltava o caráter absolutamente paradoxal das
mais imediatas de nossas sensações quando confrontadas à sua própria
decomposição analítica pelo pensamento.
havia uma solução possível para este dilema, e esta significava a
consagração definitiva de uma metafísica da eternidade: o mundo fenomenal
percebido por nossos sentidos, o mundo da mudança e do movimento em que
uma infinidade de processos distintos se desenrola em diferentes momentos e
segundo durações variáveis, o mundo da passagem do tempo é um mundo
ilusório e provisório, corruptível e mortal. O verdadeiro mundo do Ser é a
esfera eterna em que todos os movimentos são circulares e, portanto, retornam
periodicamente a seu ponto de partida, o que implica a ausência total de uma
flecha temporal irreversível. Não mudança concreta de estados neste
mundo, apenas um harmonioso balé de esferas absolutamente proporcionais
entre si, com órbitas precisamente circulares e matematicamente calculáveis.
“‘Que importância tem o que não é eterno’, repete Santo Agostinho, e o eco de
suas palavras jamais será esquecido no Ocidente
21
”.
20
Bornheim, Gerd (trad. e org.): Os Filósofos Pré-Socráticos, ed. Cultrix, São Paulo, 1972, p. 63. O grifo
é nosso.
21
Koyré, Alexandre: Aristotelismo e Platonismo na Filosofia da Idade Média, in Estudos de História do
Pensamento Científico, Ed. Universidade de Brasília, 1982, p. 31.
24
Na famosa análise feita por Santo Agostinho no capítulo 11 de suas
Confissões, a existência do tempo nunca é afirmada, de forma resolutamente
inequívoca, pela mera constatação fenomenológica de sua passagem, pois o
tempo é este estranho objeto que se nega no seu próprio afirmar:
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se
o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, não sei. Porém, atrevo-me a
declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo
futuro, e se agora nada houvesse, não existiria tempo presente
22
.
Para Agostinho, se a percepção do tempo ocorre sempre em um tempo
presente, não se deve pensar o tempo em termos de ‘passado/presente/futuro’,
mas sim no presente do passado (a memória), no presente do presente (a
intuição direta) e no presente do futuro (a espera). Este triplo presente orienta
a nossa percepção da passagem do tempo no sentido de uma maior ou menor
(dis)tensão da alma entre a expectativa (do futuro) e a memória (do passado):
o “fio do tempo” corresponde ao jogo entre intenção e distensão que afeta o
espírito humano em sua interação com o mundo. O exemplo mais eloqüente
deste processo, segundo Agostinho, é o canto:
Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, a minha
expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar, a minha memória
dilata-se, colhendo tudo o que passa de expectação para o pretérito. A vida deste
meu ato divide-se em memória, por causa do que já recitei, e em expectação, por
causa do que hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que
era futuro para se tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima do fim, tanto
mais a memória se alonga e a expectação se abrevia, até que esta fica totalmente
consumida, quando a ação, toda acabada, passar inteiramente para o domínio
da memória. Ora, o que acontece em todo o cântico, isso mesmo sucede em cada
uma das partes, em cada uma das sílabas, em cada ação mais longa da qual
aquele cântico é talvez uma parte – e em toda a vida do homem, cujas partes são
os atos humanos. Isto mesmo sucede em toda a história “dos filhos dos
homens”, da qual cada uma das vidas individuais é apenas uma parte
23
.
Em sua discussão com os partidários de uma negação total da realidade
do tempo, Agostinho mantém o primado metafísico da eternidade imutável,
mas sua descrição da passagem do tempo como efeito do próprio movimento
de (dis)tensão da alma no tríplice presente abre a possibilidade de pensar os
diversos níveis (ou graus) de ontologização do tempo, tanto em sua mútua
relação hierárquica quanto em sua relação com a eternidade. Ao tempo
“psicológico” da alma, que pode ser contraído ou expandido na medida de sua
22
Agostinho, S.: Confissões, OS PENSADORES, Vol. VI, Ed. Abril, São Paulo, 1973, p. 244.
23
Idem, p.255.
25
própria (dis)tensão narrativa, superpõe-se o tempo antropológico da história
como história das gerações humanas: história e profecia constituem-se, assim,
nos pólos narrativos do tempo entendido como o avesso da eternidade, isto é,
como (dis)tensão humana e mortal da eterna e imutável co-presença do
presente à sua estrutura trinitária de atualização. Uma ontologia do tempo
como tempo objetivo da história deve fundamentar-se, assim, no próprio
processo subjetivo de (dis)tensão da alma e na dupla inscrição da imagem
neste processo, ora como vestígio reprodutor do passado, ora como signo
anunciador do futuro. É neste sentido que se pode afirmar, com Paul Ricoeur,
que Agostinho abre um caminho de investigação que só será plenamente
explorado pelas investigações fenomenológicas de Husserl, Heidegger e
Merleau-Ponty
24
.
Para o Heidegger de Ser e Tempo, uma ontologia do tempo é possível
como descrição da abertura originária do Ser à sua própria pre-sença (Dasein):
A análise da historicidade da pre-sença busca mostrar que esse ente não é
“temporal” porque “se encontra na história”, mas, ao contrário, que ele existe
e pode existir historicamente porque, no fundo do seu ser, é temporal.
Todavia, a pre-sença deve ser chamada de “temporal” também no sentido de ser
e estar “no tempo”. Mesmo sem uma construção historiográfica dos fatos, a pre-
sença, de fato, precisa e se vale de calendário e de relógio. Ela faz a experiência
do que “com ela” acontece, como acontecendo “no tempo”.
25
A temporalidade (Zeitlichkeit) é o fundamento objetivo de uma
experiência do Ser que se para a morte, isto é, que compreende sua própria
atualidade (Gegenwart) em termos de um diferimento temporal,
necessariamente finito, entre o porvir (Zukunft) e o “vigor de ter sido”
(Gewesenheit). A sensação subjetiva da passagem do tempo, bem como a
angústia a que é comumente associada, são a expressões ônticas desta
possibilidade ontológica, isto é, a atualização do ser do tempo nos entes do
mundo (ou a temporalização de sua temporalidade) a que Heidegger denomina
intra-temporalidade (Innerzeitigkeit).
A passagem do domínio objetivo da temporalidade para a realidade
subjetiva da intra-temporalidade, no entanto, recoloca o problema epistêmico
fundamental do caráter historicamente concreto das relações entre sujeito e
24
Para uma análise detalhada do livro XI das Confissões, ver Ricoeur, Paul: Temps et Récit 1 – L’intrigue
et le récit historique, Paris, Éditions du Seuil, 1983, pp.21 e seguintes.
25
Heidegger, Martin: Ser e Tempo, Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 1989, p.181.
26
objeto: a historialidade (Geschichtlichkeit), como regime temporal
intermediário, designa a experiência concreta do tempo vivido em
contraposição à tradicional metafísica abstrata e homogeneizante que pensa o
tempo de forma unidimensional, como uma linha orientada em que todos os
pontos (instantes) se equivalem.
Como fundamentar objetivamente o tempo de forma que este não seja
apenas uma abstração metafísica, sem, por outro lado, reduzi-lo à mera
sensação fugidia de sua fuga?
É a partir desta questão que Heidegger tentará pensar, em seu texto
Tempo e Ser, de 196?, o tempo como emergência de uma historialidade que é
o próprio processo de gestação dos entes do mundo (res gestae) – um processo
totalmente distinto da emergência da história como ciência (historia rerum
gestarum):
O tempo não é. -se o tempo. O dar que tempo determina-se a partir
da proximidade que recusa e retém. Ela garante o aberto do espaço-de-tempo e
preserva o que, no passado, permanece recusado, e, no futuro, retido.
Denominamos o dar que dá o tempo autêntico, alcançar que ilumina e oculta. Na
medida em que o próprio alcançar é um dar, oculta-se, no tempo autêntico, o dar
de um dar.
26
Este “tempo autêntico” não é, de forma alguma, o tempo mensurável e
cronológico do calendário ou do relógio. Mas também não é mais o tempo
puramente subjetivo da vida humana que em Agostinho, diante da eterna
objetividade do Ser, se revelava afinal como puramente ilusória; trata-se,
antes, da própria determinação objetiva da subjetividade através da percepção
angustiada de um diferimento temporal irreversível. Objetivando-se na
abertura do Ser para a finitude da existência, o tempo historial entretém com o
tempo histórico uma relação similar à que este último entretém com a
narrativa historiográfica, pois a historialidade do Ser, como princípio
ontológico, não se confunde com a simples constatação ôntica da historicidade
de um ente qualquer, da mesma forma que esta mesma historicidade
considerada em si e por si não depende em medida alguma de sua possível
fixação em uma tradição narrativa qualquer.
Giorgio Agamben demonstrou, em seu livro Infância e História, como
esta fundamentação ontológico-existencial do tempo em Heidegger não se
26
Heidegger, Martin: Tempo e Ser, in OS PENSADORES, Vol. XLV, Ed. Abril, São Paulo, 1973, p.46-
464.
27
opõe em absoluto à conhecida fundamentação marxista do tempo histórico na
noção de práxis
, na medida em que ambas combatem o historicismo vulgar e
sua concepção linear e abstrata do tempo, embora o façam em terrenos
diferentes.
Enquanto o problema da concepção marxista clássica reside
precisamente no fato de que o seu rompimento com o historicismo burguês
nunca foi total - e é precisamente o desaparecimento do conceito de práxis da
corrente principal do marxismo que testemunho de sua contaminação
historicista - o problema da concepção heideggeriana está na ausência de uma
articulação precisa entre o tempo historial e o tempo histórico, isto é, entre o
“agora” da sujeição de um ente qualquer ao tempo e a sua posterior
objetivação ôntica em algum momento da história.
A este “agora” do evento, em sua dimensão historial, literalmente pré-
histórica, Heidegger denomina Ereignis, o que “subtrai o que lhe é mais
próprio ao desvelamento sem limites”
27
, radicalizando o seu anti-historicismo
com fórmulas que parecem sugerir que o evento é precisamente aquilo que não
se pode objetivar a partir de condições históricas determinadas:
Na medida em que ser e tempo só se dão no acontecer apropriador
(Ereignis), deste faz parte o elemento característico que consiste em levar o
homem, como aquele que percebe ser, in-sistindo no tempo autêntico, ao
interior do que lhe é próprio. Assim apropriado, o homem pertence ao Ereignis.
Este pertencer a reside na reapropriação que caracteriza o Ereignis. Por esta o
homem está entregue ao âmbito do Ereignis. A isto se deve o fato de nunca
sermos capazes de colocar o Ereignis diante de nós, nem como algo que se opõe
a nós, nem como algo que a tudo abarca. É por esta razão que o pensamento que
representa e fundamenta corresponde tão pouco ao Ereignis quanto o dizer
simplesmente enunciador.
28
Se o marxismo deixou-se contaminar em demasia pelas condições
objetivamente históricas do seu “acontecer apropriador”, Heidegger foi
incapaz de transpor conceitualmente o domínio subjetivo da intra-
temporalidade para articulá-lo objetivamente à historialidade da pre-sença e,
em seguida, à questão da historicidade, como bem o observa Paul Ricoeur:
Deve-se admitir que a ontologia do Dasein baseia-se em uma
fenomenologia que apresenta problemas análogos aos que a fenomenologia de
Agostinho e de Husserl suscitam (...) o paradoxo está no fato de que Heidegger
tornou mais difícil a conversa triangular entre historiografia, crítica literária e
fenomenologia. Pode-se duvidar, com efeito, que ele tenha conseguido deduzir o
conceito de história familiar aos historiadores profissionais, assim como a
27
Idem, p.467.
28
Idem, p.468.
28
temática geral das ciências humanas proveniente de Dilthey, da historialidade do
Dasein que, para a fenomenologia hermenêutica, constitui o nível mediano na
hierarquia dos graus de temporalidade. Ainda mais grave, se a temporalidade
mais radical carrega a marca da morte, como poderemos passar de uma
temporalidade fundamentalmente privatizada pelo ser-para-a-morte ao tempo
comum que requer a interação entre múltiplos personagens em uma narrativa e,
sobretudo, ao tempo público que requer a historiografia?
29
Em todo caso, se coube a Heidegger o mérito de haver pensado o tempo
historial do evento em toda a sua radicalidade ontológica, é a Walter Benjamin
que devemos ainda segundo Agamben - a primeira tentativa de pensar uma
dialética da temporalidade em que o agora do tempo (Jetzt-Zeit) não não se
confunde com o instante abstrato do momento, em sua acepção convencional,
como, sobretudo, irrompe extaticamente, de fora para dentro, na linearidade do
tempo histórico, sob a forma da revolução. Esta concepção “messiânica” do
tempo confronta a objetividade concreta do evento à sua abstração factual pela
história:
O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente
que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito
define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O
historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz
desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar
no bordel do historicismo com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das
suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da
história
30
.
É no diferimento entre tempo messiânico e tempo histórico que se pode
decidir a luta de classes, pois a morte aqui não é apenas um dos pólos abstratos
do diferimento intra-temporal como abertura do Ser para o mundo, mas sim a
interrupção concreta e instantânea do fluxo temporal contínuo em sua
inexorabilidade, a última arma dos vencidos contra os vencedores na batalha
pela história, isto é, pelo privilégio da determinação factual da verdade
entendida como “aquilo que realmente se passou”.
Para Benjamin
31
, a dialética temporal subjacente à história é, por
definição, social e coletiva: a interrupção (histórica) do tempo histórico é
sempre uma possibilidade de ação política dos homens como sujeitos de sua
29
Ricoeur, Paul: Temps et récit 1 – L’intrigue et le récit historique, Paris, Éditions du Seuil, 1983, p. 160.
A tradução é minha.
30
Benjamin, Walter: “Sobre o conceito de história”, in Walter Benjamin: Obras Escolhidas – Magia e
Técnica, Arte e Política, Rio de Janeiro, Ed. Brasiliense, 1987, p. 230-231.
31
Acerca das relações entre o tempo e a história em W.Benjamin, ver Gagnebin, Jeanne Marie: História e
narração em Walter Benjamin, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1999, pp.96-97 e seguintes.
29
própria história, revolucionando-a em seus próprios fundamentos. Isto coloca,
na verdade, um problema muitíssimo mais grave para o pensamento do que a
idéia de que o homem seria um “ser-para-a-morte”: como evitar que a
resolução dialética entre as condições históricas objetivas de um determinado
momento da luta, de um lado, e as posições de subjetivação em confronto, por
outro, se realize de forma a que o desejo subjetivo de transformação se re-
converta em um poderoso fator social de conservação do status
quo, isto é, das
mesmas condições historicamente objetivas que se desejava transformar a
princípio?
Por outro lado, em suas “Reflexões sobre a história e sobre o jogo
Agamben oferece, a partir da distinção conceitual entre sincronia e diacronia,
uma interessante chave de leitura para o modo como a história pode ser
pensada objetivamente como diferimento temporal. Haveria uma concepção
sincrônica do tempo que subordina a sucessão diacrônica de acontecimentos à
idéia do ciclo (expressa pelo rito e pelo mito), e uma concepção diacrônica do
tempo que subordina a estrutura sincrônica dos ciclos a uma concepção linear
dos acontecimentos (expressa pelo jogo e pelo chiste). Estas duas concepções
podem ser remetidas à distinção feita pelos antigos gregos entre chrónos e
aiôn:
Em uma célebre passagem do Timeu, Platão apresenta a relação entre
chrónos e aiôn como uma relação entre cópia e modelo, entre o tempo cíclico
medido pelo movimento dos astros e a temporalidade sincronicamente imóvel.
O importante para nós não é tanto que aiôn, ao longo de uma tradição ainda
viva, tenha sido identificado à eternidade e chrónos ao tempo diacrônico, mas
sim que nossa cultura conheça, desde as suas origens, uma cisão entre duas
noções do tempo correlatas e opostas
32
.
Agamben toca aqui no cerne da questão: a de uma tensão inerente ao
regime de temporalidade que nos permite pensar a história como ciência. Para
além da concepção historicista tradicional, que identifica o tempo da história
ao relógio e ao calendário, contrapondo-o idealisticamente ao tempo clico e
imutável da eternidade, como conceber ontologicamente este tempo ou regime
temporal da historialidade?
A solução de Agamben parece apontar para o próprio processo de
diferimento temporal como resposta: inspirando-se na distinção levi-
32
Agamben, Giorgio: Enfance et Histoire – Destruction de l’expérience et origine de l’histoire, Petite
Bibliothèque Payot, Paris, 2002, pp.134-135. A tradução é minha.
30
straussiana entre “sociedades frias” e “sociedades quentes”, Agamben
sugere
que é a própria tensão entre os elementos sincrônicos e diacrônicos de uma
determinada cultura, entre rito e jogo ou entre mito e dito, que se constitui no
diferimento temporal a que chamamos de “história, ou seja, tempo humano”
33
.
Segundo Lévi-Strauss, “enquanto o rito transforma o acontecimento em
estrutura, o jogo transforma a estrutura em acontecimento
34
”. Se o rito assume,
assim, a atitude tradicional de procurar abolir o diferimento temporal na
estrutura cíclica do mito, o jogo exerce o efeito simetricamente inverso,
transformando a repetição sincrônica do rito em séries temporalmente
diferidas de acontecimentos irrepetíveis. É a partir desta concepção do jogo
como diferimento temporal que Agamben pensa a sua ontologia do tempo
histórico, pois as séries de acontecimentos assim geradas não se orientam
teleologicamente sobre a linha reta e contínua de um desenvolvimento crono-
lógico. Apresentam-se, antes, como desvios casuais e fortuitos de uma regra
abstrata, como vestígios de uma regra outrora observada, ou como eventos
inesperados e surpreendentes que nenhuma regra é capaz de explicar, prever
ou controlar.
Agamben baseia-se na crítica benjaminiana do instante abstrato e linear
para fundamentar, assim, uma concepção da história em que sincronia e
diacronia seriam apenas extremos assintóticos dentro dos quais diferentes
curvas de diferimento temporal seriam possíveis:
Se representarmos o devir histórico como uma pura sucessão de
acontecimentos, como uma diacronia absoluta, seremos forçados a supor, na
tentativa de preservar a coerência do sistema, uma sincronia oculta (lei causal ou
teleológica, pouco importa) que estaria presente em cada instante pontual,
embora seu sentido se revele dialeticamente no processo global. O instante
pontual como interseção da sincronia e da diacronia (como presente absoluto),
não passa de um mito de que se serve a metafísica ocidental para garantir a
continuidade de sua dupla concepção do tempo. Por um lado (...) não podemos
identificar a sincronia à estática, mais do que a diacronia à dinâmica; por outro,
e principalmente, não há acontecimento puro (diacronia absoluta), nem pura
estrutura (sincronia absoluta). Todo acontecimento histórico representa um
diferimento entre diacronia e sincronia (...) Por isto, não se deve representar o
devir histórico como o eixo de uma diacronia em que os pontos a, b, c...n
designariam os instantes sem extensão em que sincronia e diacronia coincidem,
mas, antes, como uma curva hiperbólica que exprime uma série de
distanciamentos diferenciais entre diacronia e sincronia (curva para a qual, em
33
Idem, p. 137.
34
Lévi-Strauss, Claude: La Pensée Sauvage, Paris, Plon, 1962, pp.44-45.
31
consequência, sincronia e diacronia são apenas dois eixos de referência
assintóticos)
35
.
Assim como situa o acontecimento histórico no mesmo regime de
temporalidade que o evento (Ereignis) heideggeriano ou que o “tempo do
agora” (Jetzt-zeit) benjaminiano, Agamben também aponta para o momento da
enunciação em Foucault como o domínio subterrâneo do acontecimento em
sua singularidade irredutível: não se trata mais de pensar a transmissibilidade
do signo e suas articulações semânticas através de uma história controlada por
seus autores, isto é, pelos sujeitos ou vozes de sua enunciação, trata-se de
pensar a livre dispersão espaço-temporal dos enunciados, em suas formações
discursivas, como objetos de uma análise que supere a dicotomia entre
facticidade e tipicidade, causalidade mecânica e autonomia da vontade,
racionalismo e empirismo, sujeito e objeto, empírico e transcendental
36
. Nem
universal nem particular, o enunciado não deve ser confundido com o signo na
medida em que diferentes séries de enunciados podem atingir um maior ou
menor alcance na cristalização espaço-temporal de suas formações discursivas
da mesma forma com que séries mais ou menos aleatórias de acontecimentos
delineiam suas próprias curvas de diferimento temporal. Assim como o
momento da enunciação não se deixa apreender interiramente por nenhum
regime particular de significação ou língua, o acontecimento como tal não se
deixa apreender pela história nem como tipo ideal ou atualização recorrente de
um mesmo modelo do que seja um fato histórico, nem como momento
particular de um encadeamento causal de fatos sucessivos, agrupados de
acordo com uma identidade conceitual determinada (história dos fatos
políticos, econômicos, sociais, etc.):
Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem
qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos.
Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se
efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência,
dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o ato nem
a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão
material. Digamos que a filosofia do acontecimento deveria avançar na direção
paradoxal, à primeira vista, de um materialismo do incorporal
37
.
35
Agamben, Giorgio: Enfance et Histoire – Destruction de l’expérience et origine de l’histoire, Petite
Bibliothèque Payot, Paris, 2002, pp.138-139. A tradução é minha.
36
Sobre as relações entre Foucault e a história, ver Veyne, Paul: Foucault revoluciona a história,
Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1982, pp. 147-198.
37
Foucault, Michel: A ordem do discurso – aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970, Edições Loyola, São Paulo, 1996, pp. 57-58.
32
Ao situar a sua análise no campo do que denomina “a priori” histórico,
Foucault demonstra claramente a radicalidade do seu projeto epistemológico:
o acontecimento é o fato antes que este se torne histórico, isto é, antes que
ocorra a sua efetiva historicização, e é por isto que Slavoj Zizek enfatiza o
anti-historicismo latente da Arqueologia do Saber - esta “subestimada obra-
chave”, em suas perspicazes palavras
38
.
O problema é que este anti-historicismo não deve ser confundido (como
o faz grande parte da crítica marxista) com uma suposta negação da história,
pois uma relação a precisar entre a história e o tempo, uma relação
problemática que tende a ser escamoteada pela historiografia mais tradicional.
Segundo Friedrich Kittler, por exemplo, Foucault seria “o último historiador
ou o primeiro arqueólogo
39
”; o método arqueológico marcaria o fim do
pensamento histórico como tal, isto é, a impossibilidade epistemológica de
uma autêntica filosofia da história no sentido hegeliano-marxista, ou mesmo
no sentido propriamente historicista do termo.
Entretanto, isto não implica a negação da história como um fenômeno
determinado pela passagem do tempo, pois negar a possibilidade de se conferir
um sentido único ou final à passagem do tempo não é o mesmo que negar a
passagem do tempo em si mesma. Trata-se, antes, de pensá-la de fora para
dentro, por assim dizer, recusando a perspectiva genética e organicista que
inscreve os eventos no interior de uma cadeia temporal pré-determinada de
fatos. O evento como enunciado é precisamente o que escapa ou salta para
fora de tais cadeias, irredutível às amarras significantes da frase e ao
aprisionamento lógico em séries de proposições.
O anti-historicismo do gesto arqueológico não opõe, em absoluto, o
fluxo histórico linear a uma suposta estrutura transcendental ahistórica. Busca,
antes, situar-se no plano material de imanência em que uma série de
enunciados quaisquer pode se reconfigurar como arquivo, isto é, se reconhecer
em novas formações discursivas que permitam a constante reinterpretação dos
velhos fatos à luz dos novos acontecimentos. O trabalho do arquivista, por
oposição ao trabalho do historiador tradicional, consiste menos em uma
38
Zizek, Slavoj: Organs without bodies, Routledge, New York and London, 2004, p.10.
39
Kittler, Friedrich: Gramophone, Film, Typewriter, Stanford University Press, 1999, p.5.
33
narrativa dos fatos e mais em um mapeamento dos enunciados que os
delineiam e de sua classificação estratigráfica, isto é, arqueológica.
Não se trata mais aqui de uma espacialização do fluxo histórico no
sentido de uma fixação eterna da imagem do tempo, pois, à linha
unidimensional da história vem-se substituir a multi-dimensionalidade de uma
infinidade de devires que podem se atualizar como enunciados de forma mais
ou menos cristalizada (rito e mito) ou não (jogo e dito). múltiplos devires
na medida em que sempre múltiplas possibilidades de desvio diferencial
entre sincronia e diacronia, entre a regra e sua aplicação. O que se opõe à
linearidade do fluxo histórico do tempo, portanto, não é a imutabilidade eterna
da estrutura, mas sim o devir como regime temporal necessariamente diferido
sobre o qual vem se abater a História.
A eternidade aqui é apenas, como demonstra Slavoj Zizek em seu
comentário a Gilles Deleuze, uma imagem da “pura estrutura do tempo como
tal”:
Em termos deleuzianos, o momento da superposição estratigráfica que
suspende a sucessão temporal é o tempo como tal. Em suma, deve-se opor aqui
o desenvolvimento dentro do tempo à explosão do próprio tempo: o tempo em si
(a infinita virtualidade do campo transcendental do Devir) aparece dentro da
evolução intra-temporal sob o disfarce da eternidade. Os momentos de
emergência do novo são precisamente os momentos de Eternidade no tempo. A
emergência do novo ocorre quando uma obra supera o seu contexto histórico. E,
de forma oposta, se uma imagem verdadeira da imobilidade ontológica
fundamental, é a imagem evolucionária do universo como rede complexa de
transformações e desenvolvimentos sem fim em que plus ça change, plus ça
reste le même.
40
Obtém-se assim uma ontologia do tempo e da história que não opõe mais
a estrutura ao evento ou o sujeito ao objeto, na medida em que pensa a
historicização do fato como destemporalização do evento: se historicizar um
acontecimento é torná-lo paradigmático, isto é, típico, modelar ou ideal
(enquanto a dimensão historial do evento é justamente aquela que não se deixa
revelar inteiramente através de sua contextualização histórica), a tensão entre
devir e história, ou evento e fato, se apresenta inevitavelmente, como o
percebera Benjamin, na irrupção abrupta de um tempo do agora, descontínuo e
estático, sobre a dinâmica “linear” do fluxo dos acontecimentos.
40
Zizek, Slavoj: Organs without bodies, Routledge, New York and London, 2004, p.11.
34
Os problemas relacionados à ontologia do tempo e da história nos
conduzem, assim, a uma infinidade descontínua de séries temporais de
diferimento, em vez da linearidade contínua de um tempo histórico
abstratamente entendido: “(...) a cronologia ou a cronografia não possui
um contrário, a acronia das leis ou dos modelos. Seu verdadeiro contrário é
a própria temporalidade
41
”.
Como pensar a oposição entre tempo e cronologia, devir e história, na
sua relação com o problema do tempo no cinema? Haveria, de fato, alguma
relação entre o diferimento temporal objetivo que a filosofia da história nos
convoca a pensar e a reprodução cinemática do tempo? E quanto à
representação cinematográfica da história, quais são suas relações com a
historiografia como discussão metodológica sobre a representação da história?
A emergência do tempo cinemático
Desde a publicação dos volumes de Gilles Deleuze sobre o cinema
42
,
estes permanecem um tanto quanto mal digeridos pelos teóricos e
historiadores do cinema
43
. Pensador do devir e de suas relações concretas com
a história, Deleuze dedicou-se à tarefa de demonstrar que o cinema não
fornece apenas uma representação indireta e descontínua do tempo, na medida
em que é capaz de reproduzir diretamente o tempo contínuo de uma duração.
Com isto, lançou as bases para uma nova ontologia do filme, fundamentada na
duração entendida como a re-atualização potencial de séries ou camadas
diversas de diferimento temporal, e repensou a história do cinema em termos
de um desvelamento progressivo das potencialidades intrínsecas ao filme
como meio de expressão.
Deleuze indica um caminho para a reflexão teórica que nos permite
rearticular a história do cinema à questão das relações entre tempo, história e
narrativa. No entanto, antes de prosseguir na via de investigação aberta por
Deleuze, devemos nos interrogar mais detidamente sobre as origens históricas
das relações do cinema com o tempo.
41
Ricoeur, Paul: Temps et récit 1 – L’intrigue et le récit historique, Paris, Éditions du Seuil, 1983, p.65.
42
Deleuze, Gilles: L'Image-Mouvement, Les Editions de Minuit, Paris, 1983 e L'Image-Temps, Les
Editions de Minuit, Paris, 1985.
43
Ver, por exemplo, Moullet, Luc: The Green Garbage Bins of Gilles Deleuze, in La lettre du cinéma,
nº15, Automne 2000.
35
O que o cinema pode nos dizer sobre o tempo? Existe uma relação
definida, ou definível, entre cinema e tempo, de tal maneira que possamos
afirmar que um tempo objetivo com o qual o cinema nos põe em contato,
uma duração exterior a nós e ao próprio cinema, e da qual o cinema seria um
instrumento ou chave de acesso? Ou seria o tempo objetivo apenas o tempo
físico da projeção ou do desenrolar de um filme?
Haveria, de fato, uma dimensão temporal objetivamente exteriorizável
ou esculpível pelo cinema? Ou seria o cinema, em sua relação com o tempo,
apenas mais um dispositivo de simulação e manipulação de sensações
subjetivas? Representaria o cinema uma possibilidade de afirmação concreta
da passagem do tempo? Ou antes, pelo contrário, uma evidência a mais em
favor de sua negação, uma demonstração suplementar de seu caráter ilusório?
A resposta a estas questões é considerada relativamente simples, e, em
geral, negativa. O cinema é, notoriamente, uma fábrica de ilusões audiovisuais
e de efeitos capaz de nos fornecer representações extremamente convincentes
de nossas percepções sensíveis. Movimentos, cores, sons, e às vezes até
relevos são imediatamente projetados diante de nós com grande riqueza de
detalhes. Certas sensações mais sutis da existência, como a de um silêncio
fugidio ou um instante passado que subitamente retorna, foram abordadas pelo
cinema de uma forma com que nenhuma outra arte mimética jamais sonhara.
Por que então as inúmeras manipulações da duração e da ordem
temporal dos eventos que essa arte nos proporciona seriam consideradas de
maneira distinta?
No cinema, imagens e sons são utilizados para representar nossas
sensações psico-motoras segundo uma determinada estética, e isto inclui a
passagem do tempo. Mas seria o cinema capaz de nos fornecer apenas uma
imagem indireta do tempo, representações possíveis de tempos (histórico,
mítico, biográfico, "presente"…) culturalmente convencionados? Ou seria o
cinema capaz de atuar, de fato, como uma janela de fluxos, como um
instrumento apropriado para a observação científica e a interrogação filosófica
acerca do tempo?
um tempo objetivamente registrável ou observável pelo cinema? De
qual tempo estamos então falando? Do tempo constante e impessoal do relógio
ou do tempo subjetivamente imensurável (porque infinitamente variável) de
36
nossa percepção (orgânica)? Existiriam, talvez, outros tipos de tempo? Ou
seria o tempo apenas uma ilusão de nossas mentes, assim como as imagens
cinematográficas?
Quanto ao cinema, de qual cinema estamos falando exatamente? Do
bom e velho cinema projetado a partir de películas quimicamente
fotossensíveis ou dos diversos tipos de sinais eletrônicos e digitais que
carregam, hoje em dia, mensagens audiovisuais através de satélites, TVs
abertas e a cabo, telefones celulares e afins? Podemos transferir sem
modificações substanciais as questões e hipóteses suscitadas pelas formas
analógicas de cinema às suas novas formas digitais?
Para fornecer um início de resposta a estas perguntas, tentaremos
reenquadrar o empreendimento teórico deleuziano a partir de um panorama
conceitual mais amplo, situando o seu momento histórico específico como a
fase final do cinema entendido como um dispositivo técnico claramente
definível. Deste ponto de vista, estamos agora em um período mais parecido
com o século XIX, quando diversos dispositivos e articulações audiovisuais
disputavam espaço e atenção. O momento histórico no qual Deleuze escreve,
no início dos anos 1980, é o momento de apogeu de uma técnica e de uma arte
já consagrada, capaz de realizar plenamente suas potencialidades implícitas.
Para Deleuze, tais potencialidades apontam para uma renovação das
teses de Henri Bergson sobre o tempo como duração concreta,
qualitativamente perceptível. Embora a interrogação direta do tempo através
do cinema estivesse presente no trabalho de cineastas como Andrei
Tarkovsky
44
, tal possibilidade foi elaborada teoricamente, em todas as suas
consequências, a partir de uma nova ontologia da imagem cinematográfica
45
que não a subordina mais, necessariamente, a estruturas e modelos de
representação que lhe são extrínsecos (como a linguística, a antropologia, a
psicanálise, a semiologia, a psicologia cognitivista, etc.). No intuito de
demonstrar o progressivo desvelamento do tempo como conteúdo objetivo da
imagem cinematográfica, Deleuze recorre à totalidade da história do cinema
de então para demonstrar que "a essência de algo não aparece nunca em seus
44
Tarkovsky, Andrei: Esculpir o Tempo, Martins Fontes Ed., São Paulo, 1990.
45
Ver Xavier, Ismail: posfácio à 2ª edição de A Experiência do Cinema, Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1991,
pp. 477-483.
37
começos, mas sim nos entrementes, durante o seu desenvolvimento, quando
suas forças estão aguerridas
46
”.
Sabendo-se, no entanto, que a pré-história conceitual do cinema é
tributária da negação metafísica do tempo em sua acepção mais radical - a
afirmação do instante como pura abstração quantitativa e que o advento do
cinema digital re-introduz a questão do instante e da duração no cinema a
partir de um novo patamar técnico - o da variação na taxa de quantificação do
tempo pelo dispositivo - pode-se contestar em bloco o argumento deleuziano
de que o cinema e tempo estariam ontologicamente relacionados à suposta
objetividade concreta da duração bergsoniana.
Esta parece ser, com efeito, a posição de Mary Ann Doane em seu
estudo, The Emergence of Cinematic Time
47
. Situando-se metodologicamente
no ponto de convergência entre os estudos de corte arqueológico e
transdisciplinar de autores como Virilio, Kittler e Crary (que relacionam o
surgimento do cinema a várias outras séries de mutações e desenvolvimentos
práticos e teóricos coetâneos) e os estudos dos novos historiadores do cinema,
como Gunning, Musser e Gaudreault, Doane mostra-se bastante reticente
acerca das teses deleuzianas sobre o cinema e a duração bergsoniana,
demonstrando muito mais simpatia pela desconfiança que o próprio Bergson
expusera acerca do cinema como dispositivo técnico de reprodução do tempo:
O modo como Bergson rejeita taxativamente o cinema como um meio de
representação adequado do tempo coloca problemas para Gilles Deleuze, que,
em seu estudo em dois volumes das relações entre o cinema, o movimento e o
tempo, recorre a Bergson para estabelecer a moldura conceitual de sua
discussão. Uma forma de contornar o problema é argumentar, como faz
Deleuze, que o cinema desprezado por Bergson, em A Evolução Criativa, era
um cinema primitivo e que “as coisas não se definem por seu estado primitivo,
mas pela tendência escondida neste estado”. Outra abordagem reside na idéia de
que Bergson, na verdade, antecipou o cinema em sua magistral discussão sobre
o movimento e a duração no primeiro capítulo de Matéria e Memória
(publicado em 1896). Deste ponto de vista, o cinema emerge como uma
máquina filosófica para a demonstração da verdade da duração para a
apresentação do “tempo em seu estado puro
48
.
Enfatizando a inegável relação histórica que vincula as origens do
cinema às preocupações da sociedade industrial com a possibilidade de um
maior controle racional do tempo mensurável pelo relógio, Doane demonstra
46
Deleuze, Gilles: L'Image-Mouvement, Les Éditions de Minuit, Paris, 1983, p.11. A tradução é minha.
47
Doane, Mary Ann: The Emergence of Cinematic Time, Harvard University Press, 2002.
48
Idem, p.175. A tradução é minha.
38
como o cinema surgiu como um efeito e um instrumento da necessidade de
compreender e controlar o fenômeno do tempo em seu sentido abstrato e
quantitativamente mensurável, e não no sentido de uma duração
qualitativamente concreta, porém, inefável. Por isto, investigar a emergência
de um tempo especificamente cinemático, segundo Ann Doane, é compreender
como a concepção newtoniana clássica de um tempo retilíneo e linear, que
resulta da soma de uma sucessão de instantes entendidos como unidades
puntiformes e eqüidistantes, foi, ao mesmo tempo, consagrada e abalada pela
invenção do cinematógrafo.
Se o cinema afirma o tempo, afirma-o, a princípio, exatamente como
uma ilusão ou truque sensorial sem consistência objetiva: a imagem
cinematográfica, com sua textura fotográfica que corrobora a ilusão do
movimento, se produz em nosso cérebro (ou, como se pensava na época, em
nossa retina); portanto, não pode ser considerada como possível base
ontológica para se pensar as relações do cinema com o tempo (o que se dirá da
História). Assim, se o tempo cinemático está tecnicamente vinculado ao
“papel crucial do instante fotográfico e da instantaneidade na representação do
movimento e do tempo
49
”, constitui-se necessariamente como uma
representação indireta que elide constantemente o intervalo que separa a série
estática de fotogramas sucessivos através da velocidade mínima de projeção.
A continuidade do tempo da duração, no cinema, neste sentido preciso,
simplesmente não existe. Aliás, e não por acaso, o cinema contemporâneo é
pródigo em representações do tempo que enfatizam a simultaneidade e o
(des)controle do instante, como veremos mais adiante.
No entanto, é sintomático o fato de que, apesar de restringir sua análise
do tempo no cinema à questão de sua maior ou menor “representabilidade” -
isto é, à capacidade de estocá-lo a partir da captação regular de sucessivos
instantâneos fotográficos, para, em seguida, representá-los de forma mais ou
menos “legível” através da projeção igualmente regular destes instantâneos -
Doane privilegie justamente a cronofotografia de Marey em seu caráter de
índice direto da passagem do tempo sobre a película, relacionando-a com a
semiótica de Peirce. Mesmo considerando-se a representação do tempo pelo
49
Idem, p. 29.
39
cinematógrafo como um embuste, o caráter contingencial do instante
fotográfico confere ao cinema uma abertura para a imprevisibilidade real do
mundo, o que aproximaria o plano cinematográfico do conceito de índice em
seu caráter de rastro ou sinal de um fenômeno objetivo que, considerado em si
mesmo, é inteiramente desprovido de significação
50
.
Com isto, o tempo cinemático revela-se precisamente como um tempo
potencialmente reprodutor da dimensão historial (ou pré-histórica) do evento
em sua irreversibilidade diacrônica. O fluxo contínuo, irreversível e
incontrolável de imagens se desenrola inexoravelmente em uma determinada
direção e a uma velocidade constante, e isto independe do conteúdo
representacional enunciado pelo sintagma narrativo do filme:
O filme, em sua forma mais tradicional, parece encarnar o próprio
princípio da irreversibilidade. Em seu nível mais básico, um filme se move para
frente sem interrupções, reproduzindo a familiar direcionalidade dos
movimentos com absoluta regularidade, apesar de sua capacidade de fazer
exatamente o oposto. Mesmo o recurso relativamente raro da reversão do
tempo/movimento em gêneros como a comédia “pastelão” é sujeito ao
movimento mecânico e regular do projetor.
51
A própria possibilidade de reversão temporal, no cinema, reafirma,
paradoxalmente, o caráter irreversível do evento em sua singularidade. Além
disso, a diferenciação progressiva que a história do cinema apresenta entre o
tempo técnico, mecanicamente regular, de reprodução do movimento pelo
dispositivo (a duração da projeção de um filme), e o jogo temporal
representado por seus enunciados na construção de um discurso
cinematográfico (o tempo diegético da narrativa) leva Ann Doane a
reconhecer a necessidade de se proceder à distinção de diferentes regimes de
temporalidade dentro e fora do filme:
O cinema conjura múltiplas temporalidades e desentrelaçá-las pode ser
útil, mesmo que provisoriamente. Há a temporalidade do próprio aparato, linear,
irreversível e “mecânica”. Há a temporalidade da diegesis, o modo como o
tempo é representado pela imagem, as várias formas de evocar o presente e o
passado, o futuro e a historicidade. (…) E finalmente, a temporalidade da
recepção, teoricamente distinta mesmo que o desenvolvimento do cinema
clássico tenha tentado fundi-la o máximo possível com a temporalidade do
aparato, conferindo-lhe a mesma previsibilidade e irreversibilidade linear
52
.
50
Idem, ver pp.100-101 e seguintes.
51
Idem, pp.112-113. A tradução é minha.
52
Idem, p.30. A tradução é minha.
40
Doane detecta, nas origens do cinema, uma tensão constitutiva entre o
pólo cinemático da reprodução técnica do tempo e o pólo representacional da
narrativa cinematográfica, bem como os esforços do cinema, como instituição
e como linguagem, no sentido de escamotear esta tensão inerente a qualquer
plano cinematográfico:
(...) a inevitável tendência historiográfica do cinema, sua habilidade para
registrar o tempo “real” em sua duração, inicialmente uma fonte de fascínio
aparentemente infinito, apresentou dificuldades imensas para o cinema em seus
inícios. O tempo no cinema é claramente referencial; seu registro tem o peso da
indicialidade. Mas também é caracterizado por certa indeterminação, por uma
intolerável instabilidade. A imagem é a impressão de um momento particular
cuja singularidade se torna indeterminável exatamente porque a imagem não
anuncia sua própria relação com o tempo. O filme é, portanto, um registro do
tempo, mas um tempo não especificado e não identificável, desencarnado e sem
lastro. O cinema se torna, então, a produção de uma experiência genérica do
tempo, de uma duração. A ilegibilidade e a incerteza que permeiam a relação da
imagem com a temporalidade e sua origem não são problemas que se possa
resolver – de fato, são problemas insolúveis. No entanto, são escamoteados
através do desenvolvimento de elaboradas estruturas que produzem a imagem
de um “tempo real” unificado e coerente que parece muito mais “real” do que o
próprio “tempo real”. O cinema resultante é a delicada solução de compromisso
entre registro e significação
53
.
Na ausência de uma ontologia do tempo que permita desembaraçar o
cinema de um recorte metodológico limitado às suas origens, em uma
perspectiva exclusivamente historicista - isto é, voltada apenas para a
contextualização histórica de suas condições específicas de emergência - Mary
Ann Doane oscila constantemente entre um vocabulário que ora sugere a
reprodução técnica do tempo na película, ora refere-se à sua representação
narrativa no filme, e às vezes a ambos ao mesmo tempo. Desse modo, a
insolúvel contradição entre registro (recording) e significação (signification)
se manifesta como um limite interno ao seu texto, que jamais se pergunta
como é possível - tanto para o crítico e teórico de cinema como para o
espectador comum - determinar exatamente ora um ora outro dos possíveis
regimes de temporalidade em ação durante a projeção de um filme.
Assim, embora demonstre claramente como o cinematógrafo se
apresentava como uma fenomenologia do evento avant la lettre, e também
como a representação diegético-narrativa do tempo no cinema surgiu
exatamente como tentativa de controlar ou dirigir icônica e simbolicamente o
fluxo incontrolável de possíveis eventos índices ou marcas de uma
53
Idem, pp. 162-163.
41
temporalidade subterrânea aos enunciados do filme –, Mary Ann Doane não
chega a pensar o tempo cinemático do evento como um tensor constitutivo da
forma fílmica em todo o seu desenvolvimento histórico (a história do cinema,
no curto prazo), bem como das próprias formas sociais de recepção dos fatos
históricos (o cinema e a história, no longo prazo).
Mesmo assim, o livro de Mary Ann Doane é um marco importantíssimo
para o estudo das relações entre tempo e cinema, e isto por dois motivos:
primeiro, porque detecta com clareza a dimensão contingencial do evento
como um elemento fundamental para uma metodologia de análise do tempo no
cinema que possa ser aplicada a qualquer filme em sua singularidade
específica. Em segundo lugar, mas não menos importante, porque detecta uma
tensão constitutiva na história do cinema entre dois regimes distintos de
temporalidade, o tempo mecânico de seu dispositivo e o(s) tempo(s)
imaginário(s) dos seus diversos modos de enunciação, demonstrando como o
cinema, em seus inícios, conjurava e esconjurava incessantemente estes dois
pólos temporais em jogo no filme:
(…) o cinema passa do status de uma máquina que nos espanta e
impressiona devido à sua capacidade de registrar o tempo e o movimento, ao
status de uma máquina para a produção de temporalidades que mimetizam o
“tempo real”
54
.
Se a consolidação da linguagem cinematográfica clássica, nos primeiros
anos do século XX, resultou do embate entre diferentes regimes de
temporalidade e da supremacia de certo tipo de compromisso ou solução
(provisória) de que resultam as regras clássicas da sintaxe cinematográfica,
isto se deveu à forma com que o tempo dos enunciados passou a ser
combinado para escamotear o tempo da enunciação, que foi, por sua vez,
alinhado ao tempo mecânico do dispositivo de projeção
55
. Para Ann Doane, tal
operação se tornou possível na medida em que a reprodução mecânica do
tempo cinemático se baseia (ou, melhor dizendo, baseava-se) no controle
regular do instantâneo fotográfico, fazendo com que as diversas formas de
representar cinematograficamente o tempo e a duração se reconfigurem
54
Idem, p.31. A tradução é minha.
55
Acerca da distinção entre tempo do dispositivo, tempo da enunciação e tempo do enunciado, ver
Santaella, Lucia e Noth, Winfried: Imagem (Cognição, Semiótica, Mídia), Ed. Iluminuras, São Paulo,
2001, p. 80.
42
incessantemente a partir deste verdadeiro “assassinato primordial” que preside
ao nascimento do cinema: o escamoteamento/”esquecimento” do intervalo ou
lapso temporal que separa os fotogramas e, ao mesmo tempo, regulariza a sua
sucessão num fluxo contínuo de imagens. Por isto, o cinema seria capaz de
nos fornecer representações qualitativamente diferenciadas do tempo na
medida em que controla quantitativamente a reprodução do intervalo entre os
instantes, pré-ordenando o fluxo temporal de projeção de forma contínua e
linear.
À linearidade contínua do tempo abstrato e mecânico da reprodução do
filme - o tempo cinemático - se oporia, assim, a diversidade descontínua de
durações singulares que a representação cinematográfica é capaz de enunciar.
O cinema reproduziria então o instante mecânico, sempre igual a si próprio,
como forma de representar o tempo em sua diversidade fenomênica de
durações.
Entretanto, se o instante cinemático é apenas a materialização técnica do
tempo entendido como uma abstração metafísica, como um truque que pode
ser revertido a qualquer momento, como explicar que a pregnância de sua
passagem inexorável seja a experiência sensível mais concreta que podemos
ter do tempo no cinema? Como pensar a maneira com que o evento em seu
caráter indicial, pré-histórico e pré-significante, se imiscui de forma
potencialmente incontrolável e disruptiva desde dentro da película, ou seja, do
interior do próprio fluxo abstrato e mecanizado de instantes?
Entre a duração e o instante, qual é o verdadeiro estatuto ontológico do
tempo no cinema? Examinemos mais de perto as noções de instante e de
duração, em sua relação com o cinema e sua história.
Do instante: o cinema contra o tempo
Controlar o instante é uma ambição correlata à sistemática
desvalorização metafísica que o tempo sofreu na tradição filosófica do
ocidente, e que favoreceu, paradoxalmente, a sua posterior objetivação
instrumental, a partir da re-invenção do relógio mecânico em meados do
século XII. Como a regularidade com que os sinos das igrejas deveriam soar
as horas não se destinava a ressaltar a passagem do tempo em si, mas antes sua
eterna repetibilidade e constância, sua permanência cíclica como re-
43
atualização periódica de uma idéia
56
, houve uma crescente preocupação com a
contagem objetivamente precisa e automática das horas. Segundo Alfred W.
Crosby
57
, esta verdadeira obsessão com a regularidade das horas levou os
europeus a aperfeiçoarem o relógio mecânico, uma antiga invenção chinesa,
tornando-o mais preciso e confiável através da adoção de um dispositivo
oscilante, o escapo,
[que] interrompe regularmente, em milhares e milhares de repetições por
dia, a descida do peso do relógio, garantindo que sua energia seja
uniformemente gasta. O escapo não fez nenhuma contribuição para resolver os
mistérios do tempo, mas conseguiu domesticá-lo
58
.
Desprovida de qualquer substância, a passagem do tempo deixou de se
referir à duração concreta dos fenômenos observáveis e assumiu um caráter
quantitativo e uniforme, dividida em instantes postulados como absolutamente
regulares e reversíveis entre si. Assim, o tempo medido pelo relógio mecânico
era um tempo ontologicamente distinto do tempo medido por instrumentos
como a ampulheta:
Para muitas pessoas, o tempo se afigurava um fluxo não fracionado.
Assim, os experimentadores e inventores passaram séculos tentando medi-lo
imitando sua passagem contínua, isto é, o fluxo de água, de areia, de mercúrio,
de porcelana moída, e assim por diante - ou a combustão lenta e regular de uma
vela longe do vento. Mas ninguém jamais concebera um modo prático de medir
períodos longos por esses meios. A substância em movimento tornava-se
gelatinosa, congelava, evaporava ou se coagulava, ou então a vela queimava
num ritmo perversamente rápido ou perversamente lento, ou então se derretia -
alguma coisa saía errada. A solução do problema tornou-se possível quando se
parou de pensar no tempo como um continuum regular e se começou a pensar
nele como uma sucessão de quantidades. (…) O tempo, apesar de invisível e
desprovido de substância, estava agrilhoado (…) [se] os ocidentais não foram os
primeiros a dispor de relógios mecânicos (…) é incontestável que o Ocidente
singularizou-se pelo seu entusiasmo pelos relógios (…) e por sua transição
arrojada das horas desiguais para as horas idênticas
59
.
O mecanismo do escapo concretizava materialmente o instante como a
unidade elementar do tempo. Esta operação apresentava um alcance
revolucionário na medida em que efetivava, na prática, algo que a física
aristotélica, então dominante, considerava impossível: a quantificação do
tempo e do espaço.
56
Há uma clara ressonância linguística aqui entre os termos 'hora', 'oração' e 'relógio', em português
('horloge', em francês…) por um lado, e os termos 'clock' ('relógio', em inglês) e 'cloche' ('sino', em
francês), por outro.
57
Crosby, Alfred W.: A Mensuração da Realidade, Ed.UNESP, São Paulo, 1997, p. 86.
58
Idem, p. 86.
59
Idem, pp. 85, 86 e 87. O grifo é meu.
44
O tempo do relógio abriu, portanto, os caminhos da revolução científica
dos séculos XVI e XVII, que substituiu a dinâmica aristotélica - baseada na
distinção qualitativa entre 'movimentos naturais' (em direção ao repouso
eterno e absoluto do Ser) e 'movimentos violentos' (contra o estado "natural"
do ser, que seria o repouso) em um espaço finito, heterogêneo, concreto e
organizado (o Universo ou Cosmos) - pela descrição quantitativa de um
movimento qualquer em termos de sua trajetória e velocidade [posição,
momento] no espaço vazio e infinito - o vácuo. Ao tempo abstrato e uniforme
do relógio mecânico acrescentou-se um espaço igualmente abstrato,
homogêneo e geometrizável, desprovido de qualquer tipo de resistência
material a um movimento completamente descolado, pela lei da inércia, dos
corpos sobre os quais atua.
Como afirma Peter Sloterdijk, "a compreensão física moderna do mundo
da matéria desmente a aparência dos sentidos de forma mais radical do que
qualquer concepção metafísica de 'mundos de essência'
60
”. Se o tempo pode
ser abstratamente pensado e quantificado sem qualquer referência à duração
concreta de um processo sensorial específico, o mesmo pode ser feito com o
movimento e com o espaço.
Segundo Alexandre Koyré,
(...) a famosa primeira lei do movimento, a lei da inércia, nos ensina que
um corpo abandonado a si mesmo persiste eternamente em seu estado de
movimento ou de repouso (…) Entretanto, a eternidade não é inerente a toda a
espécie de movimento, mas somente ao movimento uniforme em linha reta (…)
Diante da objeção do aristotélico de que, se bem que ele conheça o movimento
eterno, o movimento circular das esferas celestes, jamais encontrou um
movimento retilíneo persistente, a física moderna responde: certamente! Um
movimento retilíneo uniforme é absolutamente impossível e pode ser
produzido no vácuo
61
.
A nova dinâmica apresenta a possibilidade de se pensar o movimento e o
repouso de forma inteiramente independente de qualquer tipo de suporte
material. Tal revolução nas concepções da física deveu-se, em grande medida,
aos experimentos de Galileu Galilei com um pêndulo, i.e., um dispositivo que
60
Sloterdijk, Peter: Mobilização Copernicana e Desarmamento Ptolomaico, BTU, Rio de Janeiro, 1992,
p.56.
61
Ver a este respeito Koyré, Alexandre: Galileu e Platão, in Estudos de História do Pensamento
Científico, Ed. Universidade de Brasília, 1982, p.165.
45
se baseava, da mesma forma que o escapo dos relógios mecânicos medievais,
em oscilações regularmente isocrônicas, ou seja, temporalmente uniformes
62
.
Absolutização do tempo, infinitização do espaço e relativização do
movimento: ainda segundo Koyré, "a infinitude espacial e a eternidade
temporal são conceitos rigorosamente paralelos, e ambos parecem absurdos
63
”.
Ambos permitem que abandonemos em definitivo, porém, a referência ao
mundo sensível da extensão material e da duração concreta. Neste sentido, até
mesmo a concepção de tempo newtoniana, que projeta a antiga noção de
eternidade sobre um tempo absoluto e matemático, totalmente desencarnado
de qualquer movimento e que "flui sempre igual por si mesmo e por sua
natureza, sem relação com qualquer coisa externa
64
”, era asperamente criticada
por Leibniz em nome do princípio de razão suficiente:
Tudo o que existe do Tempo e da Duração perece continuamente; e como
poderia existir eternamente uma coisa que (para falar exatamente) não existe
jamais? Pois como pode existir uma coisa da qual nenhuma parte existe? Do
Tempo não existem jamais senão instantes, e um instante não é sequer uma
parte do Tempo. Quem quer que se detenha nessas considerações compreenderá
facilmente que o Tempo só pode ser uma coisa ideal
65
.
Leibniz nega a idéia de tempo (e de espaço) absoluto tão cara aos
discípulos de Newton, pois, em um sistema dinâmico em perfeito equilíbrio,
que conserve em todos os momentos a constância de suas grandezas físicas
fundamentais, a eternidade articula-se diretamente ao instante. Se o
movimento físico de uma partícula qualquer deve ser completamente
dissociado da noção qualitativa de mudança para que sua trajetória seja
quantitativamente determinada, podemos então supor a completa
reversibilidade temporal do movimento, o que é facilmente constatável com o
exemplo do pêndulo: "Assim como o pêndulo perfeito oscila ao redor de sua
posição de equilíbrio, o mundo regido pelas leis da dinâmica se reduz a uma
afirmação imutável de sua própria identidade
66
”.
62
Acerca do movimento pendular isocrônico ver Cohen, J.Bernard: Revolution in Science, Harvard
University Press, 1985, p. 137.
63
Koyré, Alexandre: Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1979, p.119.
64
Newton, Isaac: Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, col. OS PENSADORES vol.XIX, ed.
Abril, São Paulo, 1974, p. 14.
65
Leibniz, Gottfried Wilhelm: Correspondência com Clarke, col. OS PENSADORES vol. XIX, ed.
Abril, São Paulo, 1974, p. 439.
66
Prigogine, Ilya e Stengers, Isabelle: Entre o Tempo e a Eternidade, Companhia das Letras, Rio de
Janeiro, 1992, p.26.
46
A passagem do tempo viu-se reduzida à condição de mero eixo auxiliar
para a descrição de processos idealmente isotrópicos
67
, i.e., pensados a partir
de certas leis que garantem a sua reversibilidade temporal plena (lei
newtoniana da ação e reação dos corpos em sica, lei de conservação da
massa, de Lavoisier, em química). Leibniz era mais newtoniano do que o
próprio Newton, como foi observado por Ilya Prigogine e Isabelle
Stengers
68
. Seu modelo de Universo seguia à risca o modelo do relógio
mecânico no qual Deus, relojoeiro supremo, limitava-se a disparar o
mecanismo eterno do mundo. Este modelo, aliado às leis newtonianas do
movimento
69
, praticamente expulsou a questão do tempo do universo físico-
químico das ciências naturais, e segue vigente ainda hoje na medida em que "a
relatividade e a mecânica quântica são, ambas, herdeiras da tradição clássica: a
mudança temporal nelas é concebida como reversível e determinista”
70
.
É no âmbito deste modelo que devemos localizar não os
conhecimentos objetivos (mecânicos, óticos, fisiológicos) que possibilitaram o
surgimento do cinematógrafo em finais do século XIX, mas principalmente o
Zeitgeist então dominante, o espírito intelectual que presidiu à busca e à
criação de todas as "técnicas do observador", para usar a feliz expressão de
Jonathan Crary
71
.
O cinema, como técnica de reprodução do movimento, não está
necessariamente vinculado a uma ontologia da imagem fotográfica, uma idéia
a princípio muito razoável, mas facilmente refutável por alguém como
Diógenes, o cínico, com a projeção de um desenho animado. O que liga
genealogicamente o cinematógrafo à fotografia novecentista é, na verdade, a
busca pelo instante: a perspectiva de um tempo de exposição à luz cada vez
mais curto. Esta pesquisa era certamente estimulada pela crescente
versatilidade, rapidez e mobilidade do aparelho fotográfico, mas este, por sua
67
Sobre o conceito de isotropia ver Grunbaum, Adolf: Espaço e Tempo, in Filosofia da Ciência,
(Morgenbesser, Sidney org.), Ed. Cultrix e Ed.USP, São Paulo, 1975, pp.178 -184.
68
Prigogine, Ilya e Stengers, Isabelle: Entre o Tempo e a Eternidade, Companhia das Letras, Rio de
Janeiro, 1992, p.40.
69
Newton, Isaac: Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, col. OS PENSADORES vol.XIX, ed.
Abril, São Paulo, 1974, pp.20-21.
70
Prigogine, Ilya e Stengers, Isabelle: Entre o Tempo e a Eternidade, Companhia das Letras, Rio de
Janeiro, 1992, p.125.
71
Crary, Jonathan: Techniques of the Observer – on vision and modernity in the nineteenth century, MIT
Press, 1990.
47
vez, não teria se desenvolvido neste sentido se não houvesse todo um ambiente
científico e filosófico propício à invenção de um dispositivo de captura do
instante, como o demonstra Leo Charney, em seu artigo “Num Instante: o
cinema e a Filosofia da Modernidade
72
”.
O momento ontologicamente decisivo aqui não é nem o do
cinematógrafo nem o do daguerreótipo: a captura do instante e a possibilidade
de manipulá-lo, ao menos na referência temporal à velocidade da luz, se
pouco antes da invenção de Lumière, com o lançamento da primeira câmera
portátil da Kodak em 1888, um dispositivo contemporâneo, portanto, do
kinetoscópio de Edison.
Uma genealogia dos dispositivos de captura do instante deve, assim,
relativizar a pretensa precedência histórica e técnica da fotografia sobre o
cinema: com efeito, os dispositivos fotográficos anteriores aos anos 1890
pertenciam, na verdade, a um registro ontológico distinto, podendo ser
considerados muito mais como aliados da pintura e do cartaz na confecção de
imagens representacionais do que como dispositivos de reprodução direta de
um acontecimento real
73
.
Quanto à manipulação fotográfica do instante, esta permitiu o
desenvolvimento de dois caminhos perfeitamente antitéticos, um sintético e o
outro analítico, respectivamente representados pelos trabalhos de Muybridge e
de Marey. Enquanto o dispositivo multicâmera de 1878 de Muybridge aponta
para a recomposição sintética do movimento a partir da adoção do instante
como sua medida intervalar, o fuzil cronofotográfico de Marey, de 1882,
pretende decompor analiticamente o movimento através de uma série de
exposições sucessivas e constantes da mesma chapa fotográfica à duração de
uma impressão luminosa.
74
Muybridge decompõe e inscreve o movimento em um quadro
espacializado para, em seguida, recompô-lo "ilusoriamente" e projetá-lo sobre
um eixo temporal regular abstrato. Marey inscreve o movimento decomposto
72
Charney, Leo: “Num Instante: o Cinema e a Filosofia da Modernidade” in O Cinema e a Invenção da
Vida Moderna (Charney, Leo e Schwartz, Vanessa R., org.) Cosac & Naify, São Paulo, 1995, pp.386-408.
73
Ver, a este respeito, o excelente artigo de Przyblyski, Jeannene M.: Imagens (Co)Moventes: Fotografia,
Narrativa e a Comuna de Paris de 1871, in O Cinema e a Invenção da Vida Moderna (Charney, Leo e
Schwartz, Vanessa R., org.) Cosac & Naify, São Paulo, 1995, pp. 352-385.
74
Para uma descrição detalhada dos dispositivos de Muybridge e de Marey, ver Mannoni, Laurent: A
Grande Arte da Luz e da Sombra - Arqueologia do Cinema, Ed. Unesp, São Paulo, 2003.
48
diretamente no espaço do quadro, temporalizando graficamente sua imagem.
Mesmo quando películas com perfuração nas bordas já estavam disponíveis no
mercado, Marey “nunca sentiu necessidade de usá-las, porque, ao contrário
daqueles que se dirigiam para a cinematografia, ele nunca se preocupou em
manter uma perfeita equidistância entre os vários registros. O que ele buscava
era a fusão, a continuidade, enfim, o registro do tempo no espaço
75
”.
Arlindo Machado toca aqui no grande "pulo do gato" que está na origem
do sucesso do cinematógrafo dos Lumière: o controle de grifa e contra-grifa
responsável pela rotação periódica de uma película com perfurações regulares
(04 perfurações p/fotograma, em 35mm) no chassis da câmera. Este
mecanismo possibilita um controle rigoroso tanto do instante de exposição à
luz como da constância do fluxo de imagens.
No entanto, se o cinematógrafo realmente surgiu a partir da atração do
instante, de uma busca pela experiência do instante e da possibilidade de
manipulação do instante, isto não significa de maneira alguma que possamos
simplesmente descartar a hipótese de uma reprodução audiovisual direta do
tempo, pois enquanto o dispositivo de Muybridge, pouco mais de uma década
depois de sua criação, levava à consolidação do cinematógrafo como técnica
de reprodução do movimento, o dispositivo de Marey teve que esperar cerca
de cinqüenta anos para que as potencialidades de seu princípio se afirmassem
na imagem eletrônica do vídeo
76
.
Em todo caso, a invenção do cinematógrafo pode ser considerada como
o momento culminante de certa tradição filosófica e científica vinculada à
negação do tempo. Segundo Deleuze, não era outra a opinião de Henri
Bergson: “Com efeito, afirma Bergson, quando o cinema reconstitui o
movimento com quadros imóveis, não faz nada além do que fazia a mais
velha das filosofias (os paradoxos de Zenão), ou do que faz a percepção
natural
77
”.
Como é possível então afirmar o tempo através do cinema?
75
Machado, Arlindo: Pré-cinemas e Pós-cinemas, Papirus Editora, Campinas, 1997, p.67.
76
Ver, a este respeito, o capítulo A Quarta Dimensão da Imagem in Machado, Arlindo: Pré-cinemas e
Pós-cinemas, Papirus Editora, Campinas, 1997, pp.58-74.
77
Deleuze, Gilles: L'Image-Mouvement, Les Editions de Minuit, Paris, 1983, p.10. A tradução é minha.
49
Da duração: o cinema encontra o tempo
Um dos efeitos visuais mais conhecidos e repetidos, na história do
cinema, é o da reversibilidade de projeção dos planos: com efeito, o cinema
dos anos 1900 estava repleto de ruínas que se reconstruíam num piscar de
olhos, quedas livres projetadas ao revés e balas que voltavam a seus canhões.
A manipulação do eixo temporal através de seu controle instantâneo era mais
uma das delícias oferecidas pelo cinema aos sentidos, a oportunidade de
testemunhar a derrota definitiva (mesmo que imaginária) do tempo pela
técnica. O cinema negava o tempo vingando-se deste, manipulando nossa
percepção de sua passagem através de vários modos distintos de enunciação
(elipses, faux-raccords, montagem paralela…), aptos a encurtá-lo, alongá-lo,
suprimi-lo ou conservá-lo na suspensão de um instante. Afirmar a
reversibilidade do tempo, negando a duração concreta de sua passagem, é
ainda hoje a tendência dominante do cinema industrial de entretenimento. O
gosto pela manipulação impiedosa do tempo, pela completa inversão de seu
eixo ou mesmo por sua supressão renovou-se, nos anos 80 e 90, com a voga de
filmes baseados nos paradoxos espaço-temporais da science-fiction, como
Back to the Future (1985) de Robert Zemeckis ou The Twelve Monkeys
(1995), de Terry Gilliams.
Assim, embora cinema e tempo mantivessem estreita relação desde os
seus primórdios, nada poderia nos fazer supor que o cinema contivesse em si,
necessariamente, uma afirmação ontológica do tempo concreto da duração. O
encontro do cinema com o tempo dependia da capacidade poética (no sentido
etimologicamente preciso da palavra) do cinema de escutar a passagem do
tempo e auscultá-la para estar atento às possibilidades expressivas que lhe são
inerentes. Este projeto não está na origem do cinema, como pretendemos haver
demonstrado, mas, por outro lado, tornou-se possível a partir de certo cinema,
de certa visão do cinema que precisou de várias décadas de prática e de
reflexão cinematográficas para maturar, num processo que se enraíza nas
transformações estéticas por que passou o cinema clássico-narrativo a partir
dos anos 1930/40 - e que levou ao surgimento de uma pluralidade de cinemas
"modernos” a partir dos anos 1950.
78
78
Ver, a este respeito, Bazin, André: A Evolução da Linguagem Cinematográfica, in O Cinema
(Ensaios), Ed. Braziliense, pp. 66-81.
50
A importância do neo-realismo italiano e da crítica cinematográfica
francesa para este processo de maturação do cinema em relação à questão do
tempo é inegável. Em 1949, André Bazin escrevia: "O cinema somente
alcança ou constrói o seu tempo estético a partir do tempo vivido, da duração
bergsoniana, irreversível e qualitativa por excelência. A realidade (…) é o
continuum sensível pelo qual a película se faz moldar
79
”.
Afirmar realmente o tempo, no entanto, não é tarefa conceitual das mais
simples. O que interessava a Bazin na articulação concreta do tempo da
duração com o cinemanão era, afinal, o mapeamento das capacidades
expressivas e das possibilidades estéticas desta relação, mas, ainda mais uma
vez, a afirmação do efeito de suspensão que o cinema exerce sobre a duração,
seu poder de negá-la em favor do instante:
Não posso repetir um instante da minha vida, porém qualquer um
destes instantes pode o cinema repetir indefinidamente, posso vê-lo. (…) Sem
dúvida, nenhum instante vivido é idêntico aos outros, mas os instantes podem se
assemelhar como as folhas de uma árvore; (…) Dois momentos da vida, no
entanto, escapam radicalmente a esta concessão da consciência: o ato sexual e a
morte. Cada um a seu modo, são, ambos, negação absoluta do tempo objetivo: o
instante qualitativo em estado puro
80
.
