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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Letras Modernas
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em
Inglês
Ana Paula Bianconcini Anjos
Capital financeiro e empreendedorismo:
considerações sobre o sujeito contemporâneo em
Match Point, de Woody Allen.
São Paulo
2010
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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Letras Modernas
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês
Capital financeiro e empreendedorismo: considerações sobre o sujeito
contemporâneo em Match Point, de Woody Allen.
Ana Paula Bianconcini Anjos
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos Linguísticos e Literários em Inglês do
Departamento de Letras Modernas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Marcos César de Paula Soares
São Paulo
2010
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Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Anjos, Ana Paula Bianconcini.
Capital financeiro e empreendedorismo: considerações
sobre o sujeito contemporâneo em Match Point, de Woody Allen.
/ Ana Paula Bianconcini Anjos ; orientador: Marcos César de
Paula Soares. -- São Paulo, 2010.
203 f. : il.
Dissertação (Mestrado)--Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Departamento de Letras Modernas. Área de
concentração: Estudos Linguísticos e Literários em
Inglês.
1. Cinema. 2. Literatura. 3. Empreendedorismo. I. Título.
II. Soares, Marcos César de Paula.
CDD 810
4
Nome: ANJOS, Ana Paula Bianconcini
Título: Capital financeiro e empreendedorismo: considerações sobre o sujeito contemporâneo
em Match Point, de Woody Allen.
Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do
título de mestre em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.: ______________________________ Instituição:___________________________
Julgamento:_______________________ Assinatura:_________________________________
Prof. Dr.: _______________________________ Instituição:__________________________
Julgamento:_______________________ Assinatura:________________________________
Prof. Dr.: _______________________________ Instituição:__________________________
Julgamento:_______________________ Assinatura:_________________________________
5
Para as minhas avós,
a professora e a jornalista,
vó Lina e vó Bebé,
com amor.
À memória do Paulo.
6
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de
estudos concedida de mestrado.
Ao Prof. Dr. Marcos César de Paula Soares pela orientação presente, a paciência, dedicação e
confiança com que sempre discutiu este trabalho comigo.
À Profª. Drª. Ivone Daré Rabello e ao Prof. Dr. Ismail Xavier pela leitura atenta da pesquisa e
pelas sugestões propostas no exame de qualificação. Agradeço também pela generosidade em
discutirem novamente este trabalho comigo.
Aos amigos Lorena Vicini e Pedro Fragelli pela revisão e sugestões em momentos decisivos.
À Lorena, em especial, pela força e o trabalho árduo nas últimas semanas, companheira das
Letras e do Jornalismo.
Aos amigos ―brasdegnos‖ Júlia Codo e Paolo Demuro pela tradução em italiano das óperas.
Aos meus pais e à minha irmã pelo carinho e apoio. Os meus pais dedicaram a vida à causa
pública: são a minha inspiração.
Ao Otávio que de uma calada maneira chega sempre sorrindo como se fosse a primavera...
Agradeço-o também pelas imagens desta dissertação.
Durante este trabalho, sofri alguns percalços: quebrei o pé e retirei o apêndice. E nesse
momento, a assistência do Thales, da tia Márcia e do tio Kei foram fundamentais.
Aos meus familiares e amigos, agradeço um a um. Em especial, à Ciça, à Bel e à Maria.
Aos funcionários das bibliotecas e departamentos da FFLCH, ECA e FAU.
7
―O que os irlandeses têm de pior é que eles se tornam corruptíveis assim que deixam de ser
camponeses e viram burgueses.‖
Carta de Engels para Marx, 27 de Setembro de 1869.
8
Resumo
O objetivo desta dissertação é compreender a configuração do sujeito contemporâneo no filme
Match Point (2005), de Woody Allen. Na carreira de Allen, este filme representa o momento
de uma espécie de exílio. Por problemas de financiamento nos Estados Unidos, o diretor
nova-iorquino vai para a Europa. No centro do capitalismo financeiro, simbolizado pelo
prédio de negócios, um irlandês alia-se à elite britânica. O protagonista reúne os valores
sociais do empreendedor em um momento histórico anterior à derrocada financeira em 2008.
Palavras-chave: Woody Allen, cinema, literatura, empreendedorismo
9
Abstract
The aim of this dissertation is to understand the role of the contemporary subject in the film
Match Point (2005), by Woody Allen. In Allen‘s career, this film represents the moment of a
sort of exile. Due to funding problems in the United States, the New-Yorker director goes to
Europe. In the center of financial capitalism, an Irishman joins the British elite. The
protagonist combines the social values of entrepreneurship in a historical moment that
precedes the global financial crisis in 2008.
Keywords: Woody Allen, cinema, literature, entrepreneurship
10
Sumário
Introdução ......................................................................................................... 11
Capítulo I. A questão do protagonista ................................................................ 22
1.1 Apresentação de Chris Wilton ....................................................................... 22
1.2 Apresentação de Nola Rice ........................................................................... 40
1.3 Uma tragédia americana .............................................................................. 46
1.4 Visões de mundo (em conflito) ............................................................ ........ 53
1.5 Capital e empreendedorismo ........................................................................ 59
Capítulo II. Aliança de classes ........................................................................... 72
2.1 Dinheiro, jogo e prostituição ......................................................................... 72
2.2 Recursos épicos .............................................................................................. 78
2.3 Dois casamentos ............................................................................................. 92
2.4 A intervenção corporativa nas artes ................................................................ 98
Capítulo III. O sujeito contemporâneo ................................................................ 123
3.1 Crimes e pecados ........................................................................................... 123
3.2 Otelo ............................................................................................................... 134
3.3 Arrivismo contemporâneo .............................................................................. 146
3.4 A espetacularização do assassinato ................................................................. 167
3.5 O sonho ........................................................................................................... 174
Considerações finais ............................................................................................ 175
Bibliografia ........................................................................................................... 178
Anexos ................................................................................................................... 194
11
Introdução
―O cinema, sem dúvida, é a mais internacional das artes. Não apenas porque as plateias de
todo mundo veem filmes produzidos pelos mais diferentes países e pelos mais diferentes
pontos de vista. Mas particularmente porque o filme, com suas ricas potencialidades técnicas
e sua abundante invenção criativa, permite estabelecer um contato internacional com as ideias
contemporâneas‖.
Sergei Eisenstein, A forma do filme.
a. Ideias contemporâneas
Em 2005, ano de lançamento de Ponto Final Match Point
1
, Woody Allen surpreende
a crítica cinematográfica ao filmar novamente na Europa
2
. Para o cineasta, o motivo da
mudança foi apenas um: ―Filmo no exterior porque é mais fácil para arrecadar dinheiro sob as
circunstâncias que eu preciso. Eu poderia arrecadar o dinheiro nos Estados Unidos, mas isso
implica deixar que os estúdios leiam o meu roteiro e ter que contar para eles quais são os
atores que eu quero chamar, e eu não quero negociar isso com eles. Eu não quero ouvir que
eles pensam que o roteiro começa bem, mas perde o ritmo no final, ou que começa lento e
melhora no final, ou ―Meu Deus, por favor, não chame essa pessoa‖. Eu apenas não quero que
ninguém interfira. Quando eu arrecado dinheiro na Europa, eu consigo em circunstâncias que
são muito boas para mim artisticamente. E por causa disso, eu posso fazer um filme como
Match Point. Se eu tivesse que ir e sentar com os executivos do estúdio e argumentar, ―Olha,
eu quero fazer um filme sério sobre esta família‖, eles iriam olhar para mim e dizer, ―Onde
estão as risadas?‖ Ou, eles veriam o dinheiro deles desaparecer em um poço em algum
1
Neste trabalho, utilizaremos apenas o nome em inglês do filme: Match Point, pois se trata de locução
substantiva em português, utilizada na grafia inglesa, para designar o ponto decisivo que, uma vez obtido,
encerra um jogo de tênis (ou de vôlei). Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=match+point&stype=k>. Acesso em: 13 jun. 2010.
2
O primeiro filme na Europa da carreira de Woody Allen como diretor é A última noite de Boris Grushenko
(1975), filmado nas cidades de Paris e Budapeste. Em 1996, Allen volta a filmar na Europa em Todos dizem eu
te amo.
12
lugar‖
3
. Nas inúmeras entrevistas que concedeu a respeito de Match Point, a resposta de
Allen foi categoricamente a mesma: seu exílio para a Europa deve-se aos problemas de
financiamento nos Estados Unidos. Após o 11 de setembro de 2001, do ponto de vista da
arrecadação de bilheteria para os cofres da indústria cinematográfica norte-americana, Allen
volta a preocupar os investidores de seu país: os filmes Dirigindo no escuro
4
(2002), Igual a
tudo na vida (2003) e Melinda e Melinda (2004) não passaram de 5 milhões de dólares
5
.
No entanto, para a crítica cinematográfica, a partir de Match Point houve uma espécie
de ressurgimento no interesse pela obra de Allen. Conforme argumenta Marcos Soares, ―os
eventos antes e depois do 11 de setembro pareciam ter animado os cineastas mais sérios a
arregaçar as mangas. [...] De fato, muitos dos novos filmes possuem no conjunto, a despeito
de (ou talvez, devido a) acertos e erros particulares, um vigor que não deixa de ser
surpreendente, tanto da perspectiva da fatura estética quanto da escolha dos conteúdos‖
6
.
Assim como outros cineastas
7
, Woody Allen também enfoca o mundo das corporações
8
no
momento anterior à crise financeira de 2008. Em Match Point, o cineasta norte-americano
apresenta a trajetória de um jovem irlandês, compondo o sujeito contemporâneo, as
3
Ver Matloff, Jason. ―Woody Allen Speaks!‖. Premiere. Extraído de:
<http://www.premiere.com/article.asp?section_id=6&article_id=2539>. Acesso em: 13 jun.2010.
4
Cabe lembrar que os nomes em inglês Hollywood Ending e Anything Else dos filmes de Allen, realizados após
o 11 de setembro, já avisavam que o cineasta enfrentava dificuldades com os patrocinadores da indústria
cinematográfica norte-americana. O filme de 2002 expõe explicitamente esse conflito. Na verdade, Allen sempre
teve problemas com os produtores de Hollywood. Em sua primeira experiência no cinema como ator e roteirista
em O que é que há, gatinha? (1965), ele relata a Stig Björkman que os ―produtores de Hollywood conseguiram
filmar o roteiro com tudo o que todo mundo detesta nos filmes de Hollywood. Pessoas que não tinham nenhum
senso de humor decidiram o que era engraçado e o que não era. Essas pessoas colocavam as suas namoradas nos
papéis. Eles escreviam personagens especiais para acomodar as estrelas, não importando se esses personagens
funcionavam ou não. O pior pesadelo que qualquer um poderia imaginar. E toda e qualquer decisão artística que
foi feita estava errada‖. Ver Björkman, Stig. Woody Allen on Woody Allen. New York: Grove Press, 1993
(2002), p.10.
5
O custo de cada filme de Woody Allen está estimado em 15 milhões de lares, orçamento considerado baixo
para os padrões de Hollywood. A maior bilheteria conseguida pelo cineasta foi com Hannah e suas irmãs
(1986), total estimado em US$ 40 milhões. Assim como Setembro (1987) que arrecadou pouco menos de 500
mil dólares, Dirigindo no escuro (2002), Igual a tudo na vida (2003) e Melinda e Melinda (2005) não tiveram
faturamento superior a 5 milhões de dólares. Com Match Point, Allen voltou a arrecadar com seus filmes, o
ganho final nas bilheterias de todo o mundo ficou em US$ 23.151.529. Apenas a título de comparação, o
cineasta Steven Spielberg em Guerra dos mundos (2005) arrecadou US$ 234.280.354.
6
Ver Soares, Marcos. ―O projeto inacabado de Cidadão Kane‖. In: Crítica cultural materialista / Marcos Soares
e Maria Elisa Cevasco (orgs.). São Paulo: Humanitas, 2008, p.168.
7
Entre eles destacam-se: O que você faria? (El todo), de Marcelo Piñeyro; O grande chefe (2006), de Lars
von Trier e A questão humana (2007), de Nicolas Klotz, entre outros.
8
Assim como os artistas, os executivos de finanças sempre aparecem nos filmes de Allen. Na abertura de
Hannah e suas irmãs, Elliot [Michael Caine] se apresenta em voz over como um ―consultor financeiro
respeitado‖ enquanto idolatra a cunhada, Lee.
13
habilidades, os valores e as destrezas do empreeendedor, no centro do capitalismo financeiro
britânico.
Se por um lado parece haver uma espécie de excepcionalidade em Match Point,
argumentaremos que, por outro lado, essa perspectiva, a do conteúdo social sedimentado nos
dilemas subjetivos, perpassa a obra do cineasta em diversos momentos.
b. Revisão bibliográfica
Os livros publicados sobre a obra de Woody Allen chegam às centenas. Entre eles,
destacam-se as compilações de entrevistas com o diretor, realizadas por Eric Lax e Stig
Björkman, entre outros. Nos últimos anos, em especial a partir de 2002, a consagração de
Woody Allen como auteur aparece nos livros sobre a obra do diretor nova-iorquino. Entre os
livros que trazem análises sobre os filmes de Allen, houve um esforço para o chamado estudo
sério do cineasta norte-americano, notadamente nos trabalhos de Sander Lee
9
e Sam Girgus
10
.
Entretanto, esse esforço de análise apurado já pode ser encontrado em diversos ensaios
publicados ao redor do mundo em anos anteriores. Muitos deles foram compilados por
Charles Silet
11
.
Nas coletâneas de ensaios e entrevistas e nos livros publicados sobre o autor, um
esforço de sistematização. Todos os autores buscam entender e identificar uma perspectiva
que perpasse a vasta obra do diretor. Todavia, uma enorme diversidade de temas
analisados pelos críticos (religião, gastronomia, judaísmo, humor, justiça, entre outros) e
muitas vezes, aspectos irônicos nos filmes de Allen são levados a sério. Na bibliografia que
analisamos para esta pesquisa, pudemos identificar alguns procedimentos recorrentes que
foram identificados pelos críticos. Porém, estes aspectos são localizados, restringem-se a
observações periféricas em um ou outro artigo sobre a obra de Woody Allen.
9
Lee, Sander. Eighteen Woody Allen Films Analyzed: Anguish, God and Existentialism. McFarland & Company,
2002.
10
Girgus, Sam. The Films of Woody Allen 2
nd
ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
11
Silet, Charles (ed.). The Films of Woody Allen: critical essays / ed. by Charles L. P. Silet. Oxford: The
Scarecrow Press, 2006.
14
Das entrevistas com o diretor, publicadas em livro, selecionamos as que foram
realizadas por Eric Lax e Stig Björkman. O norte-americano Eric Lax é o biógrafo oficial de
Woody Allen desde 1971 até hoje. Lax acompanha todo o processo fílmico do cineasta,
realizando entrevistas e publicando livros e biografias sobre Allen. O jornalista norte-
americano optou por dividir seu amplo material contemplando ―cada um dos sete aspectos
principais da realização de um filme, da ideia à trilha sonora, terminando com um capítulo em
que Allen reflete sobre sua carreira. Cada capítulo começa no início dos anos 70 e termina em
2006 ou 2007, de forma que, dependendo, digamos, do interesse no elenco ou na edição, eles
podem ser lidos em qualquer ordem‖
12
.
Por sua vez, nas entrevistas realizadas por Stig Björkman, o jornalista e cineasta sueco
concentra-se nos aspectos técnicos e temas recorrentes na obra de Allen. A coletânea de
entrevistas apresenta cada um dos filmes de Allen que estão divididos cronologicamente por
capítulos do livro. Björkman afasta-se um pouco da imagem que se construiu em torno do
cineasta: ―O Woody Allen que eu aprendi a conhecer durante o trabalho para este livro, não
tem muita semelhança com a film persona que a gente está acostumado a ver na tela, o lobo
solitário e o neurótico incurável [...], ao contrário, foi o trabalhador disciplinado e decidido,
artista sério e consciente que faz muitas exigências a si mesmo e que se recusa a comprometer
sua arte e sua visão de mundo‖
13
. Os encontros de Björkman e Allen vão de 1986 a 2002. No
prefácio do livro, o jornalista (também responsável pelo livro de entrevistas Bergman on
Bergman) salienta as condições de produção dos filmes de Allen: ―A posição de Woody Allen
no mundo do cinema é única. Ele tem um contrato com seus produtores que lhe garante total
liberdade para escrever e dirigir um filme por ano pelo menos. O contrato prevê controle
ilimitado do lado de Woody em relação à escolha do tema, roteiro, atores e membros da
equipe, corte final e assim por diante. A única condição é que ele se mantenha dentro dos
limites econômicos previstos no projeto‖
14
. Convivem nesses livros um esforço de
sistematização que é importante para uma análise consequente da obra do cineasta ao lado de
informações nas quais o leitor deve ―confiar desconfiando‖. Como é comum nas entrevistas
que Woody Allen concede, despistes e ironias que fazem com que cada informação deva
ser testada no confronto com os filmes.
12
Lax, p.16.
13
Björkman, p.xv.
14
Iibid, p.xv.
15
Para a nossa pesquisa, o melhor exemplo de entrevista realizada com Woody Allen
é ―Meetin’ WA‖ (1986), de Jean-Luc Godard, pois a ironia é o tema estruturador desta
narrativa cinematográfica. Durante Meetin’ WA‖, observamos Allen sob o ponto de vista de
Godard. Na primeira pergunta, Godard indaga se Allen tem medo da imprensa. Há um círculo
negro cobrindo a imagem do cineasta norte-americano. Allen responde: ―Não. A imprensa
tem sido sempre boa comigo, melhor do que eu mereço. Eu nunca me sinto intimidado pela
imprensa, ela sempre me protegeu muito e me apoiou ao longo dos anos, até mesmo em
vários momentos em que eu não merecia. Então, eu tenho, na maioria das vezes, uma ótima
relação com a imprensa‖. O círculo negro em torno do rosto de Woody Allen cria
distanciamento em relação ao discurso do cineasta. Outra estratégia utilizada por Godard é o
uso de intertítulos. Após os comentários sobre a imprensa, o cineasta francês insere o
intertítulo: ―Normal Man‖.
Godard pergunta ao colega norte-americano a respeito do uso de intertítulos em seus
filmes. Allen responde que os utiliza ―como um dispositivo literário. [...] Quando eu estava
escrevendo Hannah e suas irmãs, pensava na forma de um romance no qual um pouco de
ação em uma área e depois vamos para outra onde ação e voltamos para a primeira e
depois para outro lugar... Para mim, nunca foi uma ideia de cinema, mas sempre de
literatura.‖ Em francês, Godard pede para que Allen explique, por exemplo, por que no filme
Hannah, ele usa a expressão Stanislavski catering companion (companhia bufê
Stanislavski). Nesse ponto, um corte abrupto na entrevista e a introdução da tela preta com
o intertítulo, no qual se lê:
STALINE
LOVES
SKI
A intenção irônica de Godard, que associa o método Stanislavski de atuação teatral ao
ditador Stalin afirmando que o último adora esquiar, é bastante explícita. Ele utiliza os
intertítulos e a música extra-diegética, o jazz, para, assim como Allen em Hannah, fazer um
comentário irônico sobre o método Stanislavski, a relação de Allen com a imprensa, entre
outros aspectos que perpassam o filme inteiro. Na resposta à pergunta de Godard sobre o uso
de intertítulos, Allen esquiva-se: ―Esse é apenas um nome lógico‖. Ao final do filme de
16
Godard, Allen diz que prefere ―lutar com o filme [na montagem] a lutar com outras coisas.‖
Nesse ponto, a imagem de Allen aparece em câmera lenta. A tela fica escura e a cena é
interrompida. No momento seguinte, Godard entra em uma sala repleta de fotografias,
fotogramas e livros publicados sobre Woody Allen. Enquanto reúne os objetos em uma pilha,
o cineasta francês narra: ―Os homens permanecem em seus apartamentos, em suas ruas, em
seus carros. É isso, o encontro acabou.‖
Em Meetin’ WA‖, Godard apresenta a ironia como elemento central, ponto
estruturador da obra de Woody Allen. Essa questão também foi abordada de forma esparsa
por alguns críticos. Entre eles destacam-se as análises de: Christopher Morris, Thomas Schatz,
Celestino Deleyto, Sander Lee, Sam Girgus, Christopher Beach, Robert Stam, Ella Shohat e
Luiz Renato Martins. Nesse ponto, passaremos à exposição das contribuições feitas pela
crítica da obra de Woody Allen.
Em texto sobre a ironia cômica de Allen, Christopher Morris aponta para o uso irônico
da música nos filmes do cineasta. Segundo o crítico, ―os artistas e os amantes (e o público)
dos filmes de Allen são com frequência e cruelmente ridicularizados pelas trilhas sonoras, que
usam a música tanto para minar essas expectativas como para fornecer instâncias artísticas de
integridade e da harmonia indisponível na vida. Um exemplo simples é a música sentimental
de Marvin Hamlisch a exaltar ―o amor, a dedicação e o amanhecer‖, em seguida, a
comparação crua entre fazer amor e a prática do boxe que encerra Bananas
15
.
Em ensaio sobre Annie Hall - noivo neurótico, noiva nervosa
16
(1977), Thomas Schatz
aponta como princípio organizador da narrativa em Annie Hall, ―a vida do narrador cômico,
com as sequências seguindo um padrão associativo e não cronológico‖
17
. O crítico argumenta
que a técnica de Woody Allen aproxima-se da ficção moderna, pois faz ―o leitor participar do
15
Morris, Christopher. ―Woody Allen‘s Comic Irony‖ (1987). In: Silet, Charles (ed.). The Films of Woody Allen:
critical essays / edit. by Charles L. P. Silet. Oxford: The Scarecrow Press, 2006, p.54.
16
As traduções dos filmes de Allen são problemáticas, entre elas, destaca-se: Annie Hall que em português ficou
Noivo neurótico, noiva nervosa.
17
Ibid, p.128.
17
ato de criação‖
18
. Schatz propõe que o filme de Allen ―demanda virtualmente que o
espectador adote uma perspectiva modernista‖
19
.
A figura do narrador reaparece entre os críticos, também em uma análise sobre Annie
Hall, de Celestino Deleyto. De acordo com o crítico, o narrador em primeira pessoa aparece
como personagem em cena, falando diretamente para o espectador. Deleyto argumenta que o
narrador começa em um tom confessional, com a expectativa de que o espectador confie
nele‖
20
. Contudo, prossegue o crítico, conforme a narrativa progride, o espectador deve
perceber os eventos narrados como ―memória o-confiável‖. De maneira similiar a Schatz,
Deleyto identifica o retorno ao modelo clássico em Manhattan: ―O filme mergulha no estilo
clássico, até então desconhecido em Allen, sem autoconsciência ou abordagem direta à
audiência. A vivacidade do diálogo é apresentada em tomadas clássicas‖
21
.
Zelig (1983) é, provavelmente, o filme que trouxe as melhores análises a respeito da
obra de Allen. O filme Zelig, obra sobre um herói sem caráter que se transforma para se
adaptar a cada ambiente onde se encontra, será figura fundamental para entendermos Match
Point. No filme de 1983 que aborda a questão do pós-modernismo como tema, muitos dos
críticos não perceberam a ironia que perpassa toda a narrativa. Christopher Beach atentou
para o sentido pós-moderno dos filmes do cineasta. Segundo Beach, Allen pode ser
considerado ―um pico cineasta pós-moderno‖
22
, no sentido de que seus filmes apontam para
uma ―sociedade sem classes‖
23
. Para o crítico, Zelig ―mostra a dissolução das fronteiras de
classe, e pode ser lido como uma alegoria da ruptura pós-moderna de identidade de classe.
Zelig não é mais sujeito de uma determinada rede de identidade de classe, mas é definido
apenas em relação àqueles com quem ele entra em contato. Por se apropriar quase
18
Schatz, Thomas. ―Annie Hall and the Issue of Modernism‖ (1982). In: Silet, Charles (ed.). The Films of Woody
Allen: critical essays / edit. by Charles L. P. Silet. Oxford: The Scarecrow Press, 2006, p.126.
19
Ibid, p.127.
20
Deleyto, Celestino. ―The Narrator and the Narrative: The Evolution of Woody Allen‘s Film Comedies‖. In:
Silet, Charles (ed.). The Films of Woody Allen: critical essays / edit. by Charles L. P. Silet. Oxford: The
Scarecrow Press, 2006, p.27.
21
Ibid, p.29.
22
Beach, Christopher. ―Is there a class in this text? Woody Allen and Postmodern Comedy‖. In: Class,
Language, and American Film Comedy. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p.156.
23
Idem, p.172-173.
18
imediatamente das características sociais, padrões de fala, e opiniões das pessoas ao seu redor,
Zelig torna-se o símbolo de uma sociedade sem classes.‖
24
.
A análise do pós-modernismo pode ser encontrada também em texto de Robert Stam e
Ella Shohat, os quais argumentam que quem é pós-moderno é o personagem Zelig, não o
filme. Os críticos entendem a utilização do pós-modernismo em Zelig como material: ―à
primeira vista Zelig poderia dar a impressão de partilhar de certas características do pós-
modernismo neoconservador: um estilo enraizado em pastiches, o historicismo eclético de
textos reciclados, a visão da disponibilidade do passado apenas como representação
estereotipada, uma espécie de ironia em branco. Mas, apesar de a personagem Zelig, pelo
menos em sua fase camaleônica (e poder-se-ia dizer que Zelig nunca abandona sua fase
camaleônica), representar de fato o pós-moderno, não se pode dizer o mesmo do filme
Zelig. Não se trata de uma trivialização da história, como se chegou a dizer do filme, mas sim
de se lançar uma certa luz na natureza construída e manipulável da história enquanto
disciplina mediada pela indústria cultural. Ainda que se tratasse de exagero dizer que Zelig é
um exemplo do que Hal Foster chama de ‗pós-modernismo de oposição‘, é possível discernir
uma leitura oposta e antecipatória do que, em alguns aspectos, vem a ser um texto
recalcitrante.‖
25
O sentido político da obra de Allen volta ao debate na análise de Luiz Renato Martins.
Segundo o crítico, em Maridos e esposas (1992) a técnica serve a um conteúdo específico, a
saber, o de situar ―concretamente este redimensionamento do sujeito aos parâmetros do
mercado‖
26
. Nesse sentido, propõe Martins, ―as subjetividades se dispõem como artigos de
consumo no mercado [...]. O afeto, qualquer que seja, é considerado aqui como coisa e como
elemento para quantificação‖
27
. O crítico analisa uma cena chave do filme em que a liberdade
de escolha afetiva aparece entre prateleiras de supermercado. Durante o diálogo, Jack [Sydney
Pollack] explica a Gabe [Woody Allen] os motivos que o fizeram largar a esposa, Sally [Judy
Davis] para ficar com a professora de ginástica, Sam [Lysette Anthony]. Os motivos
subjetivos de Jack aparecem coisificados no cenário de compras. As subjetividades são
24
Iibid., p.172-173.
25
Stam, Robert; Shohat, Ella. Zelig‖. In: Labaki, Amir (Org.) O Cinema dos anos 80. São Paulo: Brasiliense,
1991, p.141.
26
Martins, Luiz Renato. ―Woody Allen: entre a lírica e a política‖. In: Novos Estudos CEBRAP, 38, 3/1994,
p.57
27
Ibid, p.57.
19
espetacularizadas e banalizadas, tudo vem circunscrito por relações de mercado: As
subjetividades se dispõem como artigos de consumo no mercado. Os pares amorosos, que se
formam ao longo do filme, estão condicionados por cenários profissionais: Judy [Mia
Farrow], a esposa do protagonista, apaixona-se por um colega da redação, e Gabe [Woody
Allen], o protagonista, por uma aluna‖
28
.
Na conclusão do ensaio, Martins destaca a clareza e radicalização do balanço
apresentado no filme: ―(...) feito, convém notar, no fim do período neoliberal ortodoxo
Reagan-Bush (1980-92) do seu contexto sócio-econômico e cultural, especificamente
pautado por uma ilusão a saber, pela premissa de que a liberdade subjetiva esteja vinculada
ontologicamente com as relações de mercado, com a dita liberdade de iniciativa (por essência
unilateral, pois confronta só sujeito e coisa, em vez de um sujeito e outro).‖
29
Para o crítico, o aspecto confessional ou autobiográfico da obra de Allen passaria por
uma reestruturação após Maridos e esposas, conforme o próprio personagem, interpretado
pelo diretor, revela na conclusão do filme, (...) sua nova obra, em vez de confessional, seria
política
30
. No entanto, procuraremos argumentar que até mesmo em Maridos e esposas esse
comentário é irônico, novamente um despiste para a crítica, pois na obra de Allen os aspectos
pessoais, confessionais, aparecem a todo o momento interligado com as questões políticas. Ao
final de Maridos e esposas, o casal restabelecido Sally e Jack conta ao documentarista por que
resolveram reatar o casamento: ―Estamos indo muito bem. Aprendemos a tolerar os
problemas um do outro‖, enquanto os rostos dos personagens, repletos de conformismo,
desmentem o discurso proferido para a câmera. O casal prossegue, argumentando sobre a
incapacidade de se relacionarem sexualmente:
[Judy]: ―Você aprende a lidar com isso e a empurrar para debaixo do
tapete.‖
[Jack]: ―E funciona. Isso que é estranho. Não é ruim.‖
[Judy]: ―Você não pode forçar-se a se conformar com uma visão
abstrata do amor, ou, você sabe, do casamento. Cada situação é diferente.‖
28
Ibid., 57-59.
29
Ibid., 59-60.
30
Ibid., p.54.
20
[Jack]: ―O negócio é: seja o que for. Tudo vai ser diferente. Quer
dizer, a nossa é apenas uma maneira, outros são de outra forma.‖
Em Maridos e esposas, Allen enuncia, diante da câmera, que passará do confessional
ao político. No entanto, conforme procuraremos demonstrar ao longo deste trabalho, a
perspectiva subjetiva, os valores e hábitos sociais são em si políticos. Em Match Point,
observamos o momento de formalização mais bem acabado desta tendência onde o
confessional e o político relacionam-se a todo o momento. Momento em que Allen formaliza
uma tendência que ele vinha esboçando em obras anteriores sem que ela se cristalizasse
plenamente.
c. Divisão dos capítulos
No primeiro capítulo da dissertação, exporemos a questão do protagonista. O filme
relaciona a trajetória do protagonista à tradição no cinema e na literatura. Notadamente, por
meio da referência ao filme Um lugar ao sol, de George Stevens, e indiretamente, ao romance
Uma tragédia americana, de Theodore Dreiser, o qual o filme de Stevens tem como base. Em
outro ponto da análise, mostraremos como existem duas visões de mundo (em conflito). Por
fim, apresentaremos a ideologia que subsiste no filme, a saber, o discurso do
empreendedorismo.
No segundo capítulo, apresentaremos a peculiar configuração da aliança de classes que
o filme expõe. Para isso, mostraremos como o dinheiro, o jogo e a prostituição são temas que
aparecem interligados ao longo do filme. Em seguida, exporemos como o filme faz uso de
alguns recursos caros ao épico. A referência às cenas de casamentos retoma o universo de
Jane Austen, colocando-o em questão. Ao final, mostraremos como as artes configuram-se no
filme a partir da intervenção corporativa.
No terceiro e último capítulo, apontaremos para a representação do sujeito
contemporâneo, conforme exposto em Match Point. Para isso, retomaremos o filme Crimes e
pecados em termos comparativos. Em seguida, apresentar-sea utilização da ópera Otelo
21
como estrutural para a narrativa. O tema do arrivismo contemporâneo ganha contornos
centrais no filme que estabelece diálogo com o romance Crime e Castigo, de Dostoievski.
Mostraremos também como Allen apresenta a espetacularização do assassinato, em especial,
no papel da polícia. Por fim, apresentaremos o tema do sonho e que tipo de sujeito histórico
ele configura.
22
Capítulo I A questão do protagonista
Segundo um dos maiores teóricos do cinema norte-americano David Bordwell, ―o star
system tem como uma de suas funções, a invenção de um protótipo de personagem forte para
cada estrela que é, então, ajustado às necessidades específicas do papel. O personagem mais
‗explícito‘ é normalmente o protagonista, que se torna o principal agente motivador, o alvo de
qualquer restrição narrativa e, o principal objeto de identificação do público‖
31
. A priori, o
filme Match Point, oferece o protagonista como centro de consciência da narrativa. Não
obstante, conforme procuraremos demonstrar ao longo deste trabalho, o que acontece é o
contrário, pois existem diversos recursos utilizados no filme que relativizam o discurso do
protagonista, colocando a perspectiva apresentada por ele à prova.
1.1 Apresentação de Chris Wilton
―Na sua terra, os irlandeses não tinham nada a perder, na Inglaterra muito a ganhar; e desde que se
soube na Irlanda que na margem leste do canal St. George qualquer homem forte tinha assegurados
trabalhos e bons salários, bandos de irlandeses atravessaram-no todos os anos.‖
Friedrich Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.
Em Match Point, o foco narrativo se apresenta inicialmente próximo ao protagonista
Chris Wilton, o que provoca a aproximação entre narrador e espectador. Se tomarmos essa
perspectiva, a história pode ser entendida como a da vitória de um jovem irlandês,
apadrinhado pela classe alta britânica e agraciado pela sorte. Nesse sentido, pode-se
argumentar que o filme endossa o ponto de vista do protagonista à medida que comprova a
tese do ―papel da sorte na vida‖ apresentada no prólogo.
31
Bordwell, David. Narration in the fiction film. The University of Wisconsin Press: Methuen, 1985, p.157.
23
No entanto, se no cinema a narração é ―sempre resultado da interação entre várias
instâncias que se manifestam através de materiais heterogêneos, simultâneos‖
32
, cabe à crítica
verificar ―se as várias instâncias (palavra, mise-en-scène, olhar da câmera, montagem, música
extra-diegética) se organizam para trabalhar ‗na mesma direção‘, de modo a fazer sentido em
se falar em um ponto de vista da narração
33
. Um dos objetivos deste trabalho será o de
identificar o princípio narrativo do filme e entender se as diversas instâncias
cinematográficas corroboram, ou não, a perspectiva do protagonista.
Nossa hipótese entende que se a narração aproxima-se do protagonista. Entretanto, o
―autor implícito‖
34
tenciona essa convergência, mobilizando recursos para que ―não fiquemos
muito identificados e nos mantenhamos distanciados em face dos personagens e dos seus
desastres‖
35
. Nesse sentido, apontaremos ao longo do trabalho os elementos que permitem ao
espectador questionar a trajetória ascendente do protagonista. Um dos recursos que
problematizam o foco narrativo, fazendo com que a visão do protagonista não se apresente
como absoluta, é a utilização da ópera no filme. Além da música, existem outras instâncias
tais como os cortes abruptos de cena, os diálogos entre os personagens, as locações utilizadas,
o olhar da câmera, a montagem, a composição da mise-en-scène, entre outros recursos que
permitem ao espectador colocar o foco narrativo em questão. No intuito de expor a
configuração do foco narrativo no filme, passaremos à descrição de sequências específicas.
O primeiro ―choque de estranheza‖
36
que permite que o espectador desconfie da visão
que será apresentada pelo protagonista ocorre logo no início do filme, na apresentação dos
créditos seguida pelo prólogo. Os créditos e o prólogo vêm acompanhados pela música extra-
diegética. O uso da música no filme guarda semelhanças com a utilização épica na qual ―a
música e a ação são tratadas como componentes completamente independentes‖
37
. Conforme
explica Anatol Rosenfeld, a utilização da música no teatro épico é ―um dos recursos mais
32
Xavier, Ismail. ―O olhar e a voz: a narração multifocal do cinema e a cifra da História em São Bernardo‖. In:
Literatura e Sociedade: Revista de Teoria Literária e Literatura Comparada. São Paulo, n. 2, 1997, p.131.
33
Iibid., p.131.
34
Segundo Wayne Booth, o autor implícito seria uma espécie de ―figura implícita do autor que permanece atrás
da cena como diretor, operador de marionetes, ou como um Deus indiferente, silenciosamente aparando as
unhas. O autor implícito é sempre distinto do ―autor verdadeiro‖ seja ele quem for que cria uma versão
superior de si mesmo, uma ―segunda natureza‖, durante o processo de criação‖. Ver: Booth, Wayne C. The
rhetoric of fiction. The University of Chicago Press, 1961, p.151
35
Rosenfeld, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2002, p.157.
36
Ibid, p.157.
37
Brecht, Bertolt (1898-1956). Brecht on Film and Radio translated and edited by Marc Silberman. Methuen,
2000, p.13.
24
importantes de distanciamento: o de o autor se dirigir ao público através de coros e
cantores‖
38
. A função da música seria a de ―comentar o texto, de tomar posição em face dele e
acrescentar-lhe novos horizontes. Não intensifica a ação; neutraliza-lhe a força
encantatória.‖
39
No caso de Match Point, a música utilizada no prólogo do filme é a ária ―Uma furtiva
lágrima‖, da ópera O Elixir de Amor
40
. O filme sugere a associação entre a imagem
apresentada da quadra de tênis, a ópera de Donizetti e o discurso do narrador. No entanto, ―os
três elementos, ação, sica e imagem, aparecem juntos, mas ainda separados‖
41
no prólogo
do filme.
A escolha do Elixir entre as óperas pode indicar que o filme estabelecerá relação
semelhante a da música extra-diegética, na qual se acompanha o amor do camponês
Nemorino que, apaixonado pela jovem rica Adina, e sem conseguir conquistá-la, cai na
armadilha do charlatão Dulcamara ao comprar vinho barato pensando se tratar de um
poderoso elixir. Não obstante, a ópera parece se contrapor às ideias apresentadas pelo
protagonista.
O som da gravação antiga e a recorrência de chiados sugerem certa impureza à
sonoridade. Além dos ruídos, a utilização da ópera feita por Allen suprime o início da famosa
romanza, interpretada por Enrico Caruso
42
. uma intervenção nos trechos de óperas
utilizados, característica que exige que o espectador adote uma postura de investigador,
indagando-se sobre a razão da intervenção do cineasta. O próprio Allen explicita que a
utilização de gravações com chiado em Match Point foi proposital: ―eu queria que as
38
Ibid., p.159.
39
Ibid., p.160.
40
A ópera de Gaetano Donizetti, de 1832, trata da história de um jovem camponês (Nemorino) apaixonado pela
bela e rica Adina. Tímido, Nemorino não consegue conquistar sua amada. Ele recorre a Dulcamara em busca de
um poderoso elixir. Percebendo que se trata de um pobre camponês, o charlatão vende um frasco de vinho
Bordeaux barato como se fosse elixir. Após entusiasmar-se sob o efeito do Bordeaux, Nemorino conquista
Adina. Sem saber que seu tio rico morreu e que se tornara herdeiro de uma grande fortuna, o jovem camponês
atribui sua sorte ao elixir. Dulcamara seu prestígio tão aumentado que vende todo o estoque de Bordeaux aos
aldeões por um preço que o faz rico de uma hora para outra. O charlatão sai da cidade como o ―grande
Dulcamara, único entre os doutores‖. Na ópera é importante ressaltar também que diferentemente dos aldeões, o
espectador sabe que Dulcamara é um trapaceiro. Resumo meu a partir de: Donizetti, Gaetano. O Elixir de Amor /
tradução Manuel Rosa. Lisboa: Série Óperas Imortais, Editorial Notícias, 198?, pp.24-25 e Kobbé, Gustave. O
Livro completo da ópera. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p.261-263.
41
Brecht, op.cit., p.13-14.
42
―Foi praticamente por causa da maravilhosa interpretação de Caruso nesta ária que a ópera veio a ser montada
na Metropolitan Opera House de Nova Iorque, em 1904‖. Trata-se da gravação utilizada por Allen no filme.
Ver: Kobbé, op. cit., p.262.
25
gravações soassem antigas na trilha, para fazer o público ouvir os chiados e saber que eram
gravações velhas, não uma trilha.‖
43
A recusa do cineasta em compor uma trilha e a manipulação deste e de outros trechos de
ópera usados no filme sugere que o uso da ópera no filme é calculado. Como procuraremos
demonstrar, a utilização da música no filme não é aleatória, mas funciona como um
comentário sobre a ação. Allen escolhe e intervêm deliberadamente em certos trechos das
óperas utilizadas, conforme apresentaremos ao longo deste trabalho. Em ―Uma Furtiva
Lágrima‖
44
, como em outras árias utilizadas no filme, Allen seleciona um trecho específico. A
ária foi cortada pelo cineasta que não faz uso da abertura que a nomeia . A música extra-
diegética começa em meio à célebre interpretação de Caruso. O trecho foi estendido e
repetido, como se reafirmasse ao espectador o contraste entre a ópera, o discurso do narrador
e a imagem apresentada.
Diferentemente de um cenário antigo, conforme sugere a época de gravação da ópera, o
filme apresenta uma quadra de tênis e uma bolinha sendo jogada de um lado para o outro da
quadra, em câmera lenta, sem que se vejam quem são os jogadores. Enquanto acompanhamos
o movimento da bolinha e ouvimos a interpretação de Caruso é incluída à imagem outra
instância extra-diegética, a saber, a voz over apresentando o mote da trama:
O homem que disse, prefiro ter sorte a ser bom entendeu
profundamente a vida. As pessoas temem ver como grande parte de suas
vidas depende da sorte. É assustador pensar que tanta coisa foge ao nosso
controle. momentos em um jogo quando a bola bate no topo da rede, e
por um segundo, ela pode ir para o outro lado ou voltar. Com um pouco de
sorte, ela cai do outro lado e você ganha. Ou talvez isso não aconteça e você
perca.
45
No momento em que ouvimos a frase: ―a bola bate no topo da rede‖, a câmera congela a
imagem, ou seja, a bolinha de tênis fica parada no meio da rede, enquanto o protagonista
termina seu discurso afirmando que dependendo do lado em que a bolinha cair, estará
decidido o jogo. Assim, neste breve prólogo o espectador tem acesso à trama sob perspectivas
contrastantes. A primeira, suscitada pela ópera, apresenta a história do falso elixir; a segunda,
exposta pela voz over argumenta sobre o papel da sorte na vida.
43
Lax, op.cit., p.405.
44
No original em italiano, o nome da ópera é L’elisir d’amore e o da ária Una furtiva lagrima‖. Como essa
ópera é a mais recorrente ao longo do filme deixaremos o título em português ao longo do trabalho.
45
As citações do filme serão feitas em português, tradução minha a partir do original em inglês.
26
Da forma como o prólogo é montado, podemos afirmar que a ópera comenta o discurso
apresentado pela voz over. A ária escolhida por Allen reflete o momento em que Nemorino
está ―convencido de que influiu no ânimo de sua amada e que as coisas se encaminharão para
bom porto‖
46
, por conta do elixir:
[Nemorino]: [...] Un solo istante i palpiti / del suo bel cor sentir!.. /
Co' suoi sospir confondere / per poco i miei sospir!... / Cielo, si può morir; /
di più non chiedo.
47
No entanto, diferentemente de Nemorino, que pensa ter sido agraciado pelo famoso
elixir de Tristão, os espectadores sabem que o elixir de Dulcamara o passa de um vinho
barato e que o real motivo para o sucesso repentino de Nemorino deve-se ao fato do jovem
camponês ter se tornado o único herdeiro de um tio endinheirado. A sorte de Nemorino, no
amor e nas finanças, advém da herança recebida, mas é atribuída ao elixir pelo personagem. A
ópera ilustra o engano da aldeia e dos personagens e revela ao espectador que se trata de uma
trapaça orquestrada por um charlatão.
Nesse sentido, ao utilizar o Elixir na abertura do filme, o mecanismo de identificação
entre narrador e espectador é colocado à prova. uma desarticulação entre a imagem e a
música como se fossem duas instâncias independentes. Ao contrário do princípio da música
de acompanhamento, que orienta a prática hegemônica, na qual a fotografia, o diálogo, a
atuação e a música caminham para um mesmo sentido. Em Match Point, cada um desses
elementos aponta para uma direção. Em diversas ocasiões, a música e o comentário vão em
direções opostas. A música comenta o discurso do protagonista, funcionando como uma
espécie de aviso. Conforme procuraremos demonstrar, a utilização da ópera no filme incita o
público a ―colecionar detalhes‖
48
.
Do contraste entre a ópera e os ―pressupostos filosóficos‖ apresentados pela voz over no
prólogo do filme, Allen passa a apresentação do protagonista. A ópera é interrompida pelo
barulho de bolinhas de tênis e na cena seguinte não menção à sorte. Se no prólogo a
câmera posicionava-se no centro da rede e permanecia fixa; no segundo plano, o olhar da
câmera acompanha os passos do protagonista Chris Wilton [Jonathan Rhys-Meyers], por meio
46
Kobbé, op. cit., p.91.
47
Donizetti, op.cit., p.92.
48
Brecht, op. cit., p.16.
27
da utilização da câmera subjetiva. Assim, podemos afirmar que o espectador tem acesso à
fachada do clube de tênis sob o olhar de Chris. No entanto, Allen apresenta primeiro a grade
que separa as quadras de grama, o que confere certo distanciamento no plano da imagem em
relação ao protagonista. Por trás da câmera, o protagonista caminha em direção a sede da
construção vitoriana
49
. Chris Wilton é apresentado de costas para o público; a câmera
subjetiva segue os seus passos até a sede do clube. No momento em que Chris pára de
caminhar, a câmera muda de posição e o focaliza. Ao fundo, o espectador observa alguns
jogadores de tênis. Ainda sob o som das bolinhas, o personagem diz: - Senhor Townsend‖ e
dirige-se à entrada do edifício. A câmera não acompanha Chris, permanece no ambiente
externo do clube, apresentando os sócios do estabelecimento que jogam tênis no local.
A cena é cortada de forma abrupta. Em seguida, não ouvimos mais o ruído das bolinhas
de tênis que vinham acompanhando o percurso do protagonista, apenas a voz dos personagens
no escritório de Sr. Townsend [Alexander Armstrong], localizado no interior do edifício é
possível observar pela janela do escritório, em profundidade de campo, os jogadores de tênis e
as quadras de grama do estabelecimento. O Sr. Townsend conduz Chris ao escritório e elogia
o currículo do jovem tenista. A cena, filmada em campo/contra-campo, revela que a
contratação do protagonista pelo clube de tênis aristocrático deve-se à sua experiência
50
:
[Sr. Townsend]: ―Por aqui. Clube de Marbella, professor de tênis.
Stanford House, Forte Village, Sardenha, Nice.‖
[Chris Wilton]: ―Tenho bastante experiência.‖
[Sr. Townsend]: ―Estou vendo. Ouvi muitos elogios. Não sente
saudade do tênis profissional?‖.
49
Trata-se do régio Queen’s Tennis Club: ―Fundado em 1886, o Queen’s Tennis Club foi o primeiro complexo
poliesportivo construído no mundo. O clube foi nomeado em homenagem à Rainha Vitória, primeira patrona do
estabelecimento e é mundialmente conhecido como uma das pioneiras quadras de grama. [...] Ao longo de sua
história, o clube preserva um excepcional espaço desportivo e hoje sedia o mundialmente conhecido campeonato
de AEGON [também chamado de torneio de Queen’s] [...]. Suas quadras de grama estão entre as melhores do
mundo. [...] É um dos clubes mais cobiçados do país‖. Disponível em:
<http://www.queensclub.co.uk/site/_index_nonmember.htm>. Acesso em: 6 jun.2009.
50
Em sua análise sobre o ethos do capitalismo hoje, o sociólogo Osvaldo López-Ruiz comenta a respeito da
importância do currículo em detrimento do diploma nas contrações: ―Poucas dúvidas restam hoje de que a ênfase
tenha mudado do diploma para o currículo. O que interessa ao mercado não é se as pessoas são proprietárias de
um saber determinado, mas o conjunto de capacidades, habilidades e destrezas que elas possuem e como estas
vêm sendo treinadas e desenvolvidas. Hoje, no mundo do capital humano, as pessoas são proprietárias de seus
talentos (e responsáveis por manter/incrementar seu valor). O seu produto é fundamentalmente o que elas m
para vender no mercado, os seus talentos‖. Ver: López-Ruiz, Osvaldo Javier. Os executivos das transnacionais e
o espírito do capitalismo. Capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2007, p.273-274. A análise de López-Ruiz será retomada ao longo deste trabalho.
28
[Chris Wilton]: ―Graças a Deus não jogo mais. Eu odeio os torneios.
Sempre viajando. E nunca seria Rusedski ou Agassi. É preciso muita
vontade. Não que eu tenha o talento deles.‖
[Sr. Townsend]: ―Seus títulos e referências são excelentes. E deseja
morar em Londres?‖
[Chris Wilton]: ―Muito.‖
[Sr. Townsend]: ―Somos um clube muito exclusivo. Pode começar
neste fim de semana?‖
[Chris Wilton]: ―Obrigado. Muito obrigado.‖
Ao final desta cena, o espectador pode identificar que a voz over, apresentada no
prólogo, era do protagonista Chris Wilton. Se por um lado, o foco narrativo se aproxima da
perspectiva de Chris, por meio da utilização da câmera subjetiva, por outro, não é apenas o
protagonista que fornece as informações necessárias ao espectador. No prólogo, a ópera
comenta a ação e a imagem revela que, diferentemente do que afirmara Chris nos
―pressupostos filosóficos‖, ele é contratado pelo aristocrático clube não por sorte, mas por
apresentar um currículo compatível com o estabelecimento ―seus títulos e referências são
excelentes‖, justifica o contratante Sr. Townsend. Chris jogou com grandes tenistas nos
circuitos internacionais do esporte e foi instrutor de tênis em clubes de sócios privilegiados na
Sardenha, Marbella, Nice, entre outros. Nesse sentido, assim como a ópera no prólogo, a
contratação do tenista, baseada no currículo, relativiza o discurso da sorte proferido no início
do filme.
Apesar da referência a alguns recursos que flertam com diversos dos procedimentos de
um repertório de natureza épica em Match Point, é também preciso lembrar que a utilização
da voz over, câmera subjetiva, profundidade de campo e campo/contra-campo nas primeiras
cenas do filme pode ainda ser identificada como pertencente ao repertório do cinema clássico,
o qual ―alia a força de sedução da cena à invisibilidade do aparato‖
51
. Assim, poderíamos
afirmar que o espectador já está treinado aos padrões do cinema clássico, o que conferiria uma
recepção padronizada do filme na qual o espectador ―já está muito bem preparado antes
mesmo de ver o filme, o enredo trata da trajetória de um indivíduo que sabe exatamente aonde
quer chegar, uma motivação realista que consiste em estabelecer conexões reconhecidas
como plausíveis pela opinião comum, ‗Um homem como este, naturalmente faria...‘‖
52
. Desse
modo, a montagem poderia parecer ―invisível‖: ―Os cortes dos planos não têm outro objetivo
que o de analisar o acontecimento segundo a lógica matemática ou dramática da cena. É sua
51
Xavier, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 57.
52
Bordwell, op. cit., p.164.
29
lógica que torna tal análise insensível; o espírito do espectador adota naturalmente os pontos
de vista que o diretor lhe propõe, pois são justificados pela geografia da ação ou pelo
deslocamento do interesse dramático.‖
53
Todavia, se é possível argumentar que o filme trabalha com o repertório do cinema
clássico, a hipótese do trabalho entende que a obra apresenta uma discussão sobre o próprio
cinema, expondo o mecanismo e enfatizando o caráter da obra reflexiva. A pretensa
―naturalidade‖ com que o espectador acompanha os passos do protagonista torna-se material
do filme. Match Point tratará justamente da ―naturalidade‖ das ações e da ideologia que são as
diretrizes do protagonista. Se aceitarmos o discurso de Chris, entenderemos cada cena do
filme como sorte. No entanto, como será exposto a seguir, a utilização da música, a
montagem, as locações escolhidas e o diálogo entre os personagens questionam o discurso da
sorte e revelam o arrivismo do protagonista.
No momento da contratação de Chris pelo clube de tênis, o espectador tem acesso às
excelentes referências, à boa aparência e ao tom modesto do protagonista (―Eu nunca seria
Rusedski ou Agassi. É preciso muita vontade. Não que eu tenha o talento deles‖), o que
deslegitima o discurso da sorte. A locação escolhida por Allen revela a classe social a qual
Chris pretende associar-se, ou seja, a escolha do local
54
também não pode ser atribuída ao
acaso. Ao espectador inglês e aos fãs de tênis não passa despercebido o clube sede do famoso
torneio homônimo que precede Wimbledon. O espectador é, portanto, convidado a
acompanhar a narrativa sob o olhar de Chris. Todavia, existem recursos de distanciamento
que permitem questionar o estatuto do narrador. Novamente se estabelece uma tensão entre o
discurso da sorte e a escolha do protagonista que nada deve ao acaso.
Outro indício de que o filme distancia-se do protagonista pode ser observado por meio
do uso da montagem que caracterizará o estilo de momentos importantes do filme. Na cena
seguinte à contratação de Chris podemos observar essa tendência. O filme apresenta o
dormitório do protagonista, situando o espectador em um local bastante diverso do régio
53
Bazin, André. O cinema (1985) trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.67.
54
O Queen’s Tennis Club pode ser reconhecido pelo público. Ver a caracterização do protagonista de Match
Point feita por Philip French: ―O personagem principal é Chris Wilton, um tenista irlandês de origens humildes
que decidiu abandonar os torneios (nos quais teve pouco prestígio) para se tornar professor de tênis no clube
exclusivo Queen’s, em Londres.‖ Disponível em:
<http://www.guardian.co.uk/film/2006/jan/08/review.features7>. Acesso em: 13jan. 2010. E a identificação do
local feita por Colin Cameron: ―se a viagem for rápida, você deve pular o clube Queen’s, sede do torneio de tênis
que precede Wimbledon e local da cena de abertura‖. Disponível em:
<http://travel2.nytimes.com/2006/02/07/travel/08weblondon.html>. Acesso em: 13 jan. 2010.
30
Queen’s Tennis Club. Observa-se uma caçamba com entulhos, carros estacionados e um
caminhão cruzando a rua. Ao fundo, um edifício antecipa o espaço no qual a câmera
adentrará: ouve-se o barulho dos veículos e uma voz indeterminada, mas com sotaque
cockney apresentando o novo espaço: ―Este é o seu sofá, que também vira cama.‖ A indicação
do sotaque do corretor de imóveis indica a famosa ênfase que os ingleses colocam na enorme
variedade de sotaques de sua língua. Na Inglaterra, a pronúncia marca a distinção de classe
55
.
Diferentemente da ópera e do ruído das bolinhas de tênis das cenas anteriores, ouvimos
o barulho do trânsito e observamos a fachada de um prédio provavelmente situado na parte
leste de Londres e não em West Kensington como o Queen’s. Trata-se da residência de Chris,
o que revela que o professor não pertence ao mundo aristocrático de seus alunos. Depois da
apresentação da fachada do edifício, um novo corte e o olhar da câmera focaliza o sofá no
apartamento, ainda sem que vejamos os personagens. Ao passo que olhamos para o pequeno
sofá, a voz do corretor de imóveis, fora do campo visual, expõe os motivos para a locação: ―O
que é ótimo, sabe, por que você pode assistir tevê e não vai ter que ter uma trabalheira para ir
ao quarto. Você só abre o sofá cama e tira a sua soneca.‖
Filmada em câmera circular, a cena permite que se observem os objetos do cômodo: o
sofá, um pequeno móvel, algumas cadeiras, um aquecedor, alguns quadros. Em seguida, Chris
e o corretor de imóveis [Paul Kaye] aparecem de costas para o público, a voz que estava fora
do campo visual é identificada como sendo a do corretor: ―A cozinha é logo ali. Todos os
utensílios domésticos, máquina de lavar, todas essas coisas. Linda vista, sem nada na sua
frente. É simplesmente perfeito.‖ O uso da câmera circular nesta cena também permite que o
espectador tenha a exata sensação da pequenez do local, o que contrasta decididamente com a
cena anterior do amplo clube de tênis.
A despeito do protagonista (cujo sotaque diferencia-se do corretor e assemelha-se ao dos
sócios do Queen’s), o filme aproxima Chris do corretor de imóveis. Perante a apresentação,
feita pelo corretor, de que o apartamento seria ―simplesmente perfeito‖, Chris indaga: ―E são
225 libras por semana?‖. O corretor vai direto ao ponto: ―Claro, cara, estamos em Londres. Se
você não gostou, mude para Leeds. Entendeu?‖. O diálogo, portanto, indica o poder aquisitivo
de Chris, muito mais próximo ao do corretor do que ao da classe que almeja se aproximar. Ao
55
Diferentemente de Chris que imita o sotaque de seus alunos abastados, o corretor de imóveis tem um sotaque
cockney. O tipo de sotaque é descrito como ―o jeito de falar inglês típico das classes trabalhadoras na parte leste
de Londres‖. Disponível em: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/cockney>. Acesso em: 6 fev. 2010.
31
estabelecer a comparação entre os preços do aluguel de apartamentos em Londres e os de
Leeds (cidade industrial situada no norte da Inglaterra), o corretor de imóveis trata com
escárnio o irlandês.
A cena é cortada para um bar estreito e escuro, onde Chris faz uma refeição e lê notícias
de um jornal. um novo corte rápido e novamente ouvimos o som de bolinhas de tênis no
Queen’s Tennis Club onde os jogadores rebatem as bolinhas. A técnica do campo/contra-
campo é utilizada aqui para mostrar o trabalho mecânico de Chris, o entusiasmo do jovem
tenista durante a entrevista de emprego, filmada com a mesma técnica, contrasta com o tédio
durante as aulas de tênis. Posicionado do lado direito da quadra, Chris rebate as bolinhas para
seus alunos e a cada batida do professor um jogador diferente aparece na tela, no lado
esquerdo da quadra. O espectador acompanha os diversos alunos de Chris primeiro, uma
mulher jovem; depois, um homem de meia-idade; a terceira, uma senhora o que indica a
passagem do tempo e o caráter repetitivo do trabalho do professor de tênis.
Da exposição do aspecto mecânico do trabalho do protagonista, Allen retorna ao
apartamento de Chris. O professor de tênis está deitado no sofá do seu dormitório,
apresentado anteriormente. Observa-se, em primeiro plano, a capa do romance Crime e
Castigo, de Fiódor Dostoievski. Pode-se observar em primeiro plano a edição do livro: trata-
se da popular coleção Penguin Classics. O tédio torna a caracterizar o protagonista, ouve-se
um bocejo de Chris e, em seguida, ele troca o romance russo pela coletânea de ensaios
Cambridge Companion to Dostoievski, a qual o protagonista parece interessar-se mais. À
primeira vista, a cena pode parecer sem importância, mas ela revela a predileção do
protagonista pelos comentários sobre os autores clássicos em detrimento da leitura integral do
romance. O acerto da ―estratégia‖ empregada será revelado mais tarde.
Do ponto de vista de um encadeamento estritamente dramático, a apresentação do
dormitório de Chris feita pelo corretor de imóveis, a refeição na lanchonete e a troca de livros
não são essenciais à configuração do enredo. A exposição da trajetória ascendente de Chris
Wilton não precisaria das cenas mencionadas. No entanto, elas são essenciais justamente por
não corroborar a ação. Assim como a utilização da música extra-diegética poderia ser
dispensada caso o diretor quisesse apenas contar a trajetória do protagonista, as cenas
apresentadas acima poderiam ser descartadas por Allen. Porém, elas devem ser entendidas
como recursos de distanciamento em relação ao protagonista.
32
A cena da troca de livros é seguida por um novo corte, restabelecendo no centro da ação
o Queen’s Tennis Club. No clube de tênis, o caráter repetitivo do trabalho de Chris é
ressaltado. Na apresentação de Chris, as cenas do trabalho são intercaladas com a do aluguel e
a da troca de livros. Allen monta o filme de forma que a leitura do Cambridge Companion
possa estar configurada como estratégia do protagonista para a ascensão social, conforme
mostraremos a seguir. Observa-se o Sr. Townsend e um jovem tenista aproximarem-se da
câmera. O patrão de Chris apresenta-o a seu novo aluno:
[Sr. Townsend]:―Chris Wilton, este é Tom Hewett.‖
[Tom Hewett]: ―Muito prazer em conhecê-lo.‖
[Sr. Townsend]: ―Eu acho que o Chris vai ser um instrutor perfeito
para você, ele é muito paciente. Ótimo em analisar as falhas dos jogadores.‖
[Tom Hewett]: ―Estou o fora de forma. Eu não jogo desde a
faculdade, e eu adorava, mas não pego numa raquete há séculos.‖
[Chris Wilton]: ―Não se preocupe, isso volta. O que você não pode
fazer é se apressar, ficar desanimado.‖
[Sr. Townsend]: ―Ok. Bem, boa sorte.‖
[Tom Hewett]: ―Muito obrigado‖.
[Chris Wilton]: ―Por aqui.‖
[Tom Hewett]: ―Ótimo‖.
Diferentemente dos alunos anteriores, Tom Hewett [Matthew Goode] é apresentado ao
protagonista por intermédio de Sr. Townsend, o que indica tratar-se de um aluno que se
destaca entre os ricos. O chefe de Chris não poupa elogios ao professor: ―Eu acho que o Chris
vai ser um instrutor perfeito para você, ele é muito paciente. Ótimo em analisar as falhas dos
jogadores.‖ A informação de que Chris é um bom analista ―das falhas dos jogadores‖ é um
detalhe a ser guardado pelo espectador, pois antecipa características de Chris como jogador
que serão expostas nas cenas subsequentes.
Em seguida, observa-se o jogo entre professor e aluno. Todavia, desta vez, após a aula
de tênis, Chris e Tom conversam enquanto tomam refrescos em uma mesa de bar no clube . A
cena é filmada em profundidade de campo, professor e aluno estão no edifício vitoriano, onde
Chris, outrora, restringia-se apenas ao espaço das quadras de tênis, local em que aulas aos
sócios do Queen’s. Durante o diálogo entre Tom e Chris, vê-se que o jovem Hewett interessa-
se pelo professor de tênis por conta de sua experiência no circuito internacional de tênis
(característica que fora sublinhada por Sr. Townsend no momento da contratação do
protagonista):
33
[Tom Hewett]: ―Ok, quem é melhor, ou mais difícil: Henman ou
Agassi?‖
[Chris Wilton]: ―Os dois eram ótimos.‖
[Tom Hewett]: ―Sim, eu sei. Mas você enfrentou os dois com classe.‖
[Chris Wilton]: ―Por um tempo. Mas, conforme o jogo continua você
vê como eles são bons.‖
Durante a conversa entre Tom Hewett e seu instrutor, o fato de que Chris jogou com um
dos melhores tenistas do mundo, o norte-americano Andre Agassi (ganhador de oito títulos de
torneios Grand Slam e famoso por sua imagem publicitária), mas também com Tim
Henman
56
, jogador que foi aclamado pela dia inglesa como a grande ―esperança
britânica‖
57
revelam que o instrutor de tênis foi selecionado por conta de sua elevada
experiência técnica, mas também por conta de sua inserção no circuito de tênis como evento
midiático, pois tanto o norte-americano como o britânico são bons exemplos das relações
entre o tênis e o showbusiness.
A habilidade do protagonista em impressionar não se apenas pela experiência em
competições internacionais de tênis: Chris também causa boa impressão pela cortesia para
com seus alunos abastados, trata-se de alguém que, entre os ricos, ―conhece o seu lugar‖. Da
forma como Allen monta a cena, o espectador poderá notar a carteira de Tom ao lado do
jovem Hewett. O garçom do estabelecimento passa em frente à câmera e deixa a conta ao lado
do sócio do clube. Chris tenta pagar a conta de maneira educada, mas é impedido pelo aluno:
[Chris Wilton]: ―Eu pago essa. Não, por favor, Tom, eu insisto.‖
[Tom Hewett]: ―Não, não. Tire o seu forehand poderoso daqui.‖
[Chris Wilton]: ―Obrigado. Eu pago a próxima.‖
Na cena que poderia apenas ilustrar uma inocente conversa entre professor e aluno,
configura-se mais uma peça do enxadrismo de Allen. A montagem feita pelo cineasta permite
ao espectador estabelecer relações entre a troca do romance Crime e Castigo pela coletânea de
56
Ver a sessão rankings e prêmios dos tenistas Andre Agassi e Tim Henman na Associação de Tenistas
Profissionais (ATP). Disponível em: <http://www.atpworldtour.com/Tennis/Players/He/T/Tim-
Henman.aspx?t=tf> e <http://www.atpworldtour.com/Tennis/Players/Ag/A/Andre-Agassi.aspx?t=tf>. Acesso
em: 13 jan.2010.
57
Aclamado pela mídia e pela rainha Elizabeth II, que concedeu ao tenista o prêmio de Officer of Order of
British Empire, Henman nunca ganhou um Grand Slam.
34
textos sobre Dostoievski e a cena seguinte em que o interesse por outro clássico da cultura
burguesa, a ópera, aproxima o instrutor de tênis ao aluno endinheirado:
[Tom Hewett]: ―Você quer uma carona?‖
[Chris Wilton]: ―Na verdade, eu estou procurando uma loja de música.
Quero comprar uns CDs.‖
[Tom Hewett]: ―Música por aqui? Eu acho que tem uma na Fulham
Road.‖
[Chris Wilton]: ―E eles têm uma sessão digna de ópera?‖
[Tom Hewett]: ―Ópera? Você gosta de ópera, verdade?
[Chris Wilton]: ―Eu amo ópera.‖
[Tom Hewett]: ―Papai doa toneladas de dinheiro para o Royal, em
Convent Garden. Sei que isto vai parecer meio estranho, mas quer ir à ópera
amanhã à noite?‖
[Chris Wilton]: ―À ópera?‖
[Tom Hewett]: ―A gente tem um camarote e uma pessoa não vai. Será
a Traviata.‖
[Chris Wilton]: ―Meus Deus, eu adoraria. Você tem certeza de que não
vou atrapalhar? Posso ao menos pagar pelo meu lugar?‖
[Tom Hewett]: ―Não vai atrapalhar, será um prazer. Eu gosto do
fato de que ambos amamos ópera. Ótimo.‖
A experiência de Chris no circuito internacional de tênis, aliada ao gosto do protagonista
por literatura e ópera estreitam os laços entre o irlandês e seus alunos ingleses milionários. O
tênis que conta com um circuito que sempre esteve ligado ao dinheiro, às grandes
premiações, ao público abastado que frequenta os eventos, aos clubes de sócios privilegiados,
etc. configura-se para o protagonista como uma habilidade que permite acesso ao mundo
dos ricos. Além de ter jogado com os famosos e melhores tenistas, enfrentando-os ―com
classe‖, Chris adora ópera, característica que aproxima ainda mais Tom Hewett de seu
professor.
Neste ponto, a ópera retorna ao filme como referência diegética e estratégia para a
ascensão social do protagonista. Após esta indicação de que o gosto de Chris por ópera
agradou Tom, Allen corta imediatamente para a fachada do Royal Opera House
58
. Em
seguida, o espectador é levado ao camarote dos Hewett, no qual estão os pais de Tom, Alec
[Brian Cox] e Eleanor [Penelope Wilton], e a irmã, Chloe [Emily Mortimer] em primeiro
58
Localizado em Convent Garden, o Royal Opera House é o mais famoso teatro londrino. A primeira
apresentação no local que se tem registro data de 1735. Em 1808, o edifício foi completamente destruído por um
incêndio, desde então, o teatro passou por inúmeras reformas. A fachada apresentada em Match Point integra a
construção antiga do teatro. Disponível em:<http://www.roh.org.uk/discover/royaloperahouse/history.aspx>.
Acesso em: 6 jun. 2009.
35
plano. Ao fundo podem-se observar os outros camarotes do teatro. Chris chega acompanhado
por Tom. O primeiro a cumprimentá-lo é o patriarca, que afirma ter ouvido dizer que Chris ―é
um ótimo tenista‖.
A ópera, que havia aparecido no prólogo do filme como música extra-diegética,
retorna como conteúdo da conversa entre Tom e Chris e reaparece como música diegética
enquanto os Hewett e Chris assistem à apresentação de La Traviata
59
. O trecho apresentado
no filme é cantado por Alfredo, no qual o personagem declara seu amor pela cortesã Violeta
(a traviata do título). A ―transviada‖ do filme está ausente da cena Nola ainda não fora
apresentada a Chris , mas o filme antecipa o desenvolvimento da ação ao incluir a
personagem por meio da música extra-diegética: a presença de Nola é marcada pela sua
ausência. Se no plano da ópera, o jovem rico Alfredo revela que está apaixonado pela
prostituta Violeta, no filme, Allen apresentará o descaso de Tom por sua namorada, que pode
ser associada à transviada Violeta. Nola é a ―pessoa que não virá à ópera‖ e que lugar no
camarote dos Hewett ao tenista irlandês. Desse modo, desde a primeira menção à jovem atriz,
ela tem suas chances de entrada na família reduzidas quando comparadas às do protagonista.
Na ária apresentada no filme, as palavras Di quell'amor ch'è palpitoparecem indicar
―o efeito que surte nela [Violeta] o amor sincero de Alfredo‖
60
, o que contrasta com a ação do
filme em que o jovem Hewett despreza a namorada e Chris tenta conquistar a família
endinheirada. Outro indício da oposição entre a ópera e a imagem dar-sepela sugestão do
interesse da irmã de Tom pelo tenista. O ―dia feliz etéreo‖ pode ser entendido como o sucesso
do arrivista que causa boa impressão na família Hewett e desperta o interesse da jovem
herdeira. A interrupção brusca da ária de La Traviata relativiza o discurso proferido pelo
protagonista, assim como no caso de O Elixir de Amor, apresentado no prólogo do filme. A
cena termina com Alfredo dizendo ser ―misterioso‖ esse amor por Violeta. Ao invés de trazer
continuidade ao desenvolvimento da narrativa, o uso da ópera no filme faz com que ―não
fiquemos muito identificados e nos mantenhamos distanciados em face dos personagens e de
seus desastres‖
61
.
59
La Traviata é interpretada pela companhia Slovak Radio Symphony Orchestra and Chrorus. Podemos observar
que o uso de óperas no filme não é nada casual, as óperas comentam a ação. As gravações presentes no filme
são ou de apresentações antigas, cantadas por Enrico Caruso, ou interpretadas pela companhia eslovaca,
contratada por Allen para interpretar árias específicas para o filme.
60
Kobbé, op. cit., p. 326.
61
Rosenfeld, op.cit., p.157.
36
A montagem destas cenas primeiro, a conversa entre professor e aluno no clube de
tênis, onde o protagonista manifesta o seu interesse por ópera e em seguida é convidado para
o camarote dos Hewett; depois, a apresentação de La Traviata no Royal Opera House,
ocasião em que Chris conhece os pais e a irmã de Tom; e por último, o convite para a casa de
campo demonstram a rápida aproximação entre o jovem professor de tênis e a elite
britânica. Na cena seguinte à apresentação da ópera La Traviata, Tom comenta a boa
impressão que Chris causou nos Hewett. Em seu escritório, composto por mobília antiga,
livros, pinturas a óleo, jornais, papéis, agendas, telefones e um computador, o jovem
milionário relata a Chris que Alec e Eleanor adoraram as flores enviadas pelo protagonista em
agradecimento ao convite para a ópera. No diálogo entre camaradas pelo telefone, Tom diz
que, apesar de ―desnecessário‖, Chris fez muito bem em enviar as flores: ―Meus pais adoram
esse tipo de coisa‖. Na cena fica evidente que Chris agradou a família e que é convidado para
o fim de semana na casa de campo por conta da boa impressão que os pais e a irmã de Tom
tiveram a respeito de Chris. A finesse do jovem tenista irlandês prossegue na cena seguinte
em que o protagonista joga com Tom na casa de campo em Hedley
62
. Chris passou da quadra
de tênis do Queen’s, onde é professor, para a visita à casa de campo de um dos sócios do
clube. Durante o jogo no Englefield Estate
63
, Tom desiste da partida de tênis e pede para que a
irmã o substitua:
62
Os personagens de Match Point referem-se à casa de campo apresentada no filme como Hedley. A cidade
Hedley não existe, no entanto a casa de campo apresentada no filme é bastante conhecida: trata-se do Englefield
Estate, localizado no condado de Berkshire. O nome Englefield significa Englishmen’s (Battle) Field, ou seja,
campo de batalha dos ingleses. ―A casa de campo foi residência da família Englefield desde o reinado de Edgar,
o ―pacificador‖, no início do século IX. Embora Sir Francis Englefield tenha se esforçado para manter a casa,
depois de quase 800 anos de residência, a família foi forçada a deixar a propriedade, em 1550, devido à sua
crença no catolicismo. Eles, no entanto, permaneceram fiéis à sua antiga casa e continuaram a ser enterrados na
Capela de Englefield, até 1822. A casa passou pelas mãos de diversos não-residentes, depois da saída dos
Englefield, embora o conde e a condessa de Essex parecessem ter um interesse nela. Em 1635, o genro da
condessa, Marquês de Winchester, comprou a propriedade e foi em Englefield que ele se aposentou, após o seu
retorno do exílio durante o Commonwealth. Os descendentes do Marquês, os Powlets e os Wrights, continuaram
a viver na residência durante os séculos XVII e XVIII, até que a casa passou, por casamento, à família Benyon,
seus atuais proprietários.‖ Conforme verbete ―Englefield House‖ na Enciclopédia Britânica. Disponível em:
<http://www.britannia.com/history/chouses/berks/englefieldhse.html>. Acesso em: 13 jan, 2010.
63
Em O campo e a cidade, Raymond Williams analisa, entre outros aspectos que serão retomados ao longo deste
trabalho, a importância da mansão senhorial: ―Neste ponto, contudo, normalmente constatamos que os
iniciadores dos melhoramentos, os comandantes das transformações, já chegaram há mais tempo e estabeleceram
raízes mais profundas realizaram uma divisão bem-sucedida em proveito próprio. A mansão senhorial [...]
foi uma das primeiras formas que esta solução temporária assumiu, e, no século XIX, ao mesmo tempo que os
novos senhores da produção capitalista construíam mansões novas, recuperava-se igual número de mansões
antigas, outrora dos antigos senhores por vezes ancestrais dos novos da velha ordem rural‖. Ver: Williams,
Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura / Raymond Williams; trad. Paulo Henriques Britto. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p 393.
37
[Tom Hewett]: ―Chlo-Chlo, você quer jogar com o Chris? São 5 horas
da tarde e eu tenho que começar a fazer uns coquetéis. Irlandês, você
provou cuba libre ou caipirinha?‖
[Chloe Hewett]: ―Chris ficaria muito entediado se jogasse comigo.‖
[Tom Hewett]: ―É tedioso jogar comigo, mas ele é um bom esportista.
De qualquer forma, você tem pernas melhores do que as minhas. Vamos,
vamos!‖
[Chris Wilton]: ―Não seja boba. Ensino pessoas que nunca tiveram
uma raquete antes.‖
[Chloe Hewett]: ―Eu sou tão ruim.‖
[Chris Wilton]: ―Mas, é assim que evolui, jogando com um jogador
melhor. Vamos.‖
[Chloe Hewett]: ―Está bem.‖
Tom marca a origem social do protagonista ao chamar seu professor de irlandês. Por
estar perdendo o jogo e não conseguir acompanhar o ritmo do tenista, Tom desiste da partida.
Todavia, ele não abandona o jogo sem antes provocar o irlandês: ―Você provou cuba libre
ou caipirinha?‖ A origem social do protagonista, combinada à oferta de famosos coquetéis, de
certa forma, retoma o preconceito e conflito histórico entre Inglaterra e Irlanda, no qual
persiste a ideia de que os irlandeses seriam ―grosseiros e bêbados‖
64
. Se por um lado a fala de
Tom por sua grosseria ―desmascara a própria civilidade britânica‖
65
, por outro, ela mostra que
Tom sabe que Chris quer impressionar a família, comportando-se de maneira apropriada.
O anúncio de que Chris é irlandês contribui para as informações as quais o espectador
tem acesso a respeito do protagonista. Na quadra de tênis da casa de campo, Tom repassa a
raquete à irmã. Os irmãos aparecem separados do professor por meio de uma grade. O olhar
da câmera não acompanha o protagonista, mas observa a jovem inglesa durante o jogo. A
maneira de jogar de Chloe assemelha-se a dos outros alunos de Chris no Queen’s. Nesse
ponto, Chris, que fora convidado para o fim de semana na casa de campo e que tenta
comportar-se como um convidado dos Hewett, aparece como professor de tênis. Tanto no
Queen’s quanto no Englefield Estate, ele está trabalhando.
64
―Para o irlandês, a aguardente é a única coisa que dá sentido à vida; a aguardente e, claro, o seu temperamento
desleixado e jovial: eis por que se entrega à bebida até a mais completa embriaguez. O caráter meridional,
frívolo, do irlandês, a sua grosseria, que o coloca a um nível pouco superior ao do selvagem, o seu desprezo por
todos os prazeres mais humanos, que é incapaz de experimentar precisamente devido à sua rudez, sujeira e
pobreza, são outras razões que favorecem o alcoolismo.‖ Ver: Engels, Friedrich, 1820-1895. A situação da
classe trabalhadora na Inglaterra./ Engels; trad. Rosa Camargo Artigas, Reginaldo Forti. São Paulo: Global,
1985, p.111-112.
65
Eagleton, Terry. Heathcliff and the Great Hunger Studies in Irish Culture. London: Verso, 1995, p.9.
38
No plano do enredo, o jogo de tênis serve para aproximar Chloe e Chris. Ao final do
jogo, o professor a elogia: ―Você tem um estilo único‖. Sabendo que o elogio é descabido, a
jovem nega a lisonja: ―Claro, chama-se desastrado‖. Por trás das árvores da propriedade, a
câmera distancia-se do casal. A irmã de Tom pergunta sobre a habilidade técnica do tenista
irlandês: ―Afinal, como você conseguiu ser tão bom? Tom me disse que você jogou com os
melhores.‖. O protagonista retoma na resposta à jovem herdeira sua origem social: ―foi um
jeito de sair da existência pobre. Atraí a atenção de um bom treinador. Não sei. No começo foi
tão fácil‖. Apesar da destreza como esportista, o protagonista revela que não gosta de ser
professor: ―Por ora está bom, mas eu me mataria se tivesse que fazer isso para sempre.
Gostaria de fazer algo da minha vida, sabe? Algo especial. Queria dar uma contribuição.‖
Neste ponto, da aproximação entre a jovem inglesa rica e o irlandês, o filme reverte uma
relação histórica, cuja melhor formulação na cultura britânica é aquela do romance O morro
dos ventos uivantes (1847), de Emily Brontë. Na primorosa análise do romance feita por
Terry Eagleton, a caracterização de Heathcliff como ―sujo, áspero, selvagem e demoníaco‖
66
seria uma maneira de falar dos ingleses típica para caracterizar os irlandeses. A contrapelo da
ideia do ―romance eterno‖ entre Heathcliff e Cathy, Eagleton argumenta que ―(...) a história, a
propriedade e o poder são os responsáveis pelo encontro entre Catherine Earnshaw e
Heathcliff, não o sagrado amor matrimonial ou o afeto filial‖
67
. A história de luta entre
irlandeses e ingleses e o interesse pela propriedade e pelo poder aproxima, portanto,
Heathcliff de Chris Wilton (conforme procuraremos demonstrar a seguir). De certa maneira,
Heathcliff preserva a diferença e se revela como a face mais violenta da dominação, entre
outros aspectos. Por sua vez, neste ponto do filme, Chris imita a classe dominante, tenta
vestir-se como Tom, ler os clássicos, apreciar ópera, frequentar galerias de arte, etc. Um dos
momentos no qual Chris, assim como Heathcliff tenta esconder suas origens, ocorre quando
ele pede licença à herdeira para trocar de roupa: ―os seus convidados não devem estar
esperando um tenista suado‖, buscando retirar qualquer vestígio que esteja relacionado ao seu
trabalho como empregado dos ingleses ricos. Chris busca não aparentar suas origens: ele fala
pouco e apenas quando lhe perguntam sobre a sua vida na Irlanda, não tem sotaque irlandês,
trabalha para os ingleses ricos e imita o gosto dos seus alunos abastados. Chris é
apresentado à família e convidado para o fim de semana na casa de campo.
66
Eagleton, op.cit., p.3.
67
Ibid., p.18.
39
Depois da conversa com a jovem herdeira, Allen corta para um plano geral dos jardins
da casa de campo onde estão os outros convidados dos Hewett. Chris não está entre os amigos
da família que conversam no local, o que revela que seu convívio, por enquanto, está restrito
aos irmãos Hewett e à quadra de tênis, situada nos fundos da residência. A introdução da cena
no filme marca a ausência do protagonista. Novamente, a obra vai além do olhar do
protagonista, pois o espectador não tem acesso apenas ao que Chris vê. Na cena dos jardins da
residência, Allen introduz outra música extra-diegética, a ópera Il Trovatore
68
, de Giuseppe
Verdi:
[Manrico]: Mal reggendo all'aspro assalto,/ Ei già tocco il suolo
avea: / Balenava il colpo in alto / Che trafiggerlo dovea... / Quando arresta
un moto arcano, [...]”
A introdução da ópera no filme oferece outro elemento ao espectador que antecipa a
ação. O trecho da ópera selecionado por Allen apresenta o momento em que Manrico explica
por que poupou no duelo a vida do conde de Luna: o trovador afirma ―ter ouvido uma voz
dizer-lhe para que poupasse o adversário, no momento em que se preparava para golpeá-lo‖
69
.
Se na ópera um ―assalto amargo‖ contra o conde, no filme a imagem revela o seu oposto,
ou seja, o fascínio do protagonista pela aristocracia. Tanto o emprego no famoso clube de
tênis quanto o convite para a apresentação de ópera, o interesse de Chloe pelo protagonista, as
flores enviadas por Chris à família e o fim de semana na casa de campo são indícios de que
Chris não tentará golpear o conde, mas aliar-se a ele.
Desse modo, a introdução da ária Mall reggendo all’aspro assaltonão entra criando
identificação entre o personagem e a música, ou seja, corroborando a trajetória de Chris; ela
ressalta o contraste entre a revolta contra o conde e a aliança com a família Hewett. No plano
68
A ópera trata da vingança de Azucena, filha de uma velha cigana que foi queimada viva por ter sido acusada
de ter enfeitiçado o filho mais novo do conde de Luna. Azucena seqüestra o filho do conde com a intenção de
atirá-lo às chamas da fogueira. Ainda transtornada pela morte da mãe, no entanto, ela lança ao fogo seu próprio
filho. Decide então criar o filho do conde Manrico, o trovador como se fosse seu, na esperança de um dia
vingar sua mãe através dele. Ao começar a ópera, Manrico é adulto, Azucena está envelhecida, o velho conde
morreu e seu filho mais velho o conde de Luna é seu único herdeiro. O conde quer ver capturado o
misterioso trovador que tem feito serenatas à duquesa Leonora, objeto de sua paixão não correspondida. O conde
e Manrico duelam por Leonora, mas o trovador poupa a vida do conde. Na tentativa de salvar Azucena, Manrico
acaba capturado pelo conde. Para libertar o trovador, Leonora promete casar-se com o conde, no entanto, ela traz
no dedo um anel com veneno, que ingerirá uma vez libertado Manrico. Leonora morre nos braços do trovador, o
conde de Luna encontra-os e ordena que Manrico seja morto. Após a morte do trovador, Azucena revela ao
conde que Manrico era seu irmão. Ver Kobbé, op.cit. p.321-325.
69
Ibid., p.323.
40
da imagem, a câmera acompanha o percurso do protagonista que, vestido apropriadamente
para o encontro com os convidados dos Hewett, desce as escadas
70
da residência (cena que
será recorrente no filme) admirado com os pertences da família: ele observa as pinturas a óleo
dos ancestrais da família, as partituras, as porcelanas antigas e a biblioteca magnífica,
percurso que salienta a base material da aliança. Ao sair da biblioteca, o barulho de bolinhas
de pingue-pongue se sobrepõe à ópera. Chris caminha em direção ao ruído que é cada vez
mais nítido; a ópera é interrompida no verso Che trafiggerlo dovea...‖
71
, Allen corta a cena e
apresenta o início do ―golpe‖, que não será contra o conde. A ópera antecipa o duelo entre
irmãos que se seguirá no filme.
1.2 Apresentação de Nola Rice
―É o lugar do olhar e a possibilidade de variá-lo e de expô-lo que definem o cinema. [...] Ultrapassando o
simples realce da qualidade de ser olhada, oferecida pela mulher, o cinema constrói o modo pelo qual ela deve
ser olhada, dentro do próprio espetáculo. Jogando com a tensão existente entre o filme enquanto controle da
dimensão do tempo (montagem, narrativa), e o filme enquanto controle das dimensões do espaço (mudanças de
distância, montagem), os códigos cinematográficos criam um olhar, um mundo e um objeto, de tal forma a
produzir uma ilusão talhada à medida do desejo. São estes códigos cinematográficos e sua relação com as
estruturas formativas externas que devem ser destruídos no cinema dominante, assim como o prazer que ele
oferece deve também ser desafiado.‖
Laura Mulvey, Prazer visual e cinema narrativo.
Em contraponto a Chris, a antagonista é apresentada por meio de uma rima visual com
a cena de abertura do filme. Assim como o protagonista, Nola [Scarlett Johansson] aparece
como uma jogadora entre os Hewett, separada dos outros convidados, porém, aceita por seus
dotes físicos e sua inserção no showbusiness. No momento da entrada de Nola, o filme que
70
―Na verdade, a forma atual da casa e sua decoração não são muito diferentes do que pode ser visto na pintura
de John Constable, de 1832, ou no segundo plano do retrato de Powl Wrighte, por volta de 1775. Englefield é
uma casa elisabetana, cuja planta sofreu remodelações nos séculos XVIII e XIX, sem nunca sofrer nenhuma
drástica alteração em seu plano básico ou no estilo de sua fachada externa. [...] Sem dúvida, a maior parte do
mobiliário, armários e porcelanas que iluminam a casa hoje foram trazidos do Oriente [...]. Elementos
decorativos deste período sobrevivem na sala para fumantes, na sala de jantar e na sala de estar, mas a identidade
do arquiteto responsável permanece incerta. [...] O teto da biblioteca e a ideia de uma escadaria imperial em
Englefield (1775) são realizações suficientes para fazer crer que o arquiteto James Wyatt foi, pelo menos,
consultado‖. Disponível em: <http://www.englefieldestate.co.uk/>. Acesso em: 6 jun. 2009.
71
O momento em que Manrico explica por que não esfaqueou o conde de Luna: ―Quando fui esfaqueá-lo...‖. A
voz que Manrico escuta impede o trovador de matar o irmão.
41
outrora demonstrara a cortesia do professor irlandês, agora, apresenta a brutalidade para com
a semelhante. A disputa, portanto, conforme antecipara a ópera Il Trovatore, dar-seentre
irmãos. Nola e Chris reconhecem-se na casa de campo: eles são jogadores, estrangeiros e
pobres em relação aos Hewett. Conforme procuraremos demonstrar ao longo da análise do
filme, apesar da semelhança física
72
, acentuada pela maneira como Allen apresenta-os e da
correspondência de classe, conserva-se a mulher como imagem, o homem como o dono do
olhar, conforme a famosa formulação de Laura Mulvey a respeito do prazer visual no cinema
narrativo, na qual se tem: ―Um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre
ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino determinante projeta sua fantasia na
figura feminina, estilizada de acordo com essa fantasia‖
73
.
A cena da apresentação de Nola dialoga com a maneira tradicional de representação da
mulher no cinema narrativo, na qual ―o olhar masculino determinante projeta sua fantasia na
figura feminina, estilizada de acordo com essa fantasia‖
74
. Até mesmo a escolha da atriz,
eleita diversas vezes entre as mais belas, corrobora para a caracterização de Nola como objeto
do desejo masculino. A personagem preenche o papel feminino tradicional exibicionista no
cinema narrativo, no qual ―as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua
aparência codificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual de forma a que se possa
dizer que conota a sua condição de ‗para-ser-olhada‘‖
75
.
Todavia, apesar da representação da mulher como objeto erótico
76
, do predomínio do
olhar masculino e da identificação entre este e o olhar do espectador, a condição de ―para ser
olhada‖ não se restringe à Nola, pois durante o filme existem diversas referências aos dotes
físicos do protagonista. Chris é também apresentado como objeto do desejo da jovem Chloe
Hewett e o ator escolhido por Allen também figura entre os mais belos eleitos pela dia.
Desse modo, tanto Chris quanto Nola executam a função do ―para-ser-olhada‖. Vejamos
como essa combinação entre semelhança e tensão é composta no filme.
72
Jonathan Rhys Meyer e Scarlett Johansson são fisicamente parecidos: brancos, loiros, lábios grossos, olhos
claros, estatura mediana.
73
Mulvey, Laura.―Prazer visual e cinema narrativo (1973)‖. In: A experiência do cinema: antologia / Ismail
Xavier (org.) Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983, p.444.
74
Ibid., p.444.
75
Ibid., p.444.
76
Conforme explica Mulvey: ―Tradicionalmente, a mulher mostrada funciona em dois níveis: como objeto
erótico para os personagens na tela e para o espectador no auditório, havendo uma interação entre essas duas
séries de olhares.‖ Ver: Mulvey, op.cit., p.444-445.
42
Em paralelo à cena de abertura, a câmera posiciona-se no meio da rede. Diferentemente
da aristocrática quadra aberta de tênis que caracterizara o protagonista, observa-se uma mesa
de pingue-pongue situada no interior da casa de campo. Pode-se ouvir o estridente barulho das
bolinhas. Assim como na cena de abertura do filme, o espectador acompanha o jogo sem ver
os jogadores. A bolinha, de movimento mais curto do que no tênis, bate na rede e cai para o
lado esquerdo, onde o escopo de visão do espectador é maior. Nesse momento, a câmera
subjetiva toma a posição do vencedor, que ainda não pode ser visto pelos espectadores. Ao
fundo, Chris assiste à partida, em primeiro plano, enquanto o perdedor abandona a raquete de
tênis de mesa e sai da sala de jogos. Sem que se possa -la, ouve-se a voz de uma mulher
dizendo:
―Então, quem é a minha próxima vítima?‖
O olhar da câmera subjetiva, portanto, permanece sob o controle da personagem que
emite a voz feminina e observa o protagonista. Neste ponto, a provocação emitida pela voz
feminina ao protagonista é evidente. Sem o uniforme de tenista, Chris que está vestido de
terno, camisa e calça social (semelhante aos outros convidados da família Hewett), encara a
jogadora. A câmera subjetiva muda de posição e toma o ponto de vista de Chris e observa-se a
femme fatale: loira de cabelo preso, vestido branco, iluminada pela luz do sol ao fundo. Assim
como Chris, Nola aparece como uma jogadora, porém, ela é desde o início apresentada como
objeto erótico do olhar masculino. Na casa de campo, Nola costuma usar as roupas que foram
utilizadas nos comerciais sensuais em que atuou, destacando-se como um objeto a ser
mostrado por Tom entre os convidados. Essa característica também a aproxima do ex-tenista
profissional que busca impressionar os Hewett e seus convidados por meio de suas
habilidades como tenista inserido no circuito internacional.
No momento da entrada de Nola, por intermédio do uso da câmera subjetiva, observa-se
que a visão da femme fatale é a de Chris: o espectador observa-a precisamente do ponto de
vista do protagonista. Respondendo à provocação feminina, o ex-jogador profissional afirma
que não joga ―tênis de mesa há muito tempo‖. A provocação feita pelo protagonista é
percebida neste momento apenas pelo espectador que sabe tratar-se de um ex-tenista
profissional e indica certo rebaixamento do jogo de pingue-pongue em comparação ao tênis.
O ex-jogador profissional faz uso da mesma justificativa anteriormente apresentada por seus
43
alunos para explicar o mau desempenho: Chloe e Tom afirmam ter parado de jogar tênis há
anos. A cena do jogo de pingue-pongue mimetiza a disputa entre Nola e Chris, intensificada
por meio da técnica do campo/contra-campo:
[Nola Rice]: ―Quer jogar a mil libras por partida?‖
[Chris Wilton]: ―No que me meti?‖
[Nola Rice]: ―No que eu me meti?‖
Chris arremessa violentamente a bolinha de pingue-pongue, Nola afasta-se e o
protagonista aproxima-se dela. O espectador observa, portanto, o ímpeto violento do ex--
tenista quando se trata de uma jogadora de pingue-pongue esporte que não é considerado tão
nobre quanto o tênis. Desse modo, durante a apresentação de Nola, certo desmascaramento
do protagonista.
Todavia, por ser mulher em um ambiente patriarcal, Nola aparece em desvantagem
quando comparada ao protagonista. Se contra o jogador inglês, amigo da família Hewett, Nola
ganhara a primeira partida de pingue-pongue com facilidade, o segundo jogo, no qual ela tem
Chris como adversário o ex-tenista profissional que fora classificado por Sr. Townsend
como um ―ótimo analista das falhas dos jogadores‖ , é violentamente decidido pelo
protagonista. Conforme fora demonstrado, a paciência e o pudor do professor de tênis que
se manifesta para com os ingleses ricos, desaparecem no encontro com a jogadora de pingue-
pongue.
A audácia de Chris em aproximar-se da jogadora contrasta com a distância
anteriormente apresentada entre o professor de tênis do Queen’s Tennis Club e seus alunos
ricos. A cena revela também que as chances de Nola no jogo são menores do que as do
protagonista. Nola é mais peça do jogo de Chris do que jogadora, o que fica evidente no modo
pelo qual o professor de tênis aproxima-se dela, dominando-a:
[Chris Wilton]: ―É assim, posso?‖
[Nola Rice]: ―Por favor.‖
[Chris Wilton]: ―Você tem que se inclinar e bater na bola.‖
[Nola Rice]: ―Eu estava indo bem até você aparecer.
[Chris Wilton]: ―A história da minha vida.‖
A cena antecipa o enredo, apresentando Nola como alguém que vencia o jogo até Chris
aparecer. O protagonista retoma a sua atuação como tenista ao dizer que essa seria ―a história
44
de sua vida‖. Portanto, ―curvar-se, bater na bola e ganhar o jogo‖ parece caracterizar o modo
de vida do protagonista. Admirador do domínio patriarcal, Chris interrompe o jogo de Nola.
A habilidade no esporte das elites, a vestimenta apropriada para as festividades na casa de
campo, o gosto por ópera e por autores clássicos e o sotaque semelhante ao de seus alunos dão
mais chances de entrada na família Hewett ao professor de tênis em comparação à Nola.
Em lugar de obedecer ―a tomada alternada, conforme a gica do texto, de um ou outro
interlocutor‖
77
, Allen apresenta a imagem de Nola sob o ponto de vista do protagonista. O
encontro entre Nola e Chris evidencia, aos olhos do espectador, que os dois estão em busca do
mesmo objetivo: entrar para o seleto mundo dos Hewett, ou seja, ascender socialmente por
meio do casamento
78
. O ex-jogador profissional identifica prontamente a condição de Nola na
família:
[Chris Wilton]: ―Então, me diga, o que uma jovem e bonita jogadora
norte-americana de pingue-pongue está fazendo no meio da classe alta
britânica?‖
[Nola Rice]: ―Ninguém nunca lhe disse que você joga
agressivamente?‖
[Chris Wilton]: ―Ninguém nunca lhe disse que você tem lábios muito
sensuais?
[Nola Rice]: ―Extremamente agressivo.‖
[Chris Wilton]: ―Eu sou naturalmente competitivo. Você não gosta?‖
[Nola Rice]: ―Terei que pensar nisso por um tempo.‖
Nola e Chris são interrompidos pela entrada de Tom que a apresenta como sua noiva.
Tom caminha em direção à câmera. Novamente, Allen utiliza o recurso da câmera subjetiva,
desta vez, para aproximar o olhar de Chris e Nola que observam a chegada do jovem Hewett.
[Tom Hewett]: ―Aí está você. Eu queria te apresentar para o Chris
Wilton. Chris Wilton, esta é Nola Rice, minha noiva‖.
[Nola Rice]: ―Então, você é o professor de tênis‖.
[Tom Hewett]: ―Oi, querida.‖
[Chris Wilton]: ―Muito prazer.‖
[Nola Rice]: ―Ele estava tentando me ganhar sobre a mesa.‖
79
77
Bazin, op.cit., p.75.
78
É importante notar ainda que o primeiro encontro entre Chris, Chloe, Nola e Tom aconteça no Englefield
Estate, propriedade que desde a Idade dia foi transmitida aos descendentes de uma mesma família por meio
do casamento.
79
No original em inglês, a conotação sexual explicita-se. Nola relata ao noivo a atitude do tenista: He was
trying to have his way with me over the table‖.
45
[Tom Hewett]: ―É mesmo? É melhor você tomar cuidado com este daí,
ele ganha a vida fazendo isso.‖
[Nola Rice]: ―Estarei pronta para você na próxima.
Tom apresenta Chris relacionando a atividade profissional deste à prostituição: ―É
mesmo? É melhor você tomar cuidado com este daí, ele ganha a vida fazendo isso.‖
80
Tom
utiliza o verbo hustle
81
para caracterizar as atividades profissionais de Chris. Em inglês, o
verbo pode significar: um movimento rápido, apressado como um empurrão, ou um atropelo;
vender ou obter coisas de forma ilegal ou desonesta e praticar um esporte de maneira
agressiva. Ou ainda, hustle pode designar o trabalho relacionado à prostituição: tanto aquele
que se prostitui quanto o que controla a atividade. Nesse ponto, apesar do olhar de Chris e
Tom identificar Nola como objeto do desejo masculino, a menção à prostituição revela que
não apenas a jovem norte-americana aspirante à atriz usa os dotes físicos para ascender
socialmente, como também o faz o protagonista.
Em seguida, Nola sai da sala de jogos, a câmera acompanha os seus passos, sob o olhar
de Chris e Tom. Os dois continuam fitando a porta da sala de jogos mesmo após a saída da
jovem. Assim, podemos afirmar que a composição da mise-en-scène na apresentação de Nola
aproxima Chris e Tom, os quais em relação à Nola apresentam o mesmo olhar voyeurista. No
entanto, a cena também revela que apesar da tentativa do protagonista de ―misturar-se à classe
alta britânica‖, o objeto do desejo é controlado por Tom, proprietário e noivo da jovem atriz.
Nola beija o noivo e provoca o protagonista (―Estarei pronta para você na próxima‖),
deixando os dois homens a sós:
[Nola Rice]: ―Vejo você lá fora.‖
[Tom Hewett]: ―Claro. Ela é muito boa, não é?‖
[Chris Wilton]: ―Há quanto tempo vocês estão juntos?‖
[Tom Hewett]: ―Seis meses. Meu Deus, seis meses! Ela veio para
estudar teatro, nos conhecemos numa festa, fiquei muito interessado e ela
também. Uma coisa levou a outra. Demorou um bom tempo para a minha
mãe se acostumar com a ideia de que era sério. Para te falar a verdade, a
minha mãe sempre teve uns planos esquisitos para mim que não envolve me
casar com uma atriz em dificuldade. Sobretudo uma americana. Mas sou
louco por ela. De qualquer forma, eu acho que nós deveríamos sair para
jantar semana que vem, que tal?‖
[Chris Wilton]: ―Eu adoraria.‖
80
Oh, really? You’d better watch out for this one. He’s made a living out of hustling.‖
81
Disponível em: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/hustle_1> e <http://www.merriam-
webster.com/dictionary/hustle>. Acesso em: 6 jun. 2009.
46
[Tom Hewett]: ―Ótimo. E agora, irlandês, que tal uma dose de uísque
antes do jantar?‖
[Chris Wilton]: ―Por que não?‖
[Tom Hewett]: ―Vamos. Depressa.‖
A conversa entre camaradas revela o controle das ações pelo anfitrião da casa. Tom
aponta os passos para Chris: ―E agora, irlandês, que tal um pouco de uísque antes do
jantar?
82
Novamente, o diálogo em inglês acentua a ironia. De modo sarcástico, Tom oferece
ao irlandês uma dose da bebida escocesa. Diferentemente da postura violenta demonstrada
com Nola, o protagonista não revida à provocação do jovem herdeiro, obedecendo aos
desígnios de seu aluno rico.
Ao trabalhar com o filme narrativo ilusionista, Allen conserva a ―imagem da mulher
como (passiva) matéria bruta para o (ativo) olhar do homem‖
83
. No entanto, o diretor faz uso
da câmera subjetiva situando a ideologia da ordem patriarcal sob o ponto de vista de Chris e
Tom (o herdeiro inglês que subordina os dois jogadores estrangeiros).
1.3 Uma tragédia americana
―Seria difícil resumir aqui toda a situação do romance: não se pode fazer em cinco linhas o que Dreiser precisou
de dois grossos volumes para fazer. Tocaremos apenas no ponto central do lado externo da história da tragédia
o próprio assassinato, apesar da tragédia, é claro, não estar nisto, mas sim no trágico curso seguido por Clyde, a
quem a estrutura social leva ao assassinato. E nosso roteiro dá atenção fundamental a isso.‖
Sergei Eisenstein, em Sirva-se! sobre a adaptação para o cinema do romance Uma tragédia americana..
Na cena da apresentação de Nola encontram-se ainda outras referências importantes
para a configuração do foco narrativo e a questão do protagonista. Allen faz referência ao
filme Um lugar ao sol (1951), de George Stevens. O paralelo entre o filme de Stevens e o de
Allen foi apontado por muitos críticos
84
, que limitaram-se a indicar a semelhança. Neste ponto
82
Now, Irish, how about a little drop of Scottish before supper?”
83
Mulvey, op.cit., p.451-452.
84
Destaca-se a comparação feita por Scott: ―A primeira pista de que ele [Chris Wilton] pode ser outra coisa do
que um meigo, bem-comportado puxa-saco acontece quando Chris encontra a noiva de Tom, a atriz norte-
americana Nola Rice (Scarlett Johansson), em uma cena que levanta a temperatura do filme de educado banho-
47
do trabalho, analisaremos o paralelo entre Um lugar ao sol e Match Point na cena da sala de
jogos. E em seguida, passaremos à comparação com o romance Uma tragédia americana, de
Theodore Dreiser, que originou o filme de Stevens, entre outros, conforme exporemos a
seguir.
A primeira diferença que se pode observar entre Chris Wilton e George Eastman
[Montgomery Clift], o protagonista de Um lugar ao sol, é que George é sobrinho de um
importante industrial norte-americano. O laço de parentesco possibilita a contratação do
protagonista nas empresas da família. No momento em que George chega à cidade para
trabalhar na empresa do tio, a família Eastman prefere ignorar a presença do sobrinho pobre,
excluindo-o do convívio social. Vemos aqui outra diferença entre George e Chris: o
protagonista de Um lugar ao sol estudou pouco e preserva os hábitos que revelam a sua
origem social, enquanto que, por sua vez, o protagonista de Match Point procura assemelhar-
se aos Hewett por meio do esporte, do vestuário, dos livros, da música, do sotaque, etc.
Quando é convidado para uma festa na casa do tio, George não é apresentado pela
família aos convidados, mas permanece como um estranho entre os ricos. O protagonista
refugia-se na sala de jogos, local onde encontra Angela Vickers [Elizabeth Taylor], a menina
rica pela qual se apaixona. Em Um lugar ao sol, a cena da sala de jogos aproxima o sobrinho
pobre dos Eastman da jovem rica. Diferentemente, em Match Point, a sala de jogos marca o
encontro entre os dois personagens de uma mesma classe social, o instrutor de tênis irlandês e
a atriz norte-americana de comerciais sensuais.
Outra diferença fundamental para este trabalho entre o filme de Stevens e o de Allen
está na maneira como os diretores compõem a cena. O foco narrativo em Match Point
aproxima-se do protagonista por meio da utilização da voz over e da câmera subjetiva,
enquanto Stevens faz uso do plano médio
85
. Em Um lugar ao sol, Angela entra na sala de
maria para a ebulição sexual. (A cena faz também uma homenagem discreta a Um lugar ao sol, adaptação do
diretor George Stevens do romance de Theodore Dreiser Uma tragédia americana. O paralelo não pára aí. O
rosto e olhar vigilante de Jonathan Rhys Meyers fazem lembrar Montgomery Clift. O que faz de Scarlett
Johansson ou a próxima Elizabeth Taylor, ou a nova Shelley Winters. Hmm.).‖ Ver Scott, A. O. ―London
Calling, With Luck, Lust and Ambition‖. In The New York Times. December 28, 2005. Disponível em:
<http://movies2.nytimes.com/2005/12/28/movies/28matc.html?ex=1165122000&en=f64b1c3ba6aceaa1&ei=507
0>. Acesso em: 6 jun.2009.
85
Segundo Xavier, plano médio ou de conjunto é usado para ―situações em que, principalmente em interiores
(uma sala, por exemplo), a câmera mostra o conjunto de elementos envolvidos na ação (figuras humanas e
cenário). A distinção entre plano de conjunto e plano geral é aqui evidentemente arbitrária e corresponde ao fato
de que o último abrange um campo maior de visão‖. Ver Xavier, Ismail. O discurso cinematográfico: a
opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.27.
48
jogos e impressiona-se com a habilidade do jovem desconhecido. Os dois trocam olhares e se
cumprimentam. A introdução da música extra-diegética acompanha o ar de romance suscitado
pela imagem. Pode-se observar também a diferença social ao comparar o sotaque de Angela,
proveniente de Lycurgus, Nova Iorque, com o de George, de Kansas City.
Por meio do plano médio, acompanhamos o movimento de Angela que perpassa a mesa
de bilhar, observando George: ―Vejo que você desperdiçou a sua juventude. Por que está
sozinho? Você é reservado? Dramático? Melancólico?‖. Angela aproxima-se de George que
permanece parado, esperando-a. Ele responde que está ―apenas passando o tempo‖ e a
convida para jogar. A jovem recusa, encosta na parede e diz que quer somente observá-lo. Em
comparação a Match Point, a proximidade entre os personagens Chris e Nola no primeiro
encontro contrasta com o distanciamento entre George e Angela, que recusa o convite para
jogar com o estranho. A aproximação/distância entre os personagens deve-se à
semelhança/diferença de classe.
George, antes de voltar a jogar, olha para Angela. A jovem rica o questiona: ―Deixo
você nervoso?‖. Angela identifica que George parece um Eastman: ―Você é um deles?‖ O
protagonista apresenta-se como um sobrinho. A concisão em identificar as classes sociais
aproxima Um lugar ao sol a Match Point. No entanto, no filme de Stevens, ela é marcada pela
diferença. Em comparação, no filme de Allen, a mulher apresentada na sala de jogos é assim
como o protagonista, pobre em relação aos Hewett.
Assim como Tom em Match Point, no filme Um lugar ao sol, Angela observa e controla
as ações do protagonista. Por sua origem social, a personagem Angela aproxima-se dos
irmãos Hewett. A veneração de George pelos ricos evidencia-se na cena, quando ele diz à
jovem rica que acompanha seus passos por meio das colunas sociais. Assim como Chloe, o
interesse de Angela pelo jovem pobre advém dos atributos físicos do protagonista. Angela diz
a George que ele ―não parece comum.‖ O atributo do protagonista em parecer-se com o
primo, aproxima-o da jovem rica. Assim como os irmãos Hewett fazem com Chris, Angela
conduzirá o protagonista ao convívio com os ricos.
Outro indício no filme de Stevens de que são os ricos que controlam os movimentos do
protagonista pode ser observado por meio da entrada do anfitrião da festa, o tio de George,
Samuel Griffiths. Sem apresentar o sobrinho à convidada, o industrial pergunta a respeito da
mãe do protagonista. Samuel pede para que George escreva a ela contando sobre a promoção
49
que ele ofereceu a George. Samuel relata à convidada Angela suas benfeitorias sociais: ―Eu o
fiz subir um degrau. Ele é um garoto esperto‖. Dessa maneira, o anfitrião pede para que
George ligue para a mãe ―imediatamente para contar as boas notícias‖.
O protagonista afasta-se de Angela para fazer a ligação. Enquanto isso, a jovem socialite
brinca com a bolinha de bilhar. A cena é cortada para a Missão Independente de Bethel, no
Kansas, espécie de local de culto religioso em que a família de George habita, onde o
espectador pode observar o aviso: ―Há quanto tempo você não escreve para a sua mãe?‖
Apesar da tentativa do protagonista de buscar privacidade e não expor-se frente aos ricos,
Angela ouve a conversa de George com a mãe. Durante a ligação telefônica, a jovem rica abre
um champanhe. O barulho interrompe a conversa por telefone. Angela brinca com a mãe de
George: ―Sou eu, mamãe‖. Assim como Tom, Angela zomba do protagonista: ―Você
prometeu ser um bom garoto? Não perder tempo com garotas? Ela o deixou sair esta noite?
Deixou você dançar?‖ A jovem rica faz a passagem da sala de jogos para o convívio entre os
convidados ricos da festa: ―Vamos, levarei você para dançar no seu aniversário, menino
triste‖.
Dessa forma, na cena da sala de jogos do filme de Stevens, filmada em plano médio, o
protagonista apaixona-se pela jovem rica que o conduz à alta sociedade. Por sua vez, na sala
de jogos do filme de Allen, por meio da utilização da câmera subjetiva, a visão de Nola como
objeto erótico é compartilhada por Chris, Tom e o espectador. O protagonista alia-se ao jovem
rico e a batalha não será contra as barreiras sociais que impedem a entrada do protagonista à
alta sociedade (como no filme de Stevens). Haverá uma luta intra-classes, conforme indica a
partida de pingue-pongue. Nola e Chris não se unem com o intuito de lutar contra o opressor,
mas rivalizam entre si a aliança com a família rica.
Após apresentar as semelhanças e diferenças entre Um lugar ao sol e Match Point
retomaremos o romance Uma tragédia americana (1925), de Theodore Dreiser. A obra de
Dreiser é recorrente na história do cinema: o romance deu origem aos trabalhos inconclusos
de alguns dos principais cineastas do mundo, tais como David Wark Griffiths, Ernst Lubitsch
e Sergei Eisenstein e foi adaptado por F.W. Murnau, no filme Aurora
86
(1927); Joseph von
Sternberg, em Uma tragédia americana (1931) e, finalmente, conforme exposto acima, por
George Stevens, em Um lugar ao sol (1951).
86
No original Sunrise: a song of two humans.
50
No intuito de expor a configuração do foco narrativo em Match Point, utilizaremos
algumas das reflexões sobre o romance de Dreiser feitas por Eisenstein. A escolha pelo texto
de Eisenstein deve-se ao fato de que o cineasta russo apresenta no artigo
87
sobre Uma
tragédia americana, escrito em 1932, a exposição sobre o ―monólogo interior
cinematográfico, cujo alcance é muito mais amplo do que o permitido pela literatura‖
88
.
Dreiser e Eisenstein trabalharam juntos para que o filme dirigido pelo cineasta russo fosse
realizado. Dreiser inclusive elogiou as alterações feitas por Eisenstein. No entanto, os estúdios
Paramount, que detinham os direitos autorais para a adaptação cinematográfica do romance de
Dreiser, não concordaram com o tratamento dado por Eisenstein e entregaram o direito de
adaptação do romance a Josef von Sternberg que atendeu ―aos desejos do estúdio e filmou
um simples caso policial‖
89
. A adaptação de Sternberg foi feita, portanto, a contrapelo de
Dreiser, que levou os estúdios Paramount aos tribunais para que o seu romance fosse adaptado
por Eisenstein. Apesar do trabalho de Eisenstein sobre o romance de Dreiser ter sido
censurado pelos estúdios, e por isso o filme não fora realizado, as reflexões do cineasta sobre
a adaptação do livro e as possibilidades de utilização do monólogo interior no cinema são de
extrema importância para esta análise do filme de Woody Allen.
No plano do enredo, as semelhanças entre o protagonista do romance de Dreiser Clyde
Griffiths e Chris Wilton são significativas: os dois são filhos de pastores de origem pobre,
desejam ascender socialmente, viajam para a cidade em busca de melhores oportunidades,
envolvem-se com uma garota pobre que engravida e representa uma ameaça ao casamento
com uma menina rica e por fim, decidem assassinar a namorada pobre, visando uma carreira
promissora e o sucesso ao lado dos ricos. Todavia, Clyde Griffiths não é culpado.
Apesar da indiscutível evidência de que Clyde planejara o assassinato, no momento do
crime ele vacila. No entanto, percebendo as intenções de Clyde, Roberta Alden (a garota
pobre que está grávida de Clyde) desespera-se. Ela aproxima-se de Clyde, mas desequilibra-
se. Acaba batendo a cabeça na câmera fotográfica do protagonista, a canoa vira e os dois
87
Existem duas traduções para o português do artigo de Eisenstein, ambas utilizam a versão americana do texto
originalmente publicado em Proletarskoye Kino, 17/18, em 1932. Na tradução em inglês, o texto está
publicado com o título A course in treatment”, no livro Film form (Meridian Books. New York, 1957). A
versão utilizada neste trabalho parte do livro A forma do filme, trad. Teresa Otoni. A primeira tradução para o
português foi feita por Vinicius Dantas e pode ser encontrada sob o título ―Da literatura ao cinema: Uma
tragédia americana‖, na antologia A experiência do cinema. Não existe tradução direta do original russo para o
português.
88
Eisenstein, Sergei (1898-1948). A forma do filme / Sergei Eisenstein; apresentação, notas e revisão técnica,
José Carlos Avelar; trad.Teresa Otoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p.104.
89
Ibid., p.106.
51
caem no rio. Para mostrar a febril corrida de pensamentos do protagonista, Dreiser descreve
―os murmúrios interiores de Clyde‖
90
:
Você pode salvá-la. Mas ao mesmo tempo não pode! Veja como ela se
debate. Ela está atordoada. Ela é incapaz de salvar-se, está aterrorizada, se
você se aproximar dela agora, isso pode provocar a sua morte também. Mas
você deseja viver! E a vida dela vai fazer a sua não valer a pena a partir de
agora. Espere um pouco uma fração de minuto! Espere espere ignore a
piedade deste apelo. E então então está! Olhe. Acabou. Ela está
afundando agora. Você nunca mais vai vê-la viva para sempre.
91
Conforme argumenta Eisenstein, ―as aventuras de Clyde em seus choques com a
realidade norte-americana haviam moldado sua psicologia, de modo que, após uma longa
luta interior (não devido a princípios morais, mas à sua própria e neurastênica falta de
caráter), ele se decide pela última opção‖
92
. Para Eisenstein, o crime planejado pelo jovem
deveria ser entendido, como ―a soma total das relações sociais cuja influência ele sofreu em
todos os estágios de desenvolvimento de sua biografia e caráter, no decorrer do filme.‖
93
Das adaptações para o cinema supracitadas, a cena do afogamento da garota pobre é a
que mais trouxe controvérsia. Nos filmes de F.W. Murnau, Josef von Sternberg e George
Stevens, a cena foi trabalhada de maneira diversa da proposta por Eisenstein e aprovada por
Dreiser, na qual, a sequência dos acontecimentos na vida de Clyde, a estrutura social, leva ao
assassinato. O monólogo interior também não foi alcançado por nenhum desses autores que
adaptaram Uma tragédia americana. Para Eisenstein, toda a perturbação e a luta interior do
protagonista seriam expostas por meio do monólogo interior: ―a câmera tinha de ir ―dentro‖
de Clyde. Auditiva e visualmente, era preciso mostrar a febril corrida de pensamentos
intercalados com a realidade externa o barco, a moça sentada do lado oposto a ele, suas
próprias ações.‖
94
No filme de Murnau, Aurora (1927), observa-se o encantamento do pequeno fazendeiro
pela garota da cidade. A arrivista planeja o crime e pede para que ele execute-o, afogando a
esposa. Fascinado pela possibilidade de sucesso na cidade ao lado da arrivista, o pequeno
90
Ibid., p.103.
91
Dreiser, Theodore. An american tragedy (1925). New York: Signet Classic, 2000, p.514.
92
Eisenstein, op.cit., p.99.
93
Ibid., p.98.
94
Ibid., p.103.
52
fazendeiro leva a esposa até o barco, mas não comete o crime. Acompanhamos os seus olhos
agitados, as sobrancelhas arqueadas, as mãos trêmulas. A esposa descobre o intento do marido
e afasta-se dele. O pequeno fazendeiro rema até a cidade. Em meio ao caos da metrópole, o
casal se reaproxima. No retorno à fazenda, uma forte tempestade faz o barco virar. Todavia, a
esposa é salva pelos gravetos que o marido lhe dera e por outros pequenos fazendeiros que a
encontram. Assim, o jovem casal é restabelecido, eles voltam à casa junto ao filho e a
forasteira é expulsa da comunidade.
Conforme se pode observar, o filme de Murnau faz diversas intervenções no enredo do
romance de Dreiser, culminando no restabelecimento da família de pequenos proprietários. O
filme de Sternberg transformou o romance em um ―simples caso policial‖
95
. Por sua vez,
Stevens, em Um lugar ao sol (1951), segue o enredo de Dreiser. No intuito de casar-se com a
jovem rica Angela, George leva a garota pobre Alice Tripp [Shelley Winters], que espera um
filho dele, para o passeio de barco. Todavia, no momento decisivo, ele não consegue
prosseguir. A música extra- diegética utilizada por Stevens intensifica o suspense da cena.
Alice desequilibra-se no barco, cai e se afoga. George foge e vai ao encontro de Angela, mas
é capturado pelos policiais, julgado e condenado à cadeira elétrica, como no romance de
Dreiser.
A utilização da música extra-diegética no filme de Stevens é um exemplo da maneira
tradicional do cinema clássico de inclusão da música na narrativa. Stevens realiza exatamente
o que Brecht caracteriza como a utilização padrão do cinema narrativo. O exemplo abaixo,
retirado do texto de Brecht, refere-se precisamente à adaptação para o cinema do romance de
Dreiser:
Um jovem leva a namorada para um passeio de canoa no lago, o barco
vira e ele deixa a garota se afogar. O compositor tem duas opções: ele pode
antecipar os sentimentos do público por meio da música de
acompanhamento, desenvolvendo a tensão, aumentando o mal do
acontecimento, etc. Ou então, ele pode expressar por meio da música a
serenidade do lago, a indiferença da natureza, o caráter cotidiano do evento,
na medida em que é um simples passeio de barco. Se ele escolher esta última
opção, permitirá que o assassino pareça ainda mais terrível e antinatural, ele
dá a música uma função mais independente.
96
95
Ibid., p.106.
96
Brecht, Bertolt (1898-1956). Brecht on film and radio transl. and edited by Marc Silberman. Methuen, 2000,
p.14.
53
A partir das reflexões de Brecht, podemos observar que o filme de Stevens faz uso da
tradicional música de acompanhamento: a música desenvolve a tensão e acompanha o enredo.
Por intermédio da leitura do artigo de Eisenstein, vemos que o cineasta russo queria, através
do monólogo interior, estabelecer o contraste entre os pensamentos, as palavras interiores de
Clyde em relação às circunstâncias externas: ―a sintaxe do discurso interior, distintamente da
do discurso exterior‖
97
. Em Match Point, Allen não faz uso do monólogo interior, conforme
proposto por Eisenstein. No entanto, por meio da voz over, da câmera subjetiva, da montagem
e da utilização da ópera no filme, entre outros recursos que exporemos a seguir, o diretor
nova-iorquino relativiza o discurso do protagonista.
1.4 Visões de mundo (em conflito)
―O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade,
envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que irá acontecer a
vida ideológica, regida, em conseqüência, por este mesmo mecanismo.‖
Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar.
Na cena seguinte à da sala de jogos na casa de campo, vemos Chris e Chloe saírem da
Saatchi Gallery
98
. A música extra-diegética acompanha a cena. Allen utiliza a ária Mia
97
Eisenstein, op.cit., p.105.
98
Em A privatização da cultura, Chin-tao Wu explica, entre outros aspectos que serão retomados ao longo deste
trabalho, a transformação do capital cultural em capital econômico pelas elites norte-americanas e inglesas. Os
irmãos Saatchi, donos da empresa de publicidade Saatchi & Saatchi responsável por vender a imagem de
Margaret Tatcher, ganham importante destaque na análise de Wu: ―Os irmãos Saatchi oferecem uma excelente
ilustração do intercâmbio das várias formas de capital e dos problemas resultantes da concentração de poder
facilitada, quando não incentivada, pelo governo conservador. [...] Usando suas diferentes bases de poder,
pessoas como os irmãos Saatchi estão em posição privilegiada para transformar parte de seu capital econômico
em capital cultural, o que eles fazem, por exemplo, quando suas fortunas e influência pessoais lhes permitem
acesso aos conselhos curadores de galerias de arte e museus. Eles então transformam esse capital cultural
novamente em capital econômico, pelo uso da arte como mercadoria. O que torna vicioso esse círculo é que ele
funciona alheio à atenção pública, mesmo quando opera por meio de instituições públicas. Fortunas pessoais são
criadas, sustentadas e ampliadas por um pequeno número de indivíduos auto-eleitos, que alegam agir por
motivos desprendidos, de interesse público, e são agraciados com o dom invejável de serem capazes de fazer
vista grossa para qualquer sinal de conflito de interesses que surja no horizonte‖. Ver: Wu, Chin-tao.
Privatização da cultura: a intervenção corporativa nas artes desde os anos 1980 / Chin-Tao Wu; tradução Paulo
Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2006.
54
Piccirella
99
, cantada por Caruso. Assim como um casal de turistas, a inglesa Chloe apresenta
ao irlandês Chris os cartões-postais da cidade: o rio Tâmisa, o palácio de Buckingham, a troca
da guarda. Eles terminam o trajeto no cinema, onde assistem ao clássico do cinema noir
Rififi
100
(1955), de Jules Dassin. Na cena, ouvimos apenas a voz dos personagens do filme de
Dassin. Enquanto assistem ao filme, o professor de tênis conta a jovem rica que precisa de
―mais alguns alunos‖. Chloe oferece dinheiro a Chris, o irlandês recusa educadamente: ―É
muita gentileza sua perguntar, mas eu não preciso‖. Os dois se beijam e Chloe, interessada na
aptidão sexual do tenista, pergunta: ―Vamos para a minha casa ou para a sua?‖ A cena
seguinte mostra os dois no sofá do apartamento de Chris, ao som de Mia Piccirella‖. Ao
colocar em paralelo o filme de Dassin sobre ladrões que realizam um crime perfeito mas
acabam rivalizando entre si , as dificuldades financeiras do protagonista e o início do
romance entre o jogador e a ―piccirella‖, o filme antevê o ―golpe‖ que Chris planeja.
A maneira refinada e precisa com que Allen estrutura a narrativa em Match Point pode
ser observada também por meio da montagem dos planos. Para mostrar o início do romance
entre o professor de tênis e a jovem herdeira, Allen apresenta o encontro na ópera, o jogo de
tênis na casa de campo, o passeio por pontos turísticos da cidade, a ida ao museu, ao cinema,
ao apartamento de Chris e, em seguida, o diretor corta e focaliza a fachada de uma residência
das classes abastadas britânicas. A fachada da casa dos Hewett estabelece o contraste, aos
olhos do espectador, entre este local e o apartamento pequeno do protagonista.
Após apresentar a fachada, Allen mostra o interior do local, onde vemos a matriarca
Eleanor descendo a escadaria. As escadarias das residências apresentadas em Match Point
serão reiteradamente expostas no filme, contribuindo à ideia do arrivismo. Nesse ponto, a
residência dos Hewett pode ser comparada à de Samuel Griffiths em Uma tragédia
americana. A casa do tio de Clyde conta com uma escada estonteante que chama a atenção do
protagonista. Ele admira sua tia descendo a escadaria e aproximando-se dele, a senhora
99
Escrita pelo compositor brasileiro Carlos Gomes, ―a canzonetta ―Mia Piccirella‖ se transformou numa das
melodias mais populares da época‖. Ela abre o ato I, cena 1, da ópera Salvator Rosa: ―No atelier do pintor
Salvator Rosa em Nápoles, em 1647. Salvator, sentado e ocupado em pintar um retrato, pergunta a Gennariello o
que acha da pintura, ouvindo como resposta que o céu está muito carregado, o mar tétrico e as damas com mau
semblante. Concorda o pintor, para quem só uma mulher interessa, o que, diz Gennariello, também acontece com
ele, tanto que escreveu uma serenata à sua bela. Acompanhando-se do bandolim, canta ―Mia Piccirella‖‖. Ver:
Kobbé, op.cit., p.540-541.
100
No original Du Rififi chez les Hommes.
55
Griffiths apresenta-se ao sobrinho com ―certa serenidade que os anos de contato com a alta
sociedade local lhe deram‖
101
.
Assim como a tia de Clyde, a matriarca Eleanor Hewett prefere manter certa distância
em relação ao jovem professor de tênis irlandês. Ao entrar na sala de estar, repleta de objetos
de arte, a mãe de Chloe afirma querer ―entender o que Chris procura‖; a filha responde que
―ele com certeza não quer ser professor de tênis pelo resto da vida‖. Por sua vez, o patriarca,
Alec, considera o jovem irlandês ―(...) muito simpático. Ele subiu na vida da única forma que
podia e não é trivial. Tive uma conversa muito interessante com ele outro dia sobre
Dostoievski.‖ Neste ponto, pode-se observar que a predileção do protagonista aos clássicos, e
a coletânea do Cambridge Companion, é reconhecida pela família e capitalizada
102
pelo
patriarca. Ao perceber o apreço de Alec por Chris, Chloe pede um favor
103
ao pai: ―Não
podemos fazer algo por ele? Um emprego em uma de suas empresas?‖. A matriarca pede para
que a filha ―tome cuidado‖ e ―vá devagar‖, pois Tom está envolvido com uma garota que
Eleanor tem ―restrições‖. Na opinião da mãe de Chloe e Tom, Nola é mimada e
temperamental: ―Ela se ilude e é instável. Não serve para o Tom‖. Na cena, o espectador tem
acesso à opinião dos Hewett sobre os dois estrangeiros, a norte-americana Nola e o irlandês
Chris. O indício, suscitado pelas cenas anteriores de que Nola seria uma competidora inferior
a Chris, é confirmado: a matriarca está insatisfeita com o noivado do filho. E o interesse do
protagonista pela alta cultura favorece sua entrada para a família. Portanto, o protagonista é
beneficiado pela predileção da família Hewett a ele em detrimento de Nola.
Um novo corte rápido revela que Chris será acolhido pelos Hewett. Na cena seguinte,
Chloe entra no restaurante Brasserie Max
104
, localizado no hotel Convent Garden, onde o
101
Dreiser, op.cit., p.219.
102
Segundo López-Ruiz, a ―capitalização‖ de aptidões, habilidades e destrezas pessoais é um sintoma do espírito
do capitalismo contemporâneo: ―As pessoas capitalizam-se consumindo e podem fazê-lo de inúmeras formas:
capitalizam em qualidade de vida, por isso é legítimo investir em viagens; capitalizam na própria carreira, por
isso é legítimo investir tempo e dinheiro em treinamentos; capitalizam em relacionamentos, por isso é legítimo
investir em sofisticados e caros objetos de design na decoração de suas casas; capitalizam em cultura, por isso é
legítimo investir em cursos acelerados que dêem códigos sistematizados para que a fast culture possa ser
digerida-comentada-capitalizada.‖ Ver: López-Ruiz, op.cit., p.225-226.
103
Neste trabalho, a prática do favor é entendida conforme exposta por Roberto Schwarz: No processo de sua
afirmação histórica, a civilização burguesa postulara a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura
desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do trabalho etc. contra as prerrogativas do Ancien Régime. O
favor, ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada,
remuneração, e serviços pessoais‖. Ver: Schwarz, Roberto. ―As ideias fora do lugar‖. In: Ao vencedor as batatas.
São Paulo: Duas Cidades, 1992, p.16.
104
Allen usou o elegante restaurante do hotel, o Max Brasserie, para reunir o quarteto. ―O restaurante é bastante
conhecido pelos frequentadores do Royal Opera House (próximo ao local), o estabelecimento orgulha-se de sua
56
protagonista a aguarda. Logo na primeira fala, Chris explicita o assunto: ―Um dos sócios do
seu pai falou comigo hoje sobre a possibilidade de um emprego. Você disse alguma coisa?
Chloe tenta convencer o namorado a aceitar a oferta: ―Papai disse que é uma chance de
aprender o negócio. E, se tudo der certo, ele cuidará para que você seja promovido
rapidamente‖. Apesar da proposta tentadora, Chris reluta: ―Eu nunca gostei muito da ideia de
trabalhar no escritório‖. Chloe argumenta que o trabalho será como uma escada, ela enuncia a
questão do arrivismo: ―Não é bem um trabalho no escritório. Pense nele como uma escada
para um cargo melhor, maiores responsabilidades, um salário melhor, sei lá. Você sempre
disse que admirava as conquistas do meu pai.‖ O protagonista aceita a oferta: ―Claro. É
estranho, mas vindo de onde eu vim, sempre admirei homens como o seu pai: rico sem ser
arrogante, desfrutando a sua fortuna, aproveitando a vida, patrocinando as artes.‖ Observa-se
aqui movimento semelhante ao descrito por Roberto Schwarz: Ao legitimar o arbítrio por
meio de alguma razão racional‘, o favorecido conscientemente engrandece a si e ao seu
benfeitor, que por sua vez não vê, nessa era de hegemonia das razões, motivo para desmenti-
lo. Nestas condições, quem acreditava na justificação? A que aparência correspondia? Mas
justamente, não era este o problema, pois todos reconheciam e isto sim era importante a
intenção louvável, seja do agradecimento, seja do favor.‖
105
A jovem herdeira, novamente,
expõe o favor, a oportunidade, aberta por seu pai, ao protagonista: ―Ele realmente quer abrir
algumas portas para você, isso. Ele o respeita pelo modo como você superou as
dificuldades.‖. Chris promete a Chloe que dará a ―sua contribuição‖.
O casal é interrompido pela chegada de Nola e Tom, os dois casais dirigem-se à mesa e
conversam. Sentados à mesa do restaurante, Tom conta sobre uma exposição de carros em
que ele e Nola estiveram. Ele pergunta ao professor de tênis se Chris gosta ―de seus carros‖. O
protagonista, que não é proprietário de nenhum veículo, compartilha com Nola a preferência
por carros antigos. A aproximação entre os dois estrangeiros --se desde o início da cena no
restaurante. Nola explica a Chris que o noivo gosta de carros novos, ―cheios de acessórios‖. E
acrescenta que gostaria de ter um Aston Martin. O protagonista explica aos presentes, olhando
para Nola, que ele dirigiu um Aston Martin: ―Eu trabalhava para um senhor e tinha que
lavar os carros dele. Ele era muito meticuloso sobre como eu deveria cuidar dos carros. Então,
eu tinha que lavá-los diariamente com uma escova de dente‖. Chloe ri do trabalho feito pelo
excelente cozinha britânica moderna‖. Disponível em: <http://www.visitbritain.us/press/news/news-
releases/2005/nr051209match-point.aspx>.Acesso em: 13 jan. 2010.
105
Schwarz, op.cit., p.17.
57
namorado. Nola justifica sua escolha pelo veículo, o que revela também seu fascínio pelo
mundo dos ricos: ―Eu quero um Aston Martin, ou um daqueles Mercedes conversíveis
clássicos‖. Enquanto observa o cardápio, Tom expõe à noiva a condição para que ela obtenha
os veículos que deseja: ―Quando nos casarmos, colecionaremos carros clássicos. Conquanto
que eu possa ter um DB9 com todos os acessórios, ok? Por falar nisso, Hedley é perfeita para
guardar todos esses carros. E por falar em Hedley...‖ Chloe interrompe o irmão para que
façam o pedido, ―o garçom está esperando‖.
Tom pede ―batata com trufas‖ e Nola copia o pedido do noivo, o que indica que a atriz
abdicou de seu direito de escolha. Por sua vez, o casal Chloe e Chris ―discute‖ o pedido.
Enquanto Chloe quer caviar blinis‖, Chris prefere ―frango assado‖. A preferência do
protagonista pela refeição comum pode tanto tratar-se de uma escolha autêntica de Chris
quanto revelar que o protagonista decide-se pelo prato por conta do preço. A conversa trivial
revela o que está em jogo: depois da resistência de Chris, que prefere continuar com o pedido
que havia feito anteriormente, Chloe pergunta se o professor de tênis gosta de caviar, ao que
Chris responde gostar ―mais ou menos‖. Chloe justifica ao garçom a escolha do namorado,
considerada por ela vulgar: ―Ele foi educado para ser modesto, desculpe-me.‖ Tom faz o
pedido por Chris: ―Ele comerá blinis‖. Após ouvir o pedido de Chris feito pelo jovem rico, o
garçom retira-se da mesa.
Assim, na cena evidencia-se que, na presença de Chloe e Tom, Chris perde o poder de
escolha. Após a saída do garçom, a herdeira Hewett volta a questionar a atitude do namorado:
―Meu Deus, o seu pai era um petroleiro especialista em etiqueta?‖. Chris responde à
provocação: ―Sim. Ele era um pouco austero.‖ Chloe volta a complementar as palavras de
Chris: ―O pai de Chris era um fanático religioso.‖ O protagonista confirma: ―Após perder as
duas pernas, [meu pai] encontrou Jesus.‖ Os irmãos Hewett riem da informação sobre o pai do
professor de tênis e Tom satiriza: ―Meu Deus. Sinto muito. Mas, não me parece uma troca
justa.‖ Neste ponto, a câmera mais uma vez seleciona o foco da atenção do espectador. Se
antes Chloe e Chris estavam em primeiro plano, agora Nola e o protagonista passam ao centro
da narrativa. Apesar de ouvirmos a voz dos irmãos Hewett, o olhar da câmera focaliza a troca
de olhares entre os forasteiros.
[Chris Wilton]: ―Você já participou de muitos filmes?‖
[Nola Rice]: ―Era um comercial, não um filme.‖
58
[Tom Hewett]: ―Mas os seus olhos iam diretamente para ela, se é que
me entende.‖
[Nola Rice]: ―Não acho que a minha carreira evoluiu como eu
planejei.‖
[Tom Hewett]: ―Ah, você só precisa de um tempo.‖
[Chris Wilton]: ―Acredito que a sorte é importante em tudo.‖
A troca de casais na cena é nítida: o foco da atenção do espectador, o qual no começo da
cena estava centrado na discussão entre Chloe e Chris, agora atesta a aproximação entre os
arrivistas. Na cena expõe-se também o embate entre visões de mundo díspares (a dos Hewett
e a dos estrangeiros):
[Chloe Hewett]: ―Eu não acredito na sorte, só no esforço.‖
[Chris Wilton]: ―Claro, esforço é essencial, mas eu acho que todo
mundo teme admitir a importância da sorte. Parece que os cientistas estão
confirmando que toda a existência está aqui por acaso, sem propósito, sem
projeto.‖
[Chloe Hewett]: ―Bem, eu não ligo. Eu amo cada minuto dela.‖
[Chris Wilton]: ―E eu a invejo por isso.‖
[Tom Hewett]: ―O que o vigário costumava dizer? ‗Desespero é o
caminho da menor resistência‘. Algo estranho, não?‖
[Chris Wilton]: ―Acredito que a fé é o caminho da menor resistência.‖
[Tom Hewett]: ―Nossa! Meu Deus!
[Chloe Hewett]: ―Podemos mudar de assunto, por favor? Nola falava
de atuação, que é muito mais interessante.‖
[Nola Rice]: ―Não, eu disse que estou pensando em deixar a carreira
de atriz em segundo plano. Não aguento que as pessoas na minha cidade
pensem que eu fracassei. Não que eu vá voltar para o Colorado. Nunca.‖
Enquanto os Hewett acreditam na ideologia burguesa do esforço, Chris defende a sorte
e Nola relata sua trajetória de vida. A maneira como Allen compõe a cena do restaurante
desarmoniza as visões de mundo apresentadas. Antes da entrada de Tom e Nola, Chloe acerta
o futuro do protagonista. Dessa forma, o espectador sabe que um bom emprego é ofertado ao
protagonista por relações de favor, e não pelo esforço. Conforme o próprio protagonista
revela, ele não possui experiência como executivo, nem se interessa em trabalhar no
escritório. Todavia, ele aceita o emprego, pois sabe que será importante para entrar para a
família. Outra informação crucial, apresentada na mesma cena, revela a instabilidade de Nola
na carreira de atriz. A noiva de Tom considera abandonar a profissão, o que Chloe contesta,
deslumbrada com a possibilidade de atuação de sua futura cunhada na indústria do
entretenimento: ―Nola falava de atuação, o que é muito mais interessante‖. Na conversa com a
59
mãe, Chloe defendera a noiva do irmão justamente por seu trabalho: ―Ela é atriz, eles são
sensíveis‖. A cena do restaurante mostra também o exíguo poder de decisão dos jovens
forasteiros em relação aos Hewett. A decisão de Nola pelo veículo clássico está condicionada
ao casamento com o jovem herdeiro. Nola pede o mesmo prato que o noivo assim como Chris
não pode escolher o seu pedido. A jovem atriz norte-americana é interrompida pelo garçom
que solicita se os clientes escolheram o vinho. Novamente, a decisão cabe a Tom que pede
―duas garrafas de Puligny-Montrachet.‖
Afastando-se dos irmãos Hewett, a câmera focaliza a troca de olhares e a crescente
aproximação entre Nola e Chris. A identificação entre os dois não se apenas na chave da
sedução: há uma correspondência de classe. A cena seguinte confirma a trajetória ascendente
do professor de tênis que, diferentemente de Nola, muda de profissão com o auxílio dos
Hewett, transformando-se em executivo. O novo trabalho do protagonista é essencial para que
o espectador prossiga na identificação de quem é este personagem e como ele se apresenta na
configuração social.
1.5 Capital e empreendedorismo
―A ética do trabalho empresarial não é, enfim, a ética dos executivos das corporações transnacionais: é a ética do
trabalho proposta atualmente para a sociedade em conjunto.‖
Osvaldo López-Ruiz, Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo.
―Na verdade, a associação histórica da arquitetura sempre foi com os donos do poder e do dinheiro, sobretudo
com a propriedade privada, da terra e do capital.‖
Pedro Arantes, O grau zero da arquitetura na era financeira.
Entre o sistema de personagens Chris Wilton, Nola Rice, Chloe Hewett e Tom Hewett,
a sociabilidade é mediada pela estrutura de classe. Nenhuma das ligações entre os pares se
de forma autônoma. Chris e Nola ligam-se, respectivamente, a Chloe e Tom visando à
ascensão social por meio do casamento com a elite britânica. Os dois estrangeiros
60
aproximam-se por conta da correspondência de classe. Por sua vez, Tom e Chloe são irmãos.
A associação e o conflito entre os personagens ganham contornos mais definidos, por
exemplo, na cena do restaurante mostrada anteriormente. Apesar da aproximação entre o
professor de tênis e a atriz norte-americana, os dois estrangeiros disputam entre si por um
lugar entre os ricos.
Na cena do restaurante sabe-se que Chris recebeu uma promissora oferta de emprego
oferecida pela família Hewett. Os bons modos do protagonista, ou a ―etiqueta‖ (conforme
caracteriza Chloe), desperta a confiança da família endinheirada que lhe oferece uma vaga na
empresa. A entrada do professor de tênis para o mundo dos negócios é feita logo em seguida à
cena do restaurante, que explicita a forma de sociabilidade baseada nas relações de favor. No
núcleo do capital financeiro, portanto, o que funciona não é nem a sorte nem o mérito, mas o
favor, a influência pessoal.
A maneira como Allen estrutura o foco narrativo na cena é precisa. Em primeiro lugar,
vê-se o exterior do prédio. O diretor apresenta o imponente edifício Swiss Re
106
, também
conhecido como Gherkin
107
. A cena é filmada em contre-plongée (Figura 1)
108
, o que ressalta
a magnificência da construção. O prédio, projetado em formato ogival, destaca-se
imediatamente na paisagem londrina, característica que é incorporada pelo plano, pois o Swiss
Re aparece ao lado de outros edifícios de escritórios comuns (em formato de blocos, não
como ogivas). A construção, portanto, realça o poderio da família Hewett, elemento que não
passa despercebido pelo protagonista.
Se nesse ponto apresenta-se a aliança entre o irlandês e uma família da elite britânica,
a história da construção do Swiss Re oferece um importante contraponto à trajetória do
arrivista. O edifício escolhido por Allen traz consigo uma reminiscência do confronto entre a
106
―Desenvolvido pela Swiss Re e projetado pelos arquitetos da empresa Foster and Partners, o prédio possui 40
salas de escritório situadas no coração da City [centro financeiro] de Londres. O edifício, inaugurado
oficialmente em março de 2004, possui alguns dos mais adaptáveis e bem-avaliados escritórios de Londres.‖
Disponível em: <http://www.buildingtheSwiss Re.com/pdf/factsandfigures.pdf>. Acesso em: 13 jan.2010.
107
―O 30 Street Mary Axe, localizado no centro financeiro de Londres, é carinhosamente conhecido pelos
londrinos como the Gherkin [o pepino], ou the Erotic Gherkin [o pepino erótico]. Situado no local do antigo The
Baltic Exchange, construção que foi gravemente danificada por um ataque a bomba comandado pelo IRA
[Exército Republicano Irlandês], em 1992. Controversa, a decisão foi de demolir o Exchange, listado como
Grade II [classificação para os prédios britânicos de comprovado valor histórico, protegidos por lei]. A nova
torre parece um pouco com uma bala de revólver: circular, mais estreita na base. O alargamento dos pisos de
cima, antes de afinar para o ápice, oferece uma visão única do horizonte de Londres. Mais do que isso, o ilustre
novo edifício foi concebido para usar 50% a menos de energia do que um prédio de escritórios comum.‖
Disponível em: <http://london.allinfo-about.com/features/Swiss Re.html>. Acesso em: 13 jan. 2010.
108
Algumas cenas e ilustrações serão apresentadas em Anexo(s) ao final do trabalho.
61
Irlanda e o império britânico. Em 1992, um atentado a bomba promovido pelo IRA (Exército
Republicano Irlandês) atingiu o 30 St. Mary Axe. O terreno localiza-se no centro financeiro de
Londres e antes da construção do Swiss Re era ocupado pelo antigo Baltic Exchange
109
. A
própria construção do edifício funciona como uma espécie de apagamento da história da
cidade
110
. O edifício que outrora ressaltava a pujança do comércio marítimo inglês foi
demolido para a construção do Swiss Re e dividido em pedaços
111
.
Apesar de não existir nenhuma correlação imediata no filme entre o Exército
Republicano Irlandês e a história de Chris Wilton, é preciso retomar que se trata da entrada de
um irlandês, apadrinhado pela elite britânica, no centro do capitalismo britânico. Não se trata
de um posto em um prédio de negócios comum, mas da entrada do protagonista no edifício
símbolo da arquitetura rentista em Londres, especificamente em um terreno que já foi atingido
pelo IRA.
Se retomarmos a cena do restaurante, podemos observar que o pai de Chris é descrito
por Chloe como um ―fanático religioso‖. Na única vez em que se refere ao pai, o protagonista
caracteriza-o como ―austero‖ e revela que seu pai foi morto em combate por conta de suas
convicções religiosas, conforme podemos inferir da frase: ―após perder as duas pernas, [meu
pai] encontrou Jesus‖.
A avaliação negativa de Chris sobre o engajamento de seu pai faz-se
109
―Na sexta-feira, 10 de abril de 1992, uma bomba do IRA explodiu uma van estacionada em frente ao Baltic
Exchange. Três pessoas morreram, incluindo um funcionário do Baltic. A bomba destruiu o Baltic e os
escritórios de grandes empresas que ficavam no prédio, inviabilizando a continuidade do pregão. Na segunda-
feira pela manhã, o Baltic Exchange foi transferido para o banco Lloyd’s e na quarta-feira, o pregão foi reaberto.
O Baltic Exchange não conseguiu reconstruir o 30 St Mary Axe incorporando seus elementos históricos,
conforme exigido pelo English Heritage [órgão do governo responsável pelo patrimônio inglês], o terreno foi
vendido para a Trafalgar House, em 1995. Disponível em:
<http://www.balticexchange.com/default.asp?action=article&ID=395>. Acesso em: 13 jan. 2010.
110
A controvérsia em torno da construção do Swiss Re é relatada na apresentação do Baltic Exchange: ―Este é o
famoso prédio que ocupava o local do ‗pepino erótico‘ de Norman Foster no centro financeiro de Londres.
Conforme observado recentemente por um oficial de conservação: ―se você quiser uma autorização para demolir
um edifício tombado pelo governo, encontre um renomado arquiteto para fazê-lo‖. O Baltic Exchange foi
construído em 1903, por Smith e Wimble. O edifício foi pensado para demonstrar a riqueza e magnificência,
para não dizer solidez, do comércio marítimo londrino. Não se trata de arquitetura de ponta, mas remete ao auge
da época da Rainha Vitória e do Império. Em 1992, sua estrutura foi danificada pelo ataque a bomba promovido
pelo IRA. A intenção do governo era reconstruir o Exchange, mas interesses comerciais se sobrepuseram e, em
1998, John Prescott permitiu que ele fosse demolido‖. Disponível em:
<http://www.heritage.co.uk/apavilions/baltic.html>. Acesso em: 13 jan. 2010.
111
―O Baltic Exchange agora consiste em peças, divididas em um grande mero de caixas de madeira que
ficam guardadas em uma granja perto de Canterbury. Desmontá-lo, catalogá-lo e deslocá-lo custa por volta de 4
milhões de libras. Ele está à venda como um kit de Lego glorioso, pronto para montar uma elegante casa de
campo, ou uma sede magnífica de empresa, ou apenas um conjunto de edifícios de escritório para um homem
rico. É composto por granito vermelho, apresenta cor de mármore e contém pedras Portland. Os interiores de
gesso estão intactos, repletos de monstros marinhos, golfinhos e sereias, entre os moldes clássicos. Não é mais
tombado (era Grade II) e como, oficialmente, não existe mais, você resolve o que fazer com ele.‖ Disponível
em: <http://www.heritage.co.uk/apavilions/baltic.html>.Acesso em: 13 jan. 2010.
62
presente também no discurso do protagonista, o qual disserta aos irmãos Hewett que a ―fé é o
caminho da menor resistência‖. Chris retoma o discurso da sorte, apresentado no prólogo,
para impressionar os presentes: ―Parece que os cientistas estão confirmando que toda a
existência está aqui por acaso, sem propósito, sem projeto.‖ A contrapelo do protagonista,
partindo da informação de que Chris é irlandês, a ―ausência de propósito, de projeto‖
apresentada é ainda mais sentida. Trata--se do apagamento das possibilidades de mudança e
de luta dos irlandeses contra o império britânico. Em artigo sobre o contexto político
contemporâneo na Irlanda, Ellen Hazelkorn e Henry Patterson argumentam que ―(...) o que
sobrou da classe trabalhadora e dos movimentos radicais, que o Partido dos Trabalhadores
[Workers’ Party] representava nos anos 1980, foi continuamente enfraquecido pelo
desemprego em massa e pela emigração, pela competição internacional e as demandas
competitivas, e pelo novo-corporativismo‖
112
.
Em um país dividido entre protestantes e católicos e marcado por conflitos armados
pela luta pela independência do império britânico, o fato de um irlandês, filho de um ―fanático
religioso‖ ser recebido pela elite britânica, favorecido e promovido a alto executivo em uma
das mais importantes corporações do mundo, uma empresa de resseguros
113
não é
contingente
114
. A entrada de Chris no Swiss Re faz-se sobre as ruínas dos ataques do IRA
contra o império britânico, escondidas sob o imponente edifício
115
. Nesse sentido, vejamos
como a entrada do protagonista no Swiss Re é composta.
112
Ver: Hazelkorn, Ellen; Patterson, Henry. ―The New Politics of the Irish Republic‖. In: New Left Review I/207,
September-October, 1994, p.68.
113
―Fundada em 1863, em Zurique, na Suíça, a Swiss Re opera em mais de 20 países e fornece os seus
conhecimentos e serviços a clientes de todo o mundo. Os tradicionais produtos de resseguros da Swiss Re e os
serviços relacionados à propriedade e desastres, bem como as empresas de saúde são complementados por um
seguro baseado em soluções financeiras corporativas e serviços complementares para a gestão global do risco.
Disponível em:
<http://www.swissre.com/pws/about%20us/swiss%20re%20at%20a%20glance/swiss%20re%20at%20a%20glan
ce.html>. Acesso em: 1 fev. 2010.
114
De acordo com Hazelkorn e Patterson, ―o partido Trabalhista [Labour Party] utiliza a sua relação específica
com os sindicatos para prosseguir com a reestruturação econômica convencional e o desmantelamento do Estado
de bem-estar social dentro dos interesses do capital‖. Ver: Hazelkorn; Patterson, op.cit., p.66.
115
Não é apenas sob as ruínas dos ataques do IRA que o arquiteto britânico Norman Foster, responsável pelo
The Swiss Re londrino, atua. Foster é um grande conhecido dos nova-iorquinos, ele é um dos arquitetos
envolvidos no projeto de reconstrução do World Trade Center, e também foi o responsável pelas reconstruções
da Hearst Tower, em Manhattan, e da City Library. Foster é um dos mais prestigiados arquitetos da atualidade
(ganhador do prêmio Pritzker, em 1999, o mais importante prêmio de arquitetura), dentre os seus projetos
destacam-se o maior aeroporto do mundo, construído em Pequim, na China para os Jogos Olímpicos de 2008.
Sobre a reconstrução de prédios antigos, o arquiteto britânico é definido como ―especialista em inserir um design
contemporâneo em prédios históricos‖. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/10/23/arts/design/23libr.html>. Acesso em: 1 fev. 2010. O estilo de Foster
ganhou projeção internacional nos anos 1970, ―ele foi um dos mais famosos praticantes de uma arquitetura
63
Como é comum na obra de Allen, a apresentação é primeiro do edifício, depois dos
personagens. Ouvimos a voz over: ―Bom dia, Chris Wilton.‖, mas não temos acesso ao seu
foco emissor. A imagem estampada na tela é a do Swiss Re, não de Chris, o que indica que
o espectador deve fazer a associação entre o protagonista e o edifício. Ao entrarmos no
interior do prédio, a conversa entre Chris e Rod Carver [Simon Kunz] transcorre
normalmente: ―Você vai trabalhar sob as ordens de Alan Sinclair‖, ou seja, não nenhuma
dúvida de que Chris será contratado. A ideia de uma entrevista de emprego, anterior à
contratação (como ocorreu no Queen’s), nem sequer é posta em questão durante a cena no
Swiss Re. O currículo lugar aqui ao favor explícito. Rod e Alan estão apenas cumprindo
ordens do dono da companhia:
[Rod Carver]: ―Em um primeiro momento, você pode achar o
trabalho um pouco desestimulante, mas isso logo vai passar assim que você
perceber como as coisas transcorrem por aqui.‖
[Chris Wilton]: ―Claro, claro.‖
[Alan Sinclair]: ―É basicamente das nove às cinco.
[Rod Carver]: ―Então, você terá tempo de sobra para manter o seu
backhand, se quiser.‖
Por meio do uso da câmera circular, Allen muda o foco de nossa atenção que não está
no diálogo, mas no edifício. O percurso, feito pela câmera, oferece uma visão panorâmica do
escritório: sem divisórias ou paredes
116
, o departamento é circunscrito por janelas de vidro por
todos os lados do escritório. A vista para a cidade e para os outros edifícios de negócios é
contínua. Vemos executivos trabalhando em computadores, pessoas em reunião, telefones
tocando, ou seja, o escritório está em pleno funcionamento. Depois deste breve panorama, a
câmera pára em Chris, Rod e Alan Sinclair [Geoffrey Streatfield] que se cumprimentam.
Assim, a pretensa ―entrevista de emprego‖ ganha a exata medida do cargo por indicação.
tecnológica que fetichizava a cultura das máquinas. O seu triunfante edifício bancário Hong Kong e Shanghai, de
1986, concebido como um kit de peças conectado a uma armação de aço foi a resposta do capitalismo ao
populista Centro Pompidou, em Paris. Desde então, seu escritório passou de 65 para 700 funcionários‖.
Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2006/09/08/nyregion/08towers.html?pagewanted=2&sq=norman%20foster%20and%
20World%20Trade%20Center&st=cse&scp=7>.Acesso em: 1 fev. 2010.
116
A Swiss Re Tower (1997-2004) é conhecida como ―o primeiro edifício ecológico em Londres, uma
construção facilmente reconhecível na paisagem da cidade, a rua Mary Axe ganha uma abordagem radical
técnica, arquitetônica, social e espacialmente. Feito em um plano radial, concebido em um projeto de energia-
consciente, o prédio transforma muros e paredes em uma contínua estrutura triangular propiciando espaços livres
de colunas, iluminados e oferecendo uma estonteante vista da cidade‖ Disponível em:
<http://www.fosterandpartners.com/Projects/1004/Default.aspx> Acesso em: 1 fev. 2010.
64
Vestido como executivo, o professor de tênis, o qual na cena anterior ao lado de Chloe
mostrara-se relutante, responde: ―O salário não será um problema. Foi um prazer, Alan e
Rod‖. Os executivos se cumprimentam e, em cerca de segundos, Chris é contratado pela
empresa da família Hewett. É interessante notar que ao fundo e posicionados de frente para a
câmera, outros dois executivos do escritório observam estupefatos a rapidez da contratação
(Figura 2).
Conforme procuraremos argumentar, a maneira como o plano é estruturado no filme
permite inferir que a inclusão do Swiss Re seria um comentário de Allen sobre a arquitetura
contemporânea
117
. Inaugurado em março de 2004, ou seja, durante as filmagens de Match
Point, o Swiss Re almejava não apenas ser um prédio de negócios, mas ―um ícone instantâneo
do Reino Unido no Século 21‖
118
. Nesse sentido, a inclusão de sua imagem propagada pela
indústria do cinema contribuiria para a divulgação do edifício. No entanto, argumentaremos
que ao situar o protagonista no centro financeiro de Londres em um prédio projetado por um
dos maiores arquitetos do star system, Allen cria novamente uma armadilha. Ao mesmo
tempo em que incorpora a propagação da arquitetura de marca, a cena inclui a crítica à
logotecture.
O Swiss Re seria um exemplar da arquitetura rentista, composto por ―imagens
arquitetônicas exclusivas, capazes de valorizar os investimentos e, consequentemente, as
cidades que os disputam‖
119
. A arquitetura rentista, conforme explica Pedro Arantes
referindo-se especialmente às construções de Frank Gehry busca em suas formas: ―quanto
mais informe, retorcido, "desconstruído" ou "liquefeito" o objeto arquitetônico, maior seu
sucesso de público e, portanto, seu valor como imagem publicitária‖
120
. Apesar de concentrar-
117
O interesse de Allen pela arquitetura contemporânea é bastante conhecido e faz-se presente em quase todos os
seus filmes, os mais evidentes seriam Annie Hall e Manhattan. No entanto, uma cena em Hannah e suas
irmãs em que os personagens discutem as mudanças na arquitetura nova-iorquina. Assim como em Match Point,
em Hannah o espectador deve distanciar-se das opiniões dos personagens para que possa entender a ironia dos
diálogos e a crítica subjacente à arquitetura pós-moderna. Em entrevista a Stig Björkman, Allen reafirma o seu
interesse por arquitetura:
BJÖRKMAN: Sam Waterston interpreta um arquiteto em Hannah e suas irmãs e em uma cena ele mostra seus
prédios prediletos de Nova Iorque para Dianne Wiest e Carrie Fisher. Eles são seus prédios favoritos também?
ALLEN: Alguns deles eu gosto muito, sim. Tenho plena consciência da arquitetura de Nova Iorque e estou
muito indignado com os novos edifícios que são construídos sem nenhum respeito pelo contexto em que estão
inseridos. Ver: Björkman, op.cit., p.157.
118
Lane, Megan. ―Modern Britain‘s instant icon‖. In: BBC News Online Magazine 3/2004. Disponível em:
<http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/magazine/3663971.stm>. Acesso em: 6 jun. 2009.
119
Arantes, Pedro. ―O grau zero da arquitetura na era financeira‖. In: Novos Estudos CEBRAP,80. São Paulo:
mar. 2008, p.175.
120
Arantes, op.cit., p.176.
65
se na análise das obras de Gehry, ―o mais espetacular de todos os arquitetos‖, Arantes indica
que o argumento é válido ―para diversas obras dos demais arquitetos-estrelas de hoje entre
eles, [...] o mais high-tech dos arquitetos contemporâneos, Norman Foster (que deixou sua
marca definitiva na City de Londres, alterando-lhe totalmente o skyline, ou projetando o maior
aeroporto do mundo, em Pequim, na forma de um dragão)‖
121
.
A arquitetura rentista, conforme argumenta Arantes, caminha para ―o grau zero da
arquitetura, reduzido a um jogo de formas, aparentemente sem regras e limitações de qualquer
espécie, em busca do grau máximo da renda [...]‖
122
. O objeto arquitetônico contemporâneo
guarda semelhanças com ―a ausência de propósito e de projeto‖, apresentada por Chris
Wilton. Esse jogo de formas aparentemente sem regras é o território do pós-modernismo.
Pode-se afirmar que o projeto do Swiss Re pertence a essa corrente, pois se apresenta como
uma ―totalidade em si, desgarrando-se da cidade, de qualquer contexto ou território‖
123
.
Assim como o edifício de negócios, Chris pretende descolar-se de seu contexto, de
suas origens, associando-se aos Hewett. O filme o apresenta estabelecendo o paralelo entre o
protagonista e a logotecture, cujo ―objetivo é a produção da exclusividade, da obra única,
associada às grifes dos projetistas e de seus patronos‖
124
. Apesar da tentativa do protagonista
de desgarrar-se de qualquer contexto ou território, o filme reforça o contexto a despeito de
Chris.
A aproximação entre o protagonista de Match Point e o repertório do pós-modernismo
pode ser observada também na comparação com o filme Zelig (1983), no qual Allen utiliza a
linguagem do pós-modernismo para questioná-lo. Após começar a leitura do romance Moby
Dick, Leonard Zelig transforma-se em um camaleão humano, adquirindo as características dos
outros. Para Allen, o movimento apresentado em Zelig ocorre ―quando as pessoas querem ser
queridas e sentir-se parte de um grupo de tal forma que elas abandonam sua personalidade no
esforço de serem aceitas. Elas querem apenas se adequar. E essa tendência acompanha a
pessoa em todos os aspectos da vida, inclusive no político. Isso leva a conformidade extrema
e a submissão total às vontades e necessidades de uma personalidade forte‖
125
. Para o diretor,
o filme traz ―o resultado final de desistir da própria personalidade, o sentimento de ser capaz
121
Ibid., p.192.
122
Ibid., p.176.
123
Ibid., p.189.
124
Ibid., p.180.
125
Björkman, op.cit., p.141.
66
de se misturar para se proteger, como faz um camaleão com o seu entorno. É o material
perfeito a ser liderado pelo poder persuasivo fascista. E eles contavam exatamente com
isso.‖
126
. Allen explica que sempre quis tratar Zelig como um ―fenômeno internacional [...]
como se ele fosse uma figura internacional famosa‖
127
.
A incorporação de aspectos do pós-modernismo nos filmes de Woody Allen foi
bastante discutida pela crítica, em especial nas análises que se ocupam do filme Zelig cuja
temática associa-se diretamente ao pós-modernismo. Para Christopher Beach, Woody Allen é
considerado ―um típico cineasta pós-moderno‖
128
cujos filmes seriam ―híbridos‖, uma espécie
de ―comédia pós-moderna‖, nos quais o uso da ―paródia ou pastiche, de citações, e da
encenação auto-consciente ou auto-reflexiva utilizada em gêneros tradicionais de Hollywood,
tem o propósito de ironizar tanto os códigos sociais contemporâneos quanto os códigos
específicos de produção hollywoodiana‖
129
. A investigação de Beach sobre a obra de Allen
caminha no sentido de entender a fundamental questão das classes sociais nos filmes do
diretor. Para isso, Beach argumenta que os personagens de Allen, em geral, apresentam ―uma
ausência de capital cultural adequado‖
130
. A respeito de Zelig, o crítico considera que se trata
da representação de uma sociedade sem classes: ―o filme mostra a dissolução das fronteiras de
classe, e pode ser lido como uma alegoria da ruptura pós-moderna de identidade de classe.
Zelig não é mais sujeito de uma determinada rede de identidade de classe, mas é definido
apenas em relação àqueles com quem ele entra em contato. Por se apropriar quase
imediatamente das características sociais, padrões de fala, e opiniões das pessoas ao seu redor,
Zelig torna-se o símbolo de uma sociedade sem classes‖
131
.
Em ensaio sobre Zelig, Robert Stam e Ella Shohat retomam a questão do pós-
modernismo: ―À primeira vista Zelig poderia dar a impressão de partilhar de certas
características do pós-modernismo neoconservador: um estilo enraizado em pastiches, o
historicismo eclético de textos reciclados, a visão da disponibilidade do passado apenas
enquanto representação estereotipada, uma espécie de ironia em branco. Mas apesar de a
personagem Zelig, pelo menos em sua fase camaleônica (e poder-se-ia dizer que Zelig nunca
abandona sua fase camaleônica) representar de fato o pós-moderno, não se pode dizer o
126
Ibid., p.141
127
Ibid., p.136.
128
Beach, op.cit., p.156.
129
Ibid., p.157.
130
Ibid., p.164.
131
Ibid., p.172-173.
67
mesmo do filme Zelig. Não se trata de uma trivialização da história, como se chegou a dizer
do filme. Em nossa opinião, o que Zelig faz é lançar uma certa luz na natureza construída e
manipulável da história enquanto disciplina mediada pela indústria cultural. Ainda que se
tratasse de exagero dizer que Zelig é um exemplo do que Hal Foster chama de ―pós-
modernismo de oposição‖, é possível discernir uma leitura oposta e antecipatória do que, em
alguns aspectos, vem a ser um texto recalcitrante.‖
132
.
No tocante às relações de classe, Stam e Shohat apontam no personagem Zelig ―uma
fraqueza pela ascensão social e um fascínio pela possibilidade de transitar livremente entre
fronteiras e de ganhar acesso aos verdadeiros centros do poder.‖
133
Nesse sentido, o que em
Zelig era apenas sugerido e talvez secundário, em Match Point ganha contornos claros de uma
sociedade de classes. Diferentemente de Zelig que ―faz tanto o pária quanto o novo-rico; ele é
tanto aristocrata trocando ideias nos jardins de sua propriedade quanto povão batendo papo
com a empregada na cozinha‖
134
, Chris Wilton abandona sua origem pobre aliando-se aos
Hewett. Nesse ponto, retomaremos a análise detalhada do filme.
Após a contratação do professor de tênis pela Hewett Inco., Chris e a jovem herdeira
comemoram a entrada do protagonista na empresa da família. Em agradecimento pelo
emprego, Chris presenteia a namorada com uma coletânea de ópera. Nesse ponto, o
espectador notará a utilização da ópera no filme como objeto de distinção. Os irmãos Hewett
apreciam o interesse do protagonista por música clássica. Na primeira oportunidade em que
Chris revelou seu interesse por ópera (no Queen’s Tennis Club), o professor de tênis foi
convidado por Tom para o camarote dos Hewett no Royal. Desta vez, ele presenteia Chloe
com uma coletânea. Enquanto abre o presente, a jovem herdeira traça o destino do irlandês:
―Acredite em mim, em pouco tempo você estará chefiando aquela divisão.‖ O aspecto do
cargo por influência evidencia-se. A justificativa apresentada pela herdeira Hewett indica a
ascensão do recém-contratado: ―Você é muito mais inteligente do que o Alan Sinclair. Ele é
legal, mas sem inspiração.‖ O ―brilho‖ do tenista e, especialmente, o namoro com a jovem
dona da empresa fazem com que o funcionário antigo seja dispensado para a promoção do
protagonista. As relações de favor explicitadas no filme durante a contratação de Chris, feita
no ícone da arquitetura rentista, retomam a ideia de que na ―mundialização financeira, formas
132
Stam; Shohat, op.cit., p.141.
133
Ibid., p.133.
134
Ibid., p.133-134.
68
modernas e arcaicas seguem se articulando, mas com sinal invertido: o rentismo passa a pólo
moderno, e o setor produtivo, a arcaico‖
135
. Apesar de Chloe ter afirmado na cena do
restaurante que acredita no esforço e no trabalho, ela promove a ascensão do namorado nas
empresas da família, em detrimento do funcionário antigo por intermédio de uma relação
arcaica: a jovem herdeira é filha do dono da empresa.
O filme relaciona à predileção as artes à proposta de emprego. Ao descrever o presente
ofertado à namorada, o protagonista caracteriza-o como sendo ―muito raro, [a coletânea] tem
árias lindas, sua voz [a do cantor, provavelmente Enrico Caruso] expressa tudo o que é trágico
na vida.‖ As referências à tragédia, às gravações raras e à voz do cantor ilustre enaltecem as
qualidades do protagonista para a família Hewett. Allen contrapõe também, a despeito do
protagonista, as distintas visões de mundo entre Chloe e Chris. A jovem herdeira diz que ama
a vida e pergunta ao namorado irlandês de origem humilde: ―Você a acha trágica, não?‖ O
estrategista Chris, que na cena do restaurante aprendera que quando está ao lado dos Hewett
perde o poder de escolha, pergunta: ―E você?‖, como quem verifica primeiro a opinião da
jovem herdeira para saber o que deve responder.
Afeita ao showbusiness, Chloe compartilha a mesma reverência às artes que o
namorado. Ela propõe a Chris que permaneçam no dormitório do protagonista para jantar e
―ouvir a tragédia‖. Na análise sobre a intervenção corporativa nas artes, Chin-tao Wu
esclarece que para os ―(...) homens que ascendem ao topo da escala corporativa por meio de
uma carreira administrativa, [...] o envolvimento nas artes é uma manifestação na qual estão
ancoradas sua condição de elite e suas aspirações de classe.‖
136
Nesta cena será importante ressaltar também que a ópera passa de instrumento de
distinção utilizado pelo protagonista (no intuito de impressionar os Hewett) para música de
acompanhamento entre os personagens. Note-se que a utilização da ópera feita pelos
personagens difere do uso da ópera no filme, como instância extra-diegética. À medida que a
jovem Hewett abre a garrafa de vinho (da mesma marca que Tom havia pedido no
restaurante), o ex-professor de tênis revela suas novas preferências: ―Ah, Pulligny-
Montrachet. Eu nunca tinha ouvido falar antes de Tom pedir, agora estou viciado.‖ Nesse
ponto, o gosto por artigos consumidos pela classe alta adquire contornos de dependência,
apresentado como vício pelo protagonista.
135
Arantes, op.cit., p.192.
136
Wu, op.cit., p.149.
69
Assim como na apresentação do Swiss Re, Allen apresenta a fachada do ilustre cinema
Curzon Mayfair
137
, onde Chris e Chloe aguardam Tom e Nola. O filme em cartaz é Diários de
Motocicleta, do diretor brasileiro Walter Salles. Após a chegada de Tom e o subsequente
diálogo entre os personagens, o espectador pode observar que as diferentes opções de cultura,
a saber, a ópera cantada pelo tenor italiano, o vinho francês e o filme dirigido pelo cineasta
brasileiro igualam-se no filme, apresentando uma mesma função: a de entretenimento para os
ricos. Ao chegar ao Mayfair
138
, Tom informa ao casal que Nola não poderá acompanhá-los,
por conta de uma ―dor de cabeça‖. Diferentemente de Chris que vai ao cinema para encontrar
Nola, Tom desdenha a noiva: ―Ela que se dane, vamos assistir a Diários de Motocicleta!‖.
Outro elemento que é retomado nesta cena apresenta a diferença de visões de mundo entre os
Hewett e os estrangeiros. A recepção do filme sobre a viagem do revolucionário Ernesto
Guevara pela América Latina é vista sob dois olhares: o de Nola, que está ausente, e Chris que
quer encontrar a norte-americana; em contraposição ao dos irmãos Hewett. A formação de
Guevara, der da Revolução Cubana, é transformada em espetáculo para os jovens
endinheirados. Enquanto Chris lamenta pela ausência de Nola, Chloe ri com o irmão: ―Aposto
que este filme foi escolha dela, não acredito que você viria.‖
Em seguida à tentativa frustrada de encontrar Nola, o olhar da câmera retorna para o
sofá-cama do protagonista, onde Chris e a namorada repousam. Observa-se o tédio do ex-
professor de tênis ao lado de Chloe. A herdeira volta ao assunto do novo emprego de Chris:
―Todos gostam de você no trabalho. Papai disse que ouviu muitos elogios. Você é um rapaz
muito esperto.‖ O casal ri, um novo corte no qual vemos o ex-professor de tênis saindo de
uma loja de roupas com uma sacola na mão. É possível ler na entrada da loja o nome da
marca Ralph Lauren. Chris caminha para a esquina da rua e, casualmente, encontra um
137
―O Curzon Mayfair tem sua construção classificada como Grade II e é um dos mais antigos e prestigiados
cinemas de arte londrinos. Escolhido pelos leitores da revista Time Out como um dos principais cinemas de
Londres, ele reflete os mais altos padrões da produção independente e cinemas de arte internacionais desde que
abriu em 1934. [...] O Curzon Myfair foi um dos primeiros cinemas a importar e exibir filmes em ngua
estrangeira no Reino Unido. [...].‖ Disponível em: <http://www.curzoncinemas.com/venues/mayfair/history>.
Acesso em: 13 jan. 2010. Mayfair é a nossa joia da Coroa, o nosso baluarte do cinema mundial composto por
uma sala palaciana (Screen One) com capacidade para 319 pessoas, incluindo os dois luxuosos camarotes reais e
a sala aconchegante (Screen Two) com 83 lugares. Comemorando 75 anos em 2009, Mayfair é o coração da rede
de cinemas Curzon, possuindo uma rica história cinematográfica e uma audiência dedicada de interessados em
cinema‖. Disponível em: <http://www.curzoncinemas.com/#/venues/mayfair>. Acesso em: 13 jan. 2010.
138
No filme, Allen localiza os bairros em que as classes altas da capital inglesa vivem e circulam, Chloe afirma
ter sido criada no bairro Belgravia,―localizado na parte oeste de Londres é um lugar onde existem muitas casas e
lojas caras, além de embaixadas‖. O local que nome ao cinema Mayfair ―é a mais rica região de Londres,
localizada próxima ao Hyde Park. Mayfair tem muitos hotéis grandes e famosos e foi um lugar muito badalado
para se viver, mas muitas das casas foram transformadas em escritórios. Disponível em:
<http://www.ldoceonline.com/dictionary/Mayfair>. Acesso em: 13 jan.2010.
70
conhecido. Ouve-se a voz da personagem antes que ela apareça na tela, mantendo o foco da
câmera no protagonista. Nola caminha em sua direção. O protagonista explica à noiva do
jovem Hewett que estava procurando por um ―suéter do tipo que Tom usa. É cachemira?‖
Nola esclarece ao tenista que o tecido utilizado por Tom chama-se ―vicunha‖. Na cena
explicita-se que Chris procura reproduzir o estilo de Tom. Na comida, no emprego, na ópera,
no vinho, no filme e na vestimenta: o ex-professor de tênis quer parecer-se com um Hewett. A
montagem rápida das cenas revela os novos atributos do protagonista, entendidos como
investimentos: o emprego como executivo, a coletânea de óperas raras, o vinho e as roupas de
marca. No filme observa-se movimento semelhante ao descrito por López-Ruiz, no qual o
consumo é transformado em um investimento e, portanto, o consumidor num investidor.
Estabelece-se, assim, uma nova relação entre o presente e o futuro. As pessoas capitalizam-se
consumindo: ―eu consumo hoje para meu futuro‖; ou o que acaba sendo o mesmo, ―eu
postergo minhas satisfações consumindo agora‖‖
139
.
Em síntese, a contrapelo da ideologia pós-moderna, o filme caracteriza um tipo social
representado pelo personagem Chris Wilton: o sujeito da financeirização como fenômeno
hegemônico global. Chris adota a linguagem do empreendedor desde o começo do filme, o
protagonista representaria o ethos que permite ―fazer do humano uma forma de capital‖
140
.
Chris teria um ―conjunto de habilidades, destrezas e talentos que, em função do avanço do
capitalismo, adquire valor de mercado e se apresenta como forma de capital entendido como
uma soma de valores de troca que serve de base real a uma empresa capitalista. Assim, a
partir de um determinado momento que chamamos de invenção do capital humano, o capital,
conceito necessariamente abstrato, passa a se apresentar coberto com roupas humanas;
vestindo características e atributos até então apenas vistos no homem. O capital, desta vez,
concretiza-se não em dinheiro ou mercadorias, mas em atributos humanos; o capital é
investido de formas humanas.‖
141
. Conforme previra Marx em O Capital, o homem passa a
ser concebido como coisa, como um produto. Atualmente, argumenta López-Ruiz, cabe ao
homem valorizar o seu produto, realizar investimentos para aumentar o seu valor.
O ―conjunto de habilidades, destrezas e talentos‖ que permitem que Chris desenvolva
o seu capital humano e aumente o seu valor como produto, são claramente apresentados pelo
filme: as habilidades como tenista, o gosto por ópera e por literatura, além dos atributos que
139
López-Ruiz, op.cit., p.225.
140
Ibid., p.26.
141
Ibid, p.184.
71
Chris copia dos Hewett como as roupas que Tom veste, o vinho que o irmão de Chloe pede,
entre outros. Todos esses investimentos ajudam Chris a aumentar as suas ―probabilidades de
sucesso no próprio marketing pessoal, atividade fundamental e tarefa imprescindível para um
capitalista do seu capital humano‖
142
. Os Hewett consideram Chris como um bem a ser
desenvolvido, os livros que lê, os cursos que faz, as ações em que investe, os espetáculos e
filmes que assiste, a comida, as roupas, o vinho, o emprego, a concepção do filho, tudo é
monitorado pela família.
No entanto, pondera López-Ruiz, ―para que o capitalismo consiga continuar se
desenvolvendo e possa ir além de sua atual fronteira de expansão é necessário que o
empreendedorismo não seja apenas a particularidade de uns poucos, mas o atributo de um
povo. Essa, talvez, seja a característica mais marcante do espírito do capitalismo hoje: o
empreendedorismo precisa ser um fenômeno de massas.‖
143
, o que explica a identificação do
espectador com o protagonista e amplia o escopo de diagnóstico do filme, o tipo social
representado por Chris revela o espírito do capitalismo contemporâneo. A maneira como
está estruturado o foco narrativo expõe o protagonista e coloca o seu estatuto em questão,
permitindo ao espectador ver que se trata de um ―trabalhador que precisa investir o tempo
todo (consumindo) para garantir (sem garantias) sua posição social; alguém que precisa
garantir (sem garantias) que continuará sendo aquele feliz indivíduo individual que imagina
que é‖
144
.
142
Ibid., p.225.
143
Ibid., p.261.
144
Ibid., p.307.
72
Capítulo II Aliança de classes
2.1 Dinheiro, jogo e prostituição
―Não haverá uma determinada estrutura do dinheiro, que somente no destino se faça reconhecer, e uma
determinada estrutura do destino, que se faça reconhecer apenas no dinheiro?‖
Walter Benjamin, ―Jogo e prostituição‖.
O mundo do trabalho corporativo aparece relacionado ao ambiente do jogo neste
filme. uma associação entre as finanças e o jogo, cifrada na figura do protagonista que
de ex-jogador profissional de tênis torna-se executivo de uma grande corporação
transnacional. Observa-se também na própria tessitura do filme o elemento do acaso. Pode-se
pensar que ao dar ênfase ao acaso, Match Point apresentaria o destino de Chris como
inexorável, corroborando à ideia do jogo na qual, conforme exposto por Adorno e
Horkheimer: ―O acaso e o planejamento tornam-se idênticos porque, em face da igualdade
dos homens, a felicidade e a infelicidade do indivíduo da base ao topo da sociedade
perdem toda significação econômica. O próprio acaso é planejado; não no sentido de atingir
tal ou qual indivíduo determinado, mas no sentido, justamente, de fazer crer que ele impere.
Ele serve como álibi dos planejadores e a aparência de que o tecido de transações e
medidas em que se transformou a vida deixaria espaço para relações espontâneas e diretas
entre os homens‖
145
. Porém, conforme demonstramos no primeiro capítulo, o destino de
Chris é ―sem garantias‖. Apesar de ter recebido a oferta de emprego isso não significa que o
jogo está decidido de antemão. Se o ―jogo invalida as ordens da experiência‖
146
, o filme, por
sua vez, a despeito do discurso do protagonista, revela as escolhas de Chris. Diferentemente
do jogador, o filme inclui a interpretação do acaso. Isso posto, vejamos em detalhe, como o
filme incorpora o jogo como material, apresentando a todo o momento sua significação
econômica e associando-a ao capital financeiro.
Em uma rua de lojas caras da cidade, o protagonista encontra Nola. Se por um lado a
cena afirma o acaso, pois se trata de um encontro fortuito, por outro, o filme indica que o
145
Adorno, Theodor; Horkheimer, Max. ―A Indústria Cultural‖. In: Dialética do Esclarecimento: fragmentos
filosóficos / Theodor W. Adorno, Max Horkheimer; trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 1985, p.120-121.
146
Benjamin, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.130.
73
encontro não é feito em um lugar eventual. Trata-se, pelo contrário, de uma rua repleta de
lojas de marcas famosas, local que os dois frequentam e que une Nola e Chris enquanto
consumidores. Em Match Point, haverá uma reiteração de ruas como essa, conforme será
mostrado ao longo do trabalho. Nesse ponto, do encontro casual na rua da cidade, Chris
compra um suéter parecido com ―os que Tom usa‖. Por sua vez, Nola esem meio a uma
crise nervosa: ―Farei um teste em dez minutos e como sempre minha confiança que começou
no dez está agora zero.‖ O ex-professor de tênis, que nas cenas anteriores mostrara seu
interesse em reencontrar Nola, oferece ―apoio moral‖ e acompanha a jovem atriz ao Royal
Court Theatre
147
, local em que ela fará um teste de atuação.
Enquanto Chris aguarda Nola em frente ao teatro, a música extra-diegética retorna ao
filme. A interpretação de Caruso da ópera I Pescatori di Perle, do compositor francês
Georges Bizet, ilustra os pensamentos do protagonista. A ária escolhida por Allen, Mi par
d’udir ancora‖, aborda o momento em que o pescador Nadir reencontra sua amada, a virgem
protetora dos pescadores Leila
148
, após uma longa separação. Desse modo, a música de Bizet,
na qual Nadir canta como um ―cisne apaixonado‖ por ter reencontrado Leila, ilustra o
reencontro entre Nola e Chris.
Se a utilização da música extra-diegética neste caso ―romantiza‖ os pensamentos de
Chris, a imagem do monumento em homenagem aos mortos pela guerra, em frente ao Royal
Court Theatre, insere a ideia de um conflito. No momento em que Nola aproxima-se da
câmera e de Chris, a atriz norte-americana conta que não passou no teste: ―Foi um desastre‖.
A expressão em inglês utilizada por Nola ressalta a ideia de guerra. Ela utiliza blew thato
que reitera o sentido de uma ―explosão‖, presente tanto no Royal Court Theatre, que foi
atingido por uma bomba durante a Segunda Guerra Mundial, como no monumento pelos
147
―O Royal Court Theatre foi construído no lado leste da Sloane Square. Inaugurado em 1888, ele substitui o
antigo Court Theatre que ficou conhecido também como the New Chelsea Theatre e Belgravia Theatre. Durante
a Segunda Guerra Mundial, o Royal Court Theatre foi atingido e danificado por uma bomba. O interior do teatro
foi reconstruído por Robert Cromie e reaberto em 1952. Outras alterações foram feitas em 1956 e 1980, mas a
fachada permaneceu em grande parte inalterada. Muitas das peças de George Bernard Shaw foram produzidas no
Royal Court. O teatro criou uma nova geração de dramaturgos britânicos, tais como: John Osborne, John Arden,
Ann Jellicoe, entre outros. No teatro foram incluídas as primeiras temporadas das peças internacionais de Bertolt
Brecht, Eugene Ionesco, Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre e Marguerite Duras. O Royal Court é conhecido como
inaugurador do drama moderno britânico, incentiva a produção de novos dramaturgos e recebe residências
artísticas internacionais.‖ Disponível em: <http://www.british-history.ac.uk/report.aspx?compid=28709#s9>.
Acesso em: 3 mar. 2010.
148
―A virgem Leila e o pescador Nadir se reconhecem e ele a contempla embevecido enquanto ela sobe o
penhasco. Numa ária de grande beleza, o jovem evoca um amor que o tempo não pode apagar [...]. É a passagem
mais conhecida da partitura especialmente na versão italiana, Mi par d’udir ancora-, impregnada, como o
dueto para o tenor e o barítono e o dueto de amor, de uma espécie de transportamento hipnótico, delicado e
sedutor, musicalmente evanescente, mas ao mesmo tempo irresistível.‖ Ver Kobbé, op.cit., p.445.
74
mortos da guerra, construído em frente ao teatro em homenagem às vítimas da guerra. Nesse
ponto, pode-se retomar a maneira conforme Tom caracterizara Nola como uma struggling
actress
149
, resgatando o sentido de luta no trabalho da atriz.
Assim como a fachada do teatro e o monumento pelos mortos da guerra, a derrota de
Nola, que não foi aceita para o papel, contrasta com a ópera e os pensamentos de Chris. A
música extra-diegética é quebrada pelo barulho de carros que passam pela rua. Nesse
momento, Nola diz ao protagonista que costuma beber para se ―recompor um pouco‖. A atriz
norte-americana é conduzida por Chris. Em um corte rápido, Nola aparece no bar embriagada.
A atriz está sem o blazer preto, com um cigarro na mão esquerda e de camisa branca (o
paralelo é novamente estabelecido com a cena do jogo de pingue-pongue):
[Nola Rice]: ―O que eu dizia? Minha irmã fez faculdade por alguns
anos, mas eu sou como você, autodidata. Devia ver minha irmã, ela é muito
bonita, mas se afundou nas drogas.‖
[Chris Wilton]: ―Tenho certeza de que ela não é mais bonita do que
você.‖
[Nola Rice]: ―Eu sou sexy. Mas a Linda, minha irmã, tem uma
beleza clássica.‖
[Chris Wilton]: ―Então você sabe que chama a atenção dos
homens?‖
[Nola Rice]: ―Antes dos meus pais se separarem, eles a colocavam
em uns concursos. Era uma piada.‖
[Chris Wilton]: ―O que o seu pai fazia?‖
[Nola Rice]: ―Ele... foi embora e nunca mandou dinheiro. Minha
mãe não conseguia ficar em um emprego.‖
[Chris Wilton]: ―Não?‖
[Nola Rice]: ―Não, o problema dela era a bebida.‖
De forma similar a Nemorino na ópera O Elixir de Amor, Nola embriaga-se com o
vinho. Sob o efeito do elixir, a jovem atriz norte-americana revela sua história: nem ela nem a
irmã completaram o ensino superior, sua mãe bebia, a irmã é dependente de drogas, o pai
fugiu de casa e ―nunca mandou dinheiro‖. -se aqui a diferença entre Nola e Nemorino,
enquanto o último se declara para a amada, a primeira revela seus problemas
familiares/financeiros. Diferentemente de Chris, que fornece raras informações a seu respeito
e tenta imitar os jovens ricos, Nola expõe sua vida ao adversário. Nesse ponto, Chris
149
A expressão struggling actress, utilizada por Tom para caracterizar o trabalho de Nola como atriz, tem em
inglês tanto o significado de um trabalhador que ―tende a falhar, mesmo quando ele se esforça muito‖, quanto o
sentido explícito de luta. Em inglês, struggle aparece também na expressão class struggle (luta de classes).
Disponível em: <http://www.ldoceonline.com/search/?q=struggle>. Acesso em: 3 mar. 2010.
75
assemelha-se ao charlatão Dulcamara que aproveita da embriaguez de Nemorino para lucrar
com a venda do elixir.
A jovem atriz sabe que conquistou Tom por seus dotes físicos: ―Nos conhecemos em
uma festa. Tom me viu na sala e veio na minha direção como um míssil. E eu gostei dele na
hora. Eu pensei... Bem, eu acho que ele é bem bonito. Você não acha?‖ A aproximação de
Tom é descrita por Nola revelando não apenas a atração física entre os dois como também o
espírito belicoso na abordagem feita pelo jovem Hewett. Nola descreve a aproximação de
Tom utilizando uma imagem essencialmente bélica, a guided missile
150
. A imagem do
míssil retoma a ideia de uma guerra, sugerida pelo monumento em frente ao Royal Court
Theatre. E de certa forma, antecipa a maneira pela qual Nola será morta por Chris (atingida
por uma bala de espingarda). O míssil relembra também o formato do Swiss Re, edifício
construído em formato de ogiva.
É importante notar nesta cena que não se trata apenas de um jogo reafirmado pela
utilização do campo/contra-campo, mas do domínio do tenista em relação à jogadora de
pingue-pongue. Chris está mais ao lado/no campo de batalha dos Hewett do que Nola,
conforme a própria atriz revela. Nola sabe exatamente sua condição na família. A mãe de
Tom não aprecia a sua entrada para a família que se por meio da beleza. O jogador
profissional aproveita a embriaguez da atriz para descobrir como ela conseguiu o noivado
com o jovem Hewett (informação crucial para o protagonista que é apenas namorado de
Chloe): ―Bem, ele encheu-me de presentes e, você sabe, o que eu sei sobre esse tipo de vida?
Sou apenas uma atriz faminta de Boulder, Colorado. Mas eu tive um casamento ruim. Esta
é outra razão pela qual ela me odeia.‖ À maneira de um estrategista, Chris recolhe
informações não apenas sobre a família de Nola e a fraqueza que a atriz tem com bebida,
como também sobre os Hewett, conforme Nola revela: ―Eleanor, a mãe do Tom. Ela quer que
ele se case com uma garota chamada Olívia, acho que é uma prima distante. Não sei, é doente,
eles casam entre si.‖
Posteriormente ao aviso de Nola de que se trata de uma família que transmite a
propriedade por meio do casamento, preservando uma mesma linhagem (conforme simboliza
o Englefield Estate), Chris pergunta: ―E foi amor à primeira vista para você também?Nola
retoma a atração física: ―Eu o achei muito bonito. E como disse, nunca recebi tanta atenção. E
150
A guided missile é uma expressão usada apenas para caracterizar um ―míssil guiado eletronicamente
quando está voando‖. Disponível em: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/guided-missile>. Acesso em: 3
mar. 2010.
76
quanto a você e Chloe?O protagonista, que mantém as aparências, tenta não comprometer-
se: ―Ela [Chloe] é muito doce.‖ Nola chega a repetir a fala do protagonista, como quem
desconfia da afirmação.
Assim como o tenista, a jovem atriz norte-americana teve acesso à família aristocrática
inglesa por intermédio de seus dotes físicos. Outro fator que contribuiu para a aproximação
entre a jovem do Colorado e a classe alta britânica foi o contato de Nola com o mundo do
showbusiness. A norte-americana atuou em comerciais, circulou em festas, participou de
eventos que unem entretenimento a grandes empresários e patrocinadores das artes, onde
conheceu o noivo. Fica claro nos comentários da família Hewett que a entrada da norte-
americana deve-se à sua inserção no mundo do cinema
151
. Chloe chega a afirmar: ―Tenho
certeza de que a mamãe não implicaria com o maiô da Nola se soubesse que ela usou em um
filme‖, ―Nola é atriz, eles são emotivos.‖, ―Tenho certeza de que foi a Nola quem escolheu o
filme e não você [,Tom].‖ Apesar de, assim como o protagonista, apresentar os dotes físicos a
seu favor, Nola não faz como o tenista que, para agradar à família, transforma-se em
executivo.
Chris lembra que Eleanor também não aprovaria a união entre ele e Chloe. Mas Nola
sabe que suas chances de entrada para família Hewett são distintas em comparação a Chris:
―Eu não gosto da Eleanor e ela sabe disso, mas voestá sendo preparado para o casamento.
Guarde as minhas palavras. Eles quase morreram quando pensaram que a Chloe tinha fugido
com um cara que trabalhava em um gastropub na City. Você se dará muito bem, a menos que
estrague tudo.‖ O palpite de Nola interessa o protagonista: ―E como eu faria isso?‖ A
jogadora verte outro gole de vinho e afirma: ―Tentando dar em cima de mim.‖
A provocação entre os jogadores está cifrada na chave do desejo, Nola e Chris incitam
um ao outro: ―E por que você acha que isso aconteceria?‖ Nola desafia o protagonista,
assemelhando-o à maioria dos homens: ―Os homens sempre ficam pensando... Eles acham
que eu seria alguma coisa muito especial.‖ Chris provoca a jogadora: ―E você é?‖. Parodiando
o jogo rápido de pingue-pongue, reforçado pela utilização do campo/contra-campo, a norte-
americana rebate: ―Nunca ninguém pediu o dinheiro de volta.‖ O tenista ri e se mantém no
151
O próprio Allen foi beneficiado pelo interesse da família Benyon, os atuais proprietários do Englefield Estate,
em permitir as filmagens de Match Point na residência. Em entrevista sobre o uso de sua casa como locação para
filmes, Benyon afirmou que a ―família tem muitas ofertas de filmagens no local, mas que os horários de
filmagem devem agradá-los. As filmagens devem respeitar as férias escolares de meus filhos. Eu achei essa
experiência muito emocionante.‖ Disponível em:
<http://www.newburytoday.co.uk/News/Article.aspx?articleID=6234>. Acesso em: 13 jan. 2010.
77
jogo: ―Onde estava toda essa confiança quando você precisou dela no teste de atuação?‖ Nola
encerra a partida: ―Eu bebi demais. Pode chamar um táxi?‖
A própria fala da personagem estabelece a relação entre o dinheiro e a prostituição:
―Nunca ninguém pediu o dinheiro de volta‖, diz a norte-americana para o ex-professor de
tênis. Nola conta a Chris que Tom encheu-a de presentes. Ela afirma ―Nunca ter recebido
tanta atenção‖. Nesse ponto, exporemos a relação a partir das análises de Simmel, Benjamin e
Schwarz. Em uma passagem onde analisa a ―típica relação entre o dinheiro e a
prostituição‖
152
, Georg Simmel analisa a diferença entre o cliente que presenteia a prostituta
com dinheiro e aquele que lhe oferece um presente: ―Somente uma transação monetária
corresponde ao caráter de uma relação fugaz completamente inconsequente como é o caso da
prostituição. O relacionamento é completamente dissolvido e mais radicalmente rescindido
mediante pagamento em dinheiro do que com um presente de um objeto específico, que
sempre, por meio de seu conteúdo, sua escolha e seu uso, retém um elemento da pessoa que
lhe deu.‖
153
A partir das reflexões de Simmel sobre as relações entre o dinheiro e a
prostituição, Walter Benjamin, na análise sobre Baudelaire, contribui ao mostrar que o
dinheiro não pode ser considerado apenas como um meio de pagamento ou como um
presente: ―O amor da prostituta é, sem dúvida, venal. Mas não a vergonha de seu cliente. Essa
vergonha procura um esconderijo para um quarto de hora, e acha o mais genial de todos: o
dinheiro. São tantas as nuances do pagamento como as nuances do jogo amoroso lento ou
rápido, furtivo ou violento. O que quer dizer isto? A ferida rubra de vergonha no corpo da
sociedade segrega dinheiro e se cura. Ela se cobre de escaras metálicas. Deixemos ao roué
[sabido] o prazer barato de se acreditar impudente. Casanova bem o sabia: o atrevimento
lança na mesa a primeira moeda; a vergonha cobre cem vezes a aposta, para não vê-la.‖
154
A
relação entre o dinheiro e a prostituição é retomada por Roberto Schwarz na análise sobre o
romance O pai Goriot, de Balzac. De acordo com Schwarz, ―O dinheiro e a prostituição
coincidem na equivalência geral que estabelecem. Tudo vale tudo, tanto faz um como o outro,
e todos valem todos. Não obstante, é preciso distinguir: a equivalência universal é
conquistada pelo dinheiro, mas é sofrida pelos homens, que prostituem suas inclinações por
152
Simmel, Georg 1858-1918. In: The philosophy of money / Georg Simmel; transl. by Tom Bottomore and
David Frisby from a first draft by Kaethe Mengelberg. London: Routledge, 1991, p.376-380.
153
Simmel, op.cit., p.376.
154
Benjamin, op.cit., p.240.
78
várias formas, dentre as quais a física é a mais crassa.‖
155
Schwarz lembra ainda que o que o
dinheiro esconde é precisamente as formas de sociabilidade baseadas na violência: ―Uma vez
legalizada, com nome de ordem social, a violência se repete através de inumeráveis perfis
apenas parciais: a contingência cotidiana de atender à solicitação caótica do mercado evoca a
grande expropriação originária, que é seu fundamento.‖
156
A própria composição dos personagens Chris e Nola é feita de modo que eles
apareçam como objetos de consumo. Na casa de campo, os dotes físicos de Chris e Nola são
apresentados. O protagonista mostra aos irmãos Hewett sua habilidade na quadra de tênis,
Nola destaca-se na mesa de pingue-pongue. No filme, a permanência de Chris na família
Hewett aparece condicionada à gravidez de Chloe, após o casamento. O cultivo dos dotes
físicos e esportivos do protagonista é reiterado pelos personagens ao longo da narrativa. A
relação entre Chris e Chloe retoma aspectos do ―casamento por dinheiro‖
157
que, de acordo
com Simmel, configura-se como uma variação da prostituição: ―O casamento por dinheiro,
como um meio permanente da prostituição de si mesmo, degrada qualquer parceiro que é
motivado pelo dinheiro; independentemente se ele for do sexo masculino ou feminino. [...]
Aqui, como em muitos outros casos, a qualidade característica das relações por dinheiro é
exibida, ou seja, a superioridade potencial de uma das partes leva à exploração radical e até
mesmo à aniquilação do outro.‖
158
Em Match Point, as relações interpessoais se fazem mediadas pelo dinheiro, o que
explica a reiteração das lojas, clubes, casas de campo e outros locais ligados à propriedade e
às compras. No sistema de personagens exposto no filme, as qualidades pessoais são
transformadas em mercadorias.
2.2 Recursos épicos
O teatro épico interessa-se principalmente pelas atitudes que as pessoas adotam uns com os outros,
sempre que elas são sociohistoricamente significativas (típicas). Ele trabalha as cenas em que as pessoas adotam
atitudes de tal sorte que as leis sociais sobre as quais elas estão agindo saltam à vista. Para isso, precisamos
encontrar definições práticas: ou seja, tais definições dos processos pertinentes podem ser utilizadas como
intervenção direta nos processos. O interesse do teatro épico é, portanto, eminentemente prático. O
155
Schwarz, Roberto. ―Dinheiro, memória, beleza (O pai Goriot)‖. In: A Sereia e o desconfiado. Paz e Terra,
1981, p.167-168.
156
Ibid., p.168.
157
Simmel, op.cit., p.380.
158
Ibid., p.381-382.
79
comportamento humano é mostrado como alterável, o próprio homem é visto como dependente de certos fatores
políticos e econômicos e, ao mesmo tempo, como capaz de alterá-los.‖
Bertolt Brecht, ―On gestic music‖.
Embora não se possa dizer que os recursos utilizados por Woody Allen sejam
estritamente épicos, como poderíamos afirmar, por exemplo, dos procedimentos usados por
Jean-Luc Godard
159
, observa-se a acomodação de alguns recursos caros ao épico dentro da
estrutura narrativa de Match Point. No intuito de identificar esses procedimentos próximos ao
épico, retomaremos a ideia de que o filme apresenta os personagens em situação. Na cena
seguinte à do encontro entre Nola e Chris no bar, os casais retornam ao Englefield Estate. Em
um plano geral da chegada da família à propriedade, observa-se, ao fundo, a igreja ancestral
de São Marcos
160
. A câmera está posicionada no muro da propriedade e os empregados
aguardam pela chegada da família Hewett. O patriarca é o primeiro a descer do carro,
auxiliado pelo motorista. Alec repreende o filho que ―está dirigindo muito rápido‖, enquanto o
mordomo da casa ajuda a matriarca a sair do veículo (Figura 3). A governanta recepciona os
convidados. A utilização do plano geral nesta cena permite que o espectador estabeleça
relações entre a igreja, a casa de campo, os veículos e os empregados. O cenário campestre
configura-se como propriedade privada da família Hewett.
Na estrebaria do Englefield Estate, vê-se novamente a igreja, o que confere a exata
sensação ao espectador de que o local de culto religioso pertence à família (o espaço é
contíguo, não muros ou cercas entre a cavalariça e a igreja). O poderio dos Hewett é
retomado por meio dos veículos, dos empregados, da igreja e dos cavalos de competição. Na
estrebaria, primeiro ouve-se a voz da herdeira que pergunta por um de seus cavalos. De costas
para a câmera, Tom explica à irmã sobre a doença do animal que pode impedi-lo de entrar na
159
A aproximação entre Allen e Godard não é absurda, basta lembrar, conforme fizemos na introdução deste
trabalho, que Godard fez um filme sobre o cineasta norte-americano buscando identificar justamente a estrutura
narrativa nos filmes de Allen.
160
―A igreja de São Marcos (St. Mark’s Church) localiza-se ao lado da casa dos Englefield em uma estrada
pertencente à propriedade. Frequentemente pode-se observar veados pastando no parque adjacente e de alguma
forma, você sente como se estivesse invadindo a propriedade ao entrar na igreja, embora seja um lugar público
de culto e até os jardins da casa são abertos ao público durante a semana no verão. Apesar da reconstrução
vitoriana, ainda existem inúmeros utensílios medievais na igreja e a família Englefield e os seus sucessores que
residem no local ficam, naturalmente, em evidência. A pequena capela de Englefield está repleta de monumentos
e até o sepulcro da Páscoa foi reutilizado como um memorial em homenagem ao Sir Thomas Englefield,
presidente da Câmara dos Comuns. O monumento a John Paulet, o Marquês de Winchester que defendeu a
Basing House durante a Guerra Civil, tem um epitáfio escrito por Dryden.‖ Disponível em:
<http://www.berkshirehistory.com/churches/englefield.html>. Acesso em: 13 jan.2010.
80
competição. Enquanto isso, Nola alimenta um dos cavalos e Chris observa-a. Nesta cena, o
filme apresenta os cavalos de competição, outra forma de propriedade dos Hewett, e o
crescente interesse de Chris por Nola. A paixão de Chris por Nola será entendida neste
trabalho nos termos do conflito entre paixão e equivalência geral, conforme exposto por
Schwarz: ―Enquanto dura, a fidelidade à fixação individual questiona a base do sistema. Daí o
seu interesse escandaloso, semelhante ao que despertam o crime passional e as perversões:
faz sentir o que seria da vida se levada a sério; seu mau gosto e caráter excessivo insinuam,
pela simpatia paradoxal que despertam, a miragem de uma ordem que não se efetive através
do sacrifício dos anseios individuais.‖
161
Apesar da fixação por Nola, imediatamente o filme
apresenta o avesso da paixão: o dinheiro. Na casa de campo, o espectador tem acesso ao lugar
onde a família Hewett guarda as armas, outra forma de propriedade. No porão escuro do
Englefield Estate, Alec Hewett, ao passo que monta sua espingarda, discorre sobre uma nova
proposta ao protagonista relacionada aos negócios: ―O que você diria da ideia de fazer um
curso de administração pago pela empresa?‖ A cena permite que o espectador associe o
preparo da arma com a conversa sobre o curso de administração entre Alec e Chris. Fica claro
aqui que o protagonista é entendido como ―um bem a ser desenvolvido
162
pela família
Hewett. Segundo López-Ruiz, essa é uma característica particularmente importante no mundo
regido pelo empreendedorismo: ―Quando uma pessoa se propõe a ser um melhor produto o
que parece estar em questão é de que forma pode ela responder melhor às necessidades do
mercado e, portanto, que tipos de investimentos é preciso que ela faça em si mesma e que
características ela tem de aprimorar para se tornar efetivamente um melhor produto, um
produto melhor posicionado no mercado e, consequentemente, mais vendável: um produto de
sucesso.‖
163
Isso posto, vejamos como essa característica é apresentada em cena.
O protagonista está posicionado no canto direito da tela e olha para o patriarca. Alec
está de frente para a câmera. O ex-professor de tênis mostra-se indeciso: ―Não sei‖. O
patriarca segura a arma, olha e mira em direção à câmera. Alec prossegue em seu argumento:
―Tenho recebido pareceres muito bons a respeito do seu trabalho‖, ao passo que deixa a
espingarda sobre a mesa e passa a limpar os óculos. Ele descreve as vantagens do novo cargo
para Chris: ―No início do ano que vem, haverá um cargo importante disponível. Uma posição
que exige muita responsabilidade e oferece salário compatível‖. Alec coloca os óculos e passa
161
Schwarz, 1981, op.cit., p.171.
162
López-Ruiz, op.cit., p.267.
163
Ibid., p.272.
81
a guardar as balas da espingarda no bolso: ―Além disso, existem muitos privilégios...
Despesas pagas, motorista etc.‖ O patriarca aproxima-se do protagonista, bate no ombro do
ex-professor de tênis e explica, em voz baixa: ―Estávamos pensando em outra pessoa, mas é
óbvio para mim que você e a Chloe se tornaram íntimos. Embora eu não considerasse essa
possibilidade se não achasse que você fosse qualificado.‖ Assim, o filme retoma as questões
do cargo por influência, das relações de favor e do interesse pelo dinheiro. Alec pega a
espingarda vira as costas para o protagonista e recebe a resposta esperada: ―Eu odiaria
decepcioná-lo‖, afirma Chris. A partir da chegada de Tom, a câmera muda de posição. Chris
fica atrás da câmera. O herdeiro pega uma arma para oferecer ao ex-professor de tênis. A cena
é cortada e ouve-se um tiro no campo, dado pelo protagonista. Assim como o patriarca, Chris
possui uma espingarda em mãos. Se por um lado Chris deseja Nola, por outro, essa vontade é
imediatamente sufocada pelo seu interesse por dinheiro.
O filme, portanto, apresenta a escolha de Chris. A resposta do protagonista de que
―odiaria decepcionar‖ o futuro sogro deve-se aos privilégios oferecidos pelo patriarca. A
aliança entre o irlandês e a elite britânica dar-setanto por meio das finanças, o trabalho na
empresa da família, o curso de administração, o casamento com a herdeira, como por meio do
universo do crime: Chris recebe uma arma de caça dos Hewett e vai utilizá-la justamente para
preservar esta aliança, o casamento com a herdeira. Na cena do porão, pode-se observar
movimento semelhante à famosa formulação de Brecht do gestus socialmente relevante‖
164
.
De acordo com Brecht, ―o gestus social é aquele gestus que é relevante para a sociedade, o
gestus que permite que conclusões sejam tiradas a partir de circunstâncias sociais‖
165
. Se por
um lado, a cena aparenta ser uma conversa trivial entre cavalheiros, por outro, as armas e o
motivo da conversa reiteram a associação entre o mundo das finanças e o das armas,
antecipando o crime. Outra vez, a equivalência universal é conquistada pelo dinheiro, mas é
sofrida pelos homens.‖
166
Vestido com roupa semelhante à de Tom, Chris aparece na cena seguinte praticando o
tiro no campo. O patriarca, seus herdeiros e outros atiradores profissionais observam a
pontaria do tenista. Nola e Eleanor não acompanham a artilharia. Ao perceber a pouca
habilidade do ex-professor de tênis para a prática do tiro, Tom comenta: ―Não tem problema,
parceiro. Isso é basicamente um aquecimento para a temporada do galo silvestre que começa
164
Brecht, 1977, p.86.
165
Idem, p.104-105.
166
Schwarz, 1981, op.cit., p.167.
82
em breve. É uma diversão e tanto
167
.‖ Chloe protege o namorado: ―Não o assuste. A sua
pontaria não é tão boa quanto no tênis, pobrezinho.‖ O patriarca afirma que o transformará em
um ―talentoso atirador‖, característica que retoma o acordo no porão. Na cena do tiro no
campo, a ausência de Nola pode ser lembrada pelo espectador no sentido de que ela avisara
que o protagonista ―está sendo preparado para o casamento‖ pela família Hewett. Chris fará
um curso de administração para ocupar um ―cargo compatível‖, terá ―acesso a privilégios‖ e
será transformado pela família Hewett em um ―poderoso atirador‖. Novamente, o filme
estabelece a relação entre o dinheiro e a violência. Os Hewett são atiradores profissionais.
No interior da casa de campo, observa-se Chloe lendo deitada em sua cama. Ouve-se o
barulho de uma tempestade, ao passo que o protagonista aproxima-se da namorada. Chris
pergunta à Chloe se ela sabe onde está o seu livro de Strindberg. Assim como faz com
Dostoievski, a referência ao dramaturgo sueco aproxima o protagonista da família. A
predileção de Chris pelos clássicos constitui um traço de distinção. No entanto, a menção a
Strindberg no filme de Allen não é aleatória. De maneira semelhante à utilização feita pelo
filme de Crime e Castigo, a dramaturgia de Strindberg pode contribuir para a análise do filme.
Não se trata de uma referência fortuita ao dramaturgo sueco na obra de Allen
168
, mas a
menção a Strindberg serve como comentário às ações do protagonista. Trata-se, portanto, de
uma referência calculada.
O criado Jean da peça Senhorita Júlia [1888], de Strindberg, assemelha-se ao
protagonista de Match Point. Assim como Chris, Jean é também um jovem pobre e arrivista
em busca da ascensão social por meio do casamento com uma moça rica, a senhorita Júlia que
título à peça. No prefácio à Senhorita Júlia, pode-se recuperar o parentesco entre Jean e
Chris. Strindberg afirma que o personagem ―é o tipo que funda uma espécie, alguém em que o
processo da diferenciação pode ser observado. Ele era o filho de um pobre agricultor que
soube se transformar em um futuro nobre. Jean foi rápido em aprender, desenvolveu os
sentidos refinados (olfato, paladar, visão) e um olhar para a beleza.‖
169
Na peça, a jovem
nobre Júlia pergunta ao empregado: ―Você é um contador de estórias encantador, frequentou a
167
Em inglês, a frase proferida por Tom ressalta o caráter da temporada de tiro como uma ―diversão sangrenta‖:
But it’s bloody good fun‖.
168
A referência a Strindberg pode ser encontrada também em outros filmes do diretor como, por exemplo,
Manhattan, no qual o personagem Isaac Davis [Woody Allen] afirma: ―
No quesito relacionamentos amorosos com mulheres, eu sou o ganhador do prêmio August Strindberg‖, o que
vale como comentário para a misoginia do personagem.
169
Strindberg, August. Miss Julie and other plays trans. Michael Robinson.Oxford: Oxford World‘s Classics,
1998, p.61-62.
83
escola?‖. Jean responde que frequentou ―um pouco‖, embora tenha lido ―vários romances e
assistido a peças‖. O atributo indispensável para Jean, conforme o próprio personagem revela,
foi ter ouvido ―muita gente elegante falar. Isso foi o que mais aprendi.‖
170
Jean imita a
nobreza, adquirindo os ―segredos da alta sociedade‖
171
, característica que aproxima-o de
Chris.
A temática levantada por Strindberg relaciona-se diretamente ao conflito central
exposto em Match Point: a aliança de classes. O filme estabelece o contraste entre a cena no
porão (na qual o patriarca oferece privilégios e uma arma ao protagonista) e a da biblioteca
(momento em que a matriarca discute com Nola). Enquanto toma vinho e joga xadrez com
Tom, Nola é interrogada por Alec e Eleanor. A cena retoma o tema da conversa no bar entre
Nola e Chris, figurando como uma espécie de novo teste para Nola no qual ela será também
eliminada.
Enquanto observa o jogo de xadrez entre Nola e Tom no qual a norte-americana está
perdendo , o patriarca pergunta a respeito do resultado do teste de atuação. Nola revela que
não conseguiu o papel. Nesse momento, a câmera acompanha o percurso de Alec que se
aproxima da esposa e senta-se em um sofá, de costas para a câmera. Observa-se a reação da
matriarca e do patriarca à resposta de Nola. Eleanor e Alec estão sentados em sofás
semelhantes, cuja disposição forma um ângulo de 90º, o que confere a ideia de um espaço
fechado. Nesse ponto, o espectador pode perceber o contraste entre a distância do patriarca
e da matriarca, fechados em um cerco, em relação à Nola e a proximidade entre Alec e Chris
no porão.
Na cena da biblioteca, pode-se questionar, entre outros aspectos, o papel do cômodo
ancestral no cotidiano dos Hewett. Nas diversas cenas em que o espaço aparece não
nenhum momento em que o local é utilizado propriamente para a leitura e consulta dos livros.
As obras que compõem a biblioteca aparecem como ornamento, objetos de decoração e de
posse assim como as pinturas a óleo, tapetes e esculturas que decoram o local. Na cena, os
personagens lêem jornais e jogam. Nesse momento, a biblioteca aproxima-se mais a um salão
de jogo no qual Nola é eliminada. Nesse ponto, fica claro que Alec e Eleanor são os
personagens que dão as cartas do jogo.
Enquanto Nola explica sobre o teste de atuação, ouve-se um bocejo do patriarca que
abre o jornal. O espectador pode ler a manchete: ―Get real, says vandal victim‖ (―Caia na real,
170
Strindberg, op.cit., p.84.
171
Ibid., p.62.
84
diz vítima de vandalismo‖). Se por um lado, o gesto de Alec mostra o desinteresse do
patriarca por Nola, por outro, a utilização da manchete de jornal pelo filme traz um
comentário à cena ao incluir a fala de uma vítima de vandalismo e a expressão ―caia na real‖
comenta a posição de Nola na família (o recado que será dado por Eleanor será nesse sentido).
De maneira semelhante ao patriarca, Eleanor toma gim e faz palavras cruzadas no jornal. A
matriarca enquadra a noiva de Tom: ―E por quanto tempo você vai continuar tentando?‖
Nesse momento, a câmera muda de posição, ouve--se um trovão e observa-se o rosto de Nola
estupefato com a violência da futura sogra. O noivo encara a mãe. Nola repete a pergunta feita
pela matriarca: ―Por quanto tempo?‖ A câmera retorna para Eleanor e Alec. A matriarca
continua o seu recado: ―Se o tempo passa e nada de significante acontece, por quanto tempo
você vai continuar tentando até decidir tentar outra coisa? Nesse ponto da cena, pode-se
observar que o barulho da tempestade, a composição da mise-en-scène e o diálogo entre os
atores representaram o mesmo ato de maneira independente‖
172
, a saber, o cerco fechado da
família Hewett sobre Nola.
Apesar de se tratar de uma pergunta em um suposto diálogo, Eleanor retoma as
palavras cruzadas no jornal. Nola para de olhar para o jogo de xadrez e observa a reação do
noivo. O jovem Hewett intervém na discussão: ―Eu não acho que a Nola chegou a este ponto,
mãe‖, mas permanece olhando para o tabuleiro do jogo de xadrez. A matriarca prossegue:
―Não estou dizendo isso. Estou apenas dizendo que você pode tentar ser atriz por um tempo,
mas se não conseguir, tem que se perguntar: ‗É isso mesmo o que eu quero para a minha vida?
É isso o que quero? ‘‖. A atriz responde à provocação da futura sogra: ―Sim, eu me faço essa
pergunta.‖ Eleanor dirige-se ao filho: ―Está vendo, é apenas lógico, Tom. Sobretudo para uma
mulher. É um negócio muito cruel para uma mulher e à medida que você envelhece, o tempo
passa e nada acontece, fica cada vez mais difícil.‖ O patriarca intervém: ―Eleanor, a Nola não
está exatamente acima da idade.‖ A matriarca ri: ―Não estou dizendo ‗agora‘. Mas sou ótima
para encarar a realidade.‖ Nola fica em silêncio. O noivo tenta defendê-la: ―A sua opinião
sobre a realidade é sua e nada mais. E francamente, não é todo mundo que está interessado em
ouvi-la.‖ Alec pede para que Tom não aumente a voz com sua mãe. Aos olhos do espectador,
a descortesia provém da classe dominante, representada pela família Hewett. Tom discute
com o pai: ―Eu não estou levantando a minha voz. Mas desculpe-me, papai, ela está sempre
pegando no pé da Nola, desencorajando-a frequentemente por meio de insinuações‖.
172
Brecht, 2000, op.cit., p.13-14.
85
O olhar da câmera volta para Eleanor, que não interrompe o discurso: ―Eu estou
apenas dizendo que ser ator é tão ilusório, aqueles que têm talento logo percebem. Perseguir
este objetivo porque não quer admitir a derrota para os amigos em casa não é realista.
Desculpe-me, mas é o que sinto.‖ Enquanto Eleanor conclui a sentença, a câmera volta para
Nola que verte mais um gole de vinho, permanecendo em silêncio. Ao término do recado da
matriarca, a jovem norte-americana pede licença e retira-se da biblioteca. A câmera não
acompanha Nola, permanece no local, mostrando a reação dos Hewett à saída da norte-
americana. A matriarca permanece sentada no sofá, o filho reclama com a mãe: ―Você sabe
que esse é o calcanhar de Aquiles [da Nola]‖ e o pai pede para que Eleanor pare de tomar gim
tônica.
Para caracterizar a cena, Allen usa o campo/contra-campo. A cnica neste caso é
utilizada para contrapor os pares, Alec e Eleanor em oposição a Tom e Nola. A cena tematiza
também a submissão do herdeiro aos pais e mostra o domínio dos Hewett sobre todos os
aspectos. Neste jogo travado no campo do inimigo no qual o patriarca e a matriarca dão as
cartas , Nola está em desvantagem em comparação a Chris. Ela não consegue associar-se aos
pais de Tom tal como faz o protagonista. Ao contrário do tratamento para com o irlandês, o
patriarca não oferece ―privilégios‖ para Nola. A carreira escolhida pela atriz é avaliada pelos
futuros sogros como um ―negócio arriscado‖. Destaca-se também que Nola como mulher é
eliminada por sua semelhante, a matriarca. No filme, o conflito masculino/feminino relaciona-
se à significação econômica. A matriarca adota um critério de classe para avaliar a carreira de
Nola como um ―negócio cruel, sobretudo para uma mulher‖. A informação de que a Hewett
Inco. é uma empresa inserida no mercado financeiro permite que Eleanor ―seja ótima‖ para
calcular os riscos de um eventual casamento entre seu filho e Nola. A matriarca sugere a falta
de talento da atriz norte-americana e aponta para as poucas chances de sucesso da noiva de
Tom. Novamente, destaca-se a diferença entre Chris e Nola, o primeiro, além de ser homem,
possui as habilidades e destrezas do empreendedor. Após o contratempo com a matriarca, a
jovem norte-americana retira-se do local que é comandado por Eleanor e Alec.
Assim como Jean e Kristin em Senhorita Júlia pertencem à mesma classe, Chris e
Nola fazem parte de um mesmo mundo. Outro indício de que a referência a Strindberg é
calculada se no papel das mulheres na configuração social: a personagem Kristin figura
como se fosse uma ―escrava feminina‖
173
e a própria senhorita Júlia foi considerada por
173
Strindberg, op.cit., p.63.
86
Strindberg como inferior a Jean: ―Apesar de ser um arrivista, Jean é superior a senhorita Júlia
por ser homem. Sexualmente, ele é o aristocrata, por conta de sua virilidade, seus sentidos
mais refinados e sua habilidade em tomar a iniciativa‖
174
. Na fala de Eleanor o recado é
explícito: ―especialmente por ser mulher‖, Nola está em posição de desvantagem. O
temperamento da atriz norte-americana foi preterido pela família Hewett, afeita à elegância,
aos atributos do jovem empreendedor irlandês.
Na composição da cena, a propriedade fala mais alto: Nola não possui as mesmas
habilidades e destrezas que o protagonista e por isso não ―está sendo preparada para o
casamento‖ pela família Hewett. O barulho da chuva que acompanha a cena na biblioteca
reafirma tensão e o cerceamento da família inglesa com Nola, o que contrasta com o acordo
entre cavalheiros estabelecido no porão no qual o protagonista tem acesso às armas da
família.
Após a saída de Nola, o espectador volta a acompanhar o percurso de Chris que
permanece a procura do livro de Strindberg. Por meio de uma vidraça, acompanhamos a
norte-americana caminhando pelos jardins da propriedade sob forte tempestade. Chris
aproxima-se da janela e observa Nola. O protagonista sai do interior da casa de campo para
encontrá-la. O foco narrativo afasta-se do protagonista e retorna para Chloe que permanece
em seu quarto lendo. A câmera mostra Chris e Nola no campo de trigo, o protagonista afirma
que desejava encontrá-la.
[Nola Rice]: ―Eu estou chateada, só quero ficar sozinha.‖
[Chris Wilton]: ―Não pretendo me intrometer.‖
[Nola Rice]: ―Preciso de uma bebida.‖
[Chris Wilton]: ―Eu gosto quando você bebe, fica mais solta.‖
[Nola Rice]: ―Fico?‖
[Chris Wilton]: ―Sim. Confiante.‖
[Nola Rice]: ―Não acho que isso seja uma boa ideia. Não devia ter
me seguido até aqui.‖
[Chris Wilton]: ―Você se sente culpada?‖
[Nola Rice]: ―E você? Não podemos fazer isso.‖
[Chris Wilton]: ―Eu sei.‖
[Nola Rice]: ―Isso não levará a lugar nenhum.‖
No campo de trigo, pode-se encontrar novamente a indicação do olhar escopofílico.
Segundo Laura Mulvey, neste modo de olhar verifica-se a aproximação entre o protagonista e
o espectador: ―Ambos estão associados com um olhar: o do espectador, em contato
174
Ibid., p.62.
87
escopofílico direto com a forma feminina exposta para a sua apreciação (e conotando a
fantasia masculina), e o do espectador fascinado com a imagem do seu semelhante colocado
num espaço natural, ilusório, personagem através de quem ele ganha o controle e a posse da
mulher na diegese. Esta tensão e o deslocamento de um polo a outro podem estruturar um
único texto.‖
175
Se por um lado a cena do encontro entre os dois amantes no campo de trigo
marca um ato de resistência dos estrangeiros frente à opressão na casa de campo da família
Hewett, por outro, a união entre Chris e Nola remete às relações destrutivas, por meio da
referência a Strindberg, nas quais ―[...] a dança da excitação sexual é, mais uma vez, a dança
da morte‖
176
. Diferentemente de Nola, Chris é um aliado dos Hewett. Em Match Point, a
idealização do campo inglês
177
, no qual a paisagem bucólica traria um sentido de plenitude e
de comunidade é imediatamente afastada: trata-se de luta, de um lugar de competição que,
assim como o Swiss Re na cidade, é regido pelas regras do capital.
Do campo de trigo, o filme passa para o curso de administração na cidade. Observa-se
o comentário irônico de Allen, Chris não precisa de um diploma universitário para ocupar um
cargo melhor na empresa, apenas um rápido curso sobre o mercado financeiro é suficiente. Se
no campo de trigo vimos a paixão do protagonista por Nola, a cena seguinte retrata o seu
extremo oposto, a falta de interesse do ex-professor de tênis durante o curso de administração
(indicado pelo patriarca na casa de campo). Em contraposição ao furor na cena do campo de
trigo, o filme mostra também o tédio do protagonista ao lado de Chloe e sua família durante a
apresentação de Rigoleto, no Royal Opera House. Observa-se em um primeiro momento, a
cantora de ópera no palco:
[Gilda]: Gualtier Maldè!... nome di lui amato, / Scolpisciti nel
core innamorato! / Caro nome che il mio cor [...]”
A ária Caro nome che il mio cor representa o momento em que Gilda canta o
suposto nome de seu amado, o duque de Mântua
178
. Em nome do amor pelo duque, Gilda
175
Mulvey, op.cit., p.446.
176
Strindberg, op.cit., p.150.
177
Conforme argumenta Raymond Williams: ―A experiência inglesa é especialmente significativa, na medida em
que uma das transformações decisivas nas relações entre campo e cidade ocorreu na Inglaterra muito cedo, e
num grau tão acentuado que, sob certos aspectos, não encontra paralelo. A Revolução Industrial não transformou
a cidade e o campo: ela baseou-se num capitalismo agrário altamente desenvolvido, tendo ocorrido muito
cedo o desaparecimento do campesinato tradicional.‖ Ver Williams, Raymond. [O campo e a cidade], op.cit.,
p.12.
178
A ópera Rigoleto [1851], de Giuseppe Verdi, baseia-se na peça de Victor Hugo, Le Roi s’Amuse. O
personagem de Rigoleto, o concurda, é vivamente caracterizado na música [...]. Mas a ópera oferece ainda outros
88
acaba se sacrificando. Nesse sentido, a ópera pode relacionar-se a Nola que assim como Gilda
será eliminada.
No plano da imagem, vê-se o camarote da família Hewett. O espectador observa os
três casais (Alec e Eleanor, Chris e Chloe, Tom e Nola). Durante a apresentação, Tom atende
o celular, mas a ligação é para Nola. No camarote do Royal Opera House vê-se que o jovem
Hewett tem influência também sobre as chances profissionais da atriz. Vale lembrar também
que a nova chance profissional para Nola é concedida visando reparar a grosseria cometida
por Eleanor na biblioteca da casa de campo. Ao perceber a saída da noiva de Tom, Chris
retira-se do camarote para encontrar Nola no corredor do teatro. A noiva de Tom explica ao
tenista que não pretende dar prosseguimento ao romance iniciado no campo de trigo:
[Nola Rice]: ―O que aconteceu, aconteceu, Chris. Tudo fugiu ao
controle por vários motivos, eu estava chateada, tinha bebido, a tempestade
estava forte...‖
[Chris Wilton]: ―Pare de racionalizar.‖
[Nola Rice]: ―Não estou racionalizando. Paixões são paixões, mas
nós estamos envolvidos com outras pessoas.‖
[Chris Wilton]: ―Você não é uma atriz tão boa. Não é possível.‖
[Nola Rice]: ―Você sonhava em fazer amor comigo. Não digo que a
fantasia não passou pela minha cabeça também, mas tivemos o nosso
momento. Temos que retomar as nossas vidas, voltar à realidade. Chris, nós
vamos ser concunhados.‖
[Chris Wilton]: ―Você é exatamente como imaginei que você seria
fazendo amor.‖
[Nola Rice]: ―Chris, esqueça isso. Acabou.‖
No diálogo entre Nola e Chris vemos que a chance de aliança intraclasse, que poderia
ser sugerida na cena do campo de trigo, é excluída do horizonte de possibilidades também por
Nola. Evidencia-se que, a despeito da opressão sofrida na biblioteca, Nola quer ―voltar à
realidade‖, extinguindo o romance com Chris e aliando-se aos Hewett.
papéis notáveis. O duque de Mântua foi o papel em que Caruso estreou na Metropolitan Opera House nova-
iorquina, a 23 de novembro de 1903. Como se sabe, o enredo de Rigoleto ―gira em torno das escapadas amorosas
do duque de Mântua, com a cumplicidade de Rigoleto, seu bufão, que por seu espírito caústico e sua falta de
escrúpulos granjeou não poucos inimigos na corte, o que acabou rendendo-lhe a maldição de Monterone.
Rigoleto tem uma filha, Gilda, que mantém em estrita reclusão. Mas o duque, sem saber de quem se trata, viu-a e
apaixonou-se por ela. Por conta do interesse do duque por sua filha, Rigoleto planeja assassiná-lo. No entanto, o
duque acaba seduzindo a irdo malfeitor contratado por Rigoleto e o duque sai ileso. Decidida a salvar o
duque da armadilha encomendada por seu pai, Gilda é apunhalada ao entrar, no lugar do duque. Rigoleto recebe
o corpo envolto em um saco, ele está a ponto de atirá-lo à água, quando ouve o duque cantar. Abrindo o saco, dá
com sua filha moribunda, ela ainda consegue exalar: ―Amei-o demais agora morro por ele‖‖. Ver Kobbé,
op.cit., p.316-321.
89
Na cena seguinte, observa-se o cotidiano do protagonista como novato executivo. Em
primeiro plano, Allen apresenta o privilégio conquistado pelo protagonista: o carro de luxo
com motorista, conforme fora prometido pelo futuro sogro na casa de campo conquanto o
tenista fizesse o curso de administração. Chris sai com uma sacola de compras da loja de joias
Cartier, outra marca de luxo em que ele procura investir. Assim como o curso de
administração, os livros, o vinho, as roupas e as joias compradas pelo protagonista serão
entendidas neste trabalho como investimentos, nos termos apresentados por López-Ruiz: ―Um
curso de degustação de vinho é um consumo ou é um investimento? Conquanto melhore as
capacidades do indivíduo como consumidor, aumente o seu capital humano (seu capital de
consumo), pode-se dizer que se trata fundamentalmente de um investimento. De fato, pode
trazer grandes benefícios não apenas ao aumentar as satisfações futuras a obter através do
consumo, mas ao aparelhá-lo com uma ferramenta de socialização necessária para aceder
algum dia, por exemplo, aos níveis mais altos do mundo corporativo. Em outras palavras, o
investimento feito no curso de degustação não apenas vai trazer futuras satisfações ao permitir
um consumo de vinhos mais sofisticados incrementando, assim, seu capital de consumo -,
mas acaba sendo também parte do capital de produção porque vai permitir um uso mais
eficiente do seu networking (da sua rede de relacionamentos) e aumentar as probabilidades de
sucesso no próprio marketing pessoal, atividade fundamental e tarefa imprescindível para um
capitalista do seu capital humano.‖
179
O acaso novamente é incorporado pelo filme como material: o ex-professor de tênis
encontra o amigo Henry na New Bond Street
180
, local que une, como consumidores de alto
luxo, investidores, tanto o executivo da transnacional como o tenista do circuito internacional
de tênis. O personagem Henry funciona no filme como uma espécie de ―consciência‖ para
Chris, ele é aquilo que Chris ainda seria se não tivesse atravessado o rio, indo para Londres.
Na cena do primeiro encontro entre o protagonista e Henry, observa-se em primeiro plano, o
motorista e o novo carro de Chris suas novas conquistas. À medida que os dois amigos
conversam, a câmera mostra outras fachadas de lojas de luxo que compõem a New Bond
Street. Henry admira-se com a marca do carro do amigo: ―Olha para você. Você parece
estar muito bem.‖ O protagonista avisa ao amigo que o carro pertence à empresa: ―Sou uma
179
Ver López-Ruiz, op.cit., p.225.
180
―A New Bond Street é o lugar de lojas exclusivas em Londres, incluindo lojas de estilistas famosos, joalherias
e perfumarias‖. Disponível em: <http://www.filmlondon.org.uk/content.asp?CategoryID=972>. Acesso em: 13
jan. 2010.
90
engrenagem em um escritório, acredita?‖ Chris explica ao amigo as relações de favor: ―É
quem você conhece, Henry. Eu me envolvi com uma mulher muito legal, a família dela tem
muito dinheiro: uma grande propriedade, criados, cavalos de polo. Tudo perfeito.‖
O encontro com o amigo dos tempos de tenista expõe aos olhos do espectador
informações sobre o protagonista. Henry revela que Chris achava o trabalho como tenista
profissional ―um pouco maçante‖. Chris confirma a informação apresentada pelo amigo: ―Eu
não aguentava mais‖. Ao contrário do protagonista, Henry afirma que continua ―viajando pelo
mundo, iludindo-me.‖ Apesar de gostar do trabalho como tenista profissional, Henry
compreende a opção de Chris: ―É doloroso ficar chateado toda hora por ser derrotado pelos
grandes tenistas.‖ A indicação, feita por Henry, de que o protagonista não seria um tenista tão
promissor faz com que Chris, para relatar sua trajetória de vida, retome a referência à sorte,
apresentada no prólogo do filme: ―Não é incrível ver como a sua vida pode mudar, se a bola
bate na rede e cai do outro lado ou volta para você? O amigo comenta a técnica do ex-
tenista: ―Mas eu sempre admirei o seu jeito de jogar. Você é muito firme, frio sob pressão,
mas criativo. Poderia ser um poeta com uma raquete como Laver foi. Quando eu jogava com
você, você nunca se abalava. Estou lhe dizendo, mais algumas bolinhas caindo para o seu lado
e você poderia ter derrotado alguns dos grandes tenistas.‖ O executivo combina um almoço
com o amigo e informa que está de mudança para um novo apartamento. Chris revela que
poderá pagar o almoço com as despesas da empresa outro privilégio entre os benefícios
oferecidos pelo patriarca.
A cena seguinte mostra a soirée na casa londrina dos Hewett. Chloe e o pai
conversam, ao passo que observamos os convidados da festa. O protagonista pergunta à
namorada se ela sabe tocar piano, atributo essencial das ladies inglesas. No entanto, Chloe,
que havia afirmado ser ―atrapalhada‖ no tênis, considera-se ―terrível tocando piano‖, o que
indica que a predileção para música clássica deixou de ser essencial ao cultivo das jovens
inglesas ricas.
Em oposição à maneira ríspida com que tratara Nola na biblioteca da casa de campo,
Eleanor segura um copo de vinho em uma das mãos e apoia com a outra no futuro genro:
―Então, quando vocês dois vão se casar? Não faça essa cara de surpresa, vocês dois não se
desgrudam muito tempo. Não me digam que o assunto não passou pela cabeça de vocês.‖
Chloe retira a mãe da conversa, enquanto o patriarca acerta os detalhes do casamento:
―Eleanor não se segura quando bebe um pouco.‖ Diferentemente de Nola, Chris não perde a
91
oportunidade para agradar os sogros: ―Olha, é uma pergunta sensata, Chloe e eu já discutimos
isso.‖ O patriarca conduz o futuro genro: ―Eleanor e eu ficaríamos felizes em -lo na família
e Tom adoraria tê-lo como cunhado. Tudo o que precisarem podem contar conosco.‖ Chris
agradece a confiança do futuro sogro. O diálogo sela o acordo entre Alec e Chris enquanto os
dois seguram copos de vinho e caminham pela casa da cidade durante a soirée. No campo e
na cidade o movimento é o mesmo: trata-se da aliança de Chris com a família Hewett.
No momento seguinte, Chris verte um gole de vinho ao passo em que desce as
escadarias da casa londrina dos Hewett. A cena relaciona-se à da tempestade na casa de
campo. Chris observa Nola por intermédio de uma vidraça, como se ela estivesse exposta em
uma vitrine ―para ser olhada‖. Contudo, desta vez, a atriz não está sozinha, mas em
companhia do noivo. O protagonista surpreende o casal, o jovem Hewett provoca o futuro
cunhado: ―Vocês dois se conhecem, não? Tenho certeza de que se conhecem.‖ O tenista tenta
esquivar-se: ―Desculpem-me, eu não imaginava.‖ Tom estimula o desejo do cunhado: ―Por
que nos escondemos na dispensa? Foi tudo culpa dela. O que posso fazer se ela fica excitada
em lugares onde podemos ser pegos?‖
181
Novamente, Nola é apresentada como objeto do desejo e de disputa entre Chris e Tom.
O jovem Hewett desafia o protagonista: ―Todos os homens que a vêem, querem atacá-la. Não
é verdade, Christopher?‖ Chris percebe que perdeu Nola para o irmão de Chloe. Ele chega a
esmorecer ao observar que a paixão de Nola por Tom possa ser semelhante ao que ela
demonstrara por Chris no campo de trigo. Tom percebe que o futuro cunhado quase
desmaiou, mas o protagonista disfarça: ―Estou bem. Eu não deveria beber de estômago
vazio.‖ Nesta cena, Allen retoma o tema do olhar escopofílico no cinema narrativo
182
. A
indicação de que Nola fica excitada em lugares públicos retoma a ideia de que ela figura
como ―um objeto de estímulo sexual através do olhar
183
. Por trás de uma janela, Nola
aparece retirando a calcinha. A beleza de Nola é para ―exibição‖, observada aqui em seu
aspecto financeiro, venal. Nesse ponto, retomaremos a formulação de Schwarz no momento
181
referência à paródia de filmes italianos feita em Tudo o que você queria saber sobre sexo, mas tinha medo
de perguntar [1972], na qual o personagem interpretado por Woody Allen mantém relações sexuais com a
esposa em lugares públicos, pois ela sente prazer apenas em locais onde o casal pode ser surpreendido.
182
Pode-se observar novamente a coincidência entre o desejo do protagonista e o desejo do espectador. uma
cumplicidade do espectador com o universo representado por Chris o que em certo sentido mostra um ponto em
comum entre Allen e Hitchcock. Para Laura Mulvey, nos filmes de Hitchcock, o herói fica ―fascinado com uma
imagem através de um erotismo escopofílico, enquanto assunto do filme. Além disso, nestes casos, o herói exibe
as contradições e tensões experimentadas pelo espectador. [...] O olhar é central ao enredo, oscilando entre
voyeurismo e fascinação fetichista‖. Ver Mulvey, op.cit., p.449.
183
Mulvey, op.cit., p.443.
92
em que relaciona a beleza ao dinheiro no romance O pai Goriot: ―A beleza [...] é feminina e
apela para o senso masculino de propriedade. Exibe-se aos presentes, mas destina-se a um só.
Como a mercadoria, que põe gula no olhar de todos mas responde somente à maior oferta, ela
alimenta o seu brilho no desejo à volta.‖
184
2.3 Dois casamentos
―A individualização crescente dentro da sociedade torna o dinheiro cada vez mais inadequado como mediador
das relações puramente individuais‖.
Georg Simmel, A filosofia do dinheiro.
Se retratasse apenas a ascensão social do protagonista, o desfecho do filme poderia
realizar-se na cena do casamento de Chris, o que confirmaria a utilização do cinema clássico.
De acordo com David Bordwell, ―O filme hollywoodiano clássico apresenta indivíduos
psicologicamente definidos que lutam para solucionar um problema decisivo ou para atingir
objetivos específicos. Durante o desenvolvimento da narrativa, os personagens entram em
conflito uns com os outros ou com circunstâncias externas. A história termina com a vitória
decisiva ou derrota, a resolução do problema e uma evidente conquista dos objetivos‖
185
.
Assim conquistado o propósito do protagonista, o decisivo match do título, o filme chegaria
ao fim.
No entanto, conforme procuraremos demonstrar, a cena do casamento representa uma
espécie de anticlímax, no qual não espaço para qualquer romantização. Da conversa entre
Alec e Chris que acertam o casamento, ao flagrante com Nola e Tom na dispensa da
residência londrina dos Hewett, Allen corta para a cerimônia na igreja de São Marcos
localizada na casa de campo. O filme relaciona os três eventos, mostrando que o desejo de
Chris permanece com Nola, no entanto, o interesse financeiro por Chloe fala mais alto. O
corte seco da casa londrina para a casa de campo contrasta com a leveza suscitada pela música
extra-diegética, a ária Mia Piccirela(que havia caracterizado o encontro entre Chris e
Chloe na cena em que o casal passeia por Londres).
184
Schwarz, op.cit., p.175.
185
Bordwell, op.cit., p.157.
93
A contraposição entre a atmosfera sentimental trazida pela música, o acordo entre
Chris e o patriarca, o desejo do protagonista pela norte-americana e a cerimônia de casamento
do protagonista com a herdeira indicam que o casamento relaciona-se ao acordo financeiro e
não ao amor pela piccirela”. Nesse ponto, retomaremos a ideia do casamento por dinheiro,
nos termos apresentados por Simmel: ―Sempre que um relacionamento baseado em interesses
financeiros existe, nos quais a superioridade e a vantagem repousam desde o começo para um
dos lados, estas tendências podem crescer ainda mais, radical e profundamente nesta direção,
como se os outros motivos de natureza objetiva e material fossem a base para essa relação‖
186
.
Na igreja, situada no Englefield Estate, em que foram celebradas durante séculos as
uniões da família, mantendo a propriedade em suas mãos, Chris e Chloe aparecem de costas
para a câmera. A aliança é sacramentada pelo padre: ―Eu os declaro marido e mulher. Pode
beijar a noiva‖. O jovem arrivista retira o véu e beija Chloe, os noivos olham para os
convidados, ouvem-se os aplausos dos presentes
187
(que não são vistos pelos espectadores) e a
cerimônia termina. Dessa maneira, a cerimônia de casamento é apenas formal: trata-se de uma
troca de alianças acertada anteriormente. Allen dá preferência aos ―outros motivos de natureza
objetiva e material‖ relacionados à cerimônia de casamento, tais como o emprego no Swiss
Re, o acordo no porão na casa de campo, o acesso às armas, a prática do tiro, o carro, o
motorista, as roupas, os outros benefícios recebidos pelo protagonista e a conversa entre Chris
e o patriarca na casa da cidade.
Ao contrapor a cidade e o campo, relacionando-os a todo o momento por meio dos
personagens, verifica-se um aproveitamento, no filme de Allen
188
, de diversas questões
trabalhadas pela literatura inglesa. um comentário irônico a respeito da Englishness. Neste
186
Simmel, op.cit., p.382.
187
No filme, conforme argumentamos, existem poucas referências à família do jovem irlandês que não é
mencionada durante o casamento. Em Match Point, a figura da mãe do protagonista é eliminada. Na adaptação
que faria de Uma tragédia americana, Eisenstein pretendia ―rasgar algumas das máscaras apesar de não todas
da figura monumental da mãe‖. Segundo o cineasta, o próprio Dreiser ―foi o primeiro a elogiar tudo o que foi
acrescentado a sua obra por nosso tratamento‖. Ver Eisenstein, Sergei. A forma do filme / Sergei Eisenstein;
apresentação, notas e revisão técnica, José Carlos Avelar; trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2002,
p.103.
188
Em Match Point, mas não somente, o diretor norte-americano realiza uma espécie de comentário irônico em
relação à Englishness. Nos filmes subsequentes à Match Point (2005), o tema é retomado. Em Scoop (2006), o
diretor utiliza o mesmo Englefield Estate para revelar que o filho de um famoso lorde inglês é, na verdade, um
serial killer. A cena da tentativa de assassinato com um barco no lago retoma o romance de Dreiser.
Diferentemente de Roberta Alden (a namorada pobre de Clyde), a protagonista do filme de Allen sabe nadar e se
salva. O nome da personagem no filme de Allen, Sondra Pransky, faz referência a Sondra Finchley, personagem
homônima do romance de Dreiser. Em O sonho de Cassandra (2007), dois irmãos, membros da classe
trabalhadora inglesa em busca da ascensão social, realizam um crime para o tio endinheirado. Após o crime, Ian
e Terry acabam rivalizando entre si.
94
trabalho procuraremos entender a especificidade da cultura britânica nos termos expostos por
Raymond Williams: ―Uma literatura, a inglesa, que é talvez mais rica do que qualquer outra
em termos da gama de temas referentes ao campo e à cidade; e uma sociedade que atravessou
um processo de desenvolvimento histórico primeiro numa economia e numa comunidade
rural, depois num contexto urbano muito cedo e de modo muito completo; em última
análise, é apenas uma história específica, mas ela tornou-se, sob alguns aspectos importantes,
um modo de desenvolvimento dominante em muitas partes do mundo‖
189
.
De acordo com Williams, podemos ver a cidade como representação do
capitalismo, ―desde que se possa afirmar também que este modo de produção teve origem
especificamente na economia rural da Inglaterra e produziu muitos dos efeitos
característicos aumento de produção; reorganização física de um mundo totalmente
disponível; deslocamento de comunidades tradicionais; a formação de um resíduo humano
que veio a se transformar numa força, o proletariado que foram posteriormente encontrados,
em diversas formas, em cidades e colônias e em todo um sistema internacional‖
190
.
Em Match Point, também um resgate das questões trabalhadas por Jane Austen.
Allen usa da ―observação fria e controlada‖
191
característica de Austen para comentá-la. De
acordo com Raymond Williams, a autora retratou ―uma sociedade abertamente voltada para a
aquisição, e também preocupada com a transmissão da riqueza.‖
192
Nos romances de Austen
―boa parte do interesse, das fontes de ação, encontra-se nos reveses da sorte fatos ligados a
um processo geral de mudança e a uma certa mobilidade social que estavam afetando as
famílias de proprietários rurais da época.‖
193
De acordo com Terry Eagleton: ―O aumento da
mobilidade social representava uma ameaça à tranquilidade do campo, que Austen estimava
tanto. A riqueza urbana, a ambição social insone, a frivolidade moral e os costumes
metropolitanos estavam se infiltrando no campo. Eles faziam isso, não apenas por meio do
mercado do casamento, assim como o capital do campo [landed capital] procurava um modo
de vida novo ao assimilar, através do casamento, os filhos dos capitalistas da cidade e os dos
financistas‖
194
.
189
Williams, 1989, op.cit., p.390-391.
190
Ibid., p.391.
191
Ibid., p.162.
192
Ibid., p.161.
193
Ibid., p.159.
194
Eagleton, Terry. The English Novel: an introduction. Oxford: Blackwell Publishing, 2005, p.116.
95
No filme de Allen, a referência ao universo de Jane Austen faz-se por meio da família
Hewett, como uma espécie de reminiscência da landed gentry”, nos termos apresentados por
Eagleton: ―Jane Austen não escrevia sobre a família a despeito da sociedade; pelo contrário,
nos tempos de Jane Austen, a família era a sociedade, ou ao menos, o setor que a governava.
No século XVIII, poucas centenas de famílias possuíam um quarto das terras cultivadas da
Inglaterra‖
195
. Nesse sentido, durante o filme, Allen mostra que, na Inglaterra, a propriedade
continua sob o domínio de uma minoria. Conforme argumenta Terry Eagleton, a gentry não
era apenas um grupo de empreendedores, mas o ápice de todo um modo de vida do campo,
que foi pensado para incorporar os mais elevados valores da sociedade inglesa. Cultura no
sentido do cultivo da terra agricultura gerou rendas, que por sua vez deram origem à
cultura, no sentido da elegância dos costumes e da nobreza de espírito. De certa forma, então,
esses aristocratas do campo [landed aristocrats] e os senhores do campo [country gentlemen]
continuaram a cultivar um estilo de vida tradicional do campo, mesmo que esta auto-imagem
cultural estivesse cada vez mais em contradição com a sua base econômica. É este tipo de
ordem do campo que Austen admirava e apoiava‖
196
.
Diferentemente de Austen que acredita na ―necessidade de uma reforma e no
melhoramento do status quo
197
, Allen ironiza a ordem do campo ao retomar o ―passado‖
simbolizado pela casa de campo e incorporá-lo em um filme sobre o movimento global do
capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, o cineasta norte-americano tece um comentário
sobre a direção regressiva da vida atual. Ele apresenta a outra face dos valores tradicionais do
campo, a saber, a cultura como investimento e como fachada para a exploração. Conforme
argumenta Eagleton, a cultura na Inglaterra tem papel determinante, pois foi nela, ―no sentido
mais amplo dos valores, normas, ideais e qualidade de vida elevada, que as classes de
proprietários do campo confiavam sua autoridade. O objetivo deles foi conseguir a hegemonia
ganhar a lealdade e a aprovação de seus subordinados por meio do exemplo moral mais do
que simplesmente governá-los pela força. E as famílias de proprietários ingleses obtiveram
em geral sucesso notável neste projeto‖
198
.
No filme de Allen, logo após o casamento, observa-se a transmissão dos bens da
família Hewett. O presente dos pais de Chloe para o jovem casal não são mais as propriedades
195
Eagleton, op.cit., p.115.
196
Ibid,.116.
197
Ibid, p.121-122.
198
Ibid, p.117-118.
96
rurais, mas sim o imponente apartamento no Parliament View
199
, edifício que guarda
semelhanças com o revestimento espelhado do Swiss Re. A música extra-diegética que
caracterizara a cerimônia na igreja de São Marcos continua no apartamento da cidade.
Todavia, a paixão pela piccirela sugerida pela ópera é substituída, no filme, pela
transmissão hereditária dos bens. Após o casamento, Chloe quer ter filhos, o investimento é
rapidamente capitalizado:
[Chris Wilton]: ―Gostaria de ter dinheiro para pagar por esse
apartamento.‖
[Chloe Hewett]: ―Não comece com isso de novo. Você sabe que
papai fica feliz em ajudar. Veja a claridade entrando aqui todo o dia.‖
[Chris Wilton]: ―É lindo. Mas, é enorme, vou me perder aqui dentro.
Já te disse que tenho medo de altura?‖
[Chloe Hewett]: ―Sério? Isso pode ser um problema. Quero que me
engravide.‖
[Chris Wilton]: ―Chloe, nós já discutimos isso. É muito cedo.‖
[Chloe Hewett]: ―Não é cedo, dormimos juntos anos. Quero três
filhos e quero tê-los enquanto sou jovem. Vamos lá, você pode fazer isso,
você tem um saque poderoso.‖
Os dotes físicos do protagonista, ressaltados pela esposa, reaparecem na cena seguinte
no Queen’s Tennis Club. O protagonista que começou como empregado do clube de tênis
retorna como cio do estabelecimento. Tom erra as jogadas e é repreendido pelo ex-
professor de tênis: ―Ei, onde você está?‖ O jovem Hewett explica ao cunhado que terminou o
relacionamento com Nola. A utilização da quadra de tênis nesta cena revela a eliminação de
Nola pelo noivo e a continuação da vitória do protagonista no jogo entre o irlandês e a norte-
americana.
Separados pela rede de tênis, Tom e Chris conversam. O protagonista, que deseja a
noiva do cunhado, fica desconcertado com o término do romance: ―Achei que vocês iam se
casar‖. O jovem herdeiro assume a influência da matriarca no rompimento: ―É constrangedor
dizer isso, mas eu acho que a minha mãe conseguiu envenenar a relação. Não que eu tenha
qualquer intenção de casar com a maldita Olívia Allred, sua principal candidata. Meu Deus,
não.‖
199
Espelhado, o apartamento de 5 milhões de libras possui uma das melhores vistas do skyline londrino: observa-
se o Parlamento inglês e o rio Tâmisa. Em uma das resenhas sobre o filme, o aspecto ostentador do apartamento
é ressaltado: ―Você conseguiria mais poder do que o apartamento de perfil ondulante com vista para o extremo
sul da ponte Lambeth, onde o pai amável (e rico), Alec Hewett, instala sua filha Chloe e seu genro Chris?‖.
Disponível em: <http://www.movie-locations.com/movies/m/matchpoint_02.html>. Acesso em: 6 jun.2009.
97
Todavia, Tom acaba realizando o casamento apropriado: ―A verdade é que eu conheci
outra pessoa, me apaixonei e percebi isso imediatamente. Embora minha mãe esteja nas
nuvens com a minha decisão, eu tento pensar que isso não importa, mas você sabe o que
quero dizer.‖ Na fala do filho, podemos observar a conquista da matriarca que é incorporada
por Tom. Eleanor seria uma espécie de porta-voz da landed gentry. Assim como Jane Austen,
ela ―orienta suas heroínas firmemente em direção a casamentos apropriados‖
200
. Como diz
Eagleton, os valores morais eram vitais para a continuação da autoridade das classes altas
inglesas: ―A moral e os costumes faziam parte das questões políticas [high politics]. E tendo
em vista que elas eram principalmente uma preocupação das mulheres, sendo
estereotipicamente suposto que elas fossem especialistas no assunto, isso significava que as
chamadas questões femininas [women’s issues] estiveram no centro da esfera pública, mesmo
que fossem reconhecidas raramente como tal‖
201
.
No filme de Allen, o patriarca estabelece o acordo com Chris e a matriarca apresenta
―as chamadas questões femininas‖ para Nola. A questão do casamento por dinheiro é
colocada em evidência, por meio dos dois casamentos que são acertados pelo patriarca (o
acordo com Chris no porão) e pela matriarca (o afastamento de Nola na biblioteca). Por
intermédio de três cortes rápidos, Allen mostra que no casamento entre Chris e Chloe não
―união entre o subjetivo e o objetivo‖, pois a vontade subjetiva do protagonista é subsumida
após o casamento. O filme estabelece o contraste entre o desinteresse de Chris por Chloe e o
desejo do protagonista por Nola. Allen apresenta o ofício tedioso do protagonista no Swiss Re.
Ele sai do ambiente claustrofóbico no trabalho para procurar pela norte-americana.
Assim como o edifício de negócios, o ambiente de sua residência no Parliament View
Apartments é de aprisionamento. Na cena em que Chris e Chloe estão deitados na cama, a
herdeira pergunta ao marido: ―No que você está pensando?‖ O protagonista afirma que pensa
―apenas nos negócios‖. Chloe retoma o assunto do herdeiro: ―Vo sabe que faz uma
semana que fizemos amor.‖ Chris culpa os negócios: ―Estou muito cansado‖. Recém-casada,
a herdeira pergunta se está ―sendo rejeitada‖. O marido nega. Por sua vez, Chloe insiste na
concepção da criança: ―Não sei o que há de errado, todas as minhas primas ficam grávidas tão
facilmente.‖ Chris tenta justificar o seu desinteresse pela esposa: ―Olha, isso vai acontecer. É
que estou muito cansado. Um beijo. Sonhe com os anjos.‖ A respeito da dificuldade para a
concepção do filho entre as camadas ricas, Simmel argumenta que ―não importa o quanto o
200
Williams, op.cit., p.162.
201
Eagleton, op.cit., p.119.
98
amor pode ser enganoso especialmente nos estratos superiores, cujas circunstâncias
complicadas frequentemente retardam o crescimento do mais puro instinto e não importa o
quanto as outras condições podem afetar o resultado final, permanece verdade que, em relação
à procriação, o amor é decididamente superior ao dinheiro como um fator de seleção‖
202
, o
que ressalta a ideia de que a união entre Chloe e Chris deve ser entendida nos termos do
casamento por dinheiro.
O segundo casamento da família Hewett é filmado de maneira análoga ao primeiro. De
costas para o público, o espectador não sabe quem são os noivos, o que retoma a ideia da
repetição, do rito tradicional, situado na igreja de São Marcos. O mesmo pároco sacramenta
os votos de maneira idêntica a que fizera no casamento de Chloe e Chris: ―Eu os declaro
marido e mulher. Pode beijar a noiva.‖ A câmera distancia-se dos noivos, Tom retira o véu da
noiva e beija-a. A noiva de Tom é apresentada ao espectador. Em comparação ao casamento
de Chloe e Chris, neste não introdução de música. Todos esses elementos justapostos
indicam que não singularidade na cerimônia, o que oferece, aos olhos do espectador, a
ideia da repetição de um processo dentro de uma mesma família, a ideia da preservação da
propriedade nas mãos de uma minoria. Outra vez, ouvem-se os aplausos dos convidados (sem
que possamos -los). Em contraposição ao casamento de Chloe e Chris, a noiva de Tom
sussurra ao jovem Hewett: ―Bem na hora, ia começar a aparecer‖, revelando que ela está
grávida do herdeiro.
2.4 A intervenção corporativa nas artes
―Ao tomar o controle de museus de arte, as corporações alteraram significativamente as formas
como essas instituições funcionam, e também a percepção que temos delas e da arte abrigada
sob seus tetos. Ao fechar obras de arte no interior de seus espaços, elas reestruturaram o espaço
e definiram o discurso sobre a arte contemporânea‖.
Chin-tao Wu, Privatização da cultura.
Após os dois casamentos, Allen apresenta uma exposição no museu. À primeira vista
parece não haver relação entre os personagens e as pinturas expostas. No entanto, a cena
mostra que o mundo das artes vincula-se ao universo das finanças. Em uma das salas do
202
Simmel, op.cit., p.381.
99
museu
203
, o espectador observa um quadro e a voz de uma personagem desconhecida
afirmando: ―Você precisa ir a um médico especialista em fertilidade‖. Sem que possamos vê-
la, o espectador ouve a voz de Chloe responder: ―Eu sei‖. Portanto, Allen apresenta a pintura
antes das personagens. A esposa de Chris e uma amiga caminham em direção ao quadro, a
primeira prossegue: ―Nós tentamos de tudo‖, referindo-se à concepção do filho. Ao
aproximarem-se da tela, a colega de Chloe pergunta: ―E quanto a isso?‖, apontando para a
pintura. O filme ironiza as jovens endinheiradas, ao relacionar a concepção do filho com a
imagem retratada nos quadros. Observando a tela de perto, a jovem Hewett critica: ―Suas
pinceladas são muito intensas, não são?‖, a amiga avalia: ―É verdade, eu não gostei‖. Chloe
concorda e caminha em direção à próxima tela.
Nesta cena, o espectador poderá notar que a visita à exposição feita pelas jovens
endinheiradas difere da recepção dos visitantes comuns. Por meio do diálogo entre Chloe e a
amiga é sugerido, na visita a Tate, a seleção e compra das obras pela herdeira para sua
coleção. Todavia, o espectador observa que a avaliação artística feita pelas jovens,
especialistas em arte, é rebaixada e desatenta (Figura 4). Apesar de serem potenciais
compradoras das obras da Tate, as amigas preocupam-se mais com projetos de fertilização.
um comentário irônico do filme sobre a maneira pela qual as jovens ricas observam os
quadros no museu. A futura galerista Chloe e sua amiga demonstram a atitude típica de
compradores diante das prateleiras de um supermercado, ou de um shopping center. A
resistência à figuração, o embate com a produção de formas definidas, o uso de cores escuras
e manchas, a pintura que revela o movimento feito pelo pintor referência a um certo tipo de
arte moderna
204
são ignorados pelas jovens ricas que sentenciam ―suas pinceladas são
muito intensas‖ e ―não gostei‖ ao passo que conversam sobre a concepção do herdeiro.
A inspiradora análise da pesquisadora taiwanesa Chin-Tao Wu sobre a privatização da
cultura no Reino Unido e nos Estados Unidos servirá de base para as considerações a seguir
sobre a intervenção corporativa nas artes. Tendo em vista a dificuldade de Chloe em gerar
203
Todas as imagens das salas de exposição na Tate Modern foram filmadas no Ealing Studios, em Londres.
Pode-se afirmar que a seleção das pinturas no filme não é casual, Allen selecionou cada um dos quadros.
204
Em entrevista a Stig Björkman, Allen diz não se sentir influenciado por nenhum pintor norte-americano,
contudo, no momento em que Björkman afirma lembrar-se do pintor Edward Hopper quando assiste aos filmes
do cineasta, o diretor revela: ―Sim, eu amo o Hopper, claro. Todos os norte-americanos amam o Hopper. Ele tem
uma certa melancolia que eu gosto‖. Björkman retoma a pergunta: ―Existem outros artistas norte-americanos que
você gosta ou sente-se influenciado?‖ Allen afirma gostar de ―todos os pintores abstratos e expressionistas como
De Kooning, Jackson Pollock e Frank Stella‖. O cineasta acrescenta que adora diversos trabalhos de Andy
Warhol, Rauschenberg e Jasper Johns. E conclui: ―Sim, eu amo a pintura norte-americana contemporânea‖. Ver
Björkman, op.cit., p.85.
100
uma criança, a colega sugere: ―Você pensou em adotar?‖, a resposta da herdeira reitera a
importância para os Hewett dos laços sanguíneos na transmissão da propriedade: ―Não, de
jeito nenhum, quero os meus próprios filhos‖. A amiga volta ao assunto dos quadros,
apontando para outra tela, novamente observa-se a ironia entre a ―escolha‖ do filho no projeto
de fertilização e a avaliação/compra dos quadros: ―E este aqui?‖ A pintura, semelhante à
primeira, é rejeitada por Chloe que a classifica como ―mais ou menos‖. O assunto da gravidez
retorna ao centro da conversa: ―Eu já lhe contei que a Victoria Phyfe está grávida?‖ A jovem
herdeira interessa-se pelo assunto: ―Verdade?‖ Chloe e a colega dialogam, esquecendo-se dos
quadros, enquanto caminham por outras obras sem observá-las, concentrando-se apenas na
conversa: ―Ela está tão feliz. Ela e o marido se encontraram, todas as neuroses se entrelaçam e
tudo funciona perfeitamente. Após tantas relações infelizes, eles se conheceram num acidente
de trânsito‖. Aos olhos do espectador, o relato da colega de Chloe, entendido pelas
personagens como exemplo de casamento bem-sucedido, figura como um comentário irônico
de Woody Allen sobre os relacionamentos amorosos ―bem-sucedidos‖ contemporâneos. Aos
espectadores dos outros filmes do cineasta não passará despercebido que as neuroses dos
personagens nunca resultaram em relações perfeitas.
Allen compõe a cena em um plano sequência que permite, novamente, que os atores
sejam vistos em situação. Os quadros, os outros visitantes do museu e a conversa entre as
amigas relacionam-se em cena. Enquanto as amigas conversam sobre gravidez e comentam a
respeito das telas do museu, o espectador pode observar os outros visitantes: um casal
aproxima-se da câmera, outro homem passa em frente à câmera, uma jovem observa um dos
quadros. Por sua vez, Chloe e sua amiga passam sem observá-lo. Um senhor caminha em
frente à câmera, enquanto Chloe e a colega deixam a sala do museu. Dessa forma, os outros
visitantes do museu parecem chamar a atenção dos espectadores para os quadros e não para o
diálogo entre as personagens. Como se resistisse à conversa das jovens, a câmera permanece
no local mesmo após a saída das duas. A câmera permanece ao lado de uma jovem visitante
desconhecida do museu que, diferentemente de Chloe e sua amiga, continua olhando
atentamente para a pintura abstrata.
Apesar da visita à Tate Modern, feita por Chloe e sua colega, continuar, Allen corta
para o arranha-céu na City, sede da Hewett Inco. Diferentemente de Tom, Chris não possui
um escritório privado. A sala do protagonista no Swiss Re é compartilhada com os outros
funcionários da empresa. A composição deste plano sequência permite que o espectador
101
estabeleça relações entre o ambiente de trabalho do protagonista e seu discurso. A cena
apresenta o ex-professor de tênis no edifício high tech durante o trabalho: ―Nossos advogados
estão resolvendo isso agora. Você teuma ordem de pagamento na sexta, eu prometo. Se eu
tiver que trabalhar durante toda a noite, ok. Obrigado.‖ Chris, que se movimenta
incessantemente, parece desinteressado pelo trabalho e angustiado. Ao desligar o telefone
com força, ele tenta desapertar a gravata e procura respirar. Chris olha pela janela do edifício
e quanto mais ele observa o abismo entre as estruturas triangulares e pontiagudas que formam
o prédio e o skyline da City, pior ele fica. O escritório é coberto por vidros e não divisórias
entre os departamentos, de forma que todos os executivos que trabalham no local estão em
constante observação. O protagonista sente falta de ar, levanta-se ofegante da cadeira e tenta
não olhar para os lados. Ele caminha em direção à câmera e pede para a secretária trazer-lhe
―duas aspirinas.‖ Chris senta-se de costas para o precipício. A secretária entrega-lhe os
comprimidos e pergunta se o chefe está bem. Novamente, o executivo desaperta a gravata e,
sem responder à pergunta da secretária, mas suando frio, indaga se a funcionária ―nunca se
sentiu claustrofóbica‖ no local. Nesse ponto, Allen focaliza em Chris e a sensação de
aprisionamento é intensificada pela câmera.
Após tomar os remédios, o protagonista olha para o relógio e levanta-se da cadeira:
―Oh, Cristo! Tenho que encontrar a minha esposa na Tate Modern, tem um novo pintor que
ela quer me mostrar‖. Dirigindo-se à secretária, mas sem que possamos -la, Chris avisa que
se os clientes ligarem para ele, a funcionária deve avisá-los de que ―será na sexta, não antes.
Boa noite.‖ Ainda no edifício de negócios, a ópera O Elixir de Amor invade a ação e
acompanha a cena seguinte, onde se observam os arredores fabris da Tate Modern
205
.
205
O projeto arquitetônico de reconstrução da Tate Modern foi composto pelo famoso escritório suíço Herzog &
de Meuron. A aparência fabril do local, onde funcionara uma usina de energia, foi preservada. O Turbine Hall
serve de entrada para o museu, bem como para exposições de grandes esculturas. As galerias do museu ocupam
o espaço da antiga casa das caldeiras. As galerias estão dispostas em blocos distintos, mas separados, conhecidos
como suítes, em cada um dos lados das escadas rolantes centrais. A coleção de arte moderna da Tate ocupa dois
dos andares das galerias e o terceiro é dedicado às exposições temporárias. A chaminé da antiga usina de energia
foi coberta por um recurso de luzes coloridas, desenhadas pelo artista Michael Craig-Martin, conhecida como
Swiss Light. À noite, os raios da torre e a Swiss Light marcam a presença da Tate Modern por muitos
quilômetros. Disponível em: <http://www.tate.org.uk/modern/building/>. Acesso em: 3 fev. 2010. Para uma
abordagem crítica da renovação da Tate e da parceria público-privada envolvida no negócio, a pesquisadora
Chin-tao Wu explica que os lucros das corporações envolvidas na reforma foram bastante expressivos: ―A
ambição ‗expansionista‘ da galeria é mais evidente no grande esquema da Tate Modern, inaugurada em maio de
2000 na usina abandonada de Bankside, no Tâmisa. Para realizar esse plano, que custou cerca de 134 milhões de
libras, a Tate lançou uma gigantesca campanha de arrecadação para atrair dinheiro privado e completar os 68,2
milhões de libras oferecidos pela Comissão do Milênio e outras instituições públicas. Em troca de uma doação
generosa, de 1 milhão a 10 milhões de libras, as pessoas poderiam comprar a ―imortalidade‖ dando seus nomes
às galerias da Tate Modern.‖ Ver Chin-tao Wu, op.cit., p.160.
102
Novamente, a fachada do edifício é apresentada em primeiro lugar, como se rememorasse a
história e o local do museu.
O carro da empresa, utilizado por Chris, chega ao local, o protagonista sai do veículo e
caminha em direção ao museu, enquanto o espectador pode observar uma pequena torre
luminosa onde está escrito o nome da Tate. No interior do museu, o executivo percorre os
corredores do local. Podem-se observar os outros visitantes e as informações sobre as
exposições. A música extra-diegética acompanha a cena. No canto direito da tela, por meio de
um bloco esfumaçado de vidro, o espectador pode acompanhar Nola descendo as escadas
rolantes. Ao reconhecer Nola, Chris para em frente à parede vidro de costas para o público. O
espectador pode observá-lo por meio do reflexo no vidro escuro, como se fosse uma sombra.
A câmera muda de posição e encara o protagonista que a encontrou por acaso. Chris corre em
busca de Nola. A vivacidade do protagonista é ressaltada pela montagem e contrasta com a
morosidade do ritmo na cena em que Chloe e a amiga passeiam pelo museu. Ao ver Nola,
Chris chega a colidir com um visitante do museu. Nesse ponto, o espectador percebe o
contraste entre o tédio ao lado de Chloe, a sensação de claustro e angústia no Swiss Re e o
vigor do tenista ao deparar-se com Nola.
Além das sombras proporcionadas pelo reflexo do vidro, a câmera passa por pilastras
do museu, o que confere certo distanciamento em relação ao olhar do protagonista. Em um
ambiente escuro, o interior da Tate, o protagonista aproxima-se do vão do edifício. Ele
observa Nola do andar de cima do museu (plongée), ao passo que a jovem norte-americana
caminha como os outros visitantes, sem saber que está sendo observada. Chris desce as
escadas à procura de Nola. Apesar de Chris ter seguido em outra direção, o olhar da câmera
permanece na escada, sem que se possam ver os personagens. Ouve-se a voz da esposa de
Chris. Nesse momento, a ópera é cortada. O tenista surpreende-se com o encontro: ―Oh, eu
estava te procurando‖. Alguns visitantes do museu passam pela câmera que continua parada
em frente à escadaria escura do museu. A câmera, portanto, não acompanha o movimento do
protagonista. Sem que possamos vê-los, os personagens cumprimentam-se, ouve-se o nome
da amiga de Chloe, Carol. Dessa maneira, por meio da composição da cena na escada, Allen
retoma a ideia de um cerco, do controle dos passos do protagonista pela família Hewett.
Assim como o acaso serve para caracterizar o encontro entre Nola e Chris, a eventualidade
também surpreende o protagonista que é interceptado pela esposa. As sombras e a escuridão
103
na composição desta cena indicam, entre outros aspectos, que o protagonista está mentindo
para Chloe.
Após o encontro entre Chris e Chloe, os personagens retornam para frente da câmera.
Chloe, que parecia não interessar-se pelas obras expostas no museu, conta ao marido que a
Tate ―tem os melhores novos artistas.‖ Carol diz à amiga que quer que ela ―veja essa mulher
da St. Ives‖
206
. A herdeira entusiasma-se com a sugestão da colega. Ao perceber o interesse da
jovem Hewett pela exposição, o tenista inventa uma desculpa, relacionada novamente ao
trabalho, no intuito de despistar a esposa: ―Preciso fazer uma ligação e estou sem sinal aqui‖.
Nesse ponto, o ambiente corporativo retorna à cena. Chloe pede para que o marido não
demore: ―Corra, porque eles estão fechando‖. Chris promete que será rápido. Após a saída de
Chloe e Carol, a música extra-diegética é retomada como se rememorasse que o interesse do
protagonista permanece em Nola e avisasse se tratar novamente de um ―elixir‖. Novamente, o
espectador observa a simulação do protagonista. Para dar a impressão à esposa de que está
sem sinal, Chris finge telefonar. Novamente, ele esconde-se atrás da escada, local em que
Chloe não pode vê-lo. A câmera mantém-se afastada do protagonista com o foco na escura
escadaria.
A cena é cortada para as galerias do museu. Em uma das salas de exposições, pelas
quais o protagonista passa, encontram-se as obras as quais anteriormente Chloe e Carol ―não
gostaram‖. Por sua vez, os outros visitantes do museu admiram as pinturas expostas. O filme
apresenta uma galeria do museu, onde podem ser observadas, em primeiro plano no canto
direito da tela, uma pintura semelhante a uma fotografia da fachada de um prédio. Quando
Chris aproxima-se da câmera, ela afasta-se do protagonista, deixando o quadro em evidência.
O protagonista passa em frente à câmera em busca de Nola, outros visitantes interpõem-se à
visão do protagonista. Nesse momento, o espectador poderá ler a indicação do autor das
pinturas no canto direito da tela, trata-se de David Hepher (Figura 5). A série de pinturas,
apresentada no filme, retrata blocos de prédios conhecidos como Albany Flats, do pintor
David Hepher: ―Durante os anos de 1969 e 1974, Hepher fez pinturas a partir de uma
meticulosa análise das fachadas das casas de subúrbio em Londres e descreveu os blocos de
prédios como ‗uma espécie de subúrbio no centro da cidade (que talvez) abrigue as próximas
206
A ironia de Allen é explícita com o comentário de Carol que anteriormente afirmara não gostar de arte
abstrata. Ao indicar uma artista da St. Ives, a jovem endinheirada não associa a escola que sempre foi
identificada com os artistas que exploraram o potencial da arte abstrata. Informações sobre a St. Ives podem ser
encontradas em: <http://www.tate.org.uk/stives/art-in-stives/>. Acesso em: 3 fev.2010.
104
gerações de pessoas que viveram nas casas suburbanas antes da guerra que eu costumava
pintar.‘
207
Hepher oferece o contraponto aos prédios de negócios como o Swiss Re: ―Eu
pinto prédios residenciais eles têm uma alma que os escritórios glamorosos não têm. Apesar
de sua beleza, eu não quero pintar os blocos de prédios requintados e brilhantes da cidade.‖ O
artista considera que ―um dos perigos inerentes em escolher um assunto aparentemente banal
como os blocos de prédios é que a pintura resultante pode ser entendida como um discurso
sobre a banalidade. Ele evita isso concentrando-se na maneira em que a fachada
superficialmente unificada do prédio aparece rachada ou alterada por intervenções dos seus
habitantes como, por exemplo, vasos de plantas, enfeites, caixas nas janelas, os padrões e as
texturas diferentes das cortinas e etc. [...]‖
208
.
Em outra galeria, observa-se ao fundo, de costas para a câmera, a personagem Nola em
frente a um quadro. A câmera para e muda de posição enquanto Chris observa a jovem norte-
americana. Desse longo plano-sequência, conclui-se que assim como Nola, os visitantes
comuns examinam as pinturas conferindo as informações no catálogo da exposição e detendo-
se atentamente em cada um dos quadros, o que contrasta com a falta de interesse de Chloe,
Carol e Chris. Na cena do reencontro entre Nola e Chris, o cenário é composto por quadros
em que figuram os prédios dos subúrbios em Londres, paisagens que por se tratarem de
periferias recordam a origem do jovem irlandês pobre e da atriz faminta norte-americana de
Boulder, Colorado. O cenário retratado pelas pinturas afasta-se das opulentas propriedades da
família Hewett no campo e na cidade.
Nesse ponto, a voz de Caruso em ―Uma Furtiva Lágrima‖
209
ilustra os pensamentos do
protagonista: ―Céus, depois posso morrer / posso morrer de amor‖, momento em que
Nemorino implora pelos suspiros da amada. No entanto, no filme, o amor evocado pela
música extra-diegética contrasta com a pintura. Nola observa o quadro sem se movimentar e
no topo da tela pode-se ler a palavra ache‖ (dor, em inglês). As cores fortes e os movimentos
bruscos retratados na pintura, desta vez, fazem lembrar um cenário de guerra (Figura 6). A ex-
noiva de Tom olha em direção às outras obras. Neste momento, Nola percebe que Chris vigia-
a. A ópera é interrompida. A expressão da norte-americana assemelha-se ao quadro ao fundo,
pois ela parece intimidar-se com o encontro. Por sua vez, o protagonista avança em direção à
207
David Hepher, ‗Urban Realism‘, Artscribe.22, abril 1980, p.48.
208
Disponível em: em
<http://www.Tate.org.uk/servlet/ViewWork?cgroupid=999999961&workid=5963&searchid=10870&tabview=te
xt>. Acesso em: 13 fev. 2009.
209
No original em italiano, Una furtiva lagrima”, ária da ópera L’elisir d’amore.
105
Nola. O reencontro entre os dois é feito com o cenário de guerra, sugerido pelo quadro, ao
fundo. O executivo inicia a conversa, enquanto Nola mantém o olhar taciturno e prefere
manter distância em relação a Chris:
[Chris Wilton]: ―Olá. Que surpresa.‖
[Nola Rice]: ―É. Eu voltei para a cidade.‖
[Chris Wilton]: ―Eu não sabia que você tinha ido embora.‖
[Nola Rice]: ―Claro, eu estava muito chateada com tudo o que
aconteceu, então, eu voltei para os Estados Unidos para procurar um
emprego.‖
[Chris Wilton]: ―Achei que você odiava aquele lugar.‖
[Nola Rice]: ―Qualquer lugar menos aqui.‖
[Chris Wilton]: ―Eu te procurei.‖
[Nola Rice]: ―Para quê?‖
[Chris Wilton]: ―Você ainda está tão brava. Onde você mora?‖
[Nola Rice]: ―Na cidade. Por quê?‖
[Chris Wilton]: ―Você mora sozinha?‖
[Nola Rice]: ―Por que você está fazendo estas perguntas, não está
casado ainda?‖
[Chris Wilton]: ―Posso te encontrar para uma bebida? Conversa?
Onde posso encontrá-la? Vamos.‖
O diálogo é filmado em campo/contra-campo. Quando Nola dirige-se a Chris, o
espectador observa as pinturas dos subúrbios de David Hepher; no momento em que o
irlandês encara a norte-americana, vemos o quadro que faz referência à guerra. Os quadros
escolhidos por Allen resgatam a história dos dois personagens. Eles seriam uma espécie de
comentário que oferecem ao espectador certa tensão, por apresentar a periferia e o cenário de
guerra, em relação à imagem do jovem executivo engravatado. Além da referência às guerras
recentes, comandadas pelos norte-americanos e apoiadas pelos britânicos, o cenário de luta
retoma também o jogo entre Nola e Chris, no qual a norte-americana fora eliminada por Tom.
Chloe surpreende o marido e a ex-cunhada. O olhar da câmera vai para a jovem
Hewett que caminha em direção à câmera. Apesar do rosto triste de Nola, Chloe considera
que a norte-americana ―está ótima‖. A ex-noiva de Tom pergunta por ele, Chloe informa que
o irmão ―está muito bem, eles têm um filho, você o conhece, ele se ajeitou‖. Aos olhos do
espectador, a despreocupação de Chloe contrasta com a dor de Nola. Carol aproxima-se da
amiga para contar que encontrou a exposição que procuravam e Chloe apresenta Carol a Nola.
A jovem Hewett explica que tentava encontrar uma instalação de vídeo, ela pede licença ao
marido e à ex-noiva do irmão. Chris aproxima-se de Nola, todavia, Chloe e Carol continuam
muito próximas aos dois. O protagonista pede para que Nola diga o seu telefone, a atriz reluta,
106
mas acaba cedendo, sussurrando o número ao executivo. Chris responde que entrará em
contato e caminha em direção à esposa. Nola permanece sozinha no museu.
Na cena seguinte à da Tate, Allen apresenta novamente o carro da empresa e a fachada
de uma residência distinta, semelhante à casa da cidade dos Hewett. O espectador atento
poderá notar que se trata de um local elegante, bastante diverso das fachadas dos prédios nos
subúrbios londrinos representados por Hepher. Chloe sai da residência e Chris acompanha-a.
A esposa afirma que acha que ele sabe o que está fazendo‖ e pergunta ao esposo se Chris
teve uma boa impressão. O protagonista diz que em sua opinião ―os médicos especialistas em
fertilidade são como médicos bruxos‖. Chloe concorda, mas considera que ―este não é como
aquele último‖. Ela entra no carro, onde está o motorista. A jovem herdeira entusiasma-se
com a consulta: ―Eu sinto que vai acontecer desta vez‖. Chris dispensa a esposa: ―Você pode
ir, eu tenho algumas reuniões‖. De forma precisa, Allen associa o ambiente do trabalho e o
projeto de fertilização ambos os atributos necessários para a continuidade do protagonista na
família e retoma a indicação de Carol no museu, que sugerira à amiga um especialista. A
cena revela também, a passagem do tempo, pois o casal esteve em diversos consultórios
médicos em busca de técnicas de reprodução assistida. Na passagem desta cena para a
próxima, expõe-se, aos olhos do espectador, o contraponto entre a monotonia do protagonista
ao lado de Chloe e a impetuosidade de Chris com Nola. Chris sai da clínica de fertilização e
vai encontrar Nola.
Novamente, o encontro entre Nola e Chris faz-se em um dia chuvoso. Por meio de um
espelho, o espectador observa Chris e Nola. Depois, a câmera focaliza os amantes, o
executivo rasga as roupas de Nola e beija-a. Deitado na cama, Chris afirma que o apartamento
da norte-americana ―é muito charmoso, não é tão precário quanto você falou‖. Em
contraposição a Chris, a descrição do edifício feita por Nola faz lembrar os apartamentos do
subúrbio londrino, conforme retratados por Hepher: ―Eu tive sorte em encontrá-lo tão rápido.
Não é perfeito, o prédio foi assaltado algumas vezes e a vizinha da frente encontrou ratos, mas
a entrada é decente. A palavra-chave é que é barato.‖ Chris sorri e pergunta o horário à
amante, ela diz: ―Já está na hora de você ir.‖, o que indica que este não seria o primeiro
encontro. A decoração do quarto de Nola é composta por diversos objetos que remetem à
beleza: fotografias de mulheres, flores, quadros e pequenas esculturas femininas. Chris beija a
amada e afirma: ―É tão difícil ter que te deixar. Linda mulher.‖
107
O desejo e a violência demonstrados pelo protagonista no apartamento da amante
contrastam com a falta de interesse na conversa banal com a esposa durante o café da manhã.
O pequeno apartamento de Nola, localizado em um bairro violento, remete à primeira
residência do tenista. As duas residências nos subúrbios opõem-se imediatamente ao suntuoso
Parliament View Apartments. O casal toma café da manhã com vista para o rio Tâmisa, o
Parlamento Britânico e o Big Ben na iluminada
210
sala da residência
211
. A intimidade entre o
protagonista e a amante contrasta com a distância entre Chris e Chloe: sentados cada um em
uma das extremidades da mesa, o casal troca poucas palavras. A jovem herdeira quer saber
como o marido dormiu, ele limita-se a respondê-la. Chris come como se estivesse ciscando
(assemelhando-se ao galo representado no quadro que está atrás do protagonista).
A esposa relata as notícias ao marido: ―Você viu aquela notícia ontem à noite sobre
aquele terremoto na China? Hum.‖ A tragédia no Oriente não provoca reação em Chloe e
Chris que apenas grunhem. Todavia, apesar do aspecto corriqueiro, característico das notícias,
o comentário de Chloe ganha sentido forte quando relacionado à central importância que, para
uma empresa de resseguros como a Swiss Re, o cálculo dos riscos de desastres naturais
representa
212
. À primeira vista, as notícias parecem desprovidas de qualquer aproveitamento,
no entanto, podemos ler a torrente de informações produzidas pela mídia à maneira de
Benjamin, buscando encontrar ―a relação real dessas informações com a existência social
[que] está determinada pela dependência dessa atividade informativa face aos interesses da
Bolsa e por sua repercussão sobre eles.‖
213
O desinteresse do marido não impede a jovem Hewett de continuar comentando a
respeito das notícias: ―E agora tem toda essa discussão de que descobriram um novo planeta.‖
Chris limita-se a ciscar o pão e concordar com a mulher. O aspecto repetitivo, cotidiano e
banal da conversa assemelha-os às notícias de jornal. Embora a falta de entrosamento entre o
casal seja evidente, Chloe prossegue relatando as novidades ao marido: ―Ontem, saí para
210
Em Londres, que é conhecida por seus dias cinzentos, a entrada de luz nos apartamentos da cidade é um
elemento bastante valorizado no mercado imobiliário.
211
A inauguração do Parliament View Apartments recebeu ampla cobertura da mídia inglesa, o edifício é
considerado como uma das melhores vistas de Londres‖. Disponível em:
<http://www.dailymail.co.uk/news/article-1084174/Two-mortgages-Prezza-How-credit-crunch-lose-John-
Prescott-200-000-luxury-London-flat.html>. Acesso em: 13 jan. 2010.
212
―A gestão de riscos de catástrofes naturais é essencial para o futuro crescimento e desenvolvimento da
economia chinesa‖, diz Franz-Josef Hahn, Membro do Grupo Executivo Ásia & Grande China da Swiss Re
Propriedade & Danos. Os dados deste Atlas propiciam uma referência científica para ajudar a indústria de
seguros a avaliar e antecipar riscos de catástrofes naturais e desenvolver soluções de proteção‖, acrescenta
Hahn.Disponível em: <http://www.swissre.com/>. Acesso em: 6 jun. 2009.
213
Benjamin, op.cit., p.225.
108
procurar um espaço para a nova galeria. O papai está gostando tanto da ideia.‖ Nesse ponto, o
espectador percebe que a galeria de arte será um investimento do patriarca. O entusiasmo de
Alec em patrocinar a filha para montar uma galeria pode ser entendido no próprio contexto da
empresa, configura-se como promoção de sua imagem corporativa. Nesse sentido,
retomaremos o argumento de Chin-tao Wu: ―Num mercado global de forte competição, em
que os produtos e serviços se tornam a cada dia menos distinguíveis, a única maneira de uma
companhia se diferenciar dos competidores é ter uma imagem corporativa ―esclarecida‖. E a
arte, ou as artes em geral, é extremamente adequada à promoção‖.
214
Enquanto o patriarca pensa nos negócios, Chris considera que a ocupação será uma
boa oportunidade para distrair os pensamentos da esposa. Ele olha para o relógio, mostrando
mais uma vez o desinteresse por Chloe, e informa à esposa que precisa ir para o escritório.
Preocupada com a concepção do herdeiro, Chloe pede para que Chris fique um pouco em casa
para que possam dar prosseguimento ao projeto de fertilização: ―Eu esperava que a gente
poderia, você sabe, antes de você sair para o trabalho. Estou no meu período fértil e lembre-se
que o médico disse que a gente deveria tentar muito, quantas vezes fossem necessárias, pela
manhã.‖ A solicitação, com recomendações médicas, é o avesso do desejo de Chris por Nola.
O protagonista tenta livrar-se da esposa, utilizando novamente a desculpa relacionada ao
trabalho: ―Eu vou me atrasar, querida.‖ No entanto, a herdeira persiste: ―Vamos, vai ser
divertido‖. A ironia de Allen na cena é explícita:o fastio da conversa, o pijama de Chloe, a
falta de assunto entre o casal, a ausência de qualquer possibilidade de prazer sexual em um
―projeto de fertilização‖ corroboram para a inexistência do desejo e sugerem a ideia de uma
atividade mecânica, na qual os dotes físicos do tenista servem aos intuitos de reprodução da
família. Até mesmo a voz da herdeira entedia quando ela pede para que o marido aguarde um
pouco para que ela meça sua temperatura. A personagem coloca o termômetro na boca e
cronometra o tempo, enquanto o tenista termina o café. O ato sexual reificado salta à vista.
A atividade prescrita por uma equipe médica, controlada e rigidamente seguida por
Chloe é seguida pela paixão desmedida na relação com Nola. A amante pergunta se eles
voltarão a se encontrar no mesmo horário na semana que vem‖. No entanto, o protagonista
afirma que quer subir: ―Não consigo evitar, você me deixa louco‖. Sem medo de ser
surpreendido, Chris beija Nola na calçada, enquanto outros transeuntes passam. A amante
214
Ver Chin-tao Wu, op.cit., p.277.
109
avisa que o executivo se atrasará para o trabalho. A referência ao trabalho que fora utilizada
como desculpa pelo protagonista para libertar-se da esposa perde a importância para Chris
quando está com Nola.
No corredor do prédio, o casal é surpreendido pela Sra. Eastby. A vizinha explica à norte-
americana que as ―armadilhas para ratos funcionam melhor com manteiga de amendoim. É
muito melhor do que queijo, apesar do que todos pensam.‖ A referência ao famoso alimento
proveniente dos Estados Unidos seria uma pista para o espectador de que a norte-americana
pode servir como isca para ratos. No entanto, para Nola o aviso passa despercebido e Chris é
apresentado à vizinha como sendo o Sr. Harris. Ao entrarem no quarto de Nola, os suspiros e
o furor da relação entre os estrangeiros retornam ao filme. Nola retira a gravata, venda os
olhos do amante e desabotoa a camisa do executivo. No plano seguinte, Allen apresenta
novamente o contraponto entre o tédio ao lado dos Hewett e o entusiasmo com Nola,
demonstrados nas cenas anteriores. Em um restaurante luxuoso, observamos Tom e sua
esposa. O jovem Hewett acredita que a Bruton Street
215
será perfeita para sediar a galeria da
irmã: ―Fica no lugar certo e será um sucesso natural na minha opinião, porque você é ótima
para escolher pinturas e cacarecos‖. Para Chin-tao Wu, o patrocínio das artes por empresas é
entendido como um investimento: ―O engajamento dessa elite empresarial nas artes pode ser
interpretada então nos níveis individual e corporativo. [...] Em virtude de seu ambiente social
e de sua posição corporativa, eles participam de uma rede intricada e complexa de relações
econômicas e sociais de conhecimentos, amizades e casamentos. Entretanto, a riqueza
herdada ou obtida com empregos de alto status, como afirmou Throstein Veblen no século
XIX, não constitui por si uma credencial suficiente para participar da seção dominante da
classe. Isso depende também da adoção e demonstração de um conjunto particular de valores
e estilos de vida. Ser visto como patrono das artes é parte de um estilo de vida distinto exigido
e sancionado no interior desse estrato ―sofisticado‖ da sociedade. O exercício da alta cultura
tornou-se uma parte cada vez mais importante da atividade social: é principalmente nos
eventos artísticos exclusivos que a elite empresarial e política se reúne e se reconhece. Não é
surpresa que os nomes dos executivos estejam sempre associados ao patrocínio das artes nas
reportagens da mídia.‖
216
215
A Bruton Street é conhecida por suas galerias de arte, entre elas: Sotheby’s, Whitfield Fine Art, Hamiltons
Gallery etc. Disponível em: <http://www.galleries.co.uk/g-nbs.htm>. Acesso em: 13 jan. 2010.
216
Chin-tao Wu, op.cit., p.149-150.
110
A escolha da Bruton Street, localidade que garante o sucesso certeiro da galeria, é
revelada no encontro dos casais em um luxuoso restaurante, característica que retoma os
lugares de alto consumo frequentados pelos irmãos Hewett. Como também, revela que a
localidade está ligada ao status social e relaciona a galeria de arte ao investimento corporativo
dos Hewett. Segundo Chin-tao Wu, ―a ligação entre arte, poder e prestígio social sempre foi
coerente desde a Renascença, e seria ingenuidade supor que o papel da arte no meio comercial
e empresarial pudesse deixar de ser o de um valorizador de status
217
.
A cena é semelhante a do restaurante em que Chris e Nola trocam olhares. Entretanto,
casado com Chloe e sem a presença de Nola, Chris limita-se a murmurar, restringindo-se a
pequenos comentários. A linhagem familiar parece ser o ponto alto da conversa: Chloe
comenta que seus planos em ter um filho podem atrapalhar o trabalho na galeria. Heather e
Tom discordam, defendendo os atributos da mulher contemporânea que ―não tem problemas
em conciliar o trabalho com a maternidade‖. Todavia, a própria fala dos personagens contém
a sua negação: as esposas que conseguem perfeitamente acomodar o trabalho com os afazeres
domésticos são aquelas que, assim como Heather, contam com a ajuda de uma babá. Apesar
de dispor de uma ajudante, a esposa de Tom relata à cunhada que infelizmente ―a babá nos
deixou, pois conseguiu um papel em um filme‖. Chloe, que sempre foi afeita ao mundo do
entretenimento, interessa-se pela história. Tom complementa o assunto ao lembrar que
encontrou sua ex-noiva, a atriz Nola: ―Ela está trabalhando agora em uma loja na Ledbury
Road. Acho que é a Paul and Joe’s. Mas, ela é uma garota tão estranha. Ela ainda é muito
bonita, desculpe-me, mas é verdade. Mas alguma coisa mudou no rosto dela e a gente mal se
falou.‖ Enquanto Tom relata o reencontro, o olhar da mera focaliza a reação de Chris e
Chloe. O protagonista finge não se interessar pelo assunto e Chloe presta atenção à reação de
Tom.
Por acaso, um casal de amigos dos Hewett aproxima-se da mesa e o amigo de Tom
revela ter encontrado Chris ―pegando um táxi na Melcombe Street, às cinco da tarde‖. Tom e
Chloe desconhecem a localização da rua, o que indica tratar-se de local diverso ao
frequentado pelos irmãos Hewett. A característica pontualidade britânica, e o nome da rua
fornecido pelo amigo dos Hewett não servem como evidências contra o cheio de credenciais
Chris. Diferentemente do espectador, os irmãos Hewett não desconfiam do protagonista.
Chris convence a todos na mesa: ―Você está enganado, mas obrigado por pensar em mim.‖
217
Ibid., p.277.
111
Tom ri da conversa: ―Acho que a única informação que podemos tirar daqui é que vocês dois
são malucos.‖ Os amigos combinam um passeio na casa de campo e o casal de amigos dos
Hewett retira-se da mesa. Portanto, o encontro entre os amigos, que não é casual no filme, é
mais um indício para o espectador da confiabilidade que o protagonista desperta para a
família Hewett.
A rotina de Chris não se altera. De volta ao escritório no Swiss Re, o executivo
pergunta à secretária por seus compromissos do dia. Na mesa de Samantha, o espectador pode
identificar o setor da empresa em que Chris trabalha: ―Infra-Estrutura Global e Finanças‖. O
desinteresse de Chris pelos negócios da empresa é novamente ressaltado. O protagonista pede
para que a secretária adie seus compromissos. No escritório sem paredes, o colega de
trabalho, Rod Carver, repreende a saída de Chris: ―Nós temos o Sarazin e a empresa dele
nesta tarde‖. Todavia, Chris que é genro do dono da empresa diz que tem um compromisso
importante.
Na cena seguinte, Allen revela o compromisso importante. O executivo encontra Nola
em um bar. Os relatos de Chris sobre o tédio no escritório e ao lado da família Hewett fazem
com que Nola fique aborrecida. Ela revela estar cansada também de tentar ser atriz: ―Não está
funcionando. [...] A mãe do Tom estava certa, chega um momento que não dá mais, sabe?‖ Os
dois discutem, Nola diz que não sabe o que está fazendo com Chris que o tenista nunca vai
deixar a esposa. O protagonista afirma que talvez abandone Chloe. Diferentemente dos
Hewett que não duvidam de Chris, Nola sabe que ele pode estar mentindo: ―Não diga isso a
não ser que seja verdade‖. O tenista volta a reclamar do casamento: ―Chloe está tão
desesperada para engravidar, é mecânico. Não sei o que faria se não pudesse ver você. De
verdade, é sério.‖
Na sucessão das cenas na Tate, no Parliament View, no restaurante, no Swiss Re as
atividades repetitivas, o ambiente de esgotamento e a expressão de tédio do protagonista
reaparecem. Em cada um desses momentos, Allen oferece a contraposição, entrecortando a
cada uma dessas cenas, os encontros com Nola na Tate, no apartamento do subúrbio, na
calçada em frente ao prédio de Nola e por fim, no bar em que a vivacidade do tenista volta à
tona. Desse modo, na cena do bar, esboça-se a possibilidade de mudança. O protagonista
poderia abandonar a esposa, libertando-se do claustro.
O passo seguinte, no entanto, indica que Chris permanecerá entre os Hewett. Eles
comemoram o Natal na residência londrina da família. A árvore de Natal, os móveis antigos
112
da família, a lareira, as pinturas naturalistas de paisagens inglesas compõem o cenário da casa
londrina dos Hewett que se assemelha à decoração interior da casa de campo. A matriarca
controla o comportamento dos filhos: ―Por favor, Tom, não comece a fumar, é uma pena. Se
você acha que vai viver para sempre...‖. A câmera movimenta-se pela sala da residência e
mostra uma pintura a óleo, retrato ancestral da matriarca. O olhar da câmera permanece no
quadro. Todavia, ouvimos Chris. Nesse momento, a câmera localiza o protagonista que está
no topo da escadaria da residência. Ele conversa com Nola por telefone, desejando-lhe boas
festas e diz que tentará visitá-la no dia seguinte. Na escadaria da residência, Alec encontra o
genro: ―Aí está você, Chris. Chloe me disse que você perdeu algumas quantias pessoais de
dinheiro na bolsa de valores nos últimos meses.‖ Os dois descem as escadarias juntos, ao
passo que o protagonista justifica-se para Alec: ―Acho que eu fui um pouco descuidado,
desconcentrado e é claro que eu pensei que tinha tomado boas decisões, mas...‖ As operações
arriscadas realizadas por Chris no mercado financeiro recebem a proteção do patriarca:
―Quem poderia prever isso? Olha, eu não quero que você e a Chloe se preocupem, vocês terão
sempre uma rede de proteção.‖ A descrição do ―descuido e descontrole‖ de Chris nos
investimentos, bem como as perdas financeiras encobertas pelo sogro antecipam o momento
da crise financeira, ocorrida em 2008, que afetou os grandes bancos, as empresas seguradoras
multinacionais e as economias nacionais, por conta justamente da desregulamentação do
mercado e das operações desmedidas travadas por executivos no mercado financeiro. O
movimento repete-se nas artes, conforme podemos observar a partir da análise de Wu: ―Com
os olhos voltados para a especulação, é razoável supor que as agências financeiras não
perderam de vista o crescimento sem precedentes e às vezes errático dos preços da arte‖
218
.
Da mesma forma como oferece o patriarca, no caso da crise de 2008, os cofres públicos
serviram como ―rede de proteção‖ ao capital especulativo.
No filme, o executivo agradece a compreensão do sogro: ―Você é muito generoso‖.
Para o patriarca, todavia, não se trata de generosidade: ―Você faz a Chloe feliz e isso é muito
importante para mim e a Eleanor‖. Nesse ponto, as pinturas a óleo retratando as paisagens
inglesas e o quadro da majestosa matriarca, além de remeterem à casa de campo e ao poderio
ancestral da família Hewett, antecipam o controle e o domínio da matriarca e do patriarca na
família. Além da amiga, do irmão, da cunhada de Chloe e dos médicos especialistas em
fertilização, Alec e Eleanor cuidam para que o herdeiro de Chloe seja concebido.
218
Chin-tao Wu, op.cit., p.258.
113
Entretanto, o protagonista escapa aos desígnios da família. Novamente, Allen oferece
o contraponto à família Hewett. Assim como a chuva estava presente no encontro entre Nola e
Chris no campo de trigo e no apartamento do subúrbio, nesta, a neve pode ser observada pela
janela do quarto de Nola. A comemoração natalina com Nola indica que o protagonista pôde
sair do cerco dos Hewett por algum momento para ficar com Nola. Na cena, sem diálogos, a
câmera observa Chris e Nola como um voyeur. A utilização da música extra-diegética retorna
ao filme: enquanto Chris massageia Nola à luz de velas, pode-se ouvir os chiados da gravação
antiga da ária Mi par d’udir ancorada ópera I Pescatori di Perle, de Georges Bizet, que
fora utilizada para caracterizar o desejo de Chris por Nola na cena em que se encontram por
acaso em uma rua em Londres, onde o protagonista compra roupas parecidas com as de Tom.
A maneira como Allen indica a passagem do tempo no filme é exposta na junção das
três cenas: os enfeites natalinos na casa londrina dos Hewett e a neve no apartamento de Nola
caracterizam o inverno; em seguida, Allen apresenta a chegada da primavera por meio dos
jardins floridos da casa de campo. A cerimônia do chá nos jardins da propriedade retoma a
paisagem bucólica das pinturas a óleo presentes na casa londrina dos Hewett.
Sentados à mesa, os jovens ingleses abastados combinam uma viagem. A conversa não
envolve o irlandês que se limita a respondê-los. Chloe revela ao grupo que o marido ―nunca
esteve nas ilhas gregas‖. A informação causa surpresa aos amigos endinheirados dos irmãos
Hewett. No intuito de não rebaixar-se em frente aos convidados, o irlandês e ex-tenista
profissional afirma que já esteve em Atenas e que ouviu dizer que as ilhas gregas são
paradisíacas. Tom recorda-se de que eles precisam ir à Sardenha ―para visitar Brook and
Dougie Wilson‖. Ao apresentar o roteiro dos jovens endinheirados, Allen mapeia o circuito do
turismo de luxo e retoma os atributos do protagonista, presente no currículo do professor de
tênis que fora aceito pelo Queen’s por ter experiência em clubes exclusivos situados na
Sardenha, em Marbella e Nice.
Apesar de Chris tentar mesclar-se às classes dominantes, a diferença de classe é
ressaltada pelos irmãos Hewett. Chloe retoma o assunto da gravidez: ―Eu comprei ao Chris
um amuleto grego da fertilidade.‖ Chris diz à esposa que ―nunca se esquecerá‖ do presente. O
caráter cômico volta à cena, pois sabemos que o protagonista está enfadado com a obsessão
de sua esposa no projeto de fertilização. Tom humilha o cunhado irlandês: ―Eu acho que ele
tem pouco esperma.‖ O telefone do protagonista toca e ele afasta-se dos convidados para
atendê-lo. Nola pede para que ele retorne à cidade. Ouvimos Chloe dizer que quer conhecer
114
―Barbra Streisand‖. Novamente, o fascínio pelo showbusiness volta a caracterizar os jovens
ricos.
Na sala de jantar da casa de campo Eleanor e Alec, Tom e Heather, Chloe e Chris
conversam durante o suntuoso jantar à luz de velas
219
. O patriarca informa que na manhã
seguinte todos devem acompanhá-lo para cavalgar: ―Comprei lindos cavalos novos‖. Tom
provoca o cunhado: Vocês lembram quando o Chris chegou aqui ele não conseguia
cavalgar?‖ Chloe defende o marido: ―Esta manhã ele estava pensando em comprar um cavalo
para ele. Eu acho que a vovó tem uma boa égua.‖ A governanta da casa interrompe o jantar
para que Chris atenda ao telefone: ―Ela disse que era importante.‖ A interrupção desagrada à
família, Chloe diz que o maldito telefone não parou de tocar durante todo o fim de semana.
Por telefone, Chris repreende a amante ―Está louca, ligando-me aqui?‖. Nola avisa que está
grávida. Novamente, nenhum dos integrantes da família suspeita de Chris. Eles conversam
sobre assuntos triviais: Tom comenta sobre o cavalo que a família comprará para Chris, Chloe
refere-se a ―falta de vegetais‖, Eleanor faz menção a ―limões, laranjas e biscoitos‖ e Tom
explica a origem da bebida Rose’s Lime Cordial.
Quando Chris retorna, Chloe quer saber quem ―não pára de ligar‖. Aos olhos dos
presentes à mesa, o protagonista diz que sua secretária pediu para que ele voltasse à Londres
para assinar ―alguns papéis‖. O herdeiro das empresas Hewett Inco. sabe que a secretária de
Chris ―foi passar o fim de semana com os pais‖. Todavia, Chris consegue convencer a todos:
―Eu sei, isso é minha culpa, coitada‖. O patriarca defende o genro: ―É um azar, mas Chris tem
muitas responsabilidades.‖ Eleanor considera que Samantha não deveria ser prejudicada por
um erro de Chris. Tom usa a expressão inglesa slave driver
220
comparando a atitude do
cunhado a de um feitor de escravos.
Em Londres, no apartamento do subúrbio, Chris discute com Nola: ―Como você pode
ficar grávida?‖. Eximindo-se de culpa, ele chama o ocorrido de ―má sorte inacreditável.
Cristo, eu não consigo engravidar a minha mulher, não importa o quanto eu me esforce, e no
instante em que você está sem proteção, eu te engravido‖. A norte-americana estabelece o
contraponto entre a relação mecânica e entediante com Chloe ao desejo que o protagonista
219
O jantar retoma o paralelo entre Um lugar ao sol e Match Point. No filme de Stevens, o sobrinho dos
Eastman passa férias junto à família de sua namorada rica Angela Vickers. No entanto, o jantar à luz de velas é
interrompido pela a jovem pobre Alice Tripp que está grávida de George Eastman.
220
A expressão slave driver denota ―alguém que faz as pessoas trabalharem muito usada para criticar ou de
forma humorística‖. Disponível em: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/slave-driver>. Acesso em: 13 jan.
2010.
115
sente por Nola: ―É por que você me ama e não a ela. É uma criança concebida na paixão
genuína, não parte de um projeto de fertilização‖. Chris pede para que Nola faça um aborto.
No entanto, diferentemente da inexperiente Alice Tripp de Um lugar ao sol, Nola adverte:
―Não farei isso de novo. É a terceira vez. Eu fiz uma vez quando eu era mais nova e fiz para o
Tom. Eu não queria, mas ele insistiu.‖ Nola propõe que os dois cuidem do filho: ―Você odeia
o seu trabalho, odeia a sua vida. Isso parece uma benção, é um sinal.‖
No apartamento de Chloe e Chris, a esposa diz que o protagonista ―passou o fim de
semana todo melancólico‖. Ele pede para conversar com ela ao passo que se dirige à janela do
Parliament View. Chloe tenta consolar o marido, ela afirma que se forem problemas
financeiros, ―os prejuízos na bolsa, você sabe que isso não é um problema‖. O protagonista
afirma que não pode mais continuar dependendo do pai de Chloe.
Chloe desconfia do marido: ―Isso tem a ver com aquelas ligações que você andou
recebendo?‖ Por trás da câmera, ela aproxima-se de Chris: ―Você reagia de modo muito
estranho após cada uma delas. Você está tendo um caso?‖ O protagonista repete a pergunta da
esposa e nega: ―Claro que não, não seja boba‖. A câmera aproxima-se do protagonista que
afirma sentir- se culpado, ―terrivelmente culpado‖. Chloe atribui o problema à dificuldade em
engravidar: ―Olha, Chris, nós dois fomos ao médico e somos absolutamente saudáveis. Eu
posso conceber e você é perfeitamente capaz de fazer uma mulher engravidar. Sou eu? Eu
estou obcecada e irritante em relação a isso? Eu quero um bebê, quero ter o nosso bebê.
Não tivemos sorte ainda, isso‖. O protagonista beija a fronte de Chloe e abraça-a; a cena
indica, portanto, o restabelecimento do casal Chloe e Chris.
Sem ter conseguido contar à esposa, Chris procura o amigo dos tempos de tenista,
Henry. Os dois aparecem, na cena seguinte, sentados nos bancos do Mount Street Gardens
221
.
Ao lado do amigo, o protagonista desabafa: ―Estou pensando em deixar a minha mulher por
outra. Mas quando chegou a hora de dizer isso para ela, eu não consegui‖. O protagonista
explica que não nenhum futuro com a outra mulher e que possui uma vida muito
confortável com a esposa. Henry tenta argumentar que se Chris não a ama, não há o que fazer.
No entanto, o protagonista interrompe o amigo: ―Não disse que não a amo, não é do jeito
que eu sinto por essa outra mulher. Talvez seja a diferença entre amor e luxúria. Mas o que eu
farei se deixar a Chloe? Não nego que eu me acostumei a um certo estilo de vida. Devo
221
―O Mount Street Gardens foi construído em 1889 no local de um cemitério que pertencia à igreja St. George
na Hanover Square. No parque existem noventa bancos patrocinados‖. Disponível em:
<http://www.filmlondon.org.uk/content.asp?CategoryID=972>. Acesso em: 13 jan.2010.
116
desistir de tudo? Pelo quê?‖. Henry retoma a justificativa do amor, mas o protagonista
continua: ―Para viver como? Onde? Trabalhar em que?Henry argumenta: ―Para mim parece
que você é muito bom no que faz. Deve haver outro emprego em outra firma.‖
Diferentemente do amigo de Chris, o espectador sabe da inabilidade do protagonista com as
finanças. O executivo precisa recorrer constantemente ao sogro para cobrir seus erros. Chris
retoma as relações de favor envolvidas no jogo: ―A verdade é que eu sou o genro do patrão. E
ele me adora.‖ Diante da afirmação de Chris, Henry encerra a conversa: ―A meu ver, não
parece que você quer essa outra mulher suficientemente para desistir de tudo o que você
conquistou‖. A conversa entre Chris e Henry em um parque ao ar livre na cidade funciona
como uma espécie de consciência para o protagonista, apresentando uma alternativa para o
ambiente de tédio e claustrofobia ao lado dos Hewett no Swiss Re e no Parliament View.
O diálogo entre o protagonista e seu amigo é precedido pela reconciliação entre Chris
e sua esposa e seguido por uma discussão com Nola. O protagonista retorna ao bar onde
sugerira a Nola anteriormente que poderia ―talvez‖ deixar a esposa. Dessa vez, Chris diz que
contará a Chloe, ―após a viagem [com os amigos dos Hewett pelas ilhas gregas]‖. Nola,
todavia, pede para que ele pare de enganá-la: ―Por que você não conta agora? Achei que
queria parar de viver essa mentira‖. Chris argumenta que ―Não é fácil‖. Nola percebe a
desfaçatez do protagonista: ―Como você pode sair de férias com uma mulher que você sabe
que vai largar assim que voltar? Sabe como eu me sinto? Sinto ciúmes. Não gosto da ideia de
você fazer amor com ela. Não gosto da ideia de que você vá passear pelas ilhas com ela, é
romântico!‖
Na cena seguinte, o mundo das artes, dos negócios e das relações pessoais volta a
relacionar-se. O protagonista caminha em direção à câmera. Ao fundo podem-se observar
duas telas grandes: as pinturas são retratos de uma mulher
222
. As cores vivas que compõem o
fundo da tela sobressaem-se em relação ao corpo distorcido e lânguido (Figura 7). Em um
depósito da galeria, Chris encontra Chloe. A jovem herdeira avisa ao marido que a viagem às
ilhas gregas foi cancelada. No local em que a galerista Chloe toma notas, outros quadros
podem ser observados como uma paisagem da cidade de Londres em tons pastéis e um outro
autorretrato da artista ao fundo do depósito (Figura 8).
222
Nos créditos do filme, encontra-se a informação de que as telas, expostas na galeria de Chloe, pertencem à
artista britânica Lucy Jones. Jones é conhecida por suas ―séries de auto-retratos e pelo uso de cores vívidas e
não-naturais‖. Disponível em: <www.momentumpublishing.co.uk/web_jones.jpg>. Acesso em: 1 mar. 2010.
117
Na galeria de Chloe, o passeio pela Tate é retomado. As pinturas figurativas
selecionadas por Chloe diferem da arte abstrata à qual a herdeira e sua colega manifestaram
aversão. O gosto das jovens coincide com as escolhas das corporações britânicas, conforme
explica Chin-tao Wu: ―As companhias britânicas tendem a comprar obras figurativas. Entre as
pessoas que não têm o que Pierre Bourdieu chama de ―código‖ para decifrar as manchas de
cores e linhas, prevalece um profundo sentimento de desconforto e às vezes até de ameaça,
associado à abstração‖
223
.
Os quadros expostos na galeria de Chloe reproduzem figuras humanas e podem ser
considerados como representantes da arte contemporânea inglesa figurativa. A pesquisadora
taiwanesa explica o motivo para o investimento corporativo em arte contemporânea: ―Esta
última tem um apelo inegável na medida em que acesso ao culto elegante da personalidade
artística, bem como permite a uma companhia projetar para si mesma uma imagem
progressista e inovadora‖
224
. A ideia de Chloe comandar uma galeria agrada ao patriarca e
contribui para a imagem da Hewett Inco., associando-a ao mundo das artes. Na cena da
galeria de Chloe, a herdeira sugere ao marido que eles caminhem até a ópera, o que indica que
o Royal Opera House, instituição que recebe patrocínio da família Hewett, localiza-se
próximo à galeria. De acordo com a pesquisa sobre a intervenção corporativa nas artes, os
homens de negócios ingleses privilegiam o patrocínio corporativo à música clássica e à ópera.
Em terceiro lugar, aparecem os museus
225
. Assim, a galeria de arte e o patrocínio à ópera são
duas instâncias ligadas ao status da família e aos negócios da empresa.
O protagonista retorna à sala de exposição da galeria. No canto direito da tela há outro
autorretrato de Lucy Jones. Os quadros da artista britânica mostram os novos investimentos
de Chloe em pinturas figurativas. Quando o protagonista sai do depósito, vemos outros
quadros, pinturas de figuras masculinas. No primeiro quadro, de fundo verde-claro, vê-se um
homem branco de feições claras e vestimenta cinza com o rosto virado para cima. Na mesma
tela, observa-se o contorno da figura masculina preenchido com um azul vivo. Chris olha para
baixo e telefona para Nola, sem olhar para os quadros. Enquanto realiza a ligação, o
protagonista posiciona-se entre duas telas (Figura 9).
Um rápido corte retorna ao apartamento do subúrbio londrino, no qual Nola um
romance. Ela atende ao telefone, mas o protagonista não se identifica. Nesse ponto, a câmera
223
Chin-tao Wu, op.cit., p.288.
224
Ibid., p.278.
225
Chin-tao Wu, op.cit., p.154.
118
aproxima-se de Chris, o terno preto e a gravata cinza escuro do executivo contrastam com as
cores vivas das pinturas ao fundo. Nesse ponto, o enquadramento seleciona partes dos
quadros, vemos apenas a sombra azul e parte do macacão branco com fundo ocre. O
executivo desliga o telefone. A câmera volta para o apartamento de Nola, onde a norte-
americana tenta identificar a chamada. Chris olha para o chão, enquanto guarda o telefone. No
canto direito da tela, pode-se observar a penumbra humana preenchida em azul. Suas mãos
estão manchadas, a tinta escorre da tela. uma atmosfera de melancolia, solidão e
degradação nas formas humanas representadas por Jones. Apesar de figurarem como
investimentos da herdeira, o enquadramento, feito pelo filme, localiza nos detalhes das
pinturas o sujeito reduzido a um fragmento do macacão de trabalho ou a uma sombra azul,
cujas mãos estão manchadas.
Da galeria de arte de Chloe, Allen corta para o camarote dos Hewett no Royal Opera
House, o que reforça novamente o caráter do investimento corporativo nas artes.
Diferentemente das outras cenas no Opera House, desta vez, a câmera não se aproxima dos
personagens, mas posiciona-se com certo distanciamento em um plano geral, onde se pode
observar tanto a família Hewett reunida (Eleanor e Alec; Tom e Heather; Chris e Chloe)
quanto os outros camarotes ao lado. Sem mostrar o palco, apenas o camarote, a cena indica o
privilégio de classe, o ambiente reservado dos camarotes, nos quais os integrantes não se
misturam aos outros espectadores.
A utilização da música nesta breve cena do filme é diegética. A ária escolhida por
Allen é ―Arresta...Quali sguardi‖, da ópera Guillaume Tell
226
, de Gioachino Rossini. O
espectador poderá notar o contraste entre o conflito descrito pela ópera e a ausência de
combate contra as classes dominantes no filme. Tell é o legendário herói suíço que simboliza
a luta pela liberdade política e individual. A ópera de Rossini, baseada no romance de
Friedrich von Schiller, retrata a história da revolta dos ―cantões contra o jugo austríaco‖
227
. O
momento do quarto e último ato, retratado no filme, é o da rebelião dos suíços contra o
império austríaco. Na ópera, os insurgentes saem vitoriosos da batalha
228
. Dessa forma, a
ópera retrata a resistência suíça e Tell seria o seu maior representante, pois ele desafia o
226
Segundo Kobbé, representada integralmente, Guillaume Tell dura quase cinco horas. Ver Kobbé, op.cit.,
p.258.
227
Ibid, p.257.
228
Ibid, p.257.
119
destino e mata o tirano, iniciando o levante: “Io non so se avrom mi gloria, / Ma la sorte io
vo' tentar. / Vieni, andiam: fia l'empio estinto.”.
Diferentemente de Tell que desafia o destino, Chris joga com o acaso. No filme, o
duelo não se contra o opressor, mas em detrimento de uma companheira, como se os
cantões da ópera duelassem entre si e não se unissem contra o tirano austríaco. O irlandês
pobre do cenário contemporâneo não matará alguém das classes dominantes do império
britânico, inspirando a luta pela liberdade de seu povo, mas fará justamente o seu oposto,
aliando-se à família de proprietários ingleses e eliminando sua semelhante (a norte-americana
é, assim como o irlandês, o outro/a alteridade no Reino Unido).
Em certo sentido, se tomarmos a história de Chris como a de um irlandês ascendendo
socialmente por meio da aliança com a aristocracia inglesa, o filme faz um comentário a
respeito da ação insurgente no cenário contemporâneo, aquela que rivaliza entre si e em que o
ímpeto revolucionário foi cooptado pelas elites. Em 2005, ano do lançamento de Match Point,
o IRA anunciou o fim da luta armada pela unificação da Irlanda. Os norte-americanos de
origem irlandesa sempre foram grandes financiadores do IRA, mas após os ataques terroristas
de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque, a ajuda norte-americana ao IRA diminuiu
consideravelmente. O senador norte-americano Ted Kennedy
229
teve importância crucial nas
negociações entre o Sinn Féin e o governo britânico ao conceder o visto norte-americano
para Gerry Adams entre outras ações que culminaram no cessar fogo do IRA. Na recente
eleição inglesa, o Sinn Féin declarou que quer trabalhar com os conservadores, os chamados
Tories, liderados pelo primeiro-ministro britânico David Cameron: ―O ex-chefe do IRA,
Martin McGuinness, revelou que Cameron e a liderança dos conservadores asseguram-lhe que
eles serão a favor dos acordos de paz que levaram à partilha do poder na Irlanda do Norte‖
230
.
Em ensaio sobre Walter Scott e Jane Austen, Terry Eagleton aponta para o movimento
que pode ser encontrado ainda em Match Point. Eagleton mostra que a ―recusa à reação e à
revolução, é muitas vezes elogiada como o espírito inglês do compromisso. No entanto, este
‗caminho do meio‘, como a chamada Terceira Via na política contemporânea, não é, na
realidade, nada disso. Não é um meio do caminho entre o Toryism e uma versão mais
229
Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/world/2009/aug/26/edward-kennedy-northern-ireland>. Acesso
em 13 jan. 2010.
230
Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/politics/2010/feb/17/martin-mcguinness-sinn-fein-
conservatives>. Acesso em: 20 mar.2010.
120
esclarecida do credo. [...] Partindo de um ponto de vista radical, este compromisso forte com
o capitalismo e a monarquia é apenas uma forma de ficar em cima do muro‖
231
.
O filme mostra que o compromisso estabelecido por Chris faz-se com a elite britânica.
Do templo da ópera burguesa ao apartamento pós-moderno em Londres, o protagonista
permanece ao lado da família Hewett. Apadrinhado pelo sogro, o irlandês é informado sobre
uma oportunidade lucrativa nos negócios. O caráter de informação privilegiada nas
movimentações financeiras entre sogro (dono da empresa) e genro (empregado) é explícito:
[Alec Hewett]: ―Surgiu uma oportunidade, Chris, que eu acho que
será lucrativa para você. Estamos estruturando algo com uma empresa
japonesa. É uma operação independente. uma boa soma de dinheiro que
pode ser feita e acredito que qualquer um que estiver envolvido desde o
início lucrará muito se as nossas previsões estiverem corretas.‖
[Chris Wilton]: ―Parece animador‖.
O tipo de operação financeira oferecida a Chris pelo sogro é caracterizado como uma
―oportunidade lucrativa‖, ―algo com uma empresa japonesa‖, ―operação independente‖, ―boa
soma de dinheiro‖, ―se as nossas previsões estiverem corretas‖. A fala do capitalista enfatiza a
condição de risco inerente à empreitada e aproxima Alec de Chris
232
. Lançado em 2005, o
filme retrata as perdas financeiras e os cálculos errados do novato executivo combinados à
―rede de proteção‖ do empresário transnacional que encobre os erros do genro e gerencia a
especulação desmedida, característica que, como apontamos, antecipa a crise financeira de
2008. Alec e Chris conversam em frente à vista do rio Tâmisa e do Parlamento Inglês (Figura
10). A utilização do plano-sequência nesta cena no Parliament View permite que o espectador
associe a conversa privada sobre uma ―oportunidade lucrativa‖ às decisões do Parlamento
britânico, como se as ações financeiras entre sogro e genro revelassem o movimento do
capital na Inglaterra.
Por sua vez, as mulheres, Chloe e Eleanor, tiram a mesa e acompanham a conversa
entre o patriarca e Chris. Alec traz a matriarca à conversa: ―Eleanor, acabei de contar ao Chris
231
Eagleton, op.cit., p.97.
232
Nesse sentido, podemos retomar Walter Benjamin, no momento em que o autor associa as operações da Bolsa
ao jogo: ―todo o desenvolvimento econômico moderno tem a tendência a transformar a sociedade capitalista
cada vez mais numa gigantesca casa de jogo internacional, onde os burgueses ganham e perdem capitais em
consequência de acontecimentos que lhes permanecem desconhecidos. O ‗inescrutável‘ exerce o seu domínio na
sociedade burguesa como num antro de jogo... Sucessos e fracassos oriundos de causas inesperadas, geralmente
desconhecidas, e aparentemente dependentes do acaso, predispõem o burguês ao estado de ânimo do jogador... O
capitalista, cuja fortuna está investida em valores da Bolsa, e que ignora as causas das oscilações dos preços e
dividendos, desses tulos, é um jogador profissional. O jogador, porém, é um ser altamente supersticioso.‖ Ver
Benjamin, op.cit., p.247.
121
as boas notícias‖, o que indica que o pai e a mãe de Chloe haviam conversado sobre os
problemas financeiros/conjugais do casal. Nesse momento, a câmera dirige-se à Eleanor, que
está em frente às pinturas da paisagem londrina compostas por cores pastéis
233
que estavam na
galeria de Chloe, o que retoma a ideia de que a função das pinturas é promover o status desta
família: as telas servem tanto para a galeria quanto para a decoração da residência da herdeira.
Se o patriarca encarrega-se dos problemas financeiros do genro, a matriarca, por sua
vez, indica a segunda condição de permanência do protagonista na família: ―O que me
deixaria mais feliz não tem nada a ver com dinheiro, quero que você me torne uma avó
jovem‖, dirigindo-se a Chris. Assim, a condição de dependência do protagonista é evidente
tanto nas finanças como parte do ―projeto de fertilização‖. Nesse longo plano- -sequência, a
câmera passa por uma das pilastras do apartamento de maneira que a estrutura de concreto
impede a visão do protagonista, ao passo que a matriarca discorre sobre a ―função
reprodutora‖ de Chris na família. Aliados, o patriarca e o genro riem de Eleanor, enquanto
Chloe intercepta a mãe: ―Você já é uma avó jovem‖. A matriarca conclui o argumento: ―Sim,
Tom e Heather estão tentando ter o segundo, mas eu quero que você seja mãe. Está bem, não
me olhe desse jeito. Ficarei quieta. O que você quer de aniversário?‖
Ao ouvir a discussão entre Chloe e Eleanor, Chris recorda-se do aniversário da esposa.
Chloe percebe que o marido esqueceu-se da data, mas o protagonista afirma já ter comprado o
presente, o que revela, aos olhos do espectador novamente, que o protagonista, apesar das
evidências de que ele esquecera-se da data, acaba por convencê-la. Outro indício do disfarce
de Chris é apresentado no momento seguinte quando Nola telefona para ele. O protagonista
pede licença ao sogro e retira-se da sala. Chris repreende a amante: Falei para não me ligar,
eu ligo‖ e afirma que está na Grécia. Entretanto, a cena localiza o protagonista no andar de
cima do apartamento, onde o espectador pode observar Chloe e Alec repreendendo a
matriarca por ter tocado no assunto da gravidez. Nola pede para que Chris ―conte tudo para a
Chloe assim que chegar em casa. Eu quero que essa situação seja resolvida. Você sente a
minha falta?. Em uma mesma cena, portanto, -se o conflito que não se entre os Hewett
e Chris, mas contra a alteridade representada por Nola. Pelo telefone, o protagonista despede-
se da norte-americana e desliga o telefone para juntar-se aos sogros e à esposa. A cena é
233
As pinturas são as mesmas que estavam no depósito da galeria de Chloe. Os quadros apresentados no filme de
Lucy Jones foram encomendados à artista por Allen. A pintura de Jones, Palace of Westminster, da qual
provavelmente foram retiradas as telas apresentadas no filme, pode ser encontrada em cores escuras nos arquivos
da artista. Disponível em: <http://www.art2invest.co.uk/pop-up_images/Palace_of_Westminster.htm>. Acesso
em: 12 mar. 2010.
122
análoga ao filme de Allen, Crimes e Pecados [1989], no qual a ex-aeromoça Dolores Paley [Anjelica
Huston] deixa recado com a secretária do médico Judah Rosenthal [Martin Landau], seu amante.
Judah diz a mesma frase que Chris: ―Por que você me ligou? Eu te disse que eu te telefono.‖ No
apartamento de Dolores, ela afirma que não conseguiu evitar, ―Eu estou ficando louca. Preciso -lo
ainda hoje. Preciso!‖ O paralelo entre os dois filmes será retomado no capítulo seguinte.
123
Capítulo III O sujeito contemporâneo
―Ao dramaturgo da subjetividade importa em primeiro lugar isolar e intensificar seu personagem
central, que na maioria das vezes incorpora o próprio autor.‖
Peter Szondi, ―Strindberg‖, Teoria do drama moderno [1880-1950].
3.1 Crimes e Pecados
No terceiro capítulo, retomaremos as referências estabelecidas pelo filme às outras
obras com o intuito de mapear a trajetória do protagonista de aliança com as classes
dominantes. Uma das estratégias do filme de Allen é a de associar a cultura ao capital. Tênis,
literatura, cinema, arquitetura e artes plásticas aparecem relacionados aos negócios de uma
família. Os bens culturais são no filme entendidos como bens propriamente investimentos ,
―habilidades e destrezas‖ do empreendedor, o sujeito do capital. Vimos também que na
própria configuração das cenas estabelece-se a comparação entre a cultura, o Estado britânico
e as relações pessoais. A ―oportunidade lucrativa‖ é oferecida pelo sogro ao protagonista em
frente ao Parlamento britânico, que pode ser observado tanto pela janela do edifício
residencial high tech como por meio da pintura de arte figurativa que retrata a mesma
paisagem londrina. Assim como relaciona, durante a conversa entre Chloe e a amiga na Tate
Modern, a gravidez da herdeira à compra das pinturas, o filme retoma a questão da concepção
do herdeiro associada aos negócios, na voz de Alec e Eleanor.
Na cena seguinte à da conversa entre genro e sogros, novamente o filme apresenta os
dilemas pessoais associados ao universo do consumo. A vitrine de uma loja de luxo aparece
antes que se vejam os personagens, como se a indicação do consumo fosse anterior à ação.
Pode-se observar o nome da marca Asprey
234
, localizada na New Bond Street. O local é o
234
―A Asprey foi fundada em 1871, em Mitcham, South London. Em 1847, a família Asprey mudou para 167
New Bond Street, local que ocupa hoje. A Asprey vende ‗produtos de design exclusivo e de alta qualidade, tanto
para o ornamento pessoal quanto para mobiliar com riqueza e beleza as mesas e casas das pessoas refinadas e
perspicazes.‘ A loja estabeleceu sua reputação como a primeira fabricante de produtos de luxo, ganhando a
medalha de ouro pela confecção de valises na International Exhibition, em 1862. No mesmo ano, a Royal
Warrant foi concedida a Asprey pela Rainha Vitória. Durante todo o século XIX, seus negócios floresceram e
outra Royal Warrant foi concedida pelo Príncipe de Gales que mais tarde seria coroado Edward VII, ele
permaneceu como um cliente importante e entusiasta da loja. O mecenato não veio apenas da família real
britânica e da aristocracia, mas também da realeza estrangeira e dos nobres que visitavam a loja quando estavam
em Londres. Na época do funeral de Edward VII, um membro da Asprey lembrou que ‗praticamente todos os
chefes de Estado estavam e muitos deles vieram para a Asprey. Você poderia ter visto três ou quatro deles ao
mesmo tempo.‘ Na glamorosa década de 1920, choveram pedidos de encomenda por todo o mundo. Tais como
124
mesmo em que Chris encontrou Henry, o amigo tenista. Dessa forma, percebe-se que a rua de
lojas de luxo é frequentada por transeuntes como o executivo, o tenista profissional e a atriz
norte-americana. A indicação da Asprey, loja que recebe encomendas dos nobres do mundo e
é patrocinada e condecorada pela família real britânica, mostra que o presente para Chloe,
comprado por Chris, é um produto certeiro ligado, ancestralmente, à classe dos Hewett.
Enquanto passantes caminham pela rua, vêem-se expostas na loja camisas, gravatas
masculinas e porcelanas. No canto direito da tela, ao fundo, Nola aproxima-se da câmera com
duas sacolas nas mãos. A cena de rua aproxima Nola e Chris dos outros transeuntes. As
pessoas que caminham por esta calçada são, assim como o protagonista e a norte-americana,
consumidores de alto padrão. Possuem sacolas, carregam pastas de trabalho e vestem-se como
executivos. Nola para em frente à loja para observar a vitrine. Saindo da loja com uma sacola
de compras na mão, vê-se o protagonista. O carro da empresa Hewett, utilizado por Chris, está
em frente ao local. A câmera corta para Nola que surpreende o protagonista através de uma
das vitrines da loja. Desse modo, a imagem de Chris é vista sob o ponto de vista de Nola por
intermédio de uma vitrine, ressaltando assim a questão do consumo, associando o executivo à
mercadoria exposta na galeria.
Após surpreendê-lo saindo da Asprey, Nola telefona para Chris. O protagonista afirma
que está na Sardenha e que voltará à Londres em cinco ou seis dias. Novamente, o olhar da
câmera expõe a mentira, apresentando um novo local, relacionado por intermédio das
pessoas que o frequentam à loja de alto luxo. Chris, Chloe, Tom, Carol e outros amigos dos
Hewett estão na capital inglesa em um restaurante suntuoso, iluminado à luz de velas. A
câmera volta para o apartamento dos subúrbios onde está Nola. A iluminação dos espaços é
bastante escura, tanto no restaurante onde estão os irmãos Hewett e Chris quanto no
apartamento de Nola.
Em contraposição à residência de Nola observa-se, em seguida, o protagonista sair de
um edifício cuja fachada assemelha-se a de um prédio de negócios como o Swiss Re. Todavia,
trata-se da entrada do apartamento de Chloe e Chris. Nesse ponto, podemos retomar a questão
da arquitetura contemporânea na era financeira que constrói logotectures homogeneizando o
os do milionário americano, J.P. Morgan. A coroação de Elizabeth II, em 1953, originou a Asprey Coronation
Year Gold Collection que se destacava por trazer uma sobremesa de ouro 18 quilates, serviço de café e licor,
chegando a pesar quase 27 quilos. Essa coleção notável passou a ser exibida na loja Bond Street, em abril de
1953 e, posteriormente, excursionou pelos Estados Unidos. Hoje, [...] ela continua a celebrar o melhor em
ourivesaria, design e materiais para oferecer aos seus clientes objetos que são como tesouros. [...]‖. Disponível
em: <http://www.asprey.com/heritage/>. Acesso em: 13 mar. 2010.
125
espaço da residência e do trabalho. O revestimento espelhado e a entrada do Swiss Re e do
Parliament View apresentados no filme fazem com que os dois edifícios aparentem ser o
mesmo local. Ao sair da recepção de sua residência, Chris cumprimenta o seu motorista, John,
que pede licença para buscar o carro. Enquanto Nola aproxima-se do local, pode-se observar o
motorista ainda próximo a Chris. O protagonista é surpreendido pela amante que ameaça
contar a Chloe. Nola grita em frente à residência do executivo: ―Você é um mentiroso!
Mentiroso!‖, ao passo que Chris tenta evitar que ela fale alto. Ao fundo, o espectador pode ler
a inscrição precisa do local: Parliament View Apartments‖. O protagonista chama um táxi e
retira Nola da entrada de sua residência. É interessante notar como a boa aparência do
executivo evita que qualquer transeunte, os funcionários ou seguranças do prédio, ou o
próprio motorista de Chris tentem impedir a discussão entre o casal. Nola é colocada à força
no táxi pelo protagonista.
No apartamento do subúrbio, observa-se a discussão entre Chris e Nola. Allen mostra
a briga do casal em dois momentos; o primeiro quando Chris tenta convencer a amante a
realizar um aborto; e o segundo, quando ele planejou o assassinato de Nola. Nas duas
cenas, observa-se a repetição dos argumentos do protagonista. Nas discussões entre Nola e
Chris, a referência ao filme Crimes e Pecados [1989] é retomada. Durante a discussão, Nola
desconfia do protagonista: Você está me deixando louca, eu não sei se acredito em você ou
não.‖ Ela expõe a mentira de Chris:
[Chris Wilton]: ―Estava tudo pronto para eu falar com ela e você
ligou e eu me senti culpado por ter dito a você que eu ainda estava na
Grécia.‖
[Nola Rice]: ―Você disse Sardenha.‖
[Chris Wilton]: ―Eu falava rápido. Eu não... Não queria que ela
soubesse do que eu estava falando.‖
[Nola Rice]: ―Uma hora ela vai saber.‖
[Chris Wilton]: ―Não posso dizer a ela.‖
[Nola Rice]: ―Então, eu direi.‖
[Chris Wilton]: ―Nola, pare!
[Nola Rice]: ―Isto é loucura, nós vamos ter um filho juntos!‖
[Chris Wilton]: ―A gente não precisa ter um filho juntos. A vida
seria bem mais simples se não tivéssemos.‖
[Nola Rice]: ―Simplificaria as coisas para você, mas não para mim.‖
A utilização do campo/contra-campo é feita de maneira que quando ouvimos Chris
observamos Nola e vice-versa. Ao pedir para que a amante acredite nele, observamos Nola
tomando alguns comprimidos, como se os remédios, assim como o vinho em outros
126
momentos, fossem necessários para que ela suportasse a mentira. Ao falar do filho que Nola
espera, o pai oferece dinheiro:
[Chris Wilton]: ―Pensei agora que mesmo que caso você tenha o
filho, eu posso lhe ajudar financeiramente.‖
[Nola Rice]: ―Isso não é o bastante.‖
[Chris Wilton]: ―Nola, seja razoável
235
.‖
[Nola Rice]: ―Isso é exatamente o que Tom disse quando rompeu
com o nosso noivado. Ser razoável me deixou onde eu estou agora‖.
[Chris Wilton]: ―Então, você está me ameaçando? Se eu não fizer o
que você quer, você vai procurar a minha esposa.‖
[Nola Rice]: ―Você mentiu para mim? Todas aquelas vezes que nós
fizemos amor, todas aquelas conversas, você estava mentindo?
[Chris Wilton]: ―Claro que não menti.‖
[Nola Rice]: ―Conte para a Chloe. Alguém precisa explicar a
situação, ou você faz isso, ou eu faço.
[Chris Wilton]: ―Ok. Eu farei a coisa certa.‖
Nola compara o discurso de Chris associado ao dinheiro ao de Tom Hewett. Nesse
ponto, os amantes rivalizam entre si, ameaçando um ao outro. No momento em que Nola diz
ao protagonista que ele mente para ela, apenas parte do corpo de Chris é mostrada, retomando
a ideia, apresentada pelos quadros na galeria de Chloe, de que o protagonista fica reduzido ao
uniforme de executivo. Chris ajoelha-se ao lado de Nola e promete que fará ―a coisa certa‖.
Nola toma outro comprimido.
Entre o quarto de Nola no subúrbio e o de Chris no Parliament View, a ópera ―O Elixir
de Amor‖ volta à cena para caracterizar os pensamentos de Chris. Se por um lado, a ópera
retoma a história do falso elixir, por outro, ela indica o sofrimento pela amada: ―Un solo istante
i palpiti / del suo bel cor sentir!...” Embora a música extra-diegética possa romantizar os
pensamentos do protagonista, o olhar da câmera não permite que esqueçamos que se trata da
permanência do protagonista ao lado de Chloe como membro da família rica. A câmera
focaliza a herdeira que está dormindo. A cena noturna no apartamento de Chloe e Chris pode
ser interpretada também como o momento do planejamento do crime.
A ideia do crime é recuperada pela cena seguinte na casa de campo. A ópera é cortada
de forma ríspida enquanto se observa o exterior do Englefield Estate. Da indicação da
235
Em inglês, utiliza-se reasonable‖. O adjetivo é utilizado tanto para caracterizar uma pessoa sensata, racional
como aquele que tem boas razões, que é razoável, sem ser muito extremo ou excessivo. Todavia, o adjetivo
também pode ser usado no sentido propriamente econômico do termo: a reasonable price‖, como sinônimo de
cheap‖ (barato). Disponível em: <http://www.merriam-webster.com/dictionary/reasonable>. Acesso em: 13
mar. 2010.
127
propriedade, a câmera insere-se em um local escuro, recuperando o aspecto sombrio
apresentado nas cenas anteriores. A porta é aberta pelo protagonista e pode-se identificar o
cômodo da propriedade: o porão onde a família guarda as armas. O espectador recordará que
este é o local onde Alec e Tom ofereceram uma espingarda de caça para Chris, após o
patriarca indicar o curso de administração. Na segunda vez em que o local aparece, o
protagonista pegará a arma da família. O momento não sede insurgência contra o opressor,
em oposição ao ambiente sufocante no trabalho e no casamento, mas para eliminar Nola.
Diferentemente do patriarca que monta a arma com a habilidade de um atirador profissional,
Chris prende o dedo na porta, atrapalha-se com a espingarda e derruba as balas.
Na biblioteca da casa de campo, Chloe pergunta pelo marido a Tom e Heather. O casal
revistas. No porão, o protagonista ouve a voz da esposa e tenta apressar-se. Chloe é
chamada pela mãe para que a ajude na escolha de um vestido. No corredor, entre a escadaria
da casa de campo e o porão, observa-se uma pintura a óleo de um dos ancestrais da família
Hewett, um patriarca. A banalidade das revistas e da escolha do vestido contrasta com o que
ocorre no porão da casa de campo, onde Chris pega a arma de caça da família, escondendo-a
na mochila para raquetes de tênis.
Após a cena na casa de campo onde o protagonista pega a arma do sogro, ele retorna à
cidade, para o apartamento de Nola. O assassinato dar-seno intuito de preservar a aliança
entre Chris e a família Hewett. No apartamento do subúrbio, a cena é paralela às outras
discussões entre Nola e Chris. O protagonista reitera a promessa e acusa Nola de querer
vingar-se dos Hewett:
[Chris Wilton]: ―Contarei para a Chloe amanhã.‖
[Nola Rice]: ―Você diz isso todo dia e sempre recua. Eu voltei à
estaca zero. Quero que algo seja feito, Chris. Se você não tem coragem de
fazer, eu farei.‖
[Chris Wilton]: ―Isso seria a sua vingança contra a família Hewett
inteira, certo?‖
[Nola Rice]: ―O que diabos isso quer dizer? A minha teoria é que
você quer que eu conte para a Chloe para que você não tenha que fazer isso.‖
A câmera acompanha Nola, sob o olhar do protagonista. Chris pode ser visto pelo
reflexo do espelho, ao lado de Nola: ―Bem que eu gostaria de ter alguém em quem eu pudesse
confiar, mas é tudo tão secreto. Preste atenção, Chris, se eu não fizer alguma coisa sobre isso,
nós vamos nos separar. Eu vou ter o seu bebê!‖ O olhar da câmera se mantém em Nola e tem-
128
se acesso à imagem do protagonista apenas por meio do reflexo do espelho, o que ressalta a
ideia do discurso de Chris como disfarce, dissimilação.
[Chris Wilton]: ―Eu contarei para ela amanhã, Nola. O que mais
você quer que eu faça?‖
[Nola Rice]: ―Outra vez? Conte para ela agora! Esta noite!‖
[Chris Wilton]: ―Não posso, não antes de ela dormir. Não seria a
hora certa. Nola, amanhã está bom. A que horas você volta do trabalho?‖
[Nola Rice]: ―No horário de sempre, às 18h30.‖
[Chris Wilton]: ―Estará em casa às 18h45?‖
[Nola Rice]: ―Claro. Chris, você me faz dizer essas coisas, eu me
odeio por isso. Eu só quero que a gente fique junto.‖
[Chris Wilton]: ―Nós ficaremos.‖
Nola sai de cena, ouve-se o barulho dos remédios que ela toma. No entanto, o olhar da
câmera continua no espelho, refletindo a imagem de Chris como uma mancha, um borrão,
semelhante às pinturas da galeria de Chloe. Enquanto o protagonista confirma o horário que
Nola sai do trabalho, observa-se apenas Chris refletido no espelho, ao passo que Nola está
fora do quadro. Diferentemente dos espectadores, ela não sabe que o protagonista marca o
encontro para eliminá-la. Nola retorna à frente do espelho e pede ao amante que ―fiquem
juntos‖. A reiteração da promessa feita pelo protagonista através do espelho mostra-se
como falsa impressão, aos olhos do espectador.
As sequências de discussões entre Nola e Chris lembram a briga entre Dolores
[Anjelica Huston] e Judah [Martin Landau], no filme Crimes e Pecados (1989). No
apartamento de Dolores, a amante recorda uma das viagens do casal, onde o médico explica
para ela a diferença entre os compositores Schuman e Schubert. Em um flashback, observa-se
o casal correndo pela praia enquanto Judah explica a Dolores que o primeiro compositor é
―muito sentimental, cheio de floreios‖, ao passo que o segundo, preferido pelo médico, é triste
e faz lembrá-lo de Dolores. As recordações de Dolores são interrompidas pela chegada de
Judah ao apartamento da amante. Os dois discutem e Judah apresenta o mesmo argumento
que Chris: ―Você está sendo muito pouco realista, sabe?Assim como o executivo de Match
Point, o médico oftalmologista de Crimes e Pecados oferece a amante uma compensação
financeira: ―Estive pensando e me ocorreu que se eu tiver feito você perder boas
oportunidades que poderiam ter sido lucrativas para você, eu estarei à disposição para
reembolsar-lhe.‖ Dolores recusa o dinheiro e afirma que quer contar à Miriam [Claire Bloom],
a esposa de Judah. A discussão entre os amantes no apartamento de Dolores retoma a cena de
abertura de Crimes e Pecados, na qual o médico conceituado recebe uma homenagem por
129
suas ações beneméritas. Em oposição aos personagens que participaram da comemoração,
Dolores conhece os crimes financeiros praticados por Judah:
[Dolores Paley]: ―Eu quero que ela saiba a verdade, ela precisa saber
que o marido dela é um mentiroso e estelionatário‖
[Judah Rosenthal]: ―Não ouse me chamar de estelionatário.‖
[Dolores Paley]: ―Não sou cega. Sei o que se passou entre a sua
filantropia e as suas ações.‖
[Judah Rosenthal]: ―Não peguei nada, nem um tostão. Minha
consciência está limpa.‖
[Dolores Paley]: ―Você precisou de dinheiro para cobrir suas perdas,
eu estava por perto quando isso aconteceu.‖
[Judah Rosenthal]: ―Ok. Eu precisei de uma ajuda temporária. Quer
dizer, por Deus, depois de uma vida inteira de esforço e trabalho, um homem
não vai se deixar falir, vai? Afinal, girar capital não é roubar.‖
[Dolores Paley]: ―Sem perguntar ou dizer nada a alguém?‖
[Judah Rosenthal]: ―Escute aqui: cada centavo foi devolvido com
juros.‖
[Dolores Paley]: ―Não acho que eles veriam dessa forma.‖
[Judah Rosenthal]: ―É isto que pretende fazer? Prender-me com
ameaças? Ameaças estúpidas e calúnias? É este o seu conceito de amor?‖
[Dolores Paley]: ―Não vou ser chutada! Quero falar com a Miriam!
[Judah Rosenthal]: ―Pelo amor de Deus, pense no que você está
fazendo comigo! Por favor!‖
[Dolores Paley]: ―Não me peça para entender, eu preciso de você.‖
Dolores, portanto, ameaça denunciar não apenas o romance como também as ações
fraudulentas do médico. Em Crimes e Pecados, após a discussão entre a amante e Judah,
seguem-se as histórias dos outros personagens, os ―pequenos delitos‖. Por sua vez, em Match
Point, o embate entre Nola e Chris é o tema central do filme. Diferentemente do protagonista
de Match Point, Judah contrata seu irmão Jack [Jerry Orbach] para resolver o problema com
Dolores. Durante a conversa, os irmãos passam pela piscina da residência de Judah, que
aparece coberta por conta do inverno. Eles entram em uma das salas da casa, onde se o
quadro A Bigger Splash (1961), do pintor britânico David Hockney
236
. Na pintura, observa-se
236
―Nascido em 1937, em Bradford, na Inglaterra, o pintor, gravador, fotógrafo e cenógrafo inglês, David
Hockney é talvez o mais popular e versátil artista britânico do século XX. O desenvolvimento de Hockney foi
uma continuação de seus trabalhos como estudante na Bradford School of Art, embora tenha ocorrido uma
mudança de temática significativa após sua mudança para a Califórnia, no final de 1963. É evidente que quando
ele mudou para Los Angeles, a cidade estava, ao menos em parte, em busca da fantasia que ele tinha concebido
como vida sensual e desinibida dos jovens atléticos, das piscinas, palmeiras e do sol perpétuo. Em sua chegada
na Califórnia, Hockney trocou a pintura a óleo por tintas acrílicas, aplicando-as sob uma camada leve, de cor lisa
e brilhante, que ajudou a enfatizar a preeminência da imagem. As ansiedades de Hockney sobre o surgimento do
moderno tinham diminuído na medida em que foi capaz de aparar os dispositivos e permitir que a sua
representação naturalista do mundo falasse por si.‖ Disponível em:
<http://www.tate.org.uk/servlet/ArtistWorks?cgroupid=999999961&artistid=1293&page=1&sole=y&collab=y&
attr=y&sort=default&tabview=bio>. Acesso em: 13 mar.2010.
130
o mergulho de um homem em uma piscina de uma casa da classe alta na Califórnia. Após
passarem pela piscina, os irmãos entram na sala de ginástica onde acertam o assassinato de
Dolores:
[Judah Rosenthal]: ―Esta mulher vai destruir tudo o que construí.‖
[Jack Rosenthal]: ―Isto é o que estou dizendo, se essa mulher não
quer ser razoável, dê o próximo passo.‖
A indicação de que a amante não quer ser razoável‖ aproxima o protagonista de
Match Point dos irmãos Judah e Jack de Crimes e Pecados. Assim como Dolores, Nola pode
destruir ―tudo o que Chris construiu‖. Ao cometer o crime com as próprias mãos, o
protagonista de Match Point une características do oftalmologista e de seu irmão. No filme de
1989, espaço para a ―fagulha de religião‖
237
representada pelo rabino Ben [Sam
Waterston]. Por sua vez, no filme de 2005, Chris descreve as atividades religiosas do pai, que
era pastor, como uma espécie de ―fanatismo desprovido de sentido‖.
Nesse ponto, retomaremos a análise pormenorizada de Match Point para mostrar que
os ―pequenos delitos‖, apresentados em Crimes e Pecados, associam-se diretamente ao
conflito central. Do apartamento de Nola no subúrbio, Allen retorna ao Parliament View em
frente ao rio Tâmisa. Observa-se a cozinha da residência do casal Hewett Wilton às escuras. O
protagonista caminha em direção à câmera e acende as luzes do apartamento, enquanto a
esposa afirma que ―ele estava muito nervoso durante a apresentação de balé.‖ Chris atribui à
indisposição a ―baixa taxa de açúcar, daqui a pouco melhoro.‖ Aos olhos do espectador, a
referência ao mal-estar do protagonista retoma a falta de autonomia de Chris perante a
herdeira e retoma a discussão com Nola. Por sua vez, Chloe relembra o projeto de fertilização,
a relação sexual monitorada pelos médicos: ―Eu ainda não posso ficar com você esta noite,
o terminei a minha pequena dose de não sei o quê‖.
Chris afasta-se da esposa, ela vasculha a mochila de tênis do marido e pergunta se a
faxineira colocou uma de suas camisetas de tênis na mochila de Chris. Se por um lado, a cena
quase coloca em flagrante o roubo da arma, por outro revela o controle da esposa que
vasculha os pertences de Chris. Outro aspecto presente na cena é a habilidade do protagonista
em persuadir a herdeira: ―O que você está fazendo? Deixa que eu olho. Eu tenho tudo
organizado aí.‖ Chloe culpa a empregada pelo delito: Tudo bem, eu não queria mexer em
nada. Eu não sei em qual outro lugar isso pode estar.‖ Na reclamação da jovem herdeira,
237
Lax, op.cit., p.369.
131
disparada contra a empregada, Chloe usa a expressão bloody
238
: ―Ela está sempre
misturando as minhas coisas com as suas. Está vendo, eu sabia. Ela sempre faz isso. Eu vou
ter que falar com ela sobre isso. É realmente...‖
239
. A expressão bloody‖, que marca ênfase,
traz consigo certo tom de grosseria da jovem Hewett para com os empregados. Aos olhos do
espectador, a expressão britânica, que também denota um sangramento, ou uma ―situação com
muitos mortos e feridos‖
240
e que no filme é utilizada pela herdeira Hewett no momento que
antecipa o assassinato pode relacionar-se com a arma de caça da família escondida dentro da
insuspeita mochila para raquetes de tênis do irlandês. Assim como a irmã, Tom também usa o
adjetivo ―bloody‖ para caracterizar a temporada de caça ao galo silvestre, o que retoma a cena
do tiro no campo e o acordo no porão em que Alec e Tom oferecem a espingarda ao
protagonista.
Ao retirar as camisetas de Chloe, Chris derruba uma das balas da espingarda. A
herdeira percebe que o marido esconde algum objeto em seu bolso, todavia, ele arranja uma
desculpa: ―É a minha caixa de remédios‖. (Apesar de se tratar de uma desculpa, os
medicamentos são aqui novamente utilizados pelos personagens para suportar a opressão).
Chloe, que controla a alimentação, as roupas, o trabalho e os remédios do marido, quer saber
quais remédios Chris utiliza. O protagonista distrai a esposa: ―É para o stress, você me
estressa tanto.‖ O casal se beija e ri, ele conta que comprou ingressos para o teatro, ela fica
surpresa com a atitude do marido: Isso não é do seu feitio. Eu pensei que você odiasse
musicais.‖
238
Característica do inglês britânico, o adjetivo “bloody” é utilizado para ―enfatizar o que você está dizendo de
uma forma sutilmente rude.‖ Pode ser também usado para caracterizar algo que esteja ―coberto de sangue, ou um
sangramento‖; ―uma situação com muitos mortos e feridos‖. Como verbo, nas formas bloodied‖, bloodiesou
bloodying‖, pode ainda caracterizar ―o ato de ferir alguém, ocasionando a saída de sangue, ou cobrir algo com
sangue‖. Disponível em: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/bloody>. Acesso em 13 jan.2010.
239
She’s always bloody mixing my stuff in with yours. See, I knew it! She always bloody does that. I’ve got to
have words with her about it. It’s really…
240
A expressão bloodyficou mundialmente conhecida pelo evento Bloody Sunday‖, ocorrido em 1972, no
qual catorze irlandeses foram mortos a tiros por policiais britânicos quando protestavam pacificamente na cidade
de Derry, na Irlanda do Norte. Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/uk/2010/jun/15/bloody-sunday-
report-soldiers-prosecuted>. Acesso em: 16 jun.2010. No verbete do dicionário Longman Online também
encontramos a referência ao Bloody Sunday‖: ―no domingo, 30 de janeiro de 1972, quando soldados britânicos
na Irlanda do Norte usaram da força para controlar uma grande multidão que protestava contra a política do
internment(colocar pessoas na prisão sem julgamento, se elas fossem suspeitas de serem membros do IRA).
Treze pessoas foram mortas quando os soldados atiraram contra a multidão‖. Disponível em:
<http://www.ldoceonline.com/dictionary/Bloody-Sunday>. Acesso em: 16 jun. 2010.
132
A referência ao musical The Woman in White
241
figura na cena como uma espécie de
elixir para Chloe enquanto o marido comete o assassinato, ela distrai-se no musical como
também mapeia a distinção de classe, os locais frequentados pelo casal Hewett Wilton, e
apresenta Nola como um fantasma. Chris usa o musical como álibi para o crime. No entanto,
o próprio The Woman in White
242
reitera a ideia da mulher como um fantasma que ronda a
cena. No filme de Allen, o musical é mais uma evidência do interesse da família Hewett pelo
showbusiness. É necessário lembrar ainda que as apresentações de óperas clássicas que a
família assiste no Royal Opera House apresentam revestimento contemporâneo. As
montagens contemporâneas no Royal Opera House são, assim como os musicais,
paramentadas com efeitos visuais e fazem parte do circuito do showbusiness na cidade.
A câmera retorna para uma loja de roupas, mas não se trata do executivo saindo da
Asprey. Desta vez, por trás da vitrine, o espectador observa o interior da pequena loja Paul
and Joe, onde Nola trabalha como vendedora. No local, repleto de roupas, ela atende ao
telefone. Chris avisa a Nola para que ―quando sair do trabalho direto para casa, tenho boas
notícias.‖ O uso do termo ―boas notícias‖ retoma o acordo financeiro entre Alec e Chris no
241
A música de The Woman in White, utilizada por Allen, é a de Frank Lloyd Webber, autor das canções de Cats
e The Phantom of the Opera, entre outros. O musical esteve em cartaz na capital inglesa, em 2004, no Palace
Theatre. Lloyd foi considerado pelo crítico Ben Brantley como ―um mestre em lavagem cerebral e em The
Woman in White ele conseguiu chegar ao extremo, com motivos reiterados insistentemente que agem nos
ouvintes como ferros de marcar. Esses sons são conseguidos por uma longa marcha de recitativo que explica e
re-explica o enredo elaborado em uma composição musical extremamente desajeitada‖. Disponível em:
<http://theater.nytimes.com/2005/11/18/theater/reviews/18woma.html>. Acesso em: 16 jun. 2010.
242
A história de The Woman in White pode ser resumida como ―um romance epistolar, escrito pelo escritor
inglês Wilkie Collins, em 1859. O protagonista Walter Hartright é um jovem professor de desenho. Hartright
conhece uma mulher misteriosa vestida de branco, aparentemente perturbada. Ele a ajuda a chegar em casa, mas
descobre que ela escapara de um hospício. Em Limmeridge House, Hartright conhece a jovem Laura Fairlie,
sobrinha do senhor Frederick Fairlie, e Marian Halcombe, sua dedicada meia-irmã. O jovem professor de
desenho acha que Laura é muito parecida com a mulher de branco, chamada Anne Catherick. A simplória Anne
viveu por um tempo em Cumberland quando era criança e cuidou da mãe de Laura, que foi a primeira a vesti-la
de branco. Hartright e Laura se apaixonam. Mas Laura foi prometida para casar com o Sir Percival Glyde.
Marian pede para que o jovem professor de desenho saia de Limmeridge. Anne Catherick, após mandar uma
carta para Laura alertando-a sobre Glyde, encontra Hartright que está convencido de que Glyde foi o responsável
por trancar Anne no hospício. No entanto, Laura e Glyde acabam se casando. Após diversas peripécias, Marian
cai doente com tifo. Laura viaja para Londres e troca de identidade com Anne. Anne acaba morrendo do coração
e é enterrada como se fosse Laura, por sua vez, a segunda foi dopada e colocada no hospício como se fosse
Anne. Quando Marian melhora e visita o hospício em busca de Anne, ela acaba encontrando Laura que está
supostamente louca por achar que é Lady Glyde. Marian suborna o atendente do hospício e Laura escapa.
Hartright retorna a salvo e os três vivem juntos em situação de pobreza e reclusão. Hartright está determinado em
recuperar a identidade de Laura. Ele acaba descobrindo o segredo de Glyde. Há muitos anos atrás, Glyde
falsificara o registro de casamento. Glyde tenta recuperar o registro, mas acaba morrendo em um incêndio na
igreja. Hartright descobre que Anne é a filha ilegítima do pai de Laura, o que explica a semelhança entre as duas.
A identidade de Laura é recuperada e Hartright e Laura se casam. Com a morte de Frederick Fairlie, o filho de
Hartright e Laura se torna o herdeiro de Limmeridge‖. Disponível em: <http://www.wilkie-
collins.info/books_woman_white.htm#Plot>. Acesso em: 16 jun. 2010.
133
Parliament View e antecipa a forma como o assassinato de Nola será narrado pela família por
meio de uma notícia de jornal. O protagonista atravessa a rua entre blocos de prédios, ao
passo que convence Nola: ―Cuidei de tudo, mas não quero falar por telefone. Você tem que
me encontrar logo após o trabalho. Nós temos planos para fazer.‖ Nesse momento, Chris para
em frente ao Swiss Re e observa a fachada do prédio de negócios. O revestimento espelhado
do prédio, bem como a construção em formato de ogiva, destaca a logotecture entre os blocos
de prédios financeiros. (Figura 11)
A câmera retorna para a loja, onde Nola está feliz com a ―boa notícia‖. A atriz
cancelará o encontro com seu agente para encontrar o protagonista. A colega de trabalho de
Nola pergunta se foi ―ele‖ quem ligou; o que demonstra que a jovem norte-americana pode ter
contado a alguém sobre o relacionamento com o executivo. Entre a ligação de Chris e o
assassinato de Nola, Allen inclui o motivo do anúncio das ―boas notícias‖ feito por Alec no
Parliament View, a saber, a ―oportunidade lucrativa‖ com a empresa japonesa.
Por intermédio das treliças, das janelas do escritório, compostos por estruturas
metálicas e vidros que revestem o Swiss Re, Allen apresenta o ―fechamento do negócio
promissor‖. Sem que se possa ver nitidamente os personagens, ouve-se a voz dos executivos
Rod Carver e Chris que fecham o acordo (anteriormente arranjado por Alec, o dono da
empresa). Rod alerta aos japoneses que eles ―precisam estar preparados para um fluxo de
caixa nos primeiros seis meses‖. O funcionário de Alec inclui Chris na negociação: ―Está
certo, Chris? Meio ano?‖
Nesse momento, a câmera passa por uma pilastra e aproxima-se do protagonista que
concorda com o executivo experiente: ―Meio ano é o suficiente, talvez menos.‖ Rod encerra o
encontro e despede-se dos clientes: ―Vejo vocês na próxima‖. O ex-tenista agradece em
japonês e cumprimenta curvando-se (imitando os modos japoneses) a cada um dos clientes.
Rod elogia o novato: ―Ótimo, sayonara com certeza. Achei que você mostrou algumas ideias
interessantes para desenvolver a empresa deles.‖ Avisado pelo sogro de que o negócio com os
japoneses envolve uma boa soma de dinheiro, Chris afirma: ―Estou animado com esse
empreendimento de risco
243
‖. Rod entusiasma-se com a energia, a boa aparência e o
comportamento adequado do jovem executivo, ex-tenista: ―Vai jogar tênis mais tarde?
Energia incrível. Adoro isso. Sinto inveja‖.
243
Chris usa a palavra venture para caracterizar o empreendimento financeiro. Em inglês venture pode
significar também uma união entre empresas em determinado empreendimento de risco.
134
Todavia, conforme o espectador observa, Allen posiciona em seguida ao acordo
financeiro a cena do crime. De certa maneira, a montagem das cenas pode ser entendida como
uma avaliação do filme sobre os empreendimentos financeiros de alto risco associando-os às
ações criminosas. O espectador atento notará que o executivo Chris entra e sai do escritório
high tech sem que nenhum detector de metais o previna - característica que é ressaltada se
pensarmos que a construção do Swiss Re fez-se sobre as ruínas dos ataques do IRA no centro
financeiro britânico.
3.2 Otelo
―Com as condições de plausibilidade amontoadas sobre ele, existem duas alternativas centrais disponíveis para
Otelo, e ele utiliza as duas. Uma é aparentar ser muito calmo e responsável assim como os venezianos
imaginavam que eles mesmos fossem. Mas também, e inteligentemente, ele usa a ideia racista dele mesmo como
um exótico.‖
Alan Sinfield, Cultural Materialism, Othello, and the Politics of Plausability‖.
Conforme explicamos nos capítulos anteriores, a ópera em Match Point é utilizada
como comentário às ações dos personagens, funcionando como um ―colaborador ativo‖
244
. No
filme, após a conversa entre marido e esposa no Parliament View sobre a compra dos
ingressos para o musical, Chris marca o encontro com Nola e fecha o negócio com os
japoneses no Swiss Re. Na grande corporação, o executivo, Rod Carver, afirma que sente
inveja do colega de trabalho, por conta de sua ―energia extraordinária‖. Assim como Tom,
que chama o protagonista de irlandês, Rod marca o caráter ―extraordinário‖ do ex-tenista.
Nesse momento introdução da música extra-diegética, a ópera ―Otelo‖
245
, de Verdi.
É importante frisar que a música é inserida quando Chris ainda está no Swiss Re, no momento
em que o executivo de terno e gravata e com a mochila de tênis a tiracolo sai incólume do
prédio high tech. Assim observa-se que o texto, ―a música e a arquitetura aparecem
independentemente como arte dentro de um evento claramente demarcado‖
246
, o do
assassinato. O plano-sequência no prédio de negócios termina com a vista para a City, do
ponto de vista dos executivos que trabalham no edifício.
244
Brecht, 1977, p.85-86.
245
Allen utiliza a gravação da Slovak Radio Symphony Orchestra com Johannes Wildner como regente; Janez
Lotric, tenor; Igor Mozorov, barítono. Conforme procuraremos demonstrar, nesta gravação encomendada por
Allen existem diversas intervenções no libreto original de Verdi.
246
Brecht, 2000, p.17.
135
Por intermédio das janelas espessas entrecortadas por treliças metálicas, observa-se o
centro financeiro londrino ao som da ópera de Verdi. Da grande corporação, simbolizada pelo
Swiss Re, o executivo encaminha-se para o apartamento no subúrbio, o que permite relacionar
o acordo financeiro na grande corporação ao assassinato.
De maneira análoga à cena anterior, na qual o protagonista dirige-se ao edifício de
negócios, Chris caminha em direção à câmera. A cena retoma também as diversas ocasiões
em que o executivo escapara do trabalho sufocante no Swiss Re para encontrar Nola. Desta
vez, Chris olha para os lados como quem verifica que não está sendo perseguido. A câmera
continua localizando a rua onde Nola mora, mostrando a tranquilidade do local. Observam-se,
ao fundo, transeuntes caminhando pela calçada. Trata-se de um dia comum. O assassinato,
portanto, ganha aspecto rotineiro, assim como o trabalho no Swiss Re. Por sua vez, a ópera
apresenta o crime, relacionando-o a Otelo. O tenor esbraveja que Desdêmona é culpada:
Desdemona rea!”.
Dessa forma, enquanto instância separada da ação, a música extra-diegética comenta a
ação do filme. A ópera aproxima o protagonista das exemplares personagens shakespereanas
Otelo e Iago. De acordo com Helen Caldwell, não nada particularmente novo ―em dispor
as naturezas opostas de Iago e Otelo em um único homem. O próprio Shakespeare faz isso em
Conto de inverno. E muitos estudiosos vêem Iago como um símbolo do mal em Otelo e em
todos os homens; outros vão mais além, a ponto de argumentar que Otelo é basicamente uma
peça sobre o mistério, com Desdêmona representando Cristo, Iago, o demônio, e Otelo, o
homem. Esta interpretação também se adéqua a Dom Casmurro, mas com uma nuança
paradoxal, como é próprio de Machado de Assis‖
247
. Caldwell ressalta também que Otelo trata
do ―conflito racista entre uma cidade poderosa e um mouro‖
248
. Neste trabalho
argumentaremos que a utilização da ópera Otelo feita por Machado de Assis no romance Dom
Casmurro assemelha-se ao uso da mesma ópera em Match Point.
Nesse ponto, retomaremos a história de Otelo, a partir da análise da peça de
Shakespeare feita por Alan Sinfield
249
. Para Sinfield, ―todos os personagens em Otelo estão
contando histórias, no intuito de convencer aos outros mais do que a eles próprios. [...]
247
Ver Caldwell, Helen. Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro / Helen Caldwell;
trad. Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008, p.155-156.
248
―Todas as óperas de Verdi se prendem a um combate político ou ideológico. [...]. Otelo não é somente um
drama de ciúme, é o conflito racista entre uma cidade poderosa e um mouro, do qual depende.‖ Ver Clément,
op.cit., p.30-31.
249
Sinfield, Alan. ―Cultural materialism, Othello, and the politics of plausability‖. In: Faultlines: cultural
materialism and the politics of dissent reading. Berkeley: University of California Press, 1992.
136
uma competição de histórias, e as condições de plausibilidade são, portanto, cruciais elas
determinam quais histórias serão críveis‖
250
. O argumento central de Sinfield concentra-se em
entender que ―racismo e sexismo na peça não devem ser características apenas de Iago, ou a
sua maldade arbitrária, mas a cultura Veneziana que estabelece as condições de
plausibilidade‖
251
. O próprio Otelo considera-se inferior aos venezianos, pois ele se como
um mouro, um estrangeiro: ―Otelo ‗reconhece‘ a si mesmo como aquilo que a cultura
Veneziana acreditava que ele fosse: um ignorante, um outsider bárbaro‖
252
. Para entrar para a
alta sociedade de Veneza, Otelo utiliza o exotismo a seu favor. Segundo Sinfield, quando
Otelo se apresenta como um estranho, os venezianos toleram o mouro: ―Até certo ponto,
talvez, porque os senadores precisavam de Otelo para lutar contra os turcos, assim, eles
permitem que a sua história prevaleça‖
253
.
Desse modo, trata-se de um estrangeiro que luta contra outros estrangeiros. Em nome
de Veneza, o mouro luta contra os turcos. No filme, a indicação da batalha travada por Otelo
retoma a utilização diegética da ópera Guillaume Tell, apresentada no Royal Opera House.
Diferentemente de Tell, que lidera o levante dos suíços contra o jugo austríaco, Otelo é o
estrangeiro que defende aqueles que o consideram como tal, a alta sociedade veneziana.
Assim, o mouro de Veneza aproxima-se ainda mais de Chris Wilton: não se trata do levante
do oprimido contra o império, como na ópera de Rossini, mas da aliança entre o estrangeiro
irlandês e o império britânico.
Em Match Point, a grande corporação, simbolizada pelo Swiss Re, e o acordo
financeiro que antecede o assassinato de Nola contêm reminiscências do que Eisenstein
indicara para a adaptação de Uma tragédia americana, na qual a ênfase deveria recair ―no
trágico curso seguido por Clyde, a quem a estrutura social leva ao assassinato.‖
254
De acordo
com Eisenstein, o crime cometido por Clyde deve ser considerado como a soma total das
relações sociais, cuja influência ele sofreu em todos os estágios de desenvolvimento de sua
biografia e caráter, no decorrer do filme.‖
255
Nesse ponto, retomaremos a análise da cena do
assassinato, na qual o espectador ouve a ópera Otelo enquanto o protagonista comete o crime.
250
Ibid, p.29-30.
251
Ibid., p.31.
252
Ibid., p.31
253
Ibid, p.31.
254
Eisenstein, op.cit., p.99.
255
Ibid. p.98.
137
Chris sobe as escadas do edifício de Nola. Na ópera, ouve-se a voz de Iago que trama
contra Desdêmona e Otelo com la prova del peccato d'amor”. Chris ouve a voz dos
vizinhos, coloca as luvas e esconde-se atrás do elevador. A música extra-diegética comenta as
ações de Chris para o espectador. Otelo afirma: “Atroce idea!”, reiterando a ideia do
sofrimento do protagonista e do assassinato de inocentes.
Enquanto moradores do prédio descem as escadas, o que ressalta o evento corriqueiro,
banal, o assassino continua escondido atrás do elevador. Nesse ponto, a ópera seria uma
espécie de aviso para o espectador, no qual Iago afirma: Il mio velen lavora[meu veneno
está trabalhando]. O segundo ato, cena cinco, da ópera de Verdi escolhida por Allen mostra o
momento em que Iago convence Otelo da traição de Desdêmona. Assim, conforme explica
Sinfield, ―Otelo é persuadido por Iago de sua inferioridade e da inconstância de Desdêmona e
Otelo passa a agir como se isso fosse verdade‖
256
.
Ao avistar a saída dos vizinhos, o executivo sobe as escadas. Ouve-se Otelo acusando
Desdêmona: “Rea contro me! contro me!‖ Por sua vez, Iago comenta a reação de Otelo:
Soffri e ruggi!” Otelo repete: Atroce! Atroce!”, ao passo que no filme, o protagonista vigia
pelo vão da escada a entrada e saída de moradores do prédio, enquanto dirige-se ao andar do
apartamento de Nola. Nesse momento, na ópera, Iago aconselha Otelo: Non pensateci più”
[Não pense mais]. Portanto, na cena do assassinato, no plano da imagem, a serenidade do
edifício e a indiferença dos vizinhos, acentuam o caráter cotidiano do evento, ao passo que a
música extra-diegética retoma o crime trágico cometido pelo protagonista shakesperiano. Para
Raymond Williams, o sentido trágico ―é sempre cultural e historicamente condicionado‖
257
. A
tragédia encenada na ópera e no filme pode ser considerada como ―a dramatização de uma
desordem específica e atroz, e a sua resolução‖
258
que repõe a ordem estabelecida.
No momento em que Chris chega à porta da Sra. Eastby, a ópera apresenta o
sofrimento do protagonista. Ouve-se Otelo e o barulho de Chris batendo à porta da
Sra.Eastby. A música remete à luxúria e à suposta traição de Desdêmona. Observa-se nesse
ponto a confusão inextricável dos sentimentos de Chris, suscitada pela ópera e pela imagem,
uma espécie de ―luta interior‖, próxima ao monólogo interior, descrito por Eisenstein, no qual
256
Sinfield, p.31.
257
Williams, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p 77.
258
Ibid., p.78.
138
―a câmera tinha de ir ―dentro‖ de Clyde. Auditiva e visualmente, era preciso mostrar a febril
corrida de pensamentos intercalados com a realidade externa‖
259
No filme, o protagonista bate de maneira desesperada à porta da vizinha de Nola.
Pode-se observar o reflexo da Sra.Eastby aproximando-se, enquanto a ópera mostra o
desespero de Otelo: ―meu peito se agitava / talvez um presságio‖
260
. O anúncio da angústia de
Otelo é seguido pela abertura de uma fresta da porta. Ela pede para que o estranho se
identifique. Nesse momento, a câmera aproxima-se do protagonista: ―Eu sou o Chris, amigo
da Nola, sua vizinha ao lado. Nós nos conhecemos...‖. A Sra. Eastby interrompe o executivo:
―Desculpe-me, mas eu não deixo ninguém entrar.‖
Entreposto ao diálogo entre a Sra. Eastby e Chris, pode-se acompanhar as lembranças
de Otelo ao lado de Desdêmona. Ele canta ao corpo, aos lábios e aos beijos da amada. Nesse
ponto, o filme aproxima Desdêmona e Nola. A utilização da música extra-diegética, no
momento em que Chris tenta convencer a vizinha, aponta também para o objetivo primeiro do
crime, o assassinato de Nola.
O executivo prossegue em direção à Sra.Eastby: ―Você não se lembra? Nós nos
conhecemos, a Nola perguntou alguma coisa sobre os problemas que você estava tendo com
ratos e você mencionou algo sobre manteiga de amendoim‖. A menção à comida norte-
americana leva a vizinha a abrir a porta para o estranho: ―Ah, sim, sim.‖ Novamente, reitera-
se o caráter banal e cotidiano do assassinato, por meio da menção à manteiga de amendoim.
Na ópera ouve-se: ―De Cassio! E agora! E agora!‖
261
, momento que mostra o desvario e a
derrota de Otelo que acredita nas acusações de Iago. A câmera muda de posição e o
espectador observa Chris por intermédio do olhar da vítima, a Sra. Eastby.
Assim como Iago utiliza o lencinho de Desdêmona, Chris faz uso da manteiga de
amendoim para convencer a vítima. na comparação um comentário irônico de Allen.
Conforme argumenta Sinfield, o lencinho, ou qualquer outra acusação, seriam suficientes
para Otelo que está desde o começo convencido pela sociedade veneziana de que é ―um
marido inapropriado para Desdêmona [...] As histórias de Iago funcionam porque são
plausíveis para Roderigo, Brabantio, o Senado, e até mesmo para o próprio Otelo‖
262
. Tanto
259
Eisenstein, p.103.
260
No original “m'agitava il petto / forse un presagio!”
261
Di Cassio! Ed ora! ed ora...‖
262
Sinfield, p.30-31.
139
as ações de Chris como as da Sra.Eastby obedecem a uma determinada estrutura social que
permite que altos executivos como Chris sejam insuspeitos.
O executivo entra no apartamento da vizinha e apresenta-se: ―Eu sou o Chris Wilton,
professor de tênis‖. A Sra. Eastby pergunta ao executivo o que aconteceu. O protagonista
esquiva-se da pergunta e entra no apartamento: ―Não problema nenhum, Sra.. Não quero
atrapalhá-la. Gostaria de saber se eu poderia checar o seu sinal de tevê. Estamos com
problemas no apartamento da frente.‖ Assim como a manteiga de amendoim, o sinal de tevê
reitera o aspecto do assassinato rotineiro de pessoas comuns e associa o crime ao
entretenimento. A ideia de que qualquer motivo serviria para Chris abordar a vizinha aparece
cifrada na cena, na qual se evidencia de que se trata de uma desculpa improvisada, de um
criminoso inexperiente. A Sra.. Eastby escuta o professor de tênis e fecha a porta de sua casa,
colocando o assassino para dentro do apartamento. Na música extra-diegética, a ópera enuncia
a derrota de Otelo que adeus à memória: ―Agora e para sempre adeus santas memórias.‖
263
A derrota do mouro comenta o diálogo entre a vizinha e o protagonista:
[Sra. Eastby]: ―Com a tevê?‖
[Chris Wilton]: ―Estamos com uma interferência e esse é o programa
favorito da Nola e eu não sei se o problema é lá em cima ou se somos nós.‖
[Sra. Eastby]: ―Certo. Está logo ali. Preciso tomar o meu remédio.‖
Enquanto a Sra. Eastby vai tomar os remédios, o protagonista monta a espingarda.
Nesse ponto, é retomada a ideia dos medicamentos como se fosse um elixir, uma espécie de
entorpecente. Ao invés de monitorar o intruso, a vizinha sai para medicar-se. A referência à
memória na ópera comenta o esquecimento da Sra. Eastby e a aproxima de Otelo que se
recorda apenas do fato banal relacionado à manteiga de amendoim e não se lembra de que
Nola apresentara Chris como senhor Harris. A ópera, portanto, comenta a cena, dando adeus
ao pensamento, à razão dos personagens: Adeus, sublimes encantos do pensamento!‖
264
O canto
de Otelo mostra a derrota do mouro como sujeito. A aproximação entre Chris e Otelo se
por meio da ideia do estranho, do desconhecido, do intruso. No filme, a ópera associa o
irlandês ao mouro de Veneza, enunciando que se trata do fim do personagem como sujeito:
―este é o fim da glória de Otelo.‖
265
263
Ora e per sempre addio sante memorie‖.
264
Addio, sublimi incanti del pensier!”
265
Della gloria d'Otello è questo il fin."
140
Enquanto a Sra. Eastby toma remédios novamente o ato cotidiano , Chris monta
com dificuldade e desespero a arma de caça da família Hewett. A cena retoma a conversa no
porão na qual o patriarca e o protagonista conversam e o momento em Chris pega a arma do
sogro às escondidas. Diferentemente do patriarca, que é um atirador profissional, o ex-
professor de tênis não sabe manejar a arma. A prática do tiro é apresentada no filme assim
como a ópera, a literatura, as artes plásticas, arquitetura como distinção de classe associada
à família Hewett.
A angústia e o sofrimento do protagonista ao montar a espingarda contrastam com o
problema com o sinal de tevê que entretém a vizinha: ―Funcionava bem antes. Eu estava com
ela ligada e estava boa.‖ Nesse ponto, o executivo, vestido de sobretudo preto, aponta a arma
para a câmera. O movimento associa Chris ao patriarca. No porão, conforme
demonstramos, Alec oferece um curso de administração ao futuro genro, ao passo que monta
a arma de caça da família e a aponta para a câmera. Após a conversa entre Chris e o patriarca,
Tom oferece a espingarda para Chris. Alec, durante a cena do tiro no campo, avisa que
transformará Chris em um ―talentoso atirador‖. A cena do assassinato no apartamento do
subúrbio coloca Chris como um atirador em nome dos valores da grande corporação, do
empreendedorismo, do casamento com a família Hewett, da propriedade no campo, em
Englefield (o campo de batalha dos ingleses) e na cidade, no Parliament View (o edifício
espelhado com vista para o Parlamento britânico). O conflito de Chris assemelha-se ao dilema
de Clyde: ―Ele deve ou esquecer para sempre a carreira e o sucesso social, ou livrar-se da
moça. As aventuras de Clyde em seus choques com a realidade norte-americana haviam
moldado sua psicologia, de modo que, após uma longa luta interior (não devido a princípios
morais, mas à sua própria e neurastênica falta de caráter), ele se decide pela última opção.‖
266
No apartamento do subúrbio, a vizinha recorda-se que o nome do companheiro de
Nola era Harris. Na ópera, ouve-se Iago pedir a Otelo: ―Paz, senhor.‖
267
Otelo chama-o de
desgraçado pelas calúnias contra a esposa e pede ―uma prova segura de que Desdêmona é
impura‖
268
. No filme, Chris caminha com a arma apontada em direção à câmera para o
espectador. Ele dirige-se ao cômodo onde a Sra. Eastby toma os remédios. O aspecto negro do
protagonista, ressaltado pela vestimenta e pela iluminação do local, relembra o mouro de
Veneza e o quadro na galeria de Chloe da sombra azul, onde Chris telefonara para Nola.
266
Eisenstein, p.99.
267
Pace, signor.
268
Una prova secura che Desdemona è impura”.
141
Na ópera, Otelo contesta Iago e pede por uma prova visível: Não fuja! Nada te ajuda!
Quero uma segura, uma visível prova!‖
269
Fechando o frasco de remédios, a Sra. Eastby olha
para a câmera em direção ao assassino. Em um rápido contra-plano, observa-se Chris atirar
contra a vizinha. A arma de fogo e o barulho do tiro invadem a ópera. Após o tiro, não
ouvimos mais a voz dos personagens no filme, apenas a música extra-diegética na voz de
Otelo e Iago narram os acontecimentos.
Ao disparar contra a Sra. Eastby, Chris treme. Ele cai no chão após o disparo. O
protagonista é tomado pelo desespero e chora. Chris retorna para a sala do apartamento da
Sra. Eastby e começa a revirar os pertences da vizinha, simulando um assalto. A cena no
porão, na qual Chris recebe a arma de caça dos Hewett, o negócio fechado pelo executivo na
grande corporação, a loja onde Nola trabalha, o esquecimento da Sra. Eastby, a manteiga de
amendoim como isca para ratos e o problema com o sinal de tevê retomam a ideia de eventos
do cotidiano que são apresentados no filme de maneira causal, associando os eventos
rotineiros às ações financeiras e do Estado. O filme retoma a ideia do ―monopólio da
violência legítima [...] a violência sobre a qual o Estado e a sua civilização repousam‖
270
.
O mouro de Veneza é ―um servo do Estado veneziano‖
271
, um mouro que usa turbante,
conforme lembra Sinfield. Otelo é um enviado do Estado para matar os turcos e a transviada
Desdêmona que desafia o pai ao casar-se com o mouro. Otelo acaba apunhalando a si mesmo
como um turco, restabelecendo a ordem em nome da sociedade Veneziana. Por sua vez, Chris
é um irlandês, aliado ao império britânico, que mata sua companheira, Nola Rice (uma atriz
faminta do Colorado), e a vizinha, uma Sra. chamada Eastby. Chris, portanto, restabelece a
estrutura social ao cometer os assassinatos e, nesse ponto, o filme pode ser comparado a
Otelo, ―no sentido de que não são os indivíduos, mas as estruturas de poder que produzem o
sistema dentro do qual nós vivemos e pensamos‖
272
. O Englefield Estate, a Swiss Re e o
Parliament View simbolizam, no filme, as estruturas de poder no Reino Unido.
Na cena do assassinato da Sra. Eastby, observa-se um saqueio: Chris rouba os
remédios, o relógio e os anéis da vítima. O anel de casamento retoma a ideia da aliança com
os Hewett. O saqueio não é contra os ricos, mas sim contra a vizinha no apartamento no
subúrbio. O aspecto corriqueiro do assassinato volta à tona quando se observa Nola saindo da
269
“Non sfuggir! nulla ti giova! / Vo' una secura, una visibil prova!”
270
Sinfield, p.34-35.
271
Ibid, p.34.
272
Ibid, p.37.
142
loja, de seu local de trabalho. Allen contrapõe o desespero do assassino no apartamento do
subúrbio à calmaria da transeunte que caminha pela rua. Novamente, a utilização da ópera no
filme aproxima Nola e Desdêmona. Assim como a heroína shakespereana, a norte-americana
é ―uma mulher que poderia provocar uma crise na história patriarcal [...]. Ela coloca o sistema
em desordem‖
273
e por isso, deve ser eliminada pelo próprio sistema por meio de seus agentes.
Nola fora extinta, primeiramente, pela família Hewett.
No apartamento da Sra. Eastby, Chris chora sentado no sofá da vítima. Ele chuta a
bolsa da vizinha, objeto relacionado ao dinheiro. No filme, observa-se um movimento de
resistência na ―apresentação de todo o curso de pensamento de uma mente perturbada.‖
274
A
câmera volta a destacar o aspecto rotineiro do assassinato, como se o crime fosse a regra,
reinstaurando a ordem. Na esquina da Ledbury Road, Nola chama um táxi. Allen contrapõe,
por meio de dois cortes rápidos, o sofrimento do protagonista no apartamento da vizinha à
calmaria na rua. Enquanto o assassino ―sofre e ruge!‖
275
, a vítima dirige-se à residência após o
trabalho, como uma transeunte qualquer. Nola e a Sra. Eastby compartilham um destino
comum. Chris guarda os pertences da Sra. Eastby na mochila de tênis. O protagonista olha
para o relógio, marcando a ideia de um crime premeditado que assim como o trabalho é
controlado pelo tempo.
Allen corta para a fachada do Palace Theatre, onde está em cartaz o musical The
Woman in White. O carro da família Hewett aproxima-se do teatro, Chloe sai do veículo e
pega os ingressos. Novamente, é destacado o aspecto cotidiano dos eventos. O relógio antigo
da casa da Sra. Eastby indica o horário marcado para o crime que coincide com a
programação acertada com a jovem herdeira e reitera a ideia de um crime comum tal como a
passagem do tempo. Na sala do apartamento do subúrbio, o executivo coloca uma nova bala
na espingarda.
Na rua do apartamento de Nola, observa-se a chegada de um táxi. Nola sai do veículo
e caminha em direção à câmera. A cena também estabelece paralelo com a chegada de Chris
ao edifício no subúrbio, ressaltando o evento cotidiano e aproximando o crime do espectador.
Nesse momento, ouve-se a música extra-diegética, na qual Iago prossegue relatando o suposto
sonho de Cássio a Otelo: ―Desdêmona doce! O nosso amor se esconde.‖
276
Apesar de se tratar
273
Ibid, p.45.
274
Eisenstein, p.104.
275
Soffri e ruggi!”
276
"Desdemona soave! Il nostro amor s'asconda.
143
da narrativa de Iago, a utilização deste trecho da ópera, neste momento específico do filme,
retoma o amor de Chris por Nola. A câmera retorna para o protagonista que coloca as balas na
espingarda. Observa-se um vizinho descendo as escadas, o que mostra que mesmo após o
assassinato da Sra. Eastby, a rotina dos moradores permanece inalterada. Outro indício do
cotidiano dos moradores ocorre no momento em que o vizinho Ian [Colin Salmon] tenta
chamar a Sra. Eastby: ―Eu vou à loja da esquina, quer que eu lhe traga algo?‖ Dentro do
apartamento da vizinha, o protagonista caminha em direção à câmera com a espingarda em
punho. Chris esconde-se atrás da porta e escuta o chamado do vizinho. Na ópera, Iago
prossegue relatando a Otelo o suposto sonho de Cássio. Observa-se que mesmo antes da
apresentação do lencinho, Otelo está convencido de sua inferioridade frente a Cássio e aos
venezianos e da traição de Desdêmona.
No interior do apartamento da vizinha, o protagonista ouve o chamado de Ian.
Novamente, o cotidiano do edifício, representado por Ian, e o desespero de Chris aparecem
lado a lado, separados pela porta do apartamento da Sra. Eastby. Chris cometerá os
assassinatos, sem que os vizinhos percebam. Ao sair do edifício, Ian encontra Nola. Os dois
conversam sobre um tocador de cd portátil. Novamente, acentua-se o aspecto da conversa
trivial.
Da escadaria do prédio em contre-plongée, a câmera focaliza o protagonista. A
imagem de Chris aparece por meio das estruturas metálicas que compõem o corrimão da
escada. O assassinato de Nola dar-sepróximo à escadaria do edifício no subúrbio. Nesse
ponto, a imagem das escadas no Englefield Estate, na casa da cidade dos Hewett e no
Parliament View pode ser retomada para destacar a ideia do arrivismo do protagonista. Chris
vigia a chegada de Nola por meio do vão da escadaria e olha para o relógio, ao passo que a
voz de Otelo reafirma o sofrimento do protagonista: ―Oh monstruosa culpa!‖
277
Na entrada do
edifício, Nola despede-se do vizinho, no momento previsto.
Na ópera, Iago explica a Otelo que se trata apenas de um sonho: ―Eu não narrei mais
do que um sonho‖
278
Otelo precipita-se a Iago, ao afirmar que se trata de: ―Um sonho que
revela um fato‖
279
, antes mesmo da apresentação do lencinho. Iago, por sua vez, apresenta que
o sonho pode apresentar outro indício: ―um sonho que pode dar forma de prova a um outro
indício. Nesse momento, Nola entra no prédio. Do lado de dentro do edifício, Chris observa
277
“Oh! mostruosa colpa!”
278
“Io non narrai che un sogno.”
279
Un sogno che rivela un fatto”
144
Nola. Ele aponta a arma para o vão da escada e, novamente, olha para o relógio, ressaltando o
aspecto do tempo controlado, da pontualidade, característica inglesa da eficiência e do
trabalho. A iluminação escura da cena permite que se observe o protagonista como uma
sombra negra. Portanto, a proximidade entre Otelo e Chris não se apenas pela música,
como também se faz presente na diegese por meio do aspecto sombrio, da culpa e do
desespero do protagonista.
Nesse ponto, no qual Chris aguarda Nola com a arma apontada para o vão da escada e
próxima à câmera, a música extra-diegética é cortada. Allen opta por não apresentar o
momento da ópera no qual Iago traz o ―indício‖ para Otelo, o lencinho de Desdêmona
280
. Ao
cortar este fragmento específico da ópera, o filme comenta Otelo, mostrando, conforme
argumentamos, que o mouro de Veneza não precisa do sonho de Cássio nem do lencinho de
Desdêmona, pois desde o começo da ópera, Otelo se considera como um intruso, um
bárbaro, imagem que lhe é atribuída pelos venezianos.
Semelhante movimento ocorre em Match Point: Chris reafirma a ordem patriarcal ao
cometer os assassinatos de Nola e da Sra. Eastby. O filme apresenta todos os passos do crime:
da trajetória de aliança do irlandês com as classes dominantes britânicas, à possibilidade ao
lado de Nola de saída do claustro e à execução da companheira. Durante a cena do
assassinato, Allen retira o momento do lenço e passa a repetir pequenos fragmentos da ópera.
Ouve-se a voz do tenor e do barítono e é possível identificar algumas palavras, tais como,
―culpa‖, ―amor‖ e ―suspiros‖. Reitera-se a indicação da morte do sujeito, tomado pela culpa.
Os ―suspiros‖ retomam a ópera de abertura O Elixir de Amor, na qual Nemorino suplica pelos
suspiros da amada.
No plano da imagem, Chris fica à espreita de Nola. O movimento é rotineiro: a
moradora sai do elevador e encaminha-se para o seu apartamento, sem perceber a presença de
Chris. Observa-se o protagonista segurar a espingarda e atirar contra Nola em direção à
câmera e também contra o espectador. um rápido corte, onde se observa Chloe em frente
280
O uso da ópera Otelo faz lembrar o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Em Dom Casmurro, a
ópera Otelo é uma pista para desmascarar o discurso de Bentinho. No plano narrativo, Otelo ajuda o narrador a
se convencer a cometer os crimes, em outro plano, Otelo é uma pista para desmascarar o narrador. É sabido que,
ao assistir a ópera Otelo, Bentinho decide que não ele, ―mas Capitu devia morrer‖. O patriarca brasileiro chega a
dizer que se Otelo foi capaz de estrangular a amada que era inocente por um simples lenço: ―(...) que faria o
público se ela deveras fosse culpada? Tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro
não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a , e
o seria lançado ao vento, como eterna extinção...‖ Ver Assis, Machado de. ―Dom Casmurro‖. In: Obras
completas vol.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p.935.
145
ao Palace Theatre à espera do marido para o musical. A ida ao teatro aparece também como
atividade cotidiana. Outros transeuntes passam em frente ao teatro.
A câmera retorna para o apartamento no subúrbio. O executivo sai pela entrada do
prédio, retirando as luvas. Chris esbarra em um transeunte e assusta-se com o encontro
fortuito. Na ópera, Otelo grita: ―Sangue, sangue, sangue‖. Mas, o cotidiano se restabelece, o
transeunte prossegue seu caminho e em frente ao teatro, Chloe telefona para o marido. Chris
encaminha-se para o encontro com a esposa de táxi. Pelo telefone, o protagonista comunica a
Chloe que está a caminho. Durante o percurso até o Palace Theatre, Chris chora e desespera-
se. A música extra-diegética acompanha a conversa entre o marido e a esposa, comentando-a.
Pode-se ouvir o dueto de Otelo e Iago: ―Pela morte e pelo mar obscuro destruidor!‖
281
A cena seguinte apresenta Chloe e Chris descendo as escadarias de mármore do teatro.
Nesse ponto, a ópera é interrompida. O protagonista deixa seu casaco e sua mochila de tênis
(onde está a arma do crime e os pertences da Sra. Eastby) na chapelaria do local. Na cena,
evidencia-se que o executivo e sua esposa são insuspeitos, frequentadores do teatro. Na
plateia, entre os outros espectadores, a câmera apresenta o olhar hipnotizado da herdeira para
a apresentação e os olhos marejados de grimas do protagonista semelhante a ―furtiva
lágrima‖ de Nemorino. Na análise sobre o uso da ópera no teatro, Brecht avisa, ―a música
mais ‗avançada‘ hoje em dia ainda é escrita para as salas de concerto. Um único olhar para o
público que frequenta os concertos é suficiente para mostrar como é impossível fazer qualquer
uso político ou filosófico da música que produz esses efeitos. Vemos fileiras inteiras de seres
humanos transportados para um estado peculiar de dopagem, totalmente passivo, afundados
como uma pedra, aparentemente sob o domínio de um envenenamento grave. O seu olhar
tenso, congelado mostra que essas pessoas são vítimas indefesas e involuntárias de suas
emoções incontroláveis e desenfreadas. Gotas de doces provam como tais excessos os
exaurem. O pior filme de gangster trata o seu público mais como seres pensantes. A música é
escalada para o papel do Destino. Como o destino extremamente complexo, totalmente não-
analisável desse período horrendo, da exploração mais deliberada do homem pelo homem.
Essa música não tem nada, mas apenas as ambições puramente culinárias. Ela seduz o ouvinte
em um enervante, porque improdutivo, ato de divertimento. Nenhum refinamento pode me
convencer de que a sua função social é diferente daquela dos burlescos da Broadway
282
.
281
Per la Morte e per l'oscuro mar sterminator!”
282
Brecht, 1977, p. 89.
146
A preferência dos Hewett pelo musical qualifica o gosto pela ópera enquanto
entretenimento. Conforme argumenta Brecht, ―a ópera é vendida como entretenimento
noturno e isso coloca limites definitivos para todas as tentativas de transformá-la. Vemos que
esse entretenimento tem que ser dedicado à ilusão, e deve ser de um tipo ceremonial‖
283
. Em
Match Point, o musical figura como um modo privilegiado para qualificar o showbusiness, no
qual prevalecem os efeitos especiais, o fetiche da tecnologia. Após o assassinato, Chloe e
Chris dirigem-se ao show de entretenimento noturno. Enquanto assistem hipnotizados à
apresentação, ouve-se o início da música diegética. No filme, a melodia é invadida e
interrompida pelas sirenes de polícia. Para o espectador, a referência a The Woman in White
relembra Nola, porque retoma o conflito do jovem professor e das mulheres de branco contra
a estrutura patriarcal, o casamento arranjado, a propriedade e a herança.
3.3 Arrivismo contemporâneo
―Também aqui o dinheiro é pré-condição; a sua falta de memória dá viabilidade ao putschismo social. Isto dirá
respeito às qualidades pessoais do arrivista: menos que desprezar inclinações em geral, saberá ajustar as suas ao
momento, para assim valorizá-las e ser homem com preferências úteis.‖
Roberto Schwarz, ―Dinheiro, memória, beleza (O pai Goriot)‖.
O espetáculo no Palace Theatre (local que combina apresentações de ópera e
musical), após o assassinato de Nola, mostra o protagonista inerte contemplando o show de
entretenimento ao lado da esposa. A mochila de tênis do executivo, deixada no guarda-
volumes do teatro, é insuspeita, pois pertence ao casal da alta sociedade.
A cena do assassinato retoma também o romance Crime e castigo, de Fiódor
Dostoievski. Conforme exposto no primeiro capítulo, a obra é consultada pelo tenista, que
prefere a coletânea de ensaios Cambridge Companion to Dostoievski à leitura do romance.
Assim, a literatura tem função definida para Chris e em certo sentido, ela pode ser comparada
ao papel que os salões da aristocracia exerceram para Julien Sorel em O Vermelho e o negro:
―Valem pelo prazer de citá-los depois que se sai deles‖
284
. O romance de Stendhal aponta
também para a ópera como um dos atributos necessários para Julien Sorel entrar para a alta
sociedade. O senhor de La Mole aconselha-o:
283
Ibid., p.41.
284
Stendhal [1783-1842]. O Vermelho e o negro trad. Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.332.
147
Mas tenho um favor a lhe pedir que só lhe custará uma pequena meia
hora de seu tempo: todas as noites de espetáculo, às onze e meia, assista no
vestíbulo à saída da alta sociedade. Ainda percebo no senhor modos da
província, é necessário livrar-se deles; aliás, não lhe faria mal conhecer, pelo
menos de vista, os grandes personagens junto aos quais posso algum dia
mandar-lhe em alguma missão. Apresente-se na bilheteria do teatro;
reservaram-lhe entradas.
285
O filme localiza esta função ao mostrar que a predileção de Chris por Dostoievski
desperta o interesse do patriarca Alec Hewett pelo futuro genro. Assim como o curso de
administração, a prática de tênis e de tiro, o gosto por ópera e por literatura compõem um
conjunto de habilidades, capacidades e destrezas úteis a determinados processos
econômicos‖
286
: elas são apresentadas no filme como investimentos fundamentais para o
arrivismo do protagonista. A trajetória de Chris, apresentada no filme, seria uma espécie de
arrivismo contemporâneo. Chris é selecionado, cooptado e incorporado pela lógica do
capitalismo financeiro, corporificada na família Hewett e em suas estruturas de poder.
Conforme demonstramos no capítulo I, o espírito do capitalismo contemporâneo aparece
cifrado na figura do empreendedor.
Segundo o Houaiss, em português, o adjetivo arrivista é considerado um galicismo
pelos puristas, que sugeriram em seu lugar: ―oportunista‖, ―aventureiro‖, ―ambicioso‖. O
arrivista é aquele que ―se determinou a triunfar a qualquer preço, mesmo em prejuízo de
outrem‖
287
. Na literatura, o arrivismo é um tema central que foi analisado amplamente. Uma
das formulações sobre o tema pode ser encontrada no ensaio de Roberto Schwarz sobre o
romance O Pai Goriot, de Balzac. Segundo Schwarz, o arrivista coloca-se a venda por inteiro,
ele ―vira mercadoria ele próprio. Estar vestido e disposto segundo a voga é questão de vida ou
morte; menciona-se um par de calças bem cortadas que teria valido ao dono um casamento
milionário. Quando faz suas, em consciência, as regras do sistema, o putschista inflige a si
mesmo, de golpe, as limitações e falsidades que os outros homens sofrem como lenta
imposição da vida. Vem daí a sua força romanesca; explicita o que acontece aos mais. Passa
de vítima a comparsa da violência social. Embora seja sinistra a sua adesão às forças
destruidoras do sistema adotá-las em sua crueldade para não sofrê-las existe algo de
285
Idem, p.296.
286
López-Ruiz, op.cit., p. 26-27.
287
Segundo o verbete do Houaiss Online. Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=arrivista&cod=22144>. Acesso em: 13 jun. 2010.
148
libertador no realismo dessa atitude, que não luta lutas vãs. Na prática do putschismo e na
consciência que ela implica aparece a verdade sobre as relações de poder e propriedade na
sociedade competitiva e antagônica‖
288
.
O filme estabelece relação com a temática do arrivismo, por meio da trajetória do
protagonista. A referência ao romance de Dostoievski no filme permite que comparemos a
trajetória de Raskólnikov e a de Chris. Os crimes cometidos por Chris assemelham-se aos de
Raskólnikov. Nesse sentido, retomaremos alguns excertos do romance russo que revelam o
diálogo estabelecido pelo filme entre Crime e castigo e Match Point.
Além da idade das vítimas e de serem mulheres, o crime é realizado de maneira
semelhante. O jovem estudante russo mata a velha usurária e a irmã caçula de Aliena
Ivánovna, Lisavieta, que ―já estava com trinta e cinco anos‖
289
. Raskólnikov entra ―sem ser
convidado‖
290
no apartamento de Aliena Ivánovna. A velha usurária recebe o penhor do
estudante e para conferir a autenticidade da cigarreira de prata ―por alguns segundos lhe deu
as costas‖
291
. Quando a velha irritada percebe tratar-se de uma armadilha, ela grita e caminha
em direção ao estudante. Nesse momento, Raskólnikov tira o machado por inteiro e ―mal se
dando conta de si, e quase sem fazer força, quase maquinalmente, baixou-o de costas na
cabeça dela‖
292
. O estudante arranca o cordão da senhora, a bolsa de camurça abarrotada, um
anelzinho e inicia o saque:
Lançou-se a revirar tudo. De fato, no meio da traparia haviam sido
colocados objetos de ouro provavelmente tudo penhores resgatados e não
resgatados -, pulseiras, correntes, brincos, alfinetes etc. Alguns estavam em
estojos, outros simplesmente embrulhados em papel de jornal, mas em folhas
duplas, com cuidado e zelo, e amarrados em círculo por cadarços. Sem
qualquer demora, ele passou a encher os bolsos da calça e do sobretudo, sem
examinar nem abrir os embrulhos e estojos; mas não teve tempo de pegar
muita coisa...‖
293
Desse modo, é possível apontar semelhanças no momento da execução do crime: não
a forma pela qual o assassino invade a casa da senhora; mas também a utilização de armas
rústicas (tanto a espingarda utilizada por Chris, como o machado de Raskólnikov foram
288
Schwarz, Roberto. ―Dinheiro, memória, beleza (O pai Goriot)‖. In: A Sereia e o desconfiado. Paz e Terra,
1981, p.181-182.
289
Dostoievski, Fiódor. Crime e castigo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001, p.79.
290
Ibid., p.90.
291
Ibid., p.91.
292
Ibid., p.91.
293
Ibid., p.93.
149
―emprestados‖); e a indicação de que se trata assassinos inexperientes; ou os objetos roubados
da vítima que serão guardados no bolso do criminoso (o anel, os colares e outras joias) e o
momento em que os assassinos são quase surpreendido pelos vizinhos e desesperam-se.
Todavia, há uma diferença fundamental entre os crimes: no caso russo, trata-se do assassinato
de uma velha usurária. Conforme afirma Raskólnikov, ―o segundo assassinato foi totalmente
inesperado‖
294
. A jovem Lisavieta é morta, tão somente porque surpreende o assassino. Por
sua vez, em Match Point, o assassinato da Sra. Eastby e o roubo de seus pertences servem
como armadilha aos policiais, o motivo do crime é a eliminação da jovem Nola Rice.
Raskólnikov compara o assassinato de Aliena Ivánovna às batalhas de Napoleão:
―Napoleão, as pirâmides, Waterloo e uma viúva de registrador, sórdida, descarnada, velha,
usurária, com o bauzinho vermelho debaixo da cama [...]‖
295
. Conforme explica Georg Lukács
no famoso ensaio sobre Dostoievski: ―Napoleão é o símbolo do bastonete de marechal,
daquele bastonete de marechal que se diz que cada pessoa de talento leva na mochila desde a
Revolução Francesa. Esse Napoleão é o símbolo das possibilidades ilimitadas que a
inteligência tem na sociedade democrática e, ao mesmo tempo, a verdadeira medida do caráter
democrático da sociedade‖
296
.
De acordo com Lukács, no caso de Raskólnikov, (...) o problema concreto para ele é
quase exclusivamente o problema psicológico-moral: a capacidade de Napoleão para ir em
direção a grandes objetivos, passando sobre corpos humanos capacidade que é comum, por
exemplo, a Napoleão e a Maomé. Desse ponto de vista psicológico, a ação em si torna-se
ainda mais contingente, constituindo mais um ponto de partida e não um fim efetivo ou meio
concreto. E eis que no centro movimenta-se de maneira decisiva a dialética psicológica e
moral pró e contra a ação; a grande prova de fogo é: existiria em Raskólnikov a capacidade de
transformar-se em Napoleão? Então a ação concreta transforma-se numa experiência cujo
ponto de referência é a participação completa do experimentador, uma experiência cujo
―ponto contingente‖ e ―objeto‖ contingente é a vida de uma outra pessoa.‖
297
Para Lukács, a
questão central do romance seria: ―Raskólnikov será capaz de suportar psicologicamente o
fato de haver ultrapassado os limites morais?‖
298
De acordo com Lukács, Dostoievski foi o
primeiro que ―fixou os sintomas da deformação psíquica que necessariamente surge no campo
294
Ibid,, p.94.
295
Ibid., p.284.
296
Lukács, Georg. ―Dostoievski‖. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1965, p.147.
297
Ibid, p.148.
298
Ibid, p.149.
150
social da vida na grande cidade moderna.‖
299
E nesse sentido, ele será de importância crucial
para Allen, cineasta que, ao longo de sua obra, tematiza a deformação psíquica dos indivíduos
na cidade grande.
O desespero de Chris na cena do assassinato mostra que a possibilidade de mudança,
de vida autêntica ao lado de Nola não é mais possível. O protagonista estará condenado ao
modo de vida dos Hewett. Trata-se novamente da reposição da ordem dominante. Na análise
de O pai Goriot, Schwarz lembra que ―a competição individualista exige também, para
continuar competição e individualista, que não deixem de existir vinculações irracionais e
particularistas i.é, nexos cuja substância está na exclusividade com relação aos outros e na
limitação quanto ao próprio eu. A irracionalidade do todo social antagônico, em que os
homens não aproveitam uns aos outros, mas uns dos outros, parece ter por correlato a
irracionalidade na esfera pessoal mais estrita; o eixo da experiência sea exclusividade, com
seu corolário de autolimitação e mutilação; paradigmas são a propriedade privada e o amor
burguês. A existência aparece como um agarramento monstruoso e irracional à vida, pois a
sua justificativa mais radical, dar e receber prazer, não lhe orienta o curso.‖
300
3.4 A espetacularização do assassinato
Diferentemente do estudante pobre Raskólnikov, que após o crime recebe uma
intimação policial por causa de uma ação de cobrança de dinheiro, o executivo da
transnacional vai para o musical com a herdeira. Do musical, Allen retorna para o conjunto de
prédios no subúrbio onde os policiais da Scotland Yard iniciam a investigação. No filme,
pode-se observar o comentário de Allen sobre a espetacularização do assassinato em
detrimento da investigação. A notícia da morte de Nola e da Sra. Eastby será analisada neste
trabalho como reflexo do que Susan Willis demonstra a partir da análise rigorosa do cotidiano
pós-11 de setembro: ―Cegos diante da história e sufocados pelo entretenimento, estamos
condenados a ler evidências como mero espetáculo.‖
301
Logo na primeira cena após o encontro do casal no Palace Theatre, observa-se a
entrada do edifício de Nola que está fechada por policiais. No interior do apartamento da Sra.
Eastby, um fotógrafo registra a ocorrência. Entre os policiais, a resolução do crime parece
299
Ibid, p.155.
300
Schwarz, 1981, p.184-185.
301
Willis, Susan. Evidências do real: os Estados Unidos pós-11 de setembro. São Paulo: Boitempo, 2008, p.104.
151
estar concluída. O motivo do assassinato estaria relacionado a drogas e tratar-se-ia de uma
cena corriqueira, uma fatalidade:
[Policial]: ―É uma cena terrível, senhor.‖
[Detetive]: ―O que aconteceu é bastante óbvio. Alguém roubou e
matou a senhora. Quando eles estavam fugindo, encontraram a senhorita
Rice. Então, atiraram nela também por pânico ou porque viram uma chance
de roubar alguma coisa a mais. Pobre alma inocente chegou em casa na hora
errada.‖
[Policial]: ―Eles roubaram os remédios com receita‖.
[Detetive]: ―Ah, é definitivamente um roubo relacionado às drogas.
Eles deviam saber que uma senhora morava no apartamento oito e
provavelmente foram surpreendidos pela chegada da outra mulher.‖
[Policial]: ―Ela escolheu a hora errada para voltar para casa.
Algumas pessoas não têm nenhuma sorte.‖
Por um lado, os policiais caem na armadilha preparada pelo assassino: o roubo dos
remédios e das joias pode ser interpretado como uma espécie de ―elixir‖, vendido pelo
charlatão Dulcamara, ou como o lencinho, utilizado por Iago para que Otelo acreditasse na
―traição‖ de Desdêmona. Por outro, pode-se observar que a conclusão do detetive de que se
trata de um crime ―óbvio‖ relacionado a drogas reitera o aspecto inconteste, de um crime
comum. Ao narrarem o crime, os policiais apresentam um destino comum para Nola e a Sra.
Eastby. Trata-se de uma história característica dos moradores do subúrbio londrino. O policial
destaca que ―algumas pessoas não têm nenhuma sorte‖, em especial, as que residem em
bairros como este. A tragédia deixa de ser individual e adquire aspecto corriqueiro, geral: ―a
tragédia que ocorre a toda hora e a cada minuto‖
302
em Londres, fora dos filmes.
No lado externo do conjunto de prédios, a testemunha (Ian, o vizinho) é interrogada
pelo inspetor de polícia Dowd [Ewen Bremmer]. Pode-se observar o comentário irônico de
Allen a respeito da Scotland Yard, considerada como uma das melhores equipes policiais do
mundo. Segundo o site da polícia londrina, ―um dos princípios chave da polícia moderna no
Reino Unido é que a polícia procura trabalhar com a comunidade e como parte da
comunidade‖
303
. O cenário retratado pelo filme é bastante diverso da versão oficial da
polícia
304
. Vê-se a falta de interesse do inspetor em ouvir o relato da testemunha. O homem
negro é reiteradamente interrompido pelos policiais:
302
Eisenstein, op.cit., p.103.
303
Disponível em: <http://www.met.police.uk/history/definition.htm>. Acesso em: 13 mar.2010.
304
Filmado em 2004 e lançado em 2005, Allen não poderia prever o assassinato do brasileiro Jean Charles de
Menezes, morto a tiros no metrô londrino por policiais da Scotland Yard, em julho de 2005. No entanto, o filme
152
[Testemunha]: ―Eu acabei de falar com ela, isso é inacreditável.
meia hora atrás, eu desci as escadas, bati na porta da Sra. Eastby, porque...‖
[Funcionário da polícia]: ―Precisa de algo que esteja no carro?‖
[Inspetor de polícia]: ―Sim, apresse a perícia para que isso ande logo,
porque isso aqui já está ficando ridículo.‖
[Testemunha]: ―Isso é muito importante. Ela normalmente faz pães
neste horário e eu achei que ela poderia querer alguma coisa que estivesse
faltando. Então, eu perguntei a ela se precisava de algo e depois...‖
[Inspetor]: ―Então, você falou com ela há meia hora atrás?‖
[Testemunha]: ―Sim, há meia hora.‖
[Inspetor]: ―Então, ele ainda estava lá dentro.‖
[Testemunha]: ―Isso é terrível, inacreditável.‖
[Inspetor]: ―Você falou com a Nola Rice e ela lhe disse alguma
coisa?‖
[Fotógrafo]: ―Podemos deixar os fotógrafos entrarem agora, por
favor?‖
[Inspetor]: ―Não esperem um pouco. A gente precisa que a perícia
entre lá primeiro.‖
O inspetor Dowd tenta impedir a entrada do fotógrafo. Ele ordena a um funcionário,
que atende pelo mesmo nome do protagonista, que acompanhe o fotógrafo: ―Chris, você pode
falar com esse homem aqui? Espere. Espere. Fale com ele ali.‖ No entanto, mesmo sem a
autorização do inspetor de polícia, o fotógrafo entra no local. Dowd determina que outro
policial encontre o fotógrafo do lado de dentro do edifício. Após a discussão entre os
policiais, a testemunha tenta retomar o seu relato: ―Eu encontrei com a Nola aqui na frente do
prédio.‖ Ian é novamente interrompido por um policial: ―A equipe de perícia está chegando,
ok?‖ A reiteração das interrupções para com o homem negro revela o racismo entre os
policiais. Se fosse branco e morasse em outro local, provavelmente, ele seria ouvido.
Para os policiais, os crimes são previsíveis e por isso eles querem ―apressar‖ a
investigação. O inspetor considera que a situação ―já está ficando ridícula‖, como se não
houvesse mais espaço para nenhuma verificação. Assim, ao relacionar a operação policial
com a entrada da mídia na cena do crime, o filme revela que a urgência dos policiais deve-se
às necessidades dos meios de comunicação em massa. Os assassinatos precisam ser
captura um aspecto crucial do sistema londrino ao mostrar o preconceito racial entre os policiais para com o
homem negro. No assassinato de Jean Charles, que por ser estrangeiro foi confundido com um terrorista, ficou
claro que a Scotland Yard cometeu uma série de erros injustificáveis. Todavia, assim como Nola e a Sra. Eastby,
em assassinatos de pessoas pobres assim como Jean Charles, ou os irlandeses que foram mortos no que ficou
conhecido como Bloody Sunday, não condenação dos criminosos. No julgamento dos policiais pela morte do
brasileiro, os advogados da polícia argumentaram que ―a família do eletricista Jean Charles por ser muito pobre
irá receber uma compensação financeira reduzida‖ Disponível em: <http://www.dailymail.co.uk/news/article-
1230067/Jean-Charles-Menezes-Family-Brazilian-shot-dead-tube-just-fraction-400k-pay-blundering-Met-boss-
Blair.html>. Acesso em: 13 mar.2010.
153
rapidamente elucidados para que o jornal possa sair, com fotos, no dia seguinte. A
aproximação entre a polícia e a mídia na resolução dos crimes foi analisada por Debord: ―Os
boatos da mídia e da polícia adquirem de imediato, ou, na pior hipótese, depois de terem sido
repetidos três ou quatro vezes, o peso indiscutível de provas históricas seculares‖
305
. O
inspetor e a testemunha concentram-se nos aspectos banais:
[Testemunha Ian]: ―Eu encontrei com ela aqui, a gente conversou,
batemos papo, eu recomendei um aparelho eletrônico de música.‖
[Inspetor de polícia]: ―Que tipo de equipamento de música?‖
[Testemunha Ian]: ―Apenas um cd player portátil.‖
Desta vez, o depoimento de Ian é cortado pelo detetive que estava no local do crime.
Parry repete a sentença proferida no apartamento da Sra. Eastby: ―Alguém que queria
dinheiro para comprar drogas.‖ A testemunha tenta avisar aos policiais: ―A Sra. Eastby não
era rica‖, o que retoma a ideia de que os moradores do prédio provêm das classes baixas. Ian
tenta analisar os eventos no que eles ―são diferentes de tudo o que ocorreu até o presente‖
306
.
Contudo, o detetive branco desconsidera a informação apresentada pelo homem negro:
[Detetive Parry]: ―Eles não se importam. É definitivamente um caso
de drogas, alguém atrás de dinheiro para comprá-las. Eles lhe matariam por
uma libra, se quisessem.‖
[Testemunha Ian]: ―É uma situação triste.‖
[Detetive Parry]: ―Parece que a senhora não tinha inimigos, ela
raramente saía... Ele usou uma espingarda.‖
[Testemunha Ian]: ―Uma espingarda? Não é óbvio que alguém deve
ter visto alguma coisa?‖
[Inspetor Dowd]: ―Não se a arma tiver sido cerrada. Eles podem
fazê-las bem pequenas.‖
A indicação de que se trata de uma arma de caça chama a atenção do vizinho, mas os
policiais não consideram atípico o uso da espingarda. O barulho de outra sirene interrompe a
conversa. Os transeuntes e outros moradores do prédio observam o local como se fosse um
espetáculo. O inspetor de polícia pede para que a motorista do veículo não estacione no local,
pois ―A SOCO [Scenes of Crime Officer] está chegando‖. Em detrimento do depoimento da
única testemunha do crime, o inspetor de polícia tenta apressar a chegada da perícia policial
305
Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997,
p.210.
306
Debord, op.cit., p. 216-217.
154
para que possa liberar o local do crime para a entrada da imprensa. na interpretação do
crime feita pelos policiais uma certa parte de verdade, tendo em vista que o local é
cotidianamente alvo de ladrões e ratos, no entanto, conforme lembra Debord a respeito da
sociedade do espetáculo, esta verdade é ―deliberadamente manipulada por um hábil
inimigo‖
307
.
A espetacularização do assassinato pode ser observada também durante a recepção da
notícia da morte de Nola transmitida pelos jornais à família Hewett. No Parliament View,
local que não é alvo de ladrões nem de ratos, Chloe toma café da manhã despreocupadamente
com o jornal ao lado. Ela recorda-se do ―musical da noite passada‖ e pergunta ao marido se
ele gostou da apresentação. Ao lado de Chloe, Chris não aparenta culpa, ele sai do banho e
responde tranquilamente à esposa que ―divertiu-se muito, a música era linda.‖ Dona de uma
galeria de arte e frequentadora de shows de entretenimento, Chloe avalia que ―o cantor do
musical é muito bom, vou comprar ingressos para mamãe e papai‖, outro indício da
preferência dos Hewetts pelo showbusiness.
O entretenimento de massas permanece na cena: depois da conversa sobre o musical
com o marido, a jovem herdeira as notícias de jornal. No entanto, desta vez, ela não
comentará a descoberta de um novo planeta, ou o terremoto na China; a notícia de jornal
relaciona-se à sua família: ―Oh, meu Deus! Nola! Nola Rice! Ela foi morta em um roubo, um
roubo ligado a drogas.‖
Enquanto Chloe surpreende-se com a notícia, a câmera permanece observando Chris
que enxuga o corpo com uma toalha na sacada de seu quarto. Nesse ponto, o protagonista é
vítima do olhar escopofílico, ao lado de Chloe, Chris permanece como objeto sexual, um
tenista dotado de uma ―energia incrível‖, dono de um ―saque poderoso‖, características
importantes para o ―projeto de fertilização‖, a concepção do herdeiro monitorada pela família
Hewett e por uma equipe médica.
A imagem do protagonista como objeto sexual contrasta com a figura desprovida de
erotismo da esposa, que está vestida de roupão. O protagonista, portanto, é tanto objeto
erótico para Chloe quanto para o espectador numa interação entre essas duas séries de olhares.
Segundo Laura Mulvey, ―A magia do estilo de Hollywood, em seus melhores exemplos (e de
todo o cinema que se fez dentro de sua esfera de influência) resultou, não exclusivamente,
mas num aspecto importante, da manipulação habilidosa e satisfatória do prazer visual.
307
Ibid, p.202.
155
Incontestado, o cinema dominante codificou o erótico dentro da linguagem da ordem
patriarcal dominante‖
308
. De acordo com Mulvey, Sigmund Freud ―associou a escopofilia com
o ato de tomar as outras pessoas como objetos, sujeitando-as a um olhar fixo, curioso e
controlador.‖
309
Neste ponto do filme, este é precisamente o papel de Chloe que controla os
hábitos e a vida do protagonista. Em Match Point, o olhar escopofílico relaciona-se à ordem
patriarcal dominante.
Enquanto Chris conversa com a esposa sobre o musical, observamos ao lado do
protagonista, na parede do quarto do casal, um quadro no qual é retratado o rosto de uma
senhora (Figura 12). Diferentemente de Chris, que está de toalhas, a pintura do rosto de uma
figura feminina envelhecida ―não pretende provocar qualquer tipo de excitação‖
310
. A tela
assemelha-se a série de retratos que Lucian Freud neto de Sigmund fez de sua mãe
311
.
Conforme argumenta Sebastian Smee, as pinturas de Freud apresentam uma concentração
nos rostos das pessoas que ele conhece; descrições de cabeças em grande plano,
frequentemente com uma expressão de olhos entristecida‖
312
. No filme, a pintura que retrata o
rosto de uma pessoa idosa de olhos fechados e tristes trazem à memória do espectador a
imagem da Sra. Eastby. Sem olhar para a pintura, mas atento a notícia dos assassinatos, o
protagonista desce as escadas do apartamento:
[Chris Wilton]: ―O que? Deixe-me ver isto. Jesus Cristo!‖
[Chloe Hewett]: ―Aparentemente, ela estava chegando em casa
depois do trabalho e alguém que já estava que havia assaltado um outro
apartamento e matado uma senhora encontrou a Nola por acaso, enquanto
ela estava entrando no prédio, ele estava fugindo e atirou nela.‖
[Chris Wilton]: ―Oh, meu Deus!‖
A explicação para o assassinato de Nola é construída por meio do infortúnio. O acaso
serve para os policiais, para o jornal e para a família Hewett como justificativa para os crimes.
Segundo Brecht, são ―os metafísicos da imprensa [...] que querem ver o ‗elemento do destino‘
enfatizado em todas as relações interpessoais. O destino, que (outrora) costumava estar entre
os grandes conceitos, há muito se tornou vulgar, onde a desejada ‗transfiguração‘ e
308
Mulvey, op.cit., p.440.
309
Ibid., p.440.
310
Smee, Sebastian. Lucian Freud.trad. Isabel Falcão (Vernáculo Ltda., Lisboa). Taschen: 2008, p.55.
311
―Entre 1974 e 1976, Freud fez uma série de retratos de cabeças que parecem inovadoras. Não envolvem
nenhuma inovação formal em particular, mas de fato, sugerem uma certa desconsideração pelas convenções da
arte retratista e um grau de envolvimento que é impertinentemente desinquietante‖. Ver: Smee, op.cit., p.50.
312
Ibid., p.14.
156
‗esclarecimento‘ são conseguidas por meio da reconciliação com as circunstâncias
essencialmente uma guerra de classe, onde uma classe conserta o destino da outra. Como
sempre, as demandas dos metafísicos não são difíceis de cumprir. É simples imaginar tudo o
que eles rejeitam apresentado de tal forma que eles aceitariam com entusiasmo‖
313
.
O espectador pode observar que até mesmo o criminoso surpreende-se com a notícia
de sua absolvição. A mentira por ser socialmente condicionada fora aceita rapidamente
pela polícia e divulgada pelo jornal. A leitura da notícia feita por Chris, ao lado da herdeira, é
oposta a leitura dos jornais feita pelo estudante Raskólnikov em uma taberna: ―Ao folhear as
páginas suas mãos tremiam de uma impaciência convulsiva.‖
314
Diferentemente de
Raskólnikov, Chris não será condenado, conquanto permaneça ao lado dos Hewett. Desse
modo, observa-se que a verdade sobre o crime permanecerá em segredo.
O telefone da residência do casal Hewett Wilton toca. Chloe levanta-se da mesa do
café da manhã para atendê-lo, deixando Chris com o jornal. Os quadros dispostos no
apartamento no Parliament View de Chloe e Chris assemelham-se aos expostos na galeria de
arte da jovem Hewett. Os quadros que decoram a residência, as pinturas em cores vivas da
paisagem tradicional londrina
315
, da artista Lucy Jones, são os mesmos que estavam no
depósito da galeria. Chloe é uma colecionadora de arte contemporânea, característica que ―é
vista como progressista e avançada‖
316
no mundo-corporação.
No filme, a herdeira dirige-se ao telefone da residência, passando pelos quadros de
Jones. No local onde está o aparelho, observa-se uma tela grande, o retrato de um homem
negro. Para o espectador, o retrato lembra o vizinho das vítimas, Ian, a testemunha do crime
cujo depoimento fora desprezado pela polícia. A pintura é semelhante a do rosto da senhora e
pode ser atribuída também a Lucian Freud. Os olhos do homem negro estão fechados e
abatidos (Figura 13), assim como os da senhora branca. O rosto humano, desta vez, parece
desgastado pelo trabalho. Para Smee, os retratos de Freud ―(...) engrenam na intensidade, em
parte por intermédio de uma fidelidade esmerada e uniforme para o detalhe. Por outro,
interessa-se cada vez mais pela presença tridimensional dos seus modelos e, em particular, nas
313
Brecht, 1977, op.cit., p.49.
314
Dostoiévski, op.cit., p.173.
315
Conforme argumenta, Chin-tao Wu sobre as pinturas que retratam a paisagem tradicional de Londres:
―durante séculos foi política de muitos bancos britânicos, ainda que esporádica, colecionar retratos de seus
presidentes ou membros da diretoria, ou encomendar prata ou outros metais preciosos para comemorar eventos
específicos. Mesmo quando incidentalmente se aventuravam nas paisagens, seus gostos eram muito confinados
aos de uma era anterior ou, por exemplo, às vistas tradicionais do Tâmisa ou da Catedral de St. Paul‖. Ver: Chin-
tao Wu, op.cit., p.240-251.
316
Ibid., p.278.
157
idiossincrasias volumétricas, como pele flácida, estrutura óssea, musculatura, bolsas de
gordura, covinhas, gorduras que reflitam a luz, cicatrizes de varicela e outras marcas. Quer
levar-nos para mais perto de todas estas coisas. Até a organização das suas imagens aponta
para isso: as cabeças surgem de modo a que preencham a tela, são introduzidos ângulos
estranhos, e as barreiras protetoras entre o tema e o espectador são retiradas.‖
317
Nos trabalhos
de Freud a História aparece retratada nos corpos humanos, característica que pode ser
observada também no filme de Allen.
Enquanto Chloe fala ao telefone assustada com a notícia da morte de Nola, -se a
pintura do homem negro de olhos fechados e com o rosto pálido e alguns porta-retratos com
as fotos do casal feliz, durante a cerimônia de casamento. Entre os objetos de decoração da
residência, pode-se observar também o busto de uma escultura feminina, alguns livros e
luminárias sobre o armário. Os objetos de decoração, em especial os porta-retratos do casal
Hewett Wilton, contrastam com a notícia da morte de Nola.
No filme, as pinturas de Lucian Freud na residência da herdeira por um lado
comentam a ação e por outro mostram o investimento
318
de Chloe. Freud é considerado o
―recorde de obra mais cara de um artista vivo‖
319
. Conforme argumenta Chin-tao Wu, o
investimento nas artes proporciona ―status e honraria social que nenhuma outra forma de
projeto ―filantrópico‖ corporativo tem condições de oferecer‖
320
. A cena em que são
apresentados os quadros de Freud no Parliament View corrobora a ideia, apresentada por Wu
de que ―as melhores peças, ou melhor, as mais caras devem ser expostas no ambiente
imediato, na sala ou na residência do presidente da empresa e de seus principais
executivos‖
321
. De acordo com Wu, as compras de arte, feitas por empresas corporativas e
seus familiares, tem ―os olhos voltados para a especulação, é razoável supor que as agências
financeiras não perderam de vista o crescimento sem precedentes e às vezes errático dos
preços da arte. [...] Mas isso não quer dizer que as taxas de retorno sobre os investimentos em
arte sejam tão uniformemente altas que as agências financeiras estejam comprando arte
apenas como investimento. Na verdade, a taxa de retorno sobre a arte oscila conforme um
conjunto de variáveis, como a reputação do artista ou o ano da venda‖
322
. Nesse sentido, a
317
Smee, op.cit., p.23-24.
318
Freud foi considerado por Robert Hughes como o ―maior pintor realista vivo‖. Ver Smee, op.cit., p.31.
319
Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/artanddesign/2008/jul/01/art2>. Acesso em: 13 mar.2010.
320
Chin-tao Wu, op.cit., p. 220.
321
Ibid., p.253.
322
Ibid., p.258-259
158
compra das pinturas de Freud dispostas na residência do casal permite entender que ―há uma
alta correlação entre o mercado de arte e o de ações [...] e os lucros resultantes da venda de
pinturas competem com os oferecidos pelo mercado de ações‖
323
. Dispostas na residência de
Chloe e Chris, as pinturas de Freud remetem às vítimas do sistema. Os olhos fechados
recuperam a ideia da cegueira contemporânea, dos sujeitos condenados a ler evidências
como mero espetáculo.‖
324
No filme, um breve corte para a cozinha da residência londrina da matriarca. Tanto
na casa de Chloe quanto na de Eleanor o chá, as frutas e o jornal compõem o cenário, o
quadro matutino da família Hewett. Ao receber a ligação do irmão, Chloe aproxima-se das
pinturas da paisagem londrina de Lucy Jones
325
(Figura 14). O ambiente corporativo volta à
cena quando um novo corte para o escritório de Tom onde o jovem herdeiro o jornal
enquanto toma café:
[Eleanor Hewett]: ―Eu nunca me dei bem com ela, mas isso é
simplesmente trágico. É trágico.‖
[Chloe Hewett]: ―E o Tom sabe?‖
[Eleanor Hewett]: ―Eu acabei de avisá-lo, ele não acredita.‖
[Chloe Hewett]: ―Espere, espere, deve ser ele, eu ligo depois.‖
[Chloe Hewett]: ―Alô? Sim, nós acabamos de ler no jornal e a
mamãe ligou.‖
[Tom Hewett]: ―Eu sei. Lugar errado na hora errada. Eu acho que ela
deve ter atrapalhado o ladrão ou os ladrões. Não dizem quantos eram.‖
[Chloe Hewett]: ―A a mamãe está abalada e você sabe que elas
nunca foram exatamente amigas.‖
A conversa, feita pelo telefone, entre os irmãos Hewett e a matriarca em torno da
notícia da morte da ex-noiva de Tom é avaliada como tragédia por Eleanor e azar pelo ex-
noivo. No jornal, não fora mencionada a relação entre o jovem empresário britânico e a atriz
norte-americana. Na estruturação do filme, a cena é importante, pois revela a ideia insidiosa
323
Ibid., p.259.
324
Willis, Susan. op.cit., p.104.
325
Nesse ponto, podemos apontar a diferença, que pode ser percebida no filme, entre a paisagem tradicional
londrina, retratada por Jones, e os retratos de figuras humanas, característicos de Freud. Tanto Freud quanto
Jones podem ser considerados como ―artistas figurativos‖, ou seja, pintores que, dependendo da cotação no
mercado das artes, poderiam receber investimentos corporativos. No entanto, a obra de Freud ―é resistente a uma
categorização. A sua abordagem não é facilmente classificada como um ―estilo‖ ou um ―método‖. Ver: Smee,
op.cit., p. 91. Segundo Smee, ―que outros artistas produziram imagens como esta? Não havia ninguém. Havia um
trajeto prevalecente para a abstração nos dois lados do Atlântico. Mesmo os artistas figurativos estavam
preocupados com o expressivo potencial de formas semi-abstratas, distorção e várias liberdades pictóricas.
Nestes anos, e em termos de abordagem, os primos mais próximos de Freud deverão ter sido os pintores
holandeses, como Van Eyck e Robert Campin.‖ Ver: Smee, op.cit., p.24.
159
do assassino narrar a notícia do crime para a família: ―Eles falam aqui que houve um aumento
dos crimes relacionados a drogas na região durante o último ano‖.
O argumento da imprensa e dos policiais baseia-se em um fato social, o bairro
violento, confirmado por pesquisas estatísticas. É importante ressaltar que o protagonista é um
―criminoso inexperiente‖. Chris planejou a armadilha, o assassinato da Sra. Eastby, mas não
imaginou que ela seria aceita tão rapidamente. Ao incluir o crime no subúrbio nas páginas
policiais do jornal, avaliado por pesquisas empíricas, o filme expande e generaliza o destino
do caso particular de Nola e da Sra. Eastby, que se torna uma genuína tragédia uma história
característica dos moradores do subúrbio. Ao passo que a família de proprietários ingleses
impressiona-se com o aumento da violência e dos problemas relacionados às drogas na
cidade, o criminoso, protegido no Parliament View, olha para a sua insuspeita mochila de
tênis onde a espingarda da família, as joias e os remédios da vítima permanecem.
Além do Parliament View, a ―rede de proteção‖ ao protagonista alheia aos desígnios
do protagonista, uma ―engrenagem social‖, conforme o próprio Chris descrevera ao amigo
Henry pode ser vista também na casa de campo dos Hewett. Na biblioteca ancestral que
fora palco da eliminação de Nola comandada pela matriarca , Eleanor
despreocupadamente uma revista. Chloe aproxima-se da matriarca: ―Mamãe, tenho uma coisa
para lhe contar, mas eu quero que o Chris esteja aqui.‖
No porão da casa de campo, o espectador observa o protagonista guardando a
espingarda da família. Chris retira os pertences da Sra. Eastby da mochila de tênis e esconde
os remédios e as joias nos bolsos da calça. Nesse ponto, podemos retomar o aproveitamento,
feito pelo filme, do romance Crime e castigo. Destaca-se a diferença entre a tranquilidade de
Chris e o enlouquecimento de Raskólnikov:
Súbito lembrou-se de que a carteira e os objetos que havia tirado do
bauzinho da velha ainda continuavam todos espalhados pelos seus bolsos!
Até então não lhe ocorrera tirá-los e escondê-los! Não se lembrara deles nem
agora enquanto revistava a roupa! O que está acontecendo?
326
.
Após devolver a arma da família, o protagonista de Match Point retorna à biblioteca.
Chris caminha em direção à câmera, sorri e abraça a esposa. Chloe revela as boas novas à
matriarca: ―Mamãe, você pode finalmente estourar o champanhe, estou grávida.‖ Indicada
pela matriarca, a concepção do herdeiro, segunda condição para a completa aceitação do
326
Dostoiévski, op.cit., p.103-104.
160
tenista irlandês pela família é alcançada. Eleanor agradece ao genro: ―Eu não poderia estar
mais grata.‖
A investigação sobre o assassinato de Nola e a Sra. Eastby interrompe a comemoração
em família. De forma cortês, e sem levantar suspeitas, a governanta da casa avisa que
Samantha, a secretária de Chris, está ao telefone. O ambiente corporativo retorna à cena. O
filme volta para o Swiss Re, aliando as conquistas da família às decisões financeiras.
Samantha informa ao patrão que o detetive Mike Banner deixou um recado e pediu para que
Chris ligasse na delegacia: ―Não creio que seja urgente, mas ele deixou um telefone para
contato‖. No Englefield Estate, Chris anota o telefone do detetive, ao passo que Alec, Eleanor
e Chloe comemoram a chegada do herdeiro:
[Eleanor]: ―Querida, eu aposto que foi naquela noite...‖
[Chloe]: ―Olha só, isso é chantagem.‖
[Eleanor]: ―Na última vez que você foi lá, ele disse que estava tudo
bem, não é?‖
[Chloe]: ―Sim. Ele me deixou completamente calma...‖
[Eleanor]: ―Não acredito.‖
[Chloe]: ―Ele parece estranho, deve ter algo errado... A vovó ficaria
tão feliz...
[Eleanor]: ―Medicina alternativa... Ela amaria...‖
[Chloe]: ―Eu gostaria que ela estivesse aqui.‖
Após anotar o telefone do detetive, Chris junta-se à comemoração. Tom e Heather
aproximam-se, o jovem Hewett cumprimenta o cunhado: ―Graças a Deus, graças a Deus.
Parabéns!‖
Nos jardins da casa de campo, Chris caminha em direção à câmera ao passo que
telefona para o detetive: ―Aqui é o Chris Wilton. Você me ligou?‖. Allen corta para a
delegacia de polícia, onde o detetive pede para que o protagonista compareça à polícia. Chris
pergunta do que se trata, mas o detetive prefere não falar pelo telefone: ―São apenas algumas
perguntas e tenho certeza de que você preferirá que sejamos discretos.‖ O detetive, portanto,
conhece a família, sabe da importância da Swiss Re para a cidade e por isso oferece discrição.
A polidez para com o executivo é oposta ao tratamento oferecido ao homem negro pela
Scotland Yard. Na casa de campo, Chris pergunta se ele precisará levar um advogado. O
detetive Banner [James Nesbitt] afirma que espera que não seja necessário.
Em seguida à comemoração na casa de campo pela chegada do herdeiro, Allen corta
para a imagem de uma ponte, a famosa Queen’s Walk frequentada por turistas para o acesso
ao London Eye. À esquerda de Chris, podemos observar o símbolo do movimento anarquista.
161
Trata-se da imagem desgastada de uma pichação, inscrita em um dos blocos de sustentação da
ponte. Outra indicação de arte de rua pode ser vista ao lado do símbolo anarquista. uma
menina soltando um balão vermelho em formato de coração (Figura 15). O trabalho pode ser
atribuído ao famoso grafiteiro inglês Bansky
327
. A referência ao movimento de resistência
corrobora a introdução da música extra-diegética que acompanha a cena, a ópera Macbeth, de
Verdi:
[Macduff]: ―Ó Filhos, meus filhos! daquele tirano
Vocês foram todos mortos, e junto com vocês
A mãe infeliz!...
Ah, nas garras
Daquele tigre em que eu os deixei, a mãe e os filhos?
Ah, a mão paterna...‖
328
A ária ―O figli, o figli miei‖, retirada do quarto ato e cantada por Caruso, apresenta as
queixas de Macduff contra o reino de terror, instaurado na Escócia por Macbeth. Na ópera,
Caruso canta pelos filhos e pela mãe infeliz, mortos por Macbeth: Ah, la paterna mano...” A
respeito da peça shakespeareana, Alan Sinfield traz uma importante reflexão sobre a
―incapacidade de produzir herdeiros‖ que acomete Lady Macbeth e Macbeth. A partir da
análise de Freud sobre Macbeth, Sinfield lembra que para Freud, ―a esterilidade está por trás
de tudo. Ele ressalta que a rainha Elizabeth foi obrigada a reconhecer James VI da Escócia
como seu herdeiro porque ela, assim como Lady Macbeth, não gerou herdeiros diretos, e que
James era o filho de Mary Stuart, cuja execução foi ordenada por Elizabeth. [...] Conforme
Freud reflete, a incapacidade de gerar a prole poderia explicar a eventual transformação de
Macbeth em um tirano sedento por sangue‖
329
. Neste ponto, a utilização da ópera no filme,
cuja entrada é feita logo após a cena em que Chloe e Chris anunciam à família a chegada do
herdeiro, aproxima Chris de Macbeth e Chloe de Lady Macbeth. Vale lembrar que apenas
327
O britânico Bansky é considerado o grafiteiro mais famoso do mundo. Em 2009, houve uma exposição de
seus trabalhos no Bristol City Museum que causou muita polêmica. O stencil, retratado em Match Point, é
conhecido como ―garota-com-o-balão-de-coração graff-pic‖. Os grafites de Bansky são conhecidos por
retratarem ―a atmosfera de negligência e decadência social, que por sua vez estimula o crime [...] O trabalho de
Bansky, assim como todos os grafites bons, aos indivíduos e aos coletivos uma identidade em face à cultura
consumista e homogeneizante. Ele reivindica os espaços ocupados pelas grandes corporações. [...] Em resumo, é
sobre uma luta.‖ Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2007/apr/24/stayingunderground>.
Acesso em: 13 mar. 2010.
328
O figli, o figli miei! da quel tiranno
Tutti uccisi voi foste, e insieme con voi
La madre sventurata!... Ah, fra gli artigli
Di quel tigre io lasciai la madre e i figli?
Ah, la paterna mano...”
329
Sinfield, op.cit., p.55.
162
depois do ―projeto de fertilização‖ e da execução de Nola e da Sra. Eastby que o filho foi
concebido. Conforme argumenta Sinfield, ―o personagem Macbeth não é uma misteriosa
essência natural. Ao contrário, ele está situado no cruzamento entre discursos e forças
históricas que estão em competindo, poderíamos dizer, para completar a sua subjetividade. No
começo, ele está representando a história dominante matando traidores para o regime
atual.‖
330
Desse modo, ao incluir a ópera Macbeth, o filme estabelece a comparação entre a
história do personagem shakespeareano e a trajetória de Chris que, assim como Macbeth,
comete os crimes restabelecendo a ordem dominante.
No entanto, na ópera, a ária é interrompida pela chegada do exército de libertação
comandado por Malcolm
331
. Para Kobbé, neste ponto da ópera, ―a força que aqui se opõe à
tirania de Macbeth não é apenas a retaliação, mas outra menos trágica e mais circunstancial: o
patriotismo, subjacente por todo o tempo e personificado em Macduff, Banquo, no coro e,
naturalmente, na figura menos destacada de Malcolm‖
332
. Por se tratar de um irlandês, que
atravessou o rio para chegar a Londres, e que joga a aliança no rio Tâmisa, poder-se-ia pensar
que assim como Macduff, Banquo e Malcolm, Chris estaria arremessando a aliança à revelia
da família Hewett, em um ato de resistência contra os representantes do império britânico.
Todavia, a ironia da cena está em apresentar o irlandês, ao som da ópera sobre o levante
escocês, livrando-se das provas do crime em nome do império. A cena pode ser entendida
também como um comentário de Allen sobre a ópera, no qual o levante comandado por
Malcolm não traz a liberdade do povo escocês, mas reinstala a ordem. Conforme argumenta
Sinfield, ―Macbeth não pode ser coroado como um monarca de fato porque isso faria
problemática a sua derrubada. A ideologia jamesiana assegurava que nenhum governante
estabelecido deve ser contestado; e por respeito a isso, faz-se acreditar que Macbeth
dificilmente tornar-serei guerreiros importantes não juram fidelidade em sua coroação e
sua tentativa de realizar um banquete de estado é um fiasco; sua remoção ocorre em uma fase
de incerteza e instabilidade geral‖
333
.
Em Match Point, o protagonista dirige-se ao rio Tâmisa no intuito de livrar-se das
provas do crime, por isso arremessa os pertences da Sra. Eastby no rio. Revirando os bolsos,
olha para a câmera e atira o restante dos objetos da vítima ao rio. Nesse momento, a copa das
330
Ibid, p.63.
331
Kobbé, op.cit., p.309.
332
Ibid, p.311.
333
Sinfield, op.cit., p.55-56.
163
árvores confere certa escuridão à cena e Chris arremessa o último pertence, a aliança da Sra.
Eastby. Em câmera lenta, acompanhamos o movimento da joia: a aliança bate na grade, fica
por um breve momento suspensa no ar onde se pode observar o Swiss Re ao fundo , e cai
para o lado do protagonista.
A cena estabelece paralelo com a abertura do filme na qual em câmera lenta observa-
se o percurso de uma bolinha de tênis ao passo que o protagonista expõe os ―pressupostos
filosóficos‖ da obra. Quando a bolinha bate no topo da rede, o narrador afirma que ―se ela cair
para o seu lado você perde, mas talvez ela não caia e você ganhe‖. Portanto, no momento em
que a aliança arremessada pelo protagonista não cai no rio, o espectador conclui que o
assassino será condenado.
No entanto, trata-se de uma armadilha: mesmo sem ter conseguido arremessar todos os
pertences da vítima, o assassino não será condenado. Além da imagem do Gherkin ao fundo,
relacionando o crime às finanças: da referência extra-diegética à ópera Macbeth, que retoma a
ideia do tirano sanguinário como enviado da classe dominante e da importância da aliança
entre o irlandês e a família Hewett, Allen retoma o romance Crime e castigo. Precisamente
por contar com a aliança, o casamento com Chloe, Chris não se condenado como
Raskólnikov. A composição da cena, feita por Allen, no momento em que Chris atira os
pertences da vítima ao rio retoma a mesma situação descrita por Dostoiesvki:
muito havia decidido: ―Lançar tudo no canal, jogar
as provas na água, e assunto encerrado‖. Assim havia decidido ainda na
noite anterior, em delírio, nos instantes em que se lembrara disso, e algumas
vezes tivera ímpetos de levantar-se e sair: ―Rápido, rápido, jogar tudo fora‖.
Mas acabou sendo muito difícil jogar as coisas fora.
Já fazia meia hora e talvez mais que perambulava pela
marginal do canal de Iecaterina, e várias vezes examinara as descidas para
ele, que iam até embaixo. Mas não dava nem para pensar em pôr a intenção
em prática: ou havia balsas estacionadas à beira das próprias descidas e nelas
lavadeiras lavavam roupa, ou barcos ali ancorados fervilhavam de gente em
toda parte, ou de todos os pontos da marginal ele podia ser visto: era suspeito
que um homem descesse de propósito, ficasse ali parado e atirasse coisas
n‘água. E vamos que os estojos não afundassem e saíssem flutuando?
Evidentemente isso acabaria acontecendo. Qualquer um notaria. E ademais,
todo mundo o estava olhando de um jeito esquisito quando cruzava com
ele, medindo-o com o olhar, como se nada mais lhe interessasse a não ser
ele. ―Por que isso, ou será impressão minha?‖ – pensava.
334
334
Dostoievski, op.cit., p.121-122.
164
Raskólnikov acaba enterrando os pertences da velha usurária em um local ermo por
medo de ser encontrado. Por sua vez, Chris pode arremessar as joias da Sra. Eastby em plena
luz do dia em um local bastante frequentado por turistas, os arredores da ponte Queen’s Walk,
sem que nenhum transeunte o intercepte. No momento em que a aliança cai no chão, sem que
o protagonista perceba, Allen corta para a delegacia de polícia, onde a ópera continua (―Ah, la
paterna mano...‖) como uma espécie de voz recalcitrante rememorando o filho de Chris e
Nola que foi morto pela mão paterna. Na delegacia, o inspetor de polícia e o protagonista
caminham em direção à câmera. Ao encontrarem o detetive Banner, a ópera é interrompida.
Chris é apresentado ao detetive pelo inspetor de polícia. Banner explica ao
protagonista que ele não precisa preocupar-se: ―Nós estamos fazendo um procedimento
habitual na investigação dos assassinatos de Betty Eastby e Nola Rice‖. Enquanto o detetive
interroga-o, observa-se a reação do protagonista: ―Você conhecia alguma das vítimas?‖ O
executivo afirma que conhecia a Nola Rice, apenas ―superficialmente‖.
A câmera volta para o detetive que parece não acreditar no relato de Chris. Ele
pergunta qual foi a última vez em que se viram e Chris finge não lembrar a data. O inspetor de
polícia, sentado ao lado do suspeito, desconfia do protagonista e olha para o detetive. Banner
pergunta a Chris se ele encontrou a vítima novamente, o protagonista sorri e afirma: ―Não que
eu me lembre.‖
Nesse momento, o detetive apresenta ao suspeito o diário de Nola. O inspetor de
polícia um pequeno sorriso. O rosto de Chris volta ao centro da ação. Banner informa ao
suspeito que existem muitas referências a ele no diário de Nola e repete a pergunta sobre a
data do último encontro. Com a apresentação do diário, assim como a aliança, conclui-se que
o protagonista será condenado. No entanto, o herói cheio de credenciais utiliza as
prerrogativas de classe para justificar-se:
[Chris Wilton]: ―Não pode me culpar por eu tentar esconder que tive
um caso com ela. Mas, vocês têm que me proteger. Eu espero que vocês não
pensem que eu tenha alguma relação com o assassinato dela.‖
[Detetive Banner]: ―Por quanto tempo o caso durou?‖
[Chris Wilton]: ―Começou por acaso quando ela ainda estava noiva
do Tom, eles terminaram, ela se mudou. Quando ela voltou, encontrei-a na
Tate Modern e reatamos. Por favor, tenham compaixão. Minha esposa está
grávida, isso vai acabar com ela.‖
[Detetive Banner]: ―Você prometeu a ela que deixaria sua esposa e
se casaria com a senhorita Rice?
[Chris Wilton]: ―Não, não prometi. É possível que ela tivesse essa
fantasia e, então, claro que ela escreveu que eu prometi, mas eu tentei
165
resolver esse ponto com ela. Eu não queria que a relação sexual acabasse,
mas eu não vou destruir o meu lar. Minha esposa e eu estamos tentando
muito ter um bebê, procuramos diversos médicos especialistas em
reprodução etc. Vocês podem checar essa informação se quiserem, mas eu
imploro que sejam discretos.‖
Neste momento, observa-se certa identificação entre o inspetor de polícia e o suspeito.
Chris olha para Dowd, a câmera muda de posição e focaliza o inspetor de polícia que parece
concordar com o suspeito. Diferentemente do detetive Banner, Dowd esteve no prédio de
Nola e da Sra. Eastby. O inspetor de polícia tem uma conclusão para o caso: ―Um crime
relacionado a drogas‖. Por sua vez, o detetive aparenta ser o guardião dos códigos de honra e
da moralidade:
[Detetive Banner]: ―Mas, você a iludiu e deu a impressão de que
estava infeliz em casa.‖
[Chris Wilton]: ―Eu tentei esclarecer a questão e não enganá-la, mas
ela acreditava no que ela queria. Olha, não destruam os sentimentos das
pessoas irresponsavelmente, arruinando suas vidas. Não existe nenhuma
ocorrência, porque eu não machucaria ninguém, muito menos a Nola Rice.‖
Nesse momento, o protagonista olha para o inspetor de polícia, segura a cabeça e
chora: ―Não é óbvio que alguém matou a vizinha e ela apareceu quando isso estava
acontecendo? Meu Deus, eu lhes imploro, não iniciem uma investigação sobre isso de
maneira irresponsável, destruindo a vida das pessoas. Minha família, meu casamento estão em
jogo.‖ Chris pede aos policiais para que o ajudem a preservar a sua imagem perante a família
e solicita para que a investigação seja mantida em segredo. O detetive concorda e explica os
procedimentos da polícia:
[Detetive Banner]: ―Nós temos que checar todas as informações
em um caso de assassinato.‖
[Chris Wilton]: ―Ok. Mas, eu não sou quem você procura. Eu sei que
não é a coisa mais honesta do mundo trair a esposa, mas isso não me faz um
assassino‖.
[Detetive Banner]: ―Somos obrigados a analisar a situação, entendo
que é uma situação delicada para você e se tivermos de procurá-lo de novo,
faremos tudo de forma privada. Sua vida pessoal é sua, não estamos fazendo
julgamento moral, só investigando um crime‖.
Com as mãos no rosto, Chris pede para que caso a polícia tenha que contatá-lo
novamente o faça por meio de seu telefone celular, ou seja, de forma privada e sem deixar
166
indícios. O detetive agradece e faz uma última pergunta se Chris possui ou tem acesso a uma
espingarda. Chris faz como quem não entende o que foi perguntado: ―Eu?‖ O ex-tenista nega
ter acesso a uma espingarda e explica que o sogro participa de competições de caça na casa de
campo, mas ele não: ―Você pode checar isso, mas eu imploro que vocês considerem a minha
posição e a dele.‖ Nesse ponto, Chris faz referência à sua posição social e a do sogro,
membros da elite britânica, pedindo para que ela seja assegurada pela polícia. O detetive
concorda com a solicitação: ―É claro‖.
Após a saída de Chris, a conversa entre os dois detetives confirma a versão sugerida
pelo protagonista: ―Eu acho que é o que parece ser: alguém roubou e matou a Sra. Eastby, foi
surpreendido quando saía e matou a Nola Rice.‖ O detetive concorda com a opinião do
inspetor: ―É, eu sei, isso tem toda a cara de roubo relacionado a drogas.‖ O inspetor de polícia
entende a situação do protagonista que está sendo investigado apenas por conta da traição,
tendo em vista que o caso já fora resolvido pelos outros policiais no local do crime:
[Inspetor Dowd]: ―Ele está esperando um bebê. Tudo bem, ele não
vai ganhar a medalha da fidelidade, mas nós podemos procurar
discretamente se os Hewetts tem uma espingarda desaparecida. Eu não acho
que ele saberia roubar nem serrar uma arma. Você precisa de um certo
tempo de cadeia e ele não tem nenhuma condenação anterior, nem mesmo
multa de trânsito por excesso de velocidade. O legista disse que Eastby foi
morta antes, não há nenhum sinal de arrombamento.‖
[Detetive Banner]: ―Então, a Sra. Eastby deveria conhecer o
assassino se o deixou entrar.‖
[Inspetor Dowd]: ―Por favor, Mike. Noventa por cento dos crimes
que a gente investiga são de pessoas que abrem a porta e convidam os
criminosos para entrar.‖
[Detetive Banner]: ―Eu sei que você está certo, estou pensando
alto... Ele tem um motivo real.
[Inspetor Dowd]: ―Sim, talvez, mas um motivo, como você e eu
tristemente sabemos, não é uma ocorrência.‖
[Detetive Banner]: ―Eu queria recompor os pedaços porque o
assassinato da Nola Rice foi claramente pensado depois, mas eu adoraria ir
atrás disso um pouco mais. Mas, estou apreensivo em investigar e causar
problemas para todos.‖
[Inspetor Dowd]: ―Se alguma coisa acontecer, nós podemos
investigar, mas eu duvido que algo caia no nosso colo.‖
O sotaque cockney do detetive e do inspetor de polícia faz lembrar que são os
membros da classe trabalhadora que fazem a segurança da elite britânica. O inspetor de
polícia descarta a hipótese de Chris ser o criminoso, pois ―você precisa de um certo tempo de
cadeia‖ e ―ele não tem nenhuma condenação anterior, nem mesmo multa de trânsito por
167
excesso de velocidade‖. Assassinatos como os da Sra. Eastby e o de Nola estão previstos
pelos policiais, são corriqueiros, acontecem diariamente nas ruas de Londres e chegam às
delegacias de polícia: ―Em noventa por cento dos crimes que investigamos, as pessoas abrem
a porta e convidam os criminosos para entrar‖. Para os policiais, ―o assassinato da Nola Rice
foi claramente pensado depois‖. Por se tratar de um bairro violento, no qual são frequentes os
crimes relacionados às drogas e os assassinatos a pessoas comuns, os policiais não
prosseguem com a investigação contra o executivo. Se as vítimas fossem um dos Hewett, a
situação certamente seria outra. A preocupação do detetive ―em não causar problemas a
todos‖ indica que a polícia, ―à custa de preservar a honra da família‖
335
e considerando a
posição dos homens de negócios, será discreta e evitará trazer problemas à elite britânica.
Vemos esboçado no papel da polícia uma espécie de segurança privada, a privatização da
polícia, aliada dos executivos e preservando as grandes corporações. Essa aliança entre o
executivo e os policiais se faz na base do ―acordo entre cavalheiros‖, o segredo que ―protege
de qualquer esclarecimento os bens acumulados dos possuidores‖
336
.
3.5 O sonho
―Pois o sonho e o ‗drama de estação‘ coincidem de fato em sua estrutura: uma sequência de cenas, cuja unidade
não é constituída pela ação, mas pelo eu do sonhador ou do herói, que permanece idêntico.‖
Peter Szondi, Teoria do drama moderno [1880-1950].
―O espetáculo é o sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só expressa afinal o seu desejo de dormir.
O espetáculo é o guarda desse sonho‖.
Guy Debord, A sociedade do espetáculo.
Na cena seguinte ao interrogatório na delegacia, observa-se um pequeno relógio
despertador que indica tratar-se da madrugada. No quarto do casal no Parliament View
Apartments, a herdeira dorme. Por sua vez, o protagonista permanece na sala do apartamento,
em meio aos objetos de trabalho. Ele repousa em cima do computador, dos jornais, das
anotações, relatórios e outros papéis de trabalho. A iluminação da cena é feita apenas por uma
pequena luminária, como se houvesse um aspecto sombrio na residência do casal. A câmera
335
Eisenstein, op.cit., p.101.
336
Debord, op.cit., p.208.
168
aproxima-se do executivo, ele parece acordar. Cansado pelo trabalho tedioso, Chris tenta
escrever ao computador, a câmera foca nas mãos trêmulas do protagonista que começa a
digitar. Ouve-se alguns ruídos no apartamento, ele olha para trás e volta a digitar. O
protagonista ouve novamente os ruídos em seu apartamento. um close em seu rosto. A
face de Chris revela cansaço e agonia. Chris derruba o copo de vinho tinto em cima de um dos
papéis de trabalho. Ele coloca as mãos no rosto e chora. O protagonista olha para o
computador e levanta-se em direção à cozinha. O cenário é tomado pela escuridão. Na
cozinha, ele limpa o rosto e cobre a face com um papel toalha.
Por detrás da câmera, o fantasma de Nola aproxima-se do protagonista. pouca
entrada de luz na cozinha, o que contribui para a atmosfera noir da cena. Assim como Chris
fizera no momento em que atirou contra Nola, a norte-americana chama pelo protagonista. Ele
vira o rosto em direção a ela e começa a se justificar: ―Não foi fácil, mas quando chegou a
hora, eu puxei o gatilho. Você nunca sabe quem são os seus vizinhos até que haja uma crise.
Você aprende a empurrar a culpa para debaixo do tapete e continua. Você precisa, caso
contrário ela te soterra.‖ O close no rosto do protagonista revela, a despeito do discurso do
personagem, a loucura, o desvario de Chris. Assim como nos quadros de Lucian Freud, a
história parece estar marcada no rosto dos personagens: a senhora, a norte-americana, o
irlandês.
Ouve-se a voz da Sra. Eastby: ―E quanto a mim, a vizinha ao lado?‖ O protagonista
vira o rosto em direção à ela.. A vizinha prossegue: ―Eu não tinha nenhuma relação com esse
caso terrível. Não há problema algum em eu ter que morrer como uma espectadora inocente?‖
A ideia de uma ―espectadora inocente‖ faz lembrar as cenas, nas quais o patriarca e seu genro
apontaram a arma para a câmera, retomando a ideia dos assassinatos contra inocentes.
Enquanto Chris explica o assassinato, -se o olhar da Sra. Eastby, marcado por pavor
e sombras: ―Os inocentes têm algumas vezes que morrer para abrir o caminho para um
grandioso plano. Você foi um dano colateral.‖ A expressão utilizada por Chris collateral
damage faz lembrar a maneira pela qual as vítimas civis foram descritas na Guerra no
Iraque. É sabido que norte-americanos e britânicos uniram-se no confronto que ocasionou a
morte de milhares de civis. A aliança entre George W. Bush e Tony Blair na Guerra do Iraque
provocou uma série de protestos na Inglaterra. Para a comentarista política Jackie Ashley, do
Guardian: ―A Guerra no Iraque destruiu a confiança de muitas pessoas na política. Destruiu
muitas vidas, e isso é o mais importante. Mas entre os danos colaterais estava o Novo
169
Trabalhismo em si. Ele morreu no Iraque. [...] A Guerra destruiu a política progressista na
Grã-Bretanha para uma geração‖
337
. A ideia de que uma geração foi perdida é retomada pelo
filme: o filho de Chris e Nola é mais uma das vítimas inocentes que foram descritas como
―danos colaterais‖. Com o rosto marcado pelo terror, a Sra. Eastby lembra a criança morta
pelo pai: ―Assim como foi o seu próprio filho‖.
A câmera retorna para Chris que engole o choro e compara o destino de seu filho ao de
Édipo: ―Sófocles disse: ‗Nunca ter nascido pode ser a melhor dádiva de todas‘. Nesse ponto,
podemos retomar o sentido propriamente trágico em Match Point, conforme exposto por
Raymond Williams: ―A ação real incorpora o sentido particular, e tudo o que é geral nas obras
a que chamamos tragédias é a dramatização de uma desordem específica e atroz, e a sua
resolução.
338
Por sua vez, Nola retoma a possibilidade de punição: ―Prepare-se para pagar o
preço, Chris. As suas ações foram desajeitadas, cheias de furos. Quase como alguém que
estivesse implorando para ser pego.‖ A fala de Nola reinsere a questão do criminoso
inexperiente. A indicação de que Chris implora ―para ser pego‖ é, por sua vez, retomada pelo
protagonista: ―Seria conveniente se eu fosse pego e punido, ao menos teria algum pequeno
sinal de justiça, alguma pequena medida de esperança para a possibilidade de sentido.‖
Na cena do sonho do protagonista, o universo de sombras e o retorno dos fantasmas
remetem à temática ―expressionista‖ de Strindberg. Segundo Peter Szondi, ―as personagens da
trilogia Damasco (a dama, o mendigo, César) são irradiações do eu do Desconhecido, e
segundo o qual a obra como um todo reside na subjetividade de seu herói. Mas essa
contradição é o paradoxo da própria subjetividade potencializada em algo objetivo. Que o
inconsciente depara com o eu consciente (isto é, o eu que se torna consciente de si) como um
estranho é o que revela a psicanálise em sua terminologia, nas qual o inconsciente se
apresenta como id. Desse modo, o indivíduo isolado, que se refugia em si mesmo ante o
mundo se tornou estranho, volta a se defrontar com o estranho‖
339
.
Nesse ponto, retomaremos a hipótese de que o filme expõe a perspectiva subjetiva do
protagonista, próxima ao universo do ―drama de estação‖, criado por Strindberg. Conforme
argumenta Raymond Williams, nas últimas peças de Strindberg: ―O mundo do sonâmbulo, do
sonhador, do forasteiro torna-se absoluto. O foco voltado para as relações específicas é
337
Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/jan/31/new-labour-iraq-destroyed-
progressive>. Acesso em: 13 mar. 2010.
338
Williams, op. cit., p.78.
339
Szondi, op.cit., p.62.
170
abandonado, e em seu lugar surge uma consciência isolada. A luta humana, nesse extremo de
dor, torna-se totalmente interna. As outras pessoas são simplesmente imagens no interior de
uma agonia pessoal.‖
340
Esta agonia passa a retratar o cotidiano do protagonista em Match
Point que transforma-se em um sonâmbulo. De acordo com Szondi, a dramaturgia subjetiva
―corresponde menos à ideia de que seria possível projetar a própria vida psíquica, que
apenas esta seria acessível, do que a intenção prévia de conferir realidade dramática à vida
psíquica, a essa vida essencialmente oculta. O drama, a forma literária por excelência da
abertura e franqueza dialógicas, recebe a tarefa de representar acontecimentos psíquicos
ocultos. Ele a resolve ao se concentrar em seu personagem central, seja se restringindo a ele
de modo geral (monodrama), seja apreendendo os outros a partir de sua perspectiva
(dramaturgia do eu), com o que, no entanto, deixa de ser drama‖
341
. Assim, argumenta
Szondi, as peças de Strindberg caminham em direção ao épico. A ―dramaturgia do eu‖,
composta por Strindberg, pode ser associada à técnica do monólogo interior, exposta por
Eisenstein. Na cena do sonho, podemos observar o modo por meio do qual o cineasta russo
gostaria que a adaptação de Uma tragédia americana fosse feita: ―Como que apresentando
dentro de personagens o jogo interior, o conflito de dúvidas, as explosões de paixão, a voz da
razão, rapidamente ou em câmera lenta, marcando os ritmos diferenciados de um e outro e, ao
mesmo tempo, contrastando com quase total falta de ação externa: um febril debate interior
atrás da máscara petrificada do rosto.‖
342
O conflito interior, assim como foi feito no
momento do assassinato por meio da utilização da ópera Otelo, pode ser visto pelo
espectador, no rosto do personagem que dialoga com os fantasmas projeções do próprio
Chris como quem narra um discurso pronto, alheio a si próprio, semelhante ao discurso de
justificativa de guerra. Assim como Macbeth e Otelo, Chris está ―representando a história
dominante‖
343
.
De forma abrupta, a cena do sonho é cortada para a residência do detetive. Assim
como o protagonista, o detetive acorda do sonho, como se ele tivesse ouvido um recado dos
mortos: ―Chris Wilton matou-as. Eu vi como ele fez isso.‖ A esposa de Banner acorda: ―O
que?‖ Há um elemento cômico na cena que pode ser percebido pela reação da esposa. Em seu
domicílio, o detetive recebe a ajuda dos mortos para a resolução do crime. No entanto, trata-se
340
Williams, op.cit., p.151.
341
Szondi, op.cit., p.58.
342
Eisenstein, op.cit., p.105.
343
Sinfield, op.cit., p.63.
171
de um sonho, a projeção subjetiva do policial, o qual imagina essa solução, porque quer
descobrir o ―seu grande caso‖
344
, ganhar popularidade ao prender um membro da alta
sociedade. Na delegacia, o detetive entusiasmado narra o sonho ao colega:
[Detetive Banner]: ―Foi como nós suspeitávamos e que foi dito que
era muito complicado, mas foi isso o que ele fez: ele matou a vizinha
primeiro para nos despistar e para dar a impressão de um roubo. Ele esperou
no corredor, sabia que ela chegaria no mesmo horário de sempre e ele a
matou, fazendo parecer que ela surpreendeu um ladrão em fuga. Ele planejou
tudo para que ele pudesse chegar ao teatro em tempo para fortalecer o seu
álibi se necessário. Ainda não resolvi a questão da arma e eu sei que isso é
muito para pedir ao júri, mas a certeza disso chegou a mim em um sonho e
eu vou resolver esse caso.‖
[Inspetor de polícia Dowd]: ―Detesto trazer más notícias, Mike. Não
que o seu sonho não seja interessante para o júri. Mas, houve outro tiroteio
na região na noite passada, às quatro da manhã, um viciado foi morto, parece
que uma venda de drogas não deu certo.‖
[Detetive Banner]: ―E o que, ele confessou ter matado as duas
mulheres antes de morrer?‖
[Inspetor de polícia Dowd]: ―Não, ele não precisou. A aliança da
senhora estava no seu bolso com o nome e data gravados.‖
Ambos os atores que representam os policiais são conhecidos pelo público inglês por
representarem personagens em comédias, o que reforça a ironia da cena. Banner afirma não
acreditar que a aliança da Sra. Eastby signifique o fechamento do caso. Por sua vez, Dowd
continua a escarnecer o colega: ―Eu sei, eu sei, o seu caso parecia bom, vários motivos. Mas,
o motivo dele era bem forte também, heroína. Um viciado com uma longa história de
condenações. Morto por um dos seus, sem dúvida. Vamos lá, eu pago o seu café da manhã,
você pode me traumatizar com o resto dos seus sonhos.‖
Banner tenta ainda resolver o seu grande caso: ―Não, mas e se o Wilton matou-as, se
livrou das joias e este homem as encontrou?‖ Dowd caçoa o colega: ―Eu não sei, veremos o
que o sonho desta noite lhe diz. Tenho certeza de que o júri terá interesse. Vamos.‖ Banner
desiste do caso. Por sua vez, Dowd comemora: Eu sabia que não tinha sido o Wilton, ele é
apenas outro pobre idiota que traiu a mulher. Quando vir as fotos da Nola Rice, você vai
entender porquê.‖ Resignado, Banner conclui: ―Que mundo. Estou certo?‖ Existe na
caracterização da polícia, feita pelo filme, uma espécie de competição entre os policiais para a
resolução do crime: os que estavam no local do crime e o detetive Banner. A rivalidade entre
344
Allen repetirá o mesmo caso em Scoop [2006], no qual a jornalista, Sondra Pransky [Scarlett Johansson],
recebe a ajuda dos mortos para desvendar os assassinatos cometidos por um membro da alta sociedade. A
publicação da reportagem é ―O grande furo‖ da carreira de Sondra.
172
os policiais retoma a intriga política que estava por trás da condenação de Clyde Griffiths, em
Uma tragédia americana.. Conforme argumenta Eisenstein, ―como parte do background do
julgamento, é indicado que o verdadeiro objetivo do julgamento e da acusação de Clyde,
porém, não tem nenhuma relação com ele. O objetivo é apenas criar a popularidade necessária
entre a população de fazendeiros do estado (Roberta era filha de um fazendeiro) e o Promotor
Público do Distrito, Mason, a fim de que ele obtenha o apoio necessário para ser eleito juiz. A
defesa pega um caso que sabia sem esperança (―na melhor das hipóteses, dez anos numa
penitenciária‖), também no campo da luta política. Pertencendo ao campo político oposto, seu
objetivo principal é usar o máximo de influência para derrotar o ambicioso promotor. De um
lado, como do outro, Clyde é apenas um meio para se chegar a um fim.
345
.
Nossa hipótese entende que o filme apresenta o desenvolvimento do protagonista: o
se trata de um ―destino inexorável‖. Chris tem opções, conforme revela em conversa ao amigo
Henry: ele pode ter outro emprego e romper com Chloe para ficar com Nola. No entanto,
prefere ficar ao lado dos Hewett, acostumou-se ―a um certo tipo de vida‖. A ideia da sorte faz
parte do discurso dominante, do jogo probabilístico do capital financeiro, no qual as vítimas
inocentes são descritas como collateral damage‖, a ideia de que os acertos compensariam os
milhares de civis mortos e torturados pela guerra.
Na última cena do filme, antes que os personagens entrem em cena, observamos o
quadro do homem negro de olhos fechados, atribuído a Lucian Freud. Os objetos de
decoração, o móvel, as luminárias, a escultura, os livros e os porta-retratos do casal
contrastam com a pintura do rapaz com o semblante abatido. No apartamento de Chloe e
Chris, o primeiro a entrar na residência é o patriarca. Alec comanda os passos da família:
―Cuidado, cuidado, eu sempre tenho medo de que eles caiam, os bebês são tão delicados‖. Na
fala do patriarca, evidencia-se a ideia do herdeiro como uma joia de família. Após Alec, a
babá do herdeiro entra no apartamento. A cor da pele morena da empregada da família
aproxima-a da imagem do homem negro, retratado na tela de Freud (Figura 16). Característica
que, por sua vez, contrasta com a tonalidade de pele da família de brancos. A babá passa em
frente ao quadro do homem negro, carregando o herdeiro. A fala do patriarca dirige-se à babá,
os outros membros da família não recebem ordens.
O patriarca abre o champanhe, -se início aos comentários sobre os traços étnicos da
criança: Heather diz que o bebê tem os olhos de Chloe, a matriarca afirma que o neto possui a
345
Eisenstein, op.cit., p.101-102.
173
cor da jovem herdeira. A babá permanece segurando a criança. Ela deixa-o no sofá e passa em
frente à câmera. Nesse ponto, podemos lembrar a conversa no restaurante entre Chloe e a
cunhada, na qual as duas afirmaram que a maternidade não prejudica o trabalho, por conta da
ajuda dos empregados. Ao olhar para o filho, Chloe diz que a coloração dos bebês, em geral,
muda o tempo todo. Tom considera que o sobrinho assemelha-se ao irlandês.
Em seguida aos comentários sobre os traços raciais do bebê, Tom pergunta ao cunhado
se ele foi transferido para o escritório que antes pertencia ao Alan Sinclair. O protagonista
confirma a informação. Tom chama seu ex-professor de tênis de ―porco sortudo‖. O
espectador lembrará que Alan era o chefe de Chris. Todavia, após o nascimento do herdeiro, o
protagonista ocupa o posto do funcionário antigo da empresa. Neste ponto, evidencia-se, que
Chris é promovido por conta do nascimento do filho. uma espécie de capitalização da
maternidade delineada no filme.
Reunida em volta do bebê, a família admira o herdeiro. A matriarca serve o
champanhe e o patriarca faz o brinde: ―Ao Terence Elliot Wilton com pais como Chloe e
Chris, essa criança será nobre em qualquer coisa que fizer‖. Tom complementa o brinde:
―Não me importa que ele seja nobre, eu só espero que ele seja sortudo.‖ A matriarca considera
a afirmação do filho ―um lindo pensamento‖. Alec concorda, garantindo que o neto
―provavelmente será sortudo.‖ A sorte, portanto, torna-se parte do discurso dos Hewett. A
inovação trazida pelo empreendedor, o discurso da sorte apresentado pelo protagonista no
começo do filme, transforma-se em valor social: Os valores a partir dos quais as pessoas
orientam suas ações e dão sentido a suas vidas vêm sendo transformados e reorientados
segundo uma lógica semelhante à aplicada a outras formas de capital: esse conjunto de
habilidades, capacidades e destrezas passa a ser considerado como produto de investimentos
prévios, que, como todo investimento, visa a obtenção de benefícios futuros‖.
346
Chloe aposta
dinheiro com o marido de que o próximo filho será uma menina.
Nesse ponto, a ópera de abertura do filme, O Elixir de Amor, é retomada. A ária ―Uma
furtiva lágrima‖, cantada por Caruso, encerra o filme rememorando Nola, como um canto
fúnebre. O aspecto soturno e triste da ópera e a ideia do elixir contrastam com os comentários
da família Hewett, repetidos em coro: ―Nós estávamos apenas dizendo o quanto ele é lindo.
Eu queria saber no que ele pensa... Aqui estamos. Ao Terence e a tudo o que cruzar por ele.‖
346
López-Ruiz, op.cit., p.26-27.
174
O olhar da câmera permanece no protagonista que não participa do brinde. Chris continua
olhando pela janela do Parliament View Apartments sem dizer uma palavra.
175
Considerações Finais
um quadro de Lucian Freud que se chama ―Dois irlandeses em W11‖, 1984/85
(Figura 17). Representa dois homens de negócios em um apartamento do distrito de
Paddington, local que Freud habitou por trinta anos. Em primeiro plano, observa-se um
senhor que olha resignadamente para o chão. Sua cabeça está inclinada para o lado e o seu
rosto é caracterizado por uma profunda tristeza. Suas feições são marcadas pelo tempo e
cobertas por uma atmosfera de melancolia e desesperança. A vestimenta do executivo está
amassada e desconjuntada. A escuridão do terno parece relacionar-se ao olhar dos
personagens. As pinceladas espessas podem ser vistas tanto no apartamento como na
vestimenta, no rosto, e nas mãos destes homens. A cor cinza escuro, utilizada tanto no rosto,
como no terno e nas mãos dos personagens indicam um processo de progressiva deterioração.
Na mão direita, observa-se a aliança de ouro do patriarca. Mas é precisamente o rapaz que
está atrás do patriarca que nos interessa. O executivo mais jovem se apoia com uma das mãos
a poltrona onde o senhor está sentado, resignado. A outra mão esconde-se atrás do paletó. A
mão que se encontra sobre poltrona parece trêmula e indica a relação de dependência,
acentuada pela disposição dos personagens. O homem jovem está posicionado atrás do
primeiro, como uma espécie de empregado, subordinado, ou agregado. O senhor é robusto e
gordo. Este homem de idade repousa as duas mãos sobre a poltrona, como se reafirmasse seu
poder, mas, assim como o jovem, igualmente aparenta prostração. Em contraposição ao
senhor, o jovem executivo é magro e fino. Apesar de sua condição de dependente, ele parece
ser o próximo na sucessão do senhor. Os olhos deste jovem são marcados pelo
entorpecimento e a prostração. Os dois irlandeses compartilham a vestimenta de executivo,
um parece ser o espelho do outro, o seu amanhã. O apartamento em que estão situados não
contém móveis, apenas esta poltrona sobre a qual o mais velho está sentado. Trata-se do ateliê
de Freud. Pode-se observar ao fundo, do lado esquerdo da tela, duas pequenas telas em que se
vêem borrões, como se fossem a face dos dois personagens. Na parede do apartamento,
observamos o movimento da pintura, as pinceladas saltam à vista formando manchas
disformes. Da janela do apartamento observam-se os prédios residenciais picos da paisagem
londrina, nos arredores de Paddington. Entre eles, destaca-se, ao fundo, um edifício alto
176
semelhante a um prédio de negócios. O céu da cidade apresenta o mesmo cinza que
caracteriza o apartamento, as mãos, os rostos e as vestimentas dos personagens. Há um
sentimento de depressão e um desencanto geral nos rostos e nos corpos destes homens.
A semelhança entre o olhar destes homens retratados por Freud e o olhar do
protagonista ao final de Match Point não passa despercebida. A melancolia, a subordinação, o
entorpecimento e a resignação são compartilhados por esses homens de negócios, os do
quadro e o do filme. Se no cenário contemporâneo, os esportistas, executivos, médicos,
artistas e professores, devem correr riscos, quase como ―um sinônimo de vitalidade, de
emoção, de possibilidade de crescimento, de quebra da rotina e de vida no limite‖
347
, os
personagens retratados por Freud são o seu avesso. nesta representação dos executivos, ―o
preço que devia suportar por ser membro da organização e, particularmente, por ter de se
submeter aos ditados da ética social [...]: a neurose‖
348
. Lucian Freud, assim como o avô
psicanalista, identifica nos indivíduos que retrata o ―mal estar da civilização‖ e a depreciação
da sexualidade.
O sentimento de claustrofobia de Chris no Swiss Re, a insônia no Parliament View, o
tédio ao lado da esposa, o projeto de fertilização para a concepção do herdeiro, entre outros
aspectos problematizam a trajetória do protagonista. O próprio Woody Allen avalia o destino
de Chris em negativo: ―Acho que ele não está exatamente adorando a situação em que se
encontra. Está casado com uma mulher por quem não é apaixonado. É um genro que gosta da
vida fácil, para a qual se casou, mas se sente claustrofóbico trabalhando no escritório. A
esposa dele já anda dizendo que quer mais um filho. Ele não pensa no crime. Conseguiu o que
queria e pagou o preço por isso. É uma vergonha que ele queira isso. Posso ver, mais adiante,
que não vai ficar contente nesse casamento, e talvez venha a ter uma base financeira tão boa
que acabe por abandoná-la.‖
349
No contexto das grandes corporações e do retrato do espírito
do capitalismo contemporâneo, López-Ruiz argumenta que ―estamos frente a um indivíduo
paradoxalmente independente, mas não autônomo. Um indivíduo que trabalha para garantir os
meios econômicos suficientes para manter a sua independência, mas que não vive segundo
uma norma própria. É um sujeito dependente de valores e normas que ele não postula aceitar.
Talvez seja válida então a hipótese de que o ethos social que os executivos das grandes
347
López-Ruiz, op.cit., p.237.
348
Ibid., p.149.
349
Lax, op.cit., p.174.
177
corporações emblematizam pode ser caracterizado como uma forma de individualismo sem
sujeito, vivendo em uma situação de independência sem autonomia.‖
350
350
López-Ruiz, op.cit., p.73.
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get just a fraction of £ 400k pay-off for blundering Met boss Blair. In: Daily Mail. 23 nov.
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Menezes-Family-Brazilian-shot-dead-tube-just-fraction-400k-pay-blundering-Met-boss-
Blair.html>. Acesso em: 13 mar. 2010.
Ficha técnica
Match Point [2005]
Direção e roteiro: Woody Allen
Produção: Letty Aronson, Lucy Darwin, Stephen Tenenbaum, Gareth Wiley
Distribuição: Dream Works Pictures, BBC Films, Thema Productions SA.
Produção: Jada Production
Elenco: Brian Cox, Emily Mortimer, Jonathan Rhys-Meyers, Matthew Goode, Penelope
Wilton, Scarlett Johansson.
Assistente de Elenco: Juliet Taylor, Gail Stevens.
Diretor de fotografia: Remi Adefarasin
Edição: Alisa Lepselter
Produção Musical: Milan Executive Album Producers, Emmanuel Chamboredon e Ian
Hierons
Coordenador Trilha Sonora: Cindi Smith
Duração: 124 min.
193
Ano: 2005
Locação: Ealing Studios, Londres, Reino Unido.
194
Anexos
Figura 1: Swiss Re. Edifício na City, projetado pelo arquiteto Norman Foster. Cena que antecede a
primeira visita de Chris a empresa da família Hewett para a sua entrevista de contratação.
Figura 2: Parte interna do Swiss Re. Contratação de Chris Wilton na Hewett Inco.
195
Figura 3: Parte externa do Englefield Estate. Chegada da família Hewett à casa de campo.
Empregados da residência aguardam os proprietários.
Figura 4: Tate Modern. Autor desconhecido. Chloe e Carol conversam sobre gravidez ao passo que
(não) observam as obras de arte.
196
Figura 5: Tate Modern. David Hepher, Albany Flats, 1969/1974. Chris procura por Nola.
Figura 6: Tate Modern. Autor desconhecido. Nola encontra Chris, pode-se observar a palavra ―ache‖,
(em português, dor), escrita no quadro.
197
Figura 7: Galeria de Chloe. Lucy Jones, quadros de figuras femininas. Chris encontra a esposa.
Figura 8: Galeria de Chloe. Lucy Jones, quadros da paisagem londrina que estão na galeria e na
residência de Chloe e Chris.
198
Figura 9: Galeria de Chloe. Lucy Jones, quadros com figuras masculinas. Chris telefona para Nola.
Figura 10: Parliament View Apartments. Vista do rio Tâmisa e do Parlamento inglês a partir de
apartamento de Chris e Chloe. Chris conversa com o patriarca.
199
Figura 11: Parte externa do Swiss Re. Momento que antecede o assassinato de Nola
Figura 12: Parte interna do apartamento no edifício Parliament View Apartments. No canto direito da
cena, observa-se o quadro de uma senhora, com autoria provável de Lucian Freud .
200
Figura 13: Parte interna do apartamento no edifício Parliament View Apartments. Quadro do homem
negro, com autoria provável de Lucian Freud.
Figura 14: Parte interna do apartamento no edifício Parliament View Apartments. Quadro da
paisagem londrina de Lucy Jones presente tanto na galeria de Chloe como no apartamento
201
Figura 15: Ponte Queen's Walk. Bansky, grafite de Menina com balão vermelho. Pichação do símbolo
anarquista.
Figura 16: Parliament View Apartments. Ao fundo, quadro de um homem negro, com autoria
provável de Lucian Freud e porta-retratos do casal Chloe e Chris. Momento em que se observa a
chegada do bebê, conduzido pela babá e o patriarca.
202
Figura 17: Lucian Freud, Dois irlandeses em W11, 1984/85.
203
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