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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
TESE DE DOUTORADO
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
Ronaldo Laurentino de Sales Júnior.
Tese elaborada por Ronaldo
Sales, sob orientação da Profª
Drª Silke Weber e apresentada
ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de
Pernambuco para obtenção do
grau de Doutor em Sociologia.
Banca Examinadora:
Prof. Dra. Silke Weber (Orientadora) – PPGS/UFPE
Profa. Dra. Cynthia Hamlin (Co-orientadora) – PPGS/UFPE
Profa. Dra. Eliane Veras – PPGS/UFPE
Profa. Dr. Joanildo Burity – PPGS/UFPE
Profa. Dra. Ana Tereza Lemos-Nelson - UFRN
Profa. Dr. Antônio Sérgio Guimarães - USP
Recife, 24 de fevereiro de 2006.
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ii
Sales Júnior, Ronaldo Laurentino de
Raça e justiça : o mito da democracia racial e o
racismo institucional no fluxo de justiça / Ronaldo
Laurentino de Sales Júnior. – Recife : O Autor, 2006.
viii, 466 folhas : il., fig., tab., gráf.
Tese (doutorado) – Universidade Federal de
Pernambuco. CFCH. Sociologia, 2006.
Inclui bibliografia e anexos.
1. Sociologia – Movimentos sociais – Sociologia
política. 2. Racismo – Relações raciais – Aspectos
histórico, político e jurídico. 3. Democracia racial –
Legislação – Crime e injúria racial. 4. Sistema jurídico
– Fluxo de justiça. I. Título.
316.482.5 CDU (2.ed.) UFPE
305.8 CDD (22.ed.) BC2006-283
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iii
iv
Aos meus pais – Ronaldo e Euda e aos meus filhos – João e Rafael ...
v
Agradecimentos
Pelas alegrias, tristezas e crescimento que constituem o meu percurso de pesquisa e de vida,
gostaria de agradecer:
De todo o meu coração:
Ao Movimento Negro, em especial, a Djumbay e ao Observatório Negro, pelas inestimáveis
contribuições políticas e intelectuais que inspiraram este trabalho, na formulação dos problemas e
na indicação das soluções. Saudações quilombolas de um companheiro de luta!
Pela inestimável dívida intelectual e humana:
À profa. Silke Weber, minha orientadora. Por sua competente orientação, serena e inspiradora.
Com ela tenho um inestimável “débito” intelectual.
À profa. Cynthia Hamlin, minha co-orientadora. Por sua paciência com minha pressa, passando
das premissas às conclusões sem explicações; com minha escrita, freqüentemente confusa; com
minhas questões, muitas vezes distantes das suas. Por ter acreditado, onde outros poderiam ter
duvidado, acreditando num possível, mas incerto amadurecimento intelectual.
À profa. Judith Hoffnagel, ex-orientadora. Sua co-orientação foi fundamental para conseguir
terminar minha dissertação de mestrado. Nossas primeiras conversas, meus primeiros trabalhos
sobre as teorias lingüísticas e do discurso, ainda na disciplina de Antropologia lingüística,
continuam a me inspirar. De nossas conversas surgiram as primeiras idéias para atacar os problemas
que o movimento negro me colocava. Posso afirmar que as teses deste trabalho germinaram da fértil
interlocução e orientação da profa. Hoffnagel.
A profa. Ana Tereza Lemos-Nelson, por sua inspiração, interlocução, cuidado, carinho, apoio, no
início da minha empreitada no doutorado.
À profa. Eliane Vera, ex-supervisora de estágio, que assumiu o desafio de trabalhar as questões
acerca das relações raciais e de sua importância para o pensamento social brasileiro, numa
disciplina de graduação (Sociedade Brasileira Contemporânea), dando-me a honra de trabalhar em
conjunto com ela nesse projeto inovador e desafiador. Certamente, aprendi muito mais do que
contribui. Esta experiência se demonstrou de suma importância para o desenvolvimento que ganhou
a tese.
A Fábio Luiz dos Santos, colega do curso de Ciências Sociais, amigo leal que, com sua extrema
generosidade, muito contribuiu para realização da pesquisa de campo, facilitando meu acesso ao
Sistema de Justiça, com seus meandros processuais e institucionais.
Aos Excelentíssimos Promotores de Justiça do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) Westei
Conde e Bernadete Azevedo, por seu apoio e orientação para acessar as informações na pesquisa de
campo.
A Carlos (Chefe de Secretaria da 13ª Vara Criminal da Capital), a Adriano Márcio de Oliveira
(Chefe da Secretaria da Central de Inquéritos do MPPE), a Ednaldo César Augusto (Depart. de
Desenvolvimento de Sistemas do MPPE), a Eurico (do Arquivo Geral de Justiça), pela contribuição
importante que todos deram para minha tese, não apenas por disponibilizarem os dados para o
Projeto, porém, compreendendo a sua importância, esclarecendo e facilitando o acesso a outros
dados, quando outros burocratas públicos se perdem na má-vontade e no formalismo estéril.
Aos professores do PPGS, que muito contribuíram com minha formação: Terry Mulhal, Joanildo
Burity, Remo Mutzenberg, José Carlos Wanderley, Salete Cavalcanti, Heraldo Souto Maior, Breno
Souto Maior, Eliane da Fonte, Paulo Henrique Martins.
A CAPES, pelas bolsas de graduação, mestrado e doutorado que possibilitaram meu
desenvolvimento acadêmico.
vi
RESUMO
Nosso objetivo é mostrar como o Mito da Democracia Racial interfere nas decisões tomadas no
sistema jurídico. O “Mito da Democracia Racial” é considerado um dispositivo ideológico de
reprodução das relações raciais, impedindo sua tematização pública. Efetiva-se através de duas formas
de discurso: o desconhecimento ideológico das relações raciais e o não-dito racista. O “Mito da
Democracia Racial” instaurou-se pelo deslocamento do discurso racial (racista ou não) do âmbito do
discurso “sério” (argumentativo, racional, formal e público), constituindo o que estamos chamando
aqui de desconhecimento ideológico. O desconhecimento não é “ausência” de conhecimento,
ignorância passiva, mas, demarcadas as questões relevantes, marginaliza saberes tidos como irrelevantes,
falsos problemas, sem-sentidos. O discurso racial, então, entrincheirou-se no discurso “vulgar”
(aforismático, passional, informal e privado), através da forma do não-dito racista que se consolidou,
intimamente ligado às relações “cordiais”, paternalistas e patrimonialistas de poder, como um pacto de
silêncio entre dominados e dominadores. O não-dito é uma técnica de dizer alguma coisa sem, contudo,
aceitar a responsabilidade de tê-la dito, resultando daí a utilização pelo discurso racista de uma diversidade de
recursos tais como implícitos, denegações, discursos oblíquos, figuras de linguagem, trocadilhos,
chistes, frases feitas, provérbios, piadas e injúria racial.
Palavras-Chaves: Mito da Democracia Racial, relações raciais, racismo, teoria do discurso, sistema
jurídico.
ABSTRACT
Our aim is to show how the Myth of Racial Democracy interferes with decisions made at the level of
the legal system. The “Myth of Racial Democracy” is considered as an ideological device for
reproducing racial relations by hindering its public discussion. Its actualization is based on two forms of
discourse: the ideological unrecognizing of racial relations and the racist “unsaid”. The “Myth of Racial
Democracy” was established by the displacement of racial discourse (racist or not) from the domain of
“serious discourse” (argumentative, rational, formal and public), thus constituting what we call here
ideological unrecognizing. Such non-recognition does not mean an “absence” of knowledge or passive
ignorance, but the marginalization of those types of knowledge considered as irrelevant, as false
problems, as non-sensical, via the establishment of what constitutes the relevant issues. Racial discourse
has been concealed by everyday discourse (aforismatic, passional, informal and private) with the
consolidation of the racist “unsaid”, itself, closely linked to “cordial”, paternalistic and patrimonialistic
power relations: a silence pact between dominators and the dominated. The unsaid is but a technique of
saying something without having to accept the responsibility of having said it. Therefore, racist discourse makes use
of a plethora of resources such as the implicit, oblique speech, figures of speech, puns, witticisms,
commonplace sentences, proverbs, jokes and racial insults.
Key Words: Mith of Racial Democracy, racial relations, racisme, discourse theory, legal sistem.
RÉSUMÉ
Ce travail veut démontrer la façon par laquelle le « mythe de la démocratie raciale » intervient aux
décisions prises dans le cadre du système juridique. Le « mythe de la démocratie raciale » est envisagé
comme un dispositif idéologique de reproduction des relations raciales, ce qui empêche sa discussion
dans la sphère publique. Ce mythe s’accomplit par le biais de deux formes de discours : la
méconnaissance idéologique des relations raciales et le « non-dit » raciste. Le « mythe de la démocratie
raciale » s’est établit à partir du changement du discours raciale (raciste ou non raciste), du discours
« sérieux » (argumentateur, rational, formel et publique) à la constitution de ce qu’on appelle ici de
« méconnaissance idéologique ». La méconnaissance n’étant pas envisagé comme l’absence de
connaissance, l’ignorance passive, mais comme la marginalisation des savoirs considérés comme
insignifiants, des faux problèmes et dépourvus de sens. Le discours racial s’est alors barricadé dans le
domaine du discours « vulgaire », c'est-à-dire aphoristique, passionnel, informel et privé, sous la forme
du « non-dit » raciste. Celui-ci s’est établit comme un pacte de silence entre dominés e dominateurs,
étroitement lié aux relations « cordiales », paternalistes et patrimoniales du pouvoir. Le « non-dit » est
vii
une technique de dire quelque chose sans assumer la responsabilité de l’avoir dit, ce qui permet au discours
raciste de s’utiliser d’une myriade de ressources telles que des sous entendus, des dénégations, des
discours obliques, des contrepèteries, des jeux de mots, des plaisanteries, des phrases faites, des
proverbes, des blagues et des injuries raciales.
Mots-clefs: mythe de la démocratie raciale, relations raciales, racisme, théorie du discours, système
juridique.
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – RAÇA E JUSTIÇA: contribuições a uma teoria racial crítica
CAPÍTULO 1 - DIREITO E RELAÇÕES RACIAIS........................................................01
1.1
Relações Raciais: O Racismo e suas Formas...................................11
1.2 Desenvolvimento da Tese....................................................................23
CAPÍTULO 2 – R
EFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS................................................29
2.1. Laclau e Foucault: desconstrução e genealogia.........................................29
2.1.1 Foucault, discurso, poder e sujeito..............................................................31
2.1.2 Laclau, discurso, hegemonia e antagonismo social....................................38
2.1.3 Laclau com Foucault.....................................................................................45
2.2. Raça e Direito: discurso e identidade.........................................................50
2.3 O Discurso Jurídico e o Mito da Democracia Racial.................................57
2.4 Indecidibilidade, Decisão Judicial e Hegemonia........................................66
PARTE 1: O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL:
Cultura, Política e Subjetividade nas relações raciais.
CAPÍTULO 3 GENEALOGIA DAS RELAÇÕES RACIAIS:
DIÁSPORA NEGRA E MODERNIDADE NO BRASIL.......................................................99
3.1. Emancipação, justiça e antagonismo social no século XIX....................102
3.2. Literatura, Ciência, Política e Relações Raciais no século XIX.............116
3.2 A Abolição da Escravidão... E depois?.......................................................140
C
APÍTULO 4 GENEALOGIA DAS RELAÇÕES RACIAIS:
O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA RACIAL”......................................................................147
4.1 Relações Raciais na República Velha: a Revolta da Chibata e a Imprensa
Negra
....................................................................................................147
4.2 Revolução de 30 e Estado Novo: identidade nacional e “democracia
racial”
............................................................................................................157
4.2.1 Cordialidade e Estigmatização.....................................................................164
4.2.2 “Democracia Racial”, Cultura e Hegemonia..............................................172
4.3 As décadas de 40 e 50 do Século XX: da “Cultura” à “Classe”..............176
4.3.1 O Teatro Experimental do Negro...........................................................176
4.3.2 O Projeto UNESCO.......................................................................................178
4.4 A “democracia racial” na década de 60: classe, desenvolvimento e
autoritarismo
.................................................................................................184
4.5 Anos 70:
movimentos negros, novos movimentos sociais e democratização....187
ix
4.6 Nova República, velhos mitos... e a Nova Abolição? – Legislação Anti-
racista......................................................................................................................
190
4.7 O movimento anti-racista e a judicialização das relações raciais...........199
C
APÍTULO 5 PARA ALÉM DE BRANCO E PRETO: O (DES)CONHECIMENTO IDEOLÓGICO DAS
RELAÇÕES RACIAIS
.........................................................................................................205
5.1 (Des)conhecimento ideológico e relações raciais......................................205
5.2 Legislação Anti-racista...............................................................................230
C
APÍTULO 6 PSICOPATOLOGIAS DAS RELAÇÕES RACIAIS COTIDIANAS NO BRASIL: O NÃO-
DITO.................................................................................................................................250
6.1 O insulto racial............................................................................................254
6.2 O discurso espirituoso: piadas, provérbios e trocadilhos........................259
6.3 Figuras de linguagem e denegações...........................................................265
6.4 Silêncio e fetichismo lingüístico..............................................................268
6.5 Tipologias da discriminação racial.........................................................278
6.6 Consciência Negra: discurso racial e movimentos sociais negros...........283
C
APÍTULO 7 AS METAMORFOSES DO SUJEITO: DO NÃO-DITO RACISTA AO RACISMO INDIZÍVEL...288
7.1 Elaboração inconsciente: do interdito ao não-dito...................................292
7.2 Racionalização: do não-dito ao não-intencional.......................................298
7.3 O discurso “sério”: do não-intencional ao inefável..................................304
7.4 Semântica como sintomática: do inefável ao inegável.............................313
PARTE 2:O RACISMO INSTITUCIONAL:
O Fluxo dos Casos de Racismo no Sistema Jurídico na Região Metropolitana de Recife
CAPÍTULO 8 A TRAJETÓRIA DOS CASOS NO SISTEMA JURÍDICO: JOGO DE LINGUAGEM NO
PROCESSO PENAL
............................................................................................................322
8.1 O Sistema Jurídico na Região Metropolitana de Recife:
levantamento de
dados........................................................................................................................322
8.2 As ocorrências de discriminação racial.....................................................331
8.3 A movimentação dos casos de discriminação racial no sistema
jurídico...............................................................................................................334
8.3.1 Registro de ocorrência................................................................................334
8.3.2 O inquérito policial.....................................................................................337
8.3.3 A denúncia do MP ou a queixa-crime.......................................................340
8.3.4 O processo penal..........................................................................................343
a) o acusado.............................................................................................343
b) a vítima...............................................................................................348
c) as testemunhas....................................................................................351
8.3.5 A sentença judicial......................................................................................352
x
8.4 O sistema jurídico e a distribuição dos casos............................................354
CAPÍTULO
9 O DISCURSO JURÍDICO........................................................................................364
9.1 Gênese estática do direito: do não-dito ao inaudito.................................364
9.2 Das trajetórias aos sentidos........................................................................370
9.3 Argumentação e narrativas........................................................................373
9.4 A narrativização das trajetórias................................................................377
9.5 Trajetórias e narrativas..............................................................................386
9.5.1 Trajetórias β e ε (Não produz inquérito)..................................................387
9.5.2 Trajetória η (Decadência)..........................................................................390
9.5.3 Trajetória θ (Absolvição de processo de Injúria Racial, perdão da
vítima, ou suspensão condicional do processo)..........................................396
9.5.4 Trajetória μ (Condenação por Injúria Racial).......................................415
9.5.5 Trajetória ρ (Arquivamento de inquérito de Crime de Racismo).........419
9.5.6 Trajetória τ (Absolvição em caso de Crime de Racismo)........................421
9.5.7 Trajetória ω (Condenação por Crime de Racismo).................................423
9.6 Considerações Finais, Possibilidades Estratégicas...................................443
ANEXOS
..........................................................................................................................................464
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
1
INTRODUÇÃO:
RAÇA E JUSTIÇA
contribuições a uma teoria racial crítica
CAPÍTULO 1
DIREITO E RELAÇÕES RACIAIS
(...) o vínculo físico é ínfimo e a insígnia da cor é relativamente sem
importância, a não ser como insígnia; a verdadeira essência desse
parentesco é sua herança social de escravidão, de discriminação e de
insulto; (...).
W.E.B. Du Bois.
Nas últimas duas décadas, após o período de abertura política e democratização
do Estado, têm sido significativas as conquistas dos movimentos sociais negros, no
Brasil, na busca por reverter, para melhor, a situação da população negra brasileira.
Essas conquistas convergiram para as propostas e ações no plano das políticas públicas
afirmativas que têm se tornado importante elemento de visibilização e enfrentamento do
racismo
1
em uma de suas dimensões que é a desigualdade racial
2
. Mesmo com todos
esses avanços no plano das políticas públicas, a ação judicial ainda se constitui no
principal instrumento de objetivação e enfrentamento do racismo em sua dimensão mais
direta e visível, a discriminação racial
3
, levando-a a se confundir, no senso comum, com
a própria idéia de racismo como um todo.
Todavia, pode-se enumerar rapidamente, primeiro, o número alto de ações
impetradas por crime de discriminação racial, e, segundo, o número reduzido de
sentenças favoráveis às “pretensas” vítimas de racismo (situação que contrasta com os
elevados índices de condenação de pessoas negras em processos penais). Sem uma
1
O racismo é definido como um sistema de dominação social baseado nas relações raciais, efetivando-se
nas formas do preconceito, da discriminação e da desigualdade raciais.
2
A desigualdade racial é uma das dimensões do racismo (desigualdade, discriminação e preconceito
raciais) que se caracteriza pela distribuição desigual de bens/produtos sociais conforme a identidade racial
da população.
3
A discriminação racial é ato omissivo ou comissivo que tem por objetivo ou efeito produzir desvantagens
para um grupo social devido à sua raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica. Dito de outra
forma, a discriminação é o desempenho social de relações raciais racistas. Por seu turno, o preconceito
racial, mais do que um conjunto de crenças e valores, define-se uma competência social para participar de
relações raciais racistas, ou seja, define uma “gramática” racista das relações raciais.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
2
compreensão prévia do funcionamento do discurso jurídico, de sua ideologia legalista e
de sua inserção nas relações raciais concretas, compreensão que oriente uma ação eficaz,
este quadro dificilmente será revertido positivamente.
Nossa tese é de que os diversos aparelhos jurídicos, no transcorrer da história das
relações raciais no Brasil, funcionaram e funcionam, ora como instrumentos de
exploração, ora, de dominação, ora, de sujeição, mas, também, de emancipação racial.
Na história das relações raciais no Brasil, pode-se encontrar aqueles três tipos de
relações de poder, isoladas ou misturadas umas às outras: relações de exploração que
separam os indivíduos daquilo que eles produzem; relações de dominação que coagem,
controlando o que os indivíduos fazem; relações de sujeição, formas de subjetivação e
submissão que ligam os indivíduos a si mesmos e os submete, assim, aos outros
4
. Os
aparelhos jurídicos nunca foram historicamente neutros com respeito às identidades
raciais; tiveram como função assegurar a subjugação da população negra pela branca,
mesmo quando o discurso jurídico não era explícito.
Assim, até 1830, quando foi sancionado o Código Criminal do Império do Brasil,
o país esteve sob a vigência das ordenações do Reino: Ordenações Alfonsinas (1446-
1521), Ordenações Manuelinas (1521-1603) e Ordenações Filipinas (1603-1830).
Uma multiplicidade de leis garantia parte do aparato de força necessária aos
senhores de escravo para subjugar e explorar a força de trabalho dos escravos: o poder
de castigar os escravos, a regulamentação da atividade de capitão-do-mato; a isenção de
criminalidade aos assassinos de pessoas negras fugidos ou quilombolas; a
regulamentação de prêmios atribuídos à captura de pessoas negras fugitivas, entre outras
(SILVA JR., 2000).
4
Sobre a distinção entre formas de relações de poder cf. FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. in:
DREYFUS, H. e RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
3
A Constituição brasileira de 25 de março de 1824, outorgada em pleno
escravismo, declara a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, excluindo da
definição de cidadão a população escravizada, à qual não se reconheciam, dentre outras
coisas, os direitos civis. O Código Criminal do Império, editado em 16 de
dezembro de 1830, foi saudado como símbolo de modernidade e das idéias liberais
vigentes na Europa. Porém, exibia, entre seus 312 artigos, normas destinadas à
contenção da rebeldia negra, quer de escravos, quer de livres e alforriados (ibidem: 361):
Fixava responsabilidade penal em 14 anos;
Atribuía ao senhor a responsabilidade pela indenização dos danos causados pelo
escravo;
Estabelecia a pena de açoites e uso compulsório de ferros;
Criou o crime de insurreição;
Punia pessoas livres que encabeçassem insurreição;
Punia a ajuda, o incitamento ou aconselhamento à insurreição, bem como o
fornecimento de armas, munições ou outros meios para o mesmo fim;
Punia a propaganda da insurreição;
Punia a prática de confissão religiosa diferente da Religião Católica Apostólica
Romana;
Criou o crime de vadiagem;
Criminalizou a mendicância.
Em resposta ao crescimento de assassinatos de senhores e feitores cometidos por
escravos, em 10 de junho de 1835, entrou em vigor a lei que regulamentava a pena de
morte. Assim como a pena de galés, a pena capital era aplicada fundamentalmente em
pessoas negras escravizadas (SILVA JR., 2000: 362). O grupo de parlamentares
conservadores que defendia o extremo suplício afirmava que, sem a pena aludida, não se
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
4
manteria a ordem entre escravos, os quais, conforme acreditavam, pelo seu teor de
existência seriam indiferentes a outros castigos. Em 11 de agosto de 1836, entrava em
vigor o Aviso segundo o qual os açoites não poderiam ultrapassar o número de 50 por
dia, com limite máximo de 200 (ibidem: 363).
O Código Penal vigente, então, convertido em lei em 11 de outubro de 1890,
aboliu a pena de morte e instalou um regime penitenciário correcional. Destacamos,
dentre seus diversos artigos:
A fixação da responsabilidade penal em 9 anos;
A punição do crime de capoeiragem;
A punição do crime de curandeirismo;
A punição, apesar da instituição formal de um Estado laico, secular, do crime
de espiritismo;
A punição do crime de mendicância;
A punição do crime de vadiagem.
Quanto ao primeiro item destacado, fundamenta-se na crença entre os médicos
legistas, frenologistas e discípulos de Lombroso, como Raymundo Nina Rodrigues, de
que “as raças inferiores chegam à puberdade mais cedo do que as superiores”
(RODRIGUES apud SILVA JR., 2000: 364). Além disso, a criminalização da vadiagem
foi aclamada por parte de Nina Rodrigues que defendia que os selvagens seriam
incapazes para um trabalho físico continuado e regular, conforme comprovaria a
fisiologia comparada das “raças”
5
humanas. A produção rodrigueana e seus pressupostos
5
Quando falarmos em “raça” ou “cor” estaremos fazendo menção a uma categoria social utilizada nas
“atitudes naturais” dos atores sociais, enquanto utilizaremos como conceito sociológico a categoria de
identidades raciais. Esta distinção entre a categoria social e o conceito sociológico é uma ficção teórica
que não visa a constituir uma clausura conceitual isenta da dinâmica social, mas a estabelecer uma “meta-
linguagem” que permita um “distanciamento” reflexivo e crítico das relações raciais abordadas, com seu
léxico próprio.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
5
lombrosianos influenciaram a literatura médica nacional e, sobretudo, o discurso
hegemônico nas Faculdades de Direito de Recife e São Paulo.
Quanto à criminalização da capoeiragem, do curandeirismo e do espiritismo,
parece claro, e pesquisas sustentam tal afirmação (cf. SCHRITZMEYER, 1997 e
FAUSTO, 1984), visava reprimir o comportamento de uma camada social específica,
controle social e discriminação pela cor.
A primeira constituição republicana, de 24 de fevereiro de 1891, ampliará os
direitos civis e políticos (incluindo apenas os homens), porém impedirá indiretamente o
acesso da população negra às urnas, impondo a alfabetização como requisito para
exercer o direito ao voto num país recém-saído de um regime escravocrata.
A partir dos anos 50 do século XX, entrou em vigor o atual Código Penal, que
fixou a responsabilidade penal em 18 anos, revogou a criminalização da capoeiragem, do
espiritismo e da magia, mas conservou os delitos de curandeirismo e charlatanismo e
passou a tratar a mendicância e a vadiagem como contravenção penal. Porém, as práticas
dos órgãos de segurança pública permaneceram indiferentes às tendências de mudança.
Desde a Constituição de 1934 consta nas cartas magnas como preceito
constitucional a proibição da discriminação racial, mas só a partir de 3 de julho de 1951
entra em vigor uma lei penal que regulamentava aquele preceito: a lei n.º 1.390, Lei
Afonso Arinos, vigente até 5 de outubro de 1988.
Contudo, estas mudanças não conduziram para erradicação da discriminação no
sistema de justiça penal do Brasil. Apenas contribuíram para constituição de um
“racismo implícito” que não se torna patente nas palavras de um juiz ou de outro
funcionário judicial. Com freqüência, só se pode detectar a discriminação racial nos
aparelhos jurídicos analisando os padrões de detenção, condenação e imposição de penas
em relação com a identidade racial dos envolvidos.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
6
Peter Eccles (1991) observou que o sistema jurídico brasileiro dispensa às
pessoas negras um tratamento que, das ruas às delegacias de polícia e aos tribunais de
justiça, viola a presunção de inocência, invertendo o ônus da prova, tornando as pessoas
negras “culpados até prova em contrário”, e obrigando-os a constantemente provar sua
inocência.
Sérgio Adorno (1995) demonstra que
brancos e negros cometem crimes violentos em idênticas proporções, porém os réus
negros tendem a serem mais perseguidos pela vigilância policial, enfrentam
maiores obstáculos de acesso à justiça criminal e revelam maiores dificuldades de
usufruir o direito de ampla defesa assegurado por lei. Tendem, então, a receber um
tratamento penal rigoroso, representado pela maior probabilidade de serem
punidos comparativamente aos réus brancos
.
Ana Tereza Lemos-Nelson (2001) mostra que a cor é fator importante na
vitimização pela polícia em casos de tortura e execução sumária. Visto que o sistema
inquisitorial brasileiro privilegia a confissão como elemento central da prova, o racismo
expõe desproporcionalmente as pessoas negras à ação policial como alvos “torturáveis”.
Segundo Luiz Alberto (2000), citando dados da CPI do sistema penitenciário de
1993, dois terços da população carcerária são formados por pretos ou pardos. Fornece-
nos, ainda, o autor, os seguintes dados do NEV (Núcleo de Estudos sobre Violência –
USP): há maior incidência de prisões em flagrantes para réus negros (58,1%); a
população negra é mais vigiada e abordada pelo sistema policial de que a população
branca; há maior proporção de réus brancos respondendo processo em liberdade (27,0%)
do que réus negros (15,5%); há maior proporção de pessoas negras condenadas (68,8%)
do que de réus brancos (59,4%); quanto à absolvição, há 37,5% de réus brancos contra
31,2% de réus negros; de todos as pessoas brancas que se dispuseram a apresentar
provas testemunhais, 48,0% foram absolvidos, enquanto, entre as pessoas negras, apenas
28,2%.