Bazin alinhava-se a uma tradição crítica de investigação fenomenológica
do cinema que procurava pensá-lo a partir de suas condições fundamentais de
percepção. Segundo o filósofo Maurice Merleau-Ponty,
(...) um filme significa da mesma forma que uma coisa significa: um e
outro não falam a uma inteligência isolada, porém, dirigem-se a nosso poder de
decifrar tacitamente o mundo e os homens e de coexistir com eles. (…) De
qualquer forma, é mediante a percepção que podemos compreender a
significação do cinema: um filme não é pensado e, sim, percebido
81
.
Podemos afirmar, portanto, que, se os pressupostos da fenomenologia
permitiram a Bazin introduzir teoricamente a questão da presença do tempo no
cinema, foram estes mesmos pressupostos que o impediram de afirmá-la
consequentemente. Isto porque, segundo Deleuze, a fenomenologia aplicada
ao cinema conserva o sujeito natural da percepção como um ponto de
referência necessário à constituição da imagem cinematográfica:
79
Bazin, André: Morte Todas as Tardes, in A Experiência do Cinema (Xavier, Ismail, org.) Graal Ed.,
Rio de Janeiro, 1983, pp.129-134.
80
Idem, p.133
81
Merleau-Ponty, Maurice: O cinema e a Nova Psicologia in A Experiência do Cinema (Xavier, Ismail,
org.), Graal ed., Rio de Janeiro, 1983, p. 115.
51
O que a fenomenologia elege como norma é a 'percepção natural' e suas
condições. Ora, essas condições são coordenadas existenciais que definem um
“enraizamento” do sujeito da percepção no mundo, certo estar no mundo, uma
abertura ao mundo que vai se exprimir no célebre “Toda consciência é
consciência de alguma coisa
82
”.
A mera afirmação de uma autonomia ôntica da imagem cinematográfica
em relação a todas as modalidades anteriores de representação por imagens
não pode ser considerada, em si, razão suficiente para a afirmação do tempo
no cinema, pois, do ponto de vista de um sujeito "natural" da percepção, uma
fenomenologia do instante pode fazer tanto ou mais sentido que uma
fenomenologia da duração.
É precisamente este o empreendimento de Gaston Bachelard em sua
refutação teórica da idéia bergsoniana de duração:
O tempo só é percebido através de seus instantes; a duração - logo
veremos de que forma - é sentida apenas por intermédio dos instantes (…)
recusamos a extrapolação metafísica que afirma um continuum em si, enquanto
estamos sempre diante do descontínuo em nossa experiência
83
.
Bachelard pretende confrontar-se diretamente com Bergson, não no
terreno da física contemporânea, como também no da metafísica. Para isso
invoca, num primeiro momento, a teoria da relatividade de Einstein como
prova científica da inexistência da duração:
Despertamos de nossos sonhos dogmáticos pela crítica einsteiniana da
duração objetiva. Rapidamente, convencemo-nos de que esta crítica destrói o
absoluto daquilo que dura, ao mesmo tempo em que conserva, como o veremos,
o absoluto daquilo que é, i.e., o absoluto do instante. O que o pensamento de
Einstein impregna com a relatividade é o lapso de tempo, o "comprimento" do
tempo. Este comprimento se revela relativo ao seu método de mensuração.
Aprendemos que, ao fazer uma viagem de ida e volta ao espaço em velocidade
suficientemente rápida, reencontraríamos a Terra envelhecida em alguns séculos
enquanto nós haveríamos registrado a passagem de apenas algumas horas no
relógio de nosso bolso. Muito menos longa seria a viagem necessária para
ajustar à nossa impaciência o tempo que o Sr. Bergson postula como fixo e
necessário para fundir o torrão de açúcar no copo d'água
84
.
Bachelard estabelece uma série radical de antinomias traçadas a partir
da oposição conceitual entre duração e instante: ação e ato, momento e
trajetória, horizontalidade e verticalidade, continuidade e descontinuidade;
mas sua afirmação a princípio incondicional da descontinuidade absoluta do
82
Deleuze, Gilles: L'Image-Mouvement, Les Editions de Minuit, Paris, 1983, p.84. Minha tradução.
83
Bachelard, Gaston: L'Intuition de L'Instant, Ed. Gonthier, Paris, 1932, pp. 33, 42. Minha tradução. O
grifo é do autor.
84
Idem, pp. 29-30.
52
instante acaba esbarrando em paradoxos insolúveis dentro dos limites da
relatividade geral
85
.
Bachelard volta-se então para o probabilismo indeterminista da
mecânica quântica, em busca de uma legitimação científica acerca da
descontinuidade do instante. Mas a desmaterialização do mundo implícita a
conceitos caros à mecânica quântica - como o princípio da incerteza de
Heisenberg ou o paradoxo do gato de Schrödinger
86
- levam Bachelard a um
recuo definitivo de seu radicalismo metafísico: deve haver uma dialética da
duração que permita a reconciliação conceitual entre macro e micro, contínuo
e descontínuo, relatividade geral e mecânica quântica, tempo e energia:
Em Matéria e Memória, Bergson atribuía aos seres uma duração cada
vez mais concentrada em função da maior ou menor intensidade de suas vidas.
Havia claramente uma relação inversamente proporcional entre a extensão da
duração e a intensidade do conatus; assim como, na equação de Heisenberg,
pagamos o acréscimo de precisão sobre o tempo com uma diminuição da
precisão sobre a energia. Evidentemente estamos falando por um lado de valores
absolutos, e por outro apenas de erros relativos. Mas isso torna ainda mais
significativo o fato de que o próprio Bachelard tenha feito esta aproximação -
como se para ele, assim como para Louis de Broglie, as análises de Bergson não
houvessem perdido seu interesse, e pudéssemos delas partir para aprofundarmo-
nos no entrelaçamento da duração e da energia que encontramos no recôndito
mais profundo da matéria
87
.
Bachelard parece ter optado pela hipótese de uma síntese matematizável
entre a continuidade espaço-temporal e os quanta de energia. Tal síntese até
hoje não foi encontrada pelos astrofísicos e cosmólogos, pois depende de
cálculos extremamente controversos acerca da quantidade de matéria do
Universo
88
. Em todo caso, embora não se dedique à discussão desta questão no
quadro da fenomenologia aplicada à teoria cinematográfica, Bachelard nos
fornece uma pequena reflexão musical para compreendermos sua oposição
metafísica a Bergson a partir do já mencionado confronto conceitual entre
ação e ato, continuidade e descontinuidade, trajetória e momento: "O ouvido
musical escuta o destino da melodia, ele sabe como acabará a frase começada.
Nós pré-escutamos o advir do som da mesma forma com que prevemos o advir
85
A este respeito, ver Barreau, Hervé: Instant et Durée chez Bachelard, in Bachelard - Colloque de
Cerisy, Union Générale des Éditions, Paris, 1974, pp. 338-339.
86
Acerca destes conceitos, ver Prigogine, Ilya e Stengers, Isabelle: Entre o Tempo e a Eternidade,
Companhia das Letras, Rio de Janeiro, 1992, pp.125-147.
87
Barreau, Hervé: Instant et Durée chez Bachelard, in Bachelard - Colloque de Cerisy, Union Générale
des Éditions, Paris, 1974, p.342. A tradução é minha.
88
A este respeito, ver Vasconcelos, César A.Z. e Oliveira Filho, Kepler de S.: Novos Estados da Matéria
e Smolin, Lee: Átomos de Espaço e Tempo, in Scientific American Brasil, N°21.
53
de uma trajetória
89
”. Os momentos de uma melodia são, para Bachelard,
perfeitamente decomponíveis (e, portanto, previsíveis) sobre a linha do tempo,
assim como qualquer trajetória ou deslocamento físico é também decomposto
e projetado sobre o espaço.
Já para Bergson,
(...) quando escutamos uma melodia, experimentamos a mais pura
impressão de sucessão que se possa ter - uma impressão a mais afastada possível
da impressão de simultaneidade - e, no entanto, é a própria continuidade da
melodia e a impossibilidade de decompô-la que nos causa esta impressão. Se a
decompomos em notas distintas, em tantos 'antes' e 'depois' quanto nos
aprouver, é porque nós a poluímos com imagens espaciais e impregnamos a
sucessão de simultaneidade: no espaço, e somente no espaço, uma distinção
de elementos exteriores uns aos outros. Inclusive, reconheço que é num tempo
espacializado que geralmente nos situamos. Não temos nenhum interesse em
escutar o burburinho ininterrupto das profundezas da vida. E, no entanto, a
duração real está lá
90
.
De um ponto de vista estritamente fenomenológico, podemos afirmar
que Bergson e Bachelard “cancelam-se” mutuamente, ao assumirem pontos
de vista diametralmente opostos sobre a questão da vibração e do fluxo. Como
afirma Maurício Lissovski,
(...) foi Gaston Bachelard, que em dois ensaios dos anos 30 - A Intuição
do instante e Dialética da Duração - buscou formular uma teoria que ele chamou
de “bergsonismo descontínuo”. Uma espécie de bergsonismo de cabeça para
baixo, em que o instante é primeiro, imediato, e a duração um “prolongamento”,
um “prosseguir”. A descontinuidade essencial do tempo era, para Bachelard, um
modo de conciliar metafísica, poética e ciência contemporânea - representada,
esta última, pelos ‘saltos’ da física quântica e pela teoria da Relatividade.
Enquanto a duração bergsoniana seria correlata da ação, o instante representaria
o ato. Deste ato dependeria toda originalidade, como da pancada que faz vibrar
o couro, no som de um instrumento de percussão: “uma força infinitamente
grande que se desenvolve em um tempo infinitamente curto”. A filosofia de
Bergson encararia a vida como contemplação passiva. Bachelard propunha a
vida como propulsão, como ato de decisão.
91
Na referência ao som, por exemplo, Bachelard enfatiza a distinção
conceitual que podemos estabelecer entre as distintas alturas ou frequências de
onda para então deduzir as relações que se manifestarão entre os sons
reconfigurados como melodia. As frequências ou notas musicais, de certa
forma, estão todas à nossa disposição sincronicamente, prontas para serem
reutilizadas em uma nova combinatória. O fluxo temporal de sucessão das
89
Bachelard, Gaston: L'Intuition de L'Instant, Ed. Gonthier, Paris, 1932, pp.50-51. Minha tradução.
90
Bergson, Henri: Conférences sur la Perception du Changement, Université d'Oxford, 27/05/1911, p.
166. Minha tradução.
91
Lissovsky, Mauricio: “O tempo e a originalidade da fotografia moderna”, disponível em http//:
54
vibrações representa apenas o intervalo de passagem entre "estados" (de
preferência harmônicos entre si) conscientemente escolhidos: "o futuro não é o
que vêm em nossa direção, mas aquilo para o que nos dirigimos
92
”. Para
Bergson, ao contrário, uma melodia ou uma determinada sequência de sons
pode ser apreendida como um movimento único, indivisível, um fluxo que se
desenrola diacronicamente sem que possamos, a priori, descrevê-lo ou
predizê-lo: "Se a melodia se interrompesse mais cedo, não seria mais a mesma
massa sonora; seria outra, igualmente indivisível
93
”. A vibração aqui é o
próprio fluxo, isto é, está imersa na infinita possibilidade de variação e
mudança de seu padrão vibratório particular, que Bergson identifica à duração:
"A duração real é aquilo a que sempre chamamos de tempo, mas o tempo
percebido enquanto indivisível
94
”. Enquanto Bachelard se utiliza da
fenomenologia para conciliar os postulados das ciências naturais com as
evidências de nossos sentidos, Bergson enfatiza a contradição flagrante entre
estes e aqueles, demonstrando como a fenomenologia desmente radicalmente
o conhecimento cientificamente construído.
Bergson, no entanto, não pode ser considerado como um fenomenólogo,
pois considera que a cisão contemporânea entre ciência e consciência é
produto de uma ilusão metafísica. Caberia ao filósofo desconstruir esta ilusão
para, então, empreender uma tentativa de síntese entre conhecimento
objetivo e impressão subjetiva. Assim, Bergson assume o papel de Diógenes, o
cínico, sobre o qual afirma, bem humoradamente, que "o filósofo da
Antiguidade que demonstrava a possibilidade do movimento caminhando
estava certo: seu único erro foi o de executar o gesto sem acrescentar a ele um
comentário
95
”. Bergson refaz, a contrapelo, os caminhos metafísicos da
negação do tempo e do movimento. Seu argumento básico é uma demolição
lógica dos argumentos de Zenão de Eléia:
Como o movimento poderia se aplicar sobre o espaço que percorre?
Como pode o movente coincidir com o imóvel? Como o objeto que se move
estaria em um ponto de seu trajeto? Ele por passa, ou melhor, ele poderia
estar. E lá estaria se se detivesse; mas, se lá se detivesse, não estaríamos mais
92
Bachelard, Gaston: L'Intuition de L'Instant, Ed. Gonthier, paris, 1932, p.51. A frase não é de Bachelard,
é citada a partir de Guyon, La Genèse de l'Idée du Temps, p.33. Minha tradução.
93
Bergson, Henri: Conférences sur la Perception du Changement, Université d'Oxford, 27/05/1911, p.
164. Minha tradução.
94
Idem, p.166. Os grifos são do autor.
95
Idem, p.160.
55
falando do mesmo movimento. É sempre de uma só vez que um trajeto é
percorrido quando não se pára sobre o trajeto
96
.
Em Bergson, o movimento deve ser concebido em ação, como um gesto
uno e indivisível, e não como um ato arbitrariamente decomponível em suas
partes constituintes. A impressão que temos de poder decompor um
movimento é sempre uma impressão a posteriori, que o espaço em que o
movimento se executou é decomponível. Por isto, a grande confusão
metafísica para Bergson é a confusão do movimento com o espaço percorrido:
Proceder como Zenão é admitir que a corrida pode ser decomposta
arbitrariamente, como o espaço percorrido; é acreditar que o trajeto se aplica, na
verdade, contra a trajetória; é fazer coincidir, e portanto confundir, o movimento
e a imobilidade
97
.
Bergson percebeu que as novas descobertas da física de sua época não
eram necessariamente desfavoráveis às suas idéias. Uma nova ontologia do
tempo e do movimento era perfeitamente compatível com a teoria da
relatividade, por exemplo:
(...) na verdade, não imobilidade de fato, se entendermos por isto uma
ausência de movimento. O movimento é a própria realidade, e aquilo que
chamamos de imobilidade é certo estado de coisas análogo ao que se produz
quando dois trens correm com a mesma velocidade, no mesmo sentido, sobre
vias paralelas: cada um dos trens está imóvel para os passageiros sentados no
outro
98
.
O movimento pode estar identificado à mudança: "(...) falei do
movimento; mas diria o mesmo de qualquer mudança. Toda mudança real é
uma mudança indivisível
99
”. Para Bergson, não há mais como relativizar o
movimento e a mudança a partir do repouso: "É certa regulação da mobilidade
sobre a mobilidade que produz o efeito de imobilidade
100
”. O filósofo afronta-
se aqui com toda a tradição da metafísica e da ciência ocidentais, em sua
desvalorização do conhecimento propiciado pelos sentidos, e assume então o
papel de um novo Heráclito - pensador do devir, e não do Ser - afirmando que
"há mudanças, mas não há, sob as mudanças, coisas que mudem; a mudança
96
Idem, p.159.
97
Idem, p.161.
98
Idem, p.160.
99
Idem, p.162.
100
Idem, p.175.
56
não tem necessidade de suporte. movimentos, mas não objeto inerte,
invariável, que se mova: o movimento não implica um móvel
101
". A inversão
da metafísica parmenídica é a entronização do movimento como "mudança
pura, auto-suficiente, de nenhum modo dividida, de nenhum modo ligada a
uma 'coisa' que mude
102
". Utilizando-se de uma analogia notável, Bergson
recorre mais uma vez à teoria da relatividade para fundamentar a identidade
ontológica do movimento e da mudança em sua unicidade e indivisibilidade:
Se a mudança é contínua em nós e contínua também nas coisas, por outro
lado, para que a mudança ininterrupta que cada um de nós chama de 'eu' possa
agir sobre a mudança ininterrupta que chamamos de 'uma coisa', é necessário
que estas duas mudanças se encontrem em situação análoga àquela dos dois
trens de que falávamos agora a pouco
103
.
Uma vibração é exatamente aquilo que perdura a partir de uma
instabilidade fundamental, de uma oscilação permanente. A relatividade das
cores, por exemplo, está inscrita objetivamente em sua constituição física -
"aquilo que existe objetivamente de cada matiz é uma oscilação infinitamente
rápida, é movimento
104
".
Bergson aproxima, assim, a idéia de 'vibração', necessária à
compreensão de fenômenos físicos então surpreendentes, como o do
eletromagnetismo ou o rádio, à sua própria idéia de 'duração', estabelecendo
uma ponte conceitual entre o mundo subjetivo das impressões fenomênicas e o
mundo objetivo dos fenômenos físico-químicos. O movimento pendular
isocrônico de Galileu não representa mais a eternidade como negação do
tempo, mas a própria duração concreta do tempo, "de um presente que
dura
105
".
Só que a idéia de presente aqui não deve mais ser assimilada ao instante:
O que é realmente o presente? Se se trata do instante atual - quero dizer,
de um instante matemático que seria para o tempo o que o ponto é para a linha -
é claro que tal instante é uma pura abstração, uma visão do espírito; não poderia
ter existência real. (…) Suponhamos então que ele exista: como poderia haver
um instante que lhe fosse anterior? Os dois instantes não poderiam estar
separados por um intervalo de tempo, pois, em hipótese, o tempo foi reduzido a
uma justaposição de instantes. (…) Mas deixemos de lado tais sutilezas. Nossa
consciência nos diz que, quando falamos de nosso presente pensamos em certo
101
Idem, p.163.
102
Idem, p.165.
103
Idem, p.162
104
Idem, p.163.
105
Idem, p.170.
57
intervalo na duração. Que duração? É impossível fixá-la precisamente; é algo
flutuante
106
.
A duração é o plano ôntico do devir em que o passado se conserva
objetivamente no presente:
(...) não só o nosso passado pessoal, mas também o passado de não
importa que tipo de mudança - desde que se trate de uma mudança única,
portanto indivisível: a conservação do passado no presente não é nada mais que
a própria indivisibilidade da mudança. É claro que, em relação às mudanças que
se desenrolam no exterior, não sabemos quase nunca se estamos diante de uma
mudança única ou de um composto de vários movimentos entre os quais se
intercalam paradas (a parada, aliás, será sempre relativa). Nós teríamos que ser
interiores aos seres e às coisas, como o somos a nós mesmos, para que possamos
nos pronunciar sobre este ponto. Mas isto não é importante. Basta convencermo-
nos de uma vez por todas que a realidade é mudança, que a mudança é
indivisível - e que, em uma mudança indivisível, o passado se incorpora no
presente
107
.
Bergson reintroduziu a flecha inexorável do tempo no centro do debate
filosófico e científico da belle époque, a época do cinematógrafo, mas jamais
considerou seriamente a possibilidade de vincular o dispositivo
cinematográfico às suas teorias sobre a duração, ciente que estava da
inspiração metafísica do novo engenho.
Coube a Gilles Deleuze a elaboração de uma ontologia da imagem
cinematográfica que a vincula diretamente à inexorabilidade concreta e
irreversível do devir, interessando-se pela descoberta e pela afirmação das
potências que lhe são inerentes e por aquilo que tal imagem é capaz de
desvelar por si mesma, a partir das configurações que sua natureza
possibilita
108
. Deleuze confere à imagem cinematográfica um novo estatuto
ontológico em que esta não só representa indiretamente uma determinada
realidade, como também reproduz diretamente o real de um movimento e de
uma duração. Sua função sígnica não está mais necessariamente articulada a
códigos linguísticos ou semiológicos de maior ou menor rigidez
109
, ou a um
significante imaginário a representar incessantemente a cena da origem para
106
Idem, p.168.
107
Idem, p.173.
108
Analisamos sua classificação das imagens e dos signos, baseada na tricotomia de Peirce no
capítulo 2, pp. 130-149.
109
Ver, por exemplo, Metz, Christian: Essais sur la Signification au Cinéma, Editions Klincksieck, Paris,
1994 e Linguagem e Cinema, Editora Perspectiva, São Paulo, 1971.
58
um sujeito transcendental da percepção
110
. Refere-se, antes, às potencialidades
do próprio dispositivo técnico de reprodução. A referência fenomenológica ao
sujeito "natural" da percepção torna-se não desnecessária, como também
enganosa, na medida em que vincula o dispositivo cinematográfico de forma
total e irrestrita a modos de percepção e a mecanismos de significação que não
lhe são necessariamente intrínsecos.
A imagem cinematográfica tem, para Deleuze, os mesmos atributos
ontológicos que Bergson aplica a qualquer imagem em seu livro Matéria e
Memória, publicado no mesmo ano do surgimento do cinematógrafo:
Nos encontramos, de fato, diante da exposição de um mundo onde
IMAGEM = MOVIMENTO. Chamemos de Imagem ao conjunto do que
aparece. Não podemos nem mesmo afirmar que uma imagem age ou reage sobre
uma outra. Não móvel distinto do movimento executado, não movido
distinto do movimento recebido. Todas as coisas, quer dizer, todas as imagens
se confundem em suas ações e reações: é a variação universal. (…) Este
conjunto infinito de todas as imagens constitui uma espécie de plano de
imanência. A imagem existe em si, sobre este plano. Este em-si da imagem é a
matéria: não algo que estaria escondido atrás da imagem, mas, ao contrário, a
identidade absoluta da imagem e do movimento. É a identidade da imagem e do
movimento que nos faz concluir imediatamente pela identidade da imagem-
movimento e da matéria. (…) A imagem-movimento e a matéria-fluxo são
exatamente a mesma coisa (…) A identidade da imagem e do movimento se
deve à identidade da matéria e da luz. A imagem é movimento, assim como a
matéria é luz
111
.
Deleuze procede, então, à demonstração de como o desenrolar das
formas cinematográficas - sobretudo a passagem de um cinema clássico-
narrativo baseado na 'imagem-movimento' para uma pletora modernista de
diferentes cinemas, atualizações distintas de possíveis configurações da
'imagem-tempo' - é estruturalmente homólogo à descrição bergsoniana das
transformações por que passam as imagens no plano de imanência da matéria
e da memória. A câmera cinematográfica é um equivalente genérico de todos
os meios de locomoção existentes e imagináveis,
(...) aquilo de que Bergson acreditava ser o cinema incapaz, porque
considerava somente o que se passava no aparelho (o movimento homogêneo e
abstrato da sucessão de imagens), é aquilo de que o aparelho é mais capaz,
eminentemente capaz: a imagem-movimento, ou seja, o movimento puro
extraído dos corpos ou dos moventes. o se trata de uma abstração, mas de
uma liberação
112
.
110
A este respeito, ver Metz, Christian: Le Signifiant Imaginaire, Christian Bourgeois Editeur, Paris,
1994.
111
Deleuze, Gilles: L'Image-Mouvement, Les Éditions de Minuit, Paris, 1983, pp. 86, 87, 88. Minha
tradução.
112
Idem, pp.37-39.
59
Assim, qualquer plano cinematográfico (i.e., qualquer imagem-
movimento) pode ser encarado como uma espécie de cabeça de Jano, pois está
voltado ao mesmo tempo para seu interior, para os elementos que o compõem
e para as relações que estes estabelecem entre si; e para seu exterior, para o
todo do qual faz parte enquanto elemento integralmente articulado aos outros
planos. Deleuze assim o explicita:
É porque o movimento puro faz variar, por fracionamento, os elementos
do conjunto segundo diferentes denominadores, é porque ele decompõe e
recompõe o conjunto, que ele se relaciona também com um todo
fundamentalmente aberto, cujo mote é o de 'se fazer' incessantemente, mudar,
durar
113
.
As diversas articulações que podemos estabelecer entre as imagens
cinematográficas corresponderão assim, geneticamente, às diversas formas de
articulação imagética do movimento e da duração na matéria, havendo ou não
sujeito da percepção.
Para Deleuze não é a imagem cinematográfica, entendida como imagem-
movimento, que deve se moldar a um suposto padrão perceptivo natural ao
sujeito. Pelo contrário, é toda e qualquer subjetividade que se constitui a partir
de uma contenção e de uma seleção redutora da infinita virtualidade de
imagens-movimento. Como afirma Deleuze,
Se o cinema não tem por modelo a percepção natural subjetiva, é porque
a mobilidade de seus centros, a variabilidade de seus enquadramentos, o leva
sempre a restaurar vastas zonas acentradas e desenquadradas: ele tende então a
reunir-se com o primeiro regime da imagem-movimento, a universal variação, a
percepção total, objetiva e difusa
114
.
O cinema pode reforçar ou desconstruir o sujeito da percepção à
vontade. O que importa realmente aqui é a capacidade de articulação
intrínseca das imagens cinematográficas umas em relação às outras e a
determinação materialista dos tipos de articulação que se estabelecem.
A princípio totalmente imersas no plano de matéria-memória que lhes é
imanente, certas imagens - as imagens 'vivas' ou orgânicas - podem constituir-
se como 'centros de indeterminação' sobre os quais outras imagens serão
projetadas apenas parcialmente:
(...) enquanto as outras imagens agem e reagem sobre todas as faces e em
todas as suas partes, eis aqui imagens que recebem ações sobre uma de suas
faces ou em certas partes, e que executam suas reações através de outras
113
Idem, p. 38.
114
Idem, p. 94.
60
partes. São imagens de certa forma cindidas. E logo de saída a sua face
especializada, que chamaremos mais tarde de receptiva ou sensorial, exerce um
curioso efeito sobre as imagens influentes e as excitações recebidas: é como se
ela as isolasse dentre todas as que coagem e concorrem no universo. É assim
que sistemas fechados - quadros - poderão se estabelecer. (…) Assim a imagem
viva será instrumento de análise do movimento percebido, e instrumento de
seleção do movimento executado. Tal privilégio se deve ao fenômeno da pausa
ou intervalo entre o movimento percebido e o movimento executado, as imagens
vivas serão centros de indeterminação que se formam no universo acentrado das
imagens-movimento
115
.
A partir desta noção de intervalo, Deleuze delineia os grandes tipos de
imagem-movimento e seu modo de articulação: as imagens-percepção podem
estar relacionadas à ausência de intervalo no universo acentrado, mas, neste
caso, corresponderiam à própria "coisa em si" e não seriam realmente
percebidas, por isto devem ser relacionadas ao momento anterior ao intervalo -
ao movimento percebido. Já as imagens-ação correspondem ao seu momento
posterior, o movimento executado, a "reação retardada do centro de
indeterminação
116
". Quanto às imagens-afecção, correspondem ao próprio
intervalo, ao momento de suspensão entre a percepção e a ação.
O que todos estes tipos de imagem têm em comum é seu modo de
articulação sensório-motor, responsável pelos critérios de decupagem e
montagem em continuidade, própria ao cinema narrativo-clássico. Deleuze
identifica este tipo de cinema - hegemônico até os anos 50 e ainda fortemente
presente na indústria audiovisual - ao primado da imagem-movimento. A
correspondência com a "gramática" básica deste cinema se sustentaria pela
forte pregnância da imagem-percepção nos planos gerais, da imagem-afecção
nos close-ups e da imagem-ação nos planos médios
117
. Mas se a imagem-
movimento nos oferece uma reprodução direta do movimento, é capaz de
nos fornecer, por outro lado, uma representação indireta do tempo:
Haverá imagens indiretas do tempo na medida em que elas resultarão de
uma comparação das imagens-movimento entre elas, ou de uma combinação das
três variedades: percepções, ações, afecções. Mas este ponto de vista que faz o
todo depender da montagem, ou o tempo do confronto entre imagens de outro
tipo, não nos dá uma imagem-tempo em si
118
.
115
Idem, pp.91-92.
116
Idem, p.95.
117
Idem, p.103
118
Idem, p.101.
61
No entanto, tipos intermediários de imagem-movimento que
manifestam um caráter algo ambíguo: a imagem-pulsão, por exemplo, situa-se
ontogeneticamente entre a imagem-afecção e a imagem-ação, configurando
situações em que a ão é falha ou inconclusiva, devido à pregnância
paralisante do elemento afetivo. A cinematografia de Luis Buñuel está repleta
de exemplos de imagens-pulsão, como as sempre malogradas tentativas de
jantar de O Discreto Charme da Burguesia. Deleuze reserva à imagem-pulsão
um papel fundamental no grande tema de seu livro: a progressiva
transformação do modo de articulação das imagens-movimento para modos de
articulação próprios de imagens-tempo, na medida em que sua semi-paralisia
característica é um princípio desagregador dos laços sensório-motores que
articulam as imagens-movimento. Mas como entender esta transformação?
A imagem-tempo aparece quando o liame sensório-motor do cinema
clássico narrativo está suficientemente afrouxado pelo efeito corrosivo de
imagens-pulsão, imagens-lembrança e imagens-sonho, formas intermediárias
entre a imagem-movimento e a imagem-tempo. O movimento atual destas
imagens não se encontra mais articulado "corretamente": é vacilante (imagem-
pulsão), está projetado sobre um passado irrecuperável (imagem-lembrança)
ou revela-se virtualmente onírico (imagem-sonho). Tais imagens abrem para o
cinema as portas do tempo, conservando-se, porém, dentro dos parâmetros
sensoriais e motores em que sempre se articularam, atual ou virtualmente, com
outras imagens-movimento.
A verdadeira imagem-tempo surge apenas, segundo Deleuze, quando
(...)
a imagem atual entra em relação com sua própria imagem virtual
enquanto tal; (…) Não estamos mais na relação da imagem atual com outras
imagens virtuais, lembranças ou sonhos, que então se atualizam por sua vez - o
que é ainda um modo de encadeamento [sensório-motor]. Estamos na situação
de uma imagem atual e sua própria imagem virtual (…) O que vemos no cristal,
não é mais o curso empírico do tempo como sucessão de presentes, nem sua
representação indireta como intervalo ou como um todo, mas sim sua
apresentação direta, seu desdobramento constitutivo em presente que passa e
passado que se conserva, a estrita contemporaneidade do presente com o
passado que ele será, e do passado com o presente que ele foi (…) A imagem-
tempo não implica a ausência de movimento (embora comporte com freqüência
sua rarefação), mas ela implica a reversão da subordinação; não é mais o tempo
que está subordinado ao movimento, é o movimento que se subordina ao
tempo
119
.
119
Deleuze, Gilles: L'Image-Temps, Les Éditions de Minuit, Paris, 1985, pp. 358, 355-356. Os grifos são
do autor. A tradução é minha.
62
A imagem-tempo apresenta novas formas de articulação do mundo que
não se subordinam à ordenação sensório-motora da realidade e muitas vezes a
contestam: as imagens-cristal desfazem a distinção entre o real e o imaginário,
entre o atual e o virtual (O Espelho, de Tarkovsky). As "franjas de passado"
impossibilitam a distinção entre o verdadeiro e o falso a partir da coexistência
topológica de várias camadas de memória (Cidadão Kane, Mr. Arkadin, de
Orson Welles). As "pontas de presente" enfatizam a indecidibilidade e a
simultaneidade entre alternativas mutuamente excludentes ou contraditórias
(Smoking/No Smoking, de Alain Resnais). Por fim, as séries expressam a
potência máxima do devir, a capacidade infinita de articulação das imagens de
acordo com qualquer categoria concebível (Prénom Carmen, de Godard).
Podemos aproximar a visão deleuziana - sua afirmação bergsoniana do
tempo através do cinema - da reflexão paralela de Ilya Prigogine e Isabelle
Stengers em Entre o Tempo e a Eternidade. Valendo-se também de Bergson,
Prigogine e Stengers reintroduzem a questão do tempo no debate científico, a
partir de estudos com sistemas termodinâmicos em desequilíbrio altamente
instável, reformulando a própria visão que temos da física clássica como um
modelo descritivo universalmente válido:
Na perspectiva tradicional, a descrição do estado de equilíbrio era
estranha a qualquer distinção entre passado e futuro. Essa distinção parecia,
portanto, meramente relativa a uma situação macroscópica de não-equilíbrio.
Ora, o fluxo irreversível das correlações caracteriza tanto o estado de equilíbrio
quanto os estados distantes do equilíbrio. Mesmo em equilíbrio, as colisões
criam de fato correlações que desaparecem sem produzir efeito macroscópico.
Podemos, portanto, inverter a perspectiva tradicional: o é o desvio
(macroscópico) em relação ao equilíbrio o responsável pela flecha do
tempo, mas o estado macroscópico de equilíbrio o responsável pelo fato de
que essa flecha do tempo, sempre presente no nível microscópico, não
tenha, nesse estado, nenhum efeito macroscópico
120
.
Parafraseando Prigogine/Stengers, podemos afirmar com Deleuze que
não é o desvio (sensório-motor) em relação à imagem-movimento o
responsável pela imagem-tempo, mas o estado sensório-motor de equilíbrio o
responsável pelo fato de que essa imagem-tempo, sempre presente no nível da
duração, não tenha, nesse estado, nenhum efeito visível. Assim como as
descrições isocrônicas da dinâmica de Galileu podem ser agora consideradas
como um tipo específico e circunscrito de temporalidade fechada ou circular,
120
Prigogine, Ilya e Stengers, Isabelle: Entre o Tempo e a Eternidade, Companhia das Letras, Rio de
Janeiro, 1992, p. 186. O grifo é meu.
63
as imagens-movimento se nos revelam, ao final do périplo deleuziano, como
casos específicos da imagem-tempo, configurações possíveis da duração.
A reprodução direta do tempo pode afinal ser compreendida como a
verdadeira vocação do cinema, como seu destino genético, discernível apenas
ao final de sua trajetória, e a afirmação do cinema como uma janela de fluxos,
como um instrumento de reprodução da duração, desenvolvida com rigor
metodológico e abrangência estilística. É precisamente por isto que o
momento no qual Deleuze escreve é o momento-cinema por excelência, o
momento em que o cinema está plenamente realizado em todas as suas
potências e capacidades genéticas, sendo passível, portanto, de uma descrição
abrangente e pormenorizada de todas as suas formas.
Este é também o limite do empreendimento conceitual deleuziano em
seu estudo sobre o cinema: ao considerar o tempo como um fator intrínseco ao
cinema e ao descrever as formas de sua atualização ao longo do
desenvolvimento da linguagem cinematográfica, Deleuze refere-se
exclusivamente ao tempo da enunciação fílmica (a duração concreta dos
planos). O tempo do dispositivo, para Deleuze, é apenas o tempo objetivo de
funcionamento do aparelho e não diz respeito à duração na medida em que é
praticamente constante e invariável ao longo de todo o circuito que vai da
captação à projeção de imagens e sons.
Ora, se o cinema é capaz de enunciar diretamente a duração concreta de
um evento graças à modulação do tempo dos enunciados, o que aconteceria à
reprodução da duração se o tempo do dispositivo também variasse? Não
estaria ela sendo modulada por sua vez, em uma espécie de modulação da
modulação?
Pensemos no que se passa com os dispositivos analógicos de captação de
som e imagem: uma alteração na freqüência de rotação do gravador ou da
velocidade da câmera altera a nossa percepção da imagem e do som de forma
proporcional. Temos, assim, o celebrado efeito do ralenti e os efeitos de
aceleração para a imagem, bem como os efeitos distorsivos de vow and flutter
para o som gravado analogicamente. Mas quando nos voltamos para os seus
sucedâneos digitais, verificamos que sua nova maneira de processar os sons e
as imagens descola a velocidade concreta de rotação do aparelho da função de
freqüência básica de captação, que é programável e recebe o nome de
64
'freqüência de amostragem' (sample rate
121
). Isto significa que a imagem e o
som digitais não são apenas modulações concretas de uma duração, mas sim
possibilidades distintas de modulação da própria modulação, pois se baseiam
no controle da relação entre tempo contínuo e instante descontínuo, através de
sua quantificação.
Situar-se-ia a mutação tecnológica a que estamos assistindo,
literalmente, entre a duração e o instante? A análise de filmes talvez possa nos
fornecer aqui algumas pistas. O cinema digital apresenta características e
tendências distintas, que tanto indicam, em alguns casos, uma afirmação ainda
mais dinâmica da duração e da passagem contínua do tempo (possibilitadas
pela extrema leveza e mobilidade das novas câmeras, aliada à possibilidade de
um registro contínuo e ininterrupto da ação) como, em outros, propugnam uma
visão sincrônica e instantânea da ação através da noção de um 'tempo real'
quantitativamente controlado - possibilidade que também se liga à
digitalização do audiovisual.
Passaremos então à análise de quatro filmes, agrupados dois a dois. O
primeiro par de filmes - o curta-metragem brasileiro Bala Perdida (de Vítor
Lopes, 2003) e o longa-metragem francês Irrevérsible, (de Gaspar Noé, 2002)
- caracterizam-se pela demonstração formal de que, no cinema, o instante
pode ser representado a partir da duração, da passagem do tempo que o
consome. A segunda dupla de filmes, os norte-americanos Amnésia (de
Christopher Nolan, 2001) e Time Code (de Mike Figgis, 2000), parte do
princípio inverso: a passagem do tempo é apenas uma função do instante,
função esta que pode efetivar-se plenamente através do controle do tempo real,
como em Time Code, mas que poderia hipoteticamente estar ausente do
processo e impossibilitar uma articulação segura dos instantes, como em
Amnésia.
"Le Temps Détruit Tout" ou como interceptar um instante?
Bala Perdida é um curta-metragem de 14 minutos de duração sobre um
assalto seguido de tiroteio e morte no Largo do Machado, movimentada praça
121
Sobre o conceito de frequência de amostragem, ver Watkinson, John: An Introduction to Digital
Audio, Focal Press, London, 1994, p.2.
65
da cidade do Rio de Janeiro. Por sua concisão e precisão, é o melhor exemplo
que poderíamos encontrar da tese deleuziana segundo a qual a duração está
microscopicamente presente em qualquer imagem-movimento ou, como
escreveu Jacques Aumont, "o cinema, por construção, é tudo exceto uma arte
do instantâneo: por mais breve e imóvel que seja um plano, ele jamais será a
condensação de um momento único, mas sempre a impressão de certa
duração
122
”.
Como representar cinematograficamente o instante preciso de uma bala
perdida, fornecer o roteiro preciso de uma trajetória velozmente sinuosa que
conecta em um átimo de segundo os mais diferentes destinos sem perder o
impacto fatal de sua imediaticidade? Como fazê-lo a partir do cinema, de sua
pregnância na duração? Este é o desafio proposto por este filme, a
interceptação de um instante em película, sua representação fílmica capturada
na duração reproduzida em 24f/s.
Para isto, foi necessário um controle rigoroso dos recursos estilísticos
consagrados pelo cinema clássico-narrativo da imagem-movimento: uma
decupagem rigorosa do espaço, a continuidade sem falhas na montagem de
todos os planos de uma mesma seqüência e uma edição de som absolutamente
sincrônica, que em nenhum momento descola nossa percepção auditiva da
percepção visual. Compreende-se: uma imagem-tempo da conjugação
instantânea de diferentes trajetórias (humanas) com a trajetória (mortal) de
uma bala perdida só poderia ser realizada, de forma totalmente contínua,
através de um plano-sequência de complexa engenharia, no estilo da sequência
de abertura de Touch of Evil (de Orson Welles, 1958). Mas este plano de
Welles conjuga apenas duas trajetórias distintas em seu desenrolar, a do carro
de Vargas (Charlton Heston) e a do carro em que uma bomba, ao final do
plano, explode fora de quadro sobre um beijo do recém-casado Vargas em sua
esposa. Bala Perdida deve articular os destinos de vários grupos distintos de
pessoas que convergem para o mesmo local: a praça em que ocorrerá um
assalto seguido de tiroteio.
É, portanto, à imagem-movimento e ao conservadorismo sensório-motor
de suas articulações que Bala Perdida recorre para que nossa atenção não se
122
Aumont, Jacques: O Olho Interminável (Ciema e Pintura), Ed. Cosac & Naify , São Paulo, 2004, p.
100.
66
desvie demasiado da necessária convergência para o instante das diversas
durações em curso: a partida de cartas dos aposentados no centro da praça, o
passeio do casal de namorados, a discussão no meio da rua entre dois amantes,
a "viagem" de morfina de um paciente terminal em cadeira de rodas, o almoço
do PM no bar e o assalto no trânsito, seguido de fuga, correria, tiroteio e
morte.
dois recursos fundamentais de que o filme se utiliza para que a
duração não tome conta de seu desenvolvimento e afaste as distintas situações
de seu desenlace comum. O primeiro é a neutralização visual dos inevitáveis
faux-raccords que se estabelecem na passagem de uma sequência para outra.
Como cada seqüência narra uma situação totalmente distinta e absolutamente
paralela às outras, a cada mudança de sequência o filme volta para trás no
tempo através de uma cartela que marca sempre o mesmo horário 14h:18m.
A função da cartela é a de impedir, a todo custo, o efeito de desorientação
temporal típico do faux-raccord
123
, pois em um mesmo instante não pode
haver falsos raccords, já que neste caso as "partes" deste instante não se
encaixariam entre si perfeitamente.
O segundo é a sintagmatização fortemente espacializada de nossa
percepção auditiva, através da edição e mixagem esterofônica dos sons.
Escutamos a mesma seqüência de sons que denota o assalto e o tiroteio
(buzinas, gritos, tiros, revoada de pombos, mais gritos) de acordo com a
perspectiva audiovisual do segmento espacial correspondente. Assim, logo no
início do filme vemos a motorista buzinando desesperada, logo após ser
assaltada, e escutamos essa buzina em um primeiro plano sonoro
correspondente. Quando, ao longo das sequências seguintes, escutamos esta
mesma seqüência de sons em diferentes texturas sonoras que correspondem à
situação visual descrita (assim, o morfinômano escuta as buzinas e os tiros ao
longe, levemente distorcidos, embora esteja numa cadeira de rodas no meio do
tiroteio), identificamos a passagem de um mesmo instante para durações
distintas, porém concomitantes.
A representação do instante aqui é uma representação indireta do tempo,
que recorre à manipulação do seu fluxo apenas para melhor negá-la, afirmando
123
A este respeito ver Aumont, Jacques: O Olho Interminável (Ciema e Pintura), Ed. Cosac & Naify ,
São Paulo, 2004, p.107.
67
sua inexorabilidade e irreversibilidade fatal, para além de todas as operações
que pretendem reverter o curso do tempo, atrasar o relógio, e recomeçar a
história. A obscenidade intrínseca à irreversibilidade do tempo
124
está presente
em toda sua intensidade no plano final deste filme, que descreve
simultaneamente o ponto final na trajetória da bala perdida e a separação
definitiva do casal de namorados que, minutos antes, trocara juras de amor
eterno. O final abrupto, seco e exato de Bala Perdida traz em si a carga
destrutiva de um tempo devorador de instantes, de uma duração inexorável e
irreversível que a tudo destrói.
Este é também o tema explícito de outro filme notável, o longa-
metragem francês Irrevérsible. Aqui, toda a versatilidade da tecnologia do
vídeo digital concorre para uma ambiciosa tentativa de contato direto com o
tempo da duração. Em Irrevérsible, não há instantes, apenas o puro fluxo
inexorável do tempo, um fluxo trans-humano que tudo atravessa e que se
expressa nos contínuos movimentos de uma câmera que se aproxima e se
afasta alucinadamente da ação de forma abrupta e irregular, tal como o vôo de
um inseto. Aliada à extrema mobilidade de sua câmera, a possibilidade, trazida
pelo vídeo, de gravar sem interrupções durante mais de duas horas seguidas,
permitiu a estruturação do filme em grandes blocos temporais de cerca de
trinta minutos cada, verdadeiros pedaços da "carne" da duração projetados ao
reverso e unidos entre si por faux-raccords circularmente verticais, que se
assumem plenamente como tal: para a duração, todos os raccords são falsos,
pois qualquer corte ou divisão do fluxo temporal é arbitrária.
Irrevérsible é uma tentativa de temporalização radical do cinema.
Enquanto Bala Perdida demonstra a necessidade de um controle rígido da
duração para que se represente cinematograficamente um instante, Irrevérsible
apresenta-nos diretamente a imagem-tempo da duração como descontrole,
como pura anomia incontrolável a desabar, de forma implacável, sobre o
destino das pessoas. Trata-se de um filme "cheio de som e de fúria", em que a
projeção a contrapelo do fluxo temporal exerce, assim como o "atraso do
relógio" em Bala Perdida, um efeito de intensificação da sensação de
124
A este respeito, ver Bazin, André: Morte Todas as Tardes, in A Experiência do Cinema (Xavier,
Ismail, org.) Graal Ed., Rio de Janeiro, 1983, p.133.
68
inexorabilidade brutal e gratuita de um tempo "que é uma criança, jogando o
jogo de pedras; vigência da criança
125
".
Bala Perdida e Irrevérsible são filmes que afirmam o tempo e o devir; o
primeiro indiretamente, a partir da representação do instante, e o segundo
diretamente, a partir da reprodução da duração. No entanto, se afirmamos que
Bala Perdida trabalha a questão do tempo com os meios convencionais do
cinema analógico e que Irrevérsible se aproveita da nova tecnologia do vídeo
digital para (re)produzir diretamente a duração, devemos agora precisar o
sentido desta afirmação. O que é determinante para a estética de Irrevérsible
não é a masterização digital de suas imagens e sons, mas as características de
velocidade e leveza da câmera de vídeo aliadas à sua imersão técnica na
duração. Gerando um sinal imediatamente reproduzível e gravando-o em um
suporte eletromagnético e/ou digital de mais de duas horas de duração, a
imagem de vídeo inscreve-se na categoria temporal da duração de forma mais
direta do que a imagem cinematográfica.
A nova tecnologia audiovisual apresenta, na verdade, uma combinação
complexa de elementos analógicos e digitais, o que não nos deve surpreender,
pois o mesmo se passava com o próprio cinematógrafo que, em sua época,
combinava a fotografia analógica à quantificação da passagem do tempo. No
entanto, enquanto a imagem cinematográfica sofisticou sua capacidade de
reprodução direta das sensações luminosas e do movimento através de
tecnologias analógicas em que a constância do perfurado, ótico ou magnético,
era apenas um princípio elementar de quantificação do tempo do dispositivo, a
tecnologia digital parece submeter todos os elementos da reprodução
audiovisual ao princípio da quantificação integral do tempo.
"One Continuous Moment" ou como prolongar um instante?
Apesar de toda a sua audácia formal, Irrevérsible não tira partido das
possibilidades técnicas e estéticas intrínsecas ao processamento digital. Tais
possibilidades geralmente são referidas à explosão, nos filmes
125
Heráclito de Éfeso, Fragmento 52, in Os Pensadores Originários - Anaximandro, Parmênides,
Heráclito (texto e tradução de Carneiro Leão, Emanuel e Wrublewski, Sérgio) Ed. Vozes, Petrópolis,
1991, p. 73.
69
contemporâneos, da visualidade gráfica e dos efeitos anamórficos
computadorizados.
Se Irrevérsible é um filme bergsoniano em todos os sentidos, então sua
contrapartida bachelardiana perfeita seria o longa-metragem Amnésia. Trata-se
de um mergulho no absoluto do instante, na descontinuidade radical que a
ausência permanente de memória imediata pode provocar. Embora este filme
partilhe com Irrevérsible a característica de uma projeção reversa dos
acontecimentos, tal procedimento ressalta aqui a descontinuidade temporal
radical que a falta de memória imediata provoca no personagem principal da
trama. Assim, mesmo que a continuidade espacial tradicional seja mantida no
interior de cada seqüência (como em Bala Perdida), nunca sabemos se os
raccords entre as seqüências são verdadeiros ou falsos, pois não temos
elementos para decidir a esse respeito, na medida em que partilhamos do ponto
de vista de seu protagonista, ou seja, tampouco podemos nos lembrar do que
aconteceu no início da história.
Amnésia é um filme concebido de maneira a impedir a sensação de
duração, de fluxo temporal. A própria recordação dos eventos narrados pelo
filme se torna penosa após a sessão. Ao contrário de Bala Perdida, em que as
diversas sequências funcionam como as partes espacialmente contíguas de um
mesmo instante (o que explica a necessidade de eliminar integralmente o faux-
raccord e estabelecer uma espécie de "cubismo temporal", a representação do
instante através de sua imagem indireta), em Amnésia a articulação das
sequências entre si é extremamente frouxa, de forma que estamos sempre em
dúvida acerca da validade cognitiva dos raccords apresentados, bem como da
validade de sua ordem sucessória. Cada sequência de Amnésia é um instante
absoluto, tendencialmente estático, e mantém uma relação temporal com as
outras sequências-instante do filme que é posta permanentemente em xeque.
Todo o processo de memorização é retratado aqui como um processo de
criação de faux-raccords, mas, em vez de considerar tal processo como um
atributo criativo do tempo da duração que não altera em nada sua objetividade
concreta e inexorável (como em Irrevérsible), Amnésia submete
paranoicamente a realidade à prova da passagem do tempo, obrigando-a a uma
reduplicação instantânea a cada instante, representada no filme pela função da
70
máquina fotográfica que garante, ao protagonista, o (re)reconhecimento
renovado da identidade de pessoas e objetos que o circundam.
Seria Amnésia um filme baseado na indecidabilidade entre dois eventos
simultâneos e excludentes que caracteriza as Imagens-Tempo denominadas
por Deleuze "pontas de presente"? A questão da reversibilidade indica aqui
claramente que não, que os raccords de Amnésia são indecidíveis para nós
apenas na medida em que o são para seu personagem, e isso somente devido às
suas condições patológicas, que são inteiramente fictícias, não existindo
nenhum caso semelhante na literatura clínica. Isto significa que Amnésia
projeta uma representação indireta de um tempo tradicionalmente linear em
que os eventos podem ser tranquilamente reinscritos. Não seria difícil
distinguir um raccord falso de um verdadeiro, se ao menos pudéssemos nos
lembrar…
As sequências-instante de Amnésia são, portanto, ainda uma vez, uma
representação do instante através do tradicional cinema da Imagem-
Movimento, habilmente utilizado para negar conceitualmente o próprio
fenômeno que o torna possível - a duração. O conteúdo metafísico da idéia de
instante fica absolutamente evidente com este filme algo autista, impregnado
de uma atmosfera de irrealidade e incerteza que contrasta com a crueza chã e o
realismo brutal de Irrevérsible.
Podemos afirmar, portanto, que enquanto a duração concreta pode ser
reproduzida pelo cinema de forma diretamente "observável" (Irrevérsible), o
instante abstrato deve ser representado mediante uma série de procedimentos
narrativos que contornem a presença inevitável da duração no filme (Bala
Perdida, Amnésia).
Seria possível atingir, através do cinema, uma reprodução direta do
instante - a Imagem-Instante? Nossa hipótese é a de que os sistemas
analógicos de captação de imagem e som não o permitem porque trabalham
diretamente com modulações da duração. No entanto, como os sistemas
digitais são capazes de controlar a constância do fluxo temporal a partir de seu
processamento preciso em instantes matematizáveis, o controle simultâneo de
modulações distintas da duração a partir de uma medida relativa do instante
estendeu-se para o conjunto dos dispositivos audiovisuais à nossa disposição,
71
consolidando uma nova possibilidade: a da reprodução instantânea do instante
relativo a um determinado conjunto de durações.
Se a modulação direta da duração era uma possibilidade latente à
imagem cinematográfica que foi aos poucos se inscrevendo em suas formas de
enunciação, o controle instantâneo de uma multiplicidade de durações sempre
existiu no cinema e no vídeo como um problema técnico, o problema do
sincronismo entre os diversos motores de câmera e/ou do gravador de som. As
possibilidades expressivas da codificação do tempo aparecem agora como
tema onipresente do novo regime audiovisual, da mesma forma como um sem-
número de expressões concretas da duração impregnava o chamado cinema
moderno da segunda metade do século passado.
Time Code é uma expressão concreta da Imagem-Instante possibilitada
pelo novo regime de captação audiovisual. Trata-se de um longa-metragem de
ficção em que quatro câmeras de vídeo digital trabalham em continuidade
espaço-temporal absoluta, sem cortes, para acompanhar os múltiplos
deslocamentos de um punhado de personagens distintos durante algumas horas
de suas vidas. Temos acesso constante e simultâneo às quatro câmeras, que
dividem a tela em quatro partes iguais.
A questão aqui não é a da divisão do espaço da tela, um recurso que
havia sido utilizado várias vezes na história do cinema. Trata-se aqui da
sincronização permanente entre todos os instantes registrados pelas câmeras,
garantida tecnicamente por um código digital de sincronização de câmeras de
vídeo conhecido justamente pelo nome de Time Code.
Este código é um relógio digital que grava nas fitas de deo um
"endereço" para cada imagem, "endereço" que é contado frame a frame. É um
código criado com a finalidade específica de sincronizar equipamentos de
gravação em fita magnética lisa, i.e., sem perfuração, como o deo. O Time
Code registra a hora, o minuto, o segundo e o frame de cada pedaço de fita. Se
gravarmos o mesmo Time Code em todas as quatro câmeras com o mesmo
frame rate - i.e., a mesma taxa de contagem de frames (que é variável e
depende do dispositivo que está sendo utilizado), poderemos reproduzir as
quatro fitas posteriormente em absoluta sincronia. É isto o que faz Time Code,
filme que nos permite acompanhar quatro fluxos distintos de duração, quatro
72
diferentes enunciados temporais, a partir de um momento contínuo de
enunciação, um instante contínuo.
Estamos, talvez, diante de um novo tipo de imagem, a Imagem-Instante,
que se distingue da Imagem-Tempo na medida em que as quatro partições da
sua imagem não correspondem à mera re-espacialização de séries temporais
disjuntivas, comuns em filmes como Lost Highway ou Mulholland Drive, de
David Lynch. Aqui, pelo contrário, as durações são absolutamente
convergentes com o momento do instante, na medida em que o espectador
pode estabelecer sobre a Imagem-Instante os raccords que quiser a qualquer
momento, além de poder pré-ver, literalmente, o estabelecimento de raccords
entre os quadros antes mesmo que eles se estabeleçam (quando um
personagem se desloca de um determinado quadro em direção a outro, por
exemplo).
O uso constante do som como raccord entre os diversos "quadros"
(através de telefones, microfones e gritos), no entanto, é uma demonstração de
que a reprodução de sinais sonoros resiste mais à pregnância do instante do
que a imagem, que é mais facilmente espacializável. O som deve sempre ser
inscrito em alguma solução de sucessão temporal. Em Time Code, nosso olho
tem acesso simultâneo aos quatro quadros visuais, mas a mixagem final do
filme deve determinar para nossos ouvidos a ordem de sucessão temporal
diacrônica e os respectivos níveis e alturas sincronicamente variáveis das
quatro pistas distintas de som. Mesmo assim, as novas formas digitais de
fruição de um filme intercedem no sentido de uma sofisticação da proposta
audiovisual de Time Code: se assistirmos o filme em DVD, em vez de irmos a
uma projeção cinematográfica convencional em película, poderemos alterar os
respectivos níveis de percepção das pistas sonoras, estabelecendo raccords
sonoros com a mesma liberdade com que estabelecíamos nossos próprios
raccords visuais.
Time Code é um filme que demonstra de que modo uma mudança de
patamar técnico nos processos de reprodução cinemática de imagens e sons
inaugura um novo regime de temporalidade em que a "tirania do tempo real,
deste acidente do Tempo de uma instantaneidade
126
”, de que nos fala Paul
126
Virilio, Paul: Ville Panique - Ailleurs Commence Ici, Ed. Galilée, Paris, 2004, p.75.
73
Virilio, parece sobrepor-se ao fluxo inexorável da duração. Como dispositivo
técnico, um relógio de Time Code é capaz de modular o próprio tempo em seu
fluxo, não a partir de uma regra invariável, mas de acordo com uma série de
múltiplas possibilidades de regulação (regras facultativas) que variam com a
própria variação de fluxos.
Ao fim deste percurso em que as relações entre a duração e o instante
foram examinadas tanto de um ponto de vista teórico como prático, torna-se
possível perceber como estas duas instâncias reenviam-se recíproca e
incessantemente, provocando a inequívoca emergência do seu próprio oposto
em uma dialética da temporalidade que está presente na textura de qualquer
filme. Nesta dialética, tanto a duração quanto o instante mudam
constantemente de posição, um assumindo o lugar do outro na exata medida da
relatividade intrínseca a estas noções: uma determinada duração temporal pode
ser sempre tomada como a medida do instante para outra duração maior, assim
como qualquer instante pode ser sempre considerado como a medida de uma
duração para uma série de instantes menores.
A reprodução cinemática do tempo não pode se basear exclusivamente,
portanto, nem em uma suposta realidade intrinsecamente objetiva do instante,
nem em uma suposta objetividade inexorável da duração. Por outro lado, se a
representação simbólica do tempo, no discurso cinematográfico, é capaz de se
utilizar virtuosisticamente de todas as sutis gradações temporais que se pode
estabelecer, no plano diegético da narrativa, entre a duração e o instante, faz-se
ainda necessária uma determinação ontológica do tempo como um fenômeno
do qual o cinema recolhe o traço e nos dá testemunho.
Que problema nos é colocado, então, pelo cinema e por sua história, a
partir da tensão que o habita entre a duração e o instante?
Tempo do dispositivo, tempo do enunciado, tempo da enunciação
pelo menos três regimes de temporalidade distintos em ação em um
filme: o tempo constante e mecanizado do seu dispositivo técnico; o tempo
extremamente variável e manipulável dos seus enunciados que podem
referir-se ao presente, ao passado e ao futuro, em um determinado sintagma
narrativo, contraindo-se e expandindo-se de acordo com as necessidades
diegéticas da narrativa; e o tempo, sempre presente, da enunciação
74
cinematográfica, ou seja, da instância que organiza os diversos elementos da
história em um sintagma narrativo coerente, e que é geralmente identificado ao
cineasta entendido como “autor” do texto fílmico (isto é, como narrador).
É através da sobreposição do tempo cinematográfico da enunciação ao
tempo cinemático do dispositivo, como bem o observa Mary Ann Doane, que
a tensão inerente aos diversos regimes de temporalidade do filme se
estabilizou na forma clássico-narrativa. High Noon, de Fred Zinemann, filme
que representa o auge desta tendência, alinha cuidadosamente o tempo dos
enunciados ao tempo da enunciação, fazendo com que os três níveis ou
regimes de temporalidade acima apontados se recubram inteiramente.
Para Ann Doane, como a capacidade de representação do tempo pelo
cinema se baseia necessariamente no controle mecânico da reprodução do
instante, a duração é apenas um efeito colateral da reprodução fotográfica do
movimento, que seria suficiente para definir o cinema como tal. Mas esta é
uma definição muito restrita da experiência cinematográfica, pois não
problematiza, por um lado, as relações do filme com outras técnicas de
animação ou de geração de imagens (como o vídeo) e, por outro, não
considera o papel que o som e outros elementos não visuais também podem
desempenhar no filme.
Certamente, o caráter indicial da imagem fotográfica é um elemento
determinante para a ênfase dada por Doane ao aspecto propriamente fílmico
do cinema. No entanto, a forma como ela remete a função indicial da imagem
cinematográfica ao registro de eventos se aproxima mais de uma descrição
genealógica do evento como atração espetacular (próxima tanto de um Guy
Debord como de Jonathan Crary), do que da concepção ontologicamente
temporal de evento que pensadores do tempo e da história, como Heidegger,
Benjamin e Agamben, desenvolveram. Sem esta, Doane não pode afirmar
claramente que o cinema é um índice do tempo e de sua passagem, sem,
porém, poder negá-lo peremptoriamente.
para Deleuze, que inicia a sua investigação a partir de uma nova
ontologia do tempo e da imagem, a história do cinema revela gradativamente o
tempo cinemático como um reprodutor direto da duração, inequivocamente
afirmada pelo tempo presente da enunciação, mesmo quando o tempo do
enunciado afirma o instante. É nesta disjunção entre o tempo da enunciação e
75
o tempo dos enunciados que o tempo cinemático se insere, subordinando o
movimento da enunciação à reprodução direta de sua duração, em vez de ser
indiretamente representado pela imagem-movimento como tempo
cinematograficamente enunciado. Enquanto Ann Doane considera a oposição
entre a duração e o instante, no cinema, como a expressão de uma oposição
irredutível entre o tempo cinemático do dispositivo - baseado no controle
mecânico do instante - e o tempo cinematográfico dos enunciados, a ser
regulado pelo tempo diegético, isto é, representacional, da enunciação,
Deleuze trata essa oposição como uma tensão interior à disjunção
enunciação/enunciado, que simplesmente não diz respeito ao tempo mecânico
da reprodução do instante pelo dispositivo.
Para Deleuze, o caráter necessariamente indicial do tempo no cinema
está ligado à sua capacidade de enunciar diretamente a duração, muito mais do
que à questão técnica do seu modo de reprodução (fotográfica ou não) pelo
dispositivo. Seja analógico, seja digital, baseando-se na descontinuidade
fundamental do instante ou na continuidade inexorável da duração como fluxo,
o cinema é realmente uma máquina do tempo, na medida em que é capaz de
enunciar aquilo que, do tempo, escapa inteiramente tanto ao tempo linear e
abstrato do dispositivo quanto à ordenação sintática (e sintagmática) dos
regimes fílmicos de temporalidade, através dos códigos de representação
cinematográficos: o evento entendido em seu sentido a-semiótico e historial,
ou seja, o evento ontologicamente pensado como o avesso do instante pontual
que rege o tempo do dispositivo.
Isto significa que a questão central aqui não é exatamente a de
determinar se o cinema nos coloca frente a frente com o tempo real ou se este
tempo real é apenas mais um “simulacro” ou ilusão dos nossos sentidos, como
parece pensar Mary Ann Doane
127
.
Trata-se, antes, de demonstrar que a questão do tempo, no cinema, longe
de resolver-se em uma dialética entre duração e instante que procure
determinar qual é o pólo fisicamente determinante da contradição (para, então,
deduzir o outro), só pode ser compreendida a partir do mesmo nível ontológico
de questionamento do tempo que a história como ciência nos propõe. Isto
127
“The cinema presents us with a simulacrum of time”, in Doane, Mary Ann: The Emergence of
Cinematic Time, Harvard University Press, 2002, p.172.
76
porque o cinema, assim como a história, coloca para o tempo exatamente a
mesma questão, que geralmente é relacionada à questão do espaço em sua
relação com o movimento: permanência vs. mudança, estrutura vs. fluxo ou
sincronia vs. diacronia são algumas das formas com que este problema
costuma ser colocado, escamoteando, como lucidamente o demonstra
Alexandre Koyré, o cerne da questão:
Não devemos nos perguntar como é possível que um corpo possa
transcender o abismo de um espaço divisível ao infinito, como é possível que
ele possa percorrer uma extensão composta de pontos infinitamente numerosos,
mas sim: como é possível que o contínuo, que transcende toda determinação de
grandeza, se torne mesmo assim uma reta, uma distância, um corpo. Como
dividir e mensurar o indivisível, o não-mensurável, em vez de compor o
divisível? É claro que encarar o tempo e o espaço como «subjetivos » ou
como « apercepções puras” não chega nem mesmo a ser um começo de
solução ou de explicação. Que eles sejam reais ou subjetivos, in intellectum
ou extra intellectum : o problema permanece o mesmo. Pois é exatamente a
maneira com que nós representamos o tempo e o espaço sem poder
“compreendê-los” que nos causa problemas; é a idéia de contínuo que não
conseguimos apreender.
128
A disjunção entre o tempo cinemático do dispositivo e o tempo
cinematográfico da narrativa não é, portanto, a disjunção entre tempo e
eternidade ou entre a duração e o instante. Ambos são, na verdade, diferentes
recortes, de diversas gradações, de um continuum maciço e indivisível que não
se deixa inscrever inteiramente no mundo real das coisas, assim como evita se
inscrever como idéia clara para a mente.
O diferimento temporal que assombra o movimento e a duração do
cinema e da história é o impensável (porém, calculável) diferimento entre o
contínuo e o descontínuo. Este diferimento habita o cinema em vários veis
de sua práxis, dos problemas técnicos ligados à continuidade das imagens e
dos sons, no momento de sua captação, às convenções de ordem estética que
regularizam o fluxo diegético da narrativa, a partir de figuras de linguagem
que podem tratar o tempo da enunciação de forma mais ou menos
(des)contínua.
Ao situar a questão do tempo cinemático no terreno da enunciação, em
vez de pensá-lo no campo do dispositivo, a contribuição de Deleuze para a
teoria e a história do cinema não reside em absoluto em haver “provado” a real
existência do tempo e de sua possibilidade de registro pelo cinema, mas em
128
Koyré, Alexandre : « Les paradoxes de Zénon », in Études d’Histoire de la pensée philosophique,
Librairie Armand Colin, Paris, 1961, p.28. A tradução e o grifo são meus.
77
haver aberto a possibilidade de se pensar, ontologicamente, as relações entre
tempo e cinema na sua conexão com o real de um evento, isto é, em sua
conexão histórica mais originária ou historial.
Qual seria esta conexão? Uma conexão que, partindo da forma com que
Deleuze redimensiona a história do cinema a partir de uma ontologia anti-
representacional da imagem e do tempo, reconfigure, por sua vez, a ontologia
da história através da experiência cinemática, tal como o desejava Sigfried
Kracauer. Sendo esta experiência uma experiência simultaneamente mimética
e diegética, passaremos, no próximo capítulo, a discutir a mímesis
cinematográfica, em suas relações com a questão do signo e da representação,
desvinculando-a tanto dos modelos narrativos e literários que enfatizam a
diegese fílmica, como dos paradigmas estéticos, oriundos de outras artes
(pintura, arquitetura, gravura, fotografia...), que tendem a concebê-la em
termos exclusivamente icônicos ou mesmo visuais.
Pensar a mímesis no cinema implica, assim, um esforço de desassociação
deste termo da idéia de imitação em suas duas vertentes mais comuns: a
simbólica, que pensa o signo como representante arbitrário ou convencional do
objeto dentro de um código, e a icônica, que pensa o signo, por analogia, como
um objeto formalmente semelhante a outro objeto. Em ambas, a relação entre
signo e objeto é necessariamente mediada por um ou mais códigos
representacionais, cabendo à mímesis o papel passivo de mera reflexão (de
ordem secundária, terciária e etc.) imaginária da realidade. Embora o cinema
não exclua em absoluto a presença destes códigos representacionais -
constituindo-se, pelo contrário, em uma arte híbrida, que conjuga
simultaneamente uma imensa variedade de códigos verbais, visuais e sonoros
(musicais ou não). A mera descrição da mesis cinematográfica como
síntese de todas as outras artes ou como puro meio técnico de registro e
conservação de outras artes (como o queria Marcel Pagnol) não nos permite
resolver as inúmeras antinomias que perpassam a história e a teoria do cinema.
