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ROSANE MORAIS
A LEI DO PAI:
leitura de Grande sertão: veredas
a partir da função paterna em psicalise
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras do Centro de Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo como um dos
requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários.
Viria
2003
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DEFESA DE DISSERTAÇÃO
MORAIS, Rosane. A lei do pai: leitura de Grande sertão: veredas a partir da função
paterna em psicanálise. Vitória, 2003. 100 f. Dissertação (Mestrado em Estudos
Literários) Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito
Santo.
BANCA EXAMINADORA
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Professor Doutor Wilberth Claython Ferreira Salgueiro
Membro Orientador
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Professora Doutora Ester Abreu Vieira de Oliveira
Membro Titular
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Professora Doutora Marília Rothier Cardoso
Membro Titular
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Professor Doutor Fernando Mendes Pessoa
Membro Suplente
Vitória, ______ de ________________ de 2003.
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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Morais, Rosane, 1954-
M827l
A lei do pai: leitura de Grande sertão: veredas a partir da
função paterna em psicanálise / Rosane Morais. 2003.
100 f.
Orientador: Wilberth Claython Ferreira Salgueiro.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais.
1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967 Crítica e interpretação.
2. Freud, Sigmund, 1856-1939. 3. Lacan, Jacques, 1901-1981. 4.
Psicanálise e literatura. 5. Figura paterna. I. Salgueiro, Wilberth
Claython Ferreira. II. Universidade Federal do Espírito Santo.
Centro de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.
CDU: 82.0
A Cyro (in memoriam) e Maria,
meus tios-pais, pelo dom.
Agradeço:
a Wilberth Claython F. Salgueiro, pela orientação segura e generosa,
a Maria Celeste Faria, pela troca necessária,
a Simoni do Carmo M. lle, pelo referencial psicanalítico,
e a todos que propiciaram minha produção.
O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso
mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o
rabo da palavra.
Riobaldo
SIGLAS UTILIZADAS
TMR A terceira margem do rio
GSV Grande sertão: veredas
SUMÁRIO
RESUMO ......................................................................................................................... 9
RÉSUMÉ .........................................................................................................................10
I Literatura e Psicanálise ................................................................................................12
........................................................................................................................................21
II Considerações sobre a estética freudiana ...................................................................21
2.1 O unheimlich: a inquietante estranheza .........................................................................22
2.1.1 A terceira margem do rio: um relato de unheimlich em literatura ............................27
III A função paterna .......................................................................................................36
3.1 Horda primitiva e jagunçagem .....................................................................................36
3.2 Diadorim, Riobaldo e o pai ..........................................................................................42
3.3 O pacto com o diabo ...................................................................................................45
3.3.1 O pactário Hermógenes ............................................................................................56
IV A travessia ..................................................................................................................60
4.1 O Liso do Suçuarão: um entrelugar .............................................................................60
4.2 Zé Bebelo / Riobaldo ...................................................................................................64
4.3 O homem humano .......................................................................................................69
V O pai e a questão da autoria .......................................................................................81
VI Referências .................................................................................................................92
VII Bibliografia ...............................................................................................................99
RESUMO
Estabeleço relações entre literatura e psicanálise a partir de Grande sertão: veredas, de
João Guimarães Rosa, no que diz respeito ao tema função paterna. Dirijo-me à obra de
Rosa na tentativa de encontro de uma resposta para uma pergunta que inquietava Freud
desde o icio da psicanálise: o que é um pai? A teoria freudiana do pai e a posterior
concepção lacaniana da metáfora paterna e do Nome-do-pai possibilitam uma ampliação
deste conceito em psicanálise, para além do pai biológico. Dentro dessa perspectiva, é
possível extrair da obra em questão uma trilogia de pais caracterizados por personagens do
romance rosiano. Embora se tratando de campos diferentes, com referenciais teóricos
próprios, literatura e psicanálise mantêm entre si uma possibilidade dialógica abordada desde
Freud até autores atuais. Tento extrair um saber do texto literário por considerar a
hipótese freudiana de que o escritor/poeta é um aliado do psicanalista e, conseqüentemente,
a literatura, um campo privilegiado de pesquisa.
RÉSUMÉ
Jétablis des rapports entre litttérature et psychanalyse dans Grande sertão: veredas, de
João Guimarães Rosa en ce qui concerne le thème de la fonction paternelle. Je madresse à
loeuvre de Rosa, dans la tentative de trouver une réponse à la question qui inquiétait Freud
depuis le début de la psychanalyse: quest quun père? La torie freudienne du père, suive
de la conception lacanienne de la métaphore paternelle et du Nom-du-père, rend possible
une amplification de ce concept dans la psychanalyse, au delà du père biologique. Dans cette
perspective, il est possible dextraire dans leouvre en question une trilogie de pères
caractérisés par des personnages du roman rosiano. Bien quil sagisse de champs
difrents, avec des référentiels théoriques propres, littérature et psychanalyse maintiennent
une possibilité dialogique abordée depuis Freud jusquà des auteurs actuels. J essaye
dextraire un savoir du texte littéraire parce que je considère lhypothèse freudienne selon
laquelle lécrivain/le poète est un allié du psychanalyste et, par conséquent, la littérature est
un champ privilégié de recherche.
12
I Literatura e Psicanálise
Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem que depor suas armas.
(Freud. Dostoiévski e o parricídio)
(...) não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe,
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha a caber
O incabível
(Gilberto Gil. Metáfora)
O trabalho na interface da literatura com a psicanálise envolve questões advindas de dois
campos diferentes, com referenciais tricos próprios. No entanto, eles mantêm entre si uma
possibilidade dialógica inaugurada pelo próprio Sigmund Freud, que apontou em vários
artigos as afinidades entre estes dois campos de saber. Freud utilizou duas vias principais de
pesquisa em relação à literatura. A primeira visa à condição estética, ao talento do gênio
criador. Por esta via ele abordou a função da arte para a humanidade, bem como o romance
familiar do autor. Assim, deduzir de uma obra fáceis inferências sobre seu criador era uma
tentação para os críticos psicanalíticos
1
. O equívoco seria tentar analisar o criador pela sua
obra. A segunda toma a literatura como saber textual a partir do qual seria possível uma
abordagem do real traumático. É um momento em que se convoca a Literatura para dizer
aquilo que a Psicanálise não alcança
2
. Trata-se da utilização do mito; assim Freud extrai do
Édipo-Rei, de Sófocles, o mito primordial da psicanálise.
1
GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 297.
2
VILLARI, R. A. Relações possíveis e impossíveis entre a psicanálise e a literatura. Revista
Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, Conselho Federal de Psicologia, n. 2, 2000, p. 3.
13
A convergência entre estes dois campos de saber coloca-se, de saída, pelo fato de que a
linguagem constitui o objeto, tanto da literatura, quanto da psicanálise, cujo principal
instrumento é a narrativa do analisando.
Freud se preocupou essencialmente com o processo criativo, e, sob este ângulo, interrogou
o texto literário em si. Ele queria saber como o escritor criativo (Dichter) consegue, através
de sua obra, antecipar questões sobre o psiquismo humano às quais o psicanalista tem
acesso através de um árduo trabalho de elaboração. A hipótese freudiana é de que o escritor
mantém um comércio privilegiado com o inconsciente; utilizando-se de uma obra literária
o psicanalista vai aprender com o texto. Portanto, a literatura faz avançar a psicanálise
abrindo novas vias e fornecendo elementos à teoria psicanalítica. Muitas vezes, Freud parte
da clínica para interrogar a obra tentando elucidar os impasses surgidos em sua escuta de
pacientes. Não se trata, então, de chapar o texto literário tentando encontrar os
pressupostos tricos da psicanálise na obra, mas sim da construção de um saber novo a
partir do texto. Para Freud, os escritores antecipam o psicanalista e ele rende-lhes seu
reconhecimento: Os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve
ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o
u e a terra com as quais nossa filosofia não nos deixou sonhar.
3
Freud foi, antes de tudo, um leitor; ele se interessou pela estética da recepção lato sensu. A
teoria da Estética da Recepção, que surgiu ao final dos anos sessenta, desloca o foco de
3
FREUD, S. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]). In: Gradiva de Jensen e
outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 9, p.18.
14
interesse da crítica moderna para a figura do leitor. Hans Robert Jauss, um dos
representantes mais conhecidos desse movimento, pretende que, reconstruindo o horizonte
de expectativa dos receptores (ou seja, seu sistema de referências: gênero, forma, tema), se
possa determinar a situação histórica de cada obra literária.
4
Um autor que exemplifica essa
idéia é Jorge Luis Borges, através do conto Pierre Menard, autor do Quixote
5
, no qual o
narrador tenta encontrar na listagem bibliográfica das obras de Menard uma referência ao
projeto de reescrever o Dom Quixote, de Cervantes, tal como revelara um amigo seu antes
de morrer. Não tendo encontrado indícios dessa elaboração na produção deixada por
Menard, ele se encarrega de relatar o que considera uma tarefa subterrânea, a
interminavelmente heróica e ímpar: a de produzir um texto idêntico ao do original
espanhol, mas que o narrador borgiano considera totalmente diferente. Para Borges, a
reprodução de Menard cria outros sentidos interpretativos devido ao contexto novo em que
ela é relançada; trata-se de uma reconstrução. Sob a pena de um autor deste século, as
idéias de Cervantes surgem com nova roupagem; ganham interpretações renovadoras, que
somente um leitor do século XX lhes poderia dar.
6
Para Freud, a influência do leitor-criador já se colocava. Ele se pergunta como o escritor
consegue produzir efeitos de afeto no leitor. De que fontes ele retira seu material? Acaso
haveria em nós mesmos uma atividade afim à criação literária? Será que podemos encontrar
já na infância os primeiros traços da atividade imaginativa? Segundo Freud, podemos fazer
4
CARVALHAL, Tânia F. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986, p. 67.
5
BORGES, J. L. Ficciones. Madrid: Alianza, 1986.
6
CARVALHAL, op. cit., p. 70, nota 4.
15
uma aproximação entre o brincar infantil e a criação. A linguagem preservou essa relação
entre o brincar e a criação poética: o termo alemão Spiel é utilizado para designar tanto a
atividade de representar quanto o brincar (Freud, 1908). Sabemos, com Freud, que toda
fantasia é a realização de um desejo e, como o brincar e os sonhos, uma correção de uma
realidade insatisfatória. A suposição freudiana é de que tanto a criação literária, como o
fantasiar, são um substituto do que foi o brincar infantil. A obra literária possibilitaria uma
suspensão do recalque colocando em cena mecanismos inconscientes que fazem parte dos
desejos mais íntimos de todos nós. Sobre a peça Hamlet, de Shakespeare, Freud coloca que
o que possibilita o mecanismo da fruição é a identificação do espectador com o herói, é
fácil reconhecermos a nós próprios no herói: somos suscetíveis ao mesmo conflito que
ele...
7
Freud chama atenção para a habilidade do dramaturgo em evitar resistências e
oferecer prazeres antecipados, desviando a atenção para as emoções do próprio espectador.
O escritor nos seduz inicialmente por um prazer puramente formal chamado por Freud de
prazer preliminar; após o alívio da tensão, há a liberação de um outro tipo de prazer mais
profundo, ligado a uma descarga de libido sexual. Escrever (ou representar) é uma tentativa
de dar conta do trauma que é, ao mesmo tempo, contingente, podendo acontecer ou não na
vida de alguém, e estrutural para o ser humano, dado que, para a psicanálise, o sexual é
sempre traumático. O bom escritor é aquele que consegue, através de sua obra, abordar este
ponto, não o contingente, mas algo que é da ordem do recalque primário, que nunca foi
7
FREUD, S. Tipos psicoticos no palco (1942[1905-6]). In: Fragmento da análise de um caso
de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1972, v.
7, p. 325.
16
consciente e que faz parte do psiquismo humano. As grandes obras transcendem o particular
para o universal.
Ao interpretar uma obra literária, Freud sugere que a tomemos em seu sentido literal,
seguindo o fio da narrativa, para, então, intercalarmos a glosa psicanalítica. No artigo
Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907), Freud propõe uma submissão ao texto,
com uma preocupação de se manter vinculado aos significantes do texto. Para alguns
autores, este apego ao literal impediu-o de cair na metafísica, de mergulhar num misticismo
impossível de sustentar teoricamente.
8
Este rigor não ocorreu por parte de Jung, por
exemplo, que se desviou para a psicologia utilizando um tipo de interpretação simbólica
(mística) que nada tem a ver com a psicanálise. Freud fez questão de deixar um enigma
quanto ao seu objeto de estudo: o ato criativo. Este enigma um não saber sobre o que é da
ordem do sexual faz parte da estrutura humana e é o que causa o empuxo à simbolização
literária.
Quanto à glosa psicanalítica, se Freud coloca este termo e não o termo comentário é
porque a idéia de glosa indica algum tipo de interpretação própria da psicanálise. Podemos
nos perguntar: então, qual seria o método de interpretação utilizado por Freud ao analisar
uma obra? A resposta baseia-se no método de interpretação de sonhos. Freud relata dois
métodos populares para interpretar sonhos: a interpretação simbólica, que analisa o
conteúdo do sonho como um todo e tenta substit-lo por um outro conteúdo mais
8
BELLEMIN-NOEL, J. Psicalise e literatura. Tradução de Álvaro Lorencini; Sandra Nitrini.
São Paulo: Cultrix, 1978, p. 18.
17
inteligível; e o método de decifração, que trata os sonhos como uma espécie de criptografia
a ser desvelada. O essencial neste método é que o trabalho de decifração não diz respeito ao
sonho como um todo, mas a cada elemento ou detalhe independentemente. Freud escolhe o
segundo tipo de método. Em seu estudo sobre A Gradiva ele se atém aos pequenos
detalhes da narrativa, como a posição do da personagem Zoé, que pode ser considerada
como a chave da análise freudiana do romance. O método de abordagem da psicanálise em
relação ao texto literário leva em consideração o saber que está colocado no texto, saber
que não é necessariamente sabido pelo escritor. O conceito lacaniano de grande Outro ajuda
a esclarecer este ponto. O outro é o tesouro significante, herança simbólica herdada por um
sujeito. Este saber não sabido é o pressuposto psicanalítico de base em relação ao ato
criativo, saber que transcende os limites egóicos do escritor. Então, o psicanalista vai
trabalhar com o texto literário sem se preocupar com a intenção do autor, já que esta, muitas
vezes, é inconsciente. O método é manter-se ao pé da letra e a partir daí produzir a
interpretação-glosa.
A glosa freudiana parece implicar o duplo sentido do termo: ser ao mesmo tempo um suplemento
ocioso, menos rico que o texto que apenas parafraseia, e ainda um complemento indispensável; faz
o texto chegar até ele próprio, transformando um texto obscuro num texto claro, fazendo passar do
implícito ao explícito. A glosa, compreendida nesse duplo sentido, permitiria o ser fiel ao
texto, como também tor-lo inteligível. (Koffman, S., 1973, p. 62).
A idéia de glosa sugere que o trabalho de crítica literária psicanalítica é uma reescritura do
texto. É algo da ordem de uma construção. Sobre Hamlet, Freud coloca: de fato, o conflito
18
está tão oculto que coube a mim desvendá-lo.
9
Freud refere-se ao complexo de Édipo, mito
inerente ao humano. Aqui evocamos a figura do leitor: é ele quem possibilita que o texto
diga algo. O trabalho de leitura possibilita o relançamento da escrita; neste sentido,
concordamos com Roland Barthes:
O interdisciplinar, de que tanto se fala, o está em confrontar disciplinas constituídas das quais,
na realidade, nenhuma consente em abandonar-se. Para se fazer interdisciplinaridade, o basta
tomar o assunto (um tema) e convocar em torno duas ou três ciências. A interdisciplinaridade
consiste em criar um objeto novo que não pertença a ninguém. O texto é, creio eu, um desses
objetos. (Barthes, 1987, p. 99)
Para a psicanálise o leitor se coloca frente à obra literária enquanto falta, o que possibilita a
produção de textos originados pelo diálogo no campo da intertextualidade. Leitura é uma
palavra feminina, o que implica numa falta e numa abertura para uma equivocação do
enigmático aberto ao deciframento
10
. O método psicanalítico de abordagem do texto
literário leva em consideração o saber que está colocado no texto, não um saber
aprioristicamente sabido. Partindo dessa concepção, proponho um diálogo com a literatura
como uma possibilidade de resposta para uma pergunta que inquietava Freud desde o início
da psicanálise: o que é um pai? Ao dirigir-me à obra de Rosa, suponho encontrar subsídios
para trabalhar com o conceito de função paterna, partindo da hitese freudiana de que os
escritores têm algo a ensinar aos psicanalistas. O pai psicanalítico transcende o pai biológico,
ele é uma função, e, de acordo com a lógica matemática, uma operação pela qual um termo
9
FREUD, S. Tipos psicopáticos no palco (1942[1905-6]). In: Fragmento da análise de um caso
de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1972,
v. 7, p. 326.
10
MOREY, E. Leitura, uma passagem ao feminino. In: Revista Literal 0. Campinas, Escola
Lacaniana de Psicalise de Campinas, 1998, p. 18.
19
produz outro. Ou seja, se trata daquilo que se define por sua não-saturabilidade, algo que
necessita de complemento. Devido à sua natureza metafórica, apontada por Jacques Lacan
com o conceito de Nome-do-pai
11
, ele possibilita o estabelecimento de uma relação entre
discurso psicanalítico e discurso literário, campos onde ocorre o predomínio do figurado (ou
simbólico) sobre o literal. Fazendo-me leitora e intérprete, abordo o romance Grande
sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, sob o ponto de vista do sujeito Riobaldo, que,
em suas aventuras pelo sertão dos Gerais, constrói, a posteriori, a estória de suas próprias
origens, a jagunçagem funcionando como suplência do que faltou em sua vida pessoal.
Vivendo debaixo da proteção materna até a adolescência, Riobaldo cresceu sem a presença
de um pai real, até o encontro com Diadorim, ocasião em que, pela primeira vez, se faz
referência a um pai no romance. A presença pela ausência do chefe Joca Ramiro é de
fundamental importância para o destino de Riobaldo no desenrolar da narrativa. O romance
de Rosa descreve essa etapa da constituição do sujeito que, do ponto de vista da psicanálise,
implica, necessariamente, a construção da figura paterna. Na abordagem desse tema tão caro
a Freud, estabeleço algumas considerações sobre a estética freudiana, desenvolvidas no
capítulo II. O tema do unheimlich, bastante utilizado em literatura fantástica, permite uma
leitura do conto A terceira margem do rio, de Rosa, pela análise do duplo. A partir dos
efeitos de afeto produzidos nele próprio pela obra O homem da areia, de E. T. A.
Hoffman, Freud conceitua o estranho-familiar.
11
(...) o Nome-do-pai (Nom-du-Père), um termo que comporta um-a-mais de sentido, na medida em
que se refere tanto ao ato de nomear (presente no francês nom) como à proibição do incesto, ao não (ao
non) que é dito a este. Sobretudo, esse tropo, baseado na figura do pai, o deve ser tomado literalmente. O
Nome-do-pai é um tópos (como lugar) lingüístico e, como tal, pode ser ocupado por diversos agentes que não
se circunscrevem ao pai biológico ou social. AZEVEDO, Ana V. de. A metáfora paterna na psicanálise e
na literatura. Brasília: Editora UNB, 2001, p. 15.
20
No caso do personagem-narrador do conto rosiano, percebe-se uma mistura de si mesmo
com o outro (pai), caracterizando um jogo de espelhamentos. Tal constatação nos
possibilitará a conceituação de uma das vertentes do pai para a psicanálise, o pai
imaginário. No capítulo III, o desenvolvimento deste tema será ampliado com a introdução
do conceito de pai simbólico, passando pela análise do pai real. Baseado na psicologia dos
povos primitivos que viviam em pequenos grupos ou hordas, Freud conceituou o mito do
pai primevo, o Urvater, pai poderoso que possuía todas as mulheres. O tema do assassinato
do pai será abordado fazendo um paralelo com o Grande sertão, em que ocorre a morte do
personagem Joca Ramiro. A intenção é pensar o romance como correlativo da instauração
de uma lei simbólica com a morte do chefe jagunço. Ainda dentro do tema do pai, será
analisado o pacto com o diabo, apontado por Freud como um substituto da figura paterna.
A proposta é analisar o pacto empreendido pelo personagem-narrador, que possibilitou a
Riobaldo fazer sua travessia, passando de simples jagunço a chefe de bando. Paralelamente,
a novela O diabo amoroso, de Jacques Cazzote, será objeto de interrogação, a partir da
colocação, de Lacan, do diabo como porta-voz do desejo humano. A pergunta Che vuoi?
(Que queres?), introduzida pelo diabo, coloca a questão do enigma do desejo,
fundamental para a constituição do sujeito. Ao longo da dissertação desenvolvo relações
entre as três vertentes do pai em Grande sertão: veredas, utilizando-me do referencial
psicanalítico, tanto em Freud quanto em Lacan. Os chefes jagunços podem ser considerados
como ocupando a função de pais de Riobaldo, como compensação da orfandade do
personagem. No capítulo IV, introduzo o tema travessia apontando posições distintas dos
personagens-narradores de Grande sertão: veredas e A terceira margem do rio. Minha
21
hipótese é que com a criação do significante homem humano Riobaldo faz uma travessia do
fantasma
12
, assumindo o próprio desejo. No caso do personagem do conto rosiano, ele
permanece na beira do rio, preso àquele pai idealizado, incapaz de constituir uma vida
própria. No último capítulo, levanto algumas considerações sobre autoria e paternidade,
assunto presente no romance de Rosa.
Propor uma relação entre literatura e psicanálise significa enfrentar desafios.
possibilidades e impossibilidades entre estes dois campos de saber, embora, cada dia mais, se
afirme uma crítica literária que se define como psicanalítica. Como foi colocado pelo próprio
pai da psicanálise, analisar (ou interpretar), como educar e governar, é algo da ordem do
impossível.
13
Esta dissertação se coloca como uma tentativa de um dizer sobre o impossível.
12
Refiro-me aqui ao sentido psicanalítico do termo, que aliena o sujeito aos significantes parentais
que o constituem.
13
FREUD, S. Análise termivel e intermivel (1937). In: Moisés e o monoteísmo, esboço de
psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v. 23.
22
II Considerações sobre a estética freudiana
Unheimlich é tudo que deveria ter permanecido secreto mas veio à luz.
(Schelling apud Freud. O estranho)
Eu era dois, diversos? (Riobaldo. GSV)
2.1 O unheimlich: a inquietante estranheza
14
Como ávido leitor, Freud se interessava não apenas pelos grandes escritores, mas também
pelas obras da chamada literatura popular as quais considerava, independentemente de seu
valor literário, capazes de despertar os devaneios mais comuns: os grandes valores de glória,
de riqueza e de amor. Assim, estas obras seriam mais propiciadoras de prazer; e mesmo
ocupando-se com os grandes escritores, que considerava como seus mestres, Freud
ressaltava o valor do prazer de leitura.
A introdução de Das Unheimliche (O Estranho) coincide com um novo patamar da teoria
freudiana da literatura. A partir da constatação do efeito de retorno dos conteúdos
recalcados que são produtores de angústia, Freud se depara com um excesso que não tem
como ser representado pelo aparelho psíquico, algo que escapa à simbolização. Freud se
dirige à literatura, no caso à obra O homem da areia, de E.T.A. Hoffmann, em busca de
subsídios para teorizar sobre os impasses surgidos na clínica, partindo da percepção de que
14
Este termo é utilizado por Paul L. Assoun como tradução do unheimlich freudiano. ASSOUN, P.
Littérature et psychanalyse. Paris: Ellipses, 1996.
23
apenas os elementos fornecidos pela teoria psicanalítica não seriam capazes de solucionar
tais impasses.
Freud lança mão da literatura como possibilidade de um dizer sobre o real traumático. É sob
este viés que ele empreende seu estudo da inquietante estranheza. O que provoca o
unheimlich? Freud inicia o artigo fazendo uma análise lingüística da palavra unheimlich nos
diferentes idiomas:
- no latim: um lugar estranho: locus suspectus; uma estranha hora da noite: intempesta
nocte;
- no grego: xevos (isto é, estranho, estrangeiro);
- no inglês: unconfortable, uneasy, gloomy, dismal, uncanny, ghastly; (of a house) haunted;
(of a man) a repulsive fellow;
- no francês: inquiétant, sinistre, lugubre, mal à son aise;
- no espanhol: sospechoso, de mal aguero, lúgubre, siniestro;
- em árabe e hebreu, "estranho" significa o mesmo que demoníaco, horrível;
- em português e italiano, Freud coloca que não há uma tradução apropriada para o termo;
- no alemão, no Worterbuch der Deutschen Sprache (1860), de Daniel Sanders, encontram-
se as seguintes acepções do termo: Heimlich, adj., subst. Heimlichkeit (pl. heimlichkeiten):
I. Também heimlich, heimelig, pertencente à casa, não estranho, familiar, doméstico, íntimo,
amistoso, etc. II. Escondido, oculto da vista, de modo que os outros não consigam saber,
sonegado aos outros. Note-se particularmente o negativo "un": misterioso, sobrenatural, que
desperta horrível temor.
24
Segundo Freud, heimlich é uma palavra antitética: entre seus diferentes significados, ela
exibe um que é idêntico ao seu oposto unheimlich. A palavra heimlich também é ambígua,
pertence a dois conjuntos de idéias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito
diferentes: por um lado, significa o que é familiar e agradável; por outro, o que está oculto e
se mantém fora da vista. Da idéia de familiar, pertencente à casa, desenvolve-se outra idéia
de algo escondido, secreto, e essa idéia pode expandir-se de vários modos... Freud conclui
que unheimlich é uma subespécie de heimlich; trata-se do estranho-familiar.
Na obra citada, ele diz:
Nada em absoluto encontra-se a respeito deste assunto em extensos tratados de estética, que, em
geral, preferem preocupar-se com o que é belo, atraente e sublime e com as circunstâncias e os
objetos que os trazem à tona, mais do que com os sentimentos opostos, de repulsa e de aflição.
(Freud, 1919, p. 276)
Freud privilegia a definição de Schelling, do unheimlich como o que deveria ter
permanecido secreto mas veio à luz. Ele faz uma distinção entre o unheimlich literário e o
unheimlich da vida cotidiana. Muitas coisas que não são inquietantemente estranhas na obra
literária, o seriam na vida real. A ficção literária possibilita a criação de um unheimlich
próprio, comum na chamada literatura de gênero fantástico.
O termo fantástico (do latim phantasticu, por sua vez do grego phantastikós, os dois oriundos de
phantasia) refere-se ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o
fabuloso. Aplica-se, portanto, melhor a um fenômeno de caráter artístico, como é a literatura, cujo
universo é sempre ficcional por excelência, por mais que se queira aproximá-lo do real. (Rodrigues,
1988, p. 9)
Jorge Luis Borges prefere essa modalidade de narrativa, levando a ficção às últimas
conseqüências. Borges se baseia na magia como a simpatia que postula um vínculo
25
inevitável entre coisas distantes, ora porque sua figura é igual (magia imitativa,
homeopática), ora pelo fato de uma proximidade anterior (magia contagiosa).
15
São
exemplos de outras formas deste mecanismo: os duplos (dois personagens que são uma
mesma pessoa ou um personagem que se desdobra em dois), as viagens no tempo, e os
sonhos. A causalidade mágica é uma forma de oposição às convenções ditas realistas.
No artigo O estranho (1919), Freud aponta três instâncias: o maravilhoso, o mundo de faz
de conta onde não se questionam as inverossimilhanças; um maravilhoso não tão radical,
onde seres sobrenaturais convivem com os personagens sem comprometimento da narrativa
(verossimilhança); e o estranho, universo por excelência do fantástico. Freud aborda a
angústia provocada por algo familiar que causa terror. A angústia surge devido a um desejo
ou até mesmo a uma crença infantil. É algo desejado pelo sujeito que por algum motivo é
recalcado e, num determinado momento, retorna. A qualidade de estranheza só ocorre
mediante a repetição da mesma coisa, que evoca a sensação de desamparo experimentada
em alguns sonhos. Assim diz Freud: é esse fator de repetição involuntária que cerca o que
de outra forma seria bastante inocente, de uma atmosfera estranha e que nos impõe a idéia
de algo fatídico e inescapável...
16
Para ilustrar este efeito de inquietante estranheza, ele
menciona casos em que uma repetição involuntária que seria considerada como casualidade
adquire uma conotação estranha, por exemplo, a repetição do número 62. Este número nada
15
RODRIGUES, S. C. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988, p. 15.
16
FREUD, S. O estranho (1919). In: História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de
Janeiro: Imago, 1976, v. 17, p. 296.
26
teria de especial se fosse somente a senha que nos deram no guarda-roupa em troca do
nosso chapéu. Poderia ser tamm o número de nossa cabine em um navio.
No entanto, se nos depararmos várias vezes com esse número num curto período de tempo,
tal repetição poderia ser unheimlich e poderíamos ficar tentados a atribuir-lhe um
significado secreto, por exemplo, uma indicação do nosso tempo de vida. Para Freud, os
temas de estranheza sempre dizem respeito ao fenômeno do duplo. Freud cita um episódio
acontecido com ele próprio numa viagem de trem. Quando estava prestes a se deitar,
entrar em sua cabine um senhor de idade, de roupão e boné, pelo qual sente uma imediata
antipatia. ia repreendê-lo dizendo que havia se enganado de cabine, quando, para seu
espanto, percebe tratar-se de sua própria imagem refletida no espelho do toalete, cuja porta
abrira-se repentinamente. Freud se pergunta se a repulsa que sentiu não seria uma reação à
aparição do duplo. O tema do duplo foi abordado por Otto Rank (1914), relacionado com
reflexos em espelhos, com sombras, com espíritos guardiões, com a crença na alma e com o
medo da morte. Originalmente o duplo seria uma segurança contra a destruição do ego e,
provavelmente, a alma imortal foi o primeiro duplo do corpo. Segundo Freud, as formas de
perturbação do ego exploradas por Hoffmann poderiam ser avaliadas de acordo com os
mesmos parâmetros do tema do duplo: são um retorno a determinadas fases de elevação do
sentimento de autoconsideração, uma regressão a um período em que o ego não se
distinguia ainda do mundo externo e das outras pessoas. Não é um conteúdo recalcado
qualquer que retorna, é algo bem específico e que passa pela questão do animismo. O
27
animismo está relacionado à onipotência do pensamento e inclui a magia, as superstições, a
crença na alma e nos espíritos. A sensação de estranheza vem de uma não delimitação do
dentro e do fora, é quando algo do interior (do sujeito) retorna do exterior. Freud nos diz no
artigo O estranho: O duplo converteu-se num objeto de terror, tal como, após o
colapso da religião, os deuses se transformaram em demônios.
17
A este respeito, podemos ressaltar o que Freud deve a E.T.A. Hoffman: com a conceituação
do tema do unheimlich a psicanálise contribuiu com o campo da estética, aqui tomada não
apenas como teoria da beleza, mas das qualidades do sentir. A pesquisa de Freud, junto à
obra de Hoffmann, permitiu a abordagem dos sentimentos de repulsa e de aflição geralmente
negligenciados pelos tratados sobre o assunto.
2.1.1 A terceira margem do rio: um relato de unheimlich em literatura
Ao tomar como objeto de indagação A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa,
propomos uma possibilidade de interpretação dentre várias outras, visto tratar-se de um
conto enigmático que, como obra aberta,
18
permite várias possibilidades de leitura.
O conto de Rosa relata a estória de um pai que, sem motivo aparente, vai para um rio numa
pequena canoa e de lá não sai mais, dado o voto pela mãe de que, se fosse, nunca mais
voltasse. Apenas um filho fica esperando por ele na beira do rio, encarregando-se de deixar
17
FREUD, S. O estranho (1919). In: História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de
Janeiro: Imago, 1976, v. 17, p. 295.
18
A obra aberta é aquela que representa um campo de possibilidades interpretativas, estruturadas de
forma a permitir uma série de leituras constantemente varveis, à maneira de uma constelação de elementos
que se prestam a diversas relações recíprocas.
28
alguns mantimentos para alimentá-lo. Todos pensaram tratar-se de doideira, pagamento de
promessa ou que o pai estivesse com alguma grave doença contagiosa.
Um dia, o filho, velho, vai para o rio, chama pelo pai e diz que deseja ficar em seu lugar
naquela estranha missão. O pai concorda e acena para ele, que foge apavorado, pensando
tratar-se de uma aparição.
O que leva um pai a isolar-se do convívio da família tal como ocorre no conto de Guimarães
Rosa? Observem-se os adjetivos a ele atribuídos: homem cumpridor, ordeiro, positivo...
quieto. (TMR, p. 32) Nada que passe a idéia de doideira, crise existencial, ou algo
dessa ordem. Ao contrário, há uma determinação do pai, como se ele soubesse exatamente o
que estava fazendo, nenhuma dúvida quanto ao seu ato, a não ser um momento de contida
emoção ao despedir-se do filho. Na descrição do dia a dia da família, nota-se a ascendência
materna sobre os filhos: Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente.
(TMR, p. 32) E sua fala fatalista em relação à atitude do pai: vai, ocê fique, você
nunca volte! E, então, o surgimento de algo inesperado: a terceira margem inaugurada pelo
pai, que se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. (TMR,
p. 33) Note-se que aquele pai não vai embora para sempre, ele permanece na canoa, no meio
do rio, presente pela ausência.
Permito-me discordar de algumas interpretações que colocam como doideira a atitude
daquele pai, ou que tentam analisar o conto do ponto de vista da metafísica. Ao meu ver, a
obra metaforiza uma das vertentes do pai para a psicanálise. Posicionando-se perto e
longe, o pai delimita um lugar que talvez não pudesse ocupar vivendo no seio da família,
29
que ali quem regia era a mãe. Note-se a fala do narrador diante de um elogio a ele dirigido
por bom procedimento: Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..., mesmo
sabendo tratar-se de mentira por verdade. O fato é que, mesmo ausente e apesar do
comportamento estranho, o pai cumpre sua função.
Retomo aqui a concepção freudiana de unheimlich, um familiar e conhecido que se tornou
alheio pelo processo de recalque e que adquire sua força justamente pelo fato dessa
exclusão. Para abordar esse ponto, Jacques Lacan inventou o termo êxtimo, extimidade,
para definir o que se encontra fora e faz parte do mais íntimo do sujeito.
19
No conto As ruínas circulares
20
Borges relata a história de um asceta da Índia, adorador
do fogo, que decide sonhar um filho e inseri-lo na realidade para que continuasse, em outra
parte, sua vocação sacerdotal. Depois de passar por várias provas, consegue sonhá-lo, e
consegue apagar no filho o conhecimento de sua origem. Sua condição de fantasma será
desconhecida de todos, a não ser do fogo. O asceta envia o filho para um outro lugar. No
final do conto, o santuário onde vive o asceta pega fogo e ele não é queimado pelas
labaredas. Então, ele compreende que é pura aparência, que outro também o havia sonhado.
Podemos observar que, no conto de Borges, o protagonista fraciona-se num criador e numa
criatura. No conto A terceira margem do rio, de Rosa, podemos fazer uma análise baseada
no mesmo tema do duplo. Observa-se, no desenvolvimento da narrativa, que o pai vai
assumindo uma forma inumana, aspecto de bicho, vulto, fantasma? Até que passa a assustar
19
SOUZA, N. S. O estrangeiro: nossa condição. In: KOLTAI, Caterina. (Org.) O Estrangeiro. São
Paulo: Escuta, 1998.
20
BORGES, Jorge Luis. Ficciones. Madrid: Alianza, 1986.
30
o filho, adulto, porém dependente, preso nas proximidades do rio. Também o filho, por
sua vez, vai paulatinamente se assemelhando ao pai, o que reforça o tema da
especularização, do duplo que comentarei adiante. Assim descreve o narrador a atitude do
pai ao seu apelo para substit-lo naquele intento:
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi,
profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto o
primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos,
corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte
de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (Rosa, 1986, p. 37)
Por que aquele pai assombra o filho? Minha hitese é que, devido ao sentimento de
culpa, ele fica preso a este pai imaginário, idealizado. Podemos fazer um paralelo com a
situação de desamparo inicial dos seres humanos, sua total dependência de um outro, numa
etapa em que não havia ainda uma tida delimitação frente ao semelhante e ao mundo. O
sujeito humano encontra no outro (o espelho) a possibilidade de se ver por inteiro, mas às
custas de sua alienação.
No seminário A angústia (1962-63), Jacques Lacan retoma o unheimlich freudiano
afirmando que neste lugar do Outro, autentificado pelo outro, se perfila uma imagem
refletida, já problemática, e mesmo falaciosa de nós mesmos, que está num lugar que se
caracteriza por uma falta...
21
Nesta relação, aquilo que seria mais familiar, a própria
imagem, se torna estranho; o sujeito se vê como um outro. Podemos perceber que, ao longo
da narrativa, o filho se torna parecido com o pai, ao mesmo tempo, culpando-se e
21
LACAN, J. A angústia (1962-63). In: O seminário: livro 10. Apostila, p. 31.
31
identificando-se com ele. Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta,
tanta culpa? (...) Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro (TMR,
p.36).
Freud aborda o tema do duplo através da obra O homem da areia, já citada. A estória
inicia-se com as recordações de infância do estudante Natanael, cujo pai acaba morrendo de
forma misteriosa e apavorante. O pai de Natanael tinha um hábito antigo de, após o jantar,
reunir a família em seu gabinete de trabalho, onde se sentavam em volta de uma grande mesa
redonda. Freqüentemente ele contava estórias maravilhosas que encantavam as crianças.