Carlos Antônio Costa Ribeiro (1999: 19) demonstra que uma
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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combinação entre (1) definições e classificações negativas do ponto de vista sexual,
racial e ocupacional da vítima; (2) definições sexuais e ocupacionais positivas do
réu; e (3) concepções de ‘ação em legítima defesa’ e ‘ação inconsciente’, confere
significado e autoriza as práticas dos advogados de defesa dos réus. Por outro
lado, uma combinação entre definições (1) negativas da moral dos acusados, (2)
positivas da moral das vítimas e (3) concepções jurídicas de ‘ação em livre
arbítrio’ e ‘ação agressiva sem intenção de matar’ dá sentido e sustenta as práticas
e ações dos advogados de acusação. Inspirando-me pelas observações de Garfinkel
[...], eu diria que essa definição recíproca de categorias morais e níveis de
responsabilidade conferem ordem às práticas penais e, portanto, às instituições
legais e representações culturais sobre criminalidade, gênero, raça, classe e
moralidade.
Joana Domingues Vargas (1999:18) procurou investigar o lugar e o peso da
variável cor do suspeito nos diferentes procedimentos e decisões tomados pelas
organizações responsáveis pela aplicação da Justiça Criminal. A autora observou, nas
fases da queixa e do inquérito, posturas discriminatórias em relação à cor do suspeito,
tanto da parte dos queixosos quanto da parte da polícia, que reconhecem mais pretos e
pardos como os prováveis autores de crimes de estupro.
Tais atitudes se confirmam na fase de denúncia, quando parte dos casos
envolvendo pretos acaba arquivada pelos promotores devido à fragilidade das
provas levantadas na polícia. Ainda nesta fase, verifiquei o efeito da discriminação
pela cor no fato de que réus brancos têm maiores chances de terem seus processos
arquivados.
À revelia e em contradição com todos estes fatos, os aparelhos jurídicos
tornaram-se importante instrumento de combate à discriminação racial do movimento e
da população negros.
Conforme Sérgio Martins (2000), a oposição ao racismo no Brasil restringiu-se à
repressão criminal de condutas preconceituosas, cuja prática estivesse fundada em
motivação racista. A primeira iniciativa, neste sentido, consolidou-se na Lei n.º
7.716/1989, Lei Caó, que está disposta na Carta Magna de 1988.
A existência de legislação criminal e constitucional sobre a prática de racismo
demonstra o grau de impregnação do racismo nas relações cotidianas, e foi uma
conquista dos movimentos sociais negros brasileiros. A aprovação de mecanismos
propostos pelos parlamentares negros da Constituinte de 1988, os deputados Benedita da
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Silva, Carlos Alberto de Oliveira Caó e Paulo Paim, seguindo o caminho aberto por
Abdias do Nascimento, anunciando a natureza pluricultural e multiétnica do país (Art
215 § 1.º), estabelecendo o racismo como crime inafiançável (Art 5.º, Inciso XLII), e
determinando a demarcação das terras dos remanescentes de quilombos (Art 68,
Disposições Transitórias), marca o grau de mobilização da comunidade afro-brasileira,
que participou de comissões parlamentares e manifestou-se de diversas formas para
assegurar essas conquistas.
Todavia, quando verificamos o nível de aplicabilidade da legislação, deparamos
com números irrisórios, dada a magnitude do problema:
Na área criminal, a maioria dos casos levada a julgamentos, desde a legislação de 1951,
foi arquivada ou os agressores foram absolvidos, ocorrendo, regularmente, a
desclassificação do crime de racismo para injúria. Durante a vigência da Lei n.º 7.716/89,
que completou dez anos, registram-se apenas dois casos de condenação por crime de
racismo, sendo ambos relacionados à disseminação de mensagens com conteúdo racistas,
uma atacando a comunidade judaica e, outra, os afro-brasileiros (
MARTINS, 2000:
429).
Levantamento realizado em 22 estados entre 1995 e 2000, resultado de tese de
mestrado em Direito Penal do promotor e professor da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP) Christiano Jorge Santos (2001), mostra que foram registrados
1.050 boletins de ocorrência, que resultaram em 651 inquéritos, dos quais 394 viraram
processos judiciais, havendo apenas uma condenação para crimes de racismo.
Em São Paulo, entre 1989 e 2000, 285 inquéritos foram instaurados; 107 pessoas
foram indiciadas; 241 inquéritos foram abertos sob acusação de crime por injúria
qualificada, dos quais 44 enquadravam os acusados na Lei n.º 7.716.
Em Racunsen (2003), dos 61 casos localizados para o período de 1989-2001,
identificaram-se 37 punições, sendo 6 baseadas na Lei Caó, 9 na Lei contra a Injúria, 17
por indenizações baseadas no código do consumidor e do trabalho e 3 na Constituição.
Hédio Silva Jr. (2001) apresenta algumas hipóteses para os fatores que concorrem
para ineficácia do aparato jurídico anti-racismo em vigor no Brasil: a) tensão entre
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ideologia racial e norma jurídica anti-racismo; b) armadilhas semânticas e conceituais
dos vocábulos empregados pelo texto constitucional; c) excessiva atenção dispensada
pelos operadores do direito à norma penal anti-racismo, em detrimento de outros
instrumentos legais; d) o legalismo e moralismo no disciplinamento jurídico das relações
raciais; d) desinformação e despreparo dos operadores do direito para lidarem com
litigância relacionada com discriminação racial.
Antônio Sérgio Guimarães (2004) levanta cinco hipóteses para a ineficácia dos
mecanismos legais anti-racistas: a) a dificuldade provocada pela redação da Lei 7.716/89
de enquadrar penalmente o racismo realmente existente no Brasil, isto é, um racismo de
assimilação e tratamento diferencial das pessoas negras; b) a interpretação dos juízes
geralmente limita a possibilidade de enquandramento dos casos reais à Lei, pressupondo
a ausência de motivação racial na conduta dos acusados e circunscrevendo os âmbitos da
vida pública cobertos pela Lei, não atinando para as liberdades fundamentais do cidadão
que devem ser protegidas; c) a explicitação dos motivos raciais para o cerceamento
destas liberdades tem sido utilizada para desqualificar o crime de racismo, lançando o
delito para a esfera do direito penal privado; d) quanto mais próximo dos meios
populares e dos negros o delito, maior a probabilidade das autoridades interpretarem
corretamente a ofensa verbal como indício de discriminação racial, mas também maior a
possibilidade de tratarem como discriminação racial (comportamentos racialmente
motivados que restringem direitos de outrem) o que na verdade é simples injúria
(agressão verbal); e) a condição de gênero, e possivelmente outras condições de
inferioridade social, tornam ainda mais invisível a discriminação racial sofrida pelos
negros, ou seja, se a vítima for mulher e o agressor um homem, ou mantiver em relação
ao agressor relação de subordinação ou inferioridade social, o caráter racial da agressão
torna-se invisibilizado.
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O painel constituído pelos trabalhos dos autores citados apresenta o que nós
chamaremos de racismo institucional no sistema de justiça. O racismo institucional é o
fracasso coletivo de uma organização em prover um serviço profissional e adequado às
pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica, podendo ser visto ou detectado
em processos, atitudes ou comportamentos que denotam discriminação resultante de
preconceito inconsciente, ignorância, falta de atenção ou de estereótipos racistas que
colocam minorias étnicas em desvantagem (cf. SAMPAIO, 2003).
Nosso trabalho, assim, aproxima-se dos trabalhos de Ribeiro, Vargas, Silva Jr. e
Guimarães, pois além de ultrapassar a constatação do tratamento diferenciado no sistema
de justiça (como Eccles, Lemos-Nelson, Martins, Alberto e Santos), buscando os
condicionantes deste fato (como Adorno), aborda questões de caráter semântico,
hermenêutico ou discursivo. Todavia, enquanto Ribeiro, Vargas e Adorno se detêm na
posição de suspeito ou réu do negro, aproximamo-nos de Silva Jr. e Guimarães ao
procurar entender a ineficácia da legislação anti-racista com a conseqüente impunidade
do racismo, detendo-nos na posição de vítima do negro. Pretendemos enfrentar, então, as
hipóteses de Silva Jr. e Guimarães, reformulando-as conforme nosso referencial teórico
que será exposto no capítulo dois. Nosso objetivo geral é explicar a relação entre o
discurso jurídico e as relações raciais, nos casos de racismo. Segundo essa abordagem,
não é suficiente afirmar que os operadores de direito, e, em especial, o juiz,
compartilham dos valores raciais da sociedade onde vivem, valores racistas que
tenderiam a penalizar as pessoas negras. Esta afirmação peca por excesso de
voluntarismo (enfatizando a discricionariedade do juiz), ou por ser excessivamente
estruturalista (enfatizando os valores sociais que o juiz reproduz no espaço jurídico). O
juiz tem que tomar decisões justificáveis conforme determinadas razões jurídicas.
Portanto, é importante estabelecer qual a relação entre essas razões jurídicas, os valores
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sociais e as relações raciais – que papel aquelas razões jurídicas desempenham na
reprodução das relações raciais no Brasil, através de que deslocamentos, de que
paráfrases, paródias ou apropriações, de que formalizações etc.
Mas o que entendemos por “relações raciais” e por “discurso jurídico”? Nas seções
seguintes, iremos analisar e definir os elementos dessa relação – relações raciais e
discurso jurídico. No segundo capítulo, apresentaremos as abordagens teórica e
metodológica com as quais nos debruçaremos sobre aquela relação, buscando atingir
nosso objetivo.
1.2 Relações Raciais: O Racismo e suas Formas
A discriminação racial não se manifesta, necessariamente, como uma norma
jurídica ou social explícita, forma de racismo ostensivo, como nos casos de segregação
racial praticada nos EUA até os anos 60, ou na África do Sul até a década de 90.
A discriminação racial não é tratada, no presente trabalho, como uma prática
unívoca, uniforme e homogênea, mas se apresenta sob diversas formas, que se
desenvolvem de maneira antagônica ou através de conexões contingentes e variáveis,
dentre as quais assinalam-se as seguintes:
O racismo ostensivo é apenas uma das formas de discriminação racial, podendo
variar em intensidade desde uma segregação racial até uma domesticação racial. A
Discriminação Racial
Estereótipo
racial
Racismo ostensivo
Demarcação racial
Estigma
racial
Domesticação
Racial
Segregação
racial
Indiferen
ç
a ridiculariza
ão
estima
ç
ão
cate
q
uese
Domínio
Racial
genocídio
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segregação racial, por sua vez, varia do ódio racial genocida até o domínio racial,
fundado na opressão e exploração de grupos raciais por outros. Já a domesticação racial
se caracteriza por uma proximidade social entre grupos raciais, ou frações destes grupos,
proximidade que não contesta a posição de inferioridade de um dos grupos, própria do
racismo ostensivo. Pode variar da catequese – na qual o grupo ‘superior’ busca civilizar,
domesticar, adestrar o grupo ‘inferior’ – até à estimação, amigo até certo ponto, desde
que se demonstrem ‘dóceis’, ‘amáveis’ e não ultrapassem as fronteiras próprias à sua
condição de inferioridade.
O racismo ostensivo se funda numa concepção causalista que afirma que as
diferenças sociais são determinadas por fatores biológicos – “São assim, pois são
negros”; ou “Eu odeio negros porque...”. Esse regime discursivo dominou o pensamento
brasileiro de meados do século XIX até meados da década de 30 do século passado,
representado pelo pensamento de Sílvio Romero, 1851-1914, (1895), Raymundo Nina
Rodrigues, 1862-1906, (1957) e Oliveira Viana, 1883-1951, (1939).
Por outro lado, o estereótipo racial se caracteriza pela associação ou
caricaturização de elementos e atributos físicos e sociais, associação mais simbólica do
que causal
6
(por exemplo, a “avareza” e “ganância” do judeu, a inteligência e o “pinto
pequeno” do japonês, etc.). No estereótipo racial, o negro não é pobre ou marginal
porque é negro, mas muito provavelmente se for negro viverá em condições de pobreza,
marginalidade e delinqüência. Há uma associação por contigüidade, formando
expectativas socialmente significativas. Assim, se um negro aparece dirigindo um
Mercedes Benz, provavelmente é motorista de alguma “madame” ou, então, roubou o
6
A substituição do “regime causalista” por um “regime simbólico” da relação entre as diferenças e as
desigualdades raciais significa, em termos discursivos, a substituição de associações internas
(similaridade, conexão causal etc.) próprias do discurso “sério” por outras, ditas externas (simultaneidade
temporal, contigüidade espacial, similaridades fônicas etc.) próprias do discurso “espirituoso”. Esta
substituição é muito especialmente notável nas elaborações inconscientes (cf. FREUD, 1996: 162). Sobre
a distinção entre discurso “sério” e “vulgar” cf. FOUCAULT, 1999b. Trabalharemos mais detidamente
esta distinção nos capítulos 5, 6 e 7.
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carro; ou se entra numa loja para comprar um paletó, dificilmente será um advogado,
mas, provavelmente, um evangélico ou vendedor; pessoas negras não são clientes
prováveis de lojas de jóias caras, o que provocará suspeita se um negro entrar em tais
estabelecimentos. O estereótipo define, assim, um conjunto de expectativas socialmente
estabelecidas e que visam à definição de situações cotidianas – demarcação racial. Faz
parte, portanto, de uma competência social. Isto não impede, contudo, que tal
demarcação seja corrigida. Porém, no caso das pessoas negras, em geral, tal correção é
feita colocando-se a quebra de expectativa como um caso singular, classificando a
pessoa negra que transpõe o estereótipo como uma exceção, como “negro bem
sucedido”, “negro que venceu na vida”, geralmente, em atividades estereotipadas como a
dança, o futebol, o atletismo e a música popular – “são negros, mas...”; ou “apesar de
negros...”; “são negros de alma branca”.
O estigma racial é uma forma de estereótipo menos flexível. O “negro bem
sucedido” ou o negro que transpõe os limites do estereótipo vive uma situação ambígua
e ambivalente semelhante ao “novo rico” ou o “emergente” – sua cor sempre ‘trai’ sua
origem, da qual ele nunca poderá se livrar. Ele estará sempre sob suspeita – “...mas são
negros”. Pode variar da indiferença à ridicularização. A indiferença é uma forma de
ostracismo social onde a transgressão do estereótipo é sancionada com exclusão do
elemento estranho, deslocado, do convívio do grupo socialmente puro – “Ele nunca será
um de nós”. Por outro lado, o ridículo é aquilo que merece ser sancionado pelo “riso de
exclusão”, que condena a transgressão de uma regra aceita, baseada num estereótipo,
uma forma de condenar um comportamento, ser ou discurso excêntrico, deslocado, que
não se julga bastante grave ou perigoso para reprimi-lo com meios mais violentos. As
piadas e a ridicularização, em geral, contra gays, negros, judeus etc. têm por papel o
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reforço de associações estereotipadas e caricaturadas, condenando ao ridículo estes
grupos, visto que são considerados como estranhos, excêntricos, anormais, diferentes...
7
O estereótipo racial permite, ainda, uma gradação em termos da tonalidade da pele.
Uma vez que a cor da pele “trai” a origem do indivíduo, as gradações da cor da pele
indicam origens diferenciadas, visto que apontam para ascendências raciais diversas:
como diria o provérbio (a “sabedoria”) popular “Tem um pé na sala e outro na cozinha”
(mas onde, afinal, está a Tia Anastácia
8
). Sendo “moreno”, devo ter parentes “brancos”,
o que provavelmente significa que vivi em estratos sociais mais elevados (daí que seja
elogio para alguns se identificar alguém como moreno e não como negro!). Associada a
diversas características como o tipo do cabelo, a forma do nariz, os odores e humores, e
a cor dos olhos, a tonalidade da pele compõe um complexo de unidades diferenciais
relativas a diferentes formas e intensidades de discriminação. Este complexo varia
conforme as diversas regiões geográficas, contudo, uma regra geral se apresenta: quanto
mais escura é a cor da pele, maior a exclusão
9
. Desta forma, nas relações raciais
brasileiras, alguém pode ser escuro em relação a outrem, e, simultaneamente, claro em
7
Veja o capítulo 7, adiante. Cf. GOFFMAN, 1975.
8
Cf. o conceito “Complexo de Tia Anastácia” no capítulo 4.
9
Isto nem sempre foi assim. Até a consolidação do Mito da Democracia Racial, os mestiços eram mais
estigmatizados do que as pessoas negras, quer por sua posição ambivalente nas relações raciais – nem
brancos, nem negros; quer por serem fruto de relações sexuais desvalorizadas – filhos bastardos, filhos de
estupro ou filhos de casais amasiados; quer, por fim, devido a teorias do racismo científico que
classificavam os mestiços como produtos decadentes. Com a constituição do mito da democracia racial e a
difusão da noção de miscigenação (cf. SCHWARCZ, 1994; MUNANGA, 1999), importante na definição
de uma identidade nacional, cara ao nacionalismo do Estado Novo, com a sua política da “nacionalidade
morena”, aquela situação foi revertida. Ademais, a questão da morenidade tem raízes no problema do
“branqueamento” (FREYRE, 2001 e 1996; BENTO & CARONE, 2003; MAUES, 1988; FERNANDES,
1978; RAMOS, 1957). O branqueamento, por um lado, foi uma política de Estado que visava a eliminação
progressiva da população negra, quer por “repatriamento” de pessoas negras, quer pela importação de
brancos europeus, quer, enfim, pela miscigenação continuada de pessoas negras com pessoas brancas; por
outro lado, pode ser considerado como um conjunto de normas, atitudes e valores ditos brancos que a
pessoa negra incorpora, visando atender à demanda concreta e simbólica de identificar-se a um modelo
dito branco, construindo uma identidade racial positivada – mas o que vem a ser este modelo branco? Para
Gilberto Freyre:
O mulato formado, em competição com o advogado branco, com o médico, com o político,
procurou vencer o competidor, agradando, mais do que eles, aos clientes, ao público, ao eleitorado, ao “Povo”; e em
seu auxílio, moveram-se músculos do rosto negróide, mais poderosos de ascensão profissional, política, econômica;
uma das expressões mais características de sua plasticidade, na transição do estado servil para o mando ou domínio
ou, pelo menos, de igualdade com o dominador branco, outrora sozinho, único. Na passagem não só de uma raça
para a outra como de uma classe para outra. (FREYRE, 1996:645).
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relação a um terceiro – e o mais claro pode discriminar o mais escuro. Portanto, as
relações raciais não podem ser adequadamente descritas por uma lógica bivalente (ser ou
não-ser, negro ou não-negro, branco ou não-branco), isto é, do terceiro excluído
(mestiço?), mas requer uma lógica da cor, lógica intuicionista, e, por último, lógica vaga,
polivalente (cf. capítulo 5 em diante).
Nas relações concretas, estes tipos de discriminação racial mantêm entre si
articulações contingentes e variáveis, conforme as relações sociais a que pertençam e as
práticas discursivas que os constituem, isto é, conforme a formação sócio-histórica que
compõem. Estas diversas formas de discriminação coexistem algumas vezes através de
relações antagônicas, onde uma delas é dominante, conforme se inscrevam neste ou
naquele discurso.
No Brasil, ninguém aparece como racista declarado e todos parecem reprovar o
racismo e o racista. Todos se declaram simpatizantes, amigos ou parentes de pessoas
negras, ou, até mesmo, assumem-se como pessoas negras. Mas isso não parece impedir a
exclusão cultural, política e econômica dos afro-descendentes. É o chamado racismo
cordial
10
ou assimilacionista. Portanto, não há uma oposição ao racismo em geral, mas
uma subordinação de um racismo em particular, o que não significa a inexistência de
outros regimes discriminatórios: mesmo o regime segregacionista atua em espaços e
tempos de forma não-oficial – presídios, delegacias, favelas, periferias, profissões...,
com todos os requintes de crueldade.
A forma predominante de discriminação, em geral, coloca “raça” como uma
categoria/estereótipo social, um complexo de relações sociais (raciais), onde diferenças
culturais, políticas e econômicas sobredeterminam diferenças genéticas fenotípicas (um
10
O “mito do racismo cordial” sustenta que as relações raciais no Brasil, ainda que discriminatórias, não
conduzem a embates ou violência raciais, nem a formas violentas de segregação ou ódios raciais, sendo,
portanto, menos intenso, violento e cruel do que em outras partes do mundo, como África do Sul e EUA
(cf. FERNANDES, 1978; GUIMARÃES, 2002). Esse mito relaciona-se com o “mito da democracia
racial” através da lógica perversa: “se poderia ser pior, então não é nada”.
RAÇA E JUSTIÇA
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código social sobredeterminando um código genético, forma de apropriação do corpo, de
seus fluxos, de seus traços, de suas marcas, de seus rastros, de suas cicatrizes, de suas
memórias)
11
, de forma que a cor da pele funciona como signo metonímico, isto é,
condensa e conota uma série infinita de atributos (adjetivos) que compõem a identidade
(sujeito) social do indivíduo, seu lócus e seu status sociais. A cor da pele é figura ou
conotação, por exemplo, da pobreza, marginalidade, ignorância, feiúra... Estas
associações são sustentadas e alimentadas pelos elevados índices de criminalidade,
analfabetismo e pelos padrões estéticos hegemônicos, dos quais participam a população
negra.
Ademais, o peso ou importância da identidade racial na identificação do status
social pode variar conforme a situação social vivida. A identidade racial pode ser
relevada, colocada sob suspeita, olvidada ou suspensa, dependendo da situação de
relação social em curso. Um indivíduo pode discriminar ou não outro, conforme o
contexto de interação em que estejam: pode discriminar aqui e não ali; hoje, e não
amanhã, estabelecendo distâncias sociais ambivalentes – “integração subordinada”:
distâncias não transpostas pelo contato. Assim, no regime assimilacionista, não há
contradição que se tenha Pelé ou Milton Nascimento como ídolos e ao mesmo tempo,
que se proteja a carteira na proximidade de uma pessoa negra desconhecida; ou se tenha
um grande amigo negro e, ao primeiro desentendimento sério, se o agrida com referência
à sua “cor” ou “raça”. O racismo brasileiro aparece como fragmentário, descontínuo,
arranjo que não compõe, mas justapõe, deixando fora um dos outros, as crenças, os
valores e as práticas que aparecem em relação, justapostos. O aspecto fragmentário da
discriminação deve-se ao funcionamento da cordialidade das relações raciais e da
11
Um jogo natural de intensidades, graus, acontecimentos, acidentes, que compõem individuações,
inteiramente diferentes daquelas dos sujeitos bem formados que as recebem, ou seja, num nível impessoal,
infra ou supra-subjetivo.
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estabilidade da hierarquia racial a ela ligado, pois as formas mais ostensivas de
discriminação racial são acionadas nos momentos em que aquela estabilidade vê-se
ameaçada e o racismo cordial toma suas formas mais ostensivas e agressivas. Dito de
outra forma, podemos dizer que o aspecto fragmentário e descontínuo da discriminação
racial é função do equilíbrio instável da hierarquia racial, como intervenção que visa a
restaurar o equilíbrio rompido, a hierarquia ameaçada.
O racismo brasileiro é uma multiplicidade heterogênea, não-estrutural, irredutível à
unidade individual ou coletiva. Daí que não haja um racismo militante, mas
acontecimentos individuais pré-pessoais (acidentes, lapsos: racismo sem racista) e
estatísticos (desigualdades raciais estáveis ou crescentes). No plano lingüístico, isto se
evidencia, como veremos (Capítulo 7), no uso das conjunções “e”, “mas” (“É negro,
mas...”), “apesar de...” (“Apesar de negro...”), no uso impessoal dos pronomes (“diz-se
que os negros...”), nas entonações e pontuações (reticências, parênteses, aspas,
pausas...), enfim, nos silêncios, nas gagueiras, nos tiques, nos lapsos... O discurso
racista, no Brasil, é não-representacional, não-referencial, anti-realista e anti-teórico.
Continuando na análise das formas de discriminação, podemos classificar, ainda, a
discriminação em dois tipos: discriminação vertical e discriminação horizontal. A
discriminação vertical é uma prática de reprodução ou sanção da quebra de uma
hierarquia social. Como exemplos desse tipo de discriminação temos o machismo
(relações de gênero), racismo (relações raciais), elitismo (relações de classe). A
discriminação horizontal produz distinções e diferenciações sociais sem constituir uma
hierarquia, desigualdades sociais ou relações de poder. Por exemplo, discriminações
contra obesos, calvos, baixinhos, gagos... É através da noção de discriminação vertical e
de como ela se efetiva nas relações raciais que podemos compreender a diferença
semântica entre enunciados como, por exemplo, de um lado: “orgulho de ser negro” e
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“100% negro”, e, de outro lado, “orgulho de ser branco” e “100% branco”. Os dois
primeiros enunciados expressam auto-estima e identidade, e não superioridade ou pureza
raciais. São o modo afirmativo dos enunciados negativos: “não somos inferiores” e “não
negamos nossa raça”. Confundir os dois grupos de enunciados, apresentando-os como
semanticamente recíprocos e simétricos é ocultar as desigualdades e a hierarquia sociais
subjacentes a e reproduzidas pelas relações raciais. Mas é exatamente o que faz o Mito
da Democracia Racial, imputando ao primeiro grupo de enunciados o rótulo de “racismo
às avessas” e bloqueando a emergência de um discurso racial emancipatório: “o
movimento negro é que é racista”; “ele provoca um problema que não existe no
Brasil”.
12
Todavia, a coexistência, na população negra, das situações de pobreza, carência de
direitos sociais ou condições de exercê-los, e sua exclusão da comunidade sócio-política,
não nos deve confundir e levar a pensar que se trata de um fenômeno simples,
subordinado à dimensão econômica – não se deve reduzir a discriminação racial à
desigualdade racial (cf. FERNANDES, 1978; HASENBALG, 1979). Evitar a
biologização e a naturalização das relações e diferenças sociais não implica um
essencialismo classista, que faz de toda interpelação social, dentre as quais a de “raça”,
mera alegoria de classe, ou meros adjetivos/acidentes do sujeito/substância classe. O
reducionismo econômico participa dos procedimentos ideológicos de marginalização da
questão racial. Portanto, ainda que as relações econômicas apresentem-se como vetor
importante na constituição das desigualdades sociais, pretendemos contribuir para o
estudo de como os processos de discriminação racial e as relações raciais conduzem à
constituição dessas desigualdades. Faremos isso, tendo como lugar social limitado de
12
Não estamos negando os riscos da afirmação de uma identidade racial: essencialismo, fascismo,
fundamentalismo, racismo, que podem conduzir a uma intolerância mútua. Mas é apresentando estes
riscos como intrínsecos (necessários e ao invés de apenas possíveis) às forças emancipatórias e igualando-
as às forças dominantes, que se desmobilizam ou isolam aquelas forças emancipatórias.
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análise, o espaço jurídico, e, como fenômeno social focalizado, o fluxo de justiça. O
espaço jurídico e o seu discurso constitutivo são, como veremos adiante, o lugar
privilegiado para o estudo das relações raciais, como relações de poder num campo
agonístico.
Este procedimento já coloca, a princípio, sob suspeita o reducionismo legalista
acerca das questões sobre relações raciais. As ações judiciais fazem parte de um amplo
conjunto de ações ou iniciativas que compõem o que chamaremos de políticas de
identidade negra, ou seja, iniciativas individuais ou coletivas que tenham como objetivo
geral ou específico o combate ao racismo e à desigualdade racial e/ou expressem
valores de matriz africana, implicando na construção/consolidação de uma identidade
negra. A constituição dessa identidade implica no deslocamento dos estereótipos raciais
acerca das pessoas negras
13
, ou seja, a transvaloração das identidades raciais.