78
CAPÍTULO 2
CINEMÁTICA DA MÍMESIS
... des poupées baignant dans les couleurs immatérielles des années, des poupées extériorisant le Temps,
le Temps qui d'habitude n'est pas visible, pour le devenir cherche des corps et, partout où il les rencontre, s'en
empare pour montrer sur eux sa lanterne magique.
Proust, "Recherche...", (III, p.924)
A experiência cinematográfica entre o signo e seu objeto
No primeiro capítulo, abordamos a questão do tempo no cinema para
delinear mais claramente o impasse teórico a que a experiência
cinematográfica nos conduz: seria o tempo no cinema uma realidade ou uma
ilusão, experiência objetiva de uma percepção real ou representação codificada
de uma sensação ilusória? Verificamos que tal questão não pode ser resolvida
no âmbito prévio de uma ontologia do tempo como evento e que o cinema,
como uma experiência histórica específica deste fenômeno, talvez torne a sua
resolução ainda mais complexa. Começamos também a esboçar, com a
hipótese de uma dupla articulação entre a reprodução mecânica de um tempo
propriamente cinemático e a representação cinematográfica do tempo em suas
diversas formas de enunciação, uma tentativa ainda tateante de desdobramento
da questão.
Foi possível constatar, porém, que a questão do tempo no cinema está
associada a duas outras questões: o problema da narrativa e dos modos de
narração, ficcionais ou não, como procedimentos diegéticos de enunciação
essenciais à constituição da(s) linguagem(s) cinematográfica(s), por um lado, e
a questão do estatuto da experiência mimética no cinema como experiência
irredutível às categorias estéticas e/ou semiológicas de representação
tradicionalmente evocadas para descrevê-la - como as de ‘signo’ ou de
‘imagem’, por exemplo.
Assim como a relação entre tempo e cinema aparece mergulhada em
uma contradição insolúvel entre as categorias de duração e instante, também a
79
reflexão teórica sobre a mímesis cinematográfica se encontra imprensada entre
uma fenomenologia da percepção de cunho mais ou menos fisicalista e um
sem número de semiologias do cinema baseadas no primado da convenção
simbólica e da representação culturalmente codificada. Assim, quando não
está a serviço de uma divisão grosseira e simplória do que seria “natural” (ou
fisiológico) e do que seria “cultural” (ou sociológico) na experiência
cinematográfica, a oposição conceitual entre mímesis e diegese atua, na teoria
cinematográfica, de maneira a recortar o campo da representação
cinematográfica em dois eixos fundamentais: o simbólico - entendido como o
domínio próprio da diegese fílmica em seu constante desenvolvimento estético
de diversas linguagens narrativas cinematográficas - e o icônico ou imaginário,
compreendido como o âmbito mais especificamente técnico em que a mesis
cinematográfica reproduz nossa percepção dos objetos do mundo a partir de
sua inscrição em um ou mais códigos representacionais quaisquer.
Entre o primado do signo ou do objeto, o conceito de mímesis herdado
pela teoria do cinema da história da estética e da literatura esteve, em geral,
reduzido à mera coadjuvância estilística (ou mesmo “pictorialística”) em
relação à diegese. Na medida em que a experiência cinematográfica busca
muitas vezes (embora nem sempre) um alto grau de iconicidade audiovisual
que possibilite a mimetização da própria representação cinematográfica como
convenção simbólica, isto é, na medida em que a mímesis cinematográfica é
uma espécie de mímesis de todas as mesis que escamoteia os aspectos mais
codificados de sua representação, pode-se compreender como a teoria do
cinema se esforçou em demonstrar o seu caráter artificioso de truque ou de
imitação, enfatizando, por outro lado, o desenvolvimento das técnicas de
montagem e das regras de continuidade visual e narrativa como o âmbito mais
apropriado para se pensar o cinema em sua especificidade. A teoria do cinema
tende a subordinar, assim, o elemento mimético do filme ao seu elemento
diegético. Esse é o verdadeiro sentido das teorias a respeito do “primado da
montagem”, ou do signo e do processo de significação, no cinema: ao
ilusionismo mimético e naïf do parque de diversões, com seu fascínio
instantâneo pelo maravilhoso, capaz de nos conduzir de volta à infância (nossa
e do cinema como diversão popular), sobrepõe-se, histórica e teoricamente,
um processo de sintagmatização do discurso cinematográfico em que modelos
80
de ordem cognitiva e narrativa mais tradicional foram capazes de fazer valer o
peso de suas convenções representacionais, domesticando assim a
potencialidade expressiva da experiência cinematográfica.
Encontramos um bom exemplo deste processo de subordinação da
mímesis cinematográfica às injunções conjuntas da fenomenologia e da
semiologia na obra de Christian Metz: ao mesmo tempo em que se apóia em
uma fenomenologia do movimento, legitimando a impressão de realidade no
cinema como uma impressão real que se produz para o espectador, Metz
descreve as regras e os efeitos discursivos do cinema narrativo hegemônico
como se estivesse diante de um modelo de análise universal e apriorístico.
Para Metz, a impressão de realidade no cinema vincula-se mais à re-
atualização incessante da sensação de movimento do que ao ilusionismo
fotográfico da imagem:
Não basta constatar como o filme é mais « vivo » ou mais « animado »
que a fotografia, nem mesmo como os objetos filmados tem mais “corpo”;
muito mais no cinema, pois a impressão de realidade é também a realidade da
impressão, a presença real do movimento
129
.
No entanto, por mais real que seja a sua presença, a sensação de
movimento não participa diretamente do processo de significação
cinematográfico tal como o concebe Metz, pois será sempre irrealizada através
de sua inserção em diversas séries possíveis de estruturas narrativas
130
. A
perfeição ilusionista da mesis cinematográfica atuaria sempre a reboque de
códigos de significação constituídos em torno de uma gramática básica, de
caráter denotativo
131
, e de uma série de procedimentos retóricos alinhados no
eixo do sintagma.
Para a análise semiológica do filme, é o encadeamento lógico-formal
entre as imagens que importa: o processo de significação se estabelece na
articulação de ao menos duas imagens sucessivas, a partir das quais se
desenvolve um fluxo narrativo coerente e autônomo em relação às próprias
imagens que o constituem:
129
Metz, Christian: « A propos de l’impression de realité au cinéma », in Essais sur la signification au
cinéma – Tome 1, Ed. Klincksieck, Paris, 1994, p.19. Minha tradução.
130
“Le ‘secret’ du cinema, c’est aussi cela: injecter dans l’irrealité de l’image la realité du mouvement, et
réaliser ainsi l’imaginaire jusqu’à un point jamais encore atteint ». Idem, p.24.
131
Metz, Christian: “Problèmes de denotation dans le film de fiction”, in in Essais sur la signification au
cinéma – Tome 1, Ed. Klincksieck, Paris, 1994, pp. 137-138.
81
Supõe-se uma intenção a priori... O espectador entende aquilo que ele
acredita que a montagem quer lhe fazer compreender. As imagens se ligam
umas às outras, interiormente, através da indução inevitável de uma corrente de
significação. A força (da montagem) é real e atuante, quer se queira quer não.
Deve ser utilizada conscientemente.
132
Desta perspectiva teórica, o cinema narrativo clássico é o paradigma
assumido e consciente para a análise do cinema como linguagem. Tudo o que
não se encaixa no modelo de filme de ficção consagrado pela indústria
cinematográfica adapta-se mal a este modelo analítico. Para Metz,
A única fronteira verdadeira (...) é a que passa entre o filme no sentido
corrente da palavra (filme de ficção, ‘realista’ ou não) e todos os gêneros
especiais que renunciam “de saída” (...) ao próprio princípio da narrativa:
atualidades, filmes publicitários, filmes científicos, etc.
133
Se a “natureza mesma” do cinema reside em seu caráter narrativo, os
padrões paradigmáticos e sintagmáticos obtidos através do modelo
semiológico
134
são mais importantes para a teoria do cinema do que as
especificidades miméticas da representação cinematográfica. Estas seriam
responsáveis pelo enorme poder imaginário de persuasão do filme, sem se
confundirem jamais com as instâncias codificadas da significação
cinematográfica que permitem ao cinema se constituir como linguagem
específica. Quais seriam estas instâncias, levando-se em conta que as
dificuldades colocadas pela identificação conceitual do plano cinematográfico
com uma espécie de “mínima unidade” imagética ou significante são
consideráveis?
Pode-se colocar o que é talvez o principal problema de uma semiologia
do cinema através de uma paráfrase da aporia sobre o tempo de S. Agostinho:
O que é, por conseguinte, o signo cinematográfico? Se ninguém mo
perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer tal pergunta, não
sei”.
135
Não temos dúvida alguma acerca da existência de processos de
significação que atuam no cinema, mas como definir o signo cinematográfico
como entidade objetiva, de que modo isolá-lo em meio a um fluxo incessante
de imagens articuladas de forma mais ou menos (des)contínua?
132
Balazs, Béla: Der Geist des Films, apud. Metz, Christian: “Le cinéma: langue ou langage? », in Essais
sur la signification au cinéma – Tome 1, Ed. Klincksieck, Paris, 1994, p.54. Minha tradução.
133
Metz, Christian: “Le cinema moderne et la narrativité », in in Essais sur la signification au cinéma –
Tome 1, Ed. Klincksieck, Paris, 1994, p.193. Minha tradução.
134
Ver Metz, Christian: “Paradigmático e sintagmático”, in Linguagem e cinema, Ed. Perspectiva, São
Paulo, 1980.
135
Ver cap.1, p. 20.
82
Metz apenas contorna essa questão, ao afirmar que o processo de
significação no cinema é determinado por uma série de estruturas narrativas
abertas, isto é, combináveis a partir de um conjunto razoavelmente flexível de
regras a que ele denomina ‘sintagmática’. No cinema, os códigos porventura
formados a partir de tais combinatórias seriam sempre “fracos”, isto é,
suficientemente flexíveis e interpenetráveis, impedindo assim a conformação
de “línguas” cinematográficas segundo o modelo herdado da semiologia
estrutural.
A teoria do cinema desenvolvida por Metz é, portanto, uma narratologia
do filme em que não se vislumbra nunca claramente o que seria o signo
cinematográfico considerado em si mesmo: “a sintagmática se aplica porque a
imagem é um enunciado, mas esta é um enunciado porque se submete à
sintagmática
136
”. A retroatividade do processo de significação torna-se
evidente à medida que sua análise se estrutura a partir dos próprios modos de
articulação narrativa desenvolvidos pelos filmes analisados (sua sintagmática).
Estes são postulados, em seguida, como modelos paradigmáticos de análise,
adaptando-se às inevitáveis modificações estilísticas que atravessam a história
do cinema, numa re-inscrição sucessiva de todas estas mutações, técnicas e
estéticas, em uma “grande sintagmática
137
do cinema narrativo em suas duas
versões, clássica e moderna. Assim, um estudo dos sintagmas narrativos
oriundos tanto da produção de filmes industriais de gênero como da produção
dos chamados “filmes de autor” que postule, retroativamente, o seu caráter
paradigmático e modelar, apenas reforça e legitima tais formas historicamente
hegemônicas de cinema - mesmo quando o faz a partir de uma intenção
explicitamente crítica.
Como o próprio “fato fílmico
138
foi definido em termos retroativos,
ou seja, a partir da disposição das imagens em enunciados de um discurso,
uma aproximação conceitual entre as idéias de plano visual e signo
cinematográfico se uma tentação permanente a exorcizar assim como a
136
Deleuze, Gilles: Cinéma 2 – L’image-temps, Les Éditions de Minuit, Paris, 1985. p.39.
137
Ver Metz, Christian: “Problèmes de denotation dans le film de fiction”, in in Essais sur la signification
au cinéma – Tome 1, Ed. Klincksieck, Paris, 1994.
138
Ver Metz, Christian: “Dentro do cinema, o fato fílmico”, in Linguagem e cinema, Ed. Perspectiva, São
Paulo, 1980.
83
idéia de um significante imaginário
139
torna-se um inevitável espectro a pairar
onde quer que as imagens estejam organizadas em sintagmas narrativos. Isso
porque pressupor um significante imaginário como garantia de possibilidade
da linguagem cinematográfica implica postular uma espécie de centro
imaginário de articulação da significação, instância final capaz de garantir a
legitimidade e a legibilidade do filme entendido como um texto audiovisual a
ser decifrado pelo espectador. Com isto, a semiologia da narrativa
cinematográfica pôde situar-se como uma solução de compromisso entre as
teorias construtivistas do cine-língua ou da todo-poderosa montagem, típicas
do cinema de vanguarda dos anos 1920, e a crítica fenomenológica do olhar
cinematográfico que já havia sido anunciada por Jean Epstein nos anos 30
140
.
No entanto, bem adaptada tanto à formulação de uma crítica ideológica
do discurso cinematográfico
141
como à perspectiva teórica de “dominar o filme
como objeto-significante total
142
”, a análise das estruturas narrativas do
cinema só podia atribuir à mímesis no cinema um papel secundário e
inteiramente subordinado à dimensão significante da narrativa visual. Nesse
ponto, a semiologia de Metz em nada diferia de outras vertentes teóricas da
época, fossem elas de corte mais fenomenológico, psicanalítico ou marxista.
O conceito de mímesis ainda carece de uma abordagem mais atenta por
parte da teoria e da história do cinema, tradicionalmente afeitas a uma
contraposição esquemática entre mímesis e diegese que melhor ressalta a
importância desta última no desenvolvimento da “linguagem
cinematográfica”, enquanto a mímesis propriamente dita permanece
impensada naquilo que apresenta de especificamente cinematográfico. Sua
contribuição à história do cinema é sempre reduzida ao desenvolvimento de
aspectos exclusivamente técnicos do filme, que certamente resultaram no
incremento da sua “impressão de realidade” e da “suspensão da descrença” -
como no caso do som, das cores e do relevo tridimensional (efeito 3D) -, mas
que sempre foram considerados como efeitos mais ou menos superficiais e
139
Metz, Christian: Le signifiant imaginaire – Psychanalyse et cinéma, Christian Bourgeois Éditeur,
1993.
140
A propósito deste debate, principalmente no que diz respeito às diferentes concepções ontológicas da
imagem em Eisenstein e Bazin, ver Xavier, Ismail: “Cinema – revelação e engano, in O Olhar, Ed.
Companhia das Letras, São Paulo, 1988, pp.375-379.
141
Para a questão da ideologia no cinema, ver Lebel, Jean-Patrick: Cinema e ideologia, Ed. Estampa,
Lisboa, 1975.
142
Metz, Christian: Linguagem e cinema, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1980, p.19.
84
secundários em relação à sintaxe “especificamente fílmica” das imagens em
movimento, isto é, à linguagem cinematográfica como tal. Neste sentido, não
se pode falar em uma mímesis especificamente cinematográfica, apenas em
uma série de contribuições “miméticas” à arte do cinema, que agregariam ao
filme novos elementos, visuais e sonoros sem, no entanto, participar mais
ativamente das potencialidades expressivas do discurso cinematográfico.
No entanto, o advento do som na história do cinema apresentava um
embaraçoso obstáculo, prático e teórico, a essa cômoda disposição conceitual
que a teoria do cinema oferecia à questão da mímesis. Na medida em que a
linguagem oral e a música, que são os objetos de escuta preferenciais dos
talkies, podem modificar radicalmente o sentido isolado das imagens - bem
como de sua própria articulação visual, isto é, de seus processos diegéticos de
significação -, como considerar a presença do som no cinema como um
simples efeito de ilustração mimética da narrativa cinematográfica visual?
A resposta teórica ainda vigente se constitui numa expansão da noção de
signo que hipostasia, intencionalmente ou não, o componente propriamente
“lingüístico” do cinema em favor de outros aspectos igualmente importantes
da prática e da experiência cinematográficas. O deslizamento que a semiologia
opera entre as noções de signo e de significante
143
conduz a uma espécie de
entronização conceitual dos modelos de narrativa à disposição do teórico, que
termina por postular, retroativamente, sua existência como se estes fossem
formas definitivas ou ideais da linguagem cinematográfica. Nesse esquema
transcendental da representação cinematográfica, a mímesis pode
desempenhar um papel subordinado e auxiliar, escondendo-se atrás da
narrativa diegética, tal como o anão corcunda que manipula o fantoche sem
ousar mostrar-se, como na conhecida parábola de Benjamin
144
.
A teoria do cinema necessita, portanto, de uma verdadeira geologia,
capaz de escavar os fundamentos do discurso e da representação
cinematográficos de maneira a descobrir suas fontes e materiais primários,
seus extratos e linhas de composição, bem como suas diversas possibilidades
de configuração. Para isto, é preciso acompanhar a mímesis cinematográfica
143
Ver, a este respeito, Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux,
Les Éditions de Minuit, Paris, 1980, pp. 85-88.
144
Cf. Benjamin, Walter: “Sobre o conceito de história”, in Walter Benjamin: Obras Escolhidas – Magia
e Técnica, Arte e Política, Rio de Janeiro, Ed. Brasiliense, 1987, pp.222-232.
85
em sua “descida aos abismos” da representação, desvinculando-a
sucessivamente das idéias de “imitação” e de narração” para, em seguida,
dissociá-la definitivamente dos paradigmas visuais e literários que tendem a
condicionar sua compreensão.
então a experiência do cinema poderá se revelar como possibilidade
histórica de renovação da experiência mimética como tal, ou seja, como uma
cinemática da mímesis em que, virtualmente falando, todo e qualquer
fenômeno concebível pode ser experimentado: o cinema como mimetologia da
experiência.
Por ora, no entanto, é preciso ressaltar de que modo a teoria do cinema
encontra-se a reboque não da própria história do cinema como arte e como
indústria, como também de suas congêneres no campo da estética, as teorias
da arte e da literatura, no que se refere a uma compreensão renovada do
conceito de mímesis.
A teoria da mímesis entre imitação e narração
Embora a história da redução da mímesis a um elemento auxiliar da
representação, no pensamento ocidental, seja bem conhecida
145
, sua
renovação conceitual é bastante recente e não parece ter sido devidamente
assimilada pela teoria cinematográfica, tributária de uma concepção simplista
e esquemática, embora tradicional, que equaciona o fenômeno da mímesis à
idéia de imitação. Tal atitude não é uma exclusividade dos historiadores e
teóricos do cinema, pois o desprezo pelo cinema entendido como um mero
truque ou ilusão de ótica, tão comum na época do cinematógrafo, era na
verdade coerente e consequente com toda a tradição de menosprezo e redução
da mímesis e do mimético ao estatuto de engodo ilusório típico do trompe
l’oeil. Temos aqui um primeiro indício, ainda que negativo, dos laços estéticos
e cognitivos que aproximam a experiência histórica do cinema de uma
renovação da experiência da mímesis.
145
Ver, por exemplo, Lacoue-Labarthe, Philippe: A imitação dos modernos – Ensaios sobre arte e
filosofia, Ed. Paz e Terra, São Paulo, 2000. Ver também Duarte, Rodrigo e Figueiredo, Virgínia (orgs.):
Mímesis e expressão, Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2001.
86
O fato de que o cinema apresenta as relações entre tempo, narrativa e
história como um enigma para a experiência sensorial e cognitiva dos seus
espectadores foi curiosamente ignorado por filósofos e literatos
contemporâneos do seu surgimento, inclusive por aqueles que se depararam
diretamente com a questão, tamanho era o peso da enorme tradição negativa
acerca da mímesis.
O caso de Henri Bergson é certamente o mais conhecido de todos
146
,
mas uma passagem de Em Busca do tempo perdido, de Marcel Proust, em
que a relação entre o desprezo intelectual pelas potencialidades artísticas do
cinema, considerado então como um mero “truque” sensorial, e a tradição
estética e filosófica negativa acerca da mímesis se revela claramente:
O que chamamos de realidade é certa relação entre as sensações e as
lembranças que nos envolvem simultaneamente - relação que uma simples visão
cinematográfica suprime ao se afastar da verdade na medida mesma em que
pretende a ela aderir relação única que o escritor deve reencontrar para
encadear definitivamente em sua frase os dois termos diferentes
.
(III, p.889)
147
Sendo a realidade o produto de uma articulação entre nossas sensações e
nossas lembranças, a mesis cinematográfica só nos pode dela oferecer “uma
simples visão” que acaba, porém, por suprimi-la na exata medida em que
pretende a ela limitar-se (“se borner à lui”). Para Proust, apenas a escrita pode
expressar tal articulação de forma definitiva (“l’écrivain doit enchaîner à
jamais dans sa phrase les deux termes différents”) - jamais o cinema e sua
ingênua concepção mimética, isto é, imitativa, da realidade.
Pode-se aplicar aqui, mais uma vez, o princípio evocado por Deleuze em
seu comentário ao desprezo de Bergson pelo cinematógrafo, segundo o qual as
potencialidades expressivas do cinema estariam então em estado latente e
embrionário, não se revelando ainda em toda a sua amplitude. Tal argumento,
no entanto, baseia-se na mesma concepção passiva e acrítica da mímesis
cinematográfica entendida apenas como a resultante final do esforço técnico
146
Ver capítulo 1, p. 53.
147
« Ce que nous appelons la realité est un certain rapport entre ces sensations et ces souvenirs qui nous
entourent simultanément - rapport que supprime une simple vision cinématographique, laquelle s'éloigne
par là d'autant plus du vrai qu'elle prétend se borner à lui - rapport unique que l'écrivain doit retrouver
pour enchaîner à jamais dans sa phrase les deux termes différents. » (III, p.889)
in Ricoeur, Paul: Temps
et Récit II – La configuration dans le récit de fiction, Paris, Éditions du Seuil, 1984, p. 277.
87
conjugado de “todas as artes
148
”. Importa antes, demonstrar a equivalência,
implícita no raciocínio de Proust, entre as idéias de mímesis/imitação/visão
quando se trata de desvalorizar a experiência cinematográfica.
Seria a mímesis cinematográfica apenas a imitação de uma imitação, a
redução mecânica e simplificadora de nossa extraordinária capacidade
sensório-cognitiva de (re)configurar a realidade sobre a superfície de projeção
de uma imagem em movimento? Seria o seu desenvolvimento a simples
agregação de diversas técnicas para a reprodução de nossas percepções óticas
e auditivas? Ou seria o cinema realmente uma nova experiência histórica da
mímesis, capaz de revelar novos potenciais de expressão em um fenômeno
cuja compreensão e definição conceituais pareciam condenar de antemão à
esterilidade?
No caso de Proust, assim como no de Bergson, o desprezo pelo
espetáculo cinematográfico é, às vezes, ironicamente desautorizado pela
própria obra, que contém trechos, como aquele que utilizamos na epígrafe
deste capítulo, em que o próprio tempo é invocado como uma lanterna mágica
invisível, cujo trabalho se torna perceptível indiretamente como traço ou
rastro depositado sobre os corpos que modifica
149
. Roger Shattuck descreve
toda a empreitada da Recherche como uma verdadeira estéreo-ótica do
tempo
150
, em que perspectivas temporais distintas podem coabitar
simultaneamente a mesma frase
151
. Mas se a passagem do tempo pode ser
percebida a partir de uma visualização comparativa dos seus múltiplos efeitos,
é precisamente na medida em que não assume a forma meramente sequencial
do cinema: “a metáfora reina ali onde a visão cinematográfica, puramente
148
Ver acima, p.6.
149
« ... des poupées baignant dans les couleurs immatérielles des années, des poupées extériorisant le
Temps, le Temps qui d'habitude n'est pas visible, pour le devenir cherche des corps et, partout où il les
rencontre, s'en empare pour montrer sur eux sa lanterne magique. » Proust, Marcel: À la Recherche du
temps perdu, III, p. 924, in Ricoeur, Paul: Temps et Récit II – La configuration dans le récit de fiction,
Paris, Éditions du Seuil, 1984, p. 274.
150
Shattuck Roger: Proust’s binoculars: a study of memory, time and recognition in “A la
recherche Du temps perdu, New York, Random House, 1963.
151
Alguns exemplos, também analisados por Paul Ricoeur em seu extenso comentário a Proust
(Temps et récit 2 la configuration dans le récit de fiction, pp.246-286) : « ...ce n’était plus
seulement ce qu’étaient devenus les jeunes d’autrefois, mais ce que deviendraient ceux
d’aujourd’hui, qui me donnait avec tant de force la sensation du Temps » (III, p.945). Cf. também
«Le temps incolore et insaisissable s’était, pour que pour ainsi dire je puisse le voir et le toucher,
matérialisé en elle, il l’avait pétrie comme un chef-d’oeuvre, tandis que parallèlement sur moi,
hélas ! il n’avait fait que son oeuvre » (III, p.1031).
88
sucessiva, falha, por não colocar em relação sensações e lembranças
152
”. Em
outras palavras, a mímesis cinematográfica seria inferior à mímesis literária
porque o cinema ofereceria uma visão “puramente sucessiva” e linear da
relação entre as diversas camadas temporais que articulam nossas sensações e
nossas lembranças, sem ser realmente capaz de poder refletir a imbricação
mais íntima de suas conexões na constituição de sua própria textura como o
faz a escrita proustiana. Com efeito, o nenhum equivalente
cinematográfico da Recherche, nem qualquer tentativa de transposição integral
deste romance para as telas
153
.
Seria o cinema, de fato, uma forma de expressão mais “imitativa” do que
a literatura? Seria a imagem cinematográfica menos potente que a imagem
literária em sua expressão da passagem do tempo? E deveria a narrativa
cinematográfica, por sua vez, ser considerada apenas como uma espécie de
herdeira e tributária de uma série de modos narrativos e representacionais
legados pela tradição dramática e literária do ocidente em um corpus quase
canônico, como os elaborados por Auerbach
154
ou Bloom
155
?
Oscilaria a mímesis cinematográfica inevitavelmente entre os pólos da
imitação artística e da narração literária? Se a experiência cinematográfica
renova a nossa experiência sensorial e cognitiva da própria mímesis, não se faz
necessária uma compreensão igualmente renovada do seu conceito?
Como emancipar a teoria cinematográfica dos paradigmas e preconceitos
tradicionalmente consagrados pela teoria da arte e da literatura, se a elisão do
complexo problema das relações entre imagens e signos fundamentou a
desvalorização do conceito de mímesis - reduzido à função secundária de
reconhecimento simbólico (por redundância) ou icônico (por semelhança), na
mediação entre um signo e seus objetos?
152
« La métaphore règne ou la vision cinématographique, purement successive, échoue, faute
de mettre en rapport sensations et souvenirs », Ricoeur, Paul: Temps et récit 2 la configuration
dans le récit de fiction, Paris, Éditions du Seuil, p.278.
153
Em sua cuidadosa adaptação de Un amour de Swann, de 1984, por exemplo, Völker
Schlöndorf contou com a colaboração de Peter Brook e Jean-Claude Carrière no roteiro, mas o
resultado final situa-se bem aquém da reflexão sobre o tempo, a memória e a narrativa que
permeiam a obra de Proust.
154
Auerbach, Erich: Mímesis, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1976.
155
Bloom, Harold: The western Canon, Harcourt Brace, New York, 1994.
89
A tríplice mímesis
É no entrecruzamento de filosofia, história e literatura que se dá a
renovação do conceito de mímesis: partindo de uma releitura atenta de Platão e
de Aristóteles, Luiz Costa Lima e Paul Ricoeur nos permitem repensar a
mímesis desvencilhando-a de uma identificação apressada com o fazer
artístico, entendido como um reflexo passivo da realidade, baseado na
elaboração de cópias ou miles imperfeitos desta última. Ambos retomam a
história do conceito a contrapelo, demonstrando o seu progressivo aviltamento
e a redução potencial do seu alcance para redescobrir, em seguida, nos
fundamentos da experiência mimética, sua irredutível resistência às diversas
codificações de gênero musical, visual e literário que procuram contê-la nos
limites estreitos da arte entendida como representação.
Para Luiz Costa Lima
156
, o destino da Poética de Aristóteles foi o de
uma recepção equivocada de seus conceitos – notadamente o de mímesis.
Ignorada pela antiguidade, a Poética foi apropriada pelos teóricos italianos do
Renascimento, a partir de uma identificação conceitual implícita dos termos
mímesise imitatio’. Tal identificação embute uma compreensão enviesada
do sentido e alcance originais da idéia de mimesis, mas pode-se recuperar a
potência inaugural do termo a partir das indicações filológicas de H. Koller
157
.
O termo mímesis originalmente está associado à dança das bacantes,
aparecendo com este sentido em Píndaro, Ésquilo e no ‘Hino de Delos’.
Mímesis, aqui, não é “cópia (formal) baseada em um modelo (real) a ser
representado”, pois não se refere a gêneros estéticos bem definidos de
representação “artística”. Refere-se, antes, à expressão direta (“apresentação”,
“atração”, ou mesmo “provocação”) de um estado anímico através do corpo
(presença física concreta em um determinado espaço-ambiente), e ao caráter
irresistivelmente contagiante (e contagioso) deste fenômeno
158
. A idéia de
mímesis designa originalmente a ação imediata (do caráter de contágio) dos
sentidos (entendidos aqui como percepções sensoriais) sobre a alma. Essa ação
era considerada altamente eficaz em termos terapêuticos, o que lhe conferia
156
Costa Lima, Luiz: Vida e mímesis, Ed. 34, Rio de Janeiro, 1994, pp. 63-76.
157
Koller, H.: Die mimesis in der Antike. Nachahmung, Darstellung, Ausdruck, Francke Verlag, Berna,
1954.
158
Ver Girard, René: A Violência e o Sagrado, Ed. Paz e Terra, São Paulo, 1990.
90
um aspecto eminentemente ético-prático-medicinal. A música e a dança eram
utilizadas com finalidades psicagógicas, isto é, como instrumentos de uma
determinada “configuração do espírito” a ser provocada ou invocada sobre o
“paciente” através de processos miméticos de emulação anímica de certos
estados emocionais ou “patéticos”.
159
Para os gregos, o processo da mimesis está relacionado a eventos que
estão muito mais próximos do âmbito imediatamente sensorial da vida
cotidiana do que daquilo que entendemos por experiência estética ou artística.
Trata-se de um fenômeno quase incontrolável em sua espontaneidade, como a
gargalhada ou o bocejo, assim como a capacidade infinitamente elástica de
imitação social apresentada pelas crianças de todos os grupos humanos e a
maneira contagiante com que determinados padrões sensoriais (rítmicos,
melódicos ou “coreográficos”) se estabelecem e difundem em determinados
momentos da história cultural de uma sociedade qualquer. Tal ação ocorre em
um nível pré-representacional de comunicação que escapa ao controle
ontológico pressuposto na tripartição platônica de modelo, cópia e simulacro.
Na medida em que não se esgota ou não se decifra inteiramente - nem por sua
natureza, nem por seus efeitos - no processo lingüístico de significação (isto é,
não se deixa capturar plenamente pelo signo como mediador semântico entre
perceptoe concepto’), a mimesis é um fenômeno que necessita de controle
propriamente deontológico, ou seja, de um controle das condições e normas
éticas de seu uso e aplicação social.
O processo intentado por Platão contra o poeta n’A República deve ser
compreendido, assim, como uma conseqüência lógica da necessidade de
controle social da mímesis (entendida como um fenômeno real). O que “se
encena” nesta famosa passagem platônica é o incessante embate entre ethos e
mímesis embate em que essa última jamais se deixa subsumir inteiramente
por aquele na medida em que, mesmo podendo ser pensada pela razão (logos),
dispensa e até mesmo esquiva-se a qualquer tradução exata em palavras
(logos...). É tal fissura no próprio logos, na própria razão, que Platão tenta
suturar: inscrevendo a mesis em um processo hierarquicamente organizado
159
Ver, a este respeito, a história bíblica em que o jovem David toca a lira para apaziguar os maus
espíritos que afligem o rei Saul em Samuel I, 16, 14-23.
91
de reduplicação do cosmos a partir de seus modelos primordiais ou Idéias. O
conceito platônico de mímesis procura, assim, domesticar o processo de
reprodução potencialmente desenfreada de formas espontaneamente
perceptíveis pelos sentidos (simulacros) através da operação (cosmo-lógica) de
criação das cópias pelo Demiurgo, isto é, da mimesis entendida como a
representação “lógica” das formas do universo a partir de seus modelos
idealmente reais. Com a noção de simulacro, o aspecto fantasmático do
contágio mimético é enfatizado, em detrimento de seu aspecto terapêutico,
fazendo com que o erro e a ilusão sejam automaticamente associados à idéia
de uma reprodução descontrolada dos processos miméticos, enquanto a
descoberta da verdade e do bem estariam relacionados à possibilidade (e à
necessidade) de uma ordenação racional do campo sensorial da percepção. A
mímesis platônica funciona, portanto, como barreira onto-política contra o
contágio e a proliferação do erro. Neste sentido, a alegoria da Caverna nos
descreve uma verdadeira máquina de inscrição da diferença na semelhança,
mediada pela representação.
Há, portanto, uma tensão interior ao campo da mimesis entre a tentativa
platônica de semantização integral do fenômeno (o que inscreveria,
definitivamente, a diferença na semelhança, os simulacros no reino das cópias,
a alteridade na identidade) e a possibilidade, sempre presente, de uma irrupção
radicalmente contagiante/contagiosa da mímesis em seu nível pré-semântico
de expressão. Figuração e abstração corresponderiam aqui, no plano
propriamente estético da questão, aos respectivos pólos miméticos da
identidade representacional semantizada, por um lado, e da expressão
diferenciadora não-semântica, por outro.
A subsunção do segundo pólo pelo primeiro caracteriza, como o
sabemos, a história hegemônica do pensamento ocidental, em suas diversas
manifestações filosóficas, literárias e artísticas o que nos leva à questão da
preeminência marcante, em nossa tradição crítica, das formas de expressão
plástico-literárias sobre formas de expressão sonoras e corporais, como a
dança. Por que a conexão originária entre a mimesis e o elemento rítmico-
expressivo (presente de forma mais intensa na música e na dança) se
enfraquece ao longo da história deste conceito? Pelo mesmo motivo que nos
92
permite pensar a tentativa platônica de semantização integral da mímesis não
apenas como um mecanismo de controle exterior à própria mímesis, mas,
sobretudo, como uma tendência inerente ao próprio fenômeno: pois, ao mesmo
tempo em que se furta incessantemente ao processo de semantização que a
filosofia e a política lhe impõem, a mimesis implica e imanta esta mesma
possibilidade de semantização a que se subtrai. A própria atividade mimética
demanda e produz a necessidade social de semantização de suas formas; com
efeito, a mímesis habita a própria tensão que estabelece entre os domínios da
ação e da significação. Ela se furta à semantização ao mesmo tempo em que a
provoca e a amplifica.
O nome grego desta tendência da mímesis à ampliação semântica é
teatro e a função maior do diálogo platônico é justamente a de ensejar a
depuração filosófica do teatro em teoria. Para Platão, o teatro é um lugar de
produção de simulacros, isto é, de observação enganosa do falso e do ilusório,
através de todo e qualquer tipo de trapaça ou ludíbrio, enquanto a Academia
seria o lugar de ascese ao mundo desencarnado e puro das idéias, modelos
eternos para a contemplação teórico-filosófica da verdade.
Se Platão tenta subordinar a mímesis à esfera do ético através da
filosofia, Aristóteles procura manter a tensão entre o ético e o mimético a
partir de considerações sobre o efeito da catarse
160
. A inflexão aristotélica
pode ser pensada a partir da função epistemologicamente positiva que atribui
aos efeitos da mesis teatral: purgação coletiva dos afetos mediada pela
descarga emocional provocada pelo contágio mimético. A contemplação da
ação teatral e das sucessivas peripécias do protagonista despertaria um
processo de contágio pelas diversas sensações de identificação e de
estranhamento provocadas na audiência, mas o elemento expressivo a-
semântico da mimesis se veria, afinal, contido e canalizado pelo rigor formal
da representação.
Para Aristóteles, a tragédia ateniense clássica configura uma
determinada ação a partir da unidade indissolúvel entre os elementos “visuais”
e “literários” da encenação: mythos e morphé devem apresentar um ‘motivo’
160
Sobre a noção de catarse em Aristóteles, ver Ferraz, M.C.Franco : Nove variações sobre temas
nietzschianos, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002, pp. 89-102.
93
claramente semantizável pelo público, pois a história (no sentido técnico de
plot ou story-line) é mais importante para a tragédia do que as personagens
consideradas em si, da mesma forma que um desenho em preto e branco que
represente claramente a ação é mais importante do que uma bela imagem
concebida ao acaso. Trata-se, tanto no nível verbal como no visual, de se
encontrar a idia morphé de uma determinada ação a ser representada,
moldando sua figura como uma forma própria, objetivamente reconhecível
como tal.
A interrelação estabelecida pela tragédia grega entre o verbal e o visual
corrobora o parentesco etimológico que existe entre os termos teatro e teoria:
ambos implicam uma referência ao domínio da visualidade como lugar de
conhecimento. Para Aristóteles, a imagem não se apresenta necessariamente
como um engodo ilusório, pois a possibilidade mimética da idia morphé
permite pensar a imagem como mediadora conceitual entre fenômeno e
essência, conectando percepções e idéias de maneira lúdica e prazerosa. O
domínio mimético do visual nos permite entrar em contato com realidades em
princípio desagradáveis, assim como a mímesis teatral nos propicia um contato
controlado com emoções que devem ser purgadas pela catarse.
O valor político e epistemológico da mímesis é, portanto, inestimável
para Aristóteles:
(...) O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes,
pois, de todos, ele é o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras
noções), e os homens se comprazem no imitado. Sinal disto é o que acontece na
experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas
mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo [as representações
de] animais ferozes e [de] cadáveres. Causa é que o aprender não só muito apraz
aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que menos
participem dele. Efetivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as
imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e
dirão], por exemplo, “este é tal”. Porque, se suceder que alguém não tenha visto
o original, nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão
somente da execução, da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie.
161
Aristóteles defende a possibilidade de uma integração
epistemologicamente útil da mimesis à ontologia platônica. Contra Górgias e
os sofistas, preserva a subordinação socrática do percepto ao intelecto sem, no
entanto, desvalorizar inteiramente o primeiro frente ao segundo. À mimesis
poética cabe a tarefa de auxiliar o filósofo na descoberta conceitual da
161
Aristóteles: Poética, IV, 13 e 14,
in OS PENSADORES IV, Ed. Abril, São Paulo, 1973, p.445.
94
essência dos fenômenos, pois a idia morphé afasta os traços acidentais da
representação e conserva apenas os aspectos essenciais do representado. A
phantasía (‘imaginação’) é o veículo deste processo, legitimado pela
associação do prazer sensível à compreensão racional. Compreende-se, assim,
porque o conceito aristotélico de mimesis não pode ser assimilado inteiramente
à noção moderna de metáfora: não se trata de um circuito infinitamente aberto
a diversas séries de múltiplas interpretações, mas de uma subordinação da
expressividade mimética ao logos, em que mythos e morphé configuram
iconicamente a possibilidade de contemplação da verdade.
No entanto, é precisamente neste sentido que Paul Ricoeur
162
tenta
pensar a mímesis aristotélica: como um processo ativo e dinâmico de
reconfiguração da realidade através do que ele chama de “inteligência
narrativa”, e não como um processo passivo de cópia ou reprodução de uma
realidade já dada:
Se continuarmos a traduzir mímesis por imitação, deveremos
compreendê-la como o contrário do decalque de um real préexistente e falar de
imitação criadora. E se traduzirmos mimèsis por representação, não deveremos
compreender com esta palavra a duplificação de uma presença, como se poderia
ainda esperar da mímesis platônica, mas sim a ruptura que abre o espaço da
ficção
163
.
Situando-se na tripla encruzilhada da historiografia com a semiologia da
narrativa e a fenomenologia do tempo, Ricoeur situa o seu monumental estudo
na tênue linha de investigação que separa a percepção objetiva do mundo e o
mundo subjetivo das percepções, engajando o tempo e a memória em uma
constante oscilação entre os pólos da realidade (histórica) e da imaginação
(ficcional). Em busca de um conceito que possa efetuar a mediação (temporal)
entre os sujeitos (da história real) e os objetos (de narrativas mais ou menos
imaginárias), sua obra tem o grande mérito de apontar para os aspectos
noéticos do conceito de mímesis, isto é, de expandi-lo para além dos limites
representacionais da relação significante/significado
164
, de forma a levar em
conta aspectos extra-linguísticos, não codificados, do processo mimético.
162
Ricoeur, Paul: Temps et récit, vols. 1 (L’intrigue et le récit historique), 2 (La configuration dans le
récit de fiction) e 3 (Le temps raconté), Éditions du Seuil, Paris, 1983/84/85.
163
Idem, I, p.93. Minha tradução.
164
Ver Temps et récit, I, p.73, n.1.
95
Apoiando-se na narratologia de Gérard Genette
165
, Ricoeur constata que
os conceitos de mímesis e de diègesis eram perfeitamente intercambiáveis para
os antigos gregos, isto é, não correspondiam absolutamente à nossa forma de
opor conceitualmente o imitativo e o narrativo em termos de forma versus
conteúdo ou de significante versus significado
166
. Assim, enquanto Platão
subordina a mímesis à diègesis, transformando aquela em um tipo específico
desta na República, Aristóteles procede à classificação exatamente inversa,
fazendo com que a diègesis seja considerada como um caso específico de
mímesis, inaugurando, assim, a tradicional repartição do campo literário em
gêneros
167
.
Tal diferença acaba por revelar-se essencial ao destino do conceito em
Platão e Aristóteles: ao subordinar a mímesis à diègesis, Platão opõe a
narrativa direta à narrativa indireta, ou seja, aquela em que o poeta fala com a
própria voz daquela em que toma emprestadas outras vozes para falar. Platão
distingue, assim, três modalidades de voz poética: a primeira pessoa do poeta
lírico, que fala com sua própria voz e, portanto, quase não recorre a artifícios
narrativos miméticos; a voz mista do poeta épico, que passa indistintamente da
primeira a terceira pessoa, utilizando uma série de recursos miméticos; e
finalmente a voz mimética do ator ou poeta dramático, sempre “na terceira
pessoa” e fazendo-se acompanhar o máximo possível de todos os recursos
miméticos à sua disposição. Como o objeto da mímesis entendida como um
tipo de voz narrativa é outra voz narrativa, a poesia dramática está ainda mais
distante dos seus modelos do que a poesia lírica ou épica
168
- o que a torna
ainda mais condenável, aos olhos de Platão.
Porém, se considerarmos como objeto da mímesis a própria ação
dramática entendida como intriga narrativa, ou seja, se deslocarmos a ênfase
em nossa análise da representação dos personagens para a representação da
ação narrada, a diferença entre poesia lírica, épica e dramática transforma-se
em uma questão de modo ou de abordagem do mythos, e não mais de grau ou
de distância em relação a este último. É por isto que Aristóteles prefere
165
Genette, Gérard : Nouveau discours du récit, Éd. du Seuil, Paris, 1983.
166
Ver Temps et récit, II, pp.152-153, n.1.
167
Ver Temps et récit, I, pp.71 e 75, n.1.
168
Platão: República, III, 392c-394c.
96
inverter a ordem hierárquica estabelecida por Platão, subordinando a diègesis à
mímesis. Para ele, há modos diegéticos e não-diegéticos de poesia imitativa, e
a distinção entre tais modos corresponde à distinção básica entre os gêneros
propriamente narrativos de mímesis (modos diegéticos), como a epopéia, e os
gêneros dramáticos de poesia imitativa a tragédia e a comédia, modos não-
diegéticos da mímesis
169
.
Para Ricoeur, a questão fundamental a demonstrar é a maneira como a
Poética de Aristóteles aproxima o conceito de mímesis do de mythos, fazendo
com que este seja o objeto essencial daquele, inclusive no caso não-diegético
da poesia dramática, pois o objeto essencial da representação mimética, para
Aristóteles, é sempre a ação dos homens:
(...) o elemento mais importante [da tragédia] é a trama dos fatos, pois a
tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida (...) na tragédia, não
agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para
efetuar certas ações; por isso, as ações e o mito constituem a finalidade da
tragédia (...) sem ão não poderia haver tragédia, mas poderia havê-la sem
caracteres.
170
A mímesis aristotélica é uma mímesis praxeôs, uma representação de
ações
171
articulada sempre a um mythos, ou seja, a um “agenciamento dos
fatos em sistema
172
”. Segundo Ricoeur, “o essencial é que o poeta narrador
ou dramaturgo seja um “compositor de intrigas” (51 b 27)
173
”. A atividade
mimética se define aqui, portanto, como a representação da atividade em geral
(mímesis praxeôs), e sua operação fundamental é concebida por Ricoeur como
de mise en intrigue, isto é, como a reelaboração de um “agenciamento de fatos
em sistema” - de um mythos entendido como plot, argumento ou story-line de
uma narrativa qualquer.
Para Ricoeur, o mythos é o correlato noemático da mímesis entendida
como atividade noética, ou seja, é o objeto construído pela mímesis entendida
como atividade produtiva do pensamento. Com este recurso à fenomenologia
169
Aristóteles, Poética, III, in OS PENSADORES IV, Ed. Abril, São Paulo, 1973, p.444-445.
170
Aristóteles, Poética, VI, 32, idem, p.448.
171
Ricoeur traduz a passagem de Aristóteles deste modo: “c’est qu’il s’agit avant tout d’une
représentation d’action (mímesis praxeôs) et, par là seulement, d’hommes qui agissent », Aristóteles,
Poética, 50 b 3, in Temps et récit, I, p.71.
172
Tradução proposta por Ricoeur para a expressão è ton pragmatôn sustasis (Aristóteles, Poética, 50 a5).
173
Ricoeur, Paul: Temps et récit, I, p.75. Minha tradução.
97
de Husserl, Ricoeur expande a correlação mímesis/mythos para além do
circuito fechado entre significante e significado que a semiologia oferece à
teoria da representação:
(...) A relação noético-noemática não exclui um desenvolvimento
referencial (...) espero mostrar mais adiante que a mímesis aristotélica não se
esgota na estrita correlação noético-noemática entre representação et
representado, mas abre o caminho para uma investigação dos referentes da
atividade poética visados pela “mise en intrigue” tanto no momento da
concepção como no momento da recepção da mímesis-mythos.
174
A atividade mimética não pode mais ser concebida em termos de mero
reflexo imaginário da realidade, pois também atua retrospectivamente sobre
esta no ato mesmo de representá-la. A mímesis praxeôs, para Ricoeur,
portanto, não se refere apenas aos modos fictícios ou imaginários de
representação literária do mundo, pois também inclui a experiência da história
como o campo de elaboração narrativa (portanto mimética) de uma ação cujo
desenrolar temporal pode ser efetivamente situado na realidade concreta da
existência material dos homens. Com isto, Ricoeur entrelaça a teoria da
história e a narratologia em uma hermenêutica geral
175
, na qual a mise en
intrigue é postulada como uma espécie de inteligência narrativa comum a
todos os homens. Literatura, história e mitologia, assim como todo e qualquer
discurso organizado a partir de um “agenciamento dos fatos em sistema”,
podem ser consideradas como produtos - ou noemas - de uma mesma
atividade noética (isto é, do pensamento), que é a atividade mimética.
A mímesis lida por Paul Ricoeur é uma atividade aberta ao mundo real e
à experiência histórica dos homens, que se deixa transformar por esta ao
mesmo tempo em que também a transforma. Por isto a tripartição platônica
que hierarquizava a mímesis na escala valorativa vertical “modelo, cópias e
simulacros”, deve ser substituída por uma tripartição horizontal em que o
processo de reconfiguração incessante do myhtos pela mímesis seja analisado
em suas diversas fases.
Ricoeur descreve três momentos cruciais deste processo, que ele
denomina mímesis I, II e III, respectivamente. A reconfiguração do mythos
propriamente dita, ou seja, do material que serve de base à elaboração
174
Ricoeur, Paul: Temps et récit, I, p.73, n.1. Minha tradução.
175
Ricoeur, Paul: Temps et récit, I, pp. 106-107.
98
narrativa (mise en intrigue) corresponde à mímesis II. É nesta fase que ocorre a
atividade propriamente poética que associamos à mímesis, quando a definimos
como um processo de imitação. A mímesis II é o momento da representação
como tal e funciona como o pivô de todo o processo mimético. Para que uma
determinada reconfiguração mimética possa ocorrer, é preciso pressupor um
momento anterior à representação: a mímesis I se constitui de um repertório
preliminar de ações que devem ser reconhecidas e articuladas para que possam
ser temporalizadas, isto é, inseridas em uma estrutura narrativa qualquer.
Assim, se a mímesis II permanece no âmbito de uma estética/poética da
representação, a mímesis I remete a atividade mimética à antropologia e à
semiologia da cultura, na medida em que é esse o âmbito geral de uma
semântica da ação. Por fim, toda configuração mimética deve ser, por sua vez,
reconfigurada pela audiência no momento de sua recepção: Ricoeur chama de
mímesis III a esse momento, que marca a interseção entre o mundo da
narrativa e o mundo do leitor, aproximando-se de uma teoria da recepção que
não se limite a constatar a necessidade de competências linguísticas comuns a
emissores e receptores de uma mensagem, e que demonstre como a mímesis,
em todas as suas modalidades de narrativa, não é somente um processo
circular de veiculação codificada de sentido:
Uma estética da recepção não pode enfrentar o problema da
comunicação sem enfrentar também o da referência. Aquilo que se comunica,
em última instância, é, para além do sentido de uma obra, o mundo que ela
projeta e que lhe constitui o horizonte (...) limito-me a repetir a tese (...) sobre as
relações entre o sentido e a referência de todo discurso. Segundo tal tese, se
seguirmos Benveniste mais que de Saussure e tomarmos a frase como a unidade
do discurso, aquilo que é intencionado pelo discurso cessa de se confundir com
o significado correlativo de cada significante na imanência de um sistema de
signos. Com a frase, a linguagem é levada para além de si mesma: afirma
alguma coisa sobre alguma coisa. Essa intencionalidade referencial do discurso
é rigorosamente contemporânea à sua manifestação como evento e à sua função
no diálogo (...) o evento como tal ocorre não só quando alguém toma a palavra e
se dirige a um interlocutor, mas também devido ao seu desejo de pôr em
palavras, e partilhar com outra pessoa, uma nova experiência.
176
Ricoeur postula um estatuto ontológico para a mímesis, situado muito
além da esfera propriamente estética do fazer artístico, sem, contudo, excluí-
lo, pois o modo como pensa a tríplice mímesis radica inteiramente a sua
atividade na experiência coletiva humana (mímesis I) para, em seguida,
176
Ricoeur, Paul: Temps et récit, I, pp.146-147. Minha tradução.
99
postular a possibilidade de um transporte mimético desta experiência que se
organiza a partir de certos códigos representacionais (mímesis II) sem
inscrever-se inteiramente em um horizonte de sentido previamente delimitado
(mímesis III). A mímesis aqui é um processo ativo de metaforização narrativa
da experiência histórica literalmente, de transporte desta experiência através
do tempo –, o que a desassocia definitivamente de qualquer sistema
metafísico de repetição cíclica de um tempo sempre idêntico a si próprio,
como no modelo platônico.
Tal gesto permite a Ricoeur aproximar a questão aristotélica da mímesis
do problema agostiniano do tempo como distensio animi, rearticulando a
possibilidade de confrontar as aporias da fenomenologia do tempo com o que
chama de “hermenêutica do tempo narrado
177
”. Esta perspectiva teórica o
engaja em um exaustivo reexame da relação entre tempo e narrativa nas três
grandes áreas de pesquisa que se entrecruzam em seu trabalho. Historiografia,
fenomenologia e narratologia são então minuciosamente combinadas em uma
grandiosa visão que oscila entre uma concepção do tempo que ora o considera
como uma dimensão cosmológica fundamental da experiência humana, ora o
considera como um fenômeno psicológico necessário à apreensão desta
mesma experiência.
Tal oscilação permeia toda a discussão sobre o estatuto ontológico da
mímesis, que funciona como mediadora entre os pólos da questão, ao situar-se
precisamente na tênue linha de passagem entre um e outro, sem que se possa
jamais determinar exatamente qual dos pólos determina qual - da mesma
forma como vimos o cinema se situar, em relação à questão do tempo, entre
reprodução (cinemática) e representação (cinematográfica), articulando uma
verdadeira dialética entre a duração e o instante
178
.
Porém, apesar do escopo ambicioso de sua obra, Ricoeur jamais
considera o cinema como um objeto de estudos não possível como,
sobretudo, necessário à renovação do conceito de mímesis. Neste sentido,
Ricoeur repete a atitude curiosamente desdenhosa acerca do cinematógrafo de
177
Ricoeur, Paul: Temps et récit, I, p. 137.
178
Ver cap. 1, pp. 18-73.
100
Bergson e Proust, e seu comentário sobre este último o comprova
179
. Trata-se
tão somente de uma simples delimitação metodológica de um objeto de
estudos que é demasiado amplo e cujos contornos são extremamente
difíceis de definir? Essa é uma resposta não possível como provável, mas
que não pode ser considerada como suficiente. Embora Ricoeur expanda e
dinamize o conceito de mímesis através de uma semântica da ação que
considera a metáfora prioritariamente como um processo de denotação
referencial da vida e da história - para além de sua função eminentemente
conotativa e polissêmica em um código de expressão qualquer
180
-, sua
exigência em fazer do mythos e da operação de mise en intrigue um pivô
necessário a toda atividade mimética tem um resultado ambíguo. Com efeito,
tal visada retira a mímesis totalmente do circuito imitativo baseado na
semelhança passiva da cópia, mas de forma a transformá-la no centro lógico
de toda e qualquer diegese narrativa possível. Assim, não é por acaso que o
cinema apresenta tão pouco interesse para Ricoeur, pois se o objeto da
mímesis praxeôs é o mythos, o máximo que a análise da mímesis no cinema
poderia acrescentar ao estudo de suas relações com o tempo e a história seria
uma tímida confirmação desta hipótese geral. Como vimos no início deste
capítulo, a subordinação da mímesis à diegese no cinema se transformou num
lugar-comum da teoria cinematográfica. O lugar central atribuído às
operações de montagem e edição no desenvolvimento de um discurso
cinematográfico, assim como a consagração de certos gêneros e formatos
cinematográficos como dominantes, demonstra, por sua vez, o quanto a
prática e a teoria cinematográficas ainda se encontram atreladas a uma
tradição literária e estética da representação, que a obra de Ricoeur não
preserva como também amplia.
Embora a mímesis seja definida por Ricoeur, de antemão, como
fundamentalmente praxeôs sendo toda representação uma representação de
ação –, Ricoeur aponta para o caráter extra-representacional da mímesis
para postular, em seguida, o mythos como o objeto exclusivo de sua noese:
Assim, a única instrução que Aristóteles nos dá é a de construir o mythos,
portanto o agenciamento dos fatos, como o « quê » da mímesis. A correlação
179
Ver acima, pp. 82-83.
180
Cf. Ricoeur, Paul: La métaphore vive, Éd. du Seuil, Paris, 1975, pp. 273-324.
101
noemática, portanto, é entre a mimèsis praxeôs, entendida como um sintagma
único, e o agenciamento dos fatos como outro sintagma. Remeter a mesma
relação de correlação ao interior do primeiro sintagma, entre mímesis e
práxis, é, ao mesmo tempo, plausível, fecundo e arriscado.
181
Ricoeur hesita, portanto, em tomar o passo heurístico de fazer da práxis
como totalidade da experiência humana o objeto direto da mímesis, mantendo
o estatuto da mise en intrigue como operação de passagem necessária e
obrigatória entre as instâncias pré e pós-representacionais da atividade
mimética. Com isto, preserva o lugar central da representação na atividade
mimética, libertando-a da metafísica platônica para melhor controlá-la com os
meios expandidos da poética aristotélica, embora sugira a possibilidade de
que a práxis, entendida como a historicidade da experiência, seja o próprio
conteúdo da mímesis. Ricoeur curiosamente pondera “que não se deve forçar
demais essa correlação, que tende a encerrar o texto poético em si mesmo
182
”.
Sua inflexão aqui, nitidamente, é na direção de uma mímesis concebida como
processo de mediação entre o real de um evento e seu imaginário, e portanto
desloca-se de uma hermenêutica da conotação e do significado, com suas
multiplicações polissêmicas do sentido, para uma hermenêutica da denotação
referencial voltada para o problema final da recepção social de um discurso -
daí a preocupação em “não encerrar o texto poético em si mesmo”.
A ênfase na intriga fabular do mythos como processo central da
mímesis, no entanto, obriga Ricoeur a insistir na centralidade da metáfora
como processo gerador de significação, mesmo quando aponta para o mundo
extra-mimético de referências anteriores (mímesis I) e posteriores (mímesis
III) à história narrada, instâncias que gravitam em torno da atividade mimética
propriamente dita (mímesis II) de representação.
Ora, não seria esse papel central da metáfora uma última forma de
pensar a mímesis ainda atrelada aos efeitos de normatização poética e estética
dos modos socialmente consagrados de representação (sobretudo verbais, no
caso de Ricoeur)? Não estaríamos ainda diante de uma forma, certamente
mais refinada, de “imperialismo” do signo e da significação em que o valor
cognitivo da mímesis pode ser pensado em sua relação com os poderes de
181
Ricoeur, Paul: Temps et récit, I, p. 73. A tradução e o grifo são meus.
182
Ricoeur, Paul: Temps et récit, I, p. 73. Minha tradução.
102
configuração narrativa do myhtos? Não se trata aqui ainda de uma
subordinação do mimético ao diegético, que implica uma subordinação ainda
mais fundamental do sensorial ao conceitual (para a fenomenologia do
tempo), do icônico ao simbólico (para a semiologia da narrativa) e, por
conseguinte, do documento imagético, sonoro ou audiovisual ao documento
escrito (para a teoria da história)? Não se reforçaria aqui também a figura
central de um suposto sujeito da representação o autor/diretor como zelador
da experiência mimética entendida como reconfiguração mito-poética de um
enredo ou intriga qualquer?
A obra de Ricoeur tem o grande mérito de apontar para as relações da
atividade mimética com a história real dos homens, pensando a dinâmica dos
processos de significação a partir de uma concepção da experiência humana e
de suas possibilidades de transmissão que os coloca em permanente
transformação em seu confronto com a história. Este componente
propriamente transformacional do seu estudo sobre a mímesis é de grande
relevância epistemológica para a questão das relações entre cinema e história,
que retomaremos mais adiante no capítulo 3
183
. O próprio Ricoeur, no
entanto, parece não ter dado importância ao fato de que a história e a teoria do
cinema colocam, para a mímesis, as mesmas questões sobre tempo, história e
narrativa que ele desenvolveu em seu trabalho. Ao subordinar o espetáculo à
intriga, sua mímesis mais uma vez excluiu dos domínios da representação
tudo aquilo que não se deixa realmente capturar pelos poderes da significação
– seja esta visual, verbal ou sonora.
Como retirar a mímesis das garras “aristotélicas” de uma teoria da
metáfora, sem fazê-la recair nos perigos “platônicos” de uma teoria da
imagem? Como retirá-la do círculo vicioso que a faz oscilar incessantemente
entre o imitar e o narrar, entre significantes e significados, entre a mise en
scène e a mise en intrigue? Como subtraí-la simultaneamente tanto à noção
icônica de imagem, baseada no reconhecimento sensorial de equivalências
formais abstratas, quanto à noção simbólica de imagem como metáfora mental
para conteúdos singulares concretos? Na medida em que a hipótese
“plausível, fecunda e arriscada” de uma relação direta entre mímesis e práxis
183
Ver adiante pp. 198-216.
103
for verificada, poder-se-ia ainda situar esta discussão em um plano
exclusivamente estético ou hermenêutico de “exegese narrativa”, como o
parece supor Ricoeur?
Em outras palavras, se uma teoria renovada da mímesis for capaz de
pensá-la não apenas como representação possível de toda e qualquer ação,
mas como o elemento ativo e produtivo de toda e qualquer ação como a
forma geral da ação ou práxis da práxis - não seria necessário repensar a
questão da imagem e de suas relações com os signos para além de qualquer
hermenêutica ou iconologia? Neste caso, como repensar a relação do cinema
como experiência e prática histórica com tal renovação?
Abordaremos o problema específico do estatuto da imagem antes de
voltarmos à questão do cinema, pois para que a mímesis seja definitivamente
desvinculada do signo e dos processos de representação, faz-se necessária
uma ontologia da imagem capaz de desvencilhá-la não de suas funções
metafóricas ou icônicas, mas da própria visualidade entendida como meio de
expressão mimético. Ao desvencilharmos conceitualmente a mímesis do
contexto representacional do signo, tanto verbal como visual, estaremos
fazendo o mesmo pelo cinema e sua teoria.
Espectros da Caverna: modelo, cópia, simulacro
Pensar a imagem como reflexo ilusório de uma realidade qualquer
implica uma dupla operação ontológica. Por um lado, a imagem oferecida à
percepção sensorial deve ser considerada como o duplo de um evento
pretensamente real. Por outro, o conjunto total de imagens perceptíveis deve
ser projetável (i.e., passível de inscrição simbólica) sobre um suposto sujeito
da percepção sensorial (não sendo esta última necessária ou exclusivamente
visual). Dupla exigência, portanto, que constitui a imagem como tal, pois sua
própria determinação empírica, a partir da realidade material que a reproduz
para a percepção sensorial de um sujeito, depende de sua inscrição prévia em
um circuito simbólico que a “captura” como signo, ou seja, como a
representação de um objeto qualquer.
104
No entanto, esta dupla condição não pode ser inteiramente satisfeita na
medida em que seus termos são, em última análise, mutuamente excludentes:
considerada ora como efeito fisiológico de uma série de processos físico-
químicos materialmente produzidos, ora como elemento significante em uma
cadeia infinita de associações simbolicamente convencionadas, a consistência
ontológica da imagem se revela ao pensamento apenas como impossibilidade
ou insuficiência, como o resto de uma operação de sutura ou como a síntese
duplamente disjuntiva de dois campos antitéticos da manifestação sensível o
“real” e o “mental” - em dois níveis distintos de articulação conceitual: o de
sua reprodução material como objeto (natural, artesanal, industrial) imanente
ao mundo, por um lado, e o de sua inscrição como signo de uma representação
para um sujeito da percepção, por outro.
Entendida como forma ideal de um significante pertinente a determinada
estrutura simbólica de representações ou como efeito de um processo material
que se reproduz através de dispositivos fisio(tecno)lógicos de percepção
sensorial, a imagem aparece invariavelmente enredada em algum ponto do
invisível trajeto percorrido entre o objeto (de que seria a suposta emanação) e
o sujeito (de sua possível percepção).
Inserida em uma rede estrutural qualquer de signos, acaba afigurando-se
como a pura forma de uma aparição, a se reatualizar indefinidamente em
sucessivas reconfigurações perceptivas de um movimento perpetuamente
deslocado entre “o olho e o espírito”. Neste movimento, seu suposto sujeito
dispõe-se à percepção segundo dois modos distintos: o ativo, em que percorre
com o olho, de forma mais ou menos aleatória, séries de objetos
sucessivamente projetados sobre um campo definido da percepção caso do
trabalho “imaginário” de “projeção” das constelações como imagens contra o
céu estrelado –, e o passivo, em que o olho se deixa atrair e “levar” pelo
movimento mais ou menos aleatório de um objeto extraído de um campo
qualquer da percepção –, como na contemplação concentrada das nuvens e das
sucessivas formas visuais que estas aparentam projetar contra o céu azul.
Como o próprio processo de redução fenomenológica da imagem às
suas condições transcendentais de apreensão dissolve o seu ente em um
movimento ilimitado de reconfigurações formais da percepção, não há,
105
estritamente falando, nenhuma fenomenologia possível da imagem apenas
do olhar
184
. Na medida em que interroga o olhar a partir de um suposto sujeito
da percepção, a fenomenologia descreve um imaginário articulado
exclusivamente no plano sensório-epistêmico das relações entre o “olho” e o
“espírito”; por outro lado, remetida somente às suas determinações materiais
“exteriores”, a imagem deixa-se reduzir à condição de epifenômeno
desprovido de substância própria, epifenômeno a ser compreendido a partir de
um quadro conceitual alheio a sua dimensão especificamente subjetiva, como
manifestação sensível.
É precisamente esta falta ontológica de consistência, esta falta de
“confiabilidade” epistemológica inerente à imagem, que encerra a
possibilidade de um repensar radical de seu estatuto ontológico em suas
ambigüidades constitutivas. Não seria esta ambivalência o sinal de uma
disjunção estrutural em nossos hábitos tradicionais de pensamento a este
respeito, disjunção esta originária precisamente de uma (im)possibilidade
ontológica que assombra toda e qualquer imagem como o seu espectro?
Como escapar à dupla redução efetivada pelo pensamento contra a
imagem - redução fenomenológica de sua dimensão empírico-objetiva, por um
lado, redução associacionista de sua dimensão subjetiva, por outro? Como
repensar a imagem contra o próprio pensamento contra este fundo ou resto
impensado acerca da imagem que nossa tradição filosófica insiste em denegar?
Como vimos, o pensamento platônico-aristotélico sobre a mímesis
colocava o problema crucial da questão do estatuto da imagem, pois o vínculo
representacional estabelecido entre imagens e objetos, a partir de sua
subordinação à Idéia fundamenta a possibilidade de uma revalorização
epistemológica da imagem como meio de reconhecimento icônico, permitindo
assim a própria delimitação filosófica do campo da representação enquanto tal
e assinalando à imagem sua função de mediadora entre Modelo, Cópia e
184
Esta nos parece ser a posição de Sartre, Jean-Paul: L’imagination, Presses universitaires de France,
Paris, 1956, donde sua consequente rejeição das teses de Bergson.
106
Simulacro
185
- ou sua função epistemológica auxiliar de ilustração ou
metáfora, no caso de Aristóteles
186
.
Não seria a alegoria platônica da Caverna o espectro ainda
intransponível deste modo de pensar a mímesis, constituindo-se como o
paradigma epistemológico que norteia as coordenadas de toda e qualquer
reflexão sobre a questão da imagem, seja no sentido de sua condenação, seja
no sentido de sua exaltação? Como interpretar esta alegoria desvelando aquilo
que a imagem, considerada em seu processo de aparição, deve
necessariamente encobrir ao olhar a que se oferece? Não seria a própria
alegoria da caverna uma operação de espelhamento ou duplicação deste
processo, um “encobrimento do encoberto” em que o problema ontológico da
imagem se desvela enquanto tal para o pensamento?
Que espectro ainda se esconde, afinal, na caverna de Platão? Seria
apenas o espectro de “uma caverna ainda mais profunda (...) sem-fundo por
trás de cada fundo”,
187
como sugeria Nietzsche em Para Além do Bem e do
Mal o espectro de um espectro de um espectro? Que consistência pode ser
atribuída então a este jogo especular a que as imagens se entregam quando
capturadas pelo dispositivo platônico da Caverna?
Uma ambiguidade ontologicamente constitutiva encontra-se nos
interstícios desta operação conceitual que consiste em situar o problema da
imagem no campo epistemológico da representação. Esta ambiguidade
manifesta-se em toda a sua potência conceitualmente disruptiva na Alegoria da
Caverna, no início do Livro VII d’A República
188
, como uma espécie de
“mito” ou de fábula sobre as propriedades ilusórias de todas as nossas
percepções sensoriais, e não apenas daquelas provenientes da mimesis
entendida como representação “artística” ou artesanal da realidade. Enquanto a
expulsão do artista da República atende a necessidades eminentemente
185
Ver Deleuze, Gilles: “Platão e os Simulacros”, in gica do sentido, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1974,
pp. 259-271.
