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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DENGUAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
MARTANÉZIA RODRIGUES PAGANINI
EROTISMO E REPRESENTAÇÃO:
Particularidades do universo feminino na ficção de Clarice Lispector
Dissertação de Mestrado
Vitória
2005
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MARTANÉZIA RODRIGUES PAGANINI
EROTISMO E REPRESENTAÇÃO:
Particularidades do universo feminino na ficção Clarice Lispector
Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de
Mestre em Estudos Literários do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Esrito Santo.
Orientadora: Profª Drª Ester Abreu Vieira de Oliveira
Vitória
2005
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DEFESA DE DISSERTAÇÃO
PAGANINI, Martanézia Rodrigues. Erotismo e Representação: particularidades do
universo feminino na ficção de Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado em
Estudos Literários. UFES, 2005.
Dissertação aprovada em _____ de________________ de 2005
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Profª Drª. Ester Abreu Vieira de Oliveira - UFES
(Orientadora)
___________________________________________
Profª. Emérita Drª. Bella Josef - UFRJ
(Membro titular)
____________________________________________
Prof. Dr. Jorge Luis Nascimento - UFES
(Membro Titular)
____________________________________________
Prof.Dr. Francisco Aurélio Ribeiro - UFES
(Membro suplente)
A Paulo, Clarissa e Kiko
Torcida silenciosa que se fez presente o tempo inteiro.
Eu amo vocês!
A Klédina
Amiga inseparável desde os tempos da graduação. Até aqui,
compartilhando idéias e saberes.
A Aninha
Amizade sincera que despontou no início da pós-graduação
Lato sensu e permanece, strictamente, ora no silêncio, ora
no soar das palavras incentivadoras.
A Marina e Heron
Pelo crédito e incentivo. Ainda guardo comigo o diploma de
Macabéia.
A Sandra Lúcia Souza
Pela doação completa: de si mesma e dos livros.
A Deus toda honra e toda glória, sempre em primeiro lugar.
A Ester, grande mulher, brilhante nas idéias, simples e
modesta nos gestos e nas palavras. Orientação amiga, que
resultou em forças que me fizeram levar adiante a pesquisa.
O erotismo próprio do que é vivo esespalhado no ar, no mar, nas
plantas em nós, espalhado na veemência de minha voz, eu te escrevo
com minha voz.
(Clarice Lispector )
Eu tenho à medida que designo e este é o esplendor de se ter uma
linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo
designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como
vou buscá-la e como não acho. Mas é do buscar e não achar que
nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A
linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por
destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O
indizível me poderá ser dado através do fracasso de minha
linguagem. quando falha a construção, é que obtenho o que ela não
conseguiu.
(Clarice Lispector)
RESUMO
Esta dissertação é mais uma leitura da constrão da identidade feminina na ficção de
Clarice Lispector. Analisam-se os modos como os personagens, especificamente, as
femininas elaboram a questão da sexualidade e do ser-mulher. Tentar-se apontar
que, nas narrativas da escritora, o erotismo é um artifício utilizado como um elemento
capaz de possibilitar a reflexão sobre a condição feminina. Ao longo dos livros: Laços
de família, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Água viva e A via crucis do
corpo verifica-se que há um desejo de transformação, advindo de um conflito de
identidade das protagonistas, que se vão afirmando gradativamente. Observa-se, no
projeto ficcional de Lispector, um modelo de representão, delineado por um percurso
de transformação evolutiva.
ABSTRACT
This thesis is an essay of the feminine construction identity in Clarice Lispectors fiction. Here, it
will be analyzed how persons, especially women, elaborate the question of womans sexuality
and the being woman it will also be pointed out thin, in the writers narrative, the erotic is an
artifice utilized as an element capable of providing a reflection of the feminine condition.
Through the books Laços de família, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Água viva, and
A via crucis do corpo, it will be seeing that there is desire to be transformed, coming from the
protagonists conflict of identity, which shows slowly. It will finally be. Observed, in Lispectors
fictional project, a representation model, delineated though an evolving path of transformation.
SIGLAS UTILIZADAS
AV = Água viva
LF = Laços de família
LP = Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
VC = A via crucis do corpo
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Paganini, Martanézia Rodrigues, 1961-
P129e
Erotismo e representação : particularidades do universo feminino na ficção de Clarice
Lispector / Martanézia Rodrigues Paganini. 2005.
168 f.
Orientadora: Ester Abreu Vieira de Oliveira.
Dissertação (mestrado)
Universidade Federal do Esrito Santo, Centro de
Ciências Humanas e Naturais.
1. Lispector, Clarice, 1925-1977 -
Crítica e interpretação. 2. Ficção brasileira. 3.
Literatura brasileira - História e crítica. 4. Perspectiva. I. Oliveira, Ester Abreu Vieira
de. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e
Naturais. III. Título.
CDU: 82
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................11
2 A LITERATURA DE LISPECTOR E A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO..............21
3 A LITERATURA E O EROTISMO NA LINGUAGEM DE CLARICE...........................48
4 A CONDIÇÃO FEMININA NOS LAÇOS DE FAMÍLIA............................................66
4.1 UMA RAPARIGA EM FRENTE AO ESPELHO: DEVANEIO E EMBRIAGUEZ........71
4.2 PODER, SUBMISSÃO E IRONIA NOS CONTOS: AMOR, A IMITAÇÃO DA
ROSA E LAÇOS DE FAMÍLIA.................................................................................76
4.2.1 Amor...................................................................................................................76
4.2.2 A imitação da rosa............................................................................................80
4.2.3 Laços de família................................................................................................86
4.3 SER MULHER UMA IRONIA DO DESTINO.............................................................92
4.3.1 Feliz aniversário................................................................................................92
4.3.2 Uma galinha.......................................................................................................96
4.4 A MANIFESTAÇÃO ERÓTICA EM PRECIOSIDADE E O BÚFALO.............97
4.4.1 Preciosidade.....................................................................................................98
4.4.2 O búfalo...........................................................................................................104
5 O DESEJO EM UMA APRENDIZEGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES: A
CONSTRUÇÃO DE UM NOVO EROTISMO FEMININO..............................................108
6 O MERGULHO TRÁGICO EM ÁGUA VIVA: RE- NASCIMENTO E REVELAÇÃO.117
7 NA VIA CRUCIS, O CORPO: EROTISMO, DESEJO E INQUIETAÇÃO...............126
7.1 CORPO E IDENTIDADE EM: VIA CRUCIS, MELHOR ARDER E MAS VAI
CHOVER................................................................................................................128
7.2 DESEJO E REPRESSÃO NOS CONTOS: MISS ALGRAVE, RUÍDO DE PAS-
SOS, O CORPO E A LÍNGUA DO P.................................................................132
7.3 AS MÁSCARAS DO PODER NOS CONTOS: ELE ME BEBEU E PRAÇA
MA...........................................................................................................................146
8 ANÁLISE FINAL........................................................................................................152
9 REFERÊNCIAS.........................................................................................................158
1 INTRODUÇÃO
Transgredir porém os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi
quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa.
Qualquer que seja o que quer dizer realidade.
(Clarice Lispector em A hora da estrela)
Pensar o texto literário e, no nosso caso, refletir erotismo e representação na literatura
de Clarice Lispector é um trabalho que demanda coragem: corre-se um grande risco, o
perigo de não se alcançar a profundidade desejada, pois pensar o erótico é se colocar
em situação de perda. Pensar o prazer é um perigo. Pode, inclusive, conduzir à
anulação do próprio prazer. Ao ler um texto, deslocamos a nossa subjetividade, é como
um jogo, uma aventura que nos transforma em contra-hérois, no dizer de Barthes.
Então, quando se pretende falar daquilo que leu, o desafio é ainda maior. É necessário
ultrapassar a margem, romper com os paradigmas na tentativa de alcançar a Babel. E,
em se tratando de Clarice Lispector, encontramos sempre mistérios, corremos sempre
um risco. Aliás, é essa a proposta da escritora, fazer com que o leitor participe de sua
história, entre no jogo, sinta-se protagonista.
Clarice cria em seus textos um espaço de fruição, visto que abre uma possibilidade
de uma dialética do desejo, no sentido Barthesiano. Em suas obras nada é gratuito, os
dados são lançados à espreita do jogo, da imprevisão do desfrute.
Na produção literária da escritora, verifica-se uma tensão entre erotismo e moralidade
como marcas de identidade e representação de um sujeito, em sua maioria feminino,
que anseia por um desejo de autonomia e de afirmação, oferecendo-nos possibilidades
de se pensar o processo de construção da identidade a partir da linguagem, fazendo-
nos entre-ver um traço fundamental da modernidade o desejo de autonomia no
embate com as contradições organizadas pela cultura e pela sociedade. Pode-se
afirmar que a literatura de Clarice Lispector advém de uma relação de gozo. Entre os
sinais anunciadores do prazer do texto em Clarice Lispector está a construção da
linguagem, elaborada de maneira a produzir um efeito devastador, desconstruindo os
lugares feitos. A palavra, nos textos de Clarice, assume estatuto transgressor, no
sentido em que é fluxo e energia, força errática, negação e atitude servil e disciplinada.
Pode-se afirmar, com Roland Barthes (1973, p.15), que na literatura de Lispector:
A narratividade é desconstrda e a história permanece no entanto legível:
nunca as duas margens da fenda foram mais nítidas e mais tênues, nunca o
prazer foi melhor oferecido ao leitor pelo menos se ele gosta de rupturas
vigiadas, dos conformismos falsificados e das destruições indiretas.
As personagens dos textos de Lispector, em sua maioria femininas, são marcadas pela
reflexão interior, por suas relações conflituosas consigo mesmas e com o mundo que as
rodeia. As mulheres, nas obras da escritora, se descobrem, de repente, num mundo
conflituoso e, quase sempre, isso se dá pela ruptura, pelo choque, pelo inesperado,
pelo susto da vida que pulsa no subconsciente, com características diferenciadas do
mundo conhecido. Ao nos apresentar este universo feminino, Lispector nos mostra o
quão importante é a linguagem para constrão e identificão do sujeito. Ocorre que
a linguagem delineada pela escritora, acesso a uma outra via: a via do amor, nunca
um amor perfeito, mas doído, trucidado, feito de carne e verdade. O mundo, descrito
por Clarice, é rico e sensual, erotizado, ele pulsa o tempo inteiro. Nos textos da
escritora, há uma certa pulsação erótica que vem da palavra. Clarice se utiliza da
linguagem para construir um cenário altamente sensual ao que concorrem também
imagens e metáforas, tais como as rosas, símbolo da sexualidade feminina, que fazem
surgir em Laura, personagem do conto amor, da obra Laços de família, um certo
desconforto, um incômodo, um estado de embriaguês que a faz sair de sua rotina. As
rosas surgem para Laura como uma possibilidade de ir além do limite, de preencher um
vazio: No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia tirar para si sem prejudicar
ninguém no mundo, faltava. Como uma falta maior. Na verdade, como a falta. Uma
ausência que entrava nela como uma claridade. (1998, p.50) Assim, a escritora
constrói em suas narrativas personagens mulheres de todas as idades que, no embate
com a pulsação da sexualidade, tentam alcaar a posse de si mesmas. As mulheres
nas obras de Clarice seguem oferecendo uma problemática peculiar: a questão da
sexualidade. Sabe-se que a escritora traz para o centro de suas narrativas o problema
da busca de um esclarecimento maior sobre a existência, trazendo à tona a substância
da vida interior do ser, a essência do erotismo. Assim, observa-se que as mulheres
clariceanas manifestam um desejo de alcançar a posse de uma identidade, por meio do
questionamento de seu papel na relão com o outro, em busca de um esclarecimento
sobre a difícil arte de estar no mundo.
Evidencia-se na literatura da escritora uma aprendizagem sendo construída gradativa
e mutuamente. No fazer literário de Lispector, personagem, escritor e leitor se fundem
numa espécie de busca desenfreada pelo sentido da vida e da morte, que orientam a
existência humana. E, quase sempre essa investigação se pela via do desejo. Nos
textos de Clarice reside um erotismo que vai além do princípio do prazer, no sentido
freudiano e chega ao gozo, à fruição, como diria Barthes (1973, p. 22), pois faz vacilar
as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de
seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.
Clarice imprime em seus textos a força de Eros, uma foa criadora que resulta em vida
e ação, revelando uma tensão entre carência e excesso, na busca de continuidade e
completude.
A escritora de Laços de Família, na maioria de seus textos, nos apresenta personagens
femininas que se criam a si mesmas, à procura de uma linguagem peculiar que marque
o seu lugar no mundo. A fala feminina é um protesto contra o risco de se dissolver, é a
busca de um sujeito, um meio de ultrapassar o limite, o imposto. São esses aspectos
que nos conduzem em correr o risco de elaborar mais um escrito, entre os inúmeros
feitos, sobre a literatura dessa escritora.
A questão principal é analisar como a sexualidade feminina se configura, através do
uso da linguagem, ao longo das obras: Laços de família publicada em 1960, Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres de 1969, Água viva, publicada em 1973 e A via
crucis do corpo, obra lançada em 1974, verificando marcas do erotismo feminino que
fazem brotar, nas personagens mulheres, uma via melhor de conhecimento da
condição humana. Percebe-se, nessas obras, um encadeamento, um processo de
busca de afirmação da identidade feminina, em que o erotismo é o elemento
deflagrador.
Nessas obras, verifica-se a manifestação do desejo como processo gerador da
estrutura textual e, sendo o desejo o elemento desencadeador, é inevitável que ele se
converta em manifestação erótica, conforme atesta Bataille. No entanto, analisar uma
problemática em textos de Clarice Lispector e, no nosso caso, analisar o erotismo,
pressupõe a inevitabilidade de um defrontar-se com outras questões. Dentre elas o
problema da representação, já que estamos tratando de personagens.
Roland Barthes (1978, p. 22), ao argumentar sobre a força representativa da literatura,
afirma que a mimeses literária es justamente em ela ser o desejo do impossível, pois
o real não é representável. Desde os tempos antigos até as tentativas da vanguarda, a
literatura se afaina na representação de alguma coisa. O quê? Direi brutalmente: o
real". O real o é representável, e é porque os homens querem constantemente
representá-lo por palavras que uma história da literatura". É necessário, então,
buscar esclarecimentos sobre o que estamos chamando de representação. Assim,
pensamos que investigar o percurso das personagens e afirmar que as mulheres
criadas pela escritora seguem uma trajetória em busca de afirmação de suas
identidades, demandaria partir da base teórica que delineia a literatura como
representão. Assim, buscamos como fio condutor dessa investigação o conceito de
mimese em Platão, Aristóteles e Luiz Costa Lima. É com base na compreensão do
sentido mitico da literatura que temos condições de entender o problema central que
levantamos: erotismo e representação.
Roland Barthes em O prazer do texto (1973, p. 12), afirma que as obras da
modernidade têm sempre duas margens: uma margem sensata fixada pelo uso
correto da língua, como prevê a cultura e uma outra margem, móvel, vazia (apta a
tomar não importa quais contornos) que nunca é mais do que o lugar de seu efeito: lá
onde se entrevê a morte da linguagem. Pensamos, então, que uma via de se analisar
o erótico nos textos de Lispector seria caminhar por entre essas margens até alcançar
a fenda que, de acordo com Barthes, é onde reside o erótico. Assim, o que estamos
sugerindo apontar como erotismo e representação na ficção de Clarice Lispector vai
significar mais um estudo sobre a linguagem, pois conforme orienta a escritora, na obra
Água viva, a palavra é a sua quarta dimensão. Buscar a quarta dimensão da sua
escrita é buscar a fenda no dizer de Barthes. Conforme a concepção barthesiana, as
obras da modernidade buscam o lugar de uma perda, é a fenda, o corte, a deflação, o
fading que se apodera do sujeito no imo da fruição.
Sendo assim, os textos de Clarice Lispector parecem se enquadrar na modernidade,
pois buscam um espaço de fruição. Seu texto não é o retrato de nossa realidade, mas
uma outra realidade em que o leitor não se reconhece mais. Sua escrita tende, assim,
em embaralhar a fronteira, no sentido em que apreende o mundo antes mesmo que o
leitor tenha dele conhecimento. É da obra Água Viva (1980, p. 23), que extraímos a fala
que resume o que desejamos investigar:
Expresso a mim e a ti os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras
uma oraca beleza confusa. Estremo de prazer por entre a novidade de usar
palavras que formam intenso matagal! Luto por conquistar mais profundamente
a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário:
sou sozinha eu e minha liberdade. É tamanha a liberdade que pode
escandalizar um primitivo mas sei que não te escandalizas com a plenitude que
consigo e que é sem fronteiras perceptíveis. Esta minha capacidade de viver o
que é redondo e amplo- cerco-me por plantas carnívoras e animais legendários,
tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo mítico.
Pode-se dizer que o questionamento sobre a identidade feminina é um tema recorrente
na literatura brasileira. O assunto vem despertando interesse dos críticos desde a
década de 70 a partir dos movimentos feministas.
Na ficção contemporânea encontra-se a presença abundante de personagens
mulheres, protagonizando a busca de uma identidade autodefinida e autônoma, num
esforço de nortear o próprio ser num nível ficcional, subverter e reescrever imagens
tradicionais sobre o feminino.
Segundo Coelho (1993, p.11), a produção literária brasileira das mulheres deixa
transparecer a inegável emergência do diferente; das vozes divergentes; a descoberta
da alteridade ou do outro, via de regra, sufocadas ou oprimidas pelo sistema de valores
dominantes. Nos estudos de Coelho, Clarice Lispector é apontada como uma escritora
que veio contribuir para renovação da ficção brasileira atual. Conforme a autora, a
literatura de Lispector é marcada por uma tendência cada vez com mais força e
lucidez, a romper os limites de seu próprio Eu (tradicionalmente voltado para si mesmo
numa vivência quase autofágica) para mergulhar na esfera do Outro a do ser humano
partícipe desse mundo em crise.
1
(os grifos são da autora)
Sabe-se que, embora em sua criação predomine personagens mulheres, Lispector o
aceitou ser rotulada como escritora feminista, entende-se perfeitamente esse
posicionamento quando se atentamente seus textos. A discussão que se faz em
torno dessa questão encontra fundamental importância quando se analisa o papel da
personagem e a literatura como representação.
Coelho, em sua pesquisa sobre a presença da mulher na literatura, destaca a produção
literária de Lispector como contribuição definitiva para renovão da ficção brasileira.
De acordo com a pesquisadora, a partir de 1960 o erotismo se impõe como marca
principal na literatura escrita por mulheres, por estas buscarem um espaço de
construção de identidade. Importante citar o que ela comenta sobre a temática erótica
na escrita das mulheres.
O amor (embora seja latente no universo ali construído) deixa de ser o tema
absoluto para ceder lugar às sondagens existenciais, ao ludismo da invenção
literária, às fantasias intertextuais ao questionamento político à redescoberta
do mito ou da história (células primeiras do mundo, hoje em transformação) e,
principalmente, ao erotismo. Talvez possamos dizer que este último se impõe
como força primeira a dinamizar uma diversificada e significativa produção
literária que se empenha visceralmente na busca da identidade do ser-mulher.
Com efeito, observa-se que a modernidade assume o erotismo nas suas mais
diferentes configurações. Essa temática aparece expressada em uma variedade de
formas, quais sejam: poemas, contos, romances. A ficção de Clarice Lispector, por se
enquadrar na modernidade, apresenta-se como um discurso erotizado, pois reflete a
1
COELHO, op. cit, p.16.
busca da identidade da mulher. As mulheres clariceanas apresentam-se desejosas de
livrar-se das amarras do poder da sociedade patriarcal e da preso que as impediu de
alcançar uma personalidade autônoma. As protagonistas dos textos de Lispector são
mulheres divididas internamente, que oscilam entre a sua condição feminina e o desejo
de rebelação. Todavia, o erotismo na construção das narrativas lispectorianas não é
escancarado, é leve e sutil, por vezes irônico e por que não dizer: trágico.
Assim, nossa pesquisa aponta que, ao longo das obras: Laços de família publicada em
1960, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres lançada em 1969, Água viva de
1973, e A via crucis do corpo publicada em 1974, as personagens femininas, criadas
por Lispector, desenvolvem um discurso de transgressão, em que o desejo de
emancipão é o processo desencadeador. E, sendo o desejo o processo
desencadeador, é inevitável que o erotismo se converta na sua conseqüência imediata.
Nos textos de Clarice Lispector a expressão erótica representa, discursivamente, a
materialidade do desejo.
Analisar o erotismo é algo complexo, pois quando se fala em erótico, tende sempre a
pensar na relação sexual, o que é justificável, tendo em vista que é quase impossível
desvincular o erotismo da sexualidade, daí a complexidade da questão. No entanto, o
erotismo, tal como é compreendido pelos estudiosos modernos, aponta para uma
infinidade de questões que vão além do ato sexual. Portanto, que se buscar
esclarecer o que estamos denominando de erotismo e, paralelamente, ir analisando
esse aspecto nos textos literários escolhidos.
Para tanto, será necessário buscar as concepções de Barthes sobre texto erótico e as
formulações de Bataille e Otávio Paz sobre erotismo para ir organizando o pensamento
em torno da queso formulada. De antemão, analisar o erótico, numa obra literária é
defrontar-se com o conflito, com a questão da sexualidade, que a sociedade interdita.
Foucault com sua História da sexualidade conduzirá nossa investigação no sentido de
analisar por que a sexualidade se constitui como domínio moral para, assim,
estabelecermos um nexo entre a moral e o erotismo presente na atitude das mulheres
clariceanas. Dessa forma, a hipótese repressiva de Foucault e a psicanálise de Freud
conduziram nossa análise em busca a dar respostas às seguintes questões:
As mulheres, nas obras: Laços de Família, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,
Água viva, e A via crucis do corpo, desenvolvem um discurso de transformação de suas
realidades? As mulheres nessas narrativas encaminham um processo de instauração
de mudanças?
O livro Laços de família foi o nosso primeiro contato com a ficção da escritora, ao
ingressarmos na Universidade em 1996. O conto Amor muito nos chamou atenção,
de certa forma nos chocou, por perceber o quanto estamos cegos perante as coisas do
mundo, dessa forma nos identificamos logo com Ana, personagem central desse conto,
da coletânea: Laços de família. A protagonista Macabéia veio logo em seguida e foi um
tapa ainda mais doído, pois percebemos que a caminhada era longa e sofrida. Assim,
meio que toscamente, entre uma leitura e outra, terminamos nossa graduação com
algumas questões nos impulsionando a beber mais uma vez da Água viva de Lispector.
Entre um conto e outro, um romance e uma crônica, aumentamos um ponto de
interrogação. Laços de família continua sendo nosso ponto de partida. É, mais
precisamente, dessa obra que brotam os questionamentos das personagens
lispectorianas e, conseqüentemente, os nossos.
Percebe-se, a partir do livro Laços de família, laado em 1960, até a obra A via crucis
do corpo (data de publicão em 1974), um processo de busca de identidade das
protagonistas que, entre um choque e outro, vão elaborando um processo de
transformação em busca de desvencilhamento das amarras sociais. Nas obras em
queso verifica-se que as personagens femininas elaboram um discurso de
transformação de suas realidades e, gradativamente, vão conhecendo a si mesmas, o
que permite uma possível libertão de sua condição. Nosso propósito é analisar o
desempenho da trajetória das personagens femininas dessas narrativas, verificando de
que forma completam o seu círculo. Ao que parece, Clarice vai elaborando o
pensamento e a imagem das personagens obra a obra, num processo de continuidade.
As mulheres, nessas narrativas, apresentam-se em constante processo de
aprendizagem, de autoconhecimento.
É evidente que a pergunta: quem sou Eu? É que orienta a busca das mulheres
clariceanas. Essa queso nem a própria escritora tinha a pretensão de responder. Ao
final da narrativa Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1998b, p. 154) a
personagem Loreley vai dizer: - Não encontro ainda uma resposta quando me
pergunto: quem sou eu? É Ulisses, parceiro de Loreley na travessia, na verdade o
alter-ego da escritora, que vai responder: não se faça de tão forte perguntando a pior
pergunta de um ser humano.
Assim, seguindo os passos da escritora, que mais do ninguém esclarece sobre nossas
limitações, encaminhamos nossa pesquisa analisando algumas questões, sem a
pretensão de respondê-las. Após a leitura e o exame do nosso objeto de pesquisa: das
quatro obras citadas, fomos organizando nosso pensamento em torno da questão
formulada. O que representam as personagens clariceanas? Assim, elaboramos como
primeiro capítulo, um estudo acerca da mimese, da literatura como representação. No
segundo catulo fizemos um estudo sobre o erotismo e a sexualidade, com referências
em Bataille, Otávio Paz e Freud. Em seguida adentramos nas obras, analisando, no
terceiro capítulo, alguns contos do livro Laços de família, obra por nós apontada como a
que traz em si, mais claramente, a discussão da problemática da condição feminina.
Analisamos ali o problema dos laços.
Nos capítulos seguintes aprofundamos ainda mais a questão, analisando as obras:
Uma aprendizagem ou o livro do prazeres, Água viva e, por último, A via crucis do
corpo. Constatamos que, nesses livros, as personagens femininas, criadas por Clarice
Lispector, o, gradativamente, intensificando os questionamentos em torno de si
mesmas, tendo o erotismo como problema principal, partindo do espaço familiar, dos
laços familiares, até chegar à via pública, o corpo: A via crucis do corpo.
Ainda esclarecendo o percurso, salientamos que algumas questões como o feminismo,
a epifania, a religiosidade e o existencialismo, temas bastante recorrentes na produção
da escritora, foram, por vezes, deixados de lado por temermos desviar-nos do tema em
queso: erotismo e representação das personagens femininas, o que, para nós,
constitui um campo amplo de investigação. Assim, preferimos centrar nosso olhar na
temática, percorrendo diretamente os textos dos livros selecionados. Cumpre
esclarecer, também que, para evitar muita repetição, em alguns momentos, nos
utilizamos das siglas dos livros, seguidas do ano da edição consultada e da página.
Assim, quando se tratar da obra Laços de família abreviaremos: LF (1998a); LP
(1998b) para se referir à Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres; AV (1980) para o
livro: Água viva e VC (1998c) nos referindo à obra A via crucis do corpo.
2 A LITERATURA DE LISPECTOR E A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO
As representações não se enraízam num mundo do qual tomariam
emprestado seu sentido; abrem-se por si mesmas para um espaço
que lhes é próprio e cuja nervura interna lugar ao sentido. E a
linguagem está aí, nessa distância que a representação estabelece
consigo mesma.
(Michel Foucault )
No livro LF, Lispector intitula um conto A Imitão da Rosa, a palavra imitação usada
por Clarice nos fez lançar um olhar investigativo em torno do conceito de mimese, cujo
significado remete diretamente à questão da literatura como representação. Pensamos,
então, que investigar a temática do erotismo e da representação na fião da escritora,
demandaria partir de uma noção acerca do conceito de representação, a fim de buscar
bases para possíveis interpretões do modo de ser das personagens clariceanas.
Sabemos que a literatura é ficção, porque é uma crião de uma supra-realidade,
imitação de algo que existe particularmente no espírito do seu criador, que cria o seu
próprio universo, com seus ares ficcionais, seu ambiente imaginativo, seu código
ideológico e sua própria verdade. Assim, a arte como ficção seria, pois, criação da
imaginão, da fantasia. Mesmo a literatura dita realista é fruto de imaginão, pois o
caráter ficcional é uma prerrogativa essencial da obra literária. Daí, os manuais de
teoria da literatura orientar-nos quanto ao cuidado, no momento da análise, de não
submeter o objeto da criação literária à verificação extratextual.
Um fator constitutivo e definidor da literatura como ficção é o determinante de que ela
participa da composição de mundos possíveis e convoca, para cada um destes
mundos, uma idéia de realidade que acaba por se articular, por semelhança ou por
contiguidade, com o mundo empírico no qual nos movemos.
Extrai-se do conceito de mimese, que a obra literária mantém, uma relação significativa
com o real, pois a realidade é que fornece o material necessário à criação. A literatura,
portanto, possui uma relão significativa com o real. O artista extrai das estruturas
lingüísticas, sociais, ideológicas os elementos para o seu mundo imaginário. Por mais
inovadora e original que uma obra possa parecer, sua exisncia é ancorada em fatores
que a antecedem, em uma pré-compreensão da experiência do mundo.
O que se questiona sempre quando se faz literatura ou se faz arte, de maneira geral, é
o que vem a ser o que tradicionalmente o bom senso chama de realidade, ou de
representão do real, ou representão real. Ocorre que a literatura es
questionando, mas ao mesmo tempo dizendo que esfalando sobre a realidade.
que está falando sobre a realidade, descrevendo, analisando, criticando esta através de
um atalho, de um desvio, que é a ficção. O que leva Barthes (1978, p. 16), a afirmar
que a literatura permite trapacear angua. Essa trapaça magnífica, essa esquiva, esse
logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no explendor de uma
revolução permanente da linguagem, eu a chamo quanto a mim: literatura.
Partindo dessa compreensão, ocorreu-nos investigar até que ponto a ficção de
Lispector é comprometida nessa ordem de representação. Antes de mais nada,
lembremos que a ficção, enquanto parte da realidade, é um modo de dizer por meio de
deslocamentos e condensações em que o puro fato (que é ficção) consegue aflorar
com sua força total. Remetemos ao título: A imitação da rosa, Clarice Lispector no
seu desejo de captar um modo de ser do real, constrói uma personagem que é uma
representão do impossível. Melhor dizendo, Laura, no seu desejo de imitar a rosa,
entendendo a rosa como uma outra mulher, Carlota sua amiga, nos mostra o quão é
impossível captar a totalidade do modo de ser de uma pessoa. É nesse ponto que o
leitor se identifica com Laura, aceitando a representação. Encontra-se a força
mimética de Clarice, construir personagens que não correspondem propriamente com o
real, contudo revelam a essência da realidade, a interpretão de um mistério. Seu
texto, ao mesmo tempo em que significa, sugere os limites da significão, dribla o
leitor, sugerindo que o que diz é e não é, porque o dizer em literatura tira a sua força,
é a perdição. Clarice deseja a maldição. Por isso, caminha nos desvão, não se
contenta em repetir modelo. Sendo assim, A imitação da rosa é uma metáfora, uma
reflexão sobre o processo de criação.
Encontramos, com muita freqüência, no interior dos textos clariceanos, justificativas
sobre o seu fazer literário. Em vários momentos de suas entrevistas a escritora de Perto
do coração selvagem busca responder ao questionamento sobre o sentido de sua
criação.
Castello (1999, p. 24), no artigo Clarice Lispector a senhora do vazio
2
, numa espécie
de depoimento, nos conta que, aos vinte e três anos de idade, no icio da carreira de
jornalista e escritor, quando designado para entrevistar a escritora, ficou tão encabulado
por estar ali na presença dela que, não sabendo por onde começar, proferiu-lhe a
pergunta: por que a senhora escreve? Clarice respondeu-lhe, irritada, com outra
pergunta: “‘Por que você bebe água? [...] pois eu também escrevo para me manter
viva. O que mais impressionou Castelo e, também a nós, é a seguinte afirmativa de
Clarice: “‘Entenda uma coisa: escrever nada tem que ver com literatura.
Em outra fonte, Gotlib
3
(1995, p. 34), lê-se a seguinte afirmação de Clarice: Nasci para
escrever. [...] cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me
renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever
Por esse depoimento, percebe-se que a escritora propõe uma escrita de abandono,
experimenta uma escrita-laboratório, lugar de pensamento constante e elabora um texto
na margem da língua, onde para tudo há vez, menos para regra, enquadramento.
Percorrendo seus livros, podemos observar que a autora, através de pensamentos
soltos, considerações e fragmentos, constrói a sua própria teoria textual.
O fato é que Lispector, ao escrever, não o fazia como ofício e sim, como necessidade,
como exercício de meditão, sem muita preocupação ou compromisso. No entanto,
seus textos deixam transparecer um desejo de ser compreendida. Ao que parece, a
2
CASTELLO, José. Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record, 1999.
3
GLOTLIB, N.B. Clarice: uma vida que se conta. 4 ed. São Paulo: Ática, 1995. Nessa obra, Gotlib reúne dados
biográficos sobre a autora.
escritora pretende produzir no leitor uma espécie de reconhecimento de seu mundo. De
A paixão segundo GH (1998d, p. 15), extraímos a fala que confirma esse desejo da
autora.
Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que
seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém. Mas
receio começar a compor para ser entendido pelo alguém imaginário, receio
começar a fazer um sentido, com a mesma mansa loucura que até ontem era o
meu modo sadio de caber num sistema.
Mais adiante, na mesma obra (p.21), encontra-se a seguinte afirmação:
Vou criar o que me aconteceu. porque viver não é relatável. Viver não é
vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar
o é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma
crião, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo.
[...] Até criar a verdade do que me aconteceu.
Em rios momentos de suas narrativas um constante questionamento do processo
de escrever. uma preocupação em se fazer representar. Por isso, em seus textos o
fazer e o pensar literários se constróem simultaneamente. Porém, o que nos intriga é
que a Clarice escritora não confessa isso. Quem fala são suas personagens. São elas
que questionam. Daí, em AV (1980, p. 18) a protagonista confessar: Não quero ter a
terrível limitação de quem vive apenas do que é possível de fazer sentido. Eu não:
quero é uma verdade inventada.
Desse modo, para as personagens clariceanas, escrever consiste num meio de
investigação de sua própria verdade. O que se pode constatar nesse fragmento da obra
Um sopro de vida (1991, p. 20): Escrever existe por si mesmo? Não. É apenas um
reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como
escrevo sem saber como e por quê é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu.
Escrever é uma indagação. É assim? Por essas indagações, percebe-se que, em
vários momentos de sua obra, Clarice procura justificar, explicar seu ato.
Segundo Lúcia Helena (1985, p.91), a obra de arte será sempre uma realidade
segunda, não empírica, que contém e implica um diálogo com a problemática social da
época e da sociedade em que frutifica. Tomando como referência o texto de Helena,
que concebe a produção literária de Lispector como práxis social, tencionamos buscar
na concepção mímética pistas para compreender a teoria da mimese, que supõe a
criação literária como imitação da realidade. O fim último é verificar o modo como se
a apreensão da realidade nos textos clariceanos. Pois, se a crião literária se constrói
sobre uma imitão da realidade, a obra é o produto da apreensão dessa realidade pelo
escritor. Sendo assim, a teoria clássica da arte como mimese é sempre requisitada. A
mimese está na base de qualquer obra literária, e seu entendimento seria a chave para
entender seu sentido. Verifiquemos, pois, que elementos são postos em jogo no debate
sobre o papel da literatura, revendo o próprio conceito de mimese, de imitação, e sua
validade no plano da literatura como representação da realidade.
Sabe-se que a idéia de mimese tem dominado a estética ocidental. Platão foi o primeiro
a conceber importância a ela na obra A República, embora numa conotação negativa
de arte como imitação da aparência, cópia da cópia. Para Platão a mimese se traduz
em imitação (imitatio), corruptora dos eidos, distante da verdade e, para tanto, ilusória.
Contudo, podemos resgatar em Platão uma teoria da arte e do conhecimento que
supõe uma forma de mimese não como simples cópia, mas um agir significativo diante
da poiesis grega, utilizando-se de uma techné (técnica).
O conceito de mimese sofreu refutações e reformulações por parte de Aristóteles, seu
discípulo, na medida em que concebeu a mimese não no sentido de cópia, mas de
criação, representação da realidade, recrião. Assim, a noção de mimese artística
apresentada na obra Poética, de Aristóteles, é vista como uma atividade capaz de criar
o existente através de novas correlações. Dessa forma, a arte adquire autonomia face a
verdades pré-estabelecidas; resgata sua ontologicidade. É necessário, então, buscar
na obra Poética elementos que possam nos orientar na compreensão do tema. Auxilia-
nos nessa tarefa, Lígia Militz da Costa com seu livro: A poética de Aristóteles: mímese e
verossimilhança (1992). Nessa obra, Costa realiza uma leitura da Poética, de
Aristóteles, comentando suas partes. A autora dedica um capítulo: A permanência do
conceito de mimese na teoria da literatura contemporânea, à interpretão do
pensamento de Costa Lima e de Merquior. Conforme Costa, para esses autores, a
concepção aristotélica de mimeses continua sendo fundamental para definição da
especificidade da literatura. Entretanto, nossa pesquisa fixará o olhar na idéia de
mimeses em relação com as formas vigentes de representação social.
Em A Poética, Aristeles começa por descrever as características da poesia e suas
espécies. Apontando para o modo como devem ser elaborados os mitos, ou seja, as
histórias, as fábulas, para que o poema resulte perfeito e para a natureza das partes
que os constituem. Assim, o filósofo vai descrevendo as espécies de poesias: epopéia,
tragédia, comédia, ditirambo, aulética e citarística, sendo todas elas comuns no aspecto
que se refere à imitação. Portanto, para Aristeles, todas essas construções são
mimeses. No entanto, esclarece o autor, que essas imitões não seguem o mesmo
tipo. Em qualquer que seja a manifestação artística ela se de modo diferenciado.
Assim, no que concerne às artes poéticas, os meios são: o ritmo, a linguagem (canto), a
harmonia (metro). O filósofo segue afirmando que existem artes que se utilizam não
da linguagem, mas também, do ritmo e do metro, como a tragédia e a comédia. No que
se refere ao modo pelo qual se realiza a imitação, este também pode variar, quer
fazendo uso da voz de uma personagem (modo narrativo), quer da ação de pessoas
imitadas, as representações, (as artes dramáticas).
Conforme Aristóteles (1992, p. 40) duas causas dão origem à arte poética: a primeira
delas seria atribuída à própria natureza do homem. Ao homem é natural imitar desde a
infância e nisso difere ele dos outros seres, por ser capaz da imitação e por aprender
por meio da imitação, os primeiros conhecimentos; e todos os homens sentem prazer
em imitar. A outra causa seria o fato de o homem encontrar prazer, uma disposição
para a melodia e o ritmo. Sendo, portanto, esses os elementos fundamentais que dão
origem à arte poética. Assim, partindo da causa da diferenciação dos gêneros poéticos,
Aristóteles examinou por primeiro a tragédia. Afirma o autor que o homem possui:
[...] o prazer em contemplar imagens perfeitas das coisas cuja visão nos
repugna, como a figura dos animais ferozes e dos caveres. O aprendizado
apraz não só os fisofos, mas também aos demais homens, embora a estes ele
seja menor. Se olhar as imagens proporciona deleite, e porque a quem
contempla sucede aprender e identificar cada uma delas; dirão, ao vê-la, esse
é fulano. Se acontecer de alguém o ter visto o original, nenhum prazer
despertará a imagem como coisa imitada, mas somente pela execução , ou
pelo colorido, ou por alguma outra causa da mesma natureza. (op. Cit., p.40)
Pelo que indica Aristeles, a produção e a recepção da mimese ocorre sempre a partir
da suposão de um estoque de conhecimentos que apresenta o criador e o receptor.
Essa tal bagagem de conhecimentos é sujeita às condições socioculturais
diversificadas, variáveis segundo situações hisricas. Sendo assim, dependendo do
seu cabedal de conhecimento, o receptor atribuià obra significados diversos do que
nela pôs seu criador, ou seja, ao mesmo significante atribuir-se sempre novos
significados, o que não deprecia a arte, seu caráter mimético. Conforme Aristóteles, o
prazer encontrado na imitação se trata de um prazer estético baseado na identificação
e reconhecimento do objeto imitado.
Na poética, Aristóteles se concentra na configurão narrativa do texto, apesar de tratar
marginalmente de outros aspectos como a relação entre a obra e o público
intermediada pela katharsis. Sobre esse aspecto, o filósofo priorizou o gênero trágico,
que ele traduz como a mimese poética em seu mais elevado grau. Costa (1992, p. 18)
em sua interpretação afirma que a teoria da tragédia é a base de toda a teoria da arte
contida no texto aristotélico.
O estudo acerca da tragédia é, para nós, imprescindível à compreensão e ao estudo do
erotismo e da representação, uma vez que o seu sentido encontra-se imbricado na
concepção erótica.
Na visão de Aristóteles:
A tragédia é a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e
completa, em linguagem adornada, distribuídos os adornos por todas as partes,
com atores atuando e não narrando; e que, despertado a piedade e o temor,
tem por resultado a catarse dessas emoções.[..]Como a tragédia é imitação de
uma ação, realizada pela atuação dos personagens, os quais se diferenciam
pelo caráter e pelas idéias (porque qualificamos as ões com base nas
diferenças de caráter e idéias), segue-se que são duas as causas naturais das
ações: idéias e caráter. E dessas ações se origina a boa ou má fortuna das
pessoas. A fábula é imitação da ação. Chamo fábula a reunião das ações; por
caráter entendo aquilo que nos leva a dizer que as personagens possuem tais
ou tais qualidades; por idéias, refiro-me a tudo o que os personagens dizem
para manifestar seu pensamento. (op. Cit., p. 44)
Ao afirmar ser a tragédia imitação de uma ação e não de homens, Aristeles deseja
enfatizar que não se trata de uma simples cópia da realidade. O que Aristeles deseja
fazer entender é que a imitação de uma ão o é copiar uma realidade presente,
mas fazê-la visível por meio da arte. O modo de aparição da arte é a mimeses. Para o
filósofo, o fim último da tragédia é a purificação das emoções, a catarse. De acordo
com a noção de cartase, a tragédia surge de uma disposição inata do homem para
atuar e apreciar mimeses, que segundo ele, é comum a todos os homens por natureza.
A tragédia, com seus efeitos voltados à obtenção da compaixão e temor, utiliza-se de
uma maneira natural e verossímil de composição dos fatos e ações. Entende-se, por
isso, que é o desenrolar dos fatos com naturalidade e verossimilhança que suscita
sentimentos de temor e piedade. Convém extrair do próprio texto, A poética (1992, p.
52), a fala que esclarece essa nossa interpretação.
Os sentimentos de terror e pena, às vezes, decorrem do espetáculo cênico; em
outras ocasiões, porém, m do ordenamento que se às ações, e este é o
melhor modo, mais próprio do poeta. Pois a fábula deve ser constituída de tal
maneira que as pessoas que a ouvirem possam, mesmo sem nada ver,
aterrorizar-se e sentir piedade, como acontecerá com quem escutar a história
de Édipo.
Do exposto, entendemos que, na tragédia, as ações é que dão o caráter de
verossimilhança. Pode-se entender com Costa, (1992, p. 19) que [...] o fato de a
tragédia ser imitão de uma ão qualificada eticamente e de os caracteres serem
nela subordinados à ão impõe a necessidade de as personagens que agem e se
apresentam serem também qualificadas pelo caráter e pelo pensamento. Pretende a
tragédia ser uma imitação do modo de ser da vida. Qual o modo de ser da vida que não
a ação? Daí, que no pensar de Aristóteles
[...] a tragédia não é imitação de pessoas e sim de ações, da vida, da
felicidade, da desventura; mas felicidade e desventura estão presentes na ação,
e a finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade. Os homens possuem
diferentes qualidades, de acordo com o caráter, mas são felizes ou infelizes de
acordo com as ações que praticam. Assim, segue-se que as personagens, na
tragédia, não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres para
realizar as ações. (op. cit., p. 44)
Eis, o caráter da mimese artística em seu papel de não só imitar a natureza, mas de
aperfeiçoá-la. O artista deve, na medida em que busca construir a mimese, observar as
ões para conferir o caráter de verossimilhança e, ao mesmo tempo, persuadir os
expectadores com a ilusão de realidade e isso se viabiliza na intensidade dos efeitos
trágicos, com o reforço das emoções vividas pelos personagens. Dessa forma, o artista
extrai um saber do meio, através da mimese que se oferece como presentificação,
mediação. Assim, a mimese trágica, com seus elementos estruturais, valida a
verossimilhança e o produto mimético apresenta uma universalidade em sua
representão, nascida da capacidade criadora segundo a lei da verossimilhança e da
necessidade. Assim, podemos afirmar que o conteúdo de verdade de uma obra de arte,
uma vez que, nascido da lógica do processo de criação-imitação, não é definido por
outra verdade pré-estabelecida e exterior a ele, nem preparatória a uma verdade
superior.
Dessa forma, a concepção aristotélica de mimese busca referendar uma arte que imita
e, com seu valor ontológico de verdade, recria ou fornece meios para uma crião,
reinterpretão intuitiva da realidade. A arte é capaz de recriar as coisas segundo um
nova dimensão, na verdade e universalidade de suas formas sensíveis e intelectuais. A
mímese aristotélica deve ser compreendida no sentido de expressão, de significão
como esforço por sintetizar e aperfeiçoar, recriar os caracteres dispersos ou
incompletos nas coisas. A literatura pelo princípio de verossimilhança, possui o caráter
completo e perfeito.
Do exposto podemos entender que, sendo a tragédia imitação de uma ação que suscita
temor e piedade, a sensação de compaixão surge em nós quando nos deparamos com
alguém injustamente infortunado, enquanto que o temor surge quando percebemos
que esse alguém, sobre o qual se abateu o infortúnio, é um nosso semelhante. Estas
emoções são suscitadas pelos dramas exatamente quando eles conseguem alcançar,
no público, uma identificão com as emoções apresentadas no palco. Relacionando
esses dados com a literatura de Lispector, essa identificão ocorre de diversas
formas:
a) Pela aparente simplicidade da narrativa que confere verossimilhança interna;
b) pelo caráter transgressivo das ações das personagens, instaurando uma
possibilidade de ultrapassar a ordem vigente; essa possibilidade de desafiar a
ordem pode ser analisada como um aguçamento da reflexão ante outras questões,
a ampliação de soluções no enfrentamento do cotidiano;
c) pela atitude das personagens que se nos apresentam como heróis trágicos;
d) pela força de representação de sua literatura, encenando a linguagem na ânsia de
representar o real.
A mimese em Clarice se pela afirmação do trágico. O drama de suas personagens é
também a tragédia do leitor. Clarice com a Imitação da rosa quer ensinar ao leitor
como se deve imitar as lacunas da existência humana. A hisria de Laura, repleta de
sofrimento, envolve o que é nossa noção de percepção da realidade, põe em choque
nossa relação com o mundo. Avançando um pouco mais em nossa reflexão,
buscaremos compreender a questão da mimeses na visão de Luis Costa Lima.
Extrai-se da obra de Costa Lima: Mímesis e modernidade: formas da sombra (2003),
que a mimese aristotélica é o fundamento para se compreender a obra literária da
modernidade. Nesse livro, Lima faz uma revisão do conceito de mimese, aprofundando
e desconstruindo, ao mesmo tempo, a visão de mimese como imitação. Para este autor
o conceito de mimese deve ser compreendido a partir de uma visão histórico-cultural.
A mímesis,(...) não é imitação porque não se confunde com o que a alimenta. A
matéria que provoca a sua forma discursiva aí se deposita como um significado,
apreensível pela semelhança que mostra com uma situação externa conhecida
pelo ouvinte ou receptor, o qual será substituído por outro desde que a mímesis
continue a ser significante perante um novo quadro histórico, que então lhe
prestará outro significado. Ou seja, se como dissemos, o produto mimético é um
dos modos de estabelecimento da identidade social, ele assim funciona à
medida que permite a alocação de um significado, função da semelhança que o
produto mostra com uma situação vivida ou conhecida pelo receptor, o qual é
sempre variável. ( p. 45 os grifos são do autor)
Pelo que orienta o autor, podemos afirmar que o processo de compreensão da obra de
arte exige a participação ativa do leitor. Nesse processo estão em jogo todos os
elementos: a cultura, a hisria, o conhecimento, contribuindo para que ele acredite no
que esa ver. Na visão de Costa Lima a obra de arte como manifestação sensível das
idéias, da inteligibilidade de um sujeito humano, nos abre a possibilidade de reflexão a
respeito de suas peculiaridades, suas características, enquanto manifestação que cria a
cultura dos homens, inserida que está, num contexto determinado e específico da
existência dos mesmos. Chegamos então, ao ponto que nos levará a compreender a
teoria da mimese como representação, uma vez que o próprio sentido da palavra
remete a uma infinidade de significados. Convém buscar em Lima esclarecimentos
para o termo, pois se afirmamos que as personagens lispectorianas trazem em si
marcas de erotismo e representação, necessário se faz esclarecer de que
representão estamos falando, dentre as tantas possíveis. Sendo assim, fundamental
para esclarecimento da questão é compreender a mimese como representação social,
conforme a visão do autor.
No capítulo II à gina 94, da obra supracitada, Lima discute a relação: obra de arte e
representão social, considerando a questão estética que, segundo o autor, deixou de
ser considerada por Aristóteles em função da especificidade do artístico. Dois
pressupostos são defendidos por ele em relação a função estética da obra de arte:
a) A obra poética não se pode considerar realizada, a não ser no
sentido estrito material, senão ao ser acolhida pelo leitor. Em si
mesma a obra de arte é apenas um quadro de indicões que
só se ativam pela participação ativa do leitor;
b) a prodão ativa do leitor torna o esquema da obra em
representações de realidades diversas, de acordo com a
ativão que dele faz.[...] a obra de arte tem a vantagem de
permitir a representação de múltiplas e variadas realidades,
que interferirão e não serão apenas condicionadas- em sua
postura perante o mundo.
Pelo que nos indica Costa Lima, na representação entram em jogo uma série de
elementos simbólicos que atuam como elementos de inserção do sujeito na sociedade.
Chegamos, assim, ao ponto que nos levará a compreender a teoria da mimese que
supõe, ao mesmo tempo, uma imitação e uma recriação da realidade. A produção e a
recepção da mimese ocorre sempre a partir da suposição de um estoque de
conhecimentos que carregam: o criador e o receptor. Como tal estoque de
conhecimentos é sujeito às condições socioculturais diversificadas, variáveis segundo
situações históricas, o receptor atribuirá à obra significados diversos do que nela pôs
seu criador. Ao mesmo significante atribuir-sesempre novos significados, o que não
deprecia, na arte, o valor mimético. Com isso somos conduzidos a analisar a criação
mimética, ou seja, a obra ficcional sem opô-la a algo que chamamos realidade,
porque mesmo essa realidade é também um construto narrativo. No entanto, o texto
ficcional não tem um compromisso diretamente com o real. O que interessa às nossas
presentes questões é que o autor considera a atividade literária como atividade
mimética e, como tal, vinculada a experiência estica como condição de ficcionalidade.
Citando Costa Lima (p.181) veremos que
O próprio da mímesis da produção é provocar o alargamento do real; ou
melhor o que seria tomado como limite entre o possível e o impossível como a
impressão despertada pelo jogo de luzes e sombras como um possível
atualizado. Em suma o produto rebelde às representações, à aplicação da idéia
de Ser, continua a ser um produto mimético se é capaz de funcionar pela
participação ativa do leitor.
Essa citação explicita o fato de que o texto ficcional encontra seu sentido na relação
entre seu ancoramento na experiência humana e seu encontro com o espectador.
Tendo, por isso, um caráter mimético, na medida em que é que o sentido se forma,
no encontro da obra com o ouvinte. No entanto, o conteúdo de verdade da obra de arte,
uma vez que nascido da lógica do processo de criação-imitão, não é definido por
outra verdade pré-estabelecida e exterior a ele. Nem, tampouco, preparatória a uma
verdade superior, ou seja, o texto de ficçãoo é um outro da realidade. Dessa forma,
a ficção apresenta-se como um artifício, um meio de transpor o real. Sobre esse
aspecto encontramos referência em Jozef
4
(1986) que, no livro: A máscara e o enigma,
desenvolve um estudo sobre as principais características das obras da modernidade.
Mais precisamente no catulo: Semiologia da transgressão a autora, numa linguagem
bastante acessível, esclarece acerca desses aspectos que afirmamos estarem
configurados na linguagem do texto ficcional de Lispector. Conforme a escritora, a
literatura contemporânea, ao tentar configurar o real, revolucionou os esquemas
tradicionais da representação. A linguagem, nesses textos modernos, não se deixa
aprisionar pela lógica formal, não se prende as estruturas tradicionais, justamente, por
desejar mostrar a essência da realidade, a crise do homem. Convém citar um trecho de
sua afirmação:
A obra de arte é re-presentação da realidade, uma nova apresentação que a
questiona. Toda linguagem é representação, mas a da literatura é uma
representação que se apresenta. A literatura é sempre uma transformação da
realidade. O ato poético autêntico engendra o real e esta recriação é condição
sica para a existência de qualquer obra de arte. Consiste em nomear as
coisas no reencontro poético com a palavra, que des-vela seu sentido
olvidado de tão automatizado. (op. cit, p. 169, grifo nosso)
Ressaltamos da fala da escritora: literatura é uma representação que se apresenta,
por considerarmos que vem resumir aquilo que está na idéia central do sentido de
mimese como transformação do real. A literatura, como obra ficcional, ao mesmo tempo
em que se quer um outro em relação ao real, imita o real na sua pseudoforma de
realização. Nesse processo, articulam-se linguagem e verdade. Daí encontrarmos,
freqüentemente, nos textos literários modernos, como sugere Jozef, reflexões sobre a
4
JOZEF, Bella. Ascara e o enigma: A modernidade da representação à transgressão. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1986.
práxis da invenção
5
. A Clarice Lispector se aplica, mais do que a nenhum outro escritor
brasileiro, essa característica. Ao escrever, a escritora interrogava a si própria sobre o
sentido da própria criação. É o que se pode perceber nesse fragmento retirado de A
hora da estrela.
Será mesmo que a ão ultrapassa a palavra? Mas que ao escrever que o
nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a
tem inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar. Por que
escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a
forma é que faz o contdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina,
mas por motivo grave de força maior, como se diz nos requerimentos oficiais
por força de lei’”. (1999, p. 18)
Observa-se que obra clariceana assenta-se nessa ruptura da tradição literária, como
orienta Jozef, em que o espaço da representação é um espaço em que o sentido se
laa e toma forma.(p.179) Ao escrever, Clarice eleva a reflexão sobre a linguagem e
o ato de escrever. Ao trazer para sua própria linguagem essa tensão, duvidando da
capacidade de sua própria escritura em apreender o real, ela transfere ao texto o
impasse do escritor contemporâneo. Percebe-se que Clarice busca a diversidade dos
significados das palavras, procurando despertar na mente do leitor uma realidade que
vá além da realidade costumeira. Importante citar outro fragmento de A hora da estrela
em que o narrador adverte quanto à identificação do leitor com a história.
Se veracidade nela e é claro que a história é verdadeira embora inventada
que cada um a reconheça em si mesmo porque todos s somos um e quem
o tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar
coisa mais preciosa que ouro existe a quem falte o delicado essencial. (p.12)
Vemos, pois, que o jogo mimético entre ficção e realidade é o que alimenta a produção
literária da escritora. É nesse sentido que afirmamos estar na base de sua escrita a
teoria da mimese. Para compartilhar mais uma vez da idéia de Jozef cita-se a
conclusão da escritora sobre o papel da mimese na arte literária.
5
Jozef cita Jakobson, para o qual a Práxis da inveão está na base das obras de arte mais contundentes, pois
refletem sobre o próprio processo de criação: representando o ato da escritura. (p.168)
O conceito de mímese, ressaltando o papel do imagirio na arte se entrosa
com a tese moderna segundo a qual a obra de arte é um objeto intencional.
Logo não se pode encarar a mímese aristotélica como um conceito estranho à
independência da imaginação poética em face do real. Deve-se encará-la
como referencialidade autônoma da produção estética.
Se a leitura é a vida da mímese, o processo mimético deriva da repetão
diferenciadora; o idêntico da repetição mimética não é o mesmo. (op. cit., p.
179-180, o grifo é da autora)
Tentemos, pois, compreender a dimensão recriativa do fazer artístico, relacionando-a
com a visão contemporânea da cultura, pautada na noção de simulacro defendida por
Deleuze como arte de deslocamento. O fisofo, ao analisar o simulacro definido por
Platão, propõe uma reversão, uma ruptura direcionada à criação, positivando a noção
de simulacro, potencializando a diferença e a dessemelhança, ou seja, apontando
rupturas com modelos, identidades, processos de representação e de identificão.
Vejamos, numa sucinta digressão, o tratamento dado a essa expressão por parte de
Platão, a fim de compreendermos, de forma apropriada, a noção de simulacro
defendida por Deleuze.
Platão introduz uma distião entre cópia e simulacro. Para este filósofo a
representão consiste na adequão entre a idéia e a coisa, o abstrato e o real, a fim
de discernir o verdadeiro do falso. Para tanto, erige um modelo, uma espécie de
identidade pura, existente no mundo das idéias que serve de fundamento (original) para
selecionar e classificar as cópias. Podemos entender, grosso modo, que o critério para
comparão entre cópia e modelo é o da semelhança, da igualdade que, através de um
processo de identificação, separa as pias boas das ruins, numa relação hierárquica.
Cópia corresponde ao semelhante, ao pretendente que ocupa o segundo lugar numa
participação eletiva. Portanto, o critério para participação varia conforme um método
seletivo. O fundamento ocupa o primeiro lugar e os participantes são criteriosamente
distribuídos em uma linhagem gradativa, em que a cópia ruim, deformada, diferente,
que não apresenta similaridade com o modelo, não possui equivalentes, não se torna
digna de participação. A cópia pressupõe uma similitude exemplar. Assim, nessa escala
classificatória, introduz-se um grau, a tal ponto que o desvio do modelo constitui o
simulacro, aquele que não está em conformidade com a idéia, sendo falso porque não
possui correspondente algum.
A visão de Deleuze (1998, p. 263), sobre o simulacro rompe com o modelo e a
hierarquizão platônica. Na concepção do filósofo a obra de arte es além da
realidade, é uma perversão, um desvio.
O simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele
interioriza uma dissimilitude. Eis por que não podemos nem mesmo defini-lo
com relação ao modelo que se impõe às cópias, modelo do mesmo do qual
deriva a semelhança das cópias. Se o simulacro tem ainda um modelo, trata-se
de um outro modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma dessemelhança
interiorizada.
Nessa perspectiva, a intuição criadora deve ser entendida como tentativa de integrar
uma experiência ou uma atividade cognitiva ligada ao conjunto da personalidade, em
que intervém tanto formas intelectuais e espirituais do conhecimento como as formas
emocionais e sensíveis.
Conforme Deleuze (1998, p. 263-264)
A cópia poderia ser chamada de imitação na medida em que reproduz o
modelo; contudo, como esta imitação é noética, espiritual e interior, ela é uma
verdadeira produção que se regula em função das relações e proporções
constitutivas da essência. sempre uma operação produtiva na boa cópia e,
para corresponder a esta operação, uma opinião justa e até mesmo um saber.
Vemos, pois, que a imitação é determinada a tomar um sentido pejorativo na
medida em que não consegue passar de uma simulação, que não se aplica
senão ao simulacro e designa o efeito de semelhança somente exterior e
improdutivo, obtido por ardil ou subversão. não existe nem mesmo opinião
justa, mas uma espécie de refrega irônica que faz as vezes de modo de
conhecimento, uma arte da refrega exterior ao saber e à opinião.
Pelo exposto, entendemos que, para Deleuze, a arte como representão não constitui
uma simplespia, conforme compreendera Platão, mas escapa aos padrões pré-
estabelecidos, transborda a normalidade, desorienta os modos de existência, afirma a
diferença, cria ao invés de representar, eis o simulacro. O simulacro não é uma cópia
degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia,
tanto o modelo como a reprodução. (p. 267 grifos do autor).
No livro Diferença e repetão (1988, p. 124) o filósofo define o simulacro pautado na
noção de uma dissimilitude, diferença.
Com efeito, por simulacro não devemos entender uma simples imitação, mas
sobretudo, o ato pelo qual a própria idéia de um modelo ou de uma posição
privilegiada é contestada, revertida. O simulacro é a instância que compreende
uma diferença em si, como duas ries divergentes (pelos menos) sobre as
quais ele atua, toda semelhança tendo sido abolida, sem que se possa por
conseguinte, indicar a existência de um original e uma cópia.
Sendo assim, no ponto de vista de Deleuze, a criação rompe com a representação e
com o modelo referência, com a realidade compreendida em essência e apancia. A
representão, sugerida pelo filósofo como simulacro, consiste numa imagem sem
semelhaa, pois o mundo da ficção permite a criação de uma outra realidade, uma
outra forma de apreender o mundo. E, a partir do momento em que essa outra
realidade es a decorrer, passa a ser real. Esta deve dar conta do mundo,
considerando-o, contudo, como jamais totalmente revelado. De acordo com Deleuze
(op. cit., p. 267) para entender a diferença entre representação e simulacro se pode
pensar
[...] em duas rmulas: o que se parece difere, somente as diferenças se
parecem. Trata-se de duas leituras do mundo, na medida em que uma nos
convida a pensar a diferença a partir de uma similitude ou de uma identidade
preliminar, enquanto a outra nos convida ao contrário a pensar a similitude e
mesmo a identidade como produto de uma disparidade de fundo. A primeira
define o mundo das cópias ou das representações; coloca o mundo como
ícone. A Segunda, contra a primeira, define o mundo dos simulacros. Ela
coloca o próprio mundo como fantasma.
Assim, entendemos que, no simulacro, as relações entre ficção e realidade conhecem
novas formas, dando origem a novo mundo. Daí, o caráter paradoxal da literatura, ser
antes de mais nada, enquanto configuração ou definição, uma mentira, uma inveão,
uma fabulação que, acompanhada da palavra ficção adquire um valor de verdade.
Pode-se dizer que na produção literária de Lispector se encontra uma homologia em
relação a essa percepção do processo de produção literária. Seus textos permitem
pensar a partir do real, pensar o mundo como representão, o real pelas
possibilidades do real. Nesse sentido, a escrita de Clarice é artifício, pois ultrapassa a
imitação, é arte de deslocamento.
No conto A imitação da rosa, a escritora, ironicamente, revela o aspecto paradoxal da
mimese. Ao construir uma narrativa, cujo tema central é a imitação, Clarice o faz
confirmando o caráter contraditório da representação, denunciando o fracasso da
linguagem diante do real. Retornemos, então, ao ponto de onde partimos, ao
questionamento da palavra imitação, ou seja, a utilização desse léxico por Clarice
Lispector no título de um conto da obra LF.
Nossa hipótese é a de que a palavra imitão, utilizada por Clarice para intitular o
conto com o nome A imitação da rosa, fora tomada como fonte de reflexão sobre o
seu próprio fazer literário, enquanto limitado pela linguagem. Daí se pensar na oposição
semântica das palavras: imitão/limitação. Ao mesmo tempo, a oposição tem origem
no universo paradoxal em que a personagem principal da narrativa se encontra. Dessa
tensão emerge duas reflexões: a da criação literária, enquanto incapaz de representar a
realidade, travada pelo limite da linguagem e a da imagem reprimida e limitada do
desejo de Laura em imitar, tanto as rosas quanto a cristo. A atividade mimética, como
arte limitada da imitação da realidade, é metaforizada no conflito de Laura entre viver,
metodicamente, no seu cotidiano repetitivo e banal, ou transpor os limites, imitando as
rosas. Busquemos, pois, averiguar o que representam as personagens clariceanas.
Brait (1990, p. 11) esclarece que a queso da personagem e sua função no texto estão
diretamente ligadas à criatividade do autor e os modos que ele utiliza para criar o
caráter de verossimilhança do texto ficcional possui uma estreita ligação com a atuação
dos personagens. Daí, a dificuldade do leitor em separar ficção de realidade, pois
quase sempre aquilo que não passa de palavras torna-se real na mente das pessoas.
Sendo assim, o se pode negar a existência de uma ligação entre pessoa e
personagem. No entanto, as personagens, apesar de representarem seres vivos, não
existem fora das palavras. O problema da personagem é um problema lingüístico, pois
o personagem não existe fora das palavras.
Já que esses dois mundos mantém uma íntima relação, seria importante tentar
entender como o criados esses seres fictícios capazes de provocar emoções e fazer
o leitor com ele se identificar. Brait (1990, p.12) aconselha que só é possível desvendar
algo sobre o personagem se penetrarmos na construção do texto. Se quisermos saber
alguma coisa a respeito de personagens, teremos de encarar frente a frente a
construção do texto, a maneira que o autor encontrou para dar forma às suas criaturas
e, aí, pinçar a independência, a autonomia e a vida desses seres de fião. Para
Brait, o segredo da crião do personagem es no universo da linguagem. O texto
literário é uma forma de o autor expressar e definir a sua relação com o mundo. Na
produção do texto ficcional o autor vai buscar nas características da linguagem,
elemento significativo capaz de dar forma ao real, as características do mundo
inventado ou retratado. Sobre essa característica da ficção de nossa escritora, Benedito
Nunes na obra: O dorso do tigre analisara como jogo de linguagem
6
. No entanto,
afirma o autor que em Clarice a linguagem envolve o próprio objeto da narrativa,
abrangendo o problema da existência, como problema da expressão e da
comunicão. A linguagem apresenta-se como barreira à expressão. As personagens
lispectorianas, não conseguindo exprimir a autenticidade do ser, assumem um modo
de ser aparente. É nesse sentido que a linguagem da escritora é um jogo. Citando
Nunes (1976), é possível compreender o processo de representação instaurado pelas
personagens de Lispector. Numa obra literária, para que o jogo da linguagem tenha
propriedade reveladora, de alcance ontológico, é necessário que a linguagem,
enquanto ser material da ficção, constitua também de certo modo o seu objeto. [...]
6
Considerando a interpretação que Benedito Nunes faz de Wittgenstein: jogo como processos lingüísticos
mobilizados pelas diferentes atitudes que assumimos, nomeando as coisas e usando as palavras em conformidade
com as regras que estabelecemos. In O dorso do tigre. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.
Por sua vez, Foucault diria em: As palavras e as coisas que nenhuma palavra ou nenhuma proposição jamais visa a
algum conteúdo senão pelo jogo de uma representação que se e à distância de si, se desdobra e se reflete numa
outra representação que lhe é equivalente. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 122.
Clarice Lispector faz da negação da linguagem uma cifra silenciosa da transcendência,
uma revelação do Ser. (p.130 e 137, grifos do autor)
Em se tratando de análise do personagem, a obra: A personagem de ficção (1970),
organizada por Cândido, apresenta uma análise, particularmente, especial. O autor
elabora um estudo acerca da personagem, partindo do conceito de literatura, ou seja,
da análise da estrutura da obra literária. Segundo Cândido, os textos ficcionais são
reconhecidos pelo esforço em particularizar uma realidade, pois visam a dar aparência
real a uma situação imaginária. É paradoxalmente esta intensa aparência de
realidade que revela a intenção ficcional ou mimética, graças ao vigor dos detalhes,
veracidade de dados insignificantes, à coerência interna, à lógica das motivações, à
causalidade dos eventos. Assim, no texto literário, é possível representar o real com
maior nitidez. Numa obra de arte ficcional contundente, a personagem assume
características tais quais seres humanos. No texto literário, o escritor encontra o espaço
para ultrapassar o real. No entanto, afirma o autor, é a personagem que, com maior
nitidez, torna contundente a ficção. A personagem é um elemento que, junto à trama,
compõe o tecido ficcional com abertura para o real. Segundo Cândido (1970, p. 45)
na grande obra de arte literária os personagens
[...] como seres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores
de ordem cognocitiva, religiosa, moral, político social e tomam determinadas
atitudes em face desses valores. Muitas vezes debatem-se com a necessidade
de decidir-se em face de colisão de valores, passam por terríveis conflitos e
enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos essenciais da vida
humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotescos ou luminosos.
Estes aspectos profundos, muitas vezes de ordem metafísica, incomunicáveis
em toda a sua plenitude através do conceito, revelam-se como num momento
de iluminação, na plena concreção do ser humano individual. São momentos
supremos, à sua maneira perfeitos, que a vida empírica, no seu fluir cinzento e
cotidiano, geralmente o apresenta de um modo tão nítido e coerente, nem de
forma tão transparente e seletiva que possamos perceber as motivações mais
íntimas, os conflitos e crises mais recônditos na sua concatenação e no seu
desenvolvimento.
Da análise de Cândido, importante para nosso estudo é o que diz respeito ao papel do
personagem, tendo em vista que nossa intenção é perceber os modos como elas se
apresentam nos textos clariceanos. Importante citar o que Cândido afirma a esse
respeito.
A ficção é lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e
contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição, e
em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se
imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo,
verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre,
capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria
situação. (op. cit., p. 53)
Pode-se afirmar que um processo semelhante ao que afirma Candido ocorre com as
personagens criadas por Lispector. Os seres inventados pela escritora protagonizam
fortes e dolorosas dualidades, complexas tensões, inseguranças angustiantes que, sob
o signo da modernidade, acabam por determinar formas de pensamento, sugerindo
visões, subvertendo a ordem, representando aspectos ilusórios da realidade, através
dos quais exprimem sua atitude perante à vida. -se, na atuação das personagens,
uma apreensão deformada do real. Nesse processo, a escritura clariceana busca
alcançar, numa intrincada rede simbólica, um ideal de consciência e de representação.
Sua escrita brota do reconhecimento da impossibilidade de abarcar a totalidade. Em
Clarice uma vontade angustiada de representação, uma tentativa desesperada de
transpor a realidade do espírito e da imaginação para a experiência da escritura. É o
que Clarice revela em AV (1980, p. 22)
Para me interpretar e formular-me preciso de novos sinais e articulações novas
em formas que se localizem aquém e além de minha história humana.
Transfiguro a realidade e então outra realidade sonhadora e sonânbula, me
cria. E eu inteira rolo e à medida que rolo no chão vou me acrescentando em
folhas, eu, obra anônima de uma realidade anônima só justificável enquanto
dura a minha vida.
Esses dados, que a escritora faz queso de fornecer, revelam o desejo de expressar a
essência. Observa-se, assim, uma escrita resultado de um choque a partir do qual o
Outro pode emergir. Nas obras da escritora ocorre aquilo que Jozef (1980, p. 35)
afirma: Clarice une existência e linguagem; ao lado de um aspecto intuitivo uma
ordenação lógica presidindo o ato criador. O leitor é levado a juntar os índices dos
contos e romances para recompor a totalidade do real. Este é fragmentado com intuito
de dar uma visão plurissignificativa.
O que nos comenta Jozef se pode verificar, mais nitidamente, nas obras que elegemos
para analisar. Observa-se a partir de LF uma vontade de representação, uma meta
elucidativa, em que a escritora se faz personagem e vai revelando a aquisão de uma
certa experiência do mundo.
Lúcia Helena defende que toda obra de arte possui relão com a realidade,
considerando que ela consiste na veiculação de um sistema de valores que expressa
tanto uma decisão, quanto uma visão diante do mundo. Conforme Helena (1985, p. 91)
a obra será sempre uma realidade segunda, não empírica, que contém e implica um
diálogo com a problemática social da época e da sociedade em que frutifica. A autora,
ao analisar o conto A imitação da rosa, afirma que, nesse texto, Clarice põe em xeque
um conceito distorcido de mimese, muitas vezes erroneamente traduzido por cópia),
recolocando as bases de uma nova interpretão de seu valor. Na interpretação da
autora, nessa narrativa, estão em confronto o estatuto do poder social e do poder da
mimese.
Diante da ameaça da imitão das rosas, que instigam a personagem a ser
livre, o narrador confronta o estatuto do poder social e do poder da mímesis. A
escritora opõe de modo extremamente simples, elementos naturais e culturais
representados, respectivamente, pelas rosas e por Laura. (p. 91)
Desse modo, o que se pode extrair do conceito de imitação, posto em debate no conto
A imitação da rosa, é o próprio poder da linguagem. O problema com que Laura se
depara nasce de uma mimese da representação. O paradoxo da personagem reside no
fracasso de sua tentativa em imitar as rosas, no fracasso em desvencilhar-se do
método: da mimese platônica. A personagem com seu gosto minucioso pelo método
o mesmo que a fazia quando aluna copiar com letra perfeita os pontos da aula sem
compreen-los com seu gosto minucioso pelo método agora reassumido, planejava
arrumar a casa...(1998a, p.35). Diante das rosas Laura depara-se na fronteira, entre
ser ou não ser: na realidade, tal como o sofista: entre o cão e o lobo, como entre o
animal mais selvagem e o mais doméstico
7
. Ela quer desvencilhar-se do estado social
em que se encontra, quer encontrar aquela parte de si mesma, que é anterior ao
código. Tentar imitar as rosas, é romper com os códigos, com as normas pré-
estabelecidas, é ultrapassar os limites, o poder social que prevê uma norma, uma
forma. Laura não é apenas uma dona de casa bem comportada e louca. Ela é a
representão da inquietação humana, que o código paternalista tenta reprimir, por
meio das atividades cotidianas escamoteadoras das forças interiores da existência.
Nesse aspecto, se pode afirmar que a obra de Clarice acena para nós e acena para a
literatura, realizando uma espécie de espaço de desdobramento.
Em vários momentos da obra VC, a escritora lança mão dessa estratégia. No texto de
abertura intitulado explicação ela expõe que lhe foi encomendada a escritura de
alguns contos, porém estava receosa pois o tema era tabu, era "assunto perigoso". A
escritora coloca para o leitor o que espor vir nas páginas que seguirão: algo com o
qual ela mesma se espantou, chocou-se: a realidade. Uma realidade de que poucos
ousam falar (escrever) ou querem ler. O que chama a atenção sobre tal realidade
(indecente) é que é "itil dizer que o aconteceu comigo, com minha família e com
meus amigos", diz ela. Por que? Porque é sobre o corpo e sua via crucis. Este corpo
desejoso e desejado que todos possuem. Ao falar dele, fala-se de uma realidade do
ser humano. Construir estórias sobre ele e negar a "realidade" é mentir e negar seus
desejos. Lutar contra algo natural é negar "que todos passam" pela "Via crucis do
corpo".
Nesse ponto, remetemos novamente a Jozef
8
. Segundo a escritora, o artista da
modernidade escreve sob o signo da paixão. Não por acaso ela abre o capítulo com
uma citação de Clarice Lispector.
A revolução erótica do século XX, trouxe a transgressão e a abolição de valores
repressivos, possibilitando um questionamento consciente do ser: observamos
que a literatura contemporânea pergunta-se sob o signo, a linguagem e o ser. A
7
In Platão. Diálogos: O banquete- Fédon Sofista Político. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha;
tradução e notas de José Cavalcante de souza e João Cruz Costa. 5ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
8
Op. Cit., p. 288
linguagem é a tensão do desejo. [...] A arte, o equivalente moderno do rito e da
festa, através do imaginário, mantém-se vinculada ao princípio de prazer e
formula seu protesto contra a repressão. (p. 288 e 295)
Por essa observação de Bella Jozef pode-se afirmar, com toda evidência, que a escrita
de Clarice é uma escrita de embate, de colisão, no sentido em que reinvindica um
império de sensações e de signos, desviando seu efeito. Na VC ela revela: Fiquei
chocada com a realidade. [...] Então disse ao editor só publico sob pseudônimo. A
tinha escolhido um nome bastante simpático: Cláudio Lemos. Mas ele não aceitou.
Disse que eu devia ter liberdade de escrever o que quisesse. (1998c, p. 11)
Essa fala não é mais que um disfarce, uma tentativa de exaltação dos poderes do eu. O
que não é exposto abertamente, neste caso, os desejos reprimidos do corpo, seus
"desvios", suas sdas: para muitos isso não é Literatura: é lixo. Mas Clarice se
defende: "Mas a hora para tudo. também a hora do lixo". A literatura também se
preocupa com o lixo. Nos textos a escritora tece uma clara crítica à esperança dos
críticos literários de que ela, Clarice e a literatura sejam clássicas e tradicionais. Mas a
"literatura" é mais que isso e, portanto, não importa.
No conto O homem que apareceu ela levanta a questão: o que importa à literatura?
Um personagem alcoólatra, decepcionado com o mundo e consigo mesmo, diz à
personagem narradora : "Aqui só é superior a mim essa mulher porque ela escreve e
eu não", "a você só importa a literatura". Tal personagem coloca primeiramente a
escritora num vel superior a ele pelo fato de ela escrever e ele não. Porém mais
adiante verifica-se que ele também escreve. Mas porque tal afirmação, então? Ele a
coloca em um grau mais elevado porque ela é uma escritora reconhecida e ele não. Ele
escreve apenas poemas. A verdadeira diferença entre os dois es em ela não ter se
deixado levar, abater, sucumbir pelas desditas deste mundo, ao contrário dele, que não
suportou as desventuras que a vida proporciona. E esta bem sucedida escritora quer
salvá-lo, porque verdadeiramente a Literatura o importa: "Qualquer gato, qualquer
cachorro vale mais que a Literatura. Porque ela não é voltada para si, o versa sobre
si e sim sobre "qualquer gato, qualquer cachorro", sobre o ser no mundo e o mundo
que o rodeia, pois são eles que importam. A Literatura em si mesma o é nada. Ela
versa sobre o homem, sobre a escritora de sucesso e também sobre o escritor
fracassado, "como todos nós". Há a necessidade de se escrever sobre o lixo e o
fracasso também. "Nós todos somos fracassados, nós vamos morrer um dia! Quem?
Mas quem com sinceridade pode dizer que se realizou na vida? O sucesso é uma
mentira. (1998c p. 38) Para não polemizar requisitamos Benedito Nunes que esclarece
o sentido do fracasso em Lispector, pois quando se fala em fracasso, tende-se a pensar
que a escritora não foi bem sucedida em seu projeto literário. No entanto, orienta
Nunes, que devemos entender fracasso no sentido filosófico. As personagens criadas
por Lispector
[...] fracassam como todo ser humano fracassa, incapaz que é de atingir pelo
conhecimento, pela ação ou pelo coração, a plenitude a que aspiram.[...] A
romancista fracassa com a linguagem, isto é, com a experiência levada ao seu
último limite, à sua extrema conseqüência, do confronto decisivo entre realidade
e expressão. (1976, p. 137).
Deduzimos, pois, que é sobre isso que Clarice debate com o suposto personagem do
conto: O homem que apareceu, o tal Claudio Lemos, nome que ela tencionara adotar
como pseudônimo para publicação dessa obra.
Por esses dados, supomos que Clarice usa a literatura para falar isso: a vida é uma
incógnita e vivemos cheios de tabus, restrições, tradições. Criamos paradigmas para
tudo. Elegemos um patamar a ser alcançado e aquelas pessoas que não conseguem
viver sob tais códigos de comportamento, de vida, muitas vezes acabam por sucumbir.
Não conseguem enxergar que "[...] é dever da gente viver. E viver pode ser bom". E o
artista, ao ver pessoas não suportando esta vida, não acreditando que ela vale a pena,
morre também um pouco.
Em outro texto da VC: Por enquanto, Clarice nos leva a entender que estamos
inseridos em um mundo em que, muitas vezes, temos de lidar com situações diferentes,
com pessoas diferentes, problemas diferentes. Estamos muito ocupados, preocupados.
Porém momentos em que apenas deixamos o tempo passar, "porque viver tem
dessas coisas; de vez em quando se fica a zero. E tudo isso é por enquanto. Enquanto
se vive." (1998c, p. 45). A vida é o dia-a-dia. Nesse conto a escritora relata alguns
momentos dos seus dias, que se alternam entre notícias de morte, comemorações de
aniversário e telefonemas, assim, por enquanto, a vida passa. E é sobre essa vida
passageira, cotidiana que ela escreve, é sobre esta vida que a escritora Clarice se
dobra, observa e registra suas reflexões, por meio de seus contos. Esta vida que vai
nos matando aos poucos. O conto se inicia com esta afirmação: "Como tenho repetido
à exaustão, um dia se morre". Realmente nestes quatro contos a autora insiste em
expor a presença da morte em nossas vidas. Não com a intenção de negatividade, mas
para lembrar que só morre quem es vivo. "E viver é bom". A vida é cheia de
contratempos, amarguras, amores perdidos, desejos calados, lutas perdidas; também é
alegria, a felicidade momentânea, mas, ainda assim, felicidade. Eros e Thanatos
inseparáveis, necessários. É dessa tensão que emerge a escrita clariceana. Eros como
tensão de vida que se cumpre e culmina na dor, na afirmação da tensão de morte.
Conforme dissera Oliveira (1996, p. 31), relacionando essas forças ao mito de don
Juan. É o amor o fundamento cósmico que eleva o ser em busca da plenitude. O ser
movido pelo sentimento erótico amoroso promove a renúncia de si em detrimento do
outro. É o que vamos perceber na atitude das personagens femininas clariceanas.
"O 'Danúbio Azul' é lindo, é mesmo.". Apesar de tudo "Estou feliz apesar de Cláudio
Brito, apesar do telefonema sobre a minha desgraçada obra literária". (1998c, p.53)
Afirma uma personagem, provavelmente um alter ego da autora, na obra VC. Escrever
é isso: é sobreviver: "Viva eu! que ainda estou viva". Aí está a diferença entre a
escritora e Cláudio Brito. Fazer literatura, criar não é ter apenas sensibilidade para
captar o que está ao seu redor, é também e, principalmente, por meio da arte de
escrever, transformar essa, muitas vezes, dura realidade em algo que toca o outro.
Pode-se compreender, então, quando Clarice afirma que escrever nada tem a ver com
literatura, como uma estratégia para desviar a língua de seus traumas, de suas marcas
ideológicas e estereotipadas. Ao desejar esse afastamento, a escritora propõe uma
escrita de abandono, solta, para elaborar um texto à margem da língua, é que reside
a força de sua literatura. A força mimética, a força de representação que é a força de
liberdade que permite burlar o poder, tal qual nos fala Barthes.
Desse modo, Clarice parece ter consciência de que sua escrita poderá vencer se a
realidade, o texto-fonte, for desviado, seduzido, transgredido, negado, mas sem
denegação. É nesse sentido que sua escrita é erótica, pois segue, assim, uma via de
sedução do leitor, sem promessa de amor nem amizade, sem contrato nem sistema,
sem dívida nem culpa. Eis por que ela o desvia de sua própria fonte crítica, de seu
território, de sua própria língua, de seu corpo, de seus desejos camuflados e mata na
carne o desejo-animal que, como o devir-animal, insiste em tornar-se vida, caroço,
quentura, fertilidade é o que a escritora revela em AV (1980, p. 36)
Na minha noite idolatro o sentido secreto do mundo. Boca e língua. E um cavalo solto de
uma força livre. Guardo-lhe o casco em amoroso fetichismo. Na minha funda noite sopra
um louco vento que me traz fiapos de gritos. Estou sentindo o martírio de uma
inoportuna sensualidade. De madrugada acordo cheia de frutos (...) Lembro-se de mim
de com a mesma altivez do cavalo e a passar a mão pelo seu pêlo nu. Pela sua crina
agreste. Eu me sentia assim: a mulher e o cavalo.
Falaremos, então, no caso de Clarice, de uma escrita máscara de medusa, fluida, que
não se deixa apreender (Água viva), que brota do confronto obsessivo entre a razão e
a intuição, na busca do que está além do já conhecido no ser humano. Se pode afirmar
com Evando Nascimento
9
(2000, p. 121) que Clarice realiza uma literatura como
vontade de pensamento pois que inventora de seus próprios paradigmas, fundante de
uma nova genealogia, a da alteridade, do radicalmente diferente. Reservo a palavra
ficção para a resultante da tensão entre pensamento e narrativa, com predominância
ora de um, ora de outro. Ficção se torna então um dos substitutos possíveis para a
categoria de uma literatura pensante’”.
9
NASCIMENTO, Evando. Uma literatura pensante: Clarice e o inumano. In: Clarice Lispector em muitos
olhares. Programa de Pós-graduação em Letras. Departamento de Línguas e Letras. Universidade Federal do
Espírito Santo, 2000.
3 A LITERATURA E O EROTISMO NA LINGUAGEM DE CLARICE
Do capítulo anterior, podemos presumir que, na literatura, escrever é, em certo sentido,
dar representação a algo. Este algo pode ser chamado de muitas maneiras, pode ser
muito íntimo, muito pessoal, pode ser fantasia, pode partir de uma dada realidade. No
entanto, o êxito de uma obra esem sua possibilidade de representabilidade, porque
quanto mais representável é mais abre um caminho em relação àquilo que se quer
transmitir.
Lendo Clarice, descobrimos o sentido da expressão: a arte cria o real, no sentido mais
profundo, pois ela parte da consciência de que de sua palavra descobridora depende
uma parte da verdade de que os homens desejam ou anseiam por descobrir e que
somente a literatura, embora limitada pela palavra, relativa ou impotente para expressar
o real, é capaz de dizer. É desse impasse que brota a escrita clariceana, da tentativa de
redescobrir ou reinventar e nomear a verdade última da vida ou da condição humana. É
o que a faz dizer em AV (1980, p. 20): Não quero ter a terrível limitação de quem vive
apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.
Sua escrita é, assim, uma espécie de duelo entre o sentir, o pensar e o dizer, um
instrumento real do esrito, capaz de nos fazer penetrar nos labirintos mais retorcidos
da mente, conforme alega Antônio Cândido ( apud, Nunes, 1995, p. 12)
Em A paixão segundo GH (1998d, p. 21) a escritora escreve: Vou criar o que me
aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a
vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar o é imaginação. É correr o grande
risco de se ter a realidade. Assim, as palavras, em Clarice Lispector, têm uma potência
criadora, geradora de realidades invisíveis, permitindo a nossa visão, de aspectos
insuspeitos de nós mesmos, mas que reconhecemos e tornamos nossos, assim que ela
os nomeia, assim que ela dá forma ao que, a então, não tínhamos condições de
perceber. Ao ler Clarice, assistimos à sua luta com a insuficiência da palavra em
manifestar com autenticidade o âmago do sentir e do pensar. A escritora busca o que
está além do já conhecido no ser humano, para isso trava um confronto obsessivo entre
o conhecimento racional e o sensorial quando procura desvendar a verdade humana
que nele se oculta para além do condicionamento social. É escrevendo que a
escritora pode sentir e proclamar a descoberta, conforme faz GH.
Para minha anterior moralidade profunda minha moralidade era o desejo de
entender e, como eu não entendia, eu arrumava as coisas, foi ontem e agora
eu descobri que sempre fora profundamente moral: eu admitia a finalidade
para minha profunda moralidade anterior, eu ter descoberto que eu estou
cruamente viva quanto essa crua luz que ontem aprendi, para aquela minha
moralidade, a glória dura de estar viva é o horror. Eu antes vivia de um mundo
humanizado, mas o puramente vivo derrubou a moralidade que eu tinha? É que
um mundo vivo tem a força de um inferno. (p.22)
Essa força de representação é sentida, segundo os críticos, desde sua estréia na
literatura em 1944, com Perto do coração selvagem. Desde o seu primeiro romance se
pode perceber o afã de se fazer representar. O que leva o crítico Benedito Nunes, em
seu tão visitado livro O drama da linguagem, a postular uma certa afinidade da autora
com James Joyce e Virnia Woolf pelo realismo psicológico com que descreve suas
personagens. Conforme Nunes (1995), Perto do Coração selvagem abre um novo
caminho para nossa literatura, na medida em que incorporou a mimese centrada na
consciência individual como modo de apreensão artística da realidade.(p.12)
De fato, o projeto de liberdade da escritora é posto em ão, desde a criação de sua
primeira personagem feminina. Já a partir de Joana a inquietação e o desejo se move
no interior da escritura
10
clariceana. O desejo é a sua hybris
11
, utilizando um termo de
Benedito Nunes aliás, bastante pertinente, no sentido por ele proposto: o da culpa
trágica. Sobre esse aspecto, veremos mais adiante, num capítulo a parte,
fundamentado na concepção que Nietzsche faz da tragédia grega. Veremos que a
10
(Utilizamos o termo escritura no sentido que lhe dá Julia Kristeva: texto é o lugar onde o sujeito se arrisca em uma
situação crítica radical, e não o produto acabado de um sujeito pleno. (apud Perrone Moisés, Leyla. Texto, crítica e
escritura, 1978.)
11
Hybris em grego quer dizer excesso, orgulho, fogocidade, multiplicidade e mudança. Nunes usa a palavra hybris
e notifica como sentido de culpa trágica, que no entender do autor provém do excesso de uma desmesura que carrega
a personagem Joana e que corresponde à infinitude do desejo. A hybris difere do pecado no sentido cristão (falta
contra a vontade de Deus). É um perigo demoníaco, explica Jaeger, que se acha na insaciabilidade do apetite que
sempre deseja duplicar o que tem, por muito que isto seja. (op. cit., p. 20)
escrita clariceana é uma experiência que contempla a hybris, porque emerge de um
sentimento de busca de purificação e libertação.
É através dessa perspectiva de leitura que se torna mais fácil compreendermos a
grande arte clariceana, cuja coerência resulta de um perfeito algama entre a
problemática universal e sua verdade íntima, que a escritora procura a cada obra
aprofundar. A experiência a que nos condena Clarice Lispector, em sua força de
literatura, é a de um desnudamento de nosso olhar anterior, uma surpresa frente ao
desconhecimento que mantínhamos, um assombro frente a negação de nossas
próprias forças, um susto por não termos percebido antes o quanto deixávamos de ver.
Lispector nos faz vislumbrar aquilo que Maurice Merleau-Ponty (1980, p. 122) denomina
de logos do mundo estético, que tem no corpo e na linguagem a experiência reveladora
de um ser pré-reflexivo, que somos nós, sempre aquém e além dos fatores e das idéias.
A linguagem é pois, este aparelho singular que como nosso corpo, nosmais
do que pusemos nela, seja porque apreendemos nossos próprios pensamentos
quando falamos, seja porque os apreendemos quando escutamos outros. [...] O
que de risco na comunicação literária, e de ambíguo, irreduvel à tese em
todas as grandes obras de arte, não é um delíquio provisório, do qual se
pudesse esperar eximi-la, mas o esforço a que se tem de consentir para atingir
a literatura, ou seja, a linguagem a explorar, que nos conduz à perspectivas
inéditas em vez de nos confirmar as nossas.
Analisando a linguagem de Clarice por essa perspectiva, vê-se que ela se enquadra
nesse universo, pois não se conforma nas regras de decodificação em que se ampara
nosso pensamento, que tem como coordenadas o tempo e o espaço e, que supõe que
o mundo se apresenta como coisa natural a nós destinada. A linguagem de Clarice não
se enquadra, ela desorienta os lugares feitos, quebra a estrutura, desarticula, é uma
linguagem de in- pacto. Visto que se esforça por tornar o leitor um verdadeiro cúmplice
de sua invenção ficcional, impedindo-o de sentir-se seguro no emaranhado das
palavras e forçando-o a ouvir os silêncios nos interstícios da escritura.
É nesse sentido que se pode afirmar que a escrita de Lispector é transgressora. Ao
procurar dizer o impossível, o interdito, a escritora outorga a seu texto um movimento
que viaja, provocando o eterno deslocamento dos personagens e exigindo que eles
se reencontrem e também se deixem. Ao desviar o texto concebido como imagem
escrita, imagem que sente a vida-morte, a autora realiza uma experiência de
transgressão. A experiência de transgressão que, conforme Bataillle (apud, Machado
2000) é uma experiência que leva ao limite, ao ximo que se pode, afirmando o ser
limitado, sem estabelecer oposições de valor, sem separar em termos de negativo e
positivo. Os conceitos de limite e de transgressão são utilizados por Bataille para
pensar o erotismo como exuberância da vida, como promessa de vida, como ápice da
vida. O erotismo, no entender de Bataille, é o domínio da transgressão da vitória sobre
o interdito.
É transgredindo os limites necesrios a sua conservação como ser finito
conservação que tem o fim negativo de evitar a morte que o homem se
afirma, querendo ir o mais longe possível, aumentando sua intensidade, o único
valor positivo para além do bem e do mal [..] a transgressão a violação da lei é
uma desordem organizada, regularizada, no excesso erótico nós veneramos a
regra que transgredimos. (op. cit., p. 59)
Bataille ainda afirma que só pela literatura o erotismo pode ser levado ao limite do
possível, havendo uma ligação intrínseca entre transgressão e literatura. Sendo assim,
falar sobre o erotismo, assinalar o tema nos textos clariceanos é defrontar-se com o
literário, com a incidência da sua linguagem.
Buscando mais uma vez Barthes (1978, p. 12), veremos que ele defende a literatura
como o espaço privilegiado, no sentido de que é o lugar onde há possibilidade de
conceber a língua fora do poder. Conforme o autor, todo discurso visa ao poder, este
encontra-se presente em todos os lugares, nos mais finos mecanismos do intercâmbio
social. Orienta o autor que um discurso fora do poder é extremamente difícil, pois o
poder é um organismo trans-social, ligado à história inteira do homem, e o somente
à sua história política, histórica. Sendo assim, para Barthes, a literatura apresenta-se
como um desvio das relações que se estabelecem para a linguagem, pois é onde se
pode trapacear com a língua, trapacear a ngua. Essa trapaça salutar, essa esquiva,
esse malogro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no explendor de uma
revolução permanente da linguagem, eu a chamo quanto a mim: literatura. (grifo do
autor)
Fragmentos de um discurso amoroso é outro livro em que Barthes defende a
literatura como forma de burlar o poder, de trapacear a linguagem. O filósofo francês
reúne, nessa obra, fragmentos de textos literários, com os quais estabelece um
diálogo, uma troca, num discurso apaixonado. Ele compara o discurso amoroso ao
discurso literário, em que o sujeito manifesta o seu discurso como um apaixonado.
Portanto, fora dos limites imposto pelo senso comum à linguagem.
O que assinala Barthes a respeito do poder da linguagem e do papel da literatura é
fundamental quando se pretende analisar algo como erotismo e representação nas
narrativas da escritora Clarice Lispector. Sabe-se que a problemática da linguagem
é que orienta o percurso narrativo da escritora, com a qual ela se debate
constantemente. Nos textos clariceanos a linguagem literária é usada como
diferença, sentida como uma construção a oscilar entre a instauração do estranho e
o retorno ao familiar, este mostrado agora em seu caráter de artifício, lugar-comum
que permite a comunicação, o laço social, mas traz em si a marca do desejo, do
gozo, traço defendido também por Barthes em outra obra, que convém percorrer,
antes de adentrar nos textos da escritora.
Em O prazer do texto (1996, p. 9), Barthes opera a distinção entre prazer e fruição,
apontando os escritos literários clássicos como textos de prazer e os textos da
modernidade como textos de fruição. Para Barthes os textos ficam emboscados entre
esses dois momentos distintos de recepção que, por vezes, estão em oposição.
Segundo Barthes se o leitor lê um texto com prazer é porque este foi escrito no prazer.
No entanto, ao que escreve, embora o faça com prazer, não é garantido que venha
provocar prazer no leitor. Conforme Barthes, para que haja reciprocidade de prazer é
necessário que se busque o leitor. No entanto, esse leitor que se procura, afirma o
autor, não se sabe onde ele está.
Escrever no prazer me assegura a mim, escritor o prazer de meu leitor? De
modo algum. Esse leitor, é mister que eu o procure (que eu o drague) sem
saber onde ele está. Um espaço de fruição fica então criado. Não é a pessoa
do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do
desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados,
que haja um jogo. (grifos do autor)
Vale dizer que Clarice opera com a busca desse espaço de fruição de que nos fala
Barthes, pois trabalha uma linguagem no sentido de aproximar-se do receptor,
buscando uma dialética do desejo. A palavra nos textos de Clarice é exposta e
desvirtuada, a todo instante, instala-se assim, uma neurose condicionada pela busca
incessante de penetrar no universo do Outro. Da obra AV (1980, p. 14) extraímos um
trecho que traduz o que estamos apontando.
Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante. Aprofundo as
palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra. o quero
perguntar por quê, pode-se perguntar sempre por que e sempre continuar sem
resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a
uma pergunta sem resposta? Embora adivinhe que em algum lugar ou em
algum tempo existe a grande resposta para mim. E depois saberei como pintar
e escrever, depois da estranha mais íntima resposta. Ouve-me, ouve o silêncio.
O que te falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me
escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão.
Por essa fala e por outras que ao longo deste trabalho citaremos, percebe-se que as
personagens de Lispector se arremessam aos derradeiros porquês e, à beira do
enigma, se sufocam no silêncio impenetvel, instaurando a neurose, que é a
impossibilidade de alcançar a totalidade da linguagem. Ao analisar esse aspecto
Barthes em (op. cit., p.10) cita Bataille
A neurose é um último recurso: não em relação à saúde, mas em relação ao
impossível de que fala Bataille (a neurose é a apreensão timorata de um fundo
impossível, etc.); mas esse último recurso é o único que permite escrever (e
ler). Chega-se então a este paradoxo: os textos, como os de Bataille ou de
outros- que são escritos contra a neurose, do seio da loucura, m em si, se
querem ser lidos, esse pouco de neurose necessário para sedução de seus
leitores.
Essa característica, a qual assinala Barthes, situa a escrita de Clarice Lispector no
âmbito da modernidade, uma vez que ela imprime em seus textos uma linguagem que
opera entre duas margens, no entender de Barthes, uma margem sensata,
caracterizada pelo uso habitual da língua e uma margem, vel, vazia (apta a tomar
não importa quais contornos) que nunca é mais do que o lugar de seu efeito: onde se
entrevê a morte da linguagem. (p.12)
Em AV ( 1980, p.28) se pode perceber que o texto de Lispector opera com essa
duplicidade da linguagem. A personagem narradora opera com a consciência da falta,
no sentido de não poder expressar tudo que deseja.
muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-
me a inventar novas: as que existem devem dizer o que consegue dizer e o
que é proibido. E o que é eu proibido eu adivinho. Se houver força atrás do
pensamento o há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás
do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino.
Conforme Barthes (1996, p. 22) o texto do prazer é dizível, o texto da fruição opera no
interdito:
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, euforia; aquele que vem da
cultura, o rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura.
Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta,
faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência
de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua
relação com a linguagem.
A partir dessa diferencião, convém buscar o conceito de erotismo a fim de justificar a
presença deste nos textos da escritora.
Bataille em O erotismo (1980, p. 13) nos leva a descobrir que entre todos os aspectos
da vida humana, o erotismo é o mais misterioso, pois se articula em torno de duas
instâncias: vida e morte. Conforme o autor embora a atividade erótica comece por ser
uma exuberância da vida, o objeto dessa busca psicológica, independente da
preocupação da reprodução, não é estranho à morte.
Conforme Bataille, a diferença entre os seres se apresenta como um abismo. Esse
abismo é que os faz movimentar-se em busca de completude, de superação, pois
somos seres descontínuos. Assim sendo, estamos permanentemente em busca de
continuidade. E, através da reprodução o ser humano alcança a continuidade. No
entanto, a continuidade es associada à morte. Para o filósofo, o erotismo é a
experiência que permite ao ser humano ir num além de si mesmo, superar a
descontinuidade que o condena. Portanto, o erotismo é a chave que desvenda os
aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social,
entre o humano e o inumano. Orienta o autor que o erotismo é o que leva o homem a
pôr o seu ser em questão.
É nesse ponto que situamos a escrita de Clarice, como uma escrita erótica, pois atua a
partir de uma experiência contraditória. Seu texto brota de um excedente de forças em
confronto, em que estão presentes elementos como: humano/inumano,
sagrado/profano, vida/morte, tudo isso, numa atitude de afirmação trágica da vida. O
que Clarice revela em AV (1980, p.41) é o jorro de uma energia que pretende romper
com os códigos, com a moral: núcleo de uma vontade de potência que transforma a
estética do movimento em pura intensidade. D a mulher afirmar: não conheço
proibição. E minha própria força me libera, essa vida que se me transborda.
Orienta Bataille que, no erotismo, o indivíduo encontra as condições de vivenciar uma
experiência interior pessoal: a experiência contraditória do proibido e da transgressão.
Supomos que é desse processo que surgem as personagens clariceanas. As mulheres
nos textos da escritora se descobrem, de repente, num mundo conflituoso e, quase
sempre, isso se pela ruptura, pelo choque, pelo inesperado, pelo susto da vida que
pulsa no subconsciente, com características diferenciadas do mundo conhecido. AV é
uma obra que traz essas características. Nela Clarice rompe com a estrutura, propondo
uma escrita de colisão, de desafio, uma escrita que é carne e sensação.
Expresso a mim e a ti os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras
uma oraca beleza confusa. Estremo de prazer por entre a novidade de usar
palavras que formam intenso matagal! Luto por conquistar mais profundamente
a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário:
sou sozinha, eu e minha liberdade. É tamanha a liberdade que pode
escandalizar um primitivo mas sei que não te escandalizas com a plenitude que
consigo e que é sem fronteiras perceptíveis. Esta minha capacidade de viver o
que é redondo e amplo cerco-me por plantas carnívoras e animais
legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo mítico. [...]
Mergulho na quase dor de uma intensa alegria. (1980, p. 41)
O sentido deve aqui ser compreendido na acepção de sensualidade, de sexualidade:
corpo da escrita, que é puro deleite da carne. Desse modo a escrita de Clarice segue,
assim, uma via de sedução do leitor. Porém, sem promessa de amor, sem contrato nem
sistema, sem dívida nem culpa. Eis por que ela o desvia de sua própria fonte crítica, de
seu território, de sua língua, de seu corpo estrangulado pelo excesso de órgãos, de
seus desejos camuflados e mata na carne o desejo-animal que, como o devir-animal,
insiste em tornar-se vida, caroço, quentura, fertilidade: Como se arrancasse das
profundezas da terra as nodosas raízes de árvore descomunal, é assim que te escrevo,
e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de
fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realização. (1980, p.
20)
Segundo Machado (2000, p. 66) a literatura, depois de Sade, aparece como levada ao
limite: limite da consciência porque permite ler o inconsciente; limite da lei, porque o
incesto é a proibição universal; limite da linguagem porque assinala até onde a
linguagem pode ir. Dessa forma, observa-se em Clarice a idéia de uma experiência
radical da linguagem, considerada como experiência do limite e da transgressão.
Conforme interpreta Bataille, em última análise, afirmando que o erotismo é a
dissolução das formas regulares da vida social, como infração à regra dos interditos,
querendo com isso dizer que, não a regularidade, mas também, a irregularidade
moral, manifestada no erotismo, faz parte do homem e não pode ser eliminado da vida,
por mais perigoso que isso seja.
Na literatura brasileira, Lispector aparece como a escritora mais representativa no que
se refere a problematização sobre a condição feminina. Por nossa vez, afirmamos que
é a partir de LF que essa questão é encaminhada mais claramente. Ao longo dessa
obra se pode perceber que a busca da identidade feminina caminha ao lado da questão
da repressão imposta pela ideologia dominante. No âmago dessas questões es o
problema da sexualidade.
De antemão, analisar o erótico numa obra literária é defrontar-se com o conflito, com a
queso da sexualidade que a sociedade interdita, conforme Foucault (2001, p. 9), para
quem o dispositivo da sexualidade engloba discursos, instituições, decisões
regulamentares, leis pelas quais os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua
conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos. Para Focault nem
mesmos os discursos mais libertários escapam do dispositivo da sexualidade.
Pode-se considerar que a influência da sexualidade permeia todas as manifestações
humanas, do nascimento até a morte. No entanto, durante a maior parte da história da
humanidade essa influência foi negada, em especial entre os povos ligados às
tradições judaicas e cristãs, atualmente representadas pela assim denominada
civilização cristã ocidental.
Para bem compreendermos a motivação social para a enorme repressão às
manifestões prazerosas da sexualidade feita pela cultura judaica, é importante que
nos reportemos às suas origens. Ampara-nos nessa tarefa Vainfas (1997)
12
que trata da
moral e da sexualidade no Brasil e Chauí (1991).
Segundo Vainfas (1997), o preconceito e a repressão contra a mulher se desenvolveu
desde um estágio primitivo. Na época em que essas tradões foram estabelecidas,
Israel era uma pequena tribo, igual a dezenas de outras, que ora vagavam pelo Oriente
dio, ora se estabeleciam em determinados locais. Os judeus tinham,
necessariamente, que incentivar a diferenciação entre seu povo e os outros, para poder
estabelecer a consciência de uma "nacionalidade". Os outros povos da época e da
região (cananeus, filisteus etc.) eram todos politeístas, com uma enorme multiplicidade
de deuses e deusas, todos eles altamente sexuados. Segundo a mitologia da maioria
desses povos, o universo teria se originado de uma união entre dois deuses, quase
12
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral , sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997. Nessa obra o autor realiza um estudo acerca de como se produziu a moralidade e sexualidade no
Brasil entre os séculos XVI e XVIII. De maneira bastante resumida realizamos um estudo dessa obra no que ela
assinala sobre a repressão feminina a fim de compreender o pensamento de Michel Foucault sobre a sexualidade.
sempre irmãos. Assim, para se diferenciar desses outros povos, os israelitas cultuam
um deus assexuado (Javé), que cria o Universo a partir do nada, isto é, sem parceria,
de maneira assexuada. Nota-se assim que para os israelitas a sexualidade perde os
atributos divinos, deixando de haver uma "sexualidade sagrada", cultivada nos templos,
como era comum entre os seguidores das outras religiões.
Além disso, pelas suas características expansionistas e guerreiras, Israel necessitava
de muitos, soldados. Como a mortalidade infantil era muito alta, a solução encontrada
foi estimular o aumento da natalidade, devendo todos praticarem apenas o "sexo-
reprodução". O "sexo-prazer", assim, passou a ser malvisto e a esterilidade
considerada a maior das maldições. A anticoncepção, em qualquer modalidade, passou
a ser uma ofensa aos conterrâneos e à religião, sendo Onã fulminado por Javé por
haver usado de subterfúgios anticonceptivos. Assim, a masturbação e a
homossexualidade masculina eram abominões terríveis, enquanto a
homossexualidade feminina era um crime tão horrível que nem sequer era cogitado.
Seguindo essa linha de pensamento, os judeus (seguidos mais tarde pelos cristãos)
deram a mesmo uma nova interpretação às causas da queda do Homem. Uma leitura
um pouco mais atenta do Velho Testamento nos permite observar que Adão e Eva
foram expulsos do Paraíso apenas por não terem obedecido às ordens de Jeová, que
os proibiu de comer dos frutos da Árvore da Ciência do Bem e do Mal (nesis, 2:17).
Fica explícito, no texto, que a expulsão do paraíso se deveu à desobediência em si, e
não ao fato de terem eles tido relações sexuais (Gênesis, 3:22). Registra-se, no mesmo
versículo, o receio divino de que o homem, tendo condições de conhecer o Bem e o
Mal, por ter provado do fruto da Árvore, continuasse a ser desobediente e provasse
também dos frutos da Árvore da Vida, passando assim a ser também imortal. No claro
intuito de reprimir as manifestações da sexualidade, no entanto, o texto foi
reinterpretado, sendo apresentado como causa da queda, a experiência sexual que
Adão e Eva tiveram. Segundo Chauí (1991, p. 86)
O pecado original possui duas faces: é o deixar-se seduzir (tentação) pela
promessa de bens maiores do que os possuídos (como se houvesse alguém
mais potente do que Deus para distribuí-los) e é transgressão de um interdito
concernente ao conhecimento do bem e do mal. Seu primeiro efeito: a
descoberta da nudez e o sentimento de vergonha, de um lado, e o medo do
castigo, de outro. Seu segundo efeito, a perda do paraíso.
A sexualidade foi, seguindo esse caminho, deixando de ser fonte de prazer, passando a
ser apenas mais uma das "obrigações" que os bons patriotas judeus deveriam cultivar.
Esse comportamento anti-sexual foi cristalizado em todo um ritual de purificação das
mulheres durante e após as menstruações. Consideradas impuras nesses períodos,
deviam - as ortodoxas ainda devem - se submeter a todo um processo de purificação
que, por durar vários dias, termina próximo ao período ovulatório seguinte, levando
como conseqüência a um aumento das taxas de reprodução.
Não que os judeus não conhecessem o prazer advindo da sexualidade; conheciam-no
sim e, embora o fosse considerado louvável, era ao menos socialmente tolerável
para os homens. Basta ler no Velho Testamento o ntico dos Cânticos para que se
tenha uma boa visão do erotismo que permeava a vida e os pensamentos de, ao
menos, alguns privilegiados como o Rei Saloo. No geral, entretanto, podemos dizer
que a cultura judaica é sexualmente repressora, machista e sexista.
Com o surgir do cristianismo as coisas se mantiveram nos mesmos moldes, ou talvez
até piores, sob certos aspectos. Os cristãos dos primeiros séculos, como os primitivos
israelitas, eram minoritários e tinham que se esforçar para diferenciar-se das outras
religiões vigentes no Império Romano. Mesmo os sacerdotes cristãos, nos primeiros
séculos, casavam-se regularmente e mantinham vida sexual ativa. Embora a
obrigatoriedade do celibato sacerdotal fosse discutida desde o Concílio de Ancisa, em
314 d.C. (e essa discussão foi cheia de marchas e contramarchas que duraram vários
séculos), foi só a partir de determinação expressa do Papa Gregório VII, em 1075, que
o matrimônio passou a ser proibido para os sacerdotes católicos.
Assim, repetiram os cristãos o mesmo modelo repressor da sexualidade herdado dos
judeus. No entanto, embora as igrejas cristãs (especialmente a Católica) sejam no geral
bastante repressoras em termos de sexualidade, vale a pena lembrar que não existe
registro, em todo o Novo Testamento, de qualquer ato ou palavra repressora que possa
ser atribuída ao próprio Jesus. Pelo contrário, em alguns episódios (o referente à
mulher adúltera, por exemplo, em João, 8:7), suas palavras demonstram uma tolerância
e uma compreensão das fraquezas e dos desejos humanos absolutamente
incompatível com a ferocidade com que seus seguidores reprimiram (e alguns ainda
reprimem), as manifestações da sexualidade. Aliás, cite-se como um registro curioso
que Aristeles, expressava sérias dúvidas sobre se a mulher teria ou o uma alma.
Considerando tudo isso, podemos dizer que pela vertente cultural judaica cris
herdamos uma visão extremamente repressora da sexualidade, mais acentuadamente
marcada, como sempre, para o contingente feminino.
Numa outra vertente, a greco-romana, embora por motivos diferentes, também exerceu
repressão sobre a sexualidade, ao menos sobre a feminina. Os homens gregos tinham
a busca do prazer como ideal, sendo permitidas e a incentivadas quaisquer
experiências hedonistas. Esse prazer, no entanto, era buscado fora de casa, entre as
prostitutas, ou em práticas homossexuais ("amor-paio"), com efebos. As esposas
eram quase que prisioneiras de uma dependência doméstica - gineceu, sendo mantidas
como embrutecidas e emburrecidas quinas de administrar casas e fazer filhos,
sendo-lhes negado qualquer direito ou qualquer prazer. A cultura grega foi, assim,
machista, hedonista e, do ponto de vista da mulher, repressora.
Os romanos, ao menos em certos períodos e para certas classes sociais, foram um
pouco mais liberais. Entretanto, vista como um todo, sua cultura também foi bastante
machista, visto que permitia o prazer apenas aos homens e a algumas privilegiadas
mulheres.
Em resumo, o machismo, como instrumento do patriarcalismo que herdamos de nossos
antecessores culturais, tem pelo menos seis mil anos de história registrada, e
possivelmente, muitos milênios a mais. Ainda que os tricos da árqueo-antropologia
não cheguem a um consenso, é, praticamente, certo que o machismo tenha surgido a
partir da época em que o homem reconheceu seu papel no processo da reprodução.
Aesse momento, julgava-se que a mulher era capaz de fazer filhos por sua própria
conta, sem o concurso do macho e, ainda segundo a maioria dos estudiosos desse
tema, os primeiros Deuses eram de sexo feminino.
Usado, inicialmente, como instrumento preservador do poder masculino, o machismo
deu tão certo, como recurso, que a hoje, ainda, não conseguimos nos livrar
adequadamente de suas conseqüências.
No decorrer de todos os séculos de história da humanidade, apenas em breves
períodos, houve uma visão mais liberal sobre o exercício da sexualidade. Tivemos,
ainda que restritos, apenas a alguns segmentos da sociedade, períodos de liberação e
visão mais positiva da sexualidade em curtos períodos hisricos. Nunca, no entanto, o
estudo do exercício da sexualidade humana foi considerado importante e, apenas nas
últimas décadas, vem sendo visto como um tema merecedor de estudos por um ramo
da ciência.
Assim, como se vê, nossas raízes culturais estão impregnadas de uma visão distorcida
da sexualidade, onde a prática da repressão é o comportamento usual, ao menos para
as mulheres, quando não também para os homens. Em outras palavras, em nossa
cultura, ao menos até bem recentemente, o machismo reinou impunemente.
Embora nossa civilização tenha, nos últimos séculos, vivido alguns momentos de maior
liberalidade, essa visão distorcida da sexualidade foi a nica principal, mantida durante
todos esses séculos em que ela veio se cristalizando. Diga-se de passagem que,
mesmo em seus momentos de mais liberdade, o exercício pleno da sexualidade sempre
foi apanágio das pessoas adultas, que vêem com maus olhos a sexualidade dos
adolescentes, ridicularizam as manifestações sexuais da terceira idade e negam - ao
menos negaram até a poucas décadas - a sexualidade na infância. De fato, foi
necessário que surgisse um Freud, no apagar das luzes do século XIX, para que
"descobríssemos" que a sexualidade existe e se manifesta, ainda que de formas
diferentes, durante toda a durão da vida humana.
Esse breve retorno à história nos auxilia a compreender a hipótese repressiva de
Foucault. Segundo esse filósofo, até o século XVIII, não havia uma problematização
sobre a sexualidade, o que havia eram regras moralistas calcadas do início do
cristianismo, que via, na reprodão da espécie, o modo lógico de se pensar na
sexualidade. O cristianismo veio codificar, rigorosamente, a prática heterossexual e,
acima de tudo, identificar o sexo ao mal. Sendo assim, o sexo deveria seguir apenas
os desígnios de Deus, ou seja, a procriação.
Segundo Foucault entre o final do século XIX e início do século XX, deu-se uma
verdadeira vontade de saber, passou-se a problematizar tudo que estava ligado direta
ou indiretamente à vida sexual, seja no discurso médico, seja no confessionário, (que
tornou-se mais um interrogatório), seja no campo pedagógico ou no plano jurídico, seja
na educão das crianças, na escola ou em casa, incitou-se o mais que se pode o
discurso sobre a sexualidade, de modo que essa fosse controlada e reprimida
rigorosamente. A hipótese repressiva de Foucault é a de que o próprio poder,
através das instituições como: a igreja, a escola, a família, incitou uma proliferão de
discursos sobre sexo, no sentido não de divulgar as práticas sexuais, mas sim, de
reduzir a prática como forma de controle dos indivíduos. Citando Foucault (2003, p.
101) veremos que:
A História da sexualidade se estrutura em torno de um sistema de regras que
define o permitido e o proibido, o prescrito e o ilícito. A sexualidade é o nome
que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se
apreende com dificuldade, mas à grande rede de supercie em que a
estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso,
a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências,
encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e
de poder.
Foucault considera que o controle familiar que, aparentemente, visa apenas a vigiar e
reprimir, funciona, na verdade, como mecanismo de dupla incitão: prazer e poder.
Foucault não aceita que o sistema atua como órgão repressor da sexualidade. Para ele
a sociedade capitalista liga prazer e poder. Nessa relação de domínio, ocorreu a
histerização do corpo da mulher e psiquiatrização do prazer perverso. Nesse âmbito,
a mulher aparece como representante da aliança desviada e da sexualidade anormal.
A feminilidade foi considerada um enigma por muitos séculos, sendo que a figura da
masculinidade era mais delimitada. Ser homem era ser forte e viril. Entretanto nada
mais complexo do que ser homem ou ser mulher, porque o se nasce assim. Existe
um tornar-se homem e um tornar-se mulher, ou seja, ser homem ou mulher não é algo
da ordem da natureza e da evidência, mas da ordem do vir-a-ser e produzida por uma
história pessoal e única de cada um. Então a questão não se refere unicamente à
feminilidade, mas à masculinidade também, pois a condição de virilidade é tão
enigmática quanto a da feminilidade. Vale dizer, então, que o que se torna enigmático
atualmente é o enigma da diferença sexual.
Foi a partir do século XVIII que se pretendeu delinear uma diferença de essência entre
o masculino e o feminino, porque antes disso não havia uma separação maior entre as
figuras do homem e da mulher. Esta era considerada como sendo um homem
imperfeito. Então quando estas diferenças foram sendo marcadas, a figura da mulher
girava em torno do ideal da maternidade, e o traço da sedução foi negado. Com isso,
ser mãe e ser mulher ao mesmo tempo seria incompatível. A figura de mãe era o
oposto da figura de mulher. A partir do século XVIII, para ser mãe a mulher tinha que
abrir mão da feminilidade, para que então sua figura fosse harmônica com a de esposa
pura e fiel. Sendo assim, a mulher que ainda mantivesse sua sensualidade passava a
ser mal vista e considerada perigosa, beirando as raias da prostituição. A prostituta era
a materialização da indecência de mulher e a maternidade estaria fora de sua vida. A
prostituição passava, assim, a ter uma fuão social bem delimitada: aquela que
oferecia ao homem o gozo proibido de ser vivido com a esposa, no espaço privado da
família. As prostitutas podiam satisfazer as volúpias masculinas. A figura da prostituta
seria a condição necessária para a existência da figura da maternidade, sem a qual
esta correria risco. Compreende-se então, as razões pela qual Foucault rejeita a idéia
de um sistema repressor. O cerceamento das regras de decência provocou,
provavelmente como contra efeito uma valorização e uma intensificação do discurso
indecente, mas o essencial é a multiplicão dos discursos sobre o sexo no próprio
campo do exercício do poder (1988, p. 22) A hipótese repressiva de Foucault é que as
instituições construíram regras de conduta em torno do sexo com o objetivo de produzir
uma sexualidade economicamente útil. Regula-se o sexo por meio do discurso. Um
discurso, onde a conduta sexual da populão é tomada, ao mesmo tempo, como
objeto de análise e alvo de intervenção. (p.29)
Embora, vista por outro ângulo, pela questão do poder, a hipótese repressiva não
nega a submissão imposta à mulher no decorrer dos tempos, ao contrário pelo que
afirma o filósofo, em algumas sociedades, a sexualidade feminina foi reduzida à sua
função reprodutiva, a forma heterossexual e legitimada pelo matrimônio. No entanto,
esclarece Foucault, não se trata apenas disso, outros objetivos postos em ação nas
políticas sociais concernentes aos dois sexos, às diferentes idades e às classes
sociais. (2003, p. 98). Salienta o filósofo que, em torno do sexo, se construiu
estratégias de poder, entre elas a histerização do corpo da mulher [...] (cuja
fecundidade regulada deve assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser
elemento substancial e funcional) (p.99) Assim, pela hipótese foucaultiana de
repressão, construiu-se em torno do sexo todo um discurso contrário ao uso dos
prazeres. Citando Foucault (2003, p. 102) vamos compreender melhor a questão.
A questão colocada era a do comércio permitido ou proibido ( adultério, relação
fora do casamento, relação com pessoa interdita pelo sangue, ou a condição, o
caráter legítimo ou não do ato da conjunção; depois pouco a pouco, com a nova
pastoral e sua aplicação nos semirios, colégios, conventos passou-se de
uma problemática da relação para uma problemática da carne, isto é, do
corpo, da sensação, da natureza do prazer, dos movimentos mais secretos da
concunpiscência, das formas sutis da deleitação e do consentimento. A
sexualidade estava brotando, nascendo de uma técnica de poder que,
originariamente, estivera centrada na aliança.
A aliança da qual nos fala Foucault tem na família o seu centro articulador. Pois
funciona como um mecanismo de controle e de regulação dos prazeres. Tudo que
ocorrer fora da esfera familiar vai ser condenado. O dispositivo da sexualidade, que se
desenvolvera primeiro nas margens das instituições familiares (na direção espiritual, na
pedagogia), vai se recentrar pouco a pouco na família: o que ele podia comportar de
estranho, de irredutível, de perigoso, talvez para o dispositivo da aliança. (p. 104)
Obviamente que, nesse processo, a mulher sofre as maiores conseqüências, visto que
é sobre elas que o poder es voltado, exercendo um controle maior. Afastada de
qualquer participão política e das transformações do mundo, às mulheres sobrou a
administração do lar, sem nada aprender e sem nada fazer, a não ser ter filhos. Sua
moralidade estava condicionada a dedicação à família. Citando Foucault (op. cit. p.104-
105), vamos compreender como se encaminha essa questão.
Aparecem, então, estas personagens novas: a mulher nervosa, a esposa
frígida, a mãe indiferente ou assediada por obsessões homicidas, o marido
impotente, sádico, perverso, a moça histérica ou neurastênica, a criança
precoce e já esgotada, o jovem homossexual que recusa o casamento ou
menospreza sua própria mulher. São as figuras mistas da aliança desviada e da
sexualidade anormal: transferem a perturbação da segunda para a ordem da
primeira; dão oportunidade para que o sistema da aliança faça valer seus
direitos na ordem da sexualidade. Nasce, então, uma demanda incessante a
partir da família; de que ajuda a resolver tais interferências infelizes entre a
sexualidade e a aliança;
Dentro desse pressuposto, as personagens femininas clariceanas, parecem ser o relato
da situação dessa mulher, presa na cilada desse dispositivo de sexualidade, de que nos
fala Foucault. A obra LF denuncia a situação de perda da mulher ante o pacto
civilizario, previsto por Freud e ante o sistema de aliaa preconizado por Foucault.
Ironicamente, o lugar que Clarice elege para tratar do conflito da identidade feminina, é
o laço familiar. Do reduto do lar partem os questionamentos femininos; advindos da
insatisfação, do prejuízo legado pelo sistema. O erotismo torna-se, dessa forma, um
meio de dar vazão ao antes silenciado. Se é como afirma Otávio Paz (2001, p. 49) a
propósito do erotismo e da poesia que o primeiro é uma metáfora da sexualidade, a
segunda uma erotização da linguagem, diríamos que a linguagem de Clarice se
empenha em expressar a consciência da fusão entre erotismo e criação literária. Pois
constrói-se à imagem de uma profunda inquietação que se projeta gradativamente para
transmissão do fazer literário intimamente ligado às respostas do corpo que, não só se
abre para o outro, mas também para a própria literatura.
4 A CONDIÇÃO FEMININA NOS LAÇOS DE FAMÍLIA
uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo aque nasça o pinto,
ssaro de fogo.
(Clarice Lispector )
O livro Laços de família é, talvez, a obra mais conhecida de Lispector. Desde sua
primeira edição em 1960, essa coletânea de contos tem sido alvo de muitos estudos,
inúmeros dos quais em torno da problemática da mulher no seio da família. A obra
compõem-se de treze contos nos quais a família é o núcleo problematizador de onde
partem as queses, em sua maioria, a respeito do papel da mulher na sociedade
patriarcal. Daí a escolha dessa obra como ponto de partida para nossa investigação.
Nesse livro, Lispector parece querer mostrar, mais claramente, as implicões que os
laços familiares, constituído em torno de uma cultura patriarcal, trouxe à mulher. A
escritora elege os laços de família como ponto de articulação de um discurso
desestabilizador do sistema, mostrando em vários momentos a frustração que a
dedicão exclusiva à família implica para a mulher. Portanto, Laços é, particularmente,
sugerido por Clarice como nós, que entravaram a vida das mulheres. Assim, as
personagens femininas construídas pela escritora, a partir desse livro, parecem
denunciar sua condição, manietadas por pais e maridos, reificada pelos homens,
excluídas de várias esferas do cotidiano social. Essas, muitas vezes, deixam
transparecer o rancor e a insubmissão contra a ordem social que as oprimem.
Em seus textos, Lispector nos apresenta um mundo vasto de possibilidades de
reflexão sobre o ser humano e, em especial, sobre as mulheres. Encontramos em sua
obra revelações tão surpreendentes a esse respeito que, por mais que se tenha
analisado o tema da imagem da mulher, este torna-se inesgotável, dada a profundidade
com que a escritora o tratou. Em LF, Clarice constrói personagens, mulheres de todas
as idades, adolescentes às voltas com suas perturbações de ordem sexual, mulheres
adultas que tentam descobrir suas identidades, alcançar a posse de um eu e, até
mesmo, velhas solitárias, que descobrem que só o desejo não as abandonaram ante o
olhar da sociedade que não concebe que um velho corpo de mulher pode sentir alguma
forma de sensualidade.
Dentro desse horizonte de possibilidades de leitura que a escrita de Clarice nos oferece
sobre a temática da mulher, elegemos quatro livros: a coletânea de contos: Laços de
família, publicada em 1960, o romance: Uma aprendizagem ou o livro do prazeres, ano
de publicão: 1969, Água Viva, cuja primeira edição data de 1973 e A via crucis do
corpo editada em 1974, assinalando que , nesses livros, um percurso narracional que
aponta o desejo das personagens femininas em alcançar um esclarecimento maior
sobre o sentido de estar no mundo. Cronologicamente, isto é, em cada uma dessas
obras, daí a importância do ano da publicão, percebe-se que as mulheres clariceanas
vão intensificando seus questionamentos e tomando consciência de suas perdas, e
assim, vão adquirindo maturidade. Veremos, pois, que sempre uma evolução no
pensamento dessas mulheres. Essas, embora retornem para o cotidiano familiar,
conforme se verifica em LF, vão tomando posse de seus atributos e desejos. É o que
se observa também no LP e na VC. Nessa última, se pode notar uma radicalização do
sentimento de alteridade, um questionamento maior sobre a sexualidade. A mulher,
nessa obra, manifesta uma atitude radical em relação aos seus desejos. Na via crúcis
eso corpo com tudo que ele carrega de mais inato, a linguagem, a sexualidade, e
esta não se sujeita às relações de gênero, o desejo o escolhe sexo. Com isso, se
põe em xeque a natureza da mulher. Já o livro AV marca, nitidamente, esse aspecto
transgressor da criação clariceana, por isso, a sua inclusão na análise. Nessas obras,
Clarice nos faz perceber que, apesar de a mulher, historicamente, ter sido colocada na
fronteira entre o orgânico e o social, as mulheres são dotadas de carne e osso, agentes
históricos e não apenas um produto da lei natural. Daí, as personagens femininas, nas
narrativas lispectorianas, seguirem um percurso, uma trajetória de busca. Vê-se, pois,
que o elemento deflagrador desse processo de afirmação de identidade feminina, não
é outro, senão a sexualidade, o erotismo.
Como vimos no capítulo três, o erotismo é o que coloca o ser em queso. O erotismo
para Bataille é um aspecto decisivo da vida interior do homem; é o que define e o
destingue de outros animais. No entanto, conforme o autor, não é um retorno à
natureza ou uma mera liberação sexual (as proibições, ao contrário, são necessárias
para haver superação e limites). Assim, o erotismo é uma experiência que depende de
seu aspecto proibido e sagrado e nasce, justamente, desse sentimento de violação, de
profanação de seu objeto. Uma das conseqüências fundamentais desse pensamento é
a ligação do erotismo com a morte. Daí a recorrência a Sade: o melhor meio de se
familiarizar com a morte é associá-la a uma idéia libertina. Porém o erotismo não se
confunde com a mera atividade sexual. Conforme essa idéia, o erotismo é tudo que
es ligado à sexualidade profunda, sangue, terror, crime, tudo o que destrói,
indefinidamente, a beatitude humana. Daí sua maldição. O erotismo se liga à morte
porque, de certa forma, antecipa a experiência da morte. A desordem sexual é maldita.
O corpo é maldito, sobretudo, porque é finito, perecível, e essa verdade é insuportável.
Por sua vez, Otávio Paz, (2001, p.18) situa o erotismo como um elemento ambíguo,
ligado a vários aspectos da vida humana, cultural, social como também religiosa,
ligando-o portanto, à questão da repressão. Invenção equívoca, como todas as que
idealizamos: o erotismo propicia a vida e a morte [...] é repressão e permissão,
sublimação e perversão.
O problema da repressão, a que se refere Paz, se apresenta como um aspecto
particular do erotismo que, em nossa análise do problema da identidade das
personagens clariceanas, não podemos desprezar, uma vez que, nos permite
compreender, explicitamente, o questionamento da sujeição da mulher em relão ao
poder masculino, que aparece em alguns contos desde a obra LF. Talvez possamos
afirmar que este se impõe como força primeira é o elemento que deflagra os
questionamentos da identidade feminina dos textos clariceanos. O conto A imitação da
rosa vem a ser um exemplo disso. Nessa narrativa, têm-se enumerados os deveres e
as tarefas que a protagonista se obriga a cumprir, criteriosamente, denunciando a vida
cotidiana e banal, que acaba levando Laura à loucura.
Com seu gosto pelo método, agora reassumido, planejava arrumar a casa antes
que a empregada saísse de folga para que, uma vez Maria na rua, ela não
precisasse fazer mais nada, senão 1º) calmamente vestir-se; 2º) esperar
Armando pronta; 3º) o terceiro o que era? Pois é. Era isso mesmo o que
faria. E poria o vestido marrom com gola de renda creme. Com seu banho
tomado. ( 1998a, p. 35)
Laura se apresenta no conto como submissa às pressões do seu papel no cotidiano
familiar. No entanto, como o conto é narrado em terceira pessoa, o narrador, a todo
momento, fornece indícios de que Laura não é tão submissa assim, ela pensa sua
situação. Quando, ao lhe dar alta, o médico prescreve uma série de orientações, Laura
se submete a elas, mas as critica e, por vezes, as reverte, o que, aliás, é o que vai
permiti-la contemplar as rosas. Mas na sua humilde opinião uma ordem parecia anular
a outra, como se lhe pedissem para comer farinha e assobiar ao mesmo tempo.( p. 36)
Cabe ressaltar que a sociedade incutiu na mulher como compromisso maior a
realização de sua feminilidade, a idéia de que a melhor forma que ela tem para cumprir
o seu destino é a de ser uma esposa dedicada e uma ótima mãe de família. Assim, por
vários anos, ela aceitou estar nesse papel, cumprindo sua função biológica. Dentro
dessa perspectiva, a mulher, por muito tempo, representou apenas um organismo
especificamente orientado para a reprodução. E, sendo assim, sujeita ao organismo
masculino, esperando ser por ele impregnada sexualmente, para poder cumprir seu
destino de mulher, ou seja, ela é parcialmente percebida, apenas no nível biológico-
social, sem qualquer consideração para com o nível existencial humano. Como se pode
perceber, Laura representa essa mulher. No entanto, ela manifesta um desejo de sair
dessa situação e, ao que parece, esse desejo é que provoca sua internação como
louca. Ele que a recebera de um pai e de um padre, e que não sabia o que fazer com
essa moça da Tijuca que, inesperadamente, como um barco tranqüilo se empluma nas
águas, se tornara super-humana. (p. 38 grifo nosso). O mal de Laura foi torna-se
humana e perecível. Aqui, podemos relacionar o super-humana com Vontade de
potência, visada por Nietzsche como relativa à criação dos valores que poderia ter
como meta a idéia de humanização. Para Nietzsche, o ser humano é sentimento de
poder, pelo sentimento de potência, ele torna-se super-homem, ou seja, super-humano.
O que ocorre com essa personagem.
Retomando ao problema da repressão, buscamos Freud que, em seus primeiros
estudos sobre o comportamento humano, identificou o desejo erótico como
manifestão dos padrões de condutas inconscientes herdados das situações
dramáticas vividas com os pais na infância.
A nosso ver, as mulheres clariceanas, em LF, trazem consigo um sentimento erótico
amoroso proveniente de uma herança, de um padrão de relacionamento que reprime o
sexo, configurando os efeitos do complexo de castração que Freud afirma estar
presente na sexualidade feminina. Segundo Freud (1969, p. 264), a mulher
[...]reconhece o fato de sua castração, e, com ele, tamm a superioridade do
homem e sua própria inferioridade, mas se rebela contra esse estado de coisas
indesejável. Dessa atitude dividida, abrem-se três linhas de desenvolvimento. A
primeira leva a uma revulsão geral a sexualidade. A menina, assustada pela
comparação com os meninos, cresce insatisfeita com seu clitóris, abandona sua
atividade fálica e, com ela, sua sexualidade em geral bem como uma boa parte
de sua masculinidade em outros campos. A segunda linha leva a aferrar-se com
desafiadora auto-afirmatividade à sua masculinidade ameaçada. Até a uma
idade inacreditavelmente tardia, aferra-se a esperança de conseguir um pênis
em alguma ocasião. Essa esperança se torna o objetivo de sua vida e a
fantasia de ser um homem, apesar de tudo freqüentemente persiste como fator
formativo por longos períodos.
Ainda conforme Freud, a experiência que tivemos de nossos desejos na infância, em
contato com o meio familiar, pai mãe e irmãos, está por trás de nossas escolhas, sejam
elas amorosas ou profissionais, de nosso modo de ver o mundo, de conseguirmos criar
ou o, enfim, de nosso relacionamento com o outro. A repressão do impulso
incestuoso, que faz parte da primeira experiência amorosa da criança, nunca é
perfeita, os sintomas neuróticos de um adulto seriam resultado da angústia, a culpa ou
inibão de dar vazão a esses impulsos naturais genitais. A pessoa neurótica teme
realizar seus desejos. Ela acredita que, se o fizer, vai estar concretizando o desejo
incestuoso que sentiu pelo pai ou pela mãe. E isso tem de ser reprimido.
Pois bem, observa-se na maioria dos contos de LF, que o processo desencadeador
dos questionamentos das protagonistas é sempre o desejo. As mulheres dessa obra,
embora exercendo seu papel no lar, estão sempre às voltas com seus impulsos de
ordem sexual. Levando em consideração esse aspecto, passamos a análise dos contos
que mais evidenciam o que ora estamos apontando.
4.1 UMA RAPARIGA EM FRENTE AO ESPELHO: DEVANEIO E EMBRIAGUEZ
Não por acaso, o conto de abertura da obra: Devaneio e embriaguez de uma rapariga,
traz uma mulher que, de repente, rompe com o cotidiano do lar e, numa espécie de
languidez, remove os pensamentos em torno de si mesma. A personagem em questão,
como o próprio título indica, encontra-se mergulhada na embriaguez, que é o estado de
estar fora, o que possibilita pensar sobre sua própria condição. Vê-se que, desde o
título, Clarice parece querer apontar o problema da identidade feminina. Essa mulher
que, na sua embriaguez, rompe com o cotidiano o se trata de uma mulher comum e
sim, de uma rapariga, nome que no Brasil significa prostituta, porém no decorrer da
narrativa vemos que se trata de uma portuguesa e no português de Portugal rapariga é
nome dado a pessoa do sexo feminino. Pois bem, essa rapariga, muito bem casada,
numa bela manhã resolve cuidar de si e, se mirando por um longo tempo no espelho,
descobre-se além daquela imagem, isto é, o seu eu o realizado. Os olhos não se
despregavam da imagem, o pente trabalhava meditativo, o roupão aberto deixava
aparecerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas. (1998a, p.9) O
conto problematiza, desde logo, a identidade feminina, do espelho emerge uma luz,
uma claridade que permite à protagonista enxergar o outro lado de si mesma. Ao que
se sabe, o espelho é a porta do imaginário, é uma abertura a reflexão. Embora reafirme
a identidade, revelando a objetividade do subjetivo, por outro lado, também permite que
o observador se observe, imaginando assim como é visto pelos outros. É desta reflexão
que surgem as grandes idéias e os grandes empreendimentos. Realidade ou
alucinação, este instrumento de precisão revela a reversibilidade de todas as coisas: a
certeza do aparente, a incerteza do existente. O espelho funciona como um campo
projetivo da experiência humana, onde o homem pensa e repensa sua identidade. Mas
também um segundo nível da consciência de si a que o espelho nos remete: o
simbólico ou seja, aquilo que es para além do imaginário. E este mergulho no
inconsciente sempre parece demarcar os limites da realidade virtual e da vida
cotidiana, para a qual o protagonista sempre volta ao final da narrativa. É o que vemos
ocorrer com essa personagem, através do espelho, ela penetra em outra realidade. A
esse fator, concorre uma série de outros elementos que contribuem para o mergulho na
embriaguez. Nesse dia, que aliás é um sábado, a mulher encontra-se sozinha, sem a
presença dos filhos. Esses e outros fatores permitem o experimentar da verdadeira
identidade e de seu lugar como indivíduo no cosmos. A mulher no espelho vive,
interpreta e sofre a sua manifestação idiossincrática do que chamamos identidade.
Esse encontro consigo mesma, faz com que a personagem descubra que seu cotidiano,
carregado de tarefas domésticas, o impede de viver plenamente suas potencialidades.
A protagonista, sofre as pressões do cotidiano. O lar, o ambiente familiar, é um
elemento repressor da potência sexual da mulher. Agora, em frente ao espelho, ela
assume a sua verdadeira identidade: Maria Quitéria. Quem encontrou buscou. (1998a,
p. 11) Note-se a inversão, à maneira de Guimarães Rosa, a escritora, por meio do
narrador, inverte a máxima popular: quem procura acha. Conduzindo o leitor a
interpretar que a personagem, na verdade, sempre esteve às voltas com o problema.
Sempre esteve inconformada com sua situação.
Vale lembrar que, em diversos textos literários, a mulher como prostituta é comumente
construída como alguém dotada de uma liberdade sexual mais ampla. Fato que explica
a escolha do nome: rapariga que, embora justificada pela procedência da
personagem, uma portuguesa, também aponta outras conotações. Sabemos que em
Portugal rapariga trata-se de uma moça jovem, que esno período entre a infância e a
adolescência, enquanto no Brasil atribui-se outras conotações para o termo. Rapariga
também pode ser uma mulher que se prostitui. Assim, pois, a rapariga do conto em
queso pode devanear frente ao espelho, o que na condição de dona de casa não é
possível. O que nos leva a afirmar que a obra LF, efetivamente, instaura o eixo temático
sobre a identidade feminina, nas obras da escritora, a partir da problemática da
sexualidade. Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três
espelhos, os bros brancos e fortes arrepiavam-se à frescurazita da tarde. Os olhos
não se abandonavam, os espelhos vibravam ora, escuros, ora luminosos. (1998a , p. 9)
O espelho vai revelando a verdadeira identidade da mulher. Diante do espelho ela
ensaia um diálogo e decepciona-se por, até então, não ter conhecido a verdadeira
Maria Quitéria. Aentão, Maria Quitéria, exerceu apenas o papel de rapariga, moça
do lar, por isso o nome só nos é revelado depois. Diante do espelho surge a verdadeira
Maria Quiria. Abstraindo-se, assim, de si mesma, o reflexo do espelho ora aparece
escuro, ora luminoso, indícios de que o outro lado, a realidade cotidiana, essempre
presente em meio aos devaneios.
O conto é narrado em terceira pessoa, o foco narrativo caracteriza-se pela onisciência
do narrador, que vai fornecendo indícios sobre a interioridade da personagem. O texto é
muito profundo, apesar da aparente simplicidade da história. Pode-se interpretar o
conto a partir dos dois estados da protagonista: embriaguez/lucidez ou exterior/interior.
No estado exterior temos o momento de embriaguez, em que ela se permite devanear:
Ai, ai, suspirou a rir. Teve a visão de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu
mais fechando os olhos, a abanar-se mais profundamente. Ai, ai, vinha da rua como
uma borboleta. (p.10, grifo nosso). A borboleta, que simboliza a liberdade, a
transformação, é uma via de passagem da realidade para fantasia. Maria Quitéria
assume por um certo tempo, suas potencialidades, adquire coragem e solta a voz.
Tanto que, ao sair com o marido, a um jantar de negócio, ela passa a conversar com o
negociante, tomando as vezes do marido, rindo descontraidamente.
Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era
como se estivesse prenhe palavras apenas na boca, que pouco tinham a ver
com o centro secreto que era como uma gravidez. Ai que esquisita estava. No
Sábado à noite a alma diária perdida, e que bom perdê-la e como lembrança
dos outros dias apenas as mãos pequenas tão maltratadas e ela agora com
os cotovelos sobre a toalha xadrez vermelho-e-branco da mesa como sobre
uma mesa de jogo, profundamente lançada numa vida baixa e revolucionante.
E esta gargalhada? Essa gargalhada que lhe estava a sair misteriosamente
duma garganta cheia e branca, em resposta à finura do negociante, gargalhada
vinda da profundeza daquele sono, e da profundeza daquela segurança de
quem tem um corpo. Sua carne estava doce como a de uma lagosta viva a se
mexer devagar no ar. E aquela vontade de sentir mal para aprofundar a doçura
em bem ruim. E aquela maldadezita de quem tem um corpo. (1998a, p. 12-
13)
Isso nos remete às bacantes, discípulas de Baco, Deus do vinho, Dionísio, na versão
grega. Os mitos gregos nos ensinam que o indivíduo em estado de embriaguez,
impulsionado por Dionísio, Deus da exuberância, extrapola a linguagem. Na tragédia
de Eurípedes (1995, p.93) As bacantes, seguidoras de Dionísio nas festas, permitiam-
se todo tipo de excesso.
O mito do Dionísio está associado aos mistérios, ao amor, à mulher.
[...] Dioniso é um profeta, e assim, os seus delírios são divinatórios; por isso
quando ele penetra fortemente em nosso corpo, embriagando-nos, revela o que
espor vir. [...] Depois da deusa veio o filho de mele, seu êmulo, que
descobriu e revelou o leve suco produzido pelas uvas para curar de suas muitas
amarguras a triste raça humana; a simples ingestão do néctar tirado das uvas,
nos concede o esquecimento dos males cotidianos, graças a paz do sono,
único remédio para nossos padecimentos.(1992, p. 234)
Assim, se pode afirmar que a protagonista encontra-se sob a experiência plena do
estado dionisíaco, pois instaura-se nela um rompimento, mesmo que momentâneo, com
o cotidiano bem comportado de esposa. Ela, agora se permite ser, destituída de todas
as máscaras do convencional.
Conforme o desejo nietzschiano de uma vontade de potência, percebe-se nesse
conto, o modo de Clarice fazer vir à tona o desejo, o desejo de superação que brota do
mergulho interior e da fuga da realidade cotidiana. Em La voluntad de poderio
13
(1981,
p.432) Nietzsche declara:
En ciertos estados de ánimo ponemos, transfiguramos y comunicamos plenitud
a las cosas, y las elaboramos com el pensamiento mientras reflejan nuestra
propria plenitud y alegria de vivir; tales estados son: el impulso sexual, la
embriaguez, el yantar, la primavera, la victoria sobre el enemigo, el sacarmo, el
rasgo de bravura, la crueldad, el éxtasis del sentimiento religioso. Tres
elementos sobre todo, el impulso sexual, la embriaguez y la crueldad,
pertenecem a la más antigua alegría de la fiesta em el hombre, y todos
predominan em el artista que comienza.
Vê-se, pois, que a atmosfera era propícia à manifestação de nossa protagonista, por
essa via é possível exercer a sensibilidade artística. Nesse estado, ante a embriaguez
dionisíaca, ocorre a luminosidade e a protagonista pode se revelar:
13
NIETZSCHE, Friedrich. La voluntad de poderio. Tradução Anibal Froufe. Madrid: EDAF, 1981.
Um holofote enquanto se dorme que percorre a madrugada tal era a sua
embriaguez errando lenta pelas alturas. Ao mesmo tempo, que sensibilidade!
Mas que sensibilidade! quando olhava o quadro tão pintado do restaurante
ficava logo com sensibilidade artística. Ninguém lhe tiraria das idéias que
nascera mesmo para outras cousas. Ela sempre fora pelas obras darte. [...] E
se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda
podia ir mais adiante: porque era protegida por uma situação, protegida como
toda gente que atingiu uma posição na vida. (1998a, p. 14)
No estado em que se encontrava era possível enxergar, com mais clareza, o quanto
havia de falso nas relações. Assim, ela podia perceber que à sua volta o ambiente soa
meio que artificial, o distanciamento das pessoas, a fraqueza das relações. E tudo no
restaurante tão distante um do outro como se jamais um pudesse falar com o outro.
Cada um por si, e lá Deus por toda gente. (1998a, p. 14-15) Quando seu olhar
deparou-se com uma outra rapariga que chegara ao restaurante, advém-lhe um
sentimento de ódio e revolta, pois ela simultaneamente focalizou a si própria, é como
se o seu olhar transformasse o outro em um espelho, a partir do qual aquele que olha
pode enxerga a si mesmo. Observa-se nessa passagem um jogo de espelho,
metáfora que permite descrever os processos de representão e mudança que a
imagem da sociedade ou do indivíduo sofre. A rapariga, toda cheia de chapéus e
dornatos, loira como um escudo falso, toda santarrona e fina...(p. 15) a faz voltar ao
seu estado anterior, a rapariga dona de casa, que não deve se expor. Lembra-se
então que está sem o chapéu. A mulher bem comportada deve usar chapéu. Na
verdade, a revolta que ela sente é contra si mesma. A rapariga a faz lembrar tudo
aquilo que ela quer ignorar, ao menos naquele momento. Advém-lhe daí o estado de
nojo. Extrai-se do pensamento de Nietzsche (1987, p. 9) que
O embevecimento do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e
limites habituais da existência, contém com efeito, enquanto dura um elemento
letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no passado.
Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo do cotidiano e a afetividade
dionisíaca separam-se um do outro. Mas tão logo aquela afetividade cotidiana
retorna à consciência, ela é sentida como tal, com nojo.
De fato, a partir do momento em que a personagem retorna à sua realidade cotidiana
passa a ver esses dias de devaneio como uma espécie de nostalgia, em que esteve
fora de si. Por isso, quando volta para o interior de sua casa, dentro da realidade
familiar, dos laços de família, a rapariga sente na carne a dor de viver. E, como
entrefechara os olhos toldados, tudo ficou de carne, o pé da cama de carne, a janela de
carne, na cadeira o fato de carne que o marido jogara, e tudo quase doía. (p. 16) Para
sua maior consternação, os objetos, o lar resultam na perda de toda reflexão. ,
então, o encontro com o corpo pois, até então, ela se achava em estado de alma. Os
dois estados entram em choque. Nesse instante, sentiu-se:
[...] desiludida, resignada, empaturrada, casada, contente, a vaga náusea. Foi
nesse instante que ficou surda: faltou-lhe um sentido. Enviou à orelha uma
tapona de mão espalmada, o que fez entornar mais o caldo: pois encheu-se-
lhe o ouvido de um rumor de elevador, a vida de repente sonora e aumentada
nos menores movimentos. Das duas, uma: estava surda ou a ouvir demais
reagiu a essa nova solicitação com uma sensação maliciosa e incômoda, com
um suspiro de saciedade conformada. Pros raios que o partam disse suave,
aniquilada. (p. 17)
Assim, assistimos ao retorno da personagem à consciência de sua condição social,
condição que a limita, em que ela é tão somente aniquilamento, pois o processo de
fragmentação se repete, aprofunda-se a solidão, a ausência de perspectiva a que esta
personagem sempre esteve votada. No entanto, pode-se notar que, apesar do retorno
ao cotidiano, se pode interpretar que houve uma transformação, a personagem ousou
fazer um levantamento da vida metódica e remota que levara até então. Teve a
coragem de arrancar a máscara, de se permitir participar da experiência do ser, a
experiência de transgressão que está ligada à sexualidade.
4.2 PODER, SUBMISSÃO E IRONIA NOS CONTOS AMOR , A IMITAÇÃO DA
ROSA, E LAÇOS DE FAMÍLIA
Da obra LF , o conto Amor é um dos mais investigados no que se refere ao universo
feminino. O texto apresenta um vasto campo de análise: sobre a mulher, a linguagem, a
família e, sobretudo, a presença da epifania na narrativa o lugar comum na crítica
literária. Por minha vez, também não far-se-á grandes diferenças, ousamos incluir esse
conto em nossa tese, por ele apresentar indícios em torno do tema em questão. Assim,
de modo sucinto, e seguindo um modelo algo simplista, adiante postulamos que a
personagem desse conto, apesar da aparente fragilidade, reveste-se de uma força
singular que marca o poder feminino.
Amor
O conto "Amor" expõe uma personagem, uma mulher, que constrói um lar sólido e
bem plantado. Ana, dona-de-casa, esposa e e, assim ela o quisera e escolhera.
Num primeiro momento, a autora a compara a um lavrador. Ela plantara um lar seguro,
tivera bons filhos que cresciam aos seus cuidados. Tudo, aliás, crescia, se desenvolvia
no seu lar, porque ela lavrara, cuidara. Sua vida, seu suor, sua o forte faziam com
que sua casa e todos que nela viviam necessitassem de sua proteção.
O texto a entender que esse destino era algo inesperado pela personagem. Que ela
andara por caminhos incertos e descobrira no casamento a solidez e, como lavradora
forte que era, nele conseguiu sentir a raiz forte das coisas. O matrimônio era algo que
ela ignorava. E, surpreendentemente, coube tão bem na função que a mulher
socialmente tem nele. Pode-se observar nesse conto, a importância dada à figura
feminina dentro do casamento. Essa é a importância dada pela sociedade: a mulher
como sustentadora e zeladora do lar. É ela quem dirige, cuida do bem-estar de todos
ao seu redor: Filhos, maridos, casa e tudo que diz respeito à sua organização. Tudo
gira em torno dela. O bom funcionamento deste ambiente depende da figura matriarcal.
Ela é, portanto, doadora, seu suor, sua vida, seu tempo pertencem àqueles que com ela
vivem. Portanto, deve se abnegar, negar-se, resignar-se. A família é o seu depósito de
vida. "Ana dava a tudo..." (p. 19). Ela não existia para si, existia para os outros, para a
felicidade dos seus e não para a sua.
Dela havia aos poucos emergido para descobrir que sem a felicidade se vivia:
abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam
como quem trabalha - com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera
a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação
perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara
algo em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o
quisera e escolhera. (1998a, p.20)
A personagem está conformada com seu "Destino de mulher", mãe, esposa e doadora.
No entanto, é infeliz. E com o tempo percebeu que assim como ela, havia outras. Mas
esta vida fora escolha dela. Porém, em alguns momentos, a situação a incomodava,
mas procurava não dar lugar às insatisfações: "Olhando os móveis limpos, seu corão
apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse
ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides da casa
lhe haviam transmitido." (1998a, p.20) Ana encarna, nessas linhas, a mulher
mencionada em A História da sexualidade de Michel Foucault (2003, p. 129): "As
cortesãs, nós a temos para o prazer; as concubinas, para os cuidados de todo dia; as
esposas, para ter um descendência legítima e uma fiel guardiã do lar." Ana cumpre
muito bem esse papel. No entanto, um fato ocorrido nessa sua rotina, em sua vida
sempre monótona, sólida e firme a faz vacilar, a mão forte enfraquece. Ana, tão
asceta, desprovida de desejos e felicidade começa a desejar. Ela que nunca queria
nada para si, ela que apenas se doava. A personagem vê um cego mascando chicles.
O olhar, o observar, o ver é algo marcante nos contos de Clarice. Neste não é diferente.
Se o cego, por sua deficiência, não enxerga. Ana quando o passa a enxergar coisas
que antes não percebia, apesar de possuir a visão perfeita. O casamento a cegara.
Cegara sua alma. O casamento, então, exposto aqui, aprisiona a mulher sugando dela
sua vitalidade, venda seus olhos para o mundo. O matrimônio faz esquecer os perigos,
os desejos, as coisas saborosas da vida as doces e as amargas. Ao se entrar para o
enlace matrimonial, morre-se. Ana, até o encontro com o cego, estava morta. Porque
dava sua "corrente de vida" à família. Mais um fato mexe com a personagem, algo mais
perturbador ainda. Ela entra no Jardim Botânico e encontra ali um turbilhão, uma
explosão de vida com a qual não estava acostumada a ver, a lidar, pois aentão a
cegueira a impedira de ver. Conforme Chauí
14
(1988, p. 33), a visão é a janela da alma,
ela se faz em pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo
tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si. É esse o mundo que Ana passa
a enxergar após avistar o cego: era um mundo de se comer com os dentes..." (1998a,
p.25) O jardim era o mundo: cheio de cores, sabor, cheiro, morte e vida, um mundo
desejoso e ela pode senti-lo. Ela que como uma boa lavradora plantara apenas suas
14
In: O Olhar. Adauto Novaes organizador. 7ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
plantas familiares e para elas se entregou, negando-se a si própria. "Ela plantara as
sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas". (1998a, p.19) Agora
estava diante de outras plantas maiores e sedutoras. Os desejos reprimidos, a
felicidade renegada eram confrontados por esse mundo que a volteava.
A personagem de Lispector não consegue ser mais a mesma após esses dois
momentos: o encontro com o cego e a ida ao Jardim. O primeiro provoca-lhe piedade
com que reforçando em seu interior sua função de doadora, piedosa e mãe. O encontro
com o cego desencadeia um processo de reflexão; foi um encontro consigo mesma. Via
no cego a sua cegueira, mas ele pelo menos deixava-se desfrutar do mínimo prazer
que a vida lhe oferecia, mascava chicletes. Teve pena do cego, na verdade era pena de
si mesma, os infelizes eram dignos de pena. Ela antes, não enxergava o mundo que a
rodeava, a partir desse encontro passa a observar com mais avidez os ambientes pelos
quais passa, as pessoas, os acontecimentos.
Se os olhos são o espelho da alma, a alma de Ana estava vazia, pois não via nada,
não existia, ela não tinha alma. Os outros - a família - é que existiam por ela. Não
desfrutava da vida, não gozava de nenhum prazer, um ínfimo prazer, como aquele cego
que mascava chicles. Ana queria ter piedade do cego, maso podia, pois através dele
passou a ver e gostou do que viu. Ela na verdade se encontrou. A identidade que um
dia havia deixado para trás agora reaparecia. O segundo fato acende-lhe algo que
provavelmente ela sentira antes de casar: a vida e tudo o que nela existe de bom ou
não. Ana vive, daí em diante, conflitos interiores: desejo X negação, morte X vida, lar X
mundo:
Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava [...] É já
o era mais piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver [...]
um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Ah! Era mais
fácil ser um santo que uma pessoa. (1998a, p.27)
Ana era "santa", havia negado o mundo, morrera para ele e para si mesma, pagou um
preço em sacrifício à família. No entanto, ela Agora vacilava, queria voltar a viver. A
personagem deste conto, como nos outros deste livro, mergulham numa auto-reflexão.
Reflexão que faz com que repensem suas vidas, suas oões. Clarice usa o Jardim
como metáfora do mundo. Se ela é uma lavradora existe o jardim que na verdade é
uma floresta. Sua pequena plantação entra em choque com a vastidão desconhecida,
cheia de seres desconhecidos. O pequeno mundo de Ana, sua família, é colocado em
contraponto com o mundo exterior, maior, mais bonito, mais forte. A reflexão, na qual
mergulha, a deixa na iminência de abandonar esse porto-seguro que é sua casa. A
plantão, que tanto precisa de seus cuidados, dessa mão caridosa e forte pode ser
deixada para trás em troca dos jardins botânicos que no mundo há. No seio familiar Ana
exerce o papel de mulher forte, o é submissa, ao contrário é dominadora, centraliza
os problemas sobre si. O que se pode verificar quando corre à cozinha após o estouro
do fogão para acudir o marido e lhe fala: - o quero que lhe aconteça nada, nunca!
Ao que ele interpela: - Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro,
respondeu ele sorrindo. (1998a, p.29) Tudo isso ocorre após o jantar com Ana ainda
embevecida pelo acontecimento da tarde, ela quer segurar mais um pouco a liberdade
que experimentara. E como a uma borboleta Ana prendeu o instante entre os dedos
antes que ele nunca mais fosse seu. Depois quando todos foram embora e as crianças
já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. O que o cego
desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo?
(1998a, p. 29) Analisa o narrador.
Deseja Ana desfrutar mais desse momento, porém os los familiares são mais fortes,
talvez por demonstrarem mais segurança, talvez por serem conhecidos, acabam
matando o desejo de viver da personagem. Apenas um gesto do marido, faz com o
mundo lá fora e tudo que nele há deixem de existir novamente. Então, o marido ...Num
gesto que o era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a
consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. (1998a, p.29)
4.2.2 A imitação da rosa
Se a personagem do conto "Amor" construíra um lar sólido e firme, em A imitação da
rosa" a personagem principal se numa situação de estranhamento do seu próprio lar.
Laura tenta se readaptar a monotonia de sua casa, aos afazeres domésticos que, por
algum motivo, estivera afastada. Se a mão forte de Ana conduzia seu lar e cuidava dos
seus, Laura, ao contrário, necessitava de cuidados. As personagens, então, são dois
opostos: fraqueza X firmeza, segurança X insegurança. Se Ana era a lavradora que
fazia sua plantação crescer e frutificar, Laura nem frutos podia dar.o podia ter filhos.
A personagem de "Amor" fazia-se necessária, a de "Imitação da Rosa" era quase uma
sombra, precisava sê-lo, não podia fazer-se notar ou fazer diferença.
Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres, submissa à
bondade autoriria e prática de Carlota recebendo enfim a desatenção e o
vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural, e não mais aquele carinho
perplexo e cheio de curiosidade e vendo enfim Armando esquecido da própria
mulher. E ela mesma, enfim, voltando à insignifincia com reconhecimento.
(1998a, p.34)
Amesmo fisicamente a personagem demonstrava inexpressividade. "Seu rosto tinha
uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás de orelhas grandes
e pálidas. Os olhos marrons, os cabelos marrons"(1998a,p.35)
Assim, observa-se alguns contrastes entre a protagonista do conto Amor e a do conto
Imitação da rosa. Ana sustentava, dava suporte, correspondia aos anseios familiares.
Laura, por sua vez, era infeliz nesse intento. Ana encontrou no lar uma forma de calar
o desejo de viver; Laura parece não tê-lo conseguido. A narrativa apresenta indícios de
que ela sempre estivera em crise. Ela é o oposto de Ana, pois não soubera conduzir
com a mesma destreza, o casamento. Não frutificara, pois não tivera filhos. Por isso, a
dificuldade. Ana conduz, com mão de ferro, o casamento, deposita nele seu
reservatório de amor contido e retido. Laura, ao contrário, necessita de cuidados, pois
em algum momento do passado demonstrara fragilidade. E agora luta para acreditar
que pode exercer as tarefas do lar, como fazem outras mulheres. Na verdade, Laura
procura exercer com naturalidade as tarefas do lar, porque teme voltar para clínica. Pois
já demonstrara fraqueza nesse intento, por isso o marido a cerca de cuidados.
toda uma atmosfera artificial em torno da personagem.
As pessoas felizmente ajudavam a fazê-la sentir que agora estava bem. Sem a
fitarem, ajudavam-na ativamente a esquecer, fingindo elas próprias o
esquecimento como se tivessem lido a mesma bula do mesmo vidro de
remédio. Ou tinham esquecido realmente, quem sabe. Há quanto tempo não via
Armando enfim se recostar com abandono, esquecido dela? E ela mesma?
(1998a, p. 35)
Esse índices dão conta de que Laura vivia uma situação artificial. Ela não se conforma
com a vida metódica que leva e, mais ainda, parece não aceitar muito bem o que lhe é
imposto. "Abandone-se, tente tudo novamente, não se esforce por conseguir - esqueça
completamente o que aconteceu e tudo voltará com naturalidade". (1998a, p.36)
Se nestes aspectos as personagens são um contraste, noutros se assemelham. Nos
dois contos pode-se ver que o casamento é colocado como lugar de anulação da
identidade feminina. Para assumir o papel que a mulher deve exercer nele tem que se
negar a si mesma. Esquecer dos prazeres, fechar os olhos para o mundo fora deste
ambiente. Umas sabem o que fazer muito bem, conseguem exercê-lo com êxito, outras,
porém, sucumbem ao se sentirem fracassadas. A amiga de Laura, Carlota, parece
cumprir seu papel com louvor. Ela, no entanto, aparentemente não soube lidar com
isso,o consegue se ajustar às obrigações familiares.o conseguiu se anular
completamente e tornou-se super-humana. Clarice demonstra, nesses contos, este
sacrifício que a mulher precisa fazer para responder às expectativas na constituição da
família. A escritora nos mostra, neste livro de contos, a situação em que a mulher se
encontra na sociedade para adaptar-se à função de mãe e esposa. Mostra-nos que,
nesse papel, a mulher, muitas vezes, esvazia-se de si mesma para tornar-se outra, ou
nada. Pois tem de se doar; deixar suas ambições, sem desejar receber. Esta função
mostra-se muitas vezes difícil de ser cumprida. Porque anular-se, não procurar ser
mais, não transcender, não ir além, não desejar viver é, muitas vezes, dolorido e de
difícil aceitação.
Os laços familiares apresentados nesses contos funcionam comos que aprisionam e
são difíceis de serem desatados. Eles envolvem e as mulheres são facilmente atadas a
eles. E, uma vez neles, sair torna-se algo doloroso. Esses laços fazem com que, em
alguns casos, as mulheres percam sua identidade. No entanto, esses nós o podem
impedir as mulheres clariceanas de sentir, de pensar e desejar, mesmo que por alguns
minutos, a mudança, a liberdade, o ir além.
Laura é uma mulher que tenta cumprir o papel que lhe cabe na organização familiar.
Porém, vive um conflito interior: busca encaixar-se nesse universo e para isso tem que
deixar de existir e procura fazê-lo de forma metódica. Enumera os afazeres para melhor
cumpri-los, os números tornam tudo mais racional e menos sentimental, emocional,
pessoal: "Uma vez Maria na rua ela não precisaria fazer mais nada senão 1
º
)
calmamente vestir-se; 2
º
) esperar Armando já pronta...". (p.35) Para sentir-se à
vontade no lar, cumprindo sua tarefa de esposa tem que passar despercebida, como
se não existisse. Explica-se desta forma porque sua casa tem um toque impessoal. Ela
não era uma pessoal, não tinha identidade, seu lugar ali não lhe permitia isso.
Sentou-se no sofá como se fosse uma visita na sua própria casa que, tão
recentemente recuperada, arrumada e fria, lembrava a tranqüilidade de uma
casa alheia. O que era tão satisfatório: ao contrário de Carlota, que fizera de
seu lar algo parecido com ela própria, Laura tinha tal prazer em fazer de sua
casa uma coisa impessoal; de certo modo perfeita por ser impessoal. (1998a,
p.37)
Ao dar a tudo uma impessoalidade Laura esquecia-se de si mesma, de que tinha
personalidade, identidade, de que era um ser e assim merecia mais. A personagem
reprime seus desejos mergulhando nos afazeres domésticos, nos detalhes em cuidar
da casa, no cansaço do dia de trabalho. Ao entregar-se, assim, tão avidamente em
seus atos de dona-de-casa, busca realizar-se: Ela que nunca ambicionara senão ser a
mulher de um homem." (1998a, p.37) Buscava esquecer os desejos que antes
pulsavam em seu interior e que a fizeram se tornar um dia super-humana. Não mais
aquele ponto vazio e acordado e horrivelmente maravilhoso dentro de si. o mais
aquela terrível independência. Laura tinha que preencher o espaço vazio de seu
interior com os afazeres domésticos mesmo quando eles não existiam. "Ela era uma
pessoa o ocupada! Sempre invejara as pessoas que diziam 'Não tive tempo', agora
ela era de novo uma pessoa tão ocupada". (1998a, p.40)
Mas algo naquele espaço impessoal lhe chama a atenção. A beleza das flores, sua
delicadeza chama a atenção da personagem. Um olhar mais atento a elas faz com que
Laura entre em reflexões, dúvidas e conflitos deixando transparecer que todo esforço
feito para o incomodar, o parecer, não exagerar o era algo que lhe causava
prazer, pois porque prazer não era algo que sentisse. A partir do momento que se
depara com as rosas ela vive momentos de tensão que deixam revelar seus desejos de
ser mais, surpreender, espantar ser alguém, coisa que o era. As rosas fizeram com
que ela lutasse com seus anseios ainda mais. Colocando para o leitor que toda aquela
sensação de conformismo era pura representação, era falsa ou camuflada. Era pura
repressão. Ao voltar-se para os afazeres domésticos ela tentava matar seus mais
profundos anseios. Neste momento pode-se ver uma personagem até então escondida.
Alguém que sentia vazia e despossuída de algo : "[...] ela insinuou em si mesma: não
as rosas, elas são lindas (...) elas são suas. Laura espantou-se um pouco: porque as
coisas nunca eram dela". (1998a, p.46)
Dessa forma, Clarice nos expõe esta personagem inserida numa organização familiar à
qual o se adaptou. Este universo por vezes induz à anulação de um eu,
principalmente quando ele esindisposto a seguir docilmente por este caminho. A
personagem Laura não sabia lidar com tal situação. Para que tivesse sucesso no
intento de ser "mulher de um homem" ela teria que ser sombra do marido. Não
aparecer, ser "castanha", "marrom", o sobressair. Acesa, iluminada, sem cansaço,
Laura sofre a tentação de imitar as rosas e, por um instante, percebe a vida sem graça
que leva. As rosas, perigosamente lindas, representam um risco. Diante da beleza e
perfeição das flores, a personagem se sente perturbada, tentada. Por isso, tem medo,
medo de, novamente, quebrar a monotonia da rotina. Medo? Medo talvez, não seja a
interpretação adequada. Nesse momento, ocorre-nos a leitura de Benedito Nunes.
Segundo o crítico é mais preciso dizermos, no caso das personagens de LF, que estão
sobre o sentimento da usea, esta difere do medo. Tem-se medo de algo identificado,
um ser particular. Já a usea, esclarece Nunes: (1976, p. 94)
A náusea é a forma emocional violenta da angústia, que arrebata o corpo,
manifestando-se por uma reação orgânica definida. Quando nos sentimos
existindo, em confronto solirio com a nossa própria existência, sem a
familiaridade do cotidiano e a proteção das formas habituais da linguagem,
quando percebemos ainda a irremediável contigência, ameaçada pelo Nada,
dessa existência, é que estamos sob o domínio da angústia, sentimento
específico e raro, que nos dá uma compreensão preliminar do Ser.
Assim, cremos estar Laura padecendo do sentimento da angústia. A angústia
heideggeriana descrita no quarto capítulo da obra Ser e tempo intitulado: O ser-no-
mundo como ser-com e ser-próprio: O impessoal’”
15
. Nessa parte do livro, Heidegger
nos fala que o ser humano, enquanto inserido no mundo com os outros, padece da
angústia. Esta se trata de um sentimento profundo que faz o homem despertar da
existência inauntica. A angústia, analisa o filósofo, revela a nossa impessoalidade no
cotidiano. Assim, pois, cremos ocorrer com Laura esse confronto. Vejamos, mais uma
vez, sua reação diante das rosas.
E dar as rosas era quase tão bonito como as próprias rosas.
E mesmo ela ficaria livre delas. [...] E também porque aquela beleza extrema
incomodava. Incomodava? Era um risco. Oh, não, por que risco? Apenas
incomodava, era uma advertência, oho, por que advertência? Maria daria as
rosas a Carlota. (1998a, p.44)
A rosa que, na cultura medieval, representava a feminilidade, simbologia da mulher
desejada, fértil e bela, representa um risco à aparente perfeição de Laura que,
ajustada às normas e convenções, nem fértil parece ser. Advém daí o mal-estar, é
preciso livrar-se delas, melhor enviá-las à amiga Carlota. Ela, então, ensaia, planeja
também esse ato, pois a ão de doar as rosas poderia também levantar suspeitas. O
que o marido poderia pensar? E Carlota? O que veria nessa atitude? Era preciso tomar
cuidado com o olhar de espanto dos outros. Era preciso nunca mais dar motivo para
espanto, ainda mais com tudo ainda tão recente. E sobretudo poupar a todos o mínimo
sofrimento da dúvida. (1998a, p. 45)
15
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcia de Cavalcante. 7 ed. Petpolis: Vozes, 1998.
Ao que parece, Laura angustia-se perante a vida mesquinha que leva, mas esconde
esse sentimento. Procura abafar qualquer manifestação que possa levantar suspeita de
seu estado de saúde. Precisa livrar-se das rosas para poder, assim, abafar toda sua
vontade de viver. E isso ocorre com muitas mulheres. Ser agradável era sua tarefa
principal. Laura não deveria ser mais que isso. No instante em que mergulha em
reflexões, o interior da personagem entra em contraponto com a perfeição, a ordem e a
impessoalidade da sua casa. Diante das rosas, Laura se encontra em um caos de
emoções, revoltosas e perturbadoras, que acabaram por levá-la ao momento anterior
ao início do conto. No momento em que ela se tornara super-humana. Tornar-se super-
humana é incorporar os defeitos, as faltas que ela, para não incomodar os outros, os
que convivem com ela, tem de disfarçar. Por isso, a contra vontade, ela toma,
subitamente, a decisão de livrar-se das rosas. Mas o mal já estava feito. A
luminosidade das rosas tinha aberto uma clareira no interior de Laura. A máscara que
encobria sua vida monótona e artificial fora arrancada, mesmo após a doação das
rosas, ficam-se as marcas, impossível arrancá-las. Na verdade Laura reclama a posse
de si mesma.
E as rosas faziam-lhe falta. Haviam deixado um lugar claro dentro dela. Tira-se
de uma mesa limpa um objeto e pela marca mais limpa que ficou então se
que ao redor havia poeira. As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem
sono dentro dela. No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia ter tirado
para si sem prejudicar ningm no mundo, faltava. Como uma falta maior. Uma
ausência que entrava nela como uma claridade. (p.50)
Aqui se pode perceber o estado de angústia se apossando da personagem. O centro
da fadiga se abria um rculo que se alargava. (1998a, p.50) Laura foge à tentação e
fica arrependida de o ter tido coragem suficiente de enfrentar o desafio. As rosas
representam um desafio. Tomar posse delas é romper com o cotidiano, é tomar posse
de si mesma. Doando as rosas, Laura deixa escapar a oportunidade de dar
autenticidade à sua vida. No entanto, o mais importante ocorrera: a contemplação e a
doação. o essas atitudes que permitem Laura a ter o encontro consigo mesma. É o
que confere o narrador: Nesta cena imaginária e aprazível que a fazia sorrir beata, ela
chamava a si mesma de Laura, como a uma terceira pessoa. Uma terceira pessoa
cheia daquela suave e crepitante e grata e tranqüila, Laura a da golinha de renda
verdadeira. (1998a, p.44) Ao final da narrativa, quando o marido a encontra com seu
vestidinho de casa, distante, mergulhada em si mesma, percebe que sua esposa
voltara a situação de antes, ao estado por que fora internada. Assim, pode-se afirmar
que as rosas promoveram um encontro de Laura consigo mesma. Nem o fato de -las
doado consegue reverter a experiência que tivera. Na verdade, uma ruptura com
uma situão anterior. A serenidade com a qual ela recebe o marido, vai de encontro ao
cansaço dele. O que gera nela um sentimento de piedade pelo marido.
Não pude impedir, disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava na sua
voz, o último pedido de perdão que vinha misturado à altivez de uma solidão
já quase perfeita. Não pude impedir, repetiu entregando-se com alívio a piedade
que ela com esforço conseguira guardar até que ele chegasse. Foi por causa
das rosas disse com modéstia.(1998a, p.52-53)
Por essa fala, presume-se que Laura não é mais a mesma, ela tem consciência do
mundo artificial em que vive, apesar de não romper com ele. Convém citar mais um
trecho da análise existencial que faz Benedito Nunes á ( p. 94) de O dorso do tigre.
Pode o homem através da angústia, encontrar a sua realidade de ser existente;
mas é para escapar da angústia que ele se refugia no cotidiano, onde,
protegido por uma crosta de palavras, por interesses fugidios e limitados, que
o o satisfazem completamente e apenas disfarçam o cuidado em que vive,
passa a existir de modo público e impessoal.
4.2.3 Laços de família
Em Laços de família, conto que título ao livro, Clarice apresenta o problema em
sua raiz: o seio familiar. Nessa narrativa, a escritora promove o encontro de uma mãe:
Severina, com a filha de 32 anos, Catarina, nomes que apontam para a semelhaa
das personalidades das duas mulheres. A terminação em rina, sugere tanto o
parentesco quanto a personalidade forte, a severidade das duas mulheres. A
fragilidade e o distanciamento da relação entre mãe/filha e mãe/filho é exposta a partir
do encontro das personagens, fazendo-nos entrever que, os los familiares não
representam um elo de união entre as pessoas. Severina e Catarina, embora sendo
mãe e filha, não tiveram oportunidade de se conhecer, de demonstrar o amor que
sentem uma pela outra. A visita de Severina à filha representa uma tentativa de
recuperação do tempo perdido. Pois, ao que parece, não houve uma intimidade entre
as duas. Clarice nos mostra, claramente, nesse conto, que o ambiente familiar não é
um espaço de liberdade. A mesmo na relação que deveria ser a mais íntima:
mãe/filha, há um distanciamento. Isso nos proporciona levantar a pergunta: que laços
familiares são esses? Quão fracos se apresentam.
A visita de Severina à filha perturba também Antônio, seu genro, pois representa uma
ameaça a estabilidade da casa. Severina, nome que indica, severidade, autoridade,
fortaleza, mexe com a aparente tranqüilidade que Antonio gozava com a esposa,
Catarina. A narrativa inicia-se quando a mãe já está deixando a casa da filha, se
despedindo do genro que, a despeito do desconforto que a visita da sogra lhe causara,
agora se sente aliviado. Pode agora tratá-la bem, pois ela já está de partida. No
entanto, o retorno da tranqüilidade que ele tanto esperava, não ocorre, pois sua mulher,
após deixar a mãe na estação, volta um tanto estranha. Não lhe atenção, preferindo
voltar-se para o filho, um menino fraco e alheio, tanto a ela quanto ao pai. Aqui se
pode notar a fragilidade da relação tanto entre mãe/filha como, também, mãe/filho. A
carência também do homem, do ser do sexo masculino. Fragilidade produzida por um
sistema que falseia uma posão de superioridade do homem, que não necessita do
carinho e do afeto da mãe. A sogra adverte: continuo a dizer que o menino está
magro. [...] Magro e nervoso.( 1998a, p. 95). Na verdade, o menino es magro de
afetos e o de comida. Aentão Catarina não percebera: - O menino sempre foi
magro mamãe. (1998a, p.95) A presença da avó perturba também o garoto. Os
carinhos que ela lhe dispensa o incomodam, quão desacostumado estava, pois nunca
os havia recebido. Assim como incomoda Antonio, seu genro, o pai da criança.
Na verdade, este menino representa também o próprio Antonio. Sua inquietação, com
o excesso de preocupação da velha, é um indício de que também sofre da mesma
carência que seu filho. A sogra percebe e, apesar de ele tê-la recebido mal, ela também
o ama. Deseja uma proximidade com ele, visto que é marido de sua filha. O que fica
exposto por essa afirmação: “’Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha
ganha mais um (1998a, p.95). O que acaba por confirmar que o distanciamento da
relação mãe/filho (sexo masculino), é ainda maior que mãe e filha. Catarina nutre
uma ternura especial pela mãe, apesar de não demonstrar. Ao que indica entre ela e a
mãe não ocorrera uma troca afetiva maior. É na estação, após o choque com a mãe
que Catarina a observa melhor. Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e
tinha os olhos brilhantes. (1998a, p.96) Destaca-se nas duas o olhar, o narrador sugere
que ambas possam brilho nos olhos. Catarina, aliás, ria pelos olhos, a mãe, apesar
da idade, tinha o olhar brilhante.
Outro fato importante a se comentar do conto, é o ambiente onde ocorre a mudança de
comportamento da personagem. Como nas outras narrativas é, também, no ambiente
exterior ao lar que ocorre a reflexão. É no percurso, entre a casa de Catarina e a
estação, que ocorre a epifania. O choque dos corpos de Catarina e Severina, mãe e
filha, ocorre na freada súbita do táxi, assemelhando-se a freada do bonde do conto
Amor, que leva também Ana a quebrar o seu cotidiano. Aqui são as malas que
despecam no ínfimo segundo em que o carro pára. Pode-se pensar aqui no tempo. O
tempo que não pára, no tempo que movimenta nossas vidas, e que não nos damos
conta que está passando e que estamos envelhecendo, ou melhor, morrendo e
perdendo o melhor de nossas vidas: a oportunidade de expressar nossos sentimentos,
nosso amor, nossos desejos. As oportunidades que temos são desperdiçadas. O
homem não se conta que esinserido em um tempo que não ra, mas que para
ele é finito. Por isso, aquele instante é precioso. O instante, afirma Clarice ao final do
romance A hora da estrela, momento em que Macabéia morre. O instante é aquele
átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e
depois o toca mais e depois toca de novo. (1999, p.86) Clarice, nessa narrativa,
também quer nos dizer que um dia se morre, por que então, o aproveitar o tempo?
Quando Catarina observa a e e vê o quanto envelhecera, advém-lhe a sensação de
que perdera algo. Quer nos dizer Clarice que, às vezes, é necessário uma freada, uma
sacudida para irmos ao encontro do outro, de nós mesmos e de nossos semelhantes.
Foi necessário um choque entre mãe/filha para promover a percepção, a reflexão.
Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha e também a Catarina acontecera
um desastre? Seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as
malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe.
Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora
lançada contra Severina, numa intimidade de corpo muito esquecida, vinda
do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de nunca se haviam realmente
abraçado ou beijado. [...] Mas depois do choque no xi e depois de se
ajeitarem o tinham o que falar por que não chegavam logo à estação?
(1998a, p. 96)
Após o esbarro Catarina percebe que ela é cópia da mãe. Pois sua relação com a
família: o marido e o filho, é a mesma que ocorrera à mãe; a relação fria e distante que
mantém com o filho é a mesma que recebera. Agora ali, bem junto à mãe, tem
oportunidade de refletir. A mãe, por sua vez, durante todo o trajeto entre a casa e a
estação, lhe pergunta se o havia esquecido alguma coisa, a qual Catarina responde
que não. Ao embar-la percebe que ambas haviam esquecido sim, esqueceram-se do
principal: de realizar uma troca afetiva maior, de expressar o amor uma pela outra.
Agora, já com Severina dentro do trem, se olhavam, numa atitude desesperada, como
se fosse a última vez.
A campainha da estação tocou de súbito, houve um movimento geral de
ansiedade, rias pessoas correram pensando que o trem partia: mamãe!
disse a mulher. Catarina! Disse a velha. Ambas se olhavam espantadas. [...]
Catarina estava sob a imincia de perguntar se não esquecera de nada...
- não esqueci de nada? Perguntou a mãe. Também a Catarina parecia que
haviam esquecido alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas porque se
realmente haviam esquecido agora era tarde demais. [...] Que coisa tinham
esquecido de dizer uma a outra? E agora era tarde demais. Parecia-lhe que
deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter
respondido: eu sou tua filha. (1998a, p. 97)
Importante ressaltar que Catarina, do icio ao fim do conto, nos é apresentada pelo
narrador como altiva e perspicaz. Apesar de estar submissa ao marido, em seu interior,
ela o analisa como fraco. A visita da mãe a fortalece ainda mais. Agora, no seu íntimo,
ela analisa os dois: a docilidade da mãe, o desprezo do marido. Por dentro ela ri da
situação, ela ri de si mesma, da própria desgraça. Primeiramente ri por dentro, pois
externar esse sentimento é perigoso: Se eu rio eles pensam que estou louca. (1998a,
p. 94), depois ri para fora.
Pois bem, esta mulher estrábica, vesga, zarolha, a tudo vê e risadas em seu interior,
indicando que, na verdade, dissimula uma situação; aceita as regras do jogo, mas
compreende perfeitamente o mundo em que esinserida. Na hora em que a mãe es
de sda, se despedindo do marido, que se atrapalha todo quando a velha lhe chama a
atenção, ensaia um riso, pois percebe o quanto de falso nas relações. Foi então
que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato
quando tinha vontade de rir. Mas o podia fazer contra: desde pequena rira pelos
olhos, desde sempre fora estrábica. (1998a, p.95)
Com a partida da mãe, ficara o sentimento de que precisava externar seu amor pelo
filho. No caminho de volta para casa as coisas lhe parecem diferentes, pois algo
mudara dentre dela.
E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu
felicidade tudo estava tão vivo e tenro, a rua suja, os velhos bondes, cascas
de laranja a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. Estava
muito bonita neste momento, tão elegante; [...] Nos olhos vesgos qualquer
pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do
mundo.(1998a, p. 98)
Esses índices dão conta de que, Catarina é agora uma outra mulher, mais viva, mais
disposta. Externa um sentimento antes contido, um sentimento de alteridade a domina.
É assim, que ela entra em casa e volta-se para o filho, esquecendo, por alguns
momentos, o marido. Dirige-se ao quarto do filho e, este a reconhece, chamando-a
chama pela primeira vez de mamãe. Agora sim, ela pode externar o seu riso, desta vez
não com os olhos, mas com todo o corpo. É a resposta do filho, correspondendo ao
seu contato íntimo, ou melhor, é quando o filho lhe chama de mae que ela ri para
fora. O menino nunca havia pronunciado a palavra mamãe. Ela também nunca rira para
fora. Mas desta vez não, [...] a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não
só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza
aparecendo como uma rouquio. (1998a, p.100) Sai com o filho para passear, de
mãos dadas, firme sem olhar para trás, sem dar maiores satisfações ao marido.
Desta vez é o marido que se sente, inseguro, solitário. Da janela, observando a
esposa e o filho, indaga a si mesmo:
Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? Pela janela via sua
mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os
olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhara sua boca
endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também
olhava fixo para frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras
perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à
luz do mar. (1998a, p.100)
Esses dados permite-nos afirmar que Catarina é a personagem mais altiva, mais
poderosa, dentro da obra Laços de família. Isso fica claro quando analisamos o
sentimento que ela provoca no marido, após a sua transformação ou seja, após o
contato com a mãe. Sente ele que algo se rompera, inquieta-se por isso. É tomado por
uma sensação de perda. Olhando pela janela a mulher que se distancia com o filho,
sente que está perdendo algo. Algo que ela sempre costumara dividir com ele: a
alegria. Esta ela agora dispensa, exclusivamente, nesse momento, ao filho. A reação do
marido é de ciúme. Sente uma espécie de inveja dessa nova relação da mãe com o
filho. É o que sugere o narrador pela citação abaixo:
Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E
com que sombrio prazer compreendendo-se dentro do mistério partilhado.
Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um
homem. Catarina, pensou com cólera, a criança é inocente! Tinham porém
desaparecido pela praia o mistério partilhado. (1998a,p. 101)
Aqui se pode pensar no complexo de Édipo. Na relação da inveja, a inveja do pai. A
teoria freudiana explica que o complexo de Édipo permanece conosco até o final de
nossa vida. O menino tem o desejo de ter a mãe só para si; quer penetrá-la e sente que
para isso deve afastar o pai do caminho. Esse desejo, embora afastado da consciência
pelo temor de ser castrado pelo pai, permanece como conteúdo do inconsciente,
operando em sintoma com a vivência que cada indivíduo teve dessa fase da vida. A
mulher, por sua vez, explica Freud, herdará sua feminilidade também da relação
edipiana. Nela, a ausência do falo é substituída pela maternidade. É na maternidade
que ela investirá, no sentido de compensar a sua perda. -se pois no conto, os dois
lados da questão edipiana, agindo no inconsciente dos personagens. Cabe aqui essa
leitura. Porém, não é nossa intenção entrar nesse âmbito, visto que ampliaríamos por
demais nossa análise. Famos, pois uma última observação com relação ao casal.
Observa-se, particularmente nesse conto, uma situação diferente. A presença de
Antonio, a descrição da fragilidade dele. Nas narrativas até aqui analisadas, os maridos
não manifestam esse sentimento de abandono. Aqui, Clarice mexe com o sentimento
masculino, sua identidade. Mostra que sua identidade depende da relação com o ser do
sexo feminino. Catarina, por sua vez, ao contrário de outras mulheres, não é castanha,
nem se veste de marrom. Os cabeloso pintados de acaju, os trajeso modernos.
A narrativa com o final aberto: não indicando o retorno da mulher para casa, também é
um outro indício da relação de poder ocupada pela personagem. Nessa história é o
homem que fica em casa, solitário, planejando um possível retorno ao cotidiano.
Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino
gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar...e o
elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um
instante. - Depois do jantar iremos ao cinema, resolveu o homem. Porque
depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos
rochedos do Arpoador. (p.103)
Assim, se pode entender que Clarice não condiciona o processo de busca de
identidade feminina relacionando com o confronto masculino/feminino. No fundo o que
a escritora quer nos mostrar é que a trajetória existencial depende, exclusivamente, de
ser vivo e desejável. Independente de ser masculino, feminino ou andrógino. No fundo,
o ser humano é carente.
4.3 SER MULHER: A IRONIA DO DESTINO
Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de
nele caber como se o tivesse inventado.
(Clarice Lispector)
Nos contos: Feliz aniversário e Uma galinha, o problema da identidade da mulher é
visto com certa ironia. A galinha, metaforizada na figura da mulher, tenta uma fuga sem
êxito, é obrigada a cumprir seu destino: o de alimentar e gerar vidas. Também a mulher
do conto: Feliz aniversário , ao longo de seus 89 anos, constata a vida mesquinha e o
estado de abandono a que chegou após ter cumprido, com firmeza, seu papel de boa
esposa e mãe.
4.3.1 Feliz aniversário
Feliz aniversário traz uma situação um tanto diferente. Se nos contos anteriores
"Amor" e " A Imitação da Rosa" as mulheres se sentiam desconfortáveis, mesmo que
por um instante, na sua função de mãe-esposa, tentando fugir desta função, ou
fracassando nela, nessa narrativa, a personagem principal já trilhou este caminho. Já
plantou as sementes tempos; já as viu crescer e dar frutos.
O conto relata a festa de aniversário de D. Anita; matriarca que completa 89 anos. O
ambiente da festa exala as situações comuns em todas as famílias: relações
estremecidas, parentes desafetos e dissabores das relações familiares.
Se nos textos anteriores a figura feminina era exposta, aqui não ela é conhecida
pelo leitor, mas também os que a rodeiam. Analisando estas histórias familiares
mostradas por Clarice, chega-se à conclusão de que o meio familiar é um lugar
desconfortável na visão da autora. Seja para a mulher, seja para aqueles que nele
vivem. A figura feminina é colocada como de grande importância para a sua
sustentação. Ela é o suporte, a pedra fundamental. É ela também que conhece os
seus, mais até que eles mesmos. É por meio do olhar da personagem Anita que
ficamos conhecendo seus familiares presentes na festa. É seu olhar crítico que nos
mostra o quão complexas e, às vezes, superficiais, podem ser as nossas relações com
aqueles com quem vivemos. O texto mostra esta personagem rodeada de seus filhos,
netos, noras. Todos procuram transmitir uma felicidade, um bem-estar inexistente. No
entanto, pelo olhar da protagonista, se percebe que estão cumprindo apenas uma
obrigação. A velha pressente que representa um estorvo, uma carga para os seus ali
reunidos. Sente que, para eles, comemorar mais um ano de sua vida não passa apenas
de obrigação.
A personagem central, ao contrário dos contos anteriores, es diante de uma falia
formada. Já é uma mulher vivida. Mais uma vez nos é exposto uma situação de
contraste. Se o ambiente externo, ao redor da personagem, é de festa, harmonia,
descontração, em seu interior um verdadeiro sentimento de rancor, frustração,
insatisfação e até mesmo de revolta. Ela observa os seus e despreza-os. Ela os
conhece melhor que eles a si mesmos e a ela. Não imaginam que dentro daquela velha
há um coração, uma mente, um ser que questiona, avalia. Pela idade, os demais
pensam que ela é apenas uma criança que precisa de cuidados e uma vez por ano de
um "feliz aniversário". D. Anita não pensa ou repensa sua vida, ela analisa os que a
rodeiam. Se Ana e Laura sentiam uma vontade de viver, e tentavam com o casamento
matar essa vontade, D. Anita, por sua vez, ultrapassou essa fase. Lamenta, agora, os
frutos do casamento. Dessa forma, Clarice nos apresenta outra fase da vida da mulher.
Outras problemas advindos da relação familiar e matrimonial. O final a que ela es
destinada, após tanta dedicão. Ali, perante os filhos e netos, D. Anita pensa no que
lhe restou do casamento. Nem os filhos, frutos desse, lhe são agradáveis. Sua família,
no fim, não dera o resultado esperado. Cumprira seu destino de mulher de forma eficaz.
Porém, o fato de seu papel ter sido cumprido, ter gerado filhos, ela não se sente feliz.
Nessa história, então, -se o fim a que cabe à esposa-mãe no seio familiar: Esse
destino acaba por ser ingrato. Casar-se; ter filhos; criá-los, vê-los crescer e casarem-se,
ao final de tudo, quando a idade avança demais, torna-se um peso que algum filho terá
que carregar.
Nos contos de Clarice é importante notar a presença da interiorizarão das personagens.
O drama delas são interiores. Tudo se passa em seus pensamentos, em suas
reflexões. Tudo que olham, observam levam-nas a um momento de análise, devaneio.
As ões dos outros é que são contadas não as suas. Em "Feliz aniversário" não é
diferente. A aniversariante olha ao seu redor e, a partir daí, analisa o que sua breve
vida pôde deixar para o mundo. É com ironia e altivez que a protagonista, em seu
íntimo, murmura o estado de abandono em que se encontra, apesar de rodeada pelos
filhos, netos e bisnetos. D. Anita se questiona, faz uma revisão de sua vida e uma
análise dos que se encontram ao seu redor.
Como?! Tendo sido tão forte pudera dar a luz àqueles seres opacos, com
braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo
devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara
e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O
tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade
sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres
risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns
comunistas era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha.
Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e
com força insuspeita cuspiu no chão. (1998a, p.60)
Ressalta-se, nesse conto, a aparente fragilidade da velha que, apesar de rodeada por
muitos, encontra-se em estado de solidão. Ela ocupa o centro e a margem: E ela era a
mãe de todos, o narrador faz questão de repetir. Enquanto todos correm de um lado
para o outro na expectativa de comer do bolo, a velha es ali, a cabeceira da mesa, ao
centro, muda. No entanto, em seu interior ela remove o pensamento, analisando a
artificialidade do momento, a falsidade das relações. Ela revolta-se com a situação, pois
sabe que, para aqueles que ali se encontram, ela não passa de uma velha inútil, à beira
da morte. A reunião todos os anos é uma obrigação, que todos forçadamente cumprem.
Mas, na verdade, tudo o passa de uma obrigação. Vem o momento culminante, a
hora de cantar os parabéns, ninguém se entende, vira uma torre de Babel. Cada um em
sua língua.
Pode-se dividir a narrativa em duas partes: antes e depois dos parabéns, com o bolo
inteiro e com o bolo partido. No primeiro momento, antes de partir o bolo, D. Anita se
encontra quieta, não se manifesta, apenas observa. O corte do bolo representa o
rompimento com a situação anterior. A velha uma prova que ainda esviva. E de
súbito a velha pegou na faca. E, sem hesitação, como se hesitando um momento ela
toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina. (1998a,
p.59)
O narrador assume uma perspectiva irônica ao relatar o corte do bolo e sua distribuição.
Dada a primeira talhada, como se a primeira de terra tivesse sido lançada, todos se
aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação,
cada um para a sua pazinha. (1998a, p.59) Assim, a morte simbólica encontra-se
igualmente inscrita no conto. Afinal, depois de uma certa idade, morrer ou completar
mais um ano não faz diferença. O que ninguém esperava é que D. Anita reagisse, ou
melhor, ressuscitasse, cuspindo no chão, denunciando aquela mediocridade, aquela
falsidade.
A festa também é pretexto às indagações de Cordélia que, dentre todas as noras,
remoe o pensamento sobre aquele instante. Pensou também no seu futuro. como se
perguntasse: será esse, também, o fim a que eu estou destinada? Ao olhar os punhos
cerrados da aniversariante, ela também se inquieta e parece saber a resposta. De fato,
a mulher, nos seus oitenta e nove anos, gerara frutos, mas esses só lhe deram
dissabores.
Mas ninguém podia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da
porta ainda a olharam mais uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia
ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha
como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra.
Com um punho sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que ela
pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava
serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa
dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: é
preciso que se saiba. É preciso que se saiba que a vida é curta. Que a vida é
curta. (1998a, p. 64)
Por essa fala percebe-se que, na verdade, o aniversário representa a morte da velha.
Metaforizada pela mudez e pelos olhares de despedida. O silêncio dispensa as
palavras. Silenciar é dizer por outra via. E, nesse silêncio, potencia-se a lucidez, a
visão. Vale repetir: É preciso que se saiba que a vida é curta, antes que seja tarde. O
silêncio da velha vem se inscrever sob outra forma: a acusação à carga de mentira que
veicula nas relações familiares, a carga de mentira que a linguagem veicula. Apesar de
tratar-se de uma comemoração de aniversário, a atmosfera do conto retrata à morte. A
morte é aquele momento em que fogem as palavras. É o que ser pode comprovado
pela fala do narrador:
Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem
perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais que palavra?
Eles não sabiam propriamente, e olhavam-se, sorrindo, mudos. Era um instante
que pedia para ser vivo. Mas que era morto. (1998a, p. 66)
O conto revela o pouco valor da vida, e combate, desse modo, a indiferença, mesmo
entre os mais chegados, a família. Cordélia, por sua vez pensa em seu destino: Dona
Anita não tinha mais tempo de voltar atrás. É como se dissesse: D. Anita deu tudo de si
e não recebeu quase nada, só as migalhas sobre a mesa. Cordélia repensa, pois ainda
é jovem e, como Ana e Laura, ainda tem sede e tempo de viver a curta vida.
No entanto, o tempo não nos essa certeza, somos contigentes e circunstanciais.
Somos levados pelo emaranhado das circunstâncias, ondeo sabemos. O acaso rege
boa parte da fabulação de nossas vidas. E, ao se retirar da festa, Cordélia mais uma
vez quis olhar. Mas a esse novo olhar a aniversariante era uma velha à cabeceira da
mesa. (p.64) Dessa forma, o problema volta sempre ao essencial: o fato de que, após
o intermédio momentâneo de uma existência efêmera, para o ser humano e, ainda mais
para a mulher, parece uma dura e, até mesmo, uma intolerável condição.
Para a aniversariante toda uma infinidade de tempo fluiu e ela o viveu plenamente.
Encerra-se ali, à cabeceira da mesa, toda uma existência, enquanto os demais se vão,
prometendo voltar no ano seguinte e, dessa vez, diante do bolo aceso (p. 65) É
Manoel, o filho, que diz veemente:
- No ano que vem nos veremos, mamãe!
- Não sou surda! Disse a aniversariante rude, acarinhada. (1998 a p. 66)
O fechamento do conto nos conduz a interpretação que, embora ela possa viver mais
alguns anos, para os filhos ela já es morta. No entanto, em seu íntimo aquele
aniversário representa um sopro de vida, um momento de meditação que a deixa
erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava
ela. A morte era seu mistério. (p.67) Na verdade, a velha aniversariante desfruta da
morte em vida, debocha dos seus, é irônica, enfrenta a morte por meio do tédio.
4.3.2 Uma galinha
Mais uma vez Clarice aqui nos expõe como é difícil e quase impossível a ruptura dos
laços familiares, principalmente para a figura feminina. O conto "Uma galinha" pode ser
considerado uma metáfora dessa dura quebra de união. A personagem deste conto é
uma galinha que, ao tentar uma fuga, é capturada e, momentaneamente, sua vida é
poupada pela família à qual pertence.
A autora, usando uma linguagem figurativa, tematiza o feminino e seu destino, traçado
pela cultura que admite a possibilidade de uma vocação particular para a mulher, a da
maternidade. Observa-se, nessa narrativa, os códigos ideológicos construídos a partir
de uma cultura que prevê para homens e mulheres destinos diferentes. A verdade é
que suas diferenças são feitas de vantagens e desvantagens de uns sobre os outros.
Estúpida, mida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que
havia em suas vísceras que fazia dela um ser? [...] Nem ela contava consigo
como um galo c na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas
galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se
fora a mesma. (1998a, p.31)
Por essa observação do narrador, deduzimos o quanto o código social é paternalista,
no sentido em que aponta funções diferentes para homens e mulheres. Extraindo da
citação [..] um galo crê na sua crista, teríamos como metáfora que o homem, ao
contrário da mulher, é aquele que projeta a sua vida, escolhe sua atividade criadora,
transforma a natureza, enquanto a mulher nasce com uma única vocação: a de ser
mãe. Clarice desmistifica essa condição, desconstrói esse digo. Para ela, homens e
mulheres, tendo uma mesma natureza humana, têm, naturalmente as mesmas
necessidades, as mesmas possibilidades. Ao mostrar a condição da galinha em
contraposição ao galo, a escritora denuncia essa heraa cultural que aponta
diferenças entre os sexos. A autora não impõe aqui a superioridade masculina, mas
adverte-nos que essa cultura o é herança natural, mas uma criação dos homens.
"Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si
mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça." (1998a, p.31).
Confirma-se por essa citação que não se trata de contrapor masculino feminino, a
reflexão é direcionada para queso essencial: a característica fundamental do ser
humano, seu papel perante o outro. Daí, mais uma vez, ela toca no problema da
solidão. Para a escritora, o código ideológico que visualiza uma desigualdede entre a
fêmea e o macho afetou, de tal forma o relacionamento humano, que homens e
mulheres, a raça humana enfim, parecem caminhar solitários. Feminino e masculino a
eterna relação desigual. O homem traça o seu caminho, a mulher, como a galinha,
tem o seu, traçado e definido. O que se pode fazer? Fugir, com todas as suas forças e
não render-se ao caminho traçado. Não se deixar capturar. Porque retornar à vida
familiar é voltar apenas à utilidade é voltar a morrer.
Sobre esse conto, importante ressaltar o que Nunes indica estar por trás da simbologia
dos animais descritos por Clarice. Conforme o autor a galinha simboliza um animal
cativo, o reduto mais frágil da animalidade doméstica. Nesse conto ela assinala o
represamento da existência ameaçadora, ancestral e inumana. (1976, p. 125)
Reportamo-nos, também, a Leonardo Boff, do seu livro A águia e a galinha: uma
mefora da condição humana. Nessa obra, o ex padre e filófoso, analisa os aspectos
da dominação humana sobre os animais e, sobretudo, sobre o seu semelhante. Cremos
que é por essa via que Lispector descreve os animais e a natureza. Por outro lado,
Clarice deseja também captar a forma, por isso ela coloca o homem em contrapondo
com os animais. Este por ser humano, por possuir consciência, consciência da morte,
torna-se inumano, um não-ser. Os animais, permanecem a vida inteira como Ser, por
não possuírem essa consciência, vivem em sua essência. Nesse pequeno conto, a
escritora metaforiza a condição da galinha e a compara à condição feminina. À mulher
cabe a mesma função da galinha, a de servidora fiel.
Assim, com certa ironia, Clarice nos expõe, nesse texto, um arquétipo do feminino
previsto pela sociedade, que visa a mulher como um organismo especificamente
orientado para reprodução e diferente do organismo masculino, ao qual ela essujeita,
esperando ser por ele impregnada sexualmente para cumprir seu destino de mulher.
Dessa forma, cabe a ela o mesmo papel que o da galinha, identificada com às suas
funções naturais, determinada por sua natureza animal. A autora parece querer nos
dizer que, dentro dessa perspectiva, os laços familiares reservam à mulher um papel a
cumprir: o de mãe de família e de esposa dedicada, uma posição servil, como a galinha
do almoço de domingo. Sua vocação, assim, é vista como um cumprimento de sua
feminilidade, ou seja, ela é parcialmente percebida, apenas nos níveis biológico e
social, sem qualquer consideração para com o nível existencial humano. Cremos que é
por essa ótica, com a idéia de vocação feminina, que Clarice constrói o conto Uma
galinha. Por essa visão, Clarice parece querer nos dizer que, ao contrário do que
orienta as regras sociais, a vocação do ser humano, seja ele masculino ou feminino é
algo para além de suas funções biológicas. A vocação essencial de ambos é sua
transcendência. Portanto, identificar a mulher com sua função procriadora, ou com sua
função sexual, é considerá-la um organismo animal, ou um objeto de prazer e não um
ser integralmente humano. Observa-se que toda a atmosfera do conto gira em torno
dessa questão. A galinha só não vira almoço naquele dia por ter botado um ovo. A
condição de mãe é a tábua de salvão.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo.
Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que
fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o
ovo e assim ficou, respirando, abotoando e dasabotoando os olhos. Seu
coração tão pequeno num prato, solevava e baixava as penas, enchendo de
tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. (1998a, p.31)
Daí a extraordinária afirmação com que nos deparamos ao final do conto
Preciosidade, com a qual abrimos esse capítulo: uma obscura lei que faz com que
se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo. (1998a, p. 93). Ao que se
entende que a mulher é protegida em virtude da função reprodutora até o nascimento
do herdeiro masculino, o pinto, pássaro de fogo, mas a partir de então, é condenada às
margens, é o que vimos ocorrer com a velha do conto Feliz aniversário, depois de um
certa idade já não se é capaz de gerar nada, morre-se. No caso da galinha mata-se
literalmente: Aque um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos. (1998 a,
p. 33).
Assim, essa metáfora reflete de modo exemplar, embora dramático, a
instrumentalização da mulher a serviço de uma sociedade patriarcal.
4.4 A MANIFESTAÇÃO ERÓTICA EM PRECIOSIDADE E O BÚFALO:
DESEJO QUE NÃO PODE CALAR
Os contos Preciosidade e O búfalo trazem à tona a questão do erotismo bem
delineada. Neles a questão da sexualidade feminina é bem visível. As protagonistas
dessas narrativas, uma adolescente e uma mulher mais madura, se vêem às voltas com
seus conflitos, gerados pelo desejo e inquietação de seus corpos. A escritora tenta
mostrar que os conflitos pelos quais passam as personagens são gerados no ambiente
familiar. Suas relações pessoais se resumem a esse ambiente e tudo que diz respeito a
ele. Mesmo inseridas num meio em que mantém relações com outros indivíduos, elas
se encontram sós, abandonadas em seus desejos e latências.
4.4.1 Preciosidade
A solidão, a vontade de possuir realmente uma vida, de manifestar seu desejo, a sede
de libertação de uma prisão é algo que é dito com esse título: "Preciosidade": "Estou
sozinha no mundo". É esta verdade maior que se pode encontrar nos texto de Clarice, o
indivíduo inserido num mundo seja, ele qual for, está só. Ele possui relações com
outros indivíduos, outras pessoas, mas seus sofrimentos, suas experiências, suas
vivências, suas dores ele os passa, sozinho. A dor que sente é só sua; o amor
também. As boas e más experiências, as vitórias ou derrotas são vividas por cada
pessoa, individualmente. As decisões a serem tomadas, o desistir ou persistir; o resistir
ou o se entregar são atitudes a serem tomadas por quem as vive. A vida é assim, as
relações são assim. Ninguém pode viver por nós, mas nós podemos deixar de viver. As
personagens possuem seus desejos, anseios, medos e só elas podem superá-los,
satisfazê-los ou sucumbir a eles. Ninguém pode ajudá-las a livrarem-se dos seus
sentimentos, porque são delas, mínimos que sejam, pertencem a elas. E cabem a elas
decidir que caminho tomar.
A personagem de "Preciosidade" tinha uma trajetória diária. Um caminho a percorrer
sempre no mesmo horário: o caminho da escola. Este tempo espaço era para ela um
lugar de ligeira liberdade. Liberdade de espírito: "Acordada antes de todos, pois para ir
à escola teria que pegar um ônibus e um bonde, que lhe tomaria uma hora. De
devaneio agudo como um crime". (1998a, p.82) O espaço do pensamento, da solidão
(quando o precisava se relacionar com ninguém) era o espaço de liberdade: "Na
casa vazia, sozinha com a empregada, não andava como um soldado, não
precisava tomar cuidado. Mas sentia falta da batalha das ruas. Melancolia da liberdade,
com o horizonte ainda tão longe, dera-se ao horizonte." (1998a, p. 86). Esse espaço lhe
era permitido pela trajetória entre sua casa e a escola. Nesse espaço e tempo sua
mente e corpo estavam desligados do laço familiar e dos que a conheciam. Nesse
percurso era uma desconhecida de todos que a cercavam. Nesse lugar ela podia
exercer e requerer sua individualidade que, nesse momento de sua vida, estava repleta
de sensualidade.
Esse texto, assim como a maioria dos contos dessa obra, também é demarcado pela
oposição do espaço dentro/fora e de uma situação antes/depois. O dentro significa
tanto o interior da casa da protagonista, quanto seus conflitos interiores. O fora
representa tanto a rua, o espaço percorrido entre à sua casa e à escola, quanto o
desejo que se aflora. A situação antes/depois é demarcada pela sugestão da quebra do
hímem, do rompimento da preciosidade da jovem. Assim, a narrativa é repleta de uma
sensualidade pressentida e contida pela personagem. Seu corpo é todo sentidos. Tudo
em Preciosidade remete ao afloramento sexual da jovem adolescente desde a brisa
da manhã até o suposto esbarro com os dois homens na rua deserta. "O vento da
manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então
ela sorria." (1998a, p.82) Vê-se, pois, que esses sentimentos polarizam a vida afetiva
em constante metamorfose. A menina é atraída pelo próprio desejo de ser tocada, por
isso, ela não foge do destino, não recua, desafia o medo. Como recuar e depois nunca
mais esquecer a vergonha de ter esperado em miséria atrás de uma porta? (1998a,
p.88) Aqui, percebe-se o conflito por que passa a jovem adolescente às voltas com sua
sexualidade. Como não ceder aos impulsos do corpo? Como não matar o desejo da
carne que se aflora naturalmente? Pensa a protagonista que renunciar, não ceder ao
impulsos sexuais, é correr o risco de ficar só. Verifica-se, pois, a tensão: o conflito entre
erotismo e moral cristã, que impõe limites e regras para o relacionamento sexual,
principalmente à mulher.
Orienta o cristianismo que a mulher, mais que o homem, deve conter os impulsos,
guardar-se virgem para o casamento. Essa orientação trouxe prejzos tanto para o
ser do sexo feminino quanto para o masculino, é certo que mais para a mulher. Daí,
Lispector tomar o nome preciosidade para tratar desse assunto: a virgindade da
mulher. Vamos perceber que na mesma obra, no conto Mistério em São Cristóvão, a
escritora nos apresenta outra moça, beirando a mesma idade, passando pelo mesmo
conflito. Dessa vez, a personagem, numa noite de maio, olha pela janela, e avista três
rapazes mascarados, invadindo o jardim de sua casa para roubar flores. Metaforizado
nesse conto, assistimos, também, ao anseio da jovem por sua deflorão. Nele
também, Clarice toca na questão da moral e da lei. Dessa vez remetendo diretamente
a moral cristã. Metáforas como a figura do galo, do touro e do demônio, máscaras dos
três rapazes, que invadem o jardim proibido, nesse conto, simbolizando o jardim do
Éden, concorrem para deduzirmos que se trata de uma fantasia sexual da jovem.
Resta-nos comentar o modelo de família descrita nesse texto. Ao final do conto, pelo
narrador ficamos sabendo que a história é sempre a mesma. O reduto familiar não
constitui um espaço de liberdade.
E como o progresso naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de
algumas mentiras tudo se desfez e teve que se refazer quase do princípio: a
avó de novo, pronta a se ofender, o pai e mãe fatigados, as crianças
insuportáveis, toda a casa parecendo esperar que mais uma vez a brisa da
abastança soprasse depois do jantar. (1998a, p.117)
Assim, a jovem desse conto, embora convivendo com os seus: pai, mãe e a, sente-se
sozinha, com seus desejos existenciais que, agora, mais acentuadamente, se afloram.
Estes, por sua vez, preferem ignorar, silenciar, calar. Assim, as relações familiares nos
são apresentadas como artificiais, máscaradas, escamoteadas pelo sistema.
Novamente, aqui o retorno ao cotidiano, num contraste com os tormentos
protagonizados pela jovem. Essa é a forma que Clarice encontrou para denunciar o
Eros proibido. Para nos dizer que os controles e leis sociais não amortecem os desejos.
Ele é instintivo, tanto no humano, quanto no inumano. Daí a figura dos animais nos
textos da escritora, como vimos nessa hisria e veremos adiante, em O búfalo.
Chega um momento em que se quer a fusão: Eros se manifesta, independente de
controles e leis sociais. Onde houver vida haverá sempre a ameaça da desordem
erótica. É natural, portanto, que as jovens desses contos convivam com o fantasma da
dúvida, da culpa. No fundo as duas angustiam-se com suas preciosidades.
Ainda cabe um comentário sobre o espaço, o ambiente, das duas narrativas. A história
de Mistério em São Cristóvão se passa totalmente no ambiente interno, a casa da
jovem. a mocinha do texto Preciosidade, como vimos, percorre também o espaço
público, vai ao colégio todos os dias. Por isso conclui-se que esta vai às vias de fato;
perde a virgindade, deixa de ser preciosa. O que sugere a fala do narrador: Até que,
assim como uma pessoa engorda, ela deixou, sem saber por que processo, de ser
preciosa. [..] E ela ganhou os sapatos novos. ( 1998 a, p. 93) Enquanto aquela
permanece intacta, poiso ganhara a liberdade da rua.
Atribuímos, também, ao espaço externo uma abertura maior na descrão da primeira
jovem. Observa-se, nela, a preocupação com o seu corpo, não só o seu, mas também o
dos outros, mostrando que ela tem consciência do despertar para o sexo. todo um
cuidado de si, afirmando o sub-título do terceiro livro de Foucault, História de
sexualidade. Então subia, séria como uma missionária por causa dos operários no
ônibus que podiam lhe dirigir algumas coisas. Aqueles homens que não eram rapazes.
Mas também de rapazes tinha medo, medo também de meninos." (1998a, p.83) Ela
sabia que seu corpo estava em transformação e de alguma forma despertava desejos
sobre as figuras masculinas, qualquer que seja. No entanto, não sabia lidar com essa
situação. Na transição menina mulher, era inexperiente no uso do seu corpo sensual.
Por isso a angústia: "Embora alguma coisa nela, à medida que dezesseis anos se
aproximava em fumaça e calor, alguma coisa estivesse intensamente surpreendida - e
isso surpreendesse alguns homens".(1998a, p.83) A perturbação que causa à mulher
este fato é a descoberta de sua sexualidade e o poder que exerce sobre os outros
(homens). Eles, principalmente, notam este desabrochar do corpo feminino, pois é
sobre eles que tem mais influência, efeito. "É que eles sabiam: E como ela também
sabia, o desconforto. Todos sabiam o mesmo. Também seu pai sabia. Um velho
pedindo esmola sabia". (1998a, p.84) Porém todos se calavam ante ao estado de
metamorfose da menina. Dessa maneira, Clarice explora a inquietação própria dessa
fase, conseguindo expor por meio dessas personagens, como é complicado para a
adolescente esse momento de transformação. A impotência por não poder manifestar
integralmente os desejos, as latências e, diante das regras a obrigação de sufocar um
sentimento. Enfim, nesse texto assistimos à luta da mulher em lidar com um processo
que é natural do ser humano, sua sexualidade, mas que, por via das regras, tem de
esconder, esperar o momento apropriado.
O aprendizado da paciência, o juramento. Do qual talvez não soubesse jamais
se livrar. A tarde transformando-se em intermivel e, até todos voltarem para o
jantar e ela poder se tornar com alívio filha, era o calor, o livro aberto e depois
fechado, uma intuição, o calor: sentava-se com a cabeça entre as mãos,
desesperada. [...] Com a cabeça entre as mãos, sentada. Dizia quinze vezes:
sou vigorosa, sou vigorosa, sou vigorosa [...] Suprindo com a quantidade, disse
mais um vez: sou vigorosa, dezesseis. E não estava a mercê de ninguém.
Desesperada porque, vigorosa, livre, não estava mais a mercê."(1998a, p.86)
Ainda, com relação ao conto Preciosidade, é importante notar que só quando a
personagem eslonge da família é que ela se dá o direito de exercer sua busca por
identidade e de reafirmá-la. Quando sua família es presente, é apenas filha, que
necessita de cuidados e atenção. Pode ainda ser criança. Mas fora do alcance dos
olhares dos seus, precisa saber quem é, o que fazer. Por isso, recorre à empregada,
mais vivida que ela e sem vínculo familiar. Com ela pode sanar suas dúvidas, sobre a
vida e sobre o sexo. É no espaço da solidão familiar, ou seja quando não es na
presença de seus pais, que tenta se achar, conhecer o seu corpo. Mesmo que seja por
meio das experiências dos outros.
Foi conversar com a empregada, antiga sacerdotisa. Elas se reconheciam. [...]
procurava na empregada apenas o que esta perdera, não o que ganhara.
Fazia-se pois distraída e, conversando, evitava a conversa. 'Ela imagina que na
minha idade devo saber mais do que sei e é capaz de me ensinar alguma
coisa', pensou, a cabeça entre as moas, defendendo a ignorância como a um
corpo. Faltavam-lhes elementos, mas ela não os queria de quem os
esquecera. A grande espera fazia parte. Dentro da vastidão, maquinando.
(1998a, p.85)
A adolescente estava em profundo conflito com sua nova situão. Queria saber como
agir, queria se conhecer mais. Porém a única pessoa com quem tinha coragem de
expor suas dúvidas passara muito por sua situação. Ela queria uma experiência
mais imediata, algo com que ela pudesse compreender realmente essa nova mulher na
qual ela estava se transformando. Contudo sabia uma coisa: era um momento único, no
qual se tornava especial, preciosa. Por isso a preocupação com os olhares. Essa
preocupação se contrastava com a realidade. A menina não queria ser olhada, tocada,
mas ao mesmo tempo deixa transparecer que era isso que queria. Desejava que a
figura masculina fixasse seus olhares nela e visse que possuía um corpo em ebulição,
em transformação, um corpo que desperta desejos e que possui, também, desejos.
Na gravidade da boca fechada havia a grande súplica: respeitassem-na. Mais
que isso. Como se tivesse prestado voto, era obrigada a ser venerada, e,
enquanto por dentro o coração batia de medo, também ela se venerava, ela, a
depositária de um ritmo. Se a olhavam ficava rígida e dolorosa. O que a
poupava é que os homens o a viam. Embora dezesseis anos se aproximava
em fumaça e calor (...) como se alguém lhes tivessem tocado no ombro. Uma
sombra talvez. No chão uma enorme sombra de moça sem homem,
cristalizável elemento incerto que fazia parte da monótona geometria das
grandes cerimônias públicas. Como se lhes tivessem tocado no ombro. Eles
olhavam e não a viam. Ela fazia mais sombra do que existia." (1998a, p. 83-
84)
O texto mostra a confusão interior que a personagens vive, tentando esconder de si
mesma os desejos do seu corpo que estão aflorando. o quer que a olhem, mas
lamenta que não a vêem. Porque é apenas sombra, a sombra que toca os homens,
mas não é tocada. A necessidade tátil do corpo, o desejo de sentir o outro. Mas ainda
não é Mulher, não tem identidade ainda. Uma mulher sem homem, virgem, sem
experiência. Por isso eles apenas sabem, mas não a vêem.
"Estou sozinha no mundo" esta frase é dita pela personagem após passar pela
experiência de perder a virgindade. Como dito no início, as experiências, vivências, o
caminho percorrido pelo ser humano, pertencem a ele. A vida se vive só, o crescimento
se faz dentro de nós mesmo. Aprende-se com a amarguras e felicidades da vida e isso
é só nosso.
Eles vão olhar para mim, eu sei, não há mais ninguém para eles olharem e eles
vão me olhar muito!'. Mas como voltar e fugir, se nascera para dificuldade. Se
toda sua lenta preparação tinha o destino ignorado a que ela, por culto, tinha
que aderir. Como recuar, e depois nunca mais esquecer a vergonha de ter
esperado em miria atrás de uma porta? ( 1998a, p.88)
A personagem procurava saber, conhecer os mistérios de seu corpo precioso, com as
experiências de outra pessoa. Fugia dos que a rodeavam por medo de seu corpo e
deles. No entanto, é no encontro com o corpo de desconhecidos que perde sua
preciosidade. O destino não sabemos o que esperar dele. Ela preparava-se para uma
experiência, talvez romântica, não sabia o que esperar dessa nova fase de sua vida; o
que fazer com novos sentidos que brotavam. Apenas esperava acontecer, e quando o
momento chegou não fugiu, não podia fugir.
Já concluindo, podemos analisar que nas duas histórias, tanto em Preciosidade
quanto em Mistério em São Cristóvão, Clarice nos coloca o problema da sexualidade
em confronto com o problema da solidão. O contraste, o paradoxo das relações
familiares. O seio familiar de onde deveria partir a orientação é, justamente, um lugar
desconcertante. É exatamente o lugar onde não se toca na questão. Onde os desejos
se calam. O ambiente familiar é novamente, aqui, posto como lugar de prisão e de
ausência de identidade.
4.4.2 O búfalo
Em "O Búfalo", Clarice toca na questão sexual de maneira inusitada. A protagonista
desse conto adentra um zoológico a procura de um ódio tal, capaz de fazê-la matar. No
entanto, por ser primavera, ela só encontra amor. No desenrolar do conto, ficamos
sabendo o porquê desta busca. Ela foi rejeitada por alguém que ama. A autora nos
expõe a dor, o sofrimento amoroso na história desta personagem e a dificuldade de
lidar com uma situação dessa ordem.
O texto constrói-se com base na antítese amor/ódio. Clarice cria um ambiente
antagônico na história, em que uma personagem procura, desesperadamente, ódio e
vingança. No entanto, é primavera, estação propícia ao amor e à entrega, e ao redor da
protagonista não outra atmosfera, a não ser a do acasalamento dos animais. Devido
à estação, tudo no jardim zoológico exala amor. "Mas isso é amor, é amor de novo,
revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e
dois leões se tinham amado." (1998a, p.127) Tudo conspirava a favor do amor que ela
queria ocultar.
É Importante ressaltar a descrição da personagem que, também nesse conto, aparece
vestida de casaco marrom, conduzindo à idéia de desejo e repressão. Entre os sinais
enunciadores do desejo, constrói-se a imagem de uma profunda inquietão da
protagonista. A mulher do casaco marrom tem o olhar atento e os mãos tesas, os
punhos cerrados no bolso. Assim, dura, atenta como um animal no cio, percorre o
jardim. A mulher que tenciona encontrar ódio acaba por deparar-se com imagens e
cenas que vão de encontro àquilo que busca. Na verdade, ela procura a outra metade
de si. Os animais em acasalamento parecem zombar da solidão e da tepidez da mulher.
Perante essas imagens advém-lhe um sentimento contrário ao ódio, a excitação
percorre o seu corpo. Observa-se, assim, a ordem erótica atingida, paradoxalmente na
desordem, na tensão Eros/Thánatos, representado pelas imagens dos corpos nus dos
animais se amando, remetendo-nos para o próprio significado do erotismo.
Aproximou-se das barras do cercado, aspirou o pó daquele tapete velho
onde sangue cinzento circulava, procurou a tepidez impura, o prazer
percorreu suas costas até o mal-estar, mas não ainda o mal-estar que ela
viera buscar. No esmago contraiu-se em lica de fome e vontade de
matar. Mas não o camelo de estopa. 'Oh, Deus, quem será meu par
neste mundo' Então ela foi sozinha ter sua violência. (1998a, p.128)
Bataille salienta que o movimento do amor levado ao extremo é um movimento de
morte. (1980, p.38) O sentimento erótico, por estar ligado aos aspectos proibido e
sagrado, nasce justamente do sentimento de violação. Daí, o seu caráter contraditório,
de atração e de repulsão, pois o mundo do sagrado não se aparta do âmbito da
violência destrutiva. A violência do erotismo esno jogo de forças entre a individuação
e a fusão. O indivíduo quer ser ele mesmo e, também, fundir-se com o outro. No caso
da personagem ocorre uma espécie de sentimento de vingança por ter sido rejeitada.
Clarice coloca uma personagem destituída de algo, atormentada, num ambiente não
humano, natural, e ali encontra uma resposta para seus anseios. Outra vez,
percebemos a importância do olhar neste conto. É observando todos os animais que a
personagem vai, aos poucos, sendo levada a encontrar não o ódio. É olhando para o
seu próprio interior, que ela se encontra.
A personagem faz uma travessia, sozinha, no zoológico. Depara-se primeiro com os
animais se amando, depois entra num momento de solidão profundo ao subir na
montanha-russa. No aparelho, também, os casais estão em harmonia. Desce dali, como
que derrotada pelo amor, a violência que desejara só lhe veio por meio de um momento
de vertigem, de agito e o sentimento de ódio parece que se dissipara. O giro na
montanha-russa parece conduzi-la a outro estágio. Assim, de uma procura frenética
pela vingança, advém-lhe uma revolta por não ter obtido a violência desejada: "Só
isso? Só isto. Da violência, só isto. Recomeçou a andar em direção aos bichos. O
quebranto da montanha-russa deixara-a suave." (1998a, p.128)
O problema da solidão é enfocado também nesse texto. A narrativa conduz-nos ao
pensamento de que na busca estamos sozinhos, a caminhada, ao encontro de nós
mesmos, fazemos acompanhados apenas de nossos tormentos e dores; e cabe,
somente, a nós acharmos o alívio de nossa alma. Por essa razão, nesse percurso da
personagem ocorrem vários encontros, menos o da violência desejada. Ele é o de
paradas e recomeços a o encontro com o búfalo.
E ali estava agora sentada, quieta no casaco marrom. O banco ainda
parado, a maquinaria da montanha-russa ainda parada. Separada de
todos no seu banco parecia estar sentada numa igreja. (...) pálida, jogada
fora da Igreja, olhou a terra imóvel de onde partira e aonde de novo fora
entregue. (...) levantou-se do banco estonteada como se estivesse se
sacudindo de um atropelamento. (...) recomeçou a andar em direção aos
bichos. (p.130)
Nessa caminhada, aos poucos, ela vai se conhecendo e convencendo-se de si, do
amor. A personagem tenta, ao procurar a vingança, desviar o alvo do seu ódio. Ela ama
alguém que a despreza e quer transferir para outros o destino de sua raiva. Como nos
outros contos anteriores, tem-se um contraste entre o ambiente externo e o interior da
personagem. Enquanto um amor primaveril toma conta do ar, na alma da personagem
é revelado um amor que arde, queima, dói, porque é amor sozinho, recheado de
solidão e amor sem par:
Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio?
O ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde
aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? (...) nunca perdão, se
aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma vez que fosse, estaria perdida
- deu um gemido áspero e curto..." (1998a, p.131)
Antes de chegar ao encontro final, a personagem passa por um processo: da
instabilidade inicial a um instante de paz. Porquanto, ela havia ido procurar a guerra e
entregara-se à paz, à serenidade, entregando-se apenas ao amor. "Mas, pudesse tirar
os sapatos, poderia evitar a alegria de andar descalça? Como não amar o chão em que
pisa? [...] Certa paz enfim. A brisa mexendo nos cabelos da testa ainda suada." (1998a,
p.132) Ocorre então, o momentos de entrega a si, examina o seu interior e luta com
ele, passa a ver, a enxergar, ficando pronta para o encontro.
A figura do búfalo representa a figura do homem: imponente, viril, puro músculo. A
imagem do animal atrai a mulher para si própria. É com o búfalo que a personagem
trava a guerra que veio buscar, pois ao contrário dos outros animais do zoológico, o
búfalo estava só, como também a personagem. As duas figuras estão em lados
opostos: aprisionado e liberta; animal e humano, força e fragilidade. Porquanto, se
confrontam. Nesse instante, podemos verificar uma transposição: o búfalo era a
representão do homem que ela amava. Toda atmosfera dessa confrontão exala
erotismo e sensualidade. O animal altivo, feroz que a despreza, intimida-lhe e produz
uma onda de instabilidade e sentimentos incompreensíveis. "Eu te amo, disse ela então
com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te
odeio, disse implorando amor ao falo." (1998a, p.134) Era para ele que ela deveria
demonstrar a sua angústia e, com ele, aliviar seu sofrimento. Nesse encontro, ela
encontra a paz final, rende-se a ela e deduz que, no fundo, o ódio que a mulher do
casaco marrom procura é puro amor. Amor que ela tenta ignorar.
5 O DESEJO EM UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES: A
CONSTRUÇÃO DE UM NOVO EROTISMO FEMININO
A abordagem realizada até o presente, revela que as personagens clariceanas atuam
como sujeitos históricos e políticos, esboçando um questionamento da sociedade dita
patriarcal, sem, no entanto, intervir nela. Vimos que em LF as mulheres, apesar de
pensarem seus papéis, aparecem reclusas, sem saídas, vitimadas pelo sujeito
masculino. Nessa obra, pode-se perceber um momento de tensão, em que as mulheres
vislumbram o desejo de intervir nos acontecimentos ao seu redor, mas estas se voltam
para os laços familiares, esquecendo-se de si em benefício do outro.
No LP percebe-se uma evolução no pensamento da protagonista. Nesse texto, Clarice
nos apresenta Loreley, uma personagem que tenciona sair desse papel, e encontra no
outro, um ser masculino, uma possibilidade. No entanto, sair desse papel é assumir sua
totalidade, enquanto ser. A mulher, nessa narrativa, opera com a consciência de sua
natureza e aspira a outras satisfações, além das tarefas domésticas e da
maternidade. No LP verifica-se uma tensão marcada pelo desejo da mulher em
experimentar o amor e o prazer, mas ao se deparar com as barreiras culturais e
ideológicas e, evidentemente psicológicas, para vivência plena da relação, percebe que
é preciso realizar uma aprendizagem.
A um primeiro olhar, a mulher dessa narrativa parece não diferir das mulheres dos
contos do livro LF. No início do romance Loreley aparenta refletir uma visão de mundo
tradicional, se apresentando como uma mulher do lar, fragilizada e submissa perante a
figura masculina. No entanto, a própria construção da narrativa, que se inicia por uma
vírgula e um verbo no gerúndio, indica uma continuidade, um processo. Dado que
sugere a existência de um percurso anterior dessa personagem, do qual o narrador não
se ocupa, pois é o momento presente que interessa, pois indica uma transformação na
vida dessa mulher, ou de outras mulheres clariceanas.
, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às
pressas porque cada vez mais matava serviço, embora viesse para deixar
almoço e jantar prontos, dera vários telefonemas tomando providências,
inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos de água, fora
à cozinha para arrumar as compras e dispor na fruteira as maçãs que eram a
sua melhor comida, embora não soubesse enfeitar uma fruteira, mas Ulisses
acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo embelezar uma fruteira.
(1998b, p.13)
O texto inicial, apesar de descrever um episódio cotidiano do lar, contém elementos
que apontam uma mulher mais emancipada: Loreley é uma mulher que mora sozinha.
As providências a tomar incluem, também, chamar um encanador, o que indica uma
evolução do âmbito das tarefas femininas. Nota-se que, junto a essas atribuições,
uma outra preocupação que parece ocupar um lugar central na vida de Lóry: o
relacionamento amoroso. A maçã é um outro elemento que permite uma leitura de uma
mulher que possui consciência de sua natureza. Associada à origem do pecado, essa
fruta simboliza a sexualidade, representa o desejo de transpor a realidade e buscar o
auto-conhecimento. Na busca da identidade é necessário partir da origem. Por isso
Ulisses, o filósofo, a aconselha a partir do eu. O desvencilhar-se do nome é o ponto
de partida. É laar-se à pergunta: Quem sou eu?
[...] pensou no que ele estava se transformando para ela, no que ele queria
parecer querer que ela soubesse, supôs que ele queria ensinar-lhe a viver sem
dor apenas, ele dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu
nome, não respondesse Lóri mas que pudesse responder meu nome é eu,
pois teu nome dissera ele é um eu...(1998b, p. 13)
O texto clariceano, em nossa percepção, aproxima-se, neste ponto, da concepção
freudiana do princípio de prazer. Ao pensar a questão da felicidade e dos prazeres
possíveis dentro dos compromissos impostos pela civilização, Freud (1969, p. 94), em
O mal estar na civilização, afirma que o sentido da vida é a busca dos prazeres.
Conforme o autor: O que decide o propósito da vida é, simplesmente, o programa do
princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde
o icio. Contudo, o princípio do prazer o reconhece limites nem adiamentos,
operando no sentido de uma busca de satisfação.
Loreley é toda amor e desejo pelo parceiro, Ulisses. Mas este adia o quanto pode uma
experiência sexual com ela por considerá-la despreparada para tal. Inicia-se, então,
uma longa travessia, um processo de aprendizagem. Loreley e Ulisses, embora se
amem, encontram barreiras culturais, ideológicas e psicológicas para a vincia plena
da relação. O texto sugere que Lory havia se relacionado com outros homens, mas
desses relacionamentos não extraiu nenhuma experiência, enquanto ser-no-mundo em
transcendência. E, ao conhecer o professor de filosofia, desejou logo ter uma
experiência com ele. No entanto, contrariando as normas e os valores da sociedade
patriarcal, que vê a mulher como objeto de prazer, Ulisses não a aceita prontamente.
Pois a considera imatura. Por isso, a mulher irrompe num choro, porque não
compreende a rejeição.
Então do ventre mesmo, como um estremecer longínquo de terra que mal se
soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração contraído veio o tremor
gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo - e em sutis caretas
de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo rasgando a terra
veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum a para ela
mesma, aquele que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e
o previra sacudida como a árvore forte que é mais profundamente abalada
que a árvore frágil afinal rebentados canos e veias, então (1998b, p.14)
Freud (apud Kehl, 1992, p.263) descreve a mulher como a grande solapadora do
pacto civilizatório e, ao mesmo tempo, como a grande defensora dos prazeres
principalmente dos prazeres do amor. A mulher para Freud, é um ser muito pouco
confiável no sentido de algum compromisso ético.
Percebe-se que, nessa narrativa, Clarice, de maneira inusitada, propõe uma
desestabilizão do código social vigente, que prevê normas e papéis sociais definidos
e apresenta uma possibilidade de uma relão homem/mulher se construir num
processo dialógico.
A mulher desse romance parece estar mais adiante das mulheres de LF, pois deixara a
vivência com os familiares, no interior, para morar sozinha no Rio de Janeiro. Mas,
quanto ao amor e à sexualidade, ainda muito que buscar. Por isso, a relação com
professor de filosofia representa o mundo, a alteridade necessária à sua aprendizagem.
Todavia, a aprendizagem é um processo longo e doloroso, implica resistência e
renúncias. Por isso:
[...] em súbita revolta ela não quis aprender o que ele pacientemente parecia
querer ensinar e ela mesma aprender- revoltava-se sobretudo porque aquela
o era para ela época de meditação que de súbito parecia ridícula: estava
vibrando em puro desejo como lhe acontecia antes e depois da menstruação.
Mas era como se ele quisesse que ela aprendesse a andar com as próprias
pernas e então, preparada para a liberdade por Ulisses, ela fosse dele o
que é que ele queria dela, além de tranqüilamente desejá-la. (1998b, p. 16)
Nessa passagem a personagem revolta-se com o fato de o homem sugerir ensi-la,
pois para ela, ele, enquanto produto da civilização, encontra-se como ela, na mesma
situação, regido pelos códigos sociais. Fazendo-nos perceber que a relação pode ser
construída por meio de uma experiência mútua, em que o eu e o outro podem ser
aprendizes. Nesse ponto Clarice Lispector deseja romper com a relação de nero que
marca o masculino como superior. Ao construir um filósofo para contracenar com essa
mulher, Clarice cria uma possibilidade de diálogo.
Sabe-se que o homem (ou a mulher), embora sendo um ser global e unitário enquanto
essência, um todo capaz de se perceber num contexto com outros seres semelhantes a
ele. O homem, a partir de seu nascimento, é um organismo existindo no mundo. Ao
nascer suas funções são ainda apenas metabólicas. A percepção de si mesmo vai
aparecendo e transformando-se, através da vivência relacional com o mundo e com os
outros. A dimensão humana surge quando ele percebe a dimensão do outro. A sua
auto-imagem vai se estruturando em função dos referenciais afetivos, sociais, culturais,
religiosos e econômicos do contexto em que vive. O homem só se torna
verdadeiramente humano quando, não se percebendo mais que um simples
organismo, toma consciência de si próprio e, pela percepção que tem do outro, se
aceita como um-ser-no-mundo-com-os-outros.
Nesse sentido, a aceitação de Loreley em preparar-se para a experiência com Ulisses
é uma resposta concreta de sua auto-aceitação como alguém em evolução. Assim,
Loreley, ciente da condição de um ser em aperfeiçoamento, é impulsionada a explorar
todas as possibilidades que lhe são apresentadas e desafiada a superar as
dificuldades. Trata-se de uma busca e não de uma entrega. Lóri pretende dar um passo
à frente em sua vida. O relacionamento com Ulisses, se efetivará quando ela estiver
pronta. Esse pronta recobre-se de um significado especial, uma plenitude. Ulisses,
difere de outros parceiros, até então, ele representa um veio, um canal de
comunicão que guia Lóry rumo a uma apreensão filosófica da vida. Nessa
abordagem, Clarice promove um diálogo, um encontro efetivo com o outro, o masculino.
A relação Ulisses/Loreley é construída no processo dialético. A então, conforme
pudemos verificar, em LF, os maridos não promoviam esse diálogo. Os parceiros,
naquela obra, pouco ou nunca intervém na vida das mulheres, representando ali, o
papel de meros protetores.
O LP é a obra em que Lispector toca mais diretamente na questão da sexualidade e do
erotismo. Dado que justifica a constrão do casal Ulisses e Loreley. Ele, um filósofo,
um homem experiente e sábio, Loreley, por sua vez, é mais ousada, mais avançada. No
entanto, Lóri, iniciante no aprendizado sobre a vida, é desprovida de alma, tem
apenas a posse do corpo, é preciso adquirir maturidade. Aceita, então o desafio de
Ulisses que aprendeu que não basta ter a verdade, mas transfor-la em realidade. Na
confluência do amor com o prazer Loreley busca a sua verdadeira essência e começa a
questionar sua inexperiência.
Clarice nos mostra, nesse texto, que a caminhada em direção à transformação, ao
conhecimento de si, prevê um percurso. Essa trajetória é feita por etapas. A caminhada
em direção ao auto-conhecimento é um processo no qual o ser humano tem de
respeitar os limites impostos pela sua natureza e pela sua situação no mundo, mas que,
também, tem possibilidades de progredir e de ascender-se, assumindo sua existência e
decidindo a forma de se auto-realizar e de se transcender. Loreley e o filósofo também
nos ensinam que homem e mulher, tendo uma mesma natureza humana, têm,
naturalmente, as mesmas necessidades e, essencialmente, as mesmas possibilidades.
Loreley e Ulisses, então, juntos nessa caminhada m maiores possibilidades de
desenvolver suas potencialidades, de se realizarem enquanto ser. Clarice, então, nos
mostra a necessidade de passar pelas etapas, a nosso ver, pelas três formas do
erotismo previstas por Bataille: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o
erotismo sagrado.
Conforme Bataille (1980, p. 20), o erotismo se apresenta sob três formas: o erotismo
dos corpos, que visa a uma continuidade do ser. Os corpo se abrem a uma completude,
o que acarreta um sentimento de obscenidade. Já o erotismo dos corações é mais
livre, aparentemente, separa-se do materialismo do erotismo dos corpos, mas deste
procede. Está ligado a um aspecto estabilizado pela recíproca afeição dos amantes.
Es ligado à paixão. Inicialmente a paixão dos amantes prolonga no domínio da
simpatia moral a fusão dos corpos. Mas, em seguida, a paixão conduz à perturbação e
à desordem. Até a paixão feliz (equilibrada) produz uma violenta desordem, que a
felicidade que o comporta é comparável ao seu contrário, ao sofrimento. (1980, p. 20)
É exatamente este drama que o casal desse romance protagoniza. Ulisses e Loreley
se desejam sexualmente, mas adiam o quanto podem efetivar uma relação sexual,
compreendendo que a satisfação plena só se alcança passando pela dor. Embora,
aparentemente, o livro trate, em primeiro lugar, da questão do amor e do erotismo,
estes não estão desvinculados da dor. A dor de viver é a grande protagonista dessa
história. A certa altura da narrativa Ulisses afirma:
Nossa vida é truculenta, Loreley: nasce-se com sangue e com sangue corta-se
para sempre a possibilidade de união perfeita: o cordão umbilical. E muitos são
os que morrem com sangue derramado por dentro ou por fora. É preciso
acreditar no sangue como parte importante da vida. A truculência é amor
tamm. (1998b, p. 98)
O tulo da obra, Aliás dois tulos: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, traz
um prenúncio de uma tensão ali existente, apontando a possibilidade alternativa de
ocorrência de uma relação amorosa, pela constrão erótica, ou pela via direta, rumo
ao prazer. No entanto, o que se observa na maior parte da narrativa é o sofrimento da
personagem. Loreley, descobre que sofre de uma deficiência. Descobre que, apesar
de já ter se relacionado sexualmente com outros homens, nunca experimentou o amor,
o prazer. (O paradoxo é que deveria aceitar de bom grado essa condição de manca,
porque também isso fazia parte de sua condição). (Só quando queria andar certo com o
mundo é que se estraçalhava e se espantava). (1998b, p. 20) Daí, os dois títulos da
obra: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Porém antes de ser o livro dos
prazeres é uma aprendizagem, indicando que as faces do erotismo se manifestam
pela aprendizagem da dor. Porque nela a busca do prazer, nas vezes que tentara, lhe
tinha sido água ruim: colava a boca e sentia a bica enferrujada, de onde escorriam dois
ou três pingos de água amornada: era a água seca. Não havia ela pensado, antes o
sofrimento legítimo que o prazer forçado (1998b, p. 104)
Na verdade, o tema da identidade feminina é a problemática principal da hisria. A
própria estrutura narracional, pretende ser um apontamento da fragmentão da
personagem. Isso se reflete por meio da voz narracional de Loreley, que organiza um
discurso sem pontuação, interligando assuntos disconexos e, numa espécie de
monólogo interior, vai revelando seus conflitos.
[...] fora ao guarda roupa para escolher que vestido usaria para se tornar
extremamente atraente para o encontro com Ulisses que lhe dissera que ela
o tinha bom-gosto para se vestir, lembrou-se de que sendo Sábado ele teria
mais tempo porque não dava nesse dia as aulas de férias na Universidade,
pensou que ele estava se transformando para ela, no que ele parecia querer
que ela soubesse, supôs que ele queria ensinar-lhe a viver sem dor apenas, ele
dissera uma vez que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse ri
mas que pudesse responder meu nome é eu, pois teu nome, dissera ele, é um
eu, perguntou-se se o vestido branco e preto serviria, ( 1998b, p. 13)
Esse discurso ctico de Lóri é um desespero ante a consciência do não-ser. Ao saber,
por Ulisses, que até então, ela era uma desconhecida de si mesma, vem a crise, o
estado de nojo. Daí, o choro, pois a imagem que, aentão, tinha de si é destruída.
Vem um momento de faz de conta que, na verdade, é o momento de lucidez da
personagem.
Precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que
contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era
amada, faz de conta que o precisava morrer de saudade, faz de conta que
estava deitada na palma transparente da mão de Deus [...] faz de conta que
vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se
aproximar cada vez mais da morte, (1998b, p. 14)
A partir dessa percepção é que se inicia um processo de busca de identidade da
protagonista, caminho apontado por Ulisses como inevitável ao ser humano a despeito
de todas as castrações impostas pela contigência do mundo.
Assim, numa dialética do desejo, Ulisses e Lóri vão se preparando para um encontro
amoroso. Antes, porém, o leitor acompanha as dúvidas, os anseios, o desespero, o
dilaceramento de Lóri.
Mas o prazer nascendo doía tanto no peito que às vezes, Lóri preferia sentir a
habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tinha explicação
possível, não tinha sequer a possibilidade de ser compreendida e se parecia
com o início de uma perdição irrecuperável. Aquele fundir-se com Ulisses que
fora e era o seu desejo, tornara-se insurportavelmente bom. Mas ela sabia que
o estava à altura de usufruir de um homem. Era como se a morte fosse o
nosso bem maior e final, que não era a morte, era a vida incomensurável
que chegava a ter a grandeza da morte. ri pensou: não posso ter uma vida
mesquinha porque ela não combinaria com o absoluto da morte. (1998b, p.
119-120)
Numa leitura freudiana diríamos que a personagem encontra-se no estado do
irrepresentável da teoria pulsional de Freud (apud, França, 1997, p. 51-54) que sugere
a expressão da ão da pulsão de morte através de uma erótica fundante, como eco
do originário, eterno retorno do plano trautico e tormentoso da constituição do
sujeito. Segundo Freud a pulsão de morte é aquela que representa a tendência
fundamental de todo ser vivo para retornar ao estado inorgânico.
Nesse sentido, o gozo é paradoxal e contraditório, pois ele satisfaz a dois
princípios, o do prazer e o da repetição dolorosa, ao mesmo tempo em que liga
o erotismo da pulsão de vida à destrutividade da pulsão de morte. [...] É em
oposição à pulsão de morte que Freud introduz a pulsão de vida, Eros, como
princípio de ligação, cujo alvo é instituir unidades cada vez maiores. Eros é a
pulsão sexual por excelência, enquanto Thanatos é a força primária demoníaca
e pulsional por excelência. No pensamento freudiano a pulsão de morte é o
irrepresentável, o indomável que insiste em apresentar a dimensão da pulsão
como o simbolizável, indicando a ausência absoluta de sentido. Diante de
sua presentificação pelos efeitos de ruptura no campo representacional, Eros o
outro polo pulsional, em sua função de ligar, se apresenta como condição de
possibilidade de transformar ruptura em movimento erótico criativo, através do
trabalho de simbolização.
Em O mal estar na civilização (1969, p. 95) Freud interpreta que, ao contrário da
infelicidade que é mais cil experienciar, nossas possibilidades de felicidade sempre
são restringidas por nossa própria constituição. Para o psicanalista:
O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo,
condenado a decadência a dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o
sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que
pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas;
e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento
que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer
outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora
ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo
de outras fontes.
Numa outra leitura se pode situar o LP numa dimensão trágico-erótica, dada a lucidez
com que a personagem assume o sacrifício, que Nietzsche define como o grau máximo
da atitude trágica, como também aponta para as forças do mal que Bataille afirma estar
presentes na sexualidade.
Dessa forma, têm-se, nesse texto, à maneira lispectoriana de apresentar à construção
da identidade feminina em consonância com a vivência do desejo, num percurso que
vai da aprendizagem para a descoberta e, daí, para o saber. Nessa narrativa, fica
confirmada a hipótese de que o erotismo é um elemento atuante no processo de
afirmação de identidade das personagens de Clarice.
6 O MERGULHO TRÁGICO EM AGUA VIVA: RE-NASCIMENTO E REVELAÇÃO
DA IDENTIDADE.
Agora te escreverei tudo o que me vier à mente com o menor
policiamento possível.
(Água viva)
Água viva, romance - se é que assim podemos classificar publicado em 1973, é um
texto, em que se evidenciam aqueles traços que estavam presentes nos textos até
aqui analisados. Todavia, nessa narrativa, vêem-se mais radicalizadas certas temáticas,
o que faz com que alguns críticos considerarem esse livro como marco revolucionário
da escrita clariceana, como um momento maior de revelação, o clímax de uma
investigação ontológico-literária, como bem definiu Luchessi (1987, p. 24), dado que
nos permite apontar essa obra como o ápice dos questionamentos sobre a busca da
identidade feminina. Esse livro, a nosso ver, representa um momento de resolão do
processo de busca de afirmação do sujeito feminino. Aqui os elementos aparecem
despidos de todas as amarras de nero ou paradigma que limite o sentido, o que
aponta uma radicalização de tudo que aentão se revelara. AV extrapola os limites da
linguagem, constituindo-se, assim, uma mefora geradora de sentido, um momento de
resolução do paradoxo que funda a escrita clariceana: o desejo de representação.
Na obra Água Viva, Clarice realiza uma reflexão sobre a linguagem, trazendo o indizível
que se pronuncia pela criação artística, evidenciando a operação trágica da arte,
possibilitando um diálogo com a interpretação que Nietzsche faz da tragédia grega.
Resumir o livro AV é uma tarefa quase impossível, visto que não se trata de uma
história e sim, de um tratado filosófico. A própria personagem nos alerta de que
encontraremos dificuldades em penetrar no seu universo. Sei que depois de me leres é
difícil reproduzir de ouvido a minha música, não é possível cantá-la sem tê-la decorado.
E como decorar uma coisa que não têm história? (1980, p. 83)
De fato, essa narrativa não se trata de uma hisria, nela a escritora de Laços de família
rompe com a forma, não se prende a nenhuma estrutura, deixando transparecer que o
que pretende é muito mais, é superar a si mesma, é ir além do bem e do mal, é ser
potência e superão. Daí, ser difícil o leitor encontrar palavras para reproduzir aquilo
que leu. Assim, Clarice atinge seu objetivo, que é mostrar que a linguagem é aquilo de
que se fala e também aquilo de que não se pode falar. Isso é o que justamente nos
intriga, pois após ler AV, somos tentados a querer dar uma forma àquilo que foi lido.
Mas a narrativa, como o próprio nome diz é como Água, é fluida, escapa de nossas
mãos. E, sendo viva, então, nos desafia. Ao dizer que é difícil reproduzir o texto AV,
parece que a personagem aumenta o nosso ímpeto de resumir tudo aquilo que foi dito.
Sendo assim, muito embora sabendo dessa impossibilidade, ousamos interpretar que
no texto em questão temos uma única personagem, uma mulher que pinta quadros e
que, de repente, resolve expressar aquilo que esna tela com palavras e descobre a
imprecisão da linguagem e dos conceitos e, ao mesmo tempo, relata o fato de não
podermos prescindir destes, se quisermos tocar nossas músicas para que os outros
nos possam escutar.
A linguagem de Clarice nessa narrativa, embora se apresente em prosa, é sem dúvida
linguagem poética. No sentido de que tenta destruir o código narrativo, violentar o
sentido lógico, alterar os códigos, romper os entraves da significão. A escritora, que
também é personagem, deseja expressar, através da sua arte, o mistério que rege a
vida do Ser. Daí o aspecto trágico, pois a linguagem, o dispositivo que o ser humano
dispõe, não dá conta de expressar aquilo que ele carrega. A personagem tem diante de
si os recursos: a pintura, a sica, no entanto, como explicar a melodia? Ela então nos
mostra sua posição compreensiva ao afirmar:
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o
instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o
incorpóreo, eu corpo-a-corpo comigo mesma. Não se compreende música: ouve-se.
Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por que
o me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem.
É que agora sinto necessidade de palavras [...] a palavra é minha quarta dimensão.
(1980, p. 10)
A mulher, que na nossa leitura é a própria Água viva, traz em si a experiência do
trágico desde as primeiras palavras que profere. Esta, parece mergulhar no abismo da
paixão e da embriaguez dionisíaca.
É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que
funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de
felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com
capacidade de raciocínio- estudei matemática que é a loucura do raciocínio-
mas agora quero o plasma- quero me alimentar diretamente da placenta.
(1980, p. 9)
Com essas palavras, a personagem clariceana anuncia que se encontra num certo
estado de êxtase, de arrebatamento. É esse estado que vai permiti-la falar o que
pretende. A protagonista tenta falar ao leitor a todo momento de seu estado. Ela se
encontra fora dos limites, não havendo possibilidade de explicitar aquilo que es
sentindo. Por isso, ela quer realizar um retorno às origens. Para captar o sentido da
vida é preciso retornar. Da matemática ela precisa se desvencilhar. Dessa forma, pode-
se considerar que o texto de Clarice é transgressor na interpretão que Bataille, em A
literatura e o mal (1957), faz do termo. Segundo Bataille a transgressão está no domínio
do trágico. Para o autor de O erotismo o que confere autenticidade à literatura é a
transgressão. O que vem ao encontro daquilo que Nietzsche afirma sobre a arte.
Segundo o autor a obra de arte para ser verdadeira, contundente, deve trazer em si a
instância do trágico.
Na interpretação da tragédia grega, Nietzsche revela que o teatro grego floresceu no
espírito da música e que
A poesia do lírico não pode exprimir nada que já não se encontre, com a mais
prodigiosa generalidade e onivalidade, na música que o obrigou ao discurso
imagístico. Justamente por isso é impossível com a linguagem, alcançar por completo
o simbolismo universal da música, porque ela se refere simbolicamente a contradição
e à dor primordiais no coração do Uno-primogênito, simbolizando conseqüência uma
esfera que está acima e antes de toda a aparência. (p. 51)
A partir do que afirma Nietzsche, da impossibilidade de alcançar o simbolismo universal
da música, se pode interpretar que em AV a personagem clariceana parece
compartilhar dessa idéia quando diz que não se compreende sica: ouve-se. A
percepção do caráter indizível do mundo e do fracasso da linguagem traz para a escrita
de Clarice uma certa atmosfera angustiante, que o conta nem ao menos com o
artifício tranquilizador da ironia, uma vez que ela tem uma compreensão prévia de uma
determinada situação, a personagem possui plena consciência de seus limites. O que
fica evidenciado nessa fala:
O que pintei nessa tela é passível de ser fraseado em palavras? Tanto quanto possa
ser implícita a palavra muda ao som musical. Vejo que nunca te disse como escuto
música apóio de leve ao na eletrola e a mão vibra espraiando ondas pelo corpo
todo: assim ouço a eletricidade da vibração, substrato último no domínio da realidade,
e o mundo treme nas minhas mãos. ( 1980, p. 11)
Nietzsche
16
(1987, p. 15) interpreta que a música é um elemento essencial para
promover o êxtase e que ela é capaz de dar outra dimensão ao horror da dor e da
morte, na afirmação da vida. Segundo o filósofo, a tragédia vem conjugar a categoria
desse êxtase místico, no qual a sica tem um papel fundamental, com a dimensão da
visão da plasticidade, da beleza do mundo apolíneo de imagens. Para Nietzsche a
tragédia nasceu do espírito da música. Para esclarecer é conveniente citar um trecho
de sua afirmação:
A música é, portanto, considerada como expressão do mundo, uma linguagem
universal em sumo grau, que até mesmo para a universalidade dos conceitos está
mais ou menos como está para as coisas singulares.[...] Pois asica difere de todas
as outras artes por não ser cópia do fenômeno ou, mais corretamente, da objetividade
adequada da vontade, mas cópia imediata da própria vontade e portanto, apresenta
para tudo o que físico no mundo, o correlato metafísico, para todo o fenômeno a coisa
em si. Poder-se-ia portanto, denominar o mundo tanto música corporificada quanto
vontade corporificada: a partir disto, pois, pode-se explicar por que a sica logo faz
aparecer toda pintura, e aliás toda a cena da vida efetiva e do mundo em significação
mais elevada;
16
In: Friedrich Nietzsche Obras Incompletas. Seleção de textos de Gérard Lebrun. Tradução e notas de Rubens
Rodrigues Torres Filho. 4ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Os pensadores, Vol. I
Como se pode notar, a personagem em análise parece compartilhar das iias de
Nietzsche a respeito do efeito da música, do poder de representação que esta exerce
sobre todas as coisas.
A linguagem é o elemento por demais investigado na escrita de Clarice Lispector. A
linguagem, por estar vinculada à essência do homem, é a fonte de toda e qualquer
realidade. Por isso ela não se esgota. O que justifica inúmeros estudos e pesquisas a
respeito nos textos da escritora é justamente o fato de ela, em sua escritura, estar em
busca de um esclarecimento maior sobre a essência do homem. O texto AV não foge a
essa temática. Ousamos até afirmar que nessa narrativa a tensão linguagem apresenta-
se diretamente ligada à tensão existencial da escritora.
Sabemos dos perigos de se mesclar a vida com a obra do autor. No entanto,
analisando essa obra, somos tentados a afirmar que é a que mais deixa transparecer
traços biográficos da escritora. Nesse livro, ela fala do seu próprio ofício, que é o fazer
literário, utilizando-o como artifício de linguagem. O que a personagem quer nos fazer
compreender é que a linguagem, a casa do Ser, como diz Heidegger, é insuficiente
para nomear as coisas do homem e do mundo. Clarice, então, utiliza a literatura como
um elemento de transcendência. A escritora lança mão da arte como um meio de
romper com as estruturas lingüísticas, quebrar os entraves da significação sem,
contudo, atingir a plenitude da significão. Decorre daí a angústia: [...] e eu que mal e
mal comecei a minha jornada começo com um senso de tragédia, adivinhando para que
oceano de vida o os meus passos perdidos. E doidamente me apodero dos desvãos
de mim, meus desvarios me sufocam de tanta beleza. ( 1980, p. 18)
Outra questão que traz em si a essência do trágico é a questão do tempo que, nessa
obra, encontra-se imbricada com as reflexões da personagem a respeito da vida. Sabe-
se que o tempo é queso primordial para aqueles que buscam uma explicão para a
vida. Impossível é desvencilhar a existência humana do tempo. O tempo traz a
perspectiva da morte, que é a única certeza que o homem pode contar e isso o faz
sofrer terrivelmente. A personagem lispectoriana revela um certo desconforto com essa
consciência. Do início ao fim da narrativa ela se remete ao tempo, informando a hora
que ela chama de instante . Estou tentando captar a Quarta dimensão do instante-
já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante já que
também não é mais.(1980, p. 30)
A análise que Bataille faz do trágico em A literatura e o mal (1957), novamente pode
nos auxiliar a compreender a queso do instante já que a personagem tanto
menciona. Segundo esse filósofo:
A morte e o instante (grifo do autor) de uma embriaguez divina confundem-se no que
se opõem igualmente as intenções do Bem, que se fundem no cálculo da razão. Mas,
ao oporem-se, a morte e o instante são o fim último e a saída de todos os lculos. E
a morte é o sinal do instante que, na medida em que é instante renuncia à procura
calculada da duração. O instante do ser individual novo depende da morte dos seres
desaparecidos. Se estes últimos não tivessem desaparecido, não haveria lugar para
os novos. A reprodução e a morte condicionam a renovação imortal da vida;
condicionam o instante sempre novo. Eis porque só podemos ter do encantamento da
vida uma vio trágica; porque a tragédia é o sinal; do encantamento.( 1957, p. 26)
O que Bataille nos afirma é que a dimensão trágica esvinculada a outras questões: a
certeza da morte que, por sua vez, está ligada à sexualidade. Essas reflexões estão
vinculadas com a angústia da personagem. A angústia é também uma característica
da tragicidade, pois, segundo Heidegger, o homem precisa dela (da angústia), para o
despertar da consciência. A angústia da personagem está em ter consciência da sua
natureza: temporária. A certa altura do monólogo, ou melhor, diálogo, ela se dirige ao
leitor com as seguintes palavras:
Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta hora. Estou
me encontrando comigo mesma: é mortal porque só a morte me conclui. Mas eu
agüento a o fim. Vou lhe contar um segredo: a vida é mortal. Vou ter que
interromper tudo para te dizer o seguinte: a morte é o impossível e o intangível. De tal
forma a morte é apenas futura que quem não agüente e se suicide. É como se a
vida dissesse o seguinte: e simplesmente não houvesse o seguinte. os dois
pontos à espera. s mantemos este segredo em mutismo para esconder que cada
instante é mortal. (1980, p.86)
Assim, a narradora de AV vai expondo seus conflitos a um interlocutor (provavelmente o
leitor), a real condição do ser humano.
A narrativa é feita de instantes, que a personagem nomeia de instantes-já, onde o
momento é vivenciado no próprio instante em que acontece. O vivido é desdobrado no
próprio momento em que ocorre. Nessa perspectiva, Clarice parece querer mostrar que
nossa existência é um processo que vai sendo construído a cada momento e, ao
mesmo tempo, vai se acabando. Por isso, ela se reconhece como um ser
concomitante: reúno em mim o tempo passado, presente e futuro, o tempo que lateja
no tique-taque dos relógios.(1980, p. 22) Por isso, a linguagem não dá conta de
explicar, é como um existir existindo. A certa altura da narrativa a personagem vai
dizer: Tenho que falar porque falar salva. (p. 86) Nessa fala Clarice fala do próprio
processo de escrever, de fazer literatura. Literatura é uma forma de salvão para a
escritora. Assim como para Nietzsche, segundo o qual a arte é o modo de curar o
horror e o absurdo do ser, o que torna a vida possível é a arte, pois ela permite transpor
a realidade, redimir a dor. Assim, é que se pode afirmar que Lispector busca a
redenção com o seu fazer literário. Conforme a concepção de arte nietzscheana
Na medida em que o sujeito é um artista, ele já está liberto de sua vontade individual e
tornou-se, por assim dizer, um medium através do qual o único sujeito
verdadeiramente existente celebra a sua redenção na aparência. (...) pois como
fenômeno estético podem a exisncia e o mundo justificar-se eternamente-,
enquanto, sem dúvida, a nossa consciência que tem, quanto à batalha representada,
os guerreiros pintados em uma tela
.
( 1992, p. 47)
Em AV, a personagem feminina, criada pela escritora, assume um processo de vir a
Ser, afirmando o pathos no sentido que Nietzsche dá a palavra, como força criadora,
que a impulsiona na busca da revelação, extrapolando os efeitos do dito, sem conseguir
atingir o além-signo. A mulher, dessa narrativa, ao tentar expressar os misrios do
homem, se depara com o fracasso da palavra fazendo entrever a angústia, elemento
que permite remeter, entre outros temas, a estrutura trágica, tal qual Nietzsche afirma
que está presente na tragédia grega.
Percebe-se que a protagonista é, fundamentalmente, marcada pela atitude trágica dada
a consciência com que assume a precariedade da linguagem, expondo, no decurso de
toda a narrativa, o seu estado de individuação. Pode-se afirmar que ela encarna a
figura do herói sofredor dos mistérios: Dionísio. Reafirmamos, então, ser a personagem
em questão a própria Água viva, pois conforme Nietzsche: O verdadeiro sofrimento
dionisíaco é como uma transformação em ar, água, terra e fogo, que devemos
considerar, portanto, o estado de individuão, enquanto fonte e causa primodial de
todo sofrer, como algo em si rejeitável. (1990, p. 70) Para o autor, o indivíduo que
experimenta o estado de individuação tende a buscar a arte como esperança jubilosa
de que possa ser rompido esse feitiço. (1990, p. 70)
O livro AV é objeto de análise de muitos estudiosos, que apontam nele os aspectos
místicos: o esoterismo, e a cabala como temáticas. De fato a atitude da personagem de
Clarice diante da linguagem permite a aproximação com a linguagem dos místicos
cabalistas. Para os cabalistas a linguagem é um instrumento de Deus. Na visão da
cabala, Deus não é uma entidade perfeita, precisa da ão de suas criaturas para sua
ão, para manutenção e aperfeiçoamento de sua obra. Diante da linguagem Clarice
aparenta ter essa mesma concepção. No entanto, a própria personagem/escritora ao
final da narrativa parece contradizer. São da personagem as explicações que seguem:
Essa felicidade eu quis tornar eterna por intermédio da objetivação da palavra. Fui
logo depois procurar no dicionário a palavra beatitude que detesto como palavra e vi
que quer dizer gozo da alma. Fala em felicidade tranqüila eu chamaria porém de
transporte ou levitação. Também não gosto da continuação no dicionário que diz: de
quem se absorve em contemplação mística. Não é verdade: eu não estava de modo
algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. Tinha acabado de
tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro queimando no
cinzeiro. (
1980, p. 90)
A questão do misticismo está ligada ao aspecto transgressor da literatura de qual
Bataille trata no livro A literatura e o mal. Conforme Bataille, a literatura se aproxima do
misticismo e se afasta da religião, principalmente do cristianismo. Para ele o misticismo
está mais próximo da verdade, mas esta verdade o é formal. O discurso coerente não
pode dar conta disso. Seria incomunicável se não pudéssemos abordá-lo por meio da
literatura. A afirmação de Bataille auxilia-nos a entender a escritora e confirmá-la no
âmbito do trágico na seguinte fala:
Eu que sou doente da condição humana. Eu me revolto: não quero mais ser gente.
Quem? Quem tem misericórdia de s que sabemos sobre a vida e a morte quando
um animal que eu profundamente invejo é inconsciente de sua condição? (...) Mas
eu denuncio. Denuncio nossa fraqueza, denuncio o horror alucinante de morrer e
respondo a toda essa infâmia com exatamente isto que vai agora ficar escrito - e
respondo a toda a essa infâmia com a alegria. Puríssima e levíssima alegria. A minha
única salvação é a alegria. Uma alegria atonal dentro do it essencial.[...] Quem não
tiver medo de ficar alegre e experimentar uma só vez sequer a alegria doida e
profunda terá o melhor de nossa verdade. (1980, p.94-95)
As reflexões desenvolvidas em torno dessa personagem terminam por confirmá-la
marcada pela atitude trágica enunciada nessa última fala que citamos. A revolta da
personagem com sua própria condição é, a nosso ver, o estado de nojo enunciado por
Nietzsche e que a personagem busca sempre superar, ora através da música conforme
vimos, ora pela palavra: a quarta dimensão.
7 NA VIA CRUCIS, O CORPO: EROTISMO, DESEJO E INQUIETAÇÃO
A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão
através dela e com ela.
(Clarice em A paixão segundo GH)
Em VC, Clarice Lispector intensifica a problemática da condição feminina. Nessa
coletânea de contos, a escritora nos apresenta personagens mulheres, manifestando
desejos carnais, chegando a mundanos, num violento processo de busca de afirmação
de suas identidades. Nessa obra, publicada em 1974, fica ainda mais evidenciada a
presença do erotismo. Este se impõe como força primeira, atuando como elemento
desestabilizador de um sistema que reprime a sexualidade, principalmente a feminina.
Tal como em A paixão segundo GH, Laços de Família, Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres, também nessa obra, a mulher, seu universo e seus conflitos são
retratados. Porém o da mesma maneira, não sob o mesmo prisma. Se nas obras
citadas a escritora expõe as personagens em seu cotidiano familiar, comum,
corriqueiro, nessa, ela tocará em assuntos tabus. Assuntos os quais não se ousam
tratar abertamente. Clarice mexecom o desejo, o desejo de ordem sexual. E sexo
não é coisa que se fale assim, sem vergonha, sem pudor, sem timidez. Talvez por isso,
logo de início desculpas, desvios e satisfações. É necessário esclarecer para que
não seja julgada erradamente, sem direito à resposta. Então é melhor deixar claro que
tudo o que foi escrito tem Explicação. Assim, com habilidade e sutileza, Lispector
coloca o corpo da mulher na via crucis, transformando-o em poderosa metáfora da
conquista, da transformação e, sobretudo, da liberdade. Na via crucis está o corpo da
mulher, transportando sua existência, materializando seu desejo de completude.
Desde que a humanidade passou a refletir sobre si mesma, o corpo, lugar de prazer,
vida e fecundidade e, ao mesmo tempo, lugar interdito e espaço onde o mal pode se
alojar, tem sido fruto das mais diversas formas de pensar e teorizar. Essa reflexão
ganha força nos textos literários modernos, sejam líricos, dramáticos ou narrativos. O
fato é que, desde o início do século XX, é marcante a presença do erotismo na
literatura brasileira.
O livro de Lispector A via crucis do corpo, como o próprio título anuncia, também traz
essa marca. Nessa obra a escritora publica umas histórias em que o desejo está
direcionado à representação do corpo e às suas relações afetivas, eróticas, sexuais,
culturais e sociais.
Conforme Freud, o corpo é habitado pela linguagem do desejo. O corpo traduz uma
linguagem carregada de símbolos, de imagens e de afetos. A linguagem do desejo é a
expressão de um inconsciente plural e dinâmico, é uma linguagem que nos remete a
um corpo erógeno, corpo-linguagem de desejo. Este corpo, fala, transmite e produz
linguagem. O corpo é, pois, erótico. Ele apresenta-se como uma abertura polissêmica,
simbolizando a possibilidade de libertão. A polissemia es na sua inquietante
ressonância de desejos. Nessa obra, Lispector promove essa abertura polissêmica,
da qual nos fala Freud. As personagens, dos contos dessa coletânea, escancaram seus
desejos de ordem sexual e apontam, inclusive, outras formas de relação que não a
heterossexual prevista pelas práticas sociais, que reprimem a manifestação do corpo. É
o que se pode verificar nos contos: O corpo e Ele me bebeu.
É possível também apontar em VC, uma espécie de crítica a uma sociedade que
oprime e condiciona os desejos. Pode-se verificar isso no comportamento das
protagonistas. Estas, em diferentes universos e situações, lidam com a sexualidade que
julgam ter que rejeitar. É importante notar como a autora usa a linguagem de maneira a
se perceber como a sexualidade, sensualidade, desejo estão, inquestionavelmente,
entranhados nas personagens apesar destas fugirem deles. Do livro VC, ressaltamos
algumas questões que julgamos estar no centro da problemática até aqui apontada:
1. Corpo e identidade nos contos "Via crucis", "Melhor que arder", "Mas vai chover"
2. Desejo e repressão nos contos Miss Algrave, Ruído de passos, O corpo e A
língua do p
3. As máscaras do poder nos contos "Ele me bebeu e Praça Ma
No ensaio Corpo e representação (2001), Juan Guilhermo Droguett, professor e
psicanalista da USP, analisa as fronteiras e relações do corpo com o mundo objetivo e
subjetivo, estabelecendo, inicialmente, que tudo es determinado pelo corpo, que
ninguém existe separado do corpo. O corpo é pivô, origem e destino, signo visível de
um interior invisível(2001, p. 33). Logo, o corpo não serve apenas para sustentar uma
existência pessoal que transporta a nossa identidade física, mas é também o lugar
onde se manifesta os desejos psíquicos. É o corpo que nos situa no mundo, numa
impossibilidade de alheamento do real, do existir. Nele estão contidos o orgânico, que é
a realidade material e o psíquico que é a força espiritual. Droguett (2001) salienta,
ainda, que: o inconsciente impõe as atividades da zonas sensoriais, o poder de gerar
experiências de prazer e sofrimento: é a paixão, aquilo que une o sentimento ao corpo
através da linguagem. Esse encontro marcado pela subjetividade é frágil, voluntário e
incerto, mas é uma única evidência de que existe vida. (op. cit., p.33) Partindo dessa
abordagem, compreende-se que é pelo corpo que nos ligamos à alma e ao mundo
exterior e, apesar das suas diferenças, o humano congrega uma unidade que vive
oscilante entre o desejo e a consciência. Esta unidade entre as partes do corpo baseia-
se nas imagens de uma relação em que interior e exterior se confundem.
Nos contos em destaque, Clarice penetra nesse âmbito paradoxal que permeia as
relações do corpo. O primeiro conto, "Via crucis", exibe a estória de uma personagem
que fica grávida sem ter tido relações com o marido. A criança gerada não foi
resultado de relação sexual; não foi resultado da cessão aos desejos do corpo. A futura
mãe diz que não quer que o futuro filho passe pela via crucis do corpo: "Mas o que
posso fazer para que meu filho não siga a via crucis?". (1998c, p.30) Em um dado
momento ela começa a sentir enjôos e pensa: "começou a via crucis do meu sagrado
filho". No fim do conto diz-se: "Não se sabe se essa criança teve que passar pela via
crucis. Todos passam".(1998c p.33)
Mas o que seria essa via crucis? A via crucis do corpo é o nome que dá título ao livro.
E é sobre esse corpo que o livro trata. É importante mencionar que a escritora já
antecipara essa verdade no fechamento de seu segundo livro: A paixão segundo GH.
A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através
dela e com ela. (1998c, p.178). Essa antecipação, a nosso ver, aponta o caminho do
sacrifício que é o estar no mundo. Logo, pela via crucis todosm de passar, pois todos
somos seres viventes e estamos no mundo; e, no mundo, o caminho que se trilha
proporciona alegrias mas também dissabores e não se pode fugir disso. O mundo que
nos rodeia nos atinge de todas as formas, fisicamente, emocionalmente. O corpo sofre
pelos ferimentos físicos e também pelos ferimentos da alma. É nele, no corpo, que
reside, que se deposita os desejos, os anseios, as perdas, as dores, a felicidade, o
amor, o ódio.
No entanto, contrariando os princípios da concepção normal, em que um novo indivíduo
só é gerado pela relação sexual masculino/feminino, Maria das Dores, nome aliás
bastante sugestivo para a temática posta ali em questão, tal qual a Virgem Maria, se
encontra grávida de um menino. O que pensamos ser, efetivamente, inconcebível
ocorre. Vê-se, pois, que Clarice lança o de uma ironia para criticar os efeitos que o
cristianismo provocou no pensamento ocidental quando ligou o sexo ao pecado.
Constrói, assim, uma narrativa em que Maria das Dores, segue o mesmo percurso e o
mesmo ritual da Virgem Maria quando concebeu Jesus Cristo.
Conforme Bataille (1980) o mundo da religião é uma tensão trágica entre o profano e o
sagrado. O pensamento cristão desconhece e ignora a tensão da atividade sexual. Por
isso condena a sexualidade. Na esfera humana, a atividade sexual é essencialmente
uma transgressão. A essência do erotismo reside na inextrincável associação entre o
prazer sexual e o proibido. Nunca, humanamente, a proibição surge sem a revelação do
prazer e nunca o prazer surge sem o sentimento de proibição. (p.96) De acordo com
Bataille, o cristianismo, ao investir contra um movimento natural que é a atividade
sexual tornou-se, por assim dizer, a menos pura das religiões, porque é mediatizada
pelo mundo do trabalho, pois condena todas as formas de erotismo, inclusive o
sagrado. No entanto, ao permitir e até santificar o casamento, comete uma
contrariedade, um paradoxo, por assim dizer, quando torna legal a relação sexual.
Chauí (1991), salienta que é justamente o pecado da carne que fez o cristianismo
sacramentar o casamento. O corpo, considerado como templo sagrado, conforme
orientação de Paulo à comunidade de Corintos, não pode ser usado para prostituição,
adultério, masturbação e homossexualismo. Por isso, o casamento é um remédio para
conter essas imoralidades. Ora, se o corpo é sagrado, então não deve sofrer violação.
Como, pois, é permitido aos casais casados?
O cristianismo orienta que o homem deve realizar sacrifícios para alcançar os méritos
do mundo sagrado. Para entrar no reino do divino é preciso abdicar-se dos prazeres
carnais. Segundo Chauí (1991, p. 86), no bojo da religião cristã, principalmente a
católica, o sexo está, desde a sua origem, atrelado ao pecado. Nesse sentido, ceder às
tentações da carne é sujeitar-se a perder um lugar no paraíso. Na interpretação que
se faz da nese blica o casal de humanos separa-se de Deus ao descobrir seus
corpos nus. Separar-se de Deus é descobrir os efeitos de não possuir atributos divinos:
eternidade, infinitude, incorporeidade, auto-suficiência e plenitude. Ora, pelo sexo, os
humanos não somente reafirmam sem cessar que o corpóreos e carentes, mas
também não cessam de reproduzir seres finitos. O sexo é o mal porque é a
perpetuação da finitude.(1991, p. 87). Pelo sexo o homem descobre a sua essência, a
finitude. A finitude é a queda. a queda o distancia para sempre de Deus, é o
sentimento de um rebaixamento real e do qual a descoberta do sexo como vergonha e
dor futura é o momento privilegiado. Com o sexo os humanos descobrem o que é
possuir corpo. Corporeidade significa carência [...] desejo, limite e mortalidade. (1991,
p. 86) Se o corpo é, naturalmente, morada do desejo e este se encontra, encravado na
carne, tem de ser, então, alimentado. Não havendo, portanto, possibilidade, por vias
normais, de fugir às tentações. A o ser por obra do Divino, como ocorreu com a
Virgem Maria. Portanto, a virgindade, a abstinência sexual, imposta pelo cristianismo,
principalmente à mulher é um sacricio, uma via-crucis no entender clariceano.
Há, portanto, ironia na alusão bíblica clariceana. Os dados sugerem que Maria das
Dores dissimula uma situação de disfarce de um filho gerado fora do casamento, a
menstruação estava atrasada foi isso que a levou à ginecologista. Ela era virgem do
casamento, do marido, pois este era impotente, o que nos leva a pensar num possível
relacionamento dessa mulher com outro homem. Chegando em casa contou ao marido
o que acontecia.
O homem se assustou: - Então eu sou S. José? é foi a resposta lacônica. [...]
A uma amiga mais íntima Maria das Dores contou a história abismante. A amiga
tamm se assustou: Maria das Dores, mas que destino privilegiado vo tem!
privilegiado, sim, suspirou Maria das Dores. Mas o que posso fazer para que
meu filho não siga a via crucis? (1998c, p.30)
Observa-se, pois, que o artifício da ironia é o que sobressai nessa narrativa. O sacrifício
imposto pela sociedade, fazendo com que o sujeito ignore seus desejos, os desejos
que lhe são inatos. Ao se ver naquela situão, Maria das Dores, recorre à Virgem
Maria. José, por sua vez, tem de aceitar, pois é melhor aceitar esse fato que confessar
sua incompetência.
A personagem Maria das Dores do conto a Via crucis encontra no sacrifício de Maria
um modelo e uma saída para a interdição imposta pelas convenções sociais que
prevê uma norma de comportamento, que impede a manifestação do desejo carnal, e
interdita o sexo, principalmente às mulheres, regulando-os e reprimindo-os; delimitando
e cristalizando papéis e imagens que, na verdade, alienam e deslocam o desejo. É o
que Clarice mostra ao longo dos contos dessa coletânea.
"Melhor que arder" e "Mas vai chover" também relatam situações em que personagens
femininas sentem os desejos sexuais pulsarem, emanarem e o conseguem reprimi-
los, mais que isso, transpõem as barreiras da tradição e entregam aos seus impulsos.
Clarice, novamente, toca em questões tabus. No primeiro conto a personagem é uma
freira, Clara e, no segundo, é uma mulher de sessenta anos, Maria Angélica. É uma
forma de criticar o celibato que impõe ao indivíduo que cale todo e qualquer desejo
sexual indo contra uma força natural. E, outra vez, toca no assunto do sexo feminino na
maioridade e suas barreiras. No primeiro conto a freira decide não fechar-se mais e
deixa o convento em busca de alguém que possa saciar seus desejos e encontra.
Casa-se vai para a lua-de-mel: "Ela voltou grávida, satisfeita, alegre. Tiveram quatro
filhos, todos homens, todos cabeludos". No segundo a mulher, madura e sozinha
entrega-se louca e cegamente a um jovem para que este também a satisfaça
sexualmente, o importando-se de ser explorada. E acaba só: "Estava quieta, muda.
Sem palavra nenhuma a dizer. - Parece - pensou - parece que vai chover" (1998c,
p.79)
Ao final dos dois contos dá-se a impressão de que a escritora transmite a idéia de
cotidianidade da vida. Clara freira teve quatros; Maria Angélica senta-se no sofá e
pensa: "Parece que vai chover", ou seja a vida continua. A vida é assim.
No conto "Miss Algrave" temos a personagem que nome ao título. Uma mulher
virgem, solteira e sozinha que vive numa Londres do século passado e que se auto
reprime sexualmente. Miss Algrave protesta a todo instante e de toda maneira contra
aquilo que ela julga imoral: o sexo. Na solio de sua vida mesquinha e til,
lembranças de suas primeiras manifestações sexuais a atormentam. Tudo corria,
normalmente com Ruth Algrave, descendente de irlandeses, vivia para o trabalho; era
uma datilógrafa perfeita. Seu chefe nunca olhava para ela e tratava-a, felizmente, com
respeito, chamando-a de Miss Algrave. (1998c, p.13-14) Esses dados, são
particularmente interessantes, pois fazem menção a uma personagem que será criada
posteriormente por Lispector no livro A hora da estrela, obra que o foi incluída em
nossa pesquisa, por considerarmos que se afasta, em alguns aspectos, do que ora
estamos investigando ao que, reservamos para uma pesquisa mais adiante. Pois bem,
se observarmos, atentamente, Ruth Algrave apresenta indícios da nordestina
Macabéia. É uma datilógrafa estrangeira numa cidade grande, ansiosa por encontrar
alguém que a auxilie a romper as barreiras que traz em si.
Logo de icio, a narrativa nos aponta um problema: a solidão e a monotonia a qual
vivia a mulher. Ela que, embora fosse possuidora de um corpo bonito, era virgem,
ninguém a olhava; nem nunca ninguém havia tocado nos seus seios. (1998c, p.14) Ao
que parece, esse é o grande problema, a personagem, que não sabemos a idade, mas
ao que indica se encontra em meia idade, ainda não experienciou uma troca afetiva
maior. Por isso, se fechara, ficando as lembranças a atormentá-la: [...] quando era
pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e mulher com seu primo
Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam tudo para ter filhinhos sem conseguir.
Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era culpada, ele também o era. (1998c,
p.13)
Pelo que se observa, a personagem carrega um sentimento de culpa que advém, entre
outros fatores, de um processo de repressão, que conforme Chauí (1991), foi
responsável pela idéia da sexualidade como pecaminosa, imoral e viciosa. Segundo a
autora, herdamos da cultura judaica cristã uma visão extremamente repressora da
sexualidade, mais acentuadamente marcada, como sempre, para o contingente
feminino. Nossas raízes culturais estão impregnadas de uma visão distorcida da
sexualidade, onde a prática da repressão é o comportamento usual, ao menos para as
mulheres, quando não também para os homens. Embora nossa civilização tenha, nos
últimos séculos, vivido alguns momentos de maior liberalidade, essa visão distorcida da
sexualidade foi a tônica principal, mantida durante todos esses séculos em que ela vem
se cristalizando. Diga-se de passagem que, mesmo em seus momentos de mais
liberdade, o exercício pleno da sexualidade sempre foi apanágio das pessoas adultas,
que vêem com maus olhos a sexualidade dos adolescentes, ridicularizam as
manifestões sexuais da terceira idade e negam - ao menos negaram até poucas
décadas - a sexualidade na infância. Esse paradigma de comportamento se faz sentir
pelas mulheres construídas ao longo da produção literária de Lispector e outras
mulheres da literatura brasileira.
Aqui, também, se pode constatar o problema da ideologia dominante, que pre
normas de comportamento em torno do sexo. Nesse paradigma a mulher sente-se
desorientada em relação a sua libido, aos desejos inerentes de seu corpo. Pensamos
que advém desse fato o comportamento da personagem do conto em queso. É isso
que faz Ruth algrave manifestar um sentimento de repulsa com relação à sua
sexualidade, fazendo-a até renegar seu próprio corpo e fechar os olhos aos casais que
se beijavam ao seu redor, quando estava no Hyde Park . Não permitia a si os prazeres
da carne, literalmente, (sequer comia carne). o ousava olhar, ver nada de ordem
sexual, não se aproximava daquilo que poderia lhe causar prazer. Negava a
sexualidade alheia, mais ainda, a sua própria, pois não conseguia olhar para seu
próprio corpo. Pois conforme Paz, (2001, p. 182), o encontro erótico começa com a
visão do corpo desejado. Vestido ou desnudo, o corpo é uma presença, uma forma
que, por um instante, é todas as formas do mundo. Por isso, a mulher do conto em
análise procura fechar os olhos perante o corpo, pois sabe que percebê-lo, tocá-lo é
abrir-se para fantasias e afastar-se do cotidiano. Tomava banho só uma vez por
semana, no sábado. Para não ver o seu corpo nu, não tirava nem as calcinhas nem o
sutiã. (1998c, p.14) Por esse trecho pode-se arriscar uma possível leitura freudiana da
sexualidade: teria Ruth Algrave sofrido algum trauma em relação a sua sexualidade?
A psicanálise de Freud orienta-nos que o desenvolvimento mental do ser humano é
determinado pela relação de seu corpo com o corpo da mãe e do pai. O corpo da
criança vai se erotizando em função do prazer e desprazer que experimenta no contato
físico com os pais, na nutrição, na digestão dos alimentos, nas manifestações de
afeição e carinho que recebe e também no desconforto e na dor que sente. Essa
experiência corporal não só permanece viva no inconsciente da criança, como é a
matriz das configurações mentais que terá na vida adulta.
Em A sexualidade feminina (1974), Freud explica que a mulher deverá chegar à
feminilidade abandonando o clitóris como zona genital e adotando, em seu lugar, a
vagina (uma área do corpo até então inexistente para ela, deve agora passar a ser
lugar privilegiado do prazer). Ainda na tarefa de transformar-se em mulher, deve trocar,
por desilusão, o objeto mãe pelo objeto pai, o qual também terá de ser abandonado;
finalmente a mulher deve então amar um homem e desejar ter um filho. Conforme o
psicanalista, a fase de ligação exclusiva à mãe que pode ser chamada de fase pré-
edipiana, tem nas mulheres uma importância muito maior do que a que pode ter nos
homens. Muitos fenômenos da vida sexual feminina, podem ser, integralmente,
explicados por referência a essa fase. [...] A mulher só atinge a normal situação
edipiana positiva depois de ter superado um período anterior que é governado pelo
complexo negativo. (1974, p. 260) Por esses dados se pode afirmar que a mulher da
narrativa em questão sofre de um trauma psíquico o que a faz encarar a sua
sexualidade com sentimento de culpa que, segundo Freud está na base das neuroses.
Em O mal estar na civilização (1974) , Freud aponta o papel desempenhado pelo
amor na origem da consciência e a inevitabilidade do sentimento de culpa. Conforme o
cientista a civilização impõe ao indivíduo certas normas que regula o seu desejo,
gerando assim um conflito. Assim, o conflito passa a existir assim que os homens
decidem viver juntos e enquanto a comunidade não assume outra forma que não a
família, o conflito (eros X instinto de morte) se expressa no complexo edipiano,
estabelece a consciência e cria o primeiro sentimento de culpa.
Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do
medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A
primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo
tempo em faz isso, exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos
proibidos o pode ser escondida do superego. [...] em primeiro lugar, vem a
renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por parte da autoridade
externa. (é a isso, naturalmente, que o medo da perda do amor equivale, pois o
amor constitui proteção contra essa agressão punitiva.) Depois, vem a
organização de uma autoridade interna e a renúncia ao instinto devido ao medo
dela, ou seja, devido ao medo da consciência. (1974, p. 151 os grifos são do
autor)
O sentimento de repulsa, manifestado por Ruth Algrave e pelas personagens dos
outros contos reunidos neste capítulo, parece remeter aos dois aspectos de uma
vivência culposa. Visto que, para Freud, o sentimento de culpa remete a duas origens,
mas estas estão sempre relacionadas para o campo de estudo da consciência social,
para a busca de entendimento de como os seres humanos na sua relação com o
mundo social e natural, apreendem esses mundos e a si mesmos, enquanto seres
pensantes. Eis a razão pela qual Ruth Algrave manifesta seu repúdio: lamentava
muito ter nascido da incontinência de seu pai e de sua mãe, sentia pudor deles não
terem tido pudor. (1998c, p. 16) Ela, então, cria uma situação imaginária para sua
felicidade; imagina-se sendo deflorada por um ser de outro planeta, Ixtlan, vindo de
Saturno.
Foi então que aconteceu.
Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo.
Falou bem alto:
- Quem é:
E a resposta veio em forma de vento:
- Eu sou um eu.
[...] - vim de Saturno para amar você.
- Mas eu não estou vendo ninguém! Gritou
E sentia-o mesmo. Teve um frisson eletrônico. (1998c, p.16-17)
A partir desse ponto, pode-se perceber, com Otávio Paz, duas faces do erotismo sendo
despontada a partir do desenvolvimento da atitude da personagem. Paz ( 2001, p. 21)
orienta que o erotismo encarna duas figuras emblemáticas: a do religioso solitário e a
do libertino. Emblemas opostos, mas unidos no mesmo movimento: ambos negam a
reprodução e são tentativas de salvação ou libertação pessoal diante de um mundo
caído, perverso, incoerente ou irreal. Vê-se, pois que algo semelhante ocorre com Miss
Algrave, de moça recatada, que repudia o sexo, passa a um comportamento inverso: a
prostituta.
Vejamos mais adiante à (p. 22) o que Paz reafirma:
A castidade é uma prova, um exercício que nos fortalece espiritualmente e
permite-nos dar o grande salto da natureza humana em direção ao
sobrenatural. A castidade é apenas um caminho entre outros [...] para alcançar
um propriamente sobrenatural seja esse a comunhão com a divindade, o
êxtase, a libertação ou a conquista do incondicionado. Muitos textos religiosos
entre eles alguns grandes poemas, não vacilam em comparar o prazer sexual
com o deleite extático do místico e com a beatitude da união com a divindade.
Nesse sentido, se pode compreender, com Otávio Paz, que as personagens
clariceanas, não encontrando no outro uma possibilidade de preenchimento de seu
vazio, buscam a felicidade com o desconhecido, aspecto defendido pelos místicos
cabalistas. Assim, pode-se afirmar que o processo de reversão da personagem brota
da experiência mística. A personagem busca o amor pleno, no entanto, os limites
impostos pela castração a impedem de encontrá-lo, o que a faz buscar um gozo para
além do fálico. A experiência mística passa, em primeiro lugar, pela experiência da dor,
uma aflão no corpo, é o que ocorre com a mulher em questão.
Sobre esse aspecto, é importante comentar que, nesse livro e, especialmente, nesse
conto, Lispector organiza um discurso sobre o erotismo numa espécie de jogo de
paradoxos, em que - o desejo carnal de suas personagens ganha certa transcendência
ao mesmo tempo em que é demasiadamente mundano - o ato sexual se transforma
num ritual sagrado, em que a Divindade é o estrangeiro por excelência. Esse jogo entre
sagrado e profano permeia a maioria de seus contos eróticos. Pode-se, então, falar em
um Eros divino, um sexo místico pelo qual um Ser misterioso penetra, radicalmente, no
corpo e na alma. Nesse contexto, o gozo de Ruth Algrave é altamente erótico no
sentido divino. Ela constrói esse novo sexo místico. No caso da alma humana feminina,
trata-se de um gozo e uma dor ao mesmo tempo. Como aentão não ocorrera o gozo
carnal, ocorre agora em outro plano, remetendo a uma relação com a divindade. Deus
iluminava seu corpo. (1998c, p.18)
Importante ressaltar que êxtase, etimologicamente, quer dizer: ex=fora stase= estado,
estar fora de si. Esse fora é um fora do homem, o grande outro, a alteridade absoluta:
chamado de Divindade pelos cristãos. Nesse encontro o sujeito entra em comunhão
com a divindade. Esse erotismo do divino tem como exemplo máximo Santa Tereza de
Ávila, em que uma espécie de amor penetra por outras vias, rasgando uma virgindade
em termos divinos. É o amor que constrói esse novo sexo stico, num nível de um
além do esrito. Nessa comunhão, há a criação, a existência, o florescimento de um
novo corpo que entra em comunhão erótica com a divindade. No caso de Miss Algrave,
ocorre um processo semelhante, em que um ser desconhecido penetra pelos sentidos
da personagem.
Eles se entendiam em sânscrito. Seu contato era frio como o de uma lagartixa.
Dava-lhe calafrios. Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de cobras
entrelaçadas, mansas pelo terror de poder morrer. O manto que cobria o seu
corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e rpura coagulada. Ele
disse:
- Tire a roupa.
Ela tirou a camisola. A lua estava enorme dentro do quarto. Ixtlan era branco e
pequeno. Deitou-se ao seulado na cama de ferro. E passou a mão pelos seus
seios. Rosas negras. Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era bom demais
Tinha medo que acabasse. Era como se um aleijado jogasse no ar o seu
cajado. (1998c, p.16-17)
Vê-se, pela descrição do narrador, que se trata da experiência interior. Ao que se
sabe, a experiência interior é um tipo de sentimento que não isola a matéria, não exclui
o corpo. Assim, Bataille descrevera em seu livro: A experiência interior. Segundo o
filósofo, a experiência interior procura o êxtase, sem a exclusão do corpo e termina por
afirmá-lo como lugar receptáculo do gozo. No corpo o erotismo o orgasmo é algo
que não pode ser cercado pela razão, é algo que escompletamente fora de toda
apreensão e conhecimento é um estado que esfora-de, é o êxtase.
Ao que sabe, a manifestação mística é evidenciada por um sentimento repleto de
emoção e, por estar ligado ao erotismo, a religião busca regular, limitar, normatizar,
tornar inteligível. A mística é o cerne da religião. É, acima de tudo, intuição de
comunhão com o inefável, identificando-se as fontes primevas do mundo, que busca
comunicar-se com as fontes da religião. No entanto, a experiência mística difere da
religião, por esta ver a Divindade como um ser presente, mas distante, inalcansável. Já
o sentimento stico promove um relacionamento mais íntimo possível com o divino. O
sujeito, movido pelo sentimento místico, promove o encontro direto com a divindade.
Clarice busca essa experiência, quando tensiona a descida às entranhas do próprio ser
e não uma comunhão específica com Deus cristão. Esses dados, nos permitem afirmar
que Miss Algrave participa dessa experiência. Eros impulsiona a personagem a buscar
um gozo que está para além da explicão, com o desconhecido.
Nesse texto, o grande personagem é o corpo feminino, depositário do desejo. Clarice
mostra, por meio de uma linguagem recheada de simbologia, o conflito por que passa
as mulheres em ter de esconder e, até mesmo, negar àquilo que lhe é inato: sua
sexualidade. O leitor, por meio dessa personagem, assiste a impossibilidade de fazer
calar o corpo desejante.
Sabemos que o pensamento cristão apregoa a renúncia dos prazeres da carne,
recomenda a abdicão dos desejos em nome de uma pureza, cujo modelo é a
virgindade da mulher. Assim, os desejos da carne passam a ser vistos como uma
doença da alma. Cremos que é por essa ótica que Miss Algrave foge às tentações. No
entanto, observa-se nela uma certa dificuldade em lidar com essa situação. O texto é
permeado de conotões proibitivas e de culpabilidade. A cor vermelha é um elemento
recorrente no texto. mbolo da paixão, o vermelho es naquilo que a personagem
rejeita e ao mesmo tempo aceita inconscientemente. Ela o comia carne vermelha,
mas comia macarrão com molho de tomate e cultivava gerânios vermelhos. E, para
agravar ainda mais, seus cabelos eram vermelhos, seu corpo era sensual, cheio de
sardas, o que a atordoava ainda mais. Evitava, olhar-se no espelho, pois sabia que nela
mesma estava a tentação. Assim, vivia a personagem um conflito de negação.
Ao final do conto ficamos surpresos com a mudança de comportamento da
protagonista. Se ao início da história ela não se permite ao menos olhar algo que diga
respeito à sensualidade, ao final ela requer para si todo o direito de ser sensual, sexi e
usufrui de modo mais contrastante possível de seu primeiro pensamento: torna-se uma
prostituta. E assume de vez a sexualidade tão rejeitada e reprimida, deixando claro que
não mais negaria aquilo que seu corpo de mulher insinuava: a feminilidade, o desejo.
Isto fica claro não nas atitudes perante os homens com quem vai para cama ou
deseja, mas também no seu vestuário. Se o vermelho de seus cabelos indicava essa
sexualidade inerente à sua pessoa, agora isso ficaria mais evidente nos vestidos de cor
vermelha que resolvera comprar. Era uma mulher e iria agir como tal. Descobriu-se
mulher e isso era bom. Descobriu-se um ser sexual e isso era bom. Descobriu que não
podia mais estar alheia a este corpo no qual reside o Eros, como diz Paz (2001, p. 184)
O amor humano, quer dizer, o verdadeiro amor, não nega o corpo nem o
mundo. Tampouco aspira a outro e nem se como caminhando em direção a
uma eternidade para além da mudança e do tempo. O amor não é amor a este
mundo e sim deste mundo; está atado à terra pela força da gravidade do corpo,
que é prazer e morte. Sem alma - ou como queira se chamar a esse sopro que
faz de cada homem e de cada mulher uma persona - não há amor, mas
tampouco e existe sem corpo. Pelo corpo o amor é erotismo e assim se
comunica com as forças mais vastas e ocultas da vida.
Nessa narrativa, a mulher, que se encontra primeiramente numa situação passiva, de
resignação, negação de si mesma, num dado momento, descobre que aquilo que tanto
rejeitara não o podia mais fazer. E muda sua atitude. Eis algo que se deve observar nos
contos da VC, se as personagens femininas se encontram numa posição de
desconforto ou de insatisfação ou mesmo de estagnação, uma mudança num
momento futuro em relação a sua posição anterior. Se Miss Algrave fora protestante
contra o Eros que a rodeava, descobriu que ele faria parte dela e passou a exercitá-lo.
Assim, dentre outros aspectos, a repressão é o processo que perdura no
comportamento das personagens dos quatro contos reunidos para análise neste
capítulo.
Na narrativa "O Corpo" tem-se três personagens principais. Um trio formado por duas
mulheres e um homem. Neste conto as mulheres encontram-se na mesma condição
vista em outros textos da escritora, como dona-de-casa, com a incumbência de servir o
marido na mesa e na cama. Aqui um detalhe: são duas e não só uma que o faz. O texto
trata da bigamia, do desejo masculino de ter mais de uma mulher à sua disposição para
saciar seus desejos e vontade. A situação mostra o desejo masculino imposto. O
homem está ali para ser satisfeito, enquanto as mulheres se reprimem para dar a ele o
que necessita e deseja. Por essa razão, fica claro o sentimento de não felicidade das
duas. Estão apenas vivendo a vida que lhes foi proporcionada. Chega um momento em
que elas possuem a oportunidade de se satisfazerem, sem a presença daquele a quem
têm sempre o dever de servir. Neste nova situação são seus desejos que estão sendo
satisfeito e isso as agrada. Até então a relação era harmônica - se se pode dizer assim -
até que a entrada de um quarto elemento desestabiliza a relação e, num momento
posterior, Carmem e Beatriz questionam, pensam e resolvem tirar de cena aquele a
quem suas vidas estavam ligadas e seria somente pela morte que esta ligação poderia
ser desfeita. Isso nos remete a Bataille, em sua concepção do erotismo e da
transgressão. Conforme o filósofo, o erotismo é uma dialética simbólica entre a lei e a
transgressão. E, muitas vezes, essa transgressão é autenticamente violenta como em
Sade. Confirmando Bataille Clarice parece querer demonstrar, em seus textos, o grande
paradoxo do erotismo. Especificamente neste conto, ela aponta o corpo como o lugar
da transgressão de uma lei.
Freud ( apud França, 1997) explica esse aspecto do erotismo com a teoria pulsional.
Segundo a qual o gozo é feito de dor e prazer.
Nesse sentido o gozo é paradoxal e contraditório, pois ele satisfaz a dois
princípios, o do prazer e o da repetição dolorosa, ao mesmo tempo em que liga
o erotismo da pulsão de vida à destrutividade da pulsão de morte. [...] É em
oposição à pulsão de morte que Freud introduz à pulsão de vida, Eros, como
princípio de ligação cujo alvo é instituir unidades cada vez maiores. Eros é a
pulsão sexual por excelência, enquanto Thanatos é a força primária
demoníaca e pulsional por excelência. (1997, p. 54)
Ora, no final do debate travado no Banquete de Platão, Sócrates, relembrando a
narrativa de Diotima, aceitando falar sobre o amor, afirmaria: Eros não é um deus, não
é belo, nem bom, nem é mortal, não é feio nem mau; nem imortal nem mortal. Eros é
daimom, intermediário entre deuses e homens. Ele é desejo: carência em busca de
plenitude. Ama o bem, pois amar é desejar que o bem nos pertença para sempre; Ele
cria nos corpos o desejo sexual e o desejo de procriação que imortaliza os mortais. O
que o amor ama nos corpos bons é sua beleza exterior e interior. O discurso do filósofo
enfatiza o aspecto paradoxal desse sentimento. Sócrates proclama, ainda, que todos
os homens desejam o amor, da melhor forma possível, pois eles padecem de uma
carência.
Sendo assim, a narrativa em questão traz, bem delineada, esse aspecto contraditório
de Eros. Se por um lado Xavier essatisfeito, pois recebe em abundância aquilo que
deseja, de outro as mulheres pensam estar no prejuízo. A fome é um dado que
denuncia isto: a disposão das personagens em buscar a instância do prazer. A fome
de desejos e a necessidade de saciá-los está muito clara no texto. Na linguagem
adotada por Clarice, os personagens tinham a necessidade de estarem sempre
comendo, se fartando: a comida é um elemento bastante recorrente no conto.
Compreende-se, dessa maneira, a estratégia organizada pela escritora ao lidar com a
problemática sexual, mostrando a situação do macho com suas fêmeas sejam Beatriz e
Carmem, seja a prostituta a quem mantinha além delas. Xavier - o macho em questão -
representa o homem viril, insaciável, que deveria ser alimentado tanto por comida -
banquetes fartos eram preparados para saciar os três -, quanto por mulheres - Beatriz
com suas carnes fartas ou Carmem não tão farta de carnes assim. Nessa história, as
mulheres encontram-se na situação socialmente imposta a elas sempre. No papel de
ser mulher e ser mulher é saciar os desejos do homem, reprimindo os seus. Isso nos
remete a Foucault para quem a sexualidade permeia a ligação desejo-verdade, prazer-
poder. O filósofo, em sua História da sexualidade, orienta que todos os elementos
negativos ligados ao sexo (represo, proibição) possuem uma função discursiva, uma
técnica de poder. Esses elementos giram em torno da ciranda prazer-poder-saber. Ora,
buscar a identidade gera poder. Poder, verdade e saber estão na constituição do
sujeito. É essencial a iia de Foucault, segundo a qual os dispositivos de poder têm
com o corpo uma relação imediata e direta, isto é, esses dispositivos impõe uma
organização aos corpos. Pode-se entender, a partir de Foucault, que na figura de
Xavier se tem a representação do poder, do poder do homem que, por imposição do
cristianismo, perdura até os dias atuais como o privilegiado. As mulheres clariceanas,
descritas nesse conto, se rebelam contra esse poder, pois não aceitam mais esse tipo
de interdão, em que o homem possui o domínio. Decidem, então, matá-lo e livrar-se
daquele corpo, pois descobrem que seus desejos podem ser saciado de outra forma,
que não com o corpo masculino, dando vazão a uma outra forma de prazer, que não a
heterosexual, prevista pelas normas vigentes como ideal e saudável e revelando um
novo desejo, um desejo de posse sobre uma vontade. Nessa dialética não se procura o
corpo pelo corpo, o drama inclui um sujeito que desperta o Eros fascinante que no
outro.
Dessa forma, Clarice toca em outra questão tabu, a homossexualidade. O motivo que
leva Carmem e Beatriz a livrar-se do corpo. Matar Xavier é desatar as amarras do poder
que as oprimem, que as impedem de exercer livremente a sexualidade. Sem a
presença de Xavier, Carmem e Beatriz satisfazem a si próprias, pois no momento em
que ele descobre que elas se relacionam entre si, quer também tirar proveito disso,
participando, também, como Voyer. Talvez seja esse o motivo maior que as levam a
matá-lo. Não precisam dele para serem mulheres e felizes, melhor, só com a ausência
dele podem ser. Pode-se afirmar, então, que um novo prazer-poder surgiu. O desejo
homossexual entre Carmem e Beatriz manifesta-se como um espaço alternativo, que
isola e une as duas mulheres, apartando-as do espaço maior do desejo e do poder
masculino.
A história se torna pública, mas homossexualismo feminino não é coisa de que se deva
falar. É melhor manter silêncio, manter sigilo, esconder os fatos. Não dizer nada sobre o
fato era o correto. Falar pode suscitar questionamentos, curiosidades. Coisa que é
muito falada pode se chegar à conclusão de que se é normal, hitese repressiva
defendida por Michel Foucault na História da Sexualidade: vontade de saber. Se o
sexo é reprimido o simples fato de falar dele e de sua repressão ganham um ar de
transgressão.
Clarice, nos contos acima analisados, vem tratando desse tema: o da sexualidade
reprimida, o da homossexualidade feminina, temas desconfortantes e pouco lidados em
literatura. Constrói, para isso uma figura feminina para desenvolver esse discurso.
Percebe-se, nessa narrativa, a ocorrência de um processo de liberação. No início da
história vemos a figura feminina numa posição desconfortante, no final ocorre uma
libertação. As mulheres resolvem agir, tomar uma atitude que as tire da situação de
opressão. A verdade é que elas tomam a decisão de serem felizes, mesmo que isso
signifique ir contra as regras, normas, conceitos - ou preconceitos - vigentes e
respeitados. Será assim também em Ruído de passos.
Em Ruído de passos Lispector toca no tema do desejo mais uma vez. Se em "Miss
Algrave" traz a revelação da sexualidade como parte de nossa existência. Nesse conto
percebe-se um aprofundamento do tema. Dessa vez, percebe-se mais evidências de
que o desejo não morre. É um fardo que todos têm que levar por toda vida. O desejo,
sempre é um fardo, porque satisfazê-lo nem sempre será possível, pelo menos quando
não é realizado da maneira como se gostaria de realizá-lo. A personagem deste conto,
uma senhora de oitenta e um anos, investe-se de coragem para manifestar sua libido.
Nessa idade ela confessa que seu corpo é, ainda, desejante. Ela se sente incomodada
com este fato. Recorre ao dico que lhe diz que é normal, que todos têm e que pela
idade que possui, o único jeito é satisfazer-se sozinha. Importante citar um trecho da
narrativa para avaliar o quanto é difícil para a personagem e, consequentemente, para
nós, admitirmos que nosso corpo é carente. O que deveria ser natural, acaba por nos
levar ao padecimento.
Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe
envergonhada, de cabeça baixa:
- Quando é que passa?
- Passa o quê, minha senhora?
- A coisa.
- Que coisa?
- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca. (1998c, p.55)
É dessa forma que a autora expõe a questão do sexo na terceira idade, outro tabu, uma
vez que não se toca em tal assunto imaginando-se que as pessoas ao chegarem em
uma determinada idade morrem para o desejo sexual ou vice-versa. Porém a solidão
do ato sexual da personagem mostra que o desejo existe e é difícil conviver com ele.
A questão da moral e do preconceito também é posta em jogo na confissão da
protagonista. Ao deixar claro seu desejo sexual, a mulher que se encontra na terceira
idade, acaba por assumir um discurso que revela a verdade sobre o desejo, assumindo
um além mais, não só um posicionamento sexual. Porque o que esem jogo é mais
profundo do que o mero prazer sexual, mas, sim a necessidade de mudança de
posicionamento em relação as interdições. As mulheres na VC desenvolvem, na
verdade, um processo de revelação de suas identidades, tendo em vista que elas se
assumem como sujeitos de seus desejos.
Esse é o terririo em que a escritura de Clarice se desenha: no litoral entre o ser e o
dizer. Convém lembrar daquilo que orienta a psicanálise: o homem em sua
incompletude assume um caráter irreparável e paradoxal. Entenda-se que, por estar
submetido as leis da linguagem, que escamoteam a realidade, o homem está alienado
do seu ser; e, sendo assim, requer sempre algo que o complete, que o represente. É
isso que ocorre com a velha, a protagonista dessa história. Sabe ela que negar seus
desejos é não aceitá-los como algo natural. Aceitar tais desejos e satisfazê-los é ir
contra o que é socialmente ditado como certo, moralmente correto. Porém, chega o
momento em que se encontram em um ponto de tomada de decisão. E não têm como
fugir. É nesse ponto que "encontram" em si a tal sexualidade rejeitada e a
experimentam. E vêem que é boa. A rejeição, representada pela pureza, castidade,
servidão ao macho, etc., era apenas uma scara que escondia uma verdade delas
mesmas.
Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia
passar dias em uma fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso
a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E
tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa [..] o desejo de prazer
o passava. (1998c, p.55)
O que se pode observar em tais histórias é que, em seu final, a saída para as
personagens é sempre chocante, não usual, não "comum". A partir da descoberta da
impossibilidade da total negação desse ser sexual que somos, rompe-se de forma
radical com tal pensamento e comportamento. De uma posão passiva, moralmente
aceita, passa-se para uma posição de confrontação com tal moral: a casta torna-se
prostituta; a idosa masturba-se, as mulheres servis tornam-se assassinas e lésbicas.
Clarice pode estar dizendo que a mulher não tenha muita saída e qualquer que seja sua
atitude, será de desaprovão social. Ou ainda, tenta dizer que a sua saída seja esta
mesma a do choque. Porque o choque? Não é porque estas atitudes são radicais em
si, mas porque as atitudes das personagens (satisfação do desejo; portanto o
desmascaramento deste) cabem apenas ao universo masculino. Esses atos são
extremos porque, ao olho da sociedade, nunca foram expostos ( ou o são expostos
com normalidade, com freqüência). Porque essa sociedade o só impõe à mulher a
repressão dos seus desejos, mas também a si mesma. A moral sexual cris veio,
historicamente, sustentando a negatividade do prazer sico e da sexualidade e,
conforme nos relata Foucault, veio enfatizando a proibição do incesto, a dominação
masculina e a sujeição da mulher (1988, p. 17) Dessa forma, a estrutura familiar
patriarcal, por sua vez, reproduziu essa situação. Daí, o sentimento de culpa das
mulheres retratadas na VC.
Vemos, pois que a divergência em torno da questão é histórica. O que faz Octávio Paz
a afirmar que sem sexo não há sociedade, pois não procriação, mas o sexo também
ameaça a sociedade. Deus Pã, afirma o autor, é criação e destruição. É instinto: temor,
pânico, explosão vital. É um vulcão, e cada um de seus estalos pode cobrir a sociedade
com uma erupção de sangue e sêmen. O sexo é subversivo: ignora classes sociais, o
dia e a noite; dorme e só acorda para fornicar e voltar a dormir. Quer Paz nos dizer: que
sem o princípio da criação não brotam plantas, os animas não se reproduzem, a
humanidade não tem continuidade.
Em A língua do p, além do problema da repressão à sexualidade feminina, Clarice
inclui também um outro tema a ser visto: a violência masculina contra a mulher. Nesse
conto, uma jovem professora de inglês embarca num trem e percebe o olhar maldoso
de dois homens que, sentados à sua frente, planejam estuprá-la. A língua do p, uma
linguagem muito utilizada por crianças em brincadeiras e disfarces, é utilizada pelos
possíveis vilões, o que dá à narrativa certo ar de comicidade. Nesse texto, em especial,
Clarice busca todos os elementos que remetem para o campo erótico e também para a
natureza simbólica da linguagem. A começar pelo título do conto, A língua do p que,
embora seja a língua falada pelos dois vilões, remetem também a primeira letra do
órgão sexual masculino. Cidinha, a protagonista dessa história, possui virgindade e
beleza, o que funciona como um atrativo para os supostos marginais que desejam
atacá-la. No entanto, ela, como dominadora do código, pois também possui o desejo de
ser possuída, inventa uma possibilidade de escapar. Finge-se de prostituta, faz uns
trejeitos de moça vulgar, dá a ver seus atributos que, até então, estavam escondidos e
reverte o desejo em repugnância. Se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não
gostam de vagabunda. Então levantou a saia, fez trejeitos sensuais nem sabia que
sabia fazê-los, tão desconhecida ela era de si mesma abriu os botões do decote,
deixou os seios meio à mostra. Os homens de súbito espantados. (p. 69)
Observa-se, que o que incita, o desejo é o que esoculto, a partir do momento em
que se expõe uma vulgarização, ocorre a morte da libido. O que vai ao encontro
daquilo que orienta Foucault: se o sexo é reprimido o simples fato de falar dele, ou seja,
a abertura constitui-se uma transgressão. Remete, também, ao preceito de Barthes
sobre o gozo. Salienta o filósofo francês que a abertura o é erótica e, sim a
intermitência.
O lugar mais erótico de um corpo não é onde o vestuário se entreabre? Na
perversão (que é o regime do prazer textual) não há zonas erógenas
expressão aliás bastante importuna): é a intermitência como o disse muito bem
a psicanálise, que é erótica: a da pela que cintila entre duas peças (as calças e
a malha), entre duas bordas ( a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa
cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-
desaparecimento. (1996, p. 17)
Voltando à jovem do conto A língua do P, poderíamos defini-la como detentora desse
saber. Na abertura, no dar-se a vê, ela desorienta, quebra o mistério e escapa de servir
de objeto, poupa sua virgindade. Importante também lembrar do que salienta Bataille a
respeito da nudez. Para esse filósofo a nudez, para provocar erotização nos corpos,
tem de se apresentar ao sujeito como objeto sagrado, investida de seus símbolos. A
roupa é todo um teatro decorrente de seu contato com a pele, no qual o movimento
intermitente do esconde-esconde é tão imprescindível quanto à variedade. A textura e a
cor dos tecidos através dos quais os corpos se exibem, excitam. Assinala Bataille que a
nudez é conhecida de todos, mas é preciso perdê-la de vista se quisermos encontrá-la.
A linguagem clariceana, nesse conto, se constroi nesses moldes. Percebe-se que
algo de sutil na personagem, embora o texto venha para nós explícito, a escrita a que
se propõe é concebida como um esforço de ir além daquilo que a palavra pode
ordinariamente dizer. O leitor, nesse caso, é convocado a compreender a língua do p.
Vivemos num mundo patriarcal. Falar de condição feminina; falar de identidade
feminina, requer que se fale do oposto, do masculino. Nos contos "Ele me Bebeu" e
"Praça Mauá", Clarice coloca nestas histórias não só a queso erótica, mas se utiliza
dela para conduzir uma reflexão de quem é realmente este ser que é chamado mulher.
O que realmente é ser mulher? É vestir-se com roupas sensuais, maquiar-se com
perfeição, expressando uma beleza produzida? Ou é saber fritar um ovo? Ser mãe,
cuidar do lar?
As personagens desses dois contos se acham em um dado momento perdidas, pois no
momento citado levanta-se a questão: quem realmente sou? A pergunta é feita a partir
de uma tensão com um personagem do sexo oposto. Esses são colocados nas duas
estórias como indivíduos que possuem afinidades com as personagens, possuem
características (são homossexuais), mas ainda assim, são homens. São eles que a
confrontam, as reduzem a nada, a um ser sem identidade. E lhes mostram que são
mais que elas, embora sendo gays, são superiores; ainda são homens. Então a
queso gira sobre homem (dotado de uma identidade) X mulher (despossuída de tal
identidade). Importante esclarecer que a homossexualidade aquio está sendo posta
como oposição masculino/feminino, mas sim como uma espécie de crítica à submissão
feminina. Sobre essa questão vamos recorrer, novamente, à História da sexualidade
de Focault.
Foucault, em seu segundo livro sobre a sexualidade, comenta sobre o uso dos prazeres
na Grécia antiga. Segundo esse filósofo, o homossexualismo entre os gregos era
comum, pois não tinham instituições para impor as interdições sexuais. Assim,
possuiam toda uma técnica de atenção ao corpo um cuidado de si que infla nas
práticas sexuais. Os homens gregos escolhiam livremente entre ambos os sexos. O
homossexualismo era permitido pela lei e pela opinião, havendo grande tolerância na
sociedade em relação a essa escolha. Entre os gregos, a homossexualidade masculina
era vista como uma relação aberta, em que configurava também o amor. Sem uma
instituição que a estabelecesse, a regulação da conduta estava na própria relação. o
matrimônio era restrito ao espaço fechado, menos nobre. O casamento era honroso, a
temperança era a qualidade mais exigida. Praticava-se o isomorfismo nas relações
sexuais e nas relações sociais. A sociedade entendia o uso do corpo em razão do
status inferior da mulher e do escravo, Sendo assim, os jovens estavam acima deles.
Vale ressaltar que a passividade era mal vista no adulto, com formação moral e sexual.
Relacionar-se com os jovens do mesmo sexo era uma questão de poder. A
homossexualidade tinha o seu papel na pedagogia que significava a condução do
aprendiz pelo mestre, homem mais vivido e, portanto, sábio. Cedia-se em prol de uma
elaboração cultural. Os homens livres podiam se possuir, desde que regulados pelo
fator etário e econômico, que eram os guias para o comportamento. Criticavam-se os
jovens que se faziam objeto de prazer, numa entrega sem escolha, ou que se
prostituíam, sendo sustentados pelos seus amantes. Esses não podiam ter acesso a
cargos blicos. Havia um código de conduta para os rapazes. A conduta do jovem
deveria ser a de se esquivar da sedução e ceder a custo. Aos poucos, acontece o
deslocamento do problema dos rapazes para a mulher e do corpo para o desejo. A
côrte se transfere para a mulher, também inferior. Para elas as regras deveriam ser as
mesmas.
Assim, a submissão feminina esna gênese do poder, desde a Grécia antiga. Onde o
relacionamento homossexual entre os homens, era aceito. Restando às mulheres, o
confinamento e as relações impostas pelas normas sociais. Foucault esclarece que o
comportamento sexual feminino, seu uso dos prazeres é regulado desde os gregos
como questão moral. Esses, embora, fossem mais tolerantes do que os cristãos, eram
absolutamente restritivos, quanto à relação matrimonial, pela qual exercia poder sobre a
esposa, mantendo a estrutura hierárquica da família.
Analisemos, então a narrativa. Em Ele me Bebeu, a personagem deixa-se maquiar
pelo amigo homossexual. Sente-se mulher apenas após este a transformar, por meio
de batons, rouges (símbolo de feminilidade). Ele deposita essa sensação em seu ser,
agora sou eu. Pronta para sair, mostrar a cara (ou melhor dizendo,scara). É quando
es revestida desta sensualidade produzida que a personagem pensa que es
expressando para os outros quem é. A máscara para atuar no meio social (scara
que muitos, ou todos usam afinal). Sua sexualidade, feminilidade, seu ser (alguém
dependente de seu maquiador e de sua maquiagem ( objetos de transformação de um
indivíduo em ser ou nada). Conforme Paz (2001, p. 142)
Os povos sempre viram com uma mistura de fascínio e terror as
representações do corpo humano. Os primitivos acreditavam que as pinturas e
as esculturas eram duplicação mágica das pessoas reais. Em alguns lugares
remotos existem camponeses que não se deixam fotografar porque acreditam
que aquele que se apodera da imagem de seu corpo tamm se apodera de
sua alma não estão errados: um laço indissolúvel entre o que chamamos
alma e o que chamamos corpo.
Acreditamos que Lispector segue essa via, tenta mostrar que a mulher se deixou levar
por tais exigências sociais. Depositou nesta representação de feminino a sua
identidade: vestir sensualmente, comportar-se femininamente, andar adequadamente,
comer educadamente. Hábitos, maneiras e comportamentos ditam quem você é. Ser
mulher nada mais é do que representar os anseios, paradigmas impostos pela
sociedade. O conto, em um dado ponto, chega a um clímax: a personagem vê-se
roubada de sua identidade. Es despossuída de uma maquiagem adequada. A
máscara que lhe foi dada não lhe serve, pois a transformou em nada. Seu eu havia se
diluído; ela estava perdida. Melhor, não mais existia.
Como nos contos anteriores, a personagem pode resignar-se com sua situação ou
transcender. Pode superar o obstáculo, ou superar-se, pois aqui a superação está em
encontrar algo que perdera, ou que realmente nunca tivera: a si mesma. Resolve, então
agir em favor próprio. Decide que sim, ela pode fazer alguma coisa. Decide fazer
acontecer: onde não havia nada, agora havia um ser existente
Em "Praça Mauá" a situação posta em jogo é a dupla vida que a personagem possui.
Situação que leva a uma pergunta: a mulher pode ser dona-de-casa,e de família, e,
ao mesmo tempo, possuir erotismo, sensualidade, provocar e ter prazer, desejo? Essas
são questões exposta implicitamente. Colocando que, socialmente, estas duas
condições: mãe de família e mulher sensual são excludentes. Cabe à mulher ser uma
coisa ou outra. Contudo, ainda será um ser incompleto.
Clarice exe a inabilidade da personagem principal Luisa-Carla (dois nomes, uma só
pessoa - e quando se é uma, não pode ser outra) em ser uma dona-de-casa e a
habilidade em ser mulher-amante-sensual-desejada. Se ela era uma dona-de-casa
preguiçosa, não cuidava da casa, o tinha filhos (não era uma mulher de família, uma
mulher completa). No entanto, sabia muito bem como usar sua sexualidade e seu
conhecimento sobre ela.
Lispector apresenta, novamente aqui, o problema da identidade feminina. Carla, a
prostituta insatisfeita com o casamento, busca o prazer no cabaré, tenta exercer sua
sexualidade fora da relação matrimonial. No entanto, até nesse lugar, encontra a
cobrança, o preconceito, a punição. Pois, segundo a norma, não basta fornicar, mulher
de verdade tem que saber lidar com as tarefas de casa. Como se vê, o sentimento de
culpa a acompanha. Pois mesmo no papel de mulher liberal, não consegue resolução:
nem como Carla, nem como Lza.
Pode-se compreender com Soares (1999, p. 107) quando diz: numa sociedade que
tem, como um dos pilares, a dessexualização da mulher, com a exigência da castidade
e o ataque aos comportamentos considerados imorais é perfeitamente inteligível que a
carne e o espírito não se conciliem.
Paz (2001) esclarece que o erotismo o é mera sexualidade animal - é cerimônia,
representão. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o
agente que move o ato erótico e o poético.
Carla era um ser erótico e sabia utilizar esse erotismo muito bem. Sabia como agradar
aos homens ( era dançarina de uma boate), sabia aguçar seus desejos e satisfazer
suas fantasias. No entanto, não era, exatamente, isso que buscava.
É um travesti que aponta a falha de Carla. Este, em contra ponto a ela, tinha uma filha e
em um momento de fúria lhe diz uma "verdade": era mais mulher que Luisa-Carla, pois
sabia fritar um ovo e ela não. Ou seja, possuía o que "existia de mais feminino": as
prendas do lar e, o fundamental, havia gerado uma outra vida. Esse feito, nem Carla
nem Luíza tinha desfrutado. A personagem, então, concorda com seu opositor: não era
mulher. Não sabia realmente fritar um ovo. O ovo como metáfora da vida, é uma
simbologia muito utilizada por Clarice
17
. É o que gera, é a origem. Portanto, Carla é
17
Presente no conto O ovo e a galinha.
desprovida. Era uma miserável, ainda que pudesse ter o homem que quisesse, usar da
mais ousada fantasia e conseguir satisfazer os desejos sexuais dos homens e os seus,
ainda assim, não era mulher. Mas afinal, o que é ser mulher? A habilidade que possuía
como ser erótico a anulava enquanto ser, pois possuía a inabilidade enquanto dona-de-
casa, mãe de família. Era um ser incompleto. Sobre esse aspecto, é importante citar o
que afirma Paz (2001, p. 128), de acordo com esse pensador
Cada minuto é o punhal de separação - como confiar nossa vida ao punhal que
nos degola? O remédio está encontrar um bálsamo que cicatrize para sempre
essa contínua ferida que nos afligem as horas e os minutos. Desde que surgiu
sobre a terra - ou porque foi expulso do Paraíso ou porque é um momento de
evolução universal da vida - o homem é um ser incompleto. Nasce e logo foge
de si mesmo. Aonde vai? Anda em busca de si próprio e se persegue sem
cessar. Nunca é ele e sim o que quer ser, o que se busca.; e ao se alcançar, ou
acreditar que se alcançou, desprende-se novamente de si, desaloja-se, e
prossegue sua perseguição.
Após a repreensão Carla desiste do papel que estava exercendo, o de prostituta, em
toda a sua amplitude, com toda carga que a palavra carrega.
Tinha sido atingida na sua feminilidade mais íntima. [...] Carla não disse uma
palavra. Ergueu-se, esmagou o cigarro no cinzeiro e, sem explicar a ninguém,
largando a festa no seu auge foi embora. Ficou de pé, de preto, na praça Mauá,
às três horas da madrugada. Como a mais vagabunda das prostitutas. Solitária.
Sem remédio. Era verdade: não sabia fritar um ovo. E Celsinho era mais mulher
que ela. A praça estava às escuras. E Luíza respirou profundamente. Olhava os
postes. A praça vazia. E no céu as estrelas. (1998c, p.64)
Assim, Clarice parece querer nos mostrar que o desejo feminino não passa somente
pela questão da liberdade sexual. Suas personagens não procuram, apenas a
satisfação da carne, a materialização do desejo e sim, buscam uma experiência do
espírito que é o caminho da plenitude. Daí o retorno à carência, à incessante busca, à
consciência do impossível, ou à consciência da morte, como lugar da superação de
descontinuidade. Sua arte literária trazem à tona uma dor existencial, secreta,
dilacerante, às vezes carregada, também, de ironia. Outras vezes brinda-nos com
toque de humor. Na verdade sua literatura revela uma intensa paixão pela vida.
8 ANÁLISE FINAL
Chegando à conclusão, embora que a meio caminho, temos a sensação que a escrita
de Clarice Lispector nos conduzirá a muito mais além. O dever, aqui, apresenta-se não,
por assim dizer inconcluso, mas instigado pelo saber mais. Pois ler Lispector é um
exercício de provocação que conduz para o além mais. Tentar desvendar o mistério
que ronda as entrelinhas clariceanas é algo para experiência do impossível. Por isso,
fica a sensação do vago, do impreciso, no momento em que temos de botar um ponto
final. Assim, à maneira como iniciamos: arriscando-se à perda do essencial, ousamos
traçar um balanço do que significou nossa penetração no universo literário da escritora.
Podemos dizer que o olhar lançado em direção à temática erótica nas obras que
elegemos como corpus dessa pesquisa foram tomando contornos indefinidos, mas que
resultam na constatação de que o projeto literário da escritora é produzido pela
consciência erótica da representão. Clarice toma a arte literária como experiência
transgressora, a experiência estética como saída contestatória, opondo-se ao fazer
artístico como mera reprodução dos mecanismos representativos. Sua obra vai
brotando no momento mesmo de luta pela criação. Pode-se afirmar que a escritora fez
da sua atividade literária um ato revolucionário, uma verdadeira cruzada em dirão ao
conhecimento da essência humana. Essa força propulsora poderia advir da energia
da embriaguês de Dionísio, o deus da festa, da transgressão religiosa, o deus do
êxtase, do excesso, da supressão do limite, da loucura que recusa a lei, a regra da
razão.
Chega-se à constatação de que criar para Clarice é transgredir, é uma possibilidade e
meio de ruptura com o estabelecido (na verdade exigente necessidade advinda da
consciência dramática da insuficiência da linguagem em comunicar a experiência
humana). O que Clarice revela, ao longo das quatro obras aqui analisadas, é o jorro de
uma energia que brota de uma experiência de escrita nascida de puro desejo e
inquietação: núcleo de uma vontade de potência que transforma a estética do
movimento em pura intensidade, metáfora do desejo que, nos intertíscios do texto, se
transforma em experiência erótica. Linhas de fuga, a escrita de Clarice torna-se um
lugar de transgressão, a nosso ver, inspiradas nos conceitos de apolíneo e dionisíaco,
que Nietzsche liga à individuação e à unidade originária. No entanto, em sua obra, a
transgressão nada tem a ver com a liberdade primeira da vida animal. Ela dá acesso ao
além dos limites, preservando, no entanto, esses limites que, bem no pensamento de
Bataille é o mundo descontínuo dos interditos, das proibições que pensa a partir da
consciência ou o medo da morte, como a essência ou o fundamento do ser humano.
Segundo Bataille (apud, Machado 2000, p. 59),
É transgredindo os limites necesrios a sua conservão como ser finito
conservação que tem o fim negativo de evitar a morte que o homem se
afirma, querendo ir o mais longe possível, aumentando sua intensidade, o único
valor positivo, para além do bem e do mal.
Clarice segue, assim, esse percurso num jogo entre o limite e a transgressão, sem a
pretensão de romper com normas, mas apenas de pensar. Opera, assim, com a
consciência da limitação da condição humana. É o que afirma através do narrador de
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres:
O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha como
a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às
coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez. Mas de vez em quando
vinha a inquietação insuportável: queria entender o bastante para pelo menos
ter mais consciência daquilo que ela não entendia. Embora no fundo não
quisesse compreender. Sabia que aquilo era impossível e todas as vezes que
pensara que se compreendera era por ter compreendido errado. Compreender
era sempre um erro preferia a largueza tão ampla e livre e sem erros que era
o-entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em plena
condição humana. (1998, p.44)
Poderíamos falar em relão à experiência literária de Clarice, como experiência
metafísica da carne, pois sua escrita parte do sentimento de insuficiência face à
abundância, que compõe a estrutura paradoxal do desejo. Esse paradoxo orienta sua
escrita. Uma escrita fluida, sem ponto de chegada, sem árvores nem raízes, como ela
declara em Água viva.
Como se arrancasse das profundezas da terra as nodozas raízes de árvore
decomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos
tentáculos como volumosos corpos nus de mulheres envolvidas em serpentes e
em carnais desejos de realização, e tudo isso é uma prece de missa negra, e
um pedido rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e
precisa da anuência de Deus: eis a criação. (1980, p. 20)
Mais uma vez, confirma-se a escrita de Lispector como uma escrita sem fronteiras que
recusa a lei, a regra da razão e que, necessitando da anuência de Deus, como fala a
personagem, excede sem destruir o aspecto sagrado do erotismo. Em Clarice podemos
compreender a vigência de Eros não como um Deus onipotente, mas como uma força
misteriosa, que tensiona excesso e falta, vida e morte.
Segundo Bataille o sentido fundamental do erotismo é religioso. O erotismo religioso é
uma afirmação integral da vida, que se liga essencialmente à morte, é também, de um
modo ambíguo, um fundamento do ser. O caráter religioso do erotismo perdeu-se com
o advento do cristianismo, que o desvinculou do caráter sagrado, ligando-o ao pecado.
Perdendo seu caráter com o sagrado, com o cristianismo, o erotismo tornou-se
imundo, a imundície que era preciso condenar e da qual era preciso libertar o mundo.
(in: Machado, 2000, p. 62)
Podemos dizer que as personagens femininas encontradas nas obras que analisamos
organizam um discurso marcado pelo desejo de libertação. Sinal evidenciado desde a
A paixão segundo GH. No entanto, é a partir de Laços de família (1960) que a proposta
aparece mais tida, clarificando-se ainda mais com Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres (1964). Água viva, por sua vez, representa o ápice de uma investigação
ontológico-literária, como bem definiu Lucchesi (1987, p. 24) Segundo o autor as
personagens clariceanas são:
[...] inúmeros desdobramentos de um único eu. Trata-se de uma
individualidade que, ao longo da obra progressivamente se desprende da
relação com o exterior, por nele constatar o esvaziamento de significão, para
perceber que a verdade desejada repousa nos labirintos do próprio Ser. Esta
mudança de rumo se introduz na obra A paixão segundo GH, ratifica-se em
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e define-se integralmente em Água
viva, real início da experiência vertical radicalizada.
Por sua vez, Benedito Nunes, no tão visitado livro O drama da linguagem (1995) , obra
que preferimos consultar ao final da pesquisa, uma vez que nela o autor esclarece
quase tudo a respeito da escritora, também confirma nossa abordagem. Esclarece o
autor que o processo de criação da escritora segue uma linha de continuidade temática
desde o primeiro romance: Perto do coração selvagem até O livro dos prazeres,
acentuando, ainda mais, a temática nas coletâneas de contos.
Autoconhecimento e expressão, existência e liberdade, contemplação e ação,
linguagem e realidade, o eu e o mundo, conhecimento das coisas e relações
intersubjetivas, humanidade e animalidade, tais o os pontos de referência do
horizonte de pensamento que se descortina na ficção de Clarice Lispector,
como a dianóia intrínseca de uma obra na qual é relevante a presença de um
intuito cognoscitivo, espécie de eros filofico que a anima. (p.101, com
grifos do autor)
Por nossa vez, podemos dizer que a verdade de Eros, enquanto força insatisfeita e
inquieta, ultrapassa o que pode explicar, instaura-se sempre, justamente por sua
configuração paradoxal, um sentido que ultrapassa os domínios da lógica. O erotismo,
ao se constituir uma força sempre insatisfeita e inquieta, permanece do início ao fim,
como núcleo problematizador da sondagem existencial das personagens femininas
clariceanas. Em nossa leitura, tomando como ponto de partida Laços de família até A
via crucis do corpo, visualizamos um encadeamento do processo de busca de
afirmação de identidade das mulheres, em que o erotismo e a sexualidade são os
elementos deflagradores da crise. Nos contos de Laços de família observamos que as
mulheres, num momento de lucidez, questionam sua própria condição, no entanto,
passado esse momento elas se voltam para o cotidiano. Em Uma aprendizagem é
possível falarmos em um aprofundamento da questão feminina, Loreley, repensando
sua condição de manca, assume definitivamente sua falta e avança em direção à
verdade. Nesse aspecto, também Nunes (op. cit, p. 81) compartilha conosco ao afirmar
que: enquanto A paixão segundo GH foi uma desaprendizagem das coisas humanas,
esse livro, O livro dos prazeres, é, sem abstrair as verdades trágicas daquela
experiência, uma recuperação corajosa do sentido da existência individual.
De nossa parte, ousamos afirmar que é a questão erótica que permite a travessia da
protagonista desse romance para o outro lado da margem, utilizando a linguagem de
Rosa. Há, nesse livro, um processo de tomada de consciência da personagem, que
consegue, finalmente, perceber-se e elevar-se perante o outro, o masculino.
Já Água viva é, na nossa percepção, um renascimento, um passo definitivo em direção
à identidade individual. A mulher ali, toma um posicionamento radical em relação às
obras anteriores. Sobre o qual encontramos confirmação em Lucchesi (op, cit., p. 25)
É AV a grande metáfora do re-nascer. [...] há uma proposta de procura de
identidade, da verdade encoberta. Vale dizer que tal empreendimento decorre
de uma descrença absoluta da realidade circundante. É como se o eu-narrador
tivesse esgotado ao longo da obra, todos os possíveis mecanismos de
apreensão do mundo, e agora apenas restasse seu único mundo interior. Pode-
se afirmar que a partir de AV, o eu narrador, consciente da extrema e trágica
fragmentação da vida, se vê intimado a mergulhar na própria individualidade,
como única forma de resistência à destruição. É bom lembrar que toda a obra
de Clarice Lispector reflete um esforço de resgatar a identidade roubada por
situações concretas não superadas. (grifo do autor)
Esse esforço em resgatar a identidade roubada que afirma Lucchesi é visto com maior
amplitude na obra A via crucis do corpo, publicada em 1974, em que se presencia uma
exacerbação do erotismo, um verdadeiro manifesto das personagens femininas
contra o sistema patriarcal, num esforço intenso de afirmação de suas identidades. Na
Via crucis es o corpo, potencializando o desejo carnal, materializando o desejo. Nos
contos dessa coletânea a sexualidade é levada ao extremo, o desejo feminino
transparece através de um erotismo denso e fundamentalmente carnal. É mais
precisamente nessa obra que Clarice problematiza a questão ideológica, que limita a
mulher a determinadas funções sociais (a virgem que renega seu desejo e espera o
casamento, a mulher de idade avançada que tem de esconder seu desejo). Desse
modo a sexualidade e o desejo feminino podem ser entendidos como questionamento
do sistema dominante, que serve de controle social sobre a sexualidade e o corpo
feminino. É o que se entende pelo que a autora escreve na abertura da coletânea, no
primeiro texto intitulado: Explicação: todas as hisrias desse livro são contundentes.
E quem mais sofreu fui eu mesma. Fiquei chocada com a realidade. Se há indecências
nas histórias a culpa não é minha. Inútil dizer que não aconteceram comigo, com minha
família e com meus amigos. (1998c, p. 11)
É por essa razão que afirmamos estar essa obra adiante das demais, no que diz
respeito ao processo de busca de afirmação feminina. Clarice reafirma nesses textos o
que antes vem sendo tratado, o problema da identidade feminina, porém agora mais
claramente, apesar de todos os desvios: quero apenas avisar que não escrevo por
dinheiro apenas por impulso. Vão me jogar pedras, pouca importa. Não sou de
brincadeiras, sou mulher séria. Além do mais tratava-se de um desafio. (p.11)
Por esse dados, vê-se a confirmação de que é A paixão emancipatória, termo utilizado
por Angélica Soares para intitular seu livro, que move as personagens clariceanas.
Suas protagonistas, freqüentemente, encontram-se num processo de busca de auto-
realização pessoal e sexual e da definição de um sentido de identidade.
Dessa forma, vemos ocorrer em sua escrita um itinerário de busca de afirmação tal
qual comenta Lúcia Helena em seu livro Nem musa, nem medusa (1997, p. 41) ) onde
afirma que na obra da escritora, umas complementam a outras. Se em Laços de
família temos homens e mulheres de classe média, dominantemente presentes na obra
da autora, em A via crucis do corpo focalizam-se homossexuais e prostitutas que
trafegam nos cabarés da Praça Mauá, constituindo a galeria de marginalizados pela
ordem instituída.
De nossa parte, percebemos que o desejo sexual nas obras da escritora vai tomando
corpo, partindo do reduto doméstico, do interior da família, para a praça, do privado
para o público, da dimensão espiritual para o domínio carnal. É o que se pode entender
por essa fala de Ulisses, na verdade alter-ego da escritora, ao final do romance Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres (1998c, p. 148). A verdade, Lóri, é que no fundo
andei toda a minha vida em busca da embriaguês da santidade. Nunca havia pensado
que o que eu iria atingir era a santidade do corpo.
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