Todavia, não se deve confundir ou reduzir o conjunto destas políticas ao
“Movimento Negro”. A conexão entre estas políticas na constituição dos movimentos
sociais negros se dá através de esforços constantes de estabelecer entre elas conexões
variáveis e historicamente contingentes. Estas conexões contingentes chamamos,
conforme proposto por Laclau (1986), articulação. Então, por exemplo, a articulação
entre o Movimento Negro e a religiosidade afro-brasileira é uma relação contingente e,
em muitos casos, problemática e contraditória: não existe nenhuma relação necessária
entre a identidade negra e a religiosidade de origem africana; é mais um projeto do que
um fato dado, como em toda relação entre negritude e africanidade, por exemplo, na
13
A negritude não deve ser algo garantido, uma natureza fixa, mas um processo de desenvolvimento no
qual os indivíduos desempenham um papel, podem assumir alguma responsabilidade e para o qual se pode
construir uma relação. A construção de uma identidade negra é um processo de autotransformação, não
devendo ser representada como um fato não negociável, ocultando a capacidade de responder a uma
situação, de agir sob uma conjuntura. “O que é ser negro” não é uma questão suscetível a respostas
generalizadas. Toda identidade social é uma experiência gestáltica e não uma definição, não sendo, em si,
algo fixo. A construção de identidade se constitui num processo continuo de identificação, que pressupõe
um compromisso ético, um “responsabilizar-se por” (cf. LACLAU, 1993b e 1997; RICOUER, 1996;
BURITY, 1997b e 2002).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
20
definição da cultura negra. Esta e outras articulações operam num campo cruzado por
projetos articulatórios antagonistas que Laclau denomina práticas articulatórias, no qual
se dá a articulação/desarticulação de políticas de identidade, conforme a constituição dos
diversos espaços políticos. Assim, o conjunto das políticas de identidade constitui um
campo de articulações possíveis, um campo de discursividade.
Nesse campo se incluem desde políticas governamentais, até iniciativas e
empreendimentos privados com fins lucrativos, passando pelas ações de entidades de
Movimento Negro, não sendo realizadas necessariamente por grupos de maioria negra.
Por outro lado, tais políticas não se reduzem ao combate à discriminação e à
desigualdade racial, definição puramente negativa e reativa. Mas realizam um amplo e
complexo conjunto de iniciativas:
1. Afro-solo ou eutidade: pessoas físicas que estabelecem individualmente
iniciativas que têm como objetivo geral ou específico o combate ao racismo
e à desigualdade racial e/ou expressam valores de matriz africana
(estudantes, músicos, artistas, quituteiras, etc.);
2. Grupos, Núcleos ou Centros Universitários: NEAB, Afroasiático etc.;
3. Balés ou Grupos de dança afro-brasileira: capoeira, afoxé, maracatu...;
4. Grupos musicais: afoxés, maracatus, escolas de samba, banda de samba-
reggae, grupos de hip-hop, pagodes, movimento mangue, coco...;
5. Grupos de pesquisa, documentação e/ou estudos de cultura afro-
brasileira;
6. Imprensa negra;
7. Grupos de religiosidade afro-brasileira: candomblé, umbanda, etc.;
8. Grupos de teatro, cinema, vídeo, literatura e artes plásticas;
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
21
9. Grupos, núcleos ou outras denominações de sindicatos e/ou partidos
e/ou outras instituições públicas ou privadas que trabalham questões
raciais: INSPIR (Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial),
GTI (Grupo de Trabalho para a Valorização da População Negra), etc.;
10. Grupos que trabalham a questão da estética negra: moda, cosméticos,
etc.;
11. Culinária Afro;
12. Comunidades remanescentes de quilombos;
13. Entidades de Movimento Negro.
Este complexo de ações não deve ser apenas definido de forma puramente
negativa: “combate ao racismo e à discriminação racial” – pois quaisquer outras formas
de atuação cultural, social e política podem ser instrumentalizadas pelo combate ao
racismo por meio de inserções e maneiras diversas: passam a ser meios de combate ao
racismo.
Não se trata de afirmar que tal instrumentalização não ocorra de fato, mas, sim,
de mostrar que ela não é inerente e dada-desde-sempre: essa instrumentalização é uma
forma dentre outras de “articulação” dessas “inserções e maneiras” que possuem sua
positividade e não devem ser definidas a priori de forma puramente negativa e
instrumental. Por exemplo, a política cultural e pedagógica (incluindo aqui os elementos
materiais e imateriais, estéticos, morais, políticos e sociais) dos grupos e entidades
negros.
Numa concepção não-instrumental daquelas ações, o combate ao racismo é que é
apenas um meio, ou condição, para a instituição de um objetivo político ou social maior,
tendo como conseqüência a constituição das identidades negras.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
22
Nesta conjuntura, as ações judiciais ou o fluxo de justiça podem ser entendidos
como fazendo parte de um processo de constituição da identidade de um sujeito político
ou de direito, sujeito coletivo e histórico, articulado conforme os diferentes discursos de
reparação, compensatórios, de reconhecimento de direitos, dentre outros: povo negro,
raça negra, diáspora negra, cultura negra, pessoa negra...
Como veremos, mais adiante, o fluxo de justiça envolve processos de
subjetivação, de negociação intersubjetiva de identidades, de interpelação (cf.
ALTHUSSER, 1977), de responsabilização, de reconhecimento intersubjetivo (cf.
HONNETH, 2003); enfim, de constituição política de identidades, dentre as quais, da
identidade negra, como forma de cuidado de si (cf. FOUCAULT, 2004), do “próprio”
corpo por homens e mulheres negros.
Este cuidado de si envolve a defesa da integridade física e social, além da estima
ou dignidade social, lutando contra os maus-tratos, a privação de direitos e a ofensa (cf.
HONNETH, 2003), reproduzidos pelas relações raciais, pela hegemonia branca, enfim,
pelo Mito da Democracia Racial.
Assim sendo, as ações judiciais devem ser compreendidas e empreendidas,
teórica e politicamente, a partir de sua inserção nesta série de discursos (fluxos de
justiça) que atravessa o campo de discursividade
14
e que constitui sua conjuntura de
ação, constituindo-se no que Gramsci denominou “guerra de posição”, na construção da
hegemonia.
14
O campo de discursividade não deve ser confundido com a hegemonia. O campo de discursividade é um
campo vetorial das articulações possíveis, dos significantes flutuantes. A hegemonia é um estado
estacionário da estrutura social que, neste estado, é dita hegemônica. Já os discursos podem ser figurados
como linhas de força que cercam e interconectam os corpos e objetos, tornando-os partículas significantes.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
23
1.2 Desenvolvimento da Tese
Inclino-me a pensar que a descoberta científica é impossível se não se tem fé em
idéias puramente especulativas e muitas vezes destituídas de toda precisão.
Karl Popper, The Logic of Scientific Discovery
Optamos por um trabalho de inovação teórica e conceitual, sem, evidentemente,
abrir mão dos trabalhos anteriores de teorização das relações raciais como em Frantz
Fanon, Florestan Fernandes ou Antônio Sérgio Guimarães. A trajetória de inovação
teórico-metodológica que optamos por seguir, ao mesmo tempo que criativa, expõe-se a
riscos, à medida que adota dois recursos teórico-metodológicos que lhe emprestam um
aspecto incerto e duvidoso. Por um lado, o uso freqüente de hipóteses ad hoc que, em
geral, não são desenvolvidas na tese em andamento, sendo, ao contrário, aceitas sem
maior justificativa; por outro lado, ligadas àquelas hipóteses, faz-se uso de conceitos,
muitas vezes, fluidos e pouco claros, sem definição rigorosa (Complexo de Tia
Anastácia, Síndrome de Fanon, corpo narcisista ou masoquista, transformações
incorpóreas, tecnologias políticas do corpo, integração subordinada, revolução
passiva...), que se multiplicam no decorrer do texto em aparições efêmeras.
A opção por uma abordagem inovadora nos faz deparar: a) com a necessidade de
constituir um arcabouço teórico e conceitual não diretamente úteis para a análise dos
eventos que escolhemos investigar, mas que ajudam a esclarecer e evidenciar o alcance
dos conceitos e instrumentos de análise (não-dito, desconhecimento ideológico,
inintencionalidade...); b) com a dificuldade de conciliar eventos e observações que
aparentemente se colocam fora de ou em conflito com as explicações dadas pela teoria
em desenvolvimento. A nova concepção das relações raciais que propomos demandará
aguardar ou ignorar grande massa de observações e análises críticas. Desta forma, novos
dados são introduzidos ad hoc, enquanto evidência aparentemente relevante é descartada
ou mantida em suspenso. Quanto aos conceitos, sua fluidez ou ausência de clareza indica
antes escassez de material (desconhecimento ideológico), devendo ser mantidos até que
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
24
o estudo de campo e as futuras análises forneçam os elementos faltantes. A colocação de
tais conceitos constitui tentativa preliminar de antecipar o arranjo da “totalidade” das
partes componentes das relações raciais não destacadas dos demais fenômenos sociais.
Deste ponto de vista, a presente tese se afigura como o desenvolvimento inicial
de um programa de pesquisa que se apresenta, por isso, algo desarticulado, contendo
contradições, abundantes ambigüidades, não estando clara a relação em que se coloca
com os fatos, em particular, os investigados na tese: casos de racismo no sistema penal
na Região Metropolitana de Recife. Todavia, sua apresentação (do programa de
pesquisa) permite contextualizar e evidenciar os pressupostos de tal investigação: o
presente estudo é apenas parte daquele programa de pesquisa.
Em suma, a elucidação das hipóteses ad hoc e conceitos efêmeros deve se dar
pela realização do programa, mediante aplicação empírica e pela descoberta de outros
fatores componentes e não por meio de meros esclarecimentos lógicos ou definições
conceituais. Enquanto isso, devemos aprender a argumentar com termos não-
esclarecidos, a usar sentenças para as quais inexistem, ainda, regras de emprego e a
trabalhar com conteúdo empírico reduzido (FEYERABEND, 1977: 347-440). A Teoria Racial
Crítica deve constituir-se, assim, no que Abraham Moles denominou de ciência do
impreciso, formada por “conceitos fluidos” (fuzzy concepts) e “definições abertas” tais
como “identidade racial”, “raça”, “discurso”, “jogos de linguagem”:
Conjuntos (fuzzy sets) que, permanecendo perfeitamente operacionais no nível do
pensamento e da criação, possuem definições bastante vagas e que não é útil que
sejam precisados abusivamente, pois uma definição estreita demais evacua seu
valor heurístico e, de fato, os esvazia de seus conteúdos (MOLES & ROHMER,
1995: 52).
15
15
Segundo MOLES & ROHMER, uma definição aberta é “uma definição que não é categórica, mas que
se apresenta mais como uma seqüência de formulações implicando o uso do conceito, depois cada vez
mais convergente e sugestiva, reduzindo progressivamente o equívoco do conceito e da palavra que o
designa, sem fazer esforço abusivo para eliminar toda incerteza a seu respeito” (p.
206).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
25
Mantemos alguns conceitos relativamente vagos para que possam captar as
oscilações de sentido, para que permaneçam sensíveis às variações nos fenômenos
estudados. Fixar-lhes o sentido, a priori, impedir-nos-ia de apreender o ruído de fundo, a
dinâmica subjacente da morfogênese.
Por outro lado, o caráter vago das explicações, dos conceitos e das hipóteses
reflete a feição incompleta e programática do material e convida a uma articulação por
meio de pesquisa posterior (parte da falta de clareza, devemos admitir, deve-se a nossas
limitações retóricas ou estilísticas. Mas não reputamos tudo, ou a maior parte a questões
meramente linguageiras). A “validade” do que propomos será fortalecida por sua
capacidade de resolução de problemas concretos.
Uma definição mais precisa, portanto, se dá a posteriori, acompanhando a gênese
de uma forma mais estável dos fenômenos, explicitando-lhe as causas próximas, assim
como derivando de sua definição todas as suas propriedades. Porém, ausência de rigidez
não deve ser confundida com ausência de rigor. Ao contrário, quanto menor a rigidez,
maior deve ser o rigor, pois um erro mínimo pode significar uma “catástrofe”.
Não fazemos apologia ao obscurantismo, mas acreditamos que a clareza absoluta,
se é que isso é possível, em especial, no campo que estamos estudando
16
, pode ser
prejudicial ao processo de criação teórica e de realização de um programa de pesquisa
empírica.
Ademais, a Primeira Parte da presente tese apresenta algumas definições e
aplicações (esclarecimentos) dos conceitos a serem trabalhados na análise realizada na
Segunda Parte.
O capítulo 2 apresentará as opções e referenciais teórico-metodológicos
adotados, tendo como marco teórico as teorias do discurso de Laclau e Foucault. Neste
16
Como veremos adiante, a ambigüidade e a vagueza são próprios dos fenômenos em análise.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
26
capítulo, também, procuramos descrever a operacionalização daquelas teorias em um
procedimento de análise que aliasse as dimensões dinâmica (trajetória dos casos),
topológica (diferenciação dos casos) e econômica (distribuição estatística dos casos) dos
discursos, como fluxos no sistema jurídico. Para isso, tentamos construir um modelo
inspirado na topologia diferencial conforme apresentada por Thom (1975 e 2004) e
Deleuze (1999), e no modelo narrativo de Greimas (1973, 1975 e 1991). Nossas
tentativas teórico-metodológicas, contudo, parecerão pedantes e supérfluas ao leitor
situado nos contextos literários ou históricos (hermenêutico-fenomenológicos), mas
parecerá, também, com justiça, insuficiente e excessivamente “qualitativo” aos lógicos e
matemáticos (contexto lógico-matemático). Porém, esta tentativa se afigura, também,
numa tentativa de aproximar estes dois contextos ou tradições. Por outro lado, a
prudência nos sugere explicitar nossos limites. A “teoria das catástrofes” exige, para
apreender todos seus aspectos, uma especialização em geometria analítica e topologia
que vai além de nossos conhecimentos. Limitar-nos-emos a utilizar seus casos mais
simples, abrindo um caminho fecundo que deixamos para depois ou para outrem o
cuidado de desenvolver. Ademais, a estatística implica o conhecimento e o domínio da
noção de validade, avaliada mediante testes, muitas vezes complicados e delicados para
utilizar. Evitaremos refinamentos conceituais que certamente trariam resultados, mas
que exigiriam uma penetração em um domínio que não é o nosso: a estatística
matemática.
Os capítulos 3 e 4 tratam da genealogia das relações raciais que desembocarão no
dispositivo do Mito da Democracia Racial como tecnologia social de estigmatização e
estratificação sociais. Buscam responder a seguinte pergunta: qual a história, como
aparecem e se desenvolvem as relações raciais e o Mito da Democracia Racial no Brasil?
Estes capítulos tratam, pois, dos antagonismos sociais e históricos que conduziram e
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
27
mantiveram sempre em movimento os diversos mitos “raciais” e a formação de seus
respectivos mecanismos discursivos (o desconhecimento ideológico e o não-dito),
constituindo e contestando as formações hegemônicas, na luta entre projetos de
hegemonia divergentes no campo de discursividade, apresentando o papel dos aparelhos
jurídicos no interior deste campo.
Os capítulos 5 e 6 buscam responder à pergunta: quais os mecanismos e o
funcionamento do dispositivo do Mito da Democracia Racial?
O capítulo 5 aprofunda as conseqüências do “Mito da Democracia Racial”,
através do mecanismo do desconhecimento ideológico, na produção dos chamados
discursos “sérios”(teórico, sistemático, realista), em especial, o discurso científico do
pensamento social brasileiro, e suas conseqüências sobre a produção do discurso
jurídico.
O capítulo 6, a formação e o funcionamento do não-dito, como mecanismo
discursivo, micro-técnica de poder, em especial na produção do que chamamos discurso
“vulgar” (anti-reórico, assistemático e não-realista), registro no qual se forma o discurso
racista.
No capítulo 7, estabelecemos as relações entre os mecanismos do
desconhecimento ideológico e do não-dito na reprodução das relações raciais e do “Mito
da Democracia Racial”, afetando a punibilidade do racismo. Este capítulo busca
responder a seguinte questão: qual a lógica/semântica do Mito da Democracia Racial?
Este capítulo tentará esquematizar, a partir dos mecanismos do não-dito e do
desconhecimento, o dispositivo do Mito da Democracia Racial e suas regras de
formação. O não-dito racista e o desconhecimento ideológico das relações raciais são
práticas hegemônicas que provocam o deslocamento do discurso racial, racista ou não,
do campo do discurso “sério” para o campo do discurso “vulgar”, reproduzindo a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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interdição de um discurso racial “sério”. Este processo é expressão da força hegemônica
do Mito da Democracia Racial. O discurso racista atua no limite do discurso “sério”,
formal ou oficial (“racismo espirituoso”).
Na Segunda Parte, procedemos à análise do corpus de enunciados produzidos no
sistema jurídico penal de Pernambuco e dos efeitos gerados pela atuação da força
hegemônica no fluxo dos casos de racismo. As análises parciais que empreenderemos
formarão um esboço que objetiva testar, de um lado, a adequação do modelo construído,
de outro, o potencial explicativo da teoria desenvolvida acerca do dispositivo do Mito da
Democracia Racial e suas conseqüências no espaço jurídico. Em outras palavras,
testaremos seu rendimento operatório.
No capítulo 8, apresentamos a trajetória e a distribuição estatística dos casos no
interior do sistema jurídico descrevendo os aspectos processuais. O objetivo deste
capítulo é apresentar os efeitos produzidos pela força hegemônica nas trajetórias
assumidas pelo fluxo dos casos no interior do sistema.
No capítulo 9, analisamos as técnicas narrativas e argumentativas, retóricas e
hermenêuticas na produção dos autos como processo de justificação das decisões
efetivadas no fluxo de justiça. Estas formações lingüísticas seriam efeitos paralelos
daquela força hegemônica, acionando recursos semânticos que dão sentido àquelas
trajetórias, legitimando-as. Para tal, constituiremos uma interpretação actancial (cf.
capítulo 9) do modelo apresentado no capítulo 2.
A articulação da distribuição dos casos e dos sentidos é o que chamamos de
Hegemonia Branca no sistema jurídico. E seu efeito, o racismo institucional.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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CAPÍTULO 2
REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
(...) a crítica do céu se converte na crítica da terra, a crítica da religião
na crítica do direito, a crítica da teologia na crítica da Política.
Karl Marx, Introdução à crítica da filosofia do Direito de Hegel.
2.1. Laclau e Foucault: desconstrução e genealogia:
Marco teórico.
Nossa orientação teórico-metodológica inscreve-se no campo da crítica da
ideologia. Esta última será tratada como fenômeno discursivo, enfatizando sua
materialidade e preservando a idéia de que ela refere-se a significados. Para uma teoria
do discurso, a ideologia é menos um conjunto particular de discursos do que um
conjunto particular de efeitos dentro dos discursos. Por exemplo, a fixação do processo
de significação, de outro modo inexaurível, infinitamente produtiva, em torno de
dominantes com os quais o sujeito pode identificar-se, supõe que certas formas de
significação sejam excluídas silenciosamente, repelindo as forças desagregadoras, em
nome da unidade imaginária do mundo da estabilidade ideológica. Além disso, a
ambigüidade e a indeterminação podem encontrar-se como o outro lado dos próprios
discursos ideológicos dominantes. Esses efeitos de determinação ou indeterminação são
traços discursivos, não puramente formais, dependentes do contexto concreto da
elocução, sendo variável de uma situação comunicativa para outra. A ideologia, pois,
não pode ser isolada das formas concretas de intercâmbio social: os contextos sociais
não são unitários nem homogêneos, mas são preenchidos por uma multiplicidade de
interesses sociais em competição, fazendo da ideologia uma luta de interesses sociais
antagônicos no nível da significação. Se a determinação semântica é politicamente
positiva ou negativa (emancipatória ou opressora), depende da correlação de forças entre
os interesses envolvidos no contexto discursivo e ideológico (cf. EAGLETON, 1991:
171-177).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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Não se trata, neste trabalho, de fazer uma crítica que dissiparia de uma vez por
todas o Mito da Democracia Racial, pois este não atua na cabeça, mas resulta das
próprias condições de sua autoprodução. Pelo tempo no qual se conservarem as relações
que o engendram (a cordialidade, a estigmatização, o desconhecimento ideológico, o
não-dito), o Mito da Democracia Racial pode ser combatido, mas não suprimido:
A crítica nunca está desobrigada para com a ideologia. Ela não pode fazer
melhor que desmistificar e resistir, colocar as condições para fazer perder as
ilusões e o desengano reais.
O resto se dá na luta. Onde as armas da crítica não podem mais prescindir da
crítica das armas. Onde a teoria torna-se prática. E o pensamento, estratégia
(
BENSAÏD, 1999: 321).
Nossa Teoria Racial Crítica, portanto, “conhece sua própria incapacidade para
possuir a verdade e dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro” (BENSAÏD, ibidem). Tanto
quanto um programa de pesquisa, a Teoria Racial Crítica se configura como uma agenda
política, momento num processo de transformação social. Isso não a torna menos
objetiva, pois o que exigiria mais objetividade do que a superação do sofrimento ou a
resolução de um problema que pode levar à morte? Em tal cenário, não há lugar para
erros, um engano pode ser fatal. Neutralidade e objetividade não são sinônimas.
Uma teoria do discurso pode ser definida como uma perspectiva construtivista e
relacional sobre as identidades sociais, combinada com uma ênfase na heterogeneidade
do discurso. As identidades sociais são historicamente construídas como diferenças em
um sistema de relações puramente negativas. Não há discurso geral e homogêneo, mas
uma diversidade de discursos que juntos constituem uma formação discursiva (cf.
TORFING, 1999:3).
Uma formação discursiva constitui uma “matriz de significado” ou sistema de
relações lingüísticas dentro do qual são gerados processos discursivos efetivos. É próprio
de uma teoria do discurso pós-estruturalista ver todo discurso marcado inteiramente pelo
poder e desejo e, logo, ver toda linguagem como inevitavelmente retórica.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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Todo discurso tem, assim, como objetivo a produção de certos efeitos de
sentido
17
, afetando reciprocamente organismos sensíveis à atividade significante.
Portanto, o poder ideológico não é apenas uma questão de significado, mas de fazer o
significado aderir, sendo, pois, uma questão de hegemonia.
A partir do exposto, a lingüística será utilizada em nossa pesquisa como teoria
auxiliar e recurso metodológico para operacionalização das Teorias do Discurso de
Foucault e Laclau. Ao escolhermos destacar estes dois teóricos, colocamo-nos,
simultaneamente, em relação com um campo teórico heterogêneo, pelo qual
transitaremos, formado por outros autores como Nietzsche, Marx, Freud, Darwin,
Gramsci, Derrida, Deleuze, Pêcheux, Burity, Stuart Hall, Lacan, Gilroy... Ou seja, nossa
abordagem teórica é mais informada por um amplo campo teórico que optamos por
efetivar mediante uma articulação “polêmica”, ou seja, não sintética, entre Laclau e
Foucault.
2.1.1 Foucault, discurso, poder e sujeito.
A trajetória intelectual de Michel Foucault (1926-1984) pode ser delimitada entre
1961, quando saiu seu primeiro grande livro, e 1984, com seus últimos livros
publicados, e repartido em três momentos que definiriam três modos de produção
histórica das subjetividades:
a) Em um primeiro momento, conhecido como período da “arqueologia”, sua atenção
voltou-se para a pesquisa dos diferentes modos de investigação que produzem, como
efeito, a objetivação do sujeito. Este momento inclui os principais livros publicados
na década de 1960: A história da loucura (1961), O nascimento da clínica (1963), As
palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969);
17
Entendemos sentido como função expressiva contraída por corpos e proposições, fronteira que articula
dois lados: o “expresso da proposição” e o “atributo do estado de coisas”. O sentido não é uma substância,
uma coisa, mas uma função ou disposição, relação ou atributo (cf. DELEUZE, 1999).
RAÇA E JUSTIÇA
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32
b) Em um segundo momento, conhecido como período da “genealogia”, estudou a
objetivação do sujeito naquilo que designa de “práticas divergentes”, mediante a
análise das articulações entre saber e poder. Inclui os principais livros da década de
1970: Vigiar e Punir (1975) e o volume I da História da Sexualidade, intitulado A
vontade de saber (1976);
c) Em um terceiro momento, investigou a subjetivação a partir de técnicas de si e da
constituição do sujeito ético. Inclui os volumes II e III da História da sexualidade,
intitulados, O uso dos prazeres e O cuidado de si (1984), além dos cursos que
Michel Foucault pronunciou em 1981 e 1982 no Collège de France,
respectivamente, “Subjetividade e Verdade” e “A Hermenêutica do Sujeito”.
A obra de Foucault se insere em uma tradição filosófica que passa por Nietzsche
e que, mediante a busca de acontecimentos, descontinuidades e contingências das quais
não se recobra nunca e que nos transformam sempre, aponta o fim do humanismo e da
idéia do “homem” livre para escolher seu destino. Seus escritos têm, portanto, um
enfoque explicitamente histórico, apesar do acento sobre as estruturas e o poder.
Através do método arqueológico, Foucault centra-se na descrição do modo de
existência dos discursos científicos, em especial, os das chamadas ciências humanas que
propiciaram o aparecimento de um campo no qual o “homem” é objeto e sujeito do
saber: “saber que se deu por domínio este curioso objeto que é o homem”.
Trata-se, com Foucault, de adotar quatro procedimentos:
a) Tomar os discursos em sua positividade, como “fatos”, “eventos”, buscando não sua
origem ou sentido secretos, mas suas condições de emergência, as regras que
presidem seu surgimento, seu funcionamento, suas mudanças, seu desaparecimento,
em determinado momento histórico, assim como de novas regras que orientam a
formação de novos discursos em outro momento;
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
33
b) Estabelecer não as regras formais de inteligibilidade dos acontecimentos discursivos,
mas o jogo concreto que define as condições de possibilidade do aparecimento, das
transformações e do desaparecimento de determinado discurso e não de outros, numa
época dada;
c) Estabelecer o conjunto de regras que definem aquele jogo que autoriza o que é
permitido dizer, como se pode dizê-lo, quem pode dizê-lo, a que instituições e
práticas sociais está vinculado o que é dito, enfim, o que deve ou não ser aceito como
verdadeiro;
O discurso, em Foucault, é uma prática regulamentada que dá conta de um
conjunto limitado de enunciados que se apóiam na mesma formação discursiva, e para os
quais podemos definir um conjunto de condições de existência (Cf. FOUCAULT, 2002).
O enunciado é um acontecimento discursivo, uma singularidade, que atravessa
um domínio diversificado de unidades possíveis, efetivando-as, na medida em que lhes
dá conteúdos concretos. Trata-se de uma função, que nem a língua nem o sentido podem
esgotar inteiramente, que se caracteriza por quatro elementos básicos: um objeto
(princípio de diferenciação), um sujeito (“posição” a ser ocupada), um campo associado
(coexistência com outros enunciados), materialidade específica (coisas efetivamente
ditas, escritas, gravadas em algum tipo de material, passíveis de repetição ou reprodução,
ativadas por técnicas, práticas e relações sociais concretas.). Um enunciado é um
acontecimento que individualiza e atualiza uma formação discursiva:
(...) função de existência que pertence, exclusivamente aos signos, e a partir da qual
se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles ‘fazem sentido’ ou
não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie
de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita) (
FOUCAULT,
2002: 99).
