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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
CARLOS EDUARDO PEREIRA OLIVEIRA
DESCARTES
A LIVRE CRIAÇÃO DAS VERDADES ETERNAS
SÃO PAULO
2008
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2
CARLOS EDUARDO PEREIRA OLIVEIRA
DESCARTES
A LIVRE CRIAÇÃO DAS VERDADES ETERNAS
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Filosofia do
Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, para obtenção do título de
Mestre em Filosofia sob a orientação
do
Prof. Dr. Homero Silveira
Santiago.
São Paulo
2008
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A minha esposa e ao meu filho.
4
AGRADECIMENTOS
Desejo registrar meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que
contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste trabalho. Agradeço aos
amigos Marcelo Marques, Rommel Luz F. Barbosa, Fábio Antonio da Costa e Taís S.
Pereira.
Minha gratidão ao Prof. Dr. Marcos André Gleizer, por meio de quem eu tive
os primeiros contatos com a difícil teoria cartesiana ora apresentada e pelas inúmeras
contribuições gentil e pacientemente oferecidas.
Meus agradecimentos à Profª. Drª Marilena Chaui e ao Prof. Dr. Enéias
Forlin, cujas sugestões, observações e discussões favoreceram positivamente a
realização deste trabalho.
Sou todo agradecido ao meu Orientador, o Prof. Dr. Homero Silveira
Santiago. Obrigado por me orientar e acompanhar, pelos questionamentos e
provocações que fizeram desses anos de pesquisa verdadeiras oportunidades de
atividade intelectual.
Finalmente, agradeço à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo pela
concessão da bolsa-mestrado, indispensável à aquisição de livros e tantos outros
instrumentos necessários à realização desta pesquisa.
5
RESUMO
OLIVEIRA, C. E. P. Descartes: A Livre Criação das Verdades Eternas. 2008. 127
f. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
Esta dissertação apresenta a teoria cartesiana da livre criação das verdades
eternas. Uma teoria desenvolvida por Descartes entre 1630 e 1649. Nossa
pesquisa pretende expor a noção cartesiana de verdade eterna, o alcance e o
significado da tese segundo a qual as verdades eternas foram criadas por Deus,
as razões de sua elaboração, os problemas e as conseqüências decorrentes desta
interessante teoria. Pretendemos concluir que a teoria, ao contrário do que
afirmam alguns intérpretes do cartesianismo, não representa qualquer ameaça
ao sistema de Descartes.
Palavras-chave: Deus; criação; verdade; liberdade; necessidade.
6
ABSTRACT
OLIVEIRA, C. E. P. Descartes: The Creation of the Eternal Truths. 2008. 127 f.
Thesis (Master Degree) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
This dissertation presents the Cartesian theory on the creation of the eternal
truths. A theory developed by Descartes between 1630 and 1649. Our research
aims to explain the Descartes’ notion of the eternal truth, the scope and the
meaning of the thesis according to which the eternal truths have been created by
God, the reasons for its elaboration, the problems and the consequences arising
from this interesting theory. We pretend to conclude that the theory, contrary to
what some cartesianism’s interpreters ensure, does not represent any threat to
the Descartes’ system.
Keywords: God; creation; truth; freedom; necessity.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
CAPÍTULO PRIMEIRO: Antecedentes históricos à teoria cartesiana 11
1.1 Tomás de Aquino 12
1.2 Ockham 21
1.3 Suárez 26
CAPÍTULO SEGUNDO: Descartes: as verdades eternas 35
2.1 Uma grande descoberta 35
2.2 Inauguração da tese e abrangência da noção de verdade eterna 40
2. 3 As verdades eternas nos Princípios 43
2.4 As verdades eternas nas Cartas 46
2.4.1 Verdades eternas verae aut possibiles 51
CAPÍTULO TERCEIRO: O alcance da teoria da livre criação 58
3.1 A noção cartesiana de criação 58
3.2 Dos princípios às essências: discussões em torno do alcance da tese 62
CAPÍTULO QUARTO: Justificação filosófica 74
4.1 A simplicidade divina 75
4.2 A absoluta dependência das verdades eternas 83
4.3 Incompreensibilidade divina e teoria dos modos de conhecimento 89
CAPÍTULO QUINTO: Possibilismo e interpretação epistêmica
da necessidade 98
5.1 Possibilismo 99
5.2 Interpretação epistêmica da necessidade 106
CONCLUSÃO 120
BIBLIOGRAFIA 123
8
INTRODUÇÃO
Estas páginas são o fruto de, pelo menos, cinco anos de estudos dedicados à
teoria cartesiana da livre criação das verdades eternas e motivados por algumas
poucas pretensões. A primeira delas consiste em trazer para a Pesquisa Brasileira um
tema ainda não desenvolvido em vel de Mestrado ou Doutorado, o qual, apesar de
sua grande importância, é pouco estudado entre nós. Por conseguinte, consciente de
que este trabalho não esgota todas as possibilidades de investigação, pretende-se que
ele sirva ao fomento de novas pesquisas e discussões, contribuindo ainda mais para o
enriquecimento das valiosas linhas de estudos cartesianos brasileiras. E se de fato
assim o for, também eu serei grato por ter cumprido algo verdadeiramente relevante.
O presente trabalho trata da mais intrigante, original e radical teoria
cartesiana. Intrigante por ainda hoje despertar calorosas discussões sobre o lugar que
ocupa no pensamento cartesiano e os problemas que ela levanta: se um lugar
importante, ou marginal, ou mesmo perdido, após ter sido abandonada pelo seu autor;
original por ter sido proposta unicamente por Descartes; e radical por se tratar de
admitir contra toda a tradição a criação das verdades eternas, ou seja, que a origem
dessas verdades é Deus, mediante a causalidade eficiente, justamente a causalidade
responsável pela produção dos seres finitos ou contingentes.
Por conta disso, quisemos acompanhar de perto o desenvolvimento desta
teoria, ou seja, a origem, os motivos pelos quais Descartes a desenvolveu, as
conseqüências intrínsecas e extrínsecas, além dos problemas nela envolvidos.
Conhecendo as cartas onde a teoria foi apresentada e os valiosos trabalhos dos
comentadores, julgamos ser melhor desenvolver este trabalho começando pelos
antecedentes históricos da teoria e chegando às interessantes discussões modernas.
Era necessário investigar a noção cartesiana de verdade eterna, as razões pelas
quais essas verdades deveriam ser criadas, onde se pode identificar contra quais
autores e doutrinas a tese foi erigida. Em seguida, restaria apenas discutir as
conseqüências inerentes à própria tese, especialmente duas atualmente debatidas entre
9
os intérpretes do cartesianismo: o possibilismo e a interpretação epistêmica da
necessidade.
Nosso itinerário, por sua vez, era motivado por alguns problemas, sempre
abordados no intuito de preservar a relevância da tese no interior da História da
Filosofia. Tentaríamos saber se a tese da livre criação teria sido sustentada por
Descartes ao longo de toda a sua atividade filosófica e, por conseguinte, se haveria ou
não incompatibilidade entre esta tese e o seu sistema filosófico. Donde decorre um
outro questionamento que consiste em verificar se existem nela dificuldades inerentes
ou se tais dificuldades seriam extrínsecas, ou seja, postas por comentadores. Quanto à
primeira questão, a própria exposição da teoria contribuirá por si a uma resposta
plausível. Quanto ao segundo caso, a tese da livre criação, porque coloca dificuldades
para Descartes, é que promove vários debates a seu respeito. Por exemplo, a
afirmação de que as verdades eternas são criadas não é em si mesma uma afirmação
contraditória? Em suma, a tese não acarretaria a supressão da necessidade, condição
necessária do conhecimento verdadeiro? Nas Cartas onde Descartes tece essa
intrigante teoria qualquer um pode vê-lo envolvido por essas questões. Alguns
intérpretes, por sua vez, procuram analisar se há mais dificuldades do que as
enfrentadas pelo filósofo, as quais representariam um problema muito maior a ele
imperceptível e capaz de ameaçar o sólido edifício cartesiano. Até que ponto seria
sustentável que o necessário tivesse a mesma origem causal do contingente, ou seja,
por meio do ato criador? E isto interessou a Descartes e interessa ainda hoje aos
cartesianos. Aliás, questões sobre a criação e o estatuto ontológico das essências já
despertavam interesses antes de Descartes.
O que se encontra entre os comentadores claro que não em todos nem na
maioria deles e que não se deve admitir são as incompreensões, as atribuições a
Descartes de posições teóricas improcedentes. Por conta disso, procuramos, até onde
nos foi permitido, expor a teoria cartesiana e simultaneamente discutir os problemas
de interpretações e as posições de importantes autores a respeito, conforme a
disposição temática.
10
No primeiro capítulo, abordaremos os precedentes históricos ao surgimento da
tese da livre criação. Aqui daremos atenção a três autores: Tomás de Aquino,
Ockham e Suárez, os quais, a nosso ver, foram decisivos na elaboração da posição
cartesiana. O núcleo de nossa investigação é a explicação desses autores da relação
entre Deus, as essências e as criaturas. O segundo capítulo apresenta a noção
cartesiana de verdade eterna: noção fundamental para todo o desenvolvimento da tese
e das discussões com que lidaremos ao longo de toda esta obra. Verificaremos a que
se aplica a noção de verdade eterna, algo determinado pela noção cartesiana de coisa.
Com isso, procuraremos mostrar que a noção de verdade eterna não equivale a uma
classe de verdades. A abrangência da noção prepara aquilo que se discutirá no
capítulo terceiro, no qual interessará saber qual o alcance não mais da noção de
verdade eterna, mas da própria tese da livre criação, isto é, se há alguma verdade
preservada do ato criador, se existem para Descartes verdades eternas incriadas.
O quarto capítulo se encarrega de investigar as razões pelas quais Descartes
admite a criação das verdades eternas como única alternativa plausível para se ter um
conhecimento certo do verdadeiro Deus e evitar absurdos sobre Ele. Apresentaremos
a discussão entre Descartes e Tomás de Aquino em torno da simplicidade divina e
entre aquele e Suárez sobre a questão da independência das verdades eternas. Este
capítulo trata exatamente do escopo da doutrina cartesiana. no quinto capítulo
serão abordadas duas interpretações radicais da teoria da livre criação: o possibilismo
e a interpretação epistêmica da necessidade. Além de saber em que consiste cada uma
delas, averiguaremos se são respaldadas pelas Cartas e se trariam problemas
intransponíveis ao sistema cartesiano e à concepção de verdade nele implicada.
11
CAPÍTULO PRIMEIRO
Antecedentes históricos à teoria cartesiana
A teoria cartesiana da livre criação foi construída a partir de importantes
problemas analisados pelos mais renomados filósofos e teólogos da Idade Média, os
quais tencionavam encontrar uma ntese entre as concepções gregas sobre a
racionalidade e hebraicas acerca do poder de Deus, especialmente no que se refere às
questões da relação entre Deus e o mundo, reunidas sob a vasta investigação
designada por criação.
O sucesso dessa síntese dependeria da possibilidade de conciliação de dois
atributos divinos, onipotência e onisciência. Apesar de muitos pensadores clássicos
considerarem o universo regido por princípios racionais, nem por isso se descartava a
realidade de forças acima da capacidade racional. A filosofia e a teologia medievais
esforçavam-se por resolver a dificuldade em conciliar o Deus judaico-cristão, criador
do mundo e de suas leis conforme a livre ação de sua vontade, com as idéias gregas
acerca da auto-suficiência, eternidade e racionalidade dos princípios, aos quais está
submetido todo o universo. Subjazem a esta dificuldade dois conceitos filosóficos
importantes, a saber, contingência e necessidade, presentes nas tradições hebraica e
grega
1
. Interessava à filosofia medieval responder se a contingência do mundo
decorreria de forças que escapariam totalmente à racionalidade humana ou se o
mundo seria necessariamente conforme aos princípios de inteligibilidade da razão;
cumpria investigar se as conexões necessárias do mundo limitariam o poder divino ou
este, porque onipotente, não necessariamente se conformaria aos padrões humanos de
racionalidade, sendo livre para mudar quando bem quisesse qualquer coisa criada no
mundo. A posição cartesiana, como veremos mais adiante, concentra-se em outro
ponto indispensável à teoria da criação, o do estatuto das essências. Para Descartes a
criação do mundo é algo verdadeiro, mas para que sua verdade se manifeste em sua
1
M. J. Osler. Divine Will and the Mechanical Philosophy, p. 2.
12
totalidade faz-se necessário reconhecer que a criação abrange, além das coisas
existentes, as essências. Com efeito, nisto se expressam verdadeiramente toda a
perfeição e todo o poder de Deus. Sendo assim, a teoria da livre criação das verdades
eternas, fruto da originalidade do espírito cartesiano, não teria sido possível sem as
discussões realizadas pela filosofia medieval e intensificadas na Escolástica.
Atendendo aos fins desta pesquisa, concentrar-nos-emos na análise acerca do
estatuto das essências, no qual têm importância a ação criadora e sua relação com as
faculdades divinas. Neste capítulo, estaremos concentrados no pensamento de três
autores importantes, a saber, Tomás de Aquino, Ockham e Suárez, mas somente no
que seja suficiente para um melhor entendimento da posição cartesiana.
1.1 Tomás de Aquino
O pensamento de Tomás de Aquino pode ser considerado aquele que
representa e expressa efetivamente a ortodoxia escolástica. Embora seja essa uma
razão plausível para confrontá-lo com Descartes, não é a principal. Queremos aqui
saber como Tomás apresenta sua doutrina das essências. Começaremos analisando
sua concepção de simplicidade divina, a qual ocupa também importante lugar no
âmbito da teoria cartesiana da livre criação. Uma vez conhecida a concepção
tomasiana, procuraremos ver como o tema da simplicidade divina se desdobra em
outros pontos da Suma teológica, pois é este desdobramento que permitirá as críticas
cartesianas à teoria das essências e o desenvolvimento de uma concepção de
simplicidade mais radical que a de Tomás, a partir de Ockham.
Na questão três da Suma
2
, logo na introdução do tema e da enumeração dos
artigos disputados, Tomás de Aquino apresenta sua noção de simplicidade,
declarando que simples é aquilo que exclui a composição. Em primeiro lugar, a
composição corpórea e, mais precisamente, a de matéria e forma. A simplicidade
2
Cf. Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 3.
13
divina consiste em não ter Deus um corpo, nem ser ele composto de matéria e forma
3
.
Essas duas mostras da simplicidade são negativas.
uma forma positiva, todavia, apresentada por Tomás quando diz que Deus
é o ser cuja essência é idêntica à existência, pois nele não qualquer espécie de
composição. Com efeito, os seres compostos de matéria e forma, em virtude dessa
composição, não possuem a essência idêntica à existência
4
. Ele explica que essência e
existência em Deus são idênticas, porque do contrário deveria acontecer de sua
existência ser causada por um outro
5
. Explicitemos um pouco este assunto.
Considerando Deus e as demais coisas, dir-se-á que são todos seres. Contudo,
não se pode cometer o erro de tomá-los univocamente, sem notar no ser deles algo
que os distingue radicalmente, pois Deus, embora seja chamado ser como as
criaturas, não o é do mesmo modo que elas; o ser divino não equivale ao ser do
criado. A razão pela qual somos impedidos de considerar o ser de Deus e das coisas
de modo unívoco, segundo Tomás, se encontra no fato de ser Deus o ser subsistente
por si mesmo e, como tal, só pode ser único
6
.
Deus é o ser subsistente por si porque ele é em virtude de seu próprio ser,
existindo necessariamente por si. Uma vez que existe por si, não recebeu seu ser de
nenhum outro; logo, o possui causa ou dependência de outro ser, pois não foi
produzido. A subsistência por si é a perfeição e o núcleo poderoso que contém
absolutamente todas as perfeições. Sendo assim, é Deus a razão mesma do ser e do
existir de todas as coisas, princípio de todo o ser, a causa absolutamente primeira de
todas as coisas que são. Eis, pois, a razão de poder ser único o ser subsistente por
si mesmo.
3
Cf. Tomás de Aquino. Op. cit. I, q 3, a 1, 2.
4
Cf. Tomás de Aquino. Op. cit. I, q 3, a 3.
5
Cf. Tomás de Aquino. Op cit. I, q 3, a 4.
6
Cf. Tomás de Aquino. Op. cit, I, q 44, a 1.
14
Ademais, porque Deus é o ser subsistente por si mesmo, decorre que ele é
igualmente o único ser cuja existência é idêntica à essência
7
. De modo geral, as
provas a favor da identidade entre essência e existência em Deus consideram-no o ser
que existe necessariamente por si; seu ser é necessário, não podendo a existência não
lhe ser idêntica. Se essência e existência em Deus se distinguissem, decorreriam
graves conseqüências. Por exemplo, deveríamos admitir a dependência do ser que
existe necessariamente por si, ou seja, que ele existiria em virtude de outrem, o que
contrariaria a natureza divina. Existindo necessariamente por si, ele é seu ser, pois
o que existe necessariamente por si é seu ser. Deus é ato puro, não podendo estar
sujeito a qualquer mudança; e ainda, se no ser supremo essência e existência não se
identificassem, este não teria em si razão suficiente de sua existência, devendo
recebê-la de outro
8
. Dadas essas provas a favor da identidade entre essência e
existência em Deus, é forçoso concluir que Deus é o ser subsistente em si mesmo,
e somente nele essência e existência se identificam. Provada a identidade entre
essência e existência em Deus, que é a forma positiva de sua simplicidade, conclui-se
que Deus é simples.
O cerne da teoria da simplicidade divina, a identidade entre essência e
existência, goza também de relevância na teoria tomasiana da criação, a qual consta
das famosas Cinco Vias
9
para a demonstração da existência de Deus. Nela, Tomás
apresenta a situação metafísica dos demais seres, ou seja, os seres criados são
radicalmente marcados pela contingência, pois o causados pela vontade divina, que
lhes concede a existência. De imediato, resulta que essência e existência em todo ser
criado serão distintas, não sendo ele subsistente em si mesmo. As criaturas não são
por seu ser; logo, recebem-no de outrem. Com efeito, o ser só pode ser dado por
7
As provas a favor da identidade entre essência e existência em Tomás de Aquino têm sua elaboração
mais rica na Suma Contra os Gentios, I, c. 22, da qual nos servimos aqui, que na Suma Teológica, I, q
43, a 4.
8
Cf. Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios, I, c. 22.
9
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 2, a 2, 3.
15
aquele que o possui em plenitude, no caso o ser subsistente Deus, mediante
causalidade exemplar, eficiente e final
10
.
Não ser em virtude unicamente do seu ser significa não possuir em si razão
suficiente de seu próprio ser. Tal princípio caracteriza a absoluta dependência de
todos os seres com relação àquele que é o ser por excelência. Ter em si mesmo razão
suficiente de seu ser ou de seu existir significa ser tal que não pode não ser ou não
existir. Ora, nenhum ser, senão Deus, pode ter em si razão suficiente do ser e da
existência, uma vez que só ele não depende causalmente de nenhum outro.
Que todos os seres, exceto Deus, são causados é algo que Tomás demonstra
na segunda via, recorrendo à causalidade eficiente. Com efeito, no mundo umas
coisas são produzidas por outras. Essa produção manifesta muito claramente a
subordinação causal entre elas; por sua vez, a causalidade eficiente não poderia seguir
uma série interminável, devendo chegar a uma causa primeira e principal. Tomás
também rejeita a possibilidade de uma coisa ser causa eficiente dela mesma, “pois
existiria antes de si mesma, coisa inconcebível”
11
. É Deus, portanto, a causa
absolutamente primeira.
É a causalidade eficiente a responsável pela existência dos seres, pelo seu
começo, porquanto o que possui causa eficiente começou a existir, foi produzido. Diz
ele, quod non est, non incipit esse nisi per aliquid quod est
12
. Se certas coisas
começam a ser, elas podem existir; outras, se se corrompem, podiam não existir. O
poder ou não existir inerente a todos os seres afora Deus é prova suficiente de que a
existência deles é explicada por outro, de que não possuem uma existência necessária.
Os seres, portanto, são contingentes ou possíveis, não possuindo razão suficiente de
sua existência. Nas coisas não pode haver o possível, pois, se assim o fosse, na
verdade, nada existiria. Para que o possível ou contingente seja, faz-se necessário
10
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 44.
11
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 2, a 3.
12
“Aquilo que não existe começa a existir pela ação de algo que existe” (Tomás de Aquino. Suma
Teológica, I, q 2, a 3).
16
algo que seja, do qual o possível receba seu ser. O ser pelo qual os seres devêm nada
mais é que o ser absolutamente necessário incausado, conquanto causa tanto dos seres
contingentes como dos seres necessários
13
.
Porque os seres não possuem razão suficiente de sua existência, é necessário
que neles essência e existência sejam distintas. Tal distinção é imprescindível para a
doutrina tomasiana da criação. Essência e existência se distinguem nos seres, porque
são eles causados; sendo causados, eles dependem de outro, e tal dependência se faz
notável pela distinção entre potência e ato. Com efeito, a essência é entendida por
Tomás como aquilo que está em potência, quer dizer, como aptidão para existir,
podendo ou não ser atualizada; a existência, por sua vez, é o ato por que a essência se
torna real
14
. Este ato não pode o criado dar a si mesmo, mas deve recebê-lo de outro.
O ato pelo qual é conferida existência a uma essência chama-se criação. A
definição oferecida por Tomás é que “a criação é a produção de alguma coisa em toda
a sua substância, sem que dela nada preexista, nem criado nem incriado”
15
. Coisa é o
composto de potência e ato, ou matéria e forma, ou essência e existência. Tomás
afirma que essas coisas são produzidas. Como se essa produção? Por meio de uma
ação eficiente de Deus. Todavia, é preciso atentar para o fato de que Tomás,
distinguindo essência e existência, vincula o ato criador apenas à existência,
preservando as essências da ação criadora, pois estas não se distinguem da essência
divina. Criação aplica-se à produção de algo em sua substância, portanto, distinto de
Deus e a ele exterior.
Tomás ainda assegura que através da criação todas as coisas começaram a
existir. Isso significa que a criação não pressupõe, por definição, nenhuma matéria;
13
Quero ressaltar muito rapidamente que os seres necessários, embora causados por Deus, não o são
mediante uma causalidade eficiente. A questão da causalidade das essências não pertence, em Tomás,
à doutrina da criação, pois não se pode falar de criação de essências. Essa interessante questão s
veremos a seu tempo.
14
Cf. Tomás de Aquino. O Ente e a Essência, 1-2.
15
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I,q 63, a 3.
17
ela pressupõe então, por definição, uma essência criadora, a qual, por ser o ato puro
de existir, pode causar atos finitos de existir. Trata-se de uma produção da própria
existência de tudo o que é, ou seja, uma produção ex nihilo, cuja causa encontra-se na
perfeição do existir divino
16
. Ora, a criação, portanto, é a produção de seres finitos,
contingentes através de uma causalidade eficiente.
Dizendo que a criação é uma produção, Tomás quer assegurar o caráter livre
proveniente da vontade divina, ou seja, Deus quis criar o mundo, ele não foi
determinado por nada, nem precisou de algo do qual pudesse formar o mundo, nada
poderia existir numa determinada criatura que o pudesse induzi-lo a criá-la. Por isso,
“deve-se afirmar que a vontade de Deus é causa das coisas e que Deus age por
vontade e não por necessidade de natureza”
17
.
Entre Deus e a criação, que é produção totius esse, isto é, da totalidade de tudo
que existe, uma relação resultante da própria ação criadora que é denominada
participação (participatio). Assim, a criação em toda a sua extensão depende
inteiramente de Deus. Diz ele:
É preciso afirmar que todas as coisas, qualquer que seja a sua
maneira de ser, vem de Deus. Se, de fato, num ser encontramos uma
determinada coisa apenas como [coisa] participada,
necessariamente ela deve depender causalmente daquele ser à qual
[essa coisa participada] convém por essência [...] todos os entes
distintos de Deus não são o próprio ser; antes, participam do ser. E
é, pois, necessário que todas as coisas que se diferenciam segundo
uma diferente participação do ser, de modo a terem um grau maior
ou menor de perfeição, sejam causadas por um único ser anterior, o
qual é de maneira perfeita
18
.
16
Cf. E. Gilson. A Filosofia na Idade Média, p. 663.
17
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 19, a 4.
18
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 44, a 1.
18
Tomás, usando o mesmo conceito neoplatônico, evita o panteísmo, isto é,
considerar a criação como parte de Deus. Deus é participável pelas criaturas, quer
dizer, a essência divina compreende nela mesma o que de mais nobre em todos os
seres segundo o modo de perfeição. Assim, o conhecimento divino pode compreender
em sua essência o que é próprio de cada coisa, compreendendo em que cada coisa
imita sua essência, num grau inferior de perfeição. É sempre considerando o grau de
perfeição de cada ser que se diz que uma criatura é participável do ser divino. Por
exemplo, tanto o ser da pedra quanto o do homem participam, enquanto ser, portanto
considerando a perfeição presente neles, do ser perfeitíssimo. Todavia, considerando
o grau, deve-se admitir que o homem participa mais do que a pedra, devido à
presença nele de perfeições análogas à perfeição divina: intelecto e vontade.
Ademais, a noção de participação exprime, ao mesmo tempo, o vínculo que
une a criatura ao criador, o que torna a criação inteligível, e a separação que os
impede de confundir-se. Dizendo que os seres participam do ato puro ou da perfeição
divina, Tomás expressa que as perfeições contidas nos seres preexistem em Deus.
Vimos que os seres criados não possuem razão suficiente de sua existência, a
qual deve ser, como dissemos acima, recebida de outro; que são compostos de
essência e existência. A essência é atualizada por Deus ao conferir-lhe a existência,
que é dada mediante um ato livre da vontade divina. Surge duma questão: se na
criação é conferida existência às essências, que lugar estas últimas ocupam na
economia da criação?
Para Tomás, as essências das coisas que serão criadas encontram-se em Deus.
Não existem nele, porém, como uma criatura, uma vez que a criação é um ato
vinculado à vontade divina, um ato responsável pela produção dos seres finitos. Os
seres preexistem em Deus como um modo de ser inteligível, enquanto essências, às
quais Deus conferirá existência ou não. É o que ele afirma em alguns lugares da Suma
Teológica, dizendo que “todas as coisas nele existem sob uma forma inteligível” e
19
que “na essência divina estão compreendidas as espécies das coisas”
19
. As expressões
forma inteligível e espécie das coisas designam as próprias essências possíveis. As
essências, se não gozam de existência, permanecem meros possíveis, aos quais Deus
pode ou não conferir existência. Deus possui nele mesmo a razão das coisas, as quais
serão atualizadas pelo princípio agente, isto é, a vontade divina. Qual é então a
natureza dessas espécies ou formas inteligíveis ou essências? São algo distinto de
Deus?
De acordo com Tomás, não se deve fazer distinção entre essas entidades e a
essência divina, pois “sua essência mesma é também a espécie inteligível”
20
.
Entretanto, ele salienta que tais essências se identificam ao intelecto divino:
Nele o intelecto é idêntico ao inteligível. A espécie inteligível não
difere da substância do intelecto divino. A espécie inteligível mesma
é o próprio intelecto divino
21
.
A análise das formas inteligíveis vinculadas ao intelecto divino pretende
chegar à explicação da relação do conhecimento divino com o ato da criação. O
problema levantado por Tomás é o de saber se o intelecto divino é também causa das
coisas, ou seja, se ele está envolvido no processo da criação. Tomás defende que sim,
pois aquilo que será atualizado, ou em termos tomasianos, os efeitos da ação divina
devem preexistir na causa primeira, Deus. Assim, todas as formas que ganharão
existência estão antes no seu intelecto:
Todos os efeitos preexistentes em Deus, como na causa primeira,
preexistem-lhe necessariamente na inteligência; e, portanto, todas as
coisas nele existem sob uma forma inteligível
22
.
19
Cf. I, q 14, a 2 e 5.
20
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 14, a 4.
21
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 14, a 2.
20
Deus tem todo o criado sob formas inteligíveis no seu intelecto. Isto é
semelhante ao processo criador do artista, que, antes mesmo de criar sua obra, antes
mesmo de sua concretização, a tem na sua inteligência; igualmente, no artista os
efeitos preexistem em sua inteligência. Para Tomás, Deus é um ser que tem idéias, as
quais são designadas como razões das coisas. Ora, as razões das coisas, ou seja,
aquilo sem o qual algo não pode ser, equivalem às essências, as quais, enquanto no
intelecto divino, permanecem possíveis, podendo ou não ser atualizadas por sua
vontade:
Os efeitos derivam da causa agente enquanto preexistem nela;
porque todo agente produz algo que se assemelha a ele. Mas os
efeitos preexistem na causa, segundo o modo de ser da mesma. Por
isso, assim como o ser de Deus se identifica com a sua inteligência,
os efeitos preexistem nele como inteligíveis. Portanto, derivarão dele
também da mesma maneira. Por conseqüência, derivarão como
objeto de vontade: porque pertence à vontade o impulso de realizar
aquilo que foi concebido pela inteligência. Portanto, a vontade de
Deus é a causa das coisas
23
.
Junto à vontade, Tomás defenderá o intelecto como causa das coisas. Porém,
não o considera como princípio de ação, “mas como tendo inclinação para o efeito”
24
.
Ele garante “que a inteligência divina é causa das coisas”, mas enquanto ciência de
aprovação e não como causa eficiente
25
. Isto quer dizer que a inteligência elege os
possíveis que a vontade criará:
22
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 14, a 5.
23
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 19, a 4.
24
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 14, a 8.
25
Idem.
21
A ciência divina é causa com a vontade. Não é necessário que tudo
o que Deus sabe, seja, ou fosse, ou haja de ser, mas somente aquilo
que ele quer que seja ou que ele permitir ser. Está na ciência de
Deus que algo possa ser, mas não que o seja
26
.
A tese lugar ao debate sobre a precedência do intelecto à vontade. Permitir
ser é o mesmo que aprovar. Se a vontade realiza o que o intelecto aprova, então há
uma clara distinção entre as faculdades divinas, bem como a superioridade da
inteligência à vontade e a submissão desta àquela. A realização pela vontade daquilo
que a inteligência concebera, segundo Tomás, evidencia que a ação criadora segue
uma ordem lógica. Com efeito, Deus contempla a sua infinita essência e nela as
inumeráveis e infinitas possibilidades de imitação e reprodução, dentre as quais ele
escolhe e, enfim, decreta livremente quais serão atualizadas. Embora afirme a
possibilidade de escolha entre as essências que receberão existência, não existe aqui
qualquer sucessão temporal. A ação criadora precede, portanto, o tempo; encontra-se
fora e acima dele. Deus opera na eternidade e na absoluta instantaneidade
27
.
1. 2 Ockham
A concepção tomasiana das essências encontrará forte oposição em Ockham,
o qual, como nota Marilena Chauí, é responsável por criar um impacto irreversível na
tradição causado pela ruptura com a tradição medieval
28
. Dentre os vários pontos da
discussão entre Ockham e a tradição, procuraremos expor a questão dos universais.
Segundo ele, essa é uma questão que precisa ter um fim. Com efeito, não existe um
universo povoado de universais, ou seja, as essências arquetípicas situadas no
intelecto divino. Os universais nada mais são que entes de razão, não podendo gozar
26
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 14, a 9.
27
Cf. B. Mondim. Quem é Deus, p. 356.
28
M. Chauí. A Nervura do Real, p. 343.
22
jamais de existência extramental. Existem apenas as substâncias singulares e criadas
imediatamente pela onipotência divina. Deus as conhece enquanto singulares. Ora, a
escolástica preconizava a criação mediata, ou seja, Deus cria as coisas por meio das
essências ou modelos universais localizados em seu intelecto. A criação imediata põe
fim ao exemplarismo e mesmo às relações reais entre os singulares por meio dos
universais, por exemplo, como existem as realidades individuais, que são
realidades discretas e absolutas, desaparece a relação entre João e Pedro por meio do
universal homem ou essência comum, condição da própria existência de ambos e de
todos os indivíduos dessa espécie
29
. Segundo Ockham, Deus poderia destruir a
essência de um indivíduo sem que isso afete a essência do outro.
Esta relação problemática entre singular e universal, muito discutida na
tradição, encontrava sua solução em um recurso chamado princípio de individuação,
o qual Ockham tem a intenção de atacar em suas críticas ao universal. Apresentou-se
a questão de saber se a individuação, isto é, o fato de ser um indivíduo, quer dizer,
um ser uno em si mesmo e distinto dos outros, provém da matéria ou da forma
substancial. Esta questão se apresenta com o fim de explicar como uma espécie pode
comportar indivíduos múltiplos, quer dizer, comportar seres ao mesmo tempo
idênticos, pois têm todos a mesma natureza, e distintos, uma vez que um não é o
outro. A tradição aristotélico-tomista admitia ser a matéria o princípio da
individuação. Com efeito, a forma, por si mesma, é universal [assim, a razão, que faz
o homem, nada tem por si de individual; uma razão que não seja mais do que razão
formaria por si só uma espécie]. Ao contrário, recebendo a forma, a matéria, por estar
dotada de quantidade, quer dizer de dimensões e, por conseguinte, de finitude, limita
e restringe a forma, determina-a, e, portanto, a individualiza.
Nota-se claramente que o princípio procura explicar a realização de uma
mesma essência em múltiplos indivíduos singulares e distintos. Para Ockham, no
entanto, isso é um erro monumental, pois a essência de um indivíduo não se distingue
29
Ockham, Philosophical Writings, p. 20.
23
dele. A essência de Sócrates é somente a essência de Sócrates e não se distingue em
absoluto de Sócrates mesmo, a essência de Platão é somente a essência de Platão, etc.
Não existe, portanto, uma essência multiplicada em distintos indivíduos, mas há
tantas essências quantos indivíduos. Assim, perguntar em virtude de que uma
essência se individua ou em virtude de que um individuo é um individuo? não faz
sentido. Há indivíduos e isso é tudo.
Aceitando apenas a realidade existencial das coisas singulares, Ockham
suprime a existência dos universais. A realidade existencial do singular consiste na
existência exterior ao pensamento; coisas como universais, gêneros e espécies, idéias,
essências são reduzidos a nomes. A supressão das idéias ou essências também se dá
radicalmente. No intelecto humano, elas existem como conhecimento abstraído de
nossa experiência dos particulares
30
. Ora, se elas não mais existem no intelecto
humano, a não ser como abstração e linguagem, menos ainda no intelecto divino,
“que se vê, agora, esvaziado dos conteúdos que orientavam a ação da vontade
divina”
31
. Deus não mais possui idéias ou arquétipos das coisas em seu intelecto.
Uma vez que ele não é fonte de idéias nem lugar delas, não haverá razão para se
admitir universais nas coisas. Agora a experiência sensível torna-se uma verdadeira
causa eficiente do conhecimento. precisamos, segundo Ockham, da intuição
intuitivo-sensível aplicada ao objeto do mundo exterior, ou da intuição reflexivo-
espiritual sobre os nossos atos psíquicos internos, para termos a origem do
conhecimento de um mundo real. Daqui tira-se por abstração as idéias e princípios
universais, tendo assim os elementos de que se serve a ciência. As antigas species,
portanto, tornam-se desnecessárias:
30
Ockham. Summa totius Logicae, I, cap. 15. In Ockham’s Theory of Terms. Part I of the Summa
Logicae, pp. 70-82.
31
M. Chauí. Op. cit. p. 344.
24
Basta um elemento ativo e outro passivo o objeto e o
conhecimento, ambos unidos para produzirem o efeito, sem nada
mais
32
.
Desaparecendo as idéias do intelecto divino e os universais nas coisas,
desaparece igualmente a precedência do intelecto sobre a vontade. Ora, se se pensava
na conformidade da vontade ao intelecto, porque neste residiriam as essências
exemplares, segundo as quais somente as coisas existentes seriam criadas, agora,
suprimidas as idéias arquetípicas e concebida somente a existência real dos
indivíduos, Ockham abre um universo “em que nenhuma necessidade inteligível se
interpõe, mesmo em Deus, entre sua essência e suas obras”
33
, ou seja, toda a criação
torna-se radicalmente contingente, tanto do ponto de vista de sua existência quanto do
da sua inteligibilidade. Dessa maneira, “não há nada do que é que, se Deus tivesse
querido, não teria podido ser de outro modo”
34
. Trata-se de um contingentismo
radical, fruto da inovadora concepção ockhamiana da simplicidade divina, a qual nos
insere na sua concepção de Onipotência.
Até Ockham, os teólogos medievais, para denotar a relação entre onipotência
divina e criação, serviram-se dos termos potentia Dei absoluta e potentia Dei
ordinata. Estes termos não se referem a dois poderes que Deus possui, mas a duas
maneiras de entender o poder divino
35
. A potência absoluta ou poder absoluto de criar
contingentemente todas as coisas a partir do nada tinha como cerne a sabedoria e a
justiça de Deus; a potência ordenada refere-se àquilo que atualmente a vontade divina
pode escolher estabelecer na presente ordem, guiada, no entanto, pelo intelecto. A
potência ordenada expressa o poder na conservação de tudo quanto não seja
32
Ockham. II Sent. q. 150.
33
E. Gilson. A filosofia na Idade Média, p. 813.
34
Idem.
35
M. J. Osler. Op. cit. p. 18.
25
contraditório e cuja regularidade institui as leis naturais
36
. A concepção da potência
absoluta e da ordenada reproduz a concepção da distinção entre as faculdades divinas,
na qual a vontade de Deus é ordenada pelo seu intelecto. Ockham, por sua vez,
adverte que a simplicidade divina não pode prescindir da simplicidade da potência de
Deus. Se entendemos que o poder divino é um só, não deveríamos do mesmo modo
distinguir as faculdades divinas? Entender que Deus é simples significa evitar toda e
qualquer distinção entre o poder divino, seu intelecto e sua vontade.
Como os medievais, Ockham também emprega as duas expressões para a
vontade divina: potentia Dei ordinata e potentia Dei absoluta. A primeira ensina que
Deus livremente estabelece a ordem física e moral e a conserva. A segunda tem um
caráter mais radical, ou seja, que a onipotência divina não pode ser limitada por nada,
seja internamente, mediante a submissão da vontade aos arquétipos do intelecto, seja
externamente, recorrendo à existência de verdades eternas reguladoras do poder
divino. A potência divina não apenas instaura um mundo marcado pela contingência,
mas, porque expressa a onipotência, é também “indeterminada e tem o poder de criar
os contrários simultâneos e sucessivos, assim como pode com igual vontade criar ou
aniquilar, conservar ou destruir, reunir ou separar, porque cria direta e imediatamente
os singulares”
37
. A liberdade divina não está submetida nem a regra nem a
necessidade alguma. Assim, embora Deus tenha estabelecido uma determinada ordem
no mundo, ele poderia ter estabelecido outras, que seriam tão racionais quanto a
ordem existente, pois seu poder é absoluto. Por exemplo, se Deus tivesse querido,
teria sido um ato meritório odiá-lo.
Ockham admite, todavia, um limite ulterior que Deus a si mesmo se impôs
quando positivamente estabeleceu uma determinada ordem à criação, isto é, o
absoluto poder divino refere-se àquilo que não é logicamente contraditório,
concordando neste ponto com muitos medievais.
36
Cf. M. Chauí. Op. cit.p. 343.
37
Idem, p. 344.
26
A vontade onipotente de Deus, portanto, não é, mesmo para Ockham, uma
vontade arbitrária, o que o coloca de acordo com a posição da maioria dos
voluntaristas, para os quais a não-contradição constitui uma verdadeira exceção à
absoluta liberdade divina
38
. Como explica Chauí, “a potência absoluta é o poder
absolutamente contingente porque pode tudo quanto não seja contraditório”
39
.
Portanto, Deus pode tudo que é possível, pois o possível é, na verdade, o não-
contraditório. O possível é o que a potência divina pode produzir sem contradição.
A doutrina de Ockham soará estranha aos ouvidos de Descartes, por ter como
resultado a submissão divina ao princípio de não-contradição. De fato, parece
paradoxal a defesa de que nada, interna ou externamente, regule o poder divino e, ao
mesmo tempo, porém, a onipotência tenha como medida a não-contradição.
1. 3 Suárez
É preciso agora investigar alguns aspectos da filosofia suareziana, pela
importância que esta adquire no debate acerca das verdades eternas e sua
independência em relação a Deus. Como Ockham, Suárez também se compromete a
pôr fim ao exemplarismo, mas o contingentismo radical ockhamiano parecia causar-
lhe um certo desconforto intelectual. Ockham admitira a causalidade imediata de
todas as coisas, mas não conseguiu responder satisfatoriamente à questão das
exigências impostas pela natureza da não-contradição. Ora, afirmar a contingência
universal por meio da supressão dos universais, mas defender que a onipotência pode
tudo desde que não seja contraditório, não é o mesmo que afirmar que algo para
além do alcance da onipotência criadora, algo absolutamente necessário? Esta questão
explicita a contradição subjacente à teoria de Ockham. Suárez tentareformular a
38
Cf. M. J. Osler. Op. cit.p. 19. Ver também Oakley. Omnipotente, Covenant and Order, p. 44, e
Courternay. The Dialectic of Omnipotence, pp. 244-245.
39
M. Chauí. Op. cit. p. 411.
27
questão dos universais e salvar a necessidade absoluta expressa pela não-contradição
ou não-repugnância da contingência radical. A solução suareziana ao problema
deixado por Ockham contribuirá consideravelmente para a elaboração da teoria
cartesiana da livre criação das verdades eternas, a qual é concebida por seu autor
como única solução plausível dos problemas que Suárez tentou, mas não conseguiu
resolver
40
.
Tomemos como ponto de partida de nossa análise suareziana a questão dos
universais. Não pretendemos fazer uma análise exaustiva do assunto, mas expor
aquilo que for necessário para entender a posição de Descartes. Suárez admite que os
universais “são abstrações de termos singulares, por conseguinte são tão desprovidos
de tempo e lugar quanto de mudança, início e fim
41
. Segundo Rios, tal concepção
parte de alguns pressupostos metafísicos. Para Suárez somente coisas individuais,
sejam elas meramente possíveis ou de fato existentes. Essas coisas, por sua vez são
individuadas devido à própria entidade delas, ou seja, antes mesmo de serem
causadas pela onipotência divina elas já estão individuadas através de sua própria
entidade, de sua aptidão para ser, isto é, sua possibilidade ou essência anterior à
criação. As coisas individuais são unitárias, o que implica que não pode haver
universal in re realmente distinto da coisa. Donde resulta que o universal, enquanto
algo que participa de muitas coisas pode existir atualmente se tal se der apenas
objetivamente no intelecto. Como não há, de maneira ontologicamente positiva,
espécies ou gêneros, Deus conhecerá as coisas com base nos indivíduos possíveis
42
.
Nesse sentido, Suárez se aproxima e se distancia dos nominalistas. Distancia-se
40
Existe uma divergência entre comentadores quanto a identificar o privilegiado adversário de
Descartes. No que concerne a Suárez, tenta-se retirá-lo da discussão por causa de suas críticas a alguns
aspectos da doutrina das essências incriadas. Entretanto, seria correto admitir que para Suárez as
verdades eternas são equivalentes a essências? Sobre a discussão em torno dos adversários de
Descartes, ver M. J. Osler. Divine Will and the Mechanical Philosophy, pp. 123-135.
41
Suárez. Disputationes Metaphysicae,IV, s. 7, § 7.
42
Cf. A. R. Rios. Ensaios sobre Suárez e Descartes, p. 66.
28
quando admite o universal na coisa, mas se aproxima ao atribuir o universal à coisa
em função de uma denominação extrínseca. Isso significa que os universais não são
positivamente eternos, posto não terem efetividade, existência real, mas enquanto
abstração no intelecto.
A posição suareziana poderia nos fazer pensar que ele admite, dada a
localização dos universais no intelecto, sua eternidade por dependência de Deus,
seguindo a posição, por exemplo, de Tomás. Entretanto, nas Disputas Metafísicas
(DM), ao tratar das enunciações sobre verdades perpétuas, tal impressão se desfaz.
Na DM XXXI, conforme a explicação de Marion, Suárez chama a atenção
para a análise de verdades necessárias e contingentes. Se elas residem no intelecto
divino, não deve ser segundo a mesma necessidade. É que as verdades contingentes
possuem uma relação com este intelecto de uma maneira muito diferente das
necessárias. Aquelas supõem o tempo de sua efetividade; estas, as necessárias, não
são condicionadas, ou seja, sua necessidade incondicionada pode ser considerada uma
necessidade absoluta. “A absoluta necessidade indica que nenhuma condição
contingente deve ser satisfeita por uma instância não lógica para que a verdade lógica
seja absolutamente verdadeira”
43
. Suárez, ao anunciar que as verdades necessárias
“são simplesmente necessárias e sem condição”, recusa aceitar posições que as façam
depender das faculdades divinas. Por causa do pressuposto da individuação em razão
da própria entidade da coisa antes de sua criação, Suárez não poderia admitir a
dependência de uma coisa de Deus senão por meio da criação. Desse modo, depender
de Deus implica em depender de sua vontade, cuja causalidade eficiente é
responsável pela produção apenas das criaturas:
43
J.-L. Marion. Sur la Théologie Blanche de Descartes, p. 45.
29
Se sua verdade proviesse de Deus mesmo, isso se faria mediante a
vontade divina; então proviria de uma vontade e não de uma
necessidade
44
.
Ora, se as verdades eternas, mesmo em se tratando de coisas contingentes,
residissem no intelecto divino, como, segundo Suárez afirmava Tomás, ao ganharem
existência, não poderia ser de outro modo senão por criação. Com efeito, o criado
implica contingência, e isto não poderia valer para as verdades eternas, pois
envolvem absoluta necessidade. Por conseguinte, se não procedem de Deus mesmo,
como se explica o conhecimento que Deus tem delas? Suárez afirma que:
O intelecto divino se encontra numa relação puramente
especulativa e não de operação; assim, o intelecto especulativo
supõe a verdade de seu objeto mas o a produz; por conseguinte,
estes enunciados [...] possuem uma verdade eterna, não somente
enquanto estão no intelecto divino, mas igualmente enquanto são
considerados neles mesmos
45
.
Marion observa que como a “absoluta necessidade implica a independência
[...] estas verdades se verificam independentemente de Deus”, impondo-se a ele
“como se proviessem de uma outra instância, anterior e independente”
46
. Para Suárez
a necessidade das verdades eternas, sua raiz e sua origem primeira, não se reporta ao
exemplar divino
47
. O exemplar divino representa uma verdade, que não lhe é
44
DM XXXI, s. 12, § 40.
45
Idem.
46
J.-L. Marion. Op. cit. p. 46.
47
Cf. DM XXXI, s. 12, § 46.
30
inerente, mas provém de fora, pois “é do objeto mesmo que provém esta necessidade,
não do exemplar”
48
.
As verdades eternas são verdades necessárias enunciáveis sobre as coisas
existentes ou sobre os indivíduos, mas são também a própria necessidade contida na
conexão entre os extremos da proposição ou dos enunciáveis. Como Suárez admite
apenas os existentes atuais, a necessidade dos enunciáveis que exprimem uma
verdade eterna existiria na coisa (in re), ou seja, procederia do objeto mesmo
49
. Isto
quer dizer que a existência das coisas é determinada por estas verdades eternas, pela
necessidade em que estão envolvidas as essências atuais. Em outras palavras, as
verdades eternas, segundo a pressuposição da individuação em razão da própria
entidade da coisa individuada antes da criação pela onipotência divina, o condição
tanto da possibilidade quanto da existência das coisas, ou seja, a existência de um
homem supõe que ele seja animal racional. Não posso pensar ou conhecer um homem
que seja desprovido deste predicado essencial, tampouco é possível sua existência
como tal. Isto envolve uma verdade eterna. As verdades eternas se impõem, ao que
tudo indica, ao intelecto e à vontade humanos; elas são independentes de nossas
faculdades. Não é possível ao ser humano pensar um homem sem pensá-lo
essencialmente animal racional, por exemplo. Todavia, não apenas ao intelecto
humano essas verdades se impõem, mas também ao intelecto e vontade do Criador. O
conhecimento divino é, segundo a concepção de Suárez, um conhecimento
especulativo, ou seja, não produz verdades, mas as conhece; logo, estas teriam sua
necessidade independente das faculdades divinas. Se a necessidade é in re, isto é,
procedendo das coisas mesmas, o pensamento divino não poderia pensar fora desta
necessidade nem poderia querer ou criar um ser contrariando as verdades eternas. Por
exemplo, Deus não pode pensar um homem sem pensá-lo animal racional e não pode
criar um homem sem criá-lo animal racional, por causa da necessidade que conecta o
48
DM XXXI, s. 12, § 46.
49
Cf. E. M. Curley. Descartes on the Creation of the Eternal Truths, p 587.
31
sujeito ao predicado. Já que não dependem nem do intelecto nem da vontade de Deus,
qual seria então o princípio causal capaz de explicar as verdades eternas?
Uma das formas de Suárez usar a expressão realis é referindo-se à realidade
antes de sua efetivação; outra forma seria no sentido de atual ou em ato. Explica Rios
que o conceito de ens reale diz respeito à aptidão para ser; precisamente, à não-
repugnância a ser atualmente, isto é, à sua possibilidade ou essência anterior à
criação
50
. Disso resulta, por conseguinte, de acordo com Marion, que ao longo da
Disputa XXXI, Suárez vai expondo sua intenção mais profunda, a saber, estabelecer a
tese da não criação das verdades eternas
51
.
As verdades eternas são efetivamente eternas, porque “não exigem uma causa
eficiente”
52
, quer as consideremos em ato quer em potência; elas são, portanto,
incausadas. Isto quer dizer que não foram produzidas por Deus. Por isso, declara
Suárez que as verdades eternas:
não são verdadeiras porque conhecidas por Deus, ao contrário são
precisamente conhecidas devido à sua própria verdade, de outro
modo, seria impossível dar qualquer razão pela qual Deus
conhecesse necessariamente sua verdade, pois se sua verdade
procedesse de Deus mesmo, esta poderia proceder por intermédio
da vontade de Deus, assim não procederia da necessidade, mas da
vontade
53
.
A afirmação de Suárez implica em pôr o fundamento das proposições bem
como da necessidade das verdades eternas fora do intelecto e da vontade de Deus. O
que levou muitos autores a suporem que ele admitira verdades independentes de
50
Cf. A. R. Rios. Ensaios sobre Suárez e Descartes, pp. 125-126.
51
Cf. J.-L. Marion. Op. cit. p. 53.
52
DM XXXI, s. 12, § 45
53
DM XXXI, s. 12, § 40.
32
Deus. Acerca da interpretação da independência das verdades eternas, comentadores
suarezianos criticam-na por se tratar de uma interpretação incorreta e amadora
54
. É
preciso ressaltar, entretanto, que foi dessa forma negada pelos comentadores
contemporâneos que Suárez chegou a Descartes e foi compreendido por este, e nisto
reside um fato de relevância histórico-filosófica. Ademais, embora Curley saliente
não ser expressamente dito por Suárez que as verdades eternas sejam verdades
independentes de Deus, isto é algo decorrente de sua doutrina. De fato, entendendo
Suárez verdade como correspondência e havendo verdade necessária, deve existir
necessidade in re, isto é, na própria coisa. A necessidade procederia do objeto
mesmo
55
.
A tese que acaba de ser apresentada requer que as verdades eternas existam
independentemente do intelecto e da vontade de Deus; depois, que elas precedam o
conhecimento divino, determinando seu intelecto e regulando sua vontade. Isto
significa que Deus não as institui e quando ele cria as coisas, necessariamente o faz
em conformidade a estas verdades. Somente assim Suárez acredita garantir a
necessidade das verdades eternas, evitando concebê-las como puramente possíveis ou
contingentes. Conseqüentemente, a tese de Suárez parece obrigar-nos a conceber que
as verdades eternas consistiriam numa realidade eterna contemplada por Deus e
distinta dele.
***
Observando bem a posição dos autores analisados neste capítulo, poderemos
verificar, apesar das diferenças entre eles, certa unanimidade quanto ao princípio de
não-contradição, a saber, quanto à preservação desse princípio da ação criadora
divina que, em última análise, significa sua validade e inviolabilidade ante a
54
A. R. Rios. Op. cit. p. 219.
55
E. M. Curley. Descartes on the Creation of the Eternal Truths, p 587.
33
onipotência. É claro que sempre se encontrou uma maneira de conciliar onipotência
divina e a exigência de inteligibilidade do real
56
.
Entretanto, se o princípio de inteligibilidade o é criado, e destruídos os
arquétipos divinos, qual é a sua situação metafísica? Os três autores concordam em
que se trata de um princípio incriado e condição de possibilidade de todas as coisas,
condição para a própria onipotência, a qual não pode fazer algo em desacordo com o
princípio.
Contudo, considerando que Deus é um ser dotado de intelecto e vontade, não
sendo este princípio criado, faz-se inevitável perguntar se o intelecto divino é regido
pelo princípio de não-contradição. Esta é uma pergunta crítica. Com efeito, ela quer
saber se há alguma lei capaz de se impor à ação divina.
Não houve escolástico, nem Ockham com sua contingência radical, que
conseguisse dar uma resposta satisfatória a essa questão e tornar o princípio menos
absoluto. Tomás considerou o princípio uma “lei” do ser, decorrente da própria
essência divina; Ockham doravante o designou como algo inerente, íntimo às coisas;
Suárez, a seu tempo, o teve como uma verdade eterna, uma exigência ou necessidade
absoluta ao real. Resulta que o princípio de inteligibilidade se apresenta como uma lei
imutável, válida até mesmo para a essência divina. Se Deus é dotado de intelecto, e
sendo o princípio de não-contradição o princípio de inteligibilidade, parece então que,
como o intelecto humano, o intelecto divino está subordinado às suas exigências. Dir-
se-á então que o intelecto divino não pode pensar além das condições impostas pela
não-contradição? Isso significa que o princípio precede o próprio Deus? Que Deus
possui um ser lógico? Que as leis às quais nosso intelecto está submetido são as
mesmas que regulam a inteligência e a vontade do ser supremo? Então o intelecto
divino e o humano podem ser entendidos univocamente? E assim podemos conhecer
56
Ver W. J. Courtenay. The Dialectic of Omnipotence in Medieval Philosophy. Ed. por Tamar
Rudavsky. Dordrecht : Reidel, 1985.
34
e declarar verdadeiramente tudo o que a onipotência é capaz de realizar, pois sua
medida, como a nossa, é o domínio do não-contraditório, do possível, do inteligível?
É certo que os autores analisados acima jamais pretenderam retirar tais
conseqüências, o que não diminui a força e a plausibilidade das indagações. Os
esforços escolásticos foram feitos no sentido contrário, ou seja, no sentido da perfeita
conciliação entre o princípio de não-contradição e o ser divino, suas faculdades e sua
onipotência.
35
CAPÍTULO SEGUNDO
Descartes: as verdades eternas
2. 1 Uma grande descoberta
A exposição precedente procurou mostrar uma tensão envolvendo o princípio
de não-contradição, que, ao que tudo indica, pode ser entendido como a condição sine
qua non da possibilidade da existência possível ou efetiva das coisas concebidas por
Deus. O núcleo da tensão está em concebê-lo incriado sem que isso submeta Deus à
exigência do princípio, ou seja, sem que lance incertezas à verdade do atributo da
onipotência divina. Talvez para evitar essa tensão fosse preciso submeter o princípio
à vontade divina e, com isso, concebê-lo como efeito desta vontade.
Entretanto, se isso foi cogitado entre os escolásticos, não parece ter sido
afirmado publicamente por eles, por causa da conseqüência resultante, isto é, se o
princípio for efeito da divina vontade, ele deverá ser criado, conforme advertia
Suárez. Conseqüentemente, comprometerá todas as realidades que são absolutamente
necessárias, quer as chamemos essências, quer verdades eternas, comprometendo do
mesmo modo a ciência, a qual consideravam como conhecimento daquilo que é
regular, necessário, imutável. Tudo isso porque, de acordo com a tradição escolástica
e aqueles sob sua poderosa influência, qualquer coisa proveniente da vontade divina é
radicalmente contingente.
Poderíamos achar que Ockham tivesse sido dessa opinião, já que ele suprimira
a realidade dos arquétipos, afirmando a existência de indivíduos singulares, cuja
realidade lhes era concedida por meio da ação criadora de Deus. Contudo, ao afirmar
que a ação divina onipotente versa sobre o que não é contraditório, pois este não pode
ser feito por Deus, Ockham deveria explicar qual é a realidade da não-contradição,
que o não-contraditório assim o é devido à exigência de inteligibilidade, ou seja, do
princípio de não-contradição. Ockham não o submeteu ao contingentismo de sua
teoria, não o tomou como criado. Então este princípio, tão comum à inteligência
36
finita, regularia o próprio intelecto divino? Ora, mas se idéias em Deus depois
de criar as coisas, como explicar que a não-contradição, condição de possibilidade da
essência, anteceda a e determine a própria existência das coisas individuadas?
Suárez, no intuito de resolver os impasses deixados por Ockham, foi mais
longe defendendo que as coisas individuadas existem em razão de sua aptidão para
ser, ou seja, em razão de sua possibilidade ou essência anterior à criação. A tese
suareziana parece sugerir a existência de algo outro eterno que Deus e anterior a ele,
algo incriado ou incausado, limitador do poder divino.
É a partir desses problemas que podemos entender a teoria cartesiana da livre
criação como fruto das reflexões sobre um impasse monumental deixado pela
escolástica, resultando na resposta anunciada na carta a Mersenne de 15 de abril de
1630, onde é inaugurada a mais difícil e radical tese cartesiana, a saber, a que garante
que as verdades eternas foram livremente criadas por um Deus absolutamente
indiferente e onipotente. Antes, porém, de apresentá-la a Mersenne, que recebe a
autorização de torná-la pública, Descartes se mostra seguro de haver feito uma
grandiosa descoberta de cunho metafísico e cuja eficácia assegurará também os
fundamentos da Física
57
, pois, sabendo que tais fundamentos foram estabelecidos por
Deus, haverá maior garantia da certeza da própria razão investigadora.
Descartes encontrou algo cuja demonstração supera a evidência das
demonstrações geométricas. Um achado fantástico que nos faz supor a existência de
57
A Mersenne, 15 de abril de 1630. AT I, 144. Os comentadores concordam que a teoria cartesiana da
livre criação surge num contexto de fundamentação mecanicista da filosofia da natureza. Esta
interpretação foi apresentada por Margaret Osler em seu livro Divine Will and the Mechanical
Philosophy. Nós, ao contrário, percebemos que a tese se presta a uma discussão muito mais polêmica,
que é a questão da verdade e, por conseguinte, o da validade do conhecimento humano. Este problema
aparece já entre os correspondentes de Descartes, sendo até mencionado por Espinosa na Ética I, prop.
33, esc. II. Sobre as implicações epistemológicas ver Homero Santiago. Descartes, Espinosa e a
Necessidade das Verdades Eternas. In Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, série 3, v. 12, 1-2, jan-dez,
2002, pp. 315-325.
37
uma certa oscilação do edifício científico somente petrificado com a tese revelada em
1630. Por isso, ele não se intimida em afirmar:
Penso eu ter encontrado como demonstrar as verdades Metafísicas,
de um modo que é mais evidente que as demonstrações da
Geometria
58
.
Dois anos antes dessa afirmação, Descartes havia escrito as Regulae,
embora ainda não tivessem sido publicadas, o que ocorrerá somente em 1701. Nelas,
precisamente na Regra II, ele a conhecer sua admiração pela Aritmética e
Geometria. Admiração proveniente de serem estas duas ciências “as únicas isentas de
qualquer defeito de falsidade ou incerteza”
59
. Isso evidentemente porque “são as
mais fáceis e mais claras de todas e mal parece possível a um ser humano nelas
enganar-se”
60
. Por isso, assegura:
na busca do caminho reto da verdade, não se deve ocupar-se com
nenhum objeto sobre o qual não se possa ter uma certeza tão grande
quanto aquelas das demonstrações da Aritmética e da Geometria
61
.
Comparando o anúncio da descoberta metafísica presente na carta de 15 de
abril de 1630 a esta que acabamos de citar, percebe-se sua intenção de sobrepor as
evidências metafísicas em vez de equipará-las às da Geometria. O uso do conceito de
evidência não é gratuito. Passando à Regra III, a evidência, juntamente com a
certeza, pertence à intuição. Por intuição, ele declara entender:
58
A Mersenne, 15 de abril de 1630. AT I, 144.
59
Regulae. AT X, 364. Utilizamos, em português, a tradução de Maria Ermantina Galvão.
60
AT X, 365.
61
AT X, 366.
38
o conceito que a inteligência pura e atenta forma com tanta
facilidade e clareza que não fica absolutamente nenhuma dúvida
sobre o que compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o
conceito que a inteligência pura e atenta forma, sem dúvida possível,
conceito que nasce apenas da luz da razão e cuja certeza é maior,
por causa da sua maior simplicidade
62
.
Dizendo isso, pode-se certamente elevar a descoberta cartesiana ao patamar de
uma intuição. Se não é possível duvidar das demonstrações geométricas, menos ainda
das demonstrações metafísicas contidas na tese da livre criação, dentre as quais as
verdades geométricas. Apesar dessa descoberta revolucionária, ele lamenta não ser
talvez possível persuadir aos outros da evidência de sua descoberta
63
.
Na carta a Mersenne de 15 de abril de 1630, o filósofo quis apresentar, antes
mesmo de manifestar a teoria da livre criação, a sua intenção, que não podemos
jamais desconsiderar ou omitir estrategicamente, e que antecipa o significado último
de sua tese, a saber, demonstrar a superioridade da evidência metafísica com relação à
evidência geométrica. Sendo assim, a teoria cartesiana da livre criação das verdades
eternas visa garantir a veracidade de todas as verdades eternas: metafísicas,
matemáticas e geométricas, físicas e morais, porque anuncia que todas elas possuem
um único fundamento metafísico, a saber, a instituição divina e, porque instituídas
por Deus, são verdadeiras. Confrontada às afirmações da Regra II concernentes à
Aritmética e à Geometria, essa atitude de Descartes, tomada na carta de 15 de Abril,
parece servir-lhe como uma correção ou um adendo
64
.
62
AT X, 368.
63
Cf. A Mersenne de 15 de abril de 1630. AT I, 144.
64
É que, na Regra II, Descartes afirma ainda que “a Aritmética e a Geometria são muito mais certas do
que as outras disciplinas”, pois “são as únicas a versar sobre um objeto tão puro e tão simples que elas
não têm de fazer, em absoluto, nenhuma suposição que a experiência possa deixar duvidosa” (AT X,
365).
39
De outro lado, Descartes parece prever os conseqüentes contra-sensos que
poderiam ser retirados por outros de sua doutrina, frutos da má compreensão do
verdadeiro fundamento que a tese da livre criação encerra
65
. Com efeito, não foram
poucos os que não se convenceram dessa nova maneira mais evidente de demonstrar
as verdades metafísicas, como também não foram poucos os que encontraram na
teoria cartesiana da livre criação das verdades eternas a própria verdade ameaçada,
além de julgarem que ela representaria riscos à sustentabilidade teórica de todo o
edifício cartesiano. Simplesmente, viram coisas jamais vistas ou sustentadas pelo
próprio Descartes
66
.
65
Entre os contemporâneos de Descartes e seus interlocutores nota-se a resistência à tese, e também
em filósofos de peso como Espinosa apesar do elogio na Ética I, prop. 33, esc. II , Leibniz,
Malebranche. também, é verdade, grande divergência entre os comentadores de Descartes quanto à
interpretação da teoria da livre criação das verdades eternas. Como veremos, encontramos autores que
procuram forçar Descartes a sustentar coisas que jamais ele sustentou. Não é à toa que Marion ressalta
muito bem que a tese cartesiana trata da questão do verdadeiro fundamento do saber. A pretensão
cartesiana não é outra que “assegurar a ciência por um absoluto... Assegurar, quer dizer, garantir o
saber por uma instância exterior ao próprio saber”, tal como é visto nas Meditações. “Sem dúvida,
nelas é a essência de Deus que, em última análise, exerce o fundamento”. A teoria da livre criação
igualmente reafirma novamente Deus como fundamento de toda a verdade. Cf. J.-L. Marion. Sur la
Théologie Blanche de Descartes, pp. 17-23.
66
Tal como o faz H. Frankfurt. Segundo ele, ou Descartes estaria comprometido com uma noção de
verdade como coerência e seu sistema se manteria em pé, ou esse sistema ruiria, caso estivesse
comprometido com a noção correspondencial de verdade, uma vez que, segundo o próprio Frankfurt, a
tese da livre criação representa uma cisão da adequação entre o pensamento e a realidade. Vide. H.
Frankfurt. Descartes on the Creation of the Eternal Truths. In The philosophical review, LXXXVI,
1, pp. 36-57; Descartes on the Validation of Reason. In Descartes a collection of critical essays, pp.
209-226.
40
2.2 Inauguração da tese e abrangência da noção de verdade eterna
A tese cartesiana é mencionada pela primeira vez na carta de 15 de abril de
1630, endereçada a Mersenne:
as verdades matemáticas, as quais vós nomeais eternas, foram
estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, tanto quanto o
resto das criaturas
67
.
O trecho acima, porém, não é o que melhor expressa todo o conteúdo e
alcance da tese cartesiana. Pelo contrário, é uma afirmação muito fraca e limitada, e
motivo de desacordo entre comentadores, pois não nos a dimensão exata da real
compreensão cartesiana de verdades eternas. É que nesta carta fala-se exclusivamente
das verdades matemáticas, induzindo-nos a pensar que as verdades eternas
equivaleriam exclusivamente às verdades matemáticas, porque na citação acima são
estas as verdades nomeadas eternas.
Todavia, como bem mostra Marion, para Mersenne as verdades eternas são
exclusivamente as verdades matemáticas
68
. Descartes mesmo o revela ao declarar: “as
verdades matemáticas, que vós nomeais eternas...
69
.
Apesar de claramente discordar da concepção de Mersenne, Descartes lhe
assegura a criação das verdades matemáticas por Deus; que elas foram estabelecidas e
são inteiramente dependentes Dele assim como as demais criaturas. Por causa disso,
há quem defenda que, segundo Descartes, as verdades eternas equivaleriam apenas às
verdades matemáticas.
Entre os comentadores, assumem esta posição Fichant, pois afirma
literalmente que “as verdades eternas são essencialmente matemáticas
70
, e, segundo
67
AT I, 145.
68
J.-L. Marion. Op. cit. p. 162.
69
Grifo nosso.
41
nota Beyssade, também Gouhier ao tentar uma distinção entre exigências ontológicas
as quais são verdades incriadas e as verdades eternas matemáticas criadas pela
vontade de Deus
71
. Tomar as verdades matemáticas como sendo as verdades eternas
constitui uma precipitação, pois as Cartas
72
mencionam outras verdades além das
matemáticas; seria também um descuido, sobretudo porque Descartes diz que sua
doutrina é uma descoberta para demonstrar verdades metafísicas de forma mais
evidente que as demonstrações da geometria e, se quisermos, as da matemática.
Assim, não é possível sustentar que Descartes entenda apenas as verdades
matemáticas como as verdades eternas. Prova disso encontra-se na passagem mais
adiante, onde expressamente declara:
Não temais, eu vos peço, assegurar e publicar em toda parte que foi
Deus quem estabeleceu estas leis na natureza, assim como um rei
estabelece leis em seu reino
73
.
Aqui ele designa as verdades eternas por outra coisa que verdades
matemáticas: as leis da natureza, que, como as verdades matemáticas, também foram
estabelecidas por Deus. Ora, se as leis físicas são designadas verdades eternas, fica
demonstrado que não existe uma equivalência exclusiva destas às verdades
matemáticas; isso obviamente impede pressupor uma correspondência estrita das
verdades eternas às leis físicas. Além das verdades matemáticas e físicas, Descartes
também insere no âmbito da noção das verdades eternas verdades lógicas, metafísicas
70
M. Fichant. Science e Métaphysique dans Descartes e Leibniz, p. 74.
71
J-M Beyssade. Descartes au fil de l’ordre, pp. 107-108.
72
Os termos Cartas e Correspondência aqui utilizados se aplicam exclusivamente ao conjunto de cartas
nas quais está contida a tese da livre criação das verdades eternas.
73
A Mersenne, 15 de Abril de 1630. AT I, 145.
42
e morais, por exemplo, a impossibilidade de pensar e de existir um ser contraditório,
ou que Deus age em razão da verdade e do bem, respectivamente
74
.
Mais longe foi Gueroult, procurando mostrar que as verdades eternas
equivalem às idéias para, em seguida, defender a existência de uma classe de
verdades inatingível pela doutrina da livre criação. Quanto à equivalência entre
verdades eternas e idéias, afirma:
Elas [as idéias] são naturezas ou essências que envolvem a
possibilidade da existência
75
.
Ora, essa afirmação, apesar de corresponder à particular preocupação
gueroultiana de salvar a teoria da livre criação dos problemas que outros julgam nela
encontrar, não corresponde às exposições de Descartes. Este claramente afirma, na
carta de 27 de maio de 1630, que as verdades eternas são as essências das coisas. As
idéias não são essências. As idéias existem apenas no entendimento, gozam tão-
somente de realidade objetiva. Se não é essa a posição de Gueroult, podemos dizer
que sua afirmação é inexata e ambígua
76
.
Quanto às idéias, afirma Descartes na Terceira Meditação:
No âmbito dos meus pensamentos, alguns são como as imagens das
coisas, e apenas àqueles é própria a denominação de idéias
77
.
Ora, as idéias aqui são tomadas por imagens das coisas. Assim, considerando
a idéia e a essência, é forçoso afirmar que as idéias são representações de essências,
74
Sixièmes Réponses, AT IX, 233-236.
75
M. Gueroult. Descartes selon l’Ordre des Raisons, vol. 2. pp. 22-23.
76
Difícil não ser essa sua posição, pois noutro lugar ele confirma entender por idéias as essências:
“essas idéias eu as chamo essências” (M. Gueroult. Op. cit. vol. 1, p. 374).
77
AT IX, 29.
43
ou seja, tenho idéia de essências, mas jamais posso afirmar que minhas idéias são
essências ou naturezas:
E o que, aqui, estimo mais considerável é que encontro em mim
uma infinidade de idéias de certas coisas que, embora talvez não
tenham nenhuma existência fora de mim, não podem ser
consideradas um puro nada; e, embora esteja, de certa forma, em
minha liberdade pensá-las ou não as pensar, não são, entretanto,
formadas por mim, mas possuem elas mesmas naturezas verdadeiras
e imutáveis
78
.
Descartes não apenas declara que as idéias existem somente no pensamento,
mas também que as idéias que tenho são idéias de coisas. Estas coisas, sim, são uma
certa natureza (ou essência) eterna e imutável, como bem atestam as Cartas. Ou as
idéias são essências ou naturezas, ou representam essências ou naturezas. Descartes
não faz, como acabamos de mostrar, aquilo que parece fazer Gueroult, a saber,
conceber as idéias como essências. As Cartas procuram mostrar que a noção de
verdade eterna possui um alcance universal. Tal universalidade finalmente culmina na
correspondência das verdades eternas às essências, por meio do conceito de coisa.
2. 3 As verdades eternas nos Princípios
As doutrinas escolásticas sobre essência notadamente tomasiana e verdade
eterna, tal como entendida por Suárez, contribuíram para a elaboração cartesiana da
noção de verdade eterna apresentada nas Cartas. Em Descartes, no entanto, existem
duas concepções desta mesma noção. Nos Princípios a definição de verdade eterna
difere daquela contida nas Cartas, onde a tese da livre criação é construída. Neles
78
Méditations AT IX, 51.
44
uma limitação quanto à abrangência do conceito que não acontece na
Correspondência. Pelo contrário, nesta a noção de verdade eterna terá um alcance
universal mediante sua designação como coisa, algo importante tanto para o
desenvolvimento da teoria da livre criação quanto para o debate entre os
comentadores. Aqui faremos o percurso dos Princípios às Cartas, no intuito de
metodologicamente compreendermos como se o alcance universal do conceito de
verdade eterna.
A noção de verdade eterna aparece nos artigos 48 e 49 dos Princípios:
Tudo o que cai sob nossa percepção, nós o consideramos ou bem
como uma coisa [res] ou uma certa afecção das coisas ou bem como
uma verdade eterna que não tem qualquer existência fora de nosso
pensamento
79
.
E mais adiante:
Visto que reconhecemos que não pode ocorrer que a partir de nada
algo venha a ser, então esta proposição a partir de nada nada vem
a ser é considerada não como alguma coisa existente (res aliqua
existens), nem tampouco como um modo da coisa, mas como uma
certa verdade eterna que tem [sua] sede em nossa mente e se chama
noção comum ou ainda axioma
80
.
Os artigos mostram uma clara distinção entre coisa e verdade eterna. Os dois
artigos asseguram que a verdade eterna existe exclusivamente no intelecto, enquanto
a coisa existe fora do pensamento como alguma coisa existente. Sendo assim,
poderíamos inferir que o termo coisa se refere exclusivamente à existência atual,
79
Principes. AT IX, art. 48.
80
Principes. AT IX, art. 49.
45
enquanto a verdade eterna à realidade objetiva no entendimento. Isto, porém, seria
algo precipitado. Conforme salienta Gleizer, coisa em Descartes não se aplica apenas
aos existentes, mas designa também a realidade objetiva da idéia, ou seja, a realidade
do conteúdo representado enquanto representado e ainda a existência possível da
essência
81
.
Ademais, esses artigos cuidam ainda de estabelecer a diferença entre as
noções primitivas gerais e particulares e as noções comuns ou máximas. As primeiras
são designadas por coisa ou afecção das coisas, pois, de acordo com Descartes:
Dentre os conteúdos que consideramos como coisas, os mais gerais
são a substância, a duração, a ordem, o número e, se é que há outros
do mesmo tipo, os que se estendem a todos os gêneros de coisas
82
.
Quanto às noções comuns, são designadas por ele como verdades eternas e,
como tais, não podem ter qualquer existência fora do nosso pensamento; a elas
correspondem os princípios ou regras da razão como, por exemplo, os de não-
contradição e de causalidade. Ele exemplifica:
Desse gênero são: é impossível que o mesmo seja e não seja ao
mesmo tempo; o que foi feito não pode não ter sido feito; aquele que
pensa, enquanto pensa, não pode não existir; e inúmeros outros que,
na verdade, não podem ser facilmente recenseados em sua
totalidade...
83
.
É muito importante notar que, segundo os Princípios, a verdade eterna
corresponde ao que pode existir no intelecto e equivale aos princípios da razão. O
81
M. A. Gleizer. Op. cit. p. 184.
82
Principes. AT IX, art. 48.
83
Idem.
46
termo coisa, por sua vez, possui um alcance maior, pois além de ser aplicado à
realidade objetiva da idéia, refere-se ainda ao que existe ou pode existir fora do
intelecto sejam coisas ou afecções delas, ou, como na versão francesa, todas as
coisas que têm alguma existência. A realidade visada pela realidade objetiva pode ter
ou tem existência fora do pensamento.
2.4 As verdades eternas nas Cartas
Ao contrário dos Princípios, as Cartas estabelecem a equivalência entre
verdades eternas e essências e consideram-nas coisa:
pois é certo que ele [Deus] tanto é autor da essência como da
existência das criaturas: ora esta essência outra coisa não é que as
verdades eternas; as quais eu não concebo emanar de Deus como os
raios do sol, mas eu sei que Deus é o autor de todas as coisas, e que
estas verdades são alguma coisa, e por conseguinte que ele é seu
autor
84
.
Segundo Gueroult, Descartes possui uma teoria das essências localizada na
Quinta Meditação. Seus estudos procuram mostrar que Descartes não admite
distinção entre essência e existência. Na verdade, as essências são as coisas
existentes, portanto exteriores, criadas por Deus
85
. Uma posição certamente oposta à
ortodoxia escolástica. Tomás de Aquino, por exemplo, considerava as essências o
mesmo que a natureza das coisas. Contudo, elas não foram consideradas criaturas,
mas eram compreendidas na própria essência divina. Uma vez que Descartes as
considera criadas, desaparece o arranjo escolástico da existência das essências no
intelecto divino, pois todas as essências são criadas.
84
A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT I, 152.
85
M. Gueroult. Descartes selon l’Ordre des Raisons, vol. 1, p. 374.
47
Essa teoria das essências exposta por Gueroult, por sua vez, deve enfrentar a
seguinte questão: como de um lado Descartes defende que as essências são as coisas
criadas, e por outro lado afirma a existência de naturezas verdadeiras, imutáveis e
eternas
86
? Segundo Gueroult, isso é perfeitamente compreensível se notarmos que as
essências são as verdades eternas, ou seja, “a essência de um corpo, enquanto
concebido por nós, é uma verdade eterna, sem ser fora de nós um corpo eterno, pois
fora de nós esta essência pode deixar de existir”
87
.
Quer parecer que a interpretação coloca Descartes portando uma concepção
muito próxima da de Ockham, uma vez que ambos estariam afirmando contra o
exemplarismo a existência somente das essências atuais ou coisas existentes criadas
imediatamente por Deus. Ockham, por sua vez, reduz as essências a meros nomes e,
por causa do seu contingentismo, não pode admitir essências ou naturezas verdadeiras
e imutáveis como o faz Descartes. A afirmação cartesiana da existência de naturezas
eternas e imutáveis, as quais, não sendo formadas pelo intelecto humano, impede de
concebê-las como meros nomes; mas principalmente impossibilita tomá-las como
verdade eterna no sentido empregado por Gueroult que, ao que tudo indica, é o
mesmo definido por Descartes nos artigos 48 e 49 dos Princípios, a saber, como algo
que existe no intelecto. O que impossibilita essa equivalência entre essência e
verdade eterna à maneira definida nesses artigos é o fato de Descartes designá-las nas
Cartas como coisa. A interpretação de Gueroult, que acredito ter presente a
dificuldade envolvida na teoria cartesiana da livre criação, pretende evitar dessa
maneira a existência exterior de essências eternas, porém criadas.
Se nos Princípios as verdades eternas equivalem aos princípios do
entendimento, tendo existência apenas nele, nas Cartas as verdades eternas, ou seja,
essências ou naturezas, não podem ser tomadas exclusivamente como princípios
inerentes à razão, pois, enquanto coisa, elas têm ou podem ter alguma existência fora
86
Cf. AT IX, 51.
87
M. Gueroult. Op cit. vol. 1, p. 376.
48
do pensamento. Assim sendo, é incorreto considerá-las exclusivamente como
realidade objetiva das idéias que as representam ou como noções comuns da razão, o
que não quer dizer que elas não possam ter também existência objetiva, porquanto
são inatas ao nosso espírito
88
. “Apenas, diz Gleizer, não se pode assimilar de forma
não problemática o ser das essências à realidade objetiva de suas idéias”
89
.
A noção de verdade eterna contida nas Cartas corresponde ao que nos
Princípios denominam-se noções primitivas, já que são elas que representam o que as
Cartas designam como verdades eternas, essências, naturezas, pois tendo ou podendo
ter existência fora do pensamento não se confundem com a realidade objetiva das
idéias que as representam
90
. Em suma, a noção de verdade eterna das cartas não é a
mesma que a dos Princípios. Ao considerá-las coisa e essências, Descartes lhes
atribui uma abrangência muito superior àquela imposta pelos Princípios, isto é, as
verdades eternas, segundo as Cartas, abrangem os princípios, as diversas classes de
verdades eternas – matemáticas, físicas, metafísicas e morais – e as essências.
Segundo Bréhier, a identificação entre verdades eternas e essências representa
algo importante e original em Descartes. Com efeito, as verdades eternas
compreendiam para uns as verdades matemáticas, para outros, as leis da natureza, ou
no caso de Suárez, a não repugnância ou a necessidade absoluta. Descartes, porém,
não apenas estabelece esta equivalência entre verdades eternas e essências, mas
afirma que elas foram criadas. A afirmação da criação das verdades eternas, por sua
vez, coloca Descartes em oposição a toda a tradição escolástica e, ao mesmo tempo,
possui um caráter tão original quanto radical.
A equivalência entre essências e verdades eternas permite-nos verificar ainda
que Descartes se distancia e se aproxima, em certa medida, de Suárez. O
distanciamento se deve ao fato de Descartes equivaler as essências às verdades
88
Cf. A Mersenne, 15 de abril de 1630. AT I, 145.
89
M. A. Gleizer. Op. cit. p. 185.
90
Idem.
49
eternas e considerá-las criaturas, enquanto para Suárez as verdades eternas não eram
as essências, mas a necessidade ou a não repugnância, nem poderiam ser criadas. A
proximidade entre ambos se dá porque consideram-nas – equivalham ou não às
essências – exteriores a Deus. Suárez em razão da necessidade e independência
absolutas; Descartes em razão da criação. Portanto, o termo verdade eterna não foi
cunhado por Descartes, embora a equivalência entre verdade eterna e essência seja,
segundo Bréhier, fruto da originalidade do seu espírito
91
. Bréhier acentua que, ao
fazer equivaler às essências as verdades eternas, o filósofo procura demarcar o caráter
distinto e discreto a ser atribuído às verdades eternas. Como atesta Descartes, distinta
é a percepção “que é tão precisamente separada das outras que absolutamente nada
mais contém em si além do que é claro”
92
.
Dizer que as verdades eternas são distintas significa dizer que são percebidas
separadamente, tendo evidência pontual, não podendo ser ordenadas numa hierarquia
de gêneros e espécies, na qual Descartes, diz Bréhier, “não senão um artifício de
classificação, e não um modo de penetrar as essências”
93
. A distinção revela ainda
que Descartes concebe as essências ou verdades eternas distintas do próprio Deus, ou
seja, fora, separadas, diferentes de Deus, contrariando a ortodoxia escolástica, para a
qual as essências não se separam de Deus, conforme assegurava Tomás:
Deus mesmo é a razão das coisas singulares; mas é preciso
investigar de que modo. Ora, a essência divina compreende nela
mesma o que de mais nobre em todos os seres, não por modo de
composição, mas de perfeição. Sendo assim, o conhecimento divino
pode compreender em sua essência o que de próprio em cada
coisa, em compreendendo em que cada coisa imita sua essência e é
91
E. Bréhier. The Creation of the Eternal Truths in Descartes’ System. In Descartes a collection of
critical essays, pp. 192-208.
92
Principes, AT IX, art. 45.
93
E. Bréhier. Op. cit. p. 198.
50
inferior à sua perfeição [...] Mas a razão das coisas no entendimento
divino não são múltiplas e distintas, senão na medida em que Deus
sabe que elas lhe são tornadas semelhantes de muitos e diversos
modos
94
.
Mais do que na distinção, Descartes insiste no caráter discreto e integral das
verdades eternas, devido a um impacto imediato sobre o conhecimento humano.
Porque discretas, elas m, tomadas à parte, evidência e suficiência próprias. Se a
evidência e suficiência se dessem apenas por sua assimilação a Deus, nosso
conhecimento das essências seria sempre incompleto, deficiente, o que para Descartes
não pode ser sustentado. Com efeito, não podemos conhecer as coisas tal como são
no intelecto divino, devido à infinitude dele em oposição à nossa finitude, nem nosso
intelecto possui a mesma extensão que o intelecto divino. As verdades eternas devem
ser, portanto, distintas, separadas de Deus; porque separadas, podemos conhecê-las
integralmente. Era a única maneira de Descartes solucionar um problema deixado
sem solução pela escolástica, a saber, o de como chegar a verdades que são certas
95
;
ou de outro modo, o de como garantir a auto-suficiência da razão.
Diante disso, era impossível para Descartes aceitar que essências tão
familiares e acessíveis ao conhecimento humano contivessem vestígio, mesmo
remoto, do intelecto infinito divino. Aceitar que as essências estão apoiadas sobre o
intelecto divino, sendo da mesma natureza que ele, implicaria, segundo Bréhier, em
aceitar que, por um lado, dada a natureza do intelecto divino, as verdades eternas
(essências) deveriam ser verdades (essências) em si, ou seja, não haveria possíveis,
mas apenas verdades necessárias; ou por outro, se subordinadas apenas ao intelecto
94
Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, I, cap, 55.
95
Cf. E. Bréhier. Op. cit. p. 197.
51
divino, elas teriam que ser apenas possíveis e não efetivas
96
, pois para terem
atualidade seria necessária a ação da vontade divina.
2.4.1 Verdades eternas verae aut possibiles
Já sabemos que as verdades eternas são as essências; que a aplicação do termo
coisa impossibilita compreendê-las no mesmo sentido dos Princípios. Resta ainda
saber quais são as essências envolvidas na teoria da livre criação.
Os medievais costumavam distinguir entre essências atuais e possíveis. Atuais
são as essências postas por Deus na existência; possíveis aquelas que não são
incompatíveis com a noção de ser em ato, ou seja, que não envolvem contradição. Os
possíveis possuem aptidão para existir, mas não existem; sua existência ficaria
condicionada à potência divina, a qual decide dentre eles quais serão criados. Na
concepção tomasiana, os possíveis atendiam a dois critérios a um tempo: o
princípio ontológico que é a essência divina, ou seja, a possibilidade possuía como
critério mais fundamental a compatibilidade com o ser, isto é, ser capaz de imitar a
essência divina; e o princípio lógico que é o princípio de não-contradição
97
.
Descartes, embora rompa com o esquema de explicação exemplarista das
essências, parece aplicar a distinção medieval entre essências atuais e possíveis às
verdades eternas ao aferir que as verdades eternas sunt tantum verae aut
possibiles
98
. Na verdade, não problema em falar de essências atuais sob uma
perspectiva cartesiana, a dificuldade reside no emprego do termo possíveis. Como
96
Cf. E. Bréhier. Op. cit. p. 196. Esta discussão será aprofundada oportunamente, quando
confrontarmos a posição de Suárez com a de Descartes.
97
Uma análise mais detalhada acerca da problemática discussão referente aos possíveis pode ser
encontrada em Alfredo Storck. Eternidade, Possibilidade e Emanação. In. Analytica. Vol. 7, 1, pp.
113-149.
98
A Mersenne, 6 de maio de 1630. AT I, 149.
52
mostramos, a partir de Ockham tal especulação não se colocaria mais, pois o
nominalismo cuidou de suprimir a realidade das essências no intelecto divino. Por
isso, interessa analisar a afirmação cartesiana a fim de descobrir o significado de
verae e possibiles atribuído às verdades eternas.
A afirmação cartesiana, segundo Marion, opera uma distinção muito nítida
entre verdades verae, que são as verdades contingentes e existentes, gozando de
efetividade, e as possibiles, as quais são entendidos como dados especulativos, no
caso, as verdades matemáticas, cuja verdade consiste na não-contradição. Ele explica
que a raiz dessa distinção encontra-se na conjunção latina aut, pois Descartes a usa no
sentido disjuntivo e não como conectivo et”, sendo o valor disjuntivo da conjunção
muito mais freqüente
99
. Portanto, dessa distinção emergem duas classes de verdades.
Com efeito, “as verdades são ou bem somente possíveis, ou bem apenas verdadeiras;
Descartes distingue nitidamente entre os dados puramente especulativos, aqui
matemáticos, cuja verdade exige apenas a não-contradição, e os dados contingentes
mas existentes cuja verdade exige a efetividade”
100
.
É correto afirmar que Descartes estabelece uma distinção. Apesar disso, as
duas classes de verdades são designadas verdades eternas, ou seja, verdades
eternas verae e verdades eternas possibiles. Se ele designa ambas as classes por
verdades eternas, é possível compreender cada uma delas de um modo distinto do
proposto por Marion, que ainda afirma que “Descartes fala de verdades verae aut
possibiles
101
. Descartes, porém, não afirma que as verdades são verae aut possibiles,
mas sim que “as verdades eternas são tantum verae aut possibiles”. A omissão parcial
da sentença esconde o problema contido na análise de Marion. Porque, se é como este
diz, então como tais verdades eternas seriam os contingentes existentes, cuja verdade
exige a efetividade? E o mais grave nessa interpretação é a justificativa segundo a
99
Cf. J.-L. Marion. Sur la Théologie Blanche de Descartes, p. 30.
100
Idem.
101
J.-L. Marion. Op.cit. p. 30.
53
qual a distinção torna-se mais precisa na oposição estabelecida entre a essência e a
existência das criaturas na carta a Mersenne de 27 de Maio de 1630:
Pois é certo que Deus é o autor tanto da essência quanto da
existência das criaturas
102
.
De acordo com Marion, às essências de que fala Descartes corresponderiam os
possibiles, enquanto do lado da existência das criaturas estariam as verdades verae.
Essa distinção entre as essências e as existências das criaturas reforçaria a distinção
entre os possíveis e as verdades contingentes, existentes e efetivas. Entretanto, ao que
tudo indica, Descartes não estaria sustentando verdades existentes, contingentes e
efetivas ao falar que Deus é autor tanto da existência quanto da essência das
criaturas
103
. Aliás, Descartes, na mesma carta, afirma claramente que as verdades
eternas são as essências e não as criaturas:
Ora, esta essência não é outra coisa que as verdades eternas
104
.
Se “as verdades eternas sunt tantum verae aut possibiles”, e se são as
essências, o termo verae designa outras coisas que “os dados contingentes mas
existentes, cuja verdade exige a efetividade
105
e, do mesmo modo, possibiles não se
refere exclusivamente às verdades matemáticas. Não se engana Marion quando
afirma que verae são as verdades efetivas, ele se engana ao tomá-las especificamente
como verdades contingentes.
As Cartas permitem concluir que as verdades eternas são designadas verae
porque concernem às verdades necessárias e efetivas. Com efeito, a equivalência
102
AT I, 152.
103
Cf. J.-L. Marion. Op.cit. p. 30.
104
A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT I, 152.
105
J.-L. Marion. Op.cit. p 30.
54
entre verdades eternas e essências permitem entender, como o próprio Descartes
afirma em várias cartas, as verdades metafísicas, matemáticas, físicas e morais
estabelecidas por Deus como necessárias. Essa interpretação se fundamenta em uma
passagem relevante de outra carta. Com efeito, escrevendo a Mesland, ele afirma que
Deus quis que algumas verdades fossem necessárias:
Que Deus quisesse que algumas verdades fossem necessárias, não é
dizer que ele as tivesse necessariamente querido
106
.
As verdades eternas verae designam, pois, as verdades que Deus quis
necessárias, embora não as tenha querido necessariamente como se sua vontade fosse
determinada por uma necessidade. Dizendo que Deus as quis como tal, Descartes
denota o caráter efetivo ou atual dessas verdades dado por Deus. Note-se que a
necessidade exigida exclui, por assim dizer, qualquer assimilação a verdades
contingentes. Portanto, as verdades eternas verae são as verdades eternas, portanto,
imutáveis e necessárias estabelecidas por Deus.
Tal interpretação também é muito condizente com as afirmações encontradas
nas Meditações (texto publicado três anos antes da carta citada) sobre naturezas
eternas e imutáveis que nos fazem notar clara correspondência entre as verdades
eternas verae e as essências ou naturezas imutáveis de que ele fala a Quinta
Meditação:
E o que aqui estimo mais considerável é que encontro em mim uma
infinidade de idéias de certas coisas que, embora talvez não tenham
nenhuma existência fora de mim, não podem ser consideradas um
puro nada; e, embora esteja, de certa forma, em minha liberdade
106
A Mesland, 2 de maio de 1644. AT IV, 118.
55
pensá-las ou não as pensar, não são, entretanto, formadas por mim,
mas possuem suas próprias naturezas verdadeiras e imutáveis
107
.
Elas são “uma certa natureza ou forma ou essência determinada [...], a qual é
imutável e eterna, que não é feita por mim e que não depende de meu espírito”
108
.
Para comprovar isso, basta apenas verificar a resposta dada às objeções de Gassendi
justamente a propósito da Quinta Meditação, encontrada nas Quintas Respostas, onde
Descartes afirma que as verdades eternas são imutáveis e eternas, porque Deus as
quis e as estabeleceu eternas e imutáveis
109
. Se essa interpretação procede, torna-se
problemático sustentar a assimilação das verdades eternas verae às verdades
contingentes.
Ao lado das verdades eternas verae estão colocadas as verdades eternas
possibiles. Quanto ao significado destes, podemos concordar com Marion, que
explica serem os possibiles, para Descartes, os dados especulativos cuja concepção
não envolve contradição, mas sem restringi-los aos objetos matemáticos. O problema
encontrado na concepção cartesiana referente aos possíveis não é tanto quanto a
serem eles os contraditórios, mas quanto a serem criados pela onipotência.
Certamente a criação dos possíveis é o que alimenta, como veremos oportunamente, a
interpretação possibilista.
Interessa, por enquanto, notar que em Descartes os possíveis não são
entendidos como arquétipos ou modelos no intelecto divino. Segundo ele, a
simplicidade e indiferença de Deus impedem qualquer espécie de precedência de
essências ou idéias à Sua ação. Uma vez que não há possíveis no intelecto divino, não
haverá possibilidade de escolha entre quais dentre eles serão atualizados, enquanto os
não atualizados permanecerão meramente possíveis no divino intelecto. Não podemos
entendê-los como algo a ser feito, pois não existe nenhuma espécie de projeto prévio
107
AT IX, 51.
108
Idem.
109
Cf. AT VII, 380.
56
em Deus. Com efeito, Ele é absolutamente simples, indiferente e opera na absoluta
instantaneidade.
Quando Descartes menciona nas cartas os possíveis, sempre os relaciona ao
que o intelecto finito concebe:
Considerando que nosso espírito é finito, e criado de tal natureza,
que ele pode conceber como possível as coisas que Deus quis
verdadeiramente possíveis, mas não de tal, que possa também
conceber como possíveis as que teria podido tornar possíveis, mas
que ele entretanto quis tornar impossíveis
110
.
A natureza do intelecto finito é delimitada pelo princípio de não-contradição.
O possível diz respeito àquilo que é concebido pelo intelecto humano. Segundo
Marion, trata-se dos dados especulativos concebidos de acordo com o princípio
supracitado. Porque não são contraditórios, o intelecto afirma que a existência não
lhes repugna, ou seja, que poderiam existir fora do nosso intelecto, que poderiam ser
feitos por Deus, sem que isto, porém, signifique que Deus os fez em algum tempo, os
faça ou os fará. Os possíveis parecem ser tratados como aquilo que o intelecto finito
concebe como não-contraditório, mas se restringem tão somente a este intelecto. Eles
não existem no intelecto divino; como o princípio de não-contradição, eles também
foram criados. Descartes vai ainda mais longe. Para que não se entenda que a
existência diz respeito somente ao que concebemos como possível, ele adverte que
Deus poderia fazer o que repugna à nossa maneira de pensar, ou seja, nossa maneira
de pensar, constrangida pela não-contradição, admite ser apto à existência somente o
que concorda com o princípio de inteligibilidade. A onipotência, por sua vez, poderia
fazer inclusive o que repugna ao intelecto humano. O critério da existência das coisas
não pode ser determinado pelo intelecto finito:
110
Cf. AT IV, 118.
57
contradições que são tão evidentes, que nós não podemos
representá-las ao nosso espírito, sem julgá-las inteiramente
impossíveis
111
.
Talvez não encontremos problemas maiores na concepção cartesiana dos
possíveis, principalmente se admitirmos como uma interpretação plausível que sua
realidade é apenas objetiva. No entanto, existe, de fato, uma dificuldade e, ao que
tudo indica, grave: Descartes garante que os possibiles são verdades eternas. Nas
Cartas, estas verdades não possuem o mesmo significado que aquele empregado nos
Princípios, a saber, o de noções comuns que existem no intelecto, mas são
equivalentes às essências e entendidas como coisa. Sendo assim, afirmar sua criação
não significaria atribuir um valor existencial aos possíveis e, conseqüentemente,
constituir um mundo povoado de possíveis, tal como quer o possibilismo? É plausível
falar que as verdades eternas possibiles criadas são os dados especulativos apenas,
sem que a noção de criação envolvida não exija sua posição existencial, ou seja,
como alguma coisa existente?
111
A Mesland, 2 de maio de 1644. AT IV, 118-120.
58
CAPÍTULO TERCEIRO
O alcance da teoria da livre criação
De posse da noção cartesiana de verdade eterna, a qual já mostramos ter uma
abrangência universal, pretendemos a partir de agora apresentar o alcance da teoria da
livre criação. Este alcance, ao contrário do que defendem alguns intérpretes, tal como
a noção de verdade eterna, é também universal, ou seja, o ato criador produz não
apenas as coisas existentes, conforme sustentara a ortodoxia escolástica, mas também
as verdades eternas.
3.1 A noção cartesiana de criação
Ao se referir à idéia de Deus, Descartes afirma entender um ser:
soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador
universal de todas as coisas que estão fora dele
112
.
Em outro lugar, ele diz que tal idéia é a de:
uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente,
onipotente e pela qual eu e todas as coisas que são (se é verdade que
há coisas que existem) foram criadas e produzidas
113
.
112
Méditations. AT IX, 32.
113
Idem. AT IX, 35-36.
59
A afirmação segundo a qual Deus é criador universal de todas as coisas que se
encontram fora dele ou criador de todas as coisas que são precisa de atenção. O que
significam as coisas que estão fora de Deus e todas as coisas que são?
Recordemos inicialmente que coisa em Descartes pode ser tanto aquilo que
possui existência atual, como se referir também à realidade objetiva da idéia, ou ainda
à existência possível das essências. Assim, o conceito de criação não se restringe ao
mundo ou às coisas corpóreas, mas abrange as verdades eternas, uma vez que estas
também podem ser designadas como coisas que são. Desse modo, a concepção de
criação cartesiana é universal, ao contrário da concepção escolástica, pois para
Descartes Deus é criador universal de tudo o que é, ou nos termos das cartas, Deus é
o autor tanto das essências quanto da existência das criaturas”
114
.
Se de um lado os escolásticos e Descartes concordam em que a criação é uma
produção mediante uma causalidade eficiente, por outro discordam, pois a escolástica
afirma que a divina causalidade eficiente é responsável pela produção exclusiva das
coisas existentes, ao passo que Descartes admite que ela é total
115
; isto quer dizer que
necessariamente todas as coisas (essências e existências) vêm a ser mediante uma
causalidade eficiente. Nas Quartas Respostas, ele oferece as razões pelas quais
defende a produção dos seres por meio dessa causalidade:
Quando se pergunta se alguma coisa pode se dar o ser a si mesma,
quer-se saber apenas se a natureza ou essência de alguma coisa
114
Carta a Mersenne, 27 de maio de 1630.
115
Vós me perguntais in quo genere causae Deus disposuit aeternas veritatis [em que gênero de
causa Deus dispôs as verdades eternas]? Eu vos respondo que in eodem genere causae [pelo mesmo
gênero de causalidade] que ele criou todas as coisas, ou seja, ut efficiens & totalis causa [como causa
eficiente e total]” (A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT I, 151-152).
60
pode ser tal que não tenha necessidade de causa eficiente para ser
ou existir
116
.
Assim, tudo o que é, na medida em que é, não foi criado se pôde a si
mesmo dar o ser ou a existência. O alcance da ação criadora é absoluto, isto é, requer
a vontade divina, abrangendo desde os princípios até as naturezas eternas e imutáveis
sobre as quais fala a Quinta Meditação. Mas tal afirmação significaria que essas
coisas continuariam a envolver uma existência absolutamente necessária e eterna,
que criadas? Seria, portanto, tudo contingente? Deveria haver, em contrapartida, uma
exceção à ação criadora, ou seja, algumas essências seriam criadas e outras, as
naturezas verdadeiras e imutáveis, incriadas. A resposta cartesiana autoriza uma única
exceção. Com efeito, Deus somente envolve uma natureza eterna e imutável que não
pode não existir. E as próprias essências, conquanto imutáveis, não são absolutamente
necessárias
117
.
Portanto, mesmo as essências eternas e imutáveis são necessariamente criadas.
Assim, não nada que dispense o ato criador, exceto a essência do próprio Deus
118
.
Com efeito, nos Princípios, é afirmado o reconhecimento pela mente de que a idéia
de Deus envolve uma “existência absolutamente necessária e eterna [...] de um ente
116
AT IX, 186.
117
“Não se deve dizer que, si Deus non esset, nihilominus istae veritates essent verae [se Deus não
existisse, essas verdades não seriam menos verdadeiras]: pois a existência de Deus é a primeira e a
mais eterna de todas as verdades que podem ser, e a única de onde procedem todas as outras” (Carta a
Mersenne, 6 de maio de 1630. AT I, 149-150). Procedem de Deus não, porém, por emanação, mas por
criação: “esta essência não é outra coisa que as verdades eternas; as quais eu não concebo emanar de
Deus como os raios [emanam] do sol, mas eu sei que Deus é autor de todas as coisas, e que estas
verdades são alguma coisa, e por conseguinte, ele é seu autor”. (A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT
I, 152).
118
Cf. E. M. Curley. Descartes on the Creation of the Eternal Truths. In The philosophical Review.
Vol. XCIII, n° 4. October. New York : 1984, p. 596.
61
sumamente perfeito”; idéia que “não é forjada por ela (a mente) nem exibe uma
natureza quimérica, mas uma verdadeira e imutável natureza que não pode não
existir”
119
. Por existência absolutamente necessária se pode entender aquela que
não depende de outro quanto ao existir. Algo cabível apenas a Deus, pois é o único
capaz de dar a si mesmo o ser.
Segundo a afirmação das Quartas Respostas
120
, que vimos pouco,
Descartes estabelece uma espécie de critério capaz de determinar o criado e distinguí-
lo do incriado. Algo é criado se sua produção necessita de uma causalidade eficiente
para ser ou existir. Aquilo que dispensa a causa eficiente pode ser declarado incriado,
pois sua natureza é tal que não depende de nenhuma outra coisa como causa de seu
ser ou existir. Descartes deixa entender que apenas Deus é incriado, posto que não é
produzido por uma causa eficiente que o precedesse
121
. Afora Deus, tudo,
absolutamente tudo, é criatura. Todas as coisas têm Deus como sua causa eficiente e
total, ou seja, elas dependem absolutamente Dele. De fato, a dependência dos seres
em relação a Deus se por criação, isto é, pela produção mediante uma causalidade
eficiente. Descartes rejeita qualquer outro gênero de dependência que não a causa
eficiente. Depender de Deus é ser criado. Isto vale, sobretudo, para as verdades
eternas, pois ele afirma a Mersenne na carta de 15 de abril de 1630, que as verdades
eternas “foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, tanto quanto
todo o resto das criaturas
122
.
119
AT IX art. XIV.
120
AT IX, 186.
121
Não cabe aqui discutir a concepção cartesiana de Deus como Causa Sui. Uma exposição mais
completa da teoria cartesiana da criação, algo fundamental para inserir a teoria da livre criação no seu
sistema, constitui objeto de investigação a ser desenvolvido mais tarde, no doutorado.
122
AT I, 145.
62
3.2 Dos princípios às essências: discussões em torno do alcance da tese
Cuidamos de salientar, quando falamos sobre Tomás, Ockham e Suárez, o
apreço devotado por eles ao princípio de inteligibilidade. Especialmente Ockham,
apesar de defender o voluntarismo e a contingência radical, reafirmou a validade do
princípio e sua inviolabilidade. Com efeito, embora Deus seja essencialmente livre,
sua vontade não é arbitrária e, portanto, não pode fazer o que é intimamente absurdo.
Descartes, ao contrário, defende a arbitrariedade da vontade divina veremos a seu
tempo – e, em suas reflexões sobre a tradição, tornava-se difícil entender como aquele
princípio fora mantido sem ter sido criado por Deus; e sem ser ele criado, como não
pensar em tomá-lo como incriado, levando-nos a concluir a existência de um outro
eterno que Deus. Talvez assim se justificasse a limitação da ação divina pelo
princípio de não-contradição. Por isso, Descartes não vê outra solução plausível
senão colocar todas as coisas sob a dependência divina, inclusive os princípios.
Vimos também que, comparando a noção de verdade eterna nas Cartas àquela dos
Princípios, a primeira equivale mais às noções primitivas do que às noções comuns,
pois estas existem no intelecto, enquanto aquelas existem ou podem existir fora do
intelecto, que são designadas por coisa. Isso nos coloca uma questão: como os
princípios da razão não são essências nem representações de essências, e uma vez que
a noção cartesiana de verdade eterna se aplica às noções primitivas, então estes
princípios ou noções comuns escapariam do alcance da tese da livre criação?
Todavia, mostramos igualmente que o termo coisa autoriza considerar as verdades
eternas tanto no sentido expresso nos Princípios quanto no das Cartas. Junte-se a isso
a noção de criação que, como a noção de verdade eterna, exige a criação de tudo que
se denomine coisa, afora Deus.
Os princípios lógicos são considerados por Descartes como noções comuns.
Na Regra XII, ele afirma que as noções comuns são coisas simples e universais e
estabelece uma classificação para as coisas simples:
63
as coisas denominadas simples em relação ao nosso entendimento
são puramente intelectuais, ou puramente materiais, ou comuns
123
.
As puramente intelectuais são conhecimento, dúvida, volição, etc; as
puramente materiais são figura, extensão, movimento, por exemplo. Sobre as noções
comuns ele diz:
são como que vínculos que unem outras naturezas simples entre si e
sobre cuja evidência se apóiam todas as conclusões dos raciocínios.
Tais como são as seguintes: duas coisas que são idênticas a uma
terceira são idênticas entre si; assim também, duas coisas que não
podem reportar-se a uma terceira da mesma forma também têm
entre si alguma diferença, etc.
124
.
uma clara distinção entre as noções comuns e as demais coisas ou
naturezas simples; as noções comuns não são coisas ou propriedades das coisas; são
vínculos, laços, os quais servem apenas para fazer o elo entre as outras naturezas
simples. Ou como explica Gouhier:
a expressão natureza simples comporta, a uma vez, realidades e
verdades: as noções comuns são espécies de naturezas simples que
servem de laços entre coisas consideradas, elas também, naturezas
simples
125
.
123
AT X, 419.
124
Idem.
125
H. Gouhier. La Pensée Métaphysique de Descartes, p. 274. Única ressalva: o sentido de natureza
aqui não possui o mesmo significado de essência.
64
Uma vez que as noções comuns servem apenas como conexão entre as outras
naturezas simples, não podemos entendê-las como idéias propriamente
126
, pois a idéia
é como imagem da coisa; também não são juízos, uma vez que as noções comuns não
são atos da vontade. São, portanto, noções que não introduzem nenhuma coisa no
pensamento, mas que, todavia, podem ser aplicadas a qualquer coisa. Os princípios
lógicos já se encontram eles mesmos introduzidos no pensamento. A idéia é “o
conceito de uma determinada coisa, enquanto a noção comum é um conceito puro,
sem objeto determinado
127
, não podendo ser também confundida com as essências
das coisas. Ora, por não serem essências, estariam os princípios lógicos fora do
alcance da tese da livre criação?
Inicialmente, nota-se que na Primeira Meditação, quando da instauração da
dúvida metafísica, Descartes pôs em questão as coisas simples e universais: extensão,
número, duração, entre outras. Todavia, sequer se fez menção às noções comuns ou
máximas, ou seja, aos princípios lógicos. Na Terceira Meditação, ao formular o
critério de verdade da clareza e distinção, Descartes considerou as idéias matemáticas
como verdadeiras ao lado do cogito, sem mencionar as noções comuns. De acordo
com as explicações de Forlin, a omissão das noções comuns na Primeira e na Terceira
Meditações se deve ao fato de “o objeto de consideração crítica da filosofia cartesiana
ser o conjunto de nossas opiniões ou juízos sobre a realidade
128
”, o qual constitui o
edifício a ser demolido pela dúvida metódica, a fim de ser reedificado sobre novos
alicerces. Porque o erro é encontrado nos juízos, tem razão Descartes em não
mencionar os princípios lógicos, pois estes não constituem problemas quanto à
decisão sobre o verdadeiro e o falso. Com efeito, tais princípios não são juízos,
propriamente falando, sobre idéias, pois não são atos da vontade, mas simplesmente
126
“Temos ainda outras idéias no tocante às noções comuns, e essas não são idéias de coisas,
propriamente falando; mas então a idéia é tomada em um sentido mais largo”. L’Entretien avec
Burman, p. 29.
127
E. Forlin. A Teoria Cartesiana da Verdade, p. 325.
128
E. Forlin. Op. cit. p. 322.
65
noções conhecidas sem afirmação ou negação. Por isso, na Exposição Geométrica
que se encontra junto às Segundas Respostas, Descartes afirma que as noções comuns
não carecem de provas:
...examinem diligentemente as proposições que não têm necessidade
de prova para ser conhecidas, e das quais cada um encontra as
noções em si mesmo, como o estas: que uma mesma coisa não
pode ser e não ser ao mesmo tempo; que o nada não pode ser a
causa de alguma coisa, e outras semelhantes
129
.
Eis a razão pela qual os princípios estariam livres do alcance da dúvida.
Uma vez que os princípios lógicos são verdades que precedem o nosso raciocínio,
parece nisto estar implícito que são indubitáveis. Podem preceder o nosso raciocínio,
mas nada pode preceder a ação divina
130
. Todavia, se é possível duvidar das verdades
matemáticas, não seria possível também duvidar das verdades expressas pelos
princípios lógicos? Forlin se pergunta, com razão, se “uma tal isenção não
compromete a radicalidade do projeto cartesiano de uma dúvida hiperbólica e
universal”
131
. A sua resposta é negativa.
Segundo ele, “não como introduzir a dúvida nos princípios lógicos”
132
.
Tais princípios não são juízos, não expressam propriedades de coisas; a relação que
estabelecem não é relação entre coisas, mas é uma relação puramente conceitual.
Assim, “não existe aqui, explica Forlin, uma relação externa, em que a idéia de uma
129
AT VII, 126.
130
E se os homens entendessem bem o sentido de suas palavras, não poderiam jamais dizer sem
blasfêmia que a verdade de qualquer coisa precede o conhecimento que Deus tem dela(A Mersenne,
6 de maio de 1630. AT I, 140-150). Parece que estas proposições que não m necessidade de provas
para serem conhecidas equivalem ao que Suárez designava verdade eterna, ou seja, os enunciados
eternos, que, para Descartes, devem ser criados.
131
E. Forlin. Op. cit. p. 322.
132
Idem, p. 326.
66
coisa é ligada à coisa de que ela é idéia por uma ação da vontade, isto é, não ocorre
aqui um juízo que acrescenta à idéia um valor objetivo. O que temos aqui é apenas
uma relação interna”
133
. Como a falsidade está no juízo, os princípios não podem ser
postos em dúvida e sua verdade está plenamente garantida
134
.
Segundo Forlin, se quiséssemos questionar a validade dos princípios lógicos,
seu alcance ontológico, seria possível através do questionamento da realidade da
existência para, em seguida, questioná-los em si mesmos. O argumento do sonho põe
em questão a existência material; o artifício do Deus enganador torna problemáticas
as naturezas matemáticas; mas isso não esgota todo o ser, uma vez que o pensamento
não é afetado. Aliás, além de ser o pensamento quem coloca em questão a realidade
material, ele mesmo não é sequer contestado. Na formulação do cogito é que o
pensamento sofre suspeita, sendo imediatamente confirmado. Baseado nisso, Forlin
conclui:
Os princípios lógicos nunca chegaram a perder integralmente o seu
solo ontológico (a existência inteligível ou pensante não foi
questionada), o qual, enquanto sobreviver, legitima necessariamente
os princípios. Os princípios lógicos, portanto, não são suscetíveis a
nenhum nero de dúvida: não são passíveis de uma dúvida natural
porque a experiência não sugere que as coisas, ao mesmo tempo,
sejam e não sejam uma impossibilidade de fato; por outro lado,
133
E. Forlin. Op. cit. p. 326. Esta relação interna se assemelha muito àquela considerada por Suárez – a
identidade lógica e recusada por Descartes, pois levaria a admitir algo cuja necessidade se imporia a
Deus.
134
“Se quiséssemos suspeitar da verdade de que <<uma mesma coisa não pode, ao mesmo tempo, ser e
não ser>>, estaríamos e não suspeitando que <<ser é não ser>> e que, portanto, <<pensar é não
pensar>> e, do mesmo modo, que <<eu não penso quando penso>>. Como mostra Aristóteles, a
tentativa de colocar em dúvida o princípio de contradição constitui a admissão da verdade de um tal
princípio; aqueles que o negam estão pressupondo sua verdade [Aristóteles. Metafísica. Livro IV, 1006
a.]” E. Forlin. Op. cit. p. 326.
67
não são passíveis da dúvida metafísica, porque, assim como não é
possível pensar que as coisas não sejam na medida em que são,
tampouco é possível pensar que não existo na medida em que penso,
ou melhor, tampouco é possível que eu de fato não exista na medida
em que efetivamente penso, e mesmo que eu não pense na medida em
que penso – há uma impossibilidade de direito
135
.
É preciso concordar com as afirmações de Forlin quanto a que os princípios
gozam de verdade e validade. Porém, não de forma absoluta ou em si mesmos,
conforme pretendemos mostrar. Pois, segundo a tese da livre criação e da noção de
criação cartesiana, tudo foi criado e, portanto, também os princípios. O fato de sua
criação sugere que eles não possuem validade e verdade absolutas. Sendo assim,
poderiam ser postos em dúvida. Ora, se o criado pudesse ser entendido como
necessariamente contingente, inclusive por Descartes, a tese da livre criação traria
uma suspeita mais radical quanto à inquestionabilidade dos princípios. É o caso, por
exemplo, da interpretação de Frankfurt, para quem a teoria cartesiana parece instaurar
uma dúvida ainda mais profunda, portanto, de direito, de modo a representar uma
ameaça ao sistema cartesiano, uma vez que essa tese poderia questionar a verdade e a
validade em si dos princípios lógicos; ou ainda Koyré, que, crendo ser um disparate a
teoria da livre criação, prefere supô-la abandonada por Descartes, sob o risco de
destruir o seu sistema
136
. Fato é que a tese da livre criação, autenticamente cartesiana,
não preserva os princípios lógicos sob qualquer espécie de impossibilidade lógica ou
metafísica, como se gozassem de verdade e validade absolutas ou em si, impondo-se
até mesmo à onipotência divina
137
. Em suma, Forlin defende a auto-suficiência dos
135
E. Forlin. Op. cit. p.329.
136
Cf. H. Frankfurt. Descartes on the Creation of the Eternal Truths. In The philosophical review,
LXXXVI, n° 1, pp. 50-53 e A. Koyré. Essai sur l’Idée de Dieu, pp. 14-24.
137
Os princípios têm verdade e validade garantidas porque assim aprouve a Deus, o qual poderia, pois
é onipotente, fazer com que fosse verdade o que é contraditório como, por exemplo, que a soma dos
68
princípios lógicos, não sendo possível qualquer espécie de dificuldade ou
questionamento a respeito deles. Mas a presente análise de Forlin não está no
contexto da tese da livre criação. As dificuldades surgem quando encaramos o fato de
esses princípios serem admitidos por Descartes como criados. Se admitirmos que a
tese da livre criação não deve ser levada em conta, por não pertencer ao sistema
cartesiano, então poderemos evitar qualquer indagação quanto à validade absoluta
dos princípios racionais. Todavia, admitindo a tese no âmbito do pensamento
cartesiano, se necessário ao menos tentar mostrar a compatibilidade entre a
necessidade das essências e dos princípios e a sua criação. É necessário então
analisar a situação dos princípios ante a tese da livre criação.
A maioria dos comentadores, embora discorde sob vários aspectos, reconhece
que a validade absoluta dos princípios do entendimento fica numa situação delicada
no contexto da teoria livre criação e tenta uma solução satisfatória, o que significa
que, apesar das dificuldades encontradas, é possível a compatibilidade entre a “teoria
das cartas” e o conjunto das obras canônicas de Descartes. Poucos são os que
acreditam no absurdo generalizado da tese cartesiana.
O reconhecimento do problema levou Gueroult a apontar uma solução que
consistiu em salvar algumas verdades do alcance da teoria cartesiana, apesar de estar
consciente de que não podemos assegurar que o Deus de Descartes “não possa criar o
que concebemos como impossível”
138
. Apesar do consciente reconhecimento do
problema, o intérprete sustenta que, segundo Descartes, há coisas impossíveis ao
próprio Deus. O fato de Descartes afirmar que “Deus pode fazer uma infinidade de
coisas que nós não somos capazes de compreender”
139
, por exemplo, fazer o que para
nós é impossível, uma vez que Deus é uma potência infinita por nada limitada, não
significa, segundo Gueroult, que para Descartes o impossível tenha perdido o seu
ângulos internos de um triângulo não fosse igual a cento e oitenta graus (Cf. A Mersenne, 27 de maio
de 1630 e a Mesland, 2 de maio de 1644. AT I, 152; AT IV, 118 respectivamente).
138
M. Gueroult. Descartes selon l’Ordre des Raisons,vol. 2, p. 25
139
Quatrièmes Réponses, AT VII, p. 249.
69
sentido. Não podemos sustentar que “a palavra impossível não tenha sentido nem
para Deus nem para as coisas”
140
. E ele argumenta que se não houvesse coisas
impossíveis, então tudo seria possível. Sendo assim, estaria acabada a oposição entre
possível e impossível, e o possível não teria mais sentido. Mas se é como quer
Gueroult, por que as afirmações de Descartes permitem-nos entender que Deus
poderia fazer o que é para nós impossível compreender?
Diante desse problema, uma vez que a argumentação, apelando para a perda
de sentido da palavra impossível não anula essa última dificuldade respaldada pelas
Cartas, Gueroult empreende nova argumentação:
A onipotência de Deus, que, por definição, envolve que nada lhe é
impossível, funda de um golpe uma ordem superior de
impossibilidade, a saber, tudo o que não poderia ser senão mediante
a negação dessa onipotência mesma
141
.
Em primeiro lugar, não é possível encontrar nos textos de Descartes,
precisamente no que diz respeito à doutrina da livre criação, nada que ofereça
sustentação a esta afirmação de Gueroult. Embora interessante, uma “ordem superior
de impossibilidade” não é algo afirmado por Descartes. Dizendo isso, Gueroult quer
garantir que coisas impossíveis ao próprio Deus, no caso, “o que limitasse sua
onipotência ou seu ser”, entendidos como idênticos. Ora, Deus exclui o nada. Assim
sendo, “tudo o que envolver o nada é um impossível absoluto”. Donde ele conclui:
é absolutamente impossível que Deus não seja; que seja enganador;
que possa fazer que o que é, ou foi, não seja; que possa violar o
140
M. Gueroult. Op. cit. vol 2, p. 26.
141
Idem.
70
princípio de causalidade; que possa criar seres independentes; que
não possa fazer o que nós concebemos como possível...
142
.
Instituída a ordem dos impossíveis absolutos, Gueroult a vincula aos
princípios lógicos, que são as noções comuns. E ainda afirma que dessas
impossibilidades são derivados os princípios de imutabilidade divina e o de não-
contradição. Quanto ao primeiro, funda-se “fora de nosso entendimento e por Deus
mesmo uma nova impossibilidade absoluta: a de mudar as verdades que ele [Deus]
livremente instituiu”
143
. Se houvesse mudança na vontade divina, isto apenas
mostraria imperfeição, o que estaria em desacordo com o ser perfeitíssimo. Quanto ao
segundo, Gueroult reconhece ser uma máxima inerente ao nosso entendimento, mas
ressalta que “ela deriva da idéia de infinitude do ser de Deus, que nos revela, com a
negação absoluta do nada pelo ser, todos os princípios que se encontram
implicados”
144
. De fato, é uma máxima inerente ao nosso entendimento; não nos
esqueçamos, porém, de que é uma máxima criada por um Deus absolutamente
onipotente e indiferente.
Por fim, Gueroult inaugura uma nova ordem de verdades necessariamente
decorrente da onipotência divina. Tais verdades compreendem os princípios que o
próprio Gueroult apresentou. De acordo com ele, essas verdades “são verdades
primeiras situadas de alguma maneira além das verdades eternas instituídas pelo livre
arbítrio divino [...] Elas não podem ter sido livremente criadas; são incriadas”
145
; a
violação dessas verdades é algo impossível em si, portanto, também para Deus.
Gueroult estabelece uma nova ordem de verdades, quer dizer, verdades eternas
incriadas e invioláveis, as quais pertencem a uma ordem superior. As verdades
eternas cuja necessidade foi instituída livremente pela onipotência divina são as que
142
M. Gueroult. Op. cit. vol 2. Todas as citações p. 26.
143
M. Gueroult. Op. cit. p.29.
144
M. Gueroult. Op. cit. p. 30.
145
M. Gueroult. Op. cit. p. 30.
71
envolvem impossibilidade para o nosso intelecto, não envolvendo impossibilidade
para Deus. A posição defendida por Gueroult é que há impossibilidades absolutas que
Deus não pode alterar, as quais envolvem verdades eternas incriadas; e
impossibilidades apenas para nosso entendimento, as quais envolvem as verdades
eternas instituídas por Deus, cuja necessidade não constitui uma impossibilidade à
onipotência
146
. Para as verdades incriadas, Gueroult estabelece um princípio de
contradição absoluto, inviolável, enquanto para as verdades eternas instituídas as
quais para ele são envolvidas pela tese da livre criação um princípio de
contradição que se imporia apenas ao nosso entendimento:
duas ordens de contradição: uma se refere à onipotência divina
e pertence à sua definição mesma; é absoluta, vale para o próprio
Deus e determina a esfera das impossibilidades divinas. A outra se
refere às capacidades de nosso entendimento e a seus princípios;
deriva, com este mesmo entendimento, da liberdade de Deus e
determina as impossibilidades apenas na visão do homem
147
.
Novamente, é preciso afirmar que a interpretação de Gueroult não deixa de ser
interessante, e honestamente pretende solucionar o grave problema que a tese
cartesiana encerra. Com efeito, a maioria dos autores considera possível inserir a tese
da livre criação no plano cartesiano de fundamentação metafísica da ciência. O que se
deve evitar, porém, é derivar das afirmações cartesianas teorias que o próprio
Descartes jamais sustentou.
No caso das duas ordens de verdades eternas, onde umas são menos
necessárias que as outras, das duas ordens de impossibilidades, das duas ordens de
contradição, Gueroult comete uma falha realmente grave. Sua posição segundo a qual
as verdades eternas, às quais diz respeito a teoria da livre criação, pertencem a uma
146
Cf. M. Gueroult. Op. cit. p.32.
147
M. Gueroult. Op. cit. p. 33.
72
ordem inferior de verdades cuja contradição é possível parece decorrer de uma
admissão exclusiva de verdade eterna conforme o artigo 49 dos Princípios, a saber,
como algo que existe exclusivamente no intelecto humano, como noções comuns
apenas, esquecendo o seu sentido universal apresentado nas cartas. É o que se
depreende de sua afirmação:
O princípio de contradição [nos Princípios recebe o nome de
verdade eterna ou noção comum] é apenas uma máxima derivada de
nossa idéia da infinitude do ser de Deus, que nos revela, com a
negação absoluta do nada pelo ser, todos os princípios que se
encontram implicados
148
.
Como já mostramos acima, a noção de verdade eterna nas Cartas não se
restringe às noções comuns, pois Descartes as define como “as essências das coisas”,
entendendo-as como sendo alguma coisa. Logo, existindo também fora do
entendimento humano, enquanto os princípios existem – e é isso que Descartes
afirma apenas no nosso intelecto
149
. Ademais, pode-se realmente, após
apresentarmos a noção cartesiana de criação, considerar cartesiana qualquer
afirmação que sustente algo incriado, exceto Deus?
Portanto, a interpretação de Gueroult encontra-se em desacordo com a própria
posição de Descartes. Toda a tentativa de Gueroult consiste em tornar cartesiana a
argumentação de que há verdades inatingíveis pela doutrina da livre criação das
verdades eternas, princípios externos à razão humana, que envolvem impossibilidades
absolutas, porque fundados na onipotência, ao contrário dos princípios sediados no
intelecto humano. No entanto, o exame atento das passagens relevantes das cartas
deixa ver muito claramente que a doutrina desautoriza tal interpretação.
148
M. Gueroult. Op. cit. p. 30.
149
Principes, AT IX, art. 49.
73
Penso que todas essas tentativas de preservação dos princípios lógicos, dando-
lhes um valor absoluto de validade e verdade são fruto do convencimento da
incompatibilidade entre criação e necessidade. Admitir a criação das verdades eternas
parece ser o mesmo que enredar-se em incertezas e inseguranças danosas para a
estabilidade teórica pressuposta à sustentação e eficácia da racionalidade humana.
74
CAPÍTULO QUARTO
Justificação filosófica
Os capítulos precedentes procuraram mostrar a noção cartesiana de verdade
eterna juntamente com as dificuldades levantadas pelos intérpretes do cartesianismo.
Saber, contudo, o que Descartes entende por verdade eterna não satisfaz totalmente a
curiosidade filosófica. É preciso procurar conhecer as razões pelas quais ele sustentou
uma posição tão adversa à tradição escolástica.
Suas investigações sobre as principais doutrinas escolásticas lhe provocavam
certa estupefação, por causa das graves contradições encontradas nessas doutrinas.
Diante disso, ou abandonavam-se as teses tradicionais em favor da criação das
verdades eternas, garantindo com isso a absoluta soberania divina e um conhecimento
certo acerca de Deus; ou se insistia em recusar esta descoberta singular, o que
induziria inevitavelmente, segundo Descartes, à sustentação de absurdos teóricos e
blasfemos sobre Deus, oriundos da ignorância dos que mantinham esta opinião, por
não entenderem o conteúdo exato de suas palavras
150
.
Especialmente dois grandes autores figuram como alvo de oposição, a qual
permitiu Descartes desenvolver sua doutrina: Tomás de Aquino e Suárez. A
rivalidade teórica contém dois temas centrais. Quanto a Tomás, é predominante o
debate concernente à simplicidade divina. Descartes percebe que a concepção
tomasiana é um tanto parcial, por desconsiderar a exigência da simplicidade ao tratar
das faculdades divinas. O segundo e principal alvo dos ataques cartesianos é a
doutrina de Suárez. Este, no entender de Descartes, preconiza a independência
absoluta das verdades eternas, considerando-as incriadas, às quais o próprio poder
divino estaria subordinado. Como as teorias desses autores, segundo Descartes,
150
Cf. A Mersenne, 6 de maio de 1630. AT I, 149.
75
acarretam problemas intransponíveis, ele não vê outra solução que propor a criação
das verdades eternas como a única alternativa plausível.
4.1 A simplicidade divina
Quando no primeiro capítulo foi exposto o pensamento tomasiano, apontamos
especialmente sua concepção de simplicidade, a saber, que o simples exclui a
composição tanto corpórea quanto de matéria e forma
151
. Salientamos principalmente
que a simplicidade consiste na identidade entre essência e existência em Deus.
Embora Descartes não negue tais afirmações sobre Deus, seu conceito de
simplicidade divina difere profundamente do de Tomás. Com efeito, segundo
Descartes, a simplicidade divina não é devidamente apreendida na ausência de
composição corpórea ou de matéria e forma. Para termos uma noção correta da
simplicidade, insiste Descartes, é suficiente atentarmos à idéia que possuímos de
Deus, a qual “nos ensina que nele há somente uma única ação, totalmente simples e
pura”
152
. Justamente nisto consiste a absoluta simplicidade divina. Claramente ele
entende que a concepção tomasiana se não é de todo incorreta, é sem a menor dúvida
parcial, incompleta. Pode-se admitir que Deus não seja composto de corpo nem de
matéria e forma e que nele essência e existência sejam idênticas. Entretanto, se
queremos realmente ter uma noção verdadeira de Sua simplicidade, é necessário
aprofundar o grau dessa simplicidade, ou seja, compreender que a simplicidade
divina, porque absoluta, exclui qualquer espécie de composição ou distinção, ne
quidem ratione [nem mesmo de razão, ou seja, logicamente]
153
.
O alerta cartesiano à compreensão de que a simplicidade divina não pode ser
considerada parcialmente atinge frontalmente a tese tomasiana, segundo a qual em
151
Cf. Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 3, a 1, 2.
152
A Mesland, 2 de maio de 1644. AT IV, 119.
153
A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT I, 153.
76
Deus a inteligência é distinta da vontade. Com efeito, como vimos no capítulo
primeiro, as essências das coisas criadas preexistem em Deus como inteligíveis e são
identificadas à sua inteligência, segundo Tomás. Contudo, quando atualizadas, as
essências derivam de Deus como objeto da vontade, pois “pertence à vontade o
impulso de realizar aquilo que foi concebido pela inteligência”
154
. Assim, a
inteligência divina concebe, cabendo à vontade criar:
A ciência divina é causa com a vontade. Não é necessário que tudo
o que Deus sabe, seja, ou fosse, ou haja de ser, mas somente aquilo
que ele quer que seja ou que ele permitir ser. Está na ciência de
Deus que algo possa ser, mas não que o seja
155
.
Nesta afirmação de Tomás aparecem explicitamente importantes teses
rejeitadas por Descartes, tais como a da distinção entre vontade e intelecto e a da
precedência deste àquela. A doutrina tomasiana e escolástica das faculdades divinas
explicavam a distinção entre as faculdades divinas estabelecendo entre elas uma
distinção chamada de razão raciocinada cum fundamento in re, ou seja, uma distinção
operada na e pela razão, mas com fundamento na natureza das faculdades. Com
efeito, cada faculdade possui um objeto próprio, isto é, o objeto do intelecto divino é
a verdade, e o da vontade o bem. Assim, o intelecto pode entender o bem, mas não
pode desejá-lo, nem a vontade conhecer a verdade. É “a natureza do intelecto que
determina a natureza do querer”, isto é, para que um ser tenha vontade é necessário
antes que tenha entendimento, pois “a vontade de um ser, considerada nela mesma,
supõe sua natureza já constituída pelo intelecto do qual ela depende”
156
.
Havendo tal distinção, é preciso, de acordo com a Tomás, definir qual
faculdade tem prioridade em relação à outra. Esta prioridade recai sobre o intelecto.
154
Tomás de Aquino. Suma teológica, I, q 19, a 4.
155
Tomás de Aquino. Suma Teológica, I, q 14, a 9.
156
E. Gilson. La liberté chez Descartes et laThéologie, p. 68.
77
De fato, quanto à ordem, ele entende que a razão antecede a vontade, porquanto, para
que algo seja feito, é necessário que antes seja concebido pelo intelecto. Tal
prioridade se esclarece quando se tem em mente, por exemplo, a explicação
tomasiana, inspirada em Aristóteles, da causa final, a saber, ela é primeira na intenção
e última na concretização. Assim, pode-se afirmar que as essências verdadeiras das
coisas existem previamente no intelecto divino, cabendo à vontade divina atualizá-
las, segundo os ditames deste intelecto. Tomás defende que intelecto e vontade em
Deus estão sempre em perfeito acordo, justamente porque o intelecto precede e
determina a vontade.
Para Descartes, no entanto, essa concepção da distinção entre as faculdades
está em desacordo com a absoluta simplicidade divina e esbarra em dificuldades
graves, que ele pretende evitar satisfatoriamente. De fato, se distinguimos em Deus o
intelecto da vontade, somos levados a afirmar que sua liberdade é orientada pelas
determinações do primeiro, ou seja, pelas exigências intelectuais ou lógicas. Por isso,
Descartes afirma:
Em Deus é um só o querer e conhecer; de modo que no mesmo [ato]
em que ele quer alguma coisa, ele a conhece, e somente por isso uma
tal coisa é verdadeira
157
.
A simplicidade divina para Descartes deve ser absoluta. Por isso, ele recusa
amenizar esta exigência apelando para a distinção de razão. É a própria simplicidade
divina que não permite distinção entre as faculdades nem precedência de uma à outra,
ne quidem ratione. Se na passagem acima ele afirma somente a identidade entre as
faculdades, em outra ele fornece o conteúdo total de sua concepção:
157
A Mersenne, 6 de maio de 1630. AT I, 149-150.
78
Eu digo que ex hoc ipso quod illas ab aeterno esse voluerit &
intellexerit, illas creavit [...] Pois em Deus é uma mesma coisa
querer, entender e criar, sem que um preceda o outro, ne quidem
ratione
158
.
A absoluta simplicidade, além de impedir a distinção, impugna qualquer
prioridade ou submissão de uma das faculdades divinas em relação à outra; e
reivindica ainda que as verdades eternas devem ser criadas, que querer, entender e
criar em Deus são a mesma coisa. Portanto, está descartada qualquer outra
possibilidade de existência das verdades eternas que dispense sua criação. Assim, não
havendo nenhum fundamento em Deus para a distinção ou hierarquia entre suas
faculdades, Descartes poderá contestar os que submetem a vontade de Deus ao
intelecto, tal como veremos a seu tempo, assegurando que as verdades eternas
dependentes do intelecto Dele são também dependentes da vontade, e se fossem
independentes de uma faculdade seriam igualmente independentes da outra
159
.
Uma vez defendida a simplicidade absoluta, caracterizada pela unidade entre
vontade, intelecto e ação criadora, resulta o desaparecimento da hierarquia,
precedência ou submissão da vontade ao intelecto divino. A mais significativa
conseqüência, porém, consiste na concepção da vontade divina como absoluta
indiferença, isto é, o fato de essa vontade totalmente arbitrária não agir orientada pela
inteligência, ou mais precisamente, em razão de qualquer inteligibilidade, e tampouco
ser orientada em razão de qualquer finalidade. A vontade divina não é motivada por
qualquer consideração de ordem racional ou moral previamente estabelecida pelo
158
“No mesmo ato pelo qual ele as quis e as compreendeu [as verdades eternas] desde toda a
eternidade, ele as criou”. (A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT I, 152). Embora o termo ato não
apareça, julgamos mais apropriado usá-lo, já que, segundo o próprio Descartes, “a idéia que temos de
Deus nos ensina que nele somente uma única ação [grifo nosso], totalmente simples e pura” (A
Mesland, 2 de maio de 1644. AT IV, 119).
159
Cf. M. A. Gleizer. Op. cit. p. 186.
79
intelecto divino ou por algo externo a Deus; essa vontade institui arbitrariamente
tanto as essências quanto as existências.
A Mersenne Descartes escreve:
Vós perguntais também que necessidade teve Deus para criar essas
verdades? E eu digo que ele foi tão livre para fazer que não fosse
verdade que todas as linhas tiradas do centro para a circunferência
fossem iguais, como para não criar o mundo
160
.
A pergunta enviada por Mersenne sugere existir certa necessidade, segundo a
qual Deus deve criar. Tal necessidade diria respeito às essências preexistentes no
intelecto divino, às exigências racionais determinadas pelo princípio de não-
contradição, defendidas pelos escolásticos? Ou referir-se-ia a exigências exteriores a
Deus preconizadas por Suárez, o qual supõe que a necessidade das verdades regula
externamente a ação divina? Ou ainda, ficando apenas com o que interessava a
Mersenne a necessidade e inviolabilidade das verdades matemáticas –, a resposta
cartesiana lhe é dada evocando a onipotência divina capaz de fazer circunferências de
raios desiguais
161
. A indiferença da vontade divina cartesiana repudia toda espécie de
exigência, seja interna ou externa, metafísica, lógica ou moral que se imponha à ação
criadora:
eu não ouso nem mesmo dizer que Deus não pode fazer uma
montanha sem vale, ou que um e dois não sejam três [...] Eu digo
somente que tais coisas implicam contradição em minha
concepção
162
.
160
A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT I, 152.
161
Cf. J.-L. Marion. Op. cit. pp. 161-178.
162
A Arnauld, 29 de julho de 1648. AT V, 224.
80
Nem mesmo a necessidade das verdades eternas pode determinar ou orientar a
ação de Deus, pois à sua onipotência estão submetidos, além da necessidade, o
verdadeiro e o bom
163
. Não apenas as motivações de ordem racional, mas também
aquelas de ordem moral:
“... o ordem, nem lei, nem razão de bondade e de verdade que
não dependa dele; de outra maneira (como eu dizia um pouco
precedentemente), ele não teria sido totalmente indiferente a criar as
coisas que ele criou
164
.
Algo é verdadeiro porque estabelecido por Deus, e não o contrário, isto é,
como se sua verdade existisse independentemente Dele
165
. E o que é dito a respeito
do verdadeiro é válido para o que é bom, ou seja, a bondade da criação é precedida
pela preordenação divina
166
. Isso quer dizer que algo é bom porque feito por Deus, e
não o contrário. Com efeito, “Deus não pode ter sido determinado a fazer que os
contraditórios não possam ser conjuntamente, e, por conseguinte, ele poderia fazer o
contrário”
167
.
De que a vontade divina seja totalmente indiferente, resulta que ela seja
mutável? Este problema aparece claramente na comparação entre Deus e um rei,
formulada no diálogo imaginário contido na carta de 15 de abril de 1630:
dirão que, se Deus estabeleceu estas verdades, ele as poderia
mudar como um rei às suas leis; a que é preciso responder que sim,
163
Cf. A Arnauld, 29 de julho de 1648. AT V, 224.
164
Sixièmes Réponses. AT IX, 235.
165
Cf. A Mersenne, 6 de maio de 1630. AT I, 149.
166
Cf. Sixièmes Réponses. AT IX, 235.
167
A Mesland, 2 de maio 1644. AT IV, 118.
81
se sua vontade pode mudar. – Mas eu as compreendo como eternas e
imutáveis. – E eu julgo o mesmo de Deus
168
.
A comparação entre Deus e um rei, entretanto, aparentemente autorizaria
compreender que Deus pode mudar seus decretos quando lhe aprouver, uma vez que
um rei o pode. Todavia, neste diálogo é defendida a posição de que a vontade divina é
imutável. E porque a vontade divina é imutável, as verdades eternas também o são.
Desse modo a eternidade das verdades eternas vem não de que elas se imponham à
vontade de Deus, mas do fato desta vontade ser imutável. Tais verdades não seriam
verdades eternas se Deus não as tivesse assim estabelecido, conforme Descartes
mesmo declara na carta a Mersenne de 27 de maio de 1630.
A indiferença assinala que não houve motivação ou determinação alguma
sobre a ação divina para que fizesse o mundo desta maneira e não de outra. Porém,
uma vez instituídas estas verdades, ele não as muda, conforme se afirma a Gassendi:
Quanto ao que vós dizeis que ‘vos parece difícil ver estabelecida
alguma coisa de imutável e eterna outra que Deus’, teríeis razão se
se tratasse de uma coisa existente, ou somente se eu estabelecesse
alguma coisa de tal modo imutável que sua imutabilidade mesma
não dependesse de Deus [...] Mas penso que, porque Deus assim o
quis e assim as dispôs, elas são imutáveis e eternas
169
.
Para Descartes nada há que impossibilite a criação de coisas imutáveis e
eternas, pois, para algo ser, é necessário depender de Deus, ut efficiens & totalis
causa. Assim, por exemplo, se “Ele quis que os três ângulos de um triângulo fossem
168
AT I, 145-146.
169
Cinquièmes Réponses. AT VII, 380.
82
necessariamente iguais a dois retos, é agora verdade que isto é assim, e não pode ser
de outra maneira”
170
.
Da concepção da vontade divina como absolutamente livre e indiferente
resulta um problema que Descartes deverá enfrentar, a saber, a imperfeição da
liberdade em que está envolvida a indiferença da vontade, tal como ele apresenta na
Quarta Meditação:
Esta indiferença que sinto, quando não sou impelido para um lado
mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo
grau de liberdade, e antes faz parecer um defeito no entendimento do
que uma perfeição na vontade
171
.
Todavia, o suposto problema encontrado, na verdade, não existe. De fato,
ele nega que a indiferença possa constituir uma perfeição da liberdade humana,
considerando-a antes um defeito. Cabe perguntar se o conceito de indiferença se
aplica do mesmo modo à liberdade humana e à divina, ou seja, se caracterizando uma
imperfeição no homem igualmente o será em Deus.
Descartes não pretende conceber univocamente a indiferença da vontade. Pelo
contrário, ele assegura que a indiferença pertence realmente à liberdade divina,
constituindo nela uma suprema perfeição; que a liberdade de indiferença em Deus
não tem qualquer identidade com a nossa e não supõe qualquer defeito ou
imperfeição. A indiferença convém à liberdade humana em um sentido diverso do
conveniente à liberdade divina; como os demais atributos, a indiferença não pode
convir a Deus e às criaturas univocamente
172
.
170
Sixièmes Réponses. AT IX, 233.
171
AT IX, 46.
172
Cf. Sixièmes Réponses. AT IX, 233.
83
A indiferença humana, segundo as Meditações
173
, possui dois sentidos:
negativamente, compreende um defeito no entendimento; positivamente, significa
poder escolher entre contrários; poder fazer ou não fazer algo. Como, para Descartes,
Deus é onisciente, fica, por conseguinte, descartada a indiferença negativa. Quanto à
indiferença positiva, deve-se notar que a liberdade da vontade divina não se
caracteriza propriamente como livre-arbítrio, pois, como já afirmamos mais acima,
não qualquer precedência de objetos entre os quais Deus haveria de escolher, isto
é, não opções alternativas que ele deveria considerar e pelas quais ele deveria se
decidir. Isso reacenderia a errônea concepção de algo outro eterno que Deus, que
deveria ser independente dele e, portanto, limitar o poder divino. Para Descartes, em
suma, “uma inteira indiferença em Deus é uma prova muito grande de sua
onipotência”
174
.
4.2 A absoluta dependência das verdades eternas
No primeiro capítulo, expusemos a doutrina suareziana das verdades eternas,
salientando que o fundamento da necessidade dessas verdades encontra-se fora das
faculdades divinas, tal como se depreende da seguinte passagem:
não são verdadeiras porque conhecidas por Deus, antes elas são
precisamente conhecidas devido à sua própria verdade, de outro
modo, seria impossível dar qualquer razão pela qual Deus
conhecesse necessariamente sua verdade, pois se sua verdade
procedesse de Deus mesmo, esta poderia proceder por intermédio
da vontade de Deus, assim não procederia da necessidade, mas da
vontade
175
.
173
Cf. AT IX, 46.
174
Sixièmes Réponses. AT IX, 233.
175
Suárez. Disputationes Metaphysicae, XXXI, s. 12, § 40.
84
De acordo com essa passagem, a única maneira de algo proceder de Deus é
por meio da vontade, a qual contradiz a necessidade absoluta, já que a vontade produz
o finito. Dessa maneira, será forçoso concluir que a necessidade das verdades eternas
consiste na própria necessidade da verdade da qual elas procedem. Essa teoria
proposta e defendida por Suárez parecia sugerir que as verdades eternas são
independentes de Deus. A questão em torno da dependência ou independência
absoluta das verdades eternas é o núcleo da discussão entre Descartes e Suárez.
Contra este, o pensamento cartesiano sustentará que as verdades eternas são
absolutamente dependentes de Deus.
O primado da dependência absoluta, que exige que todas as coisas devem ser
criadas, não se encontra exclusivamente nas cartas sobre a teoria da livre criação.
Conforme apresentamos no capítulo terceiro, nas Meditações ele é evocado quando
Descartes afirma que concebe Deus como criador universal
176
, pelo que devemos
entender: autor tanto da essência quanto da existência das criaturas
177
. A dependência
mediante criação fundamenta-se ainda numa importante passagem das Quartas
Respostas:
Quando se pergunta se alguma coisa pode se dar o ser a si mesma,
quer-se saber apenas se a natureza ou essência de alguma coisa
pode ser tal que não tenha necessidade de causa eficiente para ser
ou existir
178
.
Por tudo isso, vê-se claramente em Descartes a admissão de que todas as
coisas dependem de Deus e que tal dependência pode se dar por meio de uma ação
criadora, ou seja, aquela que requer Deus como causa eficiente, não sendo possível
176
Cf. Méditations. AT IX, 32.
177
Cf. A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT I, 152.
178
AT IX, 186.
85
falar de seres ou de verdades eternas independentes nem admitir outro gênero de
dependência. Podemos citar como exemplo os dois mais importantes gêneros de
dependência encontrados na tradição filosófica, a saber, o exemplarismo, cujo tipo
tomasiano apresentamos no primeiro capítulo, em que nos é explicado que as coisas
criadas dependem de Deus mediante a causalidade eficiente, enquanto as essências ou
exemplares das coisas, não podendo ser criados, dependem de Deus através da
participação; e o emanacionismo que rejeita a criação ao desconsiderar a radical
distinção entre o ser de Deus e o das criaturas, culminando num panteísmo. Tanto aos
partidários do exemplarismo quanto aos do emanacionismo, Descartes objeta que
concebe as verdades eternas como criadas por Deus
179
. Além do exemplarismo e do
emanacionismo, a teoria de Suárez causava certo incômodo a Descartes, por
equivocar-se profundamente acerca do verdadeiro Deus. Em explícita objeção à
passagem das DM acima citada, Descartes assegura:
Quanto às verdades eternas, digo que sunt tantum verae aut
possibiles, quia Deus illas veras aut possibiles cognoscit, non autem
contra veras a Deo cognosci quasi independenter ab illo sint
verae
180
.
A total dependência das verdades eternas, segundo Descartes, não prejudica
em nada sua necessidade:
179
Cf. A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT I, 152. Segundo Marion esta crítica é especialmente
destinada a Bérulle, o qual usa o paradigma solar para explicar a emanação das verdades eternas do
Verbo divino, o sol intelectual. Tais verdades seriam dependentes de Deus, porém incriadas (Cf. J.-L.
Marion. Sur la Théologie Blanche de Descartes, pp. 140-143).
180
são tanto verdadeiras ou possíveis, somente porque Deus as conhece como verdadeiras ou
possíveis; mas, ao contrário, não digo que sejam conhecidas por Deus como verdadeiras à maneira de
verdades existentes independentemente dele”. A Mersenne, 6 de maio de 1630. AT I, 149.
86
Que Deus tenha querido que algumas verdades fossem necessárias,
não quer dizer que ele as tenha querido necessariamente; pois uma
coisa é querer que elas fossem necessárias, e outra é querer
necessariamente ou ser necessitado a querer
181
.
Ademais, essa dependência diz respeito tanto ao intelecto quanto à vontade. A
simplicidade divina repudia, conforme mostramos, qualquer espécie de distinção
entre as faculdades divinas. Dessa maneira, Descartes pode garantir que as verdades
eternas não dependem exclusivamente de uma faculdade divina como queria o
exemplarismo sem ser por isso levado a propor a independência delas. Tais
verdades dependem de Deus, quer dizer, do seu intelecto e de sua vontade, sem que
isso promova qualquer conseqüência desastrosa à necessidade das verdades, como
temia Suárez, que não conseguia conceber a dependência de algo em relação a Deus a
não ser por meio da vontade, o que invalidaria a necessidade absoluta dessas
verdades.
Na doutrina de Suárez é afirmado que Deus conhece as verdades eternas em
razão da própria verdade delas e as conhece necessariamente. No entender de
Descartes, todavia, isso equivale a dizer que as verdades eternas são independentes de
Deus e que elas precedem o conhecimento divino, o que submete Deus à necessidade
e esvazia a sua onipotência. Ademais, afirmar a independência das verdades equivale
a ignorar o verdadeiro Deus e torná-lo sujeito a coisas que, na verdade, lhe são
sujeitas:
É, com efeito, falar de Deus como de um Júpiter ou Saturno, e
sujeitá-lo ao Estige e aos Destinos, dizer que essas verdades são
independentes dele
182
.
181
A Mesland, 2 de maio de 1644. AT IV, 118-119.
182
A Mersenne, 15 de abril de 1630. AT I, 145.
87
A fim de evitar tal erro ou blasfêmia é necessário defender que as verdades
eternas foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, assim como todo
o resto das criaturas
183
. somente um modo de garantir a necessária dependência
das verdades eternas em relação ao verdadeiro Deus, a saber, admitindo que elas
foram criadas.
A tese da independência das verdades eternas supõe ainda sua precedência ou
anterioridade ao conhecimento divino. A anterioridade das verdades eternas significa
que a verdade precede o intelecto e a ação de Deus, ou conforme Suárez que “elas são
precisamente conhecidas devido à sua própria verdade”
184
. De acordo com ele, Deus
não poderia criar o homem de modo diferente deste que constitui a sua essência como
animal racional, pois a existência humana é condicionada à verdade de sua essência e
tal verdade determina simultaneamente a ação e o intelecto de Deus. Trata-se da tese
da necessidade incondicionada das verdades eternas, cuja conseqüência é a admissão
de verdades eternas necessariamente necessárias, independentes de Deus, cuja
necessidade se impõe à sua ação. Ao que Descartes adverte:
E se os homens entendessem bem o sentido de suas palavras, não
poderiam jamais dizer sem blasfêmia que a verdade de qualquer
coisa precede o conhecimento que Deus tem dela
185
.
A independência das verdades eternas, a concepção de que sua necessidade
procede da própria verdade e não de Deus, esvazia a onipotência divina. Com efeito,
concebendo que a ação divina é previamente determinada por considerações de
ordem metafísica, lógica ou moral, o sumo poder de Deus perde toda a sua força e
alcance. Como afirmar que Deus é onipotente, se ele pôde fazer o homem segundo
a exigência da própria essência deste? Que leis, às quais a natureza em geral obedece,
183
Cf. A Mersenne, 15 de abril de 1630. AT I, 145.
184
Suárez. Disputationes metaphysicae, XXXI, s. 12, § 40.
185
A Mersenne, 6 de maio de 1630. AT I, 149.
88
determinaram previamente a ação criadora, a qual não poderia jamais estabelecer a
criação de outro modo que o estabelecido? E como não afirmar que tudo isso
culminará no pressuposto de que algo outro eterno que Deus e, ao que tudo indica,
mais poderoso que Ele?
Ante essas inevitáveis conseqüências, Descartes salienta que Deus é “infinito
e onipotente”
186
, que é uma causa cuja potência ultrapassa os limites do
entendimento humano”, enquanto as verdades eternas “são alguma coisa de inferior e
sujeita a esta potência incompreensível
187
. É verdade que a necessidade das verdades
eternas se impõe ao nosso intelecto, uma vez que consideramos os contraditórios algo
impensável ou impossível. No entanto, afirma Descartes, “não me atrevo a dizer que
ele não pudesse fazer o que repugna à minha maneira de conceber: eu digo somente
que isto implica contradição”
188
. Assim, as verdades eternas não precedem a
onipotência divina nem possuem diante de Deus nenhuma força senão a que ele
mesmo estabeleceu:
Por exemplo, não é por ter visto que era melhor que o mundo fosse
criado no tempo que desde a eternidade, que ele quis criá-lo no
tempo; e ele não quis que os três ângulos de um triângulo fossem
iguais a dois retos, porque ele conheceu que isto não se podia fazer
de outra maneira, etc. Pelo contrário, porque quis criar o mundo no
tempo, por isso é assim melhor do que se ele o tivesse criado desde a
eternidade; e ademais porque ele quis que os três ângulos de um
triângulo fossem necessariamente iguais a dois retos, é agora
verdade que é assim, e não pode ser de outra maneira
189
.
186
Carta a Mersenne de 27 de maio de 1630. AT I, 152.
187
A Mersenne, 6 de maio de 1630. AT I, 150.
188
A Morus, 5 de fevereiro de 1649. AT IV, 673; cf. A Arnauld, 29 de julho de 1648, AT V, 223-224.
189
Sixièmes Réponses. AT IX, 233.
89
4.3 Incompreensibilidade divina e teoria dos modos de conhecimento
O tema da incompreensibilidade compõe de modo indispensável a tese
cartesiana de que tratamos. Da noção de simplicidade divina resulta a
incompreensibilidade, considerada como o limite intransponível para uma razão
finita. No cartesianismo, autores partidários do possibilismo e da interpretação
epistêmica da necessidade recorrem à incompreensibilidade divina para dar
sustentação às suas pretensões teóricas
190
.
Seguindo as análises de Beyssade, é possível oferecer bases teóricas,
suficientemente capazes de contestar as posições perigosas e tendenciosas a respeito
da incompreensibilidade divina e, conseqüentemente, da teoria da livre criação.
Nossas análises permitem mostrar que, ao contrário do que se pode desejar, a
incompreensibilidade divina não anula nem pretende anular a eficácia da razão, mas
garanti-la. Para tanto, é preciso situar a incompreensibilidade no contexto da teoria
cartesiana dos modos de conhecimento, exposta por seu autor com o intuito de
novamente justificar a tese da livre criação, mostrando que ela em nada prejudica a
razão quanto à verdade e validade de suas descobertas
191
.
A incompreensibilidade é apresentada já na carta inaugural, onde o autor
declara a Mersenne não ser possível compreender a grandeza de Deus, ainda que a
conheçamos
192
. Na mesma carta, mais adiante, a incompreensibilidade é associada à
onipotência divina:
sua potência é incompreensível; e geralmente podemos assegurar
que Deus pode fazer tudo o que podemos compreender, mas não que
ele não pode fazer o que não podemos compreender; pois seria
190
As duas interpretações serão analisadas no capítulo seguinte.
191
Cf. J.-M. Beyssade. Descartes au fil de l’Ordre, pp. 113-129.
192
Cf. A Mersenne, 15 de abril de 1630. AT I, 145.
90
temeridade pensar que nossa imaginação tem tanta extensão quanto
sua potência
193
.
A associação entre onipotência e incompreensibilidade de Deus aparece
novamente na carta de 6 de maio de 1630. Nela Descartes nega a precedência das
verdades eternas ao conhecimento divino e reafirma a simplicidade, ou seja, a
unidade absoluta entre as faculdades divinas, e evoca a incompreensibilidade, a fim
provar irrefutavelmente a criação das verdades eternas:
Deus é uma causa cuja potência ultrapassa os limites do
entendimento humano, e a necessidade das verdades não excede o
nosso conhecimento, elas [verdades eternas] são alguma coisa de
inferior e sujeita a esta potência incompreensível
194
.
Incompreensível e onipotente, Deus por nada pode ser limitado; ele é
infinitamente capaz de tornar verdadeiro o que não compreendemos ser possível.
Quanto a nós seres finitos, nossa razão é completamente constrangida pelo princípio
de inteligibilidade, o qual a restringe, segundo Descartes, ao domínio do possível, do
não-contraditório:
Considerando que nosso espírito é finito, e criado de tal natureza,
que ele pode conceber como possível as coisas que Deus quis
verdadeiramente possíveis, mas não de tal, que possa também
conceber como possíveis as que pudesse tornar possíveis, mas que
ele entretanto quis tornar impossíveis
195
.
193
A Mersenne, 15 de abril de 1630. AT I, 146.
194
A Mersenne, 6 de maio de 1630. AT I, 150.
195
A Mesland, 2 de maio de 1644. AT IV, 118.
91
Ultrapassa o nosso entendimento justamente aquilo que envolve contradição.
Por exemplo, na carta de 27 de maio de 1630, Descartes alega que Deus poderia
tornar verdadeiro que todas as linhas tiradas do centro à circunferência fossem
desiguais, assim como poderia não criar o mundo
196
; outro exemplo consta da carta
de 2 de maio de 1644, onde é afirmado que Deus poderia fazer com que não fosse
verdade que os três ângulos de um triângulo fossem iguais a dois retos
197
; e, em outro
lugar, que poderia fazer com que um e dois não somassem três
198
.
Em suma, Deus é de tal maneira incompreensível que poderia instituir como
verdade ou tornar possível tudo quanto é contraditório, impossível ou
incompreensível para nós, ou seja, poderia fazer o que é logicamente impossível. Ora,
“se possibilidade lógica consiste na ausência de contradição, e se é contraditório
afirmar proposições desse gênero, então é afirmado que Deus poderia fazer com que
proposições contraditórias fossem verdadeiras
199
.
Cabe a nós jamais ter a temeridade de afirmar que Deus não poderia fazer o
que repugna à maneira do nosso entendimento conceber, ou que Deus esteja sujeito às
mesmas leis e regras às quais obedece nossa razão
200
. Em contrapartida, se a natureza
humana finita é incapaz de compreender aquilo que Deus poderia tornar possível,
Descartes mesmo salienta, referindo-se à suposta possibilidade lógica dos
impossíveis, que Deus a quis, no entanto, impossível
201
.
Como se pode ver, muitas afirmações que podem, se tomadas
isoladamente, deixar-nos profundamente perplexos. A fim de se evitar um julgamento
precipitado e equivocado sobre a incompreensibilidade divina, passaremos, pois, à
196
Cf. AT I, 152.
197
Cf. AT IV, 118.
198
Cf. A Arnauld, 29 de julho de 1648. AT V, 244.
199
M. A. Gleizer. Op. cit. p. 190.
200
Cf. A Morus, 5 de fevereiro de 1649. AT V, 672.
201
Cf. A Mesland, 2 de maio de 1644. AT IV, 118.
92
análise do seu significado, pela qual somos introduzidos à teoria cartesiana dos
modos de conhecimento.
O que devemos entender por incompreensibilidade divina é declarado na carta
de 27 de maio de 1630:
Sei que Deus é o autor de todas as coisas. Eu digo que sei, e não
que o concebo nem que o compreendo; pois se pode saber que Deus
é infinito e onipotente, embora nossa alma finita não possa
compreendê-lo nem concebê-lo [...] pois compreender é abarcar pelo
pensamento, mas para saber uma coisa, é suficiente tocá-la pelo
pensamento
202
.
A carta de agosto de 1641 esclarece:
Pois como digo freqüentemente, na questão que diz respeito a Deus,
ou ao infinito, não é preciso considerar o que dele podemos
compreender (porque sabemos que não deve ser compreendido por
nós), mas somente o que dele podemos conceber, ou entender por
qualquer razão certa
203
.
Inicialmente a incompreensibilidade é vista como um atributo divino
decorrente de seu ser infinito. Tal incompreensibilidade se impõe à natureza humana,
que, sendo finita, não pode compreender o infinito, pois:
é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e
limitada, não possa compreendê-lo
204
.
202
AT I, 152. Ver também a carta a Clerselier. AT IX, 210-211.
203
AT III, 430.
204
Méditations. AT IX, 37.
93
Entretanto, embora Deus seja incompreensível à natureza humana, Descartes
assegura que é possível saber algo acerca dele, por exemplo, que é incompreensível,
criador das essências e das existências, perfeito, infinito, soberanamente bom, etc., e
que, se devemos evitar tentar compreendê-lo, é-nos possível conceber ou entender
algo acerca dele, isto é, podemos tocar com o pensamento esta realidade
incompreensível.
Tocar com o pensamento é uma afirmação relevante, ou melhor, é a chave
necessária à compreensão da teoria dos modos de conhecimento, pois ela significa
saber de modo certo, validando com isso a razão.
Conforme Beyssade, a maneira mais adequada de entender de maneira
positiva a incompreensibilidade divina, isto é, sem trazer riscos à razão humana
consiste primeiramente em compreender a distinção entre os três atos da razão
humana: o ato de compreensão, pelo qual o intelecto abrange exaustivamente a
totalidade de um objeto finito; o ato de concepção, pelo qual o intelecto apreende o
indefinido; o ato de intelecção, pelo qual o intelecto atinge efetivamente o infinito
sem conhecê-lo em sua totalidade.
O tema da incompreensibilidade exige, para sua clareza, a explicitação da
doutrina dos modos de conhecimento: conceber ou se representar (concipere),
entender (intelligere) e compreender (comprehendere). A distinção canônica situada
na Terceira Meditação passa-se entre intelligere e comprehendere. O ato próprio do
intelecto (intellectus) é entender (intelligere), cuja forma nominal é a intelecção
(intellectio), que corresponde à idéia clara e distinta. Por meio de uma análise
exaustiva é possível decompor uma idéia em seus elementos constitutivos, notando
exclusivamente a evidência de cada um e como se unem no todo. Tomada dessa
maneira, a intelecção se torna compreensão, uma vez que compreender é tomar todos
os elementos conjuntamente, ou seja, compreender um objeto é o mesmo que
abrangê-lo em todas as suas formas.
Tratando do infinito, porém, Descartes faz ver seu caráter de
incompreensibilidade, quer por natureza, uma vez que é da natureza do infinito não
94
ser compreensível para o intelecto finito, porquanto “a incompreensibilidade está na
razão formal do infinito”
205
, quer por definição, ou seja, define-se incompreensível
como aquilo que não se pode ser compreendido. Malgrado a incompreensibilidade
divina para o intelecto finito, o filósofo admite que é perfeitamente possível a este
possuir uma idéia clara e distinta de Deus. Assim, embora Deus não possa ser
compreendido, pode-se assegurar que ele seja entendido, pois, conforme explica
Beyssade, “entender distintamente consiste precisamente em entender (intelligere)
que Deus não pode ser compreendido. Esta idéia clara e distinta, que é uma
intelecção, excluindo toda compreensão, permite uma ciência certa, um saber de Deus
e de qualquer de suas perfeições”
206
. Por isso, na carta de 15 de abril de 1630,
Descartes diz que, se não podemos compreender a grandeza divina, podemos,
satisfatoriamente, conhecê-la. De fato, somos assegurados da eficácia de nosso
intelecto em compreender um objeto criado, como é o caso das verdades matemáticas
e das demais verdades eternas. De Deus, porém, afirma que podemos conhecê-lo,
como atesta a carta de 27 de maio de 1630, dizendo que podemos “saber que Deus é
infinito e onipotente, embora nossa alma finita não possa compreendê-lo nem
concebê-lo”
207
. Portanto, saber algo sem compreender, o que é indicado pela
expressão tocar (attingere) pelo pensamento, significa conhecer de modo certo, sem
esgotar, todavia, a totalidade do objeto
208
.
Quanto ao ato de conceber em relação ao infinito, Descartes, em
Conversações com Burman, não admite que o infinito possa ser concebido pelo
intelecto finito, mas apenas entendido:
205
Cinquièmes Réponses. AT VII 368.
206
J.-M. Beyssade. Descartes au fil de l’Ordre, p. 113.
207
AT I, 152.
208
Cf. Carta a Mersenne de 15 de abril de 1630. AT I, 152.
95
As perfeições de Deus, nós não as imaginamos nem as concebemos,
mas nós as entendemos
209
.
E acrescenta que, supondo que concebemos as perfeições divinas, as
conceberemos como indefinidas, ou seja, partindo do nosso conhecimento das nossas
perfeições em direção a um conhecimento maior das de Deus
210
.
O fato de nos ser vedado o ato de conceber as perfeições divinas de outro
modo que não como indefinidas não quer dizer, como vimos acima, que não
possamos de algum modo ter um conhecimento verdadeiro dele. Assim, seguindo a
doutrina dos modos de conhecimento, resta ao intelecto finito o ato de entender o
infinito e não o de concebê-lo. Quando um objeto é criado, pode-se identificar o ato
de conceber ao de entender. Aliás, tudo converge para que as verdades eternas
estabelecidas por Deus sejam por nós compreendidas, pois Descartes as considera
inatas em nosso espírito. Desse modo, quanto a elas “nada em particular que nós
não possamos compreender, se nosso espírito tratar de considerar”
211
.
Ao se tratar de um objeto infinito, o ato de conceber se diferencia do ato de
compreender, porque, neste caso, procedemos analogamente, isto é, partimos de
alguns atributos dos quais em nós algum vestígio, para pensar o atributo divino
como um acréscimo indefinido
212
. Se considerarmos a simplicidade divina, podemos
garantir não haver dela qualquer vestígio nem em nós nem fora de nós. Sua absoluta e
incompreensível unidade impede qualquer representação concreta possível, nem
imagem nem conceito, como nota Beyssade. Contudo, nós a entendemos, embora não
compreendamos.
Portanto, distingamos o que podemos compreender o criado, as verdades
eternas instituídas, o que Deus quis tornar verdadeiramente possível, o que Deus quis
209
L’ Entretien avec Burman. AT V, 154.
210
Cf. L’ Entretien avec Burman. AT V 154.
211
Carta a Mersenne, 15 de abril de 1630. AT I, 145.
212
Cf. L’ Entretien avec Burman. AT V 154.
96
que fosse necessário do que podemos apenas conhecer por intelecção: o ato
onipotente pelo qual Deus livremente instituiu as verdades eternas e pelo qual ele
poderia instituir o inverso das verdades eternas criadas. Porque, como ressalta
Beyssade, “toda a dificuldade provém de que tentamos conceber o que podemos
somente conhecer ou entender por idéia, mas que não podemos nem devemos nos
representar, conceber, compreender”
213
.
A tese cartesiana da incompreensibilidade apresenta simultaneamente uma
causa livre para as verdades necessárias. Ora, onde uma causa livre, há,
normalmente, contingência. Entretanto, as verdades eternas são necessárias; por outro
lado, admite-se que Deus poderia instituir como verdade coisas absurdas. Nós nem
podemos compreender que uma vontade livre produza coisas necessárias nem que os
contraditórios possam ser verdadeiros. E não o podemos devido à natureza finita e
limitada do nosso espírito. Todavia, não é correto assimilar a incompreensibilidade
divina à ininteligibilidade, comprometendo, por conseguinte, Descartes com qualquer
espécie de irracionalismo. Por falar nisso, Descartes entrou para a história da filosofia
como um autor racionalista, embora existam intérpretes como, por exemplo, alguns
expoentes anglo-americanos do século XX, que lhe atribuem uma postura
voluntarista, a partir das análises da teoria da livre criação. Entretanto, admitir um
voluntarismo cartesiano contraria um pressuposto fundamental da tese da livre
criação, a saber, a simplicidade de Deus, pois seria o mesmo que dizer que a Sua
vontade precederia o Seu intelecto, o que contradiz a tese cartesiana da unidade
absoluta das faculdades divinas. Ademais, para afirmar um voluntarismo em
Descartes seria necessário desprezar que ele admite a distinção entre potência
absoluta e potência ordenada de Deus
214
.
213
J.-M. Beyssade. Descartes au fil de l’Ordre, p. 120.
214
Uma breve e clara apresentação do problema sobre voluntarismo ou racionalismo em Descartes
encontra-se em M. J. Osler. Divine Will and the Mechanical Philosophy, pp. 146-152.
97
Portanto, a doutrina coerente dos modos de conhecimento rejeita a
ininteligibilidade como decorrente da incompreensibilidade, mas pretende mostrar
que o acesso ao fundamento último não transcende completamente as exigências da
representação racional dos objetos
215
. Com efeito, “a incompreensibilidade divina não
tem apenas a função negativa de limitar nosso conhecimento de Deus pelo
reconhecimento de algo que escapa à nossa apreensão. De uma maneira positiva ela
introduz na nossa idéia de Deus o conhecimento verdadeiro e original de uma
distância incomensurável... Deus na sua verdade, na sua transcendência real e
positiva”
216
.
215
Cf. M. A. Gleizer. Op. cit. p. 188.
216
J.-M. Beyssade. On the Idea of God: Incomprehensibility or Incompatibilities. In Essays on the
philosophy and the science of René Descartes, ed. by Stephen Voss, pp. 87-89.
98
CAPÍTULO QUINTO
Possibilismo e interpretação epistêmica da necessidade
Concebe-se geralmente a filosofia de Descartes como um sistema onde se
procura demonstrar suficientemente o cogito e a veracidade divina como
fundamentos da verdade do conhecimento humano acerca de coisas materiais
existentes fora de nós; que se esforça em levar a termo o projeto de fundamentação
metafísica da ciência, garantindo a adequação entre o nosso pensamento e a realidade
exterior. A ciência cartesiana é entendida como conhecimento verdadeiro,
indubitável, inseparável da metafísica. Aliás, como muito bem lembra Gilson:
“quanto à relação da física com a metafísica cartesiana, nos arriscamos a cometer um
grave erro, e mesmo a pôr um problema insolúvel, se esquecermos que para
Descartes não se pode considerar a possibilidade de sua separação”
217
.
Há, contudo, uma interpretação de Descartes, encontrada na literatura e
desenvolvida atualmente por H. Frankfurt, que pretende asseverar a possibilidade da
dissociação entre a racionalidade humana e a estrutura última da realidade. Segundo
este autor, tal dissociação é possível graças à estranha” tese da livre criação das
verdades eternas, a qual também constitui uma dificuldade para o próprio sistema
cartesiano. Em sua opinião, a tese cartesiana sugere que Deus poderia ter feito as
coisas de modo diferente do qual as conhecemos. Então haveria verdades eternas,
mas diferindo ou negando proposições necessariamente verdadeiras, tais como as
entendemos
218
.
De acordo com Frankfurt, a tese cartesiana da livre criação, ao identificar
através da simplicidade divina intelecto e vontade em Deus, revela que a liberdade
217
E. Gilson. Études sur l’ Histoire de la Formation du Système Cartésien. Paris, Vrin, 1930, p. 176.
218
H. Frankfurt. Descartes on the Creation of the Eternal Truths, pp. 42-43.
99
divina consiste numa absoluta indiferença
219
, a qual, segundo ele, acarreta a negação
de verdades necessárias, pois “uma vez que Deus podia ter negado o princípio de
não-contradição fazendo com que proposições contraditórias fossem verdadeiras,
tudo é possível”
220
. Por conseguinte, a incapacidade da razão em conceber a verdade
das proposições contraditórias seria uma característica contingente do nosso espírito.
Tal interpretação se apresenta sob duas perspectivas complementares, a saber,
a do possibilismo e a da interpretação epistêmica da necessidade, cuja conseqüência é
a cisão entre verdade e certeza, entendida essa cisão como a posição autenticamente
cartesiana. O suporte textual para o possibilismo e a interpretação epistêmica da
necessidade que analisaremos aqui se encontra na carta de 2 de maio de 1644.
5.1 Possibilismo
A interpretação possibilista parte da seguinte passagem de uma carta de
Descartes a Mesland:
Para a dificuldade de conceber como foi livre e indiferente a Deus
fazer com que não fosse verdade que os três ângulos de um triângulo
fossem iguais a dois retos, ou geralmente que os contraditórios não
podem ser conjuntamente, podemos facilmente suprimi-la
considerando que a potência divina não pode ter nenhum limite
221
.
A passagem permite dizer que Deus é onipotente e nada pode constituir um
limite à sua ação, isto é, a ação divina não é motivada por qualquer espécie de
considerações, sejam de ordem física, metafísica, lógica ou moral; que Deus não é
219
H. Frankfurt. Op. cit. p. 41.
220
M.A. Gleizer. Considerações acerca da Doutrina Cartesiana da Livre Criação das Verdades
Eternas, p. 191.
221
A Mesland, 2 de maio de 1644. AT IV, 118-119.
100
subordinado ao princípio supremo de inteligibilidade, a saber, o princípio de não-
contradição. Assim, Deus pode fazer tudo.
A interpretação possibilista, porém, agarra-se a esta passagem para legitimar-
se. De fato, se Deus pode fazer tudo, assegura a interpretação possibilista, uma vez
que Deus pode instituir a verdade até mesmo dos contraditórios, deve-se concluir que
tudo é possível. A afirmação de Descartes de que Deus poderia fazer com que os três
ângulos de um triângulo fossem iguais a dois retos é entendida por Frankfurt como
querendo significar que esta ação é logicamente possível. Como a possibilidade
lógica significa a ausência de contradição, então, afirma Frankfurt, Descartes quer
dizer que proposições contraditórias podem ser verdadeiras, ou seja, Descartes
pretenderia instaurar a possibilidade lógica do que é logicamente impossível
222
. Para
Frankfurt, é o que se depreende da seguinte afirmação de Descartes: “para mim,
parece-me que não devo jamais dizer de alguma coisa que ela é impossível a
Deus”
223
.
O possibilismo provém da concepção de Descartes acerca da liberdade divina
como absoluta indiferença, pois esta está acima de qualquer submissão a princípios
de ordem racional ou moral, sendo, portanto, totalmente arbitrária:
Identificando vontade e entendimento em Deus, Descartes nos
mostra sua visão de que a liberdade divina consiste numa absoluta
indiferença, ou seja, sua ação não é movida por considerações
valorativas ou racionais. A vontade divina é inteiramente
arbitrária
224
.
Se Descartes afirma que Deus poderia tornar possível o impossível, porque
sua liberdade é indiferente, então parece que não realmente verdades necessárias.
222
Cf. H. Frankfurt. Op. cit. p. 43.
223
A Arnauld, 29 de julho de 1648. AT V, 223-224.
224
H. Frankfurt. Op. cit. p. 41.
101
Assim, as verdades eternas são tão contingentes quanto as demais criaturas
225
. Trata-
se do que passou a ser indicado pelos intérpretes por contingência das verdades
eternas. Com efeito, há nas Cartas afirmações muito radicais, levando muitos a
deduzirem uma garantia cartesiana de que as verdades, que ele mesmo considera
eternas, não gozam de necessidade absoluta, apesar de entendidas como necessárias.
As razões para afirmar como cartesiana a contingência das verdades eternas fundam-
se no seguinte.
Em primeiro lugar, atrelada à onipotência, a indiferença da liberdade divina é
concebida por Descartes como o poder de fazer o contrário do que concebemos,
poder, portanto, de instituir como verdade o que para nós é absurdo, que, de acordo
com a indiferença divina, não razão para que uma essência seja ou não seja, seja
dotada de certas propriedades ou de propriedades completamente diferentes. Ao
afirmar que Deus poderia ter feito com que os raios de um círculo fossem desiguais,
Descartes pretende que Deus poderia ter feito com que uma proposição contraditória
fosse verdadeira. Para os partidários da contingência, isso significa que as
proposições necessárias poderiam ter sido falsas e que sua necessidade é contingente.
Depois, continuando a carta de 2 de maio de 1644, Descartes diz que “nosso
espírito é finito e criado de tal natureza que ele pode conceber como possíveis as
coisas que Deus quis que fossem verdadeiramente possíveis, mas não que possa
também conceber como possíveis aquelas que Deus teria podido tornar possíveis mas
que ele quis, todavia, tornar impossíveis”
226
. O possibilismo, partindo desta
passagem, argumenta que se uma tal coisa era possível a Deus, e sendo a vontade
divina indiferente, nada nos garante que ele não o tenha feito.
na postura possibilista, lembra Gleizer, uma certa transformação em
princípio de uma consideração bastante comum a nós, a saber, que tudo o que é
factível é possível. Por isso, quando Descartes diz que Deus poderia ter feito possível
225
Cf. H. Frankfurt. Op. cit. p. 42.
226
AT IV, 118.
102
o que é para nós impossível, somos ordinariamente levados a pensar que se um estado
de coisas poderia ter sido feito por Deus, então ele é possível, razão pela qual
Frankfurt defende a possibilidade intrínseca de proposições impossíveis e a
contingência das proposições necessárias
227
.
Richard La Croix
228
, em clara oposição ao possibilismo de Frankfurt, analisa
três interpretações para a afirmação de que Deus poderia negar o princípio de não-
contradição, estabelecendo a possibilidade lógica do que é logicamente impossível.
A primeira considera a negação desse princípio uma possibilidade que Deus
poderia escolher atualizar. Contudo, conforme apresentamos no capítulo anterior,
para Descartes nada pode preceder o ato divino. Com efeito, a simplicidade divina
garante a indissociável unidade entre as faculdades divinas, ou seja, entre o seu
intelecto, sua vontade e sua ação, sem que uma preceda a outra ne quidem ratione
229
.
Além disso, a absoluta indiferença divina, como mostramos oportunamente, exclui
qualquer assimilação entre indiferença e livre-arbítrio. Assim, não se pode falar de
alternativas incriadas entre as quais Deus escolhe a que será atualizada
230
. Com
efeito, Descartes não entende por criação o ato divino pelo qual Deus atualizaria
essências previamente existentes como possíveis no seu intelecto. Nada,
absolutamente nada, precede a ação criadora de Deus.
De acordo com a segunda interpretação, Deus poderia anular o princípio e
substituí-lo por sua negação. Isto quer dizer que Deus poderia mudar os decretos que
ele mesmo estabeleceu. Entretanto, relembrando a carta de 15 de abril de 1630,
Descartes afirma claramente que se Deus poderia ter feito o que é impossível, não
227
Cf. M. A. Gleizer Op cit.p.191.
228
Richard La Croix. Descartes on God’s Ability to do the Logically Impossible. In. Canadian Journal
of Philosophy, vol. XIV, nº 3, 1984. Ver também M.A. Gleizer. Op. cit. pp.191-193.
229
Cf. A Mersenne, 27 de maio de 1630. AT I, 152.
230
E se os homens entendessem bem o sentido de suas palavras, não poderiam jamais dizer sem
blasfêmia que a verdade de qualquer coisa precede o conhecimento que Deus tem dela(A Mersenne,
6 de maio de 1630. AT I, 149).
103
significa que o faça agora, pois sua vontade é imutável
231
. Pensar que porque as
verdades eternas foram livremente instituídas elas são mutáveis é a opinião daqueles
a quem Descartes pacientemente tenta esclarecer. Diante da alegação de que sendo a
vontade divina livre como a de um rei, então ele pode mudar as verdades, Descartes
afirma que, embora livre, a vontade divina é imutável, ressaltando que o poder de
Deus é incompreensível. Donde, conforme mostramos em outro lugar, a
incompreensibilidade da potência divina a que se refere Descartes deve ser tomada
para garantir que estas verdades são eternamente conservadas como verdades. Assim,
é a imutabilidade divina que explica que as verdades eternas, conquanto criadas,
permanecem eternas. Portanto, de que Deus pudesse ter decretado verdades
contraditórias, não resulta que ele possa atualmente mudar seu decreto.
Por fim, a terceira interpretação enuncia que como o poder divino não é
determinado pelo princípio de não-contradição, segue-se que ele poderia violá-lo
fazendo estados de coisa logicamente impossíveis. O problema se desfaz se
atentarmos para a distinção entre potência absoluta e potência ordenada de Deus.
Embora não seja explicitamente formulada nos textos cartesianos, ela encontra
respaldo em algumas das suas formulações. Tendo Deus uma vez decretado o
princípio de não-contradição, ele não institui coisas contraditórias, o que não significa
que Deus não seja onipotente, porquanto nada constrange sua decisão. Podemos
assegurar que Deus não é antecedentemente determinado pelas verdades eternas o
que está em acordo com sua potência absoluta mas é subseqüentemente
determinado pela própria perfeição de sua vontade imutável (potência ordenada) a
agir em conformidade com as verdades eternas por ele decretadas, como atestam as
Quintas Respostas:
Assim como os poetas fingem que os Destinos foram na verdade
feitos por Júpiter, e que depois de terem sido uma vez estabelecidos,
231
AT I, 145-146.
104
ele obrigou-se a conservá-los, assim também eu não penso, na
verdade, que as essências das coisas, e estas verdades matemáticas
que delas podemos conhecer, sejam independentes de Deus, mas
penso que porque Deus assim quis e que Ele assim dispôs, elas são
imutáveis e eternas
232
.
E nas Sextas Respostas:
Uma vez que ele quis que os três ângulos de um triângulo fossem
necessariamente iguais a dois retos, é agora verdade que isto é
assim, e não pode ser diferente
233
.
A interpretação possibilista não leva em conta que as afirmações de Descartes
das quais se serve, de acordo com a carta de 2 de maio de 1644, estariam assegurando
que Deus quis que as verdades fossem, de fato, necessárias, sem que isso incorresse
no absurdo de dizer que ele as tenha querido necessariamente, ou que tenha sido
necessitado a querê-las. Neste caso, o possibilismo parece descontextualizar a
afirmação cartesiana. O sentido exato da passagem da carta a Mesland é apresentado
por Descartes no mesmo lugar:
A primeira consideração nos faz conhecer que Deus não pode ter
sido determinado a fazer com que fosse verdade que os
contraditórios não podem ser conjuntamente, e que, por conseguinte,
ele pôde fazer o contrário
234
.
232
Cinquièmes Réponses. AT VII, 380.
233
Sixièmes Réponses. AT IX, 233.
234
A Mesland de 2 de maio de 1644. AT IV, 118.
105
Assim, o papel que a indiferença e a incompreensibilidade ocupam na tese não
é, ao contrário do que diz Frankfurt, o de lançar contingência onde necessidade,
mas garantir que nada precede nem limita a ação divina, pois Deus institui as
verdades como necessárias por um decreto simples e imutável. Ademais, na
passagem da carta de 15 de abril de 1630, Descartes refuta a concepção de que Deus
poderia mudar as leis que instituiu tendo em vista que elas decorrem da liberdade de
sua vontade
235
. A incompreensibilidade reivindicada nessa passagem está em Deus
possuir uma vontade indiferente e, ao mesmo tempo, imutável, em ser onipotente e
não alterar a ordem estabelecida por ele. Por isso, Descartes assegura a Burman:
Não deveríamos distinguir aqui necessidade e indiferença nos
decretos de Deus: embora ele tenha feito tudo com a mais inteira
indiferença, no entanto, ele o fez ao mesmo tempo com a mais inteira
necessidade
236
.
Portanto, incompreensível é o modo como em Deus se unem necessidade e
indiferença. Curley observa que a simplicidade divina expressa que “o que Deus fez
ao criar as verdades eternas foi o que ele quis e entendeu desde toda a eternidade”
237
.
Assim, quando Descartes afirma que Deus poderia tornar possível o impossível, ele o
faz para demonstrar que a vontade divina por nada é condicionada, e, é preciso
observar, que não existe qualquer possibilidade alternativa:
Por exemplo, não é por ter visto que era melhor que o mundo fosse
criado no tempo que desde a eternidade, que ele quis criá-lo no
tempo; e ele não quis que os três ângulos de um triângulo fossem
iguais a dois retos, porque ele conheceu que isto não se podia fazer
235
AT I, 145-146.
236
L’ Entretien avec Burman. AT V, 166-167.
237
E. M. Curley. Descartes on the Creation of the Eternal Truths, p. 579.
106
de outra maneira, etc. Pelo contrário, porque ele quis criar o mundo
no tempo, por isso é assim melhor do que se ele o tivesse criado
desde a eternidade; e ademais, porque ele quis que os três ângulos
de um triângulo fossem necessariamente iguais a dois retos, é agora
verdade que é assim, e não pode ser de outra maneira
238
.
Sendo assim, reafirmamos que a indiferença divina pretende antes indicar a
total ausência de determinação, a absoluta independência da ação, que a existência de
alternativas reais.
5.2 Interpretação epistêmica da necessidade
A tese possibilista se presta adequadamente como justificativa à interpretação
epistêmica da necessidade. Com efeito, um universo onde tudo é efetivo o que
concebemos possível e os contraditórios é ininteligível para nós. Recusado como
atualmente existente devido à finitude do nosso intelecto, para o qual a necessidade se
impõe absolutamente, somos levados a pensar que as leis às quais obedece o
entendimento humano valem para toda a realidade.
Para melhor compreendermos a interpretação epistêmica da necessidade,
retomemos a carta de 2 de maio de 1644:
“... nosso espírito é finito e criado de tal natureza que ele pode
conceber as coisas que Deus quis que fossem verdadeiramente
possíveis, mas não de tal [natureza] que ele possa também conceber
como possíveis aquelas que Deus teria podido tornar possíveis, mas
que ele quis, todavia, tornar impossíveis
239
.
238
Sixièmes Réponses. AT IX, 233.
239
A Mesland de 2 de maio de 1644. AT IV, 118.
107
neste trecho se encontra a afirmação que oferece as bases para a
interpretação em análise, segundo a qual a única razão para nos ser impossível
conceber a verdade das proposições contraditórias se deve a uma característica
contingente do espírito finito, pois é o entendimento humano apenas que está inserido
no âmbito do logicamente necessário
240
. Certamente se Deus nos desse outro
entendimento, poderíamos compreender a verdade dos contraditórios. “Deus poderia,
afirma Frankfurt, nos ter dado mentes diferentes. Se assim o fizesse, algumas
proposições inconcebíveis seriam concebíveis e outras concebíveis inconcebíveis”
241
.
Tal asserção ele supõe decorrente de certas afirmações de Descartes, como esta:
Digo somente que ele me deu um espírito de tal natureza que eu não
poderia conceber uma montanha sem vale, ou que o agregado de um
e dois não some três, etc. E digo somente que tais coisas implicam
contradição em minha concepção
242
.
Aferindo que é nossa mente que não pode conceber a verdade das proposições
contraditórias, somos naturalmente levados a afirmar que o princípio de não-
contradição se impõe apenas ao intelecto humano, não sendo inerente às coisas, mas
exclusivamente à razão. Segundo Frankfurt, não podemos presumir que o que a
mente humana determina como logicamente necessário coincida com as condições
últimas da realidade, ou seja, que o que é verdade para o intelecto finito corresponda
à natureza das coisas. Com efeito, a necessidade que a razão descobre pertence
somente à sua natureza contingente
243
.
240
Cf. H. Frankfurt. Op. cit. p. 44.
241
Cf. H. Frankfurt. Op. cit. p. 45.
242
A Arnauld, 29 de julho de 1648. AT V, 224.
243
Cf. H. Frankfurt. Op. cit p. 45.
108
A interpretação puramente epistêmica da necessidade abre, por conseguinte,
um possível abismo entre os juízos racionais, ou seja, aqueles que obedecem à
necessidade de não-contradição, e a essência das coisas. Frankfurt propõe a
irrecusável possibilidade de um desacordo entre o conhecimento necessário e o
conhecimento verdadeiro, de forma que a razão deve conformar-se em saber que o
que ela conhece segue apenas as leis que lhe são inerentes, mas o pode afirmar que
o seu conhecimento corresponda à realidade. Segundo ele, em Descartes uma clara
oposição entre racionalidade e verdade absoluta, entre certeza e verdade.
Ainda segundo Frankfurt, os indícios desta posição de Descartes podem ser
encontrados nas exposições sobre as idéias claras e distintas. Com efeito, na carta a
Regius, de 24 de maio de 1640, uma ressalva quanto ao poder que a percepção
clara e distinta exerce sobre a vontade. Realmente Descartes afirma que “nossa mente
é de tal natureza que não pode negar o assentimento ao que entende claramente”
244
. A
vontade é determinada pela percepção clara e distinta, de modo que o sujeito fica
impossibilitado de recusar o assentimento.
Assim, Descartes estaria mostrando que a necessidade que julgamos encontrar
nas coisas se deve à experiência de não se poder recusar o assentimento a estas idéias.
Devido a essa experiência, construímos teorias onde o necessário, o impossível, o
concebível e o inconcebível para nós são tomados como verdades acerca da realidade
em si. O mundo pode ser um absurdo, mas nosso intelecto é incapaz de concebê-lo
assim
245
.
A obra de Descartes, na visão de Frankfurt, pretende estabelecer as
necessidades e os limites da própria razão, estabelecer aquilo de que, para nós, é
impossível duvidar. Para citar um exemplo: se recorrermos, nas Meditações, à
demonstração da veracidade divina, a qual refuta a hipótese do Deus enganador,
Frankfurt explicará que se trata tão-somente de uma demonstração racional, isto é,
244
AT III, 64.
245
Cf. H. Frankfurt. Op. cit. p. 54
109
coerente com os princípios inatos à razão humana, não possuindo qualquer estatuto
superior de verdade absoluta:
A prova de que Deus não é enganador, enquanto demonstração
racional, estabelece apenas que sua conclusão é requerida pelos
princípios da razão humana, demonstra que um Deus enganador é
logicamente incoerente
246
.
Desta maneira, as Meditações exploram os limites, as necessidades da própria
razão, servindo apenas para determinar o que é racional admitirmos, isto é, o que
seria irracional r em dúvida, não o que é verdade para Deus ou para os anjos. As
investigações de Frankfurt finalmente procuram encontrar na teoria da livre criação
uma questão muito mais profunda, a saber, a questão da verdade. Suas análises vêem
em Descartes uma concepção de verdade como coerência e não como adaequatio,
isto é, como correspondência entre a razão e a natureza íntima das coisas.
Deve-se questionar: as coisas ocorrem realmente segundo a interpretação de
Frankfurt ou a postura cartesiana por si impugna tal interpretação? Haveria em
Descartes outra concepção de verdade que como adequação?
Nossas investigações encontraram, na carta a Mersenne datada de 16 de
outubro de 1639, uma única concepção de verdade:
Nós lhes diremos que a palavra verdade, em sua própria
significação, denota a conformidade do pensamento com o
objeto
247
.
Diante disso, é muito patente que Descartes admite exclusivamente uma
concepção de verdade, a saber, a de correspondência, o que rejeita,
246
H. Frankfurt. Op. cit. p. 52.
247
AT II, 597.
110
conseqüentemente, a concepção de verdade como coerência. Assim, somente em um
caso a interpretação de Frankfurt poderia estar correta, a saber, se fosse ela a única a
manter a consistência da argumentação cartesiana. Todavia, de acordo com Gleizer, o
próprio Frankfurt reconhece que a concepção de verdade como coerência não possui
nenhum respaldo em Descartes
248
.
Além disso, se a interpretação epistêmica da necessidade parece achar
fundamento em algumas passagens, em outras vemos da parte de Descartes sua mais
completa rejeição. Tal como acontece quando declara que “nosso espírito não é a
regra das coisas nem da verdade”
249
. Ademais na própria carta de 2 de maio de 1644
uma afirmação muito oportuna e contundente. É verdade que nosso espírito é
finito e criado. Mas é criado:
de tal natureza que ele pode conceber as coisas que Deus quis que
fossem verdadeiramente possíveis, mas não de tal [natureza] que ele
possa também conceber como possíveis aquelas que Deus teria
podido tornar possíveis, mas que ele quis, todavia, tornar
impossíveis
250
.
Acrescente-se ainda que, nas Segundas Respostas, é dito por Descartes que “o
que clara e distintamente concebemos pertencer à natureza de qualquer coisa pode ser
dito ou afirmado com verdade desta coisa”
251
.
Na Quinta Meditação, por sua vez, temos uma importante declaração que
contrasta radicalmente com a pretensão de Frankfurt:
248
Cf. M. A. Gleizer. Op. cit. p. 197.
249
A Morus. 5 de fevereiro de 1649. AT V, 274.
250
A Mesland. AT IV, 118.
251
AT IX, 117.
111
Do simples fato de eu não poder conceber Deus sem existência,
segue-se que a existência lhe é inseparável, e, portanto, que ele
existe verdadeiramente: não que meu pensamento possa fazer que
isso seja assim, e que imponha às coisas qualquer necessidade; mas,
ao contrário, porque a necessidade da própria coisa, a saber, da
existência de Deus, determina meu pensamento a concebê-lo dessa
maneira
252
.
A citação indubitavelmente é decisiva contra a interpretação epistêmica,
porque indica nitidamente que o ser das essências não pode ser confundido com o ser
das idéias e que as essências são dotadas de uma realidade independente do
pensamento.
É bem verdade que Descartes afirma que Deus me deu uma mente incapaz de
conceber a verdade de proposições contraditórias. O sentido desta afirmação, todavia,
de acordo com a carta de 2 de maio de 1644, contrariando aquele pretendido pela
interpretação puramente epistêmica da necessidade, pode assim ser expresso: Deus
livremente criou as verdades eternas, criou a razão regida pelo princípio de não-
contradição e estabeleceu o acordo entre ambas. Não devemos esquecer que sendo
Deus o soberano ser, segue-se disso que ele é a soberana verdade, segundo atestam as
Meditações. Como fomos criados por ele, “temos uma faculdade real para conhecer a
verdade e distingui-la do falso”
253
. Portanto, o ser humano foi criado por Deus com a
faculdade de conhecer a verdade. Descartes assegura que a necessidade presente na
coisa é que determina o nosso pensamento
254
. Devemos então concluir que “o
princípio de não-contradição, embora tenha sua sede no pensamento, é instituído por
Deus simultaneamente como um princípio ao qual toda a realidade se conforma”
255
.
252
AT IX, 53.
253
Secondes Réponses. AT IX, 113.
254
Méditations. AT IX, 53.
255
M. A. Gleizer. Op. cit. p. 197.
112
***
Em que, pode-se perguntar, o possibilismo e a interpretação puramente
epistêmica da necessidade se fundamentam para retirar da teoria cartesiana da livre
criação das verdades eternas conseqüências estranhas ao pensamento cartesiano? Por
que comentadores que consideram esta tese particular incompatível e desastrosa
para o sistema de Descartes? Essas duas questões motivaram-me ao longo desta
investigação. Embora as respostas encontradas não satisfaçam suficientemente os
estudiosos de Descartes, ou até mesmo possibilitem inúmeras outras questões,
dificultando uma possível resolução do problema, devemos, todavia, apreciá-las, a
fim de que nossas conclusões sejam ao menos mais próximas ou quiçá compatíveis
com o pensamento cartesiano.
Deve-se admitir a existência de passagens nas Cartas que dão margens a
interpretações como as de Frankfurt. Em primeiro lugar, na carta onde é apresentada a
tese inaugural, Descartes se refere às verdades matemáticas com a ressalva “que vós
nomeais eternas”
256
. Essa ressalva parece permitir que alguns interpretem que as
verdades da matemática não são realmente eternas nem necessárias. Outra referência
é a carta de 2 de maio de 1644, onde é afirmado o ilimitado, livre e indiferente poder
divino capaz de tornar verdade o que é contraditório
257
. Supõe-se que Descartes
estaria admitindo que a negação das verdades eternas envolve contradição,
sustentando, ao mesmo tempo, que sua contraditoriedade é a razão apenas para tomá-
las por falsas. Note-se que o impossível não é identificado com o falso, mas com o
contraditório. Somos nós que julgamos como falsa uma coisa apenas por ela ser
contraditória
258
.
256
A Mersenne, 15 de abril de 1630. AT I, 145.
257
Cf. AT IV, 118.
258
Cf. E. M. Curley. Descartes on the Creation of the Eternal Truths, pp. 569-571.
113
Em segundo lugar, a razão de interpretações como a de Frankfurt reside no
uso que Descartes faz de uma linguagem temporal para falar das verdades eternas. É
que quando se fala em criação, esta é sempre tomada sob o aspecto da temporalidade,
enquanto verdade eterna não. Sustentando-se a criação das verdades eternas, poder-
se-ia tentar saber em que momento se deu sua criação. Acontece que as verdades
eternas não são relativas ao tempo, o que impede perguntar pelo momento em que
vieram a existir. Descartes, sustenta Curley, quer evitar a suposição de que se as
verdades eternas foram criadas, haveria um tempo em que se daria sua criação.
Todavia, repetidamente mostramos que para Descartes nada precede o ato pelo qual
todas as coisas foram criadas; a simplicidade divina precede todo o tempo. O
problema, de fato, está na linguagem temporal evidenciada no uso do verbo
“poder”
259
.
Na maioria das cartas, o verbo “poder” é sempre conjugado sob o aspecto
condicional poderia, tivesse podido, e não sob o aspecto atual pode. Em uma carta,
porém, achamos uma construção frasal latina, utilizando o verbo poder, que traz certa
dificuldade para os tradutores. Eis a passagem:
Quapropter audacter affirmo Deum posse id omne, quod possibile
esse percipio; non autem e contra audacter nego illum posse id, quod
conceptui meo repugnat, sed dico tantum implicare
contradictionem
260
.
Segundo a tradução de Alquié:
eu asseguro fortemente que Deus pode fazer tudo o que concebo
possível, sem ter a temeridade de dizer que ele não pode fazer o que
259
Cf. E. M. Curley. Op. cit. pp. 576-578.
260
A Morus, 5 de fevereiro de 1649. AT V, 672. Grifo nosso.
114
repugna à minha maneira de conceber: eu digo somente que isto
implica contradição
261
.
O verbo latino posse, de acordo com as gramáticas latinas, encontra-se no
infinitivo presente, que em português é traduzido como poder. Alquié ao traduzi-lo
para o francês coloca posse no presente do indicativo. Tal tradução favorece
enormemente a postura possibilista e a interpretação epistêmica da necessidade. Ora,
se Deus pode fazer o que repugna à nossa maneira de conceber, então não podemos
rejeitar a existência atual do impossível. Com efeito, se não concebemos isso, é
devido à nossa finitude, ou seja, nós não podemos nos representar, pois está para
além da capacidade do entendimento humano. Se Deus pode, então ele entende, quer
e faz, de acordo com a simplicidade divina. Sendo assim, torna-se quase impossível
refutar a posição de Frankfurt. Portanto, a transformação do infinitivo presente do
verbo poder latino em presente do indicativo margem e força ao que a maioria dos
comentadores de Descartes, inclusive Alquié, consideram uma interpretação
equivocada da tese cartesiana.
Igor Agostini, por sua vez, assim traduz esta mesma passagem:
Ouso afirmar que Deus pode tudo aquilo que concebo ser possível;
não me arrisco, porém, a negar que ele possa aquilo que repugna à
minha concepção, limitando-me a dizer que implica contradição
262
.
261
J’assure hardiment que Dieu peut faire tout ce que je conçois possible, sans avoir la témérité de
dire qu’il ne peut pas faire ce qui répugne à ma maière de concevoir: je dis seulement, cela implique
contradiction” (F. Alquié. Oeuvres Philosophiques, vol III, p. 880). Grifo nosso.
262
Oso affermare que Dio p tutto ciò che percepisco essere possibile; non mi azzardo, però, a
negare che egli possa ciò che ripugna al mio concetto, limitandomi a dire che implica contraddizione
(I. Agostini. In René Descartes. Tutte le Lettere, p. 2619).
115
Esta última tradução permite-se colocar o verbo posse em dois modos
distintos, mas no tempo presente: primeiro no indicativo e, em seguida, no
subjuntivo. Além do estranhamento que causa tomar o mesmo verbo, ou seja, posse,
em dois modos distintos, essa tradução também favorece a interpretação de Frankfurt.
O uso do subjuntivo, por se tratar de um modo verbal dependente, poderia autorizar a
seguinte interpretação: Deus pode, se quiser, fazer o que repugna à minha concepção,
colocando-se desta forma a ação divina dependente de sua vontade. Como somos
finitos, não podemos assegurar a impossibilidade dos contraditórios, diria novamente
Frankfurt. Sendo assim, está garantida a possibilidade lógica do que é logicamente
impossível. Ademais, como a dependência da ão divina de sua vontade repugna a
Descartes em razão da absoluta simplicidade, a qual descarta qualquer distinção ou
precedência entre as faculdades, uma vez que Deus pode, então ele quer e cria. Em
última análise, tanto o possibilismo como a interpretação puramente epistêmica da
necessidade estariam corretos.
Mas em contrapartida, podemos considerar uma outra possibilidade de
tradução, a qual evoca, embora não explicitamente, a doutrina aceita por Descartes da
potência absoluta e potência ordenada. Sugerimos a seguinte tradução:
Audaciosamente afirmo de Deus o poder de fazer tudo o que
percebo ser possível, sem ter, porém, a audácia de negar-lhe o poder
de fazer o que repugna à minha concepção: apenas digo que isto
implica contradição
263
.
Com efeito, traduzindo desta maneira, é garantida a absoluta onipotência sem
dar margem à interpretação de Frankfurt. Uma vez que Deus instituiu as verdades
eternas e garantiu a correspondência entre elas e o intelecto humano, pode-se afirmar
com verdade que o que conhecemos assim o é, porque Deus quis, entendeu e criou.
263
A Morus, 5 de fevereiro de 1649. AT V, 672.
116
Por isso, diz Descartes, “uma vez que ele quis que os três ângulos de um triângulo
fossem necessariamente iguais a dois retos, é agora verdade que isto é assim, e não
pode ser diferente”
264
.
O fato de se afirmar o poder de Deus para fazer tudo o que concebo ser
possível, sem negar-lhe o poder de fazer o que repugna à minha maneira de conceber
não é o mesmo que afirmar que Deus pode fazer tudo. A detenção do poder garante a
onipotência absoluta e a total independência de Deus em instituir os seus decretos. O
problema das traduções anteriores está em usar pode”: é que se Deus pode, então ele
fez, de acordo com a tese da simplicidade divina. Por conseguinte, o possibilismo
estaria certo em afirmar que tudo é efetivamente possível. Nossa tradução, porém,
sugere a retirada do caráter temporal mantido nas traduções precedentes. Ademais,
como acabamos de dizer, está implícita a tese da potência absoluta e da potência
ordenada, algo já admitido por Descartes nas Quintas Respostas:
Assim como os poetas fingem que os Destinos foram na verdade
feitos por Júpiter, e que depois de terem sido uma vez estabelecidos,
ele obrigou-se a conservá-los, assim também eu não penso, na
verdade, que as essências das coisas, e estas verdades matemáticas
que delas podemos conhecer, sejam independentes de Deus, mas
penso que porque Deus assim quis e que Ele assim dispôs, elas são
imutáveis e eternas
265
.
Apesar da nossa análise e sugestão, em algumas passagens de suas cartas
escritas em francês, Descartes emprega o verbo poder no presente do indicativo.
Porém, o conjunto total das cartas permite assegurar que Descartes não quer dar ao
verbo um caráter temporal, o que não elimina, a propósito do emprego deste verbo,
certa dificuldade. Apesar das tentativas, esse verbo, além da temporalidade, possui
264
Sixièmes Réponses. AT IX, 233.
265
Cinquièmes Réponses. AT VII, 380.
117
ambigüidade, podendo remeter à possibilidade atual – como querem os partidários do
possibilismo e à potência, dentro dos limites da teoria da potência ordenada e
absoluta. As dificuldades provenientes do emprego do verbo “poder talvez se
solucionem com a análise do termo contingência, como veremos agora.
Outro fundamento para uma interpretação inadequada da tese da livre criação
reside no fato de caracterizar a indiferença da vontade divina como contingência.
Segundo Curley, a maneira mais simples de perceber e expressar vontade e
contingência consiste em fundá-las sobre atos de um agente. Assim, se quero algo, é
logicamente possível que não o queira. Em se tratando da onipotência divina, dir-se-á
que uma proposição é verdadeira se e somente se Deus o quiser, cuja conclusão será a
afirmação de que algo é necessário se Deus o quiser. Sendo assim, a tese cartesiana
não pretende negar a existência de verdades necessárias, mas que estas que são
necessárias sejam necessariamente necessárias; isto significa pensar que não é
necessário que elas sejam necessárias, de modo que sua necessidade se imponha a
Deus
266
. Com isso Curley acredita ter evitado o possibilismo universal substituindo-o
por um de tipo limitado, no qual a contingência da origem das verdades eternas não
se transmite para o estatuto mesmo destas verdades. Portanto, não é possível assimilar
uma proposição contingentemente necessária a uma proposição meramente
contingente
267
.
A análise de Curley se faz por meio de reconstrução lógica, na qual ele recorre
à lógica modal no intuito de realizar uma interpretação moderada da teoria da livre
criação. Entretanto, seu recurso à lógica não conseguiu realizar aquilo a que se
propôs. Van Cleve, partindo das mesmas premissas que Curley, a saber, a
caracterização da indiferença divina como contingência, e recorrendo à mesma lógica
modal, deriva o possibilismo universal tornando inconsistente a posição cartesiana.
Para Van Cleve, o principal problema da tese cartesiana consiste em fundar as
266
Cf. E. M. Curley. Op. cit. pp. 576-583.
267
Cf. M. A. Gleizer. Op. cit. p. 195.
118
verdades eternas em algo contingente, no caso, a vontade divina. Toda e qualquer
teoria que agir dessa maneira não te como resultado outra coisa que a completa
destruição da noção de necessidade
268
.
O que podemos observar é que tanto Curley quanto Van Cleve admitem que
Descartes assume a equivalência entre indiferença divina e contingência; porém esta
se mostra uma premissa problemática, porque simplesmente não se encontra em
Descartes tal equivalência. Gleizer ressalta a propósito que Descartes jamais utilizou
o termo contingência para qualificar a indiferença do ato divino, e lembra que
admitindo-se a validade do testemunho de Burman, constata-se que a doutrina da
simplicidade “torna problemática a aplicação de categorias modais a Deus, pois
impede a dissociação entre necessidade e indiferença nos decretos divinos”
269
. O que
existe na verdade é a absoluta unidade entre Deus e seus decretos:
Não deveríamos distinguir aqui necessidade e indiferença nos
decretos de Deus: embora ele tenha feito tudo com a mais inteira
indiferença, no entanto, ele o fez ao mesmo tempo com a mais inteira
necessidade. De resto, mesmo se nós nos representamos que estes
decretos teriam podido ser separados de Deus, nós no-lo
representamos somente ao termo de um esforço de discriminação de
nossa razão; o que implica certamente entre os decretos de Deus e
Deus mesmo uma distinção de razão, mas não uma distinção real,
conseqüentemente, na coisa mesma, estes decretos não teriam
podido ser separados de Deus, eles o são posteriores a ele ou
distintos dele, e Deus não teria podido ser sem eles
270
.
268
J. Van Cleve. Descartes and the Destruction of the Eternal Truths. In Ratio (New Series) VII, 1,
pp. 58-62. No Seminário Filosofia da Linguagem (IFCS/UFRJ), em 25 de agosto de 1999, Curley
reconheceu como válidas as críticas a ele dirigidas por Van Cleve.
269
M. A. Gleizer. Op. cit. p. 192.
270
L’ Entretien avec Burman. AT V, 166-167.
119
Na tradição filosófica a contingência designa a possibilidade do contrário.
Relacionada ao ato divino, a criação é contingente porque ele poderia ter criado todas
as coisas de outra maneira. Deus, com efeito, escolhe dentre as possibilidades quais
atualizar, permanecendo as demais essências como possíveis no intelecto divino.
Descartes, pelo contrário, não partilha da opinião segundo a qual as essências
precedem a própria ação divina. Conseqüentemente, não um universo de
possibilidades que se ofereça previamente à sua ação. Sendo assim, Deus não escolhe
entre possíveis. Donde resulta que a liberdade divina não deve ser confundida com
livre-arbítrio. Logo, a indiferença divina é incompatível com uma concepção de
liberdade divina como poder de escolha entre contrários. Por isso, Descartes ressalta a
impropriedade em distinguir necessidade e indiferença divina, ou com outras
palavras, o erro de assimilar indiferença a contingência. Isso permite afirmar que, ao
contrário da escolástica, a noção cartesiana de criação não diz respeito apenas à
produção de coisas finitas outro sentido de contingente mas estende-se às coisas
eternas e imutáveis, sem que por isso haja qualquer dano para sua necessidade e
imutabilidade. A concepção clássica de criação envolve contingência, limita-se à
produção dos existentes, dos finitos. A noção cartesiana de criação não pode ser
tomada no mesmo sentido da concepção clássica, ainda hoje admitida como a única
válida entre os filósofos em geral.
120
CONCLUSÃO
Chegamos ao final desta exposição. Tudo o que apresentamos e discutimos foi
devidamente realizado com o intuito de, diante de todas as questões que a teoria
cartesiana promove, poder chegar a algumas conclusões. Não resta dúvida quanto à
originalidade e à radicalidade da teoria da livre criação das verdades eternas. De fato,
ao propor que as verdades eternas são criadas pelo mesmo gênero de causa que o
resto das criaturas, Descartes inaugura uma nova concepção marcada pela defesa de
que Deus em sua infinita onipotência tem o poder para criar tanto o fintito e
contingente quanto o necessário e eterno, pois ele é único ser absolutamente simples
independente e do qual todas as outras coisas dependem ut efficiens & totalis causa, e
dependem do seu intelecto e de sua vontade, conforme requer a simplicidade divina.
Para mostrar que Deus é causa criadora tanto do contingente quanto do
necessário, ou de outra maneira, qual o alcance da ação criadora, Descartes concebera
as verdades eternas como coisa, o que lhe permitiu envolver na noção de verdade
eterna, as verdades matemáticas, físicas, morais e metafísicas, as essências verae aut
possibiles e todos os princípios designados de noções comuns. Fazendo isso,
Descartes impossibilitou qualquer espécie de aquivalência exclusiva das verdades
eternas a uma classe especial de verdades.
Sustentar a criação das verdades eternas é para Descartes um dever necessário,
pois do contrário estaríamos colocando em risco o conhecimento verdadeiro do
verdadeiro Deus : um Deus absolutamente livre e indiferente, posto não ser
constrangido ou determinado por quaisquer leis, regras ou normas gicas ou morais.
Um Deus absolutamente simples, cuja simplicidade não permite distinção nem
hierarquia das faculdades. Um Deus absolutamente perfeito e incompreensível, cuja
incompreensibilidade em vez de deixar os homens na ignorância ou na falsidade,
garante a certeza do conhecimento humano e a necessidade das verdades eternas
criadas por Ele.
121
Se tudo ocorre dessa maneira, perguntamos onde está a ameaça da teoria da
livre criação ao sistema cartesiano? Onde se acha a incompatibilidade entre esta
teoria e o pensamento de Descartes? Os partidários do possibilismo e da interpretação
epistêmica da necessidade usam de algumas afirmações para retirar conclusões
indevidas. De fato Descartes afirma que Deus poderia estabelecer como verdade o
que para nós é absurdo – e até mesmo emprega o verbo “poder” no tempo presente do
modo indicativo; que nosso intelecto finito o pode compreender o que Deus
poderia tornar possível. Apesar disso, nenhuma passagem autoriza o que pretendem
os partidários dessas interessantes interpretações. Ora, se o uso do verbo “poder” é
ambíguo, mostramos, em contrapartida, que Descartes admite a distinção entre a
potência absoluta e ordenada de Deus; que Descartes não pode ser voluntarista, por
causa de sua concepção da simplicidade divina e, principalmente, Descartes não
considerou os impossíveis como verdades eternas, mas as verdades matemáticas,
físicas, metafísicas, morais, as essências possibiles e verae, e garantiu que as coisas
necessárias, uma vez estabelecidas por Deus, permanecem imutáveis.
O repudio à teoria cartesiana ou as incompreensões parecem ser fruto da
inaceitação de se vincular o eterno ou necessário ao criado. A tradição filosófica
ainda não conseguiu se desvencilhar dos conceitos cunhados pela teologia e filosofia
escolásticas. Parece que acreditamos ser uma verdade absoluta a concepção clássica
escolástica ou teológica da criação. Por que pensar que apenas o contingente ou
finito pode ser criado ou, o que na mesma, que a criação é a produção de tudo
quanto é finito. Esta reflexão produz a suspeita de que Descartes possui uma
concepção de criação o original quanto radical como o foi a sua teoria da criação
das verdades eternas.
Encontrar em Descartes uma teoria da criação, especialmente em suas obras
canônicas, é a tarefa mais decisiva para refutar de uma vez por todas a opinião
segundo a qual a teoria da livre criação é marginal, porque se encontra nas cartas,
além de mostrar que existe uma teoria da criação nas obras de Descartes que serve de
fundamento à própria teoria da livre criação, garantindo finalmente a unidade do
122
sistema cartesiano, erroneamente considerado por alguns comentadores como
ameaçado pela teoria supracitada. A teoria cartesiana da criação constitui, portanto, o
nosso próximo objeto de pesquisa, a ser desenvolvido no Doutorado.
123
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