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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
LUCIETE DE CÁSSIA SOUZA LIMA BASTOS
OS FIOS DA MEMÓRIA NOS TEARES DA IMAGINAÇÃO DE
ANA MARIA MACHADO:
O NARRADOR EM DO OUTRO MUNDO
BELO HORIZONTE
2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
LUCIETE DE CÁSSIA SOUZA LIMA BASTOS
OS FIOS DA MEMÓRIA NOS TEARES DA IMAGINAÇÃO DE
ANA MARIA MACHADO:
O NARRADOR EM DO OUTRO MUNDO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras,
área de concentração: Teoria da Literatura, elaborada sob
a orientação do Prof. Dr. Marcus Vinícius de Freitas.
BELO HORIZONTE
2010
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Ficha catalográfica elaborada pelos bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Bastos, Luciete de Cássia Souza Lima.
M149d.Yb-f Os fios da memória nos teares da imaginação de Ana Maria Machado
[manuscrito] : o narrador em Do outro mundo / Luciete de Cássia Souza Lima
Bastos. – 2010.
145 f., enc.
Orientador: Marcus Vinícius de Freitas.
Área de concentração: Teoria da Literatura.
Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Letras.
Bibliografia : f. 127-145.
1. Machado, Ana Maria, 1941 - Do outro mundo Crítica e interpretação
Teses. 2. Literatura infanto - juvenil brasileira – História e crítica – Teses.
3. Memória na literatura Teses. 4. Imaginação Teses. I. Freitas, Marcus
Vinícius de. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras.
III. Título.
CDD : 808.068
Dedico
Aos meus alunos da vida inteira, por serem motivo para o meu crescimento, e à minha mãe,
Lázara Bernardes (in memoriam), que me ensinou a ler o mundo e com ele me encantar.
AGRADECIMENTOS
A principal necessidade de nossas vidas é alguém
que nos obrigue a fazer o que podemos fazer. Eis a
tarefa do amigo.
Ralph Waldo Emerson (1836)
O texto que escrevi é povoado pela presença incrustada de todos aqueles que me
aceitaram exercer uma imaginação fértil e contínua em narrativas que arrasto pela vida afora.
Por isso mesmo vivo. Com elas percorri verdadeiras fontes de conhecimento e de prazer
“brotante”. Fingires e viveres. Fui fada e fui bruxa no Sítio de Lobato, fingi ser fingidora com
Pessoa e Manoel de Barros, percorri os sertões de Guimarães e me encontrei nas cidades
invisíveis de Calvino. Mesmo assim, continuo devedora de séculos de literatura que não li.
Nessa minha busca encontro gente. Muita. Gente que veio. Gente que foi. Todas permanecem
em mim escritas e na minha escrita se presente-ficam. Caminhos poéticos e outros tantos não.
Sou grata a Deus, por não me abandonar nos momentos dolorosos de solidão e por
iluminar meus caminhos que pareciam demasiadamente obscuros. Deu-me asas.
À “tia” Celeste, com quem aprendi a separar e juntar letras de tantos e infinitos
jeitos, pura magia. Agradeço de coração à professora Belma, com quem ganhei intimidade
com a língua portuguesa e a quem peço perdão por não ter correspondido à altura aos
ensinamentos da mestra. A ela também agradeço o carinho e o zelo com que leu esta
dissertação, afinando-a com a norma culta. Às professoras: Celuta e Maria Elvira, na
graduação, por terem acreditado no meu potencial. Lembro também os professores da
especialização: Maria Afonsina e Hélder Pinheiro, com os quais descobri as possibilidades
teóricas em Literatura Infantil. Às colegas professoras da UNEB: Fátima Pires e Zoraide
Portela, pelas sugestões ao projeto, e ao Edmilson Morais, ao Romar Souza e à Zélia
Malheiro, pelo incentivo e pelo socorro na hora certa.
Aos professores do mestrado agradeço pelas valiosas discussões acadêmicas: à
Ana Clark, pelas sugestões sérias e precisas dispensadas durante o processo de qualificação; à
Marli Fantini, pela apresentação das teorias sobre autobiografia; à Silvana Pessôa, pela
generosidade em compartilhar seus conhecimentos e dar-me a conhecer Agustina Bessa-Luís,
e à Constância Duarte, que não foi minha professora, mas me ensinou que “ciência [pode]
rimar com amor”.
Tantas foram as reivindicações prontamente atendidas, que preciso também
agradecer às funcionárias do PÓS-LIT, principalmente à Letícia, e às da Biblioteca da
Universidade Federal de Minas Gerais. Agradeço inclusive aos colegas de turma no mestrado
pela permuta de conhecimentos, lembro Gerlane, com quem firmei vínculos mais estreitos de
amizade.
Agradeço também a Ana Maria Machado, por ser escritora de uma obra múltipla e
significativa, que constitui um universo infindável de possibilidades de pesquisa. E agradeço
às escritoras: Anna Cláudia, pela disponibilidade e pelo rico trabalho sobre a obra de Ana
Maria, e Gláucia de Sousa pela leitura do primeiro capítulo, pelas críticas e sugestões
preciosas.
À UFMG, por propiciar um curso de excelência, o que muito contribuiu para a
minha formação, e à Universidade do Estado da Bahia, ao Departamento do Campus VI e ao
Colegiado, instituição à qual sou vinculada, pela concessão da licença.
Aos membros da Banca Examinadora, pelas sugestões, valiosas contribuições que
enriqueceram esta dissertação.
Para um agradecimento especial ao professor Marcus Vinícius, pela orientação
confiante e segura, por compreender as minhas inseguranças, limitações e por permitir que eu
fosse a autora deste discurso, tomo emprestado à escritora Cora Coralina o pensamento:
“Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina !”
Peço desculpas à minha família, incluindo nela as amigas Rita e Vera, pelas
ausências, o mau humor e o distanciamento. Aos meus filhos, Homero, Felipe e Gabriel,
grandes amigos, agradeço pelo carinho, pelo amor e pela “torcida”. Ao José Homero,
companheiro de todas as horas, meu lastro desde 1982, pela compreensão e segurança,
imprescindíveis a esta conquista.
São tantos os merecedores de serem lembrados e reconhecidos... Devo agradecer a
todos que foram fios que me ajudaram a construir a teia deste discurso, sem a qual eu não
seria. Discurso que pertence a teóricos, escritores, pesquisadores que me precederam e
educadores que deixaram marcas indeléveis na minha formação. A todos os que acreditaram
que este trabalho seria possível e que estiveram ao meu lado durante todo esse tempo, mesmo
que seus nomes não tenham sido mencionados, o meu reconhecimento e carinho. Desculpas
aos conhecidos e desconhecidos que suportaram minhas crises de quase histeria.
Um agradecimento final ao leitor, sem o qual esta dissertação não teria razão de
existir.
A gratidão de quem recebe um benefício é sempre
menor que o prazer daquele que o faz.
Machado de Assis (1872)
Quando era criança
Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.
É hoje que sinto
Aquilo que fui.
Minha vida flui,
Feita do que minto.
Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.
1
Fernando Pessoa (uma das paixões de Ana)
Mais difícil do que escrever ficção é, certamente,
escrever sobre a realidade.
Mais difícil do que inventar é, na certa,
lembrar,juntar, relacionar, interpretar-se.
Explicar-se é mais difícil do que ser.
E escrever é sempre um ato de existência.
Quando se escreve conta-se o que se é.
Parece que se inventa, mas não: vive-se.
Parece que se cria mas, na realidade, aproveita-se.
A história como que está pronta dentro da gente.
É como a pedra bruta da qual o escultor tira os excessos.
O que sobra é a obra.
No espírito, no fundo, no íntimo, a história espreita.
Ela existe antes que o escritor suspeite.
A história é mais real do que qualquer explicação.
A realidade do que sou está mais no que escrevo
do que nas racionalizações que eu possa fazer.
2
Ruth Rocha (irmã do coração)
1
Poema ortônimo, escrito por Fernando Pessoa em 2 de Outubro de 1933.
2
Ruth Rocha. In: BASTOS, 1995, p.47.
RESUMO
A publicação, em 1929, de A menina do narizinho arrebitado, de Monteiro Lobato, foi o
marco da revolução na literatura infantil brasileira, consolidado por uma literatura criativa e
distanciada dos objetivos meramente pragmáticos. Na década de 1970, após um período de
estagnação, com o boom da literatura infantil brasileira, uma nova tendência começou a ser
delineada. Nesse novo quadro, despontam grandes escritores, dentre eles, Ana Maria
Machado, um dos expoentes por criar uma literatura de linguagem extremamente cuidadosa.
Ana conseguiu conciliar o que, em princípio, parecia se opor: o emprego de uma linguagem
comunicativa que se nega ao hermetismo e o apelo a imagens poéticas que buscam o prazer
estético, procurando tornar o texto acessível ao pequeno leitor e interessante ao adulto. Esta
pesquisa teve por objetivo o estudo da memória na obra de Ana Maria com ênfase na novela
Do outro mundo, produção infanto-juvenil, pelo intercurso do narrador, procurando articular a
memória das experiências vividas pela autora e a (re)construção, pela escrita, das
sensações/impressões do vivido, atualizadas pelo sujeito que narra; plano em que se
interpenetram o autor e o narrador. Ana Maria torna possível o diálogo entre o que poderia ter
sido, resgatado pela memória e interpretado pelo sujeito que escreve, e o que é (re)construído
pelo narrador que no presente relata. Procurei focar a não linearidade da trama, cujos enlaces
espaço/temporais se abrem à multiplicidade, articulando passado (memória da infância),
presente (re-criado) e futuro (imaginado), em arranjos que caminham pela sobreposição de
planos narrativos. Nesse percurso em que o pretérito é (re)criado no presente narrativo, via
autor que o atualiza na voz do narrador, procurei sustentação na teoria sobre o escritor criativo
de Sigmund Freud (1908), na teoria sobre o fictício e o imaginário de Wolfgang Iser (1976-
1979), na teoria da narrativa de Oscar Tacca (1978) e na teoria e história sobre a literatura
infantil e juvenil de Nelly Novaes Coelho(1983-2000), que foram de grande valia para esta
pesquisa. Não tive a pretensão de esgotar a reflexão sobre experiência vivida e ficção na obra
de Ana Maria, pelo contrário, tive a expectativa de compor uma base teórica que pudesse
contribuir para futuros estudos sobre o texto literário destinado às crianças, propiciar
elementos que possibilitassem o cotejo literário com outros campos de conhecimento e
ratificar a importância de Ana Maria Machado para a literatura brasileira.
Palavras-chaves: Literatura Infantil. Ana Maria Machado. Narrador. Memória. Imaginação.
ABSTRACT
The publication, in 1929, “The girl with the turned up nose” (A menina do narizinho
arrebitado) of Monteiro Lobato was the main point for the revolution in Brazilian Children’s
literature. It was consolidated by a creative writing free from purely pragmatic purposes. In
the 1970s, after a period of stagnation, with the boom in Brazilian Children’s literature, a
trend began to be delineated. In this new scenario, great writers appeared. Among them, there
is Ana Maria Machado, one of the exponents to create a literature of language extremely
careful. Machado was able to reconcile what at first seemed to oppose: the use of a
communicative language that refuses the hermetic writing aspects and the appeal to the poetic
images aimed to aesthetic pleasure, trying to make the text accessible to children and
interesting to adults. This research has as objective the study of memory in the work of Ana
Maria Machado with emphasis on the tale “The other World” (Do outro mundo), a children
and youth production where the narrator, by the conversation, tries to articulate the memory
of the author’s lived experiences and the (re)construction, through the writing, of sensations /
impressions of what was lived, updated by the person who narrates; a tale where the author
and narrator are intertwined. Ana Maria Machado makes possible the dialogue between what
could have been remembered by the memory and judged by the subject who writes, and what
is (re)constructed by the narrator that reports. I tried to focus on the nonlinearity of the plot
whose timeline links open themselves to the diversity, articulating past (childhood memory),
present (recalled childhood thoughts) and future (imagined pictures) in arrangements that
approach narrative plans. Along the way in which the past is (re)created in the present time in
the narrative via the narrator's voice and updated by the author, I based my writing on the
theory about the creative writer of Sigmund Freud (1908), on the theory about the fictional
and the imaginary of Wolfgang Iser (1976-1979), on Oscar Tacca’s theory of narrative (1978)
and on the theory and history about children and youth literature of Nelly Novaes Coelho
(1983-2000) which were very important to this research. I did not have the pretension to
exhausting the reflection of lived experiences and fiction in the work of Ana Maria Machado.
On the contrary, I expected to make a theoretical basis that could contribute to future studies
of literary texts for children, providing information that would enable to collate data between
literature and other fields of knowledge and to confirm the importance of Ana Maria Machado
in the Brazilian literature.
Keywords: Children’s literature. Ana Maria Machado. Narrator. Memory. Imagination.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: FOI ASSIM, HÁ MUITOS E MUITOS ANOS ..... ......... 11
CAPÍTULO 1: AGULHAS, FIOS E CORES ................................................. 20
1.1
Aracne sem segredos: histórias de Ana ........................................................................ 20
1.2 Como linha na agulha: Ana e a literatura infanto-juvenil ......................................... 22
1.3 Tecendo histórias há mais de 150 livros: entre a ficção e a teoria ............................. 34
CAPÍTULO 2: TRANÇANDO A TAPEÇARIA E ESCOLHENDO AS
LINHAS - FREUD, ISER E TACCA ............................................................. 47
2.1 Escritor criativo: Sigmund Freud (1908) ...................................................................... 48
2.2 Duplo imaginário: Wolfgang Iser (1976-1979) ............................................................. 53
2.3 Processo narrativo: Oscar Tacca (1978) ........................................................................ 63
CAPÍTULO 3: FRIVOLITÉ DE ANANSE - ANÁLISE DA NOVELA......76
3.1 Era uma vez, num lugar distante: Do outro mundo ..................................................... 76
3.2 “Recado do nome” Mariano ........................................................................................... 80
3.3 O verso e o avesso da trama ............................................................................................ 92
CONCLUSÃO: DANDO LAÇADAS E ARREMATANDO OS NÓS ....... 117
BIBLIOGRAFIA: ............................................................................................ 127
...não importa tanto o tema da tese quanto a
experiência de trabalho que ela comporta.
Umberto Eco (2000)
11
INTRODUÇÃO:
FOI ASSIM, HÁ MUITOS E MUITOS ANOS ...
Num fino traço
Faço o perfil de ninguém.
Quem quer ser alguém
Nessa vida sombria
Parida com sangue e papel?
Mas no círculo que traço,
O nariz, os cinco dedos na ponta do braço,
Donzela esguia ou boneco engonço,
Limito um novo ser: e me abraço
A mim, no poder de gerar um sinal
Que instaure no nada um todo possível.
Quem faz de nós reis, deuses, réus
Da nossa eterna contradição?
No texto que faço
Separo o nada do nada,
Abrindo o espaço
Da minha interrogação.
Lygia F. Telles (2000)
O interesse pela Literatura Infantil remonta à minha infância, quando fui
apresentada à obra de Monteiro Lobato, o primeiro brasileiro a compreender que crianças são
seres pensantes e inteligentes. Ele, em carta ao amigo Godofredo Rangel, escreveu: "Ainda
acabo fazendo livros onde nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar,
como morei no Robinson e n'Os filhos do Capitão Grant"
3
. Passei a morar no Sítio do Pica
Pau Amarelo, vivi aventuras incríveis com Pedrinho e Narizinho, comi dúzias de bolinhos de
Tia Anastácia, ouvi histórias de Dona Benta, aprendi com o Visconde e briguei muito com
Emília, traquina e espevitada como eu, sensação de estar em casa. Daquela leitura iniciante,
passei a fazer dos bons livros de literatura moradas temporárias, a elas retornando, como um
filho pródigo, sempre que a saudade assim determinasse. Essas leituras lobatianas
influenciaram na formação de uma pessoa inquieta com fértil disposição investigativa, curiosa
como a boneca Emília. No antigo curso de magistério, conheci a obra de Ana Maria Machado
e logo percebi a afinidade estética entre ela e Monteiro Lobato; ela era uma de suas leitoras
certamente, depois, confirmei o que em princípio era hipotético, a autora admite ter recebido
influência de Lobato na sua formação de leitora voraz e escritora. Essa relação de afinidade
3
LOBATO, M. Disponível: www.sitedoescritor.com.br/sitedoescritor_escritores_mlobato_texto007.html
Acesso em: 20/08/2009.
12
entre escritor(a)/leitor(a) é de fundamental importância para a construção do sentido no texto
literário, não há que duvidar.
Minha experiência de leitura das obras de Ana Maria Machado foi ganhando
fôlego na graduação e, posteriormente, na especialização lato sensu, culminando numa das
opções do programa da disciplina Literatura Infantil, disciplina sob minha responsabilidade.
Nada mais natural que um veio rico de possibilidades que a obra dessa autora oferece viesse a
resultar numa pesquisa de mestrado. A escolha do tema deve-se, entre outros, à minha
integração ao Grupo de Pesquisa Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq)
4
,
nas
linhas de pesquisa: Linguagem, Cultura e Memória
5
e Educação, Leituras e Formação
Docente
6
. E optar pela literatura lida por ou para crianças
7
para o estudo da memória e
imaginação deu-se pela razão natural de eu trabalhar com este gênero textual e pela crença de
que o bom texto literário, independentemente de seu destinatário, é uma obra de arte. Um
indivíduo de qualquer idade, ao ler ou ouvir uma história, dialoga não com quem escreve,
mas com a visão de mundo do outro, neste caso um adulto, emergindo desse contato mais
bem preparado para vivenciar suas experiências cotidianas. O ingresso no Programa de Pós-
Graduação em Letras desta Universidade e o consequente amadurecimento da pesquisa
4
Grupo de Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia – Campus VI, Caetité.
5
Esta linha se propõe a estudar a cultura, concebendo-a como espaço em que não se estabelecem as relações
de sociabilidade, modo de ser e pensar o mundo, mas também um espaço em que diversos repertórios
socioculturais estão em constantes tensões oriundas das relações de poder suscitadas por grupos étnico-culturais.
As pesquisas que versam sobre a relação entre memória, história e representação problematizam a memória de
segmentos sociais hegemônicos em contraposição à dos subalternizados. É nessa perspectiva que se incluem os
estudos sobre linguagem, entendendo-a como fenômeno de natureza sociocultural e histórica em que
transparecem relações instituídas entre sujeitos, cultura e memória.
6
Esta linha se pauta pela compreensão de que a produção do conhecimento envolve educação, leituras e
formação docente e exige dos pesquisadores, na atualidade, o desafio de enfrentar a formação e a pesquisa numa
abordagem educativa, cuja ação problematizadora constitui um campo convidativo a desconstruir conceitos
elaborados e re-elaborar novos com a perspectiva de que o processo educacional se de forma reflexiva e
democrática. Novos desafios estão sendo postos com o avanço do conhecimento tecnológico e, diante dessas
possibilidades de leituras, plurais ou singulares, faz-se preciso o acolhimento da diversidade de produção
literária, sejam elas consagradas ou não. Assim sendo, esta linha de pesquisa acopla projetos na área de estudos
educacionais, formação docente, processo ensino-aprendizagem, a relação pesquisa e prática pedagógica, as
produções de linguagens diversificadas, visando à valorização das experiências das mais variadas formas de
leituras de mundo, que discutem as vivências locais e globais na contemporaneidade.
7
A criança de que trata este texto é aquela que se encontra na faixa etária compreendida entre 8 e 13 anos (um
pouco para mais, um pouco para menos, considerando-se a diferença de desenvolvimento de um para outro
indivíduo). Nessa fase se verificam várias transformações na forma como o indivíduo se relaciona com os outros,
na sua forma de pensar, de sentir, nos seus interesses e desejos, o que o leva a se questionar, questionar os outros
e tudo o que o rodeia, desencadeando, por conseguinte, modificações na sua vida psíquica, social e familiar. Essa
transformação cria muita fantasia e expectativas diante do desconhecido, a pessoa passa a querer e a exigir mais
respeito, principalmente dos adultos, e se prepara para construir uma nova identidade. o possui características
específicas da infância, tampouco apresenta características próprias da adolescência, encontra-se num período
intermediário entre uma e outra fase, demonstrando interesses comuns às duas fases de desenvolvimento, como
o desejo, o interesse pela aventura, a fantasia. Assim, os termos infância, criança, pré-adolescência ou jovem
serão utilizados indistintamente para se referir a essa faixa etática e a literatura a ela destinada será designada
pelas expressões: “infanto-juvenil” ou “infantil- juvenil”.
13
encaminharam-me à eleição do eixo memória e imaginação na obra de Ana Maria Machado,
num diálogo que possibilita a (re)criação do vivido da autora pela palavra (voz) do narrador.
Em razão do significativo número de publicações da autora, li uma quantidade
que considerei relevante para o percurso investigativo a que me propus. A leitura realizada
incluiu livros diversificados: romances destinados ao público adulto e narrativas destinadas ao
público infantil e/ou juvenil, uma autobiografia e ensaios. Dedicação maior foi dispensada à
literatura destinada à criança em razão do objeto de estudo. A necessária delimitação do
corpus, entretanto, não foi impedimento para esporádicas referências a outros tulos da
autora, inclusive fragmentos de obras para adultos, que foram necessários à elucidação de
algum ponto da questão estudada. A realização de qualquer atividade humana leva o sujeito a
fazer escolhas, assim toda opção implica uma renúncia. Estas opções, entretanto, o
impossibilitam a realização da pesquisa, tampouco descartam o conhecimento adquirido no
processo, mesmo que essas escolhas desqualifiquem as hipóteses iniciais. A escolha da novela
Do outro mundo (2002) adveio da possibilidade de um estudo analítico-comparativo entre o
narrador dessa novela e o percurso criativo da autora.
Realizado o recorte, feitas as escolhas teóricas que balizaram a minha reflexão,
passei à análise das fontes literárias e demais textos selecionados para o estudo, procedi à
pesquisa da fortuna crítica da escritora, incluindo nessa etapa as publicações em livros, teses,
dissertações, entrevistas publicadas e material idôneo disponível on-line, dentre eles o site
oficial da autora. Atenção maior conferi aos textos autobiográficos que se encontram no link
Caderno de Notas Informações e curiosidades sobre Ana Maria Machado. Alguns desses
textos foram escritos pela própria autora especificamente para o site, outros foram
compilações de trechos do livro Esta força estranha – trajetória de uma autora, livro sobre o
qual também detive um olhar atento por se tratar de assumida autobiografia. A análise da
fonte coincidiu com a duração da pesquisa em razão das buscas por indícios que me
auxiliaram na comprovação da hipótese da interlocução entre experiência vivida e ficção, na
obra de Ana Maria Machado, principalmente no que concerne à construção do sujeito escritor.
Se considerada a vasta produção de Ana Maria Machado e sua importância para a
literatura infantil brasileira, são relativamente poucos os estudos realizados sobre a sua obra.
No banco de dados do CNPq, encontrei 480 pesquisas que veiculam o nome da autora; a
grande maioria dessas pesquisas trata de temas relacionados a questões pedagógicas, fato
comum também em relação a outros escritores de literatura infanto-juvenil. Noutras, o nome
da autora figura como citação em estudos sobre outros autores, integra uma relação dentro de
um estudo sobre um tema abrangente da literatura infanto-juvenil ou sua obra aparece
14
relacionada a estudo de natureza linguística. São poucas as pesquisas sobre a literatura
infanto-juvenil de Ana Maria Machado que voltam o seu olhar para a estética textual.
Interessa citar, aqui, as pesquisas em literatura que se debruçam sobre o texto em si e que, por
isso mesmo, são mais significativas para o meu estudo. Entre outros autores que estudaram o
texto de Ana Maria Machado, cito: o livro de Vera Maria Tietzmann Silva (2004) e os textos
acadêmicos de Victoria Wilson Coelho Cerbino(1987), Cassandra G. Medeiros Cruz(1991),
Roberta Penna Ferreira(2008), Anete Mariza Torres D. Gregório(2001), Cristiane Madanêlo
de Oliveira(2007), Maria Tereza Gonçalves Pereira(1990), Suely da Fonseca Quintana(1989),
Waltina de Almeida Lara Reis(1990), Simone Michelle Silvestre(2007), Etiene Mendes
Rodrigues(2006), Ilma Socorro Gonçalves Vieira(2001), Zelinda Macari Tochetto (2001),
Claudiomiro Vieira da Silva (2005), Senise Camargo Lima Yazlle(dissertação:1999/tese:
2008) e Simone Michelle Silvestre(2007).
8
O livro Trança de histórias: a criação literária de Ana Maria Machado(2004),
coletânea crítica organizada por Maria Teresa Gonçalves Pereira e Benedito Antunes, e Nos
bastidores do imaginário: criação e literatura infantil e juvenil(2006), de Anna Claudia
Ramos, constituem, os trabalhos mais fecundos sobre a estética na obra da autora até o
momento. Minha proposta aproxima-se dos últimos escritos que citei no que se refere ao
corpus escolhido, mas deles se afasta, tanto na escolha da obra quanto na abordagem
pretendida. Interessa-me pesquisar o narrador sob a perspectiva das relações memória e
ficção, permeadas pela imaginação na construção do sujeito escritor.
Cabe considerar também que a pesquisa em literatura apresenta peculiaridades
próprias. Neste ponto é pertinente lembrar o que escreveu o pesquisador Helder Pinheiro
(2003): “trata-se de um objeto com características singulares e investido de uma dimensão
estética essencial”.(p.23) Com efeito, as especificidades se encontram no objeto de estudo e
no modo de tratá-lo. No caso da narrativa infanto-juvenil, o cuidado deve ser ainda maior,
pois desde o princípio há que se considerar o receptor do texto. Por essas questões e
balizando-me ainda no mesmo pesquisador, afirmo que a atitude investigativa deve se pautar
“pela constante pergunta sobre o sentido do que foi narrado [...] ou do sentido que foi
sugerido pela imagem poética”.(p. 16) Parece ser, assevera Helder Pinheiro, mais de
sensibilidade, intuição e criatividade do que de qualquer outro meio científico que a pesquisa
em literatura se realiza, mas métodos não foram desprezados, considerando os vários
8
CNPq.PLATAFORMA LATTES. Disponível em: http://buscatextual/index.jsp Acesso em: 25/07/2008.
Referências completas na bibliografia.
15
conceitos que dialogam com meu objeto de estudo. Não se trata de um percurso sem direção
ou da escolha de um método, mas de uma postura crítica frente ao texto sustentada por
pensamentos de teóricos que ajudaram a elucidar cada reflexão desta pesquisa e a compor um
tecido em que é possível costurar todos os fios num único motivo composto de variadas cores
que se mesclam e se complementam num escopo.
Na esteira desse debate, estudo o narrador Mariano, da novela Do outro mundo, e
as possíveis relações entre a experiência vivida pela autora e a (re)construção, pela escrita, das
sensações/impressões do vivido, atualizadas pelo sujeito que narra. Focalizo a não linearidade
da trama, cujos enlaces espaço-temporais se abrem à multiplicidade, articulando passado
(memória da infância), presente (re-criado) e futuro (imaginado), em arranjos que caminham
pela sobreposição de planos narrativos. Pretendi mostrar como a obra de Ana pode contribuir
para a história teórica e critica da literatura infantil brasileira, mediante a análise dos aspectos
constitutivos do livro Do outro mundo. Entendo ser importante para o estudo da memória o
diálogo entre a memória de infância da autora e o presente da escrita, em que se interpenetram
o autor e o narrador.
É possível interpretar a obra como a representação metafórica da busca da
construção do escritor, vista como diálogo entre memória de infância e imaginação, realização
possível na ficção. Embora aponte para um caráter metalinguístico na medida em que um
texto de literatura infanto-juvenil tematiza a criação de uma ficção também destinada à
infância e à juventude, interessa-me focalizar a possibilidade dialógica entre realidade e
imaginação na formação do discurso ficcional de Ana Maria Machado.
A despeito de imprimir restrições à pesquisa, vejo meu objeto a partir de três fios
condutores, fundamentais quando pensamos a literatura infanto-juvenil como corpus para um
trabalho de memória; o primeiro diz respeito ao próprio objeto em estudo que, por suas
especificidades, necessita de um tratamento diferenciado; o segundo, tão importante quanto o
primeiro, trata da memória como recurso de (re)escrita do sujeito que escreve- neste ponto a
reflexão dialógica entre os textos ficcionais e teóricos da autora é de grande importância; o
terceiro, e não menos importante, diz respeito à relação entre realidade, imaginação e ficção,
os quais ajudarão a esclarecer a relação entre a vivência (passado), a escrita (presente) e
imaginação (projeção para o futuro), na obra de Ana Maria Machado. Esses fios, amarrados
entre si pela trama da narrativa Do outro mundo, permitem uma visão totalizante da teia.
Em consonância com os objetivos e a metodologia escolhida, esta dissertação
encontra-se estruturada em três capítulos entremeando a introdução e uma conclusão, em que
retomo a essência do que foi abordado nos capítulos que a precederam, seguida das
16
considerações finais, que podem instigar um começo antes que decretar um fim, e a
bibliografia referida neste texto e de apoio à pesquisa.
No primeiro capítulo, intitulado AGULHAS, FIOS E CORES, investigo a
relação entre produção literária e a escrita teórico-crítica de Ana Maria Machado, discuto a
importância dos estudos sobre memória na obra de Ana Maria para o contexto da literatura
infanto-juvenil. Este capítulo de abertura está subdividido em três seções de conformidade
com o percurso pretendido: Aracne sem segredo: histórias de Ana, primeira parte, em que
faço um breve percurso sobre a biografia da autora, sem pretensão alguma de esgotar as
informações a esse respeito. A segunda parte, cujo nome é Como linha na agulha: Ana e a
literatura infanto-juvenil, dedico à reflexão sobre a criança e a literatura destinada a esse
público, com ênfase na qualidade estética do texto. Alguns pensadores como: Philippe Ariès
(1981), Nelly Novais Coelho (1983-2000), Eliana Yunes (1980-2004), Reinaldo Damazio
(1994), Ieda de Oliveira (2003-2005), Anna Cláudia Ramos (2006) e a própria Ana Maria
Machado (1996-2010), me servem de aporte. Na terceira parte, Tecendo histórias há mais de
150 livros: entre a ficção e a teoria, abordo características peculiares à obra de Ana Maria
sobre os recursos estéticos/estilísticos por ela utilizados, a relação entre o pensamento teórico-
crítico da escritora e sua produção ficcional, bem como a importância de sua obra para a
literatura infantil-juvenil brasileira. Para nortear tais discussões, selecionei os trabalhos mais
relevantes sobre a obra da autora, os textos teóricos da própria Ana e alguns fragmentos de
sua obra ficcional que me ajudaram a costurar o tecido.
No segundo capítulo, TRANÇANDO A TAPEÇARIA E ESCOLHENDO AS
LINHAS: FREUD, ISER e TACCA, reflito alguns conceitos fundamentais para a minha
pesquisa, como memória, imaginação e ficção. Este capítulo, como o primeiro, também se
subdivide em três seções: Escritor criativo: Sigmund Freud (1908), Duplo imaginário:
Wolfgang Iser (1976-1979) e Processo narrativo: Oscar Tacca (1978). Com base no
arcabouço desses teóricos, procedo ao estudo interpretativo do corpus, procurando sempre
articular esses pensamentos às obras da escritora, em especial à novela selecionada para
estudo, análise que é feita no capítulo subsequente.
O terceiro capítulo, FRIVOLITÉ DE ANANSE, consiste numa abordagem
analítica da narrativa Do outro mundo, buscando fazer a interlocução entre os elementos
constitutivos da obra e os conceitos refletidos, bem como articulá-los ao tema, costurando
cada elemento, cada conceito, num tecido que tenha como resultado a coerência teórica
pretendida. Também este capítulo é subdividido em três seções. A primeira, intitulada Era
uma vez, num lugar distante: Do outro mundo, traz um resumo da essência da narrativa e
17
algumas reflexões; a segunda seção, “Recado do nome” Mariano, discute a relação entre o
nome da autora e o do protagonista, que também é o narrador da obra e a constituição do
escritor pela escrita; a parte final deste capítulo, O verso e o avesso da trama, trata da análise
crítica da novela.
Para este percurso que realizei, escolhi algumas metáforas, como aranha, teia,
tecido, ponto, bordados, costuras, nós, agulha, linhas, laçadas, pontos, frivolitê, dentre outras
que me remetem a texto, texturas e estruturas, embora nada originais, estão disponíveis,
séculos, por pertencerem a criação anônima do nosso universo cultural. A seleção não se
processa aleatoriamente, mas pela afinidade entre essas palavras e a autora em epígrafe.
Na orelha do livro Texturas: sobre leituras e escritos (2001), Ana conta sobre um
encontro interessante que teve em viagem à Guatemala. Ela observa uma índia, que
movimenta fios coloridos sobre o balcão de uma pequena loja em busca da melhor
composição, combinando-os e recombinando-os em variadas nuanças:
... o têxtil era também um texto, com sua rica textura, seu avesso e direito,
seus temas recorrentes, seus sentidos múltiplos, sua própria organização do
caos inicial. Nunca esqueci a cena. Entrei para comprar agulha e linha, e
acabei assistindo a um espetáculo, presenciei a gênese de uma obra. [...]
Sempre me vejo às voltas com as mesmas questões daquela mulher de
Chichicastenango: escolher o tema, selecionar o que vou usar, eliminar o
supérfluo, encadear os elementos, contrapor os argumentos, desenvolver
uma linha de raciocínio, seguir um plano mental... tudo isso num paciente
trabalho de dar um ponto de cada vez. E, no fim, rematar bem, para ficar
firme e não se desmanchar de uma hora para a outra.
Ana Maria, não apenas em suas narrativas ficcionais, mas também em seus textos
teóricos, faz uso deste artifício analógico, sua obra resulta numa malha diversificada dessas
metáforas. Numa passagem do mencionado livro Texturas (2001), Ana narra a experiência
que teve com Luísa, sua filha: ao compartirem a construção de uma teia de aranha, ela
percebe que o silêncio que compartilharam durante e após o processo da construção e o nada
fazer ou dizer ante o inefável a fez refletir sobre o livro que à época escrevia:
Talvez por causa dessa experiência, o livro que eu estava escrevendo nessa
ocasião (um romance chamado Aos quatro ventos) tenha incorporado
também a busca de uma estrutura que não existe, mesmo, em torno da qual
se organiza a criação. Ou, mais provável, talvez eu estivesse tão atenta à
18
manifestação do projeto da teia justamente porque estava preocupada com
essa questão do livro. Isso não sei. Quando estou escrevendo alguma obra de
ficção mais complexa, sempre fico assim, me sentindo muito ligada a tudo
que está se criando na natureza em volta de mim. Além disso, a noção de que
existe uma estrutura subjacente, um projeto inconsciente segundo o qual se
ordena a criação, é uma velha obsessão de quem escreve. Nem chega a haver
novidade alguma em associar essa força regente a elementos de tecelagem e
tapeçaria ... (2001, p.13-4)
É possível verificar que ela mesma associa o ato de escrever ficção a tecer, fiar e
bordar, admitindo, inclusive, não ser a pioneira nesta espécie de analogia, assimilada e
registrada na linguagem cotidiana pelo uso anônimo e coletivo. Sobre essas relações entre
texto e têxteis, tecer e escrever, Ana relembra, no mesmo livro, uma fala de Barthes, à época
de sua orientação de mestrado, sobre o emprego de algumas palavras para designar o texto e a
escrita que derivam de um grupo de palavras tradicionalmente utilizadas para se referirem a
atividades femininas, como fiação e tecelagem, a exemplo da palavra texto, variante de tecido.
E completa dizendo que “... ao tratarmos da narrativa falamos em trama, em enredo, em fio
da meada... Dizemos que ‘quem conta um conto aumenta um ponto’. E temos as palavras
novelo e novela.” (p. 15- grifos da autora)
Posteriormente, Ana escreveu um livro de ficção intitulado: Ponto a ponto (1998),
que é construído por diversos fios, como todo texto. Um deles, segundo a escritora, veio de
relatos que ouviu- elementos da memória que ela utiliza como parte da matéria prima para a
sua criação; outro, da própria experiência familiar. Do entrelaçamento desses fios, criou a
protagonista:
uma mulher brasileira humilde, do interior, dona-de-casa e mãe de família,
que ao tecer e bordar vai criando a si mesma, fazendo a sua própria história,
criando seu próprio sentido. Alguém que me fazia lembrar muito a minha
avó Ritinha, criada na roça, à margem do rio São Mateus, analfabeta mas a
mais fecunda biblioteca de minha vida com seu riquíssimo repertório de
histórias populares que me marcaram para sempre. E, além disso, exímia
bordadeira, mestra de linhas e agulhas, de rendas e bilros, de bastidores e
navettes, artista do crochê e do frivolitê... (MACHADO, 2001,p.17)
Avó que, segundo depoimento da autora, lhe deu os primeiros pontos de seus
textos, que foram estendidos pelos fios tecidos pela mãe e tias. Em De olho nas penas(1981a),
19
livro de ficção, Ana Maria celebra as qualidades tecelãs da aranha Ananse
9
. Noutro romance,
Alice e Ulisses(1999), revisita Penélope, mulher cuja vida se confunde com o tecer e
desmanchar a manta,assim como dá rumos diversos à sua narrativa. No livro Texturas (2001),
anteriormente citado, Ana comenta o trabalho do pesquisador Carolyn Heilbrun sobre a
personagem Penélope:
...primeira mulher na história da literatura que está numa posição de livre
escolha quanto à história que quer para sua vida. Nenhuma narrativa anterior
lhe serve de guia, apresentando outra mulher na mesma situação. Por isso ela
precisava testar, desmanchar, experimentar hipóteses diferentes... (p.40)
Reafirmando a ideia que tanto a perseguia de escrever um livro sobre tecer, fiar e
bordar, à semelhança da personagem, Ana experimenta novos fios, como desafios ao ato de
escrever ficção e teorizar sobre escrita e leitura. Ao sair extasiada da contemplação com a
filha diante da aranha construindo sua teia, Ana consegue aprofundar suas reflexões sobre
escrita e fiação, mulher e texto: “Senti que o tema me chamava. [...] Nos dias frios de inverno,
com vento e neblina, fui cada vez mais me enrolando e aquecendo no tecido daqueles textos.”
(2001,p.20) Essa relação entre tecer e escrever e todas as demais palavras a elas
correlacionadas sempre inquietaram Ana Maria, razão pela qual elas perpassam tanto a sua
ficção quanto as suas reflexões teóricas.Desta intimidade, colhi as metáforas que emprego.
A pesquisa ora iniciada não pretende esgotar a reflexão sobre o assunto. A
pospelo, ela aspira a incitar novas reflexões, propiciando o cotejo literário com outros campos
de conhecimento, assim como vislumbrar o texto literário infanto-juvenil como mais uma
possibilidade de reflexão teórica capaz de instigar novos olhares em um mundo revelado pelo
caleidoscópio. Vamos, então, ao primeiro capítulo.
9
Ananse, ou Anansi, é uma lenda africana que conta o caso de um mundo antigo, no qual não havia histórias e
por isso mesmo viver era muito triste. A LENDA DE ANANSE: Houve um tempo em que na Terra não havia
histórias para se contar, pois todas pertenciam a Nyame, o Deus do Céu. Na África, Kwaku Ananse, o
Homem/mulher Aranha, queria as histórias para contar ao povo de sua aldeia e alegrá-lo. Um dia, ele teceu uma
imensa teia de prata que ia do céu até o chão e por ela subiu. Nyame deu a Ananse três tarefas dificílimas para
cumprir em troca da arca de histórias. Ele pensava que, com isso, faria Ananse desistir da ideia, mas o velho
Ananse não desistiu. Pelo contrário, cumpriu todas as exigências do Deus do Céu. Nyame ficou maravilhado,
chamou todos os de sua corte, dizendo que o pequeno Ananse pagara o preço cobrado pelas histórias, por isso,
daquele dia em diante e para sempre, elas pertenciam a Ananse e passariam a chamar-se de histórias do Homem
Aranha. Ananse, maravilhado, desceu por sua teia de prata, levando consigo o baú das histórias até o povo de sua
aldeia e, quando ele abriu o baú, as histórias se espalharam pelos quatro cantos do mundo, vindo chegar até aqui.
20
CAPÍTULO 1: AGULHAS, FIOS E CORES
Consciente dos motivos que instigaram a pesquisa, cheguei ao objetivo geral que
a orientou: estudar o narrador em Do outro mundo, da autoria de Ana Maria Machado,
procurando articular a memória das experiências vividas pela autora e a sua criação e a
importância dessa relação para a construção do sujeito escritor.
1.1 Aracne
10
sem segredos: histórias de Ana
A aranha vive do que tece.
Vê se não se esquece...
Gilberto Gil (1972)
A escritora Ana Maria Machado nasceu no Rio de Janeiro, em 24 de dezembro de
1941. Em 1969, formada em literatura e trabalhando como professora universitária,
começou, ao lado de Ruth Rocha e Joel Rufino, a escrever para uma nova revista destinada ao
público infantil, intitulada Recreio. A revista tornou-se campeã de vendas e, segundo palavras
da própria escritora, foi “um marco, que deu início à profissionalização do escritor infantil no
Brasil. As histórias eram lúdicas, divertidas, muitas vezes libertárias.”(MACHADO apud
RAMOS, 2006, p.18) O período era de perseguições, e a preocupação com a censura estava
voltada para o teatro e a música popular brasileira, o que, de certa forma, foi favorável à
literatura infanto-juvenil. Alguns de seus autores conseguiram burlar a vigilância e publicar
histórias que questionavam o poder, a exemplo do Reizinho mandão (1978), de Ruth Rocha.
Mas, Ana Maria foi perseguida pela ditadura militar e precisou exilar-se em Paris, onde
trabalhou como jornalista da revista Elle, deu aulas na Sorbonne e continuou colaborando
com a revista Recreio, entre outras atividades, além de, sob a orientação do semiólogo Roland
Barthes, escrever sua tese de doutorado sobre a obra de Guimarães Rosa, cujo conteúdo
10
Mito fascinante de uma tecelã que confia tanto em sua habilidade, que se sente capaz de desafiar a divindade
para um concurso de tecelagem, no qual não apenas tece melhor do que Atena, mas tem a suprema ousadia de
usar sua tapeçaria para ilustrar os crimes cometidos pelos deuses contra mulheres. Em consequência desse ato, é
castigada e transformada em aranha. (MACHADO, 2001 p. 19).
21
resultou no livro Recado do Nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus
personagens (1976).
De volta ao Brasil, continuou escrevendo. O seu primeiro livro infantil, Bento-
que-bento-é-o-frade (1977), traz como protagonista a garota Nita, que despertou em Carlos
Drummond de Andrade grande simpatia:
Fiquei deveras gamado
pela figura de Nita,
a criação tão bonita
de Ana Maria Machado.
Por onde quer que ela siga,
brota uma alegre verdade.
Se bento que bento-é-o-frade,
ai Nita-que-Nita-amiga!
11
Nesse mesmo ano, inscreveu os originais de História meio ao contrário (1979a.)
em um concurso promovido pela prefeitura de Belo Horizonte e a sua vitória impulsionou
uma corrida das editoras em busca de mais originais. Com essa história, a escritora conquistou
os prêmios: João de Barro e Jabuti. Assim começou e não parou mais. Hoje, a autora vive da e
para a literatura.
Neste gênero, literatura infanto-juvenil, é a escritora brasileira mais premiada das
últimas décadas, tornando-se em 1993 hors-concours dos prêmios da Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), uma das instituições mais respeitadas na América Latina. O
definitivo reconhecimento internacional de sua obra veio em 2000, com o Prêmio Hans
Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infanto-juvenil. Até o momento,
publicou uma centena de livros em língua portuguesa, dos quais a maioria se destina ao
público infantil-juvenil, sendo que 35 deles foram premiados e venderam cerca de catorze
milhões de exemplares, além de alguns deles terem sido publicados em diversos países. Em
2003, Ana Maria Machado foi eleita para ocupar a cadeira número 1 na Academia Brasileira
de Letras, façanha, pela primeira vez, conquistada por um escritor cuja parte significativa da
obra se destina ao público infantil. Sua versatilidade se revela constantemente; além de
romances para adultos e diversificados livros infanto-juvenis, escreve livros ensaísticos. Dois
11
Cópia do bilhete de Drumond disponível na web site pessoal, www.anamariamachado.com.br, da escritora, no
link http://www.anamariamachado.com/livros/livro_mes.php?codDestaque=2. Acesso em: 17/12/2008.
22
títulos: Raul da ferrugem azul (1979c.) e Alice e Ulisses (1999) estão sendo adaptados para o
cinema.
Hoje, aos 68 anos, mãe de três filhos e avó, busca concentrar-se cada vez mais em
seu ofício de escrever histórias que encantam seus leitores e em exercer sua função de
“militante da leitura”, como se define, trabalhando para que os professores despertem em seus
alunos o desejo e o prazer de ler.
1.2 Como linha na agulha: Ana e a literatura infanto-juvenil
Era a escolha de um terceiro estilo, que não fosse
exclusivamente nem para adultos nem para crianças, e sim
para seres humanos cuja perfeição deveria ser a semelhança,
ou antes, a integração no espírito da infância.
Alceu Amoroso Lima (1973)
Do início da carreira literária, em 1969, quando trabalhava para a revista Recreio,
da Editora Abril, escrevendo textos infanto-juvenis que encantaram leitores, alguns deles
transformados em frutíferos escritores, até o mais recente livro, lançado em 2009, o interesse
e a preocupação de Ana se ligam ao universo da criança e do jovem, com o qual mantém
inteligente e respeitosa ligação. Seja em sua produção ficcional, seja na ensaística, a autora
ratifica a ruptura com a tradição da literatura infanto-juvenil voltada para objetivos didático-
formadores, assim como alguns de seus contemporâneos, todos magicamente transformados
na infância em moradores do Sítio do Pica Pau Amarelo, os quais, pelo pó de pirlimpimpim
lobatiano, se tornaram escritores de qualidade que marcaram uma geração responsável pela
formação de muitos leitores. Com Ana não foi diferente, segundo Marisa Lajolo
Ana Maria seu depoimento, definindo sua geração como: ‘um bando de
gente que cresceu lendo e vivendo o universo lobatiano foi virando gente
grande e começou a mostrar as marcas disso – justamente essa capacidade de
não isolar a fantasia do real. Aprendemos com Lobato que o faz-de-conta é
um dado da realidade tão concreto quanto outros aspectos mais tangíveis.(...)
Mas também sabemos, com Lobato, que os problemas políticos, econômicos
e sociais do mundo em que vivemos não são cortados do universo infantil.
Ele discutiu a campanha pelo petróleo, a guerra mundial e outras questões de
23
seu tempo. Nós trazemos nossas preocupações contemporâneas para dentro
do que escrevemos.’ (1983, p. 102)
Para descortinar esse universo literário profícuo que eclodiu no Brasil na década
de 1970 e do qual Ana Maria é uma das representantes, necessário se torna apresentar uma
visão panorâmica das modificações sofridas pelo conceito de infância ao longo dos séculos.
Também é preciso elucidar algumas tendências teóricas sobre o que vem a ser literatura
infanto-juvenil, para melhor compreender como Ana Maria concebe a criança e o jovem e a
literatura que leva no nome o seu destinatário.
Quem fala sobre, para e pela criança é sempre um adulto que torce, destorce e
espreme o conceito de infância ao sabor das necessidades da sociedade burguesa. O estudo
clássico sobre criança, na perspectiva social do pesquisador Philippe Ariès, em A história da
criança e da família (1981), nos oferece um painel das mudanças ocorridas com a criança e a
família desde a Idade Média até os tempos modernos. Afirma o pesquisador que, “até por
volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É
difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais
provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo”(p.50). O estudioso chama a
atenção para o fato de que essa consciência de infância não existia na sociedade medieval,
onde as crianças partilhavam de quase todas as atividades praticadas pelos adultos. Interessa
perceber a mudança da concepção de infância ao longo dos séculos e, sobretudo, a fixação
desse conceito em nossos dias. Walter Benjamin, em seu livro Magia e técnica, arte e
política, sobre esta questão se manifesta, dizendo que “o adulto era o ideal proposto como
modelo às crianças”. (1994, p. 251) Essa visão distorcida da criança como um vir a ser ainda
existe, porque até o século XIX a criança como ser inteligente era totalmente desconhecida. A
concepção de infância e pré-adolescência como um momento da vida humana com
particularidades e necessidades específicas, diferentes das dos adultos, data do início do
século XX, creio que no Brasil reconhecida na literatura de Monteiro Lobato.
Um estudo minucioso realizado por Reinaldo Damazio (1994), procurando
esboçar um conceito do que vem a ser “criança”, apresenta-nos um panorama fecundo dos
conceitos elaborados por filósofos e psicólogos. Parte do empirismo do filósofo inglês John
Locke, século XVII, passando pela teoria racionalista de René Descartes, século XVII,
chegando às teorias modernas, apresenta o conceito de criança a partir da teoria behaviorista
do psicólogo americano John B. Watson, perpassa a psicologia genética, de Jean Piaget, para
24
desembocar na teoria psicanalítica de Freud. Partindo do campo teórico, e passando para uma
perspectiva mais prática, o autor aborda o termo “criança” sob quatro perspectivas “distintas”:
sua relação com o adulto, com a família, com a escola e com a modernidade. No que diz
respeito à relação criança-adulto, Damazio chama a atenção para o fato de que a infância é
marcada por uma “tensão contraditória” e sobre esta ideia escreve: “a criança é um ser e,
como tal, deve ajustar-se nesse contexto, entretanto, o mundo da criança, sua forma de ver o
mundo é diferente da do adulto”; enquanto o adulto está preocupado em nomear as coisas, a
criança está preocupada em apenas senti-las e vivenciá-las. Esta relação, portanto, “vai no
sentido de transformar a criança no adulto”, desrespeitando seus modos de ser, de pensar e de
estar no mundo. Essa relação, pelo que se pode deduzir, parece estar pautada nas teorias que
veem a criança apenas como objeto e não como um sujeito. A relação criança e família dá-se,
segundo o autor, por um “apagamento” da criança em favor dos desejos da família. Nessa
relação, o que prevalece são as repressões que tolhem a expressão espontânea da criança. Na
relação criança-escola, mais uma vez, a relação de submissão se estabelece e a criança fica
tolhida de criar e experimentar o mundo ao seu modo. No confronto com o contexto da
modernidade, num ritmo frenético, a criança vai se formando, não de maneira a questionar
essa realidade, mas de modo a absorvê-la, incorporá-la. (RODRIGUES, 2006, p. 38) Como
podemos perceber, em todas essas relações há uma imposição do mundo adulto sobre a
criança, a qual é relegada a um lugar de inferioridade e submissão. Nesse contexto, também se
inclui o pré-adolescente, que é considerado incapaz de escolhas, por isso necessária a
intervenção de um adulto na sua orientação.
Damazio conclui suas reflexões sobre o assunto ao elaborar o conceito: “a criança
é uma pessoa ávida de sensações e conhecimentos. Seu aprendizado é a marca mesma do seu
estar no mundo.” (1994, p. 41) É possível constatar que, ao utilizar a palavra “sensação”, o
teórico liga o conhecimento da criança aos sentidos, ratificando que é por este meio que se dá
o primeiro contato da criança com o mundo exterior, diferentemente do adulto, que o faz
movido pela razão. Considerando-se o conceito que a atual sociedade tem do pré-adolescente,
não é leviano afirmar que também para ele a concepção do mundo se pelas sensações que
experimenta. A personagem Rosário, em Do outro mundo, por exemplo, ao relatar o incêndio
na senzala, parte das descrições das impressões e sensações que certos cheiros e sons lhe
causam, a experiência da “morte concreta” dá-se via sensações causadas e percebidas pelo
corpo.
A literatura destinada ao público infantil apareceu entre o final do século
dezessete, com a publicação das obras de Charles Perrault (1697), sob o título Histórias ou
25
contos do tempo passado com moralidades: contos da mamãe gansa, e o início do século
dezoito com o surgimento do status de infância ligado à ascensão da família burguesa. A
criança passou a ser vista com características e necessidades específicas, assim como a
concebemos hoje, resguardadas as transformações ocorridas na sociedade, daquela época até
nossos dias. As crianças passam a ocupar um lugar até então inusitado e se tornam centro
simbólico das atenções; coube à família e à escola qualificá-las para a vida adulta. O
reconhecimento da infância como uma etapa merecedora de uma atenção especial seria o
catalisador de toda uma produção específica voltada para o consumo de bens materiais e
culturais, incluindo, entre os segundos, o livro.
A literatura infanto-juvenil nasceu, portanto, da relação entre a invenção da
infância e um interesse pedagógico e econômico manifesto num mercado que produz e vende
livros, inclusive de literatura. A literatura para crianças e jovens, egressa da narrativa popular,
esteve associada a uma produção simples, de regras previsíveis, que tinha em suas origens o
objetivo de dividir experiências. Os (re)contadores de histórias fixaram a simplicidade técnica
importada da literatura oral para a escrita. Meu pensamento se coaduna com a imagem que a
doutora em letras Eliana Yunes faz da literatura infanto-juvenil quando afirma que a
literatura infantil não é uma literatura menor apequenada pela pobreza de idéias (como
sinônimo de simplicidade) e pela redução de linguagem a diminutivos sem força literária
(1980, p. 66). E acrescenta a escritora e pesquisadora Anna Claudia Ramos: “… Quando a
LIJ
é de qualidade, qualquer pessoa pode ler e se encantar. Brilhante é o escritor que consegue
captar o imaginário infantil e falar para a alma da criança e do jovem. Conseguir escrever de
fato um livro que as crianças possam ler e se identificar é tarefa difícil e requer habilidades”.
(2006, p. 84) A literatura infanto-juvenil pode e deve ser resultado de uma criação rica em
recursos estéticos inovadores e surpreendentes, bastando para tanto que seu autor seja um
escritor que prime pela qualidade dos textos que produz.
A emergência dessa literatura, considerada até bem pouco tempo como “gênero
menor”, e ainda hoje assim considerada por uma elite tradicionalista acadêmica, associa-se,
desde as origens, a uma função utilitário-pedagógica, uma vez que as histórias eram
elaboradas para se converterem em divulgadoras dos novos ideais burgueses. Esta literatura
define-se e se particulariza como gênero a partir do tipo especial de destinatário que possui.
As pessoas que percebem a literatura como um texto com qualidade estética sentem-se
incomodadas frente à definição do gênero a partir de estágios receptivos, e não pelas
qualidades e características intrínsecas a sua estrutura.
26
Qual seria, então, a característica ou quais as características determinantes do
gênero infanto-juvenil já que a indicação do destinatário é insuficiente, considerando-se que o
bom texto literário pode ser lido quer por crianças e jovens, quer por adultos indistintamente?
Atendendo a um projeto gráfico mais informal e lúdico, os textos (pré)destinados à criança e
ao jovem apresentam ilustrações coloridas agregadas ao texto impresso, mais comuns a esse
tipo de texto, mas não exclusivas deles; inúmeros textos adultos com belíssimas
ilustrações, como Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, ilustrado por Salvador Dali; a
Divina comédia, de Dante Alighieri, ilustrada por Gustave Doré; Flores do mal, de Charles
Baudelaire, e a obra de Goethe, ilustradas por Delacroix, para citar algumas clássicas, e, mais
recentemente, as edições da Cosac Naify em prosa e poesia, tão lúdicas quanto as infantis. Se
esta via classificatória falha, seria, então, a temática a definidora do gênero? Não, a
diversidade temática circula livre e igualmente entre os textos destinados ao público adulto e
infantil, principalmente quando se trata dos textos de Ana Maria.
Quem sabe a tipologia de personagens? Por esta via estaríamos limitando a este
tipo de texto personagem criança como protagonista, animais, ou objetos animados, como nas
fábulas e apólogos. Não se aplica, que estes últimos, originariamente, eram destinados aos
adultos. Ou detém a narrativa o poder de distinção de gênero? Uma narrativa simples e linear
justificaria o gênero literatura infanto-juvenil? Não explica, crianças e jovens que leem muito
já se acostumaram com as idas e vindas e nada as impede de se interessarem por uma
narrativa que vai e volta ao passado, penetram no interior das personagens, e vão além,
abrindo brechas para dimensões de espaços distintos. Estaria, por exclusão, na linguagem o
fator determinante do gênero? Para as crianças e jovens a linguagem deve ser mais simples,
quase coloquial, dentro de certos limites de vocabulário, o que seria tão próprio a ponto de
fundar um gênero? A criança fala por metáforas e, se a sintaxe não é tão complexa, a
semântica é muito rica; uma palavra pode significar muitas coisas para um leitor em
formação. E não estaríamos nós mesmos em permanente construção da linguagem,
incorporação de novos vocábulos, formação verbal? São palavras da escritora e ilustradora
Paula Mastroberti (2007), que reflete sobre a questão: “Assim como é impossível e
desnecessário muitas vezes determinar o gênero de uma dada obra, da mesma forma, é
impossível e desnecessário o estabelecimento de fronteiras entre os gêneros, sobretudo se
levarmos em consideração apenas o seu destinatário.”
Independentemente de sua natureza, todo texto existe para ser lido e, quando se
trata de literatura infantil e juvenil, sintagma que traz explícita a figura do leitor, projetado no
adjetivo, essa situação fica evidente. A classificação de um texto literário, dentro de uma
27
determinada faixa etática, teria mais a ver com experiências de leitura independentemente da
idade cronológica do leitor, assegura Ana Maria Machado:
No termo literatura infantil, o adjetivo não limita o sentido do substantivo,
como ocorre normalmente na língua mas, pelo contrário, o amplia, fazendo-o
abranger um campo mais vasto. [...] Referimo-nos àquela que pode ser lida
também por crianças, o que aumenta o campo semântico coberto pelo
substantivo literatura, que normalmente não inclui a noção de que abarca
obras ao alcance de leitores mais jovens. Não tem nada a ver com livros para
crianças. Tem a ver com literatura, arte da palavra, beleza, ambigüidade,
polissemia, qualidade de texto, aquilo que Roman Jakobson chamou de
função poética da linguagem. (MACHADO, 1999, p.13- Grifos da autora)
O adjetivo “infantil” qualifica o substantivo “literatura”, atribuindo-lhe o
significado de gênero literário destinado ao jovem leitor, mas, como defende Ana Maria, o
adjetivo amplia o significado do substantivo no sentido de que o texto também pode ser lido
pela criança, em vez de restringir-lhe o significado como normatiza a gramática. Lícia Maria
Freire Beltrão corrobora essa sua ideia:
Os muitos anos de morada nos livros de Lobato me fizeram um dia
concordar, afinal, com a idéia de que a literatura é uma só. Não importa a
pátria, o sangue, o gênero; não importam as letras. Os adjetivos, termos sem
autonomia, atrelados a outros nomes que lhes dão vida, observação
inconteste feita por Emília, quando da sua inesquecível visita ao Bairro dos
Adjetivos na companhia de Quindim, somente servem para restringi-la, para
limitar o seu alcance: infantil, juvenil, infanto-juvenil, adulto... Alcance
invariavelmente regulado, ora por um termo: exclusivamente, ora por dois:
faixa etária. (2006, p.301)
Para além de qualquer estereótipo mercadológico ou indicação pedagógica,
adultos, jovens e crianças deveriam misturar-se, entre as prateleiras de livrarias e de
bibliotecas, trocando entre si ideias sobre leituras. O livro, segundo Paula Mastroberti (2007),
“deveria oferecer-se, como a borboleta branca esvoaçante de Mallarmé: livre e misteriosa,
pronta a ser capturada por qualquer tipo de leitor”, de elevada ou baixa idade.
Se a classificação do gênero literatura infantil-juvenil parece improdutiva, a
qualificação deste tipo de literatura como uma literatura “menor” parece ainda pior, uma
arrogância pretensiosa daqueles que não conhecem a qualidade dos textos lidos por esse
28
público. Ieda de Oliveira (2003), estudiosa e produtora de literatura infanto-juvenil, sempre se
sentiu incomodada com a tendência de críticos e algumas faculdades de letras por
considerarem essa literatura, mesmo que não explicitamente, como produção menor.
Ieda acrescenta que os critérios utilizados para definir o adjetivo “menor” nunca
foram bem definidos, mesmo porque sempre viu esta produção como um espaço de grande
desafio. Uma das possibilidades que justificariam o adjetivo “menor” para esta literatura
estaria vinculada, segundo a pesquisadora, ao fato de a autoria dos Contos da Mamãe Gansa,
coletânea de contos populares dedicados à neta de Luís XIV, rei de França, ter sido recusada
por Perrault, em favor de seu filho adolescente, resguardando-se o pai de possíveis críticas e
criando um canal para eventuais elogios. Essa atitude deixa marcado o lugar, bastante
desconfortável, a que relegou a literatura: “Se não é digna de levar seu nome, pode ser tomada
como produção ‘menor’, bastarda, de uma paternidade outorgada”, afirma a teórica e
acrescenta: “É a partir dessa forma literarizada por Perrault que os contos de fadas passam a
ocupar um espaço expressivo, legitimados na sociedade francesa e vistos como fonte de
literatura para crianças.” Outra possível razão, pensa Ieda, talvez esteja na utilização de
parâmetros críticos idênticos para avaliar a literatura infantil e a literatura dita adulta e não
perceber que a produção literária para crianças transita em outra ordem contratual, o que não a
caracteriza como inferior, apenas como diferente. Tal crença parte da falsa premissa de que as
regras de produção de ambas são as mesmas, o que não é verdade:
É preciso que se entenda que a fronteira entre a literatura infantil e a
literatura dita adulta não é de natureza estética, e sim de natureza contratual.
O autor de literatura infantil tem como leitor uma criança com um universo
menor que o seu, com limitações de léxico, de sintaxe e de visão de mundo,
e isso faz com que ele necessite produzir seu texto dentro de uma linha de
desafio enorme. O contrato que rege a relação adulto-criança é diferente do
que subjaz à relação entre dois adultos. A margem de manobra para a
produção de um texto para crianças é muito menor que a de um texto
produzido para adultos. São outras as regras de produção com imensos
desafios. Chamar o diferente de inferior é no mínimo uma leviandade.
(OLIVEIRA, 2003)
O preconceito pode ter resultado também da fixação de conceitos equivocados
advindos da época da ascensão da burguesia ao poder, século XVIII, quando a literatura
infantil esteve associada à consolidação da burguesia, o que significou estar ligada aos valores
da nova classe. Esse engajamento implicou a valorização do aspecto didático, em detrimento
29
da fantasia e do estético, a literatura para crianças e jovens passa a ser vista como uma
excelente forma de ensino e não de educação. A essa literatura “útil”, de postura pedagógica,
(re)duplicadora de valores burgueses sob a forma de ensino e viabilizada pela escola para
circulação e consumo, cabe realmente o conceito de “menor”, comenta Ieda, pois ensinar não
é educar e educar não é uma característica apenas da literatura infanto-juvenil, mas de toda
literatura e de toda manifestação artística. Relembra a pesquisadora a etimologia de educar e
ensinar:
Não custa lembrar o étimo dessas palavras: educar contém o prefixo latino e,
variante de ex ‘para fora’ seguido do verbo ducere ‘conduzir’.
Significa, portanto, conduzir para fora’, trazer para fora’, ou seja,
conscientizar o aluno de um conhecimento latente em seu espírito, como
fazia Sócrates com seus discípulos pelo método da maiêutica. É, pois, tratar
o estudante como um ser inteligente, é orientar a aprendizagem e não
adestrar, ao passo que ensinar é in (‘dentro’) seguido de signare (‘colocar
marca’ signum é ‘sinal’, ‘marca’ – como se faz com o gado, a ferro
quente). Significa, por conseguinte, calcar de fora para dentro a mente do
aluno, colocando nela informações. Ensinar é, pois, ‘treinar’, ‘adestrar’.
(OLIVEIRA:2003-Grifos da autora)
Não é função da literatura infanto-juvenil, nem de literatura nenhuma, ensinar
nada a ninguém, mas educar no sentido etimológico da palavra, conduzindo para fora do
sujeito o que nele existe, contribuindo para, através do belo, ampliar sua percepção de
mundo, e isso vale para todas as artes, sem exceção. O artista é um formador de leitores e não
um adestrador.
A última razão, sugere Ieda, desse olhar pejorativo para a literatura infantil-
juvenil, pode estar ligada ao grande volume de obras para crianças, lançadas no mercado, nem
sempre de qualidade, o que também não isenta as obras direcionadas ao público adulto da
classificação de literatura de baixa qualidade ou de não literatura. Até porque definir o que
representa qualidade, num texto literário dessa natureza, não é tarefa das mais fáceis, quando
sabemos que o discurso da arte é marcado pela imprevisibilidade da mensagem, pela
singularização, e que, paradoxalmente, sua sedução vem daí. Como, então, oferecer à criança
um discurso artístico sem cair no hermetismo ou, ao contrário, oferecer um discurso previsível
demais? O desafio dos autores de literatura para crianças e jovens reside em trabalhar com
uma margem de manobra estreita, assim como o fazem, por exemplo, Ana Maria Machado,
30
Bartolomeu Campos, Ziraldo, Ruth Rocha e tantos mais que conseguem atingir em seus
textos níveis de excelência estética inimagináveis.
Até a década de 20 do século XX, a literatura infantil-juvenil brasileira oferecia
aos leitores apenas obras cujos objetivos não ultrapassavam a fronteira do pragmatismo. A
partir dessa década, esse quadro começa a mudar, com a publicação de A menina do narizinho
arrebitado, de Monteiro Lobato. A renovação na literatura iniciada por Lobato, no entanto,
não rendeu frutos imediatos; entre o autor e a geração de 1970, percebe-se grande escassez no
mercado editorial no que se refere à produção de obras de qualidade destinadas ao público
infantil, raros foram os títulos que trouxeram alguma inovação ou que apresentaram
personagens com características inusitadas e marcantes como aquelas que imortalizaram a
boneca Emília, por exemplo. Cito algumas exceções, como Machado de Almeida e Maria
José Dupré, que se destacaram por apresentar uma obra não pragmática. Somente na década
de sessenta, o panorama da literatura infanto-juvenil começaria a delinear um novo quadro,
revelando um veio fértil de autores criativos que, na linha de Lobato, apresentam
características marcadamente emancipatórias, contribuindo para a formação crítica do leitor,
através da ampliação de seus horizontes.
Mas foi, sobretudo, em finais da década de 1970 que surgiu uma literatura
divorciada dos preceitos pedagógicos e rica em linguagem poética da qual são representantes:
Edy Lima, Eliardo França, Fernanda Lopes de Almeida, Bartolomeu Campos Queirós, Joel
Rufino dos Santos, Lygia Bojunga Nunes, Marina Colasanti, Pedro Bandeira, Ruth Rocha e
Ziraldo, para citar os mais representativos; Ana Maria Machado, como anunciei, é fruto
dessa época. Ainda hoje, alguns deles continuam a produzir para crianças e jovens,
apresentando em suas obras características comuns, i.e, “... sem perder de vista o lúdico, o
imaginário, o humor, a linguagem inovadora e a poética, tematizam os atuais problemas
brasileiros levando o pequeno leitor à reflexão e à crítica”.(SANDRONI, In: SERRA, 1998, p.
18).
Ana não imaginava naquela época que viria a se tornar uma das principais
escritoras de livros para crianças e jovens do país. A colaboração com a revista Recreio se
estendeu por anos e foi uma das principais fontes de renda quando a autora viveu no exílio,
inicialmente em Paris e depois em Londres. Ana sempre lembra que vem de uma geração em
que a exigência do “falar correto” era muito forte. Segundo a autora, a sua geração foi
educada para desprezar a linguagem mais informal. Mas ela estava interessada na busca de
uma linguagem brasileira, que não se pautasse em extremos: na erudição nem no
coloquialismo; afirma que a “literatura infantil, naquele período, fez isso de certo modo”. Foi
31
esta literatura o terreno fértil no qual a escritora encontrou o espaço ideal para a experiência
com a linguagem, com um registro perto do coloquial que tanto buscava, engendrada pelo
lúdico, formada por conscientes jogos poéticos, fecunda de ricos elementos da tradição
cultural, que encantou e encanta os seus leitores. Acrescenta-se o fato de ela ter experiência
em comunicação quer como radialista, quer como docente, o que muito contribuiu para
encontrar o tom de sua linguagem.
Considerada pelos estudiosos como o boom da literatura infanto-juvenil brasileira,
uma retomada da liberdade criadora iniciada com Monteiro Lobato, a década de 1970
coincide com a distensão política pós-ditadura. Sua valorização, como formadora de
consciência crítica que busca romper com a literatura estereotipada e reprodutora de modelo
maniqueísta, é bem recente, portanto. Dentre aqueles que dão à literatura infanto-juvenil um
lugar ao lado dos demais gêneros no cenário artístico-cultural, cabe lembrar, além dos
escritores mencionados, a pesquisadora mais respeitada no gênero: Nelly Novaes Coelho, que
assim se manifesta a respeito:
Desvinculada de quaisquer compromissos pedagógicos (e mesmo
insurgindo-se contra o ‘direcionismo didático’ que predominara nos anos
anteriores), a nova literatura infanto/juvenil obedece às novas palavras de
ordem: criatividade, consciência da linguagem e consciência crítica.
Palavras que emanam de uma nova concepção de mundo: o homem
entendido como ‘ser histórico e criador de cultura’ (...) e, conseqüentemente,
a valorização do espírito questionador, lúdico, irreverente e, sobretudo, bem-
humorado (que desafia as certezas e os paradigmas de comportamento,
defendidos pela Tradição). (2000, p.130. Grifos da autora)
Ana Maria, nos anos 1970, contribuiu com a renovação temática inaugurada por
Lobato, trazendo para a literatura infantil texto com fortes marcas de seu tempo, um tempo em
que a cultura brasileira tentava recuperar a sua imagem através da busca de uma linguagem
própria que tem apenas a consciência de seus limites. Consciente do valor da literatura
infanto-juvenil e de que palavra é poder, Ana Maria Machado sempre se dispôs a escrever
para instigar o senso crítico infantil. Em seu livro Texturas lemos: “Se a boa leitura garante a
possibilidade de ascensão social e a tomada de uma parcela de poder, desenvolvendo a
capacidade de ler entrelinhas e pensar pela própria cabeça, pode ser muito perigoso para os
privilegiados assegurar a imersão da população num ambiente de bons livros.”(2001,184)
Assim pensando, produzir para o público infanto-juvenil requer maior
responsabilidade, pois nas entrelinhas das histórias é revelado todo um código de ética.
32
Embora não seja o foco deste estudo a preocupação com mensagens sublineares veiculadas
nos textos destinados “aos pequenos”, em se tratando deste tipo texto, essa preocupação não
pode ser de todo descartada, é preciso considerar que, na maioria das vezes, são histórias
protagonizadas por crianças e jovens produzidas por adultos que estão transmitindo,
consciente ou inconscientemente, valores e padrões de comportamento. Do outro lado estão
leitores em fase de construção de conhecimento e de percepção de mundo, leitores que se
identificam com as personagens, portanto susceptíveis à influência desse discurso.
Escritores que criam estereótipos de crianças e jovens sempre felizes e sem
problemas não levam a uma visão crítica do que elas representam para a sociedade brasileira.
Como assevera Cristiane Oliveira (2007), o conceito de infância não é o mesmo, assim
como a percepção de mundo dos jovens também não é, as relações culturais mudaram e, como
reflexo de tudo isso, a literatura mudou. É, pois, imprescindível mostrar à criança e ao jovem
o seu papel social. Para tanto, a literatura infanto-juvenil oferece autores de sensibilidade, a
exemplo de Ana Maria Machado, que procuram conciliar os problemas vividos, nessa fase da
vida, com a fantasia, indispensável ao universo de seus leitores.
A qualidade do trabalho de Ana Maria é atestada pela crítica especializada, e a
Academia Brasileira de Letras, inclusive, conferiu-lhe o prêmio literário Machado de Assis,
pelo conjunto da obra. Embora a qualidade de um texto literário não esteja relacionada
somente ao número de leitores ou à expansão no mercado editorial internacional, pensamos
ser importante mencionar o fato de Ana Maria ter, dentro e fora do país, um público fiel que
se expande a cada lançamento.
A respeito da qualidade do livro infanto-juvenil, a própria Ana Maria ressalta que
se trata de uma definição bastante ampla e difícil. Para corroborar essa sua ideia, busca apoio
no autor inglês Clive Staples Lewis: “Um bom livro infantil é aquele que a gente com
deleite aos 10 anos e relê com igual prazer aos 50 anos.” (MACHADO apud RAMOS, 2006,
p.20) de se considerar também sua opinião acerca da mudança que houve nos critérios
avaliativos da obra literária, seja ela infantil ou não. A esse respeito, em entrevista a Anna
Cláudia Ramos, Ana Maria diz:
Até mesmo os critérios de avaliação estão mudando muito, quer dizer, como
a crítica está muito ruim também, avalia-se por critérios que não têm a ver
com a criação. Avalia-se por critérios de tema, de popularidade, de
engajamento, de origem social de um grupo. Tudo isso faz com que a
avaliação seja contaminada por outros fatores que não são literários. (2006,
p. 25)
33
A qualidade do texto literário, portanto, deve ser buscada nos elementos textuais,
quer das obras escritas para crianças e jovens, quer daquelas escritas para o público adulto,
mas que as crianças escolhem para ler. O que deve importar ao crítico, entendo, são as
características que diferenciam um texto literário de um texto eminentemente comunicativo.
A maior parte da obra de Ana Maria Machado é dirigida a crianças e pré-
adolescentes, mas é igualmente apreciada pelos adultos, que percebem, sob a linguagem direta
e acessível, a qualidade das imagens e das ideias. A autora consegue manter a leveza de seus
textos mesmo quando trata de temas que, por natureza, exigem seriedade, como a
escravidão, e consegue manter essa leveza mesmo quando lança mão de recursos bastante
recorrentes na literatura para adultos, como é o caso da intertextualidade e da metalinguagem.
Na novela Do outro mundo, Ana Maria faz uso de ambos os artifícios, o que exige a recepção
por um leitor atento e competente, com conhecimento prévio de outros textos e mente aberta
para perceber o que o narrador apenas insinua; em primeira instância, qualidades esperadas de
um adulto, mas que a autora supõe possuir seu jovem leitor. Para ilustrar, apresento o seguinte
fragmento:
Lembro que reparei bem, e fiquei dizendo para mim mesmo que não
precisava me arrepiar, isso não tinha a menor importância. Pelo que está nos
livros, Peter Pan também não tinha sombra e era um companheirão de
aventuras. Mas de qualquer jeito, eu o conseguia tirar os olhos da parede,
como se tivesse vendo um filme no telão. (2002, p.67)
Vale lembrar que boa parte das alusões textuais na obra de Ana Maria tem origem
nos contos de fadas e textos clássicos da literatura infanto-juvenil, mas avança no que diz
respeito à margem para reflexão; os livros da autora fazem pensar, abrem novas dimensões de
compreensão do mundo. Respeitando o tempo da reflexão, Ana Maria coloca o seu leitor
diante de uma multiplicidade de sentimentos e de pontos de vista, criando com ele um jogo de
identificações e estranhamentos. Este tipo de texto que Ana produz é literatura,
independentemente de ideias classificatórias de gênero.
Para pôr um ponto final nesta seção, vale ressaltar que os estudos sobre literatura
infanto-juvenil no Brasil, como reflexão sistematizada, datam de 1940 a 1950. Procurei nesta
dissertação focalizar a teoria mais recente, que assinala a necessidade de conceber a criança e
o jovem como sujeitos capazes de ter voz sobre o que é escrito para eles, independentemente
de os textos corresponderem ou não às intenções estéticas, culturais ou pedagógicas dos
34
adultos. A pesquisadora Anna Cláudia Ramos escreveu: “A criança não é um vir-a-ser-adulto,
ela é. É criança e plena para a idade que tem. Assim como a
LIJ
é literatura, sim, mas tem
uma especificidade, que é o seu leitor: a criança ou o jovem.” (2006, p.83) A literatura
infanto-junenil é um gênero literário, com características e convenções próprias, o que não
significa dizer que os textos destinados às crianças e aos jovens não sejam portadores de
qualidades estéticas, e sim que os critérios de avaliação não podem ser os mesmos adotados
na literatura para adultos.
12
Nessa perspectiva, a literatura infanto-juvenil vai se firmando
apesar de questões valorativas estabelecidas segundo critérios da tradição ou cânones
literários tidos como paradigma.
1.3 Tecendo histórias há mais de 150 livros: Ana entre a ficção e a teoria
Escrevo porque é da minha natureza, é isso que sei fazer
direito. Se fosse árvore, dava oxigênio, fruto, sombra. Mas
consigo mesmo é dar palavra, história, idéia.
Ana Maria Machado (2001)
“Aranha vive do que tece” - escreve Ana Maria num artigo publicado em
fevereiro de 2006, na Folha de São Paulo. Ela é uma autora, dentre poucos, que consegue
viver de literatura. Vive inventando histórias e a maioria delas vira livros. Adora escrever e
esta necessidade coincide com sua própria vida: “acho que não ia conseguir viver se não
escrevesse”- afirma num autorretrato. É possível deduzir que é essa relação vital entre o ser e
estar no mundo e a ficção que faz Ana Maria produzir incessantemente. Claudius ratifica essa
impressão: “... A vida se alimentando da literatura e esta brotando da vida. Jogo de espelhos.
Artes de Ana Maria”. (CECCON In: BASTOS, 1995, p.115.)
A versatilidade de Ana Maria revela-se tanto em seus romances como nos textos
teóricos. Nesse sentido, a constante reflexão sobre o próprio fazer literário ajuda a aperfeiçoar
seus textos ficcionais e, num caminho de volta, a ficção serve de corpus para a reflexão
teórica, que posteriormente retorna à ficção, e assim sucessivamente, num exercício constante
da práxis. Cabe salientar que é possível relacionar os textos ensaísticos e a produção ficcional
12
Embora não faça parte dos teóricos selecionados para este trabalho, considero importante dar conhecimento
dos estudos sobre a especificidade do gênero literatura infantil da pesquisadora Barbara Wall The narrator's
voice. The dilemma of children's fiction. Basingstoke: Macmillan, 1991.
35
da autora também a partir do diálogo que ela, na condição de autora, estabelece com seus
escritores, pintores, escultores, músicos e pensadores favoritos.
Mesmo antes de aprender a ler, a futura escritora convivia com livros e leitores
e apresentava grande interesse pelo universo letrado que seu cotidiano lhe oferecia. Em seu
livro ensaístico Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, Ana descreve uma
cena da qual jamais se esqueceu. Ao da escrivaninha, o pai explica à filha a origem
espanhola dos cavaleiros esculpidos em bronze que trazia sobre a mesa, Dom Quixote e seu
fiel escudeiro Sancho Pança, mas acrescenta que eles também moram ali pertinho, dentro de
um livro (2002, p.7). À semelhança do que ocorreu com Ana, outros escritores também
testemunharam o fascínio despertado por histórias e personagens conhecidos na infância. O
poeta Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, em sua poética, mostra o seu
deslumbramento ao descobrir o clássico Robinson Crusoé. A romancista Clarice Lispector,
em Felicidade Clandestina, demonstra a intensa emoção que lhe proporcionou a leitura de
Reinações de Narizinho.
A trajetória da leitora Ana Maria é longa. Flagramos, aqui e ali, nos textos
teóricos, entrevistas e palestras, elementos que configuram a apresentação da escritora como
leitora e futura escritora. Sempre rodeada de leitores e livros, aprendeu a ler sem qualquer
ajuda, antes dos cinco anos, quase que secretamente, causando espanto aos adultos. Daí por
diante, nada mais segurou a menina, que mergulhou na leitura do Almanaque do Tico-Tico e
na obra de Lobato. Reinações de Narizinho tornou-se marca indelével que a acompanhou vida
afora; depois desse livro, tomou gosto pela leitura e nunca mais parou de ler os bons livros
que lhe chegavam às mãos, conduzidos por parentes e amigos.
Um diário e um livro marcaram o aniversário de sete anos da escritora. Esses
presentes podem simbolizar o universo da autora nos tempos pretérito, presente e futuro,
ligados entre si pela leitura/escrita, processos indissociáveis e geradores de saber. O primeiro,
um livrinho com páginas virgens, onde se “podia escrever tudo e trancar para ninguém ver”, a
primeira gina trazia um desenho, feito por encomenda a Carybé, que, segundo Ana, ainda
não havia se tornado ilustrador de Jorge Amado e Garcia Márquez. A partir dali, ela saiu
preenchendo aquelas páginas em branco “furiosamente”. O fraco por livros e ilhas nasceu
com o segundo presente, um livro integral do Robinson Crusoé, ilustrado também por Carybé.
(MACHADO,1996, p.21). Sua perspectiva sobre o poder da leitura perpassa por essa
formação familiar.
No livro Texturas (2001), Ana revela uma concepção de leitura que acaba por se
tornar o cerne de sua poética, seja nas publicações de natureza ensaística resultantes de
36
palestras, estudos e análises, que dialogam entre si, seja nos textos literários, expandida em
palavras como: editora, literatura e livro; intertextualidade e/ou citações: escritores, artistas
diversos, obras literárias e outras artes, teóricos, instituições ligadas às letras; escolha de
ambientes propícios à leitura como: bibliotecas, salas de aula, quarto de estudo, museus e
outros; na elaboração do enredo, que versa sobre leitura ou escrita; escolha dos temas:
infância, leitura, leitores, literatura, criação literária e construção de personagens
questionadoras, para as quais cria condições para que reflitam sobre a língua. Frequentemente,
em suas histórias, as personagens buscam a autoafirmação e sempre passam por processos de
transformação, que em geral se pela descoberta e pelo conhecimento. São, pois, inúmeros
os indícios de sua paixão pelo universo da linguagem.
Em entrevista à pesquisadora e escritora Anna Claudia Ramos, Ana Maria ratifica
a importância da leitura na vida das pessoas, em especial para o escritor: “... eu acho que essa
questão do escritor ser muito leitor foi fundamental pra literatura infantil. Acho que é
fundamental na criação. Você vai convivendo, tendo mais intimidade com aquele processo, e
isso vai virando um substrato que está ali, aparece, brota.” (2006, p.37) Vale lembrar aqui a
importância da leitura dos livros de Monteiro Lobato para a formação da geração de escritores
de literatura infanto-juvenil de qualidade na década de 1970. Ana Maria afirma que um dos
segredos da qualidade é que os componentes desse grupo, por serem muito leitores, tinham
muito para deixar fora do texto que escreviam, relembrando uma frase do escritor
Hemingway: “O livro deve valer pelo muito que nele não entrou”. (RAMOS, 2006, p.37)
A trajetória de Ana Maria é marcada por ações que evidenciam o caráter
construtivo de sua formação; a pesquisadora Senize Yazlle, em sua tese intitulada Vozes de
criança: o discurso de auto-afirmação na literatura infantil de Ana Maria Machado, escreve:
Fica evidente um trabalho de construção do conhecimento que se inicia na
infância, com suas leituras que se multiplicam e vão continuar pelo resto da
vida, somado ao fato de que ela ainda experimenta outra modalidade artística
a pintura como um meio de conhecer e explorar a arte e, com isso,
ampliar e aprofundar seu conceito e repertório. Esses dois lados da artista,
além de ampliar sua visão, também a auxiliaram na busca do seu tom, de seu
estilo, que é, ao mesmo tempo, oralizante e elaborado, uma maneira de
desenhar e pintar com palavras. (2008, p.145)
A estreia de Ana na literatura deu-se aos onze anos, com o texto Arrastão- sobre
as redes de pesca artesanal em Manguinhos, publicado na revista Folclore, originalmente uma
37
redação premiada na escola e ampliada para publicação. A prática da leitura e da escrita desde
muito jovem fomentou a sua habilidade com os textos, trajetória importante para quem ela é
hoje:
Ser leitora e escritora é uma escolha ligada ao intenso prazer intelectual que
essas atividades me dão. Escrevo porque gosto da língua portuguesa, gosto
de histórias e conversas, gosto de gente com opiniões e experiências
diferentes, gosto de outras vidas, outras idéias, outras emoções, gosto de
pesar e de imaginar. Em todo esse processo, a leitura foi fundamental.
(MACHADO,1996,p.44)
Ana diz que Mark Twain encontrou vida afora uma rica galeria de personagens
que “completavam a sua formação de escritor, somando a naturalidade no trato com a palavra
escrita a uma vivência variada e fértil”. (2001, p. 207) Assim, a formação da escritora Ana
também se completa, com viagens e leituras de livros com personagens marcantes, como
Emília e Huckleberry Finn e tantas outras personagens e imagens poéticas colhidas pelas
obras de autores como Alexandre Dumas, Bartolomeu Queirós, Charles Perrault, Charles
Baudelaire, Clarice Lispector, Daniel Defoe, Eça de Queirós,Edgar Allan Poe, Fiodor
Dostoievski, George Orwell, João Guimarães Rosa, José de Alencar, Luís Vaz de Camões,
Machado de Assis, Marcel Proust, Monteiro Lobato, Oscar Wilde, Rudyard Kipling, Thomas
Mann, Victor Hugo, William Shakespeare, que foram esculpindo de A a W a escritora que é
hoje. A essa galeria, acrescento as pessoas de seu convívio, anônimas e personalidades
conhecidas. Em suas raízes capixabas está, além do contato direto e das lembranças de sua
história, a paixão pela obra de Rubem Braga. Durante a faculdade conviveu com Alceu
Amoroso Lima, José Carlos Lisboa, Roberto Alvim Correia e também com Anísio Teixeira.
Aos 19 anos viveu uma experiência inesquecível: o sabor do chá da Academia Brasileira de
Letras conduzida por Manuel Bandeira. Na pós-graduação, em Paris, participa do selecionado
grupo de estudos sob a orientação do semiólogo Roland Barthes. Tempos depois manteve
contato com Darcy Ribeiro, de quem divergia em profícuo debate. Drummond é um nome que
fala por ela o tempo todo. Sem dúvida, vivia entre “deuses” da literatura e da teoria, muitos
deles sequer lembrados aqui; era evidente que dessas relações resultasse um trabalho que
navega por mares e rios “dantes navegados”.
Em Tranças de Histórias, a pesquisadora Marisa Lajolo escreve sobre o processo
de amadurecimento por que passou a literatura infanto-juvenil brasileira, como sistema, na
38
década de 1970, com a aproximação, pelo diálogo, do projeto de modernização da literatura
postulado por Lobato (permanências) e dele se afastando por trazer para a literatura infanto-
juvenil temas e procedimentos não utilizados pelo autor. Se, por um lado, permanece a
tendência à modernidade antecipada na literatura infantil de Lobato, “a irreverência da sua
obra, a solidariedade que ela estabelece com o mundo infantil, a inteligência tantas vezes
irônica de seu diálogo com os leitores [inclusive os do século XXI ], o esforço empreendido
para desliterarizar sua literatura ...”; por outro, fica patente o esforço de ruptura com a
tradição alienante e/ou escapista, inaugura-se a consolidação do “perfil feminino, o respeito
pela pluralidade cultural, a paisagem dos diferentes Brasis, os conflitos da sexualidade, o jogo
em cena aberta com a musicalidade da língua portuguesa, temas e procedimentos pouco
presentes na obra lobatiana.” (LAJOLO, In: PEREIRA e ANTUNES, 2004, 16)
O precursor Monteiro Lobato não subestimou a capacidade de entendimento das
crianças frente à realidade e apresentou uma nova proposta literária que levou as crianças,
através de seus personagens, ao questionamento do poder e ao conhecimento da tradição,
acervo social herdado, que a elas caberia questionar e transformar. Pertencem ao segundo veio
escritoras como Ana Maria e Ruth Rocha, que retomando pontas e amarrando fios,
“despontam na ferocidade do Brasil dos anos setenta levando adiante, e com grande fôlego, a
modernização e a feminização do texto infantil.” (LAJOLO, In.: BASTOS,1995,p.75) A obra
de Ana Maria resulta, portanto, da costura entre a permanência e a ruptura, entre a tradição e a
inovação.
Com o propósito de refletir sobre a literatura de Ana Maria, a pesquisadora Etiene
Rodrigues Mendes, em sua dissertação Bem do seu tamanho e Bento-que-bento-é-o-frade: da
análise à sala de aula, buscou reforço na teoria de Lafetá (1974, p.13), que faz uma
abordagem sobre “projeto estético” e “projeto ideológico”. Segundo estudo de Lafetá,
assevera a pesquisadora, o primeiro diz respeito às “modificações operadas na linguagem”, o
segundo relaciona-se à visão de mundo de sua época; enquanto o projeto ideológico se pauta
“no que dizer”, o projeto estético cuida do “como dizer”. Após essas reflexões, Etiene Mendes
escreve:
Embora seus estudos [de Lafetá] se refiram especificamente à arte
modernista, é possível afirmar que os dois projetos estético e ideológico
estão presentes em toda obra literária que se propõe “renovadora”, como é o
caso da obra de Ana Maria Machado, em que projeto estético e projeto
ideológico estão intimamente imbricados. (2006, p 18- Grifos meus)
39
O projeto político-ideológico de Ana Maria pode ser resgatado via temática que
aborda
13
; dentre outras, cito: o questionamento do poder, as relações sociais, a brincadeira e o
jogo, a solidariedade e a amizade, a liberdade e a escravidão, a repressão e o exílio, a busca
pelo crescimento pessoal e a construção do eu, a magia e o imaginário, o cotidiano e as
relações familiares, o mistério, o amor, a condição feminina e a diversidade cultural; em
muitos deles, esses temas se emaranham. Marca igualmente forte, nas histórias que Ana conta,
é a sua sensibilidade para dar legitimidade aos silenciados pela cultura oficial, excluídos e
marginalizados, que são tratados com respeito e dignidade. Um traço marcante em toda a obra
da autora é, além da frequência insistente do tema leitura/escrita, o emprego de múltiplos
recursos linguístico-expressivos, a versatilidade/arejamento da linguagem literária e a
humanização do leitor pelo profundo respeito que demonstra ter pela criança e pelo jovem.
Ana retoma, assim como Lobato, personagens conhecidos do leitor, parte de suas próprias
referências culturais, renovando-os e enriquecendo-os; ao dar nova vida aos personagens,
reinventa-os. A crítica literária Laura Sandroni escreve que “... seus livros [livros de Ana]
revelam uma linguagem inventiva, uma temática original, além de uma profunda
compreensão do mister de escritor integrado à cultura de seu povo e, simultaneamente, arauto
de novos tempos...”(SANDRONI, In.: BASTOS,1995, p.115)
Ana Maria metaforiza a sua trajetória de mulher leitora, independente,
“contracorrente”, como se a sua trajetória fosse uma corrida de revezamento, durante a qual
recebesse da mãe um bastão que deveria ser repassado à filha. A voz do discurso feminino
13
A parte mais significativa da obra de Ana Maria Machado é o caráter questionador de seus personagens, tão
bem representado pela Nita, do livro Bento-que-bento-é-o-frade (1977). A partir da brincadeira de perguntas e
respostas, a protagonista questiona a si e aos outros sobre o sentido das palavras e sobre a natureza das relações
sociais e, em Era uma Vez um Tirano(1982), a personagem questiona o modo como essas relações sociais são
estabelecidas, apenas para citar alguns exemplos. Recorrência comum na obra de Ana é a brincadeira e o jogo,
temas tratados com seriedade pela autora. De modo geral, suas obras retratam de forma criativa fatos cotidianos
ligados ao universo da criança ou que incitam a imaginação infantil, a título de exemplo cito: Boladas e amigos
(1988), Com prazer e alegria (1988), Pena de pato e de tico-tico (1988), Severino faz chover (1987), dentre
inúmeras outras. Além dos mencionados temas, a autora escreveu sobre: a solidariedade e a amizade: O gato
do mato e o cachorro do morro (1980c), Uma história de páscoa (1999); sobre a liberdade: Bebeto, o carneiro
(1993) e Tropical Sol da Liberdade (1988) ); a busca pelo crescimento pessoal e a construção do eu: Raul da
ferrugem azul (1979c) e Bem do seu tamanho (1980a); a magia e o imaginário: O menino Pedro e seu boi voador
(1979b) e O Menino que Espiava pra dentro (1984); o cotidiano e as relações familiares: Beijos Mágicos (1996);
o mistério e a escravidão: Mandingas da ilha Quilomba (1984), Do outro lado tem segredos (1980b) e Do outro
mundo (2002); o amor: Alice e Ulisses (1999), Para sempre: amor e tempo (2000) e Canteiros de Saturno
(1998); a condição feminina e a desconstrução de estereótipos: Bisa, Bia, Bisa, Bel (1982); A audácia dessa
mulher (1999), revelando o seu caráter revolucionário. A Leitura e escrita são temas que frequentam,
insistentemente, a obra da autora, quer sejam abordados explicitamente como motivo principal, quer
indiretamente: Do outro lado tem segredos (1980b ), O Menino Que Virou Escritor (2001), Do outro mundo
(2002) e Mensagem para você (2008), no qual as mensagens trocadas entre as personagens se referem à
importância da leitura e da escrita. O lúdico relacionado à escrita: Palavras, Palavrinhas, Palavrões (1981b).
Importa ressaltar que algumas obras mencionadas abordam mais de um dos temas citados e também que alguns
dos temas povoam inúmeras outras obras da autora.
40
vai, ao longo desse processo, ganhando força com um sentido de igualdade perseguido pelo
respeito à diferença. Sob as marcas estéticas expressivas da autora é possível vislumbrar a sua
visão de mundo. Neuza Ceciliato de Carvalho, num ensaio do livro Trança de História, ao
tratar do projeto estético-ideológico da escritora, destacou:
Seus textos literários são seu testemunho de uma época, onde a mulher, a
mãe, a professora, a cidadã e a escritora se fundem para revelar os conflitos
humanos do momento em que vivemos. No seu modo de compor está a sua
ideologia, no seu estilo está o seu testemunho, na sua escolha técnica está a
sua visão de mundo e a sua concepção de literatura e de leitor infantil e
juvenil. (2004, p. 71)
No livro Contracorrente, Ana também teoriza acerca da leitura de mundo do
escritor, dizendo: “Quando o livro é bom mesmo, quando a leitura do mundo que o autor fez
antes de escrevê-lo foi sensível e inteligente, o texto vai permitir que o leitor o escreva
novamente quando for lê-lo. [...] Mesmo se for o que se chama ‘história para criança’. Se for
literatura.” (1997, p.90)
Na esteira de Lobato, Ana Maria, assim como alguns contemporâneos dela
mencionados neste texto, foi além da difusão da leitura, ou melhor, a leitura levou a autora ao
compromisso com questões sociais, às quais o bom escritor não fica indiferente.
14
O protesto
em relação ao poder imposto tornou-se uma constante nas obras ficcionais da escritora, como,
por exemplo, Bento-que-bento-é-o-frade (1977), Era uma Vez um Tirano(1982), Bebeto, o
carneiro (1993) e Tropical Sol da Liberdade (1988). Em De Olho nas penas (1981a), por
exemplo, Ana Maria escreve sobre a questão política do exílio, sob a perspectiva de um
menino, um tema considerado por alguns impossível de ser compreendido pelo jovem leitor, o
que também demonstra imenso respeito da autora pela inteligência de seus leitores; e mais
uma vez é pelo imaginário que a autora possibilita o diálogo do texto com o seu leitor. Essa
posição é ratificada na sua produção teórica. No ensaio Contracorrente: conversas sobre
leitura e política, por exemplo, assume um posicionamento contestatório: “Sou mesmo contra
a corrente [...] Contra os elos de ferro que formam cadeias [...] Quando as maiorias começam
a virar uma avassaladora uniformidade de pensamento, tenho um especial prazer em imaginar
14
Na compreensão do filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre, no livro Que é a literatura?, de 1948, a função
do escritor é “... fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (1989, p.
21), apontando um papel engajado por parte do escritor. Vislumbro esse posicionamento em Lobato, no discurso
questionador de Emília, e em Ana Maria, em vários personagens, a exemplo de Nita; em ambos, o engajamento
não beira o panfletário.
41
como aquilo poderia ser diferente.”(MACHADO, 1999, p. 7) Confirmando essa premissa de
que o ato de escrever envolve responsabilidade social, Ana, assim como alguns de seus
contemporâneos, se projeta no papel da escritora comprometida e mobilizada pelas questões
de seu tempo.
Escrevíamos sobre tudo. Não nos autocensurávamos nem evitávamos tema
algum. [...] Não que fizéssemos obras panfletárias, mas falávamos do que
nos mobilizava de modo profundo. Ou, segundo a fórmula de Camus, não
púnhamos nossa arte a serviço da ideologia, mas como cidadãos estávamos
tão mobilizados nas questões de nosso tempo que tudo isso, inevitavelmente,
aparecia no que escrevíamos. (2001, p. 82).
Esse depoimento ratifica a posição de Ana Maria com relação ao papel do escritor
frente às questões sociais da época em que escreve. Marisa Lajolo, em Do mundo da leitura
para a leitura do mundo escreve que “uma obra literária é um objeto social muito específico”
(2001, p. 17). Como objeto social, o texto literário, mesmo não tendo o propósito de
veiculação de ideologia, acaba por fazê-lo, pois, qualquer que seja um discurso, é sempre uma
instância de poder, o texto é a visão de mundo do escritor, lembrando aqui os estudos
linguísticos de Bakhtin
15
. Assim pensando, Ana Maria mostra-se consciente de que escrever é
uma tarefa que envolve responsabilidade, “principalmente quando se trata de leitores que são
crianças, que não têm informação suficiente ou recursos críticos para discernir e analisar a
ideologia oculta no que estão lendo, e para ir fazendo mentalmente as correções necessárias”
(1999, p. 32).
De tão envolvida com a palavra, Ana acabou por assumir sua militância na defesa
da leitura: “... Sou uma militante da leitura [...]. Também é por isso que escrevo: porque amo
os livros, devo tanto a eles, quero colaborar na expansão desse universo”. (2001, p.177) A
militância, todavia, não a distancia das coisas práticas do cotidiano, como reservar um tempo
15
Os estudos linguísticos de Mikhail Bakhtin, no início do século XX, apontam para a falta de inocência dos
discursos. Essa teoria tem por alicerce o fato de as palavras estarem comprometidas, voluntária ou
involuntariamente, com determinado ponto de vista. A neutralidade inicial dos verbetes nos dicionários passa a
disseminar valores, conceitos e preconceitos quando contextualizados. O discurso ficcional tornou-se, assim, um
dos principais veículos de transmissão de valores entre as gerações. À semelhança de fios, o discurso literário
enredava fatos históricos, sociais, antropológicos, culturais, étnicos, econômicos e políticos, construindo, por
uma teia metafórica, a malha narrativa, através da qual veiculava, consciente ou inconscientemente, a visão de
mundo de seu autor.
42
para se dedicar à escrita e lutar por uma remuneração digna que lhe permita viver do que
produz.
O projeto estético/estilístico da autora é fecundo. Muitos são os recursos que se
revelam na obra de Ana Maria Machado, a exemplo do diálogo, que confere dinamismo às
narrativas; do emprego de termos e expressões inusitadas, trovas populares e trava-línguas,
brincadeiras e jogos, que resgatam costumes e festejos da cultura popular. Outro recurso de
que faz uso constante é a quebra da linearidade da narrativa, o que evita um enredo monótono.
Da vasta produção literária de Ana, seleciono três obras que considero suficientes para
exemplificar alguns recursos estéticos por ela utilizados. Em Menina bonita do laço de fita
(1986), desde o título anuncia a poética do texto: composto por um dístico em redondilha
menor, com as últimas sílabas de cada verso rimando entre si bonita/fita. Parte do título é
usada como mote “Menina bonita do laço de fita, qual o teu segredo pra ser tão pretinha?”
para evocar a garotinha, induzindo-a a participar da brincadeira, o que proporciona
musicalidade ao texto e, simultaneamente, compõe o enredo da obra. O texto é traspassado
por ricas imagens metafóricas, a exemplo de: Os cabelos eram enroladinhos e bem negros,
feito fiapos da noite. Na frase de apresentação do protagonista do livro Do outro lado sem
Segredos (1980), “Bino era menino. Bino era Benedito. Bino era filho de pescador.”, é
possível perceber proximidade com uma estrutura poética. (p.9) Em o Avental que o vento
leva (1997), o título já surpreende pela sonoridade resultante da insistência do fonema
fricativo /V/. (Grifos meus)
Em muitas de suas histórias, a autora faz uso da construção em abismo, recurso
empregado para refletir sobre a leitura e a escrita, temas que tanto preocupam a pesquisadora
Ana Maria. Na história Do outro mundo, o protagonista Mariano passa o enredo construindo
uma narrativa; inúmeras vezes ele reflete sobre esse processo, que considera difícil, em razão
de sua pouca intimidade com a prática da escrita. Marisa Lajolo afirma que “todo esse espaço
destinado a uma reflexão sobre a linguagem na obra de Ana Maria Machado é também uma
forma de ruptura.” (1983, p.102) Essa reflexão sobre o fazer literário é prática recorrente na
obra da autora; ao comentar sobre essa prática, Marisa Lajolo metaforizou-a no mar- elemento
da natureza íntimo de Ana desde a infância. Assim como o mar se dobra em ondas, o texto
dobra-se sobre si mesmo:
E, como se fosse ao embalo das ondas, movimento de acalanto da própria
história, é bastante recorrente a autocontemplação do texto, o
encaracolamento das histórias, que tematizam o seu contar e o seu construir-
43
se, espessando a linguagem de que se tece a literatura (LAJOLO, In.:
BASTOS, 1995, p.77)
Ana Maria sente enorme fascínio pela língua portuguesa, principalmente pelo
lugar em que o registro oral, familiar e quotidiano se encontra com a tradição erudita.
Impregnados de manifestações culturais de forte tradição popular, os textos de Ana são
perpassados por poemas e canções, narrativas orais e cantigas de roda, lúdicos jogos poéticos
com frequentes alusões a poemas da tradição popular, proporcionando ritmo e musicalidade
ao texto. Vivências de Ana com a avó Ritinha, que “... era uma biblioteca oral. Ninguém sabia
mais história do que ela, ninguém conhecia melhor toda a tradição que se transmitia de
geração para a outra geração pelo interior do Brasil...” (MACHADO,1996, p.7)
Segundo Ana Maria, tanto a prosa de Mário de Andrade como a poesia de Manuel
Bandeira, dentre tantos outros, confirmam que a criação brasileira do século XX é perpassada
pela influência oralizante das primeiras vozes literárias ouvidas na infância. Vale lembrar o
que escreveu Walter Benjamin: “A experiência transmitida oralmente é a fonte de que
hauriam todos os narradores”(1994, p.268) e, por extensão, os escritores e poetas. Em todos
os textos de Ana Maria, o trabalho com a linguagem é cuidadoso, a desliteralização aproxima
seu discurso oral do cotidiano, o que proporciona identificação imediata de seu leitor com a
personagem. No ensaio Livros infantis como pontes entre gerações, assim se expressa sobre o
assunto:
... um acervo vindo oralmente da noite nos tempos e passando de uma
geração para outra em sucessivas pontes, vai aos poucos se construindo um
legado. Uma vez sedimentado, esse patrimônio passa a exigir rupturas e
reinvenções que ao mesmo tempo o contestem e reconfirmem em novas
vozes e novos tons, para que possa ser retransmitido também de forma
renovada, com o acréscimo de experiências originais. (MACHADO, 2004, p.
61)
A linguagem é elemento constitutivo da obra de Ana Maria, em muitos casos se
configurando como temática principal, num exercício de metalinguagem, seja quando aborda,
mesmo que implicitamente, o problema da relação significante/significado, como em
Palavras, palavrinhas, palavrões (1981b), seja em Bento-que-bento-é-o-frade (1977), em que
questiona constantemente o significado das palavras e suas múltiplas possibilidades, seja
44
quando dialoga com obras clássicas, quer dos contos tradicionais, a exemplo de Passarinho
me contou (1983), que resgata as personagens João e Maria; quer dos contos de reis e
príncipes, como em O Príncipe que bocejava (2004); ou ainda dos clássicos da literatura
universal, a exemplo de Odisseia, de Homero, que é revisitada no romance Alice e Ulisses
(1999). A linguagem é para Ana Maria, assim como para seus personagens, um elemento
lúdico, cuja função é se deixar manipular para se transformar num novo elemento, numa outra
palavra, também passível de mudança. Em Bem do seu tamanho (1980a), a personagem
Flávia diz: “... Inventar, que as palavras são brinquedos, que a gente pode pegar, revirar, olhar
de um lado ou de outro, ver se uma cabe dentro da outra, essas coisas...”(p.24-25). Essa
preocupação com a linguagem nos textos ficcionais se estende aos teóricos; se nos primeiros
busca o lúdico, nos ensaísticos prima pela precisão: “... a clareza de conceitos não deve se
esconder atrás da obscuridade dos termos. [...] Um especialista não deve abrir mão do rigor e
da exatidão dos conceitos quando está examinando o assunto que estuda. (2004, p.80-1) Em
outro ensaio, Língua portuguesa: impressões pessoais, Ana escreve que a língua marca e
define a pessoa. Ela tem plena consciência de que a Língua se mantém viva, por ser dinâmica
e, ao mesmo tempo, manter uma estrutura normativa que a sustenta:
Quero a língua portuguesa com sua flexibilidade, sua variedade, seu ritmo e
sua dança, sua ginga inventiva, seu jogo de cintura, sua irreverência. Mas, ao
mesmo tempo, sei que essas características a mantêm viva, viçosa, jovem e
dinâmica apenas porque se exercitam em cima de um esqueleto forte que a
sustenta e o permite que despenque e se disperse em incontáveis
experiências individuais desagregadoras. […] Sem essa obediência a uma
estrutura de sustentação, o edifício do idioma não fica em e ninguém se
entende. (2004, p. 82)
Ana busca uma língua dinâmica, traduzida pelo emprego dos termos
“flexibilidade”, “variedade”, “ritmo”, “dança”, “ginga inventiva”, “jogo de cintura” e
“irreverência”, “viva”, “viçosa” jovem” e “dinâmica”, mas tem consciência da importância
de uma estrutura que a sustenta, evitando dispersões individuais e desagregadoras que
transformariam o idioma numa “torre de babel”.
A pesquisadora Anna Cláudia Ramos escreve que Ana Maria é uma grande
pensadora sobre a leitura e o fazer literário, que seus ensaios abordam “aspectos fundamentais
sobre a democratização da leitura de literatura em nosso país e sobre os processos de criação”,
e que o faz através de uma “escrita leve e acessível, quase um bate-papo com o leitor”. (2006,
p.17). Principalmente por se tratar de uma literatura destinada às crianças e jovens é que Ana
45
demonstra todo o cuidado com a qualidade do texto que escreve. Na mesma linha de
pensamento, escreve a ensaísta Eliana Yunes:
Ana jamais tolerou a mesmice, a escritora gosta de driblar as fórmulas, sua
obra é um marco de renovação da linguagem na literatura infantil brasileira.
Suas narrativas respeitam a inteligência e a sensibilidade infantis. Ana
experimenta formas e temáticas diversas, brinca com as palavras e induz à
reflexão sem pedagogismos. (YUNES, In: BASTOS, 1995, capa)
Valendo-se de competência linguística e capacidade de renovação, Ana escreve
suas histórias atenta a uma linguagem que seja ao mesmo tempo lúdica e correta. Mas é
preciso frisar também que Ana considera que a literatura para jovem talvez seja apenas aquela
de que ele se apropria e que passa a considerar como sua. Todo esse cuidado com a escrita
vem da crença de que um leitor, seja ele criança, jovem ou adulto, gosta de um texto porque
sente que esse texto “o escolhe, o atrai, o deseja, o excita, por meio de todo um jogo de
esconder e revelar”.(MACHADO, 2004, p.37) Nesse contexto teórico, Ana lembra a
formulação de Barthes: “O prazer do texto é o momento em que meu corpo vai seguir suas
próprias idéias pois meu corpo não tem as mesmas idéias que eu, modo pelo qual essa
ligação se estabelece até mesmo pela ruptura e pela independência.” (p.39) A tríade autor-
texto-leitor, elementos indissociáveis na leitura/escrita, gera e absorve o prazer que essa
relação envolve num movimento de ir e vir entre autor/texto/leitor. Ciente desse processo, ao
mesmo tempo lúdico e consciente, para Ana o ato de ler e escrever constitui prazer, porque
está associado à curiosidade, ao desejo de saber, de investigar e de explorar, uma atividade a
dois, mediada por um jogo (texto) entre autor e leitor.
Para elucidar essa discussão, em princípio e aparentemente contraditória, recorro
ao próprio discurso teórico de Ana: “Acho que uma ponte que não aguente o peso de adultos
não serve para crianças e não devia ser oferecida a elas, pode até ser perigosa.” (2004, p. 66)
E a seguir, acrescenta: “A ponte tem que ser sólida, mas não pode ser ameaçadora.” (2004, p.
68) Trata-se, portanto, de convidar a criança para participar do jogo literário, penetrar o texto
e apreciar a beleza propiciada pelos artifícios linguísticos, que somente um escritor experiente
e criativo é capaz de produzir.
Paralelamente ao seu amor pelas palavras e pelas linguagens, ao refletir sobre sua
escrita, Ana reconhece alguns vestígios sobreviventes de uma certa atitude diante do mundo,
um deslumbramento, próprio do olhar infantil, anunciado por Maria Montessori quando
46
afirmou serem as crianças capazes de ver o invisível. Ana recupera as palavras da autora no
livro Texturas: “A capacidade de observar intensamente e em detalhe tudo o que está à nossa
volta [...] A inteligência infantil observa com amor, não com indiferença, e é exatamente isso
o que faz com que as crianças sejam capazes de ver o invisível.” (MONTESSORI, apud
MACHADO, 2001, p. 102) É esse olhar de descoberta, surpreso diante das coisas
corriqueiras, um olhar inaugural e de encantamento com tudo em torno, resgatado da infância,
que impulsiona a criação de Ana Maria.
Maria Teresa G. Pereira (2004), na apresentação do livro Tranças de histórias,
escreve sobre a atualidade e a importância da escritora para as letras brasileiras: “Tanto pela
qualidade literária, materializada no plano lingüístico e temático, quanto pela repercussão e
destacado papel na formação de leitores críticos, atentos aos meandros da linguagem
literária.” Senise Camargo Lima Yazlle, em sua tese intitulada Vozes de criança: o discurso
de auto-afirmação na literatura infantil de Ana Maria Machado, destaca oito relevantes
estudos que enfatizam os recursos estéticos expressivos comuns em variados títulos da
escritora: Rosell (s.d), Resende (1988), Quintana (1989), Pereira (1991), Cruz (1991), Lajolo
(1995) e Peixoto (1997) e, por fim, Pereira e Antunes (2004). É importante ressaltar também o
trabalho de Anna Cláudia Ramos (2006). Todos esses estudos, embora sob diferentes
perspectivas, colaboram para a consolidação da importância da escritora para a literatura
infantil brasileira à medida que ressaltam, em diferentes obras, o valor estético em trânsito nos
níveis histórico, linguístico-expressivo e temático, ora conjugando, ora discernindo aspectos
teóricos e literários, evidenciando o caráter inovador da autora, ao tempo em que contribuem
para a afirmação do gênero literário. Ademais, ajudam a compreender a construção da
imagem que a escritora tem de si mesma e da imagem da criança e do jovem na obra da
autora, ao mesmo tempo em que evidenciam a pertinência dos recursos estético-expressivos,
estruturais e temáticos utilizados na elaboração do texto literário que traz a criança e/ou o
jovem como personagem e que a eles é destinado, questões que contribuem para elucidar a
possibilidade do diálogo entre a produção teórica e a ficcional da autora, assunto que interessa
a esta pesquisa.
O capítulo seguinte trata das teorias que sustentam esta minha reflexão.
47
CAPÍTULO 2: TRANÇANDO A TAPEÇARIA E ESCOLHENDO AS LINHAS -
FREUD, ISER e TACCA
lO olho vê,
a lembrança revê,
e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Manoel de Barros (2000)
Ninguém se põe a bordar do nada e ao rumo. Toda bordadeira sabe que é preciso
escolher, selecionar o motivo dentre os existentes ou inventar um novo; na busca pela
composição, extrair do arco-íris as cores de que precisa para combiná-las em harmonia. O
resultado depende dessas escolhas. É tarefa do escritor, à semelhança da bordadeira, joeirar as
palavras, fazer seleção do repertório disponível, garimpar uma palavra intocada ou
adormecida, (re)inventar. Como João Cabral (1973) metaforizou que o catar feijão [...] se
limita com escrever, jogam-se os grãos na água do alguidar, e as palavras na da folha de
papel; e depois, joga-se fora o que boiar”, o crítico também não pode se esgueirar de escolhas,
mesmo que essas escolhas determinem a exclusão de outras teorias igualmente aplicáveis,
assim como diz o poeta: “...quando ao catar palavras: a pedra à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a com risco....”
Nelly Novaes Coelho, referência teórica da Literatura Infanto-juvenil brasileira,
afirma que seria prematuro falar em normas para orientação do pensamento crítico
contemporâneo. Por isso, ela expõe as seguintes ideias-bases que estariam atuando na nova
cultura em processo e, consequentemente, na nova literatura: 1. a valorização da literatura
como experiência humana; 2. a descoberta do poder da palavra; 3. a dialética entre Razão e
Imaginação; 4. o caos do mundo moderno, entendido como fenômeno de transformação; e 5. a
redescoberta do Eu na interação com o Outro. Essas ideias permitem avaliar a literatura
infantil como um “objeto novo”, que, para além do prazer da leitura, sugere diversos
caminhos para que o pequeno leitor possa lidar com a imaginação e a razão, duas grandes
forças de ser e estar no mundo, e possa ter consciência do “eu” que se descobre parte
integrante do grupo. (2000, p.142-59, passim).
Essas ideias de Nelly Novais aliadas ao fato de Ana Maria tentar responder a
questões relativas ao seu processo criativo como sendo originário de elementos atuais que se
ligam a suas lembranças, despertando a imaginação, fomentaram o direcionamento desta
48
pesquisa balizada nas teorias de Sigmund Freud (1908)
16
, Wolfgang Iser (1976-1979) e Oscar
Tacca (1978). Na primeira parte deste capítulo, discuto o pensamento de Freud sobre
escritores criativos e, em razão da pesquisa não se direcionar a uma abordagem psicanalítica,
a reflexão ficará restrita ao texto: Escritores criativos e devaneios, por entender que este texto
é suficiente para a discussão que pretendo sobre a memória e a criatividade na produção de
Ana Maria. Na segunda seção, respaldo o meu pensamento na teoria de Iser sobre imaginação,
por entender que ela ajuda a compreender como se processa esse diálogo entre a experiência
vivida pela autora e a ficção; e, finalmente, na terceira seção, reflito o processo narrativo na
perspectiva de Oscar Tacca. Esses teóricos servirão de aporte à discussão sobre a obra de Ana
Maria, em especial à análise da novela Do outro Mundo.
2.1 Escritor criativo: Sigmund Freud (1908)
consegue ser criativo quem é capaz de manter dentro de si o
prazer infantil da brincadeira, já experimentando em criança.
Freud (1976)
A ligação entre memória e processo criativo aguça a curiosidade e provoca
pesquisadores e leigos; com Ana Maria não foi diferente. Como leitora, ela sempre sentiu
curiosidade acerca dos segredos de quem escreve. Antes mesmo de se tornar escritora,
gostava de ler entrevistas de autores sobre seus processos de escrita. Nas palavras de Ana
Maria:
... A essa altura, eu escrevia, mas nem por isso perdi o interesse pelos
mistérios da escrita. Pelo contrário, passei a me sentir ainda mais fascinada
por eles, seja para aprender alguma coisa com os mais experientes ou para
me sentir menos sozinha, ao constatar que não sou a única com certas
esquisitices ou rituais. Ou, quem sabe?, meramente por curiosidade ou
bisbilhotice.(2007, p.10
)
16
1908- data da publicação do texto Escritores criativos e devaneios, proferido inicialmente em palestra em
1907, original ao qual não tive acesso. Todas as citações doravante serão da edição brasileira de 1976.
49
A coincidência de a romancista Lygia Fagundes Telles haver publicado um livro
intitulado Invenção e memória (2000), falando sobre o assunto, instigou Ana Maria (2007) a
pensar sobre essa relação. Muito tempo depois é que ela tomou conhecimento do texto de
Freud sobre escritores criativos. O contato com o texto a fez descobrir que ela e Lygia
repetiam “empiricamente” o que o psicanalista formalizara no século passado, excetuando-
se o fio do desejo, desconsiderado por ambas, conceito que entrelaça e une os tempos
passado, presente e futuro. Para Freud:
Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma
lembrança de uma experiência anterior (geralmente sua infância), da qual se
origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria
obra revela elementos da ocasião motivadora do presente a da lembrança
antiga. (1976, p. 156)
A experiência na infância serve ao propósito criativo em razão da afinidade
inventiva entre a fantasia da menina e a criação da escritora, que busca, pela memória afetiva,
resgatar momentos em que a brincadeira, a fantasia e o jogo eram elementos fundamentais à
vida da criança Ana, estabelecendo um diálogo com a mulher que hoje busca, nessas
experiências rememoradas, elementos necessários à criação artística. A relação entre a
fantasia e o tempo é, em geral, muito importante na teoria freudiana. É como se a fantasia
flutuasse entre o pretérito, o presente e o futuro, assim como nas obras de Ana. O trabalho
mental se liga a uma impressão atual motivadora do desejo do sujeito, capaz de remetê-lo,
pela lembrança, a uma situação pretérita causadora de prazer.
No livro Balaio: livros e leituras (2007), Ana ratifica o pensamento freudiano e
admite que, respaldada na infância que teve ou na menina que foi, constrói a sua literatura.
Segundo Freud, brincar é uma necessidade essencial nessa fase da vida, e a atividade que
permite criar um universo próprio, um mundo imaginário (re)criado com os elementos do
cotidiano, causa imenso prazer aos pequenos. À medida que as pessoas crescem e as
brincadeiras deixam de ser prazerosas, surge a necessidade de preencher a falta causada pelo
abandono da brincadeira, porque desistir de um prazer experimentado é difícil ao homem.
Para o psicanalista, não se trata de abstinência, mas de substituição. Nas palavras de Freud:
50
Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que
obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é
tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que experimentou. Na
realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que
parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado.
(FREUD, 1976, 156)
Assim, a brincadeira da infância é substituída pela fantasia do adulto. Quando
bem direcionadas, essas fantasias passam a fazer parte do universo criativo do escritor,
multifacetadas nos heróis que inventa e que se multiplicam, quanto mais prazer lhe causam.
Freud compara o fantasiar da criança à criação do artista, ambos inventam um universo
próprio onde desejam morar por algum tempo: a criança fantasia, geralmente, ser um adulto e
viver no universo próprio dessa idade; o literato escreve ficção e poesia. Mas ambos têm
consciência do que é a realidade e do que é a fantasia
Poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor
criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de
seu mundo de uma nova forma que lhe agrade. A antítese de brincar não é o
que é sério, mas o que é real. [A criança]...distingue perfeitamente o mundo
imaginário da realidade. O escritor criativo faz o mesmo que a criança que
brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual
investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação
nítida entre o mesmo e a realidade. [...] A linguagem preservou essa relação
entre o brincar infantil e a criação poética. (FREUD, 1976, 156-57)
A infância trazida ao presente pela memória de Ana escritora não representa uma
imagem especular da menina que foi, mas sim a fertilidade da imaginação na infância, que é
fonte de criação na idade adulta. Nessa linha de raciocínio, Ana Maria escreve sobre como a
autora, multifacetada em diversos heróis, se reconcilia com seus fantasmas e conflitos
pessoais:
O escritor é capaz de artificialmente separar seu ego, por meio de uma auto-
observação, em vários egos parciais e, em consequência, personificar os
conflitos correntes de sua própria vida mental como se estivessem
acontecendo em vários heróis distintos. E, às vezes até, deixando um desses
funcionar como espectador que assiste ao desenrolar das situações e comenta
as ações e sofrimentos dos outros: o narrador
. (2007, p.39. Grifo meu)
51
É possível explicar a assertiva de Ana segundo a teoria freudiana: “o escritor
suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna
com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas
fantasias”. (FREUD, 1976, p. 158). Ao brincar com as múltiplas possibilidades de ser outros,
Ana Maria, na qualidade de autora, experimenta essas vidas potenciais, parte de um dado da
realidade perceptual e se põe a modificá-lo inúmeras vezes, substituindo os ingredientes ou
dando-lhes outra forma, e, ao fazê-lo, constrói infinitas figuras diferentes. Complementa essas
afirmações Rosa Monteiro em A louca da casa:
Brincando com os e se’, o romancista experimenta essas vidas potenciais.
[…] o escritor pega um grumo autêntico da existência, um nome, uma cara,
um pequeno episódio, e começa a modificá-lo mil e uma vezes, substituindo
os ingredientes ou dando-lhes outra forma, como se tivesse aplicado um
caleidoscópio sobre sua vida e estivesse rodando indefinidamente os mesmos
fragmentos para construir mil figuras diferentes. E o mais paradoxal é que,
quanto mais você se afastar com o caleidoscópio de sua própria realidade,
quanto menos puder reconhecer sua vida no que escreve, mais estará se
aprofundando dentro de si mesmo... (2004, p. 189-90)
Ana Maria se aproxima da linguagem para contar suas histórias com amor e
respeito pela língua. Segundo afirmação da autora, escreve num estilo próprio em que tenta
conciliar memória e imaginação. Nas palavras da autora: “Memória do que vi e vivi, muitas
vezes na infância. Imaginação que nunca foi tão soberana como em meu tempo de menina.
Daí o papel fundamental do universo infantil na minha relação com a literatura.(2001, p. 102.
Grifos meus)As experiências da infância são importantes fontes para a invenção artística de
Ana Maria, processo comum a muitos outros escritores, a exemplo de Anna Cláudia Ramos,
que, em seu livro Nos bastidores do imaginário, escreve:
... cada autor possui lembranças e histórias que marcaram sua trajetória de
vida e, consequentemente, sua escrita, e que, por isso, cada um tem sua
maneira singular de escrever. Ao mesmo tempo, reparava que muitos autores
associavam a criação a uma necessidade de recriar o mundo, de espantar
fantasmas, de transformar o real em um novo real [...] falavam da criação
artística tendo, de certa forma, alguma ligação com a infância, com a criança
que foram e que de certa maneira ainda habitava neles... (2006, p.58).
52
Essa busca de alimentação criativa na infância é fonte em que bebem muitos
escritores. É da infância, ímpar em cada um, que advém a singularidade distintiva do estilo de
cada autor. Assim como a criança (re)inventa a vida em busca de soluções para o real, o
artista (re)cria o real através da estética. De igual forma, quando um leitor adentra a obra
literária, se deixa envolver por seus jogos e disfarces, é tomado por prazer semelhante ao
experimentado pelo autor, na medida em que se transfigura no herói do relato, com ele se
identificando, experimentando situações novas, vivendo em outros mundos, refazendo-se via
alteridade, ou melhor, (re)conhecendo-se. Essa experiência com o texto propicia muito prazer,
quer do autor em direção à obra, quer do leitor em relação à narrativa, o que, naturalmente,
nasce de muitas fontes que confluem no texto literário.
Vale a pena resgatar outra passagem do texto da escritora Anna Cláudia em que,
respaldada no pensamento nietzschiano, a autora escreveu acerca do olhar adâmico sobre o
mundo que é próprio ao artista, ideia que complementa a discussão realizada anteriormente:
E os adultos que conseguiram manter em si o encantamento da
brincadeira é que não perderam nem perderão a capacidade de enxergar o
mundo com os olhos do imaginário, no qual é possível ver o invisível do
visível, ou seja, aquilo que poucos enxergam em meio ao banal cotidiano.
(2006, p. 165)
É com esse olhar inaugural e de encantamento, próprio à infância, que Ana Maria
olha o mundo. Sua infância está incorporada em sua obra como elemento imprescindível à sua
realização, possível de ser identificada através das personagens e do mundo descrito nas
narrativas que constantemente fazem referências às pessoas biografáveis, alusão a lugares e
ambientes comuns à infância, mas que, pelo imaginário, são (re)criados. Não é novidade que a
literatura constitui fonte de estranhamento, de reflexão pessoal e de espírito crítico, o escritor
(re)cria a experiência, fertilizando o imaginário do leitor, o que é “indispensável para a
construção de uma criança que, amanhã, saiba inventar o homem”.(HELD,1980, P.234) A
criança curiosa e questionadora emerge na autora criativa que, por outro caminho, busca
respostas para as inquietantes perguntas que a incomodam sobre o ser e estar no mundo.
Assim, a recordação da infância, o trazer de volta ao coração, é um meio de ativar a
imaginação para a criação artística. É na ficção que o homem que escreve ou que lê, junta os
pedaços, (re)organiza o caos e se (re)encontra como ser humano.
53
Uma abordagem freudiana profunda poderia melhor examinar essa questão sobre
o escritor criativo, mas o objetivo desta pesquisa não foca apenas essa questão, daí a limitar
ao que foi escrito nesses parágrafos e que parece suficiente ao propósito.
2.2 Duplo imaginário: Wolfgang Iser (1976-1979)
Inventar é um jeito diferente de perguntar
e sair experimentando possíveis respostas.
Ana Maria Machado (2007)
Em 1951, Cecília Meireles define a literatura infantil pelo gosto da própria
criança. Segundo ela, “não haveria, pois, uma literatura Infantil ‘a priori’, mas ‘a posteriori’”.
A partir desse estudo, torna-se evidente a participação ativa do leitor na definição da
identidade da literatura infantil, que, desde o sintagma nominal, traz explícita a marca de sua
identidade ligada ao receptor.(1979, p.19) É nessa perspectiva que esse gênero não pode ser
pensado independentemente do receptor, razão por que Iser foi convocado para este diálogo
teórico. A criança, assim como o pré-adolescente, se presentifica na elaboração dessa
literatura como leitor “previsto”, como uma categoria literária e como personagem capaz de
construir seu próprio discurso.
É importante, neste momento, agregar a esta reflexão alguns estudos sobre o
processo de criação artística oriundo da percepção que o artista tem sobre a infância, imagem
da criança que foi trazida ao texto literário via memória.
A pesquisa de Vânia Resende (1988) teve por objetivo esclarecer como a imagem
da infância, resgatada pela memória e aliada ao imaginário do artista, pode funcionar como
“elemento catalisador” na criação de um mundo ficcional. Segundo a pesquisadora, a infância,
incorporada na visão do menino, surge como uma espécie de projeção da criança que foi o
artista e que se projeta no narrador da história. O seu estudo dialoga com as obras de autores
conhecidos do público, como: Ana Maria Machado, Autran Dourado, Bartolomeu Campos
Queirós, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Guimarães Rosa, Jorge Amado,
José J. Veiga e Ziraldo, ora agrupando-os, ora tratando-os individualmente. Para a
pesquisadora, trata-se do
54
... modo de evocação da infância e de participação das personagens infantis
nos seus textos, levando-nos a constatar, na maioria deles, significados
humanos e estéticos profundos, emergentes de um mundo metafórico, em
que se cruzam símbolos da imaginação criadora e imagens da realidade
infantil – fonte mágica vivificante, de que o criador pode tirar grandes
efeitos, realizando, de forma plena, a ficção de sua escritura. (p. 23)
O trabalho da pesquisadora acerca da representação do menino na obra dos
mencionados autores é muito rico, mas, por lógica e coerência, importa retomar o que a autora
escreveu sobre o menino na obra de Ana Maria. Vânia Resende escreve sobre a função da
fantasia na obra de Ana Maria, que é a de proporcionar um diálogo do mundo “real
convencional” e do “mundo real imaginário”, possibilitando o equilíbrio entre fantasia e o que
a lógica do senso comum reconhece como realidade. O plano da interioridade, correspondente
ao espaço da invenção do criador, onde tudo se revira, se inverte e se (re)inventa através do
jogo e da fantasia, rompe com o plano da exterioridade, que demarca uma realidade
referencial estabelecida pela percepção social, recriando um mundo original, que é possível na
ficção. Se no plano de fora é o menino que questiona o universo empírico, ao artista cabe
questionar essa mesma realidade de dentro, de onde tudo se transforma e se recria. Vânia
Resende conclui que Ana Maria, no curso da inventividade, faz uma viagem pelo próprio
imaginário, que redunda na trajetória circular de muitas de suas personagens, promovendo
uma passagem do plano primeiro do imaginário para o ato especular do mergulho em
“camadas mais profundas do seu imaginário, onde se processa o diálogo de sua imaginação
adulta (face consciente) e a fantasia das suas personagens infantis (face inconsciente,
profundamente simbólica)...”(p.100); lembre-se aqui o diálogo com o texto Escritores
criativos e devaneios de Freud, discutido na primeira parte deste capítulo. Na face
inconsciente, o mundo é concebido com maior relatividade pelo seu confronto com o outro
ângulo do real, trazido à tona pela fantasia e pela consciência individual. Os momentos de
maior força poética e de maior relevância simbólica ocorrem nesse segundo plano, em que são
atingidos os limites do inconsciente da escritora e de onde subjaz a sua criança, reconquistada
no processo de criação.
Há, na obra de Ana, a introdução do gico no cotidiano, comum e rotineiro,
caminho anteriormente trilhado por Monteiro Lobato. Ao procurar fundir o real com a magia
do imaginário, ela consegue o equilíbrio entre os mundos da sensibilidade e fantasia, próprios
à infância. A identidade de Ana com as crianças está em conseguir falar a linguagem da
55
fantasia e da poesia, que é igual à linguagem da infância, contudo sem empobrecimento,
obviedades, tautologias ou tatibitates, importa ressaltar.
Outra pesquisadora, Senise Camargo Lima Yazlle, em sua tese: Vozes de criança:
o discurso de autoafirmação na literatura infantil de Ana Maria Machado, complementa essa
discussão, ao concluir que
...a personagem-criança representada em toda a literatura infantil de Ana
Maria Machado é aquela que se autoafirma pela sua subjetividade, ou seja,
pela maneira de explorar seu mundo exterior em consonância com seu
mundo interior, baseada na reflexão sobre si mesma e sobre seu mundo
circundante. (2008.p.87)
A busca pela autoafirmação da criança se realiza na medida em que procura
conhecer a si mesma, sob diferentes ângulos. Senise Yazlle afirma que não é difícil
estabelecer um vínculo entre essa personagem criança e Ana Maria, percebida na relação com
seus avós, narradores incansáveis das noites da Ana menina. Acrescento a essa constatação da
pesquisadora alguns comportamentos próprios à infância de Ana, como a autossuficiência em
aprender a ler sem auxílio de um adulto, a observação inquietante de tudo a sua volta, o
questionamento sobre as coisas, a exemplo da passagem da estatueta de Dom Quixote,
citada no primeiro capítulo, e inúmeras outras artimanhas, facilmente coletáveis de sua
biografia, que demonstram consonância entre mundo interior e exterior na busca da
construção da identidade autoral, que remonta à criança que foi e que ainda vive na escritora
que cria. Reporto-me a Monteiro Lobato mais uma vez, para lembrar o diálogo que Ana
estabelece entre sua obra e a do autor do Sítio do Pica Pau Amarelo, que se assenta no modo
como ele concebeu a criança em toda sua literatura, especialmente na figura de Emília,
imagem de uma criança curiosa, “inventadeirae espevitada, assim como as crianças criadas
por Ana Maria, a qual demonstra, como Lobato, grande respeito pelo universo da infância.
Penso que é daí que vem a afinidade de Ana Maria com seus leitores, e, num
percurso inverso, a identidade de seus leitores com a obra de Ana. Em seu livro Ilhas do
tempo, ela escreve:“...Claro que existe uma consciência de que uma criança do outro
lado...” (2004, p.66) E, mais adiante, complementa essa sua ideia, relacionando o fato de que,
se se tem consciência do receptor, é necessário estar atento à linguagem que deve aproximar o
texto desse leitor, sem, contudo, menosprezar sua capacidade de apreensão; é nesta relação
que reside o respeito demonstrado por Ana Maria pelas crianças. Nas palavras da autora: “A
56
linguagem está sempre dentro dessa margem de manobra [...]. Não para simplificar a
linguagem, mas para atingir o simples, elevá-la até o imaginário infantil para que a criança
possa ter identificação”. (p. 105) Esse processo evidencia a estética que perpassa toda a obra
de Ana Maria Machado. A autora cria um vínculo com seu leitor, quer pela linguagem que
emprega, quer pelo mundo que representa, desse modo, seu leitor torna o agente e o canal em
torno do qual toda a criação da autora se realiza.
É possível vislumbrar, no texto literário, a representação do mundo exterior ao
texto, mas essa representação não se pela cópia do mundo, tomando-o como modelo, mas
pela tentativa de representar o já representado pela percepção do olhar daquele que o examina,
creio que posso dizer uma cópia da cópia. Ana Maria torna possível o diálogo entre o que
poderia ter sido, resgatado por sua memória e interpretado pelo sujeito que escreve, e o que é
(re)construído pelo narrador que no texto relata. A narrativa ficcional projeta um mundo
semelhante ao mundo empírico, mas não é a representação desse mundo. É outra coisa. Sua
força reside na capacidade de criação de uma realidade que ela (re)cria, a partir do mundo
empírico, e organiza, assim ilumina a realidade por ela fingida. Nas palavras de Wolfgang Iser
(1996b)
17
: “Ela [ficção] virtualiza as diferentes interpretações da realidade, da qual empresta o
repertório, bem como o repertório de normas e valores dos leitores...” (p. 124-5. Grifos meus).
Essa citação ratifica o afastamento do pensamento iseriano da mimese como
imitatio e o aproxima da concepção adotada por Costa Lima(2006)
18
, de cuja teoria este
17
O Iser de 1996 é aquele que enfatizou a ligação entre o leitor e o texto pela estética do efeito. A recepção é
concebida como um processo de concretização pertinente à estrutura da obra, em que o leitor interfere no texto
com imaginação e com ele dialoga. É necessário ao processo de interação que leitor e texto se “fundam”,
considerando os horizontes históricos em que texto e leitor estão inseridos, condições que antecedem à leitura e
que Jauss denomina de horizontes de expectativas.
18
É repensando a mimese que Luiz Costa Lima lança as bases de sua obra crítica, mostrando-se afinado com a
tradição crítica - desconstrução das noções de sujeito, de Deus e de centro- inaugurada pelo estruturalismo com
Foucault, Derrida, Althusser e Lévi-Strauss, prosseguindo com a semiótica francesa através de Barthes, Greimas
e Kristeva, ou americana na linha, com Charles S. Peirce. Nessa vertente teórica destaco, dentre outros críticos
brasileiros, Anatol Rosenfeld, Haroldo de Campos, Silviano Santiago e Leyla Perrone-Moisés. Considero
importante acrescentar a descrição feita pelo próprio Costa Lima do seu percurso teórico para chegar ao conceito
de mimesis do qual Iser se aproxima: “Desde Mimesis, passando pelo ensaio Representação social e mimesis em
Dispersa demanda, e por partes de O controle do imaginário e o presente livro[Sociedade e Discurso Ficcional],
temos insistido em que a mimese, como afirmava a Poética aristotélica, não é uma exclusividade da atividade
artística(ficcional). Poderíamos, sim, dizê-la fenômeno de base de todo processo produtivo (poético). Para efeito
de simplificação, no esquema acima, chamamos seu campo de atuação de campo de aprendizagem ativa. (Essa
terminologia tem, contudo, a vantagem de esclarecer não tomarmos o processo produtivo como exclusividade do
adulto). Como tal, a mimese supõe que um sujeito se propõe- na maioria dos casos de forma não consciente -
identificar-se com um padrão. Na realidade seu projeto de identificação se traduz em um processo de
semelhança, i.e., de fazer-se semelhante ao padrão. Dependendo da produtividade psíquica do agente. Essa
semelhança buscada se atualizará numa forma de maior/menor diferença (Só nos casos patológicos a semelhança
assume o rumo contrário e o agente se converte em cópia/duplo do padrão). Por essa razão, temos definido a
mimese como a produção da diferença, devendo-se acrescentar que sob um horizonte de semelhança. Assim
definida, a mimese é uma categoria universal ao homem.” OLIVEIRA In.: CURY & FERREIRA(1992),passim.
O conceito de mimese de Luiz Costa Lima me ajudou neste percurso, pois em sua proposta considera a mimese
57
trabalho não se ocupa, embora considere que seria pertinente o pensamento do teórico se aqui
o adotasse. Descartando os verbetes dicionarísticos que acabam por se fechar numa tautologia
em torno de realidade sinônimo de real e de verdadeiro, o real de que trata este estudo é
aquele que se refere ao “mundo extratextual”, conforme Iser o preconiza. Polemizar se as
coisas existem de fato, ou não, constituiu matéria pouco relevante para meu empenho, o
importante é que aquilo que é contado via linguagem e pode ser recebido pelo leitor,
possibilita que o narrado se torne realidade pela linguagem.
Iser responde às certezas arraigadas no dualismo realidade/ficção com a inserção
do imaginário, resultando numa relação triádica: real-fictício-imaginário. Nas palavras do
teórico, essa oposição entre ficção e realidade pertence ao “repertório elementar de nosso
‘saber tácito’, e com esta expressão, cunhada pela sociologia do conhecimento, faz-se
referência ao repertório de certezas que se mostra tão seguro, a ponto de parecer evidente por
si mesmo”. (1996b, p.13) O caráter paradoxal da experiência literária se explica pelo fato de
esta tornar possível o questionamento da oposição entre real e ficcional. Mas, para se
investigar de que maneira a dicotomia é infringida, primeiro é necessário que se rompa com a
oposição entre os conceitos e se conceba uma relação que incorpore o imaginário como uma
terceira noção, cuja presença redefine o papel dos outros dois termos. Na mesma página,
escreve Iser: “como o texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na
descrição deste real, então o seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em
si mesma, mas é, enquanto fingido, a preparação de um imaginário”. É lícito afirmar que o
fictício é uma realidade que se repete pelo efeito do imaginário. A ruptura dessa dicotomia
possibilita melhor compreender a interdependência entre os conceitos. O projeto iseriano
começa a se definir com mais força na amputação dessa determinação. Se a primeira forma de
assumir a não determinação foi a criação de um terceiro termo, a “segunda forma de fugir da
ontologização e da necessidade de decisão foi conquistada através do conceito de ‘atos de
fingir’.” (MONTEIRO, 2003, p.41)
O teórico considera a existência de três atos no espaço do jogo, entre si
intercambiáveis, que nomeia como “atos de fingir”: ato de seleção, de combinação, de
autoindicação (como se). O ato de seleção engendra a intertextualidade; no segundo ocorrem
as transgressões intratextuais do léxico aos personagens, estabelecendo um espaço de jogo em
que o presente é sempre duplicado pelo ausente. Na autoindicação ocorre a duplicação
como uma atividade dialógica, em que a representação existe, mas não representa algo anterior, ela é produto de
uma troca, um efeito de ir e vir, conforme conclui o autor em Mímesis: desafio ao pensamento. (COSTA LIMA,
2000. p. 398)
58
literária, através de sinalizações que vêm a estabelecer o contrato entre autor e leitor. É
quando se evidencia como discurso encenado, o universo textual é colocado sob o signo do
“como se”. Nas palavras do teórico:
o ato de seleção abre um espaço de jogo entre os campos referenciais e sua
deformação no texto; o ato de combinação abre outro espaço de jogo entre a
interação recíproca dos segmentos textuais e o ato do como se abre um
espaço de jogo entre um mundo empírico e sua metaforização. (ISER,1996,
p. 265. Grifos meus)
Se, por um lado, o real se torna um pouco menos evidente e sugere que tem muito
de inventado, por outro, a indeterminação e o caráter difuso do imaginário cedem um pouco, e
aquilo que estava na imaginação se realiza, torna-se mais próximo e mais real. Embora o
imaginário se ofereça à experimentação de modo difuso, informe, fluido e sem um referencial
específico, ele é condição para superar o existente e projetar o ainda inexistente. O
imaginário, análogo a um espaço aberto, permite a invenção do possível e anuncia uma outra
realidade. Nesse processo, o imaginário perde seu caráter fluido, algo do imaginário
transborda para o real e para o fictício. O texto que resultou da realização do imaginário,
requer do leitor a capacidade de (re)produzir o objeto imaginário por ele realizado, processo
semelhante àquele utilizado pelo autor na sua elaboração e é através dos atos de fingir, pelo
imaginário, que o leitor consegue penetrar a obra, também pelo que não foi dito, mas que por
ele é imaginado, o ficcional exige o acionamento de um imaginário que atua tanto no autor
como no leitor de forma similar. A interação texto/leitor parte das estruturas do texto, as quais
são, ao mesmo tempo, de caráter verbal e afetivo. Este duplo caráter diz respeito ao efeito
causado no leitor, quando em contato com estruturas verbais. (ISER,1976a, p. 51)
Por um lado, a realização do imaginário vai oferecer uma forma objetiva e uma
determinação precisa às difusas formas do imaginário, “... portanto, se verifica uma
transgressão de limites, que conduz do difuso ao determinado [...]. Nos atos de fingir, o
imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria e adquire, deste modo, um
predicado de realidade”(2002, p.975)
;
é desse entrelugar que o ato de fingir acessa o mundo e
se conecta ao imaginário, momento em que se processa a transgressão de um e de outro.
Desse modo, é possível depreender que as experiências pessoais de Ana Maria e o seu mundo
vivencial são deformados na transposição textual, os elementos perdem sua conformação
59
originária e se irrealizam na construção da narrativa. No texto, a realidade é transformada em
signo de uma outra coisa e o imaginário se configura por essa transformação, a ficção é cria
desse processo. Embora frequente, a transgressão como projeto estético, que postula a
desconfiança do leitor, que exige sua atenção e “isca-a com o risco”, é aquela que favorece a
chancela de qualidade; nesta categoria é possível incluir Ana Maria Machado.
Prosseguindo nessa reflexão, a narração ficcional é o campo de ação onde um
processo lúdico de fingimento é ativado e abre, dessa forma, o livre acesso da escrita ao
imaginário. O que se dá, a partir de então, é um jogo que possibilita, através da mimese
verbal, a encenação de uma realidade que, imediatamente, se faz imaginária e, assim, se
inscreve no mundo do fingimento. O mundo do texto é entendido “como se” fosse um mundo
real, portanto relacionado com algo que ele não é. O texto que se ancora no jogo do
fingimento é, necessariamente, marcado pela ambiguidade dos eixos do real que se vinculam
a algo irreal ou impossível e, como fingimento, desincumbe-se de todo condicionamento do
mundo vivencial. Nesse deslizamento, é possível organizar formas e configurações para
experiências incognoscíveis no plano cotidiano, como aquela processada na novela Do outro
mundo, ao se dar voz a um narrador morto, fantasma, portanto, criando-se um espaço para
uma alteridade imaginária. Nas postulações iserianas:
O texto ficcional [...] funciona, preferencialmente, como um meio de tornar
o imaginário acessível à experiência fora de sua função pragmática. Ao abrir
espaços de fingimento, o ficcional compele o imaginário a tomar uma forma,
enquanto, ao mesmo tempo, age como um meio para sua manifestação.
(1999, p.71).
Entende-se o espaço da ficção como um espaço de atualização, “presentifica-
ação”, que é conquistado no momento da leitura. Para esse momento atual, que não é de modo
algum adâmico nem imaculado, convergem as ficções do passado, que serão (re)atualizadas, e
as ficções do devir, no presente imaginadas. Todos esses tempos e ficções são intensamente
negociados e atualizados no momento da leitura, para o agora, para onde todos os espaços
convergem. Como portadores de uma narrativa ficcional, que se abre também ao campo do
fingimento por parte do leitor, os textos criam um campo de encenação onde todos os
elementos estão condicionados pelo jogo. Umberto Eco (1994) enriquece a discussão iseriana
sobre o fingir:
60
O leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária,
mas que nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. De
acordo com John Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade.
Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato
aconteceu. (p. 81, Grifo do autor)
Os relatos da realidade, ou metafatos, são transpostos para um plano de
fingimento, portanto tudo o que existe no referencial empírico está sujeito ao implícito no
mundo da ficção, condicionado pelo relato de fragmentos da realidade transformados pela
imaginação e que opera em ambos os lados, do autor e do receptor. Ana Maria escreve sobre o
fingir na sua obra:
Ainda mais que vivo disso. De fingir [...] com palavras. O que eu finjo [...] É
ficção termo da mesma família, mas aplicado a fingires menos palpáveis.
[...] Como, aliás, já descobria um de meus poetas favoritos, Fernando Pessoa
[...] Por mais que eu fingisse que era igual e ia conseguir, acabei tendo que
reconhecer que não consigo fingir e sair agora mesmo inventando um conto
exatamente como pediram. Coisas da diversidade entre os escritores e da
diversidade dos momentos de um mesmo escritor. (2001, p.66)
Ana é consciente desse fazer literário que se mediante os atos de fingir
postulados por Iser, no qual se multiplica em inúmeros personagens que inventa. A ficção
literária possibilita a condição extática da pessoa, estar, simultaneamente, em si mesma e fora
de si, estar no outro (outros). Permite ao sujeito reconhecer sua incapacidade de
autodefinição. Conforme pensamento iseriano:
... Esta encenação de alteridade visa a uma experiência imaginária
libertadora, que desfaz os laços que ligam o homem aos papéis sociais e às
identidades restritas que lhe são fixadas no seu cotidiano. A alteridade
vivenciada através da mimese visa a uma liberação das limitações sociais e
também [...] das restrições biológicas. (2002a, p.116)
Ao produzir imaginariamente formas alternativas de ser, a ficção poética se
articula à necessidade básica do homem de representar a experiência de si mesmo no outro. Se
a ficção é constituição encenada de uma alteridade, se ela é produção da diferença sob o
horizonte da semelhança, e se é irrealizadora e despragmatizada por sua tematização
61
imaginária, ela não pode ser mais compreendida como legitimadora dos modelos que definem
o ser e o mundo “real”. Pelo contrário, a função antropológica da ficção literária é cumprida
quando ela permite a desestabilização da ilusória identidade através da integração entre o eu e
a alteridade. A escritora Anna Claudia ratifica essa ideia ao falar sobre seu processo de
criação:
…Pois mentir era falar sobre algo que existia, e eu não fazia isso. Eu
inventava pessoas e histórias que o eram reais, mas que passavam a ser
reais para mim. Eu inventava o mundo em que eu queria viver, inventava as
coisas que eu queria ter, inventava a vida como eu gostaria que ela fosse. E,
por meio desse faz-de-conta, fui criando novas realidades. […] Portanto,
livro para mim sempre teve vida pulsante… (2006, p. 120)
Assim também o narrador/personagem da novela Do outro mundo, como escritor
que é, escreve o seu texto a partir do que ouve, lembra e inventa: “Pronto! Mais uma coisa
para eu ter que contar a você também... pensei. Era um trabalho que não acabava mais.
Escritor não tem descanso. O jeito era prestar atenção.” (MACHADO, 2002, p.107) Ana
Maria, à semelhança de seu narrador, admite que suas histórias são retiradas de seu cotidiano
(presente ou rememorado), das pessoas com as quais se relaciona e dos livros que leu os
motivos para a sua criação: “... Acho que um livro começa muito antes da hora em que a gente
senta para escrever. É um jeito de prestar atenção no mundo, em todas as coisas, nas pessoas,
e ficar pensando sobre tudo…”
19
. A respeito dos temas favoritos, ela afirma que cada vez está
querendo contar uma história diferente, acontecida com ela mesma ou com alguém de seu
convívio, histórias que ela transforma com imaginação.
Em Do outro mundo, Ana Maria cria uma situação imaginária, impossível na vida
real, mas possível no plano da ficção, no qual as noções de tempo e espaço ganham novas
dimensões e um olhar revelador do insólito. Isto tem a ver com o universo da literatura, o que
é diferente do universo do viver. Anna Cláudia Ramos chama de “estética do imaginário” à
“estética que nos faz perceber e sentir o mundo por meio da imaginação [...], conseguindo
fazer um excelente contrato de comunicação com as crianças”(2006, p. 152) , viagem por um
mundo imaginário, mas totalmente real no âmbito da ficção. Como Lobato, Ana Maria
encontrou no faz de conta a fórmula de nunca parar de inventar outras vidas para viver e
novos mundos para morar, mundos que, ao serem criados, passam a existir.
19
Site oficial. Caderno de notas. Disponível em:< www.anamaria.com.br>. Acesso em: 02/08/2007
62
O despir da ficcionalidade, ao se projetar para fora dos quadros de referência onde
foi inicialmente localizado, constitui outro elemento importante na descrição iseriana. É em
razão dessa peculiaridade que o texto ficcional posiciona o leitor entre o mundo que foi
referência para a ficção, que não é, nem representa o mundo, mas o perspectiviza, criando
contrastes, descortinando a percepção e induzindo à comparação. Reforça o que venho
discutindo, balizada na teoria de Iser, este pensamento de Costa Lima:
Quando, pois, afirmamos que a formação discursiva própria à literatura tem
um caráter não-documental, uma radicalidade não-documental, não tornamos
nosso enunciado congruente com a noção beatífica de ficção i.e, de ficção
como um território que não se contamina com a realidade. Afirmamos, sim,
que o discurso literário não se apresenta como prova, documento, ou
testemunho do que houve, porquanto o que nele está se mescla com o que
poderia ter havido; o que nele há se combina com o desejo do que estivesse;
e que por isso passa a haver e a estar. (1986.p. 195.)
A realidade, alcançada pela ótica do imaginário, relativiza a concepção
convencional do mundo, porque, através dessa ótica, descobrem-se novos prismas daquilo
que, sendo possível na imaginação do escritor e do leitor, se torna real. A transformação
mágica do que está à volta do autor leva-o a apreender vários matizes e imagens quando
“espia pra dentro”.
20
No plano de dentro é que ele questiona intensamente a realidade, porque
a sob diversos ângulos e de forma mais profunda, indo além do previsível e do superficial,
que só é possível pelo olhar à distância.
No que concerne ao leitor, é de se esperar que um contingente oriundo de sua
experiência prévia se imiscua no processo, o que fará com que as representações nunca se
deem como um saber autônomo e dessas experiências dissociado. A leitura possibilita uma
subjetividade que tem a durabilidade de um efeito e, mesmo assim, concorre para a
organização do mundo experimentado.
20
Parte do título de um conto de Ana Maria: O menino que espiava para dentro, empregado no sentido de olhar
com imaginação.
63
2.3 Processo narrativo: Oscar Tacca (1978)
É preciso aceitar o paradoxo: o autor cria o mundo do seu romance;
mas também esse mundo se cria a si próprio através dele,
transforma-o em si mesmo, obriga-o a entrar no jogo das
transformações, para se manifestar mediante ele.
Oscar Tacca (1983)
O pensamento de Ana Maria acerca de sua produção literária se coaduna com a
reflexão de Oscar Tacca sobre a ficção: “.O romance é a imagem depurada de uma certa
dimensão do mundo: aquela que é dada pelo que o homem sabe, por si e pelos outros, e ,
sobretudo, pelo que sabe que não sabe, de si e dos outros”... (1978, p.17). O que interessa da
experiência de vida de Ana Maria são as leituras que realizou, de livros e de mundo, que,
resgatadas pela memória e (re)criadas pela invenção, constituem elementos fundadores de sua
obra.
A crítica literária contemporânea procura, no limite da obra de arte, as
informações necessárias à sua análise e apenas mediante critérios cautelosos busca
informações extratextuais que possam com ela corroborar. Oscar Tacca afirma que a “arte
reside nessa solidariedade entre um universo mental e uma construção sensível, entre uma
visão e uma forma.” (1978, p.13) Foi, pois, no âmbito do texto literário, nos limites de sua
estrutura organizacional, que busquei melhor compreender o processo criativo de Ana Maria,
atenta às pistas que seu narrador pode fornecer.
Se a pretensão foi proceder à análise do texto Do outro Mundo pelo estudo do
narrador, tornou-se fundamental compreender esta categoria mais profundamente. Segundo
Oscar Tacca, para se entender o que vem a ser narrador
21
, é necessário, antes de tudo,
distinguir entre as categorias de autor e narrador. Conforme escreve o teórico, a função de
contar assumida pelo narrador é inquestionável, e assim formula sua conceituação:
O narrador, que o é simplesmente o autor, nem tão pouco um personagem
qualquer, pode parecer uma enteléquia
22
. Figura inacessível e fugidia, a sua
21
Vocábulo derivante do termo latino “narro”, que significa “dar a conhecer”, “tornar conhecido”, o qual
provém do adjectivo “gnarus”, que significa “sabedor”, “que conhece”. Por sua vez, “gnarus” está relacionado
com o verbo “gnosco”, lexema derivado da raiz nscrita “gnâ”, que significa “conhecer”. O narrador é a
instância da narrativa que transmite um conhecimento, narrando-o. ALVES, Jorge .s.v. Narrador.
E-Dicionário
de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, Disponível em:
<http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/N/narrador.htm>. Acesso: 02/03/2010
22
Conceito aristotélico que se refere a qualquer realidade que atingiu seu ponto de perfeição.
64
identidade, fácil de se confundir ou de perder-se entre os outros planos do
romance, precisa de ser determinada com uma certa simplificação ideal:
como um modelo virtual, como uma categoria de um sistema de descrição,
dotada de uma clareza e de um rigor que raramente possui na realidade do
texto.(1983, p. 63.Grifos do autor).
Quando se trata de autoria, parece que a elucidação se aparentemente pelo não
ser do que pelo ser. O autor não é o homem referencial, com endereço determinado e
documentação registrada, também não é aquele que escreve. O conceito de autoria supõe uma
entidade de ofício (poético) instigada a criar e/ou haver criado um mundo. Nas palavras de
Tacca:
A categoria de ‘autor’ é a do escritor que põe todo o seu ofício, todo o seu
passado de informação literária e artística, todo o seu caudal de
conhecimentos e ideais (não as que sustenta na vida real) ao serviço do
sentido unitário da obra que elabora. Esta entidade a que chamamos ‘autor’
23
surge muitas vezes na obra, por detrás do narrador, não confiando
inteiramente nele, arranjando, compondo, aclarando, acrescentando,
completando. (1983, p.19)
Ainda que a figura do autor espreite sobre os ombros do narrador, um pequeno
esforço de abstração permite fazer a distinção entre um e outro. Tacca assevera que o narrador
é a única realidade do romance, por isso mesmo seu eixo sustentatório, sem o qual o romance
deixa de existir. Sua voz é a única que se ouve, mesmo não sustentando personalidade
alguma, por se tratar de uma abstração.
Ao pretender aprofundar o estudo do narrador, é de fundamental importância
entender que ele, juntamente com seu destinatário, se situa entre o autor, com este se
confundindo às vezes, e o leitor, sempre virtual. Nesse jogo estético, autor e leitor devem
emudecer, cada um cumprindo a função que lhe cabe exercer, qual seja: ao primeiro a de
contar e ao segundo a de se inteirar do que lhe é contado.
A quem pertenceria, então, essa voz que, ao quebrar o silêncio, se intromete,
interpondo-se à voz do narrador? Para Tacca, essa voz que se manifesta intrusa corresponde
23
E esse era o sentido primitivo: autor, do latim auctor, de augere, aumentar, acrescentar, TACCA(1983).
65
às conhecidas intrusões do autor- “convenção puramente ideal”
24
-, intervindo no curso natural
da narrativa, ora “dissimulada e subtil”, ora “descarada e insuportável”.
A relação entre experiência vivida e ficção perpassa toda a obra de Ana Maria. As
noites de verão das serras de Manguinhos, Espírito Santo, eram povoadas de histórias
encantadas que capturavam o olhar atento e ouvidos aguçados da menina Ana, que adulta
relata: “...com meus avós, junto à natureza e às tradições. Como não havia eletricidade, todas
as noites as pessoas se reuniam para contar e escutar histórias. [...]Tenho certeza que sem os
verões em Manguinhos eu escreveria bem diferente.”(1999, p.12) Ana Maria justifica serem
esses verões a razão de sua escrita: “Foram a principal fonte na qual me alimentei de histórias
e do prazer de ler pela vida afora.”(1996, p.14) Como noutro momento comentei, a neta Ana
Maria ouvia as histórias de sua avó Ritinha encantada com tamanha sabedoria e parte desse
contexto trouxe para sua escrita. Convém reafirmar que é em condições adversas, no campo
da possibilidade de ser, que a ficção se realiza, por isso mesmo, experiência e invenção se
misturam na composição de uma nova realidade, a ficcional. A narrativa de Ana Maria
Machado se entrelaça à sua autobiografia, mas é ficção. A título de exemplo, cito este
fragmento da novela Do outro mundo em que essa imagem de contação de história real na
infância da autora é (re)criada pela linguagem ficcional que remete aos contos de fadas:
Depois que Dona Carlota se instalou, se recostou numa almofada que a neta
tinha trazido, e esticou as pernas para apoiar os pés num banquinho [...] É a
mesma, Elisa, a mesma história. E é também a história de nós todos, da
nossa família, deste sítio e desta pousada.[..]Há muitos e muitos
anos...(2002, p.86-7. Grifos meus)
As memórias são uma busca de recordações com o intuito de evocar pessoas e
acontecimentos que sejam representativos para um momento posterior, no qual o narrador
escreve. Constituem a fonte que recebe, como o rio os seus afluentes, elementos da
imaginação e, transformada, deságua como ficção. Assim, ao ler/reler textos e o mundo e ao
contar/recontar histórias ouvidas ou inventadas, a autora amplia suas experiências, ordena
ideias e sentimentos, em princípio desordenados, constrói uma estrutura de referências e
24
É habitual transferir também essa função para o narrador. Martinez Bonati distingue, assim, a linguagem
mimética da não mimética do narrador. Todorov chama-lhe ‘nível apreciativo’: diz que é inerente à obra e
distinta da obra do autor real. Desaparecem, pois, as intrusões do autor. TACCA(1983).
66
sentido, que lhe permite melhor compreender a si mesma e a natureza humana e, mais,
incorpora à sua consciência níveis diferentes de realidade:
Como tenho dito outras vezes, escrever para mim, obedece a dois impulsos.
Por um lado, a tentativa de fixar uma experiência fugidia, assim, viver a vida
com mais intensidade, aprendendo nela alguns aspectos que não havia
percebido ainda [...] O outro impulso é a minha vontade de compartir essa
visão e essa compreensão [...] Para isso, conto com a palavra escrita e os
recursos que minha língua me oferece. Aí que tudo se origina - em meu amor
pelo idioma. (MACHADO, 2001, p. 102)
O caminho menos arriscado para o “conhecimento poético” de uma obra passa,
necessariamente, pelo texto; quer a obra se explicite nas linhas, quer esteja oculta nas
entrelinhas, é preciso compreender o mecanismo usado na sua elaboração, que varia de um
texto para outro e de autor para autor. Segundo Tacca, na maioria dos romances, o narrador é
uma ausência, quando muito uma voz, como em qualquer relato anônimo, uma abstração feita
a partir do texto e nele é confinada. A perspectiva cambiante e envolvente do romance
provém do efeito da voz do narrador, das vozes, melhor dizendo. A polifonia assumida pelo
narrador, num subtil jogo de espelhos, dificulta a sua identificação, provocando estranha
complexidade. Essa voz não é a do autor, ao qual cabe o papel de “catalizador [sic] de certa
linguagem”
25
, mas também não é de uma figura imaginária, que se mostra tão familiar às
vezes, segunda Tacca:
Por detrás deste disfarce está o romance, que se narra a si mesmo; está o
espírito deste romance, ominisciente e omnipresente deste mundo artístico. É
preciso aceitar o paradoxo: o autor cria o mundo do seu romance; mas
também esse mundo se cria a si próprio através dele, transforma-o em si
mesmo, obriga-o a entrar no jogo das transformações, para se manifestar
mediante ele. São quase as mesmas palavras de Michel Butor: ‘Há uma certa
matéria que se quer dizer; e, em certo sentido, não é o romancista que faz o
romance, é o romance que se faz sozinho, e o romancista não é mais do que
o instrumento da sua vinda ao mundo, o seu parteiro; é sabida a ciência, a
consciência, a paciência que isto implica’. E Jean Pouillon: ‘A forma deve
resultar de uma exigência do conteúdo; é um molde que se molda e não que
molda’. Todorov, por seu lado, adverte: ‘Temos, pois, uma quantidade de
dados sobre o narrador, que deveriam permitir-nos apreendê-lo, situá-lo com
25
“catalizador [sic] de certa linguagem”- expressão de Georges Jean, Le Roman, Seuil, Paris, 1971, p.142.
TACCA(1983,18).
67
precisão; mas essa imagem primitiva não se deixa aproximar e reverte
constantemente máscaras contraditórias, desde as de um autor de carne e
osso à de um personagem qualquer’. Enfim, ‘romancista seria uma espécie
de catalizador [sic] de certa linguagem’. (1983, p.34-35).
Essa longa citação se fez necessária para mostrar quão movediço é tentar precisar
um conceito no terreno da literatura. Nela conceitos herméticos não encontram ancoragem,
abrem-se ao campo da possibilidade para aportar na importância da matéria narrativa e tentar
aí situar as categorias do autor e do narrador. A atmosfera que envolve o romance é provocada
por um narrador que é semelhante à água, que escapa à menor tentativa de se prender com as
mãos; quanto mais se tenta dar um contorno definido, maior precisão e definição ao narrador,
maior é o número de máscaras sob as quais ele se esconde, fragmentando-se em “identidades”
contraditórias. Numa narrativa, dar voz a um narrador, mesmo considerando-o como uma
identidade definida pelo relato, que se manifesta por meio de linguagem metafórica e que
detém a credibilidade do leitor, não é suficiente para precisar que a voz que se manifesta no
texto seja, de fato, a do narrador. Nas palavras de Tacca:
À margem desta linguagem estritamente narrativa encontramos dúvidas,
interrogações, apreciações, reflexões, generalizações aquilo a que se
convencionou chamar ‘intrusões’ que atribuímos ao autor: essas dúvidas,
essas reflexões, nem sempre traduzem o pensamento real do escritor, do
homem-que-escreve. Tais reflexões, que não podem pertencer ao narrador
porque é outra a sua missão também não costumam ser do homem: são
exigidas pela obra e apresentadas pelo oficiante. (1983, p.18)
É possível perceber que uma tensão entre as categorias de narrador e autor; por
estar o autor sempre presente, raramente se mantém calado, o que provoca ambiguidade na
identificação da voz narrativa em muitos romances, novelas e/ou contos. O ideal é que o autor
se mantenha calado e a sua voz restrita à categoria de narrador, mas, se a voz do narrador se
legitima, a do autor parece “intrusa”. “Se o autor fala através do narrador, o narrador
‘dissimula’ juízos e opiniões do outro”, em outras circunstâncias cede o autor. (TACCA,
1978, p.38)
O escritor deve saber e também precisa sentir que o narrador não pode se
confundir com o autor. Rosa Monteiro, em A louca da casa, cita Julian Barnes quando este
afirma que “os romancistas não escrevem sobre seus assuntos, mas em torno deles” e, a
seguir, escreve: “E Stephen Vizinczey arredonda este pensamento com uma frase precisa e
68
luminosa: ‘O autor jovem sempre fala de si mesmo, até quando está falando dos outros, ao
passo que o autor maduro sempre fala dos outros, mesmo quando fala de si mesmo”. (2004,
p.190) É o entorno da vida de Ana Maria que se transforma em obra de arte. É importante
para o romancista manter certa distância daquilo que narra, pois, quanto mais se afasta de sua
realidade, mais mergulhará dentro de si mesmo; opostamente, e comprova-o o escritor
inexperiente, quanto mais tenta falar de si, quanto mais se aproxima do relato, dele mais se
distancia. reside outro paradoxo: quanto mais o escritor se afasta, mais se reconhece na
obra; o artista necessita saber que a obra deve representá-lo como ser humano, de uma
maneira simbólica e profunda, o que nada tem a ver com a representação de seu mundo
empírico.
Com o advento do modernismo, os escritores realistas proclamam a objetividade,
a imparcialidade e a impassibilidade, como se fosse simples a adoção desses recursos. O que
se pode falar é em graus de parcialidade, uma vez que não existe um discurso isento de
ideologia, genuinamente referencial. A impossibilidade de neutralidade absoluta acabou por
gerar a técnica da “transcrição”, afirma Tacca. Em vez de o autor buscar o impossível, a
referencialidade absoluta, ele não assume a autoria: “Não escrevi, só transcrevi”. O autor nega
a autoria sob a máscara de editor, compilador ou redator, escapando, assim, à objetividade do
relato. Assinala Oscar Tacca que o artifício da escamoteação do autor pode ocorrer em maior
ou menor grau, conforme se busca a objetividade e verossimilhança, caminhos diferentes
pelos quais progride a narrativa. Se o primeiro aponta para a pretensa imparcialidade do autor
(subtração da autoria), o segundo busca a credibilidade para o que é narrado (apresentação de
provas e indícios da ‘realidade’ documental). Em ambos os casos, o que se pretende é
convencer o leitor, desconfiado, de que o que se narra de fato aconteceu. Nas palavras de
Tacca, “...multiplica-se as cauções. Acumula indícios de garantia. Põe o sobrenatural em
oposição a dados naturais...” (1983, p. 48). Ana Maria faz uso deste artifício para dar
credibilidade ao que narra em Do outro mundo; como dei conhecimento, o narrador da
novela é um espectro.
Essa novela parece pertencer ao grupo de romances de coautoria que se situa,
segundo Tacca, entre a total ausência do autor e o artifício do autor-transcritor, relato em que,
no primeiro capítulo, o romancista prepara as condições - a moldura, para que um personagem
relate a sua história - que é a história do romance.(1983, p.43) O primeiro capítulo da novela
Do outro mundo contribui, assim, para estabelecer a perspectiva do relato; nele, o narrador
Mariano tece a moldura e se prepara para contar a história que se em coautoria. Fixa a
situação do transcritor e, numa espécie de confidência autoral, se desculpa com o destinatário
69
de seu discurso por não se sentir capaz para realizar a missão que lhe fora atribuída. Mariano
recusa a sua plena condição de autoria; embora admita ser quem escreveu a história ‘real’ de
Rosário, essa história não lhe pertence. Ainda assim, divide o relato com uma amiga, que,
segundo o autor/narrador, domina melhor o idioma: “Mas não pensei que ia ser por escrito.
Nem que a Elisa ia me ajudar tanto, fazendo a revisão, dando palpite, usando as coisas que ela
aprendeu nas leituras. Por isso é que estou conseguindo.” (MACHADO, 2002, p.77) Esta
flutuação entre autor e transcritor cria um clima de ambiguidade para a novela, que prejudica
o seu status e deixa também confuso o leitor. Barthes, assinala que:
em geral, a nossa sociedade escamoteia, o mais cuidadosamente
possível, a codificação da situação de relato: não se contam os
processos de narração que tentam dar naturalidade ao relato que se vai
seguir, fingindo dar-lhe como causa uma ocasião natural e, se se pode
dizer, ‘desinaugurá-lo’; romance por cartas, manuscritos
pretensamente achados, autor que se encontrou com o narrador, filmes
que lançam suas histórias antes do genérico. (BARTHES apud
TACCA1983, p.50).
Frente à impossibilidade de eliminar os signos do código narrativo, joga-se com
eles como se eles não existissem e se chega ao que Tacca denomina de “verossimilhança de
segundo grau”, recurso que perpassa a ironia, uma vez que o leitor, embora saiba tratar-se de
uma ilusão, aceita dela participar.
É saber generalizado que na leitura, em diferentes graus, um consentimento de
ilusão, não que o leitor tome a ficção por realidade, mas aceita o jogo, admite haver
verossimilhança, uma verossimilhança convencionada pela ficção, pois “... em rigor, o
romance nunca é verossímil: finge verossimilhança
26
”. (TACCA, 1983, p.59). Ao entrar no
jogo ficcional, o leitor firma o “pacto romanesco”
27
, resulta daí a ironia de que fala Tacca;
mesmo sabendo se tratar de engodo, de enganação, o leitor se deixa seduzir pela história, à
semelhança do que ocorre na brincadeira infantil, afinal, sabe que tudo não passa de um
“como se”, de um faz de conta, num processo de ativação consciente e intencional do
imaginário. A literatura passa a ser entendida como operação que transforma a experiência do
26
“Até que ponto cremos nas ficções que nos propõe a arte? O que importa, penso eu, não é crer nelas, mas na
plenitude da imaginação que as sonhou”. (Jorge Luis Borges, “El arte de Susana Bombal”, in La Nación, Buenos
Aires, 23-5-71).