Uma formação discursiva é um feixe complexo de relações que funcionam
prescrevendo o que deve ser articulado em uma prática discursiva. Trata-se de um
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
34
princípio de dispersão, de repartição e de repetição dos enunciados, matriz de sentido na
qual as significações aparecem como óbvias, “naturais”. Foucault mostrou que um
discurso não pode encontrar seu princípio de unidade na referência a um mesmo objeto,
nem em um estilo comum na produção de significado, nem na constância de seus
conceitos, nem, enfim, na referência a um tema comum. A coerência de um discurso é
dada apenas na forma de uma regularidade
18
na dispersão – a formação discursiva:
Sempre que se puder descrever entre um certo número de enunciados, semelhante
sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações,
posições, funcionamentos, transformações) entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma formação discursiva
(
FOUCAULT, 2002:43).
Todo discurso efetiva um conjunto de regras que autorizam o que é permitido
dizer, como se pode dizê-lo, quem pode dizê-lo, sob que circunstâncias etc. O discurso
sempre se produziria em razão de relações de poder.
No momento chamado “genealogia do poder”, sua atenção voltar-se-á para as
práticas do poder, para as relações que se estabelecem entre produção de saberes
reconhecidos como verdadeiros e os exercícios do poder. Foucault tentou discernir, de
um lado, as regras de direito que delimitam formalmente o poder e, de outro, os efeitos
de verdade que este poder transmite e que o reproduzem.
Para Foucault, a genealogia revela “sob a forma das instituições ou das
legislações, o passado esquecido das lutas reais, das vitórias ou das derrotas
dissimuladas, o sangue seco nos códigos” (FOUCAULT, 1999b:324). Porém o conflito
não está apenas no passado das instituições, muito menos em seu exterior. A política é,
invertendo uma proposição de Clausewitz, a guerra continuada por outros meios (cf.
FOUCAULT, 1999b:23).
18
Segundo Deleuze, para Foucault, a regularidade das enunciações é a linha da curva que passa pelos
pontos singulares, ou valores diferenciais do conjunto enunciativo. Da mesma forma, as relações de força
são definidas pela distribuição de singularidade dentro de um campo social. Uma formação discursiva
pode, portanto, ser representado como o “retrato de fase” de um determinado campo de vetores sociais.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
35
A história não tem ‘sentido’, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente.
Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes,
mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas (
FOUCAULT
apud MUCHAIL, 2004:31
).
O poder não é algo que uns têm e outros não, cumprindo uma função meramente
repressiva. O poder se caracteriza como operações difusas e complexas, não estando
confinadas aos exércitos e parlamentos, mas se estende em uma rede de força penetrante
e intangível que articula os menores gestos e declarações íntimas (EAGLETON,
1997:20). Isso é o que Foucault chama micro-física do poder. Os textos da sua “analítica
do poder” polemizam com a teoria althusseriana dos aparelhos ideológicos de Estado, ao
criticar e dissolver a idéia de centralidade do Poder do Estado
19
.
Para Foucault, o poder era criativo e construtivo, tanto quanto repressivo.
Ademais, todo poder pressupõe resistência e, portanto, tem um caráter problemático, ou
seja, põe e procura superar uma problemática. Daí sua relação, mediante o discurso, com
o saber e a verdade. Esta só pode se manifestar a partir de uma posição de combate, cuja
relação de força libera a verdade que se torna, por sua vez, uma arma na relação de
força:
A verdade fornece a força, ou a verdade desequilibra, acentua as dissimetrias e
finalmente faz a vitória pender mais para um lado do que para outro: a verdade é
um mais de força, assim como ela só se manifesta a partir de uma relação de força
(
FOUCAULT, 1999b:62).
Com isso, Foucault não está afirmando que a verdade é aquilo que dizem os
vencedores ou dominadores – a verdade pode significar a quebra de um certo equilíbrio
assimétrico de forças, levando à emancipação de um grupo antes sujeitado. Foucault não
reduz a verdade à subjetividade do “dono do poder”, ao contrário, condiciona a verdade
à objetividade das relações de poder. Se, como defende Foucault, o poder não tem dono,
19
A ausência, em Foucault, de categorias clássicas do marxismo (ideologia, luta de classes, contradição,
práxis, super-estrutura...), acompanhada da presença de problemáticas históricas semelhantes, levou
Pêcheux a classificá-lo como “marxista paralelo”(GREGOLIN, 2004:119)
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
36
a verdade também não. Mas é devido àquela força a mais da verdade que a produção
desta é controlada, através do controle do discurso, ou, nas palavras de Foucault, do
processo de rarefação do discurso.
As articulações entre saber e poder são, assim, mediadas pelos modos de
produção da verdade. Por “verdade” deve-se entender o conjunto de regras segundo as
quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de
poder. Por seu turno, o poder é compreendido como exercício, como prática, que existe
em sua “concretude”, multifacetado e cotidiano, pulverizando-se no social em inúmeras
micro-técnicas de poder. Ademais, todo poder para Foucault pressupõe resistência: só há
poder onde há resistência ao poder.
Foucault, então, amplia o âmbito de suas análises preocupadas com discursos
para a noção mais complexa de “dispositivo estratégico” que envolve articulações entre
elementos heterogêneos, discursivos e extradiscursivos, priorizando o cruzamento com a
trama das instituições e práticas sociais.
O dispositivo é:
um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições científicas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. (...) Mas, em
relação ao dispositivo, não é muito importante dizer: eis o que é discursivo, eis o
que não é (
FOUCAULT, 1979:247).
Enfim, num terceiro momento, Foucault abordará os procedimentos de
subjetivação que constituem, para os sujeitos, a “experiência” da identidade, mediante as
“técnicas de si” e a “governamentalidade”. Neste enfoque, a perspectiva que ele
privilegia não é a dos códigos morais, jurídicos ou religiosos, ou das leis definidoras do
que é permitido ou interditado, mas a da conduta, da “autonomia”, ou seja, do modo de
comportar-se ou das posições e decisões perante códigos e leis, que Foucault chama de
“práticas de si”, “técnicas de vida”, “artes da existência”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
37
O “sujeito”, portanto, é pensado como uma fabricação, uma construção realizada,
historicamente, pelos acontecimentos discursivos que é preciso descrever para analisar
os diferentes modos de subjetivação.
Evidentemente, os três momentos descritos não são etapas estanques, mas
indicam predominâncias de certos temas, de certas teorizações, derivadas do momento
histórico, das lutas políticas nas quais estão imersas. Porém podemos destacar, pelo
menos, dois eixos comuns: primeiro, um mesmo propósito de descrever através de quais
jogos de verdade o “homem” se dá seu “ser próprio” a pensar; um segundo eixo comum
desses escritos está em que todos se direcionam a “problematizações”, ou seja, o
conjunto de práticas discursivas ou não discursivas que define como e porque alguma
coisa entra no jogo do verdadeiro e do falso, constituindo-a como objeto para o
pensamento. Estes dois eixos são analisados a partir de suas variações no tempo, de suas
mudanças históricas, como acontecimentos discursivos.
Desde a Arqueologia do saber, no final da década de 60, quando é muito forte
sua ligação com o estruturalismo, Foucault imprimiu novas inflexões ao seu trabalho,
aproximando-se de Nietzsche e dos historiadores da Nova História na constituição de
seu método arqueológico. Do mesmo modo, A Ordem do Discurso (1971) representa um
momento de passagem entre a arqueologia do saber e a genealogia do poder. Ademais,
suas pesquisas sobre a genealogia e a micro-física do poder já envolvem a questão das
técnicas de governo de si e dos outros, predominantes no terceiro momento. A noção de
dispositivo integraria estes diferentes elementos.
Segundo Deleuze, o dispositivo é uma espécie de novelo ou meada, um conjunto
multilinear, composto por linhas de natureza diferente, que não abarcam nem delimitam
sistemas homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas
seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio. Cada linha está
RAÇA E JUSTIÇA
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quebrada e submetida a variações de direção (bifurcações) submetida a derivações. Os
objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa
determinada posição são como que vetores ou tensores.
Portanto, as três grandes instâncias que Foucault distingue (Saber, Poder,
Subjetividade) não possuem, de modo definitivo, contornos definidos, mas são cadeias
de variáveis relacionadas entre si. Os dispositivos têm, pois, como componentes, linhas
de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação que se
entrecruzam e se misturam, enquanto suscitam, através de variações ou mesmo de
mutações de disposição, processos singulares de unificação, de totalização, de
verificação, de objetivação, de subjetivação, processos imanentes a um dado dispositivo.
Estes processos vão ter por resultado uma formação discursiva.
Por fim, as preocupações meta-teóricas de Foucault são marcadas por um acento
metodológico mais do que ontológico ou hermenêutico, ou seja, pelo desenvolvimento
de procedimentos para análise do funcionamento, das condições de existência, não da
interpretação do sentido do discurso.
2.1.2 Laclau, discurso, hegemonia e antagonismo social.
Nas lutas de Maio de 68, destacou-se uma “Esquerda althusseriana” que fundou
os Cahiers Marxistes-leninistes. Vários intelectuais iniciaram suas carreiras através do
apoio de Althusser, como, por exemplo, Jacques Lacan, que realizou seu Seminário na
École Normale. Foucault e Derrida, alunos de Althusser, apesar das diferenças teóricas e
ideológicas, estavam sempre próximos ao grupo althusseriano e de seus cursos e
discussões, nas quais Espinosa e Nietzsche eram lidos avidamente.
Os avanços teóricos do marxismo estrutural de Althusser podem ser resumidos
da seguinte forma:
RAÇA E JUSTIÇA
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39
a) Afirmação do caráter sobredeterminado das relações sociais e lutas políticas que
seriam capazes de condensar uma multiplicidade de significados diferentes em
unidades simbólicas com efeitos reais sobre a vida social, cultural e política;
b) Enfoque no papel da ideologia e dos aparelhos ideológicos de Estado;
c) Descentramento radical do sujeito que somente existe como uma articulação de
posições de sujeito dispersas;
d) Preocupação com as contradições internas e a autonomia relativa do Estado;
e) Defesa da noção gramsciana de hegemonia como chave para compreender a
interpenetração do Estado e da economia, embora desfera forte ataque ao
historicismo político de Gramsci;
f) Insistência no necessário pertencimento de classe dos elementos ideológicos;
g) Afirmação da determinação em última instância pela economia.
Laclau, em meados dos anos 1979 e início da década de 1980, destinou uma
crítica ao marxismo estrutural, principalmente à tendência economicista nos trabalhos de
Althusser, Balibar e Poulantzas, que destituíram o político de sua especificidade,
definiram o Estado em termos funcionalistas e instrumentalistas, e reduziram as
interpelações ideológicas ao seu necessário conteúdo de classe. Para tal crítica, Laclau
utilizou-se das noções gramscianas de hegemonia, bloco histórico, vontade coletiva,
reforma moral-intelectual e ideologia nacional popular. Estas noções não somente
ajudam-no a entender a construção política de relações institucionais entre Estado,
economia e sociedade civil, mas, também, possibilitam pensar as interpelações
ideológicas que não são redutíveis a um conteúdo particular de classe.
A partir de meados dos anos 1980, Laclau procurou remover os resquícios
essencialistas em Gramsci, que insistia sobre a posição privilegiada das classes
fundamentais nas lutas hegemônicas. Para tal, o conceito de hegemonia seria
RAÇA E JUSTIÇA
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40
reformulado: não seria mais considerado em termos da unificação de forças políticas a
partir de um conjunto de interesses que são constituídos em si mesmos, mas envolveria a
articulação de identidades sociais em um contexto de antagonismo social, revelando,
pela desconstrução da noção de estrutura, o caráter discursivo, e, portanto, contingente
de toda/o identidade/interesse social.
A partir do final da década de 1980, Laclau desenvolve sua teoria do sujeito e de
sua subjetivação através de diferentes práticas hegemônicas. Inspirado pela psicanálise
lacaniana, afirmará que o “sujeito” emerge como um lugar vazio de uma falta numa
estrutura deslocada, constituindo-se como uma identidade plenamente adquirida em uma
totalidade social recomposta
20
. A construção da identidade, assim como, a recomposição
da estrutura social são processos inerentemente políticos, reforçando a primazia do
político na teoria de Laclau.
A combinação de desconstrução pós-estruturalista, psicanálise lacaniana e teoria
neogramsciana definiu o que se tem chamado de “pós-marxismo” em Laclau
21
. Segundo
Torfing (1999), o pós-marxismo de Laclau é organizado em torno de três conceitos
básicos: discurso, hegemonia e antagonismo social.
20
Conferir na seção seguinte as considerações sobre o papel da noção de “falta” no pensamento de Laclau.
21
“A primeira coisa que se pode dizer a propósito do termo "pós-marxismo" é que ele descreve um
esforço para dar conta rigorosamente do status das "apropriações", "influências" ou "articulações" entre o
arsenal analítico e político do marxismo e as correntes e movimentos externos àquele com os quais se
buscaram alianças para enfrentar aspectos do desenvolvimento da sociedade capitalista ausentes ou mal
trabalhados nos clássicos do marxismo. Dentre esses campos teóricos, salientam-se aqueles que se
ocupavam de questões ligadas à subjetividade (ex. psicanálise), à crítica da concepção positivista de
realidade, do "dado" (ex. fenomenologia e filosofia analítica), à relação entre linguagem e o social
(linguística estrutural), e mais significativamente, enquanto moldura da própria empreitada laclauiana, a
crítica da tradição onto-teo-lógica da metafísica de Heidegger (e sua radicalização em Derrida)”.
(BURITY, 1997a: texto on-line).
RAÇA E JUSTIÇA
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41
O discurso, em Laclau, é concebido como um conjunto diferencial de seqüências
significantes no qual o significado é constantemente renegociado, como uma totalidade
significativa que transcende a distinção entre o lingüístico e o não-lingüístico
22
.
O discurso é uma conseqüência de práticas hegemônicas de articulação que nos
conduzem de um nível indecidível de abertura não totalizável de discurso
(singularidade) para um nível decidível de discurso (determinação) (cf. TORFING,
1999: 102). A indecidibilidade não significa a impossibilidade de qualquer decisão, mas
define a ausência de uma necessidade lógica, uma lei imanente ou uma relação de forma
e conteúdo a exigir a priori um resultado em detrimento de outro.
O discurso é definido como um conjunto de seqüências significantes, mas se a
lógica relacional e diferencial prevalece sem alguma limitação ou ruptura, não haveria
lugar para o político. Contudo, na ausência de um centro fixo, totalização completa, o
discurso torna-se impossível. Portanto, haverá sempre algo que escapa aos processos,
aparentemente infinitos, de significação no discurso. A multiplicidade de centros
mutuamente substituíveis apenas se dá sobre uma ordem precária, produzindo uma
fixação de significado. A fixação parcial de significados produz um excesso irredutível
de significados que escapam à lógica diferencial do discurso. O campo de excedentes
irredutíveis é chamado de campo de discursividade que fornece os parâmetros de uma
fixação parcial de significado. O campo de discursividade, de um lado, oferece a
estrutura diferencial que toda fixação de sentido deve necessariamente pressupor. Por
outro lado, esta estrutura não é completamente absorvida pelo discurso e, então, continua
a constituir um campo de indecidibilidade que constantemente subverte a tentativa de
fixar uma série estável de posições diferenciais em um discurso particular. O campo de
22
“O sistema de diferenças/relações constituído pela linguagem (no sentido de fala/escrita), ao invés de
ser o modelo da realidade social, antes retrata o caráter de toda a estrutura significante, por conseqüência,
de toda a estrutura social”. BURITY, 1997a: texto on-line.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
42
discursividade é o que torna possível a articulação de uma multiplicidade de discursos
em disputa. Existe, pois, uma grande afinidade entre os conceitos de formação discursiva
e campo de discursividade: como condições “materiais” de produção do discurso, ainda
que ambos não se confundam. A formação discursiva é como um retrato de fase de um
campo de discursividade. Uma formação discursiva define-se por linhas de variação
inerente ou por um campo de vetores que se distribuem no espaço associado, campo de
discursividade.
As práticas e papéis sociais, no interior do campo de discursividade, campo de
articulações possíveis, são unidades diferenciais (quanta de forças) que atravessam o
campo como dimensão virtual, espaço vetorial, atualizando-se em processos de
articulação/desarticulação, e cuja identidade é uma síntese de identificações.
Como veremos, o jogo de significado e a subversão do discurso são as condições
de possibilidade da articulação hegemônica. Dito de outra forma, a fixação sempre
parcial e disputada do processo de significação é o que define a hegemonia: “Desta
maneira, a prática articulatória e a emergência do antagonismo são duas condições
indispensáveis à emergência de práticas hegemônicas” (BURITY, 1997a: texto on-line).
Laclau acredita, como Foucault, que não há princípio de coerência e que os
discursos devem ser entendidos como sistemas mais ou menos regulados de dispersão.
Os acontecimentos discursivos são dispersos, mas os efeitos ordenadores do sentido são
fatores que dão certa regularidade que pode ser significada como uma “totalidade”. A
teoria da hegemonia tenta responder à questão de como os limites de uma formação
discursiva são estabelecidos.
As articulações dos elementos do discurso operam num campo cruzado por
projetos articulatórios antagonistas que Laclau (1986) denomina de práticas
hegemônicas, nas quais se dá a articulação/desarticulação das práticas e papéis sociais,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
43
conforme a constituição das diversas identidades sociais, que estão sujeitas àquelas
práticas articulatórias, não sendo intrínseca ou integralmente adquiridas, definitivamente
constituídas. Uma ideologia hegemônica reflete não apenas a visão de mundo dos
dominantes, mas as relações entre grupos dominantes e dominados como um todo. A
ideologia hegemônica é polifônica: “(...) é um domínio de contestação e negociação, em
que há tráfego intenso e constante: significados e valores são roubados, transformados,
apropriados através de fronteiras de diferentes classes e grupos, cedidos, recuperados,
reinfletidos” (EAGLETON, 1997:96). Um grupo hegemônico é aquele capaz de deixar
seu momento corporativo, particularista, e interpelar e organizar uma “vontade coletiva”
muito maior e mais complexa. O hegemônico se apresenta como verdade ou valor, geral
ou universal: direito, justiça, democracia, igualdade, liberdade, humanidade, razão,
civilização, evolução, progresso, desenvolvimento... Em termos práticos, uma
hegemonia é uma aliança de forças, e sua visão de mundo é o resultado de uma síntese
de vários componentes ideológicos em uma “vontade coletiva”. Já nas práticas
discursivas, são produzidas, reproduzidas, questionadas e transformadas as estruturações
hegemônicas.
Nesta perspectiva, a noção de hegemonia de Laclau envolve a articulação de
identidades sociais em um contexto de antagonismo social. A desconstrução revela o
caráter discursivo e, logo, contingente de todas as identidades sociais e seu substrato
político, ou seja, as/os identidades/interesses sociais não são o ponto de partida da
política, mas algo que é construído, mantido ou transformado nas e através das lutas
políticas (cf. TORFING, 1999:82). A desconstrução se caracteriza por destacar um
elemento do discurso analisado cuja ambigüidade, contraditoriedade ou oscilação de
sentido revelaria a abertura de sentido do discurso, assim como a arbitrariedade da
decisão tomada pelo sujeito (individual ou coletivo) na tentativa de controlar o
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
44
deslizamento de sentido, ou seja, a instabilidade semântica de seu próprio discurso,
sempre sujeito a ambigüidades, mal-entendidos, mal-ditos, não-ditos...:
El análisis[...], debe comenzar por las identidades ‘objetivas’ explícitas
23
de los
agentes sociales – aquellas que los constituirían en su ‘plenitud’ como agentes – y
subrayar luego las dislocaciones que impurifican esa plenitud.
[...] Estudiar las condiciones de existencia de una cierta identidad es equivalente
[...] a estudiar los mecanismos de poder que la hacen posible (
LACLAU, 1993a:
48).
A hegemonia significa articulação contingente, “externalidade” da força articuladora
em relação aos elementos articulados, não podendo ser pensada como uma separação
efetiva dos níveis no interior de uma totalidade plenamente constituída. A intervenção
hegemônica é uma intervenção contingente efetivada num campo marcado por oposições
indecidíveis. Esta intervenção materializa-se através de uma decisão ética, introduzida
como um elemento “externo” (“exterior constitutivo”), a fim de fixar o sentido ou
suturar a abertura marcada pela indecidibilidade, ou seja, o conjunto de regras que define
o sentido não o determina de forma unívoca, mas exige uma série de atos de decisão que
supere a indeterminação. Contudo, o antagonismo de forças impede a plena constituição
das identidades como objetividades, isto é, do social como ordem objetiva.
24
O antagonismo é o limite de toda objetividade, de toda identidade, enfim, de toda
fixação de sentido (cf. MENDONÇA, 2003). Em sua dimensão pragmática, o
antagonismo se apresenta quando os impulsos conflitantes da ação praticamente
impedem seu sujeito de realizar com sucesso sua atividade habitual, tirando do objeto da
ação seu caráter de objeto. O antagonismo social põe em questão o sentido das estruturas
e instituições sociais, tornando-as dependentes de movimentos estratégicos contingentes:
23
Daí que possamos nos utilizar, quando necessário, dos métodos e conceitos fenomenológicos e
interacionistas que expressam as identidades objetivas explícitas, intuitivas, sentidos imediatos,
plenamente presentes aos sujeitos, como ponto de partida para análise de discurso, apresentando as
relações de poder aparentemente ausentes das experiências e práticas sociais, mas constitutivas destas
últimas.
24
Podemos, assim, representar toda identidade e objetividade social por uma “geometria fractal”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
45
La estrategia implica (...) un momento de articulación – la institución de lo social –
; un momento de contigencia, en la medida en que ese acto instituyente particular
es solo uno entre aquellos que resultan posibles en un contexto dado, y un momento
de antagonismo, puesto que la institución resulta posible tan solo a través de una
victoria hegemónica sobre voluntades en conflicto (
LACLAU, 1998: 135).
É aqui que entra a noção de poder: toda decisão implica reprimir ou subordinar
outras decisões possíveis. O poder para Laclau é ambíguo, pois reprimir algo supõe a
capacidade de reprimir, porém supõe, também, a necessidade de reprimir, o que implica
limitação de poder. Isto significa que o poder é a marca da contingência:
La objetividad – el ser de los objetos no es en tal sentido otra cosa que la forma
sedimentada del poder – es decir, un poder que ha borrado sus huellas (
LACLAU,
1993a.:?).
Todo sujeito para Laclau é por definição político, fora do qual só existem posições
de sujeito no campo geral da objetividade. Porém, o sujeito não pode ser objetivo, pois
se constitui nas margens irregulares da estrutura.
[...] explorar o campo de emergência do sujeito nas sociedades contemporâneas é
examinar as marcas que a contingência inscreveu nas estruturas aparentemente
objetivas das sociedades em que vivemos (
LACLAU apud BURITY, 1997a: texto
on-line).
Pelo exposto até aqui, vê-se que as preocupações de Laclau são marcadas por um
acento hermenêutico-ontológico, enfocando as questões da fixação e da contingência do
“sentido do ser”.
2.1.3 Laclau com Foucault.
Explicitaremos, agora, a decisão de articular aqueles dois autores e, portanto,
enfrentar as contradições dela decorrentes. Antes de tudo, deve-se afirmar que a mera
divergência acerca da definição e abrangência do “discurso” entre os autores trabalhados
não é um obstáculo intransponível para a articulação dos modelos. O discurso, segundo a
definição adotada neste trabalho, não é redutível ao seu componente lingüístico, que
pode estar ausente de uma série de acontecimentos discursivos, porém, nossa definição
não descuida da atenção aos elementos extralingüísticos. Esta observação é importante,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
46
pois evita que caiamos na clausura do “politicamente correto”, no purismo fetichista das
palavras: devido a este fetichismo semântico, paradoxalmente, a “luta” do movimento
anti-racista pela linguagem “politicamente correta” participa do mesmo mecanismo do
Mito da Democracia Racial – o não-dito. A não redução do discursivo ao lingüístico não
significa, contudo, a abolição da distinção entre o lingüístico e o não-lingüístico,
componentes do discurso. Tal distinção, ainda que móvel, é importante para o próprio
funcionamento da linguagem, sendo instituída pelas práticas discursivas, articulatórias.
O que torna a linguagem possível é o que separa (desarticula) os sons e os traços dos
corpos e os organiza (articula) em proposições, tornando-os livres para a função
expressiva. O discurso integra os acontecimentos discursivos, as diversas práticas
(discriminatórias ou não), singularidades
25
numa “série integral” de sentidos, vetores
tangentes à linha de força do discurso que atravessa o campo de discursividade, espaço
vetorial.
O que conta é a regularidade do enunciado: não uma média, mas uma curva. O
enunciado, com efeito, não se confunde com a emissão de singularidades que ele
supõe, mas com o comportamento da curva que passa na vizinhança delas, e mais
geralmente com as regras do campo em que elas se distribuem e se reproduzem. É
isso uma regularidade enunciativa (DELEUZE, 1988a: 16).
O sentido de um enunciado ou ação atua como um vetor que atravessa e conecta
os seus diversos elementos (sintagmáticos ou pragmáticos, semânticos ou corpóreos) num
discurso, como linha de força, unidade contínua de sentido
26
. Por exemplo, a figura 2.8.
25
Em matemática, uma singularidade é um ponto onde uma função assume valores infinitos ou, de certa
forma, tem um comportamento não definido, ou um ponto de um conjunto excepcional onde ele não é
“bem comportado” de alguma maneira particular, como em diferenciação. Uma singularidade é um ponto
onde o campo de vetores é nulo (ponto de equilíbrio) ou onde ele não está definido, sendo o ponto crítico
no campo.
26
“A aproximação com o cálculo diferencial pode parecer arbitrária e ultrapassada. Mas o que está
ultrapassada é somente a interpretação infinitista do cálculo. Já no fim do século XIX Weiertrass dá uma
interpretação finita, ordinal e estática, muito próxima de um estruturalismo matemático” (DELEUZE,
1999:53 nota 2). Cf., também, RUSSEL, 1963: Não há nada nas noções de limite de uma função ou de
continuidade de uma função que envolva essencialmente número. Tais noções podem ser generalizadas de
modo a serem aplicadas às séries em geral e não apenas às que são numéricas ou numericamente
mensuráveis. Estas noções e outras serão importantes na construção do modelo que construiremos no
restante deste capítulo e sua aplicação nos demais capítulos.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
47
A noção de discurso em Laclau aproxima-se da noção de dispositivo estratégico
de Foucault ao tratar o discurso como algo que envolve articulações entre elementos
heterogêneos, lingüísticos e extralingüísticos.
Portanto, adotaremos a concepção laclauliana de discurso como uma totalidade
significativa que transcende a distinção entre o lingüístico e o não-lingüístico. Porém,
acreditamos que a distinção foucauldiana entre discursivo e não-discursivo pode ser
traduzida na distinção “lingüístico” e “não-lingüístico”, ainda que Foucault não reduza o
discursivo ao lingüístico (o enunciado, unidade elementar do discurso, não se confunde
com a frase na gramática, com a proposição na lógica nem com o ato de linguagem na
filosofia analítica: “Língua e enunciado não estão no mesmo nível de existência”
(FOUCAULT, 2002: 97)). Adotaremos uma noção de lingüístico que não se reduz à
língua conforme definida pela lingüística, mas se refere aos enunciados, conforme
definidos por Foucault (ver acima). Mesmo que não se reduza ao lingüístico, o
enunciado sempre lhe remete, quer enquanto sintagma (gramática), quer enquanto
referência (lógica), quer enquanto ato de linguagem (análise). O que torna uma frase,
uma proposição, um ato de fala em um enunciado é justamente a função enunciativa: o
fato de ser produzido por um sujeito em um lugar institucional, determinado por regras
sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado.
Assim, podemos então, falar em componentes lingüísticos (enunciativos) e não-
lingüísticos (não-enunciativos) do discurso (dispositivo). O fato de esta oposição não ser
absoluta não a impede de funcionar e sob certos limites, ser indispensável.
A articulação dos modelos de Foucault e Laclau implicará, pois, indecidibilidades e
deslocamentos de sentido que exigirão decisões ético-teóricas de nossa parte,
constituindo possíveis pontos nodais (pontos de fixação de sentido), parciais, ad hoc,
principalmente em torno de categorias como discurso, poder e sujeito. Isso implica, por
RAÇA E JUSTIÇA
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48
seu turno, responsabilizações que exigem justificativas: mas, afinal, por que Laclau com
Foucault? A ausência, em Laclau, a) da explicitação dos dispositivos de violência
ligados às estruturas hegemônicas e ao antagonismo social (parafraseando Foucault: “O
que se encontra, o que se enfrenta, o que se entrecruza” no antagonismo social de
Laclau “não são armas, não são punhos, não são forças selvagens e desenfreadas. Não
há batalhas (...), não há sangue, não há cadáveres” (FOUCAULT, 1999b: 106)); b) a
ausência de uma noção mais institucional de discurso, com atenção ao não-lingüístico;
enfim, c) de uma metodologia consoante à sua teoria do discurso, que permita
operacionalizá-la em uma pesquisa social das práticas discursivas concretas, conforme
os pontos a) e b) acima. Em outras palavras, podemos resumir afirmando que faltam os
corpos na teoria de Laclau. Acreditamos que Foucault possa satisfazer essas demandas,
que são menos lacunas ou falhas da Teoria de Laclau, que demandas colocadas por
nossas pretensões teóricas e metodológicas.
Ademais, a teoria de Laclau ainda é profundamente marcada por uma “metafísica da
falta”, acentuando o aspecto indeterminado do ser. A própria “falta” é uma interpelação
da estrutura àquilo que lhe escapa, nomeia seu “outro” como “falta” como forma de
contê-lo ou fixá-lo. A singularidade e o devir torna-se, então, particularidade e
desenvolvimento (a diferença torna-se negação, o antagonismo, dialética). Porém, a
noção de sobredeterminação em Laclau conduz a uma concepção criativa do poder, que
tanto fixa, quanto excede o sentido. O poder não apenas fixa, mas desloca, não apenas
reprime, mas subverte, não apenas nega, mas afirma (a exuberância, o excesso, não a
falta de ser). É neste sentido, que o poder é constitutivo, imanente. O que se aproxima
mais da concepção de poder de Foucault. Na verdade, parece haver dois níveis de análise
em Laclau: um instituído (nível da determinação e da identidade), cuja desconstrução
revela a indeterminação, a contingência e a falta que o habitam, denunciando sua falsa
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
49
plenitude e remetendo para um segundo nível do instituinte (nível da singularidade e do
acontecimento), onde nada falta, mas excede, transborda e flui. Estes dois níveis são
relacionados e problematizados pelas e nas relações de poder. A desconstrução torna
possível, por um lado, ampliar o campo da indecidibilidade estrutural e, por outro lado,
abre o terreno para uma teoria da decisão enquanto tomada em um contexto indecidível.
A desconstrução é, pois, uma diagnose na qual a “falta estrutural” é um sintoma que
expressa uma dinâmica subjacente apresentada pela genealogia do poder. É preciso,
pois, ir além da mera desconstrução, desenvolvendo uma teoria da decisão, com um
modelo correspondente. É isto que tentaremos na seção 2.4.
Para isso, articularemos a genealogia foucauldiana com a desconstrução pós-
marxista de Laclau, destacando, assim, a grande afinidade entre a noção de vontade de
verdade em Foucault e o conceito de hegemonia em Laclau, na medida em que todo
discurso é uma tentativa de dominar o campo da discursividade, deter o fluxo das
diferenças, construir um centro, dizer a verdade do social. Com a genealogia e a
desconstrução pretendemos problematizar noções como identidade, unidade,
originalidade e significação, mediante o uso de noções como acontecimento, práticas,
série, regularidade, possibilidade, acaso, contingência, descontinuidade, dependência,
articulação, transformação (Cf. FOUCAULT, 2002. GREGOLIN, 2004:107).
Porém, tal processo não se faz sem confrontar e superar, resolver ou suspender
contradições, antagonismos ou incompatibilidades entre as teorias, muitas vezes
invisíveis e inauditos. Pretendemos enfrentar esse percurso no decorrer do texto, em suas
margens, entrelinhas e rodapés.
Vejamos, então, como estas reflexões teórico-metodológicas se efetivam no estudo
de objetos como “raça”, “direito”, “justiça” nas relações de poder de um discurso.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
50
2.2. Raça e Direito: discurso e identidade:
Discussões conceituais.
Identificar as propriedades de uma “raça”, definindo-a como “negra” ou
“branca”, é menos uma questão teórica previamente definida, que uma questão política
da construção das identidades raciais envolvidas. Em determinados contextos sociais, os
agentes chegam, até, a negar a existência, ou melhor, o valor de verdade da categoria
“raça”: é o anti-racialismo – “raças não existem
27
. É preciso, pois, pôr entre parênteses
as categorias raciais e sociais utilizadas:
Não se trata, é claro, de recusá-las definitivamente, mas sacudir a quietude com a
qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são
sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser controladas; definir em
que condições e em vista de que análises, algumas são legítimas; indicar as que, de
qualquer forma, não podem mais ser admitidas (
FOUCAULT, 2002:29).
Usaremos “sob rasura” termos como “raça”, “negro”, “branco”, ou seja, riscados de
tal forma que os apagamos, mas os deixando legíveis: como veremos já não é mais
possível usá-los, mas (ainda) é necessário fazê-lo
28
. Contudo, não há como evitar a
reiteração, a reinscrição, enfim, o “contágio”, no discurso científico, pelo “uso natural”
daqueles termos pelos atores nas relações raciais cotidianas.
29
A categoria “raça” é interpretada como um predicado minimamente objetivo:
Segundo a objetividade mínima, o que parece certo para a maioria da comunidade
determina o que é certo. No que diz respeito à teoria do significado, isso é
simplesmente uma forma de ‘comunitarismo lingüístico’: o modo como a maioria
dos falantes está disposta a usar uma palavra fixa o seu significado. (...) Segundo a
27
Esta “negação da raça” se dá quer pela enunciação de uma “verdade genética” da inexistência das raças,
quer através da afirmação de uma “identidade mestiça”: no Brasil não existem brancos ou negros puros...”.
28
Cf. o conceito de rasura em DERRIDA, 2002 e 2004. Uma Teoria Racial Crítica deve constituir-se,
assim, no que Abraham Moles (1995) denominou de ciência do impreciso, formada por fuzzy concepts
(conceitos fluidos) tais como “identidade racial”, “raça”, “discurso”, “jogos de linguagem”: “Conjuntos
(fuzzy sets) que, permanecendo perfeitamente operacionais novel do pensamento e da criação, possuem
definições bastante vagas e que não é útil que sejam precisados abusivamente, pois uma definição estreita
demais evacua seu valor heurístico e, de fato, os esvazia de seus conteúdos” (52).
29
“na medida em que toda identidade ou objeto traz em si as marcas de tantas outras passagens e
inscrições – antigas e recentes, marcas que foram feitas na própria identidade ou objeto, ou que remetem a
outras que tecem uma história ou trajetória de traços, não se pode evitar a possibilidade de
repetições
(BURITY, 1997a:12).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
51
objetividade mínima, os indivíduos não são a medida de todas as coisas, mas suas
práticas coletivas ou convergentes são (COLEMAN & LEITER, 2000: 379 e 380).
O que Coleman & Leiter não abordaram foi o antagonismo social subjacente a toda
comunidade lingüística e que torna parcial toda objetividade. Não se trata, pois, de um
critério quantitativo de “maioria” e “minoria”, mas de relações de poder que instituem o
“modo maior” do discurso majoritário em oposição ao “modo menor” do discurso
minoritário. Ademais, dessa forma, o antagonismo põe em questão a ditadura da
maioria. Contudo, é aquele mesmo antagonismo que torna possível qualquer
objetividade, pois impede a apropriação ou assimilação plena da realidade significada
pelo sujeito, mesmo que na forma de um sujeito coletivo (comunidade lingüística),
garantindo a autonomia ou independência relativa daquela realidade. Assim, por
exemplo, a identidade do discurso jurídico deve ser desconstruída, assim como as
próprias identidades raciais.
Desta forma, nosso pressuposto é que as identidades sociais (raciais ou não)
tornam-se tão mais ambíguas e ambivalentes quanto maior é a sua importância social,
como posições ou objetos de disputa política, de afirmação ou negação das identidades
30
.
Quanto maior os níveis de antagonismo social, mais intensas serão as zonas de
instabilidade semântica por ele produzidas. O antagonismo social mantém sempre em
aberto ou parcial a negociação e articulação de significados, produzindo, assim,
indeterminação ou sobredeterminação das relações sociais.
Mesmo as atividades definidas como exclusivas do Estado, atividades
monopolistas através das quais o poder do Estado se exerce, como a administração da
30
Não se trata, propriamente, de uma pluralidade de experiências ou construções subjetivas (subjetivismo,
relativismo), mas de uma objetiva multiplicidade de sentido (perspectivismo).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
52
justiça
31
, devem ter sua propriedade e localização relativizadas, pois se trata de uma
questão de hegemonia.
Como bem definiu Max Weber, o Estado moderno tem a pretensão do
“monopólio da violência legítima”. Contudo, desde que consideremos que o
cumprimento da lei não se reduz à aplicação da sanção punitiva violenta, pode-se
concluir que o “monopólio da violência legítima” (poder de polícia) não se confunde
com o “monopólio da administração da justiça”, isto é, são duas pretensões distintas,
ainda que uma possa estar subordinada à outra. Tais pretensões estão articuladas a uma
terceira: o “monopólio da esfera pública”, sendo efetivadas por aparelhos ideológico-
políticos e repressivo-policiais. Estas pretensões, porém, não são essenciais nem
transcendentais, mas são formações históricas particulares.
O monopólio do público, por exemplo, vem sendo questionado pela emergência e
desenvolvimento dos chamados espaços públicos autônomos, constituídos pelas
organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs), ou organizações do
terceiro setor, como ONGs e fundações. Um amplo debate tem sido empreendido sobre
a relação entre o Estado e tais organizações, quer nas questões relativas à reforma de
Estado, quer nas discussões sobre novos movimentos sociais, quer nas considerações
acerca da construção de uma democracia participativa e de uma autogestão social. De
forma similar, deve-se rever o monopólio estatal da justiça, haja vista sua íntima relação
com a noção de público – não é apenas o poder estatal que faz justiça
32
.
31
Mesmo a idéia de que a justiça é o objeto do direito positivo é controverso para alguns juristas e
operadores jurídicos. Para o positivismo jurídico, por exemplo, o direito positivo não tem nada que ver
com justiça, mas apenas com regulação social, sendo a aplicação do direito mero resultado da dedução
lógica a partir de uma lei.
32
O pluralismo jurídico considera o direito estatal como apenas uma das várias formas jurídicas que
podem existir na sociedade, sendo a pretensão do direito estatal em se constituir na única forma jurídica da
sociedade, apenas uma ambição totalitária de rara concretização. O direito estatal, na maioria das vezes, é
apenas hegemônico ou dominante, não exclusivo. Uma concepção dinâmica da legitimidade política
implica que para o direito estatal manter a hegemonia deverá permanentemente estar preparado para
absorver ou neutralizar as manifestações normativas não-estatais que surgem a cada dia. Tal processo se
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
53
Desde que o cumprimento da lei não se confunde com a sanção punitiva violenta,
e desde que existem formas de coação social não-violentas (greves, boicotes, passeatas,
manifestações públicas, desobediência civil...), é possível a realização da justiça, quer na
forma da lei, quer extra legem, por organizações da sociedade que estejam inscritas em
um espaço público não-estatal, na construção de uma sociedade mais justa e
democrática, ou mais desigual e excludente.
A ação judicial, repitamos, é apenas uma das iniciativas que compõem um amplo
espectro de ações que constituem aquelas organizações sociais. Além da ação judicial, as
organizações realizam ações coletivas de interesse público, quer ativas (gestão de
projetos nas áreas de educação, saúde, cultura, direitos civis e sociais...), quer coativas
(greves, boicotes, passeatas, manifestações públicas, desobediência civil...) – tais ações
políticas denominaremos, tomando emprestado a expressão de Martin Luther King, Jr.,
ação direta não-violenta:
A ação direta não substitui o trabalho nos tribunais e nos bastidores da administração
governamental. Proporciona a passagem de uma lei nova, seja pela câmara de
vereadores, seja pela câmara estadual, seja pelo Congresso Nacional; contestar casos
perante os tribunais do país não elimina a necessidade de se realizar, em frente ao
edifício da Prefeitura, uma dramatização em massa da injustiça. De fato, a ação direta e
a ação legal se completam mutuamente; quando empregadas com habilidade, ambas se
tornam mais eficientes (
KING, Jr., 1968: 41).
Se definirmos o processo judicial como uma sucessão de atos que visa à composição de
litígios
33
, é possível alcançar tal composição fora do processo judicial na reparação do
dano infligido – a “autocomposição”, ainda que salvaguardada pela lei, visto que, se
persiste a resistência à pretensão de um dos interesses em conflito, o processo judicial se
apresenta como o único recurso eficiente legítimo, uma vez que detém as formas
legítimas de violência, que coagem ao cumprimento da lei. Na autocomposição,
dá na manutenção do estado de direito, do regime e do pacto político dominante, dos quais o direito estatal
é o fundamento.
33
Litígio é o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos interessados e pela resistência do
outro. Pretensão é a exigência de subordinação de um interesse alheio a um interesse próprio.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
54
portanto, a lei está in absence, está pressuposta. Durante a negociação, a ação judicial
funciona muitas vezes como uma “ameaça de violência possível”, manipulável pelas
partes. Do mesmo modo que durante a ação judicial, a negociação parajudicial funciona
também como uma “possível saída consensual”.
Vê-se, assim, que o Direito, como poder de Estado, não é o único detentor dos
meios de produção da justiça, ainda que seja o único detentor, no Estado Democrático
de Direito, da violência legítima.
O Estado, então, aparece como uma das organizações envolvidas em um projeto
social de construção de relações sociais justas e democráticas. O Estado se constitui no
interior de um campo de discursividade que se define historicamente como uma
“organização política mais ampla que o Estado, de que o Estado é um articulador e que
integra um conjunto híbrido de fluxos, redes e organizações em que se combinam e
interpenetram elementos estatais e não-estatais, nacionais, locais e globais” (SANTOS,
1998:13). Neste campo, também, se constituem as organizações da sociedade civil que
articulam práticas e relações sociais as mais diversas, estabelecendo entre si
configurações variáveis. Estas configurações são definidas como uma conjuntura na
qual se estabelecem as leis e na qual as leis são interpretadas pelos sujeitos sociais. A
interpretação de um texto legal é seu uso nas interações sociais concretas, às quais se
integra o processo judicial, segundo hábitos coletivamente estabelecidos que garantem a
sua significação.
Os discursos jurídicos que serão analisados não têm contornos bem definidos,
mesmo que os reduzamos à forma de um livro, do diário oficial, etc. Suas margens,
como sugere Foucault a respeito da unidade do livro,
[...]
jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas: além do título, das
primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração interna e da forma que
lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros, outros
textos, outras frases: nó em uma rede. E esse jogo de remissões não é homólogo,
conforme se refira a um tratado de matemática, a um comentário de textos, a uma
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
55
narração histórica, a um episódio em um ciclo romanesco; em qualquer um dos
casos, a unidade do livro, mesmo se entendida como feixe de relações, não pode ser
considerada como idêntica. Por mais que o livro se apresente como um objeto que se
tem na mão; por mais que ele se reduza ao pequeno paralelepípedo que o encerra:
sua unidade é variável e relativa. Assim que a questionamos, ela perde sua evidência;
não se indica a si mesma, só se constrói a partir de um campo complexo de discurso
(
FOUCAULT, 2002:26).
Feitas estas reflexões, segundo nosso uso do conceito de fluxo de justiça, este não
se confunde com o sistema jurídico
34
, nem com o fluxo no sistema jurídico. O que
chamamos de fluxo de justiça atravessa todo campo social e pode ou não convergir (na
judicialização do conflito social ou do político) para o sistema jurídico: o fluxo de justiça
pode articular ações tanto legais, extralegais, quanto contra-legais, como, por exemplo,
no caso do movimento abolicionista no século XIX: respectivamente, Joaquim Nabuco,
Luís Gama ou Antônio Bento (cf. capítulo 3). O fluxo de justiça tem a ver com os
processos de produção, aplicação e transformação das normas socialmente justificadas.
O fluxo de justiça não se limita com a aplicação da lei, podendo entrar em conflito com
esta (desobediência civil, revolução, insurreição, guerra civil...), divergindo, assim, do
sistema jurídico e do direito positivo, subvertendo-os ou transformando-os.
Quanto às identidades raciais, postulamos que elas são identidades diferenciais,
isto é, são o que são por meio de suas diferenças umas em relação às outras. Ademais, se
“todas as identidades dependem do sistema diferencial, a menos que se defina seus
próprios limites, nenhuma delas chegaria finalmente a se constituir” (LACLAU,
1997:14). A identidade racial expressa para os indivíduos as características sociais de
suas relações de poder como características biológicas dos próprios indivíduos, como
propriedades naturais desses indivíduos. As relações raciais são o que se requer para que
as identidades raciais se constituam, mas a única coisa que pode constituir o contexto
34
Optamos por não chamar o sistema jurídico de sistema de justiça, pois mantivemos em aberto a questão
controversa para os juspositivistas sobre se considerações relativas à justiça serão ou não estranhas ao
direito positivo.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
56
das relações raciais e assim tornar as identidades possíveis – a exclusão – é também o
que as subverte.
Os contextos têm que ser internamente subvertidos a fim de se tornarem possíveis.
O sistema (...) é o que a própria lógica do contexto exige, mas que é, no entanto,
impossível. Ele se faz presente, por assim dizer, pela sua ausência (
LACLAU,
1997:15).
O momento da totalização impossível do sistema é simbolizado por particulares
que assumem contingentemente tal função representativa: a particularidade do particular
é subvertida por sua função de representar o universal, vindo ocupar um papel
hegemônico – no interior do sistema de diferenças como um todo: o campo de
discursividade –. É o caso do homem branco
35
, a partir do qual as outras identidades só
conseguem se definir como minorias, diferenças, particulares. O regime racista no Brasil
se caracteriza por uma invisibilidade do “branco” como raça, pois cumpre o papel do
particular cuja particularidade é subvertida por sua função de representar o universal: a
Hegemonia Branca. A invisibilidade do “branco”, como raça, contudo, não se deve à sua
negação, mas, ao contrário, a uma super-afirmação que faz dele o pressuposto de todo
discurso, sujeito universal: a pessoa de que falo é sempre branca até indicação em
contrário; o autor de um texto escrito, como o presente, é branco até que ele se apresente
como negro... As relações raciais perdem, assim, o seu caráter relacional e passam a ser
caracterizadas como o “problema do negro”.
No interior daquele campo de discursividade, constituem-se os discursos jurídicos,
articulando as unidades diferenciais em identidades, na construção das identidades,
como um dos espaços de atuação dos projetos de hegemonia antagônicos.
35
No caso brasileiro, temos, ainda, a figura ambivalente do mestiço que tem papel relevante na
constituição da identidade morena do povo brasileiro, contudo, sem deslocar o “branco” à condição de
minoria. O “branco” assim como “homem” não nomeiam um particular, mas o universal “humano”, são
significantes caracterizados por certo esvaziamento de conteúdo que facilita seu papel estrutural de
unificar um campo de sentidos.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
57
2.3 O Discurso Jurídico e o Mito da Democracia Racial
O espaço jurídico parece atravessado, de acordo com o que foi desenvolvido na
secção anterior, por um campo de discursividade onde se confrontam forças antagônicas
na formulação de leis, na produção de boletins de ocorrência e de inquéritos, na
argumentação judicial e redação dos autos processuais e na enunciação do veredicto – a
polifonia e a intertextualidade do discurso jurídico.
Por outro lado, o discurso jurídico coloca em relação um certo número de
elementos distintos, relativos: a) ao estatuto dos operadores jurídicos, dos réus e das
vítimas, b) ao lugar institucional e técnico de onde falam, c) à sua posição como sujeitos
que percebem, observam, descrevem, narram, defendem ou acusam, condenam ou
absolvem etc. O discurso jurídico, como prática, instaura, entre elementos diversos,
sistemas de relações, transformando, confrontando ou articulando discursos outros.
A “democracia racial”, como ideologia hegemônica, não deve ser decifrada com
base na consciência do bloco dominante tomado isoladamente, mas deve ser
compreendida do ponto de vista do campo de discursividade. Daí que não seja absurda
ou paradoxal a coexistência de práticas “contraditórias” (antagônicas) no interior de uma
mesma instituição, inscrita num campo de discursividade: leis anti-racistas no país da
democracia racial.
Eis porque o espaço jurídico e o seu discurso constitutivo se apresentam como o
lugar privilegiado para o estudo das relações raciais, como relações de poder num campo
agonístico, isto é, campo de conflito e antagonismo. O processo judicial é um processo
discursivo onde as partes oponentes constroem narrativas divergentes do caso e
argumentam em torno delas, procurando persuadir as autoridades jurídicas de que o
litígio entre elas deve ser ou não regulado pelo ordenamento legal. Resultante desse
processo é a sentença judicial, na qual o juiz decide quanto à pretensão de validade de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
58
uma das partes, e cujo poder ilocucionário (condenar ou absolver) é função das regras
processuais que regulam a argumentação (lugar, tempo, relevância, competência...). Esta
pretensão é traduzida pelos advogados das partes para a gíria jurídica, para o registro da
argumentação jurídica, conforme as regras processuais, transformando os “atos” em
“autos”.
Segundo nossa hipótese, a “separação ideológica” entre discriminação racial e
racismo, entre o que se faz e o que se pensa ou se diz, produz a inintencionalidade da
discriminação, cumprindo papel importante no processo de argumentação e decisão
judiciais (e na reprodução do que estaremos denominando, e descrevendo durante todo o
trabalho, “sujeito cordial”): ao não conseguir provar que o discriminador é racista, deixa-
se de aplicar a pena à discriminação – discriminação sem dolo; ou, mesmo, não se
consegue tipificar a discriminação na ausência de verbalização – “[...] a ofensa verbal
que acompanha a maioria dos atos de discriminação [é tida] como a única evidência
disponível para o queixoso de que a discriminação sofrida por ele é realmente de cunho
racial, e não apenas de classe, como é muito comum no Brasil” (GUIMARÃES,
2002:169). Esta centralidade do “verbal”, presente, sobretudo, na “luta” pela linguagem
“politicamente correta”, é o que chamaremos, com Derrida (2002 e 2004), de
logocentrismo do discurso anti-racista que investe todas suas energias em pequenos
deslizes e lapsos de fala.
Esses fatos mostram como o racismo é concebido na interpretação da lei e
qualificação dos casos: acontecimento idiossincrático e subjetivo. Esta formulação e
interpretação da lei anti-racista e a qualificação dos casos parece, paradoxalmente,
coadunar-se com a negação do racismo e da discriminação racial existentes no Brasil,
sendo função do desconhecimento ideológico pelo qual
os brasileiros preferem falar, por exemplo em preconceito (...) a falar em
discriminação (...). Ou seja, [existe] (...):no Brasil, o ideário anti-racialista de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
59
negação do racismo como fenômeno social. Entre nós existiria apenas
‘preconceito’, ou seja, percepções individuais equivocadas, que tenderiam a ser
corrigidas na continuidade das relações sociais (
GUIMARÃES, 1999:149).
Contudo, o racismo, como ideologia, não é mero preconceito
36
, uma questão a
respeito daquilo que se pensa acerca de uma situação, estando de algum modo inscrito
nessa mesma situação:
De nada adianta lembrar a mim mesmo que sou contra o racismo quando me sento
em um banco no parque onde se lê “só para brancos”; ao sentar nele, apoiei e
perpetuei a ideologia racista. A ideologia, por assim dizer, está no banco, não em
minha cabeça (
EAGLETON, 1997:47).
Não discrimino porque seja racista – nesta Verneinung racista, se nego o racismo,
não estou descrevendo uma situação em que não se pode falar de racismo, mas, ao
contrário, isto é desde logo dado como possível: há algo na situação de enunciação que
produz o sentido rejeitado, renegado pela própria enunciação; descrevo minha situação
presente aludindo a algo que não é o caso; sendo esta alusão necessária para a descrição,
o que deve haver em minha situação presente que torne necessária essa menção, essa
indicação? – “Não sou racista, mas...”.
Discrimino porque sempre se agiu assim e é o que se espera que eu faça naquela
situação. É o que chamaremos de “racismo tácito”, “ideologia prática” onde imperativos
hegemônicos são transmutados em formas de comportamento social rotineiro. Um de
nossos objetivos será explicar como esse funcionamento das relações raciais no Brasil
interfere na produção do discurso jurídico.
O Mito da Democracia Racial, conforme já afirmamos, qualifica os saberes
sérios, demarca as questões relevantes, marginaliza saberes e narrativas tidas como
“vulgares”, irrelevantes, falsos problemas, sem-sentidos (non-sens). Como imaginário
36
O preconceito racial é uma das dimensões do racismo se definindo como o conjunto de crenças ou
valores que desvalorizam certas identidades raciais em comparação a outras: “crença de que determinado
grupo possui defeitos de ordem moral e intelectual que lhe são próprios” (SANTOS, 2001: 83). Para nós,
mesmo o preconceito racial é mais do que crenças ou valores, pois define uma competência difusa
(gramática) para participar de relações raciais racistas.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
60
social é um horizonte: não é um objeto entre outros objetos, senão um limite absoluto
que estrutura um campo de inteligibilidade e que é, assim, a condição de possibilidade
da emergência de todo e qualquer objeto (cf. LACLAU, 1993a). Portanto, o Mito da
Democracia Racial não é meramente uma crença, ou falsa consciência, mas um modo de
funcionamento das práticas discursivas. Ademais, não é um significado oculto que
precisaria ser desvelado, decifrado. A interpretação de uma crença, idéia ou
representação é seu uso em situações sociais concretas. O significado de uma
representação social está nas práticas sociais que articula. Os atos de discurso buscam
realizar algo, “fazer coisas com palavras”, segundo expressão de John Austin. Não há
significado profundo, nem “origem escondida” ou fundamento anterior:
Não é apenas uma questão de decifrar uma linguagem acidentalmente afligida por
equívocos, ambigüidades e não significados; é antes uma questão de explicar as
forças em funcionamento, das quais essas obscuridades textuais são um efeito
necessário (
EAGLETON, 1997: 122).
Os discursos, do ponto de vista deste trabalho, não representam nada, são
formados por mecanismos discursivos como o não-dito, que não são representativos,
mas são concretamente suportes de relações e distribuidores de agentes, intensidades,
forças e afectos nômades
37
(DELEUZE, 1988a) na extensão e hierarquia dos conceitos –
numa semiótica dos afectos
38
(NIETZSCHE,1992:87). São estes dispositivos
discursivos que analisaremos nesta tese.
Fazemos nossa a suposição de Foucault:
[...] suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (
1999a: 8-9).
37
Nômades, flutuantes, ou seja, em deslocamento ou fluxo. A teoria do discurso é, portanto, uma teoria da
dinâmica social, mais do que da representação social.
38
Compreendemos “afecto’’ como elemento infra-subjetivo, unidade elementar das sensações,
componente estética do discurso; duração ou variação contínua, intensidade que afeta ou provoca o
sujeito, a identidade, o sentido. O “afecto” é a modificação do corpo através das quais o poder ativo
(potência de agir) do corpo é aumentado ou diminuído, ajudado ou constrangido, e também o sentido de
tal modificação. Cf. ESPINOSA, 1997 e DELEUZE, 2002.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
61
Assim, o Mito da Democracia Racial apresenta-se como uma meta-narrativa, cuja
função hermenêutica afigura-se como uma chave alegórica ou código interpretativo que
interfere na percepção e qualificação do caso, na interpretação e comentário da lei, na
decisão e enunciação do veredicto, na administração do conflito. O Mito da Democracia
Racial define uma “problemática ideológica” que gira em torno de certos silêncios e
elisões eloqüentes e que é construída de tal forma que as questões possíveis dentro dela
já pressupõem certos tipos de resposta – indica o que vale como resposta aceitável na
própria forma de suas questões
39
.
A análise deve revelar como as lacunas, repetições, elisões e equívocos são
significantes. A análise de discurso, como “crítica da ideologia”, concentra-se nos
pontos de intersecção de significado e força. Como linha de força que atravessa e
conecta os elementos do discurso, o sentido nunca pára, mas muda de direção, conforme
dobras ou irregularidades no espaço social que percorre, dobras que, por seu turno,
geram efeitos de sentido: indecidibilidades, ambigüidades
40
, indeterminações,
ambivalências, modalizações, contradições..., produzindo uma bifurcação da linha de
sentido (figura 2.1). A dobra
41
é a continuidade do avesso e do direito, de modo que o
sentido na superfície se distribui dos dois lados ao mesmo tempo.
“Tornar-se discursividade” significa tornar-se discreto e fazer sentido. Para tal é
necessário que outros sentidos (possíveis) permaneçam não-ditos e, assim, apaguem-se
para o sujeito. As dobras sobre a superfície do discurso são lugares no fio do discurso
que mostram o movimento do sujeito na constituição enunciativa dos sentidos, um
39
“Uma problemática (...) é uma organização particular de categorias que, em qualquer momento histórico
dado, constitui os limites do que podemos exprimir e conceber” (EAGLETON, 1997: 125).
40
Do ponto de vista lingüístico, nos orientaremos pelos trabalhos de MOURA, J. (1984) e MARTINS,
C.(2002) para a análise da ambigüidade.
41
Deve-se, aqui, entender “dobra” não como a denominação específica, mas como a denominação
genérica das sete singularidades ou catástrofes-acontecimentos elementares identificadas por René Thom:
a dobra, a cúspide, a cauda de andorinha, a borboleta, o umbigo hiperbólico, elíptico, parabólico. Neste
sentido, entende-se a cúspide como um tipo de dobra, assim como a dobra propriamente dita.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
62
mecanismo de sutura discursiva. As dobras são indicadores de um processo ininterrupto
no qual há uma pluralidade de sentidos perpassando o dizer simultaneamente que podem
não ecoar no dito. Quando ocorre tal ambigüidade, emerge uma dobra no “dizer”, no
tecido textual do discurso. A emergência da dobra no tecido discursivo mostra que a
multiplicidade do sentido afeta, constitutivamente, o sujeito do “dizer”, enquanto
unidade imaginária da “crença” e do “desejo”. As dobras contrapõem-se ao caráter
unívoco dos mecanismos positivistas de redução contextual da multiplicidade de
sentidos, infinitas direções possíveis para o “dizer”. As dobras incidem, portanto, na
imposição a significar, como um mecanismo de sutura e controle dos sentidos, para que
eles sejam x e não y, para que tenham uma direção que constitua uma posição de sujeito.
Figura 2.1
O campo de discursividade é feito desta topologia de superfície e tem cinco
características principais:
1. As singularidades correspondem a séries heterogêneas que se organizam
em um sistema nem estável nem instável, mas “metaestável”, provido de
uma energia potencial em que se distribuem as diferenças em séries.
2. As singularidades participam de um processo de auto-unificação, processo
articulatório sempre móvel e deslocado na medida em que um elemento
paradoxal percorre as séries, envolvendo os pontos singulares
Fonte: PETITOT
,
1977
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
63
correspondentes em um mesmo ponto de indecidibilidade e todas as
emissões, todos os lances em uma mesma decisão.
3. As singularidades ou potenciais são inscritos na superfície. Todo o
conteúdo do espaço interior está topologicamente em contato com o
conteúdo do espaço exterior sobre seu limite.
4. A superfície é o lugar do sentido. Os signos têm sentido quando entram na
organização de superfície, que implica, ainda, nem unidade de direção, nem
comunidade de função, os quais exigem um escalonamento sucessivo dos
planos de superfície.
5. As singularidades se distribuem em um campo semântico propriamente
“problemático” (indecidível) e advêm neste campo como acontecimentos
topológicos aos quais não está ligada nenhuma direção. O “problemático” e
a indeterminação comportam, pois, uma definição plenamente objetiva. A
natureza das singularidades dirigidas e sua existência e repartição sem
direção dependem de instâncias objetivamente distintas.
Todas as situações instáveis são fontes de indeterminação ou sobredeterminação,
sistema tenso, supersaturado, carregado de tensões pré-individuais, rico em potenciais.
Uma singularidade é a representação matemática de uma situação instável onde estão
contidas todas as possíveis “atualizações” das virtualidades. Uma singularidade é
inseparável de uma zona de indeterminação perfeitamente objetiva, espaço aberto de sua
distribuição móvel. È um ponto onde o campo de vetores é nulo (ponto de equilíbrio) ou
indefinido. As singularidades são pontos de indeterminação, quando ainda não estão
determinados e especificados pela curva do enunciado que as une e que assume esta ou
aquela forma, este ou aquele sentido à sua proximidade. Mas em que consistem as
singularidades que o enunciado supõe? Em um conjunto de relações de força, relações
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
64
de poder. As regiões de instabilidade semântica, indecidibilidades, indeterminações
42
são
atravessadas por vetores sociais opostos que tendem a dominar, a tornar-se hegemônicos
conforme um “equilíbrio”
43
dinâmico e assimétrico entre esses vetores sociais,
reduzindo o nível de instabilidade, ou curvatura da dobra – é a atuação conjunta e
divergente (o antagonismo) desses vetores que produz a instabilidade (a dobra), contudo,
quando um deles domina, institui-se uma estabilidade hegemônica sobre as outras. A
indecidibilidade vai ser analisada sob diversas formas: sobredeterminação,
indeterminação
44
, ambigüidade, vagueza
45
, contradição, paradoxo... O não-dito e o
desconhecimento ideológico são os dispositivos que podem efetivar, respectivamente,
aquelas ambigüidade e sobredeterminação.
A hipótese de nossa tese é que a invisibilidade do racismo, ou melhor, no contexto
do discurso jurídico, a impunidade do racismo, é resultado de dois efeitos de sentido
combinados produzidos pelo “Mito da Democracia Racial”: por um lado, a separação
42
“A literatura sócio-pragmática do discurso vem indicando a indeterminação do significado como
inerente à interação e à língua em uso. Nas áreas referidas, o fenômeno da indeterminação se relaciona
com termos como“ambigüidade” (Goffman, 1974, 1981; Schegloff, 1984; Blum-Kulka e Weizman, 1988;
Green, 1996), “polissemia” (Green, 1996), “indiretividade” (Labov e Fanshell, 1977; Tannen, 1981, 1986;
Brown e Levinson, 1986; Blum-Kulka, 1987), “sub-especificação” (Green, 1996), “vagueza” (Goffman,
1974), “mal-entendido” (Tannen, 1981, 1986; Blum-Kulka e Weizman, 1988; Dascal, 1999; Weigand,
1999), “ambivalência” (Wajnryb, 1998), “comunicação paradoxal” (Bateson, 1972) e, inclusive,
“indeterminação” (Green, 1996, Chang, 1999). A profusão de termos nos revela o quanto a
indeterminação pragmática, embora de forma não sistematizada, vem sendo tratada como um fenômeno
central à língua em uso, ao discurso e à interação” (MARTINS, C., 2002: 88).
43
O equilíbrio é definido como o estado mais provável em que o sistema pode se encontrar. Num sistema
sobredeterminado ou indeterminado, existem várias trajetórias possíveis para o sistema percorrer, o
equilíbrio representa apenas uma delas. Longe do equilíbrio, o sistema se transforma qualitativamente e
produz outras modalidades de regulação, podendo se traduzir por uma ordem diferente.
44
A indeterminação e a sobredeterminação têm a ver com contextos, ou com a situação discursiva como
um todo. O contexto é uma forma de práxis interacionalmente constituída.
45
A ambigüidade e a vagueza têm a ver com enunciados. A indeterminação do contexto gera vagueza
enunciativa, a sobredeterminação, ambigüidade. Enquanto a primeira se caracteriza pela falta de clareza
ou de sentido ou na distinção entre sentidos (um menos-sentido, deficiência de sentido), a segunda se
caracteriza pela multiplicidade de sentidos (um mais-sentido, excesso de sentido), em uma mesma situação
discursiva. Porém, no contexto deste trabalho, não se deve confundir ambigüidade com polissemia.
Enquanto, na polissemia, um mesmo enunciado tem sentidos diferentes em contextos diferentes (um ou
outro significado), na ambigüidade, tem sentidos diferentes em um mesmo contexto (um e outro
significado). Neste caso o contexto único é que é sobredeterminado. A ambigüidade é a
pluridimensionalidade de sentidos possíveis, constitutivos de um contexto sobredeterminado pelo
antagonismo social subjacente.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
65
ideológica, performativa, entre preconceito e discriminação pelo não-dito do discurso
racial cotidiano – racismo sem racista
46
, discriminação não-intencional; por outro lado, a
redução semântico-ideológica de discriminação ao “preconceito racial”, efeito de uma
série de indeterminações semânticas, segundo a qual a discriminação é definida em
termos de crença e intenção, não em termos do ato e suas conseqüências, segundo o
desconhecimento ideológico das “relações raciais”; tal situação produz indecidibilidades,
ambigüidades, deslocamentos, etc, exigindo, na busca de superá-las, uma série de
decisões ético-semânticas dos sujeitos sociais envolvidos, cuja interação, no contexto
das ações legais, devem resultar na decisão judicial.
Nosso objetivo, portanto, com este trabalho não é demonstrar que determinado
ato “supostamente” discriminatório seja ou não intencional. Esta não é nossa proposta
teórica, aqui – deixamos esse trabalho para outro que tenha poder e competência social
para tal. Nossa proposta é mostrar que o ato discriminatório, intencional ou não, têm
efeitos sociais concretos (e é por estes efeitos que o definimos como discriminatório),
que dependem, também, dos processos sociais de atestação da intenção, como fixação de
sentido, no fluxo de justiça. Ou seja, a atestação da intenção não é nosso objetivo, mas é
o objeto de nosso estudo, é aquilo mesmo que tem que ser explicado como processo de
subjetivação e suas conseqüências concretas nas relações raciais. Aqueles processos de
atestação de intenção do fluxo de justiça fazem parte, por sua vez, de processos de
produção de subjetividade
47
, ou de subjetivação, que produzem um tipo hegemônico de
46
Segundo o Datafolha (Survey de 1995), 89% da população reconhece que há racismo no Brasil.
“Todavia, quase 90% da população, embora reconheça que há racismo no país, não se assume agente
desse racismo. O desconforto da maioria da população em identificar os agentes de discriminação revela a
sutileza dessa questão que se expressa no universo fluido e ambíguo das crenças raciais simbólicas, das
atitudes políticas e dos valores morais no Brasil” (GRIN, 2001:177).
47
Entendemos por subjetividade a competência discursiva de responder a ou por algo ou alguém, mas,
também de interpelar outrem. A subjetividade é, assim, a condição e a resultante dos processos de
produção e apropriação do discurso pelo indivíduo ou grupo de indivíduos, e através dela, apropriação de
si, dos próprios atos, enfim, do mundo circundante – “responder por” é “apropriar-se de”: ser sujeito
significa ser “dono da situação”. A subjetivação tem a ver, então, com processos de distribuição dos
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
66
sujeito – o sujeito “cordial”. Processos aqueles no qual estão inscritos e participam o
não-dito racista e o (des)conhecimento ideológico do racismo.
Não procuraremos, ainda, demonstrar que determinado caso de racismo não foi
devidamente condenado, ou que apesar de ser um caso autêntico de racismo, o juiz o
inocentou. Isso não nos seria possível quer teórica quer metodologicamente, pois
teremos acesso aos casos por suas materializações discursivas, ou seja, nosso acesso ao
caso estará sempre mediado pela descrição e pelos comentários lingüísticos inscritos nos
autos judiciais, ou melhor, os casos são os próprios comentários produzidos no sistema
jurídico, fora deles não há “casos de racismo”, apenas relações raciais, discriminatórias
ou não.
Procuraremos nos colocar diante da positividade dos acontecimentos discursivos,
ou seja, distinguir, analiticamente, na dispersão de enunciados, regularidades, sua
unidade para além dos casos individuais. “Se a positividade não revela quem estava com
a verdade, pode mostrar como os enunciados ‘falavam a mesma coisa’, colocando-se no
‘mesmo nível’, no ‘mesmo campo de batalha’”. Ela desdobra um campo em que são
estabelecidas identidades formais, continuidades temáticas, translações de conceitos,
jogos polêmicos. Para isso, será preciso questionar nossa vontade de verdade e restituir
ao discurso seu caráter de acontecimento (GREGOLIN, 2004: 91).
2.4 Indecidibilidade, Decisão Judicial e Hegemonia:
A autoridade jurídica requer para sua legitimidade que os resultados das disputas
jurídicas sejam determinados e que os fatos jurídicos em disputa sejam objetivos. Em
outras palavras, a legitimidade da autoridade jurídica exige que um certo resultado
jurídico seja justificado, justificação que é oferecida por razões jurídicas ou
extrajurídicas.
eventos e propriedades. Ser sujeito de uma ação significa ser responsável por uma ação que lhe é própria,
que não lhe é estranha (intencional, não-acidental).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
67
Segundo E.H. Lévi (apud PERELMAN, 2004), a estrutura da argumentação
jurídica se adapta a dar um sentido à ambigüidade e a constantemente verificar se a
sociedade chegou a discernir novas diferenças ou similitudes, tratando-se essencialmente
de argumentações pelo exemplo e por analogia.
A tese sobre a (in)determinação do direito tem duas formulações distintas: a
indeterminação das razões e a indeterminação das causas (COLEMAN e LEITER,
2000:317). Em ambas as formulações, faz-se afirmações sobre a relação “inadequada”
entre as razões jurídicas e os resultados dos casos. A distinção, segundo trabalhada por
nós, refere-se ao fato de que nem sempre as razões utilizadas para justificar os resultados
dos casos são as mesmas razões que os explicam, pois o contexto de decisão é diferente
do contexto de justificação.
Uma norma será considerada indeterminada (polissêmica ou vaga) quando
houver mais de uma maneira (em contextos diferentes) de cumprir suas exigências. Por
sua vez, uma norma será considerada sobredeterminada (ambígua) quando o conjunto
das razões jurídicas não consegue justificar plenamente os resultados dos quais são
aduzidas, ou quando não conduzem a um único resultado válido (para um mesmo
contexto). O conjunto das razões jurídicas nunca fundamenta um único e mesmo
resultado em um mesmo caso determinado (cf. COLEMAN e LEITER, 2000).
A formulação de indeterminação em Coleman e Leiter é muito próxima das
noções de “indecidibilidade” e “sobredetermianção” em Laclau.
Nossa análise se debruçou sobre os “casos de racismo” como “casos
controversos” (hard cases) (cf. DWORKIN, 2000; IKAWA, 2004). A decisão judicial,
como interpretação da lei, parte da qualificação do caso (A) em direção à aplicação da
sanção (B):
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
68
Quando um estado de coisas ou evento acarreta conseqüências jurídicas, é da
existência ou inexistência desse estado de coisas ou evento que é preciso convencer as
autoridades que são responsáveis pela aplicação da lei, subsumindo os fatos sob os
termos da lei, ou seja, qualificá-los.
A decisão, por outro lado, configura-se, discursivamente, como escolha entre
narrativas concorrentes do caso (fato jurídico): a narrativa da acusação versus a narrativa
da defesa. Esta escolha define-se pela qualificação do caso – lícito ou ilícito, prescrito
pela norma jurídica, sendo motivada pela argumentação das partes em litígio. A decisão
judicial apresenta-se na modalidade enunciativa da sentença ou veredicto judicial,
modalidade normativa (deôntica) da enunciação.
Em retórica, a indecidibilidade toma a forma de argumentos in utramque partem,
ou seja, argumentos plausíveis em qualquer dos lados do caso. Esse caráter dúbio dos
argumentos possibilita aquilo que é denominado “paradiástole”, isto é, a redescrição
retórica. A finalidade da redescrição é sugerir que o ato em exame tem um caráter moral
diverso do que lhe foi atribuído pela narrativa do adversário.
Porém, é necessário estabelecer uma distinção indispensável entre a simples
descrição e a qualificação jurídica deles. Como o que interessa é a aplicação das regras
jurídicas aos fatos qualificados de forma a produzir as conseqüências previstas pelo
direito vigente, o exame prévio e a descrição dos fatos são orientados pela passagem dos
fatos estabelecidos à qualificação, destacando, assim, apenas os detalhes que permitam
ou impeçam a aplicação de um ordenamento jurídico. Todavia, tal passagem não é
óbvia, haja vista que as noções sob as quais devem ser subsumidos os fatos podem ser
Se é A, deve ser B.
Onde A é o fato jurídico
B é a conseqüência jurídica
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
69
mais ou menos vagas, imprecisas, fazendo com que a qualificação de um fato dependa
da determinação de um conceito, como “racismo”, por exemplo.
Sendo possível contestar a descrição ou narrativa de determinado ato ou estado de
coisas, é possível questionar simultaneamente sua avaliação moral: “(...) o que é para
um sabedoria, para outro é medo; para um crueldade, para outro justiça; para um
esbanjamento, para outro generosidade... e assim por diante” (HOBBES apud
WALZER, 2003: 16)
48
. O que para um é racismo, para outro é brincadeira. E Hobbes
nos diz mais adiante: “O nome das coisas que nos afetam (...) são, no discurso comum
dos homens, de significação inconstante” (apud SKINNER, 1999:453).
A hegemonia tenta, como já afirmamos mais acima, fixar-lhes o sentido, mas o
antagonismo social jamais o permite:
‘Jamais’ – até que o soberano, que também é a autoridade lingüística suprema, fixe
o significado do vocabulário moral; mas no estado de guerra “jamais” (...).
Porque nesse estado, por definição nenhum soberano governa. Na realidade,
mesmo na sociedade civil, o soberano não tem êxito total em impor a certeza ao
mundo dos vícios e das virtudes. Por esse motivo, o discurso moral é sempre
suspeito, e a guerra é somente o caso extremo da anarquia dos significados morais
(
WALZER, 2003: 16).
A guerra é o caso extremo de antagonismo social. Em nosso estudo, o “juiz”
cumpre o papel do soberano no pensamento hobbesiano segundo expresso por Walzer.
Ademais, a decisão judicial é uma “decisão ético-teórica” da autoridade jurídica,
pois se o “sentido da lei” e a “intuição do caso” não estão mutuamente relacionados de
modo teleológico, então, é impossível decidir se o “sentido da lei” vai estar ou não
subordinado à sua aplicação, à sua eficácia. O Mito da Democracia Racial apresenta-se,
inter alia, como esta lacuna entre o “sentido da lei” anti-racista e a sua aplicação às
relações raciais discriminatórias.
48
cf. também SKINNER, 1999: 452.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
70
A lei anti-racista poderia muito bem estar em conformidade com sua “essência”
como lei quando ela não é aplicada
49
, ou quando não tem valor de verdade, isto é,
quando é norma sem caso, lei anti-racista no país da democracia racial; ela, no entanto,
atinge sua enteléquia quando é aplicada, ou, ao menos, verifuncional, ou seja, aplicável.
Dito de outra forma, a lei anti-racista torna-se logicamente inaplicável quando é falso o
seu pressuposto de existência do racismo: “Existe x tal que, para todo x, se x é A, então x
deve ser B” (x
⎜∀x, ax bx). Existe uma ação x (x) tal que, para toda a ação x
(x), se x é racista (ax), então x deve ser punida como crime (bx).
Porém, o “sentido da lei” não aguarda a aplicação como se a esperá-la; apenas, ele
a precede como sua antecipação. Na verdade, o telos que anuncia o cumprimento,
prometido para “depois”, já abriu espaço, de antemão, para o sentido como relação com
um caso concreto. É na aplicação a casos reais de um vocabulário moral ou legal
acordado que surge a discordância nos casos controversos.
O raciocínio jurídico deixa de ser, nessa, perspectiva, uma simples dedução
silogística cuja conclusão se impõe, mesmo que pareça sem sentido. A interpretação da
lei para um caso específico deve ser considerada um caso específico uma hipótese, que
só será adotada definitivamente se a solução concreta em que redunda afigurar-se
aceitável, exigindo do pensamento jurídico um vaivém da situação vivida à lei aplicável,
na busca de soluções convincentes e juridicamente bem motivadas. Ou seja, a aplicação
do direito, a passagem da regra abstrata ao caso concreto, não é um simples processo
dedutivo, mas uma adaptação constante dos dispositivos legais aos valores em conflito
nas controvérsias judiciais (PERELMAN, 2004).
49
Conforme afirmamos acima, o cumprimento da lei não se confunde com a aplicação da sanção violenta.
Paradoxalmente, a aplicação da sanção deve seguir à frustração do “sentido da lei”: a sanção punitiva é
“reparação” da transgressão da lei (fato jurídico), da transgressão da plenitude expressa no “sentido da lei”
(ideal de eu), frustração da “democracia racial” (eu ideal).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
71
Assim, se o juiz subordina a lei à sua aplicação, aquela só pode ter resultado se
uma intervenção contingente acompanha o sentido da lei. Uma intervenção contingente
levada a efeito num terreno social marcado por oposições indecidíveis é exatamente o
que Laclau (1996) chama de intervenção hegemônica. O sistema jurídico não é um
sistema fechado, isolado do contexto cultural e social no qual se inserem, mas sofre
constantemente seu influxo.
A capacidade do direito de funcionar como um sistema jurídico é inteiramente
dependente da inserção controlada de juízos de valor pré-jurídicos ou ao menos
pré-positivos (
ESSER apud PERELMAN, 2004:116).
O que a análise desconstrutivista mostra não é uma separação de fato entre o
sentido da lei e sua aplicação, porque ambos estão intimamente ligados no discurso
jurídico. Na verdade, a unidade do discurso jurídico é resultado de uma dupla exigência,
segundo a qual o sentido da lei tem que ser tanto subordinado como diferenciado da
aplicação, levando o juiz a ter que decidir. Porém, o fato de que um dos caminhos
possíveis seja tomado (condenação ou absolvição), de que apenas uma das conexões
contingentes seja efetivada, é indecidível no contexto do ordenamento jurídico: este
contexto apresenta-se na “ambigüidade” e “equivocidade” do “sentido da lei”: O que é o
racismo? A lei não pode senão se re-marcar nos casos singulares nos quais ela é
apreendida. Como estes casos são fundamentalmente imprevisíveis, indecidíveis, o
“sentido da lei” não é nunca estabelecido e a lei não está nunca previamente feita.
Segundo Anaud (apud ALVES, 1999:81), a ambigüidade ou equivocidade do
sentido da lei é determinada por três “contextos”: (1) lingüístico, quando termos vagos
são aplicados em suas zonas de indecidibilidade – “racismo”, “raça”, “cor”, “negro” etc.;
(2) sistêmico, quando o “sentido direto” ou “literal” implica uma contradição ou
incompatibilidade com outras normas do ordenamento jurídico – por exemplo, entre a lei
contra injúria racial e a lei contra o crime de racismo (Lei Caó); (3) funcionais
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
72
(interpretação teleológica), quando a decisão interpretativa conduz a resultados
indesejáveis ou injustos – impunidade do racismo
50
. Esses contextos devem ser
“resolvidos” por uma intervenção hegemônica, na forma de uma interpretação jurídica
que fixa os significados morais ou legais no instante mesmo em que se decide sobre um
caso particular.
Como a magistratura não pode deixar sem reposta os casos que lhe são
submetidos, independentemente de sua complexidade técnica e/ou suas implicações
econômicas, políticas e sociais, sente-se impelida a exercer uma criatividade
decisória que transcende os limites da própria ordem legal
. Em “casos difíceis”,
nos quais a interpretação a ser dada a uma norma não está clara ou é
controvertida, “os juízes não têm outra opção a não ser inovar, usando o próprio
julgamento político”(Dworkin, 1997) (FARIA, 2005:27. Grifo nosso).
Portanto, a decisão ético-teórica do juiz tem que ser introduzida em cena como um
elemento externo, a fim de realizar a subordinação ou não do sentido da lei à sua
aplicação. A essa origem externa de um certo conjunto de conexões estruturais
chamaremos, conforme Laclau (1996: 16), de ‘força hegemônica’.
Segundo Bobbio (1989:38), o ordenamento jurídico é a articulação variável de
normas, quer pela recepção de normas já feitas, inscritas em outros espaços normativos,
quer pela delegação do poder de produzir normas jurídicas a outros aparelhos
discursivos. As normas anti-racistas retiram seu poder jurídico de sua inscrição em um
ordenamento jurídico, portanto, não podem ser compreendidos fora dessa inscrição. Isto
só é possível se o discurso jurídico não estiver inteiramente reconciliado consigo
mesmo, se ele for habitado por uma indecidibilidade radical que demande uma constante
superação por meio de atos de decisão. O poder judiciário tem uma função não apenas
jurídica, mas também política, de harmonizar a ordem jurídica de origem legislativa com
as idéias dominantes sobre o que é justo e eqüitativo (
ars æqui et boni). Na medida em
que nenhum conteúdo específico está “predeterminado” a preencher o vazio estrutural
50
Abordaremos estas incompatibilidades legais mais detidamente no capítulo 6.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
73
do ordenamento jurídico, é o conflito político entre vários conteúdos tentando
desempenhar esse papel de preenchimento que vai tornar visível a contingência do
ordenamento. Isto orienta nossa metodologia, conforme expresso em Pêcheux:
A posição de trabalho que aqui evoco em referência à análise de discurso não
supõe de forma alguma a possibilidade de algum cálculo dos deslocamentos de
filiação e das condições de felicidade ou de infelicidade evenemenciais. Ela supõe
somente que, através das descrições regulares de montagens discursivas, se possa
detectar os momentos de interpretações enquanto atos que surgem como tomadas
de posição, reconhecidas
como tais, isto é, como efeitos de identificações
assumidos e não negados.
Face às interpretações sem margens nas quais o intérprete se coloca como um
ponto absoluto, sem outro nem real, trata-se aí, para mim, de uma questão de ética
e política: uma questão de responsabilidade (
PÊCHEUX, 2002: 57).
Assim, a pesquisa deverá identificar, descrever e interpretar as decisões ético-
semântico-teóricas que, como acontecimentos discursivos, produzem, reproduzem,
questionam e transformam as estruturações hegemônicas do social.
Em suma, o conjunto das razões jurídicas inscritas no ordenamento jurídico
quando é confrontado com os casos de discriminação não produz ou determina um único
resultado (unicidade de solução). A sobredeterminação surge quando a relação entre as
normas e qualquer resultado a que um juiz possa chegar é fraca demais para alcançar ou
justificar a decisão, ou seja, quando a relação justificatória entre as razões jurídicas
existentes e os resultados é fraca demais para sustentar a afirmação de que qualquer um
dos resultados disponíveis a que um juiz pode chegar é justificado ou adequadamente
afiançado pelo grupo das razões jurídicas (cf. COLEMAN & LEITER, 2000). A seguir,
uma representação
51
da sobredeterminação como zona de instabilidade:
51
Para uma descrição mais detalhada dos elementos que compõem esta representação e de sua
formalização matemática, cf. o trabalho de PETITOT (1977). Estas representações referem-se às teorias
da catástrofe e da morfologia do sentido de René Thom (1975 e 2004) e Jean Petitot-PETITOT.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
74
Figura 2.2
Conforme esta representação, obtém-se no espaço uma superfície rugosa
(áspera)
52
, na qual toda pequena deformação estável do potencial instável no ponto de
singularidade é do tipo 1 (à direita) ou do tipo 2 (à esquerda). Essa representação não é
uma mera enumeração dos casos possíveis, mas marca esses casos possíveis uns em
relação aos outros, pela introdução de um espaço classificante (campo hegemônico),
informado por uma catástrofe discriminante (decisão ético-semântica), por sua vez
engendrada por um elemento impossível (o potencial instável
53
) chamado centro
organizador, ponto de indecidibilidade.
Esta representação parte do primado ontológico do contínuo e do fluxo, que
permite visar diretamente o entrelaçamento discreto de uma classificação (oposição
semântica) como a discretização (codificação) de um espaço classificante
intrinsecamente heterogêneo (sobredeterminado), sedimentado e informado
(hegemonizado) por um acontecimento ideal discriminante (decisão ético-semântica) (cf.
PETITOT, 1977). Sobre o contínuo só existem estados variáveis, intensidades,
elementos que estão além de toda determinação. O contínuo, como linha virtual de
variação que atravessa o campo de discursividade, é agramatical, assintático,
52
cf. Figura 2.1.
53
cf. Figura 2.5.
Fonte: PETITOT
,
1977
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
75
assemântico, enquanto uma posição qualquer sobre a linha será uma variante ou valor
(gramatical, lexical, prosódica, semântica etc.).
Como veremos mais adiante, parte da sobredeterminação decorre do não-dito
(capítulo 6) racista que torna ambígua a pretensa discriminação: o caso de racismo torna-
se controverso. E a superação da ambigüidade passa pela decisão, a partir do contexto,
acerca da intencionalidade do ato de discurso: qual a “intenção” do discurso? Contudo,
por outra parte, a sobredeterminação decorre do (des)conhecimento ideológico (capítulo
5) das relações raciais que dificulta o recurso a enunciados asseveráveis (“palavras de
ordem”, “discursos autorizados”, “doutrinas”...), recursos providos de autoridade para a
construção de uma justificativa válida que torne a decisão judicial razoável, e a produção
de narrativas e argumentos que justificam essa decisão e a atestação da intenção. A
gênese das categorias que dão sentido às identidades raciais (cf. capítulos 3 e 4), a partir
das relações raciais, demarca os processos de atribuição de sentido (intenção, motivação,
valores...) aos acontecimentos individuais e coletivos.
Todavia, as indecidibilidades geradas pelo (des)conhecimento ideológico e pelo
não-dito não são suficientes para explicar a assimetria entre as decisões ético-
semânticas, pois aquelas produzem apenas a sobredeterminação e a imprevisibilidade
das decisões possíveis, ou seja, produzem, segundo o modelo formal que estamos
propondo, uma bifurcação no fluxo dos eventos, resultante de uma zona de instabilidade
semântica, que parte de um ponto de indecidibilidade.
O conjunto das razões jurídicas é causalmente indeterminado apenas se for
inadequado para explicar ou prever os julgamentos a que o juiz chega. Se
juntarmos as duas teses da indeterminação, chegamos à afirmação que o conjunto
das razões jurídicas é insuficiente para justificar um resultado único ou para
prevê-lo ou explicá-lo ( COLEMAN & LEITER, 2000:344).
Portanto, segundo este modelo, a decisão ético-semântica é descrita como uma
variável aleatória discreta. Na medida em que são indecidíveis, os ramos da bifurcação
deveriam ter iguais probabilidades (p
ϕ
=p
γ
=1/2, sob a hipótese nula H
o,
ou seja, não há
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
76
diferença estatística entre os eventos possíveis), conduzindo a um fluxo simétrico de
eventos (ϕ e γ).
Contudo, a quebra dessa simetria deve ser produzida pela presença de algum
campo de discursividade que produz uma força exterior, intervenção contingente levada
à efeito num terreno social marcado por oposições indecidíveis, intervenção
hegemônica, que aumenta a freqüência relativa de um ramo da bifurcação de eventos
sobre o outro, de uma decisão sobre outra, de um sentido X, sobre outro Y, reduzindo a
ambigüidade do discurso:
Figura 2.4
Nesta representação de curvas derivadas da curva representada pela figura 2.3, a
figura central é uma “cúspide” em cujo interior há dois regimes estáveis em conflito: há
mais de um mínimo, e apenas um pode dominar num ponto regular. Esta cúspide
representa a situação indecidível como discurso ambíguo ou equívoco, onde os sentidos
X e Y têm o mesmo “peso”, sendo o ponto de maior instabilidade semântica (equilíbrio
instável), tendendo então a tomar as formas das figuras ou da esquerda ou da direita, nas
ϕ
γ
א
π= 0
Figura 2.3
א: Fluxo de eventos
ϕ e γ: decisões alternativas
: singularidade (ponto de
indecidibilidade)
π: perturbação pelo campo
externo (π = 0, simetria
temporal; π 0, assimetria)
Fonte: PETITOT
,
1977
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
77
quais um dos sentidos tem cada vez menos peso em relação ao outro até que um dos
sentidos torna-se hegemônico. Neste caso, existe um único estado estável (minimum)
que se distingue de um outro estado não estável. Assim, como veremos, quanto maior
esta diferença, maior deve ser a diferença na proporção das decisões tomadas no fluxo
de justiça, ou seja, a assimetria na distribuição das decisões ou dos casos é inversamente
proporcional à ambigüidade de sentido. A pura indecidibilidade não é suficiente para
conduzir à decisão. É preciso, também, um certo “potencial motivacional”, função da
crença (força de distinção, de afirmação e negação) e do desejo (força de movimento, de
conexão e dissolução), que superam, respectivamente, a entropia e a inércia sociais
54
.
Assim, a decisão (intervenção hegemônica) é a expressão do aumento da intensidade da
crença (convicção) e do desejo (apetite
55
), da opinião e da vontade, enfim, do significado
e da força como atualizações de um potencial motivacional (Epot)
56
em um campo de
discursividade, do “dispositivo” à “disposição”:
Figura 2.5
54
Desejos e crenças são inferências causais. O desejo é a causalidade interna (pulo) de uma imagem que
se refere à existência do objeto ou estado de coisas correspondente; a crença é a espera deste objeto ou
estado de coisas, enquanto sua existência deve ser produzida por uma causalidade externa. Cf. DELEUZE,
1999.
55
A palavra apetite designa o estado de um organismo afetado por uma pulsão; a palavra desejo refere-se
ao sentimento consciente de um apetite e à consumação ou frustração de um apetite.
56
O “motivo”, como sentido, é entendido como unidade heterogênea de significado e de força, aparecendo
ora como “razão”, ora como “emoção”; ora como “conceito”, ora como “afecto”; ora como “fim”(causa
final), ora como “causa” (causa eficiente) que movem todos à ação. Portanto, sem motivo, não há decisão.
Não estando em questão se tal relação entre motivo e decisão seja necessária ou contingente.
E
q
uilíbrio Instável
E
p
ot
x y
x
y
x
y
x
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
78
Ou se atinge o mínimo absoluto do potencial Epot em dois pontos distintos X e
Y, ou seja, dois pontos de conflito, ou o mínimo absoluto do potencial, atingido num
único ponto X deixa de ser estável (ponto de bifurcação). Há dois regimes estáveis x e y
em conflito, dois mínimos e apenas um pode dominar num ponto regular:
No interior da cúspide existem somente dois estado estáveis (x e y) e um outro
instável para função de energia. A propriedade notável daquelas bifurcações, portanto, é
a sua sensibilidade
57
, pois pequenas variações, “flutuações” no campo de discursividade
conduzem à escolha preferencial de uma decisão em vez de outra, de um sentido no
lugar de outro, bastando para romper a simetria (π = 0 π 0). Se toda flutuação fosse
suprimida do campo de discursividade, o fluxo se manteria na ramificação semântica
instável, ou seja, ambígua.
Em suma, a noção de indecidibilidade obriga-nos a abandonar a descrição de
situações individuais (ações, motivações) para adotarmos descrições estatísticas
58
, pois é
57
Suponha-se um sistema S susceptível de um certo número de estados estáveis, cuja ocupação é regulada
por uma dinâmica operante sobre um espaço de parâmetros descritivos do sistema (do tipo espaço de fase),
dito espaço interno. Suponha-se, mais, que o sistema S depende de um controle, quer dizer, que se pode
agir sobre ele controlando os valores de certos outros parâmetros que variam dentro de um outro espaço,
dito, por oposição, espaço externo. Fazendo variar o controle de maneira contínua, ele pode fazer, para
certos valores desse controle, uma variação, tão fraca seja-ela, que faça bruscamente bifurcar o sistema de
um estado a um outro. Diz-se, então, que há o aparecimento de um ponto catastrófico, ou ainda, que o
sistema suportou uma catástrofe. E no caso (muito freqüente) em que este espaço externo suporta o
aparecer do fenômeno, seu lugar catastrófico, vai ele mesmo aparecer como um sistema de
descontinuidades discriminando zonas fenomenologicamente homogêneas (cf. PETITOT, 1977).
58
“Importa muito ao percorrer as obras estatísticas, não esquecer que no fundo as coisas a medir
estatisticamente são qualidades internas, crenças e desejos” (GABRIEL TARDE apud THEMUDO,
2000:166). As unidades estatísticas devem sempre se referir a unidades heterogêneas, às quantidades
Figura 2.6
x
y
x
Ponto de
equilíbrio
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
79
no plano estatístico que podemos evidenciar o aparecimento de uma simetria temporal
quebrada, efeito do poder. A descrição estatística do sistema jurídico é apenas o ponto de
partida que orientará a análise dos mecanismos simbólicos e semânticos que produzem
os fluxos de justiça, mecanismos que por sua vez serão desconstruídos para evidenciar o
antagonismo social, os processos articulatórios e as relações de poder subjacentes a estes
mecanismos e que os instituem, ao mesmo tempo em que os tornam contingentes –
tentaremos apresentar o “caos” subjacente a toda “ordem”. Nossa metodologia crítica,
portanto, consiste em, primeiramente, identificar quando a invariabilidade “nomológica”
dos fatos sociais (como, por exemplo, a “inferioridade” do negro) expressa relações de
dependência congeladas ideologicamente que podem, a princípio, ser transformadas. Em
seguida, é preciso desconstruir os sentidos fixados que promovem aquela “lei geral” dos
fatos sociais, revelando as práticas articulatórias e de fixação dos sentidos que orientarão
as ações que reproduzem os fatos.
A Hegemonia Branca
59
só pode ser detectada analisando-se os padrões coletivos
de distribuição das ações, objetos, sujeitos, intensidades, forças e afectos, enfim, os
padrões decisórios. Considerada um valor fundamental do direito e condição de sua
autoridade, a segurança jurídica confere a capacidade jurídica de prever
60
, de modo
significativo, as ações daqueles que estão encarregados de dizer o direito, as autoridades
jurídicas:
diferenciais da crença e do desejo, da opinião e da vontade que produzem todos os acontecimentos sociais.
A estatística deixa de ser apenas um método para tomada de decisão para tornar-se um método de
mensuração do campo das decisões, portanto, da hegemonia, questionando a objetividade do “dado”. O
que há são graus de objetividade ou identidade estabelecidos pela forma como os elementos se relacionam
entre si, tendo caráter probabilístico. A decisão ou inferência estatística é, também, uma decisão ético-
teórica, trabalhando com certo grau de incerteza.
59
Quando denominamos a Hegemonia Branca, não significa que ela é exercida apenas por brancos, mas
por todos que defendem e realizam a “branquitude” como valor e existência superiores.
60
“De acordo com o sociólogo alemão Max Weber, a ‘previsibilidade’ e a ‘calculabilidade’ do ‘direito
formal’ residem na constância e na regularidade das atitudes dos funcionários burocráticos do sistema
jurídico que são responsáveis pela transformação dos conflitos correntes em confrontações jurídicas”
(RIBEIRO, 1995: 24). Aquelas “calculabilidade” e “previsibilidade”, porém, são projetadas no mundo
social reificando processos como propriedades dadas da realidade.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
80
(...) mesmo que o conjunto das fontes jurídicas possa ser indeterminado, como
razões ou como causas, o próprio Direito é previsível e “determinado”, no sentido
exigido pela autoridade legítima. O problema, portanto, não é a indeterminação
per se (
COLEMAN & LEITER, 2000: 348).
A probabilidade matemática de um caso passar de uma instância n para n+1 (cf. a
Figura 2.9 adiante) é p
ϕ
= 1/2 (a probabilidade esperada p
ϕ
= 1/2
m
, sendo m, o número de
decisões ϕ entre n e n+m). q
ϕ
é a freqüência relativa observada (q
ϕ
= O
n+1
/N; sendo O
n
o
número de casos observados em n+1, N casos em n). π é a intensidade da força externa
(intervenção hegemônica), atrator estranho, “externalidade”, “exterior constitutivo” que
quebra a simetria temporal, sendo π = 2(q
ϕ
–½) = q
ϕ
-
q
γ
(quando m=1). No terceiro
termo da equação, π é igual à diferença entre as proporções (q) entre φ e γ, onde q
ϕ
= 1-
q
γ.
O valor de π pode, então, variar entre –1 (quando q
ϕ
= 0, ou seja, nenhum dos casos
passa para instância seguinte) e +1 (quando q
ϕ
= 1, todos os casos passam). Na
Hegemonia Branca, -1 π 0, ou seja, o número de casos de condenação (q) observado
é menor do que o esperado (p).
A intensidade da força hegemônica é dada pelo Coeficiente de Hegemonia π que
mede a inclinação ou o “ângulo de contingência” entre as trajetórias possíveis. Quando π
tende à zero, o ângulo é máximo, ou seja, as trajetórias divergem. O ângulo de
contingência é formado pela curva e sua tangente (ou por dois arcos de circunferência
que se tocam num ponto como nas figuras 2.2 e 2.6), sendo por isso,
demonstrativamente mínimo – “quase nulo”. É nulo, mas sem superposição das linhas
(ou arcos) que o compõem. Portanto, geometricamente, o ponto de indecidibilidade é
um ângulo de contingência. Quando π tende a ±1 as trajetórias tendem a convergir em
uma única trajetória. Um ponto singular se prolonga analiticamente sobre uma série de
pontos ordinários, até a vizinhança de uma outra singularidade e assim por diante. A
hegemonia é assim constituída, com a condição de que as séries sejam convergentes.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
81
Uma contra-hegemonia começaria na vizinhança dos pontos em que as séries obtidas
divergiriam.
Trata-se de um sistema de dispersão, de repartição e de repetição dos enunciados e
seus elementos: formação discursiva, formada por regras discursivas que presidem o
surgimento, o funcionamento, as mudanças, o desaparecimento, em determinado
momento, de um discurso, regras que definem aquele jogo que autoriza o que é
permitido dizer, como se pode dizê-lo, quem pode dizê-lo, a que instituições e práticas
sociais está vinculado o que é dito, enfim, o que deve ou não ser aceito como verdadeiro.
Como as decisões a que os juízes chegam são coercivamente aplicáveis, não é
suficiente que essas decisões sejam “previsíveis” (isto é, ratifiquem uma expectativa dos
atores sociais: a previsibilidade é tratada, aqui, como uma expectativa social). É preciso
justificá-las.
A decisão que preenche o vazio, ou a “falta constitutiva”, não está
destituída de razões e convicções, nem do imperativo de justificativa – nada mais
estranho à Teoria de Laclau do que uma adesão ao relativismo.
61
Porém, as
preocupações com a justificação não são redutíveis a considerações de previsibilidade ou
expectativa social:
Para ser justificada, a coerção deve, pelo menos, aplicar resultados fundamentados
pelo conjunto das razões jurídicas. Isso parece certo. Mas não decorre daí que tais
resultados devam ser determinados, isto é, fundamentados unicamente pela classe
das razões jurídicas. A coerção política é injustificada quando empregada para
aplicar uma decisão injustificável, não quando usada para aplicar uma decisão
justificável (ainda que não unicamente). (...) A coerção exige fundamento, não
unicidade (
COLEMAN & LEITER, 2000: 355).
A tarefa da autoridade jurídica é a busca de uma síntese que leva em conta, ao mesmo
tempo, o valor da solução e sua conformidade ao direito (PERELMAN, 2004: 114). Juízos
de valor, relativos ao caráter adequado da decisão, orientam a autoridade jurídica em sua
61
Que una decisión sea en última instancia arbitraria sólo significa, por lo tanto, que el que la toma no
puede ligarla de modo necesario a un motivo racional, pero esto no significa que la decisión no sea
razonable – es decir, que un conjunto acumulado de motivos, ninguno de los cuales tiene él valor de un
fundamento apodíctico, no la hagan preferible a otras decisiones”(LACLAU, 1993 a).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
82
busca do que é justo e conforme o direito, no caso específico. Mas esse caráter adequado
não será determinado segundo critérios subjetivos, mas de uma maneira intersubjetiva,
conforme corresponda às preocupações do meio que deve aceitar (ibidem: 114). Em outras
palavras, a instituição de uma decisão ético-semântica depende, não de sujeitos
diferenciados como causas de enunciados, mas de formações impessoais que
estabelecem a condição de aparecimento de enunciados e palavras de ordem, sentenças e
máximas, sendo responsáveis pelos processos de formação de sujeito. Teoricamente
anterior a toda subjetividade, ou mesmo, intersubjetividade, se coloca um campo de
discursividade, interminável discurso indireto livre, um burburinho, nem em primeira
nem em segunda pessoa, um “fala-se” indeterminado.
Ademais, uma decisão que pode ser imprevisível ex ante, a priori, pode ser vista
como a solução natural ou necessária ex post, a posteriori. Ou seja, a justificação torna
uma decisão contingente, retroativamente, necessária
62
. Daí a necessidade de, após a
análise estatístico-molar do discurso, retornar à análise sintático-molecular, identificando
os vetores sociais que definem as diversas trajetórias imprimidas no fluxo dos casos. À
toda interpretação, ou seja, à toda decisão ético-semântica corresponde um campo de
forças, uma correlação: todo sentido, todo sujeito, toda identidade é uma perspectiva que
se superpõe violentamente a outras. A variação estatístico-matemática e a variação
semântico-lógica são diferentes atributos da mesma entidade subjacente (paralelismo
ontológico). Correspondem a séries independentes e irredutíveis, mas isomórficas, isto é,
expressões idênticas de ser, portanto, implicam uma correspondência, ou identidade de
ordem, sem qualquer ação causal de uma série sobre a outra: nenhum corpo pode ser
determinado ao movimento ou ao repouso por um modo do pensamento, nem vice-e-
versa. Não há nenhuma relação de causalidade entre a vontade e o movimento, ou entre
62
“(...)a forma derradeira considera as formas passadas como etapas que conduzem a si mesma” (MARX,
1977)
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
83
mente e corpo, não sendo mais que duas séries (intensiva e extensiva; semântica e física;
qualitativa e quantitativa) de modificações correspondentes ao mesmo “substrato”. O
sentido é tido como fronteira (limite) que articula os dois lados (séries): o “expresso da
proposição” e o “atributo do estado de coisas”; unidade de significado e força. É função
expressiva contraída por proposições e corpos (DELEUZE, 1999). A modificação
(acontecimento) no discurso é a unidade dos modos que são produzidos em paralelo nos
diferentes atributos por um único acontecimento discursivo – ele exprime-se
necessariamente em cada um deles pela mesma ordem. As variações modais (dinâmicas
e semânticas) produzidas autônoma e igualmente nos diferentes atributos (extensivos e
intensivos) aparecem como uma unidade, do ponto de vista do discurso, sendo, ambas,
produzidas pela força hegemônica. Em outras palavras, quando reconhecermos um
aspecto da estrutura ou do funcionamento das forças e corpos (física), devemos nos
perguntar como podemos reconhecer uma estrutura ou função paralela dos significados e
dos valores (semântica) e vice-versa. A questão central da identidade (ou) do sentido das
coisas não é a da adequação ou das essências, mas a da forma em movimento e a do
movimento na forma. Deste movimento se infere a força. A dinâmica da força introduz
pelo ângulo mínimo, pela singularidade, estabilidades, de um lado, átomos, corpos,
entrelaçamentos, choques, trajetórias, por outro, significantes, enunciados, articulações,
paradoxos, narrativas. Estas morfologias engendradas no discurso são primeiramente
reconhecidas pela linguagem o que faz com que se “modelize” ao mesmo tempo os
acontecimentos e a semântica dos termos que os exprimem: fluxograma e semantograma
(cf. capítulos 8 e 9).
O que nossa análise, portanto, deve mostrar é uma certa correspondência
(“variação concomitante”) entre a variação nas trajetórias tomadas pelos casos e a
variação nos elementos semânticos (lingüísticos e extra-lingüísticos) que compõem os
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
84
discursos (δ) produzidos nos processos judiciais. Estes passam, então, a ser micro-
discursos (δ) de um macro-discurso (Δ) jurídico que correlaciona (articula) cada micro-
discurso a sua respectiva trajetória no sistema. A complexidade do macro-sistema (Δ)
depende da quantidade de micro-estados (δ) e da quantidade de trajetórias possíveis.
Além disso, a justificação visa a provocar, como eficácia simbólica, a “adesão
dos espíritos”, o engajamento dos sujeitos à decisão tomada, (re)produzindo um
consenso público, uma hegemonia, acerca do legítimo, do justo
63
. A adesão a uma tese
tem extensão e intensidade variáveis:
Enquanto os raciocínios demonstrativos, as inferências formais, são corretos ou
incorretos, os argumentos, as razões fornecidas pró ou contra uma tese têm maior
ou menor força e fazem variar a intensidade da adesão de um auditório
(
PERELMAN, 2004:147).
Contudo, o contexto de decisão é diferente do contexto de justificação. Em outras
palavras, a justificação é sempre um comentário à decisão, ou segundo nosso modelo, se
a decisão está inscrita em δ
n
, a justificação será δ
n+1
. Ao buscar justificar uma decisão ou
o curso de uma ação, não estão, necessariamente, envolvidos os mesmos elementos,
significados ou “razões” que orientaram a ação ou decisão. Mesmo assim, pela análise
dos discursos produzidos no contexto de justificação, ainda que não nos seja possível
determinar as causas ou razões que estavam efetivamente presentes no momento da
decisão, é-nos possível identificar que causas ou razões teriam que estar presentes para
que uma determinada decisão seja considerada socialmente válida, mesmo para o
hipócrita ou mentiroso, que se utiliza das razões ou causas socialmente válidas, ainda
que elas não estivessem presentes no momento de sua decisão, para justificá-la:
Eles[os hipócritas] mentem para justificar a si mesmos, e com isso descrevem os
traços característicos da justiça. Onde quer que encontremos a hipocrisia, também
encontraremos o conhecimento moral. (...) Existe uma forma de encarar o mundo
de tal modo que a tomada de decisões faça sentido. O hipócrita sabe que isso é
63
Não se trata, segundo nossa abordagem, de trabalhar com a distinção entre eficácia e validade, mas da
distinção entre duas formas de eficácia: material e simbólica. “(...) o que a correção é para a gramática, a
validade para a lógica, a eficácia o é para a retórica” (PERELMAN apud CASSIN, 2005: 171).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
85
verdade, embora possa na realidade encarar o mundo de outro modo (WALZER,
2003:31-32).
Isto também vale para os argumentos apresentados pelas partes em litígio. As
técnicas de argumentação procuram, partindo do que é socialmente aceito, reforçar ou
enfraquecer a adesão a outras teses ou suscitar a adesão a teses novas que podem resultar
da reiteração e da adaptação das teses primitivas. O raciocínio jurídico busca, assim,
distinguir e justificar a solução autorizada de uma controvérsia, em conformidade com
procedimentos (consuetudinários ou processuais) impostos.
Figura 2.7
64
Nesta representação da topologia da decisão, quanto maior a distância em relação
à linha horizontal (máximo de ambigüidade, máximo de instabilidade), maior será a
assimetria entre os sentidos X e Y e menor será a ambigüidade ou equivocidade do
discurso, ou seja, maior será a diferença na freqüência das decisões ϕ e γ. O sistema
jurídico se configura, então, como um processo de fixação de sentido, passagem de um
equilíbrio instável (agonístico) para um equilíbrio estável (não-agonístico).
64
Dentro de toda a vizinhança de um ponto de singularidade (catastrófico) se pode passar por pequenas
deformações do tipo 1 (com dois nima e um extremum) ao tipo 2 (com um minima) e reciprocamente. A
passagem se efetua por colisão de um dos minima com o maximum (ponto de inflexão da curva) (cf.
PETITOT, 1977).
Fonte: PETITOT
,
1977
RAÇA E JUSTIÇA
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86
Figura 2.8
Em alguns casos, as ambigüidades e indeterminações produzidas nas relações
raciais acionam o princípio do in dubio pro reo, segundo o qual se tende a absolver o
réu, quando pairam dúvidas acerca da responsabilidade sobre o ocorrido. Ademais,
existe o princípio segundo o qual o juiz deve sempre tomar uma decisão, nunca deixando
suspenso o litígio, ou seja, a autoridade jurídica não pode recusar-se a julgar sob o
pretexto do silêncio, da obscuridade ou insuficiência da lei, sendo obrigado a tratar o
ordenamento jurídico como se fosse completo (sem lacunas), claro (sem ambigüidades)
e coerente (sem antinomias). Assim reduz as decisões ético-semânticas a duas: γ→(X)/Y
ou ϕ→X/(Y), com maior presença da primeira, ou seja, da absolvição do réu – a
permanência na ambigüidade, após o fracasso na tentativa de atestação da intenção,
conduz à absolvição do réu. Ou seja, o terceiro é excluído.
Por exemplo, diante da ocorrência do enunciado “Negro!” ou “Seu Negro!”,
[X/Y], produzido em determinadas circunstâncias, é preciso decidir o sentido que esta
ocorrência tomou neste contexto. Se tem um sentido pejorativo, depreciativo ou
discriminatório, [ϕ→X/(Y)], ou se tem sentido assertivo, constatatório, mera referência à
“cor” o “raça” de alguém, [γ→(X)/Y], ter-se-á trajetórias diferentes no sistema jurídico:
a ocorrência se transformará ou não em boletim de ocorrência, que se tornará ou não
inquérito e, assim, sucessivamente. Vê-se pelo exemplo que os processos de decisão
ético-semântica são muito mais complexos do que um sistema binário (0,1), (sim, não),
PETITOT
,
1977.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
87
(condenação ou absolvição). Ainda que possa permanecer dentro do sistema jurídico,
pode ser preciso decidir (qualificar) se uma dada ocorrência, como a anterior, é,
conforme o contexto, “injúria”, “injúria com preconceito”, “crime de racismo”, “dano
moral”... Cada qualificação implica no recurso a leis diferentes, com processos diversos
e penas distintas.
Se a bifurcação engendra o acontecimento, enquanto aparecer de uma nova
forma, um fenômeno se reduz a um agregado de acontecimentos locais, a um sistema
mais ou menos integrado de descontinuidades que realiza a inscrição dos conjuntos de
bifurcação dos estados internos (PETITOT, 1977). Para os propósitos do presente
trabalho, um modelo teórico simplificado e formalizado de nosso objeto pode ser assim
apresentado:
1. δ
n
(φ
n ∨∨
γ
n
): decisão ético-semântica, onde
∨∨: disjunção exclusiva “ou...ou...”
As decisões ético-semânticas são mutuamente exclusivas, ou seja, toda decisão
pressupõe um ato de poder, que reprime a outra decisão possível.
Outra forma de representar a decisão ético-semântica é como um operador discursivo
que transforma δ
n
em δ
n+1
: f(δ
n
)= δ
n+1
.
2. φ
n
: δ
n
δ
n+1
ou φ
n
: (δ
n
, δ
n+1
): decisão afirmativa, “vetor semântico”, sendo δ
n+1
função φ
n
de
δ
n
, mantendo o fluxo dentro do sistema jurídico.
δ
0
δ
2
ε
1
ε
2
ε
3
ε
4
ε
5
γ
0
γ
1
γ
2
γ
3
φ
3
φ
0
φ
1
φ
2
0
3
2
1
D
δ
5
φ
4
4
γ
4
ε
6
δ
1
δ
3
δ
4
Figura 2.9
ι
5
ι
4
ι
3
ι
2
ι
1
ι
0
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
88
A decisão φ
n
funciona como um acontecimento discursivo que atualiza um
discurso δ
n
num novo discurso δ
2
.
3. γ
n
: δ
n
n
ou γ
n
: (δ
n
,
n
): decisão negativa, “vetor semântico”, sendo
n
função γ
n
de
δ
n
, conduzindo o fluxo para fora do sistema jurídico, onde
δ
0
= ocorrência-caso
δ
1
= boletim de ocorrência
δ
2
= relatório de inquérito
δ
3
= denúncia da promotoria ou queixa da vítima (δ
3
)
δ
4
= autos do processo público ou privado (δ
4
)
δ
5
= sentença condenatória ou absolutória (δ
5
)
4. δ
n+1
= f(φ
n
, ε
n+1
)
;
onde ε
n
: “vetor semântico” da intertextualidade, ou seja, conjunto D de discursos
pretéritos materializados (formação discursiva) inscritos num campo de discursividade:
discursos jurídicos (leis, doutrinas, costumes), sociológicos, biológicos, midiáticos, etc.
δ
n+1
aparece, assim, como “comentário” (interpretação, avaliação, julgamento,
qualificação, inquérito, registro, etc.) de δ
n
, que ao fazê-lo articula δ
n
a outros discursos,
formando um sistema de remissões a outros textos, outros livros, outras frases. Portanto,
é suficiente que δ
0
se apresente como indecidível para que se dê uma série Φ de
comprimento m decisões φ
∨∨
γ: “eterno retorno do recalcado”. A intertextualidade é
constitutiva de todo texto, retomando enunciados de textos anteriores na produção de um
novo texto.
5. D: Formação discursiva (retrato de fase); D: <
ι
i
, δ
n
,δ
n+1
, ι
i+k
>. δ é um nó em uma
rede D inscrita no campo de discursividade (domínio de unidade ou elementos
possíveis, articuláveis; espaço vetorial)
.
Um sistema de formas em evolução constitui um processo formalizável se há um
sistema formal T (no sentido de lógica formal) satisfazendo às seguintes condições:
1. Cada instância δ
n
do processo pode ser parametrizada por um conjunto de
proposições P do sistema formal T.
2. Se, com o tempo, a instância δ
n
é transformada na instância δ
k
, tal que k>n,
então δ
k
pode ser parametrizada por um conjunto K de T, tal que K pode
ser deduzido de P em T.
Em outras palavras, há um mapa bijetivo D de algumas ou de todas as proposições
de T, sendo o conjunto das formas aparentes globalmente no processo, e o inverso deste
mapa transforma a sucessão temporal em sucessão lógica (THOM, 1975:2). Em termos
semânticos, a construção de tal mapa corresponde à narrativização do processo, em um
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
89
modelo actancial (cf. GREIMAS, 1973), e o inverso desta narrativização corresponde à
estrutura subjacente. Tal modelo não é necessariamente determinístico, pois um conjunto
P de premissas de T pode, em geral, implicar em um amplo número de conclusões
formalmente diferentes.
A parte dinâmica do modelo é dada pelas probabilidades de transição entre uma
instância δ
n
parametrizada pelo conjunto de proposição P e a instância δ
k
parametrizada
por K, uma conseqüência de P. É, contudo, excepcional para um processo social ter uma
formalização global, pois simetrias iniciais podem ser quebradas por pontos de
indecidibilidades, singularidades, ângulos de contingência etc. Em termos formais, a
indecidibilidade pode ser definida como a impossibilidade de decidir em cada caso
particular se uma dada proposição formulada (parametrizada) no simbolismo de T pode
ser reconhecida como válida em T (cf. TARSKI, 1953:3). Já que a estrutura de T é
indecidível, não há possibilidade de fechamento algorítmico, a decisão não pode estar,
em última instância, baseada em nada externo a ela mesma.
65
Porém, formalizações
locais são possíveis e permitem falar de causa e efeito, pois a indecidibilidade é uma
indecidibilidade estruturada, estruturação parcial que torna imperativa a decisão:
(...) como la decisión es siempre tomada dentro de un contexto concreto, lo que es
decidible no es enteramente libre: lo que se considera una decisión válida tendrá
los limites de una estructura que, en los hechos, está solo parcialmente
desestructurada (
LACLAU, 1998:119).
Em vista disto, T tem uma estrutura menos rígida, com apenas um pré-
ordenamento no lugar de uma implicação lógica.
Enfim, acrescentando a restrição que T contenha um número contável de
elementos (parametrizados por símbolos, letras etc.), nós obtemos modelos quantitativos
ou contínuos. Estes são os que René Thom denomina modelos locais (1975:2).
65
“ (...) una verdadera decisión es algo mayor que um efecto derivado de uma regla de cálculo y algo
distinto de él. Una verdadera decisión siempre escapa a lo que cualquer regla puede esperar subsumir. (...)
la decisión tiene que estar basada em sí misma, en su própria singularidad.” LACLAU, 1998:109-110.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
90
Nosso objetivo, com esta formalização
66
, não é “naturalizar” as relações sociais
estudadas, nem tentar uma abordagem positivista ou cientificista destas relações, mas,
sim, descrever e explicar as regularidades produzidas pelas relações de poder e,
ideologicamente, naturalizadas, procurando desconstruir aquelas regularidades,
apontando seus pontos de inconsistência, sua fissura, sua contingência sob a aparente
necessidade sistêmica, explicando a morfogênese de uma certa estabilidade estrutural,
expressão topológica da hegemonia. A estabilidade estrutural se dá quando variações
suficientemente pequenas no espaço de controle não perturbam ou alteram
significativamente a identidade ou forma de uma entidade – sua identidade (forma)
resiste a pequenas perturbações advindas do ambiente: a condição de um sistema é
estável quando uma variação infinitamente pequena do estado presente alterará apenas
numa quantidade infinitamente pequena tal estado no futuro. Porém, quando pode causar
uma diferença finita num tempo finito, é instável, alterando a morfologia do sistema. Dá-
se, então, uma crise local ou global de hegemonia (topologicamente, uma “catástrofe”).
A hegemonia, portanto, é a lei segundo a qual uma forma social resiste à deformação:
66
Para aqueles que acreditam que a formalização lógico-matemática é incompatível com o marco teórico
adotado conferir a seguinte reflexão de Derrida: “(...) a reticência, até mesmo a resistência, relativamente à
notação lógico-matemática tem sido sempre a assinatura do logocentrismo e do fonologismo na medida
em que eles têm dominado a metafísica e os projetos semiológicos e lingüísticos clássicos. A crítica da
escrita matemática não-fonética (por exemplo, do projeto leibniziano de “característico”) por Rousseau,
Hegel etc., encontra-se, não por acaso, em Saussure, no qual ela vem junto com a preferência declarada
pelas línguas naturais. (...) Tudo aquilo que sempre ligou o logos à phoné encontrou-se limitado pela
matemática, cujo progresso é absolutamente dependente de uma inscrição não-fonética. Um trabalho
crítico sobre as línguas “naturais”, por meio das linguagens “naturais”, toda uma transformação interna
das notações clássicas, uma prática sistemática das trocas entre as línguas e as escritas “naturais”, deveria,
parece-me, preparar e acompanhar esta formalização. Tarefa infinita, porque será sempre impossível, por
razões essenciais, reduzir absolutamente as línguas naturais e as notações não-matemáticas. É preciso
desconfiar também do lado “ingênuo” do formalismo e do matematismo, dos quais uma das funções
secundárias, na metafísica, tem sido, não esqueçamos, a de completar e confirmar a teologia logocêntrica
que, por outro lado, elas poderiam contestar.
O progresso efetivo da notação matemática anda de mãos dadas, pois, com a desconstrução da
metafísica, com a renovação profunda da própria matemática e do conceito de ciência do qual ela sempre
foi o modelo” (DERRIDA, 2002: 40-41).
Aquela irredutibilidade a que se refere Derrida corresponde à irredutibilidade entre o extensivo e
o intensivo, entre o quantitativo e o qualitativo etc.. Que não nega, como já afirmamos, uma certa
correspondência ou isomorfismo.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
91
em condições diferentes, dentro de um contexto diferente, sobre um fundo diferente, a
forma social é experimentada como a mesma.
A estrutura não é dada a priori, mas é diretamente originada do conflito entre duas
ou mais forças que a engendram e a mantém por seu próprio conflito, explicando a
morfologia por um dinamismo subjacente
67
:
A agregação espaço-temporal e estatística das decisões não repousa, como na
teoria dos sistemas formais ou dos jogos, sobre a iteração automática de certas operações
com objetos pré-definidos, mas sobre uma combinação intrínseca dada pela
interpretação dinâmica e imanente.
O uso da descrição estatística não visa à construção de um modelo de previsão
probabilística dos fenômenos sociais, modelo no qual as freqüências ou percentagens
menores seriam consideradas meros desvios ou erros de uma curva de regressão
(linearização). Ao contrário, procuramos construir um modelo não-linear que evidencie a
imprevisibilidade e irreversibilidade próprias da dinâmica social dos fluxos de justiça,
onde as freqüências menores indicam linhas de fuga, contra-tendências, divergências,
processos contra-hegemônicos. A estatística deve funcionar como uma espécie de
diagnose de sintomas (indicadores) que permita a identificação de zonas de agitação, de
surgimento de uma nova série, de um novo fluxo, de uma nova intensidade, de uma nova
prática, uma nova percepção, enfim, de uma nova identidade/entidade social. Toda
entidade contável, toda identidade nominável e/ou mensurável sempre se refere a uma
multiplicidade de componentes intensivos de forças, e não a uma essência unitária, pois,
trata-se, no social como no discurso, da interpenetração e síntese parcial dos elementos e
67
“(...) uma morfologia é dada pelo conflito de dois (ou mais) atratores”. THOM, 2004: 97.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
92
não de uma justaposição e adição partes extra partes (partes mutuamente exclusivas)
68
.
As freqüências de decisões minoritárias indicam decisões divergentes numa mesma
instância ou entre instâncias diferentes no fluxo de justiça, e não, simplesmente,
fenômenos menos ou mais prováveis.
O aspecto turbulento, caótico e agonístico dos fluxos de justiça é contido, no
sistema jurídico, pela hierarquização das instâncias de decisão – o sistema jurídico corta
e conecta o fluxo de justiça. Ainda que formada por decisões divergentes, o que
prevalece no sistema jurídico é a última decisão. A polícia pode indiciar, mas o
Ministério Público não prestar denúncia. Se este apresenta denúncia, abrindo processo
judicial, o juiz pode absolver, ou seja, as diferentes instâncias do sistema podem
discordar sobre a existência de elementos ou indícios, provas que transformam,
conforme os diferentes jogos de linguagem do sistema, o inocente em suspeito, o
suspeito em réu, e o réu em culpado. A hierarquização das instâncias neutraliza o
antagonismo entre elas, fazendo com que uma instância se apresente como elemento da
instância seguinte que, por seu turno, aparece como comentário da anterior
69
: lei
68
Governada pelo princípio da identidade, a lógica formal não admite senão determinações “identitárias”
isoladas, “exteriores” uma às outras. Ela repousa sobre a “fixidade” (e não a estabilidade) da identidade,
sobre a permanência a priori de uma identidade não regulada.
69
“Por ora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se chama globalmente comentário, o desnível
entre texto primeiro e texto segundo desempenha dois papéis que são solidários. Por um lado permite
construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro pairar acima, sua permanência,
seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto de que passa por seu detentor, a
reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso funda uma possibilidade aberta de falar.
Mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o
de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo
que ele desloca sempre, mas ao que não lhe escapa nunca dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto já
havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito. A repetição
indefinida dos comentários é trabalhada do interior pelo sonho de uma repetição disfarçada: em seu
horizonte não há talvez nada além daquilo que já havia em seu ponto de partida, a simples recitação. O
comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto
mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade
aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o
número, a forma, a máscara, a circunstância da repetição. O novo não está no que é dito, mas no
acontecimento de sua volta” (FOUCAULT 1999:24-26).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
93
regressiva
70
. Assim, a queixa é elemento do inquérito, o inquérito, elemento da
denúncia, a denúncia, elemento dos autos do processo, e este, elemento da sentença
judicial. É possível, ainda, recorrer a uma instância judicial superior, cuja decisão pode
ser divergente da decisão da instância judicial inferior: um juiz de 2
a
instância tem
completa autonomia em relação a um juiz de 1
a
instância e vice-versa. Porém, a
regressão infinita é contida pelo sistema, estabelecendo uma instância máxima na série e
o princípio do julgado:
Res judicata pro veritati habetur
71
.
A irreversibilidade dos fluxos de justiça é combatida no sistema jurídico pela
hierarquização de decisões que podem, então, serem revertidas: é possível sair inocente,
mesmo que se tenha sido julgado suspeito e, até, culpado. A sentença judicial seguinte
anula a sentença anterior. O antagonismo social é deslocado pela judicialização dos
conflitos sociais que são reduzidos ao litígio entre partes e têm seu caráter político
negado pela hierarquização institucional (processual) das decisões e do uso “legítimo”
da violência (coerção) que efetiva aquelas decisões no sistema jurídico: a justiça aparece
como puro árbitro imparcial na mera aplicação da lei.
Em suma, o sistema jurídico codifica (hierarquiza e distribui) os fluxos de justiça.
Os conflitos “internos” e “externos” são, assim, despolitizados, e o fluxo de justiça,
linearizado. Mas, apenas parcialmente, pois a divergência entre decisões numa mesma
instância do sistema jurídico cria linhas de fuga, pontos de singularidade, de
indecidibilidade, quebrando a linearidade do sistema – o fluxo de justiça é descrito como
uma distribuição estatística espaço-temporal das decisões, distribuição que mede o grau
de hegemonia no sistema: o grau de hegemonia é inversamente proporcional à entropia
70
A lei regressiva afirma que o sentido de um nome deve ser designado por um outro nome. Cada nome
de grau diferente remete, do ponto de vista da significação a classes ou propriedade de “tipos” diferentes
(teoria lógica dos tipos): toda propriedade deve ser de um tipo superior às propriedades ou indivíduos
sobre os quais ela recai e toda classe deve ser de um tipo superior aos objetos que contém. Cf. DELEUZE,
1998: 69-76 e RUSSEL, 1963: 128-140.
71
“Coisa julgada é tida como verdade”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
94
na distribuição das decisões tomadas. O grau de entropia (H
n
) numa instância n é dado
por H
n
= 1-
n
|, ou seja, um menos o módulo da intensidade da intervenção hegemônica
na instância n. A entropia é crescente na medida em que a quantidade de trajetórias
possíveis cresce com a complexidade do sistema. Quanto maior o valor de
n
|, menor
será o valor de H, menor será a indecidibilidade molar (a indecidibilidade individual
permanece, pois, senão, não haveria decisão) num dado ponto e maior será a correlação
estatística entre um acontecimento discursivo δ
n
e outro δ
n+1
ou
n
(regressão,
linearização, hegemonização). A entropia relaciona-se diretamente com o número de
estados possíveis para determinado macro-estado, dependendo diretamente da
quantidade de micro-estados possíveis, ou seja, das diferentes combinações no seio do
sistema. Quando π
n
= ± 1, H = 0; quando π
n
= 0, H = 1. H é, portanto, um índice de
antagonismo social no sistema, mas, apenas, de uma parte, pois indica apenas a
divergência nas decisões intra-instâncias, não, inter-instâncias. O grau de divergência
entre as instâncias (G) pode ser mensurado pelo grau de dispersão do sistema na
instância n, ou seja, pela razão (g
n
/N
n
) entre o número de casos excluídos do sistema (g
n
)
no ponto n e o número total de casos (N) em n. O grau de dispersão g
n
/N
n
mede o grau
de divergência de n com a instância anterior n-1, pois todos os casos em n foram
mantidos no sistema por n-1. A instância n exclui parte (g) dos casos (N) advindos de n-
1, divergindo da decisão tomada por esta. A soma ξ = H + G chamaremos de Coeficiente
de Antagonismo.
Contudo, a forma de antagonismo expresso por G é contido, conforme já
dissemos, pela hierarquização das instâncias de decisão do sistema jurídico: cada decisão
tomada nas instâncias é apenas um momento no processo global de prestação
jurisdicional, uma etapa no processo de decisão judicial. Fora dessa hierarquização se
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
95
configuraria uma disputa aberta entre as “instâncias”. A relação entre antagonismo e
autoridade na decisão judicial é muito bem expressa nas palavras de Perelman:
(...) a solução justa parece ser menos o resultado da aplicação indiscutível de uma
regra inconteste do que a confrontação de opiniões opostas e de uma decisão
subseqüente, por via da autoridade. Quando as autoridades se opõem, pode-se
estabelecer uma hierarquia entre elas, ou pode-se levar em conta o número de
pareceres abalizados, mas nada prova que a decisão, diante da qual será
necessário inclinar-se, seja efetivamente a única solução justa para o problema
levantado (
PERELMAN, 2004:9).
Feitas estas reflexões, podemos, agora, apresentar os procedimentos
metodológicos que serão utilizados.
Após um levantamento dos casos (δ
0
) de racismo presentes no sistema jurídico na
Região Metropolitana do Recife, faremos uma descrição estatística da série de decisões
(φ
n
∨∨ γ
n
) tomadas nas diversas etapas do sistema jurídico: a ocorrência (δ
1
), o inquérito
(δ
2
), a denúncia(δ
3
), o processo (δ
4
) e a sentença (δ
5
). Série de decisões que implicam na
transformação dos “atos” em “autos”: narrativas, argumentações e sentença.
O boletim de ocorrência (δ
1
) resulta da decisão ético-semântica(φ
0
) de ver-se
como vítima de discriminação racial: identificar-se como vítima e outrem como racista,
fazendo um boletim de ocorrência. Uma segunda decisão (φ
1
) determina a abertura de
inquérito (δ
2
), depois abertura de processo (δ
3
) e, por fim, a sentença (δ
5
). Há, ainda, a
possibilidade de recurso.
Procuraremos ver como se dá a distribuição dos casos (δ
1
) ocorridos na Região
Metropolitana do Recife. Quantas ocorrências, quantas delas tornaram-se inquérito,
quantos inquéritos tornaram-se processos judiciais, quantas sentenças foram de
condenação ou absolvição, quantos processos, ainda, não chegaram ao fim. Faremos
uma descrição quantitativa do perfil dos casos, das vítimas, dos réus etc., e de sua
variação no tempo – buscaremos observar se há algum grau de coesão no que diz
respeito à distribuição dos casos ao longo do fluxo e se existe, ou não, algum
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
96
antagonismo entre as decisões tomadas nas diferentes fases do sistema. Constataremos
o nível de dispersão dos casos no fluxo do sistema jurídico (a proporção de casos que
não passam de uma instância a outra (g
n
/N
n
)) e em que instância do sistema ela é maior.
Selecionaremos os casos ocorridos desde 1989 e que pretensamente são regidos
pela Lei Caó (Lei n.º 7.716/89), Lei contra a Tortura (Lei n.º 9.455/97) e pela Lei contra
Injúria (Art. 140 § 3
o
Lei n.º 9.459/97) – pretendemos saber qual o grau de coerência
entre as leis anti-racistas selecionadas ou se existe uma certa antinomia entre elas
(capítulo 5).
Após essa primeira parte da análise, selecionaremos amostras não-probabilísticas
dos casos, estratificadas conforme a etapa (δ
n
) do sistema jurídico que tenham
alcançado, fazendo uma análise qualitativa, buscando destacar quais as condições
discursivas de cada etapa (
δ
n
) que conduzem (φ
n
) ou não (γ
n
) os casos para a etapa
seguinte (
δ
n+1
), e, por fim, produzem a sentença (
δ
5
). Destacaremos de duas maneiras as
condições que conduzem ou bloqueiam o fluxo dos casos no sistema jurídico: a)
contrastando os casos que permanecem e os casos que não permanecem no sistema
jurídico; b) confrontando a instância na qual se dá o maior nível de dispersão com a
instância com menor nível de dispersão dos casos (capítulo 8).
Na medida em que o fluxo dos casos depende de decisões inscritas em pontos de
indecidibilidade, que, por definição, são indecidíveis no espaço do ordenamento jurídico,
nosso procedimento analítico consistirá em identificar, nos discursos produzidos e
registrados, os sentidos efetivados pelas decisões, expressos nas remissões (ε
n
) a outros
discursos que informam e buscam validar, tornando razoável a decisão: as citações
diretas e indiretas, as paráfrases, as paródias, as alusões, as analogias, os pressupostos,
buscando preencher as lacunas estruturais. Mapearemos, assim, a rede discursiva D em
que está inscrita a decisão, efetivando uma hegemonia. Esses elementos podem ser
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
97
encontrados no discurso δ
n+1
produzido pela decisão φ
n
. Por seu turno, destacaremos o
papel das diversas formas de “negação” de outras séries discursivas. Esse duplo processo
permitirá a formação de uma cartografia do (des)conhecimento ideológico, apresentando
quais os saberes que são afirmados, negados ou excluídos.
Por fim, distinguiremos e evidenciaremos as narrativas e os argumentos
apresentados em acusação ou defesa do réu e constituindo sujeitos e ações, identidades e
responsabilidades; e como aquelas narrativas e aqueles argumentos se produzem como
estratégias divergentes de interpretação da ambigüidade do não-dito “pretensamente”
racista. A análise da narrativa e da argumentação visa a, principalmente, explicar os
processos discursivos de descrição de uma ação, de atribuição desta ação a um sujeito e,
por fim, de responsabilização deste mesmo sujeito, enquanto momentos do processo de
qualificação da ação, caracterização do sujeito e atestação da intenção. Para isso,
utilizaremos as ferramentas teóricas e metodológicas propostas por Ricoeur (1999) e
Greimas (1971, 1973 e 1993), na análise da narrativa, e por Skinner (1999), Reboul
(2000), Perelman (1996 e 2004), Magalhães & Sousa (2004), Dworkin (2000) e Ducrot,
na análise da argumentação.
A análise, porém, deve ir além da estrutura das narrativas e dos argumentos
(modelo local), descrevendo entre estes um sistema de dispersão e detectando uma
regularidade, uma ordem em seu aparecimento sucessivo, correlações, posições,
funcionamentos, transformações, entre seus objetos, os tipos de enunciação, os
conceitos, as escolhas temáticas (modelo global). Desta forma será definida uma
formação discursiva. Os argumentos e narrativas serão, portanto, tratados como
enunciados, ou seja, formas de repartição e sistemas de dispersão. A sua análise deve,
conforme Foucault (2002: 43), levar em conta a dispersão e a regularidade dos sentidos
que se produzem ao serem realizados. As condições a que estão submetidos os
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
98
elementos desta repartição (objetos, modalidades de enunciação, conceitos, escolhas
temáticas) são chamadas de regras de formação. A regras de formação estão associadas
a uma força hegemônica que sutura o sistema. Aquela repartição é resultante da atuação
da força hegemônica que suplementa aquelas regras. Relaciona-se, assim, a distribuição
dos casos e a dispersão dos elementos dos enunciados.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
99
Parte 1:
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL:
Cultura, Política e Subjetividade nas relações raciais.
CAPÍTULO 3
GENEALOGIA DAS RELAÇÕES RACIAIS: DIÁSPORA NEGRA E MODERNIDADE NO BRASIL
Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as “coisas boas”!...
Nietzsche, Genealogia da Moral § 3.º
O projeto de modernidade se realizou através de um processo civilizatório,
fundando uma “nova ordem” que oculta e legitima sua “violência fundadora” num “mito
fundador”. É como o direito à propriedade, que garante o direito legítimo ao domínio do
que lhe é próprio e de, soberanamente, alienar-se ou não de sua propriedade, mas que
oculta a “violência fundadora” que define quem é proprietário de terras e de escravos,
quem não o é, e quem é propriedade.
Por um lado, o processo civilizatório do projeto de modernidade dá-se na
realização de sua “violência fundadora” pela exclusão de seus “outros”. Ser moderno
significava, sobretudo, ser homem, branco, de origem européia, racional, civilizado... No
Brasil, assim como em diversas partes do mundo, o pensamento e as instituições
modernos (científicos, políticos, jurídicos, pedagógicos, econômicos, religiosos...) se
constituíram com vistas a dar conta do “não-moderno”, principalmente indígenas e
africanos, povos desterritorializados: terras sem povos e povos sem terras; genocídios e
diásporas, destruindo etnias e nações e construindo “raças”. Assim, constituiu-se o
direito à propriedade no Brasil. Por outro lado, a fundação dessa “nova ordem” exigiu a
naturalização das desigualdades, explorações e sujeições reproduzidas pela “nova
ordem”. Um dos fatores primordiais nessa naturalização da desigualdade é o racismo.
Assim, o Estado e suas instituições jurídicas não foram só constituídos por essa
“violência fundadora” da modernidade, mas foram os principais instrumentos de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
100
reprodução da “Ordem”, do “Progresso” e da “Razão” modernos, detentores da
“violência legítima” do Estado moderno
72
. É o que denominaremos “Hegemonia
Branca”. Declararmo-nos todos iguais, na instauração de uma “Ordem Republicana e
Democrática”, “pós-colonial” quando uns são mais iguais que os outros, é ocultar as
desigualdades raciais geradas pela “velha ordem”, “colonial”. Não ocorreu, na
construção dessa nova ordem, a correção das desigualdades históricas e o enfrentamento
às relações de poder nelas baseadas e que as reproduzem.
Há uma íntima relação entre o ressurgimento da “questão racial” e o fenômeno
do “pós-colonial”. Este não sinaliza uma simples sucessão cronológica no movimento
que vai da colonização aos tempos pós-coloniais livres de conflitos e dos problemas do
colonialismo. Ao contrário, o “pós-colonial” marca o deslocamento e rearticulação de
uma configