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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO:
A esfinge sereia: enigma e sedução.............................................................09
CAPITULO I
OS SEDUZIDOS: SUAS REDES, ÂNCORAS, NAVIOS E OUTRAS
EMBARCAÇÕES
O navio desatraca............................................................................................ 22
Os navios fazem figuras no ar..........................................................................28
Pirataria em pleno ar.........................................................................................45
Instruções de bordo.......................................................................................... 57
CAPÍTULO II
O COLÓQUIO AUTOBIOGRÁFICO: MÁSCARAS DA ESFINGE
As fotos: pose da esfinge .................................................................................82
Pactos com a esfinge........................................................................................93
A esfinge seduzida ...........................................................................................99
CAPÍTULO III
DIÁRIOS LITERÁRIOS: SEREIA DE PAPEL
Os diários: canto de sereia..............................................................................112
Seria marginal a sereia?..................................................................................117
Sereia pós-moderna........................................................................................124
CAPÍTULO IV
AS CORRESPONDÊNCIAS DO EU COM O OUTRO
A esfinge remetente.........................................................................................132
A sereia e o destinatário..................................................................................139
CONCLUSÃO
O singular e anônimo sobre um mar de letras.................................................152
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................162
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A ESFINGE SEREIA:
ENIGMA E SEDUÇÃO
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Quando me deparei, pela primeira vez, com um texto e um livro
de Ana Cristina Cesar, possivelmente, meu parco conhecimento literário não
divisava o que se conjurava por detrás daquelas páginas. Estávamos em julho
de 2000, eu freqüentava o curso de Especialização em Literatura Brasileira da
PUC MINAS. O módulo ministrado, Tópicos Especiais de Literatura Brasileira,
tratava de trazer subsídios sobre a produção da literatura moderna (ou pós-
moderna), as teorias em questão e os seus principais representantes. A
professora apresentou, em algum momento da aula e sem muito impacto sobre
mim, a poesia de Ana Cristina. Num outro dia, circulou entre os alunos do curso
o livro de Ana C., Correspondência incompleta. Quando o livro chegou as
minhas mãos fiquei olhando a beleza da capa, de um monocromático cinza
azulado que estampava, em um meio perfil de olhos voltados para baixo, a
figura da moça bela e enigmática. A fartura dos cabelos em volta fazia moldura
para um rosto belo e triste. Abri o livro, outros queriam vê-lo, passeei por mais
fotos sem, entretanto, poder ler alguma coisa. Já em outros dias, acabava
sempre me deparando com alguma coisa sobre Ana Cristina, um livro de
estudo, Bliss & Blue: segredos de Ana C., o moço da livraria da universidade
que colecionava recortes jornalísticos e outras publicações sobre Ana e,
nessas alturas, eu já começava a perguntar sobre ela. Procurava seus livros,
investigava estudos.
Comecei lendo A teus pés com os receios e brios de um leitor que
não se sente apto para a façanha. Li, reli, larguei e guardei o livro. Voltei a lê-lo,
começava a pensar naquelas vozes elipsóides, a decorá-las. Pensava no som
belo evocado no pequeno verso do poema Este livro: Puro açúcar branco e
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blue. A sedução estava instaurada. Era essa descoberta uma aventura
literária. A consciência do leitor tomada de assalto, mesmo sem conseguir se
inteirar daquilo que havia na maioria dos versos, mesmo que a maioria dos
jogos ali instaurados passassem, até aquele momento, despercebidos.
Deixava-me ir pelo gozo do medo, pela vontade insistente de descobrir, de
estar enredado ali, naquela sedução de palavras, arremessado no olho do
furacão.
A aventura, toda e qualquer, é o exercício do desconhecido
fascinante, excitamento que nos arremessa para um possível ou impossível
horizonte de riscos, lugar de imperioso desconforto e gozo. Instabilidade
absoluta, quimeras, ilusões, desvario e o raro prazer do experimento. Estar de
alguma forma entregue, à mercê de todos os infortúnios, de todos os reveses,
das intempéries. Estar por inteiro ali, no veio da aventura, sê-la.
A palavra, não raro, oferece-nos esta incursão de gosto ousado.
Porque nos diz daquilo que não sabíamos, porque repete o que pensávamos e
não sabíamos di-lo ou, de forma ainda mais drástica, destrói as crenças
naquilo que achávamos que sabíamos. A literatura de Ana Cristina Cesar
apraz-se nessas contendas, move as crenças desestabilizando-as,
vertiginosamente. Assina-se com esse verso uma cumplicidade secreta,
ardilosa, apaixonada. Sem estar de comum acordo com seu criador, sem
entendê-lo em seus caminhos torturantes da criação, entregamo-nos ao seu
oferecimento mais caro: A sedução da palavra.
Mas, ainda que por tortuosas trilhas, de soslaio, obliquamente,
essa escritura, fantasiosamente, é capaz de propiciar o olho no olho do autor
12
que se desmancha como uma bola de éter. Somos incitados à investigação, ao
desejo insistente de encontrar uma possibilidade, uma trilha, mesmo que falha
e falsa, para adentrar no mundo de quem finge se entregar em palavras. Desse
desejo nasce este trabalho, perdido ou encontrado no castillo de alusiones /
forest of mirrors (CESAR, 1999a: 60) que a literatura de Ana Cristina Cesar
constrói.
O desejo cego ou o amor à primeira vista pelo texto de Ana
Cristina Cesar nascem instantâneos, momento em que o leitor inapto depara
com o chamado texto de fruição, tal qual a descrição barthesiana:
Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele
que desconforta (aum certo enfado), faz vacilar as bases
históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de
seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz
entrar em crise sua relação com a linguagem.
(BARTHES,1999: 22)
No encalço dessa possibilidade de fruição, a escritura de Ana C. suscita
inúmeros questionamentos sobre esse fazer literário que se convencionou
chamar de marginal. Dribla as convenções, instaura novas hierarquias entre
autor e leitor, dissimula e encena o fazer poético.
A menina Ana Cristina Cesar apaixona-se pela escrita desde
muito cedo, ainda criança, ditava seus poemas à mãe, que não escrevia,
lembra Ítalo Moriconi (1996). Mas seu destino não lhe fugiria, a sua poesia é
oficializada na antologia poética, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda
em 1976 (26 poetas hoje). Partindo desse instante, a poeta escreve e publica
Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979), Luvas de pelica
(1980), A teus pés (1982) e Inéditos e dispersos (1985), livro póstumo
organizado por Armando Freitas Filho. Seus ensaios, críticas e tradução
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literária também serão publicados: Literatura não é documento (1980), Escritos
da Inglaterra (1988) e Escritos no Rio (1993).
Por caracterização, pelo momento em que está inserida, pelo
contexto de suas publicações e o modelo de divulgação, a poesia de Ana
Cristina Cesar é, muitas vezes, lida e entendida como marginal. Para indicar o
real sentido dessa literatura dos novos poetas das décadas de 70/80, Heloísa
Buarque de Hollanda observa:
Nas mais variadas circunstâncias, a definição das noções
alternativa-marginal-independente vem carregada de sentido
objetivo: o controle total da produção e distribuição do trabalho
de poesia, o que traria consigo, entre rias vantagens, como
uma maior liberdade de criação, aquela de procurar redefinir o
espaço e o alcance social da literatura. (HOLLANDA, 2000:
215)
É óbvio dizer que a obra de Ana Cristina Cesar não renega a
marginalidade poética, os grupos de convivência e os modelos de reflexões
para o que se escrevia na época. São os elementos principiadores, pedra
basilar, os preceitos imprescindíveis para fazer florescer uma poesia e uma
prosa que extrapolam o esquemão do universo de uma literatura alternativa-
independente, alçando vôos para além do poemão que o grupo marginal se
propunha escrever. Chama-me a atenção, exclusivamente, o tom coloquial, o
pacto autobiográfico e o leitor confidente que a escrita de Ana C. sugere na
maioria das vezes. Esses aspectos mencionados estão, definitivamente,
inseridos como premissas fundamentais da poesia marginal, que abordarei em
um momento particular do trabalho, no entanto, para Ana Cristina, isso é
apenas um mote, para deixar o seu interlocutor à beira do abismo. Partindo
desse mote, situando-me como um dos seus possíveis interlocutores,
analisarei aspectos da obra de Ana Cristina Cesar que evidenciem o diálogo
14
entre a ficção e o autobiográfico. É um diálogo que convoca o leitor a destecer
as amarras de um texto que se coloca, ao mesmo tempo, coloquial e repleto de
formalidades, apresentando-se escancarado e hermético, passível de leitura e
também ilegível. Poética que se desdobra em infindos eus, muitas Anas
desconstruídas, enigmáticas, alçapão de labirinto.
Para melhor situar-me no texto de Ana Cristina, inteirar-me das
discussões que ele tem provocado, foi organizado, no primeiro capítulo do
trabalho, um levantamento de ordem cronológica, ainda que esparso e com
algumas lacunas, de ensaios críticos, artigos, dissertações e teses sobre sua
obra. A leitura desse modo, pretendida e efetuada, inicia-se com o ensaio de
1989, Singular e anônimo, de Silviano Santiago e termina com Ana C., a
crítica por trás da poesia, escrito em 2004 por Annita Costa Malufe.
Verificando as análises realizadas nesse período de anos, compreende-se a
relevância adquirida pela literatura de Ana Cristina Cesar no interior do mundo
acadêmico e, não obstante, a importância desses textos para se compreender
o advento da literatura moderna, pós-moderna e contemporânea ou como se
pretenda chamá-la.
No segundo capítulo deste trabalho, opta-se por aproximar o
conjunto das fotografias de Ana Cristina Cesar publicadas em A teus pés
(1999), Inéditos e dispersos (1999) e Correspondência incompleta (1999) com
o jogo da representação imposto em sua literatura. O livro A teus pés,
publicado em 1982, não inclui o aparato imagético, entretanto, a edição
póstuma, organizada pelo amigo e curador da obra de Ana C., Armando Freitas
Filho, dispõe nas primeiras páginas um capítulo iconográfico. Esses retratos,
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ainda que livres da intencionalidade autoral, sem convocar-nos para uma
análise imbricada, paralela, fotografia/poesia e, por isso, impossibilitados de
serem lidos e interpretados como pano de fundo para os artifícios dos versos
da poeta ou, ainda mesmo, como recursos para justificar o jogo autobiográfico,
devem ser notados e analisados como uma prática da encenação, a pose
estudada do artista, não [...] no sentido do fingimento, mas certamente da
intencionalidade, do controle da significação. Inocência, nem na nudez.
(RESENDE, 2003: 305) . Desse modo, observando a imagem da mulher posada
nas fotografias desses livros, não é custoso compreender o parâmetro
representativo disposto em cada tom dos versos. Ou seja, as imagens, se
atentamente observadas, são suportes para intercambiar a leitura performática
sugerida em muitas ocasiões da literatura de Ana Cristina Cesar. As fotografias
sustentam, revigoram e evidenciam a fantasia do real originada dos seus
versos. Partindo desse aparato, da imagem para a linguagem, a composição
poética de Ana Cristina reverbera o dual conflito da representatividade ficcional
e da própria representação do real. Se o vivido está representado nessas fotos
de encenação prazerosa e estudada, a literatura dessa escritora, com igual
malícia ensaiada, tende a expor, como factual dilema, o que é verdadeiro na
escrita poética. No mesmo capítulo analisa-se, ainda, como a exposição das
fotografias, em A teus pés e nos demais livros de Ana Cristina, pode gerar a
falsa ilusão de uma leitura pactuante, sussurrada, segredada numa intimidade
envolvente e capciosa. Os pactos são constituídos como elementos primordiais
para se enlevar, enredadamente, na realização da leitura de Ana Cristina, pelo
menos num primeiro momento. Em outro momento, exploram-se os recursos
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intertextuais, a cleptomania estilística como um recurso guarnecedor do
colóquio priorizado na poesia de Ana C. Evidencia-se como esses elementos, a
priori, revelam a inter-relação do escrito, do lido e do vivido, compilando em sua
literatura a memória do lido como a mais intensa memória do vivido. Artefatos
intensificadores, nessa literatura, da sedução e do enigma em vozes que se
multiplicam a cada verso.
No seguinte capítulo, sobre as multifaces do colóquio e as várias
maneiras como ele é praticado, investigam-se os muitos elementos
constitutivos da sedução premente que se prolifera nesse texto. Diante da
consciência de um fascínio voyeurístico, entendemos que há, na poesi a de Ana
Cristina Cesar, um tipo particular de texto incentivando, detonando as leis e os
jogos da arte de seduzir. Tomam-se por base, para esse aspecto particular de
leitura, as poesias formatadas em diário, pois essas parecem ser, na maioria
dos casos, o enigma que a todos seduz. Examinam-se, do mesmo modo, as
relações da poeta e desse modelo característico de sua criação, com as
conjecturas da literatura marginal estabelecida nos anos 70. Finaliza-se
demonstrando, na seguinte parte, as experiências da literatura de Ana Cristina
Cesar com a culminância dos estudos pós-modernos e os reflexos de tais
circunstâncias em sua poesia.
Em Correspondências do eu com o outro, o quarto capítulo da
pesquisa, apresentamos a ligação intersubjetiva das variações epistolares
introduzidas como modelo de literatura na obra de Ana Cristina. A análise tem
como princípio o livro Correspondência Completa, de 1979. Partindo dessa
carta consideramos, em modelo de cotejamento, o livro Correspondência
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Incompleta (1999), como ambiente de exercício para a composição de uma
literatura que se deseja no outro e, assim sendo, os correspondentes, reais ou
fictícios, são os vultos célebres das cartas encenadas na escrita ou da escrita
que se encena nas cartas. E, finalmente, retomamos o ensaio de Silviano
Santiago, Singular e anônimo, para afirmar na poesia de Ana Cristina Cesar a
localização de um sujeito amorfo. O mesmo sujeito situa-se numa posição em
que o movimento para o outro se na reiteração de constantes artifícios, na
sobreposição de máscaras, na reiteração de movimentos oblíquos, deixando a
possibilidade do encontro, do dar-se a ver, em uma suspensão definitiva. A
sobrevivência desse sujeito se possibilita na instauração de novas máscaras,
como está representado no diálogo do andarilho e do curioso de Friederich
Nietzsche:
Andarilho, quem é você? Vejo-o que anda por sua
estrada, sem desdém, sem amor, com olhar inescruvel;
úmido e triste, como uma sonda que da profundeza volta
insaciada para luz que buscava ela embaixo? ,
como um peito que o suspira, como um lábio que
esconde seu nojo, como uma o que apreende apenas
devagar: quem é você? que fez você? Descanse aqui:
este lugar é hospitaleiro para com todos recupere-se! E
quem quer que seja: que coisa lhe apetece agora? o que
pode lhe servir de conforto? Apenas diga; o que eu tiver,
lhe ofereço! Conforto? Conforto? Ó curioso, o que diz
você! Mas, por favor, me O quê? O quê? Fale!
Mais uma scara! Uma segunda máscara!...
(NIETZSCHE, 2006: 171-172).
Por um outro lado, vale ainda dizer que os versos de Ana Cristina
Cesar incitam, estimulam a compleição do leitor voyeur. Em virtude disso, em
muitos momentos, ao ler Ana Cristina Cesar, o leitor ataca seu texto com o
ímpeto indiscreto dos observadores da intimidade alheia e deseja a entrega,
sem reservas, da vida real de um sujeito que articula uma sinceridade patente,
18
que confessa sua vida, o cotidiano e cria com o leitor uma cumplicidade
indelével, pois, na maioria de seus textos, poesias, cartas e diários, a voz
constante é de um locutor que procura e deseja entregar-se, confidenciar-se.
Instaura-se, então, um suposto e dissimulado pacto autobiográfico. Ítalo
Moriconi observa sobre a indução do autobiográfico na obra de Ana Cristina
Cesar: apesar de fazê-lo de maneira desconstrutiva e distanciada, toda a
literatura, produzida por Ana Cristina, toma por base a autobiografia, o auto-
retrato, a confissão. (MORICONI, 1996: 123)
Enredado por esses princípios, gostaria de assim enumerar, por
fim, o trânsito que meu trabalho pretende realizar na obra de Ana Cristina
Cesar: a) explorar textos de suas principais obras poéticas e ensaísticas (A
teus pés, Inéditos e dispersos, Crítica e tradução) que, de alguma forma,
acionem a sugestão do autobiográfico e a sua dissolução; b) o desejo evidente
de inserir o leitor em sua poética e de induzi-lo, fingidamente, ao pacto; c) a
identidade do sujeito pós-moderno; d) os instantes em que sua literatura
confirma a sua grande expertise de dizer coisas escondendo-as, fundando
enigmas sobre os quais a maior parte de sua escrita se assenta. Apontados os
aspectos cruciais do trabalho, aproveito a deixa dos momentos enumerados,
para justificar o título do estudo proposto: ANA CRISTINA CESAR: O
COLÓQUIO AUTOBIOGRÁFICO DA ESFINGE DE RAY-BAN. Seria
desnecessário dizer que a poesia de Ana Cristina contém traços claros do
decifra-me ou te devoro, proferido pela Esfinge que ameaçava Tebas. Grande
parte da sua escritura literária pode ser entendida como um grande enigma,
enigma que arrasta os sedentos e desejosos de se aventurarem em um mar
19
paradoxal de calmarias e fúrias, mar que traga o leitor, atraído pelo canto da
sereia (ou seria pela esfinge?). Há, contudo, a opção do leitor, sua única saída
dizer à esfinge-obra: devora-me ou te decifro. Esse gesto é condi ção de sua
existência.
De uma outra maneira, para corroborar também o sentido de sua
poesia tão repleta de alusões oceânicas, águas profundas de mistérios que
arrastam o navegante e o impedem de retomar o cais, seria utilíssimo que a
esfinge fosse marítima, ou mesmo as duas, esfinge e sereia, usadas como
recurso alegórico, para representar a escritura de Ana Cristina Cesar, como
esclarece Francirene Gripp de Oliveira:
A imagem do universo marinho, com seus mistérios e favores,
contribui para indicar o caráter paradoxal desse sujeito,
incongruente e híbrido, mas doador de si, e que mergulha, para
sempre, em sua própria solidão. Sua produção, sempre à
margem e à deriva, lança âncoras aos ares tempestuosos de
um período de transição e alcança fixar-se nos espaços
contemporâneos. (OLIVEIRA, 2001: 12).
A esfinge devora os que não a decifram, enigma imposto, viver
ou morrer. A sereia encanta e seduz, beleza hipnótica feita de azul, sol, navios,
pirataria, sargaço, atração e morte. Fusão de duas imagens simbólicas que
podem ilustrar a extensão e a complexidade do sujeito que a poética de Ana
Cristina evoca: cabeça de esfinge, corpo de sereia. O Ray-ban deve ser
entendido através de uma fotografia que, segundo Armando Freitas Filho e
Heloísa Buarque de Hollanda (1999), é a foto mais divulgada de Ana C., feita
por sua ex-cunhada e amiga para sempre , Cecília Leal. Nessa fotografia,
Ana Cristina aparece encarando a câmara sob a proteção dos óculos escuros.
A foto, feita no Rio, em 1976, consta do livro Correspondência incompleta
(1999: 112) e, também, do livro Inéditos e dispersos (1998: 221). Tal retrato
20
concilia, de maneira incontestável, a imagem de mulher-enigma, outra vez a
esfinge do sujeito que regurgita da literatura de Ana Cristina Cesar, não
obstante, também, encena, de alguma forma, o poder de desdobrar-se do
poetaator, a imagem inatingível e indecifrável de quem sabe que tudo não
passa de arte: imitação da vida.
21
CATULO I
OS SEDUZIDOS: SUAS REDES, ÂNCORAS, NAVIOS E
OUTRAS EMBARCAÇÕES
22
O NAVIO DESATRACA
A poesia é o lugar do inefável, o intraduzível do mundo real, das
circunstâncias vividas ou imaginadas. Octavio Paz nos diz que
[...] aquilo que nos mostra o poema não vemos com nossos
olhos da matéria, e sim com os do espírito. A poesia nos faz
tocar o impalpável e escutar a ma do silêncio cobrindo uma
paisagem devastada pela insônia. O testemunho poético nos
revela outro mundo dentro deste, o mundo outro que é este
mundo. Os sentidos, sem perder seus poderes, convertem-se
em servidores da imaginação e nos fazem ouvir o inaudito e
ver o imperceptível. (PAZ, 1994: 11)
O poder do testemunho poético revela-nos, em lufadas de vento,
em grandes ondas azuis, no mar e no infinito, o universo em que se
transmutam todos os sentidos da linguagem, nos aclara outro mundo dentro
deste, o mundo outro que é este
mundo, ,
onde os navios dos poetas
atracam, mostrando-nos que as navegações da linguagem poética ancoram-se
nos mares flutuantes, inconcebíveis de fato, mas existentes na intangibilidade
do imaginado, do sonhado. Como está advertido, por Ana Cristina, no poema
Recuperação da adolescência: é sempre mais difícil / ancorar um navio no
espaço (CESAR, 1999a: 87). Os navios desatracam e fazem figuras no ar,
têm dificuldades em alcançar, no vazio do espaço, um lugar de repouso e
fixação para essas navegações e seus navegadores movidos, unicamente,
pela volatilidade das palavras. A palavra-espaçonave, em arabescos de
múltiplas nuanças, rufla as asas dos navios que se movem sem cessar. Sem
instantes de repouso, sem âncoras de sustentação, pois as mesmas estão
lançadas e fixadas no ancoradouro da extensão espacial.
23
Ancorar navios no espaço é a conclusão para a dificuldade que
pode representar a elaboração da linguagem poética, a palavra inapreensível,
insubmissa, arredia à pena dos que tentam captá-la. Tais representações são
possíveis, unicamente, em um mundo transcendente, sonhado no espaço,
dimensões que somente os poetas conseguem alcançar. Se essa poesia,
concebida nas esferas flutuantes dos sentidos e da percepção, impulsiona a
uma observação além de nossos saberes, vincados pela realidade
automatizada, pragmática, alheia aos caminhos em que navegam as sereias e
tantas outras conjunções míticas circunscritas na poesia e, em particular, na de
Ana Cristina Cesar, faz-se necessário, para nos guiar, lançar mão de bússolas,
faróis, remadores, lemes capazes de nortear o rumo dos navegantes que,
pretensamente, arriscam lançar as redes nos mares suspensos, aéreos, onde
as sereias sobrevoam em asas de nuvens e entoam hinos para os marinheiros
audazes.
O circuito das redes lançadas sobre esses mares tem início com
o ensaio de Silviano Santiago, Singular e anônimo
1
, publicado originalmente
em 1984 no Folhetim da Folha de São Paulo, suplemento dominical de cultura,
e, depois, em 1986 na revista O eixo e a roda da Universidade Federal de
Minas Gerais. Em 1989, sai no livro Nas malhas da letra, coletânea de
trabalhos do autor. O título do livro é bastante sugestivo para corporificar e
intensificar o sentido das redes. O instrumento de pesca, tecido em pequenas
malhas, sugere-nos o entrelaçamento dos pequenos pontos, laçadas, de um
1
SANTIAGO, Silviano. Singular e anônimo In: _________. Nas malhas da letra: ensaios. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 53-61.
24
mesmo tecido, realizadas por mãos diversas. Assim como é o feitio do
artesanato dessas armadilhas pesqueiras.
As malhas das letras não são também armadilhas para os
interlocutores literários, pescadores desavisados? O ensaio dedicado à
literatura de Ana Cristina Cesar, Singular e anônimo, está intimamente ligado
ao título Nas malhas da letra, sugerindo-nos o entrelaçamento dos divergentes
pontos, das múltiplas redes lançadas sobre um mesmo texto e, sobretudo,
como tais redes tentam alcançar e apreender em, muitos casos, um sentido
unilateral para a tessitura poética e considera, especialmente, as ciladas
encerradas no texto literário. E, nesse sentido, quem se lança ao mar no intuito
dessa pesca acaba deixando de ser pescador para se tornar o peixe pescado,
fazendo-se do caçador a própria presa.
O ensaio Singular e anônimo toma especificamente o poema
Correspondência completa, publicado, primeiramente, em edição
independente em 1979 para depois ser lançado, em 1982, em editora
comercial. Silviano enfatiza o lugar que o escrutínio dos ledores ocupam nas
dobras, nas malhas dos textos. Centraliza-se a discussão, para esse tipo de
representação, no papel que Gil e Mary desempenham no andamento da falsa
correspondência. Os dois, supostos personagens, são os leitores
classificadores do modelo cacasiano
2
.
Para esclarecer sobre que tipo de leitores estamos falando, é
necessário entendermos em quais circunstâncias e por que a terminologia
acaba ganhando, de alguma forma, funcionalidade dentro dos grupos
2
Cf. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de
Janeiro: Funarte, 1981, p. 229.
25
fazedores de literatura marginal. Cacaso era o leitor crítico, enxergava na
produção literária de Ana Cristina Cesar duas linhas de textos diferentes. Ao
comentar a postura crítica de Cacaso diante da produção desses textos,
Messeder nos diz: [...] Os comentários de Cacaso são significativos pois este
autor, como já foi dito em outros momentos deste trabalho, tinha um papel
especial no mundo da poesia marginal. Ele era, de certa forma, um poeta
crítico, um classificador de poetas e de poesia marginal [...] (MESSEDER,
1981: 228). Justificando as opiniões classificadoras de Cacaso, mais adiante,
Carlos Alberto Messeder conclui: Valorizava, assim, certos estilos mais do que
outros e, desta forma, definiam-se parâmetros, modelos, gostos e sistemas de
reconhecimento. Afirmava-se, portanto, certo tipo de poesia como mais
tipicamente marginal.[...] (MESSEDER, 1981: 229). De posse de tais
esclarecimentos encontramos então, ironicamente, na carta-poema de Ana C.,
os ledores-personagens para as suas duas linhas diversas de poesia. O
primeiro, Gil, busca as marcas cotidianas, os escritos íntimos da vida real.
para desvelar as secretas confissões ocultadas no vinco de cada verso, de
cada palavra: [...] Ele para desvendar mistérios e faz perguntas capciosas,
pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. [...] (CESAR,
1999a: 120). A segunda, Mary, a outra personagem e leitora, realiza uma
leitura descompromissada com as façanhas e os segredos encobertos sob os
versos, entrevê, em cada poema, o armamento estético, a literatura: [...]
Mary me lê como literatura pura, e não entende as referências diretas.
(CESAR, 1999a: 120). A opinião dos leitores, Gil e Mary, explicitada por Júlia
no andamento da carta, analisa as possibilidades de leituras conferidas, por
26
algumas análises, ao tipo de texto produzido por Ana Cristina, concebendo,
mormente, uma leitura classificadora que enfatiza a dicotomia das percepções
e, por um outro lado, evidencia a impossibilidade de se perceberem, por
completo, as várias significações da literatura. Ao mesmo tempo, esse casal
assume o lugar de todos os interlocutores, funcionando como o olhar da crítica,
como possíveis questionadores analíticos da composição literária de Ana
Cristina Cesar, na carta de Correspondência completa.
Em outro momento, comentando um depoimento de Ana Cristina
Cesar a Carlos Alberto Messeder Pereira, para o livro Retrato de época: poesia
marginal anos 70, Silviano aponta dentro dessas contradições legível e
ilegível, entende-se e não se entende, fácil e difícil, comunica e não comunica
o engano cometido pela crítica de Cacaso ao dizer que alguns textos de Ana
Cristina excluem o leitor:
Cacaso se enganava ao acreditar que num grupo de poemas
(aos que chamava de poemas difíceis) estava excluído o
leitor, enquanto no outro grupo, o de comunicação fácil, o
leitor se aproximava do texto sem cansaços, entendendo-o,
queo se sentia alijado do seu bojo. (SANTIAGO, 1989: 54)
Para Silviano Santiago o espaço do poema é o pont o extremo da
linguagem onde o escritor não consegue dar-se a conhecer na íntegra, onde
explicar a ternura é tarefa impossível: Não estou conseguindo explicar minha
ternura, minha ternura, entende? (CESAR, 1999a: 120). Contudo, a literatura é
o lugar em que a linguagem se preenche nos transbordamentos de seus
significados e realiza, independente de excluir ou incluir o leitor, a travessia, a
passagem para um outro desconhecido, singular e anônimo. E, desse modo,
tanto nos textos fáceis como nos difíceis, o leitor estará, de alguma forma,
incluído:
27
Num e noutro caso, o leitor está, por assim dizer, incluído. A
linguagem poética nunca exclui o leitor. Com o seu
depoimento, Ana Cristina parece apontar para Cacaso o fato
de que ele próprio, Cacaso é que se excluía
voluntariamente dos poemas do primeiro grupo no movimento
da sua leitura. Às vezes o leitor não é feito para certos
poemas, assim como muitas vezes não fomos feitos para
quem, no entanto, queremos amar: ... foi seu ouvido que
entortou, ecoa o verso. (SANTIAGO, 1989: 55)
Fazendo uso do poema Explicação, de Carlos Drummond de Andrade, o
excerto esclarece-nos sobre a impossibilidade de alguns versos atingirem seus
leitores: Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
(ANDRADE, 2005: 113-114). Mas isso não quer dizer que o texto gera sobre si
incompatibilidades e desafinos em quem os lê. É possível que o ouvido não
esteja receptivo, aberto para ouvir o canto e o encanto, ser por ele seduzido,
mesmo sabendo das intempéries, riscos, desafios e enigmas que os versos
trazem consigo para quem decide navegá-los.
28
OS NAVIOS FAZEM FIGURAS NO AR
A poesia de Ana Cristina Cesar revela-nos uma dicotômica e
intrigante forma de constituição. Uma arquitetura poética baseada nos arranjos
do fingimento e da autenticidade do sujeito poético. A grande maioria de seus
versos situa o leitor num entrecruzamento, um contingente temático que
explora os modelos da autobiografia, da biografia, da ficção literária, da
verdade, do fingido. Nenhuma afirmação, nenhuma leitura crítica para os
elementos em que se organizam tal literatura parece estancar a dúvida que a
autora conseguiu instaurar entre o fingido e o vivido, o fato e o imaginado, a
literariedade da representação e o real representado. São seus navios
circundantes, essa poesia esboçada como quem não deseja definir a rota,
fazendo figuras no ar, imagens liquefeitas, voláteis como as nuvens.
Maria Helena Castro Azevedo (1989) nomeia os textos
3
de Ana
Cristina como o Tesão do Talvez buscando identificar a mobilidade dessas
imagens feitas de brisa. No caso, o tesão da busca é feito de talvez, talvez o
cais, talvez o encontro, talvez a terra firme para atracar.
Apoiada no pensamento de Philippe Lejeune, Jean Rousset,
Mireille Calle-Grubber, Maria Helena investiga as conjunções do pacto
autobiográfico, os formatos da literatura íntima e o seu status, enquanto
3
O uso do termo textos, de maneira tão generalizada, deve-se ao esclarecimento de Maria
Helena Castro Azevedo sobre o eixo de sua análise: tomo os escritos de Ana Cristina
genericamente enquanto textos, prosa-e-poesia, relevando qualquer distinção ontológica entre
ambas. Ainda no geral, os tomo como textos narrativos, relatos de eventos, mobilizando os
mais diferentes recursos, inclusive o formato versificado. (AZEVEDO, 1989: 7-8)
29
gênero, dentro do cânone literário. Esse trabalho analisa, detidamente, o
esquema literário adotado por Ana Cristina Cesar para esboçar os elementos
contratuais (cartas, diários, cadernos terapêuticos) que poderiam reiterar, com
os leitores, a idéia do pacto autobiográfico. Parte, especificamente, da inserção
da obra de Ana Cristina dentro do cenário marginal da década de 70,
entendendo que essa geração trouxe consigo uma literatura impregnada de
vida, de cotidiano, de banalidade da existência, de dessacralização poética e
cumplicidade interlocutória. Tais requisitos acabam funcionando, segundo
Maria Helena, como molas propulsoras para uma análise voltada,
exclusivamente, para os códigos que poderiam decifrar a intimidade daquele
que escreve. Definindo os moldes adotados por esse marginal fazer literário,
Flora Süssekind escreve:
O rosto do autor se desenha em toda parte: nos textos, no
livro, na edição, na hora da venda. Aliás, talvez por isso a
referencialidade não seja o exigida nos textos. Se o autor
está logo ali, na nossa frente, não é ao poema que se deve
pedir comprovante de identidade. Agora o que se passa a
exigir dos poemas é cumplicidade. Não é à toa que volta e
meia os poetas se permitem confidências amorosas,
intimidades ao do ouvido desse comprador potencial.
(SÜSSEKIND, 1985: 73)
Em Tesão do Talvez: a prosa de Ana Cristina Cesar e o ato autobiográfico,
Maria Helena esclarece como esses princípios básicos da criação marginal são
subvertidos dentro da obra de Ana C. Sinaliza, principalmente, os pontos em
que a idéia da autobiografia, cindida ao meio, lugar a uma literatura
particular, transgredindo tanto o modelo marginal como o preconcebido juízo
dos dados autobiográficos e íntimos. Mas reservando, contudo, um lugar de
honra para seu inestimável e ilustre convidado: o leitor. De acordo com esse
ponto de vista, percebe-se que Azevedo demarca, no texto de Ana Cristina, o
30
território das infrações tanto para com o esquema marginal como para com a
ótica autobiográfica, supostamente oferecida pela leitura desses textos. Estão
aí, em jogo, as variantes de uma sinceridade escamoteada, um navio fazendo
figuras no ar ou, como nos diz a própria Maria Helena Castro Azevedo:
Sinceridade oferecendo-se como construção textual intensa,
demandando do leitor que cumpra sua parte nada aqui é
franqueza acabada, a ser passivamente recebida e que, no
cumpri-la, estabeleça (para si) o grau e o valor daquela
sinceridade. Na rede do dito e não dito, que se põe a
descoberto nessa escritura, a instância da leitura é,
implicitamente, relevada. O que se oferece evidencia uma
lacuna, faz ressaltar a função da leitura. Postula a
necessidade do leitor com posição interpretativa, não
indicação dos conteúdos dessa interpretação. Se a recepção
concreta implica a variedade destes últimos, a posição que
está postulada implica que a completude permanece sempre
em aberto. (AZEVEDO, 1989: 78)
Se na pesquisa de Maria Helena enfatiza-se a ruptura do valor e
do grau da sinceridade na obra literária, demandando do leitor esta ou aquela
posição ao interagir com a escrita, pode-se, não obstante, detectar que a crítica
e os estudos sobre a literatura de Ana Cristina Cesar são fustigados, quase
sempre, pela temática autobiográfica que se impõe como o grande impasse ou
o grande enigma dos textos da autora carioca. Os navios não atracam nunca,
permanecem rodopiando pelos ares, na constante espera de quem possa
ancorá-los, ainda que no espaço.
Lançando uma nova âncora, uma nova rede, a tese de
doutoramento, de Maria Lúcia de Barros Camargo (1990), Atrás dos olhos
pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar, publicada em 2003,
realiza uma circunavegação pela literatura de Ana C. Dispõe, em análise
cronológica, o início da carreira de escritora ou poemas de formação, a
maturidade poética, os ensaios críticos e as traduções. A abordagem da
31
pesquisa de Maria Lúcia não deixa de lado o fantasma do autobiográfico, mas
a pesquisadora coloca em relevo os aspectos, segundo ela, mais importantes
para a compreensão da produção dessa escritora.
Ao fazer um levantamento sobre a fortuna crítica da obra de Ana
Cristina Cesar na década de 80, Maria Lúcia de Barros Camargo
evidencia dois aspectos relevantes e contraditórios: de um
lado, o consenso quanto ao valor dessa obra, especialmente
pelo destaque, pela diferença, comparativamente à obra
produzida por sua geração; de outro lado, a ausência de um
trabalho crítico mais abrangente e aprofundado, que busque,
pela análise da obra em seu conjunto, entender o lugar, a
especificidade e o sentido dessa poética. É nesta lacuna que
se insere este estudo. (CAMARGO, 2003: 25)
No intuito de preencher tais lacunas com seu estudo, Maria Lúcia toca em
pontos elucidativos da construção literária de Ana Cristina, esclarecendo,
sobretudo, como a formação literária, de pesquisadora e acadêmica, i
determinar, nos versos da poeta, uma obra instigante, refletida em ironias
particulares, ousada e conscientemente literária para os padrões marginais
cultuados naqueles anos.
Podemos fixar, então, os limites e as diferenças entre a produção
literária de Ana Cristina Cesar e a de seus coetâneos. É possível, por essa via,
entender a obra dessa poeta como um divisor de águas nas publicações que
orientaram o mercado marginal dos anos 70. Justificando o recorte de sua
pesquisa, Maria Lúcia esclarece-nos sobre o significado e a contribuição da
produção literária e crítica de Ana C. para a sua geração e, de um modo geral,
para com a literatura:
o se trata, contudo, da opção por uma leitura
descontextualizada e que desconsidera as relações entre a
poesia e as condições nas quais se produz e vem a público.
Ao contrio, acredito que lidamos com uma poesia totalmente
32
imersa em seu tempo, mas de um modo peculiar, não pelas
identidades e sim, especialmente, pelas diferenças. E, mais
ainda, pelo rico e irônico diálogo que estabelece entre a
tradição literária e seu presente, transformando em maria
poética e crítica a problemática estética dessa geração de
poetas. (CAMARGO, 2003: 16)
Entretanto, essa poesia i mersa em seu tempo, como não poderia deixar de ser,
traz à tona muitas discussões e celeumas instauradas em torno do fazer
literário. Camargo aponta as direções sobre as quais a obra de Ana Cristina
avança. Ainda mais, investiga os cruzamentos literários efetuados nas
principais produções de Ana C., designa os inúmeros diálogos estabelecidos
entre crítica e poesia, reaproveitando e colocando, diante de um novo ponto de
vista, os discursos femininos, a feitura da poesia e da prosa pós-moderna, os
diálogos intermitentes entre literatura e crítica literária, a ressignificação da
tradição, o papel das influências. Além disso, problematiza, reiteradamente, as
concepções históricas de fingido e verdadeiro, de ficção e confissão, e a
vulnerabilidade da sinceridade autobiográfica. Maria Lucia de Barros explica-
nos:
A aprendizagem poética de Ana Cristina, como vimos, culmina
com a intensificação da ptica intertextual e com a
explicação, na própria poesia, de seu processo construtivo, ou
seja, do trabalho sobre outras obras. O texto como
palimpsesto. Constatação da impossibilidade do novo, da
inexistência da originalidade absoluta. Novo seo modo de
ler. Nova se a explicação desse projeto, a confissão da
intimidade de seu modus operandi. (CAMARGO, 2003: 143-
144)
Partindo do pensamento de Mar ia Lúcia devemos adicionar, a essa
leitura, o ensaio de Nestor M. Habkost (1992), Luvas de Pelica ou da máquina
intersubjetiva de visibilidade. O autor sugere, para a prática poética de Ana
Cristina Cesar, partindo, especificamente, do livro Luvas de pelica (1980), um
modus operandi que se realiza através da tematização do olhar, um olhar de
33
passageiro, de viajante: [...] O texto é uma grande valise que, suponho,
prefigura uma espécie de máquina de onde saem uma a uma as imagens de
uma poesia viajante. (HABKOST, 1992: 114). A percepção do mundo moderno
é atravessada pela visibilidade realizada em focos instantâneos, máquina de
fotografar a subjetividade, forma mecanizada de se deixar ver e enxergar o
mundo e o outro. Entre a constituição do olhar desse sujeito e as suas zonas
de visibilidade há, continuamente, um elemento mediador através do qual ele
percebe e se relaciona com o mundo ao redor. Analisando o olhar da poeta
Ana Cristina Cesar, sob os circuitos tecnológicos da modernidade, Nestor
Habkost diz:
Ela o mundo, o outro, mas o faz com um olhar que não é
mais humano ou, mais precisamente, um olhar naturalmente
humano. sempre um acoplamento mediativo interpondo-se
ao olhar, conjugando-se com ele, formando, na recorrência de
um elemento a outro, tal como peças num conjunto
operatório uma espécie de máquina de visibilidade.
(HABKOST, 1992: 115)
Compreende-se, através do estudo de Nestor M. Habkost que, numa dimensão
ampliada, além do livro Luvas de pelica, a construção literária de Ana C. está,
mormente, mediada por um outro. Quer seja ele um elemento de interposição,
máquina intersubjetiva para recortar e redimensionar o mundo enxergado, ou
seja o outro, aquele acolhido no texto para prefigurar outras vozes, outros
olhares. O modelo desse olhar, sempre mediado, cruzado por outros objetos,
imagens, pessoas, interlocutores e uma seleta de autores, não deixa de ser,
todavia, a própria forma mediadora de uma composição poética, desdobrando-
se sobre si mesma. Concebido sob a sujeição de uma infinidade de mediações,
o olhar multiplicado, dispersado em tantos rumos, termina por sustentar novas
subjetividades, novas percepções sobre a literatura e a maneira de construí-la.
34
Na pesquisa de Maria Lucia de Barros Camargo, o conjunto da
poesia de Ana Cristina sobressai como a transfiguração da tradição e da
impossibilidade de dizer o novo ou, como salienta a pesquisadora, o texto
como palimpsesto. O ensaio de Nestor M. Habkost construído a partir de um
outro sentido, a apreensão do mundo poético de Ana Cristina Cesar através da
máquina do olhar, maneira intersubjetiva de estar no mundo com os outros.
Contudo, os argumentos de Habkost relacionam-se com a idéia do
palimpsesto, um mundo percebido através das interposições, um mundo
copiado por um olhar entremeado, decalcado de uma quase rasura.
De um outro modo, pode-se apreender, através da análise de
Regina Helena Souza da Cunha Lima (1993), em O desejo na poesia de Ana
Cristina Cesar (1952/1983) Escritura de T(e)s, que outros elementos,
persecutórios dos navios que fazem figuras no ar, operam dentro da leitura do
referido processo intertextual e, também, nas outras nuanças desta
linguagem, o desejo neste corpo de sereia. Regina Helena efetua, de acordo
com tais variantes, o exame dos pormenores que denotam, na poesia de Ana
Cristina, a circunscrição do desejo. Um desejo que se opera nos vieses do
significante e do significado, nas reverberações dos sons, na repetição de
determinadas consoantes, nas soluções dos títulos, no reaproveitamento das
imagens cinematográficas, das músicas populares, da língua estrangeira
(inglês e francês usualmente). O desejo é, nesses casos, solicitado como uma
via de acesso à linguagem, como reaproveitamento das perdas, tal qual o lugar
ocupado pelos receptores dos textos de Ana C. Por isso, Regina Helena
evidencia: Sem esquecer, no entanto, que o que falta sempre, porque virtual,
35
lugar vazio, é o lugar do receptor, que atualiza, em transferência de leitura, o
andamento desse desejo. (LIMA, 1993: 24). O desejo na poesia de Ana
Cristina Cesar (1952/1983) Escritura dos T(e)s conceitua o desejo como
diferente da necessidade e da demanda (querer) (LIMA, 1993: 24). Segundo
Regina Helena tal diferença é definida através da
Ruptura que ocorreu com a psicanálise, quando Freud
postulou o desejo sustentando-se numa insatisfação
permanente, contrariando assim o ponto de vista puramente
biológico, que o classificava simplesmente como apetência de
uma necessidade. Jacques Lacan retomará Freud, marcando
o desejo como objeto perdido e ausente, sendo que, para
Lacan, o objeto é visto como causa do desejo. Com isto rompe
com a noção empirista de objeto adequado a uma
necessidade. (LIMA, 1993: 24)
Através do estudo de Regina Helena é possível assinalar o papel
vital que a linguagem assume na vida de Ana Cristina Cesar. Esse papel é o
lugar de travessia para o outro. Como nos diz Silviano Santiago
4
, a falta do
outro, o ausente, o anônimo buscado, desejado, sem cessar, na efetuação
poética. A escrita, nesses casos, assume uma forma de enunciação para com
o outro, o espectador presente/ ausente, sitiado além das páginas escritas, das
letras e de todos os seus artefatos simbólicos. O desejo (a falta / a ausência)
detona na linguagem escrita [...] a presença de uma falta. Esta falta está ligada
à enunciação. A arte entre, tensão. Entre enunciado e enunciação (LIMA,
1993: 56). Tal desejo nos fala sempre daquilo que está forjado na escritura,
mas que, pelos sortilégios da linguagem, quanto mais presente, mais ausente,
inalcançável. A ausência interlocutória, a ausência de um signo para comportar
um significado preciso, capaz de suplantar as ausências, gera a cadeia
4
Cf. SANTIAGO, Silviano. Singular e anônimo. In: _______ Nas malhas da letra: ensaios. o
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 53-61.
36
ininterrupta dos significantes flutuantes, os navios fazendo figuras no ar.
Igualmente, o poeta inscrito no poema revela-nos a presença do ausente:
Quando não se fala, não se inscreve, se escreve. O poeta escreve: o ato pode
ser necessidade do seu desejo de se inscrever. Inscrita no poema está a
impressão digital do poeta: signo que não desaparece. É a presença do
ausente, invocando um interlocutor. (LIMA, 1993: 57)
sobre um outro ponto de vista, o ensaio de Flora Süssekind
(1995), Até segunda ordem não me risque nada Os cadernos, rascunhos e a
poesia-em-vozes de Ana Cristina Cesar, alimenta a idéia e a necessidade de
compreender o trânsito efetuado, a partir dos cadernos de rascunhos poéticos
até o momento em que tais anotações, esboçadas nas margens de cadernos,
em desenhos, em agendas, nas bordas dos dicionários, amadurecem para
tornarem-se literatura. A rede arremessada por Süssekind investiga a
elaboração dos versos, do pensamento crítico, das traduções, partindo dos
diversos cadernos de rascunhos conservados, por Ana Cristina Cesar, como
um hábito de poeta. Esses escritos, croquis de uma poesia planejada,
realizados com a perícia dos investigadores, são embriões daquilo que se
tornaria, mais tarde, um novo texto, um novo poema. De acordo com Flora
Süssekind, essa prática da escrita em rascunho, é um modelo em que se
fundamenta a própria elaboração do Eu, de um sujeito em constante diálogo
com as múltiplas faces do seu ofício, fazendo nascer, de tal experiência, uma
poesia policromizada, pictográfica. Usando das cores para rabiscar, demarcar,
guardando os escritos inacabados em pastas rosas, os desenhos rabiscados,
sobrepostos entre rasuras de escrita geram, entre a linguagem plástica e a
37
linguagem verbal, uma forma de diálogo tenso, corrosivo, irônico e humorístico.
Neste território de preparação das linguagens, de lucubração poética, se
misturam as muitas formas de expressão do sujeito. O eu, aqui constituído,
está fundado no burburinho de vozes que se sobrepõem, se desdobram numa
alteração constante:
É, pois, em meio a um burburinho, e como burburinho, que se
apresenta esse eu num primeiro olhar com traços
marcados, tão pessoal, o confessional que fala, e se deixa
invadir por outras falas, nos seus poemas e nas formas breves
da sua prosa. Numa segunda mirada, a que nem tão
figurativo assim, crescem as zonas de sombra,
despersonalizam-se falas, descentram-se os eus,
convertidos em conjuntos de tonalidades, vozes, modulações.
Assim como a escrita desdobra necessariamente em escuta,
conversação. (SÜSSEKIND, 1995: 10)
Pelos argumentos de Flora Süssekind pode-se constatar que esse
Eu, cindido em vozes, não se bifurca somente a partir de sua voz própria, mas,
quase sempre, se estende em duplicações sustentadas em vozes alheias,
ritmos dissonantes e inúmeras variantes possíveis para uma nova dicção
poética. A arte da conversação, o burburinho de vozes, dá-se em diversas
extensões, desde o instante em que os versos são meras anotações em
rabiscos, passando pela escolha de uma forma de linguagem ou, ainda,
fundindo-as (linguagem verbal e pictórica), até, por fim, culminar num texto em
constante conversação com seus interlocutores, com os autores traduzidos,
com seus antecessores, a tradição literária e seus contemporâneos. É, pois,
dentro dessa perspectiva de uma poesia-em-vozes que o ensaio de Flora
Süssekind esclarece-nos, sobretudo, a respeito dos questionamentos e
averiguações sobre a feição autobiográfica que, normalmente, suspeitamos
subscrita nos versos de Ana Cristina:
38
Conversa a um passo do espelho? Não seria pouco. Nem
pequeno o risco. Autobiografia? o propriamente. As muitas
referências a cartas, diários, segredos multiplicam de fato
intimidades e pactos de aproximação com o leitor. Mas o
pessoal aí é, antes de tudo, representação da experiência,
efeito calculado. É pista que aponta não tanto para
determinada vida real, mas para a experiência enquanto objeto
de life studies pticos. E para um todo peculiar de
construí-los. Às vezes em diálogo com reflexões alheias em
torno do pessoal na literatura [...] (SÜSSEKIND, 1995: 10-11)
Observando, ainda, as múltiplas vozes que ecoam das
articulações dessa poesia é que, tecendo outra meada para a rede, para as
malhas infindas das letras, detecta-se em Luvas na marginália: o narrador pós-
moderno na poética de Ana Cristina Cesar, de Raimundo Nonato Gurgel
Soares (1996), um exame dos princípios elementares dessa literatura dita pós-
moderna, mas ecoando, aí, as teses anteriores, já arroladas. Apoiado nos
estudos de Walter Benjamin O narrador. Considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov
5
, e de Silviano Santiago, O narrador pós-moderno
6
, Raimundo
Nonato Gurgel Soares analisa os procedimentos da literatura de Ana Cristina
como uma forte incidência da poética pós-moderna. Segundo o autor, As
micro-narrativas poéticas construídas por Ana Cristina Cesar instalam-se na
corrente da modernidade de ruptura de gêneros literários, mas caracterizam
um outro narrador. Este, parece surgido num auto-retrato bizarro em que a
identidade esquiva-se. (SOARES, 1996: 46). Analisando os descontínuos
dessa narrativa, o estudo de Gurgel sinaliza os prosseguimentos de uma
poesia organizada sob o olhar do passante, como se cada olhar, em pequenos
5
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de
Sergio Paulo Rouanet. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 197-221. (Obras escolhidas; vol.
I)
6
SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: ______ Nas malhas da letra: ensaios. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 44-60.
39
flashes, colhesse o material de ornamento para a formatação de um novo
poema. Entretanto, a dissertação de Raimundo Nonato Gurgel Soares aponta,
como evidenciado por Regina Helena Souza da Cunha Lima, a
problematização do desejo como uma perda do sujeito: Na
contemporaneidade, quem narra é movido pela falta, busca e desejo. O silêncio
no qual instala-se o narrador pós-moderno sinaliza a impossibilidade de
repassar uma verdade no âmbito da totalidade. É um narrador estilhaçado.
(SOARES, 1996: 46). O narrador, evidenciado por Nonato Gurgel na obra da
poeta, é um sujeito polimorfo, constituindo micro-narrativas repletas de
silêncios, ausências, espaços em brancos alternados numa desconti nuidade do
discurso, pois não se configuram sob o olhar lírico daquele que intenciona
captar um registro único, capaz de emitir uma voz uníssona. Pelo contrário,
este narrador catalisa sobre si imagens díspares, feitas em pedaços, contudo,
carregadas do desejo suprido pela falta, pela impossibilidade da unicidade, da
inteireza. Para Raimundo Nonato,
O ângulo de visão do sujeito é múltiplo. Seu olhar perscruta os
limites e as diferenças do espaço, produzindo uma linguagem
espacializada. Sua fala, por vezes, pode falhar. Não ser dita.
Mas a falha, o desdizer, assim como a presença da ambígua
linha de tiro, não o lidos apenas como signos da perda ou
negação. Trata-se de uma leitura de possibilidades.
(SOARES, 1996: 55)
Entrecruzando uma leitura de possibilidades é que se faz tão
impossível ancorar os navios flutuantes dessa poesia. O l eme capitaneado pela
mulher-sereia, esfinge, dama pós-moderna ou [...] uma mulher do século XIX /
disfarçada em século XX (CESAR, 1999: 138) navega e flutua as ondas
míticas da linguagem. As vozes sobrepostas aliciam marujos, enfeitiçam pilotos
do mar e do espaço. Os territórios, marítimos e espaciais, convergem, diluem-
40
se. Desfaz-se a linha tênue que os separam no horizonte. Essas alusões
marítimas, alimentadas nos exageros das metáforas, confluem para o próprio
estatuto poético da escritora. Ana Cristina não se deixou repousar em quietude,
fazendo sempre desse material um trabalho de fusão em que o desejo de
conciliar todos os limites do fazer literário está empenhado em desfazer as
restrições valorativas do juízo da crítica que, desde sempre, abjurou de seu
cânone certos tipos de produções. Todos os caminhos encetados pela obra de
Ana Cristina Cesar parecem, ora sim, ora não, avisar-nos do duplo irônico
encerrado nos vincos de seus versos. Uma ironia que resvala em todas as
alternativas de decomposição apresentadas para os seus versos. O fino jogo
das ambigüidades institui lugar para os pares incompatíveis: a verdade e a
mentira, a vida e a morte, os gêneros e os subgêneros da literatura, o novo e o
antigo, o coletivo e o individual, o popular e o erudito, a produção literária e a
crítica. São vozes ecoando em múltiplas direções, trazidas para encapelar os
mares e exorbitar os espaços. Nas palavras de Ítalo Moriconi [...] O texto de
Ana existe para atestar a permanência de um valor: o empenho total com a
escrita. Nesse sentido, ele é texto essencial. E por isso pode tornar-se
literariamente canônico. (MORICONI, 1996: 125). E, ainda, como
complemento, o mesmo Ítalo Moriconi refere-se ao itinerário literário de Ana
Cristina como
A inspiração baudelairiana. Descer aos infernos do
antiliterário, escarafunchar a selvageria aquém dos bons
modos civilizados. Enfim, refazer a viagem da transgressão
modernista num contexto obviamente pós-modernista. Tudo
isso era encarado por Ana Cristina como caminho viável para
manter a vigência do belo. Tratava-se então de mais uma vez
dissociá-lo das sublimidades convencionais, afastá-lo da
organização burguesa dos sentimentos. [...] (MORICONI,
1996: 12).
41
Tendo como base as observações de Ítalo Moriconi (1996),
oportunamente, tecemos uma nova malha para a urdidura da rede. Em Ana
Cristina Cesar: o sangue de uma poeta, Moriconi lança luzes sobre os aspectos
da vida e obra da autora. Porém, ele próprio afirma não se tratar de uma
biografia, mas uma reflexão sobre como o pensamento crítico, a postura
intelectual e a formação poética de Ana C. delinearam-se através dos anos.
Toma como ponto de partida os últimos momentos da década de 60 e finaliza,
em rápidas tomadas, com os últimos anos da vida da poeta, os livros recém-
lançados, a relação com o sucesso e as dúvidas existenciais que a
consternavam no ano de sua morte, em outubro de 1983. O livro de Ítalo
Moriconi releva e coloca em estudo a relação intrínseca estabelecida entre Ana
Cristina Cesar e a literatura. Evidencia as discussões travadas pelos grupos
formadores do pensamento intelectual, político e literário daquela época.
Mostra-nos o envolvimento e a atuação de Ana nas publicações do jornal
Opinião, na revista Malasartes e no jornal o Beijo. Ao examinarmos o decorrer
de tais atividades, não fica difícil entender que a inserção da escritora Ana
Cristina Cesar na cena jornalística da chamada imprensa nanica funciona
como uma alavanca para outros futuros e, sobretudo, o amadurecimento da
consciência crítica e literária da autora. É esclarecedor, nesse sentido, o fato
de Ana ter abandonado, repentinamente, as suas atividades no jornal Beijo, o
último em que atuara. Ítalo Moriconi recorda:
A saída repentina de Ana combinava com um comportamento
pado dela, o de ausentar-se. Ana fazia o nero
intempestivo, de de repente levantar e sair da festa, da mesa
de bar, do namoro, muito enfarada, muito apressada para
estar sozinha. Na verdade, ao sair do Beijo, ela estava
engatando outra marcha, levantando vôo, apressada sim que
ela era, de superar situações e partir para outras, voraz de
42
passagens e viagens na experiência. Ela estava era cansada
da militância jornalística e de ambientes muito masculinos.
Estava fascinada por um novo universo de trabalho intelectual,
o da pesquisa financiada. [...] (MORICONI, 1996: 52)
Moriconi, em Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta , dedica dois capítulos
do livro ao modo de construção crítico e literário efetuado na carreira de Ana C.
A princípio, A teoria na prática é outra, o escritor Ítalo Moriconi focaliza as
contendas geradas pelo pensamento aguçado da ensaísta e, do mesmo modo,
a efervescência revigorante que agitava o meio acadêmico nos idos de 1975.
No artigo, publicado no jornal Opinião, Os professores contra a parede, a
escritora discute os malefícios da excessiva onda teórica leia-se
estruturalismo em detrimento dos estudos de textos especificamente
literários. De acordo com Moriconi essa publicação é
O primeiro ato de construção da persona intelectual pública de
Ana Cristina [...]. O título diz tudo. Tratava-se de uma
ofensiva no jogo de posições que agitava os departamentos
de Letras das universidades cariocas e que invadiu as páginas
da imprensa, tanto grande quanto alternativa, com o nome
genérico de polêmica da teoria ou polêmica do
estruturalismo. (MORICONI, 1996: 55)
Num segundo momento, no capítulo intitulado como A mão que
escreve, o livro enfatiza o processo e as soluções encontradas pela autora
para concretizar a maturidade de seu labor poético. Moriconi acentua a relação
antropofágica de Ana Cristina Cesar com os escritores modernistas da tradição
e relaciona, também, aqueles versos desentranhados da fala ou das poesias
de amigos e namorados. A leitura de Moriconi realça o bricabraque tramado
sob os versos como um sintoma específico da literatura pós-moderna,
corroborando, desse modo, o desfalecimento, o desaparecimento do sujeito
poético. Além de tantas outras vozes capturadas nos versos de Ana Cristina,
43
instaurando a tessitura da infinda rede da linguagem, como foi confirmado
em outras leituras, Ítalo Moriconi afirma que, além dos modelos poéticos da
tradição modernista brasileira,
[...] o maior modelo das estratégias s-modernistas da
apropriação em Ana não vem de nenhum poeta brasileiro e
sim de T. S. Eliot, cujo poema The Waste Land (A Terra
Desolada, na tradução de Ivan Junqueira) é um clássico
fundador da poesia contemporânea ocidental. Poema que é
uma autêntica colcha de retalhos de citações de outros
poemas e de textos religiosos e científicos, funcionando como
colagem de falas. [...] (MORICONI, 1996: 98)
Ainda, no mesmo capítulo, o texto de Moriconi avança sobre as multiplicidades
das identidades poéticas espelhadas na obra de Ana Cristina. Se grande parte
dessa poesia sustenta-se pelo acúmulo de vozes, o sujeito poético multiplica-
se numa mesma proporção, dificultando, ou impossibilitando, capturar a face
particular de quem nos acena por entre os versos. Muitas vezes, os textos
sugerem as questões prementes, experimentadas na existência particular de
Ana: como o papel de mulher, a problematização do feminino na literatura, o
poder do masculino, a homossexualidade e a bissexualidade, mas tais conflitos
aparecem simplesmente como um aceno, um olhar furtivo, de relance. Ao
analisar o poema 21 de fevereiro
7
, Ítalo Moriconi sugere as pistas e os riscos
de ler-se, nesse texto e em seus análogos, unicamente o enfrentamento
antitético masculino/ feminino ou a mera compleição do desejo homossexual,
pois
[...] A noção de identidade calcada na sexualidade resiste à
classificação dicotômica. O tom, a nuance, tingem de
dificuldade a operação patriarcalizante de definir mulher e
homossexual por oposição simples ao inabalável centro fálico.
E a identidade ameaça desestabilizar-se, multiplicar-se em
miríade inapreensível, em vazio que somente o contorno
7
CESAR, Ana Cristina. A teus pés: prosa / poesia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 106.
44
estético do social consegue... apenas aludir. (MORICONI,
1996: 107-108)
Confirma-se, entretanto, através das perquirições de Ítalo Moriconi o
encadeamento das possíveis variantes de leitura sempre impostas pelos
versos erigidos por Ana C. sempre pequenas fendas entreabertas, dando
sinais de pistas ou por onde continuar o navegador, o marujo arrebatado. Mas,
como um texto de genuína sedução, encantado nas linguagens, os pontos
perseguidos também flutuam, são repousos, portos inalcançáveis, impossível
aportar, ancorar ou recolher as redes ondulantes sobre os espaços. Mas,
podemos constatar, sem desânimo, que, em alguns momentos, há grandes
riscos, mesmo para os grandes, experientes navegantes e pescadores de as
redes retornarem, aos seus barcos, carregadas do vazio esboçado no espaço.
45
PIRATARIA EM PLENO AR
Na empreitada de entendermos o sublime da palavra poética
somos todos piratas. Não somente porque pirateamos idéias, versos,
definições e leituras para compor a meada dessa rede extensa, em sua
medrança infinda. Mas, sobretudo, porque é necessária a audácia dos piratas
para se aventurar nos enigmas insondáveis dos versos, enfrentar os
subterfúgios das palavras como quem cava tesouros, saquear os navios,
mesmo os que rondam nos espaços, guardados por legiões de seres, vigias
argutos do segredo e da beleza. Talvez nem sejam, o segredo e a beleza, os
maiores atrativos da poesia, mas, antes de tudo, seu enigma. Os seus artífices
entrelaçados entre um signo e outro, as suas cadeias sussurrantes de
palavras, promovem um convite revelador aos aventureiros desses mares,
prometendo visões do belo, mas, não obstante, impondo os seus enigmas
como o preço daquilo que, doravante, se poderia alcançar. As dúvidas, as
grandes incertezas são os maiores tributos ao se enveredar nesse caminho de
mar e nuvens. Jorge Luís Borges, ao proferir uma palestra na Universidade de
Harvard em outubro de 1967
8
, acalenta-nos sobre o árduo embate entre as
dúvidas promovidas pela poesia e seus ardilosos enigmas:
De início gostaria de alertá-los sobre o que esperar ou antes,
sobre o que não esperar de mim. Creio que cometi um
deslize no título da minha primeira palestra. O título, se não
estamos enganados, é O enigma da poesia, e a ênfase,
claro, recai na primeira palavra, enigma. Assim, vos podem
8
Cf. MIHAILESCU, Calin-Andrei. (Org.) Jorge Luís Borges: Esse ofício do verso. Tradução de
José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 128.
46
pensar que o enigma é que interessa. Ou, o que seria
talvez pior ainda, podem pensar que me iludi acreditando de
algum modo ter encontrado a verdadeira chave do enigma. A
verdade é que não tenho revelações a oferecer. Passei minha
vida lendo, analisando, escrevendo (ou treinando minha mão
na escrita) e desfrutando. Descobri ser esta última coisa a
mais importante de todas. Sorvendo poesia, cheguei a uma
derradeira concluo sobre ela. De fato, toda vez que me
deparo com uma página em branco, sinto que tenho de
redescobrir a literatura para mim mesmo. Assim, como disse,
tenho apenas minhas perplexidades a lhes oferecer. Estou
perto dos setenta. Dediquei a maior parte de minha vida à
literatura, e posso lhe oferecer dúvidas. (BORGES, 2000:
10)
O enigma que cerceia a poesia de Ana Cristina Cesar oferece-
nos, como conclui Borges, uma necessidade constante de redescobrir a
literatura, rever estatutos, leis e territórios por onde ela lança seus cantos,
encerrados em mistérios, em ardis de sedução, desnorteando, sempre, o
destino dos piratas.
A pirataria ostentada em todas as nuanças e possibilidades,
inclusive nos procedimentos, aparentemente percebidos como os mais banais
e os mais complexos de sua literatura, faz dela, a própria autora, a grande
pirata desse enredo. Pirata nas artimanhas, nas imposições das armadilhas
jocosas, nas tensões que precedem o desdobrar de um caminho ao outro,
como pares de trilhas que se postam, lado a lado, e sugerem ordenar a
caminhada, entre as escolhas dos maiores ou menores riscos. No livro de
Carlos Alberto Azevedo (1996), Saber com sabor: ensaios de literatura
brasileira, o autor contempla a poesia de Ana C. com três análises sugestivas
que parecem assumir a empreitada impossível de ordenar os caminhos,
sintetizando os motivos apreciados pela poeta: a inclusão e exclusão do leitor,
o diálogo com a tradição modernista e a poesia gatográfica. No primeiro ensaio
47
desse conjunto, Ana C. Um ser no mundo com os outros, Azevedo, usando
do ponto de vista de Cacaso
9
, classifica como a vertente mais rica a poesia
de Ana Cristina Cesar que celebra o encontro, a relação do eu com o tu. Essa
disposição, de um eu que mira um outro, Carlos Alberto define como
[...] uma disposição afetiva lírica que envolve o leitor; ele passa
a ser mplice do eu do poema o eu que precisa do outro. E
sem esse interlocutor o existiriam os seus cadernos
terapêuticos (desabafos) nem os drios, nem poemas/ carta
de Correspondência completa. Para essa forma de
comunicação poética o interlocutor é fundamental [...]
(AZEVEDO, 1996: 59)
De um outro lado, sob a mesma ótica de Cacaso, Carlos Alberto Azevedo
considera e analisa os outros tipos de textos onde o leitor, outrora ilustre
convidado, agora aparece excluído, sem chances para adentrar no poema. Tal
leitor, aqui nomeado como mediano, não consegue entender a literatura
difícil, hermética. Segundo as observações de Carlos Alberto Azevedo, que
claramente comungam com o pensamento de Cacaso, inúmeras vezes
retomado na discussão sobre a literatura de Ana Cristina, São, na verdade, os
diários, as cartas, os cadernos terapêuticos que atraem o leitor mediano.
(AZEVEDO, 1996: 60). Nesses momentos em que a dicção professoral
lugar aos textos das relações e das vivências cotidianas, a poesia nomeia um
tu para o diálogo, o ser no mundo com os outros. Sinalizando para as variantes
classificatórias (fácil / difícil) do discurso poético, Azevedo nota que
[...] nem sempre o tom de seu discurso poético é o mesmo
essa disposição afetiva lírica (o nexo emotivo-sentimental) tem
limite. Muitas vezes cede a palavra a um outro eu, de dicção
professoral, pedante. E esse eu elege um determinado tipo de
leitor (meio intelectualizado) para ouvir o discurso pedagógico.
(AZEVEDO, 1996: 59)
9
Essa discussão, sugerida por Antônio Carlos de Brito (Cacaso), a respeito de alguns poemas
de Ana Cristina Cesar, tamm faz parte do ensaio de Silviano Santiago, Singular e anônimo,
referido neste capítulo.
48
Mas, para Azevedo, também, variações nos modelos dessa
comunicação poética, em que não aparecem as cartas, os diários, como no
caso do poema Epílogo
10
, de Ana Cristina Cesar; a exaltação do outro, a
celebração do encontro. A análise, entretanto, mostra-nos a brincadeira, o jogo
que a autora manipula com a própria posição do eu em seus versos. Se em
alguns versos ela parece nos dizer tudo, como numa arrebatadora confissão,
em outros, a suposta confissão dá lugar ao verso pedante, de conotação
poético-didática, uma cartilha de ensinamentos. em uma outra alternativa,
como nos versos de Epílogo, a ambigüidade impera, informando as multifaces
contidas no conjunto poético de sua obra, uma articulação espelhada em
reflexos de muitas imagens, causando ondulações e embaraçando as rotas
interpretativas. Tais expedientes perpassam, de maneira enleada, toda a
literatura de Ana C. Todavia, eles advertem para o trânsito dos múltiplos seres,
sempre ameaçados pela cultura da inautenticidade. Para Azevedo, nesses
versos, Ana Cristina
[...] questiona o problema da inautenticidade, da vida
inautêntica, sem raízes, solta, cheia de arestas existenciais, e
camuflada pela grandiloqüência. O texto é ambíguo. Pode ser
lido de rias maneiras. Na aparência, é apenas um joguinho
de sociedade o anfitrião divertindo seus convidados [...]
(AZEVEDO, 1996: 62)
Não estaria toda composição literária de Ana Cristina Cesar presa nesse
constante manejo das possibilidades de ser lido, percebido, enxergado pelos
leitores e pelo mundo? Não estaria, em seus versos, o anfitrião divertindo
(enganando) os convi dados?
10
CESAR, Ana Cristina. A teus pés: prosa / poesia. 2 ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 146-149.
49
Carlos Alberto Azevedo, nos dois outros ensaios Ana Cristina
Cesar, leitora de Drummond e As artimanhas de Ana C: discurso sobre
gatos, continua investigando as relações da anfitriã com os ilustres
convidados. Os convivas agora são Carlos Drummond Andrade, Jorge de Lima
e T. S. Eliot. São os nobres eleitos para configurar como célebres identidades
da festa. Evocando a imagem dos poetas notáveis, a autora reflete-se num
outro texto, desdobrando-se em uma figura ubíqua, mas a sua ubiqüidade é a
mesma dos outros, a dos poetas convidados. Continua, evidentemente, sendo
um ser no mundo com os outros como sugere Carlos Alberto Azevedo. A
relação invertida, antes autor e leitor, agora se estabelece entre leitora e
autores, os ilustres arrolados na imensa lista de convidados. Observando as
análises realizadas por Carlos Azevedo, nos três ensaios supracitados,
evidenciamos a complexidade, já muitas vezes investigada, do posicionamento
do sujeito que se inscreve nos versos de Ana C. Não somente nos versos
relacionados por Azevedo, mas em toda a escritura da poeta. Ela se posiciona,
como se assim fosse, em todos os momentos, um duplo de si mesmo, anfitriã e
convidada, leitora e autora, seduzida e sedutora, esfinge e sereia, segredo e
revelação, situando-se, sempre, no entrelugar da arte e da manha como é
indicado por Azevedo. De uma forma ou de outra, detecta-se nos argumentos
de Carlos Alberto Azevedo a imporncia das relações que os versos de Ana
Cristina estabelecem com seus leitores e com a sua própria condição de
ledora. Os artífices de seus versos, se não remetem os interlocutores à falsa
ilusão da conversação, confirmando, não sem grandes ironias, o lugar de honra
desses ilustres convidados, acena para os outros rumos que parecem não
50
querer mudar de lugar. O que se expõe, então, são os outros modelos de uma
mesma relação, aquela estabelecida entre a leitora e os seus autores diletos.
Parece-nos que, ao modo de Carlos Alberto Azevedo, são
essas as mesmas relações investigadas por Ana Cláudia Coutinho Viegas
(1998) no livro Bliss & Blue: segredos de Ana C. Sua pesquisa considera na
literatura de Ana Cristina Cesar, sobretudo, a relação do eu com o outro,
constituindo por essa via uma forma, aparentemente, enganador a e reveladora,
de se comunicar com os outros. Para Ana Cláudia,
o se pode considerar um indivíduo independente de sua
relação com os outros, pois aquele o age nem percebe o
mundo de forma isolada. Todo relacionamento implica uma
definição do eu pelo outro e do outro pelo eu. A visão de si
mesmo e a do outro fazem parte de um conjunto ainda maior
de metaperspectivas: a minha visão da visão que os outros
m de mim. (VIEGAS, 1998: 55-56)
Mas, desse mesmo desejo intenso de se dar, do desejo da definição do eu pelo
outro, da perseguição de um encontro nasce, na mesma intensidade, a
impossibilidade da efetivação do igual desejo. O encontro desejado somente se
possibilitaria no revelamento, no desnudamento daquele que busca encontrar e
se dar ao outro. Como isso não ocorre de forma plena ou, pelo menos, não na
proporção desejada, o outro invocado para essa ligação está, do mesmo modo,
na qualidade do inalcançável. Ana Claudia Viegas define que A incapacidade
de alcançar o outro é paralela à impossibilidade de desnudar-se. Assim como o
texto trabalha com a decepção do leitor, também vive da decepção do autor,
que se sabe intraduzível. (VIEGAS, 1998: 56).
Ademais, o texto de Bliss & Blue: segredos de Ana C. investiga,
de forma conscienciosa, a posição ocupada pelo autor em sua produção
literária, as relações fundamentadas no desejo de doar-se e negar-se, de um
51
mesmo sujeito autoral, em posicionar-se entre a realidade e a ficção, entre o
público e o privado, o autor e as particularidades do indivíduo. O desejo que
requer o posicionamento do autor, via de regra, regula o contrato possível de
ser estabelecido com os seus leitores. Diante do estabelecimento dos contratos
e pactos, Ana Cristina apresenta-se diante das mesmas condições nas quais
se encontram seus interlocutores e sobrepõe-se, juntamente com os seus
secretos convites, à solicitação de outros autores, aqueles arquivados em suas
leituras e que, em tais circunstâncias, são expostos como os modelos de leitura
consagrados pela história da literatura ou pela autora. Em alguns momentos,
as revelações das ascendências autorais são feitas de modo explícito, em
outros, elas aparecem de forma velada, como sombras, vozes
fantasmagóricas. Há, nesse sentido, um diálogo que prolifera em múltiplas
direções, ocasionando um burburinho de vozes. Se o texto de Ana C. dialoga
com os seus antecessores, confirmando a sua eterna posição de leitora,
todavia, enquanto executa um subvertido colóquio intertextual, a sua poesia
solicita um terceiro leitor para finalizar o triângulo (ou para iniciá-lo?). Uma
tríade interlocutória que poderia ser dessa forma compreendida: AUTORES
INFLUÊNCIA (primeiro leitor) POETA/ ANA CRISTINA CESAR (segundo
leitor) LEITORES DE ANA CRISTINA CESAR (terceiro leitor). E, através
dessa disposição, pode-se configurar o elo de permuta em que subjaz, na
sugestão de Carlos Alberto Azevedo, o ser no mundo com os outros, a
sempiterna travessia para um outro.
Os segredos de Ana C., investigados por Ana Cláudia Viegas,
perpassam, também, a produção de ensaísta acadêmica e os artigos literários
52
publicados por Ana Cristina Cesar
11
. O conjunto de trabalhos, voltados para
análise crítica da produção literária e das teorias discutidas, naqueles tempos,
no cotidiano universitário e pelos pensadores da literatura no Brasil, consolida o
definitivo entrelaçamento entre a literatura pura e a reflexão teórica. A
poeta/ensaísta expõe, através dessas publicações, as problematizações
pertinentes do fazer literário e dos valores teóricos avultados naquele contexto.
Aproxima, de forma conciliatória, a escrita poética e as reflexões dos rançosos
modelos teóricos, construindo, em consonância com a sua literatura, uma
forma estetizante de dizer a própria teoria. Para Ana Cláudia Viegas, os artigos
de Ana Cristina
[...] vão, cada vez mais, mimetizando o tom de sua produção
literária. A escolha dos temas, as questões que avultam, a
estrutura do texto, mais e mais requintado, borrando as
fronteiras entre ensaio e ficção, nos permitem aproximar a
poeta da ensaísta Ana C. [...] (VIEGAS, 1998: 82)
Fustigados pelos riscos e as aventuras desse mar, prossegue-se
a pirataria. Na obstinação de caçar tesouros, perseguem-se segredos,
barganham-se informações, indicam-se mapas, trilhas, rotas inavegáveis.
Considerando, pois, a rota sugerida por Ana Claudia Viegas no trabalho Bliss &
Blue: segredos de Ana C., complementam-se tais indagações com a
dissertação de mestrado de Virgínia Coeli Passos de Albuquerque (1999),
Fotogramas de um coração conceitual: faces poéticas de Ana Cristina Cesar. A
pesquisa citada aponta, em consonância com Viegas, o papel reflexivo que as
publicações da ensaísta irão exercer sobre a consolidação da escritura poética
11
Ítalo Moriconi, em Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta, e Maria Lucia de Barros
Camargo, em Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar,
anteriormente observaram, a estreita e paralela relação estabelecida entre a produção
acadêmica de Ana Cristina Cesar e a sua poesia.
53
de Ana Cristina Cesar, borrando as fronteiras entre ensaio e ficção como
sinaliza Ana Cláudia. A escrita de Ana C. persiste em edificar as pontes, em
entrelaçar os elos, perfazendo, com pertinácia, a medrança da rede infinita,
incitando o burburinho no cais, nos mares, nos navegantes e nos piratas.
Norteando-se pelas discussões levantadas por Roland Barthes e Michel
Foucault acerca do papel do autor e o seu desaparecimento para a crítica da
contemporaneidade, Virgínia Coeli examina a produção teórica de Ana Cristina
Cesar atentando-se, em particular, para os aspectos que, segundo a per cepção
de Virgínia, são entendidos como relevantes para se inteirar e discutir a obra
poética da escritora. São os considerados pontos de tensão, aqueles que
colocam a análise de sua literatura em suspenso, os navios fazendo figuras no
ar: a ficção e a memória, a fratura do sujeito, a subjetividade furtiva, o diário e
as cartas enquanto produção literária, o escritor e as suas relações com o
mercado dos livros e a função autoral. Decompondo esses pressupostos,
Virgínia Coeli Passos de Albuquerque esclarece que
Os conteúdos da poesia moderna também revelam a tensão
dissonante. A experiência e os sentimentos dão lugar à
racionalidade, à operação de estranhamento, à necessidade
do caos, como pressuposto da singularidade ptica, porque
ao invés da unidade do mundo privilegia-se a sua
fragmentação, ao invés de serenidade provoca-se a inquietude
no leitor. (COELI, 1999: 21)
Inserida na tensão dissonante do universo moderno, a obra de Ana Cristina
Cesar flerta com as multiplicidades dos aspectos de uma literatura, que almeja,
a todo tempo, inserir-se nos horizontes dos discursos hegemônicos e
exclusivos, modelos recorrentes da literatura, promovidos, através dos anos,
em nossa história literária. A busca de encontrar um lugar para a sua produção
poética no ambiente de tal exclusividade não nos parece, contudo, um desejo
54
de inserção e aceitação, pura e simples, para sua poesia e crítica; há,
sobretudo, uma atitude desconstrutiva, subversão dos sentidos, o desejo
imanente de desconcertar a ordem, de estabelecer outros paradigmas e
inventariar, em tamanha heterogeneidade, elementos capazes de r epresentar o
dizer poético de seu tempo. O cruzamento dos gêneros literários, a dissolução
das fronteiras entre grande e pequena literatura, o coloquialismo cotidiano e,
em outras vezes, um tom poético formal e esmerado, formalismo a rigor na
sugestão de Armando Freitas Filho
12
, o dialogismo poético, a produção de
ensaísta como um reflexo crítico, pertinente a sua própria poesia, sustentam
em torno da produção de Ana C. o drama em faces, como nota Virgínia Coeli:
A forma coloquial e a narratividade dos fatos cotidianos
acenam para a prosa, embora a disposição gráfica em
poemas desfaça a ilusão narrativa; associada aos traços do
relato, a força dramática cria os rios sujeitos dialógicos no
texto, forjando a relação especular do palco entre ator e
platéia. Se em Fernando Pessoa existe o drama em gente, em
Ana Cristina existe o drama em faces, pois em seu programa
literário os neros rico, narrativo e dramático fazem parte do
heterogêneo, da indiferenciação, do compósito. (COELI, 1999:
23)
Analisando os elementos constitutivos da produção literária de
Ana Cristina Cesar, percebe-se a heterogeneidade dos sentidos e, entendem-
se, sobretudo, os fundamentos críticos e literários nos quais essa organização
poética acomoda-se. Gilles Deleuze e Félix Guattari analisam, por essa via, o
ato de escrever: Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar,
cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir (DELEUZE; GUATTARI,
1995: 13). Seguindo as considerações dos dois autores é que Virgínia Coeli
Passos de Albuquerque, em Fotogramas de um coração conceitual: faces
12
FILHO, Armando Freitas. Duas ou três coisas que eu sei dela. IN: CESAR, Ana Cristina. A
teus pés: prosa / poesia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 06.
55
poéticas de Ana Cristina Cesar, examina as direções múltiplas da poesia de
Ana C., encerrando o estabelecimento final do sentido poético e da própria
produção do livro, como um extenso corpo rizomático. No caso da literatura de
Ana Cristina, fica claramente estabelecida na pesquisa de Virgínia Coeli a
relação intrincada entre a literatura, o cinema, os ícones cinematográficos e a
música. O cruzamento dos códigos [...] (COELI, 1999: 95) faculta, à
enunciação dessa poesia, um efeito cinematográfico, tantos nas alusões
imagéticas, em pequenos fotogramas, ou quanto na organização textual que se
em takes, nas interrupções sintáticas, nos cortes abruptos do discurso.
Conforme Virgínia Coeli, [...] A montagem literária tem correspondência com a
montagem cinematográfica, nessa proporção: a palavra está para o texto assim
como o fotograma está para o filme. [...] (COELI, 1999: 100). Essa imbricação
de códigos intensifica e pluraliza o efeito rizoma do ato criativo de escrever.
Assim, produzir o livro, organi-lo em temas, estabelecer as referências,
buscar novos e velhos sentidos para aquilo que se pretende dizer é, em todo
momento, delimitar as fronteiras e diluí-las, fincar e criar raízes ou, num
contínuo desenraizamento, estendê-las adiante. Conforme Virgínia Coeli,
Esse movimento assemelha-se ao dos fractais, organismos
moleculares que em si contêm o contorno do organismo que
os conm, num plano infinitesimal. Escrever produz esse
movimento, estabelecendo-se novos círculos de convergência
com novos pontos situados fora dos limites e em outras
direções. Escrever é fazer rizoma [...] (COELI, 1999: 72)
Ao relacionar, até aqui, a crítica e os trabalhos acadêmicos
produzidos acerca da literatura de Ana Cristina Cesar, constata-se a
impossibilidade de avistarmos os ancoradouros. Os piratas lançam redes,
perseguem os grandes navios e seus tesouros, mas essas embarcações, como
56
navegações aéreas que são, cruzam os ares em rodopios, não há lugares
estáveis, não piratas que os capturem e os façam permanecer em algum
cais, imóveis, cessados de figuras, de sentidos. Não descansam os piratas,
não repousam os navios. Estamos, continuamente, carecendo de outras redes,
outros piratas para prosseguirmos a navegação, investigar novos mapas e
seguirmos na rota invisível, presumida na imaginação e imposta pela sedução
deste enigma. Nessa navegação suspensa nos ares, seguiremos para as
últimas instruções de bordo.
57
INSTRUÇÕES DE BORDO
É comum encontrarmos nos estudos a respeito de Ana Cristina
Cesar a constante inquirição sobre a função que um determinado tipo de
escrita desempenhou na sua formação e elaboração poética. Nesses casos,
em primeira instância, aparecem, e com proeminência, os diários e a
correspondência.
Os diários, em formatos ficcionais ou não, são arremedos
constantes daqueles caderninhos, com cadeados e chaves, adotados na
adolescência ou na maturidade, como um lugar das conversas secretas,
solilóquio efetuado através da palavra escrita. No caso de Ana Cristina Cesar,
seria correto dizer diálogo com a própria escrita, campo de maturação, de
experimento.
As correspondências, por sua vez, assumem vultuosidade no
jogo desse exercício. A escritora edita, independentemente, em 1979, o livrinho
Correspondência completa, expondo, numa reprodução de carta, uma escrita
de apelo poético e literário, colocando, em suspenso, os significados funcionais
das correspondências. Anteriormente, Ana Cristina havia publicado, em 1977,
no Jornal do Brasil, a resenha O poeta é um fingidor. Mais tarde, em 1993, o
mesmo trabalho seria publicado em Escritos no Rio, livro que reúne os ensaios
e outras publicações críticas da autora. Tomando de empréstimo o verso de
Fernando Pessoa, para resenhar a edição do livro Cartas de Álvares de
58
Azevedo, Ana lança, sobre essa reflexão, um olhar ambíguo, suspeições
irônicas sobre as intenções aventadas nas correspondências:
Escrever cartas é mais misterioso do que se pensa. Na prática
da correspondência pessoal, supostamente, tudo é muito
simples. Não há um narrador fictício, nem lugar para
fingimentos literários, nem para o domínio imperioso das
palavras. Diante do papel fino da carta, seríamos s
mesmos, com toda a possível sinceridade verbal: o eu da
carta corresponderia, por princípio, ao eu verdadeiro, à
espera de correspondente réplica. No entanto, quem se
debruçar com mais atenção sobre essa prática perceberá suas
tortuosidades. A limpidez da sinceridade nos engana, como
engana a superfície tranqüila do eu. (CESAR, 1999d: 202)
No livro Correspondência Completa, percebem-se as mesmas tortuosidades do
eu para as quais Ana Cristina pede especial atenção. As rugosidades de um eu
mostrado em superfícies ondulantes, a sinceridade epistolar metamorfoseada
em poema/ prosa. Se, nesse livro, a intenção é exclusivamente literária, pois
desmitifica a hierarquia dos gêneros e desestabiliza os conceitos cristalizados
entre prosa e verso, não obstante, na vivência particular, Ana teve uma
experiência epistolar intensa, cultivou a escrita das cartas com paixão e êxtase,
como se pode comprovar no livro Ana Cristina Cesar Correspondência
incompleta (1999). É relevante verificar que, ainda nas correspondências
particulares, o jogo estetizante da escritura permanece uma epistolografia
construída em pilares literários, como se, de repente, a intenção real das cartas
pudessem desaparecer para ceder lugar às manhas do fazer literário. O ensaio
de Michel Riaudel (2000), Correspondência secreta, publicado em Prezado
senhor, Prezada senhora Estudos sobre cartas, ocupa-se em analisar a linha
instigante, sedutora, ambígua e velada abrigada no íntimo de Correspondência
completa. Sem procurar identificações pessoais para os nomes expressos na
carta-poema Gil, Mary, Célia, Ângela, Cris, Júlia Riaudel enfatiza as
59
trapaças intertextuais e intratextuais
13
conjugadas em citações, alusivas ou
diretas, de outros textos e autores e uma relação direta com o diário do livro
Cenas de abril, anotado no poema 21 de fevereiro
14
. E, desse modo,
Correspondência completa intensifica o jogo ambíguo traçado em linhas
obtusas, pontos de fuga onde o sujeito, possivelmente enunciado nas
correspondências, tende a se camuflar, desaparecer. O ardil literário encenado
na composição de Correspondência completa desestabiliza as possíveis
intenções de encontrar, no âmago do poema, as pistas apropriadas para
desvelar quaisquer segredos. O estudo de Michel Riaudel adverte:
Identificações desse tipoo naturais, mas também arriscadas
se entendidas de forma redutora. Os próximos da poeta têm
óbvios motivos para reconhecer nos textos tal alusão ao
cotidiano dos pequenos círculos que uma sensibilidade
comum reunia, pela poesia, pela vida, pelo mundo, e que
dividiram em anos politicamente difíceis e transtornantes suas
primeiras experiências de adultos. Ase poderia por essa via,
praticada com circunspecção, esclarecer certos trechos mais
ou menos obscuros de Correspondência completa. Porém a
confusão entre autor e narrador, a equivalência imediata dos
planos da ficção e do real, problemáticas de um ponto de
vista teórico, tornam-se mais complicadas ainda diante de uma
escrita jogando magistralmente com a ironia e o sentido duplo.
[...] (RIAUDEL, 2000: 96)
Diante das considerações de Michel Riaudel fica esclarecida a afirmação da
própria Ana Cristina, quando resenhou, em 1977, o livro de cartas do poeta
romântico Álvares de Azevedo: Escrever cartas é mais misterioso do que se
pensa. [...]. Apossando-se da consciência do mistério, a poeta faz dele mister.
A escrita acena, em falsas pistas, para os intuitos de leitura dessa carta, como
uma correspondência qualquer ou, ainda, como uma correspondência,
13
O estudo de Michel Riaudel não nos mostra uma distinção entre a referência intertextual e
intratextual. No entanto, usa-se o termo para diferenciar o aproveitamento que Ana Cristina
Cesar realiza, em Correspondência Completa, do seu próprio poema 21 de Fevereiro.
14
CESAR, Ana Cristina. A teus pés: prosa / poesia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1999, p.106.
60
realmente, completa. O texto forjado sobre uma superposição intertextual e
intratextual, sobre mediações e meditações críticas, redunda em trilhas
entremeadas, abrigadas numa intricada rede de sentidos que terminam
solapando uns aos outros, rasurando as vias de acessibilidade para o que seria
uma leitura satisfatória, a dos segredos e das confissões. As observações do
texto de Riaudel confirmam que
Essas irônicas correspondências intertextuais abalam de
uma vez a unidade do corpo e a do texto, cheio de
alçapões, costurados de empréstimos e amplamente
emaranhados um ao outro. Por isso devemos estar
particularmente atentos à problematização do gênero,
entendido tanto como confusão do masculino e do feminino,
cuja indecisão é patente em vários níveis, quanto como
aprofundamento de uma reflexão sobre a literatura, mediante
seus aspectos formais. [...] (RIAUDEL, 2000: 97)
Em uma outra oportunidade, Michel Riaudel (2001), em A Fábrica de
Identidade, ensaio publicado na revista Inimigo Rumor, observa a conjugação
enigmática que o polimorfismo textual gera na constituição poética da
identidade desenvolvida por Ana Cristina Cesar. Absorvendo as influências das
leituras realizadas, tanto poética quanto crítico-teórica, especificamente, aqui,
Roland Barthes e Michel Foucault,
15
no decorrer de seu amadurecimento
literário, a escritora trabalha, à exaustão, a redefinição dos conceitos
predominantes na literatura e firma um colóquio subversivo, com os
representantes do cânon literário. Repetidas vezes, as figuras canônicas, do rol
das literaturas, aparecem mescladas aos compositores de canções populares,
15
Os questionamentos sobre o estatuto do autor e a sua aquiescência ou não, no texto literário,
foram amplamente divulgados em fins de 1960. Com base no pensamento de Michel Foucault
e Roland Barthes, a crítica literária no Brasil, desse período, viu-se altamente comovida por tais
pressupostos. Ana Cristina Cesar parece ter usado essas conjecturas para produzir uma
poesia que flertasse, obliquamente, com tais preceitos teóricos. O ensaio de Michel Riaudel, A
fábrica da identidade, a dissertação de mestrado, Fotogramas de um coração conceitual: faces
poéticas de Ana Cristina Cesar, de Virginia Coeli Passos de Albuquerque e alguns outros
trabalhos, já enumerados aqui, enfatizam tais aspectos.
61
às palavras colhidas e registradas nas conversas com amigos. Essa escrita,
aparentemente à deriva, redireciona os dizeres da poesia, Como se escrever
fosse primeiramente aproximar-se de outros textos, operar transformações a
fim de dali retirar, para afirmá-la, uma voz nova. (RIAUDEL, 2001: 41). Não se
trata, porém, de uma reescrita pura e simples, obedecendo às possibilidades
dos níveis intertextuais e do sentido dialógico operado em cada texto, paródia
ou pastiche, por exemplo. Mas trata-se, sobretudo, de recriar no novo escrito
dimensões não ditas, profusão de vozes, palimpsestos, modelos para decretar,
ironicamente, uma voz particular.
Examinando as pesquisas, as leituras e as anotações de Ana
Cristina Cesar para o Master of Arts na Inglaterra, em 1980, Riaudel encontra,
no pensamento de Ezra Pound, uma das trilhas que seduziram a composição
poética de Ana C. Michel Riaudel observa que a pesquisa, a tradução, e as
leituras efetuadas pelo próprio poeta Ezra Pound concederam-lhe a idéia da
tradução como uma criação e jogos de identidade e há, nesses jogos, uma
constante busca de uma voz pessoal. Ezr a Pound, através desse sistema, foi
[...] orientando-se pouco a pouco rumo a um universo onde os
textos, mascarados ou tornados anônimos, se interpenetram.
A leitura de seus predecessores é assim um processo de duas
faces, hermeutica e recriação. E o que é verdade para
Pound, ao ler os trovadores ou seus contemporâneos, também
é, com outras nuances, para Ana Cristina Cesar ao ler Pound,
Barthes e muitos outros. [...] (RIAUDEL, 2001: 42)
Guiando-se pelas proposições de Pound e de tantas outras leituras, Ana
Cristina Cesar pleiteia o lugar de sedutora, onde, outrora, fora seduzida.
Aliciada para as leis dos jogos de identidade, agora ela revela, com astúcias,
o imperioso desejo do gozo da sedução. A escrita seduzida estabelece, em um
duplo, o desejo de desaparecer por entre os desdobramentos textuais e, do
62
mesmo modo, colocar em ofuscamento os textos e as vozes dos sedutores.
Em Ana Cristina, o procedimento da sedução textual é uma prática renovada a
cada novo poema, engendrando, em cada caso, uma segmentação
interpretativa, exigindo olhares suspeitos de seus ledores. Em consonância
com esse tipo de texto, gerado para os desafios de uma leitura em suspenso e
inacabada, do mesmo modo permanece, em desafios, a habilidade para captar
e perceber o lugar ocupado por essa identidade bifurcada, segmentada, como
o são as sugestões de suas interpretações. Michel Riaudel salienta os
aspectos da sedução, operada no texto seduzido e os desdobramentos da
identidade poética, acionados na tessitura final da escrita:
Ora, em todo empreendimento de sedução, o sujeito não
aspira finalmente a se tornar objeto, desincorporar, eclipsar-se
virtualmente para que em seu corpo o outro possa se projetar?
É por isso que Don Juan, com suas fugas, merece o título de
sedutor puro. No caso da reescritura, o texto estrangeiro é
triturado, solicitado e investido por seu próprio desejo. O que
Ana Cristina Cesar lê e sublinha nos ajuda, por um lado, a lê-la
através de suas anotações seletivas. Após um trabalho de
desvio ela chega, por outro lado, a uma obra o polimorfa
quanto uma luva de veludo, luva de pelica. Muitas vezes aqui
atravessado pela questão da identidade, seu texto parece
ocupar todos os lugares ao mesmo tempo, o do autor e o do
leitor, o do eu e o do seu desejo, inacessível e contudo sempre
presente. (RIAUDEL, 2001: 42-43)
Faz-se necessário salientar, de forma repetitiva, o papel
fundamental que o leitor desempenha nos estratagemas da literatura de Ana
Cristina. Refere-se aqui, não somente, aos interlocutores da autora, os leitores
hipócritas capturados, por ela, de um verso de Charles Baudelaire e que são,
celebrados e conclamados, na rede da sedução. Mas antes desse leitor, o
outro condicionado ao pacto, deparamos com a leitora Ana Cristina Cesar,
suas práticas de rascunhos e rabiscos, as anotações, as interrogações ao lado
63
de cada texto lido, advertem, sem cessar, sobre quais caminhos prosseguir na
empreitada de alcançar a proximidade e o acesso ao seu próprio texto. São
muitos os caminhos, multiplicação dos reflexos no espelho, contudo, a
demonstração de sua perspicácia de leitora é um brinde para que a festa possa
continuar. E, finalizando, com as considerações de Michel Riaudel, é possível
depreender, em A fábrica da identidade, algumas soluções para mitigar a fúria
investigadora dos leitores segredistas, diante da obra de Ana Cristina Cesar:
Se a ela somos tão sensíveis, se nos batemos de bom grado
em seus espelho, se nos deixamos capturar em suas
armadilhas, é porque nela estamos incluídos, como
espectador cujo lugar é previsto pelo trompe-loeil. Isso é que
faz com que nosso papel de leitor o seja, então, apenas o
de desvelar o que está oculto, de desmascarar o que ali se
esconde, de fazer emergir o real sob as palavras, mas o de
interpretar esses jogos de esconde-esconde. Pregar sobre
esses poemas uma verdade última, definitiva, seria abordar de
frente uma escrita do oblíquo, seria procurar o modelo de uma
pia, quando o texto se desdobra não como cópia mas como
simulacro, quer dizer, como uma imagem sem semelhante,
que subverte a questão do verdadeiro e do falso. (RIAUDEL,
2001: 47)
Voltado, especialmente, para a produção de ensaísta e cr ítica da
poeta Ana Cristina Cesar e, não obstante, valorizando a contumácia de leitora
que todo trabalho da escritora sugere, encontramos a pesquisa de Francirene
Gripp de Oliveira (2001), Âncoras ao vento: ensaios da desconstrução em Ana
Cristina Cesar. Baseando-se nos trabalhos compilados em Escritos no Rio,
publicados e organizados por Armando Freitas Filho em 1993, Francirene Gripp
investiga as relações instituídas entre a escrita crítica de Ana Cristina Cesar
ensaios e resenhas e as teorias desenvolvidas pelo projeto teórico do
estruturalismo. Estuda os desdobramentos simultâneos que se dão, no bojo
das discussões dessa proposta teórica, nos finais de 1960, e o modo distinto
64
usado pelo discurso crítico de Ana Cristina Cesar para assimilar e, igualmente,
rejeitar as práticas de análises literárias impostas, nos cursos de Letras, pelo
método estruturalista. Justificando o propósito firmado para a investigação do
seu trabalho, Francirene Gripp explica:
O principal objetivo deste trabalho é demonstrar as relações
da crítica de Ana Cristina Cesar com o período de transição
em que as teorias estruturalistas vão sendo deslocadas por
outras propostas teóricas sobre literatura, momento em que se
delineia um novo sujeito crítico na área dos estudos literários e
culturais. A intenção é examinar o sentido da crítica da autora:
como participa do projeto estruturalista e como, ao mesmo
tempo e acentuadamente, discorda dele, propondo novas
soluções e posições frente aos objetos de estudo, apoiada em
teorias e procedimentos analíticos pós-estruturalistas, e
demonstrando uma postura típica dos estudos culturais.
(OLIVEIRA, 2001: 09-10)
Partindo dos escritos críticos de Ana C., publicados no período de 1973 a
1983, Ancoras ao vento considera juntamente, como objeto de sua análise, as
entrevistas e os depoimentos da poeta, em cursos de literatura, para traçar as
linhas que ilustram a formulação dos conceitos provenientes dos paradigmas
estruturalistas, a resistência contra uma hierarquia poética e teórica nas
universidades, e o empenho contínuo em desmistificar o papel e o lugar
ocupado, pela literatura, no território das universidades de Letras. As
observações da pesquisa de Francirene Gripp de Oliveira têm, como ponto de
partida, o ensaio Notas sobre a decomposição nOs Lusíadas. Esse trabalho
escrito por Ana Cristina Cesar, em 1973, quando a moça ainda contava com os
seus jovens 21 anos, foi confeccionado para cumprir, possivelmente, as
exigências de disciplinas do curso de Letras que el a freqüentava na PUC-RJ. O
texto acabou tendo uma circulação marginal, transitando em formato
mimeografado para a leitura universitária, mas permanecendo inédito até ser
65
publicado, na coletânea Escritos no Rio, em 1993. Como se pode ler em Atrás
dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar:
Talvez se possa localizar o início da produção crítica nos
tempos de estudante de Letras da PUC-RJ, num trabalho
acadêmico datado de novembro de 73 e entregue, na época, a
uma de suas professoras, Vilma Arêas. Apesar de produzido
para atender a uma demanda universitária, Notas sobre a
decomposição nOs Lusíadas o se restringiu ao mero
cumprimento da tarefa a que se destinava, tendo circulado, a
partir de 1974, na forma de texto mimeografado para
consumo universitário, conforme se no curriculum vitae
elaborado pela autora em 1983 e guardado no Arquivo de
Ana Cristina, onde também ficamos sabendo que este ensaio
circulou sob pseunimo Luíza Andrade assim como um
outro artigo sobre a poesia de Drummond. (CAMARGO, 2003:
49-50)
Encontramos, nesse ensaio, as posições de um sujeito que, mesmo atento às
demandas teóricas daqueles tempos, institui questionamentos e dados
instigantes para as outras possibilidades de leitura do poema épico de Os
Lusíadas. Partindo das perspectivas historicistas, de Antônio José Saraiva,
inscritas no trabalho do crítico português Os Lusíadas e o ideal renascentista
da epopéia.
16
, Ana Cristina Cesar concentra sua análise na parte do ensaio
intitulada Notas sobre a composição dOs Lusíadas. Rechaçando o tom
doutoral, de senhor das letras, usado por Saraiva para analisar o épico de Luís
Vaz de Camões, Notas sobre a decomposição nOs Lusíadas assinala seu
objetivo desconstrutivo de imediato, a partir do título. Estimulada pelas
informações que, normalmente, escapam pelas bordas do texto, Ana Cristina
enxerga, nOs Lusíadas, os silêncios ocultados pela palavra escrita e as
facetas de um metassujeito que se interpõe, sem distanciamento, sobre o
16
SARAIVA, Antônio José. 1946, apud OLIVEIRA, Francirene Gripp de. Âncoras ao vento:
ensaios da desconstrução em Ana Cristina Cesar, 2001. 160 f. Dissertação (Mestrado em
Teoria da Literatura) Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001, p.16.
66
andamento da narrativa: [...] A verdade do próprio texto é antes de tudo
cuidadosamente sufocada em sua letra, mas escapa pelas bordas tanto nas
intervenções do metassujeito da narrativa (o cego eu) quanto pela inversão
estilística [...] (CESAR, 1999: 143). Para Francirene Gripp,
[...] Ana Cristina Cesar inaugura seus movimentos de
desconstrução sobre o discurso de Saraiva, refutando a noção
de sujeito implícita na argumentação crítica desse autor e
provocando, com isso, a abertura para uma leitura do sujeito
presente no épico de Camões. Assim, um sujeito crítico
relativizado e contextualizado começa a ser vislumbrado,
quando são colocadas em discussão as concepções de
linguagem, discurso, texto, literatura, autoria e mito.
(OLIVEIRA, 2001: 18)
A análise de Ana Cristina Cesar trabalha, simultaneamente, com
o épico camoniano e com o texto analítico de Antônio Saraiva ponderando e
discutindo, em ambos os textos, a inserção do sujeito e a maneira que ele se
enuncia no trânsito da escritura. Mas, por um outro lado, ironicamente, se nos
detivermos em algumas abordagens presentes em Notas da decomposição
nOs Lusíadas, perceberemos que algumas das observações de Ana C. tem
bases estruturalistas, sustentam-se em uma leitura descontextualizada,
calcada na objetividade científica que oblitera o sujeito da escrita,
neutralizando-o como analista do texto investigado. O meio-tom privilegiando a
análise estrutural que sobressai, por vezes, em algumas linhas do trabalho,
indica a aplicação de uma teoria vivenciada pelos graduandos em Letras.
Contudo, não é a objetividade cientificista que impera na constituição do ensaio
de Ana. A autora, ambiguamente, cotejando a percepção estruturalista com as
novas tendências pós-estruturalistas, mostra-nos a linha dupla que atravessa
sua leitura, tanto do poema de Camões quanto da crítica de Antônio Saraiva.
Discutindo a problematização da subjetividade autoral, em Notas da
67
decomposição nOs Lusíadas desponta o crítico leitor, engendrando as
percepções particulares do sujeito e inquirindo, principalmente, sobre o papel
que o receptor deveria ocupar na leitura da crítica e da obra literária.
Francirene Gripp salienta que
A crítica de Ana Cristina Cesar assume aspectos que revelam
a subjetividade do crítico, mas também realiza uma leitura de
Caes de forma sincrônica e descontextualizada, o que lhe
confere traços do estruturalismo. Ao mesmo tempo, a ensaísta
rastreia e aponta o sujeito da enunciação, tratando como texto
a obra camoniana, o discurso de Saraiva e usando o Aleph
como metáfora de outra proposta de recepção. [...] (OLIVEIRA,
2001: 46)
A discussão sustentada no ensaio de Ana Cristina Cesar e todas as
ambivalências articuladas, no bojo desse texto, descortinam um horizonte a ser
palmilhado. Percebe-se, dentro desse projeto experimental de ensaísta, o forte
anelo em atar crítica e literatura, em encetar renovadas dimensões para
investigar e reposicionar o lugar da literatura, o lugar do leitor, do crítico e da
teoria. Para dar conta desse empreendimento é que Francirene Gripp segue
analisando, em sua dissertação, os outros textos publicados em Escritos no Rio
e a maneira como os conteúdos de tais publicações refletem, gradualmente, a
maturação literária, artística, política e intelectual de Ana Cristina Cesar. Não
seria possível, por ora, analisar, detidamente, os desdobramentos estéticos, a
envergadura original e os afrontamentos intelectuais operados, por cada um
desses trabalhos ensaísticos, no panorama cultural daqueles tempos. Porém, a
pesquisa de Francirene Gripp de Oliveira sintetiza, em alguns pontos, o eixo
recorrente e a preocupação maior dos trabalhos críticos de Ana Cristina Cesar.
Segundo ela,
Com critérios e vigor uma de suas características nesses
ensaios examinados a analista define, para si, o lugar de
68
intelectual, com assumido comprometimento com as relações
sociais implicadas nas relações de linguagem. Partindo de
uma formação teórica estabelecida na transição entre os
conceitos estruturalistas e as teorias s-estruturalistas,
percebe-se, na autora, uma tendência à crítica que
desmistifica os discursos de poder e promove aqueles que se
constituem como um pensamento minoritário. É nesse sentido
que encontramos uma intelectual esperançosa por mudanças
em seu contexto social. (OLIVEIRA, 2001: 110)
Sinalizando as derradeiras instruções dessa navegação, é
importante considerar, para guarnecer as tantas outras orientações observadas
até o momento, dois trabalhos publicados em Vozes femininas gênero,
mediações e práticas da escrita, em 2003. O primeiro deles, pela ordem em
que aparece na organização do livro, é Sereia de papel: Ana Cristina César
17
e
as ficções autobiográficas do eu. Esse ensaio, assinado por Marta Peixoto,
traz à tona uma das perquirições incessantes que rondam a literatura de Ana
Cristina Cesar: a ficção e a autobiografia. Comparando as análises de Flora
Süssekind
18
e Ítalo Moriconi
19
e os seus pontos de vista (divergentes?) sobre a
imposição de caracteres autobiográficos na literatura de Ana Cristina, o ensaio
de Marta Peixoto entende não haver verdade absoluta e nem discordâncias em
nenhum dos dois posicionamentos interpretativos: [...] pois o material íntimo ao
tornar-se matéria-prima para o processo artístico deixa de lado as suas origens
para participar de um jogo com outras regras (PEIXOTO, 2003: 275). Para
tanto, esse trabalho se concentra em analisar os jogos da possibilidade
autobiográfica como um projeto estético da literatura de Ana Cristina Cesar,
17
Tanto o ensaio de Marta Peixoto quanto o ensaio de Beatriz Resende, mencionado na
página seguinte, trazem o sobrenome César acentuado.
18
SÜSSEKIND, Flora. Até segunda ordem não me risque nada Os cadernos, rascunhos e a
poesia-em-vozes de Ana Cristina César. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.
19
MORICONI, Ítalo. Ana Cristina César: o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará: Prefeitura, 1996. (Perfis do Rio; n.14)
69
situando-se sempre no limiar da referência autobiográfica e da constituição
ficcional. Pensando nesse modelo de escrita é possível indagar sobre os
contextos em que a produção da poeta está inserida e que, de alguma forma,
parecem sugerir uma escrita fundamentada nos jogos interpretativos de uma
intimidade velada: a ditadura militar, a poesia marginal e os gêneros que
constituíram, por algum tempo, uma típica escrita feminina. Mas há,
evidentemente, razões que extrapolam essas exigências contextuais. O
material burilado na escrita de Ana C. é uma experiência de quem pretende
extrair da palavra todas as suas nuanças, fundar um jogo estético alojado nas
tensões interpretativas e, aliado a esses critérios, encontrar-se e camuflar-se
na fina ironia que joga, sem cessar, com o vivido e o representado. É,
sobretudo, a escrita de uma poesia que parece desejar-se encenada, ativada
pela teatralidade das máscaras. Marta Peixoto destaca
[...] o aspecto ativo, dramático, e mesmo teatral, das
provocações autobiográficas e intertextuais de Ana Cristina.
Estas assimilações, assim como fragmentos escritos de crises
pessoais e eróticas, proporcionam à sua poesia enigmas
atraentes e paralelos, convidando o leitor a envolver-se com
textos que refletem textos e com os reflexos especulares de
paixões textuais. (PEIXOTO, 2003: 281)
O segundo trabalho, de Beatriz Resende, Ah, eu quero receber
cartas: a correspondência de Ana Cristina César, focaliza as cartas contidas
na publicação de Correspondência Incompleta (1999), edição organizada por
Armando Freitas Filho e Heloísa Buarque de Hollanda, que reúne um conjunto
de correspondências de Ana Cristina Cesar escritas entre o período de 1976 a
1980. O livro de cartas, entremeado por fotografias que revelam diferentes
Anas, avisa, de antemão, o tom performático estabelecido na sustentação das
correspondências com as amigas Clara de Andrade Alvim, Heloísa Buarque de
70
Hollanda, Maria Cecília Londres Fonseca e Ana Cândida Perez. A leitura
dessas cartas revigora as discussões sobre a valoração ou não de certos
gêneros enquanto literatura e, principalmente, acalora as controvérsias entre o
vivido e o fingido, o sincero e o representado:
[...] Torna-se, também, mais evidente que sinceridade e
insinceridade são conceitos complexos quando falamos de
arte e artistas, jamais ingênuos, sempre comprometidos com a
questão da representação, afastados, por ofício mesmo, de
compromissos com a sinceridade. (RESENDE, 2003: 301)
Beatriz Resende analisa as relações estabelecidas entre Ana Cristina e cada
uma dessas amigas correspondentes, usa os comentários, coligidos no livro
Correspondência Incompleta, emitidos pelas amigas acerca das
correspondências e do período em que conheceram a poeta e se relacionaram
com ela. Observando as indicações do trabalho de Beatriz Resende torna-se
evidente que a prática epistolar de Ana Cristina Cesar é desenvolvida como um
campo de experimento e aperfeiçoamento da escritura. E assim, o modelo
funcional da correspondência é absorvido pela intencionalidade literária, a
comunicação pretendida cede lugar a jogos de significação. A conjugação das
significações são reforçadas, no livro de correspondência, pelo conjunto de
fotos ensaiadas, posadas, suscitando, através das imagens, o acirramento das
intenções. Associando a intencionalidade das fotografias acopladas com o livro
de cartas, Beatriz Resende escreve: [...] um livro como este não estaria
completo sem fotos, simplesmente porque é até difícil falar sobre Ana Cristina
sem falar em suas fotos. Ana foi abundantemente fotografada. [...] (RESENDE,
2003: 304). As fotografias têm aqui um papel ilustrador da intencionalidade,
reforço aos efeitos da linguagem e as suas signi ficações:
71
Ainda uma vez o apresentar-se às objetivas evidencia a
preocupação de Ana com o interlocutor que lerá suas fotos.
Apresenta-se à quina fotográfica descartando o imprevisto
do instantâneo. Atuando assim o propriamente no sentido
do fingimento, mas certamente da intencionalidade, do
controle da significação. Inocência, nem na nudez.
(RESENDE, 2003: 305)
Desmistificando a impossível inocência do artista, o ensaio de Beatriz Resende
salienta o espaço privado da prática epistolar como uma circunstância de
aproximação e esmerilamento da escrita. Enquanto contrapõe a escrita pública
à privada, as cartas e outras escritas da intimidade regularizam de algum modo
os espaços de circulação literária e fustigam, sobremaneira, os critérios de
valor e a posição resguardada do cânone literário. O ensaio de Beatriz
Resende salienta que
[...] Os escritos da intimidade valorizam-se ao marcar, mais do
que em outros textos, a peculiaridade da escritura do artista e
o reconhecimento dos espaços de circulação pretendidos
espaço privado ou espaço público como espaço igualmente
possível à criação literária. Parece-me evidente, aqui, a
inutilidade dos velhos critérios de valor como diferenciador
entre escrituras que circulariam em cada um destes diferentes
espaços. O pseudoprivatismo não é senão uma circunstância
de exercício da escritura e pretexto para a atividade prazerosa
ou consoladora que a criação do texto, o uso da palavra
proporciona. (RESENDE, 2003: 306)
Se os escritos da intimidade ganham relevância na literatura de Ana Cristina,
deveremos sempre entender essa preferência, a dedicada atenção oferecida
às cartas pela autora, como exemplares de uma possível ficcionalização do
sujeito, de espaço propício para a urdidura poética e para a prática do jogo
intertextual. O livro Correspondência completa deve ser lido como um raro
modelo para justificação de tais recursos, mas o poema Carta de Paris
20
é
ainda mais ousado nesse sentido. O ensaio de Evando Nascimento, Ana
20
CESAR, Ana Cristina. Inéditos e dispersos: poesia / prosa. 4. ed. São Paulo: Ática, 1999, p.
82-84.
72
Cristina César e Charles Baudelaire: Signos em Tradução, sugere-nos a
leitura desse poema como uma superposição de imagens. Ana Cristina
partindo exclusivamente do mote inspirador, O cisne
21
, de Charles Baudelaire,
realiza em Carta de Paris uma conversão das imagens do século XIX, o
século de Baudelaire, para o século presenciado pela poesia pós-baudelairiana
do século XX, notadamente, a poesia feita por ela. Operando em um
movimento de tradução, o poema de Ana C. capta, em constante
transformação, os signos e as imagens registradas no poema do flâneur. A
tradução pode ser percebida, em todos os matizes, como uma possibilidade
subvertida de uma rotina intertextual consagrada na literatura de Ana
Cristina. Mas o uso de outros expedientes que unem trabalho crítico,
tradução e criação literária ofusca a intertextualidade pura e simples,
concedendo à Carta de Paris um feixe de revelações sobre o ato da criação
ou da recriação tradutora, colocando-a como uma criação paralela, autônoma,
porém recíproca (CAMPOS, 1992: 35). Assim como está demonstrado por
Haroldo de Campos:
[...] tradução de textos criativos se sempre recriação, ou
criação paralela, autônoma, porém recíproca. Quanto mais
inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor
enquanto possibilidade aberta de recriação. Numa tradução
dessa natureza o se traduz apenas o significado, traduz-se
o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade
mesma [...] (CAMPOS, 1992: 35)
Baseado na demonstração de Haroldo de Campos é que Evando Nascimento
avisa, de antemão, em seu ensaio:
Eu não colocaria o poema Carta de Paris, dos Inéditos e
dispersos de Ana Cristina Cesar (1998), na categoria de
21
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur
Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 227-229.
73
pastiche, nem classificaria como paródia, paráfrase ou
qualquer procedimento dessa natureza. Prefiro cha-lo de
comentário íntimo ou de confissão poética. Poderia ainda
nomeá-lo como tradução literia, em sentido amplo.
(NASCIMENTO, 2003: 47)
As estrofes de O cisne e o poeta inspirador, Charles
Baudelaire, estão submergidos na série de versos que revelam a visão
particular e estilhaçada da autora. As imagens desdobram-se, continuamente,
sobre a Paris enxergada por Ana, sobre os versos de O cisne e sobre a visão
da cidade que Baudelaire capturou no poema. A passagem dos tempos, a
mudança do século é percebida e sentida, sobretudo, ao observar as ruas de
Paris. As passagens do poema deixam entrever como a Paris de Ana vai
mudando instantaneamente, cidades sobrepostas, alterando a paisagem e a
relação da Carta de Paris com o poema e o tempo de Charles Baudelaire.
Assim nos diz Evando Nascimento sobre os movimentos da cidade,
circunscritos no desenrolar do poema de Ana Cristina:
Retomando o movimento da cidade, eu diria que a Paris de
Ana C. alterou de um século a Paris de Baudelaire. Porém,
mais ainda, a Paris de Ana C. também o é a mesma,
mudou num piscar de olhos, do início até o fim do texto. A
passagem sobre o rio Sena ilumina essa superposição de
cidades sobre a cidade, sempre a mesma, porém alterada ao
infinito. [...] (NASCIMENTO, 2003: 49)
Alterada também está a forma do poema e a maneira de dizê-lo. O tempo
experimentado pela poesia de Ana Cristina Cesar sugere-nos um conjunto de
impossibilidades: escrever como Charles escrevia, dizer o que foi dito por ele e,
do mesmo modo, perceber Paris como ela está captada em O cisne. O
poema, sendo uma carta, aventa destinatários possíveis, sem, contudo,
preci-los. Ainda que minha filha sugira no início da primeira estrofe algum
tipo de precisão para se detectar o receptor da mensagem, mesmo assim, o
74
destino da comunicação permanece impreciso, indeterminado. O remetente,
igualmente, aparece soterrado nas lembranças daquilo que nunca foi
experimentado, perde-se em reminiscências que não são de todo suas. Esboça
um quadro nostálgico rasurado pelas mudanças vivenciadas no presente e pela
destruição do passado, fazendo com que materialize no poema esse conjunto
de impossibilidades. A oportunidade de um remetente único para esta
correspondência desaparece numa avalanche de imagens voláteis, dando
notas da suscetibilidade do que é escrito e daquilo que é percebido na
paisagem parisiense. Sem um remetente inteiriço, a correspondência não pode
ser subscrita, pois o emitente se oculta sob os r esíduos de Charles, sob a Paris
de Baudelaire e, assim, está devidamente apagado, desaparecido na
assinatura final de quem subscreveria essa correspondência. Evando
Nascimento salienta que,
[...] No caso de Ana C., essa função epistolar e amical da
poesia é acentuada por tudo o que impede de considerar seu
texto como mais um poema, mesmo um poema em prosa.
Como se também à forma-poema em sentido estrito o texto
dissesse adeus, num século em que por inúmeros motivos não
é mais possível escrever poesia à moda antiga, pré-moderna,
daí o recurso à missiva, ao diário, às confissões poéticas como
corrosão do verso, da estrofe da rima. Tudo em proveito da
epístola (fingida) em que um eu cindido se corresponde com
diversos parceiros e parceiras, tal a amiga da Carta de Paris,
a quem a voz poética se dirige, quer dizer, escreve.
(NASCIMENTO, 2003: 49)
A classificação da Carta de Paris, por Evando Nascimento,
como um comentário íntimo, redimensiona o pensamento poético de Ana
Cristina enquanto um ornamento crítico, mesmo que não seja exercício puro de
metalinguagem. O poema se torna lugar para investigar o fazer literário, as
suas sensações e os seus reflexos na posteridade. Para Nascimento (2003),
75
um comentário íntimo e reinventivo. O comentário reinventivo está ligado ao
poder crítico e reflexivo que a literatura de Ana Cristina comporta. As
associações da poesia de Ana C. com o seu trabalho crítico, de ensaísta,
tradutora e estudante das Letras, revelam-nos, quase sempre, a
impossibilidade da leitura de sua obra poética desmembrada das reflexões
deliberadas em inúmeras investigações e estudos críticos. Annita Costa Malufe
(2004) indica esse caminho em Ana C., a crítica por trás da poesia: [...] Ao
criar, o poeta coloca em ação sua habilidade crítica, avalia seus
procedimentos, estabelece parâmetros, faz comparações, aciona seu
conhecimento histórico, literário. [...] (MALUFE, 2004: 29). Não é difícil
confirmar, palmilhando essas associações, crítica e poesia, o quanto a escrita
de Ana Cristina Cesar está calcada em intuitos mais complexos do que os
encontrados, em seus textos, numa leitura imediata. A poesia nascida dessa
confluência de instrumentos é aquela que produz um texto pensante, por isso
mesmo, reinventiva, quase impossível de ser capturada, descoberta, desvelada
em sua plenitude. Annita Malufe demonstra que
Provavelmente as mais interessantes pistas para a leitura dos
poemas de Ana C. possam ser dadas por ela mesma. Ana C.
pensou sua poesia, pensou literatura, fez crítica, estudou
tradução e, como podemos notar no conjunto de seus escritos,
isso tudo participava, e muito, da sua criação literária. Em seus
ensaios e artigos críticos encontramos uma teórica bastante
consistente, levantando questões fundamentais para a leitura
de seus próprios textos. (MALUFE, 2004: 29)
É possível, sem muito esforço, perceber pistas imediatas, para as leituras
interpretativas, relacionadas nos textos que nos parecem, por assim dizer,
óbvios e íntimos demais. Se tomarmos como base, principalmente, os livros
Cenas de Abril (1980) e Luvas de pelica (1980), de Ana Cristina Cesar, como
76
está salientado por Annita Malufe, compreenderemos nas referências óbvias,
diretas, ameaçando em dissolução o jogo do texto, o forte desejo da autora em
ludibriar a ansiedade do interlocutor em encontrar, escancarada no poema,
uma privacidade sem subterfúgios. Através desse mecanismo, a intimidade
forjada, o texto de Ana Cristina Cesar coloca em jogo as variadas artimanhas
do fazer literário e são, desse modo, repensados muitos dos debates críticos
de sua época. Refletindo sobre tais recursos, o ensaio de Annita Costa Malufe
considera o seguinte:
O fato é que, tanto pela sua história pessoal, quanto pelo seu
modo de escrita, Ana C. oferece um prato cheio para quem
busca na literatura um espelho da intimidade do autor. Textos
em forma de drios, cartas, tom de confidência, temas com
jeito de intimidade do autor: Ana C. dizia brincar
propositadamente com esse desejo do leitor, puxando até o
limite sua curiosidade, insistindo em uma escrita que parece
esconder segredos íntimos de mulher. O que poderia fornecer
mais elementos para o desejo de se enxergar os textos como
expressão, tradução de seu estado de alma? (MALUFE, 2004:
29)
Deve-se salientar que esse tipo de literatura, produzida sobre a
égide da confissão e quase sempre enxergada, pelos olhos de alguns ledores,
como uma banalidade feminina, procura, inusitadamente, fustigar e desafiar o
olhar de resistência e suspeição que a crítica autorizada sempre lançou sobre
os textos assim caracterizados. Essa literatura ainda que, muitas vezes,
travestida de um coloquialismo, de um tom convidativo de intimidade, encontra-
se sempre rodeada de artifícios irônicos, coloca sempre à deriva as intenções
que lhe desejam revelada serenamente. Esses traços, em alguns outros
momentos, mesclam-se com uma produção de fino propósito reflexivo e crítico:
esta impõe recursos para a iniciação poética, desarma o leitor, pois este não se
habilita a adentrar em um universo de leitura em que os códigos parecem estar
77
por demais cifrados. O insigne convidado dessa festa parece, por fim,
desalojado dessa leitura, não encontra o confortável lugar para usufruir desses
versos. O desconforto do leitor seria chamado por Ana de incomunicabilidade
poética. Para Ana Cristina o grilante (ou seria o fascinante?) da poesia está na
sua incomunicabilidade, [...] a poesia não comunica, poesia pra valer não
comunica [...] (CESAR, 1999d: 270). Sabedora que era de todas as infrações
sofridas pela linguagem no armamento do texto literário, os versos de Ana C.
fabricam inúmeras realidades sem, contudo, significá-las ou representá-las.
Fabricando as realidades o seu texto introduz, em forma de verso e prosa, o
pensamento da crítica vigente, infringe as regras, nomeia novos e desestabiliza
os velhos fundamentos poéticos. Annita Malufe é mais esclarecedora nesse
sentido:
o: não busquemos o que está oculto no papel, no sentido
de um significado fixo, escondido entre as linhas codificado. O
poeta não busca colocar símbolos no papel, como sinais nas
placas de trânsito: uma coisa substituindo outra, uma coisa
remetendo a outra especificamente determinada. Na poesia,
tal qual a concebe Ana C., não há simbologia alguma, os
elementos utilizados nos textos não estão ocupando lugar de
ou representando algo. [...] (MALUFE, 2004: 37)
Deve-se ressaltar a validade dos juízos emitidos por Anita Malufe, mas não
podemos deixar de considerar o fato de que a literatura de Ana Cristina Cesar
está sempre confrontando os limites da interpretação crítica, os limites do
próprio texto e, sobretudo, os limites da percepção de seus leitores. Ao mesmo
tempo, esse confronto é feito sob as linhas tênues de intencionais paradoxos,
levando a composição de sua poesia para um campo substancialmente
enigmático em que a sedução é palavra de ordem, critério rigoroso e perigoso
para se haver com este texto. Não nos permite plana quietude. Percebemos,
78
invariavelmente, a desestabilização de nossas convicções interpretativas. E,
observando esses jogos de sentidos, entende-se que a literatura de Ana
Cristina explora os artefatos do jogo inconsciente e elabora, sim, um jogo de
signos calcados na simbologia, exigindo, sem parcimônia, aquilo que Anita
Malufe julga desnecessário, a leitura dos significados ocultos (MALUFE,
2004: 29). Mesmo em Ana Cristina Cesar, onde as leituras atentas podem nos
encaminhar para o apagamento dessas impressões ou para a imposição
daquilo que Ana nomeou, ironicamente, de incomunicabilidade da poesia.
Deve-se, contudo, atentar para os aspectos recorrentes e, efetivamente,
sublinhados na poesia de Ana Cristina: o jogo paradoxal do ser não ser, estar
não estar, dizer não dizer. Se nos detivermos nas suas leituras de formação
crítica e poética, não nos será forçoso divisar a relação dúbia fixada com esses
horizontes, assinalando, em muitos casos, a aceitação e a rejeição dos
mesmos fundamentos.
Os exemplos citados, por Anita Malufe, como as leituras de
Roland Barthes, Jacques Derrida, Maurice Blanchot, Gilles Deleuze e Michel
Foucault, indispensáveis em Ana Cristina como assimilação do pensamento
contemporâneo e [...] para quem a literatura não é o lugar da afirmação, mas
antes, da desconstrução do sujeito. [...] (MALUFE, 2003: 30), podem
corroborar o desaparecimento e a desconstrução do sujeito poético na
confecção de sua literatura e são, sobretudo, recortes de uma geração e
demarcam uma boa parte dos poemas de Ana. Em outros casos, a mesma
conclusão não se aparenta tão definitiva. Os preceitos parecem colocados de
lado, urdidos numa incerteza zombeteira, revelando a sua desconfiança para
79
com a efemeridade de determinados credos críticos e literários. É, decerto,
diante de tais suspeitas que os poemas de Ana Cristina não abraçam,
determinadamente, a idéia do ofuscamento do sujeito, o fim das pertinências
autorais e da identidade criadora. Em muitos de seus versos, o conjunto
apresentado em Inéditos e dispersos (1999) seria um bom exemplo, pistas
da construção ensaiada e maquiada do sujeito. Feitas sob uma perspectiva da
ressignificância, é bem verdade, mas vozes eminentes da particularidade
autoral dão sinais de vida, o morto se recusa a morrer, destrói-se para
construir-se e emite as vozes de um enigma nutrido na sedução. Essa escrita
assimila os preceitos de uma sedução que não se encerra. Não podemos, daí,
nos furtarmos de enxergar sempre nos textos de Ana Cristina a compleição
paradoxal e furtiva daqueles que encenam os ardis voluptuosos do ato de
seduzir. Tal efeito é esclarecido nos estudos que Jean Baudrillard nos
apresenta sobre a sedução:
Efeito prismático da sedução. Outro espaço de refração.
Consiste não na simples aparência ou na pura ausência mas
no eclipse de uma presença. A única estratégia é estar lá/ não
estar lá e assim garantir uma espécie de intermitência, de
dispositivo hipnótico que cristaliza a atenção fora de qualquer
efeito de sentido. A ausência seduz a presença.
(BAUDRILLARD, 2006: 97)
A própria imagem do autor, ou de sua morte, pode ser entendida, na poesia de
Ana C. como um outro espaço de refração, uma linha que se distorce em
tantos significados e demarca, principalmente, a sua frágil posição nesse
conflito. A literatura que assim nos apresenta aciona, até o limite, o fingimento
daquilo que poderia ser real. Não são mais as insinceridades da formatação
literária dos cadernos de confissões, dos diários e das cartas maquiadas de
intenções colocadas aqui, sob suspeita. O fingido nesse jogo, de
80
representações e violações dos gêneros da tradição, desdobra-se em
proporções imperceptíveis alastrando-se, também, sobre a possível emissão
de um pensamento obediente às leis teóricas aplicadas aos constructos
literários daqueles tempos. uma dúvida angustiante instaurada, borrando
sem cessar as fronteiras entre o real e o fictício, entre a morte e a
sobrevivência do autor, entre a crítica e a transparente literatura.
A leitura contestada por Anita Malufe, para os versos de Ana
Cristina, como placas nos sinais de trânsito, pode parecer um convite aterrador,
mas está presente, é pertinente e não deixa de ser, senhas de acesso. Por
isso, os sinais aparentes e codificados, entendidos como placas nos sinais de
trânsito, são frestas para adentrar no redemoinho, o primeiro passo para se
aproximar do abismo, do mar profundo.
Conclui-se que a obra de Ana Cristina não é uma leitura de
sinais interditos e recalcados sob a pele do texto, códigos para serem
interpretados, mas nem é, tampouco, uma poesia crivada unicamente de
armamento crítico, asfixiante nas teorias em que subjazem respostas para uma
forma contemporânea de composição poética. É uma conclusão paradoxal,
mas tratando-se de Ana C. não poderia deixar de ser assim. Os seus escritos
conduzem-nos sempre a um ponto extremo de desconfiança, de caminhos
incertos, como se estivéssemos, continuamente, diante de cruciais enigmas. O
texto incide sobre um efeito sedutor e provocante, desvirtua-se na regularidade
aparente, refração de espelhos sobrepostos, sobrepondo máscaras, atiçando
olhares, seduzindo ao enigma.
81
CATULO II
O COLÓQUIO AUTOBIOGRÁFICO:
MÁSCARAS DA ESFINGE
82
AS FOTOS: POSE DA ESFINGE
As obras de Ana Cristina Cesar Inéditos e dispersos, A teus
pés (que reúne, no mesmo volume, Cenas de Abril, Correspondência completa
e Luvas de pelica), como também a obra que traz a público suas cartas
enviadas às amigas, Correspondência incompleta constituem um caso
intencional de jogar com o desejo do leitor de encontrar a deliberada exibição
de uma mulher que, aparentemente, escancara a sua existência aos olhos do
espectador sequioso por buscar verdades de vida.
Atenta-se, no primeiro instante, para os capítulos iconográficos
que Inéditos e dispersos e A teus pés ostentam. Em Correspondência
incompleta, não um capítulo dedicado à iconografia, mas a linguagem
imagética está lá, as fotos surgem, permeando as cartas, evidenciando o dia-a-
dia, gestos, passeios e viagens. Nos outros livros (Inéditos e dispersos e A teus
pés), o caráter iconográfico sugere-nos uma possibilidade, ainda maior, de
concatenar o modelo literário praticado por Ana Cristina e as pistas suspeitas
engendradas em cada instantâneo de fotografia.
22
Ana Cristina Cesar esmerou-se no dom de desenvolver
personas, cultivar imagens de efeito. A sua própria imagem de mulher, de
sujeito social, parecia estar constantemente atrelada aos signos da
representação, da performance, do personagem. Muitos de seus amigos,
22
Todas as obras citadas nesse parágrafo referem-se àquelas organizadas, postumamente,
por Armando Freitas Filho, com a edição datada de 1999. Os livros de Ana Cristina Cesar,
Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979), Luvas de pelica (1980) e A teus pés
(1982), não dispõem das intervenções iconográficas.
83
partícipes de sua vida naquela época, definem os aspectos de sua imagem
representativa e encenada. Para Ana Cândida Perez Ela disfarçava a
insegurança com uma pose estudada chapéu desabado, túnica indiana e
pantalona, e uma ponta de arrogância. [...] (PEREZ apud FREITAS FILHO,
1999: 305). Em artigo publicado no Jornal do Brasil, em maio de 1983, a amiga
Heloísa Buarque de Hollanda avalia o figurino e a postura da moça recém-
chegada da Inglaterra:
Trajando knickers amarelo, sandálias chinesas, cabelo punk,
com diploma de Master of Arts em tradução literária from Essex,
e um livro editado em Londres, acaba de retornar ao Brasil Ana
Cristina Cesar. Pelo desempenho e visual não deixa margem à
vida: trata-se do que se convencionou chamar de uma mulher
moderna, independente e bem-sucedida. (HOLLANDA, 2000:
198)
Algumas outras percepções, das amigas de convívio, são interessantes e
pertinentes para capturar as várias imagens dessa mulher forjada sob o teatro
proposto, por Ana Cristina, em sua literatura. Cecília Londres dirá:
A mais antiga lembrança que tenho de Ana Cristina Cesar data
de março de 1971, quando a vi na PUC do Rio de Janeiro, onde
eu era professora de Teoria da Literatura. No meio da garotada
saída do verão, Ana Cristina era a própria caloura que vinha do
frio. Usava roupas em tons neutros, um chau de feltro marrom,
e tinha um ar entre o bla e o desafiador que chamava atenção.
o havia como ignorar sua presença. Aos 18 anos, Ana
Cristina era mestra em criar sua própria personagem.
(LONDRES apud FREITAS FILHO, 1999: 302)
Sob uma outra ótica, a de Clara Alvim, pode-se perceber a Ana Cristina aluna,
mas o jogo da aparência também está atrelado ao impacto da imagem
produzida, de efeito:
Como aluna, ela me chamou atenção, primeiro, pela maneira
dandy de se vestir, pela aparência inglesa que sempre teve e,
sobretudo, pela atitude entediada diante das complicações
estruturalistas greimasianas, trazidas da França, com que eu
apresentava os contos de Guimarães Rosa.
(ALVIM apud
FREITAS FILHO, 1999: 297)
84
Na percepção de Armando Freitas Filho, a imagem de Ana C. será definida
como: Seu rosto vinha de longe, elisabetano, disfarçado por óculos John
Lennon; seu corpo de fausse maigre era ultracontemporâneo, ginástico.
(FREITAS FILHO apud SOARES, 1996:166). Armando Freitas Filho, ainda,
chama a atenção para [...] o colorido de suas roupas, numa combinação rara,
que não temia correr riscos. (FREITAS FILHO apud SOARES, 1996:166) .