27
Esta expressão é de Philippe Lejeune (LEJEUNE, 2008).
70
homem e sua percepção do “real”, processado pelo imaginário, em obra ficcional,
consideradas as limitações e as potencialidades que essa experiência envolve.
No campo das linguagens, a memória permite promissora intersecção entre
experiências vividas e a ficção, pois emerge de uma construção de linguagem, entendida
como um mecanismo de laboração textual, base de constituição de representações vinculadas,
em maior ou menor grau, com o verossímil. Não é possível trazer o acontecimento passado
por inteiro para o presente; justamente por serem lacunares as lembranças do sujeito é que ele
preenche os vazios com a imaginação; além disso, o autor seleciona daquilo que é lembrado
apenas o que lhe interessa relatar. O sujeito que lembra não é o mesmo de outrora, a
lembrança varia de um plano temporal a outro, por ser incapaz de registrar a dinâmica do
tempo e inábil para assinalar cada uma das unidades do compasso, ele “ficcionaliza”
28
.
Considerando que a memória é lacunar, reside na relação memória e escrita uma
necessidade absoluta e uma incompletude imanente, contradição evidente, pois a memória,
que serve de base à escrita, não é suficiente para constituir matéria para a ficção, necessitando
do acionamento da imaginação para complementar as lacunas que a recordação por si não
consegue reconstituir; a ficção é, pois, germinada de um processo em que memória e
imaginação se complementam. Na criação poética, o autor tem liberdade para alumiar os
espaços sombrios dessa memória fragmentária e labiríntica, mantendo na obscuridade
informações que pretende interditar. reside a imaginação fértil herdada da infância da qual
a escritora Ana se alimenta. Recordação e memória são termos distintos, faz-se necessária,
portanto, a sua distinção. Para tanto, recorro a Oscar Tacca:
A recordação é um estado, a memória um acto. Para que a recordação se
torne presente na consciência é necessário que a memória a obrigue a isso.
Toda a recordação surge de uma sombra, na qual se acha oculta. Esse lado
28
Venho, muito tempo, empregando o termo ficcionalização”, sem me dar conta de ser ou não o vocábulo
dicionarizado, incorporei o termo de tanto ouvi-lo no meio acadêmico, principalmente em estudos literários e
crítica literária. Curiosamente, a dúvida surgiu justamente no momento em que o empregava nesta dissertação.
Nenhum dicionário registra o verbo “ficcionalizar”. Desisto de empregá-lo? Não, melhor refletir. Vejamos,
então, se consigo entender pelo menos de onde surgiu o termo. Temos na língua portuguesa o verbo «ficcionar»,
da mesma família que “ficcionalizar”, mas raros dicionários o registram. Supostamente, o termo “ficcionalizar”
tem origem na palavra inglesa “fictionalize”, cujo processo de formação da palavra é similar ao processo
empregado em nosso idioma, pelo acréscimo do sufixo ao radical do adjetivo. Assim são formadas grande parte
das palavras derivadas da língua portuguesa: pela anexação de afixos à palavra primitiva. A mais comum é a
formação de verbos terminados em “izar” a partir de adjetivos. Parece ser por este caminho que surgiu
“ficcionalizar”. Uma hipótese aceitável. É difícil precisar se o verbete demora a fazer parte dos dicionários, mas
é inquestionável o amplo emprego do termo no meio acadêmico, inclusive registrado em dissertações e teses.
Reconhecido pelo uso, ganha identidade. Assim esclarecido, optei por conservar o termo no texto com essa
pequena nota explicativa.
71
secreto, desconhecido, da memória chama-se esquecimento’. A memória
viria, depois do meio-dia, com a tarde da vida. (1983, p.130)
A rememoração pressupõe uma atitude contemplativa, uma ideia de fixação e
imutabilidade na relação entre o sujeito que contempla e o objeto contemplado, mas é pura
ilusão. Entre o acontecimento e a narrativa do fato existe a noção de distanciamento
29
e de
alcance limitado que o acontecimento pretérito suscita. Por não participar mais da cena
observada, o contemplador tem dela uma imagem lacunar, embora acredite o contrário; por
preencher os opacos com a imaginação, acredita-se estar diante do acontecido ipsis litteris
como se deu, quando o que se tem é ficção. Cito, para ilustrar, um fragmento da orelha do
livro Do outro lado tem segredos:
Ao escrever este livro, parti de lembranças muito concretas de minha
infância no litoral do Espírito Santo. E também da observação de pessoas e
coisas que continuavam existindo por naquele momento. Vários dos
personagens existiram de verdade - a começar por meu amigo Bino,
Benedito, filho de pescador, que ficava sentado na praia olhando o mar para
avisar quando os cardumes de peixes se aproximavam e era hora de jogar a
rede. Algumas das conversas dele com os amigos são ecos de conversas que
todos tivemos diante da imensidão do oceano... (MACHADO, 2003, p.7)
Os momentos da infância vividos por Ana em Manguinhos e agora narrados são,
na verdade, cenas fragmentadas e (re)elaboradas pela memória. Em flashes, avançando e
retrocedendo no tempo, a recordação flagra cenas, colocando-nos face a face com o passado
(re)visitado, mas é sempre uma interpretação do acontecido, nunca o fato como se deu.
Reconheço que essa (re)construção não se dá como cópia de um modelo pretérito, o que seria
29
O conceito de distanciamento usado neste texto aproxima-se daquele adotado no teatro de Bertold Brecht. Ao
longo dos anos, o termo recebeu variadas denominações: Verfremdungseffekt(originalmente em alemão), V-effekt
(países de língua inglesa) e nos países de língua portuguesa conhecido por Efeito-V, efeito de estranhamento,
efeito de alienação. Elemento empregado para ilustrar aquele efeito que o drama deve produzir entre o público e
os atores da representação teatral e o próprio texto da representação. O público devia ser alertado,
ocasionalmente, para o valor puramente artístico da obra dramática representada, que pretende ser uma
expressão teatral da vida e não uma rigorosa descrição dos fatos da realidade. O fenômeno de identificação dos
espectadores com as personagens dramáticas devia ser acautelado, o mesmo se aplicaria à distância entre os
atores e o texto representado. Neste texto, o efeito está relacionado ao estranhamento do sujeito que narra em
relação à cena vivida no passado, que é na escrita representada. Posso fazer uma ponte com a relação que Costa
Lima (2002) denomina de ‘representação-efeito’, a mimesis se explica pela diferença.
CEIA, Carlos, s.v.
Distanciação, efeito de alienação ou efeito-v (verfremdungseffekt), E-Dicionário de Termos Literários, Coord.
de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, Disponível em:
<http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/D/distanciacao.htm>. acesso: 02/03/2010. Passim.
72
impossível, a memória é sempre suspeita e lacunar; principalmente quando se trata de
literatura, a imaginação está sempre atuando. Toda memória, por conseguinte, pressupõe
esquecimento, então (re)viver ou (re)construir o passado é possível pelo filtro do indivíduo
que agora narra, diferente em quase tudo daquele que viveu a experiência.
Embora a transcrição não se de forma escancarada, com o autor se travestindo
de redator e discutindo no prefácio a sua participação na obra, falando quer do trabalho de
seleção e ordenação, quer de proposta de correções ou total ausência delas por respeito aos
originais, a novela Do outro mundo não deixa dúvidas quanto à fuga da autoria em diversas
passagens do texto em que Mariano divide a função com outros personagens. Nas palavras de
Oscar Tacca: “O autor flutua, como vemos, entre o ser e não ser, ou, melhor dizendo, entre ser
e aparecer: desde a tímida presença até a ausência deliberada.” (1983, p.45).
foi abordado o quanto é difícil a tarefa de identificar e discutir a categoria do
autor, que se sempre no limite do parecer. Em literatura a noção do autor supõe uma
entidade que tem a poética como ofício. Se, no romance tradicional, a tensão entre a voz
autoral e a voz narrativa já é bastante evidente, quando se trata de narrativa contemporânea,
esta dificuldade se acentua. Se o autor fala através do narrador, o narrador finge juízos e
opiniões daquele, mas se este hesita, a fraca voz do autor se revela. A dificuldade se agrava
ainda mais e a ambiguidade se evidencia quando o romance de autor-transcritor é, à
semelhança de Dom Quixote e da novela a que me dedico, construído em abismo, processo
nomeado mise en abyme
30
, resguardadas as devidas proporções, em sucessividades
infinitamente possíveis no primeiro romance e apenas uma história secundária (a de Rosário)
dentro da principal em Do outro Mundo. Nas palavras de Tacca, como “a extrapolação dos
antigos relatos ‘incrustados’ (os franceses falam de ‘enchassement’ ou encartage’)”. (1978,
p.55). Neste caso, a voz narrativa delega a voz para outro narrador de outra história que nasce
dentro da história principal.
30
Segundo conceituação de Annabela, a mise en abyme consiste num processo de reflexividade literária, de
duplicação especular. Tal autorrepresentação pode ser total ou parcial, mas também pode ser clara ou simbólica,
indireta. Numa modalidade mais simples, mantém-se no nível do enunciado: uma narrativa vê-se sinteticamente
representada num determinado ponto do seu curso. Noutra modalidade, um pouco mais complexa, o nível de
enunciação seria projetado no interior dessa representação: a instância enunciadora se configura no texto em
pleno ato enunciatório. A modalidade mais complexa abrange ambos os níveis, o do enunciado e o da
enunciação, fenômeno que evoca, no texto, quer as suas estruturas, quer a instância narrativa em processo. A
mise en abyme favorece, assim, um fenômeno de encaixe na sintaxe narrativa, ou seja, de inscrição de uma
micronarrativa dentro da outra principal, a qual, normalmente, arrasta consigo o confronto entre níveis
narrativos. RITA, Annabela. Mise en abyme. In.: E-Dicionário de Termos Literários. Coord. Carlos Cea.
ISBN:
989-20-0088-9, 2005. Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/mise_en_abime.htm>.Acesso
em: 18.02.2010.
73
A ambiguidade vai crescendo à medida que se tenta estabelecer os limites da
autoria. Mas a qual autor referir? A Ana Maria ou a Mariano? Se se fala da história principal,
Ana Maria, portanto, tem-se como limite de uma crescente busca de objetividade uma autora
que intervém no relato com juízos e opiniões, que se dissimula na voz do narrador Mariano
em algumas passagens. Mas se é Mariano o convocado, autor fictício da narrativa secundária
e não menos importante que a primeira, tem-se diante dos olhos o autor que declara não o ser
e se delega transcritor do relato oral feito por Rosário. Mas Mariano não é a identidade criada
pela autora de Do outro mundo, texto que constitui objeto deste estudo? É a essa autoria que
este texto se refere doravante e à sua relação com o narrador (Mariano), que, por coincidência,
também tem a função de autoria na segunda história. Assim oscila o autor entre o ser e o não
ser e nesse ir e vir dessa identidade fugidia me enredo pelo ambíguo, enveredando por um
caminho que se mostra movediço, a narrativa literária. Esse tipo de texto de autor-transcritor,
segundo explicação de Tacca, é como que uma duplicação do romance normal. Com palavras
do crítico:
Se adotarmos o esquema de Jakobson (destinador-mensagem-destinatário),
apresenta-se-nos como uma cena dentro da mensagem, que o destinador
oferece à contemplação do destinatário: dentro dessa cena voltam a
encontrar-se destinador-mensagem-destinatário. Teoricamente, pelo menos,
a série pode ser infinita... (1978, p.55).
O recurso do transcritor tende para a verossimilhança. Em literatura a
verossimilhança é uma convenção, pois não provém de uma dicotômica relação de
verdade/mentira entre o discurso e seu referente, mas entre o discurso e aquilo que os leitores
aceitam como verdadeiro por convenção. É a regra do jogo ficcional: o que conta o
romancista na voz do narrador não se questiona, aceita-se apenas, porque o que diz o relato é
“verificável.” Sem essas leis do jogo, sem a aceitação incondicional do leitor em se submeter
ao engodo, o romance deixa de existir. É condição sine qua non, neste jogo, o fingimento
pactuado: de um lado o que é narrado dá aparência de verdade, passa confiabilidade, de outro
o assentimento mais ou menos consciente do artifício da fantasia. O leitor não pode negar,
nem duvidar, por isso se fala em caráter mimético do discurso narrativo, a opinião comum do
leitor se entrega às leis do jogo, sem cuja aceitação o romance. É com base no
fingimento anunciado e consentido que o romance se realiza.
A escritora e pesquisadora Anna Cláudia diz: “Essa história de criar textos é na
verdade um criar mundos que não existem, mas que passam a existir à medida que são
74
criados. E eles podem ser semelhantes à realidade, pois muitas vezes falam sobre coisas
possíveis de terem acontecido ou de acontecerem. […]” (2006, p. 118-9). Alguns autores
almejam uma forma de verossimilhança com status de verdade. Reclamam uma leitura do
texto como documento, daí a utilização de variados recursos como aqueles mencionados neste
texto. Na novela Do outro mundo a utilização do sobrenatural como evidência e o castiçal
como prova material dão certa “garantia de verdade” aquilo que é narrado. O verossímil não é
a semelhança com o real; trata-se de um discurso que se assemelha a um outro e este, sim, se
assemelha ao real. Esse duplo jogo é a própria imagem da convenção narrativa. A
verossimilhança remete para a relação da obra com o discurso que se reveste como real:
... O romance de transcritor, portanto, finge que finge... vamos fingir que isto
(que lemos) não é fingimento (mas sim ‘documento’). Tal superfetação
(como lhe chamava desdenhosamente Balzac) vista assim, parece um
artifício complicado. O que o autor-transcritor propõe não é a realidade, mas
(como dizia Barthes) um efeito de realidade. [...] se pode aplicar aquilo que
disse Jean Rousset que é por ficção que se exclui o fictício, que o
romancista se dissimula para melhor aparecer... (TACCA,1983, p.59-60)
O narrador é aquele que traz a informação sobre a história que narra, por essa
razão não lhe é permitido falsidade, nem dúvida, variando, apenas, a quantidade de
informação que detém. Se não lhe cabe titubear sobre a informação que deve revelar, qualquer
questão que surja no fio do relato pode ser atribuída ao autor, ao personagem ou ao leitor.
Nessa linha de pensamento, o narrador precisa ter a informação para poder contar, mas o que
ele conta é secundário, porque os temas variam segundo época e tendências, o “como” ele
conta, a forma, é que determina o seu verdadeiro estilo. Assim como existe uma seleção
quanto à forma de contar, de igual modo uma decisão quanto ao como saber, daí advém o
que se convencionou chamar de perspectiva do romance, segundo Tacca. O narrador pode se
apresentar sob a forma de pronome pessoal “eu”; identidade de um nome próprio ou manter
uma voz narrativa. Em qualquer dos casos, trata-se de um sujeito com existência textual, que
tem como função narrar. Narrador e autor são, essencialmente, “seres de papel”, expressão
tomada de empréstimo a Barthes (1966, p.19). Mesmo em se tratando de uma entidade cuja
existência se nos limites da escrita, é sempre no primeiro plano, quer da audição, quer da
consciência, que se manifesta a voz do narrador. E é neste sentido, e somente neste, que esta
dissertação se acostou.
75
Tacca alerta para o fato de que o problema da delimitação do narrador e o das
diferentes formas de narrar não se resolvem apenas na categoria do narrador, pois ela é
insuficiente para nortear qualquer discussão nesse sentido. É necessário considerar, segundo o
teórico, que “as variações estão sempre em relação às diferentes instâncias: autor, narrativa,
narrador, personagens, tempo, destinatário. É em função do jogo de tais relações que se
pode caracterizar a estrutura de um romance determinado”. (1983, p.26).
Nesse terreno movediço que é o texto literário, em que nada se fixa, em que tudo é
volátil, o pensamento se deixa mover por uma propulsão instabilizadora e pelo esforço de
lidar com teorias em que os conceitos não possuem determinação ontológica, operando
através de funções que não se fixam. À semelhança do que escreveu Rebeca Monteiro, que a
“literatura é um caso-limite da produção mimética tanto porque confirma quanto porque e
em crise aquilo que engendra, criando corpos tão mais desestabilizadores quanto mais
ambíguos ou quanto mais sabedores da ambivalência que os constitui.”(2003, p.50)
Tendemos, assim, a conceitos cambiantes que só podem ser caracterizados na relação com
outros conceitos igualmente variáveis. Essa possibilidade teórica instigou uma atitude
investigativa frente aos textos ensaísticos de Ana Maria, engendrando os necessários
entrelaçamentos teóricos dentro dessa perspectiva analítica.
Recordo algo que li da escritora e pesquisadora Gláucia de Souza sobre narrar e
tecer e o poema Tecendo a manhã, de João Cabral, faz algum tempo e não lembro em que
publicação, desculpando-me pelas falhas da memória que preencho com a imaginação. A
imagem construída por Gláucia não é a mesma aqui edificada, mas foi a imagem criada por
ela que levou a esta outra, filha da primeira, sem dúvida. Narrar, tecer com os fios da
memória, entrelaçar os fios da imaginação um a outro e formar um novelo, puxar mais outros
fios e trançar aos primeiros, fazer laçadas até tecer uma teia com os fios da história. Compor o
tecido da vida a cada manhã, passar adiante esse fio condutor de imagens, como o galo de
João passou o seu canto a Cabral e mais além ao Melo, de pai para filho e de avô ao Neto
(1973)
.
História parindo histórias, parecença de real, imaginadas. Relatar é que mantém o
homem vivo, enovelado pela astúcia da narrativa, da sua e de tantas outras histórias.
Encerro este capítulo retomando o ponto de minha teia. Os fios da imaginação
infantil e juvenil, os fios da memória, os fios do imaginário da escritora são pontas que se
entrelaçam no presente, numa espécie de (re)invenção da infância, que, ao chegar em trança,
num todo, livro tecido, outro fio encontra de uma imaginação leitora, que certamente iniciará
nova trança de gente e de histórias.
76
CAPÍTULO 3: FRIVOLITÉ
31
DE ANANSE - ANÁLISE DA NOVELA
3.1 Era uma vez, num lugar distante: Do outro mundo
.... são fragmentos do real e do imaginário aparentemente
independentes mas sei que um sentimento comum
costurando uns aos outros nos tecidos das raízes. Eu sou essa
linha.
Lygia Fagundes Telles (1980)
Do outro mundo é uma envolvente história em que presente e passado dialogam.
Para grande prazer de todos os leitores, essa história, que não é “histórica”, pode ser recontada
sem grandes perdas estruturais para aquela considerada “verdadeira”, pelo contrário, ganhou
muito mais força pela manipulação dos “fatos” trazidos à trama ficcional em forma de
encantamento, num exercício de liberdade e despudor que pode alumiar, com a luz do
fingimento, todos os discursos ditos “verdadeiros”, uma transgressão anunciada àquelas
narrativas que se convencionou chamar de “reais”.
A narrativa foi encomendada por um editor holandês que desejava uma história de
terror para compor uma antologia com autores do mundo todo. Após muito refletir sobre o
que seria a coisa mais horripilante que podia imaginar, Ana Maria concluiu que nada
amedronta mais que a falta de liberdade. A ideia da escravidão tomou forma e se desenvolveu
numa longa narrativa distanciada do projeto inicial do holandês, que não foi adiante. Para
ela, muito além da revolta e da raiva, a escravidão é a coisa mais assustadora que a
humanidade já inventou. (MACHADO, 2002, p.101).
Ana Maria não menospreza a capacidade de apreensão de seus jovens leitores.
Assim sendo, usa, com algumas restrições, construções mais elaboradas. No texto em foco,
ela emprega, sem parcimônia, dois recursos, aparentemente complexos, por gerar, num leitor
menos experiente, muitas dúvidas sobre a voz narrativa. Essa ambiguidade resulta, em grande
31
O “frivolité” são pequenos nós feitos com fios, trabalhado com “navete”. Parece ser um trabalho muito
complicado no início, mas tem somente um ponto básico: o nó, formado por dois meios-nós que são construídos
com um fio condutor interno. À primeira vista parece ser um trabalho muito frágil, mas os nós do fio são
apertados a cada passo, resultando numa trama bastante resistente. Usando a imaginação, pode-se formar anéis,
correntes e entremeados de nós que se combinam em infinitas possibilidades.
<
http://www.frivolite.arte.nom.br/Index.htm>. Acesso em 17/10/2009.
77
parte, do emprego da construção em abismo
32
e da utilização do recurso de analepse, mais
conhecido pelo seu similar do cinema: flashback
33
. O seu emprego se deve ao fato de
existirem momentos em que é necessário explicar as vicissitudes do presente por confronto
com acontecimentos passados, cuja recuperação é fundamental para a compreensão da
história narrada. É o caso do incêndio na senzala e a circunstância em que se deu,
fundamental para a movimentação da narrativa e consequente compreensão dos fatos
narrados.
Por se tratar de uma construção em abismo, a ambiguidade é decorrência
inevitável, requerendo do leitor atenção redobrada. Para evitar distorções na leitura, começo
por fazer uma descrição do processo utilizado, para elucidar tudo o mais que virá em seguida.
A novela Do outro mundo conta a história de Mariano, um narrador de primeira pessoa. Uma
personagem estranha é introduzida na narrativa principal e, em algumas passagens da história,
a ela é concedida a voz que passa a relatar, também em primeira pessoa, sua história de vida.
Esse relato, entretanto, é entrecortado pela voz de Mariano, que, ao retomar a voz, num
discurso em terceira pessoa, também fala acerca da história de Rosário. Mas é o foco narrativo
em primeira pessoa que determina tudo o mais na história, desde a descrição das personagens
à compreensão dos acontecimentos que se entrecruzam nas histórias principal e secundária.
Mariano conta a aventura de desvendar o mistério que envolve Rosário. Ela é um
“fantasminha”, que vive num sítio, antiga fazenda de café, transformada em pousada pela mãe
de Mariano e a e de seus amigos Léo e Elisa. Os três e Terê, amiga comum, vão
descobrindo os fatos ali ocorridos nos anos terminais da escravatura e relatados pelo espectro
da garota escrava. A escravidão é relembrada por Rosário e questionada pelas crianças, que
dela tomam conhecimento, no presente, pela voz de quem a viveu, diferente daquela ouvida
na aula de História pelas crianças. Uma mesma história contada de perspectivas diferentes,
uma reconhecida como fato e apenas citada na narrativa e a outra, inventada; e tal forma,
descrita em detalhes, aparente caução do fato. Qual das duas seria mais verdadeira? Não
32
Construção em abismo, vide nota de rodapé número 29, na página 76.
33
Na narrativa literária ou cinematográfica, diz-se de todo fato que, pertencendo ao passado, é trazido para o
presente da história relatada. Trata-se, portanto, de um fenômeno de anacronia, a que também se chama flash-
back, cutback ou switchbac . O flashback joga com a estrutura narrativa; pode corresponder à produção de uma
presença anamnésica dos acontecimentos atuais com outros ocorridos no passado, gerando uma espécie de
profundidade afetiva. É, em geral, utilizado para provocar efeitos de suspense, guardando em reserva a solução
do enigma narrativo a ao desfecho da ação. Tanto as unidades relacionais como as unidades representantes
distinguem-se das unidades referenciais e dícticas. Enquanto as unidades relacionais e as unidades representantes
remetem para outras unidades presentes no texto, as unidades referenciais remetem para objetos do mundo, real
ou fictício, e as unidades dícticas remetem para as instâncias enunciativas. RODRIGUES, Adriano Duarte, E-
Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, disponível em:
<
http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/cotexto.htm> Acesso em: 18.04.1010.
78
cabe aqui discutir essa questão, não se trata da análise das oposições verdade/mentira,
real/imaginação. Interessa o texto literário e todas as possibilidades que dele se consigam
abstrair, assim como o transbordamento de um no outro, como venho insistindo em discutir.
O problema da escravidão não é tratado com muita profundidade, porque, acredito, o foco da
narrativa não é a temática, embora importante, mas o processo de construção da escrita, a
estrutura da novela.
Mariano anuncia que vai contar uma história e quebra o contrato tácito da
abertura; em vez de se estirar em direção à narrativa e aprofundar na trama, ele convoca um
receptor e se desculpa pelo mau jeito, por não saber como se começa uma narrativa; assim
justifica a sua inabilidade e falta de capacidade em relação à tarefa para a qual foi escalado.
Escrever um livro é, segundo o narrador, um trabalho difícil para o qual não se sente
preparado, faltam-lhe os requisitos necessários que, segundo ele, a amiga Elisa tem de sobra.
A seguir, o narrador início à história, explicando os motivos que justificaram a
transformação da antiga fazenda de café em pousada. O empreendimento se por diversas
razões plausíveis. Elementos do universo empírico são convocados, a exemplo da utilização
do “Fundo de garantia” e “curso de hotelaria do SEBRAE”
34
, para dar maior verossimilhança
ao que está sendo narrado. Enquanto a reforma da velha fazenda colonial não é concluída e o
anexo da pousada não é liberado para os hóspedes, a antiga instalação da senzala é utilizada
para o deleite do grupo de crianças nos fins de semana.
É nesse ambiente envolto em mistérios que tudo acontece. Ruídos estranhos e
choro sufocado por gemidos perturbam o sono de duas crianças. De onde vinham? Quem os
estaria provocando? O mistério se estende por um capítulo inteiro. Apenas no terceiro
capítulo é desvendada a origem daqueles ruídos estranhos e soluços noturnos. Rosário, uma
garota negra e transparente, um espectro, é a causadora dos ruídos assustadores no meio da
noite. A pousada constitui ambiente propício ao evento sobrenatural que se desencadeia a
partir dali, principalmente por se tratar de um local cuja história remete ao século XIX. Na
propriedade, é possível encontrar vários objetos que lembram aquela época, a exemplo de um
castiçal, objeto mágico, casualmente encontrado e recuperado por Elisa. O castiçal, talvez por
ter pertencido a Iaiá, filha do antigo proprietário das terras e que mantinha estreito vínculo de
amizade com a escravinha, constitui peça-chave que propicia a comunicação entre os
“mundos”, das crianças e do espectro, elo que liga os dois tempos da narrativa: passado e
presente.
34
SEBRAE- Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
79
A partir do momento em que as crianças descobrem a fórmula para evocar
Rosário, via luz do castiçal, todas as noites as crianças se reúnem para ouvir histórias que ela
conta, de si mesma e dos demais cativos, no passado, moradores daquela senzala, hoje anexo
da pousada. Inicia-se, nesta interrupção da história principal, a história dentro da história.
Conta Rosário que Sinhô Peçanha, proprietário do latifúndio, era um senhor
inescrupuloso e malvado, que passou boa parte da vida explorando e abusando dos escravos.
A pretexto de falar sobre a abolição com seus escravos, mandou reunir todos na senzala e,
inconformado com a perda da mão de obra, ordena que a porta seja lacrada para, em seguida,
mandar atear fogo na construção, exterminando todos os negros lá confinados. O “retorno” de
Rosário se liga ao desejo de saber sobre o paradeiro de Amaro, seu irmão, que, momentos
antes do incêndio, se encontrava no matagal perto da senzala, auxiliando na preparação de
uma fuga, e sobre o qual não tem notícias desde então. A menina quer saber se o irmão saiu
ileso ou, como ela, morreu no incêndio. Rosário solicita do grupo de amigos que a ajudem em
duas empreitadas: a primeira, saber notícias de Amaro; a segunda, escrever e divulgar a sua
história, para que eventos semelhantes nunca voltem a ocorrer. está o motivo que justifica
a escrita do livro, cuja narração ficou sob a incumbência de Mariano.
As tarefas são divididas pelas crianças. Enquanto Mariano inicia a escrita do livro,
tarefa que lhe fora imposta por Rosário, os outros vão em busca de informações que levem ao
paradeiro de Amaro. Pouco a pouco as pistas são encontradas e aliadas a algumas informações
da avó dos garotos, Dona Carlota; finalmente as peças do quebra-cabeça vão se juntando e
construindo sentido, o mistério vai se desvelando e revelando que Amaro é um ancestral de
Léo e Elisa. Com a solução do mistério, a história de Rosário chega ao fim. Rosário descansa
em paz e Mariano, auxiliado pelos amigos, coloca um ponto final na novela, acostado pela
morte. A história de Mariano continua, plena de vida, porque narra.
Assim encerra o conteúdo da história dentro da história. No último capítulo da
história principal, Mariano visibilidade para a preocupação comum a todos os escritores: a
forma do texto. Tudo é resultado de um trabalho partilhado: “- “Eles é que acabaram dando as
sugestões e escolhendo tudo. Até o nome do livro.” (MACHADO, 2002, p.116) É válido
ressaltar que todo o processo de construção de um livro é observado nesse texto, desde a sua
elaboração escrita e a dificuldade dela decorrente- para aqueles que não estão habituados ao
exercício da escrita- até a ilustração. Elisa auxilia Mariano nos aspectos linguísticos e Léo
cuida das ilustrações, numa visível preocupação com a editoração do livro, numa relação
evidente entre forma e conteúdo.
80
Simultaneamente ao ato de narrar, o narrador se dobra sobre o ato de recordar e
compara as suas recordações a sonhos. À medida que escreve, Mariano vai corporificando a
sua lembrança e dando o testemunho do que viu e ouviu de Rosário. Ecléa Bosi afirma: “A
narração da própria vida é o testemunho mais eloqüente dos modos que a pessoa tem de
lembrar. É a sua memória.”(BOSI,1987, p.29) É impossível, para o leitor da novela Do outro
mundo, confirmar a identidade daquele narrador e o que ele diz. Nos limites da literatura, o
que ele diz é possível; assim sendo, não por que o leitor duvidar. A memória é lacunar e
por isso mesmo sujeita à invenção do sujeito que narra; ambos, sujeito e memória, são
deformados com o tempo em constante mutação, razão de não ser possível apreender a coisa
em si. Em se tratando de Mariano, o “pacto romanesco”
não deixa dúvidas quanto à sua
identidade ficcional. Ele narra a história que ouve de Rosário, esta conta a ele a sua história de
vida e, à medida que Mariano escreve, vai dando caução de “fato” à narração, via provas
como o castiçal, à negação de autoria e à construção em abismo, transformando em história a
sua lembrança e transcrevendo o relato das lembranças de Rosário. Uma história gestada
dentro da outra. Uma nascendo da outra. Puro deleite para as crianças, como uma brincadeira
com bonequinhas russas.
3.2 “Recado do nome”
35
Mariano
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto no final da frase.
Foi capaz de modificar a tarde
botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho, você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens.
E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.
Manoel de Barros (1999)
35
Tomei parte do título dessa seção de parte do título do livro de Ana Maria Machado, resultado de sua tese de
doutoramento em
Linguística e Semiologia, sob o título Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do
nome de seus personagens, defendida na École Pratique des Hautes Études, França, sob a orientação do
semiólogo Roland Barthes.
81
Assim como a aranha produz os fios da teia com que obtém os alimentos que lhe
garantirão a vida e a preservação da espécie, também o ser humano tira de si a linguagem com
que produz os fios de palavras que produzem narrativas que o mantêm vivo e à geração
futura. Assim, a linguagem é parte indissociável do homem, por lhe conferir vida. É
(re)criando e (re)inventando a linguagem que o homem encontra novas possibilidades de ser;
em literatura essa capacidade se multiplica e se realiza em inusitadas imagens.
Não pretensão de defesa de uma teoria sobre o nome próprio nesta seção,
apenas a tentativa de relacionar o emprego de alguns nomes próprios em Do outro Mundo,
procurando estabelecer uma ponte com o estudo teórico da autora Ana Maria, que percorreu a
obra de Guimarães Rosa, “examinando a relação entre o sistema onomástico e a estruturação
da narrativa em sua obra”. (MACHADO, 1976, p. 23) Este estudo nem de longe é
aprofundado, nem tão bem sistematizado como aquele por ela realizado.
Em se tratando de um texto de Ana Maria em que nada se realiza ao acaso, em
que a palavra é a essência, em que tudo significa, o nome também tem sua função na estrutura
narrativa. Em O canto da praça (1986), por exemplo, a história é narrada em três tempos: “de
antes”, “de depois” e “de agora”. Simão, o narrador, encontra Aziul, Okram e Leafar, crianças
que lhe trazem uma mensagem do futuro. A passagem do espaço intergaláctico para o espaço
da realidade se dá pela magia da palavra REVIVER. É este termo que os transporta do
“Tempo de depois” para o “Tempo de agora” e que possibilita a decodificação dos nomes
Aziul, Okram e Leafar em Luíza, Marco e Rafael. Os primeiros nomes bastante propícios para
crianças de outras galáxias (imaginação) e os segundos naturais para crianças reais
(mimético). Noutra passagem do mesmo livro, outra brincadeira com o nome. Okram veio de
Harley King, cujo som remete a Arlequim, nome usado como disfarce para que os inimigos
não descobrissem o gosto do pai por festas e divertimentos. Mais adiante, novamente o jogo
com o som das palavras possibilita a coerência interna do texto, que fala sobre o respeito à
diversidade e sobre a boa convivência entre as etnias: as crianças pronunciam uma sigla baes,
Simão as corrige: é BAZ, Batalhão Antizigzag, inventado pelo império preto/ branco. Há uma
proposital intenção de ambiguidade provocada pela semelhança sonora das consoantes
oclusivas bilabiais B/P, remetendo a PAZ. Esse efeito se repete no som de outra sigla: A
BAIS, Brigada Arlequinal Internacional de Socorro, inventada pelo império colorido. Essas
formas que os impérios criaram, para não se misturarem, resultam numa técnica de lidar com
as palavras que o narrador domina, recurso amplamente explorado pela escritora Ana Maria.
Esta releitura não se deu aleatoriamente, os nomes na obra da autora se prestam a brincadeiras
de significar, seja pela sonoridade evocada, seja pela permuta dos significantes, seja pela
82
leitura em sentido contrário, seja pela metáfora e imagens sugeridas, todo o processo é um
exercício lúdico com a linguagem. Nas palavras da autora:
Nome é sempre significativo. E sempre uma forma de classificação. Além
disso, não é próprio por ser uma propriedade de seu portador, mas porque lhe
é apropriado. Duplamente apropriado: marca de uma apropriação pelo outro,
e escolhido segundo uma certa adequação àquele que é nomeado. Para
exprimir aquilo que lhe é próprio enquanto indivíduo, aquilo que não é
comum a toda a espécie. E com essa operação, volta-se à classificação.
Significação e classificação estão sempre estreitamente ligadas no nome
próprio. ( 1976, p.27)
Depreende-se dessa afirmação que a escolha do nome próprio nos textos de Ana
Maria é consciente. Longe de constituir um sintoma de empobrecimento maniqueísta da
narrativa, em que se situam de um lado os bons e de outro os maus, classificados segundo os
nomes e suas características, os nomes próprios na obra da autora possibilitam uma circulação
do sentido através da obra; se a autora foi ou não influenciada pelo processo experimentado
por Guimarães Rosa, tendo por referência apenas este breve estudo, seria leviano dizer. Como
a própria Ana advertiu, referindo-se ao emprego consciente do nome próprio na obra do autor
de Grande sertão: veredas:
... as únicas palavras que o autor não podia, a rigor, usar como se estivessem
surgindo pela primeira vez, eram os nomes próprios. A não ser em sua
menção inaugural naquela narrativa. Em seguida, batizados os personagens,
eles se convertiam nas únicas palavras pré-existentes ao texto que ia ser
escrito. Não teriam como não desempenhar um papel relevante no
engendramento desse texto, atraindo ou repelindo as outras palavras que o
autor escolheria.
36
O que é possível afirmar é que o processo é recorrente em toda a obra de Ana
Maria e que me aterei apenas à obra selecionada para estudo e, ainda neste caso, à análise de
quatro personagens considerados relevantes pela função que exercem na narrativa. Para três
deles: Peçanha, Rosário e Amaro, apenas uma breve consideração; maior empenho foi
36 MACHADO, Ana Maria. Personagens universais. O Globo - Prosa e Verso, Rio de Janeiro 11/03/2006.
Disponível no site da Academia Brasileira de Letras.< http://www.academia.org.br/> Acesso em: 21 de fevereiro
de 2010.
83
reservado ao nome Mariano, por entender que o seu papel na obra não se restringe à
individualização da personagem. Vai mais além. um desdobramento do nome, resultando
na fascinante iluminação do significante. Nesse processo, o nome se desintegra em pequenas
unidades, prenhes de significação. Com as palavras de Ana Maria: “Os significantes se
correspondem, se atraem, se encadeiam, tecendo os significados com seu movimento
permanente.” (1976, p.197)
Para falar sobre a importância do nome, parto da escolha do nome para a pousada,
local onde se desenrola a história. O nome escolhido,“Pousada da Mata Livre”, se relaciona
em tudo com o enredo da novela Do outro mundo.Segundo informações de uma das
personagens, trata-se de uma homenagem aos escravos que ali morreram, além de
corresponder à palavra inglesa Freewood, marca do castiçal de Iaiá. O termo significa “mata
livre”, expressão que se liga a dois eventos do texto: o fato de a pousada ter uma matinha
verde, que todos desejavam preservar, e a liberdade, o que vem reforçar a ideia de que a
escolha dos nomes na obra da autora é intencional.
o recurso de utilizar essas formas mais bem elaboradas de nomear os
personagens, como, por exemplo: o nome Peçanha, que batiza o proprietário senhor de
escravos do latifúndio cafeeiro, de cuja maldade ninguém duvida, nos remete ao vocábulo
peçonha- secreção venenosa de alguns animais, principalmente das cobras-, um veneno
mortal, assim como o veneno destilado por aquele que, na novela, sustenta o nome, o que
demonstra como são ricos os caminhos da denominação literária no processo criativo da
ficção. O algoz Peçanha se opõe à sua vítima Rosário
37
, nome que pode ser relacionado ao
objeto de contas utilizado em orações, ligado à espiritualidade, portanto. Na iconografia
hindu, o rosário é atribuído ao alfabeto, o poder criador da palavra; esse poder de
transformação da palavra em história é muito familiar a Ana Maria. O nome Rosário pode ser
fragmentado em partículas de significantes como: ora(rezar) e sarar(curar), rosa (simboliza a
taça de vida, a alma, o coração, o amor)
(CHEVALIER, 2000, p.788) e rio (o simbolismo do
rio e o fluir de suas águas é, ao mesmo tempo, o da possibilidade universal e da fluidez das
formas (F. Schuon), o da fertilidade, da morte e da renovação) (CHEVALIER,2000, p. 780-
1.Grifos do autor), e riso e ira, também dotadas de significado. Estes últimos vocábulos (rosa/
rio, riso/ira) comportam sentimentos opostos; a rosa com raízes na terra firme, efêmera e o rio
37
O rosário são as fileiras de rolas enfiadas num fio, de que fala o Bhagavad-Gita, o fio sendo o Atma, no
qual todas as coisas são enfiadas, a saber, todos os mundos, todos os estados da manifestação. Atma, o Espírito
universal, liga esses mundos entre si; é também o sopro que lhes vida.[...] Na iconografia hindu, o rosário é
atribuído a diversas divindades, mas sobretudo a Brama e a Saravasti, que é o alfabeto, o poder criador da
palavra. (CHEVALIER, 2000, p.790).
84
em constante movimentação, perene. As raízes de Rosário se ligam à sua origem e ao irmão
Amaro, mas sua existência é volátil, trata-se de um espectro. As novas palavras se oferecem
ao uso e cada leitor escolhe ou privilegia o significado que quer dos significantes, pois tanto a
alegria quanto a ira podem ser, simultaneamente, encontradas no nome Rosário. Significados
que são relacionáveis com o papel da personagem na narrativa, qual seja o de administrar
sentimentos antagônicos de amor e ódio, de permanência e de transformação. que se
considerar ainda que o nome completo da personagem é Maria do Rosário; este nome, Maria,
remete a tantos outros significados, mas fico restrita a este pequeno comentário: Maria que
nasceu da outra Maria, a Ana.
O nome Amaro, do latim amarus, significa amargo. Em princípio, a escolha do
nome parece estar ligada à vida sofrida da personagem, rapaz negro, explorado e cerceado de
sua liberdade. A vida de Amaro era permeada pela dor e pela tristeza, por isso mesmo
ajudava na organização de fuga de seus párias. Mas é possível também, numa outra
perspectiva, encontrar outros significados via leitura das partes que compõem o nome, como,
por exemplo, a palavra amor, elo que liga os irmãos Rosário e Amaro, e este a seus
companheiros de infortúnio; ramo: na simbologia cristã representa a vitória da vida e do
amor, uma mensagem de perdão e de renascimento. Podemos ainda pensar o ramo num
sentido social como um segmento pertencente a um mesmo tronco (origem, procedência);
romã: símbolo do amor e da fecundidade e para os judeus símbolo religioso com profundo
significado no ritual do ano novo que traz bons fluidos. Novamente a água, desta vez do mar,
mas também símbolo de mudança, de transformação, e aro, de grande valor semântico para a
narrativa. Amaro é a personagem cujo nome se ramifica, recompondo a genealogia da família;
como as águas marítimas, ele vai e volta às origens. É mais, é a personagem que fecha o
círculo entre as duas histórias, a principal e a secundária, elo que interliga as duas narrativas e
estabelece vínculo afetivo com quase todos os personagens envolvidos na trama. E se, num
descuido de pronúncia ouve-se Mário de Andrade em vez de Amaro Andrade, isto seria uma
feliz coincidência ou uma consciente escolha da autora em razão de sua paixão pela poesia
andradina?
Doravante a atenção volta-se para o nome Mariano porque é ele que se relaciona
diretamente com a discussão até aqui desenvolvida. O anagrama Mariano/Ana Maria,
embora de leitura bastante óbvia, permite mais de uma possibilidade de significação. Não é
esta uma ocorrência isolada na obra de Ana, mas suficiente, e por isso mesmo recortada, para
o propósito deste estudo, passível de ser interpretada como um exemplo de polissemia na
estruturação da narrativa, entendida em relação a um sistema mais amplo, que conta dos
85
outros nomes próprios do texto, entre eles aqueles considerados importantes mencionar. A
discussão segue, refletindo a relação entre o nome da autora e o nome do narrador-
protagonista e a constituição do escritor pela escrita. Segundo Ana Maria,
Quando um autor confere um Nome a um personagem, tem uma ideia do
papel que lhe destina. É claro que o nome pode vir a agir sobre o
personagem e mesmo modificá-lo, mas, quando isso ocorre, tal fato vem
confirmar que a coerência interna do texto exige que o Nome signifique. É
licito supor que, em grande parte dos casos, o Nome do personagem é
anterior à página escrita. Assim sendo, ele terá forçosamente que
desempenhar um papel na produção dessa página, na gênese do texto. Não
vem ao caso discutir se esse desdobramento do Nome no texto é ou não
consciente por parte do autor. Em primeiro lugar, porque, mesmo que não
seja consciente, não é obra do acaso nem ocorrência acidental. (1976.p.28)
Assim pensando, ao escolher o nome Mariano para protagonizar o seu texto, Ana
Maria confirma a intencionalidade de lhe dar o papel que é próprio a si mesma: o de
contadora de história. Parece que o nome age sobre a personagem, modificando-a. Mariano,
no princípio avesso à escrita, passa a escrever a história embora sinta imensa dificuldade.
Aqui interpenetram autor e narrador, desde a escolha do nome para o personagem que, por
anagrama, possibilitou o encontro dos dois nomes em um: Mariano/Maria Ana/ Ana Maria,
camuflagem do nome da autora no nome do narrador, chegando à representação do exercício
da escrita. O nome Mariano pode ser decomposto, ou melhor, reorganizado em Ana Maria; e
mais, Mário e Maria, o masculino e o feminino se fundem no nome Mariano, assim como a
leitura dos nomes que resulta ora no nome de um, ora no nome do outro, dependendo da
direção que escolhemos seguir na leitura. O percurso pela escrita dos autores Ana Maria e
Mariano se em direções opostas: o nome da primeira liga a leitora assídua à escritora de
qualidade, o segundo percorre o caminho inverso, torna-se um escritor pela força da
necessidade, sem ter experiência alguma com a leitura, cada um à sua maneira termina a
tarefa de escrever o livro. Muito mais que descritivo ou alegórico, o nome Mariano é
evocação, carregado de significado, mesmo assim não compreende tudo. Trata-se de uma
forma riquíssima em camadas semânticas. Impossível não notar nesse nome uma síntese de
diversos elementos, que tento apontar.
Mais na superfície, temos no nome Mariano uma analogia com o Movimento
Mariano, cujo objetivo é a renovação religiosa e moral do mundo, por meio da educação de
homens novos, por isso colabora para que as pessoas consigam educação e, por meio dela,
86
melhorem as suas vidas e se tornem pessoas fortes, livres e responsáveis. O centro de
espiritualidade do Movimento Mariano é Maria, presente como a grande educadora e
renovadora da fé. É possível conjecturar uma ponte entre os princípios do movimento e o
nome Mariano. O objetivo do primeiro é a renovação religiosa, do segundo a aprendizagem e
renovação de si mesmo; o primeiro tem como mentora espiritual a Virgem Maria; o segundo
como mentora intelectual a escritora Ana Maria. Ambos, o movimento Mariano e a história de
Mariano abrangem todos os estados de vida e todas as idades.
O sufixo ano do nome Mariano indica, nos substantivos comuns, procedência,
penso que não seria de todo absurdo dizer que Mariano é aquele que procede de Ana Maria, é
cria da autora. O rir, que se relaciona por semântica à alegria natural e própria à infância e
por analogia a todo escritor criativo, está centralizado no significante do nome Mariano. O
rio
38
, travessia e renovação, também está presente no nome Mariano. Se ousar mais, recorto o
vocábulo mar
39
no início do nome, podendo facilmente relacioná-lo ao nascimento, à
transformação e ao renascimento, e ano no final da palavra, que leva a pensar em tempo de
mudança. Mariano é uma personagem que se transforma pela escrita. Em ambos os nomes,
Ana Maria e Mariano, o mar principia o nome evocado e, à semelhança de suas águas, os
autores mostram-se diante do leitor autores em transformação, marcados pelas mudanças de
curso de um protagonista que não se fixa na dificuldade em escrever (caminho de mão única),
mas que flui como as águas num novo percurso impulsionado pela promessa. E Ana não se
revela uma autora em busca de renovação?
Mariano parte, assim, como um grande número de escritores, de uma escrita que
nasce de frágeis estruturas, percorre um caminho de amadurecimento, para atingir uma escrita
mais densa e consciente. A promessa de escrever a história, feita por Mariano à personagem
Rosário, estrutura que desencadeia a narrativa, constitui para o narrador uma experiência
bastante difícil: “Você me desculpe. E, por favor, tenha um pouco de paciência. Eu não
38
O simbolismo do rio, o fluir de suas águas é, ao mesmo tempo, o da possibilidade universal e da fluidez das
formas (F. Schuon), o da fertilidade, da morte e da renovação. O curso das águas é a corrente da vida e da morte.
Em relação ao rio, pode-se considerar: a descida da corrente em direção ao oceano, o remontar do curso das
águas, ou a travessia de uma margem à outra. A descida para o oceano é o ajuntamento das águas, o retorno à
indiferenciação, o acesso ao Nirvana; o remontar das águas significa, evidentemente, o retorno à Nascente
divina, ao Princípio, e à travessia de um obstáculo que separa dois domínios, dois estados: o mundo fenomenal e
o estado incondicionado, o mundo dos sentidos e o estado da não vinculação. A margem oposta, ensina o
patriarca zen Hhueineng, é o estado que existe para além do ser e do não ser.[...] o rio simboliza sempre a
existência humana e o curso da vida, com a sucessão de desejos, sentimentos e intenções, e a variedade de seus
desvios. (CHEVALIER, 2000, p. 780-1.Grifos do autor).
39
Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugar dos nascimentos, das transformações
e dos renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda
informes e as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de
indecisão, e que se pode concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a
imagem da morte. (CHEVALIER, 2000, p.592).
87
entendo nada disso. estou aqui escrevendo ou tentando escrever - porque assumi um
compromisso. Mais até do que isso: fiz promessa solene, um juramento muito
importante.”(MACHADO, 2002.p.11) E em outro fragmento adiante, como se a escrita fosse
uma sentença da qual não pode fugir: “... Enfim, estou querendo lhe dizer que não sou
muito chegado nesse negócio de contar história. Mas o escolhido fui eu e não tem jeito. Ainda
mais numa escolha dessas, que vem de século atrás. De outro tempo. De outra vida. Ou outro
mundo, nem sei direito.” (p. 12) Mais além: “- escravo, escrevo”(p.102) e, finalmente: “... - E
que eu jurei que, com palavras, ia ajudar a lembrar sempre, para ninguém esquecer-
reafirmei.” (p.117)
O percurso da escritora Ana foi diferente do percurso trilhado por Mariano. Teve
uma infância rica em leitura dos clássicos da literatura e em bens culturais, seus avós sempre
contavam histórias para ela; na adolescência não foi diferente, vivia cercada de livros e de
pessoas que gostavam muito de ler. O incentivo à leitura que teve de todas as pessoas que a
conheciam foi fundamental para o seu processo de escrita, Ana escrevia, desde muito cedo,
gêneros textuais variados e em contextos diversos, o que contribuiu para o seu
amadurecimento como leitora e consequentemente como escritora. Ela confere grande
importância e respeito ao domínio da linguagem escrita e relaciona a escrita de qualidade com
a prática constante da leitura. A escritora percebe seu processo de escrita como marcado pela
tradição da narrativa oral e pela influência da leitura de clássicos. O passado ou a tradição,
quando retomados no presente, podem ser reinscritos e reelaborados conforme as
possibilidades de novas leituras críticas.
O processo de criação literária de Ana Maria vincula-se, segundo sua própria
afirmação, a duas situações aparentemente contraditórias. Primeiro, assegura que sua escrita
resulta de inspiração, o que permite supor que a escrita é destinada a uns poucos escolhidos.
Em segundo lugar, a escritora associa a escrita a um fazer laborioso e metódico, um exercício
diário da pesquisa e da prática que exige dedicação e muita disciplina por parte do escritor.
Nas palavras da autora:
Escrevo o tempo todo, não quando estou diante do papel ou do
computador - esse é o momento final, em que as palavras saem de mim e
tomam forma exterior. A minha criação é assim, um processo meio mágico,
que a gente não sabe de onde vem nem como se desenrola. Procuro merecer,
estar pronta, criar condições. Essas condições passam por trabalho e
disciplina. Em geral, escrevo todo dia, sempre de manhã, quanto mais cedo
88
melhor. Sem interrupções de fora. E com possibilidade de uma vista
agradável, quando levanto os olhos da página.
40
(Grifos meus)
Percebemos, nesse fragmento, que a escrita absorve bastante tempo da escritora,
num exercício contínuo de aprimoramento. Escrita que se materializa, num diálogo entre o
tradicional e o contemporâneo. Preferência pelo nascedouro, num tempo cronológico
desvirginando-se com o dia. Um ritual que se manifesta num ambiente propício à criação. É
importante mencionar, embora não seja um privilégio em Ana, a relação que se estabelece
entre a escrita e o corpo; segundo a própria autora, ela escreve sempre no mesmo lugar, no
mesmo horário, num exercício diário, pois considera a escrita como seu oxigênio,
concebendo-a como elemento indispensável à vida. Sua relação com a escrita parece ser
passional: “...escrevi sobre a obsessão da escrita. Sabendo aonde eu ia chegar e que o final
seria a vitória da palavra.” (MACHADO, Atual, 1996.p.69)
Essa preocupação é traduzida em vários de seus livros, onde traz a escrita ora
como um ato doloroso e difícil, ora como um prazer, nos dois casos (doloroso/difícil ou
prazeroso/lúdico) é uma realização movida por impulso, trabalho e deleite. Escrever para Ana
“[…] é como se descesse numa onda: tenho que observar o bom momento, descobrir o ponto
exato da arrebentação, me antecipar ao instante em que ela enche, soltar o corpo e me deixar
levar, sempre atenta para corrigir o rumo se necessário e possível, mas sem querer dominar o
impulso do mar.” (1996.p. p. 69-70) Assim como a palavra mar faz parte do seu nome, o seu
processo de criação está intimamente metaforizado na figura do mar, no “impulso do mar”,
como uma força maior do que ela mesma.
Embora a autora afirme que sua escrita seja resultante da inspiração e do trabalho
árduo, enfatiza o trabalho como condição principal para a sua criação. Quaisquer que sejam
os motivos-inspiração ou trabalho, contribuiu para o resultado o rico repertório de leitura que
foi se formando ao longo da infância e juventude da autora, assim como o emprego de
método de pesquisa e a disciplina diária da prática escrita. A memória e a imaginação
também são elementos importantes no processo criativo da escritora: “Do meu ponto de vista,
eu escrevo sempre a partir de duas coisas: o que eu lembro e o que eu invento. Memória e
imaginação são as duas grandes fontes do que eu faço.”
41
Imaginação e memória constituem
conceitos imprescindíveis no trato com a literatura infantil e juvenil.
40
Web site oficial da autora< www.anamariamachado.com.br>. Link: Caderno de notas: tudo ao mesmo tempo
agora, perguntas e respostas. Acesso em 17/12/2008.
41
Web site oficial da autora, www.anamariamachado.com > Link: perguntas-e-respostas. Acesso em 17/12/2008.
89
Mais uma vez o caminho que os nomes (Mariano e Ana Maria) perseguem ou
para o qual são conduzidos difere. Dos registros de menina num diário pessoal à vasta gama
de títulos publicados, são vários anos de dedicação à literatura, sem adjetivos reducionistas,
como a própria autora gosta de ressaltar. Mas reconhece uma limitação sua, a de ser incapaz
de escrever ficção por encomenda, ou seja, movida por uma exigência externa. Se a
motivação para a escrita em Ana Maria brota de dentro, em Mariano trata-se de uma
exigência externa impulsionada pela promessa feita à Rosário. Muitos podem ser os motivos
que levam à dificuldade para escrever. Ana Maria afirma que todo livro, por sua
especificidade, apresenta algum tipo de dificuldade na sua elaboração, seja por exigir
informações específicas ou pesquisas especiais, seja pelo acionamento de determinadas
emoções que divergem de uma para outra obra. As dificuldades decorrentes são, portanto,
diferentes em cada criação. Sobre essa questão assim se expressa a autora:
... Depois que passa o momento de escrever o que fica é só a memória desse
momento, que pode não corresponder à verdade. Eu lembro que um dos mais
difíceis, entre os infantis, foi ‘Um Avião e uma Viola’, que só tem uma linha
por página. Os primeiros da série Mico Maneco também foram muito
difíceis, por trabalharem com um repertório de sílabas muito limitado. Entre
os de adulto, dois foram especialmente difíceis:’Tropical Sol da Liberdade’,
por ter me lançado numa profundidade de dor para a qual eu não estava
preparada, e E o Mar nunca Transborda’, pelo intenso trabalho de pesquisa
e recriação de linguagem que ele exigiu. Fácil, nenhum é.
42
que se considerar ademais o medo de se expor enfrentado por cada escritor
que, ao escrever, se desnuda ao mundo, exibindo os seus sentimentos e pensamentos mais
secretos. Ana diz: “A ameaça de ridículo e rejeição. O medo de se revelar perigosamente. De
se confrontar com forças íntimas sem controle. De nesse processo ter que ferir pessoas que
ama mais que quaisquer outras na vida.” (LAJOLO, 1983.p. 156.) Essa situação, entretanto, é
comum a todo escritor. Quem deseja escrever com qualidade não pode evitar essa situação, é
preciso ser verdadeiro no âmbito ficcional e emocional. Nas palavras de Ana Maria: “Não dá
para escrever realmente uma obra literária significativa sem mergulhar em verdades pessoais
dolorosas sem se arriscar a descobrir segredos profundos em si mesmo. Sem autenticidade
emocional não se faz uma criação literária digna desse nome.” (MACHADO, 1999,p. 156-57)
42
Web site oficial da autora <www.anamariamachado.com.br> . Link: Caderno de notas: tudo ao mesmo tempo
agora, perguntas e respostas. Acesso em 17/12/2008.
90
Se o medo de Ana reside na exposição de “verdades pessoais dolorosas”, o medo de Mariano
pauta-se na dificuldade que tem para escrever. Jovem escritor iniciante, pouco amante da
leitura, sente-se incompetente para a tarefa que lhe foi determinada. A falta de prática no
exercício da composição é seu maior adversário para escrever, fonte de seu medo e de sua
insegurança.
O narrador Mariano pode ser lido como uma espécie de representação ao avesso
da autora, por se tornar um escritor por mero acaso do destino, função para a qual nem para si
mesmo admite estar preparado. A aproximação do protagonista com Ana Maria se pela
busca inquietante de aperfeiçoamento e transformação decorrente dessa busca. Partindo de
um estado íntimo de dúvidas e inquietações sobre o ato de escrever, Mariano, assim como
outros personagens envolvidos na temática da escrita criativa, recorrência comum na obra da
autora, percorre trajetórias em que a imaginação dialoga com fatos, ganhando força a
capacidade criativa. No final da viagem, tendo superado os desafios do percurso, as
personagens se apresentam transformadas interiormente, sugerindo um novo modo de ser e de
estar no mundo, possibilitado pela composição.
Há também a possibilidade de teorização sobre a escrita, a partir da dificuldade do
narrador Mariano para discernir entre o que lhe foi relatado, o que ele inventou e o que a sua
memória, por ser lacunar, foi incapaz de registrar. Deve ser mencionada a incapacidade do
narrador de lidar com o seu relato: “Mas isso é comentário meu. Desculpe, não devia me
meter, mas é que eu estou me desviando, querendo ver se adio o que vem por aí. O que eu não
quero contar, o que eu prometi contar, o que não dá pra contar.” (MACHADO, 2002, p.71) A
escritora Ana Maria, por seu turno, afirma que “... inventar histórias é só um jeito diferente de
perguntar e sair experimentando possíveis respostas”. (2007, p. 33) No discurso de cada um
deles, percebe-se a evidente preocupação com a escrita; em Mariano a dificuldade em realizá-
la, em Ana Maria um processo quase espontâneo.
É pertinente relembrar, neste momento, algo que Ana Maria disse: “... é bastante
difícil pretender determinar o grau de consciência envolvida no processo de denominação das
personagens...”
(1976.p.33), contudo é inegável a força do papel que o nome Mariano
representa na organização dessa novela, quer no nível do significante, quer no nível do
significado, algumas de cujas possibilidades semânticas assinalei. Também é fácil perceber as
semelhanças que aproximam os nomes Ana Maria e Mariano e as diferenças que os afastam.
Seja pelo afastamento, seja pela semelhança, é inquestionável a importância do nome na
construção da novela Do outro mundo.
91
As afirmações de Ana sobre o nome próprio no texto de Marcel Proust e
Guimarães Rosa também se aplicam a ela, que tem plena consciência desse fenômeno. Para
ela, o nome próprio é: “um signo espesso e rico que escapa sempre aos limites de cada
sintagma [...] para além do texto. É por causa disso que umas associações sensoriais ou
culturais estão presentes o tempo todo no nome próprio e não permitem que se possa sustentar
a noção de que o signo é arbitrário.” (MACHADO,1976.p.41) Os nomes são escolhidos por
Ana tendo em vista sua polissemia. Cada um dos fios que se entreteceram para formar a
narrativa dessa novela passa também pela escolha exata de um nome que cose esses outros
fios. Nas palavras de Ana Maria: Os nomes significam em seu sistema a própria existência
da significação, provando que não é possível falar de um sentido único para um texto, mas
obrigando à incorporação de uma pluralidade de leituras – o que é completamente diferente de
uma diversidade de interpretações...” (1976.p.194) Este estudo não teve pretensão de
apresentar como única ou ideal esta leitura do nome Mariano, pois o nome abre um leque de
outras possibilidades que a outros se oferecerão em fios para novas tramas. Conforme
argumenta Ana Maria:
O que interessa agora não é mais a possibilidade da existência de uma
alegoria, mais ou menos ingênua e evidente. O Nome é um signo,
polissêmico e hipersêmico, que oferece várias camadas de semas e cuja
leitura varia à medida que a narrativa se desenvolve e se desenrola. Não
mais um sentido único de leitura, mas uma decifração e recriação
permanente, feita de dedução e de intuição, de sensibilidade e de exploração
das diferentes possibilidades de atualização daquilo que é dito
potencialmente pelo
Nome... (1976, p.41)
Ana se refere a Guimarães Rosa como um escritor que, “não contente com esse
processo de passar uma limalha no léxico, ainda se permitia inacreditáveis malabarismos
sintáticos”
43
; talvez desse percurso rosiano Ana Maria tenha retirado o ensinamento de brincar
conscientemente com as palavras numa alquimia criativa.
É profícuo mencionar que, quando se trata de processo criativo, não certezas,
apenas suposições. A autora admite não saber explicar ao certo como nem por que os
escritores criam: “...qualquer resposta é insuficiente e frustrante[...] É mesmo um mistério
43
MACHADO, Ana Maria. Personagens universais. O Globo - Prosa e Verso - Rio de Janeiro, 11/03/2006.
Disponível no site da Academia Brasileira de Letras.< http://www.academia.org.br/> Acesso em: 21 de fevereiro
de 2010.
92
delicado. Tem a delicadeza da fragilidade, por ser feito de algo muito tênue e indefinível
passível de se romper à toa. E tem a delicadeza da generosidade, da gentileza do altruísmo
por ser algo destinado ao outro desde a origem...” (MACHADO, 1999, p.158) Para finalizar
esta seção, vale lembrar que o personagem escritor frequenta, insistentemente, a obra da
escritora. Em o Canto da praça (1986), por exemplo, Simão, o personagem narrador, assim
como Mariano, também é escritor. A narrativa principia e termina com o processo de
construção da escrita ficcional, é através da liberdade propiciada pela linguagem literária que
a personagem constrói a sua identidade. A metanarrativa é anunciada, numa linguagem
metafórica, logo no preâmbulo do livro: “... a engenhoca foi ligada, nela se acenderam luzes
belíssimas, dela saíram vapores de perfumes deliciosos [...] ouviram sons que só podem ser as
tais harmonias celestiais [...] de repente, por uma abertura da máquina, como se fosse uma
mulher parindo, saiu um livro.” (MACHADO, 1986, p. 10) Uma máquina do tempo pariu O
canto da praça, como uma mãe, uma linda metáfora da criação literária. Desse mistério
inexplicável que é a criação, ou cuja explicação nunca se mostra completa, nascem obras que
se oferecem a infindáveis percursos não menos criativos. A leitura do nome é apenas um fio
de possibilidade na tessitura a se puxar, de muitos outros que formam o texto de Ana Maria
transbordante de inventividade.
3.3 O verso e o avesso da trama
Ler ficção o é uma atitude passiva, mas uma atividade que
consiste em se dispor a aceitar algumas coisas, acreditar em
outras e imaginar outras tantas. Cada texto traz implícitas
suas regras do jogo, que é preciso observar. E o leitor passa a
ser alguém ansioso para jogar.
Ana Maria Machado (1999)
O trajeto percorrido até aqui constituiu uma tentativa de refletir sobre a escrita de
Ana Maria, considerando os pontos que promovem a leitura de Do outro mundo (2002)
44
como uma obra de ficção na qual Ana revisita a si mesma como autora. Nessa busca, foi
importante ficar atenta aos elementos que o próprio texto ofereceu à análise e que
evidenciaram o processo de escrita da autora. Ana manipula, de forma engenhosa, detalhes
44
Neste capítulo, todas as referências à novela Do outro mundo (2002) trarão apenas o número da página.
93
que adquirem o status de fato, um permanente diálogo entre as imagens da infância resgatadas
pelas lembranças e uma imaginação bastante fértil, que a mantém em constante produção.
Esses eventos da vida particular manipulados por um conjunto de processos linguístico-
expressivos, dentre eles a construção em abismo, a desliteralização da linguagem, a
intertextualidade e a metalinguagem revelam um alcance estético para além da mera
representação.
Se no texto literário sempre algo novo a se revelar, também algo a ele
anterior e que não se altera: a estrutura. Para a “análise estrutural de uma narrativa”, é
condição sine qua non uma atitude de “assombro” do analista diante da obra;
independentemente de outros meios que lhe possam determinar a identidade, é a estrutura que
define a sua leitura. (TACCA, 1983, p.35) No texto ficcional, o jogo entre leitor e texto é um
exercício de prazer incessante. Neste texto em particular, constitui matéria relevante a
artimanha da autora no processo de construção da narrativa, que seduz pelo diálogo entre
passado e presente, que se por meio da construção em abismo. Ana Maria tem consciência
de sua tarefa, sabe que a coerência interna do texto depende da ligação lógica entre seus
componentes e que qualquer deslize é percebido por um leitor atento. Ela chama atenção para
a construção, que considera importante para a escrita ficcional: “Mesmo quando o autor não
tem consciência de como se articulam os diversos componentes do livro que está fazendo, o
leitor atento depois percebe que toda obra tem seu próprio esqueleto invisível, que lhe
sustentação e coerência.” (MACHADO, 2007, p. 15).
Assim, foi realizada a leitura do texto, tanto no plano horizontal da organização
das partes, que não se de forma sucessiva, como no plano vertical, das camadas, de modo a
dar visibilidade e coerência às reflexões que vinham sendo desenvolvidas. Nos romances
contemporâneos, é mais comum do que se imagina encontrar as anacronias.
45
O encontro
entre passado e presente é a marca mais forte em Do outro mundo. Esta narrativa realiza-se à
mercê da memória; nela Mariano subverte a linearidade em movimentos retrospectivos, para
relatar, com mais detalhes, acontecimentos que julga serem essenciais para a compreensão da
ação presente.
45
[Termo grego que provém de ana- contra e chronos - tempo] Refere-se às alterações entre a ordem dos
eventos da história e a ordem em que são apresentados no discurso. Assim, o narrador pode antecipar
acontecimentos ou informações (prolepse) ou recuar no tempo (analepse). O uso de anacronias pode ter vários
motivos, como, por exemplo, a caracterização retrospectiva de personagens, a reintegração de acontecimentos
que não foram focados no devido tempo ou manter a expectativa do leitor ao fornecer informações antecipadas.
ROSA, Vanda "Anacronia’, E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9,
disponível em: <
http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/anacronia.htm >, Acesso em: 16.05.2010.
94
O passado de Ana Maria transforma-se em matéria de sua obra, uma matéria única
e singular, como meio de fixar a memória, notadamente de natureza efêmera, porque repousa
no esquecimento. É bom frisar que, quando alguém transforma experiência de vida em
linguagem, não há mais experiência, arte. Seria coincidência o seu narrador valer-se de
igual meio? A narrativa de Mariano também emerge da memória e da imaginação: “Acho que
foi nessa hora que comecei a pensar em contar para mais gente aqueles encontros. Para que
não desapareça da memória o que Rosário contou...”(p.77) e mais adiante: “De verdade, nem
sei direito o que foi que ela contou mesmo, ou o que foi que eu imaginei. Principalmente, não
sei o que foi que eu nem consegui imaginar, mesmo ela contando.” (p.89-90); depois o receio
do esquecimento: “...Não sei se eu prestei bastante atenção para poder contar, se não vou me
atrapalhar, me confundir, se vou esquecer alguma coisa.” (p.101) É um exercício que resulta
na ficção dentro da ficção.
É possível extrair da novela Do outro mundo passagens que, possivelmente,
seriam relacionáveis à vida da autora; nela, flagramos o diálogo entre o presente da escrita e o
passado da escritora: “Tinha até quadros nas paredes umas reproduções de gravuras antigas,
de um certo Rugendas e um tal de Debret, que minha mãe encomendou em São Paulo.”(p.35).
O excerto evidencia a intimidade da autora com a pintura, porque, além de escritora, ela
também é pintora. Os acontecimentos vivenciados e lembrados por ela se apresentam de
forma desordenada, a matéria é transformada no ato da criação e no texto passa por um
processo de combinação: “Na verdade, porque lembrei de um caso verdadeiro que uma amiga
me contou, acontecido com um bisavô dela que herdou a fazenda da filha dos antigos
senhores, após o incêndio criminoso da senzala.” (p.122-3) É a amiga para quem Ana Maria
dedica a história Do outro mundo: “Para Verônica, que ao contar a história de seu bisavô me
deu o ponto de partida.” (p.08). Outro evento, a leitura do livro: As aventuras de Huck, de
Mark Twain, também pode ter servido de motivo para esta obra, paixão que Ana revela neste
fragmento “... Livro que leio, releio e sempre me diz coisas novas [...] Quem sabe não foi
que a idéia inicial começou a brotar em minha cabeça? Depois foi mudando e se misturando
com outras...”(p.123) É nesse momento que a imaginação se insere na lembrança da
experiência vivida e se cria, pelos elementos intratextuais, um novo mundo. O processo
criativo de Ana Maria se constitui da experiência de vida e das leituras que realizou ao longo
da vida, acrescido de fértil imaginação.
Aparentemente simples e sem a adoção de regras prévias, a autora escolhe na
realidade extratextual o que pretende trazer para o texto. Não se trata de uma cópia desta
realidade, os campos são demarcados e trazidos à percepção; esses elementos colhidos, dentre
95
outros disponíveis, dobram-se à força do imaginário e a seleção operada não se repete única
e/ou passivamente no texto. O que antes residia inerte, tomado como a própria realidade, é
perspectivado, segundo Iser, "através da divisão destes campos de referência em alguns
elementos que são atualizados pelo texto, enquanto outros permanecem inativos."(1996.
p.217) Desse mundo empírico que se dispõe a Ana Maria, com toda força e riqueza de
possibilidades, a autora colhe elementos para a sua criação, a seleção opera a percepção de
partes, alterando a visão do todo, tanto o todo do texto como o todo da realidade, resultando
numa outra coisa que não a realidade.
A narrativa é pautada por um tempo que navega entre o passado e o futuro,
sustentado pelo presente da escrita, um tempo interior, marcado pela interrupção que se
engendra a partir duma memória, duma percepção, duma imaginação descontínua. Através da
memória e da imaginação, a autora consegue articular experiências vividas e imaginadas e
assim aproxima sua vivência de adulto do universo de expectativas da criança. A
multiplicidade temporal processa-se na narrativa de Do outro mundo em diversas passagens,
assim como a sobreposição de planos e de imagens. Vejamos um exemplo:
Acho que nós quatro estávamos com sentimentos parecidos. Porque de
repente a
Terê
se levantou aos prantos, sentou na outra cama ao lado de
Rosário, e passou o braço pelo ombro dela, sem dizer nada. Nossa nova
amiga se aninhou nela, e começaram as duas a chorar, abraçadas.
Imediatamente reconheci os soluços e gemidos que tínhamos ouvido antes,
na escuridão. E entendi do que se tratava. Dor entranhada nas paredes da
senzala, transpirando em lágrimas que escorriam pela alma, como se gritasse
para que aquela memória não se perdesse e nada daquilo jamais pudesse
voltar a se repetir. [...]Acho que foi nessa hora que comecei a pensar em
contar para mais gente aqueles encontros. Para que não desapareça a
memória do que Rosário contou. E nunca mais aquilo se repita. (2002, p.59-
60)
Essa longa citação serve para ilustrar o diálogo entre os três tempos em Ana
Maria, entrelaçados pela imaginação, que rejeita um encadeamento presidido por uma lógica
causal. Ela apresenta uma história imaginária como se fosse real, constituída por uma
pluralidade de personagens, cujos episódios de vida se entrelaçam num tempo e num espaço
determinados pela própria narrativa. A combinação é o elemento intratextual da seleção que,
segundo Iser, “abrange tanto a combinalidade do significado verbal, o mundo introduzido no
96
texto, quanto os esquemas responsáveis pela organização dos personagens e suas ações”
(1999, 118-19).
É importante salientar que em Do outro mundo o leitor depara com indícios de
acontecimentos históricos. Ora o enredo se volta para o ambiente característico do século
XIX, como, por exemplo, nas passagens: “Aquilo era um horror, impossível imaginar algo
mais terrível, se comparasse com aquelas atrocidades dos campos de concentração na
Segunda Guerra Mundial...”(p. 76),“...uma tal princesa tinha assinado uma lei e ninguém mais
podia ter escravo [...] a Princesa Isabel...A Lei Áurea..”p.(85-6), “... ela não fazia a menor
idéia do tempo que passara e da tarefa impossível que estava nos pedindo. O fim da
escravidão tinha sido em 1888.” (p.91). Ora é visitado o cotidiano citadino do século XXI: “...
eles não podiam usar o computador e ficar navegando na rede...” (p.56), “- Ainda outro dia
tinha uma notícia sobre um navio que andava pela costa do Benin com carregamento de
crianças, vendidas para trabalhar em plantações de cacau...(p.101)”. Num e noutro caso,
embora possível a identificação de fatos históricos, trata-se de uma obra de ficção. Não se
pode confundir a realidade com aquilo que é contado, ela se (re)escreve e se (re)constrói pelas
possibilidades da invenção; se uma permuta entre o real e o imaginário, muito mais
espaço para a fantasia. Iser afirma que "o fictício não é idêntico à obra literária, mas a
possibilita" (1996, p. 209).
A novela Do outro mundo é uma narrativa curta, assim como a maioria dos contos
destinados ao público infantil. Nele, Ana Maria cria Mariano, um narrador pré-adolescente,
que cumula a função de protagonista do enredo. Dentro desta história, nasce uma segunda
história protagonizada por Rosário, que relata a sua história de vida ou de morte a Mariano.
Mariano é compelido por Rosário a escrever a sua história para que não seja esquecida: "...
Ele é que ficou escravo da promessa. [...] Já tinha muito com o que me preocupar, com o peso
daquela obrigação de escrever um livro. Lembrar a história da Rosário e botar tudo no papel,
preto no branco, como ela tinha pedido”(p.102). Ao longo da narrativa principal, uma
metaficção, vários elementos sobre criação literária entram em cena: discussão sobre como
escrever ficção, a árdua tarefa do autor ao se comprometer a contar a história, a escolha do
gênero textual que melhor conta de apresentar suas intenções, como proceder quanto aos
aspectos textuais e extratextuais (editoração do livro). A reconstrução temporal permite
perseguir algumas mudanças no crescimento das personagens e na mentalidade das pessoas
do século XIX, época em que ocorreu a história secundária (história de Rosário), e do século
XXI (história de Mariano), momento presente do qual a memória é ativada. Embora a autora
não se detenha nos fatos históricos, tampouco deles recupere detalhes, ela pinça determinados
97
acontecimentos, datas e ambientes que são fundamentais à narrativa; o ambiente é favorecido
pelos objetos que remontam ao século XIX. A ambientação rústica e o clima rural reforçados
com referências ao modo de vida do lugar, nas duas épocas em que a novela se divide
(passado e presente), compõem as cenas e determinam os espaços, mas também anunciam o
futuro.
O espaço em que a história ficcional acontece está estreitamente ligado ao tempo
da narrativa, entendido como o tempo da escrita e o tempo permitido pela escrita que aparece
no romance por meio da memória das personagens que se movimentam na narrativa. Até certa
altura, o lugar onde a história acontece é por todos denominado “barracão”, uma estrutura de
adobe em ruínas. Posteriormente, quando é iniciada a reforma, passa a ser chamado de
“anexo” da pousada. Penso que essa mudança de nome se refere às funções que o espaço
demanda na narrativa; no primeiro caso, segunda história, o Império, regime escravocrata,
grande latifúndio, exploração do homem pelo homem, sintetizado na senzala- hoje em ruínas,
como se se referisse à escravidão se desconstruindo, embora não eliminada totalmente, assim
como o barracão que a simboliza; no segundo, a República, regime democrata, pequenas
propriedades, autossustentação rural, o futuro destinado à edificação, sintetizado na palavra
anexo, um novo tempo, uma vida nova para o local, como fênix, ressurgindo das cinzas. Este
fragmento do texto ilustra o que foi dito: “De qualquer modo, esse barracão ficou para trás.
Num instante não se falava mais nele, nem ninguém mais lembrava de como tinha sido.
Porque logo a Vera passou a chamá-lo de ‘anexo’ da pousada”. (p.23) É possível inferir do
fragmento que a escravidão também caiu no esquecimento, como se nunca tivesse existido e,
assim como a pousada, que guarda em suas paredes os gemidos daqueles que padeceram, a
humanidade guarda adormecida na memória coletiva aqueles anos de exploração e cativeiro.
O espaço da narrativa também pode ser sintetizado no vocábulo “Mata livre”, espaço
definidor dos tempos passado, presente e futuro anunciado. Exemplifico: “Mata livre, que era
como ele gostava de chamar o mato que ficava entre a senzala e o rio...” (p.83), século XIX;
“- Taí, boa idéia. Como Freewood, que quer dizer mata livre em inglês. É a marca do meu
castiçal [...] Pousada da Mata Livre... tem uma matinha que a gente quer preservar. [...] E
muita liberdade que a gente também quer preservar.”(p.117), século XXI; “Se algum dia você
viajar por Cachoeirinha, venha visitar. Pousada da Mata Livre. Pequenina, mas linda. Agora
sem nenhum fantasma.” (p.117), o devir, indeterminado.(Grifos meus)
É a memória, com seus volteios e desvios característicos, que orienta o desenrolar
da história, presente e passado acontecem a um só e mesmo tempo, o que nos permite transitar
entre os limites permeáveis do ficcional e da história convencional. Embora a novela
98
apresente uma estrutura em mise en abyme
46
, aparentemente confusa, o tempo pode ser
recuperado indiretamente pelo leitor, como num quebra-cabeça, juntando-se as marcações
temporais espalhadas ao longo do texto. Essa forma metanarrativa atrai ainda mais o leitor
para o jogo da criação. Todas as marcas temporais estão ligadas a um tempo mítico
47
, que se
movimenta no passado próximo (ontem) ou longínquo (fim da escravidão) e futuro como
possibilidade de transformação. O presente, ponto de referência das demais temporalidades, é
um tempo vital para a narrativa, pois vai se construindo como
desafio
,
um tempo aberto para o
novo.
Tais marcas temporais, típicas de uma narrativa guiada por idas e vindas na
memória, não deixam dúvidas quanto às épocas em que ocorreram as ações e podem ser
recuperadas através das flexões verbais, advérbios, estruturas e/ou semântica das frases. Para
ilustrar, cito: “Pode parar de falar difícil votambém, Mariano, e confessar logo que passou
a semana inteira lendo história de fantasma.(p.58)- passado próximo; “... o tipo de claridade
que esta vela nos dá devia ser muito parecido com a que havia por aqui nas noites da senzala,
no tempo da escravidão [...] estamos também fazendo uma ponte com o ambiente do tempo
em que Rosário viveu.” (p.66)- passado longínquo; “Só que tudo isso era história muito velha.
De antes da gente nascer. Ou de nossos pais e avós.” (p.22)- tempo pretérito indefinido como
nas narrativas orais; “Ficamos curiosos. Que perigo seria aquele? Fizemos uma porção de
perguntas.” (p.73)- presente; “Foi quase um mês depois.” (p.35), “Levantamos tardíssimo no
dia seguinte [...] quando o sol já estava nascendo.”(p.79) - futuro ; “... A Iaiá é a dona da casa.
A dona boa. Filha do sinhô. Ele é que é mau. E a sinhá, que é a mãe dela ...”(p.49)- vocábulos
de época (Grifos meus). Até mesmo as personagens demonstram preocupação com o tempo
relacionado à escrita, uma visível demonstração de apreço à linguagem que perpassa por toda
a obra da autora:“...Rosário deve ser uma escrava acrescentou Terê [...]-Deve ou devia?/-Dá
no mesmo./-Não, não dá, não. Se deve, é porque ela está viva e ainda existe escravidão. Se
46
Como no segundo capítulo dediquei uma nota para o conceito mise en abyme, nesta nota considero pertinente
informar, mesmo que sinteticamente, o seu aparecimento no contexto da obra do escritor e ensaísta francês
André Gide, que utilizou dessa estrutura para colocar em xeque o próprio conceito de Ficção e de Real. Em Os
moedeiros falsos(1925), é por meio do diário de Édouard (escritor que planeja escrever um romance chamado Os
moedeiros falsos) que o leitor é tragado pela estrutura abismal, segundo Gide - uma obra dentro da obra, onde os
limites entre o ficcional e o real se atenuam e m à tona a metalinguagem e a reflexão sobre as possibilidades e
os limites de um romance mise en abyme. (FIORI, 1998)
47
Jung refere-se a um tempo mítico, ligado à maneira de pensar dos gregos, que se referiam ao tempo, chronos e
kairós, como demarcadores do discurso. O primeiro, o tempo cronológico, é uma sequência de instantes
homogêneos, que se sucedem ininterruptamente; o segundo, kairótico, não é um tempo homogêneo, é des-
continuidade, marcado pela diferença e pela ruptura. Este tempo corta a sucessão temporal, marcando uma
significativa diferença entre o que vem antes e o que vem depois. Aqueles que vivenciam o tempo kairótico não
podem determinar antecipadamente o tempo certo para então agir, aguardam um futuro desconhecido e se
preparam para responder; a resposta é vital, que neste tempo o presente não está predeterminado e plenamente
formado; antes, o presente é oportunidade e desafio: é um tempo aberto para o novo. (JUNG, 2002. p.35).
99
devia, é porque ela viveu muito tempo, e é um fantasma insistiu Léo, com sua lógica
implacável. – Nesse caso, a Terê não tem como fugir do fato” (p.64)(Grifos da autora).
Assim como muitos escritores que a precederam, Ana Maria faz uso do recurso da
construção abismal para se referir a uma visão em profundidade sugerida pelas matrioskas
48
,
promovendo o deslizamento do conceito para o campo dos estudos literários. Essa forma de
composição possibilita a captação simultânea dos elementos que entram em atividade na
narração, sua inter-relação e o modo de seu funcionamento. Os jogos desse tipo de narrativa
permitem alternar os momentos de realidade da vida com os da realidade da obra de arte: uma
recriação da experiência da vida real imiscuída na experiência criativa e estética. É necessário
divisar neste momento que o reflexo do fragmento incluído no relato de Rosário e/ou na
narrativa de Dona Carlota não possui o mesmo grau de analogia com a obra que o inclui,
aquela narrada por Mariano, variou de acordo com a interação que Ana desejou estabelecer
entre os níveis da narrativa, dando às três narrativas a coerência exigida pela estrutura da
novela e seu enredo. Histórias imbricadas dentro da história principal. Este tipo de estrutura
corresponde àquela dos Contos de mil e uma noites, em que uma segunda história contida na
primeira deve emoldurar uma outra. Relembro aqui Dom Quixote, cuja riqueza está, entre
outras coisas, na construção de um universo em que ficção e realidade não estão muito bem
demarcados: o jogo constante entre os narradores, os manuscritos com versões diferentes
sobre a história narrada, os relatos paralelos e as discussões de crítica e teoria intercalados.
Essa espécie de autoconsciência ficcional ou narrativa é uma das formas da mise en abyme,
em literatura, e se dá, como no exemplo de Dom Quixote, quando a ficção se volta e pensa
sobre si mesma; resguardadas as devidas proporções, como foi dito, estrutura semelhante é
adotada por Ana Maria nesta novela.
Essa construção constitui um processo de desdobramento, de modo que a
expansão decorrente da inserção resulta num certo afunilamento, numa interiorização cada
vez maior do processo, uma estrutura da trama dentro da trama, de tal sorte que a história Do
outro mundo, que se passa desde os planos de transformar a antiga fazenda de café em
48
Matrioska ou boneca russa é um brinquedo tradicional da Rússia, constituído por uma série de bonecas ocas
de madeira inseridas uma dentro da outra, geralmente em número de sete. Minha mãe repetia esta história,
infinitas vezes, antes de eu dormir: um senhor que esculpia e vendia bonecas de madeira, uma vez fez uma
boneca tão bonita que não quis vendê-la, levou-a para casa e a colocou sobre um móvel e deu a ela o nome de
Matrioska. Todas as noites, antes de dormir, perguntava para a bonequinha se estava feliz. Até que em certa
noite, ela pediu um bebê. O senhor, compadecido da bonequinha, esculpiu uma boneca menor, serrou a
Matrioska e colocou o bebê dentro dela. Mas logo na noite seguinte, a outra também pediu um bebê. E lá se foi o
senhor fazer outra bonequinha para colocar dentro da segunda. Assim foi nos sete dias seguintes. A cada noite a
boneca recém-feita pedia um bebê. O artesão, prevendo que isso não teria mais fim, fez um bebê e desenhou um
bigode nele, garantindo assim que, sendo homem, não pediria bebê algum.
100
pousada até a sua instalação, é moldura da história secundária, estabelecendo, assim, o
argumento para as ações posteriores: o contato com o espectro de Rosário e consequente
narrativa de sua história de vida, ou de morte, melhor dizendo, a trama emoldurada. Num
outro plano, Mariano empresta a voz para Dona Carlota, avó de Léo e Elisa, que passa a
narrar, num tom de “Era uma vez....”, a história da Iaiá. Aos poucos, a avó vai contando a
história do sítio e da família, que se revela coincidente com a história de Rosário, mas numa
outra perspectiva narrativa. Essa técnica denuncia uma dimensão reflexiva do discurso, uma
consciência estética ativa, que evidencia a ficção pela redundância textual que reforça a
coerência e a previsibilidade ficcionais, o que se torna providencial no caso da literatura
infanto-juvenil e prática recorrente na obra de Ana.
Na história principal, o ser humano é movido por duas necessidades relacionadas
ao passado e ao presente. A primeira, a de preservar as lembranças da origem (lugar da
infância); e a segunda, a de conseguir encontrar uma sustentabilidade para o local de memória
de onde essas lembranças são ativadas:
A tristeza de Vera ao pensar em vender a terra onde nascera. [...] Mas ao
mesmo tempo, a insatisfação de Vera com seu emprego, com a vida que
estava levando [...] De noite a minha mãe chegou em casa e comentou com
meu pai [...].[Vera] falou que estava com vontade de ver se conseguia dar
algum aproveitamento econômico para o sítio, porque não queria vender o
lugar onde nasceu, onde a mãe e o avô tinham nascido [...] que talvez eles
pudessem abrir um hotel-fazenda, ou pelo menos uma pousada. (p.16-8)
Na história secundária as necessidades também se ligam ao passado e ao
presente. A primeira, saber notícias do irmão desaparecido e a segunda, dar conhecimento,
“registrar” os acontecimentos passados que resultaram na morte de muitos escravos, história
imbricada com a que Dona Carlota conta sobre o sítio e a sua família, que remonta ao tempo
do Império. As histórias se costuram pelo tempo num contínuo movimento entre o passado, o
presente e o futuro, este último à mercê de uma imaginação criativa. Ao recorrer à
metalinguagem, o código desnuda-se e possibilita a reflexão sobre o provisório da
significação e, consequentemente, a sua incessante procura, uma vez que se encontra
multifacetado na polissemia, o que configura a incompletude de todo texto literário. Essa
estrutura acaba permitindo que os próprios leitores, percebendo com mais nitidez a natureza
101
do ficcional no jogo de relações entre as personagens da obra central e as das narrativas
secundárias, gozem, de forma mais consciente, de tal experiência estética.
O conhecimento é uma necessidade humana e se faz paulatinamente, deixando as
marcas de sua aquisição pelo caminho que percorre. Na história de Rosário, a mudança é
inerente ao sentido da vida e se processou de forma dolorosa. - Parecia que não ia acabar
nunca. Mas, então, de repente, acabou concluiu ela. Eu morri”. (p.90) Na história de
Mariano, a transformação por que passou também foi dolorosa, pois o percurso para a
constituição do sujeito escritor passou, necessariamente, pela superação da dificuldade com a
escrita e pela aprendizagem em variadas fontes: “... estou aqui escrevendo ou tentando
escrever...”(p.11); “Só sei que vai ser muito difícil. Eu não gosto muito de ler, não costumo
escrever...” (p.99); à conquista no final: “... elogiaram meu jeito de escrever, quiseram saber
de onde eu tirei aquelas idéias, riram quando eu disse que foi da memória.” (p.116) Em ambas
as histórias a necessidade humana se confunde com a vida e a escrita, dois elementos
imprescindíveis e indissociáveis para Ana Maria.
Com relação à caracterização das personagens, trata-se de crianças espertas,
inteligentes, meninos questionadores, “donos do próprio nariz”, muito imaginativos e capazes
de grandes realizações. Eles passam por um processo de transformação que se no âmbito
coletivo, comum às obras contemporâneas, com exceção de Mariano, que passou por uma
metamorfose à semelhança das borboletas. A composição das personagens é feita segundo a
função que desempenham na narrativa ou conforme necessidade do enredo; é possível colher
ao longo do texto elementos para essas caracterizações: “Meu nome é Mariano. Eu sou um
cara normal [...] agora estou usando óculos. [...] ainda não tinha descoberto que era um pouco
míope. A Elisa até acha que era por isso que eu não tinha paciência de ler [...] a Elisa, uma
garota esperta e legal...” (p.12-3. Grifos meus) Destaquei no fragmento algumas informações
que provavelmente justificam, mediante explicação da amiga “esperta”, a dificuldade e o
afastamento do protagonista da prática da leitura. Nessa mesma linha, outras personagens são
caracterizadas pelas ações ou informações que são requeridas pelo enredo: “Minha mãe
explicou que a amiga [Vera] ia se matricular num curso de hotelaria do Sebrae [...] E estava
disposta a investir no negócio usar o dinheiro do Fundo de Garantia quando saísse da
Cooperativa...”(p.19). O emprego de expressões como: “matricular num curso” e “investir no
negócio” configuram ações que viabilizaram a realização do empreendimento: “transformar a
antiga fazenda em pousada”, atividade hoteleira que compõe o ambiente espaço-temporal em
que o enredo se desenrola, conferindo coesão interna à narrativa.
102
Toda a história gira em torno do contraste claro/escuro, preto e branco: estrutura,
enredo, personagens e alguns elementos da história. Para ilustrar, cito os títulos dos capítulos:
“Café com leite”; “Peças pretas, pintas brancas”; “Feijão com arroz”; “Preto no branco”. As
personagens compõem dois grupos: brancos de origem italiana e negros de origem africana,
resultando no mulato miscigenado brasileiro. Objetos como as peças de domi(preto com
bolinhas brancas) e o livro com letras pretas sobre páginas brancas de papel; o galo carijó com
penas riscadinhas de preto e branco. Ao incumbir Mariano da missão de escrever, Rosário
disse: “Agora não se esqueça. Agora você é escravo de sua promessa. Preto no branco” (p.93).
A ambiguidade da expressão “preto no branco” leva a duas possibilidades interpretativas.
Uma para o sentido mais próximo do sentido literal: promessa, compromisso, contrato
firmado e assinado (tinta preta no papel branco); o outro, em que o vocábulo “preto” aparece
como elemento simbólico da etnia negra (dominado, escravizado), e o “branco” outra etnia
(dominador, explorador), como se coubesse ao branco a responsabilidade de incorporar a
experiência do oposto e dar a ela visibilidade. Do capítulo seguinte, que leva o nome:
“Escravo, escrevo”, é possível depreender que as posições entre dominado e dominador se
inverteram, o branco se tornou escravo do negro em razão da promessa feita, mas se trata de
uma escravidão diferente. A primeira se no limite da mão de obra forçada, relação de
exploração involuntária do corpo, posse e domínio. A escravidão de Mariano ocorre via
intelecto, uma servidão consentida, compromisso feito, promessa a ser cumprida.
A energia que envolve o prazer da leitura não fica restrita à estrutura, concentrada
na dinâmica do enredo, no movimento das peripécias das personagens, na ação em si, mas
impregna a própria expressão criadora, que costura todos os demais componentes estilísticos e
estruturais da narrativa, conferindo-lhes, inclusive, um estilo. Reflito sobre alguns elementos
da linguagem que caracterizam o modo peculiar de Ana se expressar e sua preocupação
evidente com a língua, nas palavras da autora: “Sem essa obediência a uma estrutura de
sustentação, o edifício do idioma não fica em e ninguém se entende.” (MACHADO, 2004,
p. 82). Ana Maria Machado volta ao passado e resgata da infância lendas, ritos, mitos,
provérbios e chistes da tradição oral, elementos que recria e transforma para a sua produção,
como, por exemplo, os aforismos. Para ilustrar: “- Devagar com o andor, que o santo é de
barro”(p.20). A eles se somam experimentações linguísticas, evidenciadas quer seja no jogo
com as palavras, quer na permuta das sílabas formando neologismo: “escravo, escrevo”(p.95).
Ela busca sempre se desvincular dos estereótipos criados para a literatura infantil-juvenil,
quais sejam textos demasiadamente curtos; de construções frásicas muito simples; de
vocabulário comum, do emprego de diminutivos e de aliterações forçadas; da opção por
103
personagens superficiais demais e/ou pretensamente engraçados, que trazem sempre uma
lição de moral, à maneira das fábulas; escolha de temática que atenda a necessidades
pedagógicas; abordagem previsível e uso de ilustrações redundantes que, na maioria dos
casos, dispensam a leitura do texto. Sobre a preocupação com a língua nos textos de Ana
Maria, a pesquisadora Anna Cláudia escreveu:
Ana Maria faz uma excelente mediação entre a literatura e a sociedade por
meio da forma, da linguagem e das personagens. um grande jogo de
atuação das personagens, como se elas jogassem um jogo do tempo, sendo
capazes de ir e vir e renovar a vida. É curioso, pois a linguagem, que de certa
forma é o limite, acaba sendo desmontada e ganhando novas formas. Ana
ensina um jeito novo de olhar para as palavras por esse desmonte do sentido
convencional das palavras, num jogo com a linguagem, e faz a LIJ alcançar a
maioridade. (2006, p. 194-5)
Desde as primeiras produções, que fizeram de Ana uma escritora de sucesso, é
possível reconhecer vestígios da filiação de pensamentos de filósofos, intelectuais e artistas
que formaram a sua identidade autoral, num jogo entre as leituras escolhidas e a escrita
assimiladora que fomentaram a sua veia literária, marcadas pela intertextualidade. Em Do
outro mundo, assim como em outros livros destinados ao público mais jovem, a
intertextualidade aparece quando se conta uma história dentro da história e se faz menção a
personagens de outras histórias, a exemplo das personagens Peter Pan, do escritor James
Matthew Barrie, e Huckleberry Finn, de Mark Twain. A utilização desse recurso, mais que
demonstrar erudição, é uma tentativa de despertar no leitor o desejo de conhecer a obra
referida, numa evidente demonstração de defesa da leitura. A autora justifica o emprego da
intertextualidade da seguinte forma: “uma das técnicas que um autor pode utilizar para
demorar-se ou diminuir a velocidade é a que permite ao leitor dar passeios referenciais
...”(MACHADO, 2004.p 43). O leitor é levado, constantemente, a inúmeros referentes
extratextuais, mas é da tradição literária de Monteiro Lobato e Mark Twain que a autora é
tributária.
Ana Maria revela o caráter intertextual de seus escritos e contribui para consolidar
um dos mais importantes traços que a moderna literatura infantil e juvenil brasileira assume.
São poucas as vezes em que os textos de projeto literário tão claramente engajado encontram
tempo para as sutilezas da linguagem. Mas, Ana Maria aprendeu, com Lobato, que linguagem
de se falar com a criança exige os mesmos cuidados que a linguagem com que se fala aos
104
adultos. Se, por um lado, constantes pausas na narração para trazer à cena, via discurso
indireto, a linguagem da própria narração, por outro, essas pausas são inesperadas dado à
carga de urgência que seus textos costumam assumir pelo emprego do discurso direto, que
acentua a oralidade: Com a minha avó Galdina aconteceu a mesma coisa... contou
Rosário. Fizeram uma lei que proibia velho de ser cativo.”(p.71) Ana intercala os discursos
direto e o indireto em Do outro mundo. Quando a autora emprega o discurso indireto,
maior autonomia ao narrador, que vai aos poucos demonstrando a sua forma de narrar, o seu
estilo:
Devagarzinho, Rosário veio entrando. Deslizava, como se os pés descalços
patinassem no chão. Mas não atravessou paredes nem surgiu do nada. Entrou
pela porta. Como qualquer pessoa normal. Nem mesmo estava transparente.
A única coisa que mostrava que não era tão normal assim, uma coisinha só,
pouca coisa, coisa de nada mesmo, era que Rosário não tinha sombra.
Lembro que reparei bem, e fiquei dizendo a mim mesmo que não precisava
arrepiar, isso não tinha a menor importância [...]A luz da vela projetava as
silhuetas de nós quatro. Mas passava através da menina. Enfim, o que se
podia fazer? Ninguém é perfeito... (p.67.Grifos meus)
Ao empregar o discurso direto, Ana põe o leitor em contato com o universo
narrativo, e a reprodução hipotética de diálogos permite a quem imaginar como é a voz das
personagens ou, ainda, como é a voz do narrador, reproduzindo a fala das personagens, o que
é muito atraente para o leitor. Como ele imaginaria a voz de Rosário? Esse discurso
possibilita também maior integração entre protagonista e as demais personagens, sem que o
protagonista interfira nos pensamentos delas ou em suas ações.Tendo em vista maior riqueza
expressiva, Ana constrói parágrafos com discursos híbridos, mesclando o indireto livre
49
,
com o direto puro e/ou o indireto. Esta conciliação entre os discursos permite uma narrativa
mais fluente de ritmo, e tom mais artisticamente elaborado. A combinação entre os discursos
no indireto livre favorece, no plano formal, absoluta liberdade sintática e adesão à vida das
personagens. Contudo, essa liberdade gramatical pode levar ao leitor confusão quanto à voz
49
Forma de expressão que, em vez de apresentar o personagem em sua voz própria (discurso direto), ou de
informar objetivamente o leitor sobre o que ele teria dito (discurso indireto), mescla os discursos e, ao fazê-lo,
aproxima narrador e personagem, dando-nos a impressão de que passam a falar em uníssono. CUNHA, Celso.
Gramática da Língua Portuguesa. Disponível em:
<
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=redacao/teoria/docs/discursos>
Acesso em: 25/05/2010.
105
que se pronuncia, se do narrador ou do protagonista. Assim, o contexto passa a ter grande
importância para amenizar a ambiguidade causada, tamanha é, em alguns casos, a sutileza
entre as vozes do narrador e da personagem nesse tipo de discurso. Maria Teresa Gonçalves
Pereira, acerca da linguagem na obra de Ana Maria, assim se expressa:
No âmbito da linguagem, a escritora atua nos planos fônico, morfossintático
e léxico-semântico, lançando mão dos recursos possíveis que a língua coloca
a seu dispor, trabalhando a palavra como artesã experiente, enriquecendo o
discurso e oxigenando o código utilizado. Nada mais oportuno, então, para
se travar contato com a língua do que um texto pleno de possibilidades em
que se verifica o domínio de estruturas do próprio idioma, deflagrando a
expressividade que encanta, pela sutileza, leitores de todas as idades, sem
perder de vista a simplicidade, a clareza e a objetividade, fatores
indispensáveis à compreensão imediata, sem quaisquer firulas lingüísticas.
(2004, p. 141)
A novela Do outro mundo, muito mais do que uma reflexão temática sobre a
escravidão, constitui uma imagem do processo de evolução intelectual da autora através das
reflexões e questionamentos das personagens sobre o ato de escrever e sobre a própria
linguagem. É como se a realidade do texto ficcional surgisse de um espaço dentro do mundo
exterior, como um jogo que se diferencia do princípio de realidade referencial. Com esta
novela, mais uma vez, Ana comprova sua preocupação com a linguagem e com a criança, ela
foge dos estereótipos criados para a literatura infanto-juvenil e não poupa o leitor da
experiência da crueldade quando ela julga que essa experiência é necessária para elaboração
da narrativa:
... os escravos, trancados no escuro dentro da senzala, ouviram a ordem:/-
Pode jogar o óleo!/ Em seguida sentiram o cheiro. E logo sentiram o calor,
viram o clarão do fogo, ouviram os estalos das chamas que se espalhavam
rapidamente, subiam pelo telhado de palha, despencavam em cima deles [...]
Queimar todo mundo vivo. Para que, pelo menos, a liberdade não fosse uma
festa e ele não tivesse que encarar os olhares dos pretos livres. [...] Com o
olhar perdido no vazio, as lágrimas escorrendo pelo meio do soluço, o
espírito da menina [Rosário]só contava as sensações. O calorão, a correria, o
atropelo, os gritos, a dor. [...] - Parecia que não ia acabar nunca. Mas então,
de repente, acabou conclui ela. - Eu morri./Ficamos em silêncio. Ninguém
conseguia se mexer nem dizer nada. Como deve ter ficado a senzala no final,
fumegando, com um monte de corpos carbonizados, irreconhecíveis.
(p.71-3)
106
No fragmento citado, é perceptível o uso de inúmeros recursos estilísticos, a
exemplo da sinestesia, que aparece em quase todo o fragmento, e de imagem poética como
em: “Com o olhar perdido no vazio, as lágrimas escorrendo pelo meio do soluço, o espírito da
menina contava as sensações”(p.71); e outros momentos extremamente cruéis, como o
parágrafo final da citação; o emprego do assíndeto, que nos traz uma sensação de angústia e
de ansiedade, como se estivéssemos na senzala, acuados pelo fogo. Esta função estética da
linguagem encontra-se espalhada por todo o texto: “... para falar alguma coisa e ver se
quebrava aquela sensação de um pouquinho de medo que fica com a gente depois de um
susto.”(p.39),“Parada junto à porta, com uma roupa comprida branca e um lenço ou turbante
claro na cabeça, pretinha e descalça como se tivesse saído de uma das gravuras de Debret,
estava uma menina mais ou menos da nossa idade.” (p.42), ou em “E entendi do que se
tratava. Dor entranhada nas paredes da senzala, transpirando em lágrimas que escorriam pela
alma, como se gritasse para que aquela memória não se perdesse e nada daquilo jamais
pudesse voltar a se repetir.” Ou ainda a prosopopeia “línguas de fogo comendo tudo que
encontravam pelo caminho”(p.90. Grifos meus). Num estilo pessoal e criativo, Ana Maria
ousa aliar, na sua literatura, a racionalidade de uma linguagem acadêmica a uma linguagem
acessível trazida da oralidade, seja para destacar uma ideia, seja para transmitir uma emoção,
construindo uma ponte com seus leitores e um diálogo mais íntimo consigo mesma. Nas
palavras da autora: “Com grande tranquilidade a esta altura da minha experiência, vou
driblando os pronomes oblíquos de terceira pessoa sem cair na armadilha do solecismo.”
(2004, p.84). Assim, consegue conciliar o que, em princípio, parece se opor: o emprego de
uma linguagem comunicativa que se nega ao hermetismo e o apelo a imagens poéticas que
buscam o prazer estético.
Através da memória e da imaginação, a autora consegue articular experiências
vividas e imaginadas e assim aproxima sua vivência de adulto do universo de expectativas da
criança e do jovem. Tal facilidade explica-se pela artista criativa que guarda em si a criança
de outrora e que se revela no texto que escreve. Ao se distanciar do acontecimento em busca
da criação, o texto de Ana provoca um estranhamento entre o que é (re)criado, ficção,
portanto, e o mundo empírico. Na narrativa, o narrador nunca é o escritor, mas um papel por
ele inventado, é uma abstração, personagem de ficção sob cuja máscara o autor realiza suas
fantasias; noutras palavras, o escritor pertence ao mundo real, enquanto o narrador pertence ao
imaginário.
Ana afirma que muito do que escreve é “verdade”. O que significa ser “verdade”?
Ana colhe do seu cotidiano e das leituras que fez elementos para a sua criação, combinando-
107
os no texto de variadas formas estruturais. Conforme Iser (1996), a combinação é um ato de
fingir porque também essa combinação possui a caracterização básica, qual seja a
transgressão de limites. Ao dar uma aparência de “verdade” ao que escreve, Ana concretiza o
imaginário, assim os limites traçados pelo fictício no texto ficcional são rompidos, a fim de
assegurar a necessária concretude ao imaginário, com a qual ele se torna eficaz, é assim que
se produz nos destinatários a necessidade de controlar a experiência de acontecimento do
imaginário. É do fingir que emerge um imaginário da autora que se relaciona com a realidade
do texto.
É infrutífero discutir se o que se diz na obra literária é verdadeiro ou falso, o mais
razoável é entender que as afirmações ficcionais são verdadeiras dentro da própria estrutura
da obra ficcional; o que o narrador diz ser verdade, é inquestionável, não o que duvidar:
“...quando um fantasma diz uma coisa dessas, a gente tem que acreditar...”(p.81). Umberto
Eco ilumina o assunto: “A obra de ficção nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de uma
forma ou de outra, nos faz levá-la a sério.”(1994,p.86) É a estrutura, teia anterior ao texto e
não explícita na história, que possibilita a lógica narrativa e que um aval de
verossimilhança à ficção; ela é necessária para que tudo ganhe corpo. Iser (1996)
complementa essas ideias ao afirmar que os elementos que existem na vida real também
permeiam a literatura. Nela, entretanto, a articulação desses elementos é organizada, mesmo
não podendo ser totalmente fundamentada, um elemento serve de contexto para o outro. O
fictício é a vertente intencional do autor, esta vertente se torna contexto para o imaginário,
vertente espontânea. Estabelece-se, assim, o jogo, um espaço de troca e de expectativas. No
caso da novela Do outro mundo, o jogo provoca suspense e mobiliza o imaginário da criança
e/ou do jovem, levando-os a interagir com o texto através de sua imaginação. Esta situação
leva o leitor a embarcar no imaginário de Mariano, criação do imaginário de Ana Maria; em
ambos a realização de desejos pessoais se mediante a fantasia de ser outro; no caso do
leitor de carne e osso, ainda a possibilidade da viagem na sua própria imaginação aguçada
pelas aventuras do protagonista. E não é com esse jogo que o leitor se encanta?Ana Maria
seleciona fatos, personagens, lugares e combina todos estes elementos, constituindo ações,
transgressões intratextuais, rompe com os limites do próprio texto, permitindo que o leitor
crie, a partir destas situações, muitas outras que caracterizam o seu imaginário.
Falamos até agora sobre uma consciência subjetiva da autora, que, no processo de
criação literária, ativa intencionalmente o imaginário. Em várias passagens da novela, também
Mariano aciona o imaginário dele. Parece que o narrador, à semelhança do que ocorre com os
autores de modo geral, também se dissimula na segunda história, finge que finge tratar-se de
108
um outro narrador, conferindo, desta forma, maior verossimilhança à narrativa: “Rosário fez
uma pequena pausa, olhando por cima de nós como se não nos enxergasse. Suspirou. Talvez
quisesse lembrar melhor, ou estivesse procurando as palavras mais exatas para contar o que
lembrava agora que também estou me metendo a escrever, sei como isso pode ser difícil...”
(p.84) Podemos reconhecer também a possibilidade de teorização sobre a escrita, a partir da
dificuldade do narrador para discernir entre o que lhe foi relatado, o que ele inventou e o que a
sua memória, por ser lacunar, foi incapaz de registrar. Assim como Ana Maria, Mariano retira
sua matéria do que viveu, lembra e inventa tudo o que recria com a imaginação. E assim,
como todos aqueles que se valem da memória, também ele vacila, pois, quando se trata de
literatura, a memória é sempre suspeita: “Digamos que tenha sido assim: [...] Mas tem coisas
que eu não sei, não lembro [...] ou se isso foi coisa que imaginei, de tanto ter visto [...]
Quando eu tento lembrar do que ela disse exatamente , tenho dúvidas se falou das chamas
[...] Mas também pode ser que não...” (p.90. Grifos meus)
A dificuldade com a escrita persegue o narrador do princípio ao fim da narrativa.
No próximo recorte, Mariano afirma que, se fosse ficcionista, talvez fosse mais fácil inventar,
deixar a narrativa mais lenta, mas não sabe fingir: “Se eu estivesse mais acostumado a
escrever, talvez soubesse inventar alguma mentira, contar que ficamos dias e dias pensando
no choro na madrugada, acho que ia aumentar muito o suspense. Mas o é verdade. No fim
da semana seguinte, tínhamos esquecido o assunto.”(p.32) Dé possível depreender que,
para Mariano, o que ele narra é “verdadeiro”, posto que ele não consegue fingir. Ele
transcreve a história de Rosário e tem consciência de seus limites como autor:
Por isso nem me meto a tentar reproduzir direito as palavras de Rosário em
seguida, como tenho feito até aqui. Ou, pelo menos, procurado fazer, com a
maior fidelidade possível. Mas agora não sei se consigo. Talvez mais para o
final da história não dê mesmo, e então vou só resumir o que ela contou [...]
Mas não sei se nós dois [Mariano e Elisa] mesmo juntos vamos ter
capacidade de contar. Só sei que o início foi mais ou menos assim:... (p.82)
Em alguns momentos, a voz da autora cruza com a do protagonista/narrador,
deixando o leitor em dúvida quanto à identidade do enunciador do discurso, fundem-se autor e
narrador no corpo do texto. Volta e meia, surge uma voz que, furtivamente, encena-se na
narrativa de maneira desleal, tornando perceptível a distância entre essa voz autoral e o
discurso do narrador ou das personagens. Segundo Oscar Tacca,
109
... quando essa separação ou distância [entre narrador e personagem] é
demasiado grande e apreensível, surge, irremediavelmente, a certeza de uma
intrusão do autor, ainda que subreptícia: o discurso, excessivamente casual,
pertence falsamente ao personagem: entrevemos o autor dando-lhe corda
para que diga o que quer que ele diga. (1978, p.86)
Essa voz que se denuncia pela insistência em que aparece, torna-se parte
integrante da narrativa, parecendo por vezes impertinente: intrusão em forma de
explicação:“...a gente não gostava de ir lá, era muito escuro e gubre (gostou? Essa palavra
eu aprendi num livro que Elisa me emprestou, e pensei que nunca ia usar. Se não gostar, pode
escolher outras: soturno, ameaçador também servem)”(p.22) ou neste outro fragmento:
“Nunca pensei que podia ouvir esse verbo assim, conjugado na primeira pessoa e no passado,
sem que fosse para alguém falar no sentido figurado– morri de rir, morri de medo, de
vergonha, de susto... (p.81-2); intrusão para correção: “Trisavô, como se diz
corretamente.”(p.114); intrusão em forma de cobrança, desta feita a voz da autora se traveste
como pensamento do protagonista acerca do livro, como se o livro se dirigisse a Mariano:
“como é? olha que se não começar logo, não vai dar tempo, e o teste é na quarta-feira...” (12);
intrusão como reflexão: “Aboliram mesmo? De verdade, geral? Em todo canto? Para sempre?
[...] pessoal que estava trabalhando em algum lugar sem receber nada e sem poder sair,
devendo ao armazém do patrão...”(p.101); intrusão como opinião:“- Absurdo... Vendeu a
liberdade por um prato de feijão com arroz...”(p.86); intrusão do autor na fala da personagem,
perceptível pela discrepância entre a linguagem adulta e a juvenil; a informação lembra o
discurso de um especialista em espiritismo:
Pelo que andei [
Terê
] pesquisando, vários relatos de episódios desse
tipo, mas em geral os espíritos se manifestam de modo independente da
vontade dos vivos [...] vários relatos de episódios diversos em que os
vivos chamam a si a tarefa de se comunicar com o além e invocar os
espíritos mortos. De minha parte, quero deixar bem claro que afasto essa
hipótese completamente, não pretendo participar de cerimônias desse tipo, e
peço que vocês me respeitem. (p.56-7)
Em outra passagem mais adiante, a intrusão do autor ocorre em duas explicações
sobre nomes próprios. Na primeira, o sobrenome Silva. Terê afirma que o pai explicou a
origem: “... antigamente, quando não se sabia qual ia ser o nome de família de alguém, muitas
110
vezes se registrava a criança como “da Silva”, que era como se fosse “da selva”, “do mato”...
(p.104). E a seguir, na voz de Elisa:
- Puxa, [...] O que eu sabia era que quando os judeus foram perseguidos em
Portugal e tiveram que se converter de qualquer jeito para não serem presos,
disfarçavam os nomes para parecerem cristãos e adotavam sobrenomes em
homenagem a árvores que tivessem no quintal, ou animais que criassem ou
admirassem. Então apareceram muitos Pereira, Nogueira, Carvalho, e mais
Coelho, Carneiro, Leitão, Leão... (p.104)
Essas intrusões aparecem também no emprego de expressões próprias ao universo
acadêmico:“...nessa linha de discussão...” (p.53), “...Não deixa de ser científico. O principio
da causalidade...” (p.59), “... Então, pela sua teoria, temos mais da metade....” (p.100),
“-Podemos trabalhar com algumas hipóteses...”(p.103-4) Grifos meus. A voz autoral se
insinua sobre os ombros do narrador, raras vezes emerge no discurso direto; quando ocorre, a
saída encontrada para fugir à intrusão é recorrer a pesquisa ou a informação obtida de um
adulto. Embora essa voz permita uma leitura também como um recurso metalinguístico,
talvez necessária por se tratar de um livro destinado ao público mais jovem, como uma forma
de abertura ao texto, é também razoável, numa outra perspectiva, entendê-la como uma
intrusão do autor, que não consegue se calar e, ao imiscuir-se de forma incisiva, essa voz ecoa
como se cercasse outras possibilidades de leitura, fechando-se àquela sugerida pela voz
autoral. A autora projeta sua visão de mundo no narrador, que, por sua vez, a transfere para
alguma personagem, a qual recria essa visão de mundo, deixando no leitor a impressão de que
a personagem fala por si mesma.
Na novela Do outro mundo, a narrativa é conduzida por um narrador onipresente,
é através de seu ponto de vista que conhecemos o que se passa no texto, auxiliado pelos
pontos de vista secundários de Léo, Elisa e Terê, um grupo de crianças de classe média. O
narrador não está atrelado a um ponto de vista que o limite, coloca-se sempre onde for mais
conveniente aos objetivos da narrativa. Mariano é narrador e também o protagonista da
história, alguém que acumula o papel de sujeito da enunciação (narrador) e de sujeito do
enunciado (história), i.e., ele conta a história por ele vivida, é o personagem central dos
acontecimentos. A sua função é revelada por índices específicos, aparelho da enunciação, que
constitui todos os elementos que se relacionam com o emissor, com o discurso e com o
111
destinatário. A enunciação se manifesta no ato da escrita, exprimindo-se no tempo presente,
portanto.
Por se tratar de um narrador protagonista, ele se incorpora na primeira pessoa do
discurso, participando diretamente do enredo; embora mais crítico de si mesmo, seu campo de
visão é limitado pela própria condição de selecionador das lembranças, que são pinçadas do
passado e transportadas para o presente narrativo de forma fragmentada e, por diversas vezes,
Mariano o admite. Assim, Mariano vai construindo seus conhecimentos paulatinamente, de
maneira a incorporar as informações, para tirar delas o melhor proveito: “- Mas eu estou
contando com a ajuda de todos. Não sei se eu prestei bastante atenção para poder contar, se
não vou me atrapalhar, me confundir, se vou esquecer alguma coisa [...] Você é que vai
escrever [...] mas vai ser em nome de todo mundo.” (p.101)
A função do narrador- “entidade virtual, criada pelo autor, cujo papel é o de narrar
a história”- permite postular a existência de um destinatário na narração. Esta categoria
narrativa é o narratário
50
. Recurso bastante usado por Ana Maria, em que o seu narrador
estabelece um diálogo com um destinatário, um personagem de ficção, que não se confunde
com o leitor, trata-se de uma simulação, que mais vigor à narrativa, porque o narrador fica
estimulado a narrar. Em razão de ser escrita em primeira pessoa, a narrativa traz um tom
pessoal e subjetivo, uma vez que é a personagem mesma quem narra os acontecimentos e que
a si própria se desnuda. Sutis emoções e dúvidas, questionamentos e observações, tudo o que
faz parte da intimidade do narrador é confessado a um narratário. Esses traços aparecem desde
o início da narrativa como algo intrínseco à própria personagem, que, ao vivenciar as suas
experiências no decorrer da história, vai ganhando mais ênfase porque sofre processos de
reflexão possibilitados ora por sua reflexão, ora pelos diálogos.
Em Do outro mundo, o narrador vacila entre admitir tratar-se de um único
receptor (você), ao qual chama para confidências, e outros (vocês), aos quais conta a história,
provocando certa dúvida no leitor quanto à “identidade” desses destinatários. Assim, o
narrador, “ser de papel”, conta para outro “ser de papel”
51
, que ouve atento a história narrada.
Na estrutura narrativa da novela em análise, o discurso do narrador pode ser analisado em
dois momentos; no primeiro, o narrador no processo de enunciação narrativa; e no segundo, a
enunciação com relação ao narratário; ambos numa interlocução dentro da história, plano do
50
Narratário origina-se do termo “narrar” e significa: “entidade, singular ou plural, a quem se dirige o relato”.
(PAZ & MONIZ, 1997, p. 132). Neste trabalho os termos narratário, receptor, destinatário serão usados
indistintamente.
51
O narratário é uma entidade fictícia, um ‘ser de papel’ com existência puramente textual, dependendo
directamente de outro ‘ser de papel’” cf. Roland Barthes, (1966).
112
enunciado, mesmo que a voz do narratário não seja ouvida, que apenas insinue a sua presença
e participação no enredo através da voz de Mariano.
Na tessitura da novela se instala um destinatário, evocado, logo na primeira linha,
pela voz do narrador, que o convida à cumplicidade, e nesta função de “ouvinte atento
acompanha o narrado do princípio ao fim do texto; embora portador de uma presença não
manifesta por voz, a sua existência é inquestionável e exerce uma função importante: a de
motivar o desenrolar da narrativa. Com as palavras de Tacca: “há uma modulação da voz do
narrador [...] motivada pelo destinatário ou receptor. [...] as formas do discurso narrativo estão
em função do destinatário a quem o destinador se dirige [...] tácito ou explícito, pode
pertencer a duas categorias diferentes [...] interno ou externo.” (1978, p.143). Com efeito, o
narratário tem também a função de dinamizar ou conter a narrativa, processo dramático
interiorizado no narrador. Não existe interferência direta do narratário na história contada, o
que é a possibilidade de questionamento implícito deste com relação a Mariano. O que se
percebe constantemente é um diálogo em que apenas o narrador interage com o narratário, a
voz deste personagem não aparece no discurso, seus questionamentos são implícitos nas
respostas elaboradas ou reflexões do narrador. Desde o princípio da novela, parece haver um
contrato de leitura firmado entre o narrador e o narratário:
Você me desculpe. [...] Para começar, não sei começar. E não garanto que
vou saber acabar. Mas isso vamos ver depois [...] Na certa o melhor jeito
é assim. Como se estivesse conversando, e fosse contar alguma coisa para os
meus amigos. Mas nem sei se é para um amigo ou para uma porção de
gente. Se peço desculpas a você ou a vocês. Seja como for, peço [...] Nisso
sou muito diferente da Elisa, irmã do meu amigo Léo - tudo gente que você
vai conhecer daqui a pouco. (p.11-2.Grifos meus)
Como é possível constatar, uma voz narrativa convocatória que se faz audível
em função de um ou mais destinatários tácitos. Neste fragmento é possível perceber que o
narrador vacila entre se dirigir a um apenas ou a muitos narratários: “Mas nem sei se é para
um amigo ou para uma porção de gente. Se peço desculpas a você ou a vocês.”(11-2.
Grifos meus) Noutro momento da narrativa, a evocação é inclusiva na primeira pessoa do
discurso: “Mas isso só vamos ver depois” (p.11) Nesse momento, parece que o narrador fala a
um destinatário mais próximo a quem convida para participar do diálogo, buscando envolvê-
lo como cúmplice, parceiro, ou testemunha de sua tentativa de elaboração da escrita.
113
Mais adiante, situando o ouvinte acerca das personagens que participarão da trama
e de algumas informações que considera importantes ao relato, Mariano, novamente, se dirige
a apenas um destinatário: “... Campinho do Feijão (ele mesmo, o grande artilheiro do
Campeonato Nacional), você não sabia que o Feijão é daqui? Pois é, nascido em Cachoeirinha
do Rio das Pedras...” (p.14). Essas inflexões de voz nos sugerem uma interlocução entre o
narrador e o narratário. Nessa mesma gina, o narratário é pelo narrador convocado para vê-
lo e compará-lo ao amigo Léo: “Só [você] olhar para ver como somos diferentes...”(p.14) A
seguir, falando com esse interlocutor sobre a amiga Elisa ser uma garota legal: “ E[você] pode
ter certeza de que não estou dizendo isso porque sei que ela vai ler...”(p.14) Essas
modulações da voz do narrador nos conferem poder para identificar esse destinatário externo
a quem o discurso se dirige mesmo que ele seja tácito. O foco narrativo é entendido como a
relação entre o narrador e o narratário, este não deve ser confundido com o leitor de carne e
osso, mas com o leitor virtual, i.e., o tipo ideal
52
de leitor que o narrador, como produtor do
discurso, tem em mente.
Essa marca da presença de um ouvinte, para quem o narrador conta a história e
com quem mantém um “diálogo”, se efetiva ao longo do texto e corrobora a incerteza do
narrador quanto a ser apenas um ou mais destinatários: “Por isso nem me meto a tentar
reproduzir direito as palavras de Rosário [...] Isso que você (ou vocês, nunca sei) está lendo
vai ter passado pelas os dela.” (p.82). Mais além: “Ficamos em silêncio. Francamente, eu
tinha até esquecido disso.” (p.102) E este ouvinte atencioso é constantemente requisitado:
“Pronto, viram só? Sobrou para mim de novo. Não eu tinha que escrever porque estava
escravo de uma promessa feita a um fantasma (como não expliquei direito mas você deve
ter entendido a essa altura)”(p.115). E assim como começou contando a sua história a um
ouvinte imaginário, de papel como ele, Mariano a encerrou: “E assim ficou. Se algum dia
você viajar por essas bandas, e passar por Cachoeirinha, venha visitar. Pousada da Mata
Livre. Pequenina, mas linda. Agora sem nenhum fantasma. Garanto que você vai
gostar.”(p.117) O narratário é, assim, “o simétrico do narrador”. Ele se revela segundo as
marcas textuais, pode ser identificado em pronomes pessoais da segunda pessoa a quem o
narrador se dirige, ou pode ser visto como o leitor virtual.
52
Mas também ninguém escreve para os outros. Como ninguém escreve para o leitor de hoje ou para o leitor
do futuro. Na verdade, o escritor escreve para um leitor ideal, feito tanto de si mesmo como dos demais, e de
uma modificação de si mesmo como de uma modificação dos demais. Quer dizer, para um estranho leitor que,
muitas vezes, o autor recria em si mesmo quando relê a obra.” (TACCA, 1978, p.148).
114
Enquanto a existência do narrador é evidente através do discurso que elabora, a
presença do narratário, embora tão necessária quanto a do narrador e por ele exigida, é menos
visível. Quer esteja presente no texto de forma explícita, quer implícita, perceptível apenas
pela voz do narrador, como ocorre na novela Do outro mundo, tal como o narrador, o
narratário é sempre uma categoria narrativa. O narratário está para o leitor, assim como o
narrador está para o autor, são instâncias narrativas diferentes, mas ambas no nível do texto.
Assim, o narratário é hipotético receptor do discurso narrativo, entidade igualmente
imaginária que pode, por vezes, ser confundida com um leitor.
Essas convocações demonstram a importância do ouvinte para o relato, como se
ao narratário coubesse o papel de testemunhar, validar a narrativa: “Rosário passou os olhos
por nós quatro [...] Como se estivesse examinando, testando se podia contar aquilo. Se nós
merecíamos a confiança. Ou se nós agüentávamos a verdade” (p.81) O decorrer da narrativa
vai confirmar que, para o narrador, a presença do destinatário é um elemento instigador para a
continuidade do relato, indício de que o narratário é também uma instância importante dentro
da narrativa e que não se restringe a um mero receptor pacífico, consumidor das informações
do narrador. Penso nele como um destinatário imediato do discurso do narrador e que
interfere no texto, às vezes mais, outras menos explicitamente, mas que instiga o narrador em
sua função de narrar. O narratário adquire, então, uma função de elo entre leitor e narrador; é
um foco discursivo orientado para outro horizonte da narrativa e que vai revelar outras
características do narrador, delineando-o melhor como um “indivíduo”.
Na novela Do outro mundo, por se tratar de uma história dentro da história,
Mariano empresta a voz para Rosário; ao ser por ela substituído em algumas passagens,
como consequência uma breve mudança de perspectiva. Mariano é o narrador da história
principal e se dirige a um destinatário a quem chama você/vocês. Na história secundária,
Mariano, juntamente com seus amigos, assume a condição de destinatário interno da história
de Rosário. A mudança de destinatário, externo e tácito na primeira história, para interno e
participativo na segunda, também origem a uma mudança de perspectiva. O relato de
Mariano “adquire, assim, um eco diferente daquele que teria sem a introdução: aparece como
que justificado, ou pelo menos, isento de qualquer suspeita de exibicionismo.” (TACCA,
1983, p.44) Mariano, confidente destinatário da história, recebeu uma incumbência oral de
escrever o relato de Rosário e o transcreveu.
A autora não apresenta respostas prontas, apenas pistas que auxiliam na solução
do mistério. Mariano tem como ponto de partida a sua realidade, o seu mundo circundante e
as relações de amizade nesse ambiente conquistadas. Embora Mariano seja o escolhido para
115
escrever a história, as crianças trabalham em coparticipação, uma tendência contemporânea da
valorização de grupos. A voz narradora se mostra mais consciente da presença de um leitor
possível, num tom mais familiar e até de diálogo, numa perspectiva de interlocução, comum
em tempos de “valorização da análise do discurso e também da pragmática”. Todas as
crianças do texto vivenciam a mesma experiência marcante de conviver com um espectro e
com ele dividir angústias, preocupações e desejos, para retornarem à “realidade”,
transformadas. Mariano não esconde a sua condição de transcritor, a fuga da autoria se
justifica inclusive na coparticipação dos amigos na escrita e organização gráfica do texto; no
final, chega a afirmar que os amigos (re)estruturaram ou praticamente (re)escreveram o livro.
Nesta novela, Ana busca recuperar um tempo em que ainda não houvesse se
manifestado essa cisão entre o eu e o mundo. Nele floresce a (re)criação do passado, a
infância, tempo mágico com o qual é possível um escritor manter uma relação de intimidade.
A ambição “dos narradores” da novela Do outro mundo é, em essência, recuperar a totalidade
de sua experiência vivida, mas tanto no universo ficcional, quanto na realidade, recuperar o
pretérito comporta sempre um percentual de imaginação: as experiências de Mariano são
marcantes e são guardadas na memória para serem narradas posteriormente: “Tenho certeza
de que ouvir a menina dizendo ‘morri’, assim com essa naturalidade, me deu um calafrio
daqueles. Talvez por ter entendido de repente a intensidade daquela experiência que
estávamos vivendo, ao conversar com uma morta.” (p.81-2). De igual forma, na história
secundária, as lembranças de Rosário podem ser trazidas à tona por meio das sensações,
das correspondências de uma sensação presente análoga a outra passada, fazendo reviver as
imagens de outrora que recria e que Mariano escreve: “... Com o olhar perdido no vazio, as
lágrimas escorrendo pelo meio dos soluços, o espírito da menina contava as sensações. O
calorão, a correria, o atropelo, os gritos, a dor.” (p.88) O processo de evolução criativa da
escritora costura as narrativas numa espécie de linha espiral que, conduzida pela memória em
movimentos de ir e vir, propicia um amálgama de diferentes versões de si mesma e do mundo,
edificada no corpo da escrita.
As narrativas: principal e secundária trazem como pano de fundo as relações
humanas e o conflito delas resultante, para discutir um tema central e importante que é a
literatura e o processo de formação do ficcionista. A criação literária é perpassada pela
temática da escravidão, que pode ser tomada como rica discussão para um estudo
sociocultural, que não constitui objeto de meu interesse no momento. A história gera-se a si
mesma como a escrita, construindo um universo inesgotável e, como tal, o poder da escrita
conserva em si um aspecto inacabado, como algo que pode se travestir sob a forma de uma
116
promessa ou de uma ameaça, num desabrochar que supõe algo por vir. Como perspectiva de
vir a ser, a escrita assume-se como caminho, percurso de uma verdade, cuja essência está no
devir. “Desconheço liberdade maior e mais duradoura do que esta do leitor ceder-se à escrita
do outro, inscrevendo-se entre suas palavras e seus silêncios.” (QUEIRÓS, 1999, p.23) Assim
é que o leitor se delicia.
Uma última palavra sobre o narrador inspirada em Oscar Tacca: como um mestre
de mil e uma máscaras, o narrador esquivou-se pela narrativa, afastando-se a cada tentativa de
aproximação de análise; quanto mais dele pensei conhecer, quanto mais dados acumulava
sobre ele, que pudessem me levar à sua apreensão, maior o distanciamento e maior o número
de disfarces e máscaras sob os quais se escondia ou que eu supunha existir, minhas tentativas
beiraram a contornos fugidios. Sei de Mariano o que está nas páginas de Do outro mundo.
117
CONCLUSÃO:
DANDO LAÇADAS E ARREMATANDO OS NÓS
[a leitura] é liberdade, não liberdade que outorga o ser e o capta,
mas liberdade que acolhe, consciente, diz sim, não pode dizer senão
sim e, no espaço aberto por esse sim, deixa afirmar-se a decisão
perturbadora da obra, a afirmação de que ela é – e nada mais.
Maurice Blanchot (1955)
Aquela aquarela de digressões cotidianas estava cercada por um potencial mistério
a ser desvendado sob o olhar curioso desta leitora, em princípio estrangeira, a quem centelhas
da revelação da narrativa se mostraram, a todo instante, como possibilidade, assim fui
enredada a cada linha gestada por Ana e, aos poucos, me tornando mais íntima da narrativa,
que outrora me fora estranha.
Tal como as narrativas da autora que me serviram de guia, esta dissertação
percorreu caminhos labirínticos e profícuos em busca do necessário amadurecimento. A
intenção inicial de investigar apenas o narrador sob a perspectiva das relações entre realidade,
ficção e imaginação, focando o olhar nos recursos linguísticos/expressivos, na estrutura da
trama e na multiplicidade temporal, teve de ser revista. Ao penetrar a obra, surgiu um
destinatário, requerido pelo narrador, que não me permitiu passar indiferente à sua presença,
convidou-me a outra abordagem que o incluísse, o que me surpreendeu, mas não me
preocupou, considerando que a pesquisa em literatura se abre ao campo da possibilidade.
A narrativa de Ana Maria assemelha-se a um trabalho de patchwork
53
, pois, assim
como este se constrói com pedacinhos de retalhos que são costurados segundo um critério,
também a escrita de Ana se constrói juntando-se fragmentos das leituras realizadas, das
experiências de vida e da imaginação fértil da autora. Esses elementos são costurados por uma
estrutura que confere sentido ao texto, possibilitando uma leitura vertical da obra, que se
aprofunda em camadas como o edredom,
54
que é composto por uma parte superior, mosaicos
bordados, depois uma manta acrílica, e, finalmente, o tecido do fundo, tudo preso por uma
53
Técnica que une tecidos com uma infinidade de formatos variados, que “é muito mais que uma simples colcha
de retalhos, pois nesse tipo de cobertor, os pedacinhos de tecidos são costurados como num mosaico de pano,
mas nada é feito ao acaso”. No país de origem, as mulheres se reuniam para costurar juntas, cada uma seu
pedacinho, seguindo o plano predeterminado. (MACHADO, 2001. p. 44)
54
Edredom ou edredão: sm (francês édredon).1. palavra de origem islandesa, que significa “penugem do êider”
–[grande pato marinho nórdico, de penugem profusa, fina e macia]; 2. Cobertura acolchoada para cama, que
contém essa penugem ou outra semelhante; acolchoado. (MICHAELIS, 1998, p. 764). É uma coberta de
espessura grossa, usada nos dias mais frios, pode ser acolchoada com penas, lã, algodão, fibras em geral.
118
técnica conhecida como quilting
55
; as emendas dos retalhos seguem padrões predefinidos. A
narrativa da escritora é construída, à semelhança do que ocorre no trabalho artesanal
mencionado, de uma trama bem estruturada em que cada elemento é com critério selecionado,
nada é casual, o que garante a coerência interna do texto. A seu modo, Ana costura os
pedacinhos de sua vivência, dos livros que leu, das histórias que ouviu e monta o seu motivo,
o mosaico de sua ficção. Também a narrativa Do outro mundo é composta de camadas, uma
mais superficial em que lemos a história, cuja estrutura abismal aponta para um enredo não
linear, que o leitor resgata e (re)organiza na leitura. Depois, uma estutrura mais profunda em
que os elementos: narração, narrador, personagens, narratário e autor se imbricam de tal
maneira, que resulta num todo estrutural repleto de sentido, tudo amarrado de forma a dar
coerência interna e consequente “verdade” à ficção. Saber combinar as cores e os tons e
conseguir uma harmonia entre eles, é um grande desafio de bom gosto e criatividade para
quem faz um bom trabalho de patchwork. A língua é o elemento essencial da literatura, seu
domínio é fundamental para a construção da trama narrativa, o seu conhecimento possibilita a
escolha certa das palavras que leva ao emprego criativo e poético da língua. Ana Maria é uma
artesã de palavras, conhece-as bem, como a um filho, e com elas é capaz de gestar narrativas
que encantam leitores de todas as idades.
A literatura infanto-juvenil vem buscando atingir a sua maioridade através de
textos cujo primor estético nada deixa a dever a qualquer outro gênero literário. Ao dar voz à
criança e ao jovem e ao mesmo tempo respeitá-los como destinatários, valorização que se
pela liberdade e autonomia que confere à personagem para refletir sobre si e o mundo, Ana
Maria rompe com a assimetria adulto/criança e/ou adulto/pré-adolescente e privilegia a
estética. A criação de formas vigorosas de linguagem e, ao mesmo tempo, adequadas ao
universo infantil-juvenil faz dos textos da autora um discurso privilegiado com o qual o leitor
se identifica. Ela associa criação e liberdade, amplia nosso sentido normal de tempo e espaço,
do quotidiano e do misterioso, é pela linguagem que a autora torna as fantasias plausíveis.
Ana Maria tem plena consciência de que o texto de literatura intanto-juvenil
requer ludicidade e imaginação, mas seus textos também convidam à reflexão e à quebra de
paradigmas. Segundo minha leitura, sua obra é perpassada pela tentativa de não perder o fio
da meada, qualquer que seja o aspecto considerado: a linguagem, as informações que veicula,
os recursos estético-expressivos utilizados, a escolha de obras com as quais mantém diálogo, a
introdução do inusitado e da magia, toda escolha se processa sob o olhar atento da escritora.
55
Quilting- acolchoamento
119
Se isso é positivo ou negativo não coube neste trabalho discutir, importou discutir, sim, o jogo
literário que Ana estabelece com seus leitores e sobre o qual tem plena consciência. É a magia
no universo do cotidiano que a encanta e a ngua em suas possibilidades que a instiga. Ela
persegue o inusitado sem se perder no improviso, em seu texto nada ocorre por acaso, prefere
deixar os olhos abertos às circunstâncias de sua obra, demonstrando pleno domínio sobre sua
escrita. Consciente da natureza mutável do signo linguístico, a autora transita livremente entre
o tradicional a as transgressões possíveis, em busca da inovação estética, o que resulta numa
trama híbrida de linguagens, como as bordadeiras dedicadas na escolha das linhas, dos
motivos e na elaboração dos pontos e laçadas. A leitura de suas obras revela alguém que
conhece a cultura de seu povo, movimentando-se naturalmente entre a cultura popular e a
erudita. Ao colocar o seu leitor diante de uma multiplicidade de sentimentos e de pontos de
vista, Ana cria com ele um jogo de identificações e de estranhamentos, o que provoca a
contínua interação entre as expectativas modificadas e as memórias transformadas.
Na obra de Ana Maria, o diálogo entre tempo, espaço e enredo realiza-se,
sobretudo, pelo discurso da memória, espaço opaco contraposto pela imaginação. O universo
imaginário é para a criança tão real como é real o mundo da ficção para quem cria. Neste
estudo, procurei ressaltar o movimento contínuo entre o que a autora é e o seu processo de
criação, refleti sobre os deslizamentos entre a identidade da autora e sua criação, que
constituem objeto de interesse para o discurso literário. À medida que a autora lembra, sejam
acontecimentos vividos, sejam narrativas ouvidas, ou, ainda, leituras empreendidas, ela dispõe
de liberdade, consciente ou não, de selecionar o que lembrar e o que esquecer. Resgato este
fragmento de um de seus textos ensaísticos, que, penso, sintetiza o pensamento de Ana sobre
a matéria de que é feita a sua criação:
Um escritor não tem que inventar a escrita a cada nova obra. Existe o
alfabeto, existe uma tradição literária, existe toda a história da literatura, que
ao mesmo tempo pesa e norteia, obriga a ser diferente e estabelece
paradigmas. Um autor é também leitor, vive as duas pontas do diálogo, sabe
do que gosta e não gosta nos textos lidos, intui suas afinidades e famílias,
rejeita suas idiossincrasias. Tudo indica que, quanto mais leitor, melhores
condições terá para ser bom escritor. E, como cidadão, sabe também onde se
situa em sua história e sua cultura, como se posiciona diante da sociedade
onde vive. Como indivíduo, conhece sua própria história, tangenciou a de
outros, percebe o que quer guardar, o que não consegue descartar mesmo
que queira. Em uma palavra, está inteiramente imerso em memória.
Crescendo a cada minuto que passa, com as novas impressões que retém.
Um manancial inesgotável. Também essa vertente contribui para o processo
mental de dar idéias e estimular a criação. (2007, p.34-5)
120
Embora seja um fragmento extenso, considerei importante citá-lo, pois se coaduna
com o que venho refletindo nesta dissertação sobre o processo criativo da autora. Ana Maria
redefine as suas lembranças não como imagens congeladas de um passado estático, intacto e
distante, mas de um pretérito que é (re)significado pelo presente, que se altera e se reconstrói
a partir da experiência do vivido, da incursão da imaginação e a partir da própria linguagem.
Tudo transborda do passado para as páginas que Ana Maria escreve e, ao sair, invade tudo,
chegando à tona num turbilhão de palavras que se transfiguram em infinitas imagens e formas
humanas.
Do outro Mundo é uma obra que condensa várias cápsulas espaço-temporais num
único continuum, que nos leva a experimentar o prazer de navegar nos vãos recuados e
aproximativos entre os tempos, até o ilimitado que o prazer estético propicia. Na vida o tempo
é indomável, impossível mesmo de ser precisado e apreendido; na literatura há a ilusão de que
o tempo pode ser domado, aí mesmo é que o tempo prolifera. Divididos e complementares, os
tempos na novela tecem, na percepção do presente, na memória do passado e na imaginação
de uma possibilidade futura, os fios fundamentais da criação literária de Ana.
A novela Do outro mundo oferece uma visão mais ampla das personagens, dos
interesses práticos do cotidiano, na busca e necessidade de fantasia quase de forma natural,
sem conflitos internos causados por qualquer tipo de preocupação do mundo adulto. Quando o
próprio cotidiano se torna tema de ficção, ele adquire outra relevância, é através da inserção
de algo surpreendente que a imaginação se fortalece e se torna densa. A natureza ficcional dá-
se pela verossimilhança, pode ser verificável na relação causa/efeito, que é verdadeira para o
leitor em razão da organização lógica dos elementos na narrativa.
Em Do outro mundo, nem tudo é invenção, podemos identificar fatos históricos
como, por exemplo, a Abolição, mas o que importa à literatura é a efabulação que o leitor
aceita como verdadeira. O maravilhoso se desmitifica no cotidiano da novela Do outro
mundo, colocando em xeque a lógica e a coerência da realidade propostas pelo senso comum.
Ao criar um vigoroso mundo imaginário, com personagens “vivas” e situações “verdadeiras”,
Ana mobiliza todos os recursos que a língua lhe oferece, e que a literatura lhe possibilita,
conseguindo uma composição de alto valor estético, sintomático em grande parte de sua obra
e não especificamente em Do outro mundo. As imagens que se dispõem na novela, não
seguem uma lógica direta e objetiva do quotidiano, mas apresentam possibilidades paralelas
de uma dimensão mais ampla para o espírito humano.
Ana Maria demonstra imensa sintonia com as questões de seu tempo. Os
problemas sociais que a preocupam estão sempre presentes nas suas obras, deixando vestígio
121
através da subjetividade das personagens. A autora deixa-se seduzir pelo cotidiano ficcional
como se ocupasse os lugares das personagens, entretanto, provoca, simultaneamente, um
deslocamento desse referente imediato para um “entrelugar”
56
que é possível na arte. Se, por
um lado, os homens se alimentam de utopias, espaços essencialmente irreais; por outro, a
história miúda do dia a dia tenta fixar o homem no mundo real, inscrevendo-o nas instituições
sociais que lhe são próprias. Esse entrelugar é um espaço que não se fixa nem no irreal nem
no mundo empírico, um espaço que, mais do que a representação do real, é o efeito do real no
sujeito. Um espaço que, embora passível de ser localizado, não se fixa em nenhum lugar,
espaço/tempo em que as dicotomias oralidade e escrita, palavra e imagem, formas arcaicas e
modernas, passado e presente, racionalidade e magia, realidade e imaginação se decompõem e
se refazem em formas híbridas. A literatura, assim, se projeta em direção à ocupação desse
entrelugar, a terceira margem anunciada na poética de Guimarães Rosa, um espaço intersticial
em que a ficção se realiza.
Na ficção de Ana Maria, o cotidiano é invadido pelo elemento
inusitado, ela cria um universo repleto de magia e de verdade, um entrelugar em que o
imaginário e o realismo dialogam. Nesse espaço da novela Do outro mundo, grande
relevância é dada à escrita como elemento fundamental para a constituição do narrador
escritor, um percurso de autoconhecimento e de busca de identidade. Embora se trate de um
sujeito de ficção, a experiência de vida do narrador Mariano contribuiu para compreender as
relações entre realidade e imaginação e a importância que essas relações representam para o
resgate das relações indivíduo/meio, como estabelecimento de um sentido maior para a
percepção do sujeito no mundo, neste caso, os leitores de Ana Maria.
A novela Do outro mundo é parte de um projeto maior que Ana refaz a cada livro.
Parte de uma labiríntica cadeia da obra total. Cada obra se assume como itinerário, cujo
horizonte é a totalidade que se cumpre naquilo que ainda não foi dito, pois está por ser
inventado. nela um ímpeto, uma força consciente que a move e a conduz ao início e ao
centro de toda a sua obra, dando-lhe uma unidade de lugar que é a sua paixão pela língua
portuguesa, que se realiza na sua escrita, seja ficcional, seja ensaística. Na maioria dos textos,
a escrita e a leitura ocupam lugar principal, são ímãs que atraem o leitor para aquele foco,
56
A expressão “entrelugar”, tomo-a emprestada a Silviano Santiago (1978/2000), e Homi Bhabha (1994/2003)
embora não tenha aqui os mesmos sentidos empregados pelos críticos dos estudos culturais (Santiago - lugar
aparentemente vazio, lugar de clandestinidade, onde se realiza o ritual antropofágico da literatura latino-
americana; Bhabha- local de negociação, contato e interação entre culturas e indivíduos diferentes,
“hibridismo”). Concebo “entrelugar” como o espaço do texto literário em que realidade e ficção dialogam;
entendido, portanto como “um lugar entre”, pois não se trata da representação da realidade, tampouco a narração
de um espaço irreal.
122
contra o que não há como se esquivar ou resistir. Trata-se de uma escrita de múltiplos
significados, que se gera a si própria, abrindo infinitos caminhos que ora se cruzam, ora se
afastam, mas sempre se harmonizam num todo. É por isso que a escrita de seus textos precisa
ser entendida como um inventar contínuo e não como simples representação.
A garota que vive no interior de Ana, íntegra e vibrante, reitera a dimensão
poética da alma da artista, propulsora do jogo lúdico da criação. A escritora se coloca de
corpo inteiro na menina Ana, realçando na sua literatura a inteireza das origens praianas. As
lembranças da menina Ana estão vivas dentro dela, estão Do outro mundo, do lado de dentro
e do lado de fora, na ficção. Do outro mundo é pura magia de ser livro, que dentro esconde
outro mundo, um universo onde autora e leitores podem ser o que quiserem. Seres de papel,
prenhes de palavras de múltiplos significados. Ela está em cada personagem que cria, em cada
narrador sob cuja máscara se esconde, mas não são ela. As personagens resultam de uma
composição híbrida de Ana e de outros “elas”, personagens e pessoas que encontra pelo
caminho, partes que compõem um todo com características próprias, em cuja totalidade as
partes não encontram mais a singularidade. Não como negar que as personagens são o
olhar de Ana sobre os mundos: o de dentro, de onde brota o inefável; e o de fora, em livro que
o olhar do leitor acaricia. Ana é uma boa autora de livros para crianças e jovens, porque
escreve para a criança e jovem que foi. Ao ver o mundo sob a ótica poética, a autora não
carece de fabricar artifícios para um discurso que sensibilize o leitor, porque a linguagem e a
forma de ver o mundo brotam naturalmente da criança que a habita e que com a Ana adulta se
reconcilia na escrita. É o olhar da escritora (des)velando a sua própria história, que também é
a história de todo leitor que em suas histórias se reconhece. Ela estabelece com eles um
diálogo profícuo por meio de diferentes recursos linguísticos expressivos que a eles encanta, e
também consigo mesma, o que lhe permite se renovar e se enriquecer a cada novo livro.
O diálogo da autora com a memória e com a realidade é vigoroso e inteligente,
próprio de uma leitora requintada. Como escreveu Marisa Lajolo, dialogar com seu tempo
implica “dialogar com tudo o que se produziu, na longa cadeia de escritores e textos cujo
conjunto configura uma literatura” (LAJOLO apud MACHADO, 2004, p.148) É preciso frisar
que, se a infância não determina totalmente a obra de Ana Maria, constitui um elo que integra
ficção e teoria de forma sensível e também consciente, num entrelaçamento, como fios, de
memória, de leituras, de criatividade, de uma grande habilidade no trato com as palavras e de
um agudo senso de observação. A arte de Ana Maria está ligada ao discurso literário e, por
extensão e afinidade, à criança e/ou ao jovem, sejam eles personagens das histórias que conta
e aos quais dá voz e profundidade, sejam como leitores previstos desse texto.
123
Como viajante do tempo, Ana Maria assume duplo papel: de autora de ensaio e de
ficção. Quando exerce a primeira função, ela teoriza, critica e dá visibilidade aos seus
pensamentos através da linguagem escrita, que fixa o movimento das ideias acerca da leitura
literária nos últimos decênios; quando assume a segunda, apropria-se da tríade: presente,
passado e futuro e monta um cenário de forma articulada e possível de existir dentro de sua
ficcionalidade, onde o real e o imaginário se fundem, espaço gico e atemporal, onde
narrador e leitor se encontram. Uma Ana não existe sem a outra, sem a leitora e ensaísta não
existiria a ficcionista, e o inverso se aplica, naturalmente. Quer por meio de suas vivências,
quer por meio das leituras realizadas, Ana conquistou um acervo cultural que lhe permite
produzir ficção e textos ensaísticos da melhor qualidade. O projeto teórico e o projeto estético
de Ana Maria levam a pensar na busca da identidade da própria literatura infantil, quer
quando nos ensaios defende os bons textos modernos e/ou difunde a leitura dos clássicos
universais, quer na ficção, quando cria personagens leitores e escritores, verdadeiros
cavalheiros defensores da leitura literária. Ana concebe a literatura como sinônimo da fusão
entre prazer e conhecimento, assim continua produzindo, independentemente da classificação
etária que se possa aferir às suas obras.
Para expressar minha opinião sobre a obra de Ana Maria Machado, tomo
emprestado a Marina Colasanti uma afirmação sobre o que considera qualidades em um texto
literário: “Da literatura não fazem parte: o lugar-comum, a frase feita, a história previsível, a
linguagem infantilizante, a função didático-moralizante” (COLASANTI, 2005, p.180). Não
considerando apenas o fato de Ana ter vários livros premiados e a maioria deles ter-se tornado
Best-seller, posso afirmar, respaldada nos estudos que fiz, que sua obra possui muitos
predicativos que a qualificam como boa literatura. A criatividade, a força de sua escrita, a
cumplicidade nas frases curtas, objetividade que não abre mão do lirismo, tramas
“verdadeiras” e fortes, modernidade que açambarca a erudição, beleza viva para ser sonho e
força para ser realidade, fazem de Ana Maria figura proeminente das letras brasileiras. E mais,
a autora está afinada com as tendências críticas pós-modernas, que buscam uma retomada de
temas e recursos, com o objetivo de intercambiá-los às novas estruturas, e a valorização da
linguagem como elemento imprescindível à literatura. Pretendi mostrar como a obra de Ana
Maria pode contribuir para a história teórica e crítica da literatura infantil brasileira, mediante
a análise dos aspectos constitutivos do livro Do outro mundo, em particular, e outras obras da
autora com as quais compõe uma teia; procurei estabelecer uma interface com a reflexão
teórica da autora.
124
À semelhança das tecelãs que passam o ofício de geração para geração, ponto a
ponto, num fio contínuo, dando laçadas, assim é a arte de narrar, tão íntima de Ana Maria, que
vai entrelaçando fios de variadas histórias com outras linhas de outros “tecelões”, herdeiros de
Ananse, como ela criadores de textos e têxteis. Como diz Ana, é com uma teia resistente
formada por fios que contam e ouvem“... que para agüentar todo o peso de um povo, de
uma aldeia, de uma nação, de uma terra.” (1981,p.32) Assim como as aranhas tecem, também
a produção de Ana é um fazer contínuo. O fio que produz, logo se transforma numa outra
coisa. Carga simbólica associada desde a antiguidade ao cordão umbilical, fio da vida. As
histórias de Ana seduzem o seu leitor e o mantêm cativo, por isso a autora vive, porque
escreve e se apaga como biografia e passa a ser literatura. Aquilo que a obra nos mostra
está nela, mas aponta para além dela, remete-nos para um entrelugar que nos possibilita um
conhecimento maior sobre o mundo e sobre nós mesmos.
Ana diz que “as palavras podem tudo”
57
e podem mesmo. Em meio a essa “trança
de textos e de gente” e por meio de um jogo de esconder e revelar, a autora se eterniza.
Quando falo da obra de Ana Maria, falo sempre de um começo. Ao ler a afirmação de Ítalo
Calvino, no livro Balaio, de Ana Maria, de que “um escritor escreve para um lado e para o
outro” (2007.p. 53-4), uma palavra maluca me veio à cabeça: escrevelescreve”, e a ligação
com Ana Maria foi imediata. Por quê? Primeiro por sua história de vida que tem no centro a
leitura, patrimônio conquistado pelo percurso na escrita alheia, e mais leituras de mundo que
lhe possibilitaram gestar uma escrita própria. A posição de leitor no centro do vocábulo
parece ser referência à escrita de antes e depois, num contínuo que não é circular, porque não
percorre o mesmo caminho. Labiríntica talvez. Um movimento de ir e vir novo. Buscar atrás e
impulsionar adiante. Ana escreve para todos os lados, em todas as direções e de diferentes
modos. Uma escrita múltipla em todos os sentidos. Pluri-significa-ativa para um leitor atento.
Escrevelescreve”, uma palavra esquisita que brinquei inventar, mas que me obriga a pensar
em várias possibilidades, inclusive nos três tempos: passado, presente e futuro, que movem a
criação artística e também a Humanidade. E essa palavra, por justaposição inventada, ficou
fazendo cócegas na minha cabeça. E ousei mais, se, pela pobreza criativa, somei o óbvio
escrever ler-escrever, pelo esforço de generosidade da língua abstraí, pela decomposição do
significante, algumas possibilidades de palavras com certidão de nascimento registrada no
Aurélio e prenhes de significados: ver, rever, ser, reler, eleve, leve, eles (os outros), vele e
revele e outras tantas mais, se recorresse a outras línguas que sequer domino. Percebo ainda
57
Frase de abertura do livro O canto da praça (MACHADO,1993).
125
que, com esses vocábulos colhidos, é possível compor uma rede de sentidos, cujos fios têm
relação semântica com a escrita de Ana Maria, mas esta é uma longa discussão que ficará por
ser escrita.
Ana testa novas cores, desmancha e experimenta diversos motivos. Nesse desfazer
e refazer, brincando de tecer e desmanchar o tecido da vida, ela aprende a ler fios
transparentes, até se tornar uma bruxa nessa arte de inventar/contar histórias. “Bruxaranha”,
especialista em desmascarar ficções alheias e com elas recriar a sua própria teia,
reescrevendo-se na magia/bruxaria, ininterruptamente. Interessante labirinto percorre toda a
trama de Ana, cosendo invenção e vida vivida. Memória fiada no presente, pontos que
compõem motivos. Diferentes. Fontes. Evocação de sentidos. Costurados. É Penélope, é
Sherazade... Ana é os contadores sem nome.
Passeando “pelo bosque da ficção” de Ana Maria Machado, com as minhas mãos
atadas às de Iser, penso no leque de possibilidades que sua ficção pode abrir ao leitor. Um
convite permanente à brincadeira de dar sentido às coisas do mundo real de agora, de antes e
de imaginar aquele que virá, mas isso é uma outra história, para um tempo futuro, onde a
imaginação é caminho infindável de possibilidades... ouro em pó de pirlimpimpim.
Algumas laçadas e s são necessários, mas não apontam para o final da
tapeçaria. Trata-se de mais um fio, que, ao se elevar, procurando o fundo da agulha, aponta
para outras direções, que não o próprio bordado, possibilidades infinitas de novos desenhos e
cores. Isso me reporta ao que escreveu Tacca: “... mal assinalamos um mecanismo literário,
logo nos assalta a convicção da sua pobreza ou insuficiência para explicar a riqueza e
plenitude poéticas em que se acha inserido [...] e a suspeita de termos ido demasiado longe, de
termos dito demasiado...” (1978, p.20) Inúmeros foram os fios críticos que se ofereceram à
pesquisa, escolhi alguns poucos. Minha interpretação, longe de pretender dar conta da riqueza
de possibilidades de reflexão que o processo de escrita de Ana Maria incita, apenas sugere
alguns fios que podem contribuir para o fortalecimento das reflexões sobre a memória, a
imaginação e a ficção, assim como ajudar a situar o texto literário infanto-juvenil no contexto
dos estudos literários.
E se juntar a outros tantos fios e iniciar inúmeros e diferentes trabalhos ainda
sonhados. Fiar os fios da memória. Trançar leituras e vivências. Fazer riscos, debuxar
palavras com imaginação. Tecer um Quilt
58
de infinitas cores de retalhos. Outras tantas
58
Quilt é um termo inglês usado para denominar uma colcha, coberta ou manta acolchoada. É composto por três
camadas: frente e verso de tecido e um recheio de lã, que são unidos entre si por um pesponto.(MICHAELIS,
1998, 764)
126
mesclam, parem. Escrever histórias de mil e uma tramas, emaranhadas e não. Tramam, enfim,
a vida, de quem escreve e de quem lê. Universo atado. Nós e laços desamarram e amarram,
ziguezagueando sentidos. Coser palavras uma a uma e às outras, passando por entre, como
linha na agulha. Simultâneo, inteiro e livre para criar motivos outros e tanto. Tecer o fio, tecer
a vida. Duas vidas envolvidas nas tramas do tear e mais outra, outras. Diferentes lugares,
povos multi-face-atados, cores mais que três, formas muitas e línguas tantas que não sei
entender não. Este leitor sem cara. Este autor com endereço fixo no texto pare um narrador,
por vezes com ele se fundindo. Pura ambiguidade. Terreno movediço.
Palavra aberta para outro narrador. História que continua. Contar, viver.
Tecelagem. Cria-ação. Narrar só importa. E dissertar é senão uma forma diferente de narrar os
passos mais maduros que de infância escritos. Se nego, minto. Finjo ser. Envelheço desde o
parto. Que a luz doutro continua. “Ponta de lápis fincada na paixão” igual à narradora de A
troca e a tarefa
59
. De quem furto. Nesta tarefa coloco ponto final, palavras interrompidas,
desnudadas na incompletude. Ponte com Guimarães Rosa: “O senhor me ouve, pensa e
repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto.”
60
Outros alumiarão doravante.
A escrita de Ana continuará a contar histórias, uma após outra, oferecendo-se ao
prazer da leitura ou à análise literária, em cadeia de infindáveis teias, distanciando, a cada
leitura, qualquer possibilidade de conclusão. Arrematei os pontos soltos, ou nós desfeitos, o
que significa dizer que deixo um quadro de tecido pronto e uma (umas?) pontas de fios se
oferecendo a quem desejar tecer um outro quadro e a este se costurar, oferecendo-se adiante.
A vida é assim como a escrita: um eterno (re)fazer-se. E esta “história”, que começou com
fios e aranhas, termina com uma rede de palavras. Acabo, para visitar, tempo de um
cafezinho, outra produção da autora.
Vivendo, se aprende;
mas o que se aprende, mais,
é só a fazer outras maiores perguntas.
Guimarães Rosa
59
*Nota de Lygia Bojunga Nunes: A escritora morreu sem acabar a frase. Deram com ela debruçada na mesa, a
ponta do lápis fincada na paixão. (NUNES, l986, p.67).
60
ROSA G., 2005, p.96.
127
BIBLIOGRAFIA
61
:
... evitemos retirar à nossa ciência o seu quinhão de poesia.
Evitemos sobretudo corar por isso.
Marc Bloch(1976)
1. OBRAS DA AUTORA
1.1 Obra objeto de estudo desta dissertação:
Do outro mundo. São Paulo: Ática, 2002. (Publicado também na Espanha e Inglaterra)
1.2 Autobiografia:
Esta força estranha: trajetória de uma autora. São Paulo: Atual, 1996.
1.3 Web site oficial da autora: <www.anamariamachado.com.br >
1.4 Ensaios:
Balaio: livros e leituras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
Ilhas do tempo: algumas leituras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. (Publicado também
em espanhol, alguns dos ensaios fazem parte de Lectura, escuela y creación literária. Madrid:
Anaya, 2002; e de Literatura infantil: creación, Censura y resistência. Buenos Aires: Ed.
Sudamericana, 2003).
Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
(Publicado também na Espanha, Bogotá: Editorial Norma, 2004).
Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
Contracorrente: conversas sobre leitura e política. São Paulo: Ática, 1999. (A primeira edição
é de 1997, à qual não tive acesso. Publicado também em espanhol: Buenas palabras, malas
palabras. Argentina: Ed. Sudamericana, 1998).
61
Segundo as normas da ABNT, as referências bibliográficas podem ter uma ordenação alfabética, cronológica
e sistemática. Por acreditar que daria mais visibilidade à bibliografia utilizada nesta dissertação, optei por
organizá-las de acordo com o seguinte critério: 1.Obras da autora subdivididas em categorias; 2.Fortuna crítica
subdividida em tipos de publicação; 3.Referências bibliográficas subdivididas em: citadas e consultadas. Todas
as seções se encontram em ordem alfabética por autores e as obras de mesma autoria em ordem cronológica
decrescente. As obras de Ana Maria, bem como aquelas relacionadas na fortuna crítica, que foram citadas na
dissertação não são encontradas na relação de referências citadas, encontram-se nas respectivas seções, evitando
assim, repetições desnecessárias.
128
Língua portuguesa: impressões pessoais. (1996, p.54). In. HENRIQUES, Cláudio Cezar &
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves.(Orgs.) ngua e transdisciplinaridade: rumos, conexões,
sentidos. São Paulo: Contexto, 2002.
Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens. Rio de
Janeiro: Imago, 1976.
1.5 Romances:
Palavra de honra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
Para sempre. Rio de Janeiro: Record, 2001.
A audácia desta mulher. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Canteiros de saturno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
O mar nunca transborda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. (Em espanhol, El Mar no se
Desborda. Bogotá: Editorial Norma, 2003).
Aos quatro ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
Tropical sol da liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
Alice e Ulisses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
1.6 Principais publicações Infanto-juvenis:
Mensagem para você. São Paulo: Ática, 2008.
Cadê meu travesseiro? Rio de Janeiro: Salamandra, 2004a.
Que lambança! Rio de Janeiro: Salamandra, 2004b.
O príncipe que bocejava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004c.
O Canto da praça. Rio de Janeiro: Ática, 2002. (A primeira edição é de 1986, à qual não tive
acesso. Foi publicado também na Espanha).
O Menino que virou escritor. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.
Para sempre: amor e tempo. Rio de Janeiro: Record, 2000. (Série: Amores extremos)
Uma história de páscoa. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ponto a ponto. Rio de Janeiro: Berlendis, 1998.
Avental que o vento leva. 4.ed. São Paulo: Ática, 1997. (Coleção: Barquinho de Papel)
Beijos mágicos. Rio de Janeiro: FTD, 1996. (Publicado também na Espanha).
129
O gato Massamê e aquilo que ele vê. Rio de Janeiro: Ática, 1994.
Exploration into Latin America. London: Belitha Press, 1994.(Publicado também na Espanha,
Suécia, Dinamarca, Noruega e França).
Beto, o carneiro. 5.ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993.
Mistérios do mar oceano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
Uma vontade louca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. Rio de Janeiro: Ática, 1998.
(Publicado também na Espanha).
Severino faz chover (1987). Rio de Janeiro: Salamandra. (Coleção Batutinha - reunião de
quatro contos, reeditados em separado a partir de 1993).
A velhinha maluquete. Rio de Janeiro: Moderna, 1988. (Publicado também na Espanha).
Menina bonita do laço de fita. São Paulo: Melhoramentos, 1986. São Paulo: Ática, 1998.
(Publicado também na Espanha, Inglaterra, Suécia, França, Dinamarca e Japão).
A Jararaca, a perereca e a tiririca. São Paulo: Cultrix, 1985. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998. (Publicado também na Espanha).
O Menino que espiava pra dentro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
Passarinho me contou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983(Publicado também na Espanha).
Mico Maneco. Série. São Paulo: Melhoramentos, 1983-88.
Bisa Bia, Bisa Bel. Rio de Janeiro: Salamandra, 1982. (Publicado também na Espanha,
Inglaterra, Suécia e Alemanha).
Era uma vez um tirano. Rio de Janeiro: Salamandra, 1982. (Publicado também na Espanha, e
Alemanha).
De olho nas Penas. Rio de Janeiro: Salamandra, 1981a. (Publicado também na Espanha,
Suécia, Dinamarca e Noruega).
Palavras, palavrinhas, palavrões. São Paulo: Codecri, 1981b(Publicado também na Espanha).
Bem do seu tamanho. Rio de Janeiro: EBAL, 1980a. (Publicado também na Espanha e
França).
Do outro lado tem segredos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980b. (Atualmente Nova Fronteira
- Publicado também na Espanha).
O Gato do mato e o cachorro do morro. Rio de Janeiro: Ática, 1980c. (Publicado também na
Espanha).
130
Conte outra vez série (O domador de monstros; Uma boa cantoria; Ah, cambaxirra, se eu
pudesse...; O barbeiro e o coronel; Pimenta no cocuruto). Rio de Janeiro: Salamandra, 1980-
81. (Atualmente FTD-Publicado também na Espanha e França)
História meio ao contrário. Rio de Janeiro: Ática, 1979a. (A primeira edição é de 1978, à
qual não tive acesso - Publicado também na Espanha, Suécia e Dinamarca).
O menino Pedro e seu boi voador. São Paulo: Paz e Terra, 1979b. (Publicado também na
Espanha).
Raul da ferrugem azul. Rio de Janeiro: Salamandra, 1979c. (Publicado também na Espanha).
Bento-que-bento-é-o-frade. São Paulo: Abril 1977. (Atualmente Salamandra - publicado
também na Espanha e Portugal).
1.7 Organização de antologias:
O Tesouro das virtudes para crianças. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, vols. I e II em 1999 e
2000; vol. III em 2002.
Tesouro das cantigas para crianças. vol. I em 2001; vol. II em 2002.
1.8 Traduções e adaptações:
BARRIE, James Mathew. Peter Pan: o livro. São Paulo: Quinteto, 1992. (I1. Walter Ono)
BJORK, Christina. Lineia no jardim de Monet. Rio de Janeiro: Salamandra, 1992.
BURNETT, Frances Hodgson. O jardim secreto. Rio de Janeiro: 34, 1994. The secret garden.
(Il. Tasha Tudor)(Coleção 34 Infanto-juvenil).
CHERRY, Lynne. Sumauma, Mãe das árvores: uma história da floresta amazônica. 3. ed.
São Paulo: FTD, 1993.
GRIMM, Jacob. Chapeuzinho vermelho e outros contos de Grimm. 3 ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989. (Il. e projeto gráfico de Ricardo Leite).
IBSEN, Henrik; PALMIRO, Sérgio. Peer Gynt: O imperador de si mesmo. São Paulo:
Scipione, 1985.
KUSS, Danièle; TORTON, Jean. A Amazônia. São Paulo: Ática, 1995. (Mitos e Lendas).
MALDRY, Thomas. O rei Arthur e os cavaleiros da Távora Redonda. São Paulo: Scipione,
1991. Le Morte Darthur. (Reencontro).
RAGACHE, Claude-Catherine; PHILLIPPS, Francis. A cavalaria. São Paulo: Ática, 1996.
(Mitos e Lendas).
RIMM, Jacob. Branca de neve e outros contos de Grimm. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1986.
131
ROGERS, Hargreaves. Coaxito: uma espécie de sapo de Catimbó. São Paulo:
Melhoramentos, 1982. Tradução de Croak. (Catimbó) (Coordenação: Ana Maria Machado).
ROGERS, Mary. Que sexta-feira mais pirada! São Paulo: Ática, 1994. Freaky Friday.
(Outras terras outros jovens).
SHAKESPEARE, William. Sonho de uma noite de verão. São Paulo: Scipione, 1986.
Midsummer nights dream. (Reencontro)(Contém dados bibliográficos).
TANAKA, Beatrice. Maia ou a 53ª semana do ano. Rio de Janeiro: Salamandra, 1978.
TWAIN, Mark. As viagens de Marco Polo. São Paulo: Scipione Autores e Editores, 1986.
The aventures of Marco Polo.
1.9 Poesia: Sinais do Mar. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2009.
2. FORTUNA CRÍTICA
2.1 Livros, capítulos de livros e periódicos:
BASTOS, Dau (Org). Ana& Ruth: vinte e cinco anos de literatura. Textos de MORAES,
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Maria Machado. São Paulo: UNESP; Assis-SP: ANEP: 2004, p.23-34.
2.2 Teses e dissertações:
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didático. Belo Horizonte, 2000. Dissertação (Mestrado em Educação). - Faculdade de
Educação, Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG, Belo Horizonte, Brasil, 2000.
CARVALHO, Diógenes Buenos Aires de. A adaptação literária para crianças e jovens:
Robinson Crusoe no Brasil. Tese (Doutorado em Letras). - Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul- PUCRS, Porto Alegre, 2006.
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CERBINO, Victoria Wilson Coelho. A seriedade do brinquedo: era uma vez um tirano.
Dissertação (Mestrado em Letras). - Faculdade de Letras, Universidade Federal Fluminense-
UFF, Niterói- RJ, Brasil, 1987.
CRUZ, Cassandra G. Medeiros. Dúzias de sorrisos, dezenas de risadas, centenas de
gargalhadas: o riso na obra de Ana Maria Machado. Dissertação (Mestrado em Letras). -
Faculdade de Letras, Universidade Federal Fluminense- UFF, Niterói- RJ, Brasil,1991.
DALCASTAGNÉ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 na produção romanesca
brasileira. Dissertação (Mestrado). - Universidade Federal de Brasília-UnB, Brasília, Brasil,
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3. BIBLIOGRAFIAS CITADAS E CONSULTADAS
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do autor, no qual ele faz um balanço das repercussões e críticas que seu trabalho despertou).
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