186
Ver Costa Lima, Luiz: Mímesis: desafio ao pensamento, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,
2000, pp.31-44.
187
Nietzsche, Friedrich: Para Além do Bem e do Mal, §289 in OS PENSADORES, XXXII, Ed. Abril,
São Paulo, 1974, p. 302.
188
A edição de que nos utilizamos é a versão inglesa da Penguin Books, traduzida do grego por
H.D.P.Lee e publicada em Londres em 1961.
107
político-pedagógicas
189
da sociedade platônica ideal (não sendo empreendida
sem a hesitação explícita de Platão), a alegoria da caverna traduz
preocupações de ordem epistemológica em que a questão da imagem como
cópia icônica e como representação da realidade não é (ao contrário do que se
poderia, a princípio, supor) a questão exclusiva ou determinante. Em termos
puramente exegéticos, todo o problema reside no fato de que a teoria da
mimesis exposta no Livro X d’A República está, no mínimo, incompleta.
Como situar, diante da própria metafísica platônica da imagem, o postulado
(mesmo que explicitamente fabular e metafórico) de um dispositivo de
reprodução incessante de imagens como o que é descrito na alegoria da
Caverna?
Não haveria algo nesta fábula, nesta descrição em si mesma imaginária
de uma espécie de fábrica ou de oficina transcendental das imagens, que a
ontologia representacional da imagem como cópia icônica deixa passar
despercebido, ou procura até mesmo evitar? Não estaríamos aqui diante de
uma elaborada composição “literária” que tem por objetivo, justamente,
esconjurar da imagem um determinado fator ou elemento que a habita de fato,
estruturando-a como tal, ao mesmo tempo em que não se deixa subordinar
jamais inteiramente à lógica icônico-identitária da imagem-cópia? Se Platão se
utiliza da teoria da mímesis para expulsar o poeta de sua República, o que
pretende expulsar da “república das imagens” com sua alegoria?
ressaltamos o fato de que o caráter, ontologicamente subordinado, de
cópia que o platonismo atribui à imagem pode ser revalorizado
epistemologicamente como forma de apaziguamento e de “domesticação” da
imagem pela Idéia. O que há então na imagem que dela deve ser expulsa?
De que falamos ao apontar tal elemento, capaz de exercer sobre o
circuito onto-epistemológico da representação um efeito silenciosamente
disruptivo e perturbador, sem estar a ele propriamente integrado, em uma
relação de pertença e de exclusão que não pode ser simplesmente negada ou
ignorada pelo pensamento, mas que se recusa, por sua vez, a ser inteiramente
absorvida pela lógica icônica da semelhança?
189
Ver Jaeger, Werner: Paidéia, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1979, pp. 826-831.
108
Não seria este elemento, simultaneamente, a condição de possibilidade e
de impossibilidade da imagem? Não seria tal elemento obtido como um resto
(e não como resultado) da operação mimética de inscrição da imagem em um
conjunto de representações, situando-o, portanto, neste aquém da percepção
que o dispositivo da Caverna procura manipular e a epistemologia platônica
esconjurar? Em que medida o Platão da alegoria não é um pensador da
imagem como simulacro, para além de todo e qualquer processo de
representação imitativa da realidade?
O Simulacro como “mise-en-abîme” da imagem
A alegoria da caverna é a alegoria de um exorcismo, do exorcismo da
imagem como problema para o pensamento. Ao delimitar filosoficamente o
campo da representação, atribuindo-lhe a função de substrução de toda e
qualquer imagem produzida, divina ou humanamente, à lógica identitária da
cópia, Platão procura esconjurar o fantasma de um automatismo que lhe
parece inerente à percepção sensorial das imagens. Mas o que teme Platão
exatamente? Em que sentido se pode falar de automatismo no caso do circuito
de reprodução de imagens que sua alegoria descreve
190
?
A princípio, a alegoria da Caverna pode ser entendida como mera
ilustração “fabular” da teoria da mímesis, como uma narrativa de finalidade
didática em que a descrição de um complexo mecanismo de projeção de
imagens ilustra, metaforicamente, os obstáculos de caráter epistemológico que
a “alma” deve superar, de acordo com a filosofia platônica, para atingir o
verdadeiro conhecimento e contemplar as Idéias. Consideradas como
simulacros, as imagens projetadas na parede da caverna dariam a ver a sombra
de objetos que, por sua vez, seriam cópias dos objetos “realmente existentes”
(fora da caverna). Na medida em que o caráter de simulacro destas sombras é
compreendido apenas em termos de uma subordinação de terceiro grau à
lógica representacional da cópia-ícone, o bom funcionamento do circuito
epistemológico de reconhecimento das idéias através das imagens estaria
garantido. No entanto, o mecanismo de projeção de imagens descrito pela
190
Sobre a alegoria da Caverna e a questão da imagem em Platão, ver Droz, Genéviève: Os Mitos
Platônicos, Ed . UNB, Brasília, 1997, pp.73-84.
109
alegoria introduz um fator potencialmente perturbador à lógica
representacional da imagem como cópia. O problema de Platão com o
simulacro não parece se situar tanto em seu nível hierárquico de subordinação
epistemológica à Idéia, ou no fato de que o simulacro representa a cópia
“degradada” de outra cópia, mas sim no seu modo fantasmagórico de fulgurar
a imagem como aparição, furtando-se ao olhar na medida mesma em que se
manifesta de forma sensorialmente incontrolável e imprevisível.
Este pavor platônico em relação à percepção sensorial como mecanismo,
pavor da sujeição implícita à própria idéia de um automatismo da percepção
(sujeição da qual a alegoria é metáfora explícita) não está enraizado na
polêmica expulsão do poeta da República, pois reflete preocupações de ordem
epistemológica que estão presentes no Sofista, diálogo em que a questão
ontológica da imagem é elaborada de forma muito mais complexa e sutil do
que aquela exposta n’A República. Com efeito, ao considerar, neste diálogo, a
dualidade entre “de um lado, a coisa em si mesma; e de outro, a imagem que
acompanha cada coisa”
191
como uma dualidade em si mesma dupla presente
tanto em objetos de origem “divina” como em objetos de origem “humana” -,
Platão demonstra como o problema do simulacro como fonte de ilusão não
reside em absoluto em seu caráter de artefato imitativo, mas no modo imediato
e irrefletido com que é percebido, em sua impermanência e fugacidade. O
simulacro não representa o estágio mais baixo da potência mimética da
imagem. Subtrai-se, antes, à segurança cognitiva proporcionada pelo
reconhecimento icônico e desestabiliza todo e qualquer tipo de imagem, não
aquelas claramente produzidas pelo Homem (e pelo artista/poeta) como
também as
(...) que nos m no sono e todos os simulacros que, durante o dia, se
formam, como se diz, espontaneamente: a sombra que projeta o fogo quando as
trevas o invadem; e esta aparência, ainda, que produz, em superfícies brilhantes
e polidas, o concurso, num mesmo ponto, de duas luzes: sua luz própria e uma
luz estranha, e que opõe, à visão habitual, uma sensação inversa.
192
191
Platão: O Sofista, in OS PENSADORES VOL. III, Ed. Abril, São Paulo, 1972, p. 201.
192
Idem, p.201.
110
Segundo Gilles Deleuze, o caráter abissal do simulacro
193
platônico
demonstra a potência disruptiva que se instala no âmago da lógica
representacional da semelhança. Enquanto a imagem como cópia realiza a
intermediação das diferenças entre séries supostamente respectivas de idéias
(verdadeiras) e objetos (existentes), estabelecendo assim a sua identidade
última, a imagem-simulacro provém do encontro fortuito entre ries díspares
de sinais que ora convergem, ora divergem, em um circuito virtualmente
infinito de permutas mais ou menos aleatórias entre os seus elementos. Neste
circuito, a semelhança icônica não é mais do que um rastro fugidio da
pretendida identidade (ou adequação) entre os objetos do mundo e as idéias da
mente. O processo de reprodução dos simulacros se constitui, portanto, como
condição de possibilidade e de impossibilidade da imagem, na medida mesma
em que a lógica representacional das imagens-cópia a ele se acopla e procura
sujeitá-lo e controlá-lo por meio de sua possível absorção integral à identidade
do Mesmo. Chamando a atenção para o fato de que “o signo é o que fulgura
entre os dois níveis da orla, entre as duas séries comunicantes”
194
, Deleuze
demonstra que, para Platão, é a própria mímesis que se subordina ao
automatismo incessantemente diferenciador de formas do simulacro, um
automatismo em que a alteridade pode irromper a qualquer momento e
subverter por completo a gica pré-estabelecida da representação,
reinscrevendo ativamente o simulacro nos interstícios da própria ordem
simbólica que supostamente deveria esconjurá-lo.
A alegoria da Caverna pode adquirir, enfim, seu pleno sentido. O
complexo mecanismo de projeção imaginado por Platão é um mecanismo de
sujeição do simulacro à cópia, sujeição do automatismo da percepção sensorial
à lógica representacional da mímesis. O prisioneiro que consegue
eventualmente escapar dos grilhões que o acorrentam à Caverna não o
consegue apesar do mecanismo, mas sim devido a este, devido ao fato de que
este possibilita a projeção contínua e repetida das mesmas sombras e
193
Sobre Deleuze e o simulacro, ver Ferraz, M.C.Franco: O Simulacro e suas implicações em Deleuze,
Nietzsche e Kafka, in Nove variações sobre temas nietzschianos, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002,
pp. 133-149.
194
Deleuze, Gilles: Lógica do Sentido, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1974, p.266.
111
espectros, enquanto controla a reprodução desenfreada dos simulacros no
movimento mesmo de auto-legitimação icônica das imagens-cópia.
É nesta tensão inerente ao estatuto ontológico da imagem que a alegoria
platônica da Caverna deve ser, portanto, situada. Seu mecanismo de projeção
baseia-se em uma síntese disjuntiva de séries distintas de imagens (imagens-
cópia e imagens-simulacro), que obedecem a regimes igualmente distintos de
organização. Enquanto as imagens-cópia são artefatos que representam
indiretamente os objetos “reais” do mundo exterior, as imagens-simulacro
(sombras de cópias de pias) são reproduzidas diretamente sobre a parede da
Caverna. Assim, sua percepção não se distingue de qualquer outra percepção
de caráter sensorial, pois Platão toma o cuidado de frisar, desde o início, que a
sujeição dos prisioneiros é de tal monta que “estão desde a infância, as
pernas e o pescoço presos por correntes, de tal sorte que não podem trocar de
lugar e podem olhar para frente, pois os grilhões os impedem de voltar a
cabeça”.
195
O simulacro é considerado por Platão epistemologicamente perturbador
na medida mesma em que sua percepção não difere em absoluto da percepção
de um objeto real, situando-se em uma zona de perfeita indistinção em relação
ao problema crucial da lógica representacional: a questão da adequação entre a
imagem e o objeto que esta supostamente representa. O simulacro platônico se
apresenta, assim, como o real de um antagonismo entre a percepção
considerada em si mesma (como um fenômeno objetivo de reprodução de
imagens) e a imagem mental dela resultante (subjetivamente percebida como o
encontro formal do objeto real com a idéia que o representa).
É deste antagonismo, ontologicamente constitutivo à imagem, que nos
fala a alegoria da Caverna. Pensar o simulacro como potência é pensar as
condições de recorrência sensorial das formas a partir de um mecanismo de
reprodução da percepção ao qual se acopla a representação sem que, com isso,
afete a sua autonomia. A lógica identitária das imagens-cópia se lançada,
assim, em um circuito avassalador de percepções recursivas que ora retornam
à superfície icônica e representacional da imagem, ora submergem mais uma
vez no abismo sensorial de seus processos materiais de reprodução. O
195
Droz, Genéviève : Os Mitos Platônicos, Ed . UNB, Brasília, 1997, p.75.
112
simulacro é a imagem elevada à sua potência infinita de significação,
projetando-se sobre o abismo sem fundo da Caverna, em um processo
incessante de replicação especular.
Duplo da imagem, o simulacro “não é um objeto ‘natural’, mas também
não é um produto mental: não é nem imitação de um objeto real, nem ilusão
do espírito, nem criação do pensamento”,
196
mas sim o próprio real da imagem
como antagonismo eternamente diferido entre o mundo das coisas e o mundo
das idéias - entre o sujeito de uma percepção e os objetos percebidos, entre seu
processo material de reprodução sensorial e sua inserção simbólica no circuito
da representação.
Se considerarmos a alegoria da Caverna como um dispositivo visual de
mise-en-abyme através do simulacro, não há ilustração mais eloqüente do
caráter abissal desta operação de auto-reflexão da imagem do que o efeito de
reduplicação ao infinito de si mesma que uma câmera de vídeo realiza ao
focalizar o seu monitor e enviar para este o sinal de sua própria imagem. Este
efeito, um efeito de feedback impossível de ser obtido diretamente a partir da
imagem fotoquímica do cinema, torna manifesto o simulacro como duplo da
imagem, ou seja, o caráter especular da imagem como simulacro de si própria.
Imagem automaticamente reproduzida em seu próprio processo de geração, o
vídeo dispensa as etapas de revelação e cópia indispensáveis à fotografia e ao
cinema, reproduzindo o simulacro como freqüência ou pulso de um
mecanismo de variação diferencial em que a imagem se inscreve diretamente
como fluxo. Assim, a alegoria platônica da Caverna encontra-se finalmente
realizada, embora não pela sala escura da projeção cinematográfica – um
circuito fechado em que a imagem como representação pode controlar ainda a
reprodução dos simulacros mas, de forma ironicamente inversa, pelo
dispositivo quase automático de reprodução indiscriminada e desenfreada de
simulacros, que consiste em uma rede de televisão.
Podemos, agora, compreender melhor a insuficiência inerente à (quase
inevitável) tendência a interpretar a alegoria da Caverna como prefiguração do
196
Vernant, Jean-Pierre: « Figuration de L’invisible et catégorie psychologique du Double: le colossos »,
in Mythe et Pensée chez les Grecs II, Ed. Maspero, Paris, 1974, p.70. Minha tradução.
113
espetáculo cinematográfico
197
. Seja a partir de uma identificação do
dispositivo platônico ao dispositivo cinematográfico em um nível estritamente
técnico (o nível da projeção ótica das imagens)
198
, seja através de sua
identificação a um modelo epistemológico supostamente transcendental da
percepção sensorial (portanto necessariamente presente em todo e qualquer
dispositivo “técnico”)
199
, a irresistível tentação da teleologia aparece como o
derradeiro espectro a espreitar os abismos da Caverna na medida em que, à
concepção estritamente técnica do dispositivo cinematográfico, alia-se uma
concepção linear da história que faz de Platão um precursor dos irmãos
Lumière e da alegoria da Caverna, uma metáfora precursora da mímesis
cinematográfica.
O que a mise en abîme do simulacro indica, no entanto, é que a alegoria
da Caverna pode ser interpretada como prefiguração da mímesis
cinematográfica porque se constitui, de fato, como uma cinemática da
mímesis: um dispositivo de controle da atividade mimética a partir de uma
resistência à representação simbólica intrínseca à própria mímesis.
A esta resistência Platão denomina simulacro, pois o processo de mise en
abîme desloca a imagem de sua estabilidade significante (icônica ou
simbólica), provocando uma oscilação constante entre sentido e não-sentido,
apto a subtrair a mímesis do círculo fechado (portanto imóvel) da
representação para lançá-la em um movimento incessante que ora se afasta,
ora se aproxima deste círculo. É com esse movimento e com a possibilidade de
se pensar uma cinemática da mímesis e suas implicações para a história e para
a teoria do cinema, que nos ocuparemos a partir de agora.
Isto (não é (o que é))
Para além da obra caleidoscópica de Escher, baseada em delirantes
efeitos óticos de inversão especular em que o reverso da imagem se desdobra
incessantemente diante de nossos olhos, a obra de René Magritte enceta uma
197
A este respeito, ver Chateau, Dominique: Cinéma et Philosophie, Ed. Nathan, Paris, 2003, pp.32-42.
198
Como em Machado, Arlindo: Pré-cinemas e Pós-cinemas, Ed. Papirus, São Paulo, 1997, pp.28-34.
199
Como em Baudry, Jean-Louis: “Cinema: Efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base”, in
Xavier, Ismail: A Experiência do Cinema, Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1991, pp.383-400.
114
importante reflexão acerca do simulacro como duplo da imagem, possibilitada
pela investigação reiterada de seus fundamentos onto-epistemológicos e pela
busca de sua expressão pictórica precisa e exata.
Magritte solapa as bases epistemológicas da representação visual de
forma sutil e persistente, conservando um figurativismo aparentemente
tradicional para melhor demonstrar sua inconsistência ontologicamente
constitutiva e obter, com isto, uma atmosfera de qualidade poderosamente
onírica. A mise-en-abîme, repetidamente tematizada por Magritte em várias
séries distintas de imagens
200
, apresenta-se em sua obra como um processo de
replicação da imagem potencialmente infinito através de uma série sucessiva
de enquadramentos (de enquadramentos (de enquadramentos...)) que
provocam a desconfortável sensação de uma completa indistinção entre o que
é real e o que é propriamente imaginário no espaço da representação,
projetando seu objeto em um campo indeterminado do sentido em que as duas
possibilidades coexistem em mútua exclusão: as telas “pintadas” no interior
destes quadros ora são transparentes à imagem, ora opacas e os objetos e
paisagens representados ora são “reais”, ora imaginários, simultânea e
alternadamente -, em uma indecidibilidade ontologicamente estrutural.
É nesta indecidibilidade que Magritte “fotografa” o simulacro. Este é
conjurado em sua dimensão figural, desvelando-se na fulgurância espectral de
um processo de reprodução disjuntiva em que a imagem se manifesta na
forma de seu duplo - potência subterrânea da figuração a equilibrar-se no real
do antagonismo entre os suportes materiais de sua aparição (janela, tela,
espelho), por um lado, e o caráter simbólico de sua inscrição em um quadro
representacional específico (realidade, imaginação, reflexo), por outro. Neste
sentido, as telas da série La Condition Humaine, dos anos 1930, são
definitivas. Releituras irônicas da clássica tradição pictórica acerca da janela
como espaço organizacional da representação análogo ao quadro
201
, antecipam
toda a problemática fenomenológica do imaginário que será desenvolvida por
Maurice Merleau-Ponty nos anos 1940/50, apresentando as relações entre
200
Notadamente nas séries de imagens intituladas, La Condition Humaine, 1933 e 1935, óleos s/tela; La
Reproduction Interdite, 1937, óleo s/tela; La Belle Captive, circa 1950, óleos s/tela; e La Cascade, 1961,
óleo s/tela. Sobre Magritte, Nougé, Paul: René Magritte (in extenso), Didier Devillez éditeur, Paris, 1997.
201
Cf. Crary, Jonathan: Techniques of the Observer, October Books, London, 1996, pp.25-66.
115
imagem e objeto da representação como um enigma indecifrável para o sujeito
do olhar.
Magritte representa a própria estrutura ontológica da imagem que
possibilita cintilar o simulacro. A imagem aparece como um campo de tensão
permanente entre os recessos profundos e obscuros do objeto em sua
materialidade incognoscível e a imaterialidade transparente da luz (real?
reflexa?) como puro simulacro, atravessando o circuito infinito de duplos do
objeto em um eterno piscar de olhos.
202
Qual seria a natureza deste cintilar?
Vibração real, reflexo imaginário ou representação simbólica? Não surgiria o
simulacro justamente nesta tripartição estrutural de sua ambivalência? Não
seria esta ambivalência estruturalmente constitutiva de toda e qualquer
imagem?
Um pouco antes de Magritte, em 1917, Kazimir Malevich apresentava,
em sua tela Branco sobre Branco (mais conhecida como “quadrado branco
sobre fundo branco”), uma fórmula estrutural da imagem inteiramente
elaborada de forma visual. Sobre um fundo branco, destaca-se a linha tênue de
um quadrado branco enquadrado de forma insolentemente irregular.
Percebemos a diferença entre fundo e forma apenas devido à contraposição
perceptiva de uma variação sutil de tons de branco a uma variação mais radical
dos eixos espaciais de orientação estabelecidos pelo(s) enquadramento(s).
Distinguir o branco no Branco implica diferenciar uma imagem-de-um-lugar
de um lugar que é o próprio lugar da diferenciação, delimitando o campo da
representação de forma necessariamente assimétrica e anamórfica em relação
ao seu real lugar de produção. O fundo branco representa o espaço real da
representação, espaço em que a linha que demarca o quadrado branco funciona
como linha de cesura ou corte estrutural entre o espaço real e o espaço
imaginário que o quadro recorta, enquanto o espaço branco da superfície do
quadrado representa o espaço imaginário da representação.
Trata-se aqui da própria estrutura disruptiva do simulacro que emerge
para a visão, introduzindo “uma disparidade constituinte na coisa que ele
202
Para o conceito de Augenblick em Nietzsche, ver Shapiro, Gary: Archaeologies of vision – Foucault
and Nietzsche on Seeing and Saying, University of Chicago Press, Chicago, 2003, pp. 157-192.
116
destitui do lugar de modelo
203
”, a partir de um ponto de indistinção entre o real
da imagem e seu conteúdo imaginário que equivale, na tripartição estrutural da
ambivalência real/imaginário, à barra do simbólico: “o simulacro é o próprio
símbolo, isto é, o signo na medida em que ele interioriza as condições de sua
própria reprodução”
204
.
Simulação e simulacro
Simulacro e imagem podem ser pensados na simultaneidade de sua
mútua exclusão, ou seja, como síntese disjuntiva em que a potência
infinitamente diferenciadora do simulacro emerge a partir do desvão entre as
condições materiais de produção e percepção da imagem e a lógica
representacional que preside o seu entendimento em termos simbólicos. Por
isso, a mímesis não pode ser descrita somente como um ciclo de reprodução
fechado e perfeito de cópias a partir de modelos ou de significados a partir de
significantes nem historicizada em termos puramente hermenêuticos ou
iconológicos. Para se pensar a atividade mimética em termos cinemáticos, é
necessário postular uma abertura estruturante e estrutural do simulacro e de
sua mise en abîme diante do acaso e da irreversibilidade do tempo, ao mesmo
tempo em que se mantém seu vínculo necessário e permanente, mesmo porque
ambíguo e contraditório, com os modelos historicamente tradicionais de
representação.
A questão do simulacro como duplo especular da imagem pode ser
abordada a partir de um sem-número de suportes e de modos de representação
diferenciados em séries distintas de dispositivos técnicos de produção
(artesanais ou industriais) e de gêneros estéticos de expressão (artística ou
não). Entretanto, não se pretende fazer aqui uma história evolutiva do
simulacro como experimento gradativamente aperfeiçoado ao longo do tempo
em uma série integrada e linear de dispositivos técnicos, nem a tradicional
crítica do simulacro como farsa que postula apocalipticamente um “regime de
203
Deleuze, Gilles: Diferença e Repetição, Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1988, p.121.
204
Idem, p.121, o grifo é meu.
117
simulacros” contemporâneo
205
. Tais perspectivas pressupõem justamente a
possibilidade de um re-enquadramento conceitual do simulacro em modelos
(de simulação) necessariamente baseados em códigos simbólicos, sejam estes
analógicos ou digitais
206
como bem observa Maria Inês de A. J. Accioly em
sua excelente tese sobre simulacros e simulação
207
.
Não se pode, porém, deixar de considerar que os atuais modelos digitais
de simulação são, em grande medida, responsáveis pela revitalização,
inclusive teórica, da experiência e do conceito de mímesis. O efeito de real que
produzem possui características (tais como tridimensionalidade, interatividade
e recursividade) que os tornam praticamente indistinguíveis da “verdadeira”
realidade em que se inserem, produzindo o estado de indecidibilidade próprio
ao simulacro. Partindo da constatação de que “na filosofia platônica, mímese é
a noção que mais se aproxima da idéia de simulação”,
208
Accioly detecta, com
precisão, o oscilar do pensamento contemporâneo a este respeito, que ora a
valoriza “aristotelicamente” como processo experimental de conhecimento
(simulacro-experimento), ora combate-a “platonicamente”, em sua infinita e
enganosa circularidade auto-reflexiva, como um processo espetacular de
manipulação da experiência (simulacro-farsa):
Essas duas perspectivas opostas a de que modelos repetem o mesmo e
operam por circularidade e a de que modelos incorporam variações e operam
por recursividade podem ser associadas, respectivamente, às concepções da
simulação como esvaziamento do simbólico (Baudrillard) e como proliferação
do simbólico (Quéau). Consideramos que ambas são válidas, porém
isoladamente insuficientes. Entendemos que a simulação desliza sobre o eixo do
simbólico produzindo mais do mesmo e mais do outro.
209
Reedita-se assim a clássica contradição, elaborada por Umberto Eco
210
,
entre uma perspectiva apocalíptica (“esvaziamento do simbólico”) e uma visão
integrada (“proliferação do simbólico”) dos meios tecnológicos de
comunicação. O conceito de mímesis, porém, não pode mais ser definido como
205
Ver Baudrillard, Jean: Simulacres et simulation, Galilée, Paris, 1981, e La Transparence du Mal –
Essai sur les Phénomènes Extrêmes, Galilée, Paris, 1990.
206
Para a diferença entre códigos analógicos e digitais, ver Pignatari, Décio: Informação, linguagem,
comunicação, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1968, pp. 20-22.
207
Accioly, Maria Inês de A. J.: Isto é simulação - o efeito de real como estratégia de comunicação
,
ainda inédito até o momento de redação destas linhas, pp.71-73.
208
Idem, p.83.
209
Idem, p.75.
210
Eco, Umberto : Apocalípticos e integrados, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1993.
118
a reprodução de cópias (fictícias) de objetos (reais) a partir de modelos
(eternos), pois se constitui agora na própria modelização (temporalizada por
recursividade) dos objetos (nem reais, nem fictícios) - ou seja, em uma
mímesis de simulação:
O modelo é a virtualidade da simulação e a simulação é a atualidade do
modelo uma atualidade ou apresentação que se sob a forma do efeito de
real. Modelo e simulação interagem de forma recursiva, sem hierarquia nem
precedência, iludindo e ensinando, reproduzindo o mesmo e produzindo
diferença (...) o efeito de real da simulação se apresenta como um efeito de
imediato, ou efeito de indício, pois aquilo que ele disfarça é precisamente uma
instância da mediação simbólica, como nos revelam as análises de Barthes e
Oudart. Simulação é a mediação que se disfarça de evento imediato.
211
Embora Accioly reconheça plenamente nesta e em outras passagens o
efeito de disruptividade cognitiva inerente à emergência do simulacro, parece
inclinar-se mais por uma perspectiva “aristotélica” de integração
pedagogicamente controlada dos dispositivos de simulação à experiência
humana do que a uma crítica “platônica” dos seus efeitos, pois seu viés
apocalíptico acaba reforçando a metafísica platônica do Modelo em seu papel
epistemológico de “juiz” da mímesis, como Accioly bem o demonstra em sua
lúcida apreciação da obra de Baudrillard.
Por outro lado, um viés mais integrado de abordagem da mímesis de
simulação permite sua inserção positiva, mesmo que auxiliar, no processo do
conhecimento para revelá-la como um dispositivo capaz de modelar sua
própria emergência (como simulacro) a partir de uma série de mecanismos de
controle:
Emergência e controle compõem, a nosso ver, um par complexo que se
define de forma quase tautológica: a emergência é aquilo que escapa ao
controle, à previsibilidade; e o controle tem em vista gerir as emergências. Esse
par, que reforça o caráter estratégico da simulação, trabalha sob tensão no limite
entre a determinação e o acaso, e entre a reversibilidade e a irrreversibilidade. A
noção de jogo, a nosso ver, é indispensável para ajudar a entender a
ambigüidade da simulação. Aquilo que está em jogo mantém uma reserva de
indeterminação, inclusive de ordem moral. Entre a farsa e o experimento, o jogo
pode realizar ambos.
212
211
Accioly, Maria Inês de A. J.: Isto é simulação - o efeito de real como estratégia de comunicação, p.
171.
212
Idem, p.172.
119
Na medida em que os modelos de simulação se utilizam de linguagens
formais programáveis que reduzem a totalidade da experiência simulada a
séries de comandos sequenciados por iteração recursiva, também possibilitam
a reprodução controlada da experiência mimética, aprisionando o simulacro
nos algoritmos da modelização de forma ainda mais implacável do que
qualquer outro tipo de codificação simbólica jamais lograra. Com isto, a
mímesis de simulação captura o simulacro em um dispositivo ainda mais
infernal que o da Caverna, que “modelo” (no sentido platônico de Idéia) e
mythos (no sentido aristotélico de enredo ou intriga) eram princípios de
regulação da mímesis que dependiam precisamente de seu reconhecimento
simbólico para funcionarem como tais. Entretanto, os atuais programas e
modelos digitais de simulação se ocultam no real de sua própria execução,
apresentado o simulacro como análogo imediato do objeto representado.
Assim, a mímesis de simulação supera a tradicional mímesis de representação
apenas na medida em que esta última é absorvida pela codificação de um
programa que não é mais escrito para ser lido e interpretado simbólica e
metaforicamente, mas literalmente executado: o mythos aristotélico se
transforma em algoritmo e a mise en intrigue, numa sequência de comandos
que é recursivamente “mise en abîme”.
Esta invisibilidade da representação não elimina a sua necessidade
operacional para a mímesis de simulação, mas a priva inteiramente da
potencial abertura à experiência histórica concreta dos homens, atribuída por
Paul Ricoeur à elaboração da mise-en-intrigue como núcleo ativo da
mímesis
213
. Evidentemente, de uma perspectiva teleológica que considere os
modelos de simulação como a suprema realização histórica dos potenciais
cognitivos do simulacro e da mímesis, geralmente denominada I.A.
(Inteligência Artificial), modelos ainda mais complexos de simulação
poderiam, algum dia, interagir com a complexidade real da experiência do
mundo de forma a incorporar “criativamente” o acaso e a irreversibilidade dos
eventos à sua capacidade de emular respostas diversas a estímulos variados.
Seria, no longo prazo, a totalidade da experiência humana inteiramente
codificável e reprodutível através de modelos auto-poiéticos de simulação? Ou
213
Ver acima, pp. 90-99.
120
seria a mímesis total da experiência um processo, por definição, irredutível à
experiência efetiva da mímesis?
214
Seria a mímesis de simulação a realização histórica concreta da mímesis
praxeôs de Aristóteles, capaz de sintetizar a imagem ou forma ideal (idia
morphé)
215
de toda a experiência humana? Ou não seria esta mesma idéia um
sintoma do risco, inerente, segundo Ricoeur, à correlação entre mímesis e
práxis, de “encerrar o texto poético em si mesmo?”
216
, ao levar a diferença
entre nossa experiência da mímesis, de um lado, e nossa capacidade de
mimetizar a totalidade da experiência, de outro, a um ponto de quase
indistinção?
Para Ricoeur, não possibilidade de uma mímesis aberta à experiência
da história sem a mediação do mythos. A mise en intrigue funciona, portanto,
como a instância de elaboração poética da forma (imaginária) que reveste um
determinado conteúdo - o mythos ou núcleo simbólico da ação narrada - de
maneira a que o leitor possa (re)interpretar este conteúdo sucessivas vezes ao
longo da história. Determinar o que seria verdadeiro ou falso neste processo de
transmissão seria a tarefa de uma hermenêutica geral em que a análise de texto
pode ser acompanhada de uma série de análises iconológicas e musicológicas,
sem que a proeminência do signo, e, portanto, da representação, sejam postas
em causa. Assim, sem o mythos, a mímesis não seria capaz de efetuar a
mediação entre a experiência temporal concreta dos homens e sua história,
fechando-se sobre si mesma em uma semântica geral das ações que não
ultrapassaria o âmbito do perceptível para se fazer legível. Tal é o caso dos
jogos de mímica que instam os participantes a conjugarem certas ações a
certas imagens, para adivinhar uma charada.
Para os defensores da mímesis de simulação, a mímesis praxeôs se
constitui precisamente desta semântica geral das ações compreendida em um
sentido não-histórico, como um repertório sempre dado de ações e reações
214
“A vertente dita “forte” da IA considera que o cumprimento dessa meta é apenas uma questão de
tempo, enquanto a IA fraca lhe opõe uma impossibilidade lógica relacionada ao teorema de Gödel: como
inserir num modelo computacional operações cognitivas não computáveis e soluções para problemas não
algoritmizáveis?” in Accioly, Maria Inês de A. J.: Isto é simulação - o efeito de real como estratégia de
comunicação, pp. 62-63.
215
Ver Costa Lima, mesis, desafio ao pensamento, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000, pp.
31-69.
216
Ricoeur, Paul: Temps et récit I, Paris, Éditions du Seuil, 1983, p.73.
121
sensório-motoras a ser devidamente modelizado por uma linguagem formal
avessa a qualquer tipo de leitura ou interpretação, que não a estritamente
literal. A mise en intrigue não nos remete mais ao mythos como núcleo
simbólico a historicizar, mas apenas ao desenrolar temporal de uma sequência
programada de comandos e instruções que produzem o efeito de real do
simulacro em sua suposta imediaticidade. Com isto, a representação encerra-se
em si mesma, ao reproduzir incessantemente sua própria imagem “mise en
abîme” – seja para fins de experimentação, seja para fins de manipulação.
Recém chegados ao ponto mais abissal de nossa descida à Caverna,
deparamo-nos com um sério impasse: se quisermos preservar a relação noética
entre mímesis e história para realçar o seu valor cognitivo, somos obrigados a
continuar vinculando-a ao mito e à representação, sobretudo em seu aspecto
mais genérico de fabulação narrativa. Se, por outro lado, enfatizamos o
aspecto lúdico e espetacular do dispositivo mimético - o seu caráter de atração
sensorial, de engodo ou simulação –, a encerramos em um dispositivo ainda
mais vinculado à representação, agora formalizada por um modelo
computacional. Do mythos ao logos, da representação fabular, analógica e
metafórica à representação lógica, digital e metonímica, a mímesis oscila entre
Platão e Aristóteles como entre a farsa e o experimento, pois, quando regida
pela hermenêutica, a mesis já não é mais cinemática. E, quando disciplinada
pela informática, já não o pode mais ser.
Como evitar o círculo vicioso entre estas duas formas distintas de
representação, na medida em que a mímesis parece circular indefinidamente
entre signo e imagem, metáfora cognitiva e semelhança perceptiva,
remetendo-se sempre a algum tipo de modelo ou código?
Haveria mímesis sem representação? Responder afirmativamente a esta
pergunta exige a dupla afirmação de um simulacro sem simulação e de uma
cinemática do dispositivo mimético que não obedeça a nenhum tipo de modelo
- seja este hermenêutico ou iconológico, técnico ou estético, econômico ou
semiótico, digital ou analógico.
122
Cinemática da mímesis
Tripla tarefa: pensar a mímesis sem a representação, o simulacro sem a
simulação e um dispositivo sem modelo, determinando um plano propriamente
mimético de contato e dispersão do simulacro, não ainda capturado pelos
processos de significação ligados à representação em suas distintas
modalidades, mesmo que tal possibilidade esteja sempre latente no dispositivo
mimético.
Em seu estudo sobre a simulação
217
, Accioly menciona essa
possibilidade sem explorá-la mais a fundo, na medida em que remete o
dispositivo mimético a um modelo representacional específico - o modelo de
simulação. Com isto, insere definitivamente o simulacro no círculo pré-
programado da simulação e encerra a discussão sobre a mímesis nos limites
platônico-aristotélicos da dicotomia entre simulação como experimento ou
como farsa. A teoria da mímesis contida na alegoria da Caverna se define aqui
como metafísica da simulação, enquanto uma teoria não-representacional da
mímesis deve apontar para uma física do simulacro - não mais entendido como
subproduto ou efeito colateral da imagem como suporte do signo, isto é, de um
conteúdo simbólico da representação (seu sentido e/ou seus significados), mas
como o próprio conteúdo material (hilético) de um plano a-significante de
dispersão e propagação de enunciados diversos.
Cinemática da mímesis e física do simulacro são, portanto, noções que
devem ser pensadas em sua complementariedade: a mímesis se subtrai à
representação quando atingimos o nível do simulacro, e este só pode ser
concebido em sua materialidade concreta, fora de qualquer modelo de
simulação, como uma cinemática. Enquanto a cinemática da mímesis tem por
função nos desembaraçar, finalmente, da imitação e da narrativa como
paradigmas para a atividade mimética, a física do simulacro nos permite
reavaliar o estatuto da imagem diante da representação e repensar a
experiência do cinema como uma mimetologia da temporalidade da
experiência.
217
Ver acima, pp. 112-116.
123
Voltemo-nos uma última vez para a questão da mímesis e de seus
modelos representacionais. Luiz Costa Lima distingue claramente, em sua
obra Mímesis: desafio ao pensamento, os dois sentidos básicos do termo
“representação” a que aludimos acima:
Em sua forma privilegiada (...) representação significa a equivalência
estabelecida, idealmente de modo geométrico, entre uma cena empírica primeira
e uma cena produzida e projetiva, i.e., capaz de reproduzi-la e, por isso, de
tecnicamente dominá-la (...) em sua forma classicamente secundária, a
representação significa a equivalência entre uma cena primeira e a resposta
subjetiva que provoca. Na primeira acepção, a representação tem o caráter de
aspecto (objetivo). Na segunda, o de efeito (Wirkung) a identificação do efeito
com a resposta subjetiva é provisória. A primeira satisfaz e é requerida pelas
ciências duras. A segunda se espraia entre as ciências históricas (mais
comumente chamadas humanas), alcança as situações cotidianas e inclui a
resposta à obra de arte. O não distinguir entre essas acepções facilita a tarefa
tanto dos que rejeitam aproximar representação e realidade da obra de arte,
como, inversamente, dos que pretendem ver na arte uma representação da
realidade.
218
Pode-se reconhecer com facilidade a primeira acepção do termo a de
uma representação de aspecto na mímesis platônica do modelo ideal e em
sua metafísica abstrata e formalista de fortes tendências alegóricas. Já a
mímesis aristotélica do mythos como reconfigurador de uma experiência a ser
expiada (Aristóteles) ou sucessivamente reinterpretada ao longo da história
(Ricoeur), corresponde à segunda acepção, a de uma representação de efeito.
Costa Lima demonstra como a “representação de aspecto”, na verdade,
pouco tem a ver com a mímesis na acepção original do termo, vinculando-se
inteiramente ao enfraquecimento deste conceito por sua absorção no conceito
latino de imitatio. Quanto à “representação de efeito”, corresponde
precisamente às relações de reconfiguração metafórica da experiência que
Paul Ricoeur derivou de sua análise da Poética. Pensada em termos de
representação, a mímesis encontra-se, portanto, inevitavelmente enredada
entre a função de cópia ou de metáfora e o conceito de imitação ou de
narrativa. O problema aqui é o mesmo colocado por Ricoeur a questão da
relação entre mímesis e história -, mas o percurso da investigação proposta é
bem diverso:
Se a mimesis supusesse uma cena modelar ou, mais simplesmente, um
modelo, estaríamos admitindo que ela tem um caráter normativo. O que, ao
218
Costa Lima, Luiz: Mímesis: desafio ao pensamento, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000,
pp.98-99.
124
contrário, é fundamental no fenômeno da mimesis é a correspondência
estabelecida entre uma obra particular a cena segunda e parâmetros que
guiam o receptor. Dizer, contudo, que tais parâmetros formam uma “cena
primeira” daria direito a que se pensasse que há, propriamente, uma cena pré-
traçada! Ora, não materialmente tal cena, mas sim parâmetros culturalmente
diferenciados, que assumem a função de balizas.
219
Mesmo o modelo aberto e expandido de mímesis proposto por Ricoeur -
que na prática equipara a operação de mise en intrigue à metáfora - não
responde ao problema que coloca: pensar a transmissão histórica da mímesis a
partir de seus modelos representacionais será sempre supor uma cena primeira
(modelo platônico ou mythos aristotélico) de controle e regulação da mímesis
como processo (de imitação ou de reconfiguração narrativa) subordinado à
representação (de aspecto ou de efeito). A solução de Ricoeur reside na
temporalização da experiência mimética em sua noção de tríplice mímesis, que
reorienta a atividade mimética dos modelos fechados e normativos para os
“parâmetros culturalmente diferenciados” de representação, permitindo pensar
a recepção da mímesis em um determinado momento histórico, assim como a
sua influência posterior, a partir destes mesmos parâmetros.
Para desassociar a mímesis definitivamente de todas as modalidades de
representação, Costa Lima apóia-se fortemente na distinção kantiana entre
representação (Vorstellung) e apresentação (Darstellung), como funções
cognitivas específicas. Enquanto a primeira é uma função do entendimento
que permite a subsunção da multiplicidade empírica de objetos às categorias
conceituais que os definem, a segunda é uma função da imaginação que
permite a reconfiguração da multiplicidade empírica de intuições nos objetos a
que supostamente correspondem.
Para Kant, toda representação necessita de conceitos para referir-se aos
objetos do mundo, mas o conceito em si é uma forma vazia cujo entendimento
não constitui garantia epistemológica suficiente da obtenção de um
conhecimento racional objetivo e sem falhas. É justamente nesta falha entre
razão e entendimento que se deve postular um sujeito da apercepção
219
Costa Lima, Luiz : Idem, p. 22.
125
transcendental, capaz de realizar a “síntese do diverso na unidade da
consciência
220
”, através da imaginação.
Em outras palavras: na ausência da intuição, o conceito considerado em
si e por si seria incapaz de referir-se a e de conhecer os objetos reais do mundo
e, na ausência do conceito, a intuição seria incapaz de pensá-los
racionalmente. Por isto, a apresentação direta e imediata de um objeto à
intuição “não é outra coisa senão referir sua representação à experiência (seja
ela real ou tão-só possível)
221
”. O entendimento necessita dos objetos que lhe
apresenta a intuição empírica (síntese de apreensão) para representá-los
através dos conceitos (síntese de reconhecimento), e essa experiência de
reconfiguração da intuição (síntese de reprodução) é realizada pela imaginação
através de sua apresentação (Darstellung).
Em nenhuma outra área do pensamento tal distinção se torna tão clara
como na matemática, em que os conceitos devem ser diretamente apresentados
na pura intuição, permitindo à Darstellung
(...) trabalhar com o aparato dos sentidos sem o referir a um caso
empírico; por conseguinte, sem precisar de sua representação (...) a
desnecessidade da representação na construção do conceito matemático
confirma essa articulação: sua peculiaridade está em que prescinde da intuição
empírica, isto é, é capaz de dizer de objetos, sem que eles se dêem aos
sentidos.
222
Enquanto a Primeira Crítica situa a Darstellung - como trabalho da
imaginação - em posição claramente subordinada à Vorstellung, como trabalho
do entendimento (o que situa Kant dentre os pensadores que mais contribuíram
para o ocaso do conceito de mímesis
223
), nos juízos reflexivos da Terceira
Crítica a imaginação ultrapassa sua posição subordinada na medida em que
“apresenta um objeto que mais a pensar do que é capaz de converter-se em
matéria do entendimento
224
”. A síntese de reprodução dos objetos apreendidos
pela intuição torna-se, no campo específico da arte e do pensamento estético,
uma síntese de produção de objetos não necessariamente reconhecíveis, no
todo ou em parte, pelo entendimento:
220
Idem, p.107.
221
Ibidem, p.109.
222
Costa Lima, idem, p.111. Ver também Badiou, Alain: Court traité d’ontologie transitoire, Éd. du
Seuil, Paris, 1998 e Foucault, Michel: L’archéologie du savoir, NRF-Gallimard, Paris, 1969.
223
Ver Costa Lima: Vida e Mímesis, Ed. 34, Rio de Janeiro, 1994, pp.160 e seg.
224
Costa Lima, Mímesis: desafio ao pensamento, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000, p. 112.
126
(...) inverte-se a relação entre representação e apresentação. Ao passo
que, na Primeira Crítica, a representação, enquanto sintetizadora dos dados
empíricos, dava a largada e a imaginação, porque reprodutiva, dava condições à
apresentação de uma produção obediente às propriedades do objeto conceituado,
aqui, porque produtora, a imaginação a primazia à Darstellung, subordina a
representação, fazendo-a referir-se a ‘uma outra natureza’”.
225
Com isto, a apresentação (Darstellung) adquire um forte caráter de
produção apoiada na empiricidade, enquanto a representação (Vorstellung) se
mostra totalmente dependente deste mesmo horizonte de empiricidade. Isto
permite que Costa Lima situe a atividade mimética na própria constituição
deste horizonte e dos seus parâmetros representacionais, pensando a mímesis
como uma práxis capaz de produzir diretamente um sentido não mediado por
modelos de uma semântica geral da ação, precisamente na medida em que
produz também o próprio horizonte semântico que permite a posterior
decodificação do seu sentido (seu reconhecimento pelo entendimento, em
termos kantianos).
Ao remeter o termo mímesis ao seu sentido etimológico original
226
,
Costa Lima descobre uma mímesis que não é mais apenas a representação de
ações (mímesis praxeôs), pois se constitui no presentificar da própria ação em
geral. A mímesis de produção não reflete os objetos como cópias ou signos
no plano da representação. Inflete-os, antes, e desloca-os por um plano que se
situa, por assim dizer, abaixo ou ao redor da própria trama simbólica da
representação, excluindo-se desta à medida mesma em que a reconfigura. A
representação aqui, em vez de determiná-la, aparece subordinada à mímesis,
pois a cena é sempre segunda e os próprios parâmetros que a definem (o
horizonte de empiricidade ou a semântica geral das ações que constitui a
mímesis I para Ricoeur) são produzidos pela atividade mimética entendida
como o grau zero da representação a Darstellung kantiana. A atividade
mimética, por sua vez, não tem mais por objeto necessário o mythos ou
qualquer outro modelo, simplesmente porque não tem nenhum objeto pré-
determinado, assim como não pode ser atribuída a um sujeito preciso ou autor.
A mímesis de produção é a própria possibilidade de reconfiguração dos objetos
nos signos de uma ação ainda inédita, inscrevendo-se nas várias linhas de
225
Costa Lima, Idem, p. 113.
226
Ver acima, p. 85.
127
conexão possíveis entre os signos e seus objetos a partir de uma cinemática,
isto é, de uma série de movimentos que não obedecem necessariamente a
qualquer modelo de significação, embora interajam frequentemente com estes.
Um bom exemplo de processo mimético não-representacional é o do
riso. Uma piada bem contada provoca hilaridade geral e imediata, na medida
em que brinca com as possibilidades de sentido e não-sentido (nonsense) que
evoca ao mesmo tempo. Embora uma explicitação total ou final do sentido
seja sempre possível, o efeito preciso de humor que se intenciona obter
depende justamente de uma suspensão temporária desta possibilidade. Caso
contrário, a piada tem o seu sentido explicado e perde precisamente sua graça,
ou seja, aquele elemento extra-representacional que não é transmitido pelo
sentido, mas que tampouco se estabeleceria em sua ausência. O paradoxo aqui
é o de uma produção de sentido que não dispensa a representação, sem dar-se
inteiramente em seu âmbito, provocando inclusive reações corporais reflexas
cujo efeito imediato não pode ser controlado através dos mecanismos
simbólicos de recepção e interpretação do sentido, embora tenha sido
provocada por estes
227
. É precisamente nesta medida que o riso é fonte tão
frequente de distúrbio ou embaraço, mas o fundamental aqui é o fato de que o
humor é um fenômeno essencialmente mimético, não porque seja
fundamentalmente imitativo (se assim o fosse, todo humor seria pantomima)
ou narrativo (assim sendo, o humor estaria inteiramente contido no
anedotário), mas porque é produtor de um movimento tanto mental quanto
corporal - que adiciona expressão ao conceito (no caso da representação de
aspecto) ou ao signo (no caso da representação de efeito), e matéria ao objeto
(da representação) -, reconfigurando constantemente seu horizonte de sentido
através do não-sentido (e vice-versa).
Com a mímesis de produção, abrem-se definitivamente os circuitos
fechados que aprisionavam sujeitos (da ação) e objetos (do mundo) nos
horizontes de empiricidade da mímesis de representação. Se a expressão
sempre excede, na representação de aspecto, os limites mais estritos do
conceito (assim como excede, na representação de efeito, os limites mais
227
Ver Koestler, Arthur: The act of creation, Pan Books, London, 1964, pp.28-37.
128
flexíveis do signo), a matéria igualmente excede constantemente os limites do
objeto que se pretende representar. Seja estrita ou flexível, imitativa ou
narrativa, a representação procura sempre inscrever em seus códigos um duplo
excesso: de expressão significante e conceitual, por um lado, e de matéria
bruta não articulável ao sentido (portanto, impossível de ser expressa), por
outro. A mesis de produção, portanto, não nega ou substitui a mímesis de
representação, constituindo-se, antes, como sua condição simultânea de
possibilidade e de impossibilidade, ou seja, em um circuito aberto de re-
configuração incessante de sujeitos e conceitos, signos e objetos, imagens e
ações, através da dupla articulação de dois planos distintos. Eis os planos: um
plano de expressão que forma modelos, linguagens e códigos de
representação, e um plano de conteúdo em que a matéria a ser representada se
apresenta como um fluxo ou campo de variação de intensidades.
Obtém-se, assim, uma abertura da mímesis para a experiência histórica
concreta, que já não precisa ser pensada a partir de uma mediação do mythos e
da representação que projete a mímesis indiretamente sobre o eixo de uma
distensão temporal exterior, como em Ricoeur. A mímesis de produção é
literalmente mímesis praxeôs, isto é, processo mimético de produção criadora
de ações, e não apenas de representação, ou reprodução de um léxico já dado
de ações semantizadas de acordo com determinados códigos de referência. Isto
não implica nenhuma forma de fechamento sobre si mesma, pois, se entendida
no sentido produtivo extra-representacional em que nos situamos, a mímesis
praxeôs é capaz de reconfigurar, simultaneamente, o plano da representação
com seus diversos modos, de um lado, e o plano ou nível de intensidade
próprio à matéria da representação, por outro.
Esta dupla articulação da mímesis de produção (sobre o excesso de
expressão que suporta o sentido e sobre o excesso de matéria que suporta a
representação) desloca tanto o sentido usual do termo mímesis (de uma
representação de ações ou reprodução de objetos para a sua produção
imediata) como o do termo praxeôs. Com efeito, o objeto da mímesis não é
mais somente a representação das ações dos homens e dos objetos do mundo
como signos, mas a própria ação mimética como produção de mundo. Em
outras palavras: o objeto da mímesis praxeôs, entendida como mímesis de
129
produção, é a própria práxis material da mímesis. Não se trata mais, portanto,
de um objeto representado por um signo a partir de um sentido a que
supostamente corresponde, mas de um corpo real que configura este mesmo
sentido, com seus signos e seus objetos, a partir do seu excesso a-significante
de matéria.
A mímesis é uma noética para além de toda e qualquer semiótica, como
o queria Paul Ricoeur, mas esta noética deve ser concebida, sobretudo, como
práxis, isto é, como uma atividade de reconfiguração material do mundo que é
imanente à matéria do mundo, e não apenas como sua representação reflexiva.
A mímesis é uma atividade do pensamento, mas este pensar é um pensar
material relativo ao corpo que reconfigura, em seu fazer, tanto os objetos do
mundo quanto os signos de sua reprodução imaginária. Por isto não se deve
confundir este efeito de produção de mundo com a noção de representação de
efeito. Esta última diz respeito ao efeito de sentido produzido pela
representação no receptor de uma mensagem qualquer, isto é, refere-se apenas
à transmissão indireta e mediada da experiência pela mímesis de
representação. É precisamente neste nível ou âmbito da atividade mimética,
em que o excesso de expressão (tanto no momento de sua geração e
transmissão quanto no momento de sua recepção) reconfigura os códigos e
modos da representação, que se situa a hermenêutica de Ricoeur.
a mímesis de produção, tal como teorizada por Costa Lima, não nega
ou suprime a mímesis de representação em suas duas vertentes (de aspecto e de
efeito), mas engloba-as como casos específicos de uma atividade mimética que
não se articula apenas no plano simbólico da sua expressão formal, pois
também se organiza no plano real do seu conteúdo material, vinculando-se
direta e imediatamente à experiência prática que os homens têm do mundo e
da história. Nossa hipótese é a de que a dupla articulação (de expressão formal
e conteúdo material) que caracteriza a mímesis de produção exige uma
mimetologia que ultrapasse os quadros semiológicos da hermenêutica e da
iconologia, por mais amplos e extensos que a exegese contemporânea os
considere. Não se trata mais de uma rejeição conceitual das propriedades
imitativas da figura (abstracionismo vs. figurativismo), nem de uma rejeição
do campo representacional como tal, em função de uma proposta estética anti-
130
artística. Não se pretende negar a representação ou superá-la (como se a
linguagem pudesse ser substituída pela telepatia ou coisa do gênero), mas sim
demonstrar de que modo a atividade mimética envolve sempre a dupla
articulação do plano representacional do sentido (a expressão “subjetiva”) ao
plano material do corpo, que suporta ou anima a expressão (seu conteúdo
“objetivo”).
A perspectiva de uma dupla articulação da atividade mimética é distinta
tanto do anti-representacionalismo radical tipicamente modernista,
identificado à abstração ou a certo experimentalismo restrito ao campo das
artes, como das tentativas mais recentes de expansão do estético para além do
campo semiótico da representação. Isso porque considera simultaneamente as
relações de significação, tanto icônicas como simbólicas, articuladas pelo
plano de expressão, e as relações de ordem a-significante e extra-
representacional que o plano material de conteúdo apresenta, que não estão
submetidas a qualquer exigência de correspondência entre significantes e
significados, furtando-se ao sentido da expressão e funcionando como possível
fonte de ruído em sua configuração. Fenômenos sociais diversos, como a
dança, o jogo ou a guerra, participam dessa ambiguidade própria à atividade
mimética. Sujeito e objeto de sua própria representação, a mímesis de
produção é um movimento que desloca e desvia simultânea e minimamente os
elementos formais e materiais que reconfigura em seu horizonte de
empiricidade, criando linhas de tensão entre estes diversos elementos que a
percorrem em todos os níveis e gradações - de expressão e de conteúdo, de
sentido e de não-sentido.
A este movimento inapreensível a uma concepção exclusivamente
imitativa ou narrativa da atividade mimética, denominamos cinemática da
mímesis, e o seu estudo nos permite reformular as relações entre imagem,
signo e objeto a partir de uma física do simulacro que fundamente a
experiência da mímesis no solo hilético da matéria, como fluxo
incessantemente reconfigurado, em suas formas de expressão, segundo vários
níveis ou graus distintos de formalização:
131
Une petite transposition suffit aux atomes pour créer
Corps ignés ou ligneux. C’est comme avec les mots
Quand nous déplaçons quelque peu les lettres,
Nous distinguons expressément ligneux et ignés.
228
Da mímesis como reprodução de cópias (imitação) ou representação
metafórica (narração), passamos à mímesis como produção de metamorfoses
duplamente articulada à forma da expressão e ao conteúdo da matéria (do
ígneo ao lígneo, do fogo à lenha...). A mímesis de produção subtrai-se aos
poderes da metáfora através da reconfiguração metamórfica, situando-se na
dupla articulação de um plano material de variação de intensidades com um
plano mental de afecção dos sentidos. Estes planos se reconfiguram
incessantemente em um movimento de disjunção ou cinemática, no qual sua
correspondência nunca é total, pois ora se estabelece na imagem que o signo
representa, ora se desvanece no simulacro gerado pelo próprio dispositivo
mimético. A cinemática da mímesis é o rastreamento das linhas de
reconfiguração que ligam e desligam incessantemente a variação das
intensidades à afecção dos sentidos (o plano material do conteúdo ao plano
mental da expressão), em formas mais ou menos instáveis que se estabelecem
apenas na dimensão temporal do devir.
A cinemática da mímesis situa-se, assim, na exata convergência
conceitual entre a mímesis de produção de Costa Lima e o que ele mesmo
denomina a “estética anti-representacional de Deleuze”. Tal convergência
pode soar, a princípio, problemática, pois Costa Lima se distancia da radical
recusa deleuziana do conceito de representação, na medida em que esta
implica a rejeição da mímesis como uma atividade inteiramente subsumida na
suposta identidade final dos signos com os objetos a que se referem:
Não é porque a representação de um corpo é preterida em favor da
experiência da sensação de viver um corpo que se elimina a experiência da
mímesis (...) a mímesis não tem a ver com a identidade de um referente, que
controlaria o produzido de maneira a fazê-lo semelhante a outros objetos
nomeáveis pelo mesmo referente, senão que se atém a haver no objeto
produzido algo passível de ser reconhecido. Desconjuntado, o referente se
228
Lucrécio, Da natureza (I, 910 e seg.): “Vês como podem os mesmo elementos, mudando um pouco,
criar fogo e madeira? É o mesmo que acontece com as palavras: mudando um pouco os elementos,
podemos nomear, com som diverso, ‘madeira’ e ‘fogo’” , in OS PENSADORES, Ed. Abril, São Paulo,
1988, p.42. A tradução brasileira, obviamente, não faz jus ao original latino como a francesa.
132
converte em referência. Para eliminá-la por completo será preciso que
significação alguma se fixe na mente do receptor (...) que a sensação provocada,
pondo entre parênteses qualquer significação mental, seja tão múltipla e fluida
que o receptor apenas sinta que está defronte de algo de que irradiam
intensidades.
229
Embora Deleuze reserve termos muito duros ao conceito de mímesis, o
caráter eminentemente produtivo que Costa Lima atribui a esta em sua
acepção originária nos permite aproximá-la da ontologia anti-representacional
deleuziana, sem neutralizar seu radicalismo epistemológico. Deleuze exclui o
conceito de mímesis de sua análise devido ao fato de a mímesis de
representação, em sua eterna reprodução da identidade conceitual de signo e
objeto, opor-se ao movimento real do devir e apresentar o duplo sob a forma
invariável do mesmo, atrelando a imagem ao signo através de uma iconologia
ou hermenêutica inteiramente decodificáveis. Deleuze postula o devir de
forma radicalmente anti-metafórica e anti-mimética, na medida em que
identifica a atividade mimética à própria representação metafórica. Mas a
insistência em um campo de referência que subjaz à própria ausência de
referentes não lhe é de todo alheia, a despeito de suas eloquentes diatribes
anti-miméticas. Assim, se a Lógica do Sentido situava a indecidibilidade
estrutural do simulacro entre o signo e seu referente, é na Lógica da Sensação
que a re-configuração simultânea de um plano formal de expressão
(significante) articulado a um plano material de conteúdo (referencial) passa a
ser pensada, sob a tônica do figural. A imagem, para aquém/além de suas
formas figurativas e abstratas, é entendida como o produto de uma re-
configuração incessante tanto de seus aspectos óticos (forma da expressão
visual, figurativa ou abstrata) como hápticos (conteúdo material do quadro,
marcas, linhas e traços concretos):
É como o surgir de outro mundo. Porque essas marcas e traços são
irracionais, involuntários, acidentais, livres, casuais. São não representativos,
não ilustrativos, não narrativos. Mas também não são significativos nem
significantes: são traços a-significantes
230
.
229
Costa Lima, Mímesis: desafio ao pensamento, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000, pp.
355-356.
230
Deleuze, Gilles: Francis Bacon - logique de la sensation, Éditions de la différence, Paris, p.66. Minha
tradução.
133
O próprio Costa Lima aponta aqui para a possibilidade de uma
aproximação entre a lógica deleuziana do figural e a sua mímesis de produção.
Ambas situam-se em um quadro de expressão (verbal e visual) em que a
figura ainda não é figurativa e a diferença ainda não está inteiramente
circunscrita à identidade. Ambas postulam um momento gerativo (para a
escrita e para a pintura) em que o motivo literário/pictórico ainda não é
narrativo e a narrativa ainda não é o motivo da imagem verbal/visual.
Desassociar o conceito de mímesis da representação por signos ou
conceitos exige, portanto, a desvinculação do conceito de imagem de toda
iconologia imitativa ou hermenêutica narrativa. O figural produz a imagem
como modulação direta da mão ou do instrumento sobre a matéria, e não
como projeção retrospectiva de uma forma pré-determinada sobre um suporte
material pré-definido. Esta operação não exclui a possibilidade de
representação visual da figura, como no caso do abstracionismo, pois a
atividade de produção mimética do figural (mímesis de produção) pode
transformar os simulacros que emergem constantemente do plano material (de
conteúdo) em figuras visualizáveis como formas para a significação Estas
podem ser submetidas à representação simbólica pela ação do significante
(mímesis de representação), convertendo-se, por sua vez, em signos visuais
inscritos em determinada linguagem.
Podemos distinguir, portanto, três linhas de reconfiguração expressiva
da atividade mimética
231
: linhas de representação (de aspecto) que visam à
imitação e reprodução de cópias de um objeto, baseadas na correspondência
estrita da relação significante/significado e na codificação descontínua e
discreta do seu signo, com apresentação “analógica” do objeto por
isomorfismo. A imagem aqui é entendida como símbolo visual ou alegoria,
em que a correspondência entre forma e conteúdo, figura e motivo, deve ser
inteiramente decodificada. A convenção subordina a semelhança, assim como
o símbolo subordina o ícone. Iconografia, sinalética e informática produzem
tais representações no plano formal de expressão, e a mímesis de simulação é
231
Para uma aplicação desta tripartição ao campo da literatura, ver “1874 - Trois nouvelles, ou qu’est-ce
qui s’est passé?”, in Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les
Éditions de Minuit, Paris, 1980, pp. 235-252.
134
o exemplo perfeito de uma falsa mímesis em que a produção analógica de
imagens está inteiramente inscrita nos limites do seu código de formalização.
Linhas de representação (de efeito) que conduzem a narrativa como a
representação de um motivo (ou mythos), baseadas na correspondência
flexível da relação significante/significado e na codificação contínua e
analógica do signo, com apresentação do objeto por analogia figurativa ou
metafórica (semelhança produtora). A imagem é considerada como uma
figura em que a correspondência entre forma e conteúdo deve ser sujeita à
interpretação: a semelhança subordina a convenção e o ícone sobrepõe-se ao
símbolo. Iconologia e hermenêutica são as esferas de produção de sentido
propriamente imagético no plano formal de expressão, e a fotografia moderna
é, provavelmente, o melhor exemplo de linguagem eminentemente analógica,
isto é, propriamente visual, da imagem.
Linhas de produção (mimética) que deslocam e dispersam corpos e
formas na síntese disjuntiva de conteúdo material e expressão formal,
ignorando qualquer noção de limite ou de quadro formal para a inscrição
codificada de objetos por analogia. A imagem é subtraída do simulacro como
índice de uma operação alheia às regras da convenção e da semelhança. A
cinemática situa-se no plano material de conteúdo que produz simulacros
independentemente de qualquer simulação codificável, e o cinema nos
permite pensar esse nível subterrâneo da mímesis a partir de um dispositivo
que não pode mais se reduzir aos seus aspectos puramente imitativos,
narrativos, ou mesmo, visuais.
A cinemática da mímesis nos permite, portanto, repensar o cinema como
um dispositivo mimético que abarca todas as possíveis formas
cinematográficas de linguagem (gêneros e estilos), com todos os seus meios
possíveis de expressão (visuais, verbais, sonoros), sem ser determinado por
nenhuma delas. Para superar a semiologia do cinema, no entanto, a
mimetologia necessita de uma pragmática da experiência cinematográfica que
conta daquilo que, no filme, participa mimeticamente desta experiência
sem se confundir com os signos de sua representação.
135
Pragmática da experiência cinematográfica
vimos, no primeiro capítulo, como Deleuze, em seus livros sobre o
cinema, articula a imagem e o tempo de forma resolutamente não-
representacional, remetendo o signo do tempo narrado ao imaginário da
representação cinematográfica e vinculando o controle intervalar do instante a
um plano propriamente cinemático de duração do evento fílmico, não-
condicionado pelas formas consagradas de representação cinematográfica do
tempo e da história. Na medida em que a questão do estatuto ontológico da
imagem e de suas relações com a visualidade nos remete à disjunção entre o
plano cinemático da duração e o plano cinematográfico da representação do
tempo, isto é, à sua expressão narrativa simbólica, todo o problema das
relações entre a mímesis cinematográfica e a analogia como pensamento
mimético deve ser repensado. Trata-se de conceber um pensamento analógico
capaz de subtrair-se à força icônica do significante visual, e de uma
cinemática da mímesis em que a visualidade é apenas um dos muitos planos
incessantemente re-configurados pela experiência mimética. A análise
deleuziana não resulta, porém, de uma aplicação arbitrária e esquemática de
um suposto “modelo bergsoniano” à história do cinema, mas sim de uma
reavaliação ontológica do estatuto do tempo através da noção do devir,
desvinculando duração e narrativa para revelar o plano material do evento,
aliada a uma reavaliação ontológica do estatuto da imagem através da noção
do figural, desvinculando movimento e visualidade para revelar o simulacro
como conteúdo cinemático do plano cinematográfico.
Para Deleuze, o cinema reorganiza o material a-significante recolhido
no mundo de maneira significante, mas não necessariamente narrativa. A
narratividade assume uma função sígnica derivada: “A narrativa é uma
consequência da aparição das imagens em si mesmas e em suas combinações
diretas, nunca um dado”.
232
Se as grandes formas narrativas baseiam-se em
esquemas sensório-motores, cada vez mais elaborados, de encadeamento
espacial, projetando-se sobre uma dimensão temporal universal, abstrata e
232
Deleuze, Gilles: Cinéma 2 – L’image-temps, Les Éditions de Minuit, Paris, 1985, p.40. Minha
tradução.
136
uniforme cuja medida é conferida pela montagem
233
, novas formas de
expressão cinematográfica distendem e subvertem tais esquemas, deslocando
gradativamente a ênfase narrativa do movimento do objeto para a duração do
plano
234
.
Daí a necessidade de uma pragmática capaz de abarcar a experiência
cinematográfica para além da questão da imagem, em um “ensaio de
classificação das imagens e dos signos
235
a ser estabelecida em relação a
qualquer tipo de imagem
236
e em que os signos também se reconfiguram à
medida que as imagens agem e reagem umas sobre as outras, no plano a-
significante da matéria em movimento:
A imagem-movimento é a própria matéria, como o demonstrou Bergson.
É uma matéria não formada linguisticamente, embora o seja semioticamente, e
constitui a primeira dimensão da semiótica. Com efeito, as diferentes espécies
de imagens que se deduzem necessariamente da imagem-movimento (...) são os
elementos que fazem desta matéria uma matéria sinalética. E os signos,
considerados em si, são os traços de expressão que compõem essas imagens,
combinando-as e recriando-as sem cessar, portados ou carregados pela matéria
em movimento.
237
Se uma pragmática da experiência cinematográfica não pode excluir a
grande complexidade de reconfigurações semióticas que uma imagem é capaz
de articular, tanto a partir de sua iconicidade potencial quanto através dos
traços espaço-temporais que apresenta em sua indicialidade, deve avançar
para além de uma mera taxonomia estática e tipológica dos signos no cinema,
demonstrando sua articulação recursiva a toda e qualquer experiência “real”
ou “mental”. Deleuze desenvolve esta pragmática a partir da semiótica de
Peirce e sua tripla tricotomia, articulada em dois eixos ou planos. O primeiro
diz respeito às fases do processo de significação ou semiose (representâmen,
objeto, interpretante), enquanto o segundo refere-se às categorias
fundamentais de toda e qualquer experiência (terceiridade, secundidade,
primeiridade).
233
« C’est le montage lui-même qui constitue le tout, et nous donne ainsi l’image du temps (...) le temps
est nécessairement une représentation indirecte, parce qu’il découle du montage qui lie une image-
mouvement à une autre ». Idem, p. 51.
234
« (...) Le mouvement ne doit pas être perçu dans une image sensori-motrice, mais saisi et pensé dans
un autre type d’image. L’image-mouvement n’a pas disparu, mais n’existe plus que comme la première
dimension d’une image qui ne cesse de croître en dimensions. » Idem, p. 34.
235
Cinéma 1 – L’image-mouvement, Les Éditions de Minuit, Paris, 1983, p. 7. O grifo é meu.
236
« Peirce part de l’image, du phénomène ou de ce qui apparaît », in Cinéma 2 – L’image-temps, Les
Éditions de Minuit, Paris, 1985, p. 45.
237
Idem, p.49. Minha tradução.
137
Em Peirce, as tradicionais noções estáticas de significante, significado e
referência são substituídas por uma semiótica recursiva que é postulada em
termos puramente gicos e formais. A semiose é descrita, a partir de sua
própria consistência interna, como um processo em que “algo, sob certo
aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém
238
”. Neste
processo triádico, um representâmen é postulado como condição de
possibilidade para a significação. Este é o termo necessariamente primeiro de
uma relação que também implica como termos necessários o objeto da
representação (termo segundo) e um interpretante dos seus possíveis
significados (termo terceiro). Assim, o primeiro termo de um possível
processo de significação é o representâmen, que denotará um objeto (segundo
termo) para um possível interpretante (terceiro termo) que poderá, por sua
vez, tornar-se o representâmen do mesmo objeto para outro interpretante
possível, recursivamente.
Um signo, por outro lado, é definido como um representâmen que
realiza efetivamente a denotação de um objeto para uma constelação de
possíveis interpretantes: “Um signo é um representâmen do qual algum
interpretante é a cognição de certo espírito”.
239
O processo de semiose
envolve, assim, uma pragmática da experiência em que o representâmen,
como possível incorporador de significados, é remetido a um plano ôntico de
representamina, entendidos como entes primeiros quaisquer, anteriores a
qualquer significação: “Um signo é um representâmen cujo interpretante é um
espírito. Possivelmente, haverá representamina que não sejam signos”.
240
Se
o representâmen, em sua primeiridade pré-significante, é mero traço ou
qualidade ainda não associada à denotação de um objeto, como signo é
sempre representâmen de um objeto para um interpretante. Já o interpretante
nunca se confunde com o intérprete ou com a atividade de interpretação, pois
equivale ao signo enquanto terceiro termo de uma relação triádica da qual o
representâmen é o primeiro termo e o objeto, o segundo.
238
Peirce, Charles S.: Semiótica e filosofia – textos escolhidos, Ed. Cultrix, São Paulo, 1975, p.94.
239
Peirce, Idem, p.100. Ver também, Pinto, Julio: 1,2,3 da Semiótica, Ed. UFMG, Belo Horizonte, 1995,
p.46.
240
Peirce, Idem, p. 115.
138
Trata-se de uma tricotomia categorial da experiência: deve-se
compreender o terceiro termo não apenas como o sucessor dos dois primeiros,
mas como seu gerador, de tal forma que o terceiro sempre os conterá em si e o
segundo sempre conterá o primeiro. O signo propriamente dito pode se
manifestar em uma relação genuinamente triádica:
O terceiro é, na verdade, a conexão entre a qualidade e o fato, entre o
primeiro e o segundo. Assim, o princípio é um primeiro, o fim um segundo, e o
meio um terceiro (...) considerar algo como um terceiro, portanto, é considerar
esse algo como um signo.
241
A dupla articulação das três categorias da experiência às três fases do
processo de significação permite a obtenção de uma semiótica combinatória
dividida em três ramos de estudo (gramática, lógica e retórica) que geram
recursivamente dez classes de signos, conforme o quadro abaixo
242
:
Categorias da
experiência/Semiose
(gramática)
(lógica)
(retórica)
Representâmen
(primeiro)
Qualisigno Ícone Rema
Objeto
(segundo)
Sinsigno Índice Dicisigno
Interpretante
(terceiro)
Legisigno Símbolo Argumento
Segundo Peirce, a gramática semiótica é uma gramática pura ou
especulativa
243
. Trata-se de pensar o fundamento do processo de significação
sem nenhuma referência a seus possíveis objetos, para demonstrar como um
representâmen pode ser capaz de incorporar um significado qualquer para um
possível interpretante. A primeiridade, entendida como uma categoria da
241
Pinto, Julio: 1,2,3 da Semiótica, Ed. UFMG, Belo Horizonte, 1995, p. 57-58.
242
Ver as dez classes de signos em Peirce, C.S.: Idem, pp. 93-95 e também Pinto, Julio: Idem, p. 59.
243
Peirce, Idem, p.94.
139
experiência, apresenta o signo como pura qualidade, como mera concretude
ou como lei abstrata, sem ainda referi-lo aos possíveis objetos de sua
denotação. Assim, um qualisigno é apenas uma possibilidade de significação
ainda não efetivada, idéias ou sensações entendidas como pura intuição não
elaborada pela mente ou pelos sentidos. Para efetivar-se, um qualisigno deve
necessariamente manifestar-se em um sinsigno qualquer, ou seja, em um
objeto ou acontecimento real que pode assumir, ou não, valor de signo para
um interpretante qualquer. Por fim, certos sinsignos (embora não todos)
acabam por assumir valor de lei para certos interpretantes, ou seja, assumem
os mesmos significados possíveis nas reatualizações concretas de seus
representamina. Quando um sinsigno é regido por um legisigno qualquer,
suas sucessivas reatualizações são denominadas réplicas do legisigno em
questão
244
.
Cabe à lógica semiótica a tarefa de mapear epistemologicamente as
relações de denotação que os signos podem estabelecer com os seus objetos:
trata-se da “ciência formal das condições de verdade das representações”.
245
encontramos a tricotomia ícone/índice/símbolo quando o processo de
significação se confronta com a exterioridade objetiva da experiência. De
fato, são as formas lógicas de aparição dos signos, em sua relação de
denotação com os objetos que representam, sem que se levem em conta ainda
as possíveis conotações que um mesmo signo pode apresentar para diferentes
interpretantes. A tricotomia categorial da experiência é repensada aqui não a
partir de uma gramática intrínseca ao processo de significação, mas em sua
necessária relação com os objetos da experiência. Isso confere à semiótica
peirceana um caráter epistemologicamente mais aberto àquilo que escapa à
representação do que as semiologias de corte mais estruturalista. Fundamental
aqui é a categoria de secundidade:
Qualquer coisa é um segundo na medida em que existe, pois existir
significa entrar em relação com outro. Em outras palavras, para existir, algo
deve ser um objeto para algum sujeito, o que significa que algo é um segundo
enquanto participante de uma relação diádica
246
.
244
Idem, p. 100.
245
Peirce, Idem, p. 95.
246
Pinto, Julio: 1,2,3 da Semiótica, Ed. UFMG, Belo Horizonte, 1995, p. 47.
140
Em relação à experiência cinematográfica, importa salientar aqui de que
modo tal tricotomia não se deixa necessariamente determinar pela questão da
imagem ou da visualidade, estando vinculada à emergência efetiva de
qualquer tipo de signo ou de significação, visual ou não, ou seja, aos sinsignos
em geral.
Quanto à retórica semiótica, esta se ocupa precisamente das formas de
encerramento do circuito semiótico na representação, determinando os graus
de precisão com que um signo é capaz de informar seus interpretantes acerca
de determinado objeto. Rema, proposição e argumento percorrem
recursivamente a tricotomia categorial da experiência, da idéia mais vaga que
se pode ter ou expressar acerca de uma experiência qualquer (o rema ou
função proposicional), passando por proposições relativas a determinados
objetos especificáveis da experiência (o dicisigno ou proposição), até a
formulação de leis abstratas sobre objetos genéricos de experiências
hipotéticas (argumentos) que podem, por sua vez, ser dedutivos, indutivos ou
abdutivos.
Embora ciclicamente recursivo, o processo de semiose não é
necessariamente fechado ou circular. Eis o porq de a tabela semiótica de
Peirce não ser apenas uma taxonomia geral dos signos. Se a forma geral da
representação é sempre triádica, esta, entretanto, nunca é considerada como
dada, pois seu horizonte de referências se modifica constantemente a partir de
uma multiplicidade infinita de representamina potencialmente significantes. É
precisamente esse caráter probabilístico da semiótica peirceana que permite
sua aplicação consistente ao problema das relações entre as imagens e os
signos. Se a terceiridade se apóia nas diversas possibilidades cognitivas que
um signo assume para seu(s) interpretante(s) e a secundidade está baseada na
exterioridade do objeto em relação ao seu signo, a primeiridade é
(...) aquilo que está mais próximo, em termos de signo, do objeto ao qual
o signo se refere. Em outras palavras, o primeiro é aquilo que está mais próximo
do continuum no qual o signo vai inscrever sua diferença
247
.
247
Pinto, Julio: Idem, p. 42.
141
O signo como representâmen, isto é, como entidade objetiva do mundo,
situa-se no mesmo plano material dos objetos que representa: “um signo tem
dois objetos, seu objeto como é representado e seu objeto em si mesmo”.
248
Não um horizonte de referências pré-determinado a partir do qual
interpretar os signos como ícones, índices ou símbolos. É, antes, o próprio
horizonte de referências que pode ou não ser “imantado” pelo processo de
semiose, modificando-se objetivamente de acordo com os próprios
interpretantes que gera, em um processo auto-referencial que se aproxima da
idéia de mímesis de produção tal como exposta por Costa Lima. Além disso, se
a passagem da primeiridade à secundidade ressalta a ambivalência do estatuto
ontológico do objeto no processo de semiose, a passagem da secundidade para
a terceiridade e em xeque a concepção tradicional de código como uma
combinatória fechada de regras e elementos:
Em sua grande teoria semiológica, Peirce define, a princípio, os ícones
pela semelhança e os mbolos, por uma regra convencional. Mas ele reconhece
que os símbolos convencionais comportam ícones (em virtude de fenômenos de
isomorfismo), e que os ícones puros extravasam largamente a semelhança
qualitativa, e comportam diagramas. Mas o que é um diagrama analógico por
oposição a um código digital ou simbólico, é difícil de explicar.
249
Pode-se afirmar, portanto, que a semiose de Peirce implica a
representação sem garanti-la, que sua recursividade apresenta a
possibilidade permanente de degeneração do terceiro em segundo e do
segundo em primeiro, ou seja, da geração de hipossemas (hipo-ícones e sub-
índices)
250
que não chegam a se constituir como réplicas de legi-signos,
símbolos ou argumentos, pois não chegam a representar um objeto para um
interpretante, sendo considerados apenas em si mesmos. Daí o fato de que não
se possa falar em ícones e índices propriamente ditos, mas somente em signos
icônicos e signos indiciais, ou seja, em representações baseadas na
semelhança ou na contiguidade, ao mesmo tempo em que tal raciocínio
pressupõe uma primeiridade da semelhança e da contigüidade como
248
Peirce, Idem, p.143.
249
Deleuze, Gilles, Francis Bacon - logique de la sensation, Éditions de la différence, Paris. pp.75-76.
Minha tradução.
250
Ver Pinto, Julio: 1,2,3 da Semiótica, Ed. UFMG, Belo Horizonte, 1995, pp.19-20 e Peirce, Charles S.:
Semiótica e filosofia – textos escolhidos, Ed. Cultrix, São Paulo, 1975, pp. 115-126.
142
qualidades em si do representâmen, isto é, do signo entendido como objeto
em sua realidade material sensível.
É nesta oscilação hipossêmica entre o primeiro e o segundo, entre
representâmen e objeto, que se localiza a noção peirceana de diagrama
analógico (ou sinsigno icônico), obtida a partir da aplicação recursiva da idéia
de ícone à categoria da primeiridade. Segundo Peirce, três tipos de hipo-
ícone que, considerados em si mesmos, escapam a qualquer tipo de
significação propriamente dita, icônica ou simbólica. O ícone como
qualissigno ou ‘imagem’ é uma intuição não expressa, evanescente e sem
forma, que ainda não se refere a nenhum objeto de denotação. Trata-se de
uma sensação (de ordem não necessariamente visual) que se produz na
imediaticidade pré-significante do representâmen, ou seja, no plano material
do simulacro
251
.
o ícone como sinsigno é o ‘diagrama’ propriamente dito, a expressão
direta de uma relação analógica (no sentido não-metafórico do termo) entre
dois objetos distintos que, por uma semelhança fortuitamente produzida,
podem ser semiotizados por um terceiro objeto (o interpretante) ou não.
Apenas o ícone entendido como legi-signo, isto é, a ‘metáfora’, pode
inscrever a imagem no circuito semiótico da representação (propriamente
icônica ou totalmente simbólica), gerando diagramas e figuras por analogia
metafórica, isto é, pela produção codificada de semelhanças interpretáveis
através de um código/repertório de signos:
(...) dizemos que a semelhança é produzida quando ela aparece
bruscamente como o resultado de relações totalmente distintas daquelas que ela
deve reproduzir: a semelhança aparece então como o produto brutal de meios
não-semelhantes. (...) tornar semelhante por meios não-semelhantes. Neste
último tipo de analogia, a semelhança sensível é produzida, mas, em vez de o
sê-lo simbolicamente, ou seja, por intermédio do código, ela o é
“sensualmente”, pela sensação. É a este último tipo eminente, em que não
semelhança primária ou código preliminar, que se deve reservar o nome de
analogia estética, igualmente não figurativa e não codificada
252
.
Devemos distinguir a analogia metafórica, icônica ou representacional,
que submete a imagem à figuração através da semelhança, do diagrama
251
Sobre as relações entre qualisigno, imagem e simulacro, ver Pinto, Julio: Idem, pp.26-27.
252
Deleuze, Francis Bacon - logique de la sensation, Éditions de la différence, Paris, p.75. Minha
tradução.
143
analógico, que produz formas para a expressão a partir da emergência de um
plano material de conteúdo a-significante. O diagrama, entendido como um
campo dialógico e relacional singular que traça linhas de força e delineia
movimentos constantes entre os planos de reconfiguração formal e material da
imagem, apresenta um caráter analógico sem submeter-se à semelhança,
subtraindo-se aos códigos representacionais que é capaz de gerar. O diagrama
não é simples projeção de um plano sobre o outro, mas transdução de um
plano em outro. Eis porque a analogia aqui não é meramente metafórica, mas
metamórfica, operando a dupla articulação de conteúdo e expressão, matéria e
forma, sem a presença de modelos formalizados e consistentes para a sua
reprodução. São as linhas e traços que o diagrama produz em sua incessante
reconfiguração do plano de conteúdo que se constituem na cinemática da
mímesis ou, em termos deleuzianos, no figural.
O diagrama analógico é quase-imagem, pois está aberto para a
iconicidade propriamente analógica e para a simbolização figurativa do
código, mas é também quase-objeto, na medida em permanece entranhado na
materialidade que o conforma. Não se trata aqui de um processo de
modelização da imagem pelo objeto ou vive-versa, mas de sua modulação
recíproca. A imagem como figura não é, pois, simplesmente reproduzida a
partir de certos códigos formais de representação. Fulgura, antes, no próprio
devir metamórfico que conjuga disjuntivamente a forma de sua expressão
(quase-imagens) ao conteúdo de sua matéria (quase-objetos).
Um bom exemplo cinematográfico desta modulação ciclicamente
recursiva das imagens pelos signos e vice-versa provém do filme Kingdom of
Heaven (Cruzada, 200?), de Ridley Scott. Trata-se de um plano curto, de uns
cinco segundos, que percorre de modo contínuo a “tabela semiótica” de Peirce,
desdobrando-se precisamente de acordo com sua lógica dedutiva
253
. Um brilho
intenso e desfocado, que ocupa a totalidade da tela (e que logo se percebe
provir do sol), recua diante dos olhos do espectador em um movimento lento e
contínuo de zoom out, revelando uma cruz levada por um grupo de cavaleiros
cristãos em sua travessia do deserto. Este plano começa como um qualisigno,
253
Para os dez tipos de signo, ver Peirce, Charles S.: Semiótica e filosofia – textos escolhidos, Ed. Cultrix,
São Paulo, 1975, pp.105-109.
144
que é a ofuscante sensação de brilho em si mesma, antes de ser decodificada, e
que se materializa em um sinsigno icônico que figura, ainda desfocado diante
de nossos olhos, uma forma vagamente geométrica que não se define
plenamente como figurativa ou abstrata o próprio diagrama analógico como
que flagrado por um átimo de segundo. O crucial momento de definição do
foco gera um sinsigno indicativo remático, que aponta para a forma que reflete
o brilho sem ainda nomeá-la. A combinação da sensação de brilho com a
forma de um objeto qualquer produz um sinsigno dicente do “brilho refletido
por um objeto”, que pode ser decodificado como o legi-signo icônico de uma
cruz brilhante. Ao final do movimento de zoom out, fixamos nossa atenção na
cruz não mais como simples réplica do legi-signo /cruz brilhante/, mas como
aquela cruz determinada, que reflete o brilho do sol em determinada situação,
ou seja, como um legi-signo indicativo remático de que se carrega uma cruz
em determinado lugar com determinada finalidade. O sentido desta ação é um
legi-signo indicativo dicente de que “um grupo de cruzados está em missão”, e
a noção geral de “cruzada”, que intitula o filme em sua versão brasileira, é
expressa aqui como o mbolo remático (o substantivo comum /cruzada/) que
imanta a narrativa. A relação deste plano com os planos anteriores e
posteriores permite ao espectador decodificá-lo, enfim, como um símbolo
dicente ou proposição ordinária de que “aquela cruz específica é carregada por
aqueles cavaleiros naquele lugar e naquele momento preciso da narrativa”.
Com isto, apenas o argumento propriamente dito, isto é, o símbolo de
uma proposição geral, não está contido neste plano, muito embora possa
facilmente ser daí deduzido, sob a fórmula: “Todos os cavaleiros que portam
uma cruz são cristãos/esse cavaleiros portam uma cruz/esses cavaleiros são
cristãos”. De maneira geral, os argumentos indutivos e abdutivos são muito
mais utilizados pelo cinema do que os argumentos dedutivos, pois multiplicam
o número de possibilidades prováveis de significação e instigam a atenção e a
curiosidade do espectador, embora haja vários exemplos possíveis de
encadeamento cinematográfico de argumentação dedutiva. Um dos seus
exemplos mais eloquentes talvez seja o curta-metragem Ilha das Flores, de
Jorge Furtado (198?).
145
Em sua articulação de uma ontologia material da imagem e do tempo
(Bergson) com uma semiótica capaz de abarcar a expressão não-
representacional (Peirce), Deleuze pensa o dispositivo cinematográfico como
um dispositivo analógico de modulação simultânea e recíproca da matéria à
forma e do conteúdo à expressão. Seu conceito de imagem não está mais
necessariamente submetido às codificações icônicas e simbólicas que
necessariamente a determinam como um legi-signo (isto é, como legiferante
do sentido de uma visão ou de uma metáfora) e não é mais exclusivamente
visual (sem tornar-se por isso completamente abstrato ou metafórico), pois se
embasa nas propriedades figurais do diagrama analógico que, consideradas
em si mesmas, podem se aplicar a qualquer meio material de expressão e não
conduzem necessariamente à estabilização do processo de significação.
Deleuze postula uma “zeroidade” pré-significante da imagem entendida como
matéria, isto é, como o plano de um conteúdo material prévio a qualquer
inscrição de traços ou linhas de expressão
254
.
A imagem-percepção é situada por Deleuze nesse plano, enquanto suas
derivações (imagem-afecção, imagem-ação e imagem-relação) correspondem
à tricotomia categorial da experiência em Peirce. Assim, se a primeiridade
repousa sobre a iconicidade analógica da imagem, correspondendo à imagem-
afecção em sua apreensão sensível e não-intelectualizada do objeto, a
secundidade corresponde ao caráter indicial da imagem e à imagem-ação, com
seu jogo de ações e reações sucessivas de um objeto sobre o outro. A
terceiridade corresponde à imagem-relação, em que a imagem devém símbolo
ao representar um signo para outro signo. Mas como Deleuze também prevê
estágios intermediários de passagem entre estes três tipos de imagem-
movimento (a imagem-pulsão e a imagem-reflexão), além de deduzir três
tipos diferentes de signo por tipo de imagem (um signo gerativo e dois signos
antitéticos de composição), acaba por desdobrar e aprofundar a tabela
semiótica de Peirce, deduzindo novos “casos” ou tipos de relação significante,
modificando o sentido e a função de outros.
Pode-se resumir o resultado geral da dupla articulação entre a semiótica
de Peirce (plano de expressão) e a ontologia da imagem de Bergson (plano de
254
Ver Deleuze, Gilles: L'Image-Temps, Les Editions de Minuit, Paris, 1985, p.47.
146
conteúdo) da seguinte forma
255
: o grau zero é a própria matéria em
movimento e corresponde à potência a-significante do simulacro. Apenas
quando esta é recursivamente modulada na dupla articulação de conteúdo e
expressão, pode ser descrita como imagem-percepção {dicisigno, reuma,
fotograma}, isto é, como a percepção de uma percepção apta a gerar distintas
séries de signos conforme a natureza das relações que estabelece com outras
imagens. Estas relações são geradas (ou traçadas) de acordo com a tricotomia
categorial da experiência em Peirce: à primeiridade da imagem-afecção
{ícone de qualidade, ícone de potência, qualisigno} corresponde a
representação icônico-analógica dos objetos do mundo, enquanto a imagem-
pulsão {ídolos, fetiches, sintomas} intermedia a passagem gradativamente
contínua para a secundidade da imagem-ação {sinsigno, índice, traço} como
representação analógico-metafórica de um myhtos ou intriga. Finalmente, a
imagem-reflexão {figura de atração, figura de inversão, discurso} permite a
passagem para a terceiridade da imagem-relação e suas convenções
representacionais marcadas por figuras abertamente simbólicas ou alegóricas
{marca, destaque, símbolo}
256
.
Deduzem-se, assim, dezoito elementos e uma vasta combinatória de
imagens e de signos, que não esgota em absoluto o alcance da articulação
Bergson/Peirce que Deleuze propõe, pois não se trata de uma taxonomia
fechada de signos exclusivamente visuais, mas de uma lógica semiótica
aplicada ao conceito bergsoniano de imagem, isto é, à imagem como matéria
em movimento ou imagem-movimento. Esta gica não se constitui como
uma semiótica fechada porque é gerativa, ou seja, porque postula a constante
modulação do signo pela imagem e da imagem pelo signo, ou, em outras
palavras, de um plano material de conteúdo (a imagem como um conteúdo
material aquém da representação visual) por um plano mental de expressão (o
signo como expressão de uma rede cognitiva de relações mentais) e vice-
versa.
Não se pode, portanto, compreender o componente gerativo da gica
semiótica como a aplicação prática de uma espécie de “linguagem universal
255
Os signos gerados por cada tipo de imagem-movimento aparecem entre colchetes.
256
Ver Deleuze, Gilles: L'Image-Temps, Les Editions de Minuit, Paris, 1985, especialmente as pp.45-50.
147
do pensamento” à la Witgenstein, o que faria da pragmática o mero campo
empírico de constatação da validade epistemológica das relações
estabelecidas por um signo. Trata-se de pensar uma lógica semiótica
propositalmente incompleta, na medida em que constitutivamente aberta à
constante modulação do pensamento pelo mundo (expressão vs. conteúdo) e
vice-versa.
Neste processo recíproco de modulação, tanto novos tipos de
imagem quanto novas possibilidades de significação podem ser gerados, e é
por isto que a análise deleuziana não se esgota neste ponto e passa a
demonstrar como a imagem-tempo (e seus signos) emerge a partir das formas
estética e historicamente consagradas da imagem-movimento: “Por que Peirce
pensa que tudo termina com a terceiridade, com a imagem-relação, e que não
há mais nada além?
257
” O modo estritamente genético com que Deleuze
revisita a história do cinema pressupõe sempre a possibilidade de se traçar o
diagrama abstrato da própria mímesis cinematográfica, entendida como a
expressão mais avançada da própria atividade mimética como tal. Se a teoria
do cinema necessita de uma cinemática da mímesis, sua história deve se
constituir, necessariamente, como uma mimetologia prática em que a própria
temporalidade se revela como o objeto último da experiência cinematográfica.
Deleuze reconhece aqui certa hesitação do próprio Peirce em relação ao
caráter noético de sua lógica semiótica
258
, isto é, ao fato de que não se trata de
construir um regime universal de signos ou da significação, mas sim de
apreender pragmaticamente o processo de semiose a partir das relações
probabilísticas instáveis e concretas que o pensamento pode produzir entre
representamina, objetos e interpretantes do mundo. Isto implica negar a
possibilidade de uma linguagem natural ou universal do cinema, sem negar o
fato de que diferentes tipos de linguagem (verbal, visual ou musical) estão
presentes no espetáculo cinematográfico. O componente gerativo do
dispositivo cinematográfico é potencialmente produtor de múltiplas
linguagens e sentidos, pois
(...) um autor de filmes o dispõe de um dicionário, mas de uma
possibilidade infinita; ele não saca os seus signos (...) de uma cartola, ou de um
257
Idem, p.49. Minha tradução.
258
“Peirce n’aurait donc pas maintenu assez longtemps sa position de départ, il aurait renoncé à constituer
la sémiotique comme ‘science descriptive de la réalité’», Idem, p.46.
148
saco, mas do caos em que estes são apenas simples possibilidades ou sombras
de comunicação mecânica e onírica.
259
Esta era a posição do poeta/cineasta Pasolini, que polemiza
abertamente com os estudos semiológicos de Metz e Umberto Eco em
L’Expérience hérétique, livro fundamental para a compreensão das posições
de Deleuze acerca das relações entre semiótica e cinema. Para Pasolini, se os
objetos (óticos e acústicos) de um filme foram diretamente retirados do
mundo, são objetos reais do mundo e, portanto, só se pode falar em linguagem
cinematográfica se esta for identificada ao próprio mundo real das coisas. A
poética do filme é a cinemática das coisas, entendidas em seu sentido mais
imediato e pragmático, que a significação é postulada como o resultado
derivado de um processo não lingüístico (embora semiótico) de produção de
sentido: o cinema entendido como um ‘cinema de poesia’ capaz de romper os
limites estritamente representacionais da narrativa cinematográfica
convencional.
Trata-se de uma poética da mímesis cinematográfica identificada ao
discurso indireto livre. A partir da mobilidade virtualmente infinita da câmera
cinematográfica - verdadeiro “shifter” dos diversos pontos de vista e instantes
de uma ação -, Pasolini extrai sua aproximação entre o discurso indireto livre
literário e o cinematográfico, pois a ambiguidade inerente ao ponto de visto
narrativo da câmera (ora subjetivo ora objetivo, ora ambos ao mesmo tempo,
ora nenhum dos dois) está pressuposta em sua relativa exclusão do cinema
clássico-narrativo tradicional. O cinema de poesia moderno apenas desvela
uma potencialidade inerente ao cinema como dispositivo mimético: a de uma
síntese disjuntiva em permanente mudança da primeira para a terceira pessoa,
do sujeito para o objeto e do “alto” para o “baixo”, em termos sócio-
linguísticos.
A suposta ingenuidade semiológica desta posição é rigorosamente
sustentada por Deleuze a partir da pragmática de Peirce: o potencial poético
do cinema é o potencial propriamente semiótico de um dispositivo mimético
“maldito”, capaz de modular diretamente o conteúdo material do mundo para
259
Pasolini, Pier Paolo: L’expérience hérétique – langue et cinéma, Payot, Paris, 1976, p.138. Minha
tradução foi feita a partir da versão francesa.
149
re-configurar suas formas de expressão, sem a necessária intenção explícita de
produzir sentido a partir de semelhanças ou metáforas pré-codificadas. Em
vez de referir-se à história do cinema apenas a partir de sua logicidade interna
(como o seu componente gerativo), o componente transformacional desta
pragmática deve, portanto, pensar o cinema em suas relações com a história,
ou seja, não só como mímesis, mas, sobretudo, como práxis. Passa-se então da
mímesis praxeos, tal como pensada por Ricoeur, ao cinema como uma práxis
da mímesis em que o seu próprio advento histórico como um dispositivo
mimético deve ser analisado em função dos seus efeitos sobre a passagem do
tempo e a experiência da história. Para que a dupla articulação de expressão e
conteúdo permita uma abordagem simultânea do componente gerativo da
história do cinema e do componente transformacional que preside a suas
relações com a história, uma pragmática da experiência cinematográfica deve
ser capaz de repensar esta dupla articulação a partir de uma discussão da
noção de dispositivo, desvinculando-a do conceito de modelo. Coerente com
sua recusa apriorística do conceito de mímesis, Deleuze prefere usar o
conceito de ‘diagrama analógico’ (semiologicamente mais técnico e, portanto,
menos carregado de uma tradição artística e estética que insiste em inscrever a
atividade mimética no duplo registro da imitação e da narrativa) para pensar o
modo como as imagens e os signos, no cinema, se metamorfoseiam
incessantemente na dupla articulação - modular e disjuntiva - de conteúdo e
expressão.
Considerado em sua singularidade específica, o diagrama é denominado
por Peirce sinsigno icônico
260
- o análogo por semelhança produzida, não
metafórica. Sua capacidade de modular e transduzir um plano por outro em
um nível pré ou mesmo a-significante determina o caráter não linguístico do
dispositivo cinematográfico, pois o componente gerativo de todo e qualquer
filme não está subordinando a um ou mais códigos representacionais nem a
uma suposta hierarquia ou hibridação de códigos, muito menos a um suposto
código universal à espera de decifração - mas sim a um componente de ordem
mais geral e abstrata, que deve presidir à geração de todo e qualquer filme,
seu componente diagramático. Eis o verdadeiro específico fílmico da
260
Ver Peirce, Charles S.: Semiótica e filosofia – textos escolhidos, Ed. Cultrix, São Paulo, 1975, p.105.
150
experiência cinematográfica, que não é (nem nunca foi) exclusivamente visual
ou fotográfico, nem imaginário nem significante, embora mimético,
cinemático e analógico.
Embora a lógica gerativa dos signos esteja suficientemente demonstrada
pelos dois volumes dedicados por Deleuze ao assunto (Cinema 1 e 2), seu
caráter noético de abertura para um horizonte de referências exterior a
qualquer modelo de representação (componente transformacional) só é
embrionariamente desenvolvido no final do segundo volume
261
. Com isto, o
componente diagramático que subjaz aos dois primeiros componentes - e que
permite articular o conteúdo material da imagem (Bergson) à expressão
mental do signo (Peirce) - permanece como um ponto ainda mal
compreendido da teoria do cinema em Deleuze. A maior parte de seus críticos
e comentadores tende a enfatizar um ou outro dos pólos deste diagrama, ora
atribuindo-lhe um bergsonismo ingênuo que tende a ignorar a incontornável
presença do signo e da representação no cinema
262
, ora considerando o
arcabouço semiótico proveniente de Peirce como um circuito representacional
fechado, capaz de submeter ao signo visual a imagem cinematográfica e re-
estetizar a semiótica como linguagem artística
263
. A imagem cinematográfica
percorreria uma trajetória ascendente (da primeiridade à terceiridade e além)
em que o processo de semiose subordinaria todos os objetos possíveis (reais
ou imaginários, materiais e mentais) a seus próprios fins. Como o circuito
semiótico de Peirce pode, evidentemente, ser interpretado desta forma,
permaneceríamos ainda reféns de uma visão estetizante do cinema como uma
expressão fundamentalmente artística (mesmo quando não lingüística),
embora definitivamente desembaraçados da representação mimética como
cópia icônica ou metáfora narrativa, assim como de uma noção
exclusivamente visual do que é a imagem.
A própria estrutura dos livros sobre o cinema de Deleuze é responsável,
em grande medida, por esta falsa impressão de um sistema circular fechado, já
261
Ver Deleuze, Gilles: L'Image-Temps, Les Editions de Minuit, Paris, 1985, « La pensée et le cinéma »,
pp.
262
Este é o caso de Mary Ann Doane em seu já comentado Emergence of the Cinematic Time, em que o
papel das teorias de Peirce no trabalho de Deleuze sequer é discutido, embora Ann Doane dedique um
capítulo inteiro àquele e critique Deleuze em várias oportunidades por sua aplicação “teleológica” das
idéias de Bergson à história do cinema.
263
Caso, por exemplo, de Rancière, Jacques: La Fable Cinématographique, Ed. du Seuil, Paris, 2001.
151
que não oferece uma exposição completa da pragmática de Peirce e de seus
componentes. Por necessidades internas de sua própria forma genética de
exposição, Deleuze tende a privilegiar as grandes obras e autores da história
do cinema, ou seja, os filmes que potencializam mais intensamente o cinema
como um dispositivo gerador de signos, e os estilos e gêneros que evidenciam
mais claramente as transformações históricas do cinema como um dispositivo
mimético. uma necessidade evidente de selecionar e destacar, a partir da
imensa variedade de filmes produzidos desde o início da história do cinema,
os momentos mais avançados ou emblemáticos dos seus desdobramentos
estilísticos, sobretudo no segundo volume, que é dedicado à imagem-tempo e
aos modernismos cinematográficos. A grande massa medíocre de filmes
medianos que o cinema clássico-narrativo da imagem-movimento produziu (e
ainda produz até hoje) seria, assim, a vi da experiência cinematográfica
como expressão máxima das possibilidades artísticas do dispositivo.
A questão central aqui, no entanto, não é estética, mas sim política,
como o próprio Deleuze explicita, em sua crucial referência ao trabalho de
Paul Virilio
264
. Pois é justamente a medianidade esteticamente decepcionante
do filme medíocre que melhor desvela o componente diagramático do
dispositivo cinematográfico, em suas relações com a história mais ampla em
que se insere. Enquanto a história do cinema como arte pode se contentar com
uma semiótica concreta do filme (componente gerativo) somada a uma
semiótica abstrata que permita re-situar as questões de gênero, autoria e estilo
em uma estética propriamente cinematográfica (componente
transformacional), a teoria do cinema como dispositivo mimético necessita
pensar a dupla articulação de traços de matéria ainda não-formada com os
elementos materiais de uma possível semiose, para determinar as condições
gerais da práxis cinematográfica (componente diagramático).
A chave ontológica desta dupla articulação mútua e excludente não se
encontra nos livros sobre o cinema, mas no segundo volume de sua obra,
escrita a quatro mãos com F.Guattari, Capitalisme et Schizofénie 2 Mille
264
Ver Deleuze, Gilles: L'Image-Mouvement, Les Editions de Minuit, Paris, 1983, p.214, n.16
152
Plateaux
265
. Neste livro, a sobre-determinação dos planos de expressão e de
conteúdo é pensada como síntese disjuntiva a ser efetuada por múltiplos
dispositivos de agenciamento maquínico, reais ou imaginários. Segundo
Slavoj Zizek, trata-se da convergência de duas lógicas distintas que, a
princípio, seriam incompatíveis:
(1) De um lado, a lógica do sentido, de um devir imaterial como evento-
sentido, como o EFEITO de causas e processos corpo-materiais, a
lógica da disjunção radical entre os processos gerativos e seu efeito-
sentido imaterial (...) não seria o cinema o caso extremo de um fluxo
estéril de devires de superfície? A imagem cinematográfica é
inerentemente estéril e impassível, um puro efeito de causas
corporais, embora, mesmo assim, adquirindo sua pseudo-autonomia.
(2) De outro, a lógica do devir como PRODUÇÃO de Entes (...) Como,
então, essa intensidade impessoal de um evento-afeto se relaciona
aos corpos ou às pessoas? (...) Ou bem este afeto imaterial é gerado
pela interação dos corpos como superfície estéril do puro Devir, ou
bem é parte das intensidades virtuais a partir das quais os corpos
emergem em sua atualização (a passagem do devir ao Ser)
266
.
A síntese disjuntiva, embora admiravelmente descrita nesta passagem
em sua dupla articulação, é erroneamente avaliada por Zizek como uma
espécie de impasse do pensamento deleuziano. Tal impasse o teria levado ao
recuo epistemológico dos livros sobre cinema que seriam, justamente, um
retorno a uma gica semiótica mais abstrata, preocupada exclusivamente com
efeitos imaginários de sentido. Entretanto, se a dupla articulação de um plano
material de conteúdo a um plano mental de expressão - tal como pensada
originalmente por Hjelmslev e exposta em Mille Plateaux
267
- for mesmo
necessária à compreensão do diagrama analógico como um componente
essencial da pragmática da experiência cinematográfica, o caráter
pretensamente apolítico dos estudos deleuzianos sobre o cinema não pode
mais ser mantido, pois seu componente diagramático permite pensar o
dispositivo cinematográfico não como um dispositivo mimético específico
em sua capacidade de geração de efeitos de sentido, mas também como uma
práxis historicamente determinada, capaz de produzir certa experiência
transformadora do devir como produção de corpos.
265
Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1980.
266
Zizek, Slavoj: Organs without bodies, Routledge, New York and London, 2004, p.21. Minha tradução.
267
Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1980, pp. 53-94.
153
Neste sentido, qualquer dispositivo que possa ser pensado como uma
máquina duplamente articulada - ao mecânico (conteúdo da matéria) e ao
anímico (expressão do signo) –, e não mais segundo um modelo
transcendental a ser reproduzido empiricamente em sucessivas reatualizações
temporais dos mesmos objetos através dos mesmos signos, pode ser
considerado como um dispositivo maquínico que reconfigura incessantemente
seus signos e objetos em uma dupla articulação disjuntiva. Todos os meios de
expressão (verbais, visuais, sonoros) podem ser submetidos a tal máquina,
uma vez que devem se articular, necessariamente, ao conteúdo material de um
determinado dispositivo. É por isto que a metamorfose mimética não é um
processo exclusivamente imaginário e inteiramente regulado pelo sentido da
representação, pois é também metamorfose do próprio dispositivo material a
que se articula em sua expressão, seja este um corpo (orgânico ou não), um
instrumento (artificial ou não) ou uma máquina (mecânica ou não).
Há, portanto, um último e fundamental componente na pragmática da
experiência cinematográfica: o componente maquínico
268
, que permite pensar
os agenciamentos historicamente concretos que atualizam o dispositivo
cinematográfico como máquina abstrata, ou seja, como um dispositivo
pragmaticamente aberto às transformações de ordem cnica e estética,
anímica e mecânica, passíveis de alterar seu diagrama. Uma releitura do
trabalho de Deleuze sobre o cinema que leve em conta a pragmática de Peirce,
tal como exposta em Mille Plateaux, pode fornecer a chave para a questão das
relações entre o cinema e a história que perpassa esses livros, sem jamais
explicitar-se inteiramente em sua exposição. Sem uma compreensão adequada
dos componentes maquínico e diagramático do dispositivo cinematográfico,
isto é, do cinema entendido como máquina abstrata, não parece possível
compreender inteiramente seus componentes gerativo e transformacional a
história do cinema como experiência mimética e a experiência histórica do
cinema como mímesis de toda e qualquer experiência imaginável.
268
Para os quatro componentes da pragmética de Peirce, ver Deleuze, Gilles e Guattari, Felix:
Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de Minuit, Paris, 1980, pp. 140-184.
154
CAPÍTULO 3
GEOLOGIA DO CINEMA
Un film est une source pétrifiante de pensée
Jean Cocteau
A imagem cinematográfica entre o som e o sentido
Se a experiência da mímesis implica a possibilidade de mimetização de
toda a experiência, o cinema pode ser fundamentalmente caracterizado como
um dispositivo mimético, na medida em que a experiência do cinema
possibilita o delineamento de uma mimetologia, isto é, de uma práxis da
mímesis em que teoria e prática cinematográficas se defrontam, a cada
instante de sua história, com a teoria e a prática de todos os dispositivos
miméticos anteriores e/ou posteriores ao cinematógrafo.
No segundo capítulo, definimos o diagrama analógico como o elemento
gerativo específico da mímesis cinematográfica como mímesis de produção.
Uma mímesis capaz de gerar signos e produzir significação, portanto,
linguagem, embora não se encontre inteiramente codificada em qualquer
língua ou meio de expressão determinado, possuindo um léxico e uma sintaxe
abertos que resultam da dupla articulação disjuntiva de dois planos distintos:
um plano material de conteúdo e um plano mental de expressão. Também
definimos esta abertura da mímesis como um processo incessante de
reconfiguração da atividade mimética e de seu horizonte de referências
(entendido como um campo referencial indeterminado em permanente
transformação), processo este que nos conduz diretamente ao problema das
relações entre o cinema e a história. Antes de nos concentrarmos nesta
questão, porém, devemos nos deter ainda no componente gerativo do cinema
e no modo específico como o diagrama analógico é por este duplamente
articulado.
A expressão visual mais clara e consequente do que é um diagrama
analógico se encontra nos desenhos que Jean Cocteau realizou para os
155
créditos de seus próprios filmes, como Orfeu. Poeta, pintor e cineasta,
Cocteau afirmava escrever como se estivesse desenhando e desenhar como se
estivesse escrevendo, uma excelente definição do diagrama analógico como
síntese disjuntiva de um quase-objeto e de um quase-signo a partir de
qualquer meio ou suporte material disponível. Do seu primeiro filme (Le sang
d’un poète, 1930) até aquele que seria o seu “testamento” estético (Le
testament d’Orphée, 1960), Cocteau fez do cinema um meio de auto-reflexão
sobre o diagrama analógico, em que seu caráter não exclusivamente visual se
evidencia na relação entre imagens e sons, vozes e corpos, espaço e tempo.
No cinema de Cocteau, a ilusória junção sincrônica entre imagem e som se
estabelece apenas para ser desvelada, em seguida, como disjunção a-síncrona
do olhar e do ouvir.
O componente gerativo de um filme subentende um tipo de relação
analógico-mimética que não se em um campo estrita ou necessariamente
visual, mas em um plano material de conteúdo que contém um plano mental
de expressão. Na Lógica da Sensação, Deleuze nos um exemplo, o de uma
mesa de som analógica: a partir de um determinado sinal de entrada (input),
um processo de “adição de subtrações
269
gera um sinal de saída (output)
análogo ao primeiro. “Análogo” não quer dizer idêntico, que o sinal de
entrada é o conteúdo material de uma operação expressiva destinada,
precisamente, à geração de um output que não é mera cópia do “som
original”, mesmo quando pretende sê-lo. Com efeito, em termos estritamente
analógicos, a noção de cópia, entendida como a transcrição exata de um
objeto em outro, simplesmente não faz sentido. A operação analógica de
transdução gera e “lapida” um sinal de input em seu output análogo, em uma
metamorfose contínua do som que, considerada em si mesma, não está
necessariamente submetida a modelos e paradigmas que controlem a relação
analógica por metáfora e identificação.
O diagrama analógico opera com a semelhança sem referir-se a
qualquer noção precisa de identidade. Não estamos ainda diante de qualquer
tipo de modelo ou de código a ser traduzido, não entramos ainda no regime
semiótico da metáfora. Em permanente mutação metamórfica, o diagrama
269
Deleuze, Gilles: Francis Bacon - logique de la sensation, Éditions de la différence, Paris, p.
156
analógico reconfigura traços de expressão quaisquer (sonoros, visuais, etc.)
sobre um plano material qualquer, (ótico e/ou acústico, no caso do cinema),
sem o concurso de formas de significação propriamente codificadas. Estas
intervêm no diagrama em um nível mais avançado de estratificação, o nível
propriamente simbólico, que se sobrepõe à operação analógica de transdução.
O agrupamento mais ou menos arbitrário de diversos tipos de som em pistas é
um exemplo claro de uma codificação expressiva dos sons a partir de critérios
totalmente distintos daqueles que intervêm na análise do seu conteúdo
material em termos de freqüência e amplitude, e que já indicam a formação de
figuras de linguagem do cinema sonoro que podem ser facilmente
identificadas como objetos para a escuta (música, falas, vozes, ambientes,
efeitos).
No caso de um mapa de mixagem das pistas sonoras de um filme, a
estrutura propriamente geológica do componente gerativo do cinema
evidencia-se claramente pela forma com que as diversas pistas de som podem
ser visualizadas como camadas ou estratos de significação sobrepostos à
matéria da imagem-movimento. Seria totalmente errôneo, no entanto, concluir
daí que o elemento gerativo do cinema é o resultado da articulação entre a
imagem entendida como plano material de conteúdo e do som como plano da
expressão, pois seu advento histórico tardio na indústria cinematográfica
sempre apontou, pelo contrário, para o caráter hegemônico da visualidade na
mímesis cinematográfica. Ora, no nível mais genérico e abstrato em que se
situa o componente diagramático do cinema, a dupla articulação de conteúdo
e expressão é uma possibilidade tanto visual como sonora, podendo ser
pensada em ambos meios, simultânea ou separadamente.
A possibilidade de se pensar, por exemplo, uma semiose não-
representacional dos sons a partir dos desdobramentos da história da música
em uma arqueologia da escuta, está presente em várias páginas do Mille
Plateaux, sobretudo naquelas consagradas à questão do devir
270
, e vem sendo
desenvolvida por diversos autores em paralelo à problemática do olhar e da
270
Ver Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1980, pp. 284-380.
157
imagem
271
. A dupla articulação de conteúdo e expressão pode ser
exclusivamente visual ou exclusivamente sonora, gerando linguagens
musicais e visuais que se cristalizam esteticamente na tradição artística.
Quanto à possibilidade de uma articulação propriamente audiovisual de
conteúdo e expressão que não seja uma mera justaposição híbrida de
linguagens, como pensá-la de forma ao mesmo tempo abstrata (teoria do
cinema) e aplicada (história do cinema)?
Como pensar as relações entre imagem e som, no cinema, no nível ainda
pré-significante da transdução analógica e depois relacioná-las ao nível
propriamente significante da codificação semiológica? Como demonstrar que
o componente gerativo do cinema resulta sempre de uma dupla articulação
audiovisual, mesmo - e, sobretudo - quando o filme silencia e se faz mudo,
ainda que, historicamente, a precedência lógica e cronológica da imagem
sobre o som, de um ponto de vista teórico e histórico, seja tão óbvia quanto
ofuscante? Como pensar uma dupla articulação do olhar ao ouvir capaz de
absorver em seu diagrama todas as possíveis articulações de conteúdo e
expressão exclusivamente visuais ou exclusivamente sonoras (pintura,
fotografia, música, etc.), bem como uma série de articulações propriamente
audiovisuais anteriores (teatro, ópera, ballet), sem perder o seu elemento
gerativo específico?
Essa nos parece, precisamente, ser a questão enfrentada por Deleuze no
último capítulo do seu estudo sobre a imagem-tempo
272
, em que o som ainda é
pensado como um componente adicional da imagem, entendida aqui não mais
como um conjunto de signos visuais de representação, mas como um feixe
temporal de relações entre objetos visuais, sonoros e audiovisuais. Devemos
partir, portanto, de onde Deleuze parou, tendo em mente que é precisamente
ao desvelar a máxima potencialidade expressiva do cinema, em sua
capacidade de relacionar os sons e as imagens de forma disjuntiva, que ele
descobre o elemento gerativo do cinema como certa articulação especifica do
audiovisual, presente em qualquer tipo de filme, mesmo quando mudo.
Embora a sua demonstração se baseie na cinematografia marcadamente
271
Ver, por exemplo, Pisano, Giusy: Une Archéologie du cinema sonore, CNRS éditions, Paris, 2004, ou
Szendy, Peter: Écoute, une Histoire de nos Oreilles, Les Éditions de Minuit, Paris, 2001.
272
Deleuze, Gilles: L'Image-Temps, Les Editions de Minuit, Paris, 1985, pp. 292-343.
158
modernista e, muitas vezes, explicitamente dedicada à experimentação e à
“pesquisa de linguagem”, que o próprio Cocteau tão bem representa,
partiremos aqui da hipótese de que a síntese disjuntiva entre o olhar e a escuta
está presente em todo e qualquer filme - mudo ou sonoro, clássico ou
moderno, analógico ou digital. O elemento propriamente gerativo de um filme
é sempre uma determinada articulação desta disjunção do olhar e da escuta,
mesmo quando um destes elementos está, aparentemente, ausente da
articulação.
Por isso, não se trata apenas de afirmar que o dispositivo
cinematográfico busca a conjunção técnica do som e da imagem desde antes
do cinematógrafo, e que esta foi retardada apenas por questões de ordem
historicamente conjuntural. Antes, é preciso reconhecer, como bem o
observou Fernando Morais da Costa, em seu estudo sobre o silêncio no
cinema
273
, que mesmo quando a ausência do som é assumida como um valor
específico do cinematógrafo, tal opção não só não exclui como, de fato,
amplifica o papel do silêncio como objeto de escuta no espetáculo
cinematográfico. Também Michel Chion, no seu fundamental estudo La Voix
au cinéma
274
, observa que a denominação “filme mudo”, corrente nos países
de língua latina, é bem menos precisa que a denominação anglo-saxônica
“silent movie”, pois toda experiência cinematográfica é uma experiência
audiovisual, ainda que surda.
Assim, a questão das relações entre o som e a imagem no cinema não
pode ser reduzida, de um lado, à questão técnica da sincronização entre sons e
imagens ou ao problema do desenvolvimento de suportes de gravação e
reprodução dos sons compatíveis tecnicamente com o processamento das
imagens enquanto fotogramas. Nem, por outro lado, pensada apenas em
termos de uma adaptação tardia e controversa de uma suposta linguagem
cinematográfica puramente visual às exigências comerciais da indústria do
entretenimento. Faz-se necessário demonstrar de que modo o componente
gerativo do cinema é intrinsecamente audiovisual, não devido à rica “pré-
história” técnica e estética do cinema sonoro, mas também por causa do seu
273
Morais da Costa, Fernando: Som no cinema, silêncio nos filmes - o inexplorado e o inaudito, pp.
274
Chion, Michel: La Voix au cinéma, Cahiers du Cinéma, Paris, 1993.
159
período dito mudo, ou silencioso, e não apesar deste. Isto se deve ao fato de
que o componente gerativo do cinema não se define apenas por seu caráter
audiovisual, mas, sobretudo, pelo modo específico de articular o olhar à
escuta que o cinema descobre e inventa como meio de expressão, e que deve
ser distinto de outras formas audiovisuais que lhe são tangenciais.
Se o teatro se apóia comumente na conjunção audiovisual dos corpos às
palavras que se fala e/ou se escuta (e a dança se apóia, como forma específica
de expressão, na dis/conjunção audiovisual dos corpos aos sons que, em geral,
são musicalmente articulados), a ópera se estabelece na conjunção audiovisual
dos corpos às vozes, duplamente articuladas (musical e teatralmente). O
cinema, por sua vez, trabalha com a disjunção cinemática, audiovisual, do
corpo à palavra e à voz, das imagens aos sons e vice-versa, do olhar à escuta e
do ouvir ao falar. Portanto, o componente gerativo do cinema não é
audiovisual porque resulta da conjunção técnica e estética entre imagens e
sons, mas porque se baseia na disjunção do olhar e da escuta. Disjunção aqui
não significa necessariamente falta de sincronismo no nível técnico ou falta de
relação aparente entre o que se e o que se ouve, em termos estéticos, mas o
fato de que a dupla articulação entre conteúdo e expressão se estabelece a
partir de um excesso constitutivo do plano de conteúdo sobre o plano de
expressão - da matéria sobre o signo -, excesso este que é gerado, no caso do
cinema, tanto pelo olhar como pela escuta, assim como pela relação que se
pode estabelecer entre ambos.
Embora os livros de Deleuze sobre o cinema já apontem para uma
cinemática do audiovisual como síntese disjuntiva do olhar e da escuta, sua
forma genética de exposição situa a descrição do componente gerativo do
cinema apenas no último capítulo do livro. Isto é coerente com o desenrolar
histórico da arte cinematográfica ao longo do século, mas acaba limitando, do
ponto de vista conceitual, a compreensão plena do seu caráter gerativo. O
problema das relações entre som e imagem no cinema não está ligado apenas
a determinadas formas estilísticas mais ou menos modernistas de expressão,
pois radica na própria especificidade mimética da produção cinematográfica
em geral e no seu caráter intrinsecamente audiovisual. No entanto, a auto-
reflexividade típica das experiências cinematográficas modernistas se mostrou
160
extremamente útil para o desvelamento do específico fílmico como
componente gerativo abstrato
275
do cinema, articulando duplamente o
conteúdo à expressão através de uma disjunção audiovisual constitutiva de
sua própria particularidade como experiência da mímesis. O relativo retardo
histórico desse processo de desvelamento não não lhe nega a pertinência
como, de certa forma, a confirma. A consciência clara da audiovisualidade
intrínseca ao cinema não pôde se estabelecer antes da consolidação histórica
do cinema sonoro, enfrentando uma conhecida resistência que foi valorizada
em demasia não pelos teóricos e historiadores do cinema, como também
pela própria indústria, através de filmes quase míticos como Singin’ in the
rain.
Neste sentido, a obra de Deleuze acompanha e aprofunda a avant-garde
cinematográfica francesa em sua busca do que Duchamp, bem
humoradamente, chamou de Anémic cinéma: a expressão abstrata do
específico fílmico, ou seja, do componente gerativo do cinema como tal. Não
se deve confundir, porém, o surgimento historicamente concreto de um
modernismo propriamente cinematográfico, no período do cinema mudo,
com a descrição abstrata do componente gerativo do filme, presente em
qualquer expressão cinematográfica concreta. Anémic cinema, por exemplo, é
uma cinemática do loop como forma de expressão visual. O loop como forma,
porém, apresenta variantes sonoras tão ou mais importantes que seus
correlatos visuais, assumindo, na história da música, funções expressivas
diversas - do ritornello ao dub, passando pela fuga e pelo leitmotiv. Entendido
como forma de expressão especificamente cinematográfica, o loop extravasa,
portanto, os supostos limites técnicos e estéticos impostos pela prática da
composição de trilhas sonoras à análise teórica (limites estes a que a análise
de Deleuze apenas aparentemente se circunscreve), para situar-se na
confluência entre sons, imagens e signos que caracteriza a mímesis
cinematográfica, em particular, como uma cinemática da mímesis, em geral.
Ocorre aqui, com relação à recepção do som na história do cinema, o
mesmo que ocorre com a questão da recepção do cinema, como dispositivo
275
Sobre o caráter auto-reflexivo do modernismo como teoria geral da arte, e não apenas do cinema, ver
Jameson, Frederic: “A existência da Itália”, in As marcas do visível, Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1995, pp.
159-234.
161
mimético, na história da arte: estuda-se o processo derivado e secundário de
constituição de uma linguagem cinematográfica qualquer (“muda” ou
“falada”), com seus múltiplos estilos e gêneros, tipificando e hierarquizando
os mais diversos filmes em “territórios” artísticos claramente identificáveis,
como se tal processo não fosse o resultado da transformação de um efeito
cinematicamente disruptivo gerado pelo próprio dispositivo, tanto visual
quanto auditivamente, mesmo quando o som ou a imagem não estão
presentes, parcial ou totalmente.
A própria negação do som como parte integrante da “verdadeira” arte
cinematográfica funciona, assim, retrospectivamente, como uma confirmação
a contrario do caráter inerentemente audiovisual do cinema, que a
experiência cinematográfica também pôde ser considerada, por sua vez,
como uma negação da “verdadeira” experiência artística.
O silêncio e sua sombra
Em todo caso, a importância da escuta para toda e qualquer experiência
cinematográfica pode ser investida de positividade uma vez demonstrada a
partir do momento de máxima resistência estética à presença do som no
cinema. Este se manifesta, evidentemente, quando o cinema sonoro se
torna uma realidade histórica e estética inegável, e atinge talvez o seu ponto
máximo com a renúncia ao uso do som, por Stan Brakhage, em seus filmes
experimentais, a partir dos anos 1950. Influenciado pelo expressionismo
abstrato de pintores como Pollock, Brakhage radicaliza o rompimento com os
modelos pictóricos e literários de representação que a avant-garde dos anos
1920 propunha, buscando o plano de expressão específico de uma
cinemática a-significante.
Nesta busca, Brakhage empreende uma espécie de redução
fenomenológica concreta do espetáculo cinematográfico, desvelando a
transdução analógica como o elemento motor do seu componente gerativo. Se
o som é aprioristicamente negado como etapa necessária à obtenção da
redução, isto não se deve em absoluto a uma suposta visualidade essencial da
imagem cinematográfica, mas sim ao fato de que o acoplamento do som à
162
imagem geralmente é entendido como uma conjunção narrativa, ou seja,
destinada à produção codificada de sentido através de convenções oriundas do
próprio cinema ou de outras expressões audiovisuais afins. Em outras
palavras, a articulação de sons e imagens no cinema geralmente é estudada do
ponto de vista da significação cinematográfica e de suas possibilidades
narrativas, enquanto o seu componente gerativo pode ser pensado no nível
analógico a-significante de uma disjunção constitutiva do olhar e da escuta.
Brakhage não abole o som por pressupor que a imagem cinematográfica seja
realmente muda ou definitivamente silenciosa, mas porque pretende revelar,
no seu silêncio, um plano material de infinitas variações expressivas de
tonalidade e intensidade, ritmo e contraste, densidade e rarefação que não
não é figurativo nem abstrato, como tampouco ainda propriamente visual,
situando-se justamente no plano de ambiguidade característico daquilo que a
tradição estóico-epicurista, a partir de Platão, convencionou chamar de
simulacro.
É a partir de experiências baseadas em diversas formas de intervenção
direta na película, que filmes como Mothfly (196?) inauguraram e a que filmes
posteriores, como Water for Maya (2000), deram sequência, que Brakahage
revela o simulacro como plano material de conteúdo de toda e qualquer
expressão cinemática. No entanto, sua radical redução do espetáculo
cinematográfico às mínimas condições visuais de percepção não reforça em
absoluto, como talvez se pudesse esperar, um suposto primado da visualidade
sobre outros meios de expressão no cinema. Pelo contrário: à medida que a
incessante produção de simulacros é percebida no revés de qualquer imagem
possível como a sombra luminosa de quase-formas fugidias, seu eloquente
silêncio (taxativamente imposto pelo cineasta ao público de suas sessões)
torna-se cada vez mais ruidoso, preenchendo a imagem com padrões formais
mais próximos à música do que à fotografia ou à pintura, com a possível
exceção do abstracionismo informal. Como tais formas são percebidas como
formas musicais ao mesmo tempo em que se materializam visualmente no
silêncio, uma análise dos diversos tipos de silêncio expressos pela obra de
163
Brakhage (silêncio “sinfônico”, “de câmara”, e etc.) é perfeitamente viável
276
.
Se o simulacro se revela como o plano material do conteúdo de possíveis
imagens, o silêncio se revela como o plano mental de expressão que atua à sua
sombra, produzindo o sentido a-significante destes filmes, tal como uma
música surda que pode ser escutada através da redução fenomenológica do
olhar.
Além de possibilidade inaudita para outros meios audiovisuais
(certamente a televisão não é propícia a uma experiência estética do silêncio
comparável à cinematográfica, e as marcantes diferenças técnicas no modo
como se editam e mixam sons para cinema ou para a TV são clara evidência
neste sentido), esta radicalização da experiência do silêncio no cinema revela
a reversibilidade disjuntiva radical do seu componente gerativo, pois aquém
da musicalidade inerente a qualquer tipo de vibração material, revela-se um
silêncio inaudito sobre o qual rebate toda e qualquer possibilidade expressiva,
sonora ou visual. Assim, ao reduzir o dispositivo cinematográfico ao circuito
ótico de impressão/projeção de filmes, Brakhage consegue demonstrar de que
modo um filme funciona, a princípio, como um aspirador visual de todo os
sons possíveis, escandindo silenciosamente o ritmo do tempo para melhor
contê-lo e enquadrá-lo no plano material dos simulacros em que é convertida
a tela de projeção. O próprio silêncio assim gerado se converte em uma tela de
projeção temporal que atrai as imagens para a sua própria dissolução,
impedindo a fixação visual das formas e prolongando potencialmente o fluxo
fílmico para aquém e para além dos limites físicos do rolo projetado.
O cinema de Brakhage revela de que modo a tela de projeção funciona
como um plano material de contenção da expressão sonora e visual e vice-
versa, ou seja, também certo silêncio pode funcionar como uma espécie de
tela ou suporte material invisível que contém a expressão audiovisual nos
limites temporais de sua exposição. Este silêncio não é mera negação ou
ausência física do som na medida em que, por sua própria inaudibilidade, não
está situado entre os sons como intervalo ou como ruído, mas sim aquém e
além de todos os sons, como sua condição formal de recepção. Trata-se de um
276
Camper, Fred: “Sound and silence in narative and nonanarrative cinema”, in Filmsound – theory and
practice, Columbia University Press, New York, 1987, pp. 369-382.
164
silêncio capaz de emoldurar o som para melhor revelá-lo como objeto da
escuta, assim como um quadro emoldura a imagem para melhor revelá-la
como objeto do olhar.
Ao filmar o simulacro como sombra da imagem, Brakhage revela o
silêncio como sombra do som. No entanto, ainda nos remete a uma
articulação significante que reduz toda e qualquer substância do seu plano de
expressão às formas gerais de sua inscrição no quadro da significação. Sua
insistência em manter condições ideais para a projeção dos seus filmes, que
não só devem ser vistos no mais absoluto silêncio como também devem ser
vistos literalmente na íntegra (seus rolos projetados do início ao fim com
todas as pistas de “start”, pontas pretas, e cartelas de cor) explica-se pela
preocupação com as condições formais de significação no cinema, ou seja,
com seu componente gerativo. Na emergência deste componente, o controle
das condições de escuta é tão ou mais essencial do que o controle das
condições do olhar, atestando o caráter inequivocamente audiovisual do
dispositivo cinematográfico. Em tal necessidade de controle, no entanto,
radica-se uma impossibilidade inerente ao cinema de Brakhage: sua busca
pelo elemento específico do componente gerativo da experiência
cinematográfica necessita de uma redução desta experiência às suas condições
mínimas de recepção que, levadas às suas últimas conseqüências, exigem a
formalização quase ritual do momento de projeção como um evento único e
singular, não passível de repetição. Instaura-se assim um formalismo que
compreende o alcance da experiência cinematográfica até o ponto de
reversibilidade entre o olhar e a escuta contido no silêncio.
Deste silêncio, distinto do silêncio que antecede ou sucede à fala - seja
esta última um gesto (fala do corpo) ou uma palavra (fala da voz) é que
parte Marguerite Duras naquele que talvez seja o seu filme mais interessante,
L’Homme atlantique. Trata-se de um filme em que a redução fenomenológica
do espetáculo cinematográfico percorre trajetória inversa à dos filmes de
Brakhage. Algumas imagens de um homem que caminha sozinho pelas salas e
corredores vazios de um hotel à beira do oceano Atlântico, denotado pelo que
acreditamos ser o ruído das ondas do mar, são acompanhadas pela voz da
própria cineasta, que recita o seguinte texto:
165
Je l’ai pris et je l’ai mis dans le temps gris, près de la mer, je l’ai perdu, je
l’ai abandonné dans l’étendue du film atlantique. Et puis je lui ai dit de regarder,
et puis d’oublier, et puis d’avancer, et puis d’oublier encore davantage, et
l’oiseau sous le vent, et la mer dans les vitres et les vitres dans les murs. Pendant
tout un moment il ne savait pas, il ne savait plus, il ne savait plus marcher, il ne
savait plus regarder. Alors je l’ai supplié d’oublier encore et encore davantage, je
lui ai dit que c’était possible, qu’il pouvait y arriver. Il y est arrivé. Il a avancé. Il
a regardé la mer, le chien perdu, l’oiseau sous le vent, les vitres, les murs. Et puis
il est sorti du champ atlantique. La pellicule s’est vidée. Elle est devenue noire.
Et puis il a été sept heures du soir le 14 juin 1981. Je me suis dit avoir aimé.
277
Antes mesmo do final do texto, uma longa ponta preta passa a ocupar a
totalidade da tela, mergulhando a sala de projeção no escuro e reduzindo-a a
suas coordenadas audiovisuais básicas: uma voz, um quadro. Em vez de
produzir as condições de redução fenomenológica do olhar e da escuta, de
forma artificialmente controlada (Brakhage), Duras prefere anunciar com sua
voz, proveniente da própria representação cinematográfica, a redução do olhar
e da escuta ao seu componente gerativo, para então realizá-la efetivamente
através da absorção total das imagens pelo escuro de um silêncio pleno de
possibilidades, em que o ruído do mar se torna, pouco a pouco, indistinto do
ruído da própria projeção. Este mergulho no escuro de todas as imagens e
corpos está sempre contido pelos limites do quadro, enquanto o mergulho de
todos os sons e vozes no ruído branco do mar (white noise) acaba por se
dissipar no silêncio. Assim, enquanto o quadro de Brakhage é concebido
como um plano de visibilidade totalmente aberto e ilimitado desde que suas
condições de recepção sejam estritamente delimitadas pelo silêncio, o quadro
de Duras é concebido como um plano de visibilidade que, mesmo na ausência
de qualquer imagem, articula-se ao plano ilimitado de um silêncio a ser
entendido como o silêncio infinito e sem fundo de um oceano de sons.
“Quadrado negro sobre (ruído de) fundo branco” seria talvez um título
menos lírico para uma obra que está para o cinema assim como o trabalho de
277
Em uma tradução aproximada: “Tomei-o e o coloquei no tempo cinza, perto do mar, eu o perdi, eu
abandonei-o na extensão do filme atlântico. E então eu disse a ele para olhar, e em seguida esquecer, e
então avançar, e assim esquecer ainda mais, tanto o pássaro sob o vento, como o mar nos vidros e os
vidros nas paredes. Durante um instante imenso ele não sabia, não sabia mais, ele não sabia mais andar,
ele não sabia mais olhar. Então, eu lhe supliquei que esquecesse ainda mais e mais, eu lhe disse que isto
era possível, que ele podia chegar lá. Ele conseguiu. Ele avançou. Ele olhou o mar, o cão perdido, o
pássaro sob o vento, os vidros, as paredes. E então ele saiu do campo antlântico. A película ficou vazia.
Ela ficou escura. E então eram sete horas da noite de 14 de junho de 1981. Eu disse a mim mesma que
havia amado.” Disponível em HTTP//:__________________________
166
Malevich está para a pintura
278
. Mas enquanto Malevich se concentra
exclusivamente no plano visual do componente gerativo da imagem, Duras
revela, em negativo à obra de Brakhage, o elemento audiovisual do cinema
como seu componente gerativo. Configura-se a dupla articulação do olhar à
escuta, em que ambos os planos aparecem simultânea e alternadamente como
meio de expressão e/ou como veículo material do conteúdo, como signo
imaginário de uma representação mental e/ou como objeto real de uma
reprodução material.
Da cinestesia à sinestesia: o componente gerativo do cinema
Há, portanto, ao menos dois tipos de silêncio distintos a se considerar no
cinema
279
: o silêncio que antecede ou que sucede aos signos da fala (corporal
ou vocal, sonora ou visual) e o silêncio inaudível do som, entendido como um
objeto prenhe de vibrações potencialmente significantes, ainda contidas em
sua própria mudez. O primeiro silêncio é o silêncio da pausa que escande a
expressão, silêncio da fala e do gesto, ligado ao ritmo da frase e ao metro da
música; é o silêncio do sentido. O sentido deste silêncio encobre, no entanto,
um segundo silêncio, o silêncio do silêncio, ruidosamente inaudível, a-
significante, situado aquém de todo e qualquer sentido.
Duplo silêncio. Se o silêncio do sentido pontua, entretanto, o plano da
expressão como um elemento de articulação rítmica e/ou prosódica de todos
os outros elementos pertinentes à significação
280
, é no silêncio do silêncio que
o som se revela como um objeto capaz de afetar não o olhar através da
escuta, mas também a escuta através do olhar.
Edvard Münch, em seu conhecido quadro O Grito, apresenta uma
expressão visual do duplo silêncio como a superposição de dois planos
distintos: em primeiro plano, a (negação da) expressão que visualiza o grito
mudo como potencialmente significante, e em segundo plano a contenção
278
Sobre Malevich, ver cap.2, pp.
279
Para uma fenomenologia do silêncio e da palavra, ver Neher, André: L’éxil de la parole – du silence
biblique au silence d’Auschwitz, Éd. du Seuil, Paris, 1970.
280
Os sinais de pausa do compasso, por exemplo, são determinados pelas figuras musicais de notação
rítmica, assim como ouvintes e falantes de determinada língua apresentam a capacidade, extremamente
variável, de distinguir pequenas pausas entre as sílabas e as palavras para poderem compreender
mutuamente sua prosódia.
167
material do som pelos limites do quadro, em que se visualiza o próprio espaço
como uma espécie invertida de “concha acústica”, em que tanto o grito quanto
o rosto que o emite são inteiramente absorvidos por outro silêncio ainda
maior, silêncio a-significante da própria vibração sonora entendida como
perturbação mecânica da matéria. O componente gerativo audiovisual do
cinematógrafo se revela plenamente nesta pintura, que lhe é praticamente
contemporânea (1893). Na medida em que os dois planos visuais articulam
um duplo silêncio, como objeto para o olhar e para a escuta, a questão das
relações entre o que está dentro e o que está fora de quadro (entre o limite e
sua ausência, entre o contínuo e o descontínuo) se revela como um problema
não exclusivamente visual, mesmo quando sua expressão o é (assim como não
é exclusivamente sonoro, mesmo quando assim o é sua expressão).
Na história do cinema, o exemplo talvez mais eloquente de uma dupla
articulação do silêncio, como condição de possibilidade (e de
impossibilidade) da escuta através do olhar, encontra-se na Paixão de Joana
d’Arc, de Carl Dreyer. Neste famoso filme mudo, o momento em que Joana,
já sabendo qual será o seu fim após ser amarrada ao poste em que será
queimada viva, exclama diante de uma pequena multidão, reunida em praça
pública: “Serai-je avec vous ce soir au paradis?
281
, é imediatamente sucedido
por um admirável plano, inserido logo após a legenda que contém suas
palavras, de um bebê recém-nascido, sendo amamentado pela mãe, que
interrompe a sua atividade de sucção e olha na direção de Joana como se a
houvesse escutado (e entendido?), para voltar, em seguida, com ar indiferente,
ao seio materno. Teria o bebê apenas ouvido uma voz e reagido ao seu som,
ou seria este um sinal dos céus, expresso na própria inocência paradisíaca do
bebê, que haveria, então, realmente escutado as preces de Joana? Ou teria sido
o olhar do bebê naquela direção, naquele momento, fruto de mera (porém,
estranha) coincidência? Embora o sentido do plano seja propositalmente
ambíguo e aberto a múltiplas leituras, tais hipóteses interpretativas
pressupõem a dupla articulação de um silêncio que se apresenta ao olhar
como a (im)possível escuta de uma súplica, por um lado, e de um olhar que se
apresenta à súplica como o (im)possível silêncio de uma escuta, por outro.
281
“Estarei convosco essa noite no paraíso?
168
N’A Queda da casa de Usher, de Jean Epstein, o duplo silêncio que
revela o componente gerativo do cinema é diretamente enunciado pelas
páginas de um enorme livro:
Il y a un silence double; l’un est le silence corporel; ne le crains pas.
Mais, si quelque urgente destinée te fait rencontrer son ombre, elfe sans nom qui
hante les solitaires régions que ne foule aucun pied humain, recommande-toi à
Dieu!
282
À sombra do silêncio do corpo - entendido como a pausa ou como o
momento imediatamente anterior ou posterior à emissão codificada de signos,
em um plano bem delimitado de expressão corporal e/ou vocal -, há o
vertiginoso silêncio de um plano contínuo e ilimitado de conteúdos submersos
em sua própria ausência de forma. Neste filme, a tensão que articula os sons à
imagem (ao longo de uma incessante reconfiguração das múltiplas oposições
que se pode estabelecer entre o dentro e o fora de quadro, o visível e o
invisível, o audível e o inaudível), projeta o dispositivo cinematográfico,
autoreflexivamente, em uma cinemática da percepção audiovisual. Nesta
cinemática, a mediação entre filme e espectador, representada pelos signos da
expressão cinematográfica, é constantemente ameaçada pelo contágio
mimético provocado pelo olhar (como objeto) e/ou pela escuta (reduzida). Tal
efeito é incessantemente enfatizado através das inúmeras próteses oculares e
auditivas que aparecem durante a projeção, assim como pela própria doença
nervosa de que Usher, o protagonista, é acometido, e que se manifesta como
intensa sensibilidade à menor vibração, sonora ou visual, perceptível por seus
sentidos, enquanto seu amigo e confidente vê e ouve muito mal, em um
contraste “bufo” que apenas realça ainda mais sua patológica sensibilidade.
O tema do contágio mimético pelo duplo também aparece através de
outro motivo retirado da obra de Edgar Allen Poe: trata-se do retrato que
Usher pinta de sua esposa, e que retira a vida de lady Usher à medida que vai
ficando pronto, como se “sugasse” gradativamente sua vitalidade anímica. Ao
filmar o lento e imperceptível processo de perecimento, não só de lady Usher,
282
“Há um duplo silêncio; um é o silêncio corporal; não o tema. Mas, se algum destino urgente faz com
que encontres tua sombra, elfo sem nome que assombra as solitárias regiões nunca alcançadas por
humano, recomenda-te a Deus!”
________
169
mas, sobretudo, da própria casa de Usher e de todas as coisas que a ela
pertencem, Epstein se utiliza da câmera lenta para visualizar aqueles
processos invisíveis de degradação da matéria que são engendrados por sua
própria duração, projetando-os em vários planos simultâneos de ação. Da
superfície quase-visível do vento, que ao longo do filme distrai e perturba
incessantemente corpos e objetos, aos violentos distúrbios “magnéticos” e
vibratórios que des/animam o corpo de Lady Usher, culminando em sua crise
de catalepsia e posterior “ressurreição”, em um último tema caro a Poe,
Epstein ausculta o plano visual das imagens para aquém de seu sentido
expressivo. Modulando em slow-motion (“câmera lenta”) as variações de um
fluxo de intensidades e durações que, como tal, não é representável e nada
significa, mas que ameaça extravasar as bordas do quadro cinematográfico em
um turbilhão de movimentos e vibrações que precipita o olhar na imagem,
Epstein consegue extrair um plano “auditivo” em que múltiplos objetos-sons
penetram o quadro visual provindos de todos os lados, mergulhando as
imagens em uma espécie de percepção líquida de sua mútua relação
283
:
O olho deve empregar um ralentamento, ou seja, um alargamento do
tempo, para ver como um golpe de boxe, que aparece como um movimento
retilíneo único a velocidade constante, é, na verdade, uma combinação de
múltiplos e infinitamente variados movimentos musculares. Da mesma forma, o
ouvido deve amplificar o som no tempo, ou seja, ralentar o som, para descobrir,
por exemplo, que o monótono e difuso ruído de uma tempestade explode, em
uma realidade mais refinada, em multidões de sons distintos e inauditos: um
apocalipse de gritos, murmúrios, rumores, grasnados, ecos, tons, e notas para
muitos dos quais não nome (...) Evidentemente, esta linguagem inarticulada
das coisas, para os nossos pobres ouvidos, é, geralmente, nada mais que um
barulho neutro ou incômodo, às vezes quase imperceptível. (...) Ao delinear seus
detalhes, separando os sons e criando uma espécie de “close-up” do som, o
“slow-motion” permite que todos os seres e todos os objetos falem. Assim,
aquele mal-entendido dos latinistas, que fizeram com que Lucrécio dissesse que
os objetos gritam, se torna uma realidade audível. sabemos como olhar a
relva crescer, agora saberemos como escutá-la.
284
Trata-se de uma dupla articulação entre conteúdo e expressão que
relaciona a imagem ao som (e vice-versa) de maneira a revelar toda e
qualquer articulação deste tipo como a sobreposição de um plano descontínuo
(de expressão) ao plano contínuo (de conteúdo) da matéria audiovisual que o
suporta. Articulando do olhar à escuta da imagem, Epstein realinha o
283
Deleuze, Gilles: L'Image-Mouvement, Les Editions de Minuit, Paris, 1983, pp.
284
Epstein, Jean: “Slow-motion sound” in Filmsound – theory and practice, Columbia University Press,
New York, 1987. p. 144. Minha tradução.
170
dispositivo cinematográfico com as pesquisas cronofotográficas de E.J Marey
sobre o movimento. Isto porque, se Marey produziu imagens que expressam,
descontinuamente, o conteúdo cinemático de um movimento contínuo, o
cinema, na sequência do trabalho fotográfico de Muybridge, é a expressão
contínua (filme) de conteúdos cinemáticos descontínuos (fotogramas). Ao
aplicar sistematicamente o efeito de “ralenti” ao movimento da imagem,
Epstein situou o seu cinema a meio caminho de ambos, no entrecruzamento
do contínuo e do descontínuo (do conteúdo material e da expressão
simbólica), em uma dupla articulação do olhar à escuta, através das imagens e
dos sons, que o silêncio dos filmes mudos tornava ainda mais gritante.
não se trata mais simplesmente de escutar as pessoas falarem, mas de
escutá-las pensar e sonhar. O microfone já cruzou a fronteira dos lábios,
adentrando o mundo interior dos homens, perscrutando os recônditos da voz da
consciência, dos refrões da memória, dos gritos em pesadelos e das palavras
nunca ditas. Câmaras de revereberação já traduzem não o espaço de uma
locação, mas as distâncias no interior da alma
285
.
Ao inconsciente ótico, já teorizado por Walter Benjamin, Epstein agrega
um inconsciente acústico. Tanto no caso do olhar como no da escuta, o slow-
motion frisa autoreflexivamente nossa percepção através de sua amplificação
e distensão espaço-temporais, revelando o plano do olhar como um regime de
possíveis visibilidades em constante oscilação entre a imagem e o simulacro,
e um plano de escuta em que o silêncio é condição de possibilidade, mas não
razão suficiente, para que diversos regimes incongruentes de significação
possam disputar, simultaneamente, a primazia da experiência cinematográfica
(falas, música e/ou silêncio em conjunção e/ou disjunção com a imagem). E
assim como as imagens recobrem este olhar-objeto sob os mil e um disfarces
visuais da expressão, seu silêncio também encobre os inúmeros objetos-som
que podem se apresentar à escuta (e que o cinema sonoro só re-descobriu
dentro de certos limites e em função das necessidades significantes do
espetáculo audiovisual).
Objeto-som e olhar-objeto
286
são, portanto, as resultantes da redução, no
sentido fenomenológico do termo, do componente gerativo do cinema à sua
285
Ver Epstein, Jean: “Slow-motion sound” in Idem, p. 143. Minha tradução.
286
Sobre o som como objeto, ver Chion, Michel: Le Son, Éditions Nathan, Paris, 1998 e
Schaeffer, Pierre: Traité des objets musicaux, Éd. du Seuil, Paris, 1966. Sobre o olhar como
171
dupla articulação audiovisual. O olhar, considerado como objeto, é o avesso
da imagem entendida como signo, assim como a percepção do som como
objeto é o avesso da escuta entendida como a compreensão do sentido das
palavras. Uma mesma relação disjuntiva ao signo articula, portanto, o olhar à
escuta, através do ver e do ouvir.
No entanto, não correspondência entre dessubjetivação do olhar e
dessubjetivação da escuta, apenas a isomorfia de uma disjunção. Enquanto a
escuta reduzida desvela imediatamente a materialidade objetiva do som como
um distúrbio do sentido, um ruído ou vibração mecânica, apenas o olhar da
câmera desvela a materialidade do simulacro à espreita da imagem. Daí a
importância extrema, no campo do audível, da semantização da escuta, pois
esta é muito suscetível ao desvelamento do som como um objeto, ou seja,
como um plano material de suporte à expressão do sentido, que pode gerado
por signos musicais ou lingüísticos, por música ou por palavras. Posto de
outra maneira, a imagem acústica (ou sonora) é de constituição bem mais
frágil e tênue do que as imagens visuais e verbais. Eis porque o olho
mecânico é capaz de revelar plenamente o olhar-objeto latente ao mundo
inerte da matéria, olhar oculto pela imagem se esta é lida como um signo e/ou
inserida em uma sequência narrativa qualquer.
Essa é a chave do componente gerativo audiovisual do cinema, que não
pode ser considerado como a simples oposição binária, convergente ou
divergente, das imagens aos sons ou de uma sequência visual a uma trilha
sonora. Trata-se, antes, de uma relação quádrupla, duplamente articulada, que
engaja tanto o campo do visível quanto o campo do audível, na disjunção
entre um plano de conteúdo e um plano de expressão (ouvir/escutar,
ver/olhar). O modo como estes dois planos são articulados, porém, é que é
fundamental, pois não se pode simplesmente atribuir a função expressiva a
um campo (digamos, o da imagem) e o papel de conteúdo material a outro. A
dicotomia entre o plano de conteúdo e o plano de expressão, assim como a
disjunção entre o signo e seu objeto ou o significado e o referente, atravessa
objeto, ver Zizek, Slavoj: Looking awry an introduction to Jacques Lacan through popular
culture, The MIT Press, 1992, e Goza ti sintoma! Jacques Lacan dentro y fuera de Hollywood,
Nueva Visión, Bienos Aires, 1994. Ver também Saleci, Renata e Zizek, Slavoj (orgs.): Gaze and
voice as love objects, Duke University Press, 1996, e Machado Guimarães, Dinara: Vazio
iluminado, o olhar dos olhares, Notrya editora, Rio de Janeiro, 1993.
172
tanto o campo do visível como o campo do audível. Na medida em que ambos
pressupõem, por inversão, a invisibilidade do olhar e a opacidade do som
como o avesso do(s) seu(s) sentido(s), pode-se conceber o componente
gerativo audiovisual do cinema como um quadrado semiótico de Greimas
287
,
em que o plano ou eixo da expressão (audiovisual) se constitui pela
articulação do par sêmico escuta-olhar, enquanto o plano ou eixo do conteúdo
(material) se articula através do par sêmico imagens-som:
COMPONENTE GERATIVO DO CINEMA (QUADRADO SEMIÓTICO DE
GREIMAS)
(EXPRESSÃO AUDIOVISUAL)
ESCUTA OLHAR
FIGURAS SIGNOS OBJETO-VOZ
IMAGENS (CONTEÚDO MATERIAL) SOM
A seta horizontal indica a articulação básica de olhar e escuta que
constitui o plano de expressão do audiovisual, enquanto o plano material de
conteúdo é situado no lado aberto do quadrado, sem linha horizontal de
articulação, indicando o fato de que a consistência do componente gerativo
não se deve a uma determinação causal de um plano sobre o outro, nem a uma
relação simétrico-especular de correspondência. Com efeito, em um filme, o
conteúdo material das imagens e sons é registrado, sequenciado e processado
separadamente até o momento de sua projeção. É sua expressão audiovisual
que aparece como um campo unificado de visibilidades e sonoridades para o
ouvinte/espectador, que, idealmente falando, não deve perceber o “truque”,
287
Ver Greimas, A.J.: Semãntica estrutural, Ed. Cultrix, São Paulo, 1966, e Sobre o sentido – ensaios
semióticos, Ed. Vozes, rio de janeiro, 1975.
173
isto é, o fato de que a imagem, visual e sonora, que lhe é projetada não tem
existência real.
As setas diagonais indicam a dupla relação de inversão entre imagem e
olhar, escuta e som. Sendo a imagem o campo de significação do visível, o
olhar como objeto situa-se precisamente no seu avesso, como sua condição de
(in)visibilidade. Também o som, percebido como objeto, situa-se no avesso da
escuta entendida como escuta semântica, isto é, escuta daquilo que, no campo
do audível, se presta à significação. Eis porque escuta e imagem estão ligadas
pela seta vertical que indica sua mútua implicação na geração dos signos e
figuras (verbais, visuais, sonoros) que constituem o texto audiovisual de um
filme. A seta vertical, que relaciona o som ao olhar como objetos, implica a
voz como o objeto audiovisual por excelência. Sua articulação adequada às
imagens e aos sons permite o estabelecimento do campo unificado de
expressão audiovisual.
O nome cnico desta articulação é sincronismo. O fato de que a
defasagem histórica entre cinema mudo e cinema falado se deve, basicamente,
ao fracasso das tentativas anteriores de sincronização da imagem ao som não
quer dizer que o diagrama do componente gerativo audiovisual do cinema
diga respeito apenas a filmes sonoros. Pelo contrário, pois, como procuramos
demonstrar nas páginas precedentes, o silêncio é um objeto-som
perfeitamente moldável à expressão e, acusticamente falando, extremamente
variado. Além disso, em um filme, a possibilidade de significação, figurada
ou não, da fala e do silêncio, bem como de outros tipos de sonoridade, é uma
característica intrínseca ao plano audiovisual da expressão, seja este mudo ou
não. É apenas quando o silêncio dos filmes mudos se torna gritante é que o
caráter audiovisual do cinema se revela, assim como é apenas com o
surgimento do filme sonoro que um cinema do silêncio como objeto da escuta
se torna possível. Eis porque o cinema, quando pensado como linguagem
essencial ou puramente visual, é muitas vezes considerado como uma arte que
havia atingido as suas máximas possibilidades expressivas na época do
mudo, notadamente para alguns, com o expressionismo alemão
288
.
288
Ver, por exemplo, o sob todos os outros aspectos excelente volume de Nazário, Luiz: As sombras
móveis – atualidade do cinema mudo, Ed. UFMG, 1999.
174
Dentre tais possibilidades, a forma com que o cinema expressionista
alemão dos anos 1920 relaciona a palavra à imagem, através de sobreposições
e fusões do verbal com o visual que evocam sons se espalhando pelo quadro,
demonstra como o cinema mudo articulava uma experiência audiovisual
inédita em que a presença ou ausência física do som (e/ou da imagem) não é o
único, nem o fundamental fator a se considerar. N’O Golem de Paul Wegener
(1920), por exemplo, o poder invocatório da palavra divina que é capaz de
animá-lo com o dom da vida (no caso, o termo hebraico emet, que significa
“verdade”) “emana” da fumaça do espírito invocado pelo rabi Loew como um
diagrama, cristalizando-se no ar antes de ser inscrito na estrela de
David/amuleto, que pode ligá-lo ou desligá-lo quando mecanicamente
inserida em seu corpo de barro, como um seletor de canais. Também a forma
com que Fritz Lang, na segunda parte do seu Dr. Mabuse, O Jogador (1922)
sugere o eco mental da palavra ‘Melior’ na mente do policial Von Wenk que
o atrai para o abismo homônimo, e que é apropriadamente substituído pela
voz do próprio Mabuse em sua versão sonora ou Testamento (O Testamento
do Dr. Mabuse, 1932), em uma ilustração literal de como o cinema mudo
estava longe de ser uma arte exclusivamente visual, mesmo quando o som -
devido a razões de ordem tanto técnica quanto estética ou comercial estava
ausente, acusticamente falando, do espetáculo.
No entanto, afirmar a reversibilidade sinestésica do audiovisual como
um componente gerativo do cinema não é apenas um problema de linguagem
ou uma questão de estética, pois a transdução analógica de sons e imagens (e
de sons em imagens e de imagens em sons) também permite realizá-la
cinestesicamente, isto é, como uma operação fílmica concreta a ser realizada
na película como suporte material da imagem e dos sons. Em sua
Optophonética, de 1922, o artista dadaísta Raoul Haussman descreveu com
entusiasmo as (então novas) possibilidades de transdução analógica de sons
em imagens (e vice-versa) que a reprodução ótica do som anunciava para o
cinema:
As velhas ciências secretas afirmam que a luz e o som são conexos, e a
técnica moderna nos fornece uma prova na música fotografada, no optophone e
nas pesquisas sobre o sentido de orientação espacial dos seres vivos. Ao estudar
estas pesquisas, chegamos necessariamente a esse resultado: além dos sons
audíveis e da luz visível a nós, relações e transições entre estas duas
175
emanações. (...) ao colocarmos uma lula de selênio diante de um arco de luz
em movimento acústico, ela produz diferentes resistências que agem sobre a
corrente elétrca segundo o nível de intensidade da luz. Podemos, assim, forçar o
raio de luz a produzir correntes de indução e a transformá-los, enquanto os sons
fotografados sobre um filme colocado atrás da célula de selênio aparecem como
linhas mais estreitas ou mais largas, mais claras ou escuras (...) o optophone
transforma as imagens obtidas por indução luminosa através da célula de selênio
em sons de novo com o microfone conectado ao circuito elétrico (...) e se
revertermos o processo, os sons se transformam em imagens. Uma sequência de
fenômenos óticos se transforma em sinfonia, e a sinfonia, por sua vez, se
transforma em panorama animado.
289
No cinema, a cinestesia se faz, portanto, sinestesia. Certamente, esta não
é uma qualidade exclusiva do cinema, sendo mesmo encontrada com
facilidade em todas as outras artes que exploram o movimento como uma
passagem, metafórica ou metamórfica, de um sentido a outro da percepção.
Teatro e dança se ancoram firmemente nesta possibilidade, mas também a
literatura, a pintura e a escultura
290
.
Pode-se levantar, portanto, neste ponto de nossa argumentação, a
seguinte objeção: nada do que foi dito acima acerca da especificidade do
fílmico é desconhecido, muito menos original ou realmente específico ao
cinema. Apenas o cinema de vanguarda e experimentação, a que nos
referimos no início deste capítulo, estaria interessado em descobrir um
específico fílmico, na medida em que, se este não for inserido em um contexto
narrativo qualquer, simplesmente não fará sentido algum. As alucinações
óticas e auditivas do cinema de Epstein, por exemplo, apenas representariam,
em outro suporte material, as metáforas verbais de Edgar Allen Poe, de tal
forma que o circuito fechado que leva da imagem ao signo (e vice-versa) não
não estaria rompido pelo filme, como sairia ainda mais reforçado pelo
trabalho necessário de adaptação que todo roteiro acarreta
291
. Neste caso
específico, poderíamos contra-argumentar com a seguinte questão: por que a
literatura de Poe interessa a um cineasta como Epstein, engajado na busca de
uma linguagem específica e autenticamente cinematográfica?
289
Haussmann, Raoul: Sensorialité excentrique, Editions Allia, Paris, 2005, pp. 12-14. Minha tradução.
290
Acerca da sinestesia, ver Merleau-Ponty, Maurice: Fenomenologia da percepção, Ed. Martins Fontes,
São Paulo, 1994, pp. 305-307.
291
A esse respeito, cf. Pasolini, Pier Paolo: L’expérience hérétique – langue et cinéma, Payot, Paris,
1976, pp. 156-166.
176
Em Anti-mimesis, from Plato to Hitchcock
292
, Tom Cohen demonstra
como a poesia de Poe, geralmente menosprezada pela crítica literária inglesa,
apresentava características formais sinestésicas intensamente modernas,
com um uso repetido de sílabas e fonemas aliterados que provoca o som como
objeto de suporte do sentido. Também em seus contos, como The tell-tale
heart ou The facts in the case of Mr. Valdemar, som, voz e olhar aparecem
como objetos dessubjetivados, destacados dos corpos a que deveriam
pertencer, irrompendo disruptivamente na narrativa e perturbando o seu
sentido.
Evidentemente, tratar-se-ia nesse caso de uma resposta teleológica em
que a literatura de Poe prefiguraria o componente gerativo do cinema,
sobretudo em seu caráter ligeiramente alucinatório e em seu estatuto ambíguo,
ora real ora imaginário. Embora a idéia não seja tão equivocada assim, na
medida em que a literatura de Poe reflete a visão de mundo moderna que a
fotografia e, um pouco mais tarde, o fonógrafo e o cinematógrafo
representam, a resposta mais consequente a esta objeção é sua própria
reafirmação, ou seja, a compreensão plena das implicações teóricas da
impossibilidade de um específico fílmico.
Em outras palavras, o componente gerativo audiovisual “específico” ao
cinema é, simplesmente, o componente gerativo genérico de qualquer
produção ou atividade mimética. Se a história e a teoria do cinema podem ser
consideradas como uma mimetologia, isto é, se o dispositivo cinematográfico
pode ser pensado como um dispositivo mimético duplamente articulado, no
plano do conteúdo e no plano da expressão (disjunção imagem/olhar,
escuta/som), isto se deve precisamente ao fato de que a visualidade não é o
meio de expressão específico do cinema, apenas seu meio de expressão mais
tradicional. Por isto, a história do cinema sempre pode ser traçada a partir de
fontes literárias e teatrais, pictóricas, escultóricas e musicais, sem que se
possa decidir por aquela que seria mais central à sua mímesis específica. Neste
sentido preciso, pode-se afirmar que não existe uma mímesis especificamente
cinematográfica, mas uma cinemática da mímesis que se constitui ao longo da
292
Cohen, Tom: Anti-mimesis, from Plato to Hitchcock, Cambridge University Press, 1994.
177
história como um processo específico de produção desta mesma experiência
histórica.
Ao articular cinestesicamente as imagens aos sons para reconfigurar,
sinestesicamente, o olhar à escuta, o dispositivo cinematográfico revela a
cinemática da mímesis como duplamente articulada, pois seu componente
gerativo atua tanto metafórica quanto metamorficamente, isto é, articula-se
tanto no nível analógico diagramático em que o filme é ainda película, mero
suporte material de uma transdução ótica de séries de fluxos visuais e sonoros,
quanto no nível propriamente simbólico de tradução codificada das imagens e
dos sons, como signos portadores de um sentido unificado, a que Michel
Chion denomina sincrese
293
.
Somente pensando o dispositivo cinematográfico a partir do seu
componente gerativo podemos repensar as suas relações com o tempo e com a
história, ou seu componente transformacional. Para isto, devemos ainda nos
deter um momento no princípio-motor desta cinemática: o princípio do
assincronismo.
O (princípio do) assincronismo revisitado
O som ou Tratado de harmonia é um filme de Arthur Omar que pode
ser definido como uma cinestética da sinestese cinematográfica. Seu plano
final é uma sublime tra(ns)dução ótica (e visual) do plano material de
conteúdo ao qual se articula a expressão cinematográfica: trata-se de um
simples travelling da superfície do mar, iluminada pela luz do sol, em que o
reflexo lateral da luz sobre o espelho d’água produz uma imagem análoga à
imagem de uma película utilizada para a gravação ótica de sons (por variação
de área). O mesmo padrão diagramático de formas e intensidades que
podemos ver, impresso em uma película, vemos aqui impresso nesta bela
imagem do mar iluminado pelo sol, cujos raios se imprimem sobre a água
com se esta fosse um filme. Simulacro da imagem como reflexo, ou reflexo
do simulacro como imagem? Ambos, na medida em que Omar realizou a
proeza de inverter o quadrado semiótico do componente gerativo audiovisual
293
Cf. Chion, Michel: L’Audio-vision, son et image au cinéma, Éd. Armand Collin, 1990.
178
do cinema, pois é o próprio objeto-som que se faz aqui imagem,
manifestando-se no campo do visível, enquanto a imagem, como portadora de
sentido, recua para a pura superfície objetal do simulacro, para um campo a-
significante atravessado por traços e marcas de expressão de múltiplos
sentidos, intensidades e direções.
A sinestesia entre olhar e escuta, no cinema, se revela assim como um
processo não necessariamente metafórico, que sempre articulado à
possibilidade de metamorfose cinestésica de sons em imagens (e vice-versa).
Dupla articulação também, pois quer nos situemos no plano audiovisual da
expressão, quer nos situemos no plano material do conteúdo, pensamos
sinestesicamente o controle das relações entre escuta e olhar (a que
denominamos sincrese), e pensamos cinestesicamente o controle das relações
entre imagem e som, montagem e trilha sonora (a que denominamos
sincronismo).
O componente gerativo audiovisual do cinema revela o princípio-
motor de seu dispositivo neste momento: o princípio do assincronismo
consagra a disjunção isomórfica do plano de expressão ao plano de conteúdo
(imagem/olhar:escuta/som), em vez da mera correspondência entre
sincronismo labial e sincrese audiovisual, pressuposta geralmente no princípio
de sincronismo. Enquanto este último é um princípio meramente mecânico de
determinação causal da sincrese pelo sincronismo (ou, pelo menos, de uma
correspondência convencional, mesmo que por contraste ou contraponto,
entre os dois termos), o princípio do assincronismo é maquínico, já que
articula, em dois planos de consistência simultâneos, porém distintos, o
sincronismo técnico e a sincrese estética. É o princípio de assincronismo que
trilha as linhas de sutura ou cesura, de solda ou de fratura que percorrem as
diversas camadas de imagem e som de que se compõe o filme, de modo a
conjugá-las e/ou disjuntá-las, de acordo com a necessidade e/ou contingência.
O princípio do assincronismo não é o mero contrário do princípio de
sincronismo, mas seu inverso. Não propõe a sincrese assincrônica como
alternativa estética ou nova linguagem expressiva, mas possibilita a
sincronicidade e sua ausência, a conjunção e a disjunção audiovisual,
associando e disassociando sincronismo e sincrese de modo a jogar,
179
simultaneamente, com elementos do plano de conteúdo e do plano de
expressão. Neste sentido preciso, o componente gerativo audiovisual do
cinema é radicalmente diverso do de seus predecessores, como o teatro, a
ópera ou a dança.
Com efeito, os variados modos de articulação audiovisual do dispositivo
cinematográfico alternam entre o contínuo e o descontínuo, o sincrônico e o
asíncrono, por um lado, mas também entre o dentro e o fora de quadro, o
diegético e o extra-diegético, por outro, denotando e conotando um sem
número de planos e camadas de significações, distintos a partir da dupla
articulação entre um quadro visual delimitado, porém, aberto (isto é, infinito),
e uma não-trilha sonora desprovida de limites e sem enquadramento definido.
Esta ausência de correspondência na correlação entre quadro visual e trilha
sonora pode ser temporária ou permanente, parcial ou total, pode igualmente
se postular, auto-reflexivamente, como a regra da correlação. Para Chion,
entretanto, o que ela determina fundamentalmente é o fato algo paradoxal de
que, no cinema, não trilha sonora
294
. Não no sentido de que não haja sons,
mas no sentido de que estes não seguem, como em uma partitura musical, a
mesma trilha, ou seja, não se inscrevem, necessariamente, no mesmo plano de
expressão em que se desenrolam as imagens, embora fisicamente o façam no
plano material do conteúdo, isto é, sobre a película impressa. Com isto, a
relação entre imagens e sons pode ser reconfigurada de forma praticamente
ilimitada, assimilando todas as codificações e linguagens verbais, visuais e
sonoro-musicais precedentes, e gerando outras mais. É assim que, no cinema,
o uso expressivo do espaço visual fora de quadro, assim como a utilização dos
sons denominados por Michel Chion como acusmáticos (cuja fonte não só não
se localiza dentro do quadro como também, e, sobretudo, não se localiza
necessariamente no horizonte referencial da narrativa), atinge um grau
extremo no desenvolvimento de suas possibilidades expressivas.
Cabe, porém, neste ponto da exposição, a seguinte indagação: por que,
então, o famoso manifesto pelo assincronismo, publicado em 1928 por
294
Chion, Michel: La voix au cinéma, Cahiers du Cinéma, Paris, 1993, pp.
180
Eisenstein, Alexandrov e Pudovkin
295
, assim como as experiências e reflexões
sobre o som de um Réné Clair (ou mesmo de Chaplin), foram em sua época
considerados como uma manifestação de resistência ao cinema sonoro, de
caráter estetizante e vanguardista, que ia de encontro às tendências
dominantes da indústria cinematográfica?
Ao situar o princípio do assincronismo no plano da expressão
significante, todas essas tentativas iniciais de atenuação do impacto
provocado pela irrupção da voz como objeto audiovisual (acreditava-se
combater o naturalismo “teatral” do cinema falado, não a presença do som no
cinema) consideraram o sincronismo como mero princípio técnico de uma
expressão estética assíncrona. Ora, o sincronismo cinematográfico implica o
controle cinemático de vibrações, óticas e acústicas, que se propagam a
velocidades totalmente distintas, portanto assíncronas. E, assim como Chion
afirma não haver trilha sonora no cinema, podemos afirmar que, no cinema,
não há sincronismo de som e imagem no sentido absoluto, mas uma regulação
constante do assincronismo essencial à audiovisualidade do seu componente
gerativo. O sincronismo entendido como correspondência (geralmente labial)
estrita entre imagens e sons é, portanto, apenas uma possibilidade
(hegemônica) de sincrese entre outras, do mesmo modo que a imagem-
movimento deleuziana é apenas um caso específico de articulação espaço-
temporal da imagem-tempo
296
. Assim, o assincronismo não precisa ser
postulado como um objetivo a ser buscado pela expressão cinematográfica, na
medida em que se constitui no seu próprio princípio gerativo de regulação,
estando, portanto, potencialmente presente em qualquer filme. O fato de que
este em geral se revela como defeito ou falha técnica, muitas vezes explorada
com efeitos cômicos no plano de expressão, é também uma confirmação a
contrario deste princípio.
295
Eisenstein, S.M., Pudovkin, V.I., e Alexandrov, G.V.: « A Statement », e Pudovkin, V.I.:
« Asynchronism as a principle of sound film », in Film Sound – Theory and Practice, Columbia
University Press, (Weis, Elisabeth e Belton, John, orgs.), New York, 1987, pp. 83-91.
296
Ver acima, cap.1, pp.
181
O que é fundamental aqui, como foi ressaltado por diversos teóricos,
sobretudo Chion e Mary Ann Doane
297
, no entanto, é o papel da voz como
objeto sobre o qual a regulação dos sons à imagem se fundamenta.
“Amarrada” sincronicamente aos corpos (como na tradição naturalista do
cinema francês), ou flutuando de modo mais ou menos livre sobre a imagem
(como no estilo italiano de pós-sincronização sonora), esta se mostra capaz,
no cinema, de habitar e desabitar os corpos como se estes fossem marionetes
histrionicamente animadas por um ventríloquo
298
.
É, portanto, o próprio cinema industrial de entretenimento, em sua
exploração comercial do talkie, que revela retroativamente o assincronismo
como princípio e possibilidade latente ao cinema. Já em 193?, Jack Whale
dirigiu um típico filme B, The Invisible Man, que talvez seja o melhor
exemplo de inversão da situação audiovisual então considerada típica ao
cinema mudo: em vez de a imagem sugerir os sons ausentes que poderiam
acompanhá-la, é o som de uma voz que paira sobre as imagens como a marca
de uma ausência, ausência justamente do corpo que lhe serve de suporte.
Neste filme, a voz acusmática teorizada por Chion a partir d’ O Testamento
do dr. Mabuse, de Fritz Lang, não se limita a pairar sobre os personagens e
sobre a ação como uma espécie de entidade sobrenatural desprovida de corpo,
pois intervém incessantemente no quadro e em seus elementos visuais,
fazendo e desfazendo sucessivos e distintos pontos de sincronização que
funcionam como marcas ou índices do corpo do homem invisível, que é
capturado após ser forçado a abandonar um celeiro em chamas e correr pela
neve, deixando suas pegadas como rastro.
A voz, como objeto de uma sincronização precisa a um corpo, permite
articular a escuta ao olhar através da imagem de um rosto que fala. O
sincronismo labial, isto é, a conjunção de uma voz a um rosto, apresenta-se,
assim, como a expressão audiovisual hegemônica de uma disjunção
assíncrona do olhar à escuta, em que traços e marcas de expressão, ainda pré-
formados (óticos e acústicos), são capturados pelo filme entendido como
297
Doane, Mary Ann : « The voice in the cinema – the articulation of body and space », in Film Sound –
Theory and Practice, Columbia University Press, (Weis, Elisabeth e Belton, John, orgs.), New York,
1987, pp. 162-176.
298
Como Chion amplamente demonstrou em seu essencial La voix au cinéma, Cahiers du
Cinéma, Paris, 1993, pp.
182
suporte material das imagens e dos sons. O componente gerativo audiovisual
do cinema é configurado, assim, de forma convencional e redutora pela maior
parte dos filmes realmente produzidos: pressupõe-se sempre a
correspondência audiovisual da trilha (sonora) à sequência de imagens como
um circuito fechado de significação, garantido pela sincronia labial que ata as
vozes aos rostos e corpos, obliterando-se o caráter objetal do olhar, da voz e
do som, como componentes da imagem, e escamoteando-se a ausência real de
relação entre as imagens e os sons (e muitas vezes também entre as imagens e
entre os sons). Ao espectador/ouvinte, o princípio do assincronismo como
componente gerativo do cinema é revelado sob a forma invertida do
sincronismo, que regulariza o fluxo da projeção ao mesmo tempo em que
garante o sentido audiovisual da expressão.
No entanto, até mesmo o mais banal e monótono filme “falado” pode
apresentar situações em que o sincronismo é apenas a forma aparente de uma
disjunção. The voice of terror, por exemplo, é um rotineiro filme realizado em
1942 com o personagem Sherlock Holmes, em que o detetive enfrenta uma
apavorante voz nazista, que transmite ameaças radiofônicas concretizadas
como que instantaneamente ao seu comando. Nesta época, o uso do rádio
como elemento narrativo que justifica a súbita irrupção de um objeto sonoro,
de ameaça ou de perturbação da correspondência audiovisual entre sons e
imagens, não era novidade em termos cinematográficos, estando presente
em filmes anteriores muito mais relevantes, como o citado Testamento do
Dr. Mabuse ou O Grande Ditador, de Chaplin.
De extremo interesse neste filme, porém, é o modo como Holmes
desmascara a identidade secreta da voz por trás das transmissões de rádio:
escutando uma transmissão ao vivo da quinta sinfonia de Beethoven pelo
rádio, Holmes, para espanto de Watson, se levanta e pede a outra estação
transmissora, por telefone, que toque a mesma sinfonia em uma versão pré-
gravada em disco, conduzida pelo mesmo maestro da versão transmitida ao
vivo. Enquanto escuta o rádio, Holmes se concentra num desenho que, para
Watson, é apenas um rabisco sem maior importância. No entanto, Holmes
traça diferentes diagramas para um mesmo som (a mesma versão da quinta
sinfonia de Beethoven), a partir de dois sinais de áudio gerados em
183
circunstâncias distintas, revelando a diferença real entre duas imagens sonoras
idênticas. Holmes demonstra que a voz provém da Inglaterra (e não da
Alemanha, como se supunha), não devido a uma pequena defasagem
temporal (delay) entre as transmissões e os atentados que anuncia (que
ocorrem sempre um pouco antes do seu anúncio), como, sobretudo, devido à
quase imperceptível diferença entre as curvas de um sinal de áudio
proveniente de uma transmissão direta e as curvas de um sinal pré-gravado
em disco - caso das tais transmissões, pré-gravadas na Alemanha e enviadas à
Inglaterra para coincidir, sincronicamente, com o dia e a hora dos atentados
previstos.
Em outra sequência do mesmo filme, o ruído de aviões que se
aproximam, fora de quadro, pode ser identificado, tanto negativamente o
ruído dos aviões alemães Messerschmidt, que invadem a Inglaterra) quanto
positivamente o ruído dos aviões ingleses Spitfire, que acabam de evitar a
invasão da ilha pelos alemães). Esta ambiguidade diz respeito ao sentido do
som, ou seja, à sua identificação causal (a fonte do som e sua localização
espacial) e semântica (possíveis significados atribuíveis àquele som, naquele
lugar, em tal momento).
Para aquém desta ambigüidade semântica, pré-inscrita na identidade
pressuposta de um som e/ou de uma imagem sincronizados no plano
audiovisual da expressão, o princípio do assincronismo aponta para a
indecidibilidade constitutiva das relações entre sons e imagens, radicada no
próprio plano material de seu conteúdo: o som pré-gravado indica aqui a
manipulação das relações audiovisuais, sua possível falsidade, enquanto a
transmissão direta, ao vivo, indica uma possível autenticidade documental
atribuível à “voz do terror”. Embora, tecnicamente falando, os diagramas
desenhados por Holmes consistam, de fato, em meros rabiscos sem
significação real (sem mencionar que, mesmo que Holmes conseguisse
perceber as sutis diferenças de padrão entre dois sinais de áudio
representativos do mesmo som, jamais poderia efetivamente deduzir a
identidade ou o paradeiro de uma voz específica apenas através destas), o
caráter explicitamente fabular desta sequência demonstra, a contrario, o
princípio de assincronismo como o real do componente gerativo do cinema,
184
na medida mesma em que a narrativa audiovisual sincrônica deve se basear
precisamente na sua obliteração (Holmes, afinal de contas, percebe a
diferença entre os dois sinais, isto é, é capaz de decidir qual dos dois é
“autêntico”).
Neste sentido, o sincronismo é apenas a forma mais comum do
assincronismo, a de uma identidade reinscrita na diferença como modo
disjuntivo de sua própria fundamentação. A identidade expressiva da
correlação audiovisual contrapõe-se, portanto, à diferença real que constitui o
conteúdo material de uma expressão audiovisual qualquer. Só é possível
vislumbrar sua emergência na imperceptível linha de distinção entre um
objeto e seu duplo, e na indecidibilidade inerente ao signo audiovisual assim
constituído, como no caso dos diagramas desenhados por Holmes. Ambos se
referem ao objeto sonoro ‘quinta sinfonia’ a partir do signo de sua identidade
(o mesmo objeto, a quinta sinfonia), mas, como sua forma precisa adere ao
conteúdo material de um sinal de áudio específico, ressaltam, quando
comparados, o traço da imperceptível (porém, ineludível) diferença a partir da
qual a própria identidade se estabelece.
Da ambiguidade inerente ao sentido audiovisual da expressão,
passamos, assim, à indecidibilidade estrutural que caracteriza o princípio de
assincronismo como o princípio-motor do componente gerativo do cinema.
Esta indecidibilidade é a mesma indecidibilidade entre o real e o imaginário
que havíamos detectado, em nosso segundo capítulo, no simulacro
entendido como estrutura especular da imagem, pois o indecidível da
diferença não remete mais somente ao sentido, mais ou menos ambíguo, dos
signos, no plano da expressão, mas à oscilação incessante de um objeto
audiovisual que se constitui, em seu próprio plano material de conteúdo, não a
partir de um modelo visual, sonoro ou literário de referência que permita
atestar sua verdade ou falsidade em relação ao mundo real, mas como o
simulacro de uma realidade que ora se apresenta ostensivamente como
narrativa fabular, disjunta à história, ora se legitima como documento
histórico, algo paradoxalmente, a partir de sua própria auto-referencialidade
especular.
185
O princípio do assincronismo é uma reconfiguração do princípio do
desvio, ou clinamen, de Lucrécio. Contrapondo a linearidade contínua do
fluxo visual, delimitado pelos sucessivos quadros descontínuos que o
compõem, à múltipla descontinuidade de séries ilimitadas de fluxos sonoros
contínuos, o princípio do assincronismo nos permite situar o componente
gerativo do cinema além da semiótica, isto é, além da constituição de uma ou
mais linguagens cinematográficas (mesmo que a partir dos próprios objetos
do mundo, como o queria Pasolini). Deleuze, no entanto, identifica o
clinamen lucreciano ao engrama de Vertov
299
, ou o mínimo intervalo
diferencial necessário entre dois fotogramas. Com isto, Deleuze encerra o
componente gerativo do cinema na materialidade da imagem e deduz uma
estilística da história do cinema ainda fortemente ancorada na visualidade
como meio específico da expressão cinematográfica. Sem dúvida, isto é
coerente com o próprio desenvolvimento histórico do cinema, tanto em
termos técnicos quanto estéticos, mas apresenta a desvantagem metodológica
de concentrar a exposição deleuziana no desdobramento semiótico do seu
componente gerativo, escamoteando os demais componentes -
transformacional, diagramático, maquínico - do dispositivo cinematográfico
entendido como práxis duplamente articulada (mecânica e anímica, técnica e
esteticamente), à experiência da mímesis e à mímesis da experiência.
O princípio do assincronismo não é uma opção estética dentre outras,
muito menos a “verdadeira” linguagem específica do cinema, ou algo do
gênero. É precisamente o inverso: um princípio genético de composição do
filme (seu componente gerativo) que permite pensar a correlação entre dois
processos assimétricos, a dupla articulação de um plano material de conteúdo
a um plano audiovisual de expressão. Não se trata apenas do princípio técnico
de sincronização dos sons às imagens, tampouco da sincrese como princípio
estético de composição audiovisual, mas de ambos em sua correlação
disjunta, e da indecidibilidade estrutural que extrai, da imperceptível diferença
geradora de semelhanças, o simulacro entendido como intervalo ou oscilação
entre o objeto e seu duplo.
299
Ver Deleuze, Gilles : Cinéma 1 L'Image-Mouvement, Les Editions de Minuit, Paris, 1983, pp.120-121.
186
A escuta de Ulisses
Em Narrativa e modernidade
300
, André Parente salienta a dualidade da
análise deleuziana, que retoma a dicotomia teorizada por Maurice Blanchot
entre Ulisses e Achab. Tal distinção remonta ao Livro por vir
301
, que faz do
episódio em que Ulisses enfrenta as sereias e seu canto, na Odisséia, o
momento paradigmático de toda a literatura ocidental. Na medida em que o
ardil, descrito por Homero, consiste em fruir do belíssimo, porém, letal, canto
das sereias, sem correr o risco de sucumbir aos seus encantos (devido às
cordas que o amarram ao mastro do navio, assim como à cera utilizada para
tampar o ouvido dos seus marinheiros), Ulisses pode ser considerado o
protótipo do bardo ou aedo da tradição épica, capaz de conjurar o tico
encantamento das sereias em um canto passível de rememoração, isto é, em
uma experiência narrativa. A poesia épica de Homero marca a passagem do
mito ao mythos, isto é, à fabulação narrativa, e seu distanciamento formal com
relação ao próprio material mítico que lhe serve de referencial é o
distanciamento de Ulisses diante do canto das sereias, um distanciamento que
lhe permite controlar o destino e o desfecho vitoriosos da viagem/passagem
pelo encanto vocal de seu canto. Achab se contrapõe a Ulisses na medida em
que seu confronto com a baleia se resolve na auto-dissolução do herói e no
naufrágio de sua embarcação. Enquanto Ulisses é o protótipo narrativo do
herói, Achab é o protótipo de sua dissolução. Neste sentido, pode-se afirmar
que a contraposição entre ambos representa o destino da própria narrativa na
história da literatura ocidental, pois se esta “nasce” com Homero, atinge seu
ápice e posterior dissolução com o romance moderno, de que Melville é um
dos primeiros representantes.
André Parente aplica essa idéia à bipartição deleuziana da história do
cinema, atribuindo ao cinema clássico-narrativo, sensório-motor, da imagem-
movimento, o controle diegético do fluxo audiovisual e de seu sentido
exercidos pelo distanciamento de Ulisses, enquanto o cinema moderno, em
que se revela a imagem-tempo, mergulharia, como Achab, no turbilhão
descentrado do simulacro como produção incessante de sentido. Ao aplicar
300
Parente, André: Narrativa e modernidade – os cinemas não-narrativos do pós-guerra, Papirus
Editora,2000.
301
Blanchot, Maurice: O livro por vir, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2005.
187
esta idéia à teoria e à história do cinema, demonstrando como a polaridade
imagem-movimento/imagem-tempo pode ser reinterpretada, em termos
narratológicos, como a dualidade entre Ulisses e Achab, Parente segue
Deleuze à risca em suas afinidades estético-literárias, mas encerra a sua teoria
do cinema no campo de uma estética da representação, pois, embora tal
operação faça plena justiça ao modo com que Deleuze demonstra que as
potencialidades expressivas do cinema são perfeitamente capazes de traduzir
relações temporais as mais complexas (algo que um escritor como Proust não
era ainda capaz de admitir
302
), apresenta a desvantagem de encerrar o
componente gerativo do cinema em si mesmo, como se este fosse o elemento
específico do filme como arte, ou seja, como forma de representação.
À narrativa verídica, a de Ulisses (que pode ser verdadeira ou falsa),
Parente contrapõe a narrativa não-verídica, a de Achab, afastando-se de uma
semiologia ou semântica de corte estrutural baseada na oposição binária entre
o verdadeiro e o falso (o ficcional e o documental), para se aproximar da
mimetologia hermenêutica de Ricoeur, que propõe um processo de
composição da intriga narrativa capaz de reconfigurar seus objetos sem
referenciá-los previamente a um modelo ou circuito definitivo de signos.
Porém, na medida em que se mantém explicitamente no escopo de uma
narratologia do filme, Parente distancia-se claramente de Deleuze:
(...) acreditamos que os processos de temporalização são, a um tempo,
imagéticos e narrativos. O que significa dizer que as imagens-tempo não são
primevas em relação às operações de temporalização narrativas: é precisamente
a narração temporalizante que condiciona tanto as imagens-tempo quanto a
narrativa não-verídica.
303
Ora, como vimos em nosso primeiro capítulo, o problema da
temporalidade no cinema não se reduz à associação de uma sequência visual
de imagens a uma sequência narrativa de acontecimentos, pois envolve uma
operação de apreensão do contínuo pelo descontínuo
304
em que as imagens e
os signos se inscrevem como elementos de uma dupla articulação, cinemática
302
Ver cap. 2, p.
303
Parente, André: Narrativa e modernidade – os cinemas não-narrativos do pós-guerra, Papirus Editora,
2000, p.275.
304
Ver cap. 1, p.
188
(no plano material do conteúdo) e cinematográfica (no plano significante da
expressão).
Procurando escapar da lógica opositiva binária que rege os processos de
significação, Parente retoma o problema da representação cinematográfica a
partir do discurso indireto livre já evocado por Pasolini
305
, apontando para
uma cinemática da narrativa em que o conceito de voz - não como objeto de
uma escuta, mas como sujeito de uma narração -, lhe permite pensar as
modalidades de ordenação e serialização das imagens-tempo deleuzianas
como singularidades descontínuas geradas a partir de uma mesma voz
contínua, a voz da narração. Esta noção de “voz narrativa”, também
influenciada por Blanchot, abarca tanto a concepção monológica de uma voz
interior que se coloca na posição de sujeito da narração, como concepções
mais complexas desta voz, baseadas no dialogismo, na neutralidade ou
mesmo em sua afonicidade
306
.
O que o recurso à noção de voz nos deixa entrever aqui, no entanto, é o
fato de que, nem o recurso à imagem, nem a ancoragem na narrativa,
permitem à teoria do cinema pensar sua própria relação com a temporalidade
em toda plenitude. Se a voz, no cinema, correspondesse apenas à noção de
sujeito da enunciação narrativa, mergulharíamos inevitavelmente, como
Achab, no olho abissal de uma hermenêutica infinita. A dedução dos demais
componentes da pragmática do cinema também se tornaria ou impossível, ou
desnecessária, e a teoria deleuziana do cinema se veria reduzida a uma
estética cinematográfica dentre outras.
No cinema, se a voz aparece como um ponto privilegiado de articulação
do olhar aos sons e da escuta às imagens, isto não se deve somente ao fato de
que é capaz de funcionar, no plano da expressão significante, como o sujeito
de um discurso - ou mesmo do discurso entendido como o discurso do filme,
isto é, de seu narrador. Deve-se, sobretudo, ao fato de que a voz também se
articula, em um filme, ao plano material do conteúdo como um som-objeto.
Em outras palavras, se a voz pode ocupar o lugar de sujeito da narração, isto
305
Ver cap. 2, p.
306
Ver Parente, André: Narrativa e modernidade – os cinemas não-narrativos do pós-guerra, Papirus
Editora, 2000, pp.
189
ocorre porque, ao articular o som (no plano material de conteúdo) aos signos
da fala (no plano da expressão significante), a voz tende a se ocultar, como
objeto, do campo audiovisual da expressão
307
. Que tal ocultação não seja
realmente possível e que a voz remeta incessantemente o elemento
descontínuo da significação à continuidade material que o envolve e contém,
através de um en-canto, musical e/ou acusmático, capaz de romper tanto com
os limites do discurso e da significação quanto com os limites visuais do
enquadramento, isto é o que a narratologia aplicada ao cinema não é capaz de
compreender, pois é desta disjunção fundamental entre contínuo e
descontínuo que deriva a temporalidade como categoria fenomenológica.
No caso específico do cinema, tal disjunção se articula, como vimos,
num plano material de conteúdo e num plano significante de expressão
(componente diagramático), a partir da dupla disjunção audiovisual entre as
imagens e o olhar, de um lado, e a escuta e os sons, do outro (componente
gerativo). Nenhuma escuta é possível na submersão total do olhar no objeto,
mas a escuta semântica promove a emergência do sentido nas imagens e nas
palavras, configurando os signos do discurso cinematográfico. A narrativa,
aqui, é necessariamente derivada, pois nada garante a sua transmissão, que
depende da escuta como um processo de aderência e resistência simultâneas
ao olhar. Portanto, não há necessidade de se postular uma temporalidade
narrativa como princípio-motor deste componente, pois é o próprio
assincronismo entre escuta e olhar que produz o efeito temporalizante da
disjunção – ou seu devir, não necessariamente narrativo.
A dupla disjunção audiovisual (imagem/olhar:escuta/som) impede o
encerramento da história do cinema em camisas-de-força semióticas ou
narratológicas. Qualquer estética da arte cinematográfica ou método de
análise fílmica deve levar em conta, necessariamente, uma série de elementos
que compõem o filme em níveis de organização situados aquém e além dos
processos de significação e representação cinematográfica, mesmo quando
baseados em uma temporalidade especificamente fílmica ou imagética. O
componente gerativo do cinema, por exemplo, considerado em si mesmo,
307
Com efeito, as técnicas de captação, edição e mixagem de sons, de maneira geral, processam as vozes
de maneira a enfatizar o seu papel como portadoras de uma fala significante, em vez de sublinhar o seu
caráter sonoro de objeto.
190
implica uma teoria da espectatorialidade
308
, na medida em que o “texto”
fílmico, ou sua expressão audiovisual, depende da presença de um
espectador/ouvinte para realizar suas potencialidades.
Um estudo do componente gerativo do cinema só se completa, portanto,
com uma análise da experiência cinematográfica que parta da postura que
assume o espectador/ouvinte - em vez de considerá-lo como o receptor
passivo de uma mensagem a ser decodificada, como o fazem os teóricos do
cinema adeptos de uma abordagem cognitivista
309
.
Ainda uma vez, podemos nos servir da dualidade Ulisses/Achab para
pensar o cinema, mas não a partir de questões ainda tão próximas ao mundo
estético-literário da representação, como as do papel do narrador e/ou da voz
narrativa em uma enunciação qualquer, mas, sim, diante do que a experiência
cinematográfica apresenta de mais peculiar, que é a dupla disjunção do olhar e
da escuta. Na sala de projeção, sentimo-nos diante da imagem como Achab
diante da baleia Moby Dick, imersos na monstruosidade do seu olhar. Diante
dos sons, agimos como Ulisses diante das sereias e seu canto, situando-nos à
distância mais segura da escuta. É por isto que a contraposição entre Ulisses e
Achab é também uma disjunção entre o olhar (de Achab) e a escuta (de
Ulisses):
Não se pode negar que Ulisses tenha ouvido um pouco do que Achab
viu, mas ele se manteve firme no interior dessa escuta, enquanto Achab se
perdeu na imagem. Isso quer dizer que um se recusou à metamorfose, na qual o
outro penetrou e desapareceu.
310
Se a história da literatura moderna pode ser considerada como a vitória
do devir de Achab sobre o devir de Ulisses, isto se deve à consideração do
devir como o devir da narrativa e de suas vozes, entendidas como formas de
organização da temporalidade. Certamente, seria tentador considerar a história
do cinema, do ponto de vista do desenvolvimento dos seus regimes de
temporalidade e de suas formas e vozes narrativas, como uma reedição
308
Como já o havia intuído, nos primórdios da teoria cinematográfica, Munsterberg, Hugo: “A atenção”,
in A Experiência do Cinema, (Xavier, Ismail, org.), Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1991, pp. 27-54.
Ver também Hansen, M.B.: “Introdução à teoria do filme de Kracauer”, in Kracauer, Siegfried: Theory of
film – The redemption of physical reality, Princeton University Press, 1997, pp. vii-xiv.
309
Ver, a esse respeito, Ramos, Fernão Pessoa (org.): Teoria contemporânea do cinema – pós-
estruturalismo e filosofia anlítica, Ed. SENAC, São Paulo, 2005, pp.141-218.
310
Blanchot, Maurice: O livro por vir, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2005, pp.10-11.
191
acelerada de formas anteriormente produzidas pela literatura ocidental, como
o trabalho de Parente, assim como o de Deleuze, parecem às vezes sugerir
311
.
Mas embora esta tendência fosse relativamente forte nos cinemas não-
hollywoodianos do s-guerra até meados dos anos 1980, o espectador
contemporâneo vai ao cinema, nas bem humoradas palavras de Jaques
Rancière, assistir ao naufrágio do Titanic com um volume de Deleuze debaixo
do braço...
Os últimos vinte e cinco anos viram o cinema tomar uma orientação
bem distinta e, em geral, esteticamente mais conservadora do que aquela
descortinável pelo cinema de poesia da imagem-tempo. Na história do
cinema, Ulisses e Achab apresentam-se como os pólos antitéticos de um
mesmo devir em disjunção, o devir audiovisual do filme. Este oscila
constantemente entre o naufrágio (de Ahab) e a bem sucedida travessia (de
Ulisses), mas revela-se, em geral, mais favorável à posição de Ulisses, ao
menos quando se considera o problema do espectador e das condições de
espectatorialidade, como um problema tão ou mais relevante para o
componente gerativo do cinema, do que o problema da autoria, ou das
condições de enunciação da narrativa. Isto porque, para o espectador de um
filme, se o naufrágio nunca deve ser completo, tampouco a vitória sobre o
canto das sereias pode ser total. Mesmo o mais conservador (narrativamente
falando) dos filmes atuais faz com que o espectador/ouvinte passe por uma
série de distúrbios visuais e auditivos de caráter quase ou pré-alucinatório
(vide a obra de Lynch, para ficar no óbvio), em um torvelinho avassalador de
imagens e sons que atinge e assoberba fisicamente o espectador
312
, para então
reconduzi-lo à normatividade clássico-narrativa. No cinema atual, Ulisses
ainda vence as sereias, mas sob a condição de passar pelos tormentos e
delícias da experiência de Achab.
Pode-se, portanto, colocar o componente gerativo do cinema sob o
“signo” de Ulisses, desde que se entenda que este Ulisses não é mais o Ulisses
de Homero/Blanchot – o condutor seguro da própria narrativa, da qual retira o
311
Wisnik sugere algo semelhante acerca do rápido desenvolvimento, no jazz do século XX, de certas
formas harmônicas que a música tonal ocidental desenvolveu ao longo de toda a sua história, ver Wisnik,
J.M.: O som e o sentido, Ed. Companhia das letras, São Paulo, 2001, p.
312
Talvez o melhor teórico desta tendência contemporânea do cinema seja Shaviro, Stephen: The
cinematic body, University of Minnesota Press, 2006.
192
encanto ilimitado para reconfigurá-lo em uma forma transmissível. Também
não se trata mais de um Ulisses simplesmente oposto a Achab, como um
princípio ou emblema alegórico, mas de um Ulisses-Achab, capaz de
mergulhar no turbilhão avassalador do simulacro e atravessá-lo ileso,
emergindo do naufrágio são e salvo.
A descent into the Maelström, de Edgar Allen Poe, é a narrativa precisa
deste Ulisses-Achab, confrontado ao terrível olho de um monstruoso
redemoinho marítimo, o Maelström:
As I felt the sickening sweep of the descent, I had instinctively tightened
my hold upon the barrel, and closed my eyes. For some seconds I dared not
open them – while I expected instant destruction (...) But moment after moment
elapsed (...) I took courage and looked once again upon the scene.
Never shall I forget the sensations of awe, horror and admiration with
which I gazed about me. The boat appeared to be hanging, as if by magic,
midday down, upon the interior surface of a tunnel vast in circumference,
prodigious in depth, and whose perfectly smooth sides might have been
mistaken for ebony, but for the bewildering rapidity with which they spun
around, and for the gleaming and ghastly radiance they shot forth, as the rays of
the full moon, from that circular rift amid the clouds (...) streamed in a flood of
golden glory along the black walls and far away down into the inmost recesses
of the abyss.
313
Ulisses navegador se transmuta aqui em ancião, velho contador de
histórias “não-verídicas”, capaz de escutar em sua memória as lições de seu
antigo mestre-escola sobre Arquimedes e a dinâmica dos fluidos, em meio ao
mais avassalador turbilhão de matéria concebível pela imaginação. Ulisses
não é mais aquele que mantém uma distância seguramente apolínea do canto
das sereias como fonte material de expressão, pois deve passar pelo naufrágio
de Achab e sobreviver a tal experiência, para dela extrair sua narrativa.
Este Ulisses “pós-Achab” que podemos aproximar do componente
gerativo audiovisual do cinema, é o Ulisses de um pequeno, porém sublime,
texto não-intitulado de Kafka, geralmente conhecido como O silêncio das
sereias
314
. Neste texto, que se oferece ao leitor como uma variante anônima e
tradicional da história homérica, Ulisses e cera em seus próprios ouvidos, e
enfrenta o canto das sereias com ingênuo destemor. Estas, por sua vez, “têm
313
Inserir tradução de versão em português. Poe, E.A.: Selected Writings, Penguin Books, 1979, pp.237-
238.
314
A versão em português que utilizamos está disponível em Wellbery, Davis E.: Neo-retórica e
desconstrução, Ed. UERJ, Rio de Janeiro, 1998, pp.209-210.
193
uma arma mais terrível que seu canto: seu silêncio”.
315
Ulisses derrota o
encanto mudo das sereias, reemergindo de um encontro abissal com o mais
opressivo dos silêncios - o silêncio do próprio som como objeto - porque,
como um autêntico espectador de filmes mudos, não escuta este silêncio,
atravessando incólume seu olhar. Com isto, reconfigura o fascínio provocado
por este olhar em experimento para a escuta, confirmando a caráter
audiovisual da experiência cinematográfica “muda” a partir da posição do
espectador/ouvinte (e não do narrador).
Kafka, no entanto, adiciona uma última possibilidade em sua variante
do encontro de Ulisses com as sereias, a qual nos permite pensar a situação do
espectador/ouvinte de um filme sonoro: assim como este último pode ouvir
vários sons em um filme sem realmente escutá-los, Ulisses seria tão astuto
que teria percebido o silêncio das sereias, mas teria fingido não escutá-lo, “e a
elas opôs e aos deuses, como uma espécie de escudo, a dissimulação acima
mencionada”.
316
O Ulisses de Kafka, portanto, encena a própria suspensão da descrença
que um filme exige de seu espectador. Assim como Blanchot faz do Ulisses
homérico um paradigma do componente gerativo da narrativa, Kafka faz de
seu Ulisses um paradigma do componente gerativo audiovisual do cinema.
Tal afirmação pode soar algo forçada, especialmente se levarmos em
conta o silêncio do próprio Kafka, em sua obra literária, acerca do cinema.
Com efeito, a relação de Kafka com o cinema foi revelada tardiamente,
com a publicação do magnífico trabalho de Hans Zischler, Kafka vai ao
cinema
317
. Nesta obra, Zischler demonstra como, embora sem reflexos
aparentes sobre o seu trabalho, a experiência do cinema exercia um grande
fascínio sobre ele: “Kafka só escreveu muito esporadicamente sobre suas
experiências cinematográficas, e raras vezes o fez de maneira sistemática.”
318
Em todo caso, a partir destes esparsos fragmentos de crítica cinematográfica,
geralmente misturados a detalhes de sua vida cotidiana e registrados em sua
correspondência pessoal, vislumbra-se em Kafka uma atitude muito mais
315
Idem, pp. 209.
316
Idem, p. 210.
317
Zichler, Hans: Kafka vai ao cinema, Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2005.
318
Idem, p.87.
194
entusiasmada com as possibilidades expressivas do cinema que a de Proust ou
Bergson:
Certamente o principal requisito do drama cinematográfico é a ação. Mas
desde quando os processos psíquicos não constituem ação? Naturalmente no
cinema não podemos nos entregar a longas reflexões sobre esta ou aquela
questão, mas é perfeitamente possível introduzirmos dor, alegria, desespero,
tristeza, aflição, desânimo, amor e assim por diante, tal como na vida real.
319
Kafka, na sala de projeção, era um astuto espectador do cinema como
um processo de simulação, fascínio e engodo. Da mesma forma com que o
capitão do navio de Nosferatu, no célebre filme de Murnau, se amarra ao
timão do seu barco à deriva para resistir, sem sucesso, à investida do vampiro,
a pequena narrativa kafkiana do encontro com as sereias é como a projeção de
um filme em que Ulisses, amarrando-se ao mastro do navio, é lançado à
deriva silenciosa do seu canto.
Teriam as sereias, cantado ou se calado? Em ambos os casos, teria
Ulisses escutado o seu canto/silêncio, ou não? Se o texto é indecidível acerca
da real existência das sereias e de seu canto, também nos abandona à
indecisão acerca da real atitude de Ulisses, como espectador e como ouvinte.
Em um belo texto sobre “O simulacro e suas implicações em Nietzsche,
Deleuze e Kafka”, Maria Cristina F. Ferraz pensa o devir não-verídico do
simulacro como condição de (im)possibilidade do verdadeiro e do falso,
(...) restituindo em um vertiginoso jogo de espelhos outro modelo
possível no qual o sentido se abisma, revelando-se como invenção humana e
apontando para o caráter necessariamente refratário de qualquer fundo ou
fundamento.
320
Cristina Ferraz detecta a enorme importância deste pequeno texto de
Kafka, ao considerá-lo como um aforismo, de sabor nietzschiano, em que as
potências miméticas do falso e da simulação são elevadas à condição de
elemento gerativo do sentido e do não-sentido, simultaneamente. Toda a
mímesis de representação é confrontada aqui aos seus limites, não devido a
uma negação da narrativa ou da fabulação como princípio gerativo da
319
Idem, pp. 93-94.
320
Ferraz, M.C.F.: Nove variações sobre temas nietzschianos, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2002,
pp.133-148.
195
literatura, mas porque o próprio texto se constitui, em sua estrutura auto-
referencial, como uma mímesis do próprio processo mimético, em uma
espécie de redução fenomenológica do componente gerativo - não de toda
a literatura, como o queria Blanchot -, mas de todo e qualquer evento
transmissível.
Luiz Costa Lima, ao final de sua investigação sobre a questão da
mímesis
321
, demonstra como a exegese crítica acerca d’O silêncio das sereias
percorre uma trajetória que vai da instabilidade semântica (do sentido) à
indecidibilidade estrutural (do simulacro), sem poder fixar definitivamente o
seu sentido dentro dos cânones usuais de interpretação do que se considera
uma obra literária “de ficção”. Talvez a impossibilidade de uma reabsorção
plena deste texto, isto é, a impossibilidade de circunscrevê-lo
hermeneuticamente, não implique a inutilidade total de interpretá-lo, como o
sugere David E. Wellbery, que refere o silêncio das sereias, em última análise,
à (in)visível diferença que separa o silêncio do não ouvido:
Pela distinção vazia entre o silêncio das sereias e o “não ouvido’ que
Ulisses supõe não ouvir (...) por essa distinção que não distingue algo
apreensível ou positivo, nada se distingue e, por conseguinte, distingue-se o
nada como o vazio da própria diferença.
322
Nesse mínimo vazio a que se reduz a diferença, reside justamente o
princípio do a-sincronismo audiovisual com que Ulisses se defronta na
variante kafkiana desta história, uma reinterpretação alegórica da posição,
paradoxal, em que o espectador/ouvinte de um filme é colocado pelo próprio
componente gerativo do dispositivo. Tal posição não é simplesmente a de
uma atitude de identificação passiva e imaginária a uma instância
narrativa/autoral implícita ao discurso fílmico, embora não exclua
necessariamente essa possibilidade.
Ulisses oscila permanentemente entre o olhar e a escuta, a duração e o
instante: duração do canto das sereias como evento (não necessariamente
narrativo, mas diegético) em que o olhar mergulha, “musicalmente”, na mise
en abîme do sentido/não-sentido; instante inapreensível de um flagrante (não
321
Costa Lima, Luiz: Mímesis, desafio ao pensamento, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000,
pp. 367-395.
322
Wellbery, David E.: Neo-retórica e desconstrução, Ed. UERJ, Rio de Janeiro, 1998, p. 200.
196
necessariamente significante, mas mimético) em que a escuta captura a
diferença entre o silêncio e o não-ouvido como o momento indecidível de
uma derrota e/ou de uma vitória sobre a morte.
Que a vitória de Ulisses seja a derrota de Achab, em termos narrativos,
eis o que a teoria e a história da literatura, como representação, nos revelam.
Que Ulisses deva se metamorfosear em Achab para atravessar o encanto das
sereias, em termos cinemáticos, eis o que nos revela a experiência do cinema
como dispositivo mimético. Se esta experiência nos convoca a repensar, com
Kafka, as relações entre a mímesis e a representação para além da narrativa, o
problema da transmissibilidade de um evento não pode se restringir, no
cinema, às questões ligadas às condições de enunciação e recepção que
balizam o texto literário. Tal experiência não pode mais ser definida, em
termos aristotélicos, como experiência do mythos ou da fábula, por mais
extensa e abrangente que seja a sua definição.
Uma cinemática da mímesis, portanto, não se constitui apenas como
uma mimetologia “onívora” dos regimes artísticos representacionais
anteriores, que anuncia e realiza um novo regime, que seria o regime estético
pós-representacional da modernidade, segundo Jacques Rancière. Em sua
dupla articulação dis-junta do olhar à escuta e das imagens aos sons, o
dispositivo cinematográfico é uma mimetologia da própria (im)possibilidade
da experiência como tal, e das condições “tecno-fenomenológicas” de
geração, não de um sentido para a experiência, mas, sobretudo, de uma
experiência capaz de suscitar, ou não, (a questão do) seu próprio sentido.
A pátina do filme: o componente transformacional
Enquanto O silêncio das sereias nos permite pensar o caráter
audiovisual do componente gerativo do cinema em seu princípio de
assincronismo, outro pequeno texto sem título de Kafka possibilita aplicar
este princípio à dialética entre a duração e o instante presente, tanto na
experiência cinematográfica, como na experiência de Ulisses:
Ele tinha dois inimigos. O primeiro o assediava de trás, desde a origem.
O segundo o impedia de avançar. Luta com os dois. Na verdade, o primeiro o
apóia na luta contra o segundo, pois quer empurrá-lo para diante e do mesmo
197
modo o segundo o apóia na luta contra o primeiro, pois o empurra para trás. Mas
isso é apenas na teoria. Pois não apenas dois inimigos, mas sim ainda ele, e
quem, na verdade, conhece suas intenções? É seu sonho aproveitar-se de um
instante sem vigilância – por suposto carece de uma noite mais escura que
nenhuma outra para que se desprendesse da linha de luta e, por sua
experiência de combatente, fosse erigido em juiz de seus adversários.
323
David Wellbery um “íntimo parentesco” entre este pequeno
fragmento e o texto sobre Ulisses. De fato, uma interessante isomorfia
entre os dois textos, que também pode ser aplicada à situação do espectador
diante de um filme. Assim como “Ele”, Ulisses e o espectador se encontram
no entrechoque de duas correntes opostas: a corrente marítima que leva o
barco versus a corrente sonora de encantos que leva às sereias, no caso de
Ulisses; a corrente que o impele para frente e a corrente que o empurra para
trás, no caso d’”Ele”; e a corrente de sons e imagens que passaram versus a
corrente de imagens e sons por vir, no caso de um espectador de filmes.
Quanto ao instante sem vigilância com que sonha “Ele”, este corresponde à
vitória definitiva de Ulisses sobre as sereias, ou ao impossível instante de
captura real da experiência com que sonha o espectador de filmes.
O fragmento acima citado funciona, portanto, como um diagrama ou
esquema da disjunção assíncrona de que nos fala O silêncio das sereias.
Trata-se de uma reedição deste último, na qual seus planos de articulação
mais elementares, o olhar e a escuta, se veem definitivamente reduzidos à
dupla articulação diagramática entre o contínuo temporal de uma duração e a
descontinuidade instantânea de um momento presente. Assim, enquanto a
pequena variante narrativa sobre a história de Ulisses ainda nos apresenta, em
uma espécie de transe hipnótico, o fascinante mundo homérico com todas as
suas cores, imagens e sons, o sóbrio e lacônico texto que lhe revela o esquema
básico de disjunção reduz-se ao preto ou branco de uma oposição binária
entre o já vindo e o por vir, o já visto e o por ver, reintroduzindo a questão dos
regimes de temporalidade no cinema, a partir das suas condições de
espectatorialidade.
323
In Wellbery, David E.: Neo-retórica e desconstrução, Ed. UERJ, Rio de Janeiro, 1998, p.207.
198
Assim, se o fragmento sobre Ulisses nos permitiu ilustrar o componente
gerativo do dispositivo cinematográfico, com este segundo aforismo Kafka
aponta para os componentes - transformacional e diagramático - do filme.
Em seu prefácio à coletânea de artigos Entre o passado e o futuro,
Hannah Arendt interpreta o aforismo de Kafka como a alegoria de uma
brecha, no contínuo do tempo, que possibilita ao homem atingir uma posição
equidistante entre o seu passado e o seu futuro, em uma espacialização do
instante entendido como intervalo temporal. No entanto, tal brecha nunca se
estabiliza eternamente em um ponto fixo do tempo, pois passado e futuro não
se limitam a colidir no homem (“Ele”) como fluxos lineares opostos:
O que não funciona na história de Kafka, por mais magnífica que seja, é
que não é possível conservar a noção de um movimento temporal retilíneo se o
seu fluxo contínuo se encontra cindido em forças antagonistas que se voltam
contra o homem e agem sobre ele. A inserção do homem que cinde o continuum
pode fazer com que as forças se desviem, mesmo que ligeiramente, de sua
direção inicial, e se este fosse o caso, elas não se enfrentariam mais face a face,
mas se encontrariam de viés. Em outros termos, a brecha em que “ele” se
mantém não é, ao menos virtualmente, um simples intervalo, mas se parece com
o que os físicos chamam de um paralelogramo de forças.
324
A brecha entre o passado e o futuro, em que se passa a existência do
homem, é a brecha entre a experiência do passado e o futuro do pensamento.
Autoridade e liberdade se confrontam, ao longo deste paralelogramo de
forças, com a verdade e com a mentira. Porém, para H. Arendt, “nous ne
semblons ni equipés ni préparés pour cette activité de pensée, d’installation
dans la brèche entre le passé et le futur.”
325
O instante sem vigilância, aquele
que permitiria ao homem conjugar integralmente sua experiência ao seu
pensamento, entrevendo em sua história a herança do passado na esperança do
futuro, é um momento necessariamente diferido, na disjunção permanente
entre a memória do que houve (como retenção do tempo) e a expectativa do
porvir (como distensão do tempo).
Tal diferimento pode ser entendido como o componente
transformacional do próprio tempo, e sua experiência depende da mesma
disjunção assíncrona entre o contínuo da duração e o descontínuo do instante
que gera a cinemática da mímesis. O princípio do assincronismo, portanto,
324
Arendt, Hannah: La crise de la culture, Ed. Gallimard, Paris, 1972, p.22. Minha tradução.
325
Idem, p.24.
199
também está presente na dupla articulação entre o passado e o futuro, e entre a
duração e o instante, que constitui o momento da diferença, momento este em
que o evento (histórico ou ficcional, verdadeiro ou falso) pode irromper, ou
não, a partir de um regime temporal determinado, ou seja, de um diferimento
temporal qualquer.
O componente transformacional do dispositivo cinematográfico, como
dispositivo mimético, está intimamente ligado à disjunção temporal da
história em sua (in)transmissibilidade. Esta noção é inerente aos estudos
deleuzianos sobre o cinema, embora estes a desenvolvam de maneira muito
esquemática, na medida em que se concentram prioritariamente nos
desdobramentos semióticos, estéticos e narratológicos, do seu componente
gerativo. Talvez por isto, seja mal compreendido por alguns dos seus
melhores críticos e comentaristas, assim como pouco explorado pelos teóricos
da mímesis, seja na literatura, seja no cinema.
Paul Ricoeur, por exemplo, pensa a sua mímesis de representação como
um processo histórico resolutamente transformacional, que ele denomina
tríplice mímesis
326
. Seu trabalho tem o inegável mérito de colocar a questão da
recepção e da leitura da obra como estágios cruciais para o que ele denomina
mímesis III, isto é, o momento de reabsorção do texto no mundo como seu
horizonte de referências, tornando-se, por sua vez, um novo referente a
interagir com todos os demais, bem como consigo mesmo enquanto texto. No
entanto, nos três alentados e ambiciosos volumes de sua investigação, Ricoeur
simplesmente ignora o dispositivo mimético do cinema, como se a
hermenêutica não fosse capaz de pensar os aspectos da mímesis que escapam
às normas de uma fabulação qualquer, e como se a auto-referencialidade só se
manifestasse como um fenômeno estritamente simbólico, condicionado pelo
uso consagrado da palavra.
Isto se deve, provavelmente, ao fato, já desdobrado no capítulo anterior,
de que a mímesis cinematográfica não se deixa apreender inteiramente pelos
processos codificados de significação e representação simbólica, embora não
os exclua em absoluto, articulando-os com outros processos, cinemáticos, de
produção de sentido, que Ricoeur não considera em sua obra. Com isto,
326
Ver cap.2, pp.
200
porém, Ricoeur deixa de perceber que o cinema como mimetologia, ou seja,
como um dispositivo de pensamento/experimento sobre a mímesis, em todas
as suas possibilidades expressivas, se situa claramente no entrecruzamento
entre fenomenologia, semiologia e teoria da história que é a própria
mimetologia, por ele mesmo delimitada. Assim, o componente
transformacional da tríplice mímesis de Ricoueur, sua chave para as relações
entre mímesis e história, talvez se encontre justamente naqueles aspectos não-
representacionais e assignificantes da atividade mimética excluídos por
Ricoeur do escopo, já demasiado amplo, do seu estudo.
Esta incompreensão do aspecto transformacional do dispositivo
cinematográfico como dispositivo mimético é uma tônica do estudo de
Jacques Rancière sobre o cinema como “fábula contrariada”
327
. Assim como
Parente, Rancière pensa o cinema em termos fundamentalmente
narratológicos, como produção discursiva de sentido. Sua perspectiva, no
entanto, é menos sistemática, pois postula a fábula cinematográfica como
necessariamente contrariada, isto é, falha e incompleta. Segundo Rancière,
isto ocorre em dois planos distintos, simultaneamente: o cinema falha em suas
promessas como dispositivo universal de significação (teorizado por
Eisenstein, entre outros) e como linguagem universal (prometida pela avant-
garde), assim como falha em suas pretensões “neo-realistas” de adesão direta
e reprodução imediata, quase-documental, de um real assignificante.
Em seu estudo sobre o cinema de Fritz Lang, por exemplo, Ranciére
demonstra claramente como Lang estava ciente do fato de que a mímesis
cinematográfica se baseia em uma dupla disjunção:
Ele rapidamente entendeu que o cinema era uma arte precisamente
enquanto mistura de duas gicas: a lógica da narrativa que organiza os
episódios e a da imagem que congela e reconfigura a narrativa. Mas ele também
percebeu que esta lógica mista da mímesis cinematográfica estava, por sua vez,
ligada a uma gica social da mímesis, que ela se desenvolvia ao mesmo tempo
contra ela e sob seu abrigo.
328
Com efeito, o estudo consistente da cinematografia de Fritz Lang
permite ao teórico e pesquisador da história e do cinema uma dupla
327
Rancière, Jacques: La Fable Cinématographique, Ed. du Seuil, Paris, 2001.
328
Idem, p.75. Minha tradução.
201
abordagem dos seus filmes: não como um reflexo eloquente de uma época
histórica conturbada, um fato óbvio e que é explicitamente tematizado pelo
próprio Lang várias vezes ao longo de sua obra, mas, sobretudo, como um
testemunho auto-reflexivo da história do cinema em suas relações mais
amplas – técnicas, econômicas e políticas – com a história do século. Jonathan
Crary
329
, por exemplo, chamou a atenção para o fato de que os poderes do Dr.
Mabuse, na série de filmes realizada por Lang ao longo de várias décadas
dos anos 1920 (Dr. Mabuse, o jogador e O inferno do Dr. Mabuse, 1921-22),
passando pelos inícios do cinema sonoro, com O testamento do Dr. Mabuse,
de 1932, e chegando até os primeiros tempos da televisão (Os mil olhos do
Dr. Mabuse, 1960) expressam precisamente o desenvolvimento tecnológico
que consolidou o componente gerativo audiovisual do cinema em suas
sucessivas formas padrão – a silenciosa (o filme mudo como veículo do olhar-
objeto), a sonora (o filme falado como veículo da voz-objeto) e a que se pode
denominar apropriadamente como audiovisual (o filme sonoro como veículo
do som-objeto, a televisão como veículo do simulacro).
Outros filmes importantes de Lang, como M, o vampiro de Düsseldorf
(1931) ou Uma mulher na lua (1929)
330
também poderiam ser analisados a
partir da dupla articulação entre o momento histórico específico de sua
realização e sua posição na história do cinema. Pode-se certamente atribuir a
Jean-Luc Godard o rito de havê-lo percebido antes de todos, em seu filme-
homenagem, de 1963, Le Mépris, em que Lang representa um diretor de
cinema que se prepara para filmar a Odisséia de Homero.
No entanto, a análise que Rancière faz das relações do cinema com a
história, em seus impasses e desencontros, reforça a narratologia como
paradigma representacional da hermenêutica, mesmo que de forma
“contrariada”. Descrevendo o díptico imagem-movimento/imagem-tempo
como uma “tentativa de classificação dos signos’
331
cinematográficos,
329
Crary, Jonathan: Suspensions of perception – attention, spectacle, and modern culture, The MIT Press,
1999.
330
Ver Eisner, Lotte: Fritz Lang, Cahiers du Cinéma, Paris, 1984.
331
Rancière, Jacques: La Fable Cinématographique, Ed. du Seuil, Paris, 2001, p.147. A expressão
aparece no texto entre aspas, como se fosse de Deleuze, mas sem a devida referência bibliográfica. Ora,
Deleuze afirma claramente, á primeira página de seu estudo, que se trata de uma “tentativa de
classificação das imagens e dos signos”, enfatizando logo no início a importância da dupla articulação.
Ver Deleuze, Gilles: L'Image-Mouvement, Les Editions de Minuit, Paris, 1983, p.7.
202
Rancière considera o empreendimento deleuziano como uma semiótica da
imagem arbitrariamente derivada das teorias de Bergson, interpretando-o
como uma mera taxionomia formal da história do cinema. Ao obliterar a
dupla articulação disjunta, proposta por Deleuze entre Bergson e Peirce, ou
entre um plano material de conteúdo (a imagem cinemática) e um plano
mental de expressão (o signo cinematográfico), Rancière reduz a cinemática
da mímesis e suas diversas possibilidades de expressão cinematográfica a uma
simples marca do discurso cinematográfico, a ser elaborada, estilisticamente,
por cada cineasta entendido como autor.
Com isto, a dupla articulação, disjunta, do componente gerativo
audiovisual do cinema encerra-se em si mesma, e o seu componente
transformacional é desconstruído como uma miragem da teoria deleuziana do
cinema. Para Rancière, a passagem histórica (e estilística) da imagem-
movimento à imagem-tempo, ou seja, o seu componente transformacional,
(que em Deleuze se encontra apenas esboçado) é o ponto nodal de toda a
questão, o alicerce de uma impossível demonstração, sem a qual o edifício
“arquitetado” por Deleuze não tem como se sustentar.
O que Rancière não percebe é o fato de que a disjunção básica à
cinemática da mímesis, que é o princípio de assincronismo, pode ser aplicada
tanto ao seu componente gerativo (disjunção audiovisual entre o conteúdo
material e a expressão simbólica do filme) como ao seu componente
transformacional (disjunção temporal entre a experiência e o pensamento do
filme, sua produção e sua recepção), apontando assim, simultaneamente, para
a constituição de uma história do cinema como a resultante do
desenvolvimento de suas potencialidades expressivas (o desenvolvimento do
seu componente gerativo) e para as relações entre cinema e história,
constituídas por agenciamentos exteriores ao filme, e que determinam suas
condições de recepção e seu destino.
Tentaremos, agora, demonstrar como as relações entre cinema e história
se revestem de uma importância fundamental para ambas as disciplinas, e
como, através do esclarecimento dessas relações, podemos estudar o cinema
como uma práxis histórica bem determinada, isto é, como um sistema de
203
comunicação social capaz de ser descrito em todos os seus veis de
articulação e mediação com outras esferas da vida social.
Para isto, retomaremos
, num primeiro momento, os estudos de Marc
Ferro sobre cinema e história, associando-os à matriz conceitual de análise de
um sistema de comunicação qualquer proposta por Jesus Martin-Barbero e à
análise pragmática transformacional da semiótica do cinema exposta por
Deleuze. Argumentaremos, em seguida, que esta abordagem permite a
elaboração de um paradigma inovador, a partir do qual estaremos em
condições de sustentar que uma tensão, inerente a qualquer filme, entre os
seus processos (técnicos) de reprodução cinemática e os seus códigos
(estéticos) de representação cinematográfica tensão esta que se projeta ao
longo de toda a história do cinema como um traço característico do seu
componente diagramático.
Experiência histórica do cinema, experiência cinematográfica da
história
Ao abordar, em meados dos anos 70 do século passado, as complexas
relações e as interferências que se podem mapear entre o cinema e a história,
Marc Ferro aventurou-se por sendas inexploradas pelos demais historiadores,
do cinema ou não. A possibilidade até então inédita de articulação teórica da
experiência histórica do cinema com uma experiência especificamente
cinematográfica da história expandiu os horizontes tanto dos então nascentes
film studies como da pesquisa histórica propriamente dita. Pensando o cinema
como agente da história, Ferro inscreveu a história do cinema no fluxo mais
amplo da história social, evitando sua redução a um departamento da história
da arte ou da teoria da comunicação e permitindo a inserção dos fenômenos e
problemas pertinentes à práxis cinematográfica na esfera mais ampla dos
debates políticos, econômicos e sociais de nossa época.
Tal operação implica, no entanto, a permanente necessidade
metodológica de uma dupla leitura das relações entre cinema e história, de
uma espécie de “pensamento em ziguezague” em que ambos os termos devem
articular-se a partir do mapeamento das múltiplas ligações que um filme
204
estabelece ou pode vir a estabelecer, intencionalmente ou não, com sua
própria época - assim como com seu passado e com seu futuro, isto é, com o
tempo e a história. Isto porque a análise do filme deve nos conduzir à análise
da sociedade que o produziu. No entanto, eis uma tarefa complexa e delicada,
dependente de um sem-número de mediações, e para a qual Ferro propõe
apenas algumas coordenadas de pesquisa que permitam ao historiador não
situar um filme em relação à sua época (compreendendo a experiência
histórica do cinema de forma mais tradicional), como também situar uma
determinada época através de um filme, para pensar a experiência
cinematográfica da história como fundamentada na própria práxis
cinematográfica.
Como bem o observou Eduardo Morettin, Ferro “não produziu um
trabalho de maior profundidade que demonstrasse plenamente a eficácia de
sua análise”
332
. Embora suas coordenadas de pesquisa apresentem várias
possibilidades distintas de estudo das relações entre cinema e história (e uma
vez que estas se interpenetram irregular ou mesmo conflituosamente ao longo
não da história do cinema como também, muitas vezes, no interior de um
mesmo filme), tais possibilidades não são nunca claramente expostas, na obra
de Ferro, a partir da totalidade de suas articulações possíveis com a história.
O componente transformacional do cinema deve explicitar estas
possibilidades, revelando não o conjunto de possibilidades investigativas
abertas por Ferro como também a matriz conceitual subjacente às suas
diversas articulações. Trata-se de superar o caráter aparentemente
fragmentário das coordenadas propostas e de demonstrar, pelo contrário, a
validade do seu método, não no que se refere ao cinema, mas também no
que se refere à questão mais ampla do audiovisual em geral.
Uma primeira formulação do problema pode ser enunciada da seguinte
forma: se não nos parece difícil pensar o primeiro termo da articulação
proposta por Ferro (a experiência histórica do cinema) como tal, o que nos
permite pensar, em contrapartida, seu segundo termo, uma experiência
cinematográfica da história?
332
Morettin, Eduardo: “O Cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro”, in História e Cinema
(Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba, orgs.), Alameda Casa Editorial, São Paulo, 2007, p.46.
205
De que consistiria exatamente essa experiência? Ou, melhor dizendo,
em que e por que os filmes se constituem em agentes da história, para além do
seu evidente caráter material de documento?
No intuito de pensar a historicidade do filme como artefato cultural,
Ferro procura pensar o cinema não apenas como uma nova forma de arte ou
de indústria (nem mesmo como “a nova arte da civilização industrial
moderna”), mas também como uma forma social específica de práxis
cognitiva como um fato social total que deve ser estudado pelo historiador
em todos os seus aspectos constitutivos. Isto implica a necessidade de um
entrecruzamento constante das instâncias multifacetadas e complexas dessa
questão: a história como o “quadro geral” em que se desenrola a atividade
cinematográfica e o cinema como uma forma particular, específica, de
experiência da própria história.
De um lado, faz-se necessária uma análise ou leitura do filme que não se
limite aos tradicionais critérios estéticos e artísticos utilizados pela crítica
cinematográfica (gêneros, estilos, escolas, autores) e que ressalte os inúmeros
fatores exteriores ao próprio filme que o condicionam, tanto como texto (isto
é, como uma mensagem que deve ser culturalmente decodificada em seu
“conteúdo”), como também como cópia (ou seja, como um produto que deve
ser socialmente valorizado em sua distribuição e exibição). Por outro, a
“mera” contextualização histórica de um determinado filme (entendido como
produto ou mensagem a ser decifrada a partir de uma compreensão específica
e localizada da Stimmung peculiar a cada momento histórico de uma cultura
ou nação particular) não esgota o problema, na medida em que a práxis
cinematográfica deve ser pensada, desde os seus inícios, como parte
integrante do processo global de expansão econômica e político-militar do
modo capitalista de produção e distribuição de mercadorias, não podendo
simplesmente ser reduzida aos seus aspectos “culturais”.
Não se trata aqui, portanto, de uma simples inserção da história do
cinema no quadro mais amplo de uma história geral, mas de um método
investigativo que possibilite ao pensamento um “ziguezaguear” constante
entre o cinema (entendido como objeto específico de uma determinada
disciplina histórica, a história do cinema) e a história (entendida como objeto
206
possível, e provável, de uma atividade historicamente conhecida como
cinematografia). A sistematização deste método depende, no entanto, de uma
determinação mais precisa dos regimes de temporalidade que um filme
estabelece em suas relações com a história. As coordenadas de pesquisa
avançadas por Ferro são extremamente úteis neste sentido, mas têm um
caráter puramente indicativo.
Embora Ferro não o afirme explicitamente, podemos encontrar ao
menos quatro regimes de temporalidade do filme esboçados em seu trabalho.
Isto se deve ao fato de que Ferro trabalha com duas rupturas simultâneas, em
dois níveis distintos de análise: ruptura com a dicotomia entre o filme de
ficção e o filme documentário no campo do cinema, ruptura com a dicotomia
entre enunciados verdadeiros, portanto históricos, e enunciados falsos,
portanto ficcionais, no campo da história. Assim, Ferro propõe que
consideremos, no campo da história e da teoria do cinema, não aquilo que
de ficcional nos filmes que se pretendem documentários como também
aquilo que de documental em qualquer filme de ficção. Ao mesmo tempo,
permite que pensemos, no campo da história, tanto no papel ficcional que um
documento autêntico pode desempenhar em determinado momento histórico
(por exemplo, no uso propagandístico de cines e tele-jornais) como no caráter
inegavelmente documental que qualquer produto histórico da imaginação
humana, isto é, de ficção, pode adquirir para o historiador.
Desta forma, Ferro pensa a práxis cinematográfica em seus diversos
níveis de inserção na história, níveis estes que devem ser considerados como
instâncias distintas de análise do filme, embora coexistam e coabitem em
qualquer filme em graus diferenciados de precipitação. Ferro pensa o filme
como um objeto impregnado de história a partir de diversas camadas distintas
de duração temporal, que se interpenetram e se superpõem de maneira algo
confusa em muitas ocasiões. Cabe ao crítico, em primeiro lugar, mas também,
e fundamentalmente, ao teórico e ao historiador, o estabelecimento de um
método preciso de análise e decantação dessas diferentes camadas de
historicidade que se acumulam gradativamente sobre um filme.
Em um primeiro vel, referimo-nos à inserção do filme, no tempo,
como documento material e evidência testemunhal direta de um momento
207
preciso, o momento de realização da filmagem. Aqui, a relação estabelecida
pelo filme com a duração é técnica, regulada pelo intervalo temporal que
separa os fotogramas a uma velocidade constante. O tempo aqui é apenas um
índice da reprodução mecânica do filme como impressão cinemática capaz de
incorporar determinada duração.
O segundo vel refere-se às diversas formas estéticas de projeção do
discurso cinematográfico e às relações temporais que este estabelece não
com sua própria duração real (e com seu próprio momento histórico), como
também com as idéias de tempo e de história em termos imaginários. Nesse
nível, os filmes devem ser estudados como textos no sentido propriamente
semiológico, e em sua capacidade de manipular fluxos temporais como
convenções simbólico-narrativas e/ou fornecer representações imaginárias da
história. O cinema problematiza intencionalmente o tempo desde os seus
inícios, e acabou por desenvolver neros distintos que lidam com aspectos
específicos da história como experiência (o filme ‘histórico’ para representar
o “passado”, o filme de ‘ficção científica’ para o “futuro”, o filme ‘baseado
em fatos reais’ para o “presente”...), codificando os inúmeros efeitos de
sentido destinados à representação social da passagem do tempo e da história.
Um terceiro nível é o que abarca as relações da história com o filme
para além dos seus aspectos técnicos e estéticos: história de sua produção e
recepção, em suas conexões mais amplas com o momento histórico que a
engloba, e na especificidade dos diversos modos com que um filme é mais ou
menos aceito por sua própria sociedade, ou por outras. Nesse caso, a duração
se refere ao tempo decorrido da concepção inicial do filme até sua exibição
pública (seu processo “ritual” de produção, distribuição e exibição) e às
reações e consequências suscitadas pelo filme ao longo dos anos. O filme aqui
é um objeto que poderá ser reproduzido (copiado) várias vezes ao longo de
sua história, circulando como mercadoria.
O quarto e último nível, por sua vez, é o que possibilita o testemunho da
passagem do tempo no filme como palimpsesto: tudo aquilo que escapa ao
discurso intencional do filme (seu texto) e está, não obstante, documentado
como um índice irrefutável (exatamente na medida em que não
intencionalmente significante) da história no filme, do momento histórico de
208
produção do filme. Tal nível de acúmulo no “grau de historicidade” do filme
só é possível a partir da existência de mecanismos institucionais de recepção e
conservação de cópias ao longo do tempo (arquivos, museus, cinematecas).
Uma apresentação sistemática dos quatro regimes de temporalidade do
filme pode ser associada às quatro instâncias de um sistema de comunicação
qualquer, enunciadas por Jesus Martin-Barbero a partir de dois eixos distintos
de análise - o diacrônico (orientado pela polaridade entre matrizes culturais e
formatos industriais) e o sincrônico (determinado pela tensão entre as diversas
lógicas de produção possíveis e as não menos numerosas competências de
recepção). Para Martin-Barbero,
...as relações entre as Matrizes Culturais e as Lógicas de Produção se
acham mediadas por diferentes regimes de Institucionalidade, enquanto as
relações entre as Matrizes Culturais e as Competências de Recepção estão
mediadas por diversas formas de Socialidade. Entre as Lógicas de Produção e os
Formatos Industriais medeiam as Tecnicidades, e entre os Formatos Industriais e
as Competências de Recepção as Ritualidades.
333
Se aplicarmos o esquema de Martin-Barbero aos quatro regimes de
temporalidade do filme que detectamos na obra de Marc Ferro, obteremos
para o cinema as mesmas camadas ou extratos, descritos por Deleuze, em sua
pragmática do componente transformacional
334
:
A - ANALÓGICO: todo filme, seja de ficção, seja “documental”, pode
ser considerado como um suporte analógico para a reprodução do tempo
através de mecanismos técnicos de captação e projeção de imagens e de sons
que correspondem aos FORMATOS INDUSTRIAIS do documento fílmico.
B - SIMBÓLICO: todo filme, seja de ficção, seja “documental”, pode
ser considerado como um texto que representa seu próprio momento (ou
determinada época histórica qualquer, real ou imaginária) através de formas
sociais de produção de sentido articuladas pelas MATRIZES CULTURAIS
do texto fílmico.
C - ESTRATÉGICO: todo filme, seja de ficção, seja “documental”,
pode ser considerado como um documento polêmico que representa seu
333
Martin-Barbero, Jesus: “Anos 1990: Pensar a sociedade desde a comunicação”, in Ofício do
Cartógrafo, Ed. Loyola, São Paulo, 2004, p.230
334
Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1980, p.182.
209
próprio momento (histórico) através de mecanismos rituais de recepção de
sentido que habilitam as COMPETÊNCIAS DE RECEPÇÃO do espectador
de filmes.
D AUTO-REFLEXIVO: todo filme, seja de ficção, seja
“documental”, pode ser considerado como um palimpsesto que reproduz
mimeticamente suas próprias LÓGICAS DE PRODUÇÃO através de
aparatos institucionais de seleção e preservação de cópias que determinam a
história do cinema.
O primeiro nível nos remete à história das técnicas de reprodução da
imagem e do som e aos seus diversos formatos industriais, cinematográficos
ou não, desenvolvidos ao longo do tempo. Não é chamado de analógico
porque se refira apenas às tecnologias analógicas em oposição às digitais, mas
porque é o nível diretamente material de transdução física de fluxos de
variação de intensidades luminosas e sonoras, nível indicial e pré-
significante de registro. Esse é o nível propriamente cinemático do cinema;
“filme” aqui designa um suporte físico.
O segundo nível aborda os clássicos problemas relacionados à
constituição de uma ou mais linguagens cinematográficas e às dimensões
estéticas e sócio-culturais do cinema. É chamado de simbólico precisamente
por ser o vel propriamente significante em que o fluxo cinemático é
imaginariamente codificado em uma série de formas historicamente
reconhecíveis. Esse é o nível propriamente cinematográfico do cinema;
“filme” aqui é um texto a ser mentalmente interpretado.
Quanto ao terceiro vel, refere-se às dimensões sócio-econômicas e
políticas do cinema como indústria, à história da sua recepção como
espetáculo e à história social do cinema como práxis específica. É chamado
de estratégico porque está diretamente relacionado à tensão constitutiva dos
dois níveis anteriores. Neste vel, o significante cinematográfico pode
projetar sua hegemonia sobre o fluxo cinemático ou falhar. Esse é o nível em
que os signos do filme são lançados à arena social para serem associados a
diversos regimes possíveis de enunciação ora mantendo o seu sentido, ora
adquirindo novos e insuspeitos significados. Como o significante
cinematográfico é constantemente ameaçado pela possível emergência
210
cinemática de simulacros, este nível é considerado contra-significante. Na
medida em que tais questões são decididas apenas no âmbito do espectador,
pode-se afirmar que este é o nível propriamente ideológico do cinema e que
“filme”, aqui, denota certo tipo de evento social.
O quarto nível nos revela simultaneamente a história e a história do
cinema no espelho esmaecido de sua própria duração, incluindo todos os
níveis anteriores de experiência do cinema em uma nova possibilidade de
experiência cinematográfica da história. É chamado de auto-reflexivo porque
é o nível em que o cinema se torna consciente de sua própria historicidade e
começa a propor jogos pós-significantes com sua própria história (a história
do cinema), e com a história. Esse é o nível propriamente histórico do cinema;
“filme” aqui significa um documento histórico, mesmo quando “falso”.
Cada vel apresenta, assim, suas próprias especificidades em sua
relação com a história, remetendo o pesquisador a diferentes aspectos da
práxis cinematográfica e a esferas distintas de sua mediação sócio-cultural.
Enquanto os dois primeiros níveis “medem” as curtas durações que
condicionam a existência de um filme (do tempo técnico de obturação ao
tempo “estéticode projeção), os dois últimos veis fornecem a medida das
longas durações a que o filme se expõe (do tempo sócio-econômico
necessário à circulação do filme como mercadoria ao tempo imobilizado das
instituições de preservação e conservação do filme como um documento
histórico). Isto confirma a possibilidade de associação destes quatro níveis às
quatro instâncias propostas por Martin-Barbero, já que os níveis mais
superficiais de temporalidade (A e B) correspondem ao eixo propriamente
diacrônico das constantes transformações históricas nas técnicas de
formatação industrial e nos modos de “matriciação” cultural dos sistemas de
comunicação, enquanto os níveis mais profundos (C e D) relacionam-se com
as instâncias sincrônicas, de longa duração, que determinam as lógicas sócio-
econômicas de produção e as competências cio-culturais de recepção do
filme.
Toda a história do cinema pode ser inscrita sobre o eixo diacrônico ao
traçarem-se as conexões entre as relativamente rápidas mudanças que ocorrem
em seus formatos industriais e a ampla variedade de matrizes culturais que é
211
passível de codificação cinematográfica, delineando-se assim um mapa
gerativo a partir de uma combinação qualquer entre esses dois parâmetros
historicamente concretos. O componente gerativo do cinema é sua própria
práxis específica: aparece sempre como certa regulação entre um segmento
cinemático de tempo (seu “conteúdo”) e um traço cinematográfico de
expressão (sua “linguagem”).
o segundo eixo não deve ser considerado realmente como sincrônico,
no sentido estrutural da palavra, pois está ligado a mudanças de longo prazo
na esfera econômica das lógicas de produção, por um lado, e ao domínio
social das habilidades e competências específicas do espectador de filmes, por
outro. Não se trata de um eixo paradigmático de “formas eternas” que
condicionaria o eixo diacrônico de curta duração, pois este último está
continuamente gerando suas próprias formas paradigmáticas. Trata-se do eixo
que não aponta para a história do cinema como tal, mas sim para o seu lado
exterior, o lado de fora de qualquer máquina gerativa cinemática: o não menos
mutante domínio exterior da história e seus agenciamentos concretos
incessantes.
Trata-se do componente transformacional da máquina, ou seja, da lógica
que não gera um dado sistema concreto de signos cinematográficos como
também o transforma ao longo de diferentes níveis de experiência do cinema
previamente descritos com a ajuda de Marc Ferro e Martin-Barbero.
Desta perspectiva, podemos entrecruzar os níveis internos a uma
história do cinema (A e B) com os níveis externos que a relacionam com a
história (C e D): os formatos industriais e as lógicas de produção do filme
(níveis A e D) remetem-nos, portanto, à capacidade de reprodução
cinemática do tempo própria ao objeto audiovisual (cinematográfico ou não),
segundo a sua variação quantitativa: de curta duração no caso do primeiro
nível, de longa ou mesmo longuíssima duração no caso do último. Este é o
eixo em que as qualidades auto-reflexivas do filme podem ser reforçadas ou
enfraquecidas por suas propriedades analógicas, conferindo à mímesis
cinematográfica o seu poder especificamente indicial. Por outro lado, matrizes
culturais e competências de recepção do filme (níveis B e C) remetem-nos à
possibilidade da representação cinematográfica da história também em
212
dois sentidos possíveis, qualitativamente distintos dessa vez. De fato, se no
caso do segundo nível referimo-nos à propriedade simbólica que o cinema
possui de representar fluxos temporais imaginários ou não, o terceiro nível
refere-se antes aos fatores estratégicos que podem reforçar ou minar o
discurso cinematográfico em dado momento histórico.
Podemos agora entender melhor a maneira como Ferro remete o gênero
documental ao filme “de ficção” e vice-versa: na medida em que todo filme
pode ser analisado, tanto como documento, como enquanto texto (isto é,
considerando-se todas as possíveis transformações que podem ocorrer desde o
nível cinemático pré-significante até o nível propriamente cinematográfico
dos seus significantes e, então, na direção de possíveis contra e/ou pós-
significações), deve-se “ler” o filme documental a partir dos seus
procedimentos específicos de significação, ou seja, de constituição de um
texto fílmico, e deve-se analisar o filme ficcional como um documento, isto é,
a partir de suas características técnicas e materiais particulares, índices
específicos de um determinado momento histórico. A presença ou ausência do
som ou da cor em um filme corresponde ao exemplo mais óbvio desta
possibilidade de análise.
“Sincronicidade”, portanto, é apenas o modo como se articulam, em um
determinado momento histórico, todas as disjunções temporais e durações que
se fazem presentes ou “pressentidas” no filme ainda, mais uma vez, em sua
dupla acepção de cópia ou película, por um lado, e de obra ou de texto, por
outro.
Assim, podemos mapear qualquer práxis cinematográfica
historicamente concreta em sua própria singularidade (estudo do componente
gerativo na história do cinema) ou podemos nos voltar para os engajamentos
históricos concretos que possibilitaram todo e qualquer tipo de cinema,
delineando um diagrama mais abstrato (mas não menos real) das relações
gerais entre o cinema e a história: o estudo dos componentes maquínicos da
história do cinema como tal e de suas relações históricas com outras
máquinas.
O vetor diacrônico possibilita a articulação do componente
transformacional destas relações na inelutável tensão que se desenvolve, no
interior do filme, entre o real da reprodução cinemática e a idéia de uma
213
representação cinematográfica da realidade. Na medida em que as instâncias
tecno-institucionais de produção e formatação do espetáculo cinematográfico
são necessariamente mediadas por instâncias sócio-rituais de “matriciação” e
recepção do filme como texto, a representação cinematográfica (isto é, o
cinema entendido como “arte” ou “linguagem”) tende a mascarar qualquer
indício dos processos de reprodução cinemática (isto é, da tecnologia
industrial que possibilita o cinema) que a sustentam. Tais processos, invisíveis
na curta duração aos olhos do leigo, acumulam-se fisicamente sobre a película
como a pátina sobre antigas pinturas, sobrepondo-se lentamente à
conformação significante de seu texto e adquirindo visibilidade (e
audibilidade, no caso do cinema sonoro) cada vez maior à medida que as
constantes modificações do formato industrial dos filmes revelam ao público,
na longa duração, o caráter artificial e “defeituoso” das cópias (e textos)
previamente em circulação.
Ainda uma vez, é o quadrado semiótico de Greimas que nos permite
visualizar, diagramaticamente, o componente transformacional da mímesis
cinematográfica em sua disjunção, constitutivamente assíncrona, entre ficção
e documento, e entre sua mímesis (seu componente gerativo) e sua práxis (as
transformações históricas deste dispositivo):
FICÇÃO mímesis DOCUMENTO
GÊNEROS NARRATIVOS TRAÇO, MARCA, ÍNDICE
DOCUMENTÁRIO (práxis) “RUSHES”, COPIÃO
Desta forma, podemos avançar a investigação histórica sobre o cinema
e sobre as relações do cinema com a história para além do simples truísmo
que afirma que todo filme reflete, intencionalmente ou não, seu próprio
momento histórico, já que a questão fundamental é, antes, a de se pensar,
como o tentou Ferro, uma experiência cinematográfica da história - embasada,
214
evidentemente, na experiência histórica do cinema sem com ela, no entanto,
confundir-se - que demonstre sua existência de forma imanente à própria
práxis, ou seja, resultante da contradição acima apontada (e inerente a
qualquer filme), entre a imediaticidade “ideal” dos processos técnicos de
reprodução cinemática do tempo e a inevitável mediação sócio-cultural
(“estética”) que os diversos modos cinematográficos de representação da
história impõem à compreensão de um filme como texto.
Da reprodução cinemática do tempo...
O problema da reconstituição histórica do passado através do cinema
deixa de ser, portanto, um problema relativo apenas ao limitado gênero dos
chamados “filmes históricos”, para se revelar, talvez, como o problema
central de toda a práxis cinematográfica. uma espécie de “filosofia da
história” latente em todo e qualquer filme, mas tal filosofia não se apresenta
sempre de forma idêntica ao longo da história do cinema, nem se confunde
inteiramente com a presença ou ausência, no interior do texto fílmico, de uma
forma qualquer de representação do tempo ou da história. Trata-se, antes, de
um pensamento fílmico sobre a história que deve ser descortinado a partir da
intricada relação que os filmes entretêm entre si ao longo de toda a história do
cinema, tanto no plano técnico da reprodução cinemática como no plano
estético da representação cinematográfica.
Isto significa que o cinema reflete a história mais intensamente quando
reflete sobre si mesmo, ou seja, quando se detém sobre suas próprias
contradições internas como práxis que se constitui na inerente defasagem
entre a reprodução (documental) e a representação (textual) de sua própria
época histórica. A auto-reflexividade do cinema não se constitui, portanto,
apenas como uma sofisticada figura de linguagem ligada às experimentações
modernistas do cinema a partir dos anos 1950, mas sim como um vetor central
da análise das relações (históricas) entre o cinema e a história, bem como
da(s) forma(s) que o pensamento cinematográfico assumiu na tentativa de
expressar estas relações. A auto-reflexividade no cinema reveste-se de uma
importância fundamental para o estudo do seu componente transformacional,
215
que se revela quando pensado a partir das questões historicamente
colocadas por sua própria práxis.
Destacaremos agora três momentos significativos na história do cinema,
tanto no que diz respeito ao desenvolvimento estético do cinema como uma
forma de arte, como no que se refere à questão aqui abordada, ou seja, à
relação que o cinema estabelece, auto-reflexivamente, não com sua própria
história, mas, sobretudo, com a história maior que o envolve.
O primeiro destes momentos, na passagem dos anos 1920/30, está
marcado, no plano do desenvolvimento das técnicas de reprodução
cinemática, pelo advento do som como um elemento incontornável da arte
cinematográfica, e por uma conscientização cada vez maior, no plano do
desenvolvimento de uma estética cinematográfica da representação, da
autonomia artística do cinema em relação às demais formas de expressão
social de sentido. Esta nova consciência adquire sua máxima expressão auto-
reflexiva na obra de Dziga Vertov, sobretudo em seu último filme mudo, O
Homem da Câmera (1929), um verdadeiro tratado auto-reflexivo acerca das
(então relativamente novas) possibilidades de construção cinematográfica de
sentido a partir das propriedades intrinsecamente cinemáticas do dispositivo
técnico de captação de imagens (e, logo em seguida, de sons).
Para Dziga Vertov, o cinema deveria buscar a reprodução imediata de
sua época através da constituição de uma cine(gra)mática integralmente
deduzida das propriedades intrínsecas do aparelho de filmagem,
desautorizando o realismo “ilusionista” característico dos métodos
tradicionais de representação pictórica, literária ou teatral que eram, até então,
invocados pela crítica e por parte dos cineastas como uma forma de legitimar
o cinema como arte. Neste sentido, Vertov é, talvez, o primeiro cineasta a
pensar consequentemente a práxis cinematográfica como mímesis de
produção, isto é, como uma “mostração” ou apresentação direta da realidade
social que, no limite do seu desenvolvimento tecno-institucional, dispensaria
ou mesmo tornaria obsoleta as formas sócio-culturais estabelecidas de
representação convencional da realidade.
Esta crença ou esperança na capacidade que teria o cinema de
reproduzir, sem qualquer tipo de mediação, a realidade social de sua própria
216
época, se desvaneceria rapidamente no decorrer dos anos 1930/40 com a
difusão (inclusive pelas mãos do próprio Vertov) de um uso eminentemente
propagandístico do filme em sua textura documental. O projeto “vertoviano”
de combate à representação cinematográfica e de sua “redução linguística” às
propriedades intrinsecamente cinemáticas do dispositivo técnico revelou-se
utópico (no melhor dos casos) ou hipócrita (no pior dos casos), já que a
mímesis cinematográfica, mesmo sob a forma consagrada do documentário,
jamais se identificou totalmente com o real da reprodução cinemática,
estabelecendo-se antes na tênue linha movediça que demarca precariamente (e
filme a filme) aquilo que pertence ao âmbito documental daquilo que se
caracteriza como intenção ficcional, alimentando-se justamente desta tensão,
inerente à práxis cinematográfica.
O segundo momento importante para uma história da auto-reflexividade
no cinema, portanto, é o momento em que a crença ainda ingênua nos poderes
realistas da reprodução cinemática cede a vez a uma consciência propriamente
“modernista” de que a mímesis cinematográfica não pode pretender a simples
exclusão da representação, sem correr o risco de patrocinar, inadvertidamente,
seu retorno indesejado.
...à representação cinematográfica da história:
Coube ao neo-realismo italiano, sobretudo a Rossellini, o mérito de
colocar essa questão de forma plena em seus filmes, procurando atingir aquele
ponto mínimo, ou zero, da relação entre reprodução cinemática e
representação cinematográfica que permitisse a esta ressaltar aquela, ao invés
de escamoteá-la ou mesmo ocultá-la. Embora esse também fosse o projeto das
então novas tendências “naturalistas” do cinema documentário, como o direct
cinema americano e o cinéma-vérité francês, as realizações mais bem-
sucedidas do período, neste sentido, foram produções consideradas ficcionais
ou híbridas, geralmente ligadas à vaga de “cinemas novos” que emergiu, a
partir dos anos 1950, tendo o novo cinema italiano do pós-guerra como
inspiração industrial, ou mesmo, como modelo estético.
217
Um marco importante neste processo é o filme Salvatore Giuliano
(1961), de Francesco Rosi. Reconstituição ficcional de um assassinato político
que ainda estava presente na memória do público italiano da época, o filme de
Rosi literalmente “fez história”, ao propor, através de um estilo renovado de
representação cinematográfica, uma versão para os fatos ocorridos cerca de
dez anos antes, que era totalmente distinta, e até mesmo contrária, à versão
oficial, veiculada pelas “atualidades cinematográficas”, de estilo documental,
que eram produzidas então. Salvatore Giuliano, um filme “de ficção”,
demonstra o caráter inegavelmente fictício das imagens documentais,
veiculadas após o assassinato do fora-da-lei Salvatore Giuliano, patrocinado
pelas “forças da ordem”. Com isto, resgata a possibilidade de articular um
método de filmagem apto a potencializar as faculdades miméticas da
representação cinematográfica, em prol do estabelecimento da verdade
histórica.
Sintomático, neste sentido, é o método de montagem das sequências do
filme estabelecido por Rosi: em vez de seguir a ordem cronológica dos
acontecimentos em função de uma maior (porém, enganosa) clareza da
exposição, Rosi embaralha a cronologia dos fatos em um “ziguezaguear”
constante entre o passado e o presente da narração. Assim, evita colocar o
espectador diante de uma representação consumada dos fatos evocados -
problema ideológico flagrante da maior parte dos filmes based on a true story
- para representar a busca incessante e incerta da verdade histórica. Tal busca,
para Rosi, não pode prescindir dos instrumentos tradicionais da representação
cinematográfica, devendo antes atenuá-los, através do uso de atores não
profissionais, por exemplo, ou de uma decupagem que desvaloriza, em vez de
privilegiar, o ponto-de-vista adotado pela câmera em sua função de
“testemunha ocular” dos fatos.
A representação cinematográfica não deve aqui ser “abolida” ou
combatida em nome da reprodução cinemática, como na obra de Dziga
Vertov, mas deve ser reduzida ao seu grau zero, isto é, deve ser reconhecida
em sua inevitabilidade para ser controlada e utilizada de forma a revelar o
efeito de verdade possível, embora geralmente encoberto, da reprodução
cinemática como tal. Este momento na história da auto-reflexividade do
218
cinema propiciou importantes desdobramentos estéticos ao longo dos anos
1960/70, relativizando o status até então inquestionável (pelo menos, aos
olhos do grande público) do cinema documental como um nero isento de
mecanismos representacionais, promovendo uma hibridização de gêneros que
resistiu à voga mais radical do experimentalismo estético de vanguarda,
consolidando-se como uma das características mais marcantes do terceiro
momento histórico que nos interessa aqui, o da passagem dos anos 1970 para
os anos 1980.
Correspondente ao esgotamento estético dos diversos “modernismos
cinematográficos”, caracterizado por certa indistinção ou indiferença
generalizadas acerca da possibilidade de veiculação, através do cinema, de
uma verdade histórica qualquer, esse novo momento é contemporâneo do
trabalho de Marc Ferro e, portanto, de uma última “volta no parafuso” da
auto-reflexividade cinematográfica - consciente agora não de sua própria
natureza discursiva e significante, como também de sua própria história, ou
seja, da história do cinema como tal.
O marco incontestável desse novo momento é o filme O Homem de
Mármore (1976), de Andrzej Wajda, em que os regimes de temporalidade do
cinema, detectados por Ferro, aparecem pela primeira vez, de forma nítida, no
próprio discurso cinematográfico. Filme ficcional que se utiliza largamente de
imagens documentais autênticas da Polônia dos anos 1950, bem como de
“falsas” imagens documentais supostamente referentes à mesma época, o
filme de Wajda é construído a partir de três camadas temporais bem distintas,
organizadas pela montagem de forma complexa: temos, em primeiro lugar, o
“presente” narrativo do filme, passado na Polônia dos anos 1970, e expresso
por uma fotografia de cores vivas e contrastadas. Uma segunda camada
temporal representa a memória que os personagens do filme têm dos supostos
acontecimentos passados nos anos 1950, e que a personagem principal do
filme pretende “resgatar”. Essa camada é expressa por uma fotografia
igualmente em cores, que privilegia, no entanto, tons pastéis de baixo
contraste, sugerindo visualmente o esmaecimento da memória subjetiva dos
diversos personagens, que evocam sucessivamente os acontecimentos
passados. Uma terceira e última camada é formada por filmes documentais
219
em preto-e-branco da época evocada pelo filme: tais imagens, no entanto, nem
sempre são autênticas, pois Wajda as monta habilidosamente com outras
imagens PB pretensamente documentais que permitem a inserção dos
personagens do filme (todos fictícios) na História da Polônia pós-2°Guerra
Mundial.
A princípio, o filme aparentemente corrobora, no âmbito da
representação cinematográfica, a idéia de que a imagem documental fornece
um acesso automático à verdade histórica, que a personagem principal do
filme é uma cineasta que desvenda um obscuro episódio político envolvendo a
queda de uma liderança partidária, fictícia, dos anos 1950, a partir do seu
problemático acesso a imagens documentais de arquivo. No entanto, o efeito
final do filme é exatamente o inverso, na medida em que tais imagens acabam
por se revelar, ainda no plano diegético do filme, como uma farsa destinada a
contrabandear a verdade histórica. Mas é também no nível subterrâneo da
reprodução cinemática que O Homem de Mármore anuncia a auto-
reflexividade do cinema contemporâneo, que o procedimento de fabricação
de imagens supostamente “de época”, que auxiliam na construção de sentido
da representação, é igualmente farsesco: o espectador mais atento percebe
facilmente as diferenças de textura entre as imagens autenticamente
documentais (marcadas pela deterioração material causada pela ação do
tempo) e aquelas que não o são. Com isto, O Homem de Mármore introduz
um efeito de linguagem que se tornaria cada vez mais comum no cinema a
partir dos anos 1980/90 (de Zelig à Bruxa de Blair): o do falso documentário,
em que a representação cinematográfica mimetiza as características
pretensamente imediatas da reprodução cinemática para legitimar-se, não
como um documento histórico autêntico, mas justamente como texto
ficcional.
Estamos aqui na situação inversa à do cinema modernista. Não se trata
mais de reduzir a representação cinematográfica à reprodução cinemática em
nome da verdade histórica, mas sim do contrário: simula-se esta redução
como recurso final da representação cinematográfica, aproximando-a da
textura “documental” que todo filme, como material bruto, “copião” não
montado, ou mesmo sobra de arquivo, apresenta. Assim, as novas
220
possibilidades que a tecnologia digital oferece, em termos de uma simulação
cada vez mais realista (ou mesmo hiper-realista) de qualquer tipo de textura
visual, não surgem, neste momento histórico preciso, por acaso.
Atualmente, o cinema é capaz de simular não apenas um momento
qualquer da história, como também sua própria história e estética, como o
demonstram filmes tão distintos entre si como A Trick of Light (1995), de
Wim Wenders, ou o mais recente Planet Terror (2007), de Robert Rodriguez.
Geologia do cinema: o componente diagramático
A auto-reflexividade do filme não deve ser entendida apenas como uma
figura de linguagem a ser inserida em um ou mais motivos e/ou estilos
estéticos de representação cinematográfica. Deve, antes, ser encarada como
um sintoma das relações que a mímesis cinematográfica entretém com sua
própria práxis, dilacerada antiteticamente entre o âmbito documental da
reprodução cinemática e a função textual da representação cinematográfica, e
com a história de maneira geral. Se o componente gerativo do filme articula o
conteúdo cinemático (nível analógico) à expressão cinematográfica (nível
simbólico), em termos audiovisuais, o componente transformacional deve
articular a recepção ideológica e cultural do filme como um texto (nível
estratégico) à sua inegável condição de documento histórico (nível auto-
reflexivo).
O princípio que preside a esta dupla articulação é o princípio diferencial
de disjunção que denominamos princípio do assincronismo. Tal princípio não
pretende negar a possibilidade do contraponto, paralelismo e/ou
correspondência sincrônica entre as imagens e os sons (no caso do
componente gerativo), e entre a realidade simbolizada pelo texto do filme e os
objetos reais de que este se serve para enunciar seu discurso (no caso do
componente transformacional). Se o sincronismo, tecnicamente falando, é
obtido a partir da constatação de uma assincronicidade constitutiva das
relações entre sons e imagens, olhar e escuta, a disjunção funciona aqui como
o princípio da própria conjunção: a identidade derivada da diferença,
entendida como mínimo e imperceptível intervalo entre o objeto e seu duplo.
221
O assincronismo, como princípio, possibilita tanto a conjunção, em
paralelo ou por correspondência, entre dois planos assim reunidos pela
linearidade de um discurso, como sua disjunção, duplamente articulada,
nestes mesmos dois planos, que se revelam por sua mútua exclusão.
Assim, não necessidade de correspondência entre os significantes e os
significados, no estudo do componente gerativo de um filme, ou de
contrapontos e paralelismos entre a infra-estrutura econômica e a supra-
estrutura política e institucional de um determinado momento da história do
cinema.
O princípio do assincronismo exige apenas a isomorfia entre dois planos
que, em termos mais abstratos, diagramáticos, são os planos de conteúdo e
expressão, segundo Hjelmslev
335
. Falar em isomorfia pressupõe uma
autonomia estrutural real entre estes dois planos, que articulam internamente
suas próprias formas às suas respectivas substâncias: uma forma e uma
substância do conteúdo, uma forma e uma substância da expressão. A dupla
articulação, disjunta e isomórfica, destes planos é, por sua vez, duplamente
articulada por seu componente diagramático. Este constitui “maquinicamente”
(e não apenas mecanicamente) o componente gerativo do dispositivo
cinematográfico como dispositivo mimético, o qual passa, por sua vez, por
uma série de transformações que modificam sua práxis.
Reencontramos, aqui, o diagrama analógico de que já falava Deleuze
em sua Lógica da sensação
336
, agora em sua forma abstrata, isto é,
propriamente diagramática. Aplicando-a ao cinema, podemos demonstrar,
finalmente, a complexa interrelação, estabelecida por Deleuze, em seus livros
sobre o cinema, entre as obras de Bergson e de Peirce:
CONTEÚDO CINEMÁTICO (Bergson) Substância: luz/ Forma: imagem
EXPRESSÃO CINEMATOGRÁFICA (Peirce) Forma: Signo/Substância: interpretante
335
Sobre Hjelmslev e a dupla articulação, ver Barthes, Roland: Elementos de semiologia, Ed. Cultrix, São
Paulo, 1992, pp. 43-44.
336
Deleuze, Gilles: Francis Bacon - logique de la sensation, Éditions de la différence, Paris, pp. , e o
cap.2, pp.
222
O equívoco mais comum dos comentadores de Deleuze é o de
semiotizar o uso que este faz de Bergson. No entanto, as categorias
bergsonianas da imagem e da memória não adquirem, em Deleuze, o estatuto
semiótico do signo, pois se articulam no plano cinemático do conteúdo
material do filme, isto é, de seu suporte técnico.
Assim, para Deleuze, o conteúdo cinemático de um filme é a articulação
da substância luminosa analogicamente impressa na película às formas,
bergsonianas, da imagem: imagem-movimento e suas derivadas, imagem-
tempo e suas variações. Este conteúdo, por sua vez, é articulado às formas
simbólicas da expressão cinematográfica, articuladas, segundo a semiótica de
Peirce, aos seus interpretantes, entendidos como possibilidades intrínsecas à
substância da expressão.
Quanto à seta, esta representa a dupla articulação como princípio
(cinemático) do assincronismo, capaz de estabelecer conjunções e disjunções
entre os planos, sem seguir qualquer modelo ou padrão pré-estabelecido de
correspondência. Por isto, o diagrama assim obtido, do próprio componente
diagramático do cinema não aparece mais sob a forma do quadrado semiótico
de Greimas.
A estruturação acima proposta, no entanto, procura apenas ilustrar como
Deleuze deduziu o componente gerativo do cinema desta articulação
conceitual específica entre Bergson e Peirce. O diagrama acima pode ser
pensado, de forma igualmente abstrata, para qualquer filme ou objeto
pertinente à teoria do cinema, na medida em que apresenta a dupla articulação
como o princípio-motor de uma disjunção assíncrona qualquer:
CONTEÚDO CINEMÁTICO Substância: ótica e acústica/Forma: janelas e “print-masters”
EXPRESSÃO CINEMATOGRÁFICA Forma: gêneros e estilos/Substância: filmes e obras
Torna-se assim possível o delineamento de uma verdadeira geologia do
filme em que seus diversos regimes de temporalidade se articulam segundo a
disjunção do conteúdo à expressão, consolidando diversos extratos e linhas de
reconfiguração mimética no dispositivo, ou máquina, cinematográfico. Seu
223
substrato, a substância do conteúdo cinemático, é a matéria ótica e acústica
pré-formada, em estado de variação contínua de intensidade e padrão
frequencial, tecnicamente registrada em suportes pré-determinados.
Tais suportes definem as formas do conteúdo cinemático, ou epistratos,
como as janelas de projeção que determinam o formato técnico da imagem ou
os diversos tipos de print-master sonoro, monaurais e estereofônicos, que se
imprimem em uma película. Variam lenta e continuamente ao longo da
história do cinema, modificando imperceptivelmente a substância da
expressão a partir de modulações efetivadas na substância do conteúdo.
Constituem-se, portanto, em um plano de organização imanente ao dispositivo
cinematográfico, responsável por suas sucessivas (des)territorializações ao
longo da história em padrões técnicos e formais claramente distinguíveis pelo
historiador, tais como o uso específico de lentes e câmeras, variedades
específicas de material sensível e equipamento, procedimentos técnicos
padronizados, da captação à projeção.
Parastratos são as formas da expressão cinematográfica, domínio do
signo e da representação no cinema, geralmente designado como estética do
filme, ou do cinema. Linguagens e narrativas, gêneros e estilos, sintagmas e
paradigmas, autores e personagens se solidificam nesses extratos,
(re)codificando incessantemente o sentido do filme através da preleção
descontínua (montagem) de formas do conteúdo. Variam rápida e subitamente
ao longo da história, em padrões estéticos que são objeto de inevitáveis
controvérsias.
A substância da expressão, enfim, é o próprio filme como objeto
pragmático desta “geologia”, oscilando disjunta e assíncronamente ao longo
da dupla articulação audiovisual, entre o olhar e a escuta, o rosto e a voz
(componente gerativo), mas também entre a ficção e o documentário, mesis
e práxis (componente transformacional), ou, mais genericamente, entre o
mecânico e o anímico, o conteúdo e a expressão (componente diagramático).
Cada filme apresenta suas próprias linhas de dis(con)junção entre o seu
conteúdo e sua expressão: linhas síncronas e assíncronas que convergem e
divergem, entram e saem de fase, (re)sincronizando-se ou não. Algumas
destas linhas se fazem plenamente visíveis/audíveis ao espectador/ouvinte do
224
filme, exigindo sua atenção, total ou parcial. Enquanto outras devem costurar
o filme de forma silenciosa e subterrânea, permanecendo escondidas àquele
que não souber descobri-las.
Estas linhas constituem a geologia específica de cada filme. Como o
dispositivo cinematográfico, em seu componente gerativo, é um dispositivo
mimético genérico (isto é, uma mimetologia da experiência que é uma
experiência da mímesis), apresenta todas as possibilidades de reconfiguração
mimética da experiência, das mais codificadas e banais às mais inapreensíveis
e sublimes. Todas as formas de expressão esteticamente conhecidas podem
ser assim reproduzidas, incluindo as que descrevemos, em nosso segundo
capítulo
337
, para diferenciar a mímesis de representação, em suas duas formas,
da mímesis de produção: alegoria, figura e simulacro revelam-se, afinal, como
linhas de tensão, no processo de reconfiguração mimética, que percorrem o
eixo que vai da metáfora mais rígida e codificada, relacionando rias
imagens a partir de correspondências alegóricas bem determinadas, à
metamorfose quase imperceptível de um olhar, em que o sentido não só da
narrativa, mas do próprio envolvimento do espectador no testemunho de um
fato, mesmo que ficcional, pode ser colocado em questionamento como no
extraordinário filme Shadows (1959), de John Cassavetes.
337
Ver cap.2, pp.
225
CONCLUSÃO
ENTRE O OBJETO E SEU DUPLO
Smash the radio
(No outside voices here)\
Smash the watch
(Can not tear the day to shreds)\
Smash the camera
(Can not steal away the spirits)
Peter Gabriel
The time is out of joint: res gestae e historia rerum gestarum
A passagem do componente transformacional ao componente
diagramático é o limiar da semiótica, ponto de contato entre o cinema e a
história em que a história do cinema se revela como um dispositivo gerador de
narrativas e linguagens, autores, gêneros e estilos. Isso se não a partir de
um ou mais modelos e/ou paradigmas (semiológicos, narratológicos,
hermenêuticos), mas a partir de uma máquina, ou componente maquínico do
cinema, que seu componente diagramático permite pensar. A geologia nos
permite pensar o cinema em seu componente mais abstrato, como máquina
singular, duplamente articulada, e, ao mesmo tempo, irredutível à fixação
definitiva do seu dispositivo em um modelo ou circuito fechado de circulação
entre seus planos, linhas e elementos. O componente maquínico é aquele que
permite ao cinema se atualizar mais uma e outra vez como evento histórico
concreto.
Entre reprodução cinemática e representação cinematográfica não há
nenhuma solução de continuidade, mas uma disjunção constitutiva à qual se
sobrepõe, no plano teórico, a disjunção apontada entre a história do cinema
como uma disciplina específica e a análise das relações mais amplas entre
cinema e história. Enquanto a primeira destas disjunções pode ser estudada no
âmbito do componente gerativo do cinema, manifestando-se como tensão
constante entre o nível analógico e simbólico do filme, a segunda disjunção se
faz visível, por sua vez, através do diferimento temporal implícito à passagem
do nível estratégico para o auto-reflexivo do filme, ou seja, do componente
transformacional que inscreve determinado filme na história do cinema, em
226
seu momento próprio de emergência, ao componente maquínico que
reinscreve a história em qualquer filme que sobreviva a seu próprio momento.
Tal diferimento pode se traduzir, em termos metodológicos, em uma
oposição entre genealogia e arqueologia do cinema, no caso da passagem do
componente transformacional ao maquínico do filme (níveis estratégico e
auto-reflexivo), ou por uma oposição entre análise do dispositivo e análise da
linguagem, no caso da disjunção entre o nível analógico e o simbólico do
filme, constitutiva de seu componente gerativo.
Em todo caso, trata-se de pensar o diferimento ou disjunção temporal
como a base epistêmica para a compreensão das complexas relações entre
cinema e história, sempre perpassadas, em todos os seus níveis, pela diferença
evocada pelo historiador Carlo Guinzburg, em seu ensaio sobre Kracauer
338
,
entre res gestae e historia rerum gestarum - isto é, entre o momento de
emergência do evento e a transmissão (histórico-narrativa) dessa emergência.
Esta diferença não mais se coloca apenas no plano metodológico. Trata-
se de uma questão propriamente ontológica que nos remete, mais uma vez, ao
domínio dos enunciados como o domínio que aponta para a emergência do
evento antes mesmo de sua inscrição na história. Isto porque entre história e
historiografia introduz-se necessariamente uma distância a ser encoberta pelo
próprio discurso, e é a esta distância, e a esta operação de encobrimento, que o
cinema pode ser remetido quando escamoteia a sua real forma de reprodução
do tempo por meio de formas simbólicas de representação da sua passagem.
No cinema, time is always out of joint: o tempo está sempre dis-junto.
Quer consideremos o filme como um texto, quer o consideremos em sua
qualidade de cópia ou suporte material, quer o tratemos como documento
histórico digno de conservação ou como mercadoria a ser posta em circulação
- estamos sempre diante de vários níveis de diferimento temporal que podem
ser inscritos, de diversas maneiras, sobre a película. Portanto, também diante
de várias possibilidades (disjuntivas) de pensar as relações do cinema com a
história. Da mesma forma que pensar a história do cinema já é pensar o
338
Guinzburg, Carlo: “Detalhes, primeiros planos, microanálises – à margem de um livro de Sigfried
Kracauer”, in O Fio e os Rastros, Companhia das Letras, São Paulo, 2007, pp. 231-248.
227
cinema teoricamente, como bem o observa André Gaudreault
339
, pensar a
teoria do cinema como um problema fundamentalmente histórico é pensar
também, e necessariamente, uma teoria da história, na medida em que o
cinema reapresenta o problema de uma possível ontologia do tempo.
A última tentativa teórica neste sentido, anterior ao trabalho de Ferro, foi
a Teoria do filme, de Sigfried Kracauer, largamente ignorada após sua
publicação algo tardia, em 1960
340
. Em seu ensaio introdutório à reedição
deste livro, Miriam B. Hansen aponta algumas razões para a então pouco
entusiasta recepção às idéias de Kracauer: ao basear-se no caráter indicial da
imagem fotográfica para a fundamentação das relações entre cinema e história,
suas ideias eram identificadas a uma postura teórica ingenuamente naturalista,
que desconsideraria a mediação do signo e da representação na construção do
discurso cinematográfico. Embora a consistência teórica do trabalho de
Kracauer fosse inegável, sua insistência em considerar o cinema como algo
bem mais importante do que uma nova forma de arte, bem como o seu
desprezo por todo tipo de artificialismo ou de estetização do cinema, era
interpretado como uma atitude conceitualmente reducionista e limitante.
As teses de Kracauer foram equivocadamente consideradas como mero
epígono das teorias de inspiração fenomenológica que pensavam o específico
fílmico a partir de sua base fotográfica. Eram invariavelmente comparadas
(sempre de forma desfavorável) às idéias de André Bazin
341
, enquanto sua
Teoria do filme era impiedosamente atacada
342
. Somando-se a isso a então
crescente influência da semiologia estruturalista na teoria e na análise de
filmes (muito mais palatável a uma compreensão do cinema em termos
exclusivamente estéticos e artísticos, isto é, à redução da teoria do filme a um
departamento da história da arte), o eclipse de suas ideias era algo previsível.
O fato é que os profundos insights de Kracauer sobre as relações do
cinema com a história realmente careciam de uma fundamentação teórica mais
adequada. uma espécie de hiato conceitual entre sua teoria do filme e sua
339
Gaudreault, André : Cinéma et Attraction – Pour une nouvelle histoire du cinématographe, CNRS
Editions, Paris, 2008, p. 24.
340
Kracauer, Sigfried : Theory of Film – The redemption of physical reality (com introdução de
M.B.Hansen), Princeton University Press, New Jersey, 1997.
341
Ver, por exemplo, Dudley Andrew, J.: As principais teorias do cinema – uma introdução, Jorge Zahar
Editor, Rio de Janeiro, 1989.
342
Ver, por exemplo, Corliss, Richard: “The limitations of Kracauer’s reality”, in Cinema Journal,
Vol.10, N°1. (Autumn, 1970), pp. 15-22.
228
teoria da história, na medida em que uma ontologia da imagem fotográfica
como índice material da realidade física é capaz de apontar para uma relação
direta entre cinema e história, mas não de demonstrá-la com precisão. Para
além da objeção mais óbvia que se faz à sua teoria - a de que o cinema não
precisa da textura material da imagem fotográfica como suporte necessário à
representação cinematográfica -, o problema da real possibilidade de se
articular o tempo cinemático ao tempo histórico através de tal ontologia, já que
a impressão, fotográfica ou não, que o cinema nos fornece do movimento
baseia-se numa concepção do tempo físico como a soma de uma série de
instantes abstratos e homogêneos, isto é, equidistantes entre si. Assim, a
sensação cinematográfica do movimento, mesmo quando reforçada pela
textura fotográfica da imagem, proporcionaria apenas uma imagem indireta do
tempo, formas de representação simbolicamente mediadas que jamais
permitiriam a real apreensão, por parte do dispositivo cinematográfico, da
passagem física do tempo como tal, quanto mais da história, entendida
antropologicamente como história da cultura.
No arcabouço teórico de Kracauer, a ausência desta articulação, entre a
reprodução cinemática do tempo e a representação cinematográfica da história,
é claramente perceptível nas entrelinhas do seu conhecido estudo sobre o
cinema alemão dos anos 1920, De Caligari a Hitler
343
, em que a
correspondência entre realidade histórica e texto fílmico é demonstrada de
maneira puramente circular. Partindo-se da premissa de que toda e qualquer
representação simbólica é um reflexo indireto das suas condições sócio-
históricas de produção, pode-se evidentemente reler tais condições, a
contrapelo, na própria forma da representação
344
. Mas tal formalismo não era
em absoluto o objetivo do livro de Kracauer, que se pretendia uma análise
materialista da história do cinema alemão na qual o recurso metodológico à
psicanálise, consoante às pesquisas sobre a personalidade autoritária
desenvolvidas pela Escola de Frankfurt, apenas enfatizava ainda mais a
343
Kracauer, Sigfried: De Caligari a Hitler, uma história psicológica do cinema alemão, Jorge Zahar
Editor, Rio de Janeiro, 1988.
344
Acerca da circularidade viciosa da descrição narrativa, que da história só comprova aquilo que já havia
sido previamente selecionado em outro nível, ver Ricoeur, Paul: Temps et Récit 1 – L’intrigue et le récit
historique, Paris, Éditions du Seuil, 1983, pp.137-144.
229
necessidade de uma demonstração ontológica das relações que o cinema
entretém com a história.
A solução de Kracauer para este problema seria conhecida
postumamente, quando da publicação do seu último livro, History: The last
things before the Last
345
. Em um capítulo intitulado “A estrutura do universo
histórico”, Kracauer esboça uma teoria cinematográfica da história que
antecipa, em certos aspectos, a dicotomia historiográfica entre arqueologia e
genealogia a que já nos referimos. Para ele, a articulação sintática entre os
diversos planos de um filme representa a própria oscilação metodológica que a
história experimenta entre o nível macroscópico, genealógico e linear de
ocorrência dos seus objetos de estudo, e as inúmeras possibilidades
microscópicas de análise de qualquer objeto, por mais ínfimo e insignificante,
como objeto histórico. A tensão historiográfica inerente à dualidade entre
micro-história e macro-história estaria, assim, inscrita na própria gica
narrativa do cinema, que de forma espacializada. Com isto, no entanto,
Kracauer recua em relação às suas próprias premissas, pois a relação entre
cinema e história é fundamentada aqui em termos puramente metodológicos,
apenas através do campo sígnico da representação historiográfica, ou seja, da
historia rerum gestarum, e não no plano ontológico da res gestae, em que se
coloca a questão da passagem do tempo, tanto para a teoria do cinema quanto
para a teoria da história.
O trabalho de sistematização teórica de Kracauer deparou-se, portanto,
com questões de ordem ontológica e epistemológica que também estão no
cerne dos problemas enfrentados metodologicamente por Marc Ferro. Como
ressaltado, este último não chegou a sistematizar o seu trabalho, mas não
dúvidas de que a micro-história de Kracauer, bem como o papel que o cinema
nela desempenha, exerceu influência sobre sua obra, que consistiu em uma
espécie de demonstração prática da aplicabilidade analítica dessa linha de
pesquisa.
Faz-se necessário, portanto, repensar em toda a sua radicalidade
ontológica para além do paradigma analógico-fotográfico que caracterizava
345
Kracauer, Sigfried: History: the last things before the Last, completed after the death of the author by
Paul Oskar Kristeller, Princeton University Press, 1995.
230
tecnicamente o cinema do século passado, a teoria de Kracauer sobre o cinema
e a história. A constante tensão que opõe os valores indiciais e icônicos que
habitam o filme recoloca a questão da mímesis e de seus efeitos sociais,
principalmente quando o texto fílmico é analisado a partir de sua auto-
reflexividade intrínseca, seja ela intencional ou não. Se as tradicionais
discordâncias teóricas acerca do cinema parecem, a princípio, apenas refletir
os efeitos da mencionada dupla inserção social da práxis cinematográfica,
não deixam também de apontar para o caráter necessariamente auto-reflexivo
desta práxis como tal. Portanto, a auto-reflexividade do discurso
cinematográfico não pode ser considerada apenas como uma possibilidade
estilística ligada ao modernismo e às pesquisas semiológicas sobre meta-
linguagem, ou como um problema ligado exclusivamente ao gênero
documental
346
, pois permite pensar o caráter duplamente ambíguo do filme,
entre signo e objeto, texto e sensação. Trata-se, antes, de um sintoma do
processo ontológico de constituição da imagem como objeto de sutura entre o
real de uma percepção e a sua inscrição simbólica em um código
representacional qualquer.
Por isto, reavaliamos o papel da mímesis na práxis cinematográfica,
tentando demonstrar de que modo o cinema não cessa de provocar, desde os
seus inícios, a redescoberta do fenômeno originário da mímesis de produção
ou poiética. Tal mímesis escapa aos critérios estritamente codificados da
representação classicista e não se baseia exclusivamente em modelos verbais e
visuais de comunicação, privilegiando, antes, o som e o corpo como veículos
do movimento físico sensorialmente perceptível (na música ou na dança, por
exemplo). Vimos, também, como o processo de mecanização da mesis
imitativa, que está na origem do próprio cinema, implica um constante reforço
sensório-perceptivo do poder contagiante que reside na expressão mimética,
além (ou aquém) do seu conteúdo estritamente representacional. Este estímulo
incessante se manifesta no incremento sempre maior que o espetáculo
cinematográfico dedica à reprodução de nossos sentidos mais efêmeros,
através de efeitos técnicos oriundos de todo tipo de percepção sensorial
disponível (sons e cores, relevos e texturas, instantes e durações).
346
Ver Da-Rin, Silvio: Espelho partido: tradição e transformação do documentário, Azougue editorial,
Rio de Janeiro, 2006.
231
Finalmente, pensamos a mímesis cinematográfica neste nível ontológico
de diferimento entre o real da reprodução cnica (de imagens e de sons) e os
efeitos imaginários da representação simbólica (através de signos visuais e
sonoros) que, precisamente, nos permite situá-la além (ou, melhor dizendo,
aquém) do problema da textura fotográfica da imagem, incorporando o som no
mesmo nível ontológico das relações entre a imagem e o tempo.
Assim, pode-se demonstrar a articulação entre cinema e tempo, no nível
cinemático mais elementar, pré-representacional, do seu componente gerativo,
como uma técnica de reprodução do instante na duração, e da duração no
instante, através das relações entre som e imagem. Pode-se afirmar, também,
que a história do cinema é resultante da disjunção entre os seus componentes
gerativo e transformacional, enquanto as relações entre o cinema e a história
aparecem na disjunção entre seu componente diagramático e seu componente
maquínico. Um estudo do dispositivo cinematográfico como máquina, isto é,
dos componentes mais elementares do seu diagrama, faz-se necessário,
portanto, para uma compreensão mais acurada das relações entre cinema e
história.
Do dispositivo cinematográfico como máquina
O dispositivo cinematográfico articula determinadas lógicas de
produção, em certo estágio de desenvolvimento dos seus formatos industriais,
a certas matrizes culturais, necessárias à decodificação e interpretação de um
filme como um sistema organizado de signos, habilitando o espectador em sua
competência de recepção. O componente maquínico do cinema não deve ser
confundido apenas com seus aspectos técnicos ou mecânicos, pois o circuito
percorrido entre a câmera e o olho é amplo, e possui vários aspectos e estratos
combinados. Mapear esses estratos implica delinear o componente
diagramático do cinema como máquina, não a partir de um modelo baseado
em uma matriz conceitual qualquer, mas a partir das articulações e
engajamentos historicamente concretos que podem ser detectados a partir do e
no próprio filme, em todos os níveis (analógico, simbólico, estratégico e auto-
reflexivo).
232
A pragmática da experiência cinematográfica, arcabouço teórico do
empreendimento deleuziano apenas implícita em seus livros sobre o cinema,
geralmente se refere à obra de Paul Virilio somente em esclarecedoras notas
de de página, que acompanham e suplementam o curso regular de
exposição, derivado do componente gerativo do cinema. Deleuze não chega,
no entanto, a explicitar o lugar central que esta obra ocupa em sua concepção
das relações entre o cinema e a história.
Para Virilio, a mímesis cinematográfica é uma cinemática da
dissimulação, inteiramente atravessada pelos engajamentos historicamente
concretos implicados nos aspectos tecno-econômicos de sua práxis. Virilio
aponta para uma história do cinema que não está contida nos limites da
história da arte ou do espetáculo, nem se reduz a uma hermenêutica geral da
representação ou da narrativa. Articula, antes, tais agenciamentos com outros
menos evidentes, incluindo não o elemento propriamente mecânico e
técnico do cinema, mas, sobretudo, o modo de organização industrial e fabril,
que gradativamente se impõe às suas lógicas de produção, em sua conexão
maquínica com as necessidades de controle e expansão, geralmente de caráter
militar, da ordem social e política
347
. Virilio correlaciona o cinema à história
a partir de uma rie de homologias estruturais que é possível traçar entre a
práxis da indústria cinematográfica entendida como guerra entre empresas,
geridas e organizadas nos moldes capitalistas, e a práxis de um complexo
militar-industrial entendido como empresa estatal de guerra imperialista, isto
é, de conquista e controle de certos aparelhos (de estado) por outros.
Com isto, a obra de Virilio permite retomar as indagações concretas,
colocadas por Marc Ferro, acerca das relações entre cinema e história, em
uma perspectiva reversa, porém complementar. Isto se dá, não a partir do
texto, explícito ou implícito ao discurso do filme, mas a partir da
materialidade constitutiva de sua práxis, com todas as injunções e
dependências que influenciam ou determinam a produção de um filme, em um
nível de articulação muito mais complexo do que uma teoria do cinema como
narrativa, ou mesmo como forma específica do pensar, é capaz de conceber.
Torna-se possível uma teoria e uma história do dispositivo cinematográfico
347
Virilio, Paul: Guerra e cinema, Scritta editorial, São Paulo, 1993.
233
como máquina, simultaneamente articulada a uma genealogia dos dispositivos
técnicos de reprodução de imagens
348
(da gravura e da fotografia à imagem
eletrônica e digital) e a uma arqueologia dos saberes e poderes em que esta
imagem-máquina
349
historicamente se insere.
O trabalho de Virilio
350
abriu o caminho para uma compreensão mais
aguda do componente transformacional do cinema. Esta foi desenvolvida, de
maneira simultânea e independente, tanto por Deleuze quanto por Kittler,
embora em direções opostas. Kittler aplica diretamente os diversos
agenciamentos e conexões entre a indústria do espetáculo, do audiovisual e o
chamado complexo industrial-militar, revelados pela análise de Virilio, ao
cinema como um objeto histórico de pesquisa. Gramophone, film,
typewriter
351
é uma descrição direta do componente mais abstrato da
pragmática audiovisual do cinema e do fundamento maquínico de seus
componentes. Publicado em 1986, logo depois dos livros deleuzianos sobre o
cinema, não chega a lhes fazer menção em momento algum, mas partilha com
eles uma fonte comum: a obra de Paul Virilio.
Kittler situa a sua análise no ponto de interseção entre história e
arqueologia que Foucault provavelmente denominaria “regra de
transformação” (e que é, para nós, o componente transformacional do
cinema), reconfigurando as relações entre o cinema e a história em uma
arqueologia da dia, entendida como o conjunto dos meios e sistemas
técnicos de comunicação que surgiram, nos últimos cento e cinquenta anos.
Tal articulação permite abarcar, não a história do cinema, mas também a
história da indústria fonográfica (e de suas relações com a história da música),
a história dos métodos de automação da escrita (do telégrafo à Internet), bem
como suas relações com a história da literatura.
Neste entrecruzamento constante do componente transformacional da
história do cinema (entendido como o desenvolvimento contínuo das
possibilidades intrínsecas ao seu componente gerativo audiovisual) e do seu
348
Virilio, Paul: La machine de vision, Galilée, Paris, 1988.
349
Na excelente definição de André Parente.
350
Sobretudo Virilio, Paul: Velocidade e política, Estação liberdade, São Paulo, 1996, O Espaço crítico,
Ed. 34, Rio de Janeiro, 1993, e A Arte do Motor, Estação Liberdade, São Paulo, 1996.
351
Kittler, Friedrich: Gramophone, film, typewriter, Stanford University Press, 1999.
234
componente maquínico (entendido como o próprio mapeamento descontínuo,
geológico, das linhas e agenciamentos de força extrínsecos ao cinema, porém,
constitutivos do seu diagrama), Kittler redimensiona inteiramente a inserção
tradicional da história do cinema na história das artes e do espetáculo
352
.
Todos os problemas, relativos à constituição de uma linguagem ou discurso
cinematográfico passível de análise como texto, são confrontados a problemas
de ordem inteiramente diversa, relativos à materialidade dos diversos meios
de comunicação (sonoros, visuais, verbais) articuláveis ao texto como
discurso ou mensagem
353
. Assim, sem necessariamente excluir as
contribuições advindas da hermenêutica, disciplinas a princípio distantes da
arte e da literatura (como aeronáutica e balística, logística e estratégia militar),
são utilizadas no mapeamento dos agenciamentos e linhas de força que
reconfiguram, em determinado momento, o componente maquínico do cinema
em sua própria historicidade:
Para substituir a história mundial (...) o sistema midático procedeu
segundo três fases. Fase 1, começando com a Guerra Civil Americana,
desenvolveu tecnologias de estocagem do acústico, do ótico e do escrito; filme,
gramophone, e o sitema homem-máquina, a máquina de escrever. Fase 2,
começando com a 1ª Guerra Mundial, desenvolveu tecnologias elétricas de
transmissão apropriadas a cada conteúdo estocado: rádio, televisão, e suas
contrapartidas mais secretas. Fase 3, desde a Guerra Mundial, transferiu a
esquemática de uma máquina de escrever para uma tecnologia da
predictabilidade per se; a definição matemática de computabilidade por Turing
em 1936 deu aos futuros computadores o seu nome.
A tecnologia de estocagem, de 1914 a 1918, implicou guerra de
trincheiras sem saída de Flanders a Gallipoli. A tecnologia de transmissão com
tanques providos de comunicação por VHF e imagens de radar, inovações
militares paralelas à televisão, implicaram mobilização total, motorização e
blitzkrieg do Vistula em 1939 a Corregidor em 1945. E, finalmente, o maior
programa de computador de todos os tempos, na confluência da realidade e da
simulação, responde pelo nome de Iniciativa Etratégica de Defesa.
Estocagem/transmissão/cálculo, ou trincheiras/blitzes/estrelas. Guerras mundiais
de 1 a n.
354
Considerar o dispositivo cinematográfico como uma máquina de guerra
é uma operação indispensável à arqueologia do cinema. No entanto, apenas
352
Uma perspectiva muito próxima é a de Crary, Jonathan: Suspensions of perception – attention,
spectacle, and modern culture, The MIT Press, 1999. Ver também o mais recentemente, Zielinski,
Siegfried: Deep time of the media, The MIT Press, 2006.
353
Esta é, com efeito, a perspectiva teórica comum aos autores reunidos por Gumbrecht, Hans Ulrich e
Pfeiffer, K.Ludwig (orgs.): Materialities of Comunication, Stanford University Press, 1994, inclusive
Kittler.
354
Kitller, Friedrich : Gramophone, Film, Typewriter, Stanford University Press, 1999, p. 243. Minha
tradução.
235
uma compreensão plena do que se entende aqui por máquina de guerra
permite pensar as potencialidades da experiência cinematográfica além do
circuito fechado de saberes e poderes que a constitui como mimetologia. Na
medida em que uma máquina de guerra não tem necessariamente a guerra por
objeto, como Deleuze não se cansa de alertar
355
, não se pode encerrar o
dispositivo cinematográfico, como dispositivo mimético, em uma camisa-de-
força ainda mais apertada que a da hermenêutica, submetendo a história do
cinema a determinações funcionais que confundem uma série de
agenciamentos históricos específicos com alguma pressuposta “essência da
técnica” mesmo quando desta se afirma que “não é absolutamente nada de
técnico
356
”. Se a experiência do cinema se reduzisse a uma instrumentalização
da cinemática da mímesis em estratégias de dissimulação “de uso
exclusivamente militar”, sua importância histórica seria apenas episódica,
mesmo quando ocasionalmente decisiva. Evidentemente, não é este o caso,
pois, mesmo quando se apresenta como o austero resultado de uma
investigação neutra e imparcial sobre o mundo, como no caso dos filmes
documentais de Jean Painlevé, o cinema evoca o risco do perigo e do
desconhecido em seu apelo ao espectador, tal como em seu famoso curta-
metragem Le vampyre, de 193?, sobre os morcegos hematófagos da América
do Sul, cujo delírio poético provém da própria precisão científica.
Ao retomarmos, portanto, a pragmática da experiência cinematográfica
a partir da obra de Virilio e de seu desenvolvimento posterior no trabalho de
Kittler, devemos evitar o risco de cair no mesmo dilema que vimos
reaparecer, nas discussões acerca do simulacro e da simulação em nosso
segundo capítulo, entre “apocalípticos” e “integrados”, como se devêssemos
determinar, de forma absoluta, o sentido histórico, positivo ou negativo, desta
experiência. Entre os marxistas, tal dilema assumiu a forma de uma intensa
polêmica que opunha, nos anos 1970, lukacsianos e althusserianos
357
, acerca
do papel da ideologia no cinema. Para os primeiros, a ideologia de um filme
dependia inteiramente do seu conteúdo estético, sendo a forma um mero
355
Ver Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1980, pp.
356
Heidegger, Martin: A Questão da Técnica.
357
Ver a este respeito, Lebel, Jean-Patrick: Cinema e ideologia, Ed. Estampa, Lisboa, 1975.
236
veículo técnico, dentre outros, para o discurso. Os segundos consideravam a
própria forma hegemônica que as práticas de registro, montagem e projeção
cinematográfica assumiram historicamente como um condicionante
ideológico de todo e qualquer conteúdo “filmável”. O cinema seria um dos
muitos aparelhos ideológicos, de captura e de controle social, à disposição do
estado e da sociedade.
Embora não se preocupe diretamente com o problema da ideologia no
cinema, Virilio não deixa de se inserir, de algum modo, nesta última
perspectiva, na medida em que pensa o cinema prioritariamente como
aparelho de captura, e não como máquina de guerra. A constituição do
dispositivo cinematográfico como dispositivo mimético, ou seja, a do cinema
como mimetologia, é por ele remetida, em última instância, à guerra
entendida como disputa incessante entre os estados pelo controle e pela
hegemonia econômica e social. Neste sentido, o termo “guerra”, em seus
trabalhos, é ao mesmo tempo sintomático e enganoso, pois se refere aos
estados imperialistas do último quartel do século XIX e a seus aparelhos
militares de conquista. Revelar o cinema como função da guerra, e a guerra
como seu objeto último, é apontar para o cinema como um aparelho de
captura do instante e de registro do tempo e do espaço, isto é, para seus
aspectos funcionais como instrumento de vigilância e controle e não para o
cinema como máquina de guerra, no sentido especificamente deleuziano do
termo.
Pode-se opor aqui, como o faz Jonathan Crary, o cinema como
instrumento “panóptico” de vigilância (Foucault, Virilio) ao cinema como
instrumento ideológico do espetáculo (Baudry, Debord) oposição que
recobre, em linhas gerais, a tensão entre o campo da reprodução cinemática e
o campo da representação cinematográfica, que atua no componente gerativo
do cinema. Tal oposição não atinge, no entanto, o cerne do componente
maquínico do cinema, pois reside ainda em uma concepção instrumental do
cinema como aparelho de captura, quer pensada como captura ideológica das
representações mentais dos homens, quer como controle panóptico da
(re)produção material do mundo.
237
No entanto, se a cinemática da mímesis pode ser facilmente capturada
por códigos representacionais estético-lingüísticos e domesticada em mímesis
da expressão cinematográfica, suas próprias condições de projeção se prestam
a um desvio constante do sentido estabelecido pelo nível propriamente
simbólico da representação cinematográfica em suas mediações. A auto-
reflexividade mimética da experiência cinematográfica remete o espectador,
em última instância, à impossibilidade última de captura de sua própria
experiência na imediaticidade instantânea prometida pelo dispositivo, bem
como ao diferimento temporal daí decorrente como índice de um diferimento
necessariamente histórico. Neste sentido, nenhum cineasta refletiu tão
claramente a historialidade inerente à experiência cinematográfica como
Tarkovski, em O espelho, um filme sobre a memória (individual) e a história
(coletiva) em que as imagens documentais, objetivas, da história russa
recente, i.e., da guerra, encaram o espectador, assim como o protagonista é
encarado por suas próprias imagens-memória subjetivas.
Entendido exclusivamente como um aparelho técnico, o dispositivo
cinematográfico revela sua dimensão momentânea de instrumento sócio-
político de controle. Se o nível propriamente estratégico de recepção do
discurso fílmico, em que se situam as análises marxistas da ideologia e os
mapeamentos foucaultianos de arquivos e enunciados, pode se contentar com
estas determinações, molares, do componente diagramático do cinema,
fixando-o em epistratos e parastratos
358
mais ou menos estáveis ao longo do
tempo, o nível auto-reflexivo de análise do filme privilegia os desvios e
deslocamentos menores efetuados pelo tempo no filme e pelo filme na
história, disjunta e simultaneamente. Pensar o cinema como máquina de
guerra, exige, portanto, que se pense o cinema não como um instrumento
ou aparelho de captura, pois aquilo que o cinema deixa entrever da história,
auto-reflexivamente, não se reduz à função militar de seu dispositivo técnico.
Assim, se o componente transformacional do cinema aponta para as
relações, internas à história do cinema, entre mímesis e práxis, seu
componente maquínico aponta para as relações entre esta mesma práxis e o
papel e os efeitos da técnica no mundo contemporâneo. No entanto, se os
358
Ver acima, cap.3, pp.
238
encontros e desencontros de um determinado dispositivo técnico com suas
representações (sociais, ideológicas, estéticas, políticas, econômicas…)
simbólicas são historicamente concretos, não podem ser compreendidos a
partir de conceituações teóricas que descartam, de antemão, o caráter
complexo e ambíguo do fenômeno contemporâneo da técnica. A forma
costumeira com que se descreve a relação entre as técnicas de reprodução da
imagem e do som, que começam a surgir a partir do século XIX, e os modos
de representação social que se estabeleceram em seguida, é um bom exemplo
dessa dificuldade. O pensamento técnico aparece sempre como prévio ao
desenvolvimento "artístico" das representações simbólicas, como a pré-história
material de um desenvolvimento estético supostamente autônomo
359
.
Como pensar o componente maquínico do cinema em seus
agenciamentos históricos concretos, sem cair em determinismos historicistas?
Como escapar dessa permanente ambivalência teórica a respeito do valor e do
sentido do seu dispositivo, entre a inapelável condenação crítica e o
entusiasmado elogio incondicional? Como pensar a práxis cinematográfica, a
partir das características técnicas do seu dispositivo, sem reduzi-la aos
modelos instrumentais que, sem dúvida nenhuma, concorreram para o seu
surgimento?
A resposta a estas perguntas contém a chave do componente maquínico
do cinema e de suas relações com a história. Para isto, porém, faz-se
necessário, para concluir, um questionamento acerca do sentido de que se
reveste, historicamente, nossa própria noção de técnica, entendida como algo
distinto, tanto da ciência, como da arte.
Técnica e ciência como "representação"
Em artigo de apenas uma página, publicado em 1959
360
, Martin
Heidegger retoma a questão da técnica e da ciência modernas a partir de um
comentário feito pelo então presidente do Conselho da URSS, Nikita
359
Para uma ótima exceção a esta "regra", ver Crary, Jonathan: Techniques of the Observer – on vision
and modernity in the nineteenth century, MIT Press, 1990.
360
Heidegger, Martin: Esboços tirados do Ateliê, publicado originalmente no Neue Zuricher Zeitung de
26/09/1959. A tradução para o português de que nos utilizamos é de Antonio Abranches e foi publicada
na revista O Nó Górdio - Jornal de Metafísica, Literatura e Artes, Ano I, n°1, Dezembro de 2001, p.16.
239
Kruschev, por ocasião do lançamento de um foguete espacial soviético.
Segundo Heidegger, "o presidente do Conselho Soviético declarou, no início
do ano, a propósito da nave espacial russa: 'nós somos os primeiros no mundo
a ter imprimido no céu, da Terra até a Lua, uma trajetória de fogo'
361
”.
Heidegger não esconde neste texto certo fascínio pelo teor poético desta
declaração, fascínio ainda maior considerando-se que o aparelho burocrático
comunista, representado por seu autor, lhe aparecia precisamente como a
realização histórica do espírito tecnocrático de exploração ilimitada da
natureza "como fundo de reserva universal, interestelar"
362
.
Para Heidegger, a técnica e a ciência modernas só possibilitariam o
lançamento de um foguete, da Terra para o céu, na medida em que se
aniquilasse por completo, no homem, a capacidade poética de atribuir à Terra
e ao céu diferentes sentidos: "a trajetória das naves empurra brutalmente Terra
e Céu para o esquecimento"
363
. O desencantamento do mundo, promovido
pela ciência contemporânea, condenaria, assim, o homem à total incapacidade
de fazer deste planeta a sua morada, no sentido de uma "habitação poética
364
”.
Nada mais embaraçoso para Heidegger, portanto, do que os arroubos
poéticos de Krutschev. Seu breve artigo dedica-se explicitamente a refutá-lo,
com a ressalva esclarecedora de que "é preciso, antes de mais nada, ponderar o
conteúdo da declaração de Krutschev, sobre a qual, é verdade, ele mesmo não
pensa"
365
. Ao elogio triunfalista, que transparece ao considerarmos a
declaração de Kruschev como uma peça de propaganda do regime soviético
(em que um grande feito técnico e científico é testemunhado pela humanidade
em escala cósmica), Heidegger contrapõe a própria letra de que este se
constitui, poeticamente: a imagem de uma trajetória de fogo unindo a Terra ao
céu é uma imagem da destruição de nossa morada, a Terra - assim como as
imagens da explosão das bombas A e H que pairavam sobre todos os seres
humanos daqueles anos 50 do último século.
Ao afirmar que a técnica, considerada em si mesma, não corresponde à
sua essência, Heidegger pretende liberar a discussão contemporânea dos
361
Idem.
362
Ibidem.
363
Ibidem.
364
Ibidem.
365
Ibidem.
240
discursos que a descrevem como um meio ou instrumento "neutro" em relação
aos seus próprios princípios ou fins. O espetáculo da técnica implica sua
suposta transparência total em um pretenso modo objetivo de funcionamento,
e na suposta previsibilidade controlável de seus efeitos, em uma transparência
considerada, enfim, como sua razão própria de ser
366
. Porém, Heidegger refuta
completamente a idéia de uma técnica auto-evidente e auto-justificada.
Kruschev não poderia saber o que realmente estava dizendo, pois o
pensamento técnico não seria capaz de representar-se a si próprio de maneira
tão adequada. Em consonância com as análises pioneiras de
Horkheimer/Adorno sobre a razão instrumental, realizadas no início dos anos
1940, Heidegger indica a opacidade marcante que caracteriza o exercício
social da técnica em nossos dias, abrindo caminho para uma crítica radical do
pensamento científico que a subsume:
O pensamento autêntico (…) vive apenas em "reservas" (talvez porque,
por sua proveniência, ele seja, à sua maneira, tão antigo quanto os índios).
Perante o pensamento calculante que age a partir de sua utilidade e de seus
sucessos (…) o pensamento mediante não pode mais emergir de modo
imediato
367
. Afirma ainda do pensamento calculante que este "enfeitiça o
espírito do tempo e se vê assim reforçado em sua verdade
368
.
A crítica heideggeriana da técnica e da ciência implica, assim, a
contestação radical dos pressupostos epistemológicos que consideram o
conhecimento cientificamente produzido como objetivamente neutro, bem
como as técnicas dele resultantes como socialmente transparentes, no que diz
respeito a seu fim e usos correntes. Para Heidegger, a opacidade da técnica
moderna reside em seu racionalismo abstrato e reducionista, no "pensamento
calculante" que a separa do verdadeiro fazer concreto dos homens ao qual
estava outrora subordinado, o fazer poético do artista/artesão - a poiésis
grega
369
. Quando a atividade técnica passa a ser orientada pelo pensamento
científico, é a própria atividade humana sobre a Terra que se deixa subordinar
366
A este respeito, conferir a análise que faz Philippe Breton de um conto de Isaac Asimov - Face aux
feux du soleil, na tradução francesa de que se utiliza o autor - em Breton, Philippe Le Culte de L'Internet,
une menace pour le lien social? Ed. La découverte, 2000, pp. 101-105.
367
Heidegger, Martin op.cit.
368
Heidegger, Martin op.cit.
369
"Quant à l'artisan ordinaire (…) ce travailleur manuel qui n'a pas (…) loisir de s'exercer aux
mathématiques, il ne lui reste désormais que la routine du métier. A l'intérieur meme de son activité
professionnelle, l'essentiel échappe à sa compétence; les règles de sa techné concernent les procédés de la
fabrication, la poiésis: l'œuvre en vue de laquelle il travaille, le dépasse. Aux yeus des grecs elle est en
effet étrangère au domaine proprement technique." Vernant, Jean-Pierre: Mythe et Penséee chez les
Grecs, François Maspéro, Paris, 1974, p. 62.
241
inteiramente aos seus fins. Heidegger denuncia a separação das condições
técnicas de reprodução do mundo das condições simbólicas de representação
da existência humana, ao mesmo tempo em que a fundamenta
ontologicamente, identificando a "essência da técnica" ao pensamento
científico-racional.
Heidegger levanta com clareza a questão da técnica na sociedade
contemporânea, mas não chega a esboçar uma solução plausível. Sua
insistência na opacidade essencial da técnica o conduz a uma postura
declaradamente elitista e irracional: haveria dois caminhos possíveis, "o
caminho do pensamento especulativo-meditante" de um lado, e, de outro,
"todas as precipitações da sociologia, da psicologia e da logística.
370
Assim, apesar de sua magistral interpretação da frase de Kruschev,
Heidegger não consegue desvencilhar-se do fascínio provocado pelo feito
técnico, pois, como o afirma Cornelius Castoriadis,
(...) crer que o 'crescimento das ciências tecnicizadas' leva à
'decomposição da filosofia'(…) é simplesmente crer na 'técnica', crer que esta
pode fechar-se em si mesma.
371
Um impasse intransponível se verifica assim entre a produção prática,
criativa e poética do homem e a re-produção social de mercadorias, idealmente
regulada por critérios técnicos. Herbert Marcuse tentou superar este impasse
partindo da idéia da determinação da essência da técnica como dispositivo de
domínio sobre a natureza, para formular uma crítica materialista à ideologia da
razão técnica:
Talvez o próprio conceito de razão técnica seja uma ideologia. Não
apenas a sua aplicação, mas já a própria técnica é dominação (sobre a natureza e
sobre o homem), dominação metódica, científica, calculada e calculadora. Não é
apenas de maneira acessória, a partir do exterior, que são impostos à técnica fins
e interesses determinados - eles intervém na própria construção do aparato
técnico; a técnica é sempre um projeto histórico-social; nela é projetado aquilo
que a sociedade e os interesses que a dominam tencionam fazer com o homem e
com as coisas. Tal objetivo da dominação é 'material' e, nessa medida, pertence
à própria forma da razão técnica.
372
370
Heidegger, Martin op.cit
371
Castoriadis, Cornelius: As Encruzilhadas do Labirinto 1, Ed. Paz e Terra, 1987, pp. 14-15.
372
"Industrialisierung und kapitalismus im Werk Max Webers", in Kultur und Gesellschaft II,
Frankfurt/M. 1965. Esta citação de Marcuse se encontra em um texto publicado por ocasião dos setenta
anos de Marcuse, em 1968, em Habermas, Jurgen: Técnica e Ciência enquanto "Ideologia", Ed. Abril,
Col. Os Pensadores XLVIII, 1975, pp. 303-333.
242
Para Marcuse, a pretendida transparência e neutralidade da técnica e da
ciência modernas funcionam apenas como um disfarce ideológico para a
dominação a serviço da qual elas se encontram. No entanto, em oposição ao
vínculo ontológico que Heidegger estabelece entre a essência da técnica e a
dominação sobre o homem e a natureza, Marcuse estabelece um vínculo de
caráter histórico entre o sistema de dominação capitalista e a emergência da
razão técnica. A ideologia da técnica moderna está inscrita em sua própria
origem histórica, subordinando seus princípios metodológicos e operacionais a
critérios de racionalidade social e eficiência econômica que lhe são exteriores.
Marcuse desloca a tese heideggeriana de uma opacidade essencial da cnica
ao homem, pois considera justamente que esta opacidade não lhe é intrínseca:
o problema da técnica moderna não é mais a sua falsa transparência, mas sim o
fato de que esta ainda não se tornou verdadeiramente transparente, i.e., não
realizou totalmente suas possibilidades socialmente libertárias. A ideologia da
técnica (Ideologia da Sociedade Industrial
373
) consiste precisamente neste
"resto" opaco, nesta mancha sobre a superfície reluzente da razão técnica que
deve ser enfim superada/retirada:
O ponto que estou tentando mostrar é que a ciência, em virtude de seu
próprio método, e de seus conceitos, projetou e promoveu um universo no qual a
dominação da natureza permaneceu vinculada à dominação do homem - um
vínculo que tende a ter efeitos fatais para esse universo como um todo. A
natureza, cientificamente compreendida e dominada, reaparece no aparato
técnico de produção e destruição que mantém e aprimora a vida dos indivíduos,
ao mesmo tempo em que os subordina aos senhores do aparato. Assim, a
hierarquia racional se funde com a social. Se esse for o caso, então uma
mudança na direção do progresso que pudesse romper este vínculo fatal também
afetaria a própria estrutura da ciência - o projeto científico. Sem perder o seu
caráter racional, suas hipóteses se desenvolveriam num contexto experimental
essencialmente diferente (o de um mundo pacificado; consequentemente, os
conceitos de natureza aos quais a ciência chegaria, bem como os fatos que viria
a estabelecer, seriam essencialmente diferentes)
374
.
A crítica ideológica da razão técnica assimila a abordagem
heideggeriana à perspectiva utópica de uma nova ciência e de uma nova
técnica dissociadas do imperativo sócio-econômico de dominação da natureza
e do homem. Marcuse parte da história das relações entre a técnica moderna e
a ciência para demonstrar a sua emergência nas relações sociais de produção.
Esta ênfase no aspecto material da intervenção técnica relativiza sua opacidade
373
Marcuse, Herbert: Der eindimensionale Mensch, Neuwied, 1967.
374
Op. Cit. pp.180 s.
243
essencial, na medida em que esta última é apenas a função ideológica de sua
representação, idealizada num dado momento histórico do conflito entre as
classes sociais. Uma sociedade livre da dominação social estaria igualmente
livre da dominação técnica.
Marcuse almeja uma possível harmonia entre os domínios técnico e
poético da prática humana, entre a regulação técnico-científica da reprodução
material da vida social e o regime de produção simbólico-imaginário de
representações mentais que o homem faz de si e do mundo. A tendência
histórica da ideologia da técnica seria o seu desaparecimento final, a partir do
surgimento de uma técnica socialmente transparente e libertária, isenta da
necessidade social de representações ideológicas.
Em seu ensaio Técnica e Ciência enquanto 'Ideologia' - para os setenta
anos de Marcuse, Habermas aponta para uma ambiguidade fundamental na
crítica à ideologia da técnica: esta considera a cnica como um instrumento
ideológico de legitimação da ordem dominante, ao mesmo tempo em que
procura revelar o potencial libertário inerente à sua condição de força
produtiva. Ora, como a partir de meados do século XX "o crescimento das
forças produtivas institucionalizado com o progresso técnico-centífico rompe
com todas as proporções históricas
375
”, a noção de ideologia acaba por se
revelar insatisfatória na determinação negativa da essência da técnica, e, por
isto, deve ser posta entre aspas.
Por um lado, a contínua racionalização técnica de vastos setores da vida
humana despolitiza as instâncias sociais de decisão, efetivando na prática
cotidiana uma redução no grau de opacidade ideológica destas instâncias.
Mecanismos transparentes de controle apresentam-se como substitutos
racionais para a violência dos embates político-ideológicos que marcaram a
história do capitalismo e a administração de seus efeitos. Por outro lado, o
discurso sobre a técnica passa a apresentar-se como supra-ideológico, na
medida mesma em que a técnica autolegitima-se tautologicamente, como
evidência fundamental da existência humana. A "solução técnica" confunde-
se, na prática social, com a "verdadeira solução", eludindo mais uma vez o
375
Habermas, Jurgen: Técnica e Ciência enquanto "Ideologia", Ed. Abril, Col. Os Pensadores XLVIII,
1975, p. 305.
244
elemento ideológico da questão e reintroduzindo um forte grau de opacidade
no julgamento sócio-político das instâncias de decisão.
uma forte tendência histórica do processo de racionalização da
produção de apresentar-se ideologicamente como "fatalidade histórica" ou
"necessidade natural", e não como um meio prático para a realização de fins
socialmente predeterminados. No entanto, a partir de um determinado ponto
do desenvolvimento das forças produtivas, o fator técnico converte-se, de fato,
em uma finalidade social autônoma, que tende a substituir os antigos padrões
de normatividade ideológicos por seus próprios critérios racionais de
produtividade e eficácia.
Habermas enuncia com precisão este ponto. Trata-se do momento em
que desaparece a "diferença entre a práxis e a técnica", momento em que "os
modelos coisificados das ciências se imiscuem no mundo do viver sócio-
cultural e adquirem poder objetivo sobre a auto-compreensão."
376
Trata-se do
momento histórico em que a razão técnica não pode mais ser considerada
como um objeto passível de debate ideológico, em que "a forma racional da
ciência e da técnica(…) vem a se expandir, chegando a tornar-se a forma de
vida, a totalidade histórica de um mundo do viver".
377
A crítica de Marcuse à ideologia da razão técnica reencontra-se aqui
com as encruzilhadas sem saída do existencialismo humanista: não podemos
redimir a técnica de seu "pecado original" ideológico por um lado
378
,
tampouco podemos voltar-lhe olimpicamente as costas, “à la Heidegger”. As
aspas habermasianas sobre a "ideologia" da técnica nos alertam precisamente
para o fato de que a análise de Marcuse sofre das mesmas deficiências
apontadas por Cornelius Castoriadis, em seu comentário acerca da definição
da essência da técnica em Heidegger:
Onde nos apercebemos que o movimento tecnológico contemporâneo
possui uma inércia considerável, que ele não pode ser desviado ou parado com
pouca despesa, que é visivelmente materializado na vida social, tendemos a
fazer da técnica um fator absolutamente autônomo, ao invés de ver nela uma
376
Habermas, Jurgen: Técnica e Ciência enquanto "Ideologia", Ed. Abril, Col. Os Pensadores XLVIII,
1975, p. 327.
377
Habermas, Jurgen: Técnica e Ciência enquanto "Ideologia", Ed. Abril, Col. Os Pensadores XLVIII,
1975, p. 309.
378
Habermas: "Se nos dermos conta de que o desenvolvimento técnico obedece a uma lógica que
corresponde à estrutura do agir-racional-com-respeito-a-fins e controlado pelo sucesso - e todavia isso
quer dizer: a estrutura do trabalho - então é difícil ver como poderíamos vir a renunciar à técnica, e
precisamente à nossa técnica em favor de uma técnica qualitativamente outra…" Idem, p.308.
245
expressão de orientação de conjunto da sociedade contemporânea. E onde
podemos ver que 'A essência da técnica não é absolutamente nada de técnico'
379
,
mergulhamos imediatamente essa essência em uma ontologia que a subtrai ao
momento decisivo do mundo humano - ao fazer.
380
Separar a técnica de sua essência equivale a separar a técnica de sua
ideologia, em duas operações aparentemente inversas que nos remetem,
porém, a uma mesma ontologia: a da suposta autonomia da técnica diante de
suas representações sociais, na versão "apocalíptica" de Heidegger, a de um
espaço social de turvação e opacidade ideológicas que se interpõe entre as
reais possibilidades que nos oferece a técnica e suas representações, na versão
utópica de Marcuse. Em ambos os casos, a busca de um em-si da cnica
considerada como pura opacidade ou como pura transparência, com seu
consequente isolamento na esfera da reprodução material da sociedade.
Com a informatização do cotidiano, a técnica contemporânea de
muito penetra em áreas da vida humana que não se limitam apenas à
manutenção de sua reprodução material. Ao dedicar-se à reprodução industrial
de nossas representações de mundo (em vez de se restringir à esfera material
das forças produtivas, como nos níveis de desenvolvimento tecnológico
anteriores), a tecnologia digital apropria-se de um domínio da existência
humana que até então lhe era considerado inacessível: o domínio da
representação
381
.
Habermas percebera, em seu texto de 1968 em homenagem a
Marcuse, as implicações profundas deste problema:
As manipulações psicotécnicas do comportamento hoje podem excluir
os rodeios fora de moda que passam por normas interiorizadas, porém acessíveis
à reflexão. As intervenções biotécnicas no sistema endócrino de controle e,
sobretudo, as intervenções na transmissão genética das informações herdadas
podem amanhã tornar ainda mais profundo o controle do comportamento.
Então, as zonas de consciência mais antigas, desenvolvidas na comunicação em
linguagem corrente, deveriam secar por completo. Nesse nível de técnicas e
manipulação do homem - caso fosse possível falar do fim das manipulações
psicológicas, num sentido análogo àquele em que se fala hoje do fim das
ideologias políticas - a alienação crescida naturalmente, o atraso não controlado
do quadro institucional, seria superada. Mas então a auto-objetivação do homem
379
Heidegger, Martin: A Questão da TécnicA.
380
Castoriadis, Cornelius: As Encruzilhadas doLabirinto 1, Ed. Paz e Terra, 1987, p. 244.
381
Até mesmo o pensamento heideggeriano já se encontra perfeitamente dis-ponibilizado pela técnica
como um instrumento de cultura. Digito a série de letras H/E/I/D/E/G/G/E/R no teclado do computador:
ao simples toque de um dedo, dezenas de textos sobre a obra do recluso pensador surgem
instantaneamente ao alcance: "Na encruzilhada dos caminhos: a língua sobre a pista da corrida da
informação/a língua sobre o caminho do dito do acontecimento-apropriante." Heidegger, Martin op.cit
246
se teria completado numa alienação planejada - os homens fariam sua história
com vontade, mas não com consciência.
382
Habermas intui perfeitamente o caráter negativo de uma suposta
efetivação histórica da utopia técnica; mas isto não o leva afinal a descartar
completamente o postulado crítico de uma "mais-valia ideológica" entre a
práxis e a técnica que deve ser isolada e suprimida:
Não estou afirmando que este sonho cibernético de uma auto-
estabilização ao modo instintivo da sociedade esteja sendo realizado ou mesmo
que ele seja realizável. Acredito, contudo, que ele leve às últimas
conseqüências, à maneira das utopias negativas, as vagas hipóteses básicas da
consciência tecnocrática, e que caracterize assim uma linha de desenvolvimento
que se anuncia como ideologia sob a dominação suave da ciência e da técnica.
383
Embora nos forneça um diagnóstico mais preciso da questão da técnica,
Habermas não consegue apontar uma solução efetiva para o problema das
relações entre técnica e práxis - entre a reprodução material da existência e os
parâmetros simbólicos que determinam a sua organização - e atinge assim o
limiar epistemológico da teoria crítica da Escola de Frankfurt: o ponto em que
a ideologia da técnica se auto-suprime, deixando em seu lugar, intacta, a
questão de sua representação. Assim, ainda concebe o problema da técnica a
partir de seu exterior, ou seja, não considera a possibilidade de uma reflexão,
interior à própria atividade técnica, que não esteja inteiramente subordinada a
critérios de avaliação e raciocínio científicos, ao mesmo tempo em que rejeita
as suas representações sociais correntes como o resultado de um processo
extrínseco de distorção ideológica.
Ora, não seria esta oscilação do estatuto da cnica entre o científico e o
ideológico, a forma geral da oscilação entre o mecânico e o anímico, e entre
plano de material de conteúdo e plano mental de expressão, que o nível auto-
reflexivo do filme revela como o componente diagramático do cinema? Em
outras palavras, não seria a auto-reflexividade do dispositivo cinematográfico,
entendido como mimetologia prática, uma experiência prototípica, simulada,
dos efeitos e afetos agenciados por qualquer mediação técnica concebível?
382
Habermas, Jurgen: Técnica e Ciência enquanto "Ideologia", Ed. Abril, Col. Os Pensadores XLVIII,
1975, p. 330.
383
Idem.
247
Para que o cinema (como fenômeno social complexo) conta do
caráter ambíguo de que se reveste a técnica na modernidade, não podemos
simplesmente remetê-lo à tensão dialética entre representação cinematográfica
e reprodução cinemática, pois esta perspectiva nos levaria apenas a uma
aplicação pontual das velhas antinomias sobre a técnica, de que pretendemos
nos desembaraçar.
Para superar este problema, tomemos como exemplo o trauma histórico,
sofrido pelos partidários da "sétima arte", nos anos 1930, com a chegada do
cinema sonoro. Este trauma sinaliza um dos raros embates diretos, na história
da modernidade, entre as concepções técnica e estética de um mesmo produto
industrial. A defasagem que ocorreu entre o desenvolvimento da representação
cinematográfica, de um lado, e das técnicas de reprodução dos sons nos filmes,
de outro, impede a tentação metodológica da reflexividade especular em que
os desenvolvimentos (técnico e estético) de um mesmo modo de expressão,
são postos "em paralelo", como se acontecessem "harmonicamente", mas em
separado. A história do cinema, se considerada a partir de seu encontro
diferido com as técnicas de reprodução do som, apresenta claramente uma
profunda assimetria entre as exigências materiais da reprodução técnica e as
exigências simbólicas do universo imaginário dos modos de representação.
É esta assimetria que deve ser pensada como o componente maquínico
do cinema. O cinema funciona como uma espécie de "arauto" da técnica
contemporânea, metaforizando seus efeitos e sublimando seus aspectos
socialmente disruptivos. No entanto, atua também como "anteparo" entre a
sociedade e a técnica, preparando a audiência para as suas consequências
sociais inevitáveis. O cinema é a metalinguagem da técnica moderna, um
campo em que esta é testada e vivenciada pelo homem em suas múltiplas
formas, ideológicas ou não. Por isto, o dispositivo cinematográfico é destinado
à produção "literal" de ficção científica,
384
mimetizando a totalidade potencial
da experiência humana não em seu presente e passado, mas, sobretudo, em
seus possíveis futuros.
384
Jameson, Fredric: "Pós-modernismo, a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio", Ed. Ática, 1996,
p.289: "(…) a 'categoria' chamada de ficção científica (…) pode ser considerada uma forma
historicamente nova e original (…) O que gostaríamos de fazer, em resumo, é ressaltar as condições de
possibilidade de uma forma como essa (…) na própria estrutura do sistema sócio-econômico, em sua
opacidade ou transparência relativas, e no acesso que seus mecanismos nos proporcionam a um contato
maior, tanto existencial quanto cognitivo, com a própria coisa".
248
Quais são, enfim, os agenciamentos maquínicos que possibilitam ao
dispositivo cinematográfico atingir este nível de auto-reflexividade em relação
à própria técnica como fundamento de sua práxis? A resposta, ainda uma vez,
se encontra em Mille Plateaux - mais especificamente, em seu “Tratado de
Nomadologia”, e nas páginas finais que o seguem
385
.
A máquina de guerra do cinema, entre a magia e o positivismo
A pragmática da experiência cinematográfica, delineada a partir de uma
releitura dos livros sobre o cinema, de Deleuze, mediada por Mille Plateaux,
baseia-se em uma série de disjunções da dupla articulação básica entre a
representação cinematográfica, entendida como o plano mental da expressão,
e a reprodução cinemática, considerada como o plano material de conteúdo.
Seu componente gerativo articula a disjunção assíncrona do olhar à escuta, no
plano material, à disjunção sincronizada de imagens e sons, rostos e vozes, no
plano audiovisual da expressão. Esta cinemática da mímesis se articula, por
sua vez, à práxis cinematográfica, através da disjunção entre a reprodução do
real e a representação do imaginário, a função documental e a função
discursiva, o filme como produto e o filme como obra, disjunção esta que
perpassa toda a história do cinema, configurando o seu componente
transformacional. Quanto ao componente diagramático do cinema, este revela
a dupla articulação como resultante de uma disjunção entre conteúdo e
expressão, articulada simultaneamente em um vel mecânico e anímico, ou,
como diria Theodor Adorno, “entre a magia e o positivismo
386
”. Ao mesmo
tempo, aponta para a complexa questão das relações entre o cinema e a
história, isto é, para o seu componente maquínico.
O componente maquínico do cinema nos permite pensar o sentido
histórico de sua práxis em sua dupla articulação com o problema da técnica
nas sociedades modernas. O dispositivo cinematográfico se conecta com a
emergência de diversos aparelhos de captura, desenvolvidos no âmbito da
ciência e da técnica industriais, geralmente voltadas às necessidades militares
385
Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1980, pp. 434 e seg.
386
Em carta a Walter Benjamin comentada por Agamben, , Giorgio: Enfance et Histoire – Destruction de
l’expérience et origine de l’histoire, Petite Bibliothèque Payot, Paris, 2002, pp.
249
do estado. Aparelhos são concebidos, construídos e operados, de acordo com
certos modelos, e o cinema, como aparelho de captura, se submeteu aos
diversos modelos miméticos de representação gerados no âmbito da história
da arte e do espetáculo. O dispositivo cinematográfico é um dispositivo
mimético que pode ser, a princípio, pensado como um acoplamento técnico de
múltiplos aparelhos de registro (de luz, movimento, som, cor, relevo, etc.).
Esta operação tem as características de um aparelho de captura: o duplo
acoplamento lentes/câmera, microfones/gravador (bem como as técnicas de
filmagem com controle da continuidade espaço-temporal e sonora do discurso
cinematográfico) organiza a práxis cinematográfica como um trabalho em
torno do quadro visual, entendido como o centro de gravidade de um processo
mimético de captura e apreensão de imagens e de sons.
Como dispositivo técnico-industrial, o cinema é um aparelho de captura
complexo, capaz de conjugar, em seu componente gerativo, o domínio técnico
sobre a realidade física das vibrações óticas e acústicas com a maestria
estética sobre os modos sonoros, visuais e literários da representação artística.
Seu componente transformacional combina estrategicamente a disputa
econômica pela conquista de mercados com a tendência à hegemonia
ideológica e cultural intrínseca à indústria do entretenimento. Engenheiros do
movimento, da luz e do som (fotógrafos, maquinistas e técnicos de som),
maestros e condutores do fluxo audiovisual e da narrativa (roteiristas e
diretores), empresários e capitães de indústria (produtores e associados): todos
são personagens de uma potencial empresa global de captura, que constitui a
própria história do cinema.
Para pensar o dispositivo cinematográfico como máquina de guerra, por
outro lado, deve-se ter em mente a distinção operada por Deleuze
387
, no
interior da dimensão técnica da práxis, entre arma e instrumento. Enquanto
aparelho de captura, o dispositivo cinematográfico é um instrumento de
apreensão da experiência humana em sua totalidade, tanto em sua dimensão
material (trabalho), como em sua dimensão cultural (expressão). Como tal,
tende necessariamente a gravitar em torno de certos modelos de representação
387
Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1980, p.501.
250
que possibilitem o sentimento de identificação imaginária entre o espectador e
a instância narrativa que organiza o fluxo audiovisual como espetáculo,
estriando a superfície da película através da codificação significante das
imagens e dos sons.
Já como máquina de guerra, o dispositivo cinematográfico deve ser
pensado como arma de projeção - de imagens e de sons - sobre o espaço-
tempo da tela lisa, regulada pela velocidade do dispositivo. Como arma (e não
como instrumento ou aparelho), afeta o espectador através da modulação
variável de eventos óticos e acústicos. A máquina de guerra do cinema não
obedece a modelos pré-estabelecidos, de procedimento técnico, ou de
codificação estética, pois se reconfigura incessantemente em um plano de
projeção que pressupõe uma mobilidade virtualmente infinita do seu plano
material. Assim, se o momento da filmagem consagra o dispositivo
cinematográfico como aparelho de captura (enquanto o momento da
montagem, geralmente, corrobora e reforça este aparelho), o momento da
projeção cinematográfica é aquele que pode colocar em risco, no vel
estratégico de difusão e propagação dos efeitos possivelmente provocados por
um filme, tal operação de captura, provocando uma série de consequências
inesperadas. Se estudar o cinema como um aparelho de captura é estudá-lo do
ponto de vista de sua produção – seja no sentido industrial ou artístico,
técnico ou estético -, estudá-lo como máquina de guerra exige uma teoria da
recepção do filme que se situe além da narratologia e do cognitivismo,
pensando a triangulação entre projetor, tela e espectador como um espaço liso,
de reconfiguração do discurso cinematográfico, em que a mesis
cinematográfica é posta à prova.
vários exemplos deste fenômeno na história do cinema. Um dos
mais famosos é o do filme Laranja mecânica, proibido de ser exibido na
Inglaterra, país de residência de seu diretor, Stanley Kubrick, devido às
ameaças de morte, por ele sofridas, após sua estréia, em 197?. Pasolini foi
assassinado logo após o lançamento de Salò, em 1975, enquanto O grande
Ditador, de Charles Chaplin, só foi liberado para exibição, na Espanha, após a
morte de Franco, em 1975. No nível estratégico, um filme pode ser utilizado
como arma, não necessária ou diretamente de guerra, mas articulada a uma
251
máquina de guerra específica, a um determinado fluxo de idéias, desejos e
conflitos, que nunca são exclusivamente cinematográficos ou estéticos, pois
podem ser de toda e qualquer ordem, atravessando e perpassando o filme em
todos os seus níveis e componentes, como bem o intuiu Kracauer.
No nível auto-reflexivo, o cinema contemporâneo demonstra uma aguda
auto-consciência do seu componente maquínico enquanto dupla articulação
entre aparelho de captura e máquina de guerra, tanto em sua faceta mais
artística e intelectualizada, como em sua vertente mais comercial, voltada ao
entretenimento. Podemos citar como um exemplo recente, o filme Vincere, de
Marco Bellochio (200?), em que uma sequência que se passa em uma
sessão de cinema, em 1914, na qual os espectadores se engalfinham em
verdadeira batalha campal diante da tela, que projeta um cine-jornal
anunciando a entrada da Itália na Guerra Mundial. A projeção
cinematográfica figura, aqui, como o estopim da crise social e política que
dividiu o país naquele momento, em um recurso sistematicamente utilizado
por Bellochio neste filme.
John Carpenter, por sua vez, imagina, em Cigarette burns
388
(telefilme
de 200?), a existência de um filme experimental que estaria terminantemente
proibido, devido aos massacres que sua projeção invariavelmente provocava
entre aqueles que o assistiam. Tal filme, cujo título seria La fin absolue du
monde”, representa o próprio componente maquínico do dispositivo
cinematográfico como um dispositivo de propagação mimética da ação, livre
de amarras representacionais e mediações significantes, portanto, como um
dispositivo apto à produção social de pânico. Assim, para o espetáculo
cinematográfico hodierno, a utopia avant-gardista do específico fílmico se
converte em pesadelo distópico, reforçando a necessidade do primado
representacional de modelos narrativos, ao mesmo tempo em que pretende
contestá-los.
A tensão, latente ao filme como texto, entre representação
cinematográfica e reprodução cinemática, se resolve, em seu componente
maquínico, como tensão entre a pressão centrípeta dos aparelhos de captura
388
Referência auto-reflexiva às marcas redondas, parecidas com queimaduras de cigarro, que sinalizam a
mudança próxima de rolo nas projeções cinematográficas convencionais.
252
conjugados pelo dispositivo (câmera e gravador, roteiro e montagem, trilha
sonora e quadro visual), que estriam o espaço-tempo da experiência
cinematográfica, reterritorializando-a (em cinemas nacionais, por exemplo) e
recodificando-a (em neros e estilos), por um lado, e a tensão inversa,
centrífuga, exercida pela máquina de guerra do cinema como projeção de
imagens e sons no espaço-tempo liso e potencialmente infinito, em sua
recepção histórica.
Resta saber se a potencial máquina de guerra do cinema é capaz de se
desvencilhar, definitivamente, dos aparelhos de captura que a conformam. Em
sua forma historicamente consagrada e consolidada, a resposta é certamente
negativa, sendo a crise do cinema narrativo, e da imagem-movimento, um
sintoma auto-reflexivo de primeira ordem desta impossibilidade, constitutiva
do próprio cinema, em superar a crise do pensamento técnico que sua própria
história reflete.
Porém, o estudo do componente maquínico do cinema também nos
permite pensar de que modo o incremento técnico do poder de captura dos
aparelhos audiovisuais em geral - incluindo o rádio, a televisão e todas as
modalidades técnicas de vídeo e de áudio -, ainda que obedeça aos ditames
ideológicos e de controle hegemônicos que os organizam em sistemas de
comunicação “molares”, permite “reconstituir uma imensa máquina de guerra
da qual se tornam apenas pequenas partes, apostas ou opostas
389
”.
É neste sentido que se deve compreender a tão discutida transição das
técnicas de reprodução analógicas para as digitais. A princípio, como o
discutimos em nossa seção sobre simulacro e simulação
390
, as linguagens
formais incrementam o caráter representacional da mímesis, inserindo uma
taxa de redundância no circuito mimético, que, em uma leitura apressada da
questão, encerraria a mímesis cinematográfica em padrões de controle técnico
e estético invariáveis. De certa forma, o refluxo do cinema de autor e do
experimentalismo como tal, a partir dos anos 1980, confirma esta perspectiva,
ao menos no nível narratológico dos modos de representação cinematográfica.
389
Deleuze, Gilles e Guattari, Felix: Capitalisme et schizophrénie – Mille Plateaux, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1980, p.525.
390
Ver cap. 1, pp.
253
Como aparelhos de captura, os dispositivos digitais são ainda mais eficientes
do que seus correlatos analógicos.
No entanto, as grandes inovações estéticas e formais do cinema
contemporâneo estão indubitavelmente ligadas aos novos suportes digitais de
captação e reprodução, de imagens e sons
391
, naquilo que estes apresentam de
mais próximo às características do cinema como máquina de guerra:
dispositivos digitais são portáteis e fáceis de manusear, leves e velozes,
aderindo ao espaço-tempo liso da duração do evento muito mais facilmente
que os seus congêneres analógicos. Se o vídeo analógico apresentava um
tipo de agenciamento maquínico com tais características, isto se deve ao fato
de que - assim como a imagem-tempo sob a imagem-movimento, o
assincronismo sob o sincronismo, e a reprodução cinemática sob a
representação cinematográfica -, a máquina de guerra que subjaz ao
dispositivo cinematográfico costuma ser encoberta por sua função histórica de
aparelho tecno-ideológico de captura. É assim que, nos anos 1960/70/80, o
vídeo podia se apresentar como máquina de guerra alternativa aos grandes
aparelhos de captura da indústria cinematográfica e da televisão. O dispositivo
digital de alta definição, por sua vez, realiza a convergência maquínica entre
cinema e vídeo em seus devires entrecruzados de aparelho e máquina,
dispositivo de captura e dispositivo de guerra.
Atualmente, Big brother
392
e You tube
393
são os pólos desta dupla
articulação maquínica: o primeiro é a epítome do audiovisual como aparelho
de captura, não ideológica e econômica, mas total. Virtualmente todo o
tempo de transmissão da TV, e toda a sua audiência, poderiam ser capturados,
centripetamente, por este aparelho de conquista audiovisual da totalidade da
experiência humana, que projeta a ficção da realidade televisiva sobre a
realidade audiovisual do telejornal, em um empreendimento de colonização
da vida real pela ficção que, ao demonstrar finalmente a obsolescência dos
velhos métodos novelescos de representação - herdados do romance, do teatro
e do cinema -, apenas reforça o potencial poder direto de captura da
experiência pela mímesis que o cinema anunciava. A criação de uma
391
Ver cap. 1, pp.
392
Ref.
393
Ref.
254
plataforma digital interativa, como a Internet, possibilita justamente a inserção
programada e regulada do espectador na programação, através de um jogo de
estímulos e respostas que os teóricos da comunicação costumam denominar,
de maneira algo crédula, interatividade.
You tube, por outro lado, demonstra como a Internet, como um amplo e
disseminado aparelho audiovisual de captura, possibilita a recomposição
estratégica de uma, ou mais, máquinas de guerra em seus agenciamentos
históricos concretos. Reconstituindo um espaço liso e veloz de circulação de
imagens e sons, a partir do espaço previamente estriado pela rede mundial de
computadores, os sites de compartilhamento de arquivos audiovisuais se
contrapõem à gica de captura da indústria do entretenimento, na medida em
que não mais centralizam o espectador em torno do espetáculo e da narrativa,
fragmentando a experiência do audiovisual em seus diversos níveis
constitutivos e confrontando-os na possibilidade de acesso imediato (e
simultâneo) aos seus arquivos, bem como na possibilidade igualmente
imediata de envio de novos arquivos e/ou de comentários acerca dos arquivos
acessados.
Na medida em que o componente maquínico do cinema aponta para a
sua própria transformação como dispositivo mimético, You Tube possibilita
que pensemos as novas condições de produção e recepção do audiovisual.
Seus agenciamentos ainda escapam, em certa medida, dos grandes aparelhos
de captura midiáticos estabelecidos, inclusive na Internet, e seu acervo
começa a se constituir como uma babélica cinemateca/enciclopédia do
audiovisual, realizando postumamente o fantasma de um cinema capaz de
abarcar, em todo o conteúdo de sua matéria, a totalidade das formas de
expressão.
O sonho da razão engendra monstros. O sonho do cinema como
articulação total do sentido era o sonho de Eisenstein, assim como o sonho de
Vertov era o do cinema como construção total do mundo. O sonho de
Rosselini era o do cinema como enciclopédia geral do conhecimento humano,
assim como o de Pasolini era o do cinema como uma linguagem imediata das
coisas do mundo. Na babel de imagens, textos e sons, que constitui a internet,
255
Achab está, neste instante, atrás da baleia branca, espreitando o You tube em
busca do monstro abissal em que mergulha o olhar e a escuta.
256
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