As opiniões emitidas pelos amigos a respeito das impressões
causadas pela aparência pessoal de Ana Cristina Cesar não ficam distante das
imagens capturadas pelas lentes fotográficas nem tampouco do fulgor
imagético encenado na maioria de seus textos. A relação da poeta com a
fotografia e seus efeitos de trapaça pode ser confirmada no depoimento de
Ângela Carneiro a Raimundo Nonato Gurgel Soares e em cartas, de Ana
Cristina Cesar, enviadas à Heloísa Buarque de Hollanda de Paris e da
Inglaterra, entre os anos de 1979 e 1980. A remetente, comentando os seus
programas diários, relata para a amiga:
Fui a um cabeleireiro chique, chamado Gérard, ele chegou e
disse je vous écoute. Eu falei pouco francês, ele escutou,
escutou (isto é olhou, olhou) e fez um corte incrível, mudou tudo,
fiquei de cabelo CURTO, FRANJA, e ainda por cima umas
perolazinhas trançadas aqui e ali, um barato. Comprei macao
cor-de-rosa, sapatinhos lilás e um batom do St. Laurent rosa-
choque (nº.23), no estojinho de camurça preta, um barato. À
noite no apartamento teve até cena de studio e eles me
fotografaram de new look. (CESAR, 1999c: 50)
Em outra carta do mesmo período, mas já de volta à Inglaterra, Ana escreve:
Recebi uns retratos meus de Paris que são um espanto,
posando de vestido & maquiagem igual àe de pretty baby, de
repente uma mulher mais velha, com cara de quem tem que se
mancar. Levei susto, não queria duvidar da cenografia de
garotinha. Vestido preto transparente! Pode? Só podia dar
bobagem. [...] Olha, é o seguinte, produz imediatamente umas
fotografias sinceras que eu quero [...] (CESAR, 1999c: 62)
85
Essas fotos posadas ou pouco sinceras, carregadas no estilo, com cena de
estúdio para fotografar o new look, são as mesmas consideradas por Ana
Cristina como fotografias perversas porque, impregnadas de pose, acabam
sendo uma transgressão de sua imagem real, pervertidas no âmbito de
significação da imagem, de transcriação da representatividade. A observação
de Ângela Carneiro, sobre esse mesmo conjunto de retratos e o período das
viagens, parece não se dar conta do sentido da perversidade sugerida nas
imagens por Ana Cristina. Ângela relata o seguinte: Depois ela foi a Paris. E
aí, ela tinha umas fotos tiradas em Paris, um pouco fantasiada, sabe? Ela dizia
serem as fotos perversas. Eram sofisticadas... pintada, de chapéu, umas
roupas bonitas (CARNEIRO apud SOARES, 1996: 150). Ângela Carneiro,
ainda no mesmo relato, compara a Ana Cristina da vida real com aquela
personagem sugerida nas fotos:
[...] ela o se pintava, por exemplo, o usava nenhuma
pintura, né? Usava óculos. O cabelo, ela lavava e deixava...
ficava encaracolado naturalmente. Mas, nestas fotos, ela estava
muito produzida, com maquiagem, estão muito bonitas. Ela
chamava as fotos perversas, dela. Mas o tinha nada de
perverso. (CARNEIRO apud SOARES, 1996: 150).
Arroladas tais perspectivas, não fica difícil entrever, entre uma foto e outra, o
mesmo jogo perverso para usar a expressão de Ana Cristina imposto nos
momentos mais caros de sua escrita. A palavra pervertida em seus sentidos
multifaces, transfigurada sob uma imagem inventada ou sobre o real
ficcionalizado, mas sempre se impondo como uma possibilidade factual.
Se as fotografias, como uma possibilidade de linguagem,
anunciam e recontam uma história de vida e dão o tom autobiográfico através
da imagem, não podemos deixar de relacionar a linguagem escrita a tais
86
suportes pictóricos. Os dois elementos, o imagético e o escrito, tendem a se
impor como bases sólidas de uma realidade vivida. Fatos, ilusoriamente,
inquestionáveis. De posse das fotografias, como momento capturado de uma
realidade inconteste, a leitura dessa poesia ficará, em definitivo, comprometida
pelos objetivos da imagem enquanto realidade, mesmo sendo, como visto,
uma realidade pervertida nos sentidos. Ler essa poesia não poderá deixar de
ser uma leitura crivada pela associação do vivenciado, nos retratos, pela
cidadã e por aquilo que a poeta enuncia, como Barthes esclarece:
A fotografia é vítima do seu sobrepoder; como tem fama de
transcrever literalmente o real ou uma parcela do real, não nos
questionamos sobre o seu verdadeiro poder, sobre as suas
verdadeiras implicações. Tem-se uma dupla visão da
fotografia como uma transcrição mecânica e exata do real é
o caso das fotografias de reportagem ou, em certos casos, das
fotografias de família. (BARTHES, 1995: 386)
Assim sendo, as fotografias dispostas, nas obras enumeradas,
convocam a uma realidade que a poesia talvez não cumpriria com
tranqüilidade, por si só, posto que esta está anelada ao completo subjetivo e
fora da esfera do concreto, do real. Em contrapartida, a fotografia, enquanto
linguagem, fracassaria no intento de instaurar toda a aura autobiográfica e
literária que os versos de Ana Cristina Cesar tencionam e tensionam. Roland
Barthes prossegue:
Quando se diz que a fotografia é uma linguagem, trata-se de
uma afirmação verdadeira e falsa. É falsa, no sentido literal,
porque sendo a imagem fotográfica a reprodução analógica da
realidade, elao comporta qualquer partícula descontínua que
se possa chamar um signo: literalmente, numa fotografia, não
qualquer equivalente da palavra ou da letra. Mas é
verdadeira na medida em que a composição, o estilo de uma
fotografia funciona como uma mensagem segunda que informa
sobre a realidade e sobre o fotógrafo: é o que se chama a
conotação, que é do campo da linguagem; ora, as fotografias
conotam sempre alguma coisa de diferente do que mostram no
87
plano da denotação: é paradoxalmente, pelo estilo, e pelo
estilo que a fotografia é linguagem. (BARTHES, 1995: 385-386)
As fotos dispostas ora no final, ora no início do volume,
encaminham a leitura para o âmbito autobiográfico e avalizam os dizeres
poéticos como tais. As duas linguagens fundem-se, uma sustentando a outra,
tornando o empreendimento autobiográfico evidente e colocando o leitor no
plano do confidente, o ouvinte inestimável. Nesse ponto de vista, o colóquio
autobiográfico é estabelecido, espontâneo e íntimo. As cartas, os diários, os
versos repletos de relatos cotidianos e a primeira pessoa em foco tornam a
sinceridade de nossa poeta irrefutável:
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três da tarde. /
autobiografia. Não, biografia. / Mulher. / Papai Noel e os
marcianos. / Billy the Kid versus Drácula. / Drácula versus Billy
the Kid. / Muito sentimental. / Pensa no seu amor de hoje que
sempre dura menos que o seu / amor de ontem. / Gertrude:
estas são iias bem comuns. / Apresenta a jazz-band. / Não,
toca blues com ela. / Esta é a minha vida. [...] Outra cena da
minha vida. (CESAR, 1999a: 35-36)
Memórias, autobiografia, biografia, mulher, muito sentimental,
esta é a minha vida, outra cena da minha vida palavras e afirmações que,
aparentemente, emergem de um cotidiano natural, alguém girando uma
câmara e registrando o corriqueiro e banal do dia, Copacabana, Santa Clara às
três da tarde. Mas as idéias destacadas denotam a mensagem de quem alude
a um cotidiano em particular, olhar de um sujeito que se empenha em
apreender a veracidade do vivido, memórias com hora e lugar. O painel
esboçado é a fotografia que a escrita realiza; é, ao mesmo momento, a
tentativa de aproximação do vivido e o patentear da verdade, realidade
entregue aos olhos de quem / lê e convence-se de que a poeta vincula a
sua existência diária aos seus versos.
88
Obviamente, tais aspectos são recursos de uma literatura que
tem como anseio estabelecer uma dúvida implacável. A subjetividade
excessiva, o eu que transborda nos versos e nas imagens geram uma falsa
idéia de entrega, de confissão propositada e muito íntima. Nesse âmbito, a
poética de Ana C. realiza um drible para com o chamado pacto autobiográfico,
no sentido de que a vida, transformada em literatura e/ou leitura, não dispõe
mais dos fatos tais quais se apresentam na vida real, é algo fugidio, que
escapa, como a própria autora revelou em depoimento, no curso Literatura de
mulheres no Brasil:
A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo o
se coloca na literatura. É como se eu estivesse brincando,
jogando com essa tensão, com essa barreira. Eu queria me
comunicar. Eu queria jogar minha intimidade, mas ela foge
eternamente. Ela tem um ponto de fuga. [...] ela escapa.
(CESAR, 1999d: 259)
Tais revelações colocam em xeque as evidências ditas como
pessoais, lidas como autobiográficas, confirmando assim o jogo que a escrita
de Ana Cristina instaura, a maneira peculiar como sua poesia desconstrói e
dilui as pistas da intimidade, confirmando a xima: O poeta é um fingidor.
Para Ana Cristina Cesar, fingir é sugerir o que parece muito pessoal, confessar
segredos escondidos, mas, nesse caso, revelar é esconder, um ardil que a
poetisa reitera no decorrer de sua trajetória poética: Diálogo de surdos, não:
amistoso no frio. / Atravanco na contramão. Suspiros no contrafluxo. Te
apresento / a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum
segredo. (CESAR, 1999a: 42) A mulher mais discreta do mundo, que não tem
segredos, arrisca-se numa intimidade que nos parece um colóquio, conversas
89
de de ouvido, quase um pedido para a discreta confidência, manhas sem
fim.
Mas se, por um lado, as fotografias ordenadas em cada livro
assumem um papel ilusório de abonadoras da fidelidade do escrito, é possível,
por um outro, entrever a atitude representativa que cada uma delas ostentam,
principalmente as fotos onde Ana Cristina Cesar aparece mais madura, em
viagens, em família ou em outras circunstâncias. Se a poesia trabalha uma
realidade desmontável, fabricada e ligada aos elementos da intersubjetividade,
os adornos fotográficos mesmo sendo, visivelmente, a autenticação da
realidade sofrem do poder da representação, de uma pose que, no indivíduo
fotografado, é calculada, ensaiada. Por isso poderíamos dizer que nas
fotografias uma superfície escorregadia, inalcançável em suas intenções
representativas. Igualmente, a linguagem literária funda-se em tais paradigmas,
pois transborda nos significados, escorrega e escapa. Dois pontos se
estabelecem, então, para a leitura das fotografias inseridas nos livros de Ana
Cristina Cesar. E lidamos, paralelamente, com aspectos congruentes e
incongruentes de uma mesma raiz de leitura. As fotos dos livros podem,
mesmo, estimular a falsa aura autobiográfica ou, como parte da trama literária
de Ana Cristina, jogar com as representações admitidas na escrita e na
fotografia, orientando-nos, com certa malícia, para os distanciamentos e as
aproximações necessárias entre os dois objetos. Poderíamos dizer que,
aspectos análogos dessa representação, estão no poema Como rasurar a
paisagem: a fotografia / é um tempo morto / fictício retorno à simetria / secreto
desejo do poema / censura impossível do poeta (CESAR, 1999b: 79). Ana
90
Cristina Cesar explicita, tematizando as possíveis vinculações entre o poema e
a imagem, na rasura da paisagem fotográfica, as relações de proximidade e
afastamento presentes entre a escritura poética e a imagem lançada pelas
objetivas das câmeras fotográficas. O retrato, mesmo como tempo morto, é um
exemplar perfeito de representação, simétrico na imagem fictícia que projeta. A
mesma encenação, pressuposta sob o olhar oblíquo das fotografias, é o desejo
secreto do poema, mas ele é a cópia rasurada da verdade, uma advertência ao
poeta para sua impossibilidade de captar em versos uma realidade simétrica e
instantânea.
É esclarecedora a afirmação de Maurice Blanchot salientando a
ambivalência sustentada na observação das imagens:
[...] a essência da imagem é estar toda para fora, sem
intimidade, e no entanto mais inacessível e mais misteriosa do
que o pensamento do foro interior; sem significação, mas
chamando a profundidade de todo sentido possível; irrevelada e,
no entanto, manifesta, como a presença-ausência que constitui
o atrativo e o fascínio das Sereias. (BLANCHOT, 2005: 19)
As fotografias de Ana Cristina Cesar alternadas em suas obras assumem,
como em suas poesias, o elemento sedutor da presença / ausência. A imagem
está lá, fixada sobre o papel, mas também já não está mais, tornou-se uma
ausência visível, quase sentida. Não seria diferente, pois estamos pensando
em Ana C., nos seus paradoxais e astutos esconder / revelar, dar / negar.
Evidencia-se, portanto, que linguagem literária aliada aos produtos da imagem
pode, num contra-senso, ludibriar as primeiras intenções de encontrar, nesses
textos, simplesmente os aspectos de caráter íntimo. A possível realidade
convicta da fotografia está, assim, representada na poesia, como, do mesmo
modo, a escritura da realidade estaria refletida na imagem fria, ensaiada e
91
distante do sujeito fotografado. Para esclarecer, recorremos novamente a
Roland Barthes. Ele nos diz que, na fotografia,
[...] o paro de me imitar a mim pprio e é por isso que sempre
que me fotografam (que deixo que me fotografem) sou
invariavelmente assaltado por uma sensação de inautenticidade,
por vezes de impostura (como alguns pesadelos podem
provocar). Ao nível imaginário, a Fotografia (aquela de que tenho
a intenção) representa esse momento deveras subtil em que, a
bem dizer, não sou nem um sujeito nem um objecto, mas
essencialmente que sente que se transforma em objecto: vivo
então uma microexperiência da morte (do parêntese), torno-me
verdadeiramente espectro. (BARTHES, 2006: 22)
Ao analisarmos os versos de Ana Cristina Cesar e as fotografias
organizadas em seus livros, somos convidados a estabelecer essa relação
multiplicadora dos sentidos. Mesmo que essas fotografias não constituam, na
concepção da obra, um adendo intencional e calculado pela autora é tentador
perceber como os dois recursos (o imagético e o da palavra) estreitam a
concepção do duplo imposto nesse modelo literário. É uma imposição nunca
satisfeita, multípara, reflexos desdobrados reverberando sentidos ou
eclipsando-os, por detrás de uma realidade perecível, escamoteada, como é a
das fotografias:
A contingência das fotos confirma que tudo é perecível; a
arbitrariedade da evidência fotográfica indica que a realidade é
fundamentalmente inclassificável. A realidade é resumida em
uma rie de fragmentos fortuitos um modo infinitamente
sedutor e dolorosamente redutor de lidar com o mundo.
(SONTAG, 2004: 95)
Não pode passar despercebido o apreço demonstrado por Ana
Cristina Cesar aos elementos pictóricos. A pictografia, como observa Flora
Süssekind
23
, aparece, muitas vezes, como forma de desdobramento ou uma
outra fulguração da própria palavra escrita. No livro Inéditos e dispersos (1999)
23
SÜSSEKIND, Flora. Até segunda ordem não me risque nada Os cadernos, rascunhos e a
poesia-em-vozes de Ana Cristina César. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.
92
essa aparente brincadeira, irônica e multifacetada de sentidos, aparece na
história de Anabela e o conde Del Mar
24
, no poema Gota a gota
25
e em outras
circunstâncias ilustrativas do livro. Os recursos pictográficos parecem exercer,
sobre a feitura da poesia, um acoplamento adicional para desdobrar os
sentidos ou, de um modo mais simples e antitético ao anterior, simplesmente
ratifi-los no jogo da duplicidade. As fotografias, de uma mesma maneira,
mostram-se como recursos pertinentes para os ensaios de seu personagem-
tipo, balizadores da duplicidade ensaiada na literatura de Ana Cristina Cesar.
Relembrando as considerações de Beatriz Resende, sobre a organização das
fotografias e o feitio do livro Correspondência incompleta, entendemos melhor
como o efeito produzido nessas fotos determina a leitura e envolve a
interpretação numa aura de conspiração teatral e camuflada:
Por tudo isso, um volume como este não estaria completo sem
fotos, simplesmente porque é adifícil falar sobre Ana Cristina
sem falar em suas fotos. Ana foi abundantemente fotografada.
Em todas as fotos escolhidas para compor o livro da
correspondência incompleta sempre, evidente, um punctum,
como diz Roland Barthes, um ponto de efeito: os óculos, o
cabelo em permanente, o colarzinho. Todas o, de algum
modo, performáticas, são fotos/perfomances: estudadas,
preparadas, posadas. (RESENDE, 2003:304)
Destarte, é relevante compreender como as fotografias dilatam e confirmam os
sentidos buscados na literatura de Ana Cristina Cesar. Elas estão,
indubitavelmente, condicionadas ao mesmo intento dos elementos
pictográficos, ao mesmo sentido do significado duplicado, asseverando,
juntamente com a escrita produzida por Ana Cristina, o inclassificável das duas
realidades representadas. Realidade, mesmo, somente nas poses da esfinge.
24
CESAR, Ana Cristina. Inéditos e dispersos: poesia / prosa. 4. ed. São Paulo: Ática, 1999, p.
13-22.
25
Ibid., p. 77-79.
93
PACTOS COM A ESFINGE
Ninguém lê Ana Cristina Cesar impunemente. um fetiche
diluído em seus versos que requer de todo e qualquer leitor uma atitude
drástica e definitiva: tomar o texto para si e diluir-se no fetiche ou atirá-lo longe
e, para sempre, esquecê-lo. Optando pela primeira alternativa, o leitor adentra
em um continente de êxtase e de dor. Esse leitor, sem muita escolha, inicia-se
por diligenciar uma busca em que se tor ne possível o encontro de uma verdade
que o conforte e o acalme. Em instante algum, ele imagina que essa verdade
tão urgente e precisa não existe. Sem saber, ele a persegue, constrói pistas,
rastros e portas que possam dar acesso ao seu anseio. Esse é o preço. Pacto
que a autora exige de quem fixa os olhos nos seus. Heloísa Buarque de
Hollanda comenta a busca de pactos que a obra de Ana C. intenciona:
[...] Esse segredo em termos de pacto, um pacto que ela fazia
com o leitor, um pacto que ela fazia com o autor, um pacto que
ela fazia com o tradutor, ela vivia de pactos. Um pacto que
eu estou falando, no sentido de ser... um segredo. Quando
vo faz um pacto, o pacto é um segredo seu, é uma coisa
irracional, um pacto de morte. Vo faz um pacto, é um
compromisso cego; não é um acordo, é diferente. Isso é o que
ela faz com o leitor. Se voestá a fim de fazer acordo, vai ler
outra pessoa. Se você não fizer um pacto com ela, não serve.
Acordo ela não faz. [...] (HOLLANDA, apud VIEGAS, 1998:
131-132)
Uma vez instaurado o pacto, o leitor voraz e sedento de
confissões segura na mão dessa mulher que finge não ter segredos. Grande
parte dos versos e da prosa de Ana Cristina Cesar insiste na condição do
escrito autobiográfico. Encadeada pela máxima da poesia, que é produzida
entre os poetas na geração de 70, a literatura do eu o tom dos poetas
94
marginais, mergulhados em escritos que visam, de forma descontraída e
descompromissada, poetizar o cotidiano. Observa-se, no entanto, que o
autobiográfico da poesia de Ana C. ganha o tom da confidência velada, criando
uma tensão com o leitor que acredita estar de posse de uma verdade final e
antes inconfessável. Talvez o que perturbe, mais ainda, na escritura
autobiográfica de Ana Cristina, é a idéia de que, em algum momento de sua
poesia, encontraremos pistas elucidativas sobre seu suicídio, ouviremos e/ou
encontraremos, no material de sua literatura, a razão maior de sua escrita que
não aquela evidenciada pela poeta.
[...] Por isso nos debruçamos sobre os textos que escreveu nos
anos 80 em busca da elucidação do mistério de seu suicídio,
traindo a intenção declarada da autora, que era colocar sob
suspeita a ideologia da sinceridade tradicionalmente
sustentadora daqueles gêneros. (MORICONI, 1996: 123)
Tais elementos que, possivelmente, elucidariam as razões da
morte precoce de Ana C., não aparecem em sua literatura, pelo contrário, sua
obra se mostra como um imenso rio de vários afluentes, não um caminho
certo, esclarecedor quanto mais próximo de sua obra, mais longe dos seus
mistérios. Mas a crença em tal descoberta permanece, pois os seus versos,
mesmo que seja de forma desconstrutiva, como lembra Ítalo Moriconi (1996),
usam e abusam de uma subjetividade imanente, cuja intenção autobiográfica
está sempre despontando nesse ou naquele verso, seja pelos recursos usados,
seja pelas modalidades do autobiográfico que a sua literatura abraça com
fervor (cartas, diários, cadernos terapêuticos etc.)
O leitor crédulo ou cético, indubitavelmente, -se sem saída,
pelo excesso de crença ou pelo excesso de dúvidas, não consegue fugir ao
pacto, segura-se a esta mão estendida, oferece o ombro para a poeta que o
95
convoca a esta intimidade tão repleta de astúcias, e está aqui, definitivamente,
seduzido, à mercê das reais intenções da poesia de Ana Cristina Cesar que é
estabelecer esse abismo insondável entre o que é real e o que é ficção, entre o
que é poesia e o que é vida privada, entre o que é autobiográfico e o que é
puro fingimento poético. Para tanto, assim escreve Michel Riaudel sobre a
poética de Ana Cristina Cesar, na revista Inimigo Rumor, em um ensaio
intitulado A fábrica da identidade:
qualquer coisa da Esfinge nessa concepção do livro e da
paixão devoradora animando seu leitor. De um lado, o texto se
apresenta como uma série de enigmas por decifrar e ameaça
aniquilar o passante que o se mostrar à altura da tarefa. De
outro lado, ele se oferece à sedução de quem o leia realmente,
sob o risco de desaparecer por sua vez numa leitura
antropofágica. (RIAUDEL, 2001: 44-45)
A percepção do enigma que se esconde por detrás da obra de
Ana Cristina Cesar exige um interlocutor revestido de coragem para navegar
em águas tão incertas. Ou poderíamos entender que o ocultado por detrás dos
versos não é para ser caçado de armas em punho nem tampouco explicitado
como uma grande descoberta de segredos impróprios? Carlos Drummond de
Andrade, na série Arte em exposição, denuncia no poema Gioconda (Da
Vinci) o impossível de ser percebido ou decifrado, além daquilo que a arte nos
mostra realmente: O ardiloso sorriso / alonga-se em silêncio / para
contemporâneos e pósteros / ansiosos, em vão, por decifrá-lo. / Não
decifração. / Há o sorriso. (ANDRADE, 1996: 37).
Apropriados da sugestão de Drummond, notamos que o texto
emergido da escritura de Ana Cristina não promete repouso, soluções e
respostas para as incógnitas que o enunciado sugere; pelo contrário, conduz o
leitor a mares bravios, não orientação segura, é necessário se arriscar e
96
mergulhar em seu universo enigmático, não para desvendá-lo, mas para ser
devorado por ele e/ou ainda, num sigilo absoluto, guardar seus segredos a
Sete Chaves:
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande história /
passional, que guardei a sete chaves, e meu coração bate /
incompassado entre gaufrettes. / Conta mais essa história, me /
aconselhas como um marechal-do-ar fazendo alegoria. Estou /
tocada pelo fogo. Mais um roman à clé? [...] (CESAR, 1999a:
40)
Como um convite explícito, vamos tomar chá das cinco e eu te
conto minha grande história, a anfitriã promete confidenciar sua vida que ela
guardou a sete chaves e pede conselhos. Mas a pergunta que encerra o verso
rouba a certeza de tal segredo: [...] Mais um roman à clè?. Será mesmo um
romance onde as personagens podem ser identificadas em suas existências
privadas? Serão mesmo fatos de uma vida real? Ana Cristina entrega ao
interlocutor a responsabilidade das respostas. O leitor, aqui incluso e ilustre
convidado, pode ter as chaves do segredo, mesmo que esteja guardado a sete
chaves, como nos úl timos versos do poema:
[...] Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna. /
Nem te conheço. / Então: / É daqui que eu tiro versos, desta
festa com arbítrio / silencioso e origem que não confesso
como quem apaga / seus pecados de seda, seus três
monumentos pátrios, e passa o / ponto e as luvas. (CESAR,
1999a: 40)
A poeta, fazendo uso de um diálogo óbvio entre autor e leitor,
ironiza a busca de confidências que o seu interlocutor espera encontrar nas
suas poesias: eu nem respondo, não te conheço, como contar sua história
de vida a alguém desconhecido? Mas escl arece ao leitor que é dessa festa que
ela tira seus versos, uma festa poética que entrecruza real e imaginário, ficção
e realidade, ironia e facetas múltiplas de um poeta. O eu-lírico, que aqui se
97
enuncia, usa de tais artifícios literários para mais uma vez colocar o leitor em
uma posição de absoluta insegurança, num incessante jogo lúcido e lúdico.
Assim, a confidência prometida no poema se encerra, passando ao leitor o
ponto e as luvas, como se a conclusão final pertencesse ao seu confidente e a
mais ninguém, como se somente seu interlocutor pudesse tecer e destecer os
pontos que elucidam ou ocultam o segredo final. Michel Riaudel, no citado
ensaio A fábrica da identidade, analisa o lúdico e a ironia presentes nos
versos de Ana Cristina Cesar:
Se o é necessário descartar a dimensão lúdica e irônica
dessas superposições, infiltrar assim seus poemas de
armadilhas, de sentidos ocultos, de alusões de uso privado,
termina por colocar o leitor em posição de semi-ignorância, no
mesmo movimento em que pretende fazer dele um cúmplice.
(RIAUDEL, 2001: 44)
O leitor vislumbra, através desses infinitos jogos, a impossibilidade de acessar
a intimidade dessa que se oferece em Um tea for two total (CESAR,1999a:
55), um jogo do qual o leitor não consegue se desprender. O mesmo jogo
reveste-se de um paradoxismo irônico, pois os leitores de Ana Cristina se
julgam, de fato, íntimos e cúmplices só não sabem bem de quê.
Nessa relação pactual, autor/leitor, as múltiplas vozes dessas
poesias colocam, como Ana assim parece desejar, o interlocutor a teus pés.
Não seria desnecessário observarmos a ambigüidade calcada na descrença de
uma entrega, entre o autor e o interlocutor, que se inicia a partir do título do
livro. A teus pés entoa o som de ateus, ecoa, em sons, a descrença para com
as possíveis verdades ditas na literatura. Os segredos fingidos, murmurados
aos ouvintes, parecem ser segredos inquietantes de indagações sem fim, que
98
não diferem das indagações que a própria autora proferia, na mais tenra
idade, em busca de si própria, como no poema Soneto de 1968:
Pergunto aqui se sou louca / Quem quem sabe dizer /
Pergunto mais, se sou / E ainda mais, se sou eu. / Que uso
o viés pra amar / E finjo fingir que finjo / Adorar o fingimento
/Fingindo que sou fingida / Pergunto aqui meus senhores /
Quem é a loura donzela / Que se chama Ana Cristina / E que
se diz ser alguém / É um fenômeno mor / Ou é um lapso sutil?
(CESAR, 1999b: 38)
Parece-nos que a impossibilidade, que essa tem de se revelar, é
também a mesma impossibilidade que a impede de saber de si, a identidade
ardilosa e secreta, que se oculta por detrás de seus versos. Usa dos mesmos
ardis poéticos, para entregar ao leitor uma fatia do segredo tão inescrutável, do
qual nem ela própria sabe as respostas. Constrói-se, então, uma infinita teia
em espiral, na qual o leitor confidente exerce um papel primordial, e a tessitura
da teia se efetua se o leitor pactuante concorda em passar o ponto e calçar
as luvas.
99
A ESFINGE SEDUZIDA
Ana Cristina Cesar percorreu caminhos arriscados e tortuosos
no intuito de estabelecer, em sua literatura, uma marca que não aquela tão
consolidada pelos seus companheiros marginais. Nessa estrada, que marca a
sua trilha e a diferencia, é de suma importância frisar o questionamento que
sua poética instaura sobre o estatuto do autor, influenciada que foi pelas
leituras de Michel Foucault, especificamente pelo texto O que é um autor?,
como declarou Heloísa Buarque de Hollanda, em depoimento, a Ana Cláudia
Viegas:
[...] Outra coisa. Quando ela estava em Londres, ela me
escrevia muito e me mandava muito texto. [...] Uma coisa que
ela me mandou explicitamente, um texto que ela sentiu como
fundamental pra ela é o O que é um autor?, do Foucault. Ela
me mandou esse texto dizendo que era a coisa mais
importante, que eu tinha que ler, que nada tinha iluminado ela
tanto, quer dizer, era o texto pra ela. [...] (HOLLANDA, apud
VIEGAS,1998: 130-131)
Sob os argumentos de Michel Foucault no texto citado, é que
a nossa escritora lança mão das suas mais controvertidas e arriscadas manhas
de escritas, como ela própria ousa confessar:
Como terei orgulho do ridículo de passar bilhetes pela porta. /
Esta mesma porta hoje fecho com cuidado; altivo. / Como o
repetirei, a teus s, que o profissional esconde no índice
onostico os ladrões de quem roubei versos de amor com
que te cerco. / Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e
flagrar a ladroagem. (CESAR, 1999b: 173
)
É possível, dessa forma, evidenciar a apropriação propositada
que a poesia de Ana Cristina executa, apropriação que ela mesma nomeia
100
como ladroagem e os que são roubados por ela não passam de outros
ladrões. As apropriações realizadas em uma estilização particular dificultam a
percepção, a distinção daquilo que foi roubado de outros versos. Nas palavras
de Michel Schneider, Um estilo não se plagia. Primeiro porque se vê.
Podemos roubar as palavras de um autor ou tomar-lhe as idéias, não podemos
furtar seu estilo, seu jeito de fundir idéias e palavras numa mesma matéria de
pensamento. No estilo, o pensamento é inseparável das palavras. [...]
(SCHNEIDER, 1990: 433). Analisando as considerações de Michel Schneider e
o modelo estilizante em que se dá o roubo literário de Ana Cristina percebemos
que é mantido, em sua escritura, aquilo que poderíamos chamar de um estilo
próprio de roubar. Sob uma outra perspectiva, ainda verificando, na literatura
de Ana Cristina, os efeitos de uma cleptomania sintomática, é pertinente
indagar, desse modo, o papel do autor, a instituição autoral e as fronteiras do
texto literário onde o sujeito que realiza a escrita acaba, por assim dizer,
dissolvendo-se junto com o ato que dele se depreendeu. Evidencia-se, desta
maneira, a lição de Foucault que a poeta não esqueceu:
Primeiro, pode-se dizer que a escrita de hoje se libertou do
tema da expressão: se refere a si própria, mas não se deixa
pom aprisionar na forma da interioridade; identifica-se com a
sua própria exterioridade manifesta. O que quer dizer que a
escrita é um jogo ordenado de signos que se deve menos ao
seu conteúdo significativo do que a própria natureza do
significante; mas também que esta regularidade da escrita está
sempre a ser experimentada nos seus limites, estando ao
mesmo tempo sempre em vias de ser transgredida e invertida;
a escrita desdobra-se como um jogo que vai infalivelmente para
além das suas regras, desse modo se extravasando. Na
escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto
de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é
uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito de
escrita está sempre a desaparecer. (FOUCAULT, 2000: 35)
101
De posse de tais evidências, deparamos com outro recurso tão
patente na literatura de Ana Cristina Cesar. Os rastros de sua escrita são
pegadas que estão, decididamente, vinculadas às pegadas dei xadas por outros
poetas, outros autores, como uma clara maneira de travar um diálogo com
aqueles que, de alguma forma, influenciaram sua criação literária e de outra
maneira, por assim dizer, onde ela termina por conceber um segundo tipo de
memória, dando outra conotação ao sentido do autobiográfico. A intenção
autobiográfica se torna, pois, a memória do lido. Nesse aspecto, a autora
lança mão de suas leituras como forte indício de traçar outro tom de colóquio
com o leitor e com os autores que foram lidos por ela. Para esse tipo de
construção, a poeta utiliza-se do que poderíamos chamar de um formato
particular de intertextualidade que introduzida
[...] a um novo modo de leitura faz estalar a linearidade do
texto. Cada referência intertextual é o lugar duma alternativa:
ou prosseguir a leitura, vendo apenas no texto um fragmento
como qualquer outro, que faz parte integrante da sintagmática
do texto ou então voltar ao texto-origem, procedendo a uma
espécie de anamnese intelectual em que a referência
intertextual aparece como um elemento paradigmático
deslocado e originário de uma sintagmática esquecida. Na
realidade, a alternativa apenas se apresenta aos olhos do
analista. É em simultâneo que estes dois processos operam na
leitura e na palavra intertextual, semeando o texto de
bifurcações que lhe abrem, aos poucos, o espaço semântico.
(JENNY, 1979: 21)
Esse tipo de apropriação nem sempre é denunciado pela escrita
de Ana Cristina Cesar. Em um mero incontável de vezes, ela se insere no
texto, camufladamente, apagando, assim, as pistas do texto de origem. Em
outros momentos, o texto-origem é exibido com total despudor, dando mostras
da intenção evidente de dialogar com a tradição literária e deixar à mostra sua
história de leitura, como é o caso de: pedra lume / pedra lume / pedra / esta
102
pedra no meio do caminho
26
/ ele já não disse tudo, / então? (CESAR, 1999b:
194). Nesse expediente intertextual, o poema de Carlos Drummond de Andrade
foi recortado, retirando dele somente o substantivo pedra; o no meio do
caminho tinha uma pedra ficou sendo esta pedra no meio do caminho, mas o
sentido da pedra estabelecido anteriormente pelo autor, ainda que subvertido
nos versos de Ana C. permanece inalterado. Apesar de demasiadamente
conhecido, faz-se necessário, aqui, recordar os versos de No meio do
caminho:
No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no
meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha
uma pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na
vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei
que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra
no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.
(ANDRADE, 2004: 196)
Quaisquer que sejam as leituras adquiridas pela pedra, nomeada nos versos
do poeta Drummond, depararemos, sempre, com duas possibilidades de
análises mais óbvias e pertinentes: a pedra poderia ser um obstáculo nas
trilhas da existência, pequenos estorvos obstruindo o caminho da vida ou,
ainda, lendo o poema metalingüisticamente, a pedra funcionaria como um
entrave no exercício da composição poética. Para Ana C. o obstáculo
permanece, mas a pedra que obstrui e, ao mesmo tempo, ilumina o caminho
de Ana é o poeta Carlos Drummond. Obstrui porque ele disse tudo que ela
gostaria dizer, disse o repetido por ela, aparece como pedra e perda nas suas
possibilidades de dizer um verso novo, o obstáculo é perda e pedra. A mesma
pedra barreira, empecilho, sob um outro ponto de vista, é iluminadora, torna-se
lume e alumia a possibilidade do verso. Ainda que não seja de todo novo, a
25 - Grifo meu.
103
pedra lume guia o verso ressurgido, ressignificado através do já dito, porque,
na verdade, a pergunta final, [...] ele não disse tudo, / então?, instaura, ao
final do poema, a ambigüidade para as novas possibilidades do dizer. Apesar
do dito, pode-se ainda dizer através dele, do poema de Drummond, aquilo
que, mesmo copiado, carregue as marcas de algo semelhante ao novo. Na
percepção de Wilberth Salgueiro é possível dizer que Ana Cristina
[...] realiza uma desleitura pela demonização, isto é, o poema-
ascendente representa uma potência que o transcende. Em
outras palavras, a pedra referida é obstáculo, sim, mas
simultaneamente é lume fogo, luz, brilho que propicia a
criação. O impasse que a pedra drummondiana legou aos
poetas posteriores está menos no poema em si do que no
poeta. O enfrentamento de ser-poeta-forte-Drummond é
exatamente a motivação que faz o poema de Ana Cristina
perguntar ele não disse tudo, / então?, ainda que com sutil
e costumeira ambigüidade no tom interrogativo de então? [...].
(SALGUEIRO, 2002: 189)
Desse modo, no poema pedra lume, fica evidente o diálogo de Ana Cristina
Cesar com a poesia de Carlos Drummond de Andrade, não somente no sent ido
da apropriação, mas também no sentido de subverter a intenção primeira do
autor. Digladiando-se nas imposições da influência, a poeta ousa tocar na
pedra da tradição. Wilberth Salgueiro assinala: Ao invés do silêncio, o poeta
que se quer forte questiona e toca na pedra da tradição, moldando-a seu gosto
(SALGUEIRO, 2002: 189). E os versos de Ana C. continuam, em outros
momentos de sua crião poética, reiterando o discurso drummondiano,
estabelecendo com esse o mesmo esquema de colóquio poético, sobrepondo o
influenciador ao influenciado: onde cruzo com a modernidade, e meu
pensamento passa / co mo um raio, a pedra no caminho
27
é o time que você tira
de / campo (CESAR, 1999b: 154). Como confirmação de tais expedientes, o
26 - Grifo meu.
104
livro A teus pés traz um índice onomástico, patenteando, novamente, o seu
propósito de apropriação. Em primeira análise, é desnecessário dizer que o
jogo intertextual fica evidente, mas a intertextualidade, nesse caso, adquire
também um tom de indução, para que o leitor siga os rastros deixados pelo
autor, como se as leituras, realizadas pela poeta, fossem uma outra estrada,
para se entrar em contato com a vida vivida por ela. Uma vida de livros,
traduções, crítica literária e poesia. De algum modo, Ana Cristina Cesar
antecipa, na sua literatura, um perfil de poeta que viria a se constituir após a
geração marginal: culto, sofisticado, virtuoso agora sou profissional
(CESAR, 1999a: 38).
Esclarecendo o processo de apropriação, a autora explica os
cruzamentos que sua escrita poética e a de tantos outros poetas realizam com
este ou aquele escritor, em entrevista concedida em 1983, no curso Literatura
de Mulheres no Brasil:
[...] Agora, é importante ser iniciado porque os textos mais
densos da literatura, os que nos satisfazem mais se referem
muito a outros textos. Cada texto poético está entremeado com
outros textos poéticos. Ele não está sozinho. É uma rede sem
fim. É o que a gente chama de intertextualidade. Então, um
remete ao outro... Aqui mesmo tem um índice onostico que
algumas pistas de autores com os quais eu cruzo, que até,
às vezes, eu copio, cito descaradamente. Então a poesia está
sempre fazendo isso. Nesse índice, eu fiz uma espécie de
homenagem. Inclusive, não tem autores, tem amigos
também. Porque, às vezes, você... Olha, todo autor de literatura
faz isso, que uns dizem e outros não dizem. Todo autor, de
repente, está muito atento ao que se lê, ao que ele ouve, e
incorpora isso no texto. (CESAR, 1999d: 267)
Ana Cristina era uma leitora e pesquisadora contumaz, sua
história de leitura passa por grandes teóricos, filósofos e poetas da literatura
universal. O seu olhar analítico e perscrutador estava sempre em consonância
105
com os nomes que inovavam, ou reinventavam o pensamento crítico e o labor
poético, tais como Charles Baudelaire, Ezra Pound, Thomas Stern Eliot, Walt
Whitman, Octavio Paz, Jorge Luis Borges, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa,
Carlos Drummond de Andrade, Roland Barthes, Michel Foucault, entre outros.
E é dessa convivência literária que nossa escritora parece querer edificar uma
nova faceta, para expor suas vivências, não no sentido restrito da vida íntima,
mas num sentido mais amplo, que torna o indivíduo particular em um sujeito,
que se constrói a partir daquilo que foi lido, tanto o indivíduo quanto o poeta se
diluem nesse mar de letras, evidenciando que a construção de um eu-lírico
individual e puramente autobiográfico não é de todo possível. Em virtude disso,
o lirismo pós-moderno parece querer cultuar, também, um outro tipo de
memória, aquela que reverencia, em algum momento e de alguma forma, a
experiência intelectual do poeta pós-lírico. Eliot e Pound tiveram forte influência
na poesia brasileira pós-anos 50, no sentido de reconstituir um outro aspecto
de memória lírica, conforme Paulo Henriques Britto:
No contexto da poesia de língua inglesa, duas figuras
importantes para o desmonte do projeto lírico romântico foram
Eliot e Pound. Um dos traços comuns a The waste land e The
cantos é a substituição da experiência em primeira o da
personalidade lírica pelas leituras feitas pelo autor. [...] Eliot e
Pound vão colocar, em lugar da memória do vivido, a meria
do lido. (BRITTO, 2000: 126)
Segundo Britto, a contemporaneidade tende a cultuar um outro
tipo de projeto autobiográfico, o que seria uma outra maneira de deixar à
mostra a vida do poeta que, no caso, não seria sua vida com dores, alegrias,
amores e tristezas, mas, sim, sua vida intelectual, um discurso que valoriza os
artefatos culturais:
106
Se insisto nos casos de Eliot e Pound é porque estes dois
poetas principalmente os dois poemas mencionados, The
waste land e The cantos vieram a ter um impacto importante
sobre a poesia brasileira a partir dos anos 50, graças ao
exemplo e à militância dos concretistas. Bem mais importante
que a influência da poesia concreta propriamente dita tem sido,
creio eu, o impacto da visão de poesia defendida pelos poetas
concretos: poesia como um discurso sobre a literatura ou, de
modo mais geral, um discurso sobre artefatos culturais como
literatura, sica, cinema, etc. e o uma recriação da
experiência existencial; uma evocação de textos lidos e não de
experiências vividas. (BRITTO, 2000: 128-129)
Da mesma forma, para Borges
28
as lembranças mais vívidas não são de
coisas que lhe aconteceram, mas de textos que leu. (BORGES, apud VIEGAS,
1998: 81). Para Ana Cláudia Viegas, no conjunto da obra de Ana Cristina, [...]
delineia-se a memória como uma espécie de antologia [...]. (VIEGAS, 1998:
81). Ana Cláudia Viegas prossegue, assim, analisando o cruzamento com a
tradição literária que a escritura de Ana Cristina Cesar efetua:
O cruzamento com a tradição literária processo característico
de sua poesia também é uma constante em seus artigos. Se
sua atividade de poeta resulta, sobretudo, da leitora ávida que
sempre foi, o mesmo se com sua produção crítica e teórica.
A intervenção em outros textos se faz tanto pela citação como
por apropriação, ou seja, o outro texto insere-se no seu de tal
forma que não mais a distinção feita pelas aspas. Ana
Cristina utiliza-se ainda do processo inverso, introduzindo a sua
fala no texto entre aspas. (VIEGAS, 1998: 80)
Percebe-se que Ana C. trilhou a estrada dos poetas pós-
concretistas. Em algumas de seus poemas, torna-se claro o desmonte do
projeto lírico de uma literatura outrora configurada pelo intimismo absoluto. É
esse grupo de poetas que Paul o Henriques Britto nomeia como pós-líricos:
Para o poeta lírico, a meria individual é a principal matéria-
prima poética; para o poeta pós-lírico e são s-líricos os
poetas que mais sofreram o impacto dos concretos o as
suas leituras que constituem o material básico a ser elaborado
pela poesia. (BRITTO, 2000: 129)
28
BORGES, Jorge Luis. Borges e eu. In: _________ El hacedor. Buenos Aires: Emecé, 1960,
p. 13.
107
Diante da afirmação de Paulo Henriques Britto, percebe-se que a poesia de
Ana C. absorve muito do chamado projeto pós-lírico, entendendo que as
circunstâncias de tais atitudes na literatura pós-moderna e, em particular, na de
Ana Cristina Cesar, expressam, com vigor, a inexistência de um sujeito
autônomo e inteiro no contexto contemporâneo. Portanto não se pode deixar
de constatar que as observações de Britto, para com a idéia do projeto pós-
lírico, desvalorizam a criação literária que está desvencilhada do lirismo
apregoado através do eu e das experiências representadas, na poesia, como
um sentimento universal. Criticando as produções pós-líricas, Paulo Henriques
Britto salienta:
A utilização da memória individual no lirismo e no s-lirismo
acarreta uma diferença importante entre a fruição desses dois
tipos de poesia. À parte os prazeres fundamentais da poesia o
deleite com a repetição, com o ritmo, com os ecos sonoros, que
constitui a distinção sica entre verso e prosa , a poesia lírica
proporciona ao leitor o prazer de identificar-se com o poeta
enquanto ser humano que viveu as mesmas experiências
sicas, e ao mesmo tempo diferenciar-se dele pelas
circunstâncias pessoais. [...] (BRITTO, 2000: 129)
Seguindo a linha de raciocínio investigada por Paulo Henriques, percebemos a
semelhança com aquela concepção emitida por Cacaso, sobre alguns poemas
de Ana Cristina Cesar em que, segundo ele, o leitor estaria excluído
29
. A
escritura poética voltada para a tematização do eu, para as experiências de
vivências cotidianas, seria a acessível para o cabedal de conhecimento de
qualquer leitor, e essas poderiam ser chamadas de poesias legíveis. Por um
outro lado, tanto na percepção de Cacaso quanto na de Britto mesmo sendo
essas percepções externadas em momentos e situações diferentes os
29
Cf. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de
Janeiro: Funarte, 1981, p. 229.
108
modelos poéticos que privilegiam a experiência intelectual, a referência crítica,
intertextual e cultural, acabam exterminando o gozo e o acesso do leitor. Como
se parafraseasse o pensamento de Cacaso, Paulo Henriques Britto afirma o
seguinte:
[...] Na medida em que privilegia a memória lida em detrimento
da vivida, em que se apresenta essencialmente como crítica e
reescritura das obras dos antecessores que o poeta elege para
seu paideuma pessoal, a poesia deixa de ser potencialmente de
interesse para qualquer ser humano e passa a ser, tal como a
crítica literária, um discurso dirigido apenas a escritores e
estudiosos da literatura. Isso implica um estreitamento de
âmbito, um afastamento da temática mais ampla o que
denominei acima de condição humana de interesse
potencialmente universal. (BRITTO, 2000: 130)
Sem retomar novamente essa querela, do fácil e do difícil, do
que se e do que não se lê, é importante entender que mesmo os versos
inseridos na irmandade dos pós-líricos, voltados para essa natureza antológica
do lido, ainda assim, esses escritos de Ana Cristina estão voltados para o
outro, um outro duplicado, um outro que é o lido e o ledor. Um leitor
interessado, sem necessariamente ser estudioso da literatura, estará ciente
das amarras e vicissitudes incorporadas ao texto poético e, provavelmente,
encontrará prazer em destecer as redes que são transpostas de um texto ao
outro, encontrará o prazer inteligente de percorrer o caminho das leituras
enumeradas no poema lido. Talvez seja isso que Ana Cristina chamou de ser
iniciado, essa possibilidade infinita de encontrar o prazer [...] nesse novo modo
de leitura que faz estalar a linearidade do texto [...] (JENNY, 1979: 21). E,
finalizando a discussão, pode-se recuperar a apropriação, de Silviano
109
Santiago
30
, do poema Explicação de Carlos Drummond de Andrade, quando
desejamos esclarecer uma certa dificuldade que temos, para acessar e
entender determinados textos poéticos: Se meu verso não deu certo, foi seu
ouvido que entortou (ANDRADE, 2005: 113-114). Todavia, a concepção
poética que norteia a literatura denominada, por Paulo Henriques Britto, como
pós-lírica, aparece impregnando alguns versos de Ana C., não somente pelo
referencial crítico-teórico, pelo excesso de intertextos ou pela acumulação da
memória do lido e sim, pelo desconfiado olhar dos poemas da autora diante da
constituição do sujeito pós-moderno. O próprio Britto evidencia esse traço na
literatura dos pós-líricos: [...] ela tende a afastar-se das questões de formação
do eu que eram de importância cabal no lirismo, no que ela é coerente com a
desconfiança em relação à autonomia do sujeito que é uma das marcas do
nosso tempo. [...] (BRITTO, 2000: 129).
Como exemplo, vejamos um poema de 1969, em que a jovem
Ana Cristina, então com dezessete anos, demonstrava a sua lógica
circundante diante do eu que se instaurava nos poemas. Numa clara
referência a Fernando Pessoa, enfatizando a fragmentação do sujeito e o
estranhamento deste diante de si, a poesia de Ana Cristina Cesar nos revela
em Poema Óbvio:
o sou idêntica a mim mesmo / sou e não sou ao mesmo
tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto de vista / Não
sou divina, não tenho causa / Não tenho razão de ser nem
finalidade própria: / Sou a própria lógica circundante. (CESAR,
1999b: 59)
30
Cf. SANTIAGO, Silviano. Singular e anônimo. In: _______ Nas malhas da letra: ensaios. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 53-61.
110
Também Ana C., como Fernando Pessoa, intrigava-se nos
mistérios da busca de um sujeito particular que eles desconheciam. O enigma
de sua escritura é, também, o enigma de um ser aflito na busca incessante de
um eu que ela também desconhecia. Talvez por isso fosse tão difícil entregar
em seus versos a sua personalidade real, já que a própria não tinha posse
dela. Enveredar por outros discursos, seduzir-se por versos alheios, concede a
nossa esfinge o prazer de se ocultar atrás de outras máscaras, ou, ainda,
corrobora seus artífices mais estetizantes, o que seria fazer com o seu leitor, o
mesmo que outros escritores, outrora, fizeram com ela: seduzir.
111
CATULO III
DIÁRIOS LITERÁRIOS:
SEREIA DE PAPEL
112
OS DIÁRIOS: CANTO DE SEREIA
A literatura de Ana Cristina Cesar apresenta um caráter ímpar,
não tão-somente pelo que ela reúne de beleza, estilo e qualidade lírica
mesmo sendo, em alguns poemas, pós-lírica mas pelo excessivo cuidado
com que sua escritura se coloca entre a ficção/confissão e pelas multifaces de
gêneros que a sua obra literária reúne: poemas, narrativas ficcionais, crítica e
teoria literária, tradução, cartas, (falsos) diários. Tal multiplicidade direciona-se,
de uma forma ou de outra, para os subgêneros da narrativa confessional:
diário, memória, carta, depoimento, autobiografia. Nos livros Inéditos e
dispersos, Cenas de Abril e Luvas de pelica algumas páginas dedicadas,
exclusivamente, a uma poesia que encerra o formato dos diários tão
conhecidos da adolescência e/ou da maturidade. Não seria irrelevante observar
que esse formato conduz a leitura para um crivo por demais autobiográfico: as
datas dispostas no icio do texto, a marcação do texto em um tempo
específico, a inserção óbvia do eu que constrói, vive e escreve aquele
cotidiano. Tais referentes dão a esse tipo de escrita um valor de veracidade
irrefutável e parece-nos, sempre, que a autora dos diários não tem outro
propósito que não seja desvelar sua intimidade, mesmo que sejam as
inconfessáveis, como no poema Arpejos:
Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho
examinei o local. Não surpreendi indícios de mostia. Meus
olhos leigos na certa o percebem que um rouge a mais tem
significado a mais. Passei pomada branca a que a pele
(rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam
igualmente meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador.
113
O selim poderia reavivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à
leitura. (CESAR, 1999a: 96)
Observando o poema, detecta-se a revelação íntima de uma
mulher. Tal tarefa soa como atitude cotidiana, a sondagem que a mul her realiza
em suas partes íntimas, mas o papel de mulher e as práticas do indivíduo em
seu dia-a-dia, passear de bicicleta até o Arpoador, dão lugar à atividade da
leitora; portanto, entre todos os riscos que o exercício cotidiano poderia lhe
trazer, opta por se dedicar à leitura. A função das memórias de diário parece
aqui muito óbvia, mas o seu sentido único, enquanto registro da vida que
passa, desaparece, quando sabemos da preocupação insistente que Ana C.
demonstra, aqui e em outras instâncias de sua literatura, com o seu possível
interlocutor, tal qual observa Armando Freitas Filho no prefácio de A teus pés :
A prioridade volta a ser pelo semântico, e se conteúdo e forma
o mesmo indissociáveis, aquele é que determina esta. O
resultado que daí advém é o texto quase sempre na primeira
pessoa, confessional, que está próximo do formato do querido
diário adolescente, que dialoga com um interlocutor mutante,
misto de pessoa e personagem. (FREITAS FILHO, 1999: 05)
Em tais expedientes, a literatura de Ana Cristina, de um modo
muito óbvio, apresenta a inclusão do leitor. O aspecto de sua escrita desloca-
se do universo da memória confessa no papel e se direciona explicitamente
para o outro, um outro abstrato, mas que simboliza uma possibilidade de não
se estar direcionada, exclusivamente, para a função de suprir uma falta de
interlocutor que esse tipo de escritura normalmente caracteriza. O objetivo
primeiro desaparece e um segundo ganha relevância e se torna, em sua
literatura, primordial: a intenção de aliciar esse outro abstrato, misto de pessoa
e personagem, que é convocado para o papel de espectador. Tais traços são
confirmados no poema Simulacro de uma solidão, onde a poeta compõe uma
114
série de estrofes datadas, com óbvias marcas de um diário, mas as datas não
obedecem a uma cronologia precisa, nem nos dias, nem nos meses,
desestabilizando as convenções das intimidades evocadas nos diários,
colocando, em xeque, a veracidade do que é escrito neles:
30 de agosto
Hoje roí cinco unhas ao sabugo e encontrei no cinema, de
chinelos de couro, um menino claro às gargalhadas. Usei a
toalha alheia e fui ao ginecologista. (CESAR, 1999b: 93)
9 de setembro
Tornei a aparar os cachos. Lúcifer insiste em se dar mal
comigo; não sei mais como manter a boa aparência. Minha
amiguinha me devolveu a luva. recebi o montante. (CESAR,
1999b: 93)
O tempo do vivido que, normalmente, apresenta-se em uma
seqüência, nas escritas de diário, pelas informações que nele se coleta, aqui
parece incoerente com a ordem factual da vida de quem os escreveu. A ordem
seqüencial das datas é subvertida tanto quanto a enunciação do vivido,
apresentando um foco de multifaces, em takes. Como se muitas pessoas
vivessem em uma única e quisessem, ao mesmo tempo, contar suas histórias
díspares:
28 de agosto
Dia de festa e temporal. Aniversário da Tatiana. Abrimos os
armários de par em par. Não sei por que mas sempre que se
comemora alguma coisa titio fica o apoplético. Acho que
secretamente ele quer que eu... (Não devia estar escrevendo
isso aqui. Podem apanhar o caderno e descobrir tudo.)
(CESAR, 1999b: 93)
5 de agosto
Ainda não consegui fazer filosofia, versos, ou colocar retratos
aqui. (CESAR, 1999b: 93)
Para esses tipos de enunciações tão comuns na literatura de
Ana Cristina Cesar é que Flora Süssekind define:
[...] Como voz, e o propriamente como personagem, auto-
retrato, emblema geracional ou figura com scaras ou
contornos fixos, é que se define o sujeito nos textos de Ana
115
Cristina Cesar. E como colagem de falas, sucessão de tons,
ritmos, conversas, que se singulariza sua forma de composição
poética. [...] (SÜSSEKIND, 1995: 12-13)
Essa voz, mesmo sendo particular, mesmo apresentando um
sujeito em primeira pessoa, multiplica em ecos polifônicos o discurso por ela
proferido, ainda que sugira uma extrema particularidade. Como esclarece Flora
Süssekind:
[...] O que, em parte, sobretudo porque expressa geralmente
em primeira pessoa, se conduz a uma sensação de marcada
intimidade (daí, talvez, a sedução voyeurística com que certos
leitores se apropriam de seus escritos como exemplares de
uma zona de indistinção entre lírica e biografia), por outro lado,
revela um constante exercício de aproximação a uma das
vertentes mais marcadas da poesia moderna: o monólogo
dratico, a de textos que se apóiam simultaneamente numa
forma teatralizada de composição e num efeito lírico.
(SÜSSEKIND, 1995: 13)
Süssekind prossegue:
A escrita como conversação, como fala: este um dos traços
característicos da escrita de Ana Cristina Cesar, cujo eco,
insistente, se repete, com variações, de um livro a outro. Às
vezes o texto até começa como relato, mas, de repente,
surgem aspas, interrogações, sugestões de interlocução.
(SÜSSEKIND, 1995: 13)
O tom corriqueiro da conversação e de evidentes exposições do
cotidiano estão revestidos de um caráter teatral que denuncia o sentido
ambíguo que salta das páginas do diário. Uma personagem maquiada fita os
olhos do leitor e encena para ele as páginas da vida:
30 de janeiro
Que nostalgia no ar, meu Deus!
Hoje fui à casa de Ana levar um presentinho. Às vezes tenho a
impressão de que esses presentinhos constantes o um
embaraço. Eu se fosse dona da casa não permitiria certas
coisas. Me dá um ennui, eu fico enjoada de ver tanta
ignorância. Como as pessoas se ignoram! Depois de todos
esses meses Sérgio resolveu dar o ar de sua graça. (CESAR,
1999b: 93)
116
8 de julho
s estamos em plena decadência. Eu e vo estamos em
plena decadência. Quando duas pessoas chegam a se dizer
isso tranqüilamente, é sinal de terra à vista. Nem tudo é um
naufrágio na vida. Mas um dia eu ainda me afogo no álcool.
(CESAR, 1999b: 93-94)
Nesses casos, a poética de Ana Cristina dialoga diretamente
com quem lê, e os diários não são instrumentos de propósitos secretos e
desabafos de quem escr eve, porque não dispõe de quem a escute, mes mo que
isso pareça estar explícito como em: Acho que secretamente ele quer que
eu... (Não devia estar escrevendo isso aqui. Podem apanhar o caderno e
descobrir tudo.), mas são escritos para serem lidos, desvendados. E o leitor,
supostamente, intruso, quando se apossa de pensamentos tão particulares,
apodera-se dos textos como quem se apropria dos segredos da autora. Na
verdade, o confessado, nessas linhas, adquire o sentido pretendido a partir
do momento em que se submete ao crivo de seu interlocutor real que, no caso,
não é o diário enquanto objeto funcional de extravasamento de segredos e
confissões que não se revelam a ninguém, mas sim o diário, enquanto
oportunidade de revelação, uma revelação arquitetada, medida, encenada,
maquinada dentro de um contexto, exclusivamente, literário. O que se revela,
então, não são as intimidades de nossa escrevente, mas suas habilidades de
fingir o vivido, suas artimanhas de dizer em forma de verdade aquilo que é
puramente falso. Seus diários não são escritos para ocultar segredos. São
escritos, propositalmente, para revelá-los.
117
SERIA MARGINAL A SEREIA?
As inúmeras transformações ocorridas no panorama cultural, no
universo social e na constituição dos novos conceitos da literatura pós 70,
desencadearam uma série de desmontes dentro do âmbito literário e artístico
em geral. Estas mudanças ocorridas, dentro de tais estruturas artísticas,
revelaram pensamentos e atitudes que entraram em choque com a arte
canonizada e com as velhas vanguardas. No bojo desses desmontes, fica
evidente a proposta de conceder à literatura, em particular à poesia, um novo
caráter, despojá-la de seu ranço acadêmico, destituí-la do espaço de torre de
marfim e apagar seu halo, até então, visível somente para os iniciados, o que
Heloísa Buarque de Hollanda (1998) chamou de desierarquização do espaço
nobre da poesia. Particularmente, refiro-me ao movimento marginal da
geração 70/80 que, em alguns pontos do país, mais fortemente no Rio de
Janeiro, deu outro tom ao universo literário de então, como se pode notar na
afirmação de Heloísa Buarque de Hollanda:
[...] há uma poesia que desce agora da torre do prestígio
literário e aparece com uma atuação que, restabelecendo o
elo entre poesia e vida, restabelece o nexo entre poesia e
público. Dentro da precariedade de seu alcance, esta poesia
chega na rua, opondo-se à política cultural que sempre
dificultou o acesso do público ao livro de literatura e ao
sistema editorial que barra a veiculação de manifestações não
legitimadas pela crítica oficial. (HOLLANDA, 1998: 10)
Não se trata aqui unicamente de indagar sobre os esquemas da
distribuição desse material poético e ou da sua forma de edição, que a
118
alcunha marginal vale-se, também, do fato de que esses poetas renegavam
as formas dos circuitos editoriais oficiais (PEREIRA, 1981: 22), mas indagar
sobre o sujeito poético e sobre os artífices dessa literatura que se
desentranhou do movimento. Indagar sobre a poesia que, inspirada no
cotidiano, nos transcursos banais do dia-a-dia, constitui um discurso onde o
sujeito vai se interpondo entre as coisas ditas, entre os movimentos da cidade,
entre piadas e aparente hedonismo. Nesse caso, especificamente, relaciona-se
ao citado movimento a literatura de Ana Cristina Cesar e o papel que a mesma
assume dentro desse. Não se pretende, aqui, analisar o fenômeno da
Literatura Marginal ou as esferas culturais, políticas e sociais nas quais o
movimento circunscreveu-se, mas tenciona-se enfatizar como algumas
particularidades dessa poesia marginal sobressaem na voz do sujeito poético,
configurado na poesia de Ana Cristina Cesar. A poesia, enquanto matéria do
vivido, aparece aqui evidenciada como uma proposta do grupo que
encabeçava o movimento de 1970 e é desta festa que Ana Cristina tira
versos (CESAR, 1999a: 40), confirmando os artifícios do coloquial e do
confessional que sua escrita, normalmente, sugere. Em sua introdução para a
antologia 26 Poetas Hoje, espécie de pedra angular dos poetas dessa geração,
Heloísa Buarque de Hollanda analisa a coloquialidade evidente na poesia de
70:
Se em 22 o coloquial foi radicalizado na forma do poema-piada
de efeito satírico, hoje se mostra irônico, ambíguo e com
sentido crítico alegórico mais circunstancial e independente de
comprometimentos com um programa preestabelecido. O flash
cotidiano e o corriqueiro muitas vezes irrompem no poema
quase em estado bruto e parecem predominar sobre a
elaboração literária da maria vivenciada. O sentido da
mescla trazida pela assimilação lírica da experiência direta ou
119
da transcrição de sentimentos comuns freentemente traduz
um dramático sentimento de mundo. (HOLLANDA, 1998: 11).
Em outro momento deste trabalho, já se destacou que alguns
aspectos da poesia marginal são absorvidos pela literatura de Ana Cristina
Cesar, principalmente, a fusão literatura/vida. Essa fusão em Ana C. é bem
diferente: é, também, máscara, jogo, intertexto, logro, ironia, etc. A
literatura/vida torna-se, portanto, o binômio da confecção literária marginal, são
as ximas daqueles versos estampados em [...] livrinhos que são passados
de mão em mão, vendidos em portas de cinemas, museus e teatros. [...]
(HOLLANDA, 1980: 97). Ana Cristina também é, normalmente, relacionada aos
principais poetas dessa época, uma maneira, talvez, de situá-la em um tempo
específico ou de, imediatamente, caracterizá-la como marginal. Mas, para
Heloísa Buarque de Hollanda, Ana Cristina não era uma poeta marginal
convicta. Fazia uma clara diferença do grupo, apesar de, de maneira
paradoxal, com ele identificar-se profundamente. Era, digamos, uma poeta
marginal especial (HOLLANDA, 1999: 299), o que mais parece ser uma
marginal-marginal. Assim sendo, é importante enfatizar que os versos de Ana
Cristina Cesar, principalmente os que constam de Inéditos e dispersos e os
mesmos que foram publicados na antologia 26 poetas hoje, constituem um
grupo de poemas que assumem uma voz excessivamente confidencial, em
formato de diário, com relatos do cotidiano e aspectos que representam
premissas fundamentais da poesia lida, à maneira marginal. um outro grupo
de poemas, publicados também em Inéditos e dispersos e A teus pés, em que
a linguagem é a força maior do objeto literário. A poesia, nesse caso, se
transforma num jogo estetizante e de enormes preocupações estilísticas,
120
porém sem abandonar a subjetividade excessiva. Para Carlos Alberto
Messeder Pereira, [...] uma mudança sensível de tom de um conjunto de
textos para o outro. [...] (PEREIRA, 1981: 228). Em entrevista concedida a
Carlos Alberto Messeder para o trabalho Retrato de Época Poesia Marginal:
Anos 70, Ana Cristina evidencia a diferença desse conjunto de poesias que lhe
foi salientada por Cacaso
31
:
Me lembro de uma frase típica do Cacaso (...) (ele) era o bom
leitor, o classificador e, uma vez, eu li (pra ele) um poema meu
que eu tinha adorado fazer (...) e o Cacaso olhou com olho
comprido (...) leu esse poema e disse assim: É muito bonito,
mas não se entende (...) o leitor está excluído. (...) Aí eu
mostrei também o meu livro pro Cacaso e (ele) imediatamente...
quer dizer, aqueles diários da antologia eram dois textos de um
livro de cinenta poemas... (e ele disse): Legal, mas o melhor
o os drios, porque se entende... são de comunicação cil,
falam do cotidiano. (CESAR, apud PEREIRA, 1981: 229)
Não se pretende analisar a seleção de versos que Cacaso
designou como texto que exclui ou inclui o leitor, texto de comunicação fácil ou
vozes do cotidiano, mas sim notar como tais circunstâncias poéticas tornaram-
se fundamental para os versos de Ana C. Essa fala do cotidiano acaba por
adquirir uma densidade maior e mais profunda na poesia que ela compõe.
Travestida de um falso hedonismo, de flashes banais do dia-a-dia, sua
produção literária se alicerça no mesmo discurso que a geração marginal
proferia, optando assim, muitas vezes, pelo tom do colóquio, pela matéria do
vivido, pela subversão dos padrões literários. Usando dessas proposições é
que ela concebe a grande particularidade de sua poesia, não tão-somente por
lançar mão desse material marginal, mas, exatamente, por usá-lo em uma
outra perspectiva, pois através dele é que ela se coloca enquanto poeta, é
31
Como é possível observar, a classificação de Cacaso, para os tipos diferentes de textos
produzidos na literatura de Ana Cristina Cesar, está diretamente ligada ao modelo de poeta
denominado, por Paulo Henriques Britto, como pós-lírico.
121
através dele que sua voz mais inquietante se torna audível e, nesse sentido, é
impossível não detectar o desvio que sua escrita opera em relação à geração
mimeógrafo. Para Armando Freitas Filho, [...] Ana Cristina procura variações
e incrementos inesperados fugindo da paralisia e da auto-complacência da
moda, do que iria ficar datado, evitando, por exemplo, o poema-piada-minuto,
mal ressuscitado e obrigatório [...]. (FREITAS FILHO, 1999: 06). Partindo do
discurso tipicamente marginal, ela expõe sua elaboração poética em
indagações do indivíduo que nada têm de banal. Os reveses hilários do
cotidiano se tornam um mergulho profundo no ser não ser, razões mais
profundas que ela investiga como maneira de encontrar as respostas para o
existir. A voz que emerge desses discursos é uma voz exigente, polissêmica,
que submerge sem cessar nos recônditos da palavra e tenta extrair daí novas
lógicas, novos reflexos para a maquiagem constante do poeta. Como tão bem
se pode perceber em Fagulha:
Abri curiosa / o céu. / Assim, afastando de leve as cortinas. / Eu
queria rir, chorar, / ou pelo menos sorrir / com a mesma leveza
com que / os ares me beijavam. / Eu queria entrar, / coração
ante coração, / inteiriça, / ou pelo menos mover-me um pouco, /
com aquela parcimônia que caracterizava / as agitações me
chamando. / Eu queria a mesmo / saber ver, / e num
movimento redondo / como as ondas / que circundavam,
invisíveis, / abraçar com as retinas / cada pedacinho de matéria
viva. / Eu queria / (só) / perceber o invislumbrável / no levíssimo
que sobrevoava. / Eu queria / apanhar uma braçada / do infinito
em luz que a mim se misturava. / Eu queria / captar o
impercebido / nos momentos mínimos do espaço / nu e cheio. /
Eu queria / ao menos manter descerradas as cortinas / na
impossibilidade de tangê-las. / Eu o sabia / que virar pelo
avesso / era uma experiência mortal. (CESAR, 1999b: 40-41)
É curioso observar que esse poema, datado de 1968, foi escrito quando Ana
ainda tinha dezesseis anos. E, na jovialidade do pensamento poético dessa
moça, está evidente a presença da busca por um sujeito que se enuncia na
122
tentativa de ser inteiro, o que nesses versos ela nomeia como revirar-se do
avesso, a experiência mortal de quem anseia o intangível, o indizível, o
inefável. Sob esse ponto de vista, percebe-se como o texto de Ana C.
sobressai, antecipadamente, em relação aos outros de sua geração, como se
ela levasse às últimas conseqüências a relação arte/vida que os companheiros
marginais, futuramente, usariam como xima. Ítalo Moriconi chama a atenção
para o fato de que
Ana reencetou e levou a fundo o gesto existencial e poético
definidor do moderno como proposta de transformação da vida e
desautomatização dos jogos convencionais da linguagem e da
sociabilidade. A maior parte de seus colegas de geração quando
muito teve disso experiência intuitiva. Ela viveu a radicalidade da
fusão arte-vida [...] (MORICONI, 1996: 09)
Pode-se, então, afirmar que partindo de um movimento de vozes
coletivas, com intuito de militância e discussão dos valores institucionalizados
pelos discursos hegemônicos da literatura, a escritura de Ana Cristina Cesar
atravessa tais conjecturas e imerge nos conflitos do indiduo que estava à
mercê de tais realidades, promulgando, assim, um tom definitivo para sua voz
que indagava das atrocidades particulares, dos anseios e do poder que a
literatura assumia em sua vida. Percebendo-se tais direções no universo de
nossa poeta, entende-se que, até mesmo com o movimento marginal com o
qual ela muito conviveu, seu senso de busca incessante realizou com essa
trupe um flerte dúbio, uma relação de passagem, de onde ela extraiu o mote
que doravante estaria presente em todas as suas manifestações literárias: o
Eu, levado às raias da multiplicidade pessoana, fustigado pela ansiedade do
inteiro. As discussões do coletivo, do grupo de 70, são reduzidas ao
microcosmo do indivíduo, o que Ítalo Moriconi (1996) chamou de políticas do
123
sujeito. Dentro de uma política particular, literária e de maturidade do
pensamento poético, Ana Cristina privilegia o sublime desejo de arrancar de si
mesma as multifaces que sua poesia exibe. Numa espécie de autofagia
silenciosa, ela expõe e oculta suas multiplicidades, fazendo das constantes
buscas do eu a razão maior de seu labor literário. Através da análise realizada
por Luana Soares de Souza, sobre as incessantes procuras do eu, construídas
através do discurso literário, pode-se melhor entender tais evidências na poesia
de Ana C:
Causa ou efeito da linguagem, ser absoluto ou construção
textual, o Eu permanece o desafio mais perturbante e tentador
que a literatura autobiográfica propõe. A natureza desta
literatura, por um lado, faz-nos acreditar no Eu que está por
detrás da máscara, mas a opacidade da linguagem, por outro,
faz-nos descrer dessa realidade. Na ambivalência da sua
natureza, o Eu é ainda e sempre razão de ser de uma busca
final impossível. (SOUZA, 1997: 125)
Consciente das ambivalências instauradas pela natureza do eu,
Ana C. parte, possivelmente, das noções imprecisas e inexatas donde o sujeito
literário concebe-se e opta, naturalmente, por insistir no jogo das buscas e
representações de si, sabendo, desde sempre, que seus encantos e seus
mistérios pairariam em definitivo, acima de qualquer escrutínio. Para além do
discurso marginal, a sereia tange a cítar a do enigma e da sedução.
124
SEREIA PÓS-MODERNA
O livro Correspondência incompleta reúne um grande número
das correspondências de Ana Cristina Cesar, enviadas às amigas em um certo
momento de sua vida, especificamente, entre o período de 1976 a 1980, época
em que Ana fazia, na Inglaterra, seu mestrado em Theory and Practice of
Literary Translation, na Universidade de Essex. As últimas páginas desse livro
trazem o depoimento das amigas com quem Ana se correspondia e com as
quais havia convivido: Clara de Andrade Alvim, Heloísa Buarque de Hollanda,
Maria Cecília Londres Fonseca e Ana Cândida Perez. Em todos os
depoimentos, as amigas relatam a experiência literária da autora, suas leituras,
comportamentos, etc. Mas o depoimento de Heloísa Buarque de Hollanda,
exclusivamente, sinaliza para um aspecto que marca de forma singular e
definitiva os escritos de Ana Cristina Cesar: a clivagem do sujeito.
[...] Não será à toa que a questão que sua escrita ainda hoje
levanta é a questão do interlocutor, de seu destinatário. Para
quem Ana escrevia? Ou para ser mais correta: quem escrevia,
quando Ana C. escrevia? Uma pergunta que conseguiu manter
em aberto através de toda a sua obra. Essa, sua grande
expertise. (HOLLANDA, 1999: 300)
Partindo do depoimento de Heloísa Buarque de Hollanda
,
parece-nos que podemos afirmar, de forma contundente, que a obra de Ana
Cristina Cesar, ou a maior parte dela, insere-se no fenômeno da fragmentação
do sujeito, aspecto sintomático de grande parte das literaturas construídas
dentro das conjecturas pós-modernas. Novamente, deparamo-nos em
125
investigar as variantes que o sentido do pacto autobiográfico assume na leitura
da obra dessa escritora. Se, em alguns instantes de sua escritura, o apelo do
sujeito confessional é por demais exigente, em outros, o mesmo apelo parece
se metamorfosear em vozes, em personas que surgem de súbito, para
constituir outras identidades literárias, para diluir a perspectiva do eu que se
deseja uno, não esgotando nunca o se fazer e o desfazer-se em versos.
A chamada crise de identidade que, a partir do último século,
tem excitado as pesquisas do campo sociológico, filosófico, psicológico e
literário acabou por instaurar, no seio da literatura, a grande problemática sobre
o sujeito que se enuncia por detrás dos versos. Michel Riaudel demonstra que
[...] Das scaras de Baudelaire falando a leitores hipócritas à
negação de sua própria assinatura por Antonin Artaud,
diversas figurações anteciparam em poesia algumas
adaptações, respostas à clivagem do sujeito. De modo que
quando um poeta se multiplica profusamente em heterônimos,
outro pode ler nele, ao contrário, a dissolução da própria
existência, o eclipse da pessoa por trás da persona, dos livros.
(RIAUDEL, 2001: 40)
A poeta Ana Cristina Cesar estabelece com essa problemática
uma relação salutar, consciente e lúdica. Salutar, porque é dessa relação que
ela engendra sua personalidade poética; consciente, pois a sua trajetória
acadêmica de estudiosa da literatura concede-lhe uma percepção profunda
desse sujeito que estava plugado com as diversas manifestações sociais e
culturais, nas quais o novo estatuto literário se inseria. Dessa maneira, ela se
entende com esse estatuto, apropriando-se dele, para dar forma às vozes que
seu discurso literário profere; a relação, também, é lúdica, pois, muitas vezes,
as vozes sobrepostas organizam um discurso que parece querer brincar com
126
as leis desse estatuto. Em Vacilo de Vocação, detectam-se as relações que o
sujeito poético estabelece com tais concepções:
Precisaria trabalhar afundar / como você saudades
loucas / nesta arte ininterrupta / de pintar / A poesia
não telegráfica ocasional / me deixa sola solta / à
mercê do impossível / do real. (CESAR, 1999a: 58)
Num claro vacilo entre uma arte e outra (pintar ou escrever), a
poeta oscila, evidenciando a problemática de um sujeito que, apesar de seguir
o caminho da poesia, sente-se solta na trilha escolhida, à mercê do
impossível, como se pode perceber na própria organização do poema que
evidencia, de antemão, a dúvida, a incerteza, a errância da escolha. Fazendo
clara alusão ao discurso telegráfico da poesia modernista, tão difundida a partir
de 1922 e usando, também, da metalinguagem, a escritora define o exercício
poético como ocasional, como se a poesia lhe viesse em espasmos e dialoga,
ao mesmo tempo, com a arte de pintar, que ela considera ininterrupta, que vem
ao artista de uma vez, absorve-o por completo e afunda, no trabalho, o
pintor. Por outro lado, de maneira quase descolada do poema, estão as
saudades loucas, que parece não conferirem, não se harmonizarem com os
signos, através dos quais ela constrói esses versos. Depreende-se que, em
Vacilo de Vocação, não é só a opção vocacional que vacila, mas vacila,
também, o discurso do sujeito que emite uma convulsão de vozes intertextuais,
metalingüísticas e pessoais. Partindo das interpelações de cunho individual e
privado, o poema também interpela o que é cultural, o que é de âmbito social,
público. Dessa forma, o poema explicita a pluralidade de vozes que, abrigada
em seus interstícios, denuncia o eu em crise, a identidade que se duplica e
127
insiste em apagar a unicidade da voz que o eu tenta proferir. Para Luana
Soares de Souza,
A escrita do Eu é uma recriação individual do mundo. Nela o
sujeito situa-se no universo, ordena a sua vida na escrita, junta
os pedaços, arruma a casa. Esse arrumar a casa, colocar em
ordem as recordações e reflexões, nem sempre é fácil e quase
sempre é doloroso. Por isso a imagem labiríntica aparece, por
vezes, na literatura íntima, reinterpretada de diversos modos:
como construção de uma imagem de si no enredo das
palavras, ou como figuração de um sujeito que se desdobra na
sua diversidade polifônica. (SOUZA, 1997: 139)
Muitas Anas proliferam no intuito da construção de uma. Não
somente no sentido de descobrir, de encontrar sua individualidade particular e
total, mas também percebe-se, muitas vezes, a aspiração em conceber uma
literatura com insígnias particulares, gravada, definitivamente, em suas
impressões exclusivas, expondo os caracteres estilísticos mais relevantes da
autora e, ainda, dando conta de todos os seus anseios, em particular, do
anseio do encontro. Por isso é tão patente, na poesia de Ana Cristina, a
relação estabelecida entre a sua escrita e a concepção de sua identidade, uma
fusão permanente entre palavra e pessoa, entre vida e verso, numa vertigem
cíclica, onde o escrito não indica somente quem ela foi ou está sendo, mas
aquilo que poderia se tornar, pois a literatura e todas as suas experimentações
parecem desempenhar um papel reflexivo, uma prática, que além de refletir o
fazer do texto e os seus rumos possíveis, reflete, também, sobre o devir deste
sujeito, alguém que se acredita encontrado no interior de sua escrita, que
existe junto com ela e se multiplica na mesma proporção. Quanto mais
impossível o encontro de si, mais incessante se tornam as buscas; quanto mais
se busca, mais se perde e daí se multiplica. De acordo com Michel Riaudel,
128
Ana Cristina Cesar percorria caminhos perigosos
questionando o próprio estatuto do autor. Sua escrita
devoradora tece um poema que transborda amplamente da
silhueta daquele que garante o escrito, como se a noção de
obra visse suas fronteiras abolidas e absorvesse o conjunto
dos textos literios em uma espécie de circularidade infinita
das linguagens (RIAUDEL, 2001: 40)
A relação, aqui exemplificada, não se vincula ao contrato restrito
de autor e obra, mas a uma existência múltipla através do texto, uma busca
frenética de vida, de infinito, como se pudesse e quisesse arrancar da
linguagem algo que permanecia oculto na vida, fundir-se no texto, numa
tentativa de extrair dele o que era da poeta, mas não estava nela. Essa
constituição do sujeito, no íntimo da escritura, aponta para o que Leila
Domingues Machado chamou de Subjetividades contemporâneas:
A subjetividade nos fala de territórios existenciais que podem
tornar-se herméticos às transformações possíveis, como
mapas, ou podem tornar-se abertos a outras formas de ser,
como nas cartografias. Os modos de subjetivação referem-se
à própria força das transformações, ao devir, ao intempestivo,
aos processos de dissolução das formas dadas e cristalizadas,
uma espécie de movimento instituinte que, ao se instituir, ao
configurar um território, assumiria uma dada forma-
subjetividade. Os modos de subjetivação também são
históricos, contudo, m para com a história uma relação de
processualidade e por isso não cessam de engendrar outras
formas. (MACHADO, 1999: 212)
Através do exercício poético, Ana C. engendra suas formas de
subjetividades, efetuando processos onde a transmutação não cessa,
constantemente aberta a outras formas de ser como nas cartografias. É neste
ponto que, para Barthes, [...] a distância entre o escritor e a linguagem diminui
assintomaticamente [...] o sujeito constitui-se como imediatamente
contemporâneo da escritura, efetuando-se e afetando-se por ela [...]
(BARTHES, 2004: 23). Como no poema Estou atrás, em que Ana Cristina
129
Cesar indica a busca pela palavra que exprima a constituição desse sujeito,
explicitando, também, o processo em curso de sua subjetividade:
Estou Atrás
Do despojamento mais inteiro / da simplicidade mais erma / da
palavra mais recém-nascida / do inteiro mais despojado / do
ermo mais simples / do nascimento a mais da palavra.
(CESAR, 1999b: 51)
Nota-se que o intento perseguido se inverte e se duplica.
Primeiramente, busca-se o despojamento inteiro, a simplicidade erma e a
palavra recém-nascida, para, no segundo momento, buscar o inteiro
despojado, o ermo simples e o nascimento da palavra. A ordem dos vocábulos,
nos três primeiros versos, conduz o leitor a uma observação analítica de
sentido, no primeiro instante, óbvio e banal. Na seqüência dos três últimos
versos, as mesmas palavras, agora, deslocadas, invertidas e revestidas de
novo valor gramatical (substantivos se tornam adjetivos: despojamento =
despojado; simplicidade = simples; o adjetivo se torna substantivo: recém-
nascida = nascimento), trazendo ao poema um aditivo lúdico, deixando o leitor
à beira de grandes dúvidas quanto ao sentido do que está sendo dito e lido. Ao
comparar os três primeiros blocos de versos com os três últimos, a leitura feita,
anteriormente, é colocada em xeque. Indaga-se, então, sobre a repetição ou
não,da idéia, daquilo que está escrito, desviando esta leitura, completamente,
daquela feita num primeiro instante. A última sucessão de versos, em relação à
primeira, altera, ilusoriamente, o sentido da leitura, desde a sua significância e,
até, da própria busca da poeta, daquilo que ela está atrás. O título do poema,
Estou Atrás, faz oscilar a leitura: está atrás, porque persegue algo ou está
atrás, escondida entre as palavras? Como num jogo de espelhos invertidos, é
alterado o posicionamento e a função gramatical das palavras, sem, contudo,
130
alterar o seu sentido final e a intencionalidade do que é dito. Ou seja, o jogo
das palavras, estabelecido nesses versos, confere ao escrutínio do poema uma
clara ilusão nos sentidos interpretativos, fazendo oscilar os referentes, os
signos pré-estabelecidos, que regem as leis de significado e significante,
apontando para um universo onde se opera o que Riaudel (2001) chamou de
circularidade infinita das linguagens.
Os versos corroboram, assim, a duplicação e a inversão das
subjetividades de nossa poeta, que, partindo do título Estou Atrás, indica o
caminho pluridimensional onde o sujeito poético se inscreve. Porque, [...] para
o poeta, nada está completamente dito, estamos sempre no amanhecer da
linguagem e no despontar do sentido. (PERRONE-MOISÉS, 2005: 69).
131
CAPITULO IV
CORRESPONDÊNCIAS DO EU COM O OUTRO
132
A ESFINGE REMETENTE
No ano de 1979, Ana Cristina Cesar publicou o livro
Correspondência completa. Segundo o depoimento de Heloísa Buarque de
Hollanda a Ana Cláudia Viegas, tratava-se de um texto com o objetivo de ser
todo [...] à clé, de ser todo uma coisa que falava de um terceiro que ninguém
sabia quem era. E graficamente, a gente fez essa coisa do proibido, de ser
uma intimidade proibida. (HOLLANDA, apud VIEGAS,1998: 130). Além dessa
publicação exclusiva, poesia em forma de prosa, dedicada ao exercício
epistolar, Ana C. escreveu, em alguns de seus livros, como em Inéditos e
dispersos, textos que aludem à prática da correspondência, tal qual o poema
Carta de Paris. E, finalmente, em 1999, é publicado o livro Correspondência
incompleta em que o labor poético é metamorfoseado em missivas. Nessa
obra, as cartas aparecem como elementos e prática da vida cotidiana da
autora, mas, inconfundivelmente, apoiadas em uma literariedade que termina
por, quase, abolir a confissão, o papel factual, funcional e corriqueiro de suas
correspondências. De acordo com Armando Freitas Filho,
Ela se confessa, sim, mas faz (fala de) literatura o tempo todo.
Em muitos e extensos momentos dessa corresponncia,
ouvimos trechos de sua dicção poética de teor tão peculiar.
Verdadeiros exercícios prévios do que mais tarde ela iria
transportar para seus textos literários. Em certas cartas e
cartões temos a sensação de que, se suprimíssemos o
destinatário e o remetente, estaríamos lendo alguns de seus
poemas, se não acabados, pelo menos ensaiados [...].
(FREITAS FILHO, 1999: 09)
Exprime-se, assim, uma outra possibilidade de se referir ao jogo
do autobiográfico. As cartas, como sugere Michel Foucault (2000), são fiéis
133
representantes da escrita de si. É essa outra forma de dizer de si que Ana
Cristina Cesar perseguiem algumas de suas expressões escritas, usando-as
como manifestações literárias, como ocorre no livro Correspondência completa,
de 1979.
As cartas, enquanto manifestações pessoais, como as do livro
Correspondência incompleta, de 1999, aparecem, mesmo assim, travestidas de
literatura, operando um caminho inverso se comparadas à carta do livro
Correspondência completa. No primeiro, a literatura acaba tomando o lugar que
deveria ser dos desejos mais prementes da escritora e dos assuntos comuns a
esse tipo de escrita, ou seja, as cartas se tornam um espaço para falar de
literatura; no segundo, o remetente transforma o exercício epistolar em uma
mescla de prática poética, onde prosa e lirismo se entremeiam, operando uma
arquitetura de estilo e a literatura, nesse momento, explica as configurações
embutidas nos papéis ocupados por emissor e destinatário. O fazer literário,
dessa forma, evoca as relações estabelecidas em uma carta entre os que as
escrevem e aqueles que as lêem, o jogo constante e tão dileto de nossa poeta:
o face a face entre autor e leitor. Ou ainda uma lição metalingüística,
explicitando as nuanças literárias contidas no formato da carta, ou seja, a
literatura se torna um espaço para explicar e se falar do jogo estetizante,
encerrado em uma simples carta. Segundo Massaud Moisés, a prática da
correspondência
Significava, entre os romanos da Antiguidade, uma composição
poética destinada a um amigo ou mecenas, vazada em
linguagem cotidiana, tratando de variados assuntos, literios,
filosóficos, políticos, morais, sentimentais, amorosos, etc. Os
primeiros espécimes remontam ao culo II a.C., obra de
Mummius e Luculo. Entretanto, com suas epístolas, sobretudo
a Epistola ad Pisones, que encerra conselhos relativos à arte
134
de poetar, Horácio se tornou o modelo no nero. Ovídio
seguiu-lhe as passadas, com as Tristia e Ex Ponto, e
acrescentou-lhe notas de subjetividade amorosa nas Heroides.
(MOISÉS, 1999: 192-193)
Para Ana C., o exercício epistolar parecia ser derivado da prática
horaciana, em que o discurso missivista estava alicerçado em um experimento
literário híbrido e infinito. As vozes enunciadas reiteram, certamente, o jogo
cênico da autobiografia, o sujeito fragmentado, a busca incessante do
interlocutor e a falsa confissão. A remetente, destarte, inicia a carta do livro
Correspondência completa:
My dear,
chove a cântaros. Daqui de dentro penso sem parar nos gatos
pingados. os e s frios sob controle. Notícias imprecisas,
fique sabendo. É de propósito? Medo de dar bandeira? Ouça
muito Roberto: quase chamei vomas olhei pra mim mesmo
etc. Já tirei as letras que você pediu. (CESAR, 1999a: 117)
O destinatário da carta aparece como um My dear, é alguém, mas ninguém
em especial ou particular, indicando que qualquer leitor poderia ler esta
correspondência como se estivesse endereçada a ele. O primeiro parágrafo
notícias da chuva para em seguida introduzir o discurso sobre gatos (com a
irônica expressão gatos pingados), reiterando o discurso gatográfico tão
presente na obra de Ana Cristina Cesar. Eles estão presentes em Inéditos e
dispersos, num significativo grupo de poemas, em evidente diálogo com
Charles Baudelaire, Jorge de Lima e Thomas Stern Eliot. Aliás, um conjunto
desses poemas dialoga com outros do poeta brasileiro Jorge de Lima. A
preferência pelos felinos também aparece em outras obras como em Cenas de
Abril, no poema 21 de fevereiro: Não quero mais a fúria da verdade. Entro na
sapataria popular. / Chove por detrás. Gatos amarelos circulando no fundo. /
135
Abomino Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um modelo brutal.
(CESAR, 1999a: 106). Para Carlos Alberto Azevedo,
A tematização do escrever (gatografar) é o que se discute nos
mencionados poemas, questiona-se, principalmente, a
impossibilidade de um novo discurso sobre gatos, discurso em
que se reproduzem todas as artimanhas felinas de sua o
linguagem. E o sujeito lírico finge não ter nenhuma
competência (fôlego) para gatografar. (AZEVEDO, 1996: 69)
Em seguida, a missivista segue dizendo que escreve notícias imprecisas,
como se, realmente, não tivesse fôlego para enunciar-se em um discurso
totalmente seu, inabilidade para escrever o real, imprecisão para noticiar, com
veracidade, os fatos ocorridos. Ela própria pergunta: É de propósito? Medo de
dar bandeira? Imprecisar as notícias é não dar bandeira com revelações
secretas e a imprecisão, nesse início do relato epistolar, seria proposital ou,
pelo menos, é a dúvida que se estabelece. Daí notarmos, no primeiro parágrafo
(estrofe) da correspondência, a idéia de banalização dos assuntos noticiados.
E as notícias, contidas nesse parágrafo da carta, seguem difusas, entremeadas
de remendos, coladas às falas de terceiros, discursos extraídos pela autora de
sua audição cotidiana, em que ela aconselha: ouça muito Roberto: quase
chamei você mas olhei pra mim mesmo etc., clara referência à canção Mais
uma vez
32
, composição de Mauricio Duboc e Carlos Colla de 1978, interpretada
por Roberto Carlos.
A carta do livro
Correspondência completa aponta,
insistentemente, para a iteração do discurso da esfinge. A remetente explora
o formato da correspondência, aparentemente, tão verdadeiro e original, mas o
usa como uma artimanha, transformando as notícias de uma carta em um
32
Disponível em www.musicas.mus.br/ http: //roberto-carlos.musicas.mus.br/letras/68563/
Acesso em 23 de jan. 2007.
136
longo andamento poético, onde vozes se misturam e se dissipam, realidade e
ficção parecem avançar e retroceder, desestabilizando a crença do leitor. A
poeta sabe, exatamente, como constituir o estilo e, do mesmo modo,
desestabili-lo através do que é escrito, assim como é sabedora da aura
confidencial, impingida às cartas:
Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado,
porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação,
meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim,
vovendo tv e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas
cartas). Vo o acha que a distância e a corresponncia
alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do
bosque)? (CESAR, 1999a: 117)
Evidenciando a diferença entre uma conversa estabelecida ao
telefone e aquela que se estabelece através das cartas, Ana Cristina relata o
estado de ânimo com a voz real: a emoção esfriou. A correspondência,
carregada de mistérios, é um reflexo verde na lagoa no meio do bosque, onde
a autora pode lançar mão de variados recursos estilísticos e discursivos,
impossíveis quando se fala ao telefone. A lagoa, espelho de muitas faces, pode
estampar variadas cores, reflexos, direções e tons, denotando, dessa forma,
que as cartas, como a superfície de um lago, do mesmo modo, reproduzem,
identicamente, uma infinidade de imagens, possibilitando ao remetente o
fingimento ou a sinceridade. Nessa correspondência, somente a sua
superfície sustenta a aparência da escrita que se convencionou chamar de
carta. Como num lago, o que se encontra sob suas águas, em suas
profundezas, nunca é o que havi a sido encontrado em suas águas apar entes.
Partindo de um objeto real, carregado de referências e signos
dotados da prática factual, a carta, contida no livro Correspondência completa,
quase nada apresenta do título que ostenta, enquanto correspondência é
137
incompleta. Rasurada pela agitação polifônica, apaga, insistentemente, os
vestígios, os indícios e pistas capazes de conduzir o destinatário aos possíveis
desvelamentos de uma identidade autobiográfica da autora, debatendo-se em
uma estrutura narrativa, onde o exercício da cleptomania literária e a
apropriação compulsiva lhe causam remorsos de vampiro:
Passei a tarde toda na gráfica. O coronel implicou outra vez
com as idéias mirabolantes da programação. Mas isso é que é
bom. Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e
remorso de vampiro. Vou fazer um curso de artes gráficas.
Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no
livro. O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca. (CESAR,
1999a: 119)
Passeando entre o ficcional e o não-ficcional, a escrita, aqui
concebida, é uma indagação sobre o establishment do autobiográfico e do
confessional. Usada como uma espécie de arremedo do discurso contido nas
correspondências, a carta de Ana Cristina Cesar, assinada pela remetente
Júlia, faz oscilar, diante dos olhos do leitor, não a função da
correspondência e de sua finalidade social pré-estabelecida, como também a
identidade de quem assina o texto e a veracidade do que é escrito,
assinalando, em definitivo, a linha tênue que separa o real do fictício. O teórico
Wolfgang Iser considera que
o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis da
realidade, que, através da seleção, são retirados tanto do
contexto sociocultural, quanto da literatura prévia ao texto.
Assim, retorna ao texto ficcional uma realidade de todo
reconhecível, posta agora, entretanto, sob o signo do
fingimento. Por conseguinte, este mundo é posto entre
parênteses, para que se entenda que o mundo representado
não é o mundo dado, mas deve ser apenas entendido como se
o fosse. Assim se revela uma conseqüência importante do
desnudamento da ficção. Pelo reconhecimento do fingir, todo
mundo organizado no texto literário se transforma em um como
se. O r entre parênteses explicita que todos os critérios
naturais quanto a este mundo representado estão suspensos.
Desta forma, nem o mundo representado retorna por efeito de
138
si mesmo, nem se esgota na descrição de um mundo que lhe
seria pré-dado. Estes critérios naturais o postos entre
parênteses pelo como se. (ISER, 2002: 972-973)
Como se fosse uma carta, como se fosse de verdade, como se
fosse a própria Ana Cristina e não a personagem Júlia, a assinante da
correspondência, a realidade refletida ocasiona uma leitura bifurcada, abrindo
caminhos e possíveis atalhos, sem nunca deixar entrever a verdadeira face de
quem remete as notícias. Se alguma verdade no texto escrito, esta é
sempre colocada entre parênteses, fazendo com que as possibilidades de
investigações, cunhadas no olho do voyeur, titubeiem e se confundam pela
superposição de imagens, personagens, iniciais secretas, etc. Diluindo
referências do real, figuras intertextuais e labor poético, as notícias remetidas
pela esfinge se tornam passíveis de leitura se rastreadas, lidas, percebidas
e entendidas como e enquanto li teratura.
139
A SEREIA E O DESTINATÁRIO
Na observação de Michel Foucault, para descrever as relações
que as cartas estabelecem com o outro,
Escrever é pois mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o
rosto próprio junto ao outro. E deve-se entender por tal que a
carta é simultaneamente um olhar que se volve para o
destinatário (por meio da missiva que recebe, ele sente-se
olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar
pelo que de si mesmo lhe diz. De certo modo, a carta
proporciona um face-a-face. [...] (FOUCAULT, 2000: 150)
Tomando como base a reflexão de Michel Foucault, pode-se
entender o papel que as correspondências cumpriram na existência de Ana
Cristina Cesar: se elas mostram o seu rosto para o destinatário e esclarecem
alguns aspectos de sua existência individual no sentido da autobiografia,
também proporcionam um outro tipo de face-a-face com o seu interlocutor: o
face-a-face literário, o diálogo que volve o olhar para o destinatário
seduzindo-o e entregando-lhe os riscos da reflexão. Talvez, seja este o
mostrar-se que mais nos interesse aqui, para efetivar a compreensão e o
esclarecimento da análise, empreendida neste trabalho.
O livro Correspondência incompleta, de 1999, reúne as cartas
endereçadas às amigas Clara de Andrade Alvim, Heloísa Buarque de Hollanda,
Maria Cecília Londres Fonseca e Ana Cândida Perez. Apesar de se tratar, em
primeira instância, de cartas com estrito cunho pessoal, diferentes, claro,
daquela publicada no livro Correspondência completa, mesmo assim, este
conjunto de cartas, as do livro Correspondência incompleta, estão calcadas na
140
dicção poética, no jogo mutante do remetente, nas reflexões poéticas e teóricas
sobre a literatura, no convite insistente a outros possíveis destinatários e não,
tão-somente, àqueles explícitos ou camuflados no cabeçalho de cada carta
enviada. Armando Freitas Filho diz que
Era como se primeiro ela escrevesse para alguém e depois o
que tinha endereço ou destino torna-se, através de uma
estratégia dissimulatória, errante, sem referente claro,
mensagem na garrafa, atirada ao acesso de todos para ser
aberto por ningm ou por qualquer um, ao acaso. (FREITAS
FILHO, 1999: 09-10)
Esse autor, ainda, chama atenção para o outro aspecto que faz os olhos do
leitor hesitarem diante da variação de assinaturas que emergem dessas
correspondências :
Também é curioso observarmos a oscilação por que passa sua
assinatura: das previsíveis Ana e Ana Cristina, à ficcionalizada
Ana C., chegando às sumárias Eu e A., até o desaparecimento
total em várias cartas. E, em pelo menos dois cartões, emerge,
surpreendentemente, o pseudônimo Júlio, possivelmente a
porção masculina de lia, que é quem escreve e assina a
aludida carta solitária de Correspondência Completa, dirigida
para alguém que não é nomeado (My dear), e onde nem
sequer se distingue, no corpo do texto, o nero da sua
identidade. Oscilação que perdurou na capa das edições
princeps dos seus livros: Ana Cristina Cesar e Ana Cristina C.
o se trata aqui de um heteronímia incipiente, mas sim da
tentativa, creio, na correspondência e na obra, de criar uma
persona que protegesse ou mascarasse, parcialmente, sua
figura, como é comum nos drios pessoais (outra fonte
primária de sua literatura). (FREITAS FILHO, 1999: 10)
Em um depoimento, concedido a Armando Freitas Filho para a
compilação das cartas do livro Correspondência incompleta, Ana Cândida
Perez evidencia o olhar literário dispensado às cartas pela poeta Ana Cristina
Cesar: [...] Nossa troca de correspondência foi, em parte, uma experiência
com a escritura em uma das cartas, Ana Cristina sugere que publicássemos
141
as cartas como um texto de ficção.[...] (PEREZ, apud FREITAS FILHO, 1999:
305).
Todas as conclusões dos amigos, no caso de Armando e Ana
Cândida, encaminham-nos para a relação intrínseca entre vida e literatura,
estabelecida pela escritora Ana Cristina Cesar através do percurso de sua
obra. A sua escritura parece desembocar do contínuo desejo do existir através
dos textos, das palavras. Impregnada, talvez, pelo mote valioso para a geração
dos marginais: onde se lê poesia, leia-se vida (Süssekind, 1985: 67). Beatriz
Resende identifica como
Ana Cristina vai forjando um método poético particular, como
trabalhou com as sugestões fornecidas pelo horizonte estético
de sua geração, e como foi singularizando as próprias
hesitações e escolhas numa poesia próxima a uma arte da
conversação, num texto escrito que fala. (RESENDE, 2003:
307)
Parece-nos não ter sido diferente com suas correspondências pessoais, pelo
menos com o conjunto de cartas, editado na obra já citada. Prontamente,
percebe-se como a escritura de cartas contribui para o exercício da arte da
conversação, o texto escrito que fala. Tais aspectos são evidenciados em
fragmentos de uma carta que Ana Cristina escreveu à Maria Cecília Londres
Fonseca em 21 de junho de 1976. O trecho da carta, destacado entre
parênteses, como um postscriptum, era a explicação para assuntos contidos
nessa correspondência e que, do ponto de vista da remetente, deveriam ser
desconsiderados e esquecidos, já que ela acabara escrevendo uma outra,
mas, mesmo assim, ela opta por enviar, junto com a correspondência definitiva,
a folha com a escrita inacabada:
(Achei um saco esta carta começada e resolvi começar outra.
O assunto saiu diferente, mas resolvi deixar esta folha nem sei
142
por q. Talvez um pouco para reproduzir na corresponncia
a comunicação oral, onde as frases não podem ser apagadas,
onde não se pode eliminar nada.) (CESAR, 1999c: 111)
Dessa forte angústia de representar, em suas correspondências, para o seu
interlocutor, a comunicação oral (atitude bem mais fiel, quando se tenciona
reproduzir as conversas verdadeiras, confidentes e convincentes), vislumbra-se
como o exercício da coloquialidade daquele que escreve, como se estivesse
conversando. Corrobora, ainda, no caso da literatura de Ana C., o obstinado
entrelugar, ocupado pela autobiografia e pelo ficcional, jogo constantemente
reiterado, uma perseguição incansável da poeta, permeando toda sua escrita.
As cartas endereçadas às amigas contêm uma dupla face capaz
de viabilizar o sentido do escrito de acordo com o leitor, de acordo com o
destinatário. Se as amigas da vida real dispõem de elementos referenciais para
lerem as cartas enquanto uma vida vivida, experiência e prática cotidiana, os
outros amigos, os leitores intrusos, não dispõem do mesmo conjunto de
referenciais, por isso não conseguem realizar a leitura dessas cartas com o
mesmo nível de acesso ao vivido que possui o primeiro grupo de leitores, ou
seja, as amigas da vida real. O que resta aos outros amigos, os invasores
leitores, é uma leitura escamoteada, feita através da outra face que o texto
apresenta, efetuada por uma solução, insistentemente, repetida através do
trajeto literário de Ana Cristina Cesar: a ficcionalização do real.
Na mesma correspondência, endereçada à Maria Cecília
Londres Fonseca, em 21 de junho de 1976, o trecho que encerra essa missiva
conclui as indagações da própria autora sobre a fina linha atravessada entre o
verdadeiro e o fingido, deixando dúvidas sobre a compreensão de sua
interlocutora mais imediata, no caso, Cecília Londres:
143
Deve ser estranho pra você receber cartas minhas tão
flutuantes. Na minha cabeça parece que em cada carta transmito
uma coisa diferente. Essa instabilidade intensa também é real, é
cotidiana. Essa solidão que eu falo o é fato novo: ficou foi
evidente, privado, inescapável. Antes era escamoteado, público,
irremedvel. Acho que eu tenho curiosidade de saber se todas
essas coisas minhas são tão blicas assim. Aque ponto todo
mundo percebe. Cecília? Cecília? estou ficando meio tonta de
falar assim sozinha, sem interlocutor mas completamente com
interlocutor. É por isso que repito, pra evidenciar mais esses
fatos todos: CECÍLIA!! Acho que o certo essa
correspondência noturna, insone, que acaba dando tristeza.
Melhor é correspondência mais temprana & leve... Preciso
acabar com essa mania de transformar carta em drio íntimo,
pesado, minucioso (cf. diários íntimos fictícios, in Antologia)
(segue, I hope). Ai como sou minuciosa. Mas pra que acabar
com manias? o estou mesmo muito boa: estou agora pondo
em questão o meu texto. Metalinguagem é dor de corno; é
doença; foda-se a metalinguagem da intimidade (a literária é
será? outra história. Que achas?) (CESAR, 1999c: 116-117)
Numa clara preocupação de saber se estava sendo entendida, através de sua
escrita flutuante, a autora esclarece que a instabilidade é real, cotidiana.
Evidencia, do mesmo modo, suas indagações sobre o que é público e privado:
Acho que eu tenho curiosidade de saber se todas essas coisas minhas são tão
públicas assim. Até que ponto todo mundo percebe. Insiste em interrogar o
nome da amiga, como num vocativo, um chamamento ou, conforme Samira
Chalhub (2001), um teste puramente fático para verificação do canal:
Cecília? Cecília?. Cabendo aqui, perfeitamente, a pergunta: está me ouvindo?
Ou, ainda, você me entende e me percebe, enquanto me lê? Para,
seguidamente, confessa r o cansaço de estar falando sozinha: Já estou ficando
meio tonta de falar assim sozinha, sem interlocutor, mas completamente com
interlocutor. Afinal, as cartas não configuram outro tipo de relação, falamos
com alguém que é ninguém ao mesmo tempo, pois não obtemos,
imediatamente, a resposta daquilo que estamos dizendo, monólogo, diálogo
mudo, estamos sozinhos e acompanhados, com e sem interlocutor. No
144
fragmento da citada correspondência, Ana Cristina adverte-se: Preciso acabar
com essa mania de transformar carta em diário íntimo, pesado, minucioso (cf.
diários íntimos fictícios, in Antologia) e faz discreta comparação da narrativa
de suas cartas com os seus diários íntimos, fictícios, aludindo, dessa forma,
para o cruzamento cênico, proposital, que entre os dois tipos de escrita. Ao
fim da carta, a reflexão se direciona para o próprio fazer literário da autora:
Não estou mesmo muito boa: estou agora pondo em questão o meu texto.
Metalinguagem é dor de corno; é doença; foda-se a metalinguagem da
intimidade (a literária é será? outra história. Que achas?). A
metalinguagem da intimidade sugere-nos o confessor, explicando a própria
confissão, a confissão explicando aquilo que é confessado nas páginas da
carta, fazendo da metalinguagem literária uma espécie particular de meta-
autobiografia, explicando as várias imagens que se projetam sobre o
autobiógrafo e sobre as questões ali autobiografadas. A própria autora afirma e
indaga: metalinguagem literária é será? outra história. Que achas? Samira
Chalhub afirma:
Todas as vezes que, no diálogo informal, necessitamos
explicar-nos melhor, estamos no âmbito da metalinguagem, isto
é, quando alguém diz: isto é, rediz em outras palavras o que
havia dito. Se Woody Allen diretor e ator de cinema andou
vestindo uma camiseta que o estampou, Woody Allen, num
curioso narcisismo metalingüístico, referia-se a si pprio.
(CHALHUB, 2001: 7-8)
O conjunto de cartas da autora, além de problematizar tantos
outros aspectos da linguagem, da escrita e da literatura, contidos no exercício
epistolar, simultaneamente, inquire sobre o estatuto dos gêneros literários.
Entendendo que a maioria de sua construção poética assume, com
predominância, uma prática que privilegia o tom intimista e a chamada
145
literatura de testemunho: diários, correspondências, etc. Como se pretendesse,
com tais artefatos, indagar sobre os gêneros que estão circunscritos dentro do
cânone literário e aqueles que não estão, ou seja, a escrita adotada pela poeta
Ana Cristina Cesar é uma práxis que privilegia os subgêneros, dando a eles o
estatuto do literário. No dizer de Michel Riaudel,
A carta é por excelência o lugar dessa retórica do desvio, em
que a literatura finge desaparecer atrás de uma voz gerando um
sujeito, em que se trata de seduzir, deixando acreditar que quem
escreve poderia estar se esquecendo de si mesmo e se voltando
todo para o outro. Além da temática a ser encontrada na leitura,
é portanto a questão do próprio estatuto da literatura e de sua
relação com a vida que está no âmago do texto. A escrita é dada
como um alambique, um filtro que proíbe a via diretamente
biográfica em que vida e obra poderiam se sobrepor, numa
correspondência perfeita. (RIAUDEL, 2000: 99)
E ainda, a contumácia da escritora em tratar com exclusividade tais neros,
possibilita-nos, sempre, entrever o desejo de mobilizar e seduzir o leitor, um
tipo de literatura que proporciona, no dizer de Foucault (2000), o mostrar-se,
dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro. Mas, para Ana C.,
esse mostrar-se é uma astúcia, onde nem sempre nos é dado perceber a
realidade convencional, mas, sim, representações, simulacros daquilo que
parece ser a vida real. A própria autora informa, em seu depoimento, no curso
Literatura de mulheres no Brasil (1983), a sua identificação e a problemática
interlocutória, cifrada nesse modelo de escrita:
O que acontece quando a gente escreve carta? Qual é a
questão fundamental da carta? Que tipo de texto é a carta?
Carta é o tipo de texto que você está dirigindo a alguém. Você
está escrevendo carta o é pelo prazer do texto, não é um
poema que você está produzindo, não é uma produção estética
necessariamente. Fundamentalmente, carta voescreve para
mobilizar alguém, especialmente se a gente entra no terreno da
paixão, onde a correspondência fica mais quente. Você quer
mobilizar alguém, vo quer que, através do teu texto, um
determinado interlocutor fique mobilizado. Então é muito
dirigido. Vocês estudaram Jakobson? Função fática? Muito
146
centrado naquilo que é a segunda pessoa. Eno, carta é cheio
de vocativos, é cheio de exortações a alguém. É alguém que
importa numa carta, mesmo que você esteja falando de coisas
tuas. (CESAR, 1999d: 257)
No depoimento, a poeta elucida para os ouvintes o papel
fundamental da correspondência que, segundo ela, sempre privilegia um outro,
está sempre se dirigindo a alguém e não é uma escrita que pode ser,
necessariamente, encarada como literatura. Obviamente, ao se referir ao
lingüista russo Roman Jakobson, a escritora alude às funções da linguagem e
ao molde comunicacional que consta do livro Lingüística e Comunicação
(1968), mas sem salientar para os seus ouvintes que os modelos de Jakobson
não se adaptam em plenitude às mensagens remetidas nas cartas da autora,
não se amoldam àquela comunicação carregada de ambigüidades,
intencionalidades, múltiplos silêncios disfarçados de palavras e aos jogos
implícitos, ocultados pela exterioridade da linguagem. Esta mesma linguagem
que, muitas vezes, é uma fonte de equívocos, mal-entendidos, intenções e
expectativas contraditórias.
O trecho da entrevista remete-nos ao interlocutor, esse quase
personagem dos poemas, diários fictícios e cartas de Ana Cristina. Mas a
mobilização desse destinatário sem face, talvez, não ciente da mise-en-scène
efetuada, como hábito, na poética da escritora, depende, com exclusividade, da
maneira como a exortação é executada. Manipulando tais recursos, o texto em
questão medra-se para além dos olhos do interlocutor seduzido, exortado.
Deixa de ser uma simples escrita epistolar para conceber-se enquanto
produção estética. A carta estetizada dribla as convenções do estatuto
canônico da literatura e engendra um discurso de malícias em que a
147
hierarquização dos gêneros são visivelmente diluídas e o remetente confessa a
pouca inocência contida em cada trecho, como em outra carta direcionada à
Ana Cândida Perez em 03 de dezembro de 1976:
Vose grila de receber cartas datilografadas? Eu acho legal
porque bato rápido e o tenho muito tempo de pensar, sai
quase como um papo. É claro que eu estou sabendo da
pouquíssima falta de inocência de uma carta. Mas os papos
também o são inocentes. Meu Deus, o que eu estou falando!
Mas também o lado tátil: é gostoso bater despreocupadamente,
os dedos tocando, batendo, stroking. O que me inspirou sentar
a esta hora e te escrever do meio deste calor foi um
pensamento súbito: (aqui eu finalmente engasguei e parou o
tictac ritmado)_____________________dou um espaço pra
lembrar o
tempo_____________________________________________
__________________________________________________
_____________________ o pensamento de que cada pxima
relação fica enriquecida pela anterior, fica mais livre.
(Não estou conseguindo desenvolver. É engraçado como os
engasgos, por escrito, ficam mais grilantes e patentes do que
num papo.) (CESAR, 1999c: 238-239).
33
Indubitavelmente, na passagem dessa carta, percebe-se como alguns dos
relatos epistolares de Ana Cristina Cesar são meras desculpas para
desenvolver e aperfeiçoar sua prática literária, um toque estetizante sobre o
discurso corriqueiro e banal. A remetente investiga se o destinatário se importa
em receber cartas datilografadas e diz estar ciente da falta de inocência,
implicada na escritura da correspondência. Esclarece ao receptor a inspiração,
para que ela escrevesse àquela hora da noite, o prazer que encontra em
datilografar e o pensamento súbito. O ritmo e o pensamento da inspiração
desaparecem e surgem longos espaços, demarcando os engasgos da escrita
(writers block?), configurando assim os recursos de uma dicção alicerçada na
representação e na formatação poética. Os vácuos da escrita salientam o
32 Esse trecho da carta, endereçada a Ana Cândida Perez, apresenta os espaços,
simplesmente, em branco. Para salientar, ainda mais, a idéia da autora, apresento os espaços
desse fragmento, demarcados por linhas.
148
tempo da espera, o tempo espaçado até que volte o pensamento e a inspiração
e retome-se o ritmo, por ora, engasgado. O súbito pensamento é de que cada
próxima relação fica enriquecida pela anterior, fica mais livre. A metacarta
leva-nos a refletir sobre as relações que se estabelecem através das cartas,
cada nova correspondência recebida (a próxima) se alimenta e se fortalece
com aquelas escritas anteriormente, ficando mais livre a compreensão, o
entendimento, como num romance de folhetim. Ao final desse excerto, Ana
Cristina compara os engasgos da escrita aos ocorridos na fala, aludindo à falsa
possibilidade de se conversar em uma carta como se faria em um papo
informal e pessoalmente: Não estou conseguindo desenvolver. É engraçado
como os engasgos, por escrito, ficam mais grilantes e patentes do que num
papo. A falsa moeda da linguagem, da qual fala Michel Riaudel (2000),
concretiza nos escritos de Ana C. um texto rizomático onde as direções se
multiplicam e se invertem e as tramas, geradas pela raiz desse texto, nunca
cessam de gerar outras que se duplicam em uma meada infinita, remetendo-
nos, assim, à proposição de Roland Barthes:
O Texto é plural. Issoo significa apenas que tem vários
sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural
irredutível (e o apenas aceitável). O texto não é coexistência
de sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois,
depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma
explosão, de uma disseminação. O plural do Texto deve-se,
efetivamente, não à ambigüidade de seus conteúdos, mas ao
que se poderia chamar de pluralidade estereográfica dos
significantes que tecem (etimologicamente, o texto é um tecido)
[...] (BARTHES, 2004: 70)
Não raro, na coletânea de cartas de Ana Cristina Cesar
(Correspondência incompleta - 1999), depara-se com as artimanhas de um
texto em que a voz da literatura, intermitentemente, sobrepõe-se ao discurso
149
missivista e às notícias intencionadas nesse modelo de escrita. Assim ocorre
em uma carta enviada a Ana Cândida Perez em 1975 ou 1976 (segundo consta
do livro organizado por Armando Freitas Filho). No trecho, Ana C. fala das
cartas que desembestam para o vôo e vão se tornando literatura:
Epígrafe? (Estou pedindo pra vo explicar; deixa de ser
preguiçosa) (se não quisesse explicar não botava o
parênteses. Ningm escreve poesia e bota junto: isto é uma
poesia, não me peçam pra explicar! A que seria engraçado. É
que em carta fica difícil o limite entre o arbitrário, o gratuito, o
o e a correspondência, a significação, a comunicação. Ou
melhor, a gente tem medo de desembestar para o vôo. De
dizer coisas que não sabe explicar. A leitora pedirá
explicações, sutilmente exigirá que se desfaça o feitiço, ou o
jogo. por insegurança. Ou como ajuizada medida pra não
receber de volta cartas em que a literatura ocupando cada
vez mais terreno, até que o sobre nada, mas a literatura. Till
there is nothing but literature. Jusquà... em francês o sai).
(CESAR, 1999c: 197)
Pode-se entender que a escritora das cartas encontra dificuldades em se
manter dentro dos padrões de uma escrita que requer somente a comunicação,
o relato de notícias. Descreve os limites nos quais esbarra para não fazer da
carta uma escritura literária: É que na carta fica difícil o limite entre o arbitrário,
o gratuito, o vôo e a correspondência, a significação, a comunicação. Ou
melhor, a gente tem medo de desembestar para o vôo. Ironiza a perplexidade
do leitor (destinatário) ao ler uma carta em que a literatura fosse tomando o
espaço, até que a dicção epistolar desaparecesse e restasse, enfim, a
literatura, em todo corpo da escrita: A leitora pedirá explicações, sutilmente
exigirá que se desfaça o feitiço ou o jogo. por insegurança. Ou como
ajuizada medida pra não receber de volta cartas em que a literatura
ocupando cada vez mai s terreno, até que não sobre nada, mas a literatura .
150
As possibilidades, aventadas nas últimas linhas desse
fragmento de carta, podem ser lidas, entretanto, como uma grande vingança
aos leitores acostumados a lerem correspondências que não estão
endereçadas a eles, uma ducha de água fria no voyeurismo desmedido ou,
para não esquecer a analogia estabelecida, aqui, entre a escrita de Ana
Cristina Cesar e o ser mítico da sereia, seduzindo-nos e nos afogando num
mar de letras.
151
CONCLUSÃO
O SINGULAR E ANÔNIMO SOB UM MAR DE LETRAS
152
O SINGULAR E ANÔNIMO SOB UM MAR DE LETRAS
A obra de Ana Cristina Cesar ainda silencia tantos outros cantos,
sinais, códigos e convites à espera de revelação. O seu olhar de esfinge
inquieta, momentaneamente, oculta-se por detrás dos óculos à espera do
viajante que se arrisque a decifrá-la. Mas a sua porção sereia emite, sem
cessar, o canto da sedução implacável, deixando-nos, para sempre, à beira
dos abismos insondáveis da palavra, à mercê de maremotos, de águas turvas
e profundas. Esfinge e sereia aliadas em enigmas e seduções, meneando, em
direção aos leitores desavisados, o universo movediço das palavras
encantadas.
Os textos de Ana Cristina poesia, teoria, correspondências
(tanto completa quanto incompleta) e formatos de diários se projetam,
invariavelmente, rumo a um desconhecido jogo de significados e significantes,
concedendo a sua dicção poética uma particularidade sedutora e enigmática,
misto de encanto e assombro, arroubo e desfalecimento. A prática poética,
adquirida com pesquisa e excessiva leitura, e uma vida sentida intensamente,
faz de sua escrita peça emblemática da literatura pós-moderna, alijada das
definições estanques e possíveis definições de estilo e época.
O trajeto literário de Ana C. direciona os perquiridores ao intento
maior da autora: constituir um projeto poético que, definitivamente,
desestabilizasse os dogmas e a veracidade do autobiográfico. Partindo de tal
intento, o conjunto de sua obra tece uma infinita teia onde se desdobram e
153
emaranham as problematizações dos gêneros literários, a dicção interlocutória,
as tradições canônicas, as experiências de suas leituras, o estatuto e a
autoridade do autor. Enfim, conduz o leitor a um infinito jogo de inquirições,
como as perguntas de algibeira sempre a confundir o interpelado. Conclui-se
que esses textos se postam por detrás de véus enigmáticos: cada véu retirado
oculta um segredo ainda maior e, assim, interminavelmente. A cada novo
enigma, a sedução irrompe mais intensa, sem nunca deixar descansar a face
que sustenta os véus e, tampouco, as mãos que buscam, no desejo da
decifração, retirá-los. Tamanha astúcia literária deve ser justificada no dizer de
Antoine Compagnon:
O objeto literário o é nem texto objetivo nem a experiência
subjetiva, mas o esquema virtual (uma espécie de programa ou
de partitura) feito de lacunas, de buracos e de indeterminações.
Em outros termos, o texto instrui e o leitor consti. Em todo
texto os pontos de indeterminação o numerosos, como
falhas, lacunas, que o reduzidas, suprimidas pela leitura.
(COMPAGNON, 1999: 150)
É, portanto, na tentativa de suprimir as lacunas, as falhas e indeterminações
expressas na escrita de Ana C. que o leitor persegue as falsas pistas, as faltas,
os silêncios emitidos em palavras. Desse modo, a poética da autora configura
uma elocução refratária, desobediente ao crivo das análises totalizantes e
absolutas, não permitindo ao interlocutor interrupção, descanso nessa busca
impulsionada e retraída pelo enigma e, de novo, alimentada pela sedução. E
reafirma, incontestavelmente, o papel fundamental sempre ocupado pelos
leitores em sua obra. Como se ela saísse de cena e entregasse a eles a
responsabilidade de decidir sobre os rumos do espetáculo, tal qual se percebe
no excerto do poema Epílogo:
154
[...] Eu preciso sair mas volto logo. / Um cisco no olho, um
pequeno cisco; na volta continuo a tirar / os cartões da mala, e
quem sabe, quando o momento for / propício, conto o resto
daquela história verdadeira, mas antes / de sair tiro a luva,
deixo aqui no espaldar desta cadeira. (CESAR, 1999a: 149)
Antes de sair, ela deixa a luva no espaldar da cadeira, para que outros a
calcem e contem parte dessa estória. Quando o momento for propício, como
uma atriz, ela voltará à cena, mas parte do espetáculo estará sempre entregue
aos espectadores numa interação vertiginosa e carregada de malícias. E
assim, pode-se confirmar que as tramas do poema efetuam-se ao toque de
cada mão. O poema existe se passado de mão em mão e a esperada cena
final estará sempre se prolongando, desdobrando-se, será sempre adiada até
que todos calcem as luvas.
Partindo do ensaio Singular e anônimo, de Silviano Santiago,
publicado em 1989 no livro Nas malhas da letra, pretende-se melhor concluir
sobre a trama engendrada no discurso poético de Ana Cristina Cesar,
especificamente, naquilo que diz respeito à sedução e ao confronto com o
enigma, ambos, definitivamente, instaurados em sua obra. A sedução, o
estímulo, para que o leitor prossiga, arquiteta e gera, outrossim, os enigmas,
uma outra face, que, de imediato, parece querer espantar o ledor dos textos de
Ana C. Paradoxal caminho, desejo e medo se embatem na angústia de
prosseguir e desistir, dicotomia de sabores para aqueles que pretendem
encontrar na leitura sempre o gosto do fácil para alcançar o divino degustar da
poesia e/ou da prosa. E são nesses caminhos bifurcados que a literatura de
Ana Cristina acena, encena e se posiciona para seus colocutores, situando o
seu texto numa condição sempiterna de ambivalência: verdade e mentira,
ficção e autobiografia, gênero e subgênero, enigma e sedução, esfinge e
155
sereia, estímulo e desestímulo, fácil e difícil. Silviano Santiago aconselha: Um
sertanejo diria em ajuda de Ana Cristina , diria apropriadamente que é
arriscado cutucar boi brabo com vara curta. (SANTIAGO, 1989: 55) pois, para
Silviano:
O poema, sem ser carta, sem ser carta aberta, abre no entanto
lugar para um destinatário que, apesar de ser sempre singular,
não é pessoal porque necessariamente anônimo. Singular e
anônimo o leitor, ele o é todos como também o é uma
única pessoa. O poema o é um discurso em praça pública
para a massa indistinta, nem papo a dois confluente e íntimo,
apesar de ser linguagem em travessia aclaremos. Paul Valéry
disse preferir um leitor que muitas vezes um poema a muitos
leitores que o leriam uma vez. Nada de elitismo aí, por favor.
O poema não é cil nem difícil, ele exige como tudo o que,
na aventura, precisa ser palmilhado passo a passo. o se
avança sem contar com o desconhecido e o obstáculo. A
escalada da leitura. As exigências para a leitura o as mais
variadas e múltiplas, o poema que as nomeie com clareza e
destemor. Porque, nomeando-as, abre-se a linguagem para a
configuração do leitor. (SANTIAGO, 1989: 53-54).
A linguagem em travessia, corpo que sustenta a envergadura poética, como
salienta Silviano Santiago (1989), é elemento primordial para a configuração do
leitor na poesia de Ana Cristina. A linguagem nomeia o singular e o anônimo, o
interlocutor sem face, a materialidade do outro invisível com quem os poemas
simulam um diálogo de olho no olho. Desse convite obstinado, um mar de
letras, superficialmente tranqüilo, transborda por sobre os propósitos de leitura,
ameaçando, constantemente, submergir o leitor, desorientar a leitura sob as
ondas que se agigantam sem cessar.
Sem ser esfinge nem sereia ou sendo todas ao mesmo tempo, a
poeta Ana C. não deixa permanecer em sossego a matéria sobre a qual
amalgama a forma de sua composição poética, nem tampouco repousam, em
sossego, os olhos que a lêem. Os versos, erigidos por sua pena, são caminhos
sinuosos, labirínticos, móveis, voláteis, edificando uma poesia de ordem crítico-
156
irônica, flertando, ludicamente, com todas as nuances da palavra escrita,
poética exigente e em pleno desassossego. Não lugar em seus textos que
não desarme as leituras estabilizadas, pré-estabelecidas, seguras e convictas.
Nada pode ser lido em definitivo, os horizontes de sua linguagem movem-se,
camuflam-se, deslocam-se furtivamente, num movimento fluido, cadente e sem
suspensão. Na análise de Silviano Santiago está sinalizado que
Os chamados textos fáceis (os verdadeiros, faço a distinção)
não conseguem impulsionar a linguagem ao infinito da
travessia (seriam eles poemas?), reduzidos que sempre ficam
a uma viagem cujo percurso é passageiro e batido, embora às
vezes acidentado e útil, como, por exemplo, quando se
empenham num processo de conscientização. Trens
suburbanos se permitem. (SANTIAGO, 1989: 55)
Algo, que não se sabe ao certo, permanece insondável. São os
mistérios da sedução estabelecendo regras, diligenciando as leis, confundindo
imagens, diluindo certezas, porque
[...] seduzir é fazer figuras jogar entre si, fazer jogar entre si
signos roubados a sua própria armadilha. A sedução jamais é o
resultado de uma força de atração dos corpos, de uma
conjunção de afetos, de uma economia de desejo; é preciso
que intervenha um engano e misture as imagens, é preciso que
uma tirada de repente separe coisas desunidas, como num
sonho, ou de repente separe coisas indivisas [...]
(BAUDRILLARD, 2006: 118)
Mesmo sob os efeitos das forças hipnóticas da sedução sabemos da
impossibilidade de encontrarmos os sentidos reveladores dessa palavra
empenhada em lograr. Repetindo Jean Baudrillard, A sedução é aquilo que
desloca o sentido do discurso e o desvia de sua verdade. [...] (BAUDRILLARD,
2006: 61). Por isso é sabido quão irrealizável seria sondar os mistérios mais
profundos dessa escritura.
Como tantos outros críticos escreveram e como tantas
pesquisas acadêmicas demonstraram a respeito da literatura de Ana Cristina
157
Cesar, não há, aqui, nenhuma pretensão em desvendar, de forma concludente,
os seus escritos ou encontrar as chaves primordiais, a gênese para a
acessibilidade de seus textos. Até mesmo porque tamanha astúcia é
impossível. O império de seu gozo está, certamente, em tal impossibilidade.
Mas um estranho e obscuro desejo de continuar, de tentar dizer o não-dito,
de desengasgar os silêncios que a palavra intimida. Escrever, escrever,
recortar, teorizar, encontrar soluções, definições precisas, exatas, para
sossegar as perguntas, a investigação que volta e meia aponta uma parte das
poesias, das cartas, do olhar estetizante, convidando à insistência, a um
próximo passo em direção à face esfíngica da sereia, onde, mesmo quando se
despede, avisa, obliquamente, que poderá voltar:
Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente /
deslizando, chega de passado em videoteipe impossivelmente /
veloz, repeat, repeat. Toma este beijo para você e não me /
esquece mais. Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora /
repouso minhas cartas e traduções de muitas origens, me /
espera uma esfera mais real que a sonhada, mais direta,
dardos / e raios à minha volta, Adeus! / Lembra minhas
palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo, / e parto, eu
incorpóreo, triunfante morto. (CESAR,1999a: 142)
Lembrando suas palavras uma a uma, como os versos acima solicitam, recebe-
se o beijo para não esquecê-la mais, o eu-lírico despede-se num adeus
relativo, carregado das ambivalências próprias da entonação poética de Ana
Cristina: Te amo, e parto, eu incorpóreo, triunfante morto. O que explicita a
imaterialidade da poesia (ou do próprio poeta?), o eu incorpóreo, triunfando
mesmo morto. Novamente, tomo de empréstimo o ensaio Singular e
Anônimo, de Silviano Santiago, para dizer que
Quando as forças se esgotam está finalmente escrito o poema.
Abandonado. Morto. Ainda que a ternura não tenha sido de
todo explicitada ao outro (ela será algum dia?). Ainda que a
158
fraternidade (pura, transparente, global, utópica) não tenha sido
conseguida. No poema e na morte, o homem encontra a única
forma conhecida e justa de uma comunidade que respeita o
singular e o anônimo. A redenção de um e da outra se
encontram, respectivamente, no prazer fecundo da leitura e no
prazer fecundo da procriação. Aí, está toda a precariedade do
permanente a da poesia e a do ser humano. (SANTIAGO,
1989: 59)
Complexa ilação: é impossível dissecar, necropsiar esse morto,
exumar o cadáver que não pára de dar sinais de vida. Em suaves movimentos,
aponta os lugares vívidos, as veredas de seu corpo ainda virgem, não trilhados,
indescobrível. O poema morto ou mesmo o autor morto permanece
esperneando, ricocheteando, dardos e raios à sua volta, remontando-nos ao
questionamento de Michel Foucault (2001):
Que importa quem fala? Nessa indiferença se afirma o
princípio ético, talvez o mais fundamental, da escrita
contemporânea. O apagamento do autor tornou-se desde
então, para a crítica, um tema cotidiano. Mas o essencial o é
constatar uma vez mais seu desaparecimento; é preciso
descobrir, como lugar vazio ao mesmo tempo indiferente e
obrigario , os locais onde sua função é exercida.
(FOUCAULT, 2001: 264)
Debatendo-se, dentro das concepções teóricas da época, que
problematizavam e redirecionavam o lugar ocupado pelo autor dentro da obra
literária, a voz poética de Ana Cristina Cesar oscila em aceitar o veredicto de
sua morte autoral, ironizando tais convicções: [...] Trabalhei o dia inteiro e
agora me retiro, agora / repouso minhas cartas e traduções de muitas origens,
me / espera uma esfera mais real que a sonhada, mais direta [...] (CESAR,
1999a: 142).
O que resta, enfim, das leituras que este trabalho acalenta, é a
grande certeza do impossível, a certeza de que os versos de Ana Cristina
Cesar permanecem flertando com nossos olhares por detrás dos óculos
159
escuros, olhar oblíquo, de soslaio. Sua obra, nomeada por Michel Riaudel
(2001) como um work in progress, se movimenta sem cessar, indicando um
fim que não termina, fluxo de ilusões invariáveis. A cada aceno, a cada gesto
escrito, outras manhas revelam-se, imbricam-se, ocultam-se. Diálogo cíclico,
vertiginoso, onde sombras e claridades se mesclam, reinventando o discurso,
tingindo-o de outras cores, apesar de todos os riscos aos quais se submetem
os desejosos de ir muito além do permitido. Risco duplo: o do poeta e o do
leitor. No dizer de Michel Riaudel,
[...] O leitor pode em vão decifrar mensagens cifradas,
transformar-se em detetive para desvendar todas as passagens
à clé, mas o chega jamais a um sentido último. Ingênuo
policial, manipulado, seduzido, se complexo para o leitor
encontrar o seu lugar nesses textos. Mas essa complexidade é
apenas o efeito de uma dificuldade maior ainda: definir o lugar
do autor. (RIAUDEL, 2001: 44)
Projetando-se em distintos tempos e lugares, a poética de Ana
C. é uma obra inacabada (work in progress), em construção, dependendo de
todos aqueles que, atravessando sua direção, acrescentem uma peça para dar
continuidade ao fluxo, ao movimento desse tecido que nunca finda a medrança
de sua teia. Se não nos arrasta, envolve-nos, dificulta a mobilidade, emaranha
a visão. Como nos diz Leyla Perrone-Moisés, A obra acabada é a obra
historicamente liquidada, aquela que não diz nada ao homem (ao escritor) de
hoje, que não lhe permite dizer mais nada. A obra inacabada, pelo contrário, é
a obra prospectiva que avança pelo presente e impele para o futuro. (MOISÉS,
2005: 81) Pode-se entender que a definição de Leyla Perrone-Moisés para a
obra inacabada esclarece-nos, de alguma forma, a angústia que assola,
também, a consciência pesquisadora, ansiosa por concluir um estudo sobre a
poesia de Ana Cristina Cesar. A escrita da pesquisa parece-nos, sempre,
160
imprópria, agitada, inquieta e/ou inacabada também? Parece se repetir,
soçobrar, girar sobre si, sem querer findar-se, concluir-se. Propício é recorrer
novamente ao ensaio, A fábrica de Identidade, de Michel Riaudel. Para ele:
[...] Como as cavernas que se abrem, mais profundas ainda,
por detrás de cada caverna, como scaras que se recobrem
em uma mise-en-abyme vertiginosa, a obra de Ana Cristina
Cesar trabalha um significante flutuante, que é a servidão de
todo pensamento acabado, mas também a garantia de toda
arte, toda poesia, toda invenção mítica e estética e uma
espécie de significado flutuado, dado pelo significante sem ser
por isso conhecido, sem ser por isso circunscrito
e realizado.
(RIAUDEL, 2001: 47)
Quando as palavras não cumprem mais o papel do
esclarecimento, corre-se o risco absurdo da prolixidade ou, no ditado popular,
chove-se no molhado. Os argumentos são fulminados pela demasia da
repetição, perde-se o gosto, o sentido. Sábio, então, é recolher-se ao silêncio,
obstruir forçosamente a torrente na sua insistência do falar, mesmo que, no
íntimo do pensamento, a devassa ainda permaneça lá, irrequieta,
solavancando imagens, originando remorsos, culpas para aquilo que poderia
ser dito e não foi. Mas antes de findar no silêncio, entregar-lhe o que já não
cabe mais dizer, aviso: não quero mais a fúria da verdade, descalço as luvas
e passo-as, deixando com elas a grata certeza de que, na arte, a sedução
impera como nos jogos amorosos. O jogador, o sedutor, é quem impõe e
dispõe as regras de cada partida. Aos seduzidos, resta a resignação
perturbadora e submissa de ficar à mer dos desnorteantes jogos ou a
confissão de súplica: a teus pés. A moça Ana Cristina Cesar, fascinada pelas
letras, sabe que aqui seus crimes não seriam de amor. E nós sabemos, de
algum modo, que a história está completa: wide sargasso sea, azul, azul que
não me espanta e canta como uma sereia de papel (CESAR, 1999a: 50). Para
161
ouvir este canto de letras, que se amarrar ao corpo da página, todo olhos e
ouvidos.
162
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