Outras vezes, distribuía livros ilustrados para os filhos e permanecia sentado na poltrona,
fumando seu cachimbo, soprando fortes baforadas de fumaça, de modo que todos ficavam
envoltos em névoa. Nessas noites, a mãe de Natanael ficava muito triste e costumava
mandá-los mais cedo para a cama, dizendo que o homem da areia estaria chegando. Certa
vez, o menino perguntou à mãe quem era aquele homem da areia que sempre os separava
do pai. A mãe desconversou, e a criança, bastante curiosa, foi perguntar à babá sobre o
malvado homem. Assim relatou a babá do menino a estória:
É um homem mau, que se aproxima das crianças quando elas não querem ir para a cama e lhes joga
punhados de areia nos olhos; estes então saltam sangrando da cabeça e ele os coloca num saco e os
leva para a Lua, a fim de alimentar suas criancinhas, que lá ficam no ninho e têm os bicos
retorcidos como corujas, com os quais comem os olhos das crianças travessas. (Hoffmann, 1996, p.
19)
O sentimento de estranheza no conto deve-se ao temor do homem da areia que arranca os
olhos das crianças. De acordo com o que nos revela a experiência psicanalítica em sua
análise dos neuróticos, como também alguns mitos e lendas, o medo de ferir ou perder os
32
próprios olhos é um dos mais terríveis temores das crianças existe uma relação substitutiva
entre o olho e o órgão genital masculino e Freud relaciona este medo ao temor de ser
castrado. No conto de Hoffmann essa angústia está diretamente relacionada ao complexo
de castração e tudo se torna compreenvel se substituirmos o homem da areia pelo pai
temido.
O pequeno Natanael determinou-se em descobrir que aparência teria o homem da areia e,
uma noite, resolveu esconder-se no escritório do pai, reconhecendo o visitante habitual
como sendo o advogado Copélio, uma pessoa repulsiva que amedrontava as crianças
quando aparecia em sua casa para jantar. E o menino identificava agora Copélio como sendo
o temido homem da areia. Freud coloca que daí em diante não se sabe mais se a narrativa
é o que se poderia chamar o primeiro delírio do narrador, ou uma sucessão de
acontecimentos que podem ser considerados como reais na história. O pai e seu convidado
estão trabalhando num braseiro incandescente, e Natanael ouve Copélio gritar: Aqui os
olhos! Aqui os olhos!, e, assustando-se, solta um grito. Copélio apanha-o e quase arranca
seus olhos para jogá-los na fogueira, mas o pai do menino intercede por sua visão. Depois
disso, o personagem desmaia, e cai num período de longa enfermidade. Durante uma outra
visita do homem da areia, um ano depois, o pai é morto no escririo por uma explosão e
o advogado Copélio desaparece sem deixar vestígios.
Freud demonstra como a parte do complexo infantil de Natanael vai dominando a história,
em detrimento da lógica racional. Natanael, agora um estudante, pensa ter reconhecido o
terrível Copélio na figura de um oculista chamado Giuseppe Coppola, que é um vendedor de
33
barômetros e que diz: Tenho ótimos olhos, ótimos olhos! O estudante, a prinpio
assustado, descobre que os olhos oferecidos são apenas inofensivos óculos, e acaba
comprando um telescópio de Coppola. Com a ajuda do instrumento ele observa a casa do
professor Spalanzani cuja bela e imóvel filha, Olímpia, encontra-se sempre sentada próxima
à janela. Natanael apaixona-se imediatamente por ela, que na verdade é uma boneca,
esquecendo-se de sua noiva. Na cena assustadora da infância, Copélio (o pai mau), após
poupar os olhos do menino, arranca-lhe os braços e as pernas para trabalhar nele como um
mecânico faria com um boneco. Esta cena, que parece bastante desconexa em relação ao
restante da história, assinala a identidade do personagem com a boneca Olímpia, que é como
se fosse um duplo de Natanael:
Olímpia é como se fosse um complexo dissociado de Natanael que o confronta como pessoa, e a
escravização de Natanael a esse complexo expressa-se no seu amor obsessivo e sem sentido por
Olímpia. Podemos, com razão, chamar de narcísico um amor dessa natureza, e podemos
compreender por que alguém que se tornou vítima dele deva renunciar ao verdadeiro objeto externo
do seu amor. A verdade psicológica da situação, em que o jovem, fixado no pai pelo seu complexo
de castração, torna-se incapaz de amar uma mulher, é amplamente provada por numerosas análises
de pacientes cuja história, embora menos fantástica, dificilmente é menos trágica do que a do
estudante Natanael. (Freud, 1919, p. 291)
No desenrolar da narrativa, observa-se que há sempre um duplo de pais: na infância, o par
pai bom, que intercede pela visão de Natanael, e pai mau, que ameaça cegá-lo, isto é,
castrá-lo. Na época de estudante, o professor Spalanzani, que é um membro da série
paterna, e o oculista Coppola, que é reconhecido como idêntico ao advogado Copélio. Este
duplo de pais é decorrente da atitude ambivalente da criança em relação ao pai em sua
infância. A parte mais recalcada de seu complexo, o desejo de morte contra o pai mau, é
expressa pela morte do pai bom, e Copélio é responsabilizado por ela. Para Freud,
34
Natanael assume uma atitude feminina frente ao pai, não acedendo ao lugar de sujeito
desejante, permanecendo como objeto do fantasma parental. Neste sentido, não é uma
posição reconhecida, o que o impede de ter uma relação erótica verdadeira com uma
mulher. Freud nos diz que o amor obsessivo do estudante pela boneca é de natureza
narcísica; é a imagem dele próprio que conta. Ele define o narcisismo como uma etapa do
desenvolvimento humano que se caracteriza por se tomar o próprio ego como objeto; o
sujeito se comporta como se estivesse enamorado de si mesmo. Para Freud, esta
organização narcisista nunca é abandonada totalmente. O ser humano permanece narcisista
mesmo após ter encontrado objetos externos para sua libido. Ao final do conto o narrador se
joga de uma balaustrada e morre, apavorado, supondo ver Copolla entre os transeuntes que
o observam.
No conto de Guimarães Rosa ocorre uma situação análoga: o filho não consegue ir embora,
permanecendo perto do rio, incapaz de constituir sua própria família. Tal fato é relatado
pelo narrador:
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma
cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também,
de uma vez, residir com minha ir, ela estava envelhecida. Eu fiquei, de resto. Eu nunca podia
querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei na
vagação, no rio no ermo sem dar razão de seu feito. (Rosa, 1981, p. 35)
Ao final do conto, ocorre um falimento: Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que
ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai
ficar calado (TMR, p. 37) Ao utilizar esta palavra, de sentido amguo, que pode significar
tanto falha, quanto falecimento, já não se sabe mais se o narrador se refere ao filho ou ao
35
pai. Poderíamos vislumbrar, ainda, um falo + mento, numa alusão à figura paterna. Aqui
encontramos certos elementos do trágico: a tragicidade do filho está ligada ao sentimento
de culpa que experimenta com relação à sua incapacidade em substituir o pai na canoa, à sua
solidificação no status de observador impotente; assim como a do pai está relacionada com a
descoberta da verdade (da sua verdade) no sentido de aletheia: manifestar-se, esconder-se,
descobrir-se (...) restrita à sua individualidade que vem à tona; a aparência na qual está
submerso’”.
22
Sabemos, de acordo com a psicanálise, que o processo de constituição do sujeito implica,
necessariamente, uma separação em relação ao casal parental. No caso do personagem-
narrador do conto rosiano, percebe-se a mistura de si mesmo com o outro (pai),
caracterizando um jogo de espelhamentos. Colocando-se enquanto presença-ausente,
inaugurando um lugar terceiro daí a enigmática terceira margem este pai representa o
pai imaginário, figura em que o sujeito se espelha buscando uma identificação. É importante
esclarecer que imaginário, para a psicanálise, não tem o sentido de imaginação, mas, sim, de
imagem. Para Lacan, a imagem especular parece ser o limiar do mundo visível...
23
instaurando o eu numa linha de ficção. A vertente imaginária do pai será retomada no
capítulo seguinte, visando à delimitação do pai simbólico, metaforizado no pai da horda
primitiva.
22
BORHEIM G. A. apud ALBERGARIA, C. O sentido do trágico em A terceira margem do rio.
In: COUTINHO, E. F. (Org.) Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, (Fortuna
crítica, v. 6), p. 525.
23
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Tradução de
Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (Campo freudiano no Brasil). p. 98.
36
III A função paterna
Ser dono definitivo de mim, era o que eu queria, queria. (Riobaldo. GSV)
Aquilo que herdastes de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu. (Goethe. Fausto)
3.1 Horda primitiva e jagunçagem
A psicanálise estabelece um paralelo entre a psicologia dos povos primitivos e a dos
neuróticos (Freud, 1913). O elo associativo é constituído pela hipótese sobre o assassinato
do pai. Freud partiu do mito darwiniano sobre a organização social das tribos primitivas no
qual Darwin, a partir da observação dos hábitos dos símios superiores, deduziu que o
homem primitivo também vivia em pequenos grupos ou hordas, nas quais o ciúme do macho
mais velho impedia a promiscuidade sexual: apenas um macho adulto é visto num grupo,
quando o macho novo cresce, há uma disputa pelo domínio, e o mais forte, matando ou
expulsando os outros, estabelece-se como chefe da comunidade.
24
Segundo Freud, a
conseqüência prática das condições reinantes nesses pequenos grupos foi a exogamia para
jovens do sexo masculino; após terem sido expulsos, cada um deles estabelecia uma horda
semelhante, na qual a mesma proibição sobre as relações sexuais ocorria... Até que, um dia,
os irmãos se uniram, voltaram e mataram o pai. Sendo canibais, além de matarem o pai,
também o devoraram, e através desse ato realizaram uma identificação com ele, cada um
24
FREUD, S. Totem e tabu (1913-[1912-13]). In: Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de
Janeiro: Imago, 1974, v. 13, p. 152.
37
adquirindo parte de sua força. Mas, mesmo estando morto, o pai não perdeu seu poder; ao
contrário, tornou-se ainda mais forte devido ao surgimento de um sentimento de culpa nos
filhos. Posteriormente, o recalque do assassinato do pai possibilitou o surgimento da lei de
interdição do incesto, iniciando-se o processo civilizatório. A partir da escuta de pacientes
neuróticos, e da psicologia dos povos primitivos, Freud construiu o mito sobre o assassinato
do pai como parte do inconsciente da humanidade, revivido na história particular de cada um
de nós, através dos conflitos surgidos em relação à figura paterna. A conceituação desse
mito primordial para a psicanálise permite-nos refletir sobre uma outra vertente do pai, além
do pai imaginário, o pai simbólico, pai morto mas que, devido à transmissão de sua lei,
torna possível uma convivência social entre os seres humanos.
Partindo da utilização desse mito, e através de alguns outros pontos de ligação, é possível
analisar a vida em bando dos jagunços em Grande sertão: veredas, de João Guimarães
Rosa, como forma de organização social semelhante à das tribos primitivas estudadas por
Freud. No romance de Rosa, ocorre também o assassinato do chefe Joca Ramiro, que, ao
meu ver, exerceu para os jagunços e, particularmente para o personagem Riobaldo, a função
de pai simbólico, como podemos destacar em várias passagens da obra. Este assassinato
possibilitou a instauração de uma ordem no sertão. Umtico Ur-sertão de homens
naturais, livres utilizando palavras de Willi Bolle, onde os pastos carecem de fechos.
Segundo este autor, podemos tomar a obra de Rosa como uma indagação sobre o projeto
civilizatório no Brasil e sobre o próprio conceito de civilização.
25
O autor mineiro escreveu
25
BOLLE, W. O pacto no Grande sertão: esoterismo ou lei fundadora?. In: Revista USP, 36,
dez./fev. 1977-8. Dossiê 30 anos sem Guimaes Rosa, p. 38.
38
seu romance a partir da perspectiva daqueles que sofreram o impacto da modernização, e
não na de seus heróis e retóricos. Para Bolle, uma modernização escrita com linhas tortas.
Em Totem e tabu, Freud coloca que nas tribos primitivas o lugar das instituições sociais e
religiosas era ocupado pelo sistema do totemismo. As tribos se dividiam em grupos menores
ou clãs, cada um deles sendo denominados segundo seu totem. O totem é geralmente um
animal inofensivo ou temido, mais raramente um vegetal ou um fenômeno da natureza, que
mantém uma relação peculiar com o clã. O totem é o antepassado comum ao clã (substituto
do pai morto), e, ao mesmo tempo, seu espírito guardião que, embora perigoso para os
estranhos, protege os próprios filhos. Em troca, os membros do clã não podem matar seu
totem nem comer sua carne. Na maioria das vezes, a todo totem corresponde um tabu. Tabu
passa a idéia de algo inabordável, sendo expresso principalmente por proibições e restrições.
Significa, por um lado, sagrado; por outro, misterioso, perigoso, proibido. Freud utilizou a
expressão temor sagrado para defini-lo. A fonte do tabu é atribuída a um poder mágico
superior que pode ser transmitido a objetos inanimados. Neste sentido, é comum o homem
primitivo ter o mesmo nome de um animal; ele supõe a existência de um nculo misterioso e
significativo entre ele próprio e essa espécie de animal. Em Grande sertão: veredas,
vários personagens que respondem por nomes de animais, inclusive Riobaldo, que é
nomeado de Tatarana pelos jagunços, e depois chefe Urutu-Branco, numa alusão à pontaria
certeira e à força, respectivamente. Podemos observar no romance a coexistência do real e
do fantástico, amalgamados na invenção e, as mais das vezes, dificilmente separáveis (...)
39
um homem fantástico a recobrir ou entremear o sertanejo real; pois os jagunços são e não
são reais.
26
A crença nos tabus faz parte do pensamento de tipo animista dos povos primitivos, e é
comum na narrativa de Rosa, presente no imaginário do sertanejo inculto. Freud afirma que
o ser humano desenvolveu três sistemas de pensamento sobre o universo: o animista, o
religioso e o científico. Trata-se de uma superposição de fases. O animismo inclui a magia,
as supertições e a crença na alma. Na fase animista não se trata ainda de religião, mas
contém as bases onde foram criadas as religiões; a onipotência atribuída aos homens é,
posteriormente, deslocada para os deuses. Freud aborda as religiões dentro do ponto de
vista da psicologia dos tabus, que, sendo proibições impostas, podem ser consideradas como
uma lei moral. A conservação dos tabus, de geração a geração, poderia ser compreendida
devido à tendência dos seres humanos a realizarem os atos proibidos. Quer dizer, a
proibição seria mantida porque, no inconsciente, cada indivíduo desejaria sempre sua
transgressão e, ao mesmo tempo, sentiria medo disso.
27
Quando surgem as idéias de deuses
e espíritos com as quais os tabus se associaram, a punição pela violação de um tabu é
atribda ao poder divino. O que interessa são as proibições e restrições às quais esses povos
primitivos estão sujeitos, que são encontradas de modo similar nas formações sintomáticas
atuais.
26
CANDIDO, A. O Homem dos Avessos. In: COUTINHO, E. F. (Org.) Guimarães Rosa. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1983 (Fortuna Crítica, v. 6), p. 298-301.
27
LEITE, M. P. de S. O Deus odioso: psicanálise e representação do mal. CAZOTTE, J. O diabo
amoroso. São Paulo: Escuta, 1991, p. 136.
40
Em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa mostra como no sertão os homens são
atraídos pela vida jagunça, em que criam sua própria lei, que colide com a da cidade. Isso se
torna evidente no epidio do julgamento de Bebelo, cena antológica do romance. O
político Bebelo, amigo de Riobaldo, desejava civilizar o sertão, promovendo um tipo de
cruzada, com cerca de mil homens equipados com apoio do governo. Derrotado pelos
jagunços, julgado, recebeu como acusação principal a de querer mudar a lei que regia
aqueles homens: O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos do
seu velho costume de lei (...) O senhor não é do sertão. Não é da terra... (GSV, p.227)
Para Antonio Candido, o desnortear mencionado pode significar também des-Nortear,
ou seja, tirar a qualidade própria do norte, que leva os jagunços a precisar fazer a lei,
utilizando a guerra dos bandos. Dentre os jagunços, raros eram apenas bandidos, tendo
entrado na jagunçagem por motivos diversos. O caso mais exemplar foi o de Medeiro Vaz, o
rei dos Gerais. Concluindo que no sertão a justiça depende de cada um, pôs fogo na
fazenda que recebeu de herança dos avós, livrando-se de tudo, como se quisesse voltar a seu
só nascimento. Daí, relimpo de tudo, saiu pelo sertão a comandar jagunços. Assim
descreve Riobaldo o chefe jagunço:
Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais o vê; eu ainda vi. Ele tinha conspeito
tão forte, que perto dele até o doutor, o padre e o rico se compunham. Podia abençoar ou
amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse, de beijar a mão dele não se vexava. Por
isso, nós todos obedecíamos. Cumpríamos choro e riso, doideira em juízo. Tenente nos gerais ele
era. A gente era os medeiros-vazes. (Rosa, 1986, p. 34)
41
Medeiro Vaz é figura modelar da imagem tica do homem sem passado e desprendido,
inclusive de suas posses, que saía por ideais coletivos.
28
Ocupa, assim, para Riobaldo o
lugar do pai mítico, como o pai das tribos primitivas trabalhado anteriormente. Em vários
momentos da narrativa, Riobaldo se refere a ele como a um pai, e é a Riobaldo que o chefe
jagunço, através do olhar, destina a chefia do bando na hora de sua morte.
Joca Ramiro era político. Sô Candelário virou jagunço porque achava que estava com grave
doença. o jagunço Hermógenes Riobaldo considerava assassim. De acordo com a
argumentação que venho desenvolvendo, considero que, por não terem a lei escrita, e não
conseguindo pensar com poder, eles matavam.
O problema do assassinato do pai é introduzido pelo narrador em uma estória dentro da
estória
29
de Grande sertão: veredas:
(...) um homem, Rudugério de Freitas, dos Freitas ruivos da Água-Alimpada, mandou obrigado um
filho dele ir matar outro, buscar para matarem, esse outro, que roubou sacrário de ouro da igreja da
Abadia. Aí, então, em vez de cumprir o estrito, o irmão combinou com o irmão, os dois vieram e
mataram mesmo foi o velho pai deles, distribuindo de foiçadas. Mas primeiro enfeitaram as foices,
urdindo com cordões de embira e várias flores. E enqueriram o cadáver paterno em riba da casa
casinha boa, de telhas, a melhor daquele trecho. Daí, reuniram gado, que iam levando para distante
vender. Mas foram logo pegos. A pegar, a gente ajudou. Assim, prisioneiros nossos. Demos
julgamento. Ao que, fosse Medeiro Vaz, enviava imediato os dois para tão razoável forca. Mas
porém, o chefe nosso, naquele tempo, já era o senhor saiba : Zé Bebelo!
Com Bebelo, oi, o rumo das coisas nascia diferente, conforme cada vez. A papo:
Co-ah! Por que foi que vocês enfeitaram premeditado as foices? ele interrogou. Os dois irmãos
responderam que tinham executado aquilo em padroeiragem à Virgem, para a Nossa Senhora em
adiantado remitir o pecado que iam obrar, e obraram dito e feito. Tudo que Bebelo se entesou
sério, em pufo, empolo, mas sem rugas em testa, eu prestes vi que ele estava se rindo por de dentro.
Tal, tal, disse: Santíssima Virgem... E o pessoal todo tirou os chapéus, em alto respeito.
Pois, se ela perdoa ou o, eu não sei. Mas eu perdôo, em nome dela a Puríssima, Nossa Mãe!
Bebelo decretou. O pai o queria matar? Pois então, morreu na mesma. Absolvo!
28
MORAIS, M. M. de. A travessia dos fantasmas: literatura e psicanálise em Grande sertão:
veredas. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 70.
29
A mise-en-abyme, qual seja, a réplica em menor escala, embutida em um texto, a qual re-
apresenta seu todo.
42
Tenho a honra de resumir circunstância desta decisão, sem admitir apelo nem revogo, leal e
lealdado, conformemente!... (Rosa, 1986, p. 61-62)
O estranho aparece novamente no caso relatado. Ao serem interrogados sobre o motivo que
os levou a enfeitarem suas foices, os filhos responderam que foi em padroeiragem à Virgem.
Segundo Márcia M. de Morais, esta fala produz um liame entre o assassinato do pai e a
virgem mãe, significante diversas vezes reiterado no discurso do narrador, remetendo-nos
à triangulação edípica
30
. As andanças de Riobaldo pelo sertão, em busca de suas origens,
reforçam o complexo de Édipo como estrutura a ser vivenciada pelo sujeito em seu processo
de constituição.
3.2 Diadorim, Riobaldo e o pai
Em Grande sertão: veredas, descreve-se a relação de Riobaldo com sua mãe na primeira
parte do romance, no sítio do Caramujo. Vivendo sob a proteção materna, sem a presença
de um pai, ele encontra na adolescência o menino Reinaldo, momento em que é feita, pela
primeira vez, uma referência à figura paterna. De acordo com a narrativa, Riobaldo estava
esmolando no porto do Rio de Janeiro para pagar promessa feita por sua mãe pela cura de
uma grave doença, quando encontrou o menino, encostado em uma árvore, ainda moço, de
pouco menos ou igual à sua idade. O menino usava um chapéu de couro e se ria para ele,
que foi ao seu encontro. Após pouco tempo de conversa, Riobaldo sentiu algo que nunca
por ninguém tinha sentido, e olhava para ele com um prazer de companhia. A narrativa se
30
MORAIS, M. M. de. A travessia dos fantasmas: literatura e psicanálise em Grande sertão:
veredas. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 36.
43
desenvolve em torno da travessia do rio São Francisco. O remador, um menino como eles,
conduzia o barco; Riobaldo, embora não soubesse nadar, e portanto apreensivo com a
aventura, não pensava em nada, nem em sua mãe, e ia indo a seu esmo. Enquanto estavam
no de-Janeiro, de águas claras, mato e flores nas beiras, com revoada de pássaros, e cágados
nas pedras quentando sol, detalhes que lhe eram apontados pelo menino, Riobaldo estava
tranqüilo. Mas, com pouco, chegaram no do-Chico:
é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade. Medo maior que se tem, é de vir
canoando num ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiúra
com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de-Janeiro,
quase só um rego verde só. (Rosa, 1986, p. 87-88)
De repente, a imensidão, a abertura, a amplidão: rio é símbolo de vida, é o aberto, o ir e vir
contínuo. Riobaldo sente medo, quer voltar, mas Reinaldo ordena ao canoeiro:
Atravessa! Riobaldo procurava os confins do rio do outro lado, longe, longe. Sentia
medo e vergonha. Impressionado com a calma de Reinaldo, perguntou se ele não sentia
medo. Costumo não... Meu pai disse que não se deve de ter... Meu pai é o homem mais
valente deste mundo, respondeu Reinaldo... Até que chegaram à outra margem, quando, de
repente, apareceu a cara de um mulato detrás deles, no meio do mato; pensando tratar-se de
sujice dos meninos, o homem fez um gesto indecente para eles. Fingindo aceitar a
provocação, Reinaldo pegou uma faca e o golpeou na coxa; ele fugiu apavorado. Tão
tranqüilo como antes, o menino limpou a faca no capim e disse: Carece de ter coragem.
Carece de ter muita coragem. Da volta, Riobaldo não detalhes, mas aponta o sério
pontual do acontecido: eu não sentia nada. Só uma transformação pesável (GSV, p. 92).
A narrativa passa a sensação de que ocorre uma primeira separação de Riobaldo em relação
44
à sua mãe naquele momento, separação que, de fato, acontecerá mais tarde, com a morte da
mesma. Ignorando a identidade de seu pai, com a morte da Bigri, ele vai viver na fazenda
São Gregório, na companhia de seu padrinho, Selorico Mendes, quando ocorre um segundo
encontro, também importante para Riobaldo, com Joca Ramiro, que se saberá, mais tarde,
ser o pai do menino Reinaldo, e que surge para o narrador como uma figura idealizada,
grandiosa. Assim descreve Riobaldo a cena:
Adrede Joca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu dele se desabava muito largo. Dele, até a
sombra,que a lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava volume. E
vi que era um homem bonito, caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. (Rosa, 1986, p. 98)
Este encontro, decisivo na vida de Riobaldo, devido até mesmo à admiração proferida por
Selorico Mendes, que na verdade era seu pai, em relação ao chefe jagunço, é o primeiro de
outros que se darão no desenrolar do romance. Foi numa conversa com Diadorim, mulher
disfarçada de jagunço, em que este revela ser Joca Ramiro seu pai, que o narrador
introduziu a questão de sua própria origem: eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem nunca
soube autorizado o nome dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Órfão de
conhecença e de papéis legais, é o que a gente mais, nestes sertões. (GSV, p. 31) A
narrativa vai se desenvolvendo, então, no sentido de um deslocamento da figura materna
para a figura paterna.
Apesar de ter sido bem recebido por seu padrinho-pai, que o deixava viver na lordeza,
Riobaldo se revolta quando toma conhecimento da verdade sobre sua origem. Como coloca
Gilvan Fogel, sua vida se torna, daí em diante, uma sucessão de partidas: em se
evidenciando que Selorico Mendes na verdade era seu pai, ele de novo parte. Riobaldo está
45
pronto para a vida de partida... vida de jagunço o jogado.
31
Tal como Édipo, fugindo de
Corinto sob a revelação de que Pólipo não era seu pai verdadeiro, Riobaldo parte em busca
de seu destino, embora o que mais desejasse fosse que seu pai lhe pedisse para voltar, que
lhe desse tudo, e até em seus pés ajoelhasse. Ele considerava Selorico Mendes um homem
medroso, de pouca conversa, mas que se gabava de contar casos das altas artes jagunças.
Queria que Riobaldo aprendesse a atirar bem, e a manejar porrete e faca. Ao fugir da São
Gregório, Riobaldo nunca mais o viu, mas este lhe deixou duas fazendas como herança.
na velhice Riobaldo admite que os dois eram mesmo pertencentes um ao outro.
A maneira desvalorizada como Riobaldo via seu pai e a grande admiração que passa a ter
por Joca Ramiro são motivos suficientes para que o chefe jagunço passe a encarnar para ele
a figura de um pai. Sobre o encontro com Diadorim na travessia dos dois rios, Riobaldo
interroga seu interlocutor:
Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino? Toleima, eu sei. Dou, de. O senhor o me
responda. Mais, que coragem inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo? Por duas,
por uma, isso que eu vivo pergunta de saber, nem o compadre meu Quelemém não me ensina. E o
que era que o pai dele tencionava? (Rosa, 1986, p. 92, grifo meu)
Tal questionamento revela que o pai do menino passa a ocupar um lugar no inconsciente de
Riobaldo, figura que terá um importante papel em sua formação. Esta pergunta: o que ele
quer?, Che vuoi?, é de fundamental importância para a constituição do sujeito. Pergunta que
é retirada, por Lacan, de uma obra de literatura fantástica intitulada O diabo amoroso, de
Jacques Cazotte, que será objeto de discussão a seguir.
31
FOGEL,G. Da pobreza e da orfandade sem vergonha. Considerações sobre o Riobaldo de Grande
sertão: veredas, de Guimaes Rosa. Petrópolis, 1995. Inédito. p. 23.
46
3.3 O pacto com o diabo
Após a morte de Joca Ramiro, que simbolicamente representou a realização do parridio
em Grande sertão: veredas instaurando uma lei nova no sertão, a narrativa se desenvolve
em torno da vingança dessa morte. Riobaldo sente-se indeciso quanto a esse projeto de
vingança no qual Diadorim estava particularmente empenhado. A idéia do pacto com o
diabo surge a partir da perspectiva de enfrentamento com o pactário Hermógenes, assassino
do chefe jagunço. Abordando este tema, Guimarães Rosa resgata um assunto presente nas
obras de vários escritores, desde Dante até Thomas Mann. Porém, de todas elas, a mais
conhecida e comentada, e que acabou influenciando o pensamento da modernidade foi, sem
dúvida, o Fausto, de Goethe, uma fonte de referência bastante citada por Freud. Entretanto,
com a publicação da novela Le diable amoureux (O diabo amoroso), em 1772, Jacques
Cazotte é considerado como o iniciador do gênero fantástico em literatura, sendo esta obra
utilizada posteriormente por Lacan para situar o demônio como porta-voz do desejo
humano. Sendo vinte anos mais jovem que Cazotte, Goethe também foi influenciado pelas
filosofias ocultas comuns naquela época. O tema da luta do Bem contra o Mal, que havia
dominado as manifestações artísticas na Idade Média, é contemplado nessas obras, bem
como em Grande sertão: veredas.
Seguindo a tradição do ritual descrito na literatura sobre o assunto, é na encruzilhada das
Veredas-Mortas que Riobaldo se encaminha para a realização do pacto com o diabo, após o
encontro com sHabão, ocasião em que ele retoma a figura do pai, apresentando-se ao
47
fazendeiro como filho de Selorico Mendes. Durante o ritual, após invocar o demo por três
vezes seguidas, Riobaldo recebe um sinal:
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não
apareceu nem respondeu que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me
ouviu, a conforme a ciência da noite e o enviar de espaços, que medeia. Como que adquirisse
minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo
de agarro, daí umas tranqüilidades de pancada. Lembrei de um rio que viesse adentro a casa de
meu pai. Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. podia ser mais? A peta, eu
querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é
no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas! (Rosa, 1986, p. 371-372. Grifos meus)
Depois do pacto, Riobaldo percebe a mudança operada nele mesmo, e acredita que o acordo
se efetivara de fato:
de em diante, jamais nunca eu não sonhei mais, nem pudesse; aquele jogo fácil de costume, que
primeiro antecipava meus dias e noites, perdi pago. Isso era um sinal? Porque os prazos
principiavam... E, o que eu fazia, era que eu pensava sem querer, o pensar de novidades. Tudo
agora reluzia com clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas coisas passadas diversas eu
inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra rao; sem nem
que fosse por minha vontade (...) aos poucos eu entrava numa alegria estrita, com o viver, mas
apressadamente. A dizer, eu não me afoitei logo de crer nessa alegria direito, como que o trivial da
tristeza pudesse retornar. Ah, voltou não; por oras, não voltava. (Rosa, 1986, p. 373-374. Grifos
meus)
Passando a confiar mais em si mesmo, Riobaldo se impõe frente à jagunçada, transformação
notada por Bebelo, que o nomeia chefe do bando, dando-lhe o nome de guerra Urutu-
Branco. Aqui gostaria de fazer algumas considerações sobre a narrativa no que se refere ao
pacto. Embora persistindo a dúvida quanto à existência do diabo, considerado um falso
imaginado, Riobaldo sofre os efeitos dessa crença, e descreve a lembrança surgida logo
após: a de um rio que viesse adentro a casa de meu pai, cujas imagens do rio, do
adentrar-se, e da casa de meu pai conduzem, naturalmente, à cena primitiva, a um
48
momento original e fantasmático.
32
Podemos perceber, neste momento, que Riobaldo
refere-se ao pai de modo mais familiar, não da forma denegatória como vinha acontecendo
em suas falas anteriores. Outro ponto levantado por Riobaldo é o fato de que ele deixa de
sonhar daí em diante. Os sonhos relatados no romance, sejam devaneios comuns, ou sonhos
noturnos, eram relativos a Diadorim, e tinham, geralmente, uma conotação sexual: Noite
essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arcoris. Ah, eu
pudesse mesmo gostar dele os gostares... (GSV, p. 39) Retomando a questão do pacto,
Riobaldo fala de um pagamento e de uma perda. Ele se pergunta: o diabo não existe, não
há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? (GSV, p. 365) Minha
hipótese é que Riobaldo paga com seu narcisismo; submetendo-se ao Outro da linguagem,
aqui representado pelo diabo, ele adquire uma identidade própria por meio do pacto,
ocorrendo uma quebra da relação especular com Diadorim. E o afeto que surge
concomitante é a alegria, resultado da mudança de posição de Riobaldo, assumindo o lugar
que lhe fora destinado.
É antiga a associação entre as doenças mentais e as chamadas possessões demoníacas. Em
um interessante estudo feito sobre o tema, Freud fez uma relação entre o diabo e a figura
paterna, na análise do caso de um pintor do século XVII. Para se libertar de um estado
depressivo após a morte de seu pai, o pintor Christoph Haizmann fez duas promessas ao
demônio: primeiro, ser seu filho durante nove anos, e, segundo, pertencer-lhe inteiramente
após a morte. Freud chama atenção para a expressão filho obrigado do Demônio, dizendo
32
MORAIS, M. M. de. A travessia dos fantasmas: literatura e psicanálise em Grande sertão:
veredas. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 131.
49
não se tratar simplesmente de figura de retórica; para ele, o demônio com quem o pintor
assinou o compromisso era um substituto direto de seu pai. E isso se confirmaria pela forma
como o diabo lhe aparece pela primeira vez: como um cidadão de idade, de barbas
castanhas, vestido com uma capa vermelha e apoiando-se numa bengala, com um cão negro
ao lado. Freud levanta a questão de que soaria estranho que o diabo seja escolhido como
substituto para um pai amado. Mas isso se torna intelivel se sabemos, por meio da
psicanálise, que a relação com o pai é ambivalente desde o icio, contendo dois conjuntos
de impulsos emocionais que se opõem mutuamente: impulsos de natureza afetuosa e
submissa, e também impulsos hostis e desafiadores. Quanto ao demônio, Freud coloca que
ele está associado à idéia de Deus, como antítese. De acordo com a crença dos povos
primitivos, os deuses podem se transformar em demônios quando novos deuses os
expulsam.
O demônio mau da cristã o Diabo da Idade Média foi, de acordo com a mitologia cristã, ele
próprio um anjo caído e de natureza semelhante a Deus. Não é preciso muita perspicácia para
adivinhar que Deus e o Demônio eram originalmente idênticos uma figura única posteriormente
cindida em duas figuras com atributos opostos. (Freud, 1923, p. 110)
Na segunda visão que Haizmann teve do diabo este estava nu e disforme, e tinha dois pares
de seios femininos. Em nenhuma das aparições subseqüentes os seios estavam ausentes, quer
como par único ou duplo, e em uma delas o demônio exibia, além dos seios, um grande
nis terminado por uma serpente. Para Freud, o aparecimento de caracteres sexuais
femininos no demônio não serve de argumento contra o fato de relacio-lo com a figura
paterna. Isso seria uma defesa, por parte do pintor, a uma atitude feminina que ele teria em
relação ao pai. E que seria confirmada pela fantasia de dar-lhe um filho (os nove anos).
50
Desse modo os seios do demônio corresponderiam a uma projeção da própria feminilidade
do indiduo sobre o substituto paterno. Outra explicação dada por Freud é que os
sentimentos ternos pela mãe foram deslocados para o pai; seios grandes são as
características sexuais positivas da mãe, e isso sugere que houve previamente uma intensa
fixação na mãe, que seria responsável pela hostilidade da criança para com o pai. Guardadas
as possíveis restrições quanto às interpretações dadas por Freud neste caso, seu grande
mérito foi fazer uma relação entre o demoníaco e a sexualidade.
A associação do demônio ao feminino era comum na Idade Média, sendo a mulher
possuída (a feiticeira) perseguida e queimada pela Santa Inquisição. A feiticeira seria uma
vítima do demônio na qual se introduziria um poder estranho representado pelo masculino.
Aqui lanço mão do personagem Diadorim, que leva a possessão às últimas conseqüências,
abrindo mão, inclusive, de sua sexualidade. São bastante freqüentes as análises de críticos
literários associando a figura de Diadorim ao diabo
33
. Associação feita também por
Riobaldo, que, em vários momentos do romance, coloca o desejo sentido pelo amigo
jagunço como algo da ordem do demoníaco. Diadorim representa a ambivalência; assim
como o sertão e a vida ele participa do caráter de que tudo é e não é, é isto e mais do
que isto (o sertão) ou, que existindo, não se sabe o que é (o demônio).
34
33
Augusto de Campos (1983) faz a seguinte análise do nome Diadorim:
Dia + adora
+ im
Dia + dor
Há dois planos de significado: o que existe de ser e amor em Diadorim é representado pela vertente
a) Dia + adora; o que há de não-ser, pela vertente b) Dia (diabo) + dor.
34
LIMA, L. C. O sertão e o mundo: termos da vida. Por que literatura? Petrópolis: Vozes, 1996,
p. 72.
51
No capítulo Pacto com o diabo, do livro A cultura popular em Grande sertão:
veredas
35
, Leonardo Arroyo elenca a variada sinomia do diabo utilizada por Riobaldo no
romance de Rosa, disposta em forma de abecedário:
A Anhangão, Aquele, Arrenegado, Austero, Azarape.
B Barbazu, Belzebu, Bode-Preto.
C Canho, Cão, Cão-Extremo, Cão-Miúdo, Cão-Tinhoso, Capeta, Capiroto, Caracães,
Careca, Carmulhão, Carocho, Carujo, Coisa-Má, Coisa-Ruim, Coxo, Crespo e Cujo.
D Dado, Danador, Das-Trevas, Dê, Debo, Demo, Demonião, Demônio, Diá, Diabo,
Diabinho, Diacho, Dianho, Dião, Diogo, Dioguim, Dos-Fins, Drão, Duba-Dubá.
E Ele.
F Figura.
G Galhardo, Grão-Tinhoso.
H Homem, Hermógenes.
I Indiduo.
L Lúcifer.
M Mafarro, Mal-Encarado, Maligno, Manfarro, Morcegão.
N Não-sei-que-diga.
O O, Oculto, O-Muito-Sério, O-Que-Não-Existe, O-Que-Não-Ri, O-Que-Nunca-Fala, O-
Que-Nunca-Se-Ri, Outro
P Pai-do-Mal, Pai-da-Mentira, Pé-de-Pato, Pé-Preto.
Q Que-Diga, Que-Não-Há, Quem-Não-Existe.
35
ARROYO, L. Pacto com o diabo. A cultura popular em Grande sertão: veredas. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1984, p. 225-51.
52
R Rapaz, Romãozinho, Roncolho.
S Satanão, Sem-Gracejos, Sempre-Sério, Satanás, Solto-Eu, Severo-Mor, Sujo.
T Tal, Temba, Tendeiro, Tentador, Tibes, Tinhoso, Tisnado, Tralha, Tranjão, Tristonho,
Tunes.
X Xu. (grifos meus)
Ressaltamos, nos grifos, o nome Hermógenes presente na sinonímia do diabo, bem como
sua relação com o pai (do-mal, da-mentira). Tal sinonímia mostra, freqüentemente, a
designação do diabo por meio de negativas. O diabo é não-ser; no momento mesmo do
pacto a ausência e o silêncio é que indicam sua presença. Não-ser, nada, nonada, o Que-
Não-Há.
Para a psicanálise, o demônio não teria existência própria, sendo apenas a projeção
(expulsão) de conteúdos psíquicos indesejáveis; demoníaco seria aquilo que o sujeito não
pode aceitar em si mesmo devido ao recalque.
36
A crença na existência do demônio
comprovaria a evidência de uma divisão no psiquismo. Em A Negativa (1925),
considerado por alguns autores como sendo seu texto mais filosófico, Freud analisa a
seguinte afirmação de um paciente: O senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no
sonho. Não é a minha mãe. E Freud conclui que seria de fato a mãe dele. Freud despreza a
negativa e escolhe apenas o tema mais geral da associação, seria como se o paciente tivesse
dito: É verdade que a minha mãe me veio à lembrança quando pensei nessa pessoa, porém
36
Leite, M. P. de S. O Deus odioso: psicanálise e representação do mal. CAZOTTE, Jacques. O
diabo amoroso. São Paulo: Escuta, 1991.
53
não estou inclinado a permitir que essa associação entre em consideração. Para Freud, o
conteúdo da idéia recalcada abriu caminho até a consciência com a condição de que fosse
negado. A negação seria, então, um modo de tomar conhecimento do recalcado, mas
mantendo o essencial do recalque. Freud utiliza a palavra Aufhebung, que quer dizer, ao
mesmo tempo, negação, conservação e superação. Nesta operação o intelectual se separaria
do afetivo pois não há nenhuma aceitação do recalcado, estando o afeto alhures. Afirmar ou
negar um conteúdo do pensamento seria tarefa da função do jzo. Negar algo em um
julgamento seria o mesmo que dizer: Isso é algo que eu preferiria recalcar. Freud coloca
que há duas espécies de julgamento: uma que afirma ou nega a qualidade ou atributo de uma
coisa, que ele chama de juízo de atribuição, e outra que decide sobre a existência ou não de
uma representação. Para nossos propósitos aqui, é suficiente trabalharmos com o jzo de
atribuição, tentando compreender os motivos pelos quais partes de um conteúdo de
pensamento seriam expulsas, produzindo o demoníaco. Para Freud, os atributos sobre os
quais um julgamento deve incidir seriam entre bom ou mau, útil ou prejudicial; ele utiliza a
linguagem das mais antigas moções pulsionais as orais: Gostaria de comer isso ou
gostaria de cuspi-lo fora. A lógica seria que o sujeito desejaria introduzir para dentro de si
tudo quanto é bom, e ejetar de si tudo quanto é mau. O mal seria, então, tudo o que for
estranho ao eu. Julgar é uma ação por meio da qual o eu integra coisas ou as expele, de
acordo com o princípio do prazer. Esse exterior, que seria o não-eu e que equivaleria ao
mau, estaria constituído por um mecanismo descrito por Freud como expulsão (die
Ausstossung). A polaridade da função do julgamento corresponderia à dualidade pulsional: a
afirmação pertence a Eros (o amor), a negação pertence a Tanatos (a pulsão
de destruição).
54
Essa hipótese implicaria a tese sobre o demônio como projeção de conteúdos psíquicos indesejáveis.
Assim, segundo a teoria psicanalítica, o diabólico seria o mal porque indesejável, e não indesejável
por representar o mal. Ou seja, o diabo seria o mal porque foi expelido do psiquismo, e não expelido
por ser anteriormente mal. (Leite, M. P., 1991, p. 127)
Com essa concepção, Freud subverte a noção da moral como o socialmente aceito. O bom
é o que de ser incldo; e o mau o que foi projetado para fora. A fundação do sujeito
tem como primeira operação a expulsão de qualquer conteúdo que cause o desprazer. A
conceituação do unheimlich, já trabalhado anteriormente, baseia-se numa lógica semelhante;
a sensação de estranheza ocorre devido ao retorno de algo que foi expulso pelo recalque.
Assim como Freud utilizou o Fausto de Goethe como referência, chegando a associar o mal
a Mefistófeles, Lacan utilizou Le diable amoureux, de Jacques Cazotte, para falar do desejo
humano. Na obra de Cazotte ocorre também um pacto com o diabo empreendido por
Álvaro, capitão da guarda do rei de Nápoles. As invocar por três vezes Belzebu, o
protagonista sente se eriçarem os cabelos, juntamente com uma sensação de calafrio. Segue-
se a descrição do narrador:
Mal acabei a evocação, abre-se de par em par uma janela em frente de mim, no alto da abóbada. Um
golfo de lumieira mais esplandente que a do sol jorra por aquela abertura; uma cabeça de camelo,
horrenda no tamanho e no feitio, assurge na janela; as orelhas principalmente eram
descompassadas! O fantasma hediondo escancara as faces, e com um ronco próprio de tal monstro,
responde-me: Che vuoi? (Cazotte, 1991, p. 179-180)
A pergunta com a qual o diabo se apresenta na novela Che vuoi? (o que queres?) é
retomada por Lacan para colocar o demônio como porta-voz do desejo. Nessa novela, o
desejo sentido por Biondetta, mulher com cuja aparência o diabo se apresenta a Álvaro, se
transforma no eixo central da estória. Diante da possibilidade de poder realizar todos os seus
55
desejos, Álvaro acaba não se decidindo pelo amor de Biondetta. Para Lacan, o che vuoi é
uma questão a ser vivenciada por cada sujeito em sua constituição. Confrontado ao universo
de todos os desejos possíveis, o sujeito terá que optar por apenas um deles, experiência a
que Freud dá o nome de castração.
Em Grande sertão: veredas, são comuns as hesitações de Riobaldo quanto às suas
possibilidades desejantes. As o julgamento de Bebelo, Diadorim e Riobaldo, separados
do bando jagunço, vão para a Tapera Nhã, na Guararavacã do Guaicuí, por lá
permanecendo por uns dois meses. Naquele lugar, Riobaldo toma consciência de seu amor
por Diadorim, de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Para os companheiros
de bando, Diadorim era Reinaldo, a imagem do macho. Mas para Riobaldo ele diz seu outro
nome: Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim (...) Guarda este meu segredo.
Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo
e peço, Riobaldo... (GSV, p. 134) Dizendo seu nome secreto, derivado do próprio nome
como mulher (Deodorina), ele indica o duplo, num jogo de ocultação e revelação. Mas
Riobaldo está cego e, para ele, Diadorim continua a ser Reinaldo, o homem. Riobaldo não
vê também o significado do pedido de Diadorim, numa clara alusão a uma outra relação.
Traído pela aparência, ele coloca o leitor frente ao enigma da sexualidade.
Diadorim é o amor de ouro de Riobaldo, daí se originando outros amores, como o de
Otacília, seu amor de prata. Sem falar em Rosauarda e na bela Nhorinhá. A saga de
Riobaldo reitera o aforismo lacaniano: O desejo do homem é o desejo do Outro; outro
aqui representado por Diadorim. É ele quem guia Riobaldo em sua travessia, e é pelo seu
56
amor que Riobaldo aprende a amar o pai. O fascínio de Diadorim reside não apenas no
apelo sedutor, mas também na promessa de dirigir (ducere e não se-ducere) até uma figura
paterna cuja palavra é convincente e eficaz, ou seja, capaz de pôr fim ao conflito
edipiano.
37
O Diabo é da ordem da linguagem, desta maneira, é nela que Riobaldo investe. Para isso ele
faz o pacto: para corresponder à imagem que Diadorim faz dele; para obter o poder do
Hermógenes, acedendo à força do desejo.
3.3.1 O pactário Hermógenes
Hermógenes é ser monstruoso, é a própria representação do mal no romance. É como se ele
metaforizasse o espírito do sertão, no qual criminoso vive seu cristo-jesus.
Logo nas primeiras páginas de Grande sertão: veredas, o narrador introduz a questão do
mal em si mesmo, mal sem motivação, nas estórias de Pedro Pindó e Aleixo, quando
Riobaldo levanta a questão sobre a existência ou não do diabo e sua influência nas pessoas e
nas coisas. Na primeira estória, pais bons têm um filho mau, e, de tanto castigá-lo para
corrigir sua maldade, acabam sentindo prazer em judiar dele. Na segunda, o pai é que é um
homem mau. Ele mata sem motivo um pedinte; os filhos pegam sarampo e ficam cegos.
Depois disso, o pai se arrepende e se torna um homem bom. Riobaldo levanta questões
sobre os fatos narrados: o menino mau quando está sendo castigado sofre igual a um menino
37
ROSENFIELD, K. H. O problema da homossexualidade em Grande sertão: veredas. In: JOBIM,
J. L. (Org.) As palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 208.
57
bonzinho; e as crianças que ficaram cegas não tinham culpa da maldade do pai. Nessa
mesma linha, ele relata o caso de Joe Bexiguento, sobre Maria Mutema, mulher cujo marido
amanhece um dia morto na cama, sem que tivesse nenhuma doença anterior. Ela passa a
viver, então, uma vida séria e pacata de viúva, e começa a se confessar de três em três dias
com o padre Ponte, pároco da igreja, que se esquivava em escutá-la. Homem gordo e
bonachão, o padre começa a emagrecer e a definhar até a morte. Daí em diante, nunca mais
Maria Mutema foi à igreja. Até que, numa ocasião, apareceram uns padres estrangeiros na
região, pregando e pedindo que os fiéis se arrependessem de seus pecados. a mulher
apareceu na porta da igreja e foi interpelada por um dos padres, que disse querer ouvi-la em
confissão na porta do cemitério, onde estavam enterrados os dois defuntos. Então, aos
gritos, Maria Mutema confessou tudo publicamente: matara o marido sem motivo,
introduzindo chumbo quente em seu ouvido; depois confessou o crime ao padre Ponte,
dizendo que fizera isso por amor a ele, o que não era verdade. O porquê de sua atitude ela
não sabia; sabia que não tinha motivo algum, era por puro prazer. Depois da confissão,
pediu perdão a Deus, de joelhos, rezando. Mesmo presa, ela continuou a rezar,
humildemente, e, com tal devoção, que acabaram por perdoá-la, achando que ela estava se
tornando santa.
A questão do mal, no romance, é atribuída tanto às pessoas como aos animais e às coisas.
Em vários momentos, Riobaldo relata a existência de uma força inexplicável e assustadora
vinda da natureza. Como no episódio em que ele e Diadorim vão beber água em um belo
poço azul, quando se assustam com uma brusca, feiosa, botando bolhas que pula de
dentro dágua, fazendo perder a vontade de bebê-la. Tal força estranha atinge também as
58
coisas como no fato acontecido com sua faquinha que caiu dentro de um tanque; no outro
dia ela estava com o ferro todo roído, quase pela metade, por aquela agüinha escura,
restando o cabo de chifre. O narrador chega a falar até mesmo de tortas raças de pedras
numa alusão ao mal proveniente também dos objetos inanimados. Riobaldo, então, conclui:
o diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro gosto! A força dele
quando quer moço! me o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do
mansinho assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. (Rosa, 1986, p.
15)
Hermógenes tamm participa desse caráter perigoso e excessivo. Ele era um sujeito vindo
saindo de brejos, pedras e cachoeiras, homem todo cruzado. (GSV, p. 212) Riobaldo dele
sentia nojo, ele tinha boca de dor (...) um enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras
de remeiro do rio, pé pubo. (GSV, p. 135)
Riobaldo refere-se a um azougue maligno proveniente do jagunço. Dentro da proposta
desse trabalho, podemos relacioná-lo ao pai mau freudiano. Kathrin Rosenfield coloca que
todos os chefes-pais que Riobaldo encontra, seguindo Diadorim, revelam-se fracos por trás
de uma aparência imponente. Para esta autora, a ausência de figuras paternas convincentes
culmina na busca desesperada de Riobaldo por um pai qualquer, pai do mal, se
necessário
38
. Ele ouvira, certa feita, referências ao pacto com o diabo feito por Hermógenes,
e a conseqüente invencibilidade adquirida pelo jagunço desde então. O que nos leva a pensar
em Hermógenes como um duplo do pai, amado e odiado.
38
ROSENFIELD, K. O problema da homossexualidade em Grande sertão: veredas. In: JOBIM, J.
L. (Org.) As palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
59
É possível fazer uma leitura de Grande sertão: veredas a partir da noção de função paterna
em psicanálise. Jacques Lacan utiliza o conceito de Nome-do-pai para falar dessa função,
que não se reduz ao pai real. O pai real é o que a vida, ele é o agente da castração na
medida em que transmite a lei de interdição do incesto: não tocarás tua mãe. Isso porque a
mãe é, antes de tudo, mulher, e enquanto tal ela marca para o filho um lugar em posição
terceira porque seu desejo está dirigido a um homem primeiramente. Mas nem sempre é
assim, e as coisas se complicam para a criança... Porém, se o pai real é o agente da
castração ele não age a castração, pois é através dele que o simbólico que ele transmite age,
transmitindo a castração.
39
Esta lei simbólica é proveniente do fato de que o pai foi morto
na origem. O problema da morte do pai foi trabalhado anteriormente por meio do estudo
freudiano sobre a psicologia dos povos primitivos. O sistema do totemismo surgiu a partir
do assassinato do pai e a conseqüente instituição da lei de proibição do incesto. A tarefa do
pai real, de transmissão desta interdição, é algo da ordem do impossível, já que ele não é
dono desta lei; ele a recebe do simbólico porque é também filho da linguagem. Por que
entre o pai real e o pai simbólico há uma tal discordância que a criança, para fazer face à
insuficiência do pai real, é levada a construir um pai imaginário, cujo poder é causa de
angústia?
40
A vulnerabilidade do pai real se desvela quando ele se coloca enquanto
encarnando a lei (o pai autoritário), deixando de transmitir a seus filhos sua insuficiência.
A busca de um pai ideal é uma demanda de toda criança (será apenas da criança?). Quando
algo não vai bem, buscamos um pai para nos salvar, portanto esta demanda é, mais do que
39
WEILL, A. D. A questão da extensão para Freud, para Lacan e para nós. Texto apresentado na
Reunião Lacano Americana de Montevidéu,1991. Inédito. p. 3.
40
Ibid., p. 3.
60
nunca, atual. Num mundo marcado pela carência de referências, de líderes letimos e de
grandes saberes constitdos, o apelo a figuras paternas convincentes é um fato, malgrado os
riscos decorrentes dessa posição.
Esta trilogia de pais citada acima pode ser extraída de Grande sertão: veredas. Selorico
Mendes, fraco e medroso, reitera a insuficiência do pai real. Hermógenes (e seu colorário
Ricardão) é o pai imaginário, pai temido. E Joca Ramiro / Medeiro Vaz, representam o pai
simbólico, considerados por Riobaldo como homens de palavra. O pai que interessa à
psicanálise é o pai morto mas vivo simbolicamente falando, transmissor do
mandamento fundamental: que a palavra seja’”.
41
Considero que Riobaldo, precocemente separado de sua mãe, e não tendo uma referência
paterna definida, encontra na vida jagunça a possibilidade de aceder ao pai, com quem ele se
reconcilia ao final da estória. Em seu percurso pelo sertão ele repete a trajetória de um
sujeito qualquer, confrontado com a tarefa de responder ao quem sou?, questão colocada
a Édipo pela esfinge tebana. Assim como a esfinge questiona o sujeito sobre sua origem, o
diabo interroga-o quanto ao que queres?. É por identificação a Diadorim que Riobaldo
acede ao desejo, realizando sua travessia, assunto a ser abordado no próximo capítulo.
IV A travessia
Atravessei meus fantasmas? (Riobaldo. GSV)
Digo: o real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
(Riobaldo. GSV)
41
WEILL, A. D. A questão da extensão para Freud, para Lacan e para nós. Texto apresentado na
Reunião Lacano Americana de Montevidéu, 1991. Inédito. p. 6.
61
4.1 O Liso do Suçuarão: um entrelugar
42
O Liso do Suçuarão é considerado por Riobaldo como o miolo mal do sertão. A primeira
tentativa de atravessá-lo é empreendida por Medeiro Vaz. No entrar do mês de abril,
passadas as chuvas de março, Medeiro Vaz, após se certificar de que tinham comidas e
mantimentos suficientes alojados nos burros cargueiros, traçou o plano de cruzar o Liso
para guerrear na Bahia, empreendimento ainda não realizado por ninguém. Houve um
rebuliço de festejo entre os jagunços na iminência dessa empreitada. Após algum tempo de
viagem, Riobaldo relata o infernal experimentado pelo bando:
Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação daquele martírio, em desde que as
barras quebraram no dia seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança, em
uma, sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os olhos, para não reter os
horizontes, que trancados não alteravam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar,
imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só saiba: o Liso do Suçuarão concebia
silêncio, e produzia uma maldade feito pessoa!... A calamidade de quente! E o abraseado, o
estufo, a dor do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando se ouvia o
resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Água
o havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho armado de couro, e dosar a meio, eles
esticando os pescoços para pedir, eles olhavam para seus cascos, mostrando tudo o que cangavam de
esforço, e cada restar de bebida carecia de ser poupado. Se ia, o pesadelo. Pesadelo mesmo, de
delírios. Os cavalos gemiam descrença. pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum
poço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz
assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procurando. tinha quem
beijava os bentinhos, se rezava. De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para a cela, numa
quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas as horas? (Rosa, 1986,
p. 39-40)
Assim como o sertão, o Liso do Suçuarão não é apenas um lugar geográfico, significa o
inóspito a ser ultrapassado. De acordo com Gilvan Fogel:
43
42
O termo se refere a lugar de passagem e não é aqui utilizado no sentido proposto por Silviano
Santiago, de literatura periférica, que se revê e se avalia a sua condição de dependente. Cf. SANTIAGO, S.
Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 22.
62
representa uma categoria da vida. E que atravessá-lo (...) o deserto. Cada um com o seu; cada
qual tem o seu. Mas, o que é este deserto, em sendo, cada vez, o de cada um? É um tempo, uma
hora de penúria, de dureza, de aridez, de esterilidade a inospitalidade do deserto. Também
indiferença, monotonia o apelo e a sedução do lasso. É o tempo do espírito, do ânimo ser posto à
prova. (Fogel, 1995, p. 26)
Medeiro Vaz, embora tendo se precavido de todas as formas, se armando de mantimentos,
animais a serem abatidos para saciar a fome, e até três bons jagunços rastreadores, mesmo
assim, não consegue concluir a travessia. Ele termina por voltar atrás em seu intento, após a
morte de alguns animais e jagunços.
A segunda tentativa de vencer o deserto do Liso foi feita por Riobaldo, como chefe
Urutu-Branco. O objetivo era cortar caminho para chegar à Bahia, para o duelo final com
Hermógenes, no Paredão. Riobaldo parte sem preparativos nenhuns: nem cargueiros com
bons mantimentos, nem bois para serem abatidos, nem tropa de jegues para carregar água.
Para que eu carecia de tantos embaraços? Entretanto, desta vez o percurso não parece tão
difícil. Segundo Riobaldo, ele estava a fortes braços de anjos sojigado e tudo ajudou:
A gente estava encostada no sol. Mas, com a sorte nos mandada, o céu enuveou, o que deu pronto
mormaço, e refresco. Tudo de bom socorro, em az. A uns lugares estranhos. Ali tinha carrapato...
que é que chupavam, por seu miudinho viver? Eh, achamos reses bravas gado escorraçado fugido,
que se acostumaram por lá, ou que de não sabiam sair; um gado que assiste por aqueles fins, e
que como veados se matava. Mas também dois veados a gente caçou e tinham achado jeito de
estarem gordos... Ali, então, tinha de tudo? Afiguro que tinha. Sempre ouvi zum de abelha. O dar
de aranhas, formigas, abelhas do mato que indicavam flores.
Todo o tanto, que de sede o se penou demais. Porque, solerte, subitamente, pra um mistério do ar,
sobrechegamos assim, em paragens. No que nem o senhor nem ninguém não crê: em paragens, com
plantas.
De justiça, digo, também: uma regra se teve, sem se saber de quem foi que veio a idéia dessa
combinação. Qual foi que a gente se apartou, em grupos de poucos, jornadeando com a maior
distância aberta. Mas que, assim, quando um avistasse qualquer coisa diversa, podia dar sinal,
chamando os outros para novidade boa. (Rosa, 1986, p. 448-449)
43
FOGEL, G. Da pobreza e da orfandade sem vergonha: considerações sobre o Riobaldo, de Grande
sertão: veredas, de Guimaes Rosa. Petrópolis, 1995. Inédito. p. 26
63
Distribdos na horizontal, não em fila indiana, Riobaldo e seu bando conseguem atravessar
o Liso porque houve, anteriormente, uma outra travessia: a do rio São Francisco, no
encontro com Diadorim, os dois ainda meninos. Foi daí que se originou toda a estória: Foi
um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. (GSV, p. 84, grifo meu) Primeiro,
aqui, quer dizer inaugurador, fundador e, neste sentido, arcaico, originário. O originário é o
determinante. E determinante é aquilo que, ao longo de um movimento, de um percurso,
insiste como o que persistentemente atravessa.
44
Fogel resgata uma fala de Guimarães Rosa
em entrevista ao escritor e crítico de literatura Günter Lorenz, em que ele afirma que
Riobaldo é algo assim como Raskolnikov, mas um Raskolnikov sem culpa, e que entretanto
precisa expiá-la.
45
Rosa refere-se ao personagem de Dostoiévski em Crime e Castigo.
Qual seria a culpa de Riobaldo? Segundo Fogel, é sua pobreza, sua carência, seu pouco:
(...) detecta-se que ele tinha ou tem uma espécie de consciência na e da pobreza, a
saber, que ele via, através de um sentimento escondido e sufocado, no esmolar, isto é, na
pobreza, um pedido para completar uma deficiência, uma espécie de lamento, lamúrio e
amuo em relação ao pouco que não devia ser. (Fogel, 1995, p. 12)
Lembremos que Riobaldo estava esmolando quando encontra Reinaldo. Inicialmente, ele
sente vergonha de sua pobreza e esconde a sacola. Mas, aos poucos, devido à presença
excessiva do menino, pura alteridade, ele começa a encher-se do pouco, do parco, do
pobre:
44
FOGEL, G. Da pobreza e da orfandade sem vergonha: considerações sobre o Riobaldo, de Grande
sertão: veredas, de Guimaes Rosa. Petrópolis, 1995. Inédito. p. 8.
45
ROSA, G. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, E. F. (Org.) Guimarães Rosa. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. (Fortuna crítica, v. 6). p. 96.
64
Riobaldo começa como a querer alegrar-se do pouco, do pobre, no pouco, no pobre e até por
causa (graças ao) do pouco e do pobre, que se mostram com força da suficiência. A beleza do
jogado, da pura presença. Ele fica pobre sem vergonha! Isto é, ele fica cheio, rico de sua
pobreza, de coração cheio de alegria deste vazio, deste pouco, que, então, é bastança,
suficiência terra e lugar próprios. E: do que está cheio o coração, fala a boca. Assim, com
este coração, cheio deste pathos, deste humor a alegria, que é o vau do mundo! é que ele,
a convite do menino, vai passear de barco. (Fogel, 1995, p. 14, grifo meu)
Poderíamos dizer que Riobaldo assume sua culpa; culpa que vem falar da incompletude do
ser humano, de que o ser do homem é a linguagem, e, portanto, é falta. Então, Riobaldo, ao
contrário de Raskolnikov, não se rebela contra seu destino. Assumindo sua pobreza, sua
culpa, ele se torna livre. Mas liberdade aposto ainda é a alegria de um pobre
caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. (GSV, p. 268) Riobaldo encontra seu
projeto. Sendo um ser faltoso, é necessário ao homem se engajar em um projeto para
preencher o vazio de sua existência. Assim, por ter tido a experiência da primeira travessia, e
em conseqüência do pacto feito com o diabo, após o qual ele se torna capaz de realizar
alguns prodígios, Riobaldo consegue atravessar o Liso do Suçuarão sem maiores
dificuldades. Sobrelégio? Note-se que culpa é aqui tomada no sentido heideggeriano,
enquanto falta, não no sentido freudiano, enquanto sentimento inconsciente de culpa,
conseqüência do recalque. O sentimento inconsciente de culpa, característico da neurose, foi
abordado, anteriormente, no conto A terceira margem do rio, de Rosa. Na análise deste
conto, mostramos como o filho fica preso imaginariamente ao pai, pelo processo de
identificação.
4.2 Zé Bebelo / Riobaldo
65
O tema da identificação foi desenvolvido por Freud em Psicologia de grupo e análise do
ego (1921), definindo-a como a mais remota expressão de um laço emocional com outra
pessoa.
46
O pai é o que gostaríamos de ser; um menino toma o pai como seu ideal e
esforça-se para moldar seu próprio ego segundo o deste modelo. Freud afirma que este tipo
de laço emocional ocorre antes mesmo que qualquer escolha sexual de objeto tenha sido
feita pela criança. O processo de identificação possibilita a constituição dos grupos sociais,
por uma transformação dos objetivos diretamente sexuais em interesses afetuosos. Neste
sentido, a organização de grupos se por uma renúncia de gozo, necessária ao
estabelecimento da cultura. O que fica aí recalcado é a libido sexual, da qual se abre mão.
No texto citado, Freud diz que a essência dos grupos são as relações libidinais. Todo grupo
é mantido pelo amor, e o amor que une os grupos é Eros. Ao mesmo tempo, Freud utiliza o
mile de Schopenhauer, dos porcos espinhos que se congelam por não poderem tolerar uma
aproximação demasiado íntima entre eles. A psicanálise demonstra que qualquer relação
mais próxima entre duas pessoas, com um certo tempo de duração, como casamento,
amizade, pais e filhos, contém um sentimento de hostilidade que não aparece porque
sucumbe ao recalque. Penso que, com esta afirmação, Freud quer dizer que amor e ódio
caminham juntos. Ele destaca o sentimento de ambivalência dirigido às pessoas amadas,
talvez uma reedição da ambivalência sentida pela criança em relação aos pais. Devido à
situação de prematuridade em que se encontra o filhote do homem em seu nascimento, ele
necessita de um outro prestativo para obter a satisfação de suas necessidades. Assim sendo,
46
FREUD, S. Psicologia de grupo e alise do ego (1921). In: Além do princípio de prazer,
psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 18, p. 133.
66
a relação a este primeiro outro se torna a fonte primordial de todos os motivos morais.
47
A
criança vai ligar o amor à autoridade; quando amamos, esta situação se repete, tornamo-nos
submissos exaltando o objeto amado. Portanto, num grupo, a criança e o infantil estão em
jogo. Poderíamos dizer que nos tais laços libidinais característicos dos grupos estão
presentes as relações a esses primeiros objetos, ou reedições das mesmas. Daí a necessidade
da figura do líder de grupo que é colocado no lugar de ideal do ego enquanto os membros
do grupo se identificam uns aos outros em seu ego. Como amor e ódio são as duas faces
da mesma moeda e a constituição de grupos ocorre, segundo a psicanálise, por um recalque
da agressividade, temos, então, duas forças opostas: Eros e Thanatos. Freud chama atenção
para o fato de que o ódio pode funcionar também como fator unificador dos grupos. Quanto
a isto é fácil constatar na história da humanidade exemplos de tais grupos segregatórios.
Como foi colocado anteriormente, na constituição de grupos ocorre uma renúncia de gozo,
uma transformação de objetivos diretamente sexuais em laços afetivos, pelo viés da
identificação. Tanto que, no tipo de identificação que Freud privilegia nos grupos, fica fora
de questão qualquer relação de objeto com a pessoa que está sendo copiada, o mecanismo
é o da identificação baseada na possibilidade ou desejo de se colocar na mesma situação
48
,
identificação histérica ao desejo do outro. Freud entende este tipo de identificação como
uma necessidade de agir em consideração aos membros do grupo, ou pelo amor deles.
O amor, ou esta necessidade de ser amado, está na essência dos grupos. Freud coloca a
47
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]) In: Publicões p-
psicanalíticas e esboços inéditos. Rio de Janeiro: Imago, 1977, v. 1.
48
FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921). In: Além do princípio de prazer,
psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 18, p. 135.
67
necessidade de ser amado igualmente pelo líder de grupo como o que o mantém unido.
Assim, tal qual na família, o grupo se estrutura na questão do amor ao pai, e, como
conseqüência, nos laços de irmandade. Podemos observar o comparecimento desse fato nas
igrejas, e mesmo nos partidos políticos, nos quais expressões como companheiro ou
camarada nos dizem desta suposta relação de igualdade.
Em Grande sertão: veredas, os bandos jagunços, como agrupamentos humanos,
apresentam uma estrutura semelhante às organizações de grupo caracterizadas por Freud.
Os chefes jagunços podem ser considerados como pais, sendo que os indiduos que
compõem aqueles grupos vivem numa certa relação de irmandade entre si. Riobaldo
descreve, algumas vezes, o sentimento de ciúmes em relação ao tratamento dispensado por
Joca Ramiro a Diadorim. Como filho, ele deseja ser amado igualmente pelo chefe do
bando. Um personagem que mantém uma relação bastante estreita com Riobaldo, é
Bebelo. Márcia Marques de Morais, em obra já citada anteriormente, considera Bebelo
como pai imaginário de Riobaldo; eu o consideraria mais como irmão, pelo que se segue. A
própria autora resgata que Arrigucci já o colocara mais perto dos comuns dos mortais
49
,
não apresentando a dimensão mítica vislumbrada em Joca Ramiro e em Medeiro Vaz. Ao
mesmo tempo, como lembra a autora, Bebelo é considerado por Riobaldo como um
homem de travessias, um canoeiro mestre. Assim como Diadorim, ele ajuda Riobaldo em
sua travessia lembremos que Bebelo, não sem pesar, lhe entrega a chefia do bando. A
imagem do canoeiro mestre remete à travessia do rio do-Chico feita por Riobaldo junto com
49
ARRIGUCCI JR., D. O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa. In: Novos
estudos, São Paulo, n. 40, 1994, p. 7-29.
68
Diadorim. Com Zé Bebelo da minha mão direita, e Diadorim da minha banda esquerda: mas
eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia. (GSV, p. 343)
Tanto Diadorim quanto Zé Bebelo tinham paixão pela guerra, o que causava um certo
horror em Riobaldo, que não partilhava desse sentimento. Quanto a este aspecto, ele se
questionava sobre sua permanência na jagunçagem: Mesmo com a minha vontade toda de
paz e descanso, eu estava trazido ali (...) com a morte da banda da mão esquerda e da banda
da mão direita, com a morte nova em minha frente, eu senhor de certeza nenhuma.
(GSV, p. 413)
Riobaldo tem encontros e reencontros com Bebelo descritos ao longo da narrativa.
Quando da saída da casa de seu pai, Selorico Mendes, ele se torna professor de Bebelo,
depois passa a jagunço de seu bando, intercede por ele no julgamento da Sempre Verde, e
vira seu chefe mais ao final do romance. E é através de Bebelo que Riobaldo conhece o
compadre Quelemém, após a morte de Diadorim. Ainda sob o impacto desta perda, ele
encontra no amigo o conforto de que precisava. Participando do grande princípio geral de
reversibilidade
50
apontado por Antonio Candido em Grande sertão: veredas, Bebelo
mantém com Riobaldo uma relação de reciprocidade imaginária na qual não estão ausentes
os sentimentos de ciúmes e rivalização. Mas, no momento do julgamento, Riobaldo,
vencendo a timidez, defende o companheiro, sofre diante da possibilidade de sua
condenação, sentindo ódio de Hermógenes e Ricardão por pedirem sua cabeça. Ao mesmo
tempo, Riobaldo relata sua admiração por Bebelo, devido, principalmente, à sua
50
CANDIDO, A. O homem dos avessos. In: COUTINHO, E. F. (Org.) Guimaes Rosa. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. (Fortuna crítica, v. 6). p. 305.
69
irreverência. Ao ser apanhado pelos jagunços do bando de Joca Ramiro, Bebelo não se
submete passivamente ao grande chefe:
Tinha sido aquilo: Joca Ramiro chegando, real, em seu alto cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo
a pé, rasgado e sujo, sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro por dois homens.
Mas, mesmo assim, Bebelo empinou o queixo, inteirou de olhar aquele, cima a baixo. Daí disse:
respeito, chefe. O senhor está diante de mim, o grande cavaleiro, mas eu sou seu igual.
respeito! (Rosa, 1986, p. 221)
Durante todo o julgamento Bebelo assume uma atitude de contestação e se safa das
acusações a ele dirigidas por meio de argumentação própria, acabando por convencer a
jagunçada de sua inocência. Sua condenação é sumir de circulação por aquelas bandas, indo
para a casa de parentes em Goiás, enquanto Joca Ramiro vivo fosse. Após a morte de Joca
Ramiro ele reaparece, já que estava de novo livre para guerrear nos sertões; toma a chefia de
Marcelino Pampa e se torna chefe do bando. A conotação de Bebelo como um homem
de travessias aparece em vários pontos do romance. Como nos diz Riobaldo: Ele não era
criatura que se prende, pessoa coisa de se haver às mãos. Azougue vapor... (GSV, p. 222)
Participando do caráter de não-ser atribuído ao diabo, não estando em um lugar específico,
ele está em toda parte. Por onde passava, deixava sua marca maior: uma facilidade em lidar
com as palavras. Por isso admirado por Riobaldo, Bebelo se firma para o amigo como
um homem de muitas mudanças, além do bem e do mal, ser de travessias. Minha
argumentação é de que, assim como Diadorim, Bebelo serve de sustentáculo para a
travessia de Riobaldo, possibilitada pela linguagem com a criação de um significante novo: o
homem humano.
70
4.3 O homem humano
A partir da afirmação lacaniana de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem,
se torna possível uma aproximação ainda maior do discurso literário com o discurso
psicanalítico. Lacan parte da concepção freudiana do inconsciente desenvolvida em A
interpretação de sonhos (1900). Freud demonstra a lógica dos sonhos (ou do
inconsciente): eles são desconexos, aceitam contradições sem objeção, admitem absurdos. A
aparente incoerência dos sonhos ocorre devido ao processo de deformação, que é utilizado
para burlar a censura. Então, devemos estabelecer uma distinção entre o conteúdo manifesto
do sonho e seu conteúdo latente. influência de duas forças psíquicas na elaboração dos
sonhos: uma dessas forças constrói o desejo que é expresso pelo sonho, enquanto a outra
exerce uma censura sobre ele, o que acarreta uma distorção na expressão do desejo. O
conteúdo orico, expresso por um roteiro pictográfico, levou Freud a afirmar ser o sonho
um rébus, ou seja, um jogo que consiste em adivinhar palavras, idéias e conceitos que se
figuravam em desenhos de objetos cujo nome tem qualquer semelhança com o que se a
adivinhar. Diz Freud:
podemos formar um julgamento adequado do rébus (...) se tentarmos substituir cada elemento
separado por uma laba ou palavra que possa ser representada por aquele elemento de uma maneira
ou de outra. As palavras que juntamos dessa forma não deixam mais de fazer sentido, mas podemos
formar uma frase poética da maior beleza e significado. (Freud, 1900, p. 296)
O processo de interpretar sonhos utiliza este procedimento: transformação de imagens em
palavras, o que ocorre durante o relato do sonho pelo sonhador. Neste sentido, é o próprio
paciente quem fornece a interpretação. Na elaboração do sonho entram em jogo dois
71
fatores: a condensação e o deslocamento, que determinam seu conteúdo. Os sonhos
geralmente são breves, insuficientes e lacônicos, devido a ter se efetuado um trabalho de
condensação. A conseqüência do deslocamento é que elementos essenciais podem ser
tratados como se fossem sem importância. Freud afirma que nos pequenos detalhes pode
estar a solução do enigma dos sonhos. Tanto a condensação quanto o deslocamento têm
como resultado a deformação do sonho e servem aos propósitos da censura. O sonho revela
o desejo mas de modo enigmático.
Lacan, contemporâneo de Saussure, utilizando os recursos da lingüística inacessíveis a
Freud, substitui condensação e deslocamento por metáfora e metonímia respectivamente.
Ele se utiliza largamente dessas figuras de linguagem para discorrer sobre as formações do
inconsciente: os atos falhos, os sintomas, os chistes. Outro conceito privilegiado por Lacan é
o de significante; ele produz uma inversão do algoritmo saussuriano enfatizando a primazia
do significante sobre o significado. Lacan propõe tomar ao da letra a barra do algoritmo
significante/significado, ou seja, compreendê-la como uma barreira que resiste à
significação, e que assinala não uma passagem, mas o funcionamento próprio (o jogo
formal) do significante; funcionamento redutível a leis combinatórias...
51
Para Lacan a
relação entre estes dois elementos não se fecha em si mesma, a estrutura do significante está
em ele ser articulado; um significante remete a outro formando o que ele denomina de
cadeia significante.
52
É na cadeia significante que o sentido insiste, havendo um
51
TODOROV, T.; DUCROT, O. Dicionário enciclopédico das cncias da linguagem. Tradução de
Alice K. Myashiro; J. Guinsburg; Mary A. L. De Barros. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 328.
52
LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Tradução
de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (Campo freudiano no Brasil). p. 505.
72
deslizamento incessante do significado sob o significante. Logo, a relação entre eles não é
unívoca; segundo Lacan, basta escutar a poesia... para que nela se possa ouvir uma
polifonia e para que todo discurso revele alinhar-se nas diversas pautas de uma partitura.
53
Assim também se daria com o sujeito, que surge no intervalo entre um significante e outro.
Efeito de um discurso inconsciente, ele está em posição de enunciação, e, portanto,
descentrado em relação ao eu consciente, que pretendia falar no enunciado. Sujeito que
não pode se presentificar em nenhuma parte, a não ser como ausência, de que o
significante conserva seu lugar. É nos tropeços do discurso que o inconsciente se manifesta,
sendo também que comparecem as patologias. O que não é novidade na psicanálise, pois
Freud já havia demonstrado esta relação entre o inconsciente e a linguagem, que foi mais
radicalmente explorada por Lacan. Freud relata um chiste descrito pelo poeta Heine, de um
pobre vendedor de loterias que, ao falar de suas relações com um certo Barão de
Rothschild, coloca: E tão certo como Deus há de me prover todas as coisas boas, Doutor,
sentei-me ao lado de Solomon Rothschild e ele me tratou como um seu igual bastante
familionariamente.
54
Freud chama atenção para a forma de expressão do chiste: a palavra
familliär’” (familiarmente) transformou-se em famillionär (familionariamente); não pode
haver dúvida de que é dessa estrutura verbal que depende o caráter do chiste e o seu poder
de causar riso. A palavra construída pode ser descrita como uma estrutura composta
constitda pelos dois componentes, familliär e millionär, e Freud fornece um quadro
diagramático da maneira pela qual se fez a derivação a partir daquelas duas palavras:
53
Ibid, p. 506-507.
54
FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1977, v.
8, p.29.
73
fa m ili ä r
mi li o nä r
fa m i li o nä r
A palavra composta familionär libera o pensamento recalcado: a diferença de classe social
entre as duas pessoas envolvidas. O Barão R. tratou-o de modo bastante familiar, isto é,
tanto quanto seria possível a um milionário. Outro exemplo da determinação linguística do
inconsciente pode ser fornecido a partir de um esquecimento, de Freud, do nome
Signorelli, pintor dos afrescos da catedral de Orvieto, na Itália. Freud viajava de carro
com um amigo e o assunto da viagem era sobre a situação de dois países: a snia e a
Herzegovina, e sobre as características de seus habitantes. Freud falava sobre as
peculiaridades dos turcos que lá viviam, como lhe contara um colega dico que vivera
entre eles. Pouco depois, o assunto passou para Itália e pinturas, e ao recomendar ao amigo
que visitasse Orvieto a fim de contemplar os afrescos da catedral, não conseguia se lembrar
do nome do artista. Em lugar do nome Signorelli, vinham-lhe à memória o nome de dois
outros artistas, Botticelli e Boltraffio. Freud se interroga sobre que influências levaram-
no ao esquecimento de um nome que lhe era tão familiar e sobre quais caminhos ocorrera
sua substituição pelos outros nomes. Bastou-lhe fazer um retorno às circunstâncias em que
ocorreu o esquecimento para lançar uma luz sobre a questão. Antes de chegar ao assunto
dos afrescos, Freud relatou ao companheiro de viagem que, conforme lhe informara o
colega, os turcos tratam os dicos com respeito especial, e apresentam, em contraste com
nossa cultura, uma resignação em relação aos desígnios do destino. Se um médico informa
a um pai de família que um de seus parentes está à beira da morte, a resposta é: Herr
74
(senhor), o que hei de dizer? Se houvesse uma maneira de salvá-lo, sei que o senhor
ajudaria".
55
O mesmo colega também lhe disse que os bosnianos atribuem uma grande
importância aos gozos sexuais e que um de seus pacientes lhe dissera: Saiba Herr, se aquilo
acabar, a vida para mim não vale mais nada
56
. Então, os dois traços de caráter dos turcos
colocados estavam intimamente ligados entre si. E foi logo depois disso que o nome
Signorelli escapou a Freud e os nomes Boticelli e Boltraffio apareceram como
substitutos. Freud suspeita de que haveria uma conexão entre seu esquecimento e os temas
morte e sexualidade. Ora, Signor significa Herr, que está também presente no nome
Herzegovina. Além disso, não era irrelevante o fato de que ambos os comentários dos
pacientes contivessem um Herr como forma de dirigir-se ao doutor. O outro nome
substitutivo, Boticelli, contém as mesmas labas finais de Signorelli. A influência do
nome Bósnia, normalmente associado a Herzegovina, evidenciara-se na substituição dos
nomes dos dois artistas que começavam com a mesma laba Bo. Verifica-se então, que o
esquecimento do nome Signorelli sofrera a influência do tema, advindo por trás dele, no
qual apareciam os nomes Bósnia e Herzegovina. Freud se lembrou, então, de um fato
acontecido com ele próprio com relação à morte de um paciente. Ele recebera a notícia do
suidio desse paciente, por causa de uma perturbação sexual incurável, num lugar chamado
Traffoi, e lhe ocorreu que esse nome é muito semelhante ao final do nome Boltraffio. Freud
tenta reproduzir as relações que vieram então à luz, no seguinte esquema:
55
FREUD, S. O mecanismo psíquico do esquecimento (1898). In: Primeiras publicações
psicanalíticas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 3.
56
Ibid., p. 320.
75
Para Freud, as relações assim estabelecidas passam a ter um interesse enorme porque servem
de modelo para os processos patológicos dos quais se originam os sintomas psíquicos das
neuroses. Nos dois exemplos citados, percebe-se a prevalência do significante na estrutura
do inconsciente.
Lacan denominou o significante primordial de Nome-do-Pai, conceito metafórico proposto
para definir a figura paterna. No livro Os Descaminhos do Demo, mais especificamente no
capítulo Figuras da condição humana, Kathrin Rosenfield utiliza o termo metáfora
materna
57
para evocar o feminino, as mães e madrinhas etc. como termo oposto ao
excesso da violência jagunça, universo por excelência da virilidade no romance Grande
57
ROSENFIELD, K. H. Os descaminhos do demo: tradição e ruptura em Grande sertão: veredas.
Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 799.
76
sertão: veredas. Rosenfield parte da suposição de que os excessos do sertão, a selvageria
ilimitada descrita em vários momentos do romance, e os despropósitos cometidos são
metaforicamente atribuídos à falta do termo materno. Coloca a autora: A exclusão da
feminidade surge como falha radical e simbolicamente relevante para a compreensão do
romance.
58
Ora, anteriormente, a própria Kathrin Rosenfield dissera: A mãe aparece aqui
como mediadora da lei, de uma ordem alheia às aspirações imediatas e ilimitadas
(demaseios) do sujeito.
59
É pertinente a colocação da mãe como simbólica, sabendo-se
assujeitada a uma lei que ao filho seu lugar na ordem social, porém, o representante desta
lei simbólica é o pai. Portanto, metáfora é um termo relativo ao pai, não sendo possível sua
utilização com referência à mãe do ponto de vista da psicanálise. Podemos falar em desejo
da mãe de reintegração do filho, que se constitui enquanto objeto que pode satisfazê-la,
ocasionando uma indistinção fusional entre ambos. O pai promove uma separação nessa
relação: não reintegrarás o teu produto. A metáfora paterna é uma operação simbólica, na
qual a criança substitui o significante do desejo da mãe pelo significante Nome-do-pai. Do
mesmo modo, Márcia Marques de Morais, no artigo Do nome-da-mãe ao nome-do-pai:
figuração de identidades no Grande sertão’”, nos diz: A questão do nome-da-mãe,
explicitado ou implicitado, está presente como significante de função materna...
60
Através
dos significantes recorrentes que caracterizam a relação simbiótica de Riobaldo com sua mãe
no romance, a autora alude ao amor por Diadorim, num deslizamento metonímico: os olhos
verdes do jagunço que lembravam os olhos de velhice de minha mãe. Mas lembremos que
58
Ibid., p. 83.
59
Ibid., p. 81 (grifo meu).
60
In: Scripta, v. 1, n. 1, 1997. Belo Horizonte: PUC Minas, 1997, p. 266.
77
Nome é um termo utilizado por Lacan, tanto para nomear como para dizer não ao
desejo incestuoso da mãe pelo filho (e, conseqüentemente, deste pela mãe), função
essencialmente paterna. Portanto, discordo de sua utilização com relação à figura materna,
passando de injúria corriqueira a significante, ao modo lacaniano. Particularmente, nesta
dissertação, o Nome-do-pai me permite estabelecer uma relação entre literatura e
psicanálise. Sobre o assunto nos diz Ana Vicentini de Azevedo:
A noção de metáfora paterna na psicanálise, em particular em sua inflexão lacaniana, partilha dessa
consciência literária. Nos escritos e nos seminários de Lacan, o Nome-do-Pai é usado como
sinônimo da metáfora paterna e, como mefora, é particularmente resistente a uma tradução
semântica e ao pé da letra. (Azevedo, 2001, p. 16)
O fato de tomar o Nome-do-Pai enquanto uma metáfora faz com que ele transcenda as
relações de parentesco. Ao mesmo tempo, representa um atravessamento de Lacan em
relação a Freud. No ato de dar um nome, o Nome-do-Pai interpela o sujeito no campo da
linguagem. De fato, a linguagem, como estrutura, preexiste ao sujeito em seu
desenvolvimento mental. Diz Lacan: o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é
ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu
nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio.
61
Em Grande sertão: veredas
a nominação dos personagens não por acaso. A começar pelo nome do protagonista e
narrador Riobaldo: rio + baldo, que significa barragem ou parede para represar águas de um
açude. Como adjetivo, significa falto, falho, carecido, carente; no carteado, designa aquele
que não tem um determinado naipe. Enquanto ser faltoso, Riobaldo leva sua relação com a
61
LACAN, J. A instância da letra no inconsciente. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (Campo freudiano no Brasil). p. 498.
78
linguagem às últimas conseqüências, até o rabo da palavra. No range-rede com um
senhor, ele relata fatos acontecidos que ainda não foi capaz de compreender. Ele busca um
saber, e este pode ser obtido com o auxílio de um outro, ainda que sempre em silêncio. A
presença deste interlocutor invisível é essencial para o desenvolvimento da narrativa. Antes
de começar a falar, Riobaldo guardava na memória lembranças de seu passado
acompanhadas de um sentimento de culpa que ele não conseguia entender muito bem. Mas
ao contar a um outro sua estória, ele vai elaborando suas dúvidas e angústias e, aos poucos,
se torna capaz de assumir seu desejo. O que possibilita esta mudança é que o senhor não
ocupa o lugar de quem sabe; mantendo-se em silêncio, ele possibilita que Riobaldo receba de
volta sua própria mensagem: O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas,
talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai
embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. (GSV, p.
29) José Marcos de Castro Mattos
62
faz um paralelo da situação apresentada no romance de
Rosa com a psicanálise inaugural empreendida por Freud com uma jovem histérica, Frau
Emmy von N.. Relata Freud:
Compreendi que minha proibição geral fora ineficaz e que teria de afastar dela suas impressões
assustadoras uma a uma. Aproveitei também a oportunidade para lhe perguntar por que ela sofria
de dores gástricas e de onde provinham. Sua resposta, dada a contragosto, foi que o sabia. Pedi-
lhe que se lembrasse até amanhã. Disse-me de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse
contar-me o que tinha a dizer. Concordei com isso e ela prosseguiu, sem nenhum preâmbulo...
(Freud, 1893, p. 107 )
62
MATTOS, J. M. de Castro. De repente, Sertão. Pontuações sobre a questão do desejo do
analista em Freud, recortadas desde a fala de Riobaldo em Grande sertão: veredas, de João Guimarães
Rosa. In: Acheronta. Disponível em: <http://www.psicomundo.com>. Acesso em: 1 nov. 2002.
79
O caso descrito tornou-se paradigmático de uma mudança de posição de Freud em relação à
condução das análises de pacientes. Fazendo-o calar-se, aquela mulher possibilita uma
escuta outra. Ela quis calar em Freud o discurso da ciência, o saber antecipado, lógico,
previsível, remetendo-o a uma outra cena. Quanto a Freud, ele teve a sábia humildade de
rever sua posição, modificando, a partir daí, o método de tratamento, passando do discurso
médico ao discurso psicanalítico. Adélia Bezerra de Menezes compartilha dessa visão: para
esta autora, em GSV o narrar se afigura como busca desesperada de sentido para o vivido,
é a verbalização de situações existenciais na presença de um Outro, ou melhor, para um
Outro (numa situação transferencial) que fornece a possibilidade de organização do próprio
mundo interior.
63
Aqui podemos fazer um paralelo entre a psicanálise e o poético. Embora
Freud tentasse imputar à psicanálise um caráter científico, ela não é uma ciência; a
experiência de análise não deixa de ter uma dimensão poética intnseca devido à natureza de
seu objeto: os processos psíquicos. Pelo fato de lidar com materiais íntimos, ocultos e
difíceis de quantificar, este objeto especial exige, muitas vezes, o poético para ser
atingido. Tanto é que Freud utilizou, freqüentemente, uma linguagem literária para abordar a
clínica, o que lhe rendeu o prêmio Goethe de literatura, o único recebido em sua vida. a
arte, mais especificamente o poético, torna possível alcançar o indivel, aquilo para o que
não encontramos palavras. Neste sentido, é interessante resgatar algumas colocações de
Guimarães Rosa em entrevista a Günter Lorenz, já citada. Segundo Rosa, existem elementos
da língua que não podem ser captados pela razão e para os quais são necessárias outras
63
MENESES, Adélia B. de. Grande sertão: veredas e a psicanálise. In: Scripta. v. 1, n. 1, 1997.
Belo Horizonte: PUC Minas, 1997, p. 22.
80
antenas. Sendo um feiticeiro da palavra, o escritor não deve abandonar o irracional, o
mágico, o inexplicável. Por isso ele, homem do sertão, retorna à saga, à lenda, ao conto
simples porque os considera escritos pela vida. Para o autor mineiro, vida, obra e linguagem
são uma coisa só.
Para a psicanálise, o que humaniza o homem é a linguagem, então, o significante homem
humano não é redundância. Considero que, com a invenção deste significante, Riobaldo faz
uma travessia do fantasma. Ao final do romance, ele coloca: o Diabo não existe. Pois não?
(...) Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.
(GSV, p. 538) Note-se que a palavra Diabo é escrita com maiúscula quando se refere à sua
existência enquanto Ser. E com minúscula, se for... Ele vige dentro do outro (semelhante)
e nele mesmo: é o homem dos avessos. se a travessia de Riobaldo, pois ocorre uma
mudança de posição. Para além do pai Deus ou Diabo ele produz um significante que o
particulariza, tornando-o sujeito de sua própria história, sendo a linguagem o que possibilita
sua travessia. De modo distinto do personagem do conto A terceira margem do rio, o
narrador de Grande sertão: veredas ultrapassa o plano das identificações, assumindo o
próprio desejo. Lembremos que no conto de Primeiras estórias, o filho não consegue
abandonar o pai devido ao processo de identificação, permanecendo preso às margens do
rio. O mesmo acontece com Diadorim, que, para cumprir o destino traçado pelo pai, abre
mão de sua sexualidade, em função do mandado de ódio de vingança pela sua morte.
81
V O pai e a questão da autoria
Eu me lembro das coisas antes delas acontecerem.
(Riobaldo. GSV)
o tempo de uma obra não é o tempo definido do ato de escrever mas o tempo indefinido da leitura e
da memória. O sentido dos livros está na frente deles e o atrás, está em nós: um livro o é um
sentido acabado, uma revelação que devemos receber, é uma reserva de formas que esperam seu
sentido, é a iminência de uma revelação que não se produz e que cada um deve produzir por si
mesmo.
(Gérard Genette)
82
Para o ficcionista Jorge Luis Borges o texto novo pode se tornar precursor do texto
original. Neste sentido, é o texto anterior que deve ao atual, pois este chama atenção para
aquele, enfocando-o sob um olhar que não seria possível sem o texto mais recente. No
ensaio Kafka e seus precursores
64
, Borges coloca em questão noções clássicas como os
conceitos de originalidade, autoria e cronologia na produção literária. Para exemplificar, cita
vários precursores de Kafka, que passam a existir porque Kafka existiu. Ou o primeiro
Kafka, que surge junto com o segundo Kafka, mas nada seria sem ele. Borges não adota
critérios de gênero como os comparativistas tradicionais, basta-lhe uma simples afinidade de
forma ou de tom. Diz o autor: o fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho
modifica nossa concepção de passado como há de modificar o futuro.
65
Portanto é o texto
novo que subverte a ordem estabelecida e se torna ponto de referência obrigatório, não
importando sua hierarquia na produção literária. O exemplo do Quixote, reescrito pelo
personagem borgiano de Pierre Menard, é citado por Tânia Carvalhal
66
; para ela Menard é
metáfora do próprio leitor, porque este, ao ler, relança o que está lendo em seu tempo e
contexto. Borges vai ao encontro do conceito de intertextualidade, de Julia Kristeva (1969).
Segundo esta autora, o estudo das relações que os textos travam entre si faz com que
apareçam formas como imitações, apropriações, paródias, entre outras. Esta repetição tem
uma intenção em relação ao texto que copia: dar-lhe continuidade, modificá-lo, subvertê-lo.
Coloca a autora: Todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da
noção de intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê,
64
In: BORGES, J. L. Otras inquisiciones. Argentina, Emecé, 1994.
65
Ibid, p.712.
66
CARVALHAL, T. F. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986.
83
pelo menos, como dupla.
67
A noção de intertextualidade abre um campo novo e sugere ao
comparativista modos de atuação diferentes. Surge, assim, o terceiro
68
(tertius) definido por
Carvalhal como um novo objeto de indagação, que possibilita questionar o binarismo a que
tendiam os estudos sobre fontes e influências.
No artigo Crença, corpo, escrita: um lance de três em Grande sertão: veredas
69
,
Wilberth Claython F. Salgueiro, à maneira do poeta Augusto de Campos no conhecido
ensaio Um lance de Dês do Grande Sertão
70
, busca desfazer as arapucas binaristas que o
romance arma: as dicotomias deus/demo, hetero/homo e viver/narrar. Para além do
trocadilho, ele tenta recuperar o prefixo três-, o mesmo de trans-: movimento para
além de, através de; posição ou movimento de através; intensidade. O autor lança mão
do princípio da correlação nos ideogramas chineses, divulgado no ocidente por Fenollosa
(via Ezra Pound), que estabelece: nesse processo de compor, duas coisas que se somam
não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre ambas.
71
Sua
hipótese é que três dos principais vetores (crença, corpo, escrita) que regem a obra podem
ser lidos por um abandono da lógica da exclusão (ou), privilegiando a lógica da inclusão (e):
no homem humano, convivem as potências divinas e diabólicas, a força plena da
67
KRISTEVA, J. Introdução à semalise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo:
Perspectiva, 1974, p. 146.
68
CARVALHAL, T. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986, p. 52.
69
In: SALGUEIRO, W. C. F. (Org.) Vale a escrita? Poéticas, cenas e tramas da literatura. Vitória:
PPGL/CCHN/UFES, 2001.
70
CAMPOS, Augusto de. Um lance de Dês do Grande Sertão. In: COUTINHO, E. F. (Org.)
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. (Fortuna crítica, v. 6)
71
FENOLLOSA, E. Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia. In: CAMPOS,
Haaroldo de (Org.) Ideograma. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 124.
84
sexualidade e a narrativa como vida ela mesma, sem separações.
72
Diz o autor que para
entender Riobaldo é necessário realizar a travessia por experiências que deslocam o corpo, a
alma, o pensamento. Do mesmo modo, foi necessário aos críticos literários do ano de 1956
rever posicionamentos para enfrentar o impacto causado pelo lançamento de Grande
sertão: veredas. Os experimentos revolucionários de Rosa no campo da sintaxe e da
criação de palavras transformaram por completo a concepção tradicional de prosa, já
iniciada por Mário de Andrade com a publicação de Macunaíma. Naquele momento de
euforia nacionalista do governo Juscelino Kubitschek (56/61), numa época de intensa
urbanização, o escritor mineiro resgata a figura do homem sertanejo. Sobre o assunto, nos
diz Ana Cristina Coutinho Viegas:
A preocupação com uma linguagem brasileira, independente das formas de expressão lusitanas,
vinha desde os românticos e se acentuou com o Movimento de 22. Guimaes Rosa redimensionou
projetos modernistas de uma linguagem nossa e de novas interpretações do país. O ideal
antropofágico de, contra todos os importadores de consciência enlatada, o parasitar
acriticamente as cultura metropolitanas, mas sim beber de várias fontes, tudo digerir e exteriorizar o
nosso interior encontrou no escritor mineiro um legítimo representante. (Viegas, A. C., 1992, p. 31)
Note-se que apesar de se tratar de uma obra que aborda a vida de jagunços no sertão dos
Gerais, o romance de Rosa está longe de ser classificado como sendo de caráter regionalista,
fato destacado pelo crítico literário Benedito Nunes: Grande sertão: veredas ultrapassa o
72
SALGUEIRO, W. C. F. Crença, corpo, escrita: um lance de três em Grande sertão: veredas.
In: ______. (Org.) Vale a escrita? Poéticas, cenas e tramas da literatura. Vitória: PPGL/ CCHN/ UFES,
2001, p. 542.
85
âmbito regional. No drama do sertanejo ou do jagunço, irrompem os grandes problemas
humanos...
73
No mesmo período da entrada do Modernismo no Brasil, surge a psicanálise no cenário
nacional. Observa-se uma influência do pensamento freudiano junto aos modernistas, que
viam nas idéias da psicanálise elementos para a revolução estético-ideológica que
pretendiam. A admiração por Freud da parte dos intelectuais brasileiros é descrita por Olívio
Tavares de Araújo: Eles reconheciam sua contribuição fundamental para o entendimento da
natureza humana, sobretudo, das criações artísticas e literárias, o que e em particular muito
lhes interessava.
74
Segundo este autor, tanto Mário quanto Oswald de Andrade falavam a
respeito de Freud. Oswald menciona Freud por três vezes em seu Manifesto Antropófago
lançado em maio de 1928, e propõe uma releitura da questão cultural brasileira, utilizando-
se dos conceitos freudianos descritos em Totem e Tabu. Por outro lado, Mário foi
considerado o maior leitor de Freud entre seus contemporâneos; ele fez referências à
psicanálise em seus textos e sua concepção sobre as criações artísticas e literárias supõe um
diálogo com o inconsciente do autor. Nas diversas revistas provenientes do modernismo,
como Klaxon, Estética, A Revista, Verde, Revista de Antropofagia, manifestou-se um
grande interesse pela obra freudiana, inclusive tendo sido publicada a tradução de uma
conferência feita por Freud nos EUA no ano de 1909, intitulada Cinco Lições de
73
NUNES, Benedito. Primeira notícia sobre Grande sertão: veredas. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 10 de fev. 1957.
74
ARAÚJO, Olívio Tavares de (Org.). Brasil: psicanálise e modernismo São Paulo, Museu de São
Paulo Assis Chateaubriand, 2000. (Catálogo).
86
Psicanálise
75
. Mais aceita pelo meio literário do que pelo médico, especialmente a
psiquiatria, baseada na medicina organicista da época, a psicanálise se constituiu como uma
espécie de orientação para uma crítica literária baseada em sua teoria, como testemunham as
obras do médico mineiro Luiz Ribeiro do Valle: Psicologia rbida na obra de Machado
de Assis (1916), Certos escritores brasileiros psicopatológicos (1912) e Machado de
Assis e Psicanálise (1930).
76
Para Lacan o sujeito moderno surge com a operação do cogito cartesiano, que produziu o
que ele chamou de sujeito da ciência. O sujeito do cogito é pressuposto da noção do
inconsciente porque introduz a dúvida, reveladora de uma divisão no psiquismo. A ciência
moderna foi uma decorrência do monotsmo, que ordenava o mundo ao redor de um centro
e instaurou uma concepção unitária do universo. Para o homem moderno seria fundamental
afirmar sua autonomia em relação a Deus. Segundo Lacan, a arte e a ciência modernas se
caracterizaram por uma eliminação do simbolismo religioso dos céus, fato que possibilitou o
estabelecimento dos fundamentos da sica. Márcio Peter de Souza Leite coloca a seguinte
questão: e atualmente, haveria um outro sujeito produzido por um novo saber
compartido?
77
Ele introduz a questão do sujeito pós-moderno, que se caracterizaria por ser
um sujeito sem paradigmas de consenso, ou seja, um sujeito que sofre da ausência de
75
MELLO, Denise M.; JORGE, Marco A. C. Torções: do modernismo ao barroco. Notas sobre as
publicações psicanalíticas no Brasil. Tradução de Jean-Claude Soares. Revista Essaim, abr. 2001.
76
Ibid., p. 3.
77
LEITE, M. P. de Souza. Toxicomanias e pós-modernidade: um sintoma social? Acheronta.
Disponível em < http//www.psicomundo.com>. Acesso em: 30 out. 2002.
87
ideais pré-estabelecidos.
78
Trata-se de um novo momento da filosofia a que se chamou de
pós-estruturalismo e que aborda a morte do sujeito. Para alguns autores, essa possibilidade
da não existência do sujeito inaugurou o que se pode chamar de subjetividade pós-moderna.
Para Lacan, o sujeito pós-moderno seria uma conseqüência do declínio da função paterna,
o que acarretou o surgimento de novos tipos de organizações familiares e sociais; note-se
que em alguns países a lei permite o casamento entre homossexuais assim como a adoção
de filhos. Como tamm a utilização de inseminação artificial, barrigas de aluguel e,
futuramente, até a possibilidade de procriação sem o gene masculino, por meio da clonagem
da célula da mulher. Paralelamente, houve o aparecimento de novas patologias, não mais
calcadas na hipótese freudiana do recalque. Para Freud, o mal-estar na cultura seria
conseqüência do recalque da sexualidade, como também as neuroses. Hoje sabemos ser
insuficiente esta hipótese, sendo necessário um novo olhar para entender os atuais modos de
organização da subjetividade, como também das relações sociais.
O questionamento da paternidade comparece nos diversos saberes: na filosofia, na literatura,
na psicanálise. Jorge Luis Borges expressa, ao longo de sua obra, a teoria da nulidade da
personalidade. No primeiro livro de ensaios, Inquisiciones (1925), ele faz um esboço de
sua teoria da impessoalidade, assim formulada:
entendi ser nada essa personalidade que costumamos tachar com exorbitância o incompatível.
Ocorreu-me que nunca justificaria minha vida um instante pleno, absoluto, abarcador de todos os
outros, que todos eles seriam etapas provisórias, aniquiladoras do porvenir, e que fora do episódico,
do presente, do circunstancial, éramos ninguém. (Borges apud Monegal, 1980, p. 81)
78
LEITE, M. P. de Souza. Toxicomanias e pós-modernidade: um sintoma social? Acheronta.
Disponível em < http//www.psicomundo.com>. Acesso em: 30 out. 2002.
88
Borges vai levando seu leitor até o ponto em que a personalidade do escritor se dissolve
totalmente. O problema da morte do autor nos remete à tendência de descanonização da
literariedade presente na narrativa atual, iniciada pelos representantes do movimento
modernista citados acima. Por podemos interrogar a noção de autoria de uma obra
literária, pois observa-se a criação de novos procedimentos discursivos, envolvendo uma
pluralidade de vozes. No caso de Grande sertão: veredas, o paralelismo com as epopéias
medievais e seu sucedâneo o romance de cavalaria, tem sido apontado por importantes
críticos literários como Manuel Cavalcanti Proença.
79
Como também a comparação com
Ulysses e Finnnegans Wake, de James Joyce, com respeito aos procedimentos lingüísticos
e estruturais, feita por Augusto de Campos
80
e outros autores. Observa-se, entretanto, uma
desmitificação do herói em relação aos tipos idealizados da tradição literária. Riobaldo é um
sujeito dominado por dúvidas e medos, chegando a desmaiar diante da possibilidade de
enfrentamento com o perigo. Quanto ao amor, ele se apaixona por um jagunço e não por
uma donzela, contrariando o modelo clássico vigente.
Outro ponto importante a ser introduzido quanto ao romance rosiano é a influência do pai
do autor em sua escrita. Segundo sua filha Vilma, Guimarães Rosa pedia continuamente ao
pai que lhe enviasse estórias e lendas do interior mineiro, o linguajar e as expressões dos
caipiras, o que explicaria o fato de ele ter conseguido representar de modo tão realista os
79
PROENÇA, M. C. Don Riobaldo do Urucuia, Cavaleiro dos Campos Gerais. In: COUTINHO, E.
F. (Org.) Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. (Fortuna crítica, v. 6).
80
CAMPOS, A. Um lance de Dês do Grande Sertão. In: COUTINHO, E. F. (Org.) Guimarães
Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. (Fortuna crítica, v. 6).
89
Gerais e seu povo, mesmo permanecendo a maior parte do tempo à distância.
81
O pai
escrevia-lhe cartas-novelas, relatos de suas caçadas no interior mineiro e causos
sertanejos. Isso tudo servia de precioso material para o autor, que os transformava de
acordo com seu estilo e imaginação. Caberia aqui, então, a pergunta: quem escreve?
82
Certamente a literatura do genitor foi fundamental para a escrita literária regionalista de
Rosa, aplaudida no mundo inteiro. Seguem alguns trechos de cartas de Guimarães Rosa
dirigidas ao pai pelo sabor que trazem, vale à pena estendermo-nos um pouco mais:
ri-me à vontade, com a história do homem que levou os cachorros para a fazenda, e ao fim de um
ano voltou... latindo! Por falar nisso, pediria ao senhor que me mandasse por escrito, quando tiver
tempo, as palavras pronunciadas pelos homens que carregavam o defunto, aqueles que acabaram se
sumindo com ele, na estrada, e que eram (Deus nos livre!) dois demônios. Lembra da história que o
senhor contou? Também as palavras daquela outra história: do homem que apostou que iria buscar
um osso no cemitério ( Esse não, que é do meu irmão! etc.) Não me recordo das palavras que o
homem disse, ao entregar o osso aos companheiros. Creio que ele disse: Está aqui, e corram,
que o dono dele vem atrás! Está certo?
Mas, o que mais me interessa é a história do Juca Ferreira, aquele que vinha fazendo festas, com a
viola, pelo Rio das Velhas, até Pirapama. Lembro-me de que era fazendeiro e tinha tenda de
ferreiro, mas mais o sei. Imaginei uma história, tendo-o como personagem, e para isso precisava
saber mais detalhes. Se o senhor se lembrar de alguma coisa a respeito dele e das suas excursões
festivas, mande-me, por favor. Também, sempre que se lembrar de cantigas ou expressões
sertanejas legítimas, ouvidas de caipiras nossos, de Cordisburgo ou Gustavo da Silveira. E tudo o
que se refira a vacas e bezerros. Estou escrevendo outros livros. Lembro-me de muitas coisas
interessantes, tenho muitas notas tomadas, e muitas coisas eu crio ou invento, por imaginação. Mas
uma expressão, cantiga ou frase, legítima, original, com força de verdade e autenticidade, que vem
da origem, é como uma pedrinha de ouro, com valor enorme. Desde já, muito agradeço o que o
senhor conseguir. Mas, o conte a outras pessoas, para que eu possa usá-las em primeira mão.
Há uma semana, escrevi ao Sr. uma carta, e hoje tive a alegria de receber a sua, acompanhada das
notas, que muito lhe agradeço. Todas são ótimas, principalmente a sobre CIGANOS e a do
ENTRUDO em Caeté. Vão ser muito bem aproveitadas! Sempre que o Sr. tiver disposição, pode
mandar. Na carta falei no interesse que tenho pelo assunto das caçadas na Serra do Cabral
principalmente quanto aos detalhes pitorescos. O detalhe é muitas vezes de grande proveito, pois
metido num texto dá a impressão de realidade.
Há outros assuntos que gostaria de esmiuçar. Por exemplo:
1. A briga do Túlio com o Nicão com os possíveis detalhes sobre a questão de terreno;
81
ROSA, V. G. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983. (Fortuna crítica, v. 6).
82
Naturalmente, para este debate, devem-se ler os já clássicos A morte do autor, de Roland Barthes
(In: O rumor da ngua, 1987) e O que é um autor?, de Michel Foucault (1992).
90
2. Descrição de pessoas da roça, as mais interessantes, que vinham à venda, em Cordisburgo;
3. Descrição de pescarias, a rede;
4. Jogos de baralho: o truque; a pavuna, no restaurante em Cordisburgo; a intervenção do
Vigário; a briga daquele Sr. Gastão, com o padre;
5. Chico Sanfona, sua família, coisas interessantes que lhe digam respeito;
6. O Renério, idem;
7. Aquelas grandes quantidades de peixes, de Pirapora (?): como o Sr. os comprava, como
vinham, etc.
8. Caixeiros-viajantes interessantes ou curiosos, alguns bons traços.
9. Coisas interessantes, biográficas ou outras, sobre pessoas como: tio Adonias; o Siô Tico e
Nhá Chica; o pai do Juca Saturnino; Siô Lê; Luiz Canabrava; aquele Sr. Nalesherbes, meio
esquisito, que passou por Codisburgo; etc.
10. Esta é com Mamãe: A história daquele corpo de homem, mumificado, que se
desenterrou, em Jequitibá, e foi levado para a igreja.
11. Histórias de crimes, grandes brigas, raptos de moças, etc.
A lista é grande, mas o Sr. Não se assuste com ela. É apenas um punhado de sugestões. Mas não
deixe de ir mandando alguma coisa, aos poucos. (Como disse, os detalhes sobre objetos, usos,
expressões curiosas na conversa, etc. são sempre importantes. Tipos encontrados em viagens,
também, por exemplo.) Nomes curiosos, de lugares e de pessoas.
Apreciei, muitíssimo, as notas que o senhor me mandou, sobre os enterros na roça. Aliás, o senhor
o imagina como têm valor para mim essas informações. Pena é que o senhor não mande delas
freqüentemente. Estão todas colecionadas, com apontamentos e sublinhados os pontos mais
importantes, e, aos poucos, serão, todas elas, aproveitadas nos meus livros.
Principalmente, acho um interesse extraordirio nas que se referem aos COSTUMES e aos TIPOS
e indivíduos pitorescos ou bem marcados. Agora, depois dos Enterros, por que é que o senhor não
manda, por exemplo, os Casamentos, os Batizados ou Casos de crimes ou de Demandas,
Questões, etc., do tempo em que o senhor foi Juiz-de-Paz? Seria ótimo. Também, descrições de
caçadas incluindo as paisagens, etc. Outra coisa, que muito gostaria de ter, são as lembranças da
Venda, em Cordisburgo: qual a época do ano em que se vendia mais? quando era que os
lavradores dispunham de mais dinheiro, etc.? E a respeito dos caixeiros-viajantes, ou COMETAS...
Fico esperando que o senhor me mande mais. Bastam pequenos tópicos. Tudo é útil. Preciso de
explorar mais o senhor, que a mina é ótima. Desde já vou agradecendo, e muitíssimo.
Também fiquei contente por o senhor ter recebido os livros e estar gostando do Corpo de Baile.
Como o senhor não deixará de ter notado, ele está cheio de coisas que o senhor me forneceu
naquelas cartas e notas, extremamente valiosas para mim. Falando nisto, agora estou justamente
relendo as mesmas, e passando para um caderno, classificadas e em ordem, todas as informações,
para serem aproveitadas em futuros livros. É uma bela pilha de papel, sortida de vitaminas. Pena é
que o senhor não tenha mandado mais principalmente não mandou aquelas da lista que preparei e
enviei, encomendando matéria. E ainda há tanta coisa, que eu gostaria tanto de saber! (...) E mais
uma porção de coisas, que, se fosse arrolar aqui, nem havia papel, nem tempo. É melhor ir pedindo
aos punhadinhos, a varejo, para ver se o senhor se anima a restabelecer o fornecimento... Como já
expliquei, o se trata de pequenas histórias ou casos, que dariam mais trabalho ao senhor, para
selecionar, recordar e fixar. O que utilizo são as indicações sobre tipos, costumes, descrições de
lugares, cenas; vestimentas, métodos de trabalho, palavras, termos e expressões curiosas ou
originais, etc. etc. O senhor manda? Obrigado.
Sempre com a maior alegria é que recebo os simpáticos cartões do Papai, ou cartas. Gosto muito do
jeito dele escrever, de dar notícias de todos. Fico pensando que a minha bossa de escritor eu
herdei dele, que maneja a pena com tanta personalidade, vivacidade e graça. Escreva-me, sempre,
que recebo com amor, e me faz bem. (Rosa, V. G., 1983, p.163-195)
91
Percebe-se a preocupação do escritor com a exatidão dos dados e com o fornecimento do
pitoresco e de cor local, que eram valorizados na literatura da época. Havia uma insistência
da crítica em considerar genuinamente nacional aquela literatura que abordasse a
realidade brasileira. Para Antonio Candido o intelectual brasileiro se mantinha, então, numa
tensão constante entre o dado local, que fornecia substância para a expressão literária, e os
moldes herdados da tradição européia. Ele nos um panorama geral da situação ao
destacar a dialética do localismo e do cosmopolitismo como oscilação entre essas duas
tendências: afirmação de nacionalismo literário e um declarado conformismo, a imitação
consciente dos padrões europeus.
83
Por tudo isso, a literatura de Guimarães Rosa tem sido objeto de uma infinidade de estudos,
por meio da utilização de diferentes saberes, pois, como todo grande escritor, ele deixa
lacunas em seu texto, a serem preenchidas pelo leitor, de acordo com imaginação própria.
Encerro, enfim, certa de que o assunto não se esgota. Ficaria muito mais tempo a falar dos
pais: de Guimarães Rosa, de Riobaldo, da psicanálise, de todos nós. À maneira riobaldina,
busquei respostas para a pergunta inaugural da psicanálise: o que é um pai? Esta dissertação
é uma tentativa, ainda que inacabada, de conclusão do que pude elaborar a partir da leitura
de Grande sertão: veredas.
Quero terminar com o depoimento de Rosa a um amigo, sobre a produção do romance:
83
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1960, p. 131.
92
Conto a Você, na última semana, antes de entregar ao José Olympio o Grande Sertão, passei três
dias e duas noites trabalhando sem interrupção, sem dormir, sem tirar a roupa, sem ver cama; foi
uma verdadeira experiência trans-psíquica, estranha, sei lá, eu me sentia um espírito sem corpo,
pairante, levitando, desencarnado lucidez e angústia. Daí, entregues os originais, foi uma
brusca sensação de renascimento, de completa e incômoda liberação, de rejuvenescimento: eu ia
voar, como uma folha seca. Imagine, eu passei dois anos num túnel, um subterrâneo, só escrevendo,
só escrevendo, só escrevendo eternamente... (Rosa, V. G., 1983, p. 322)
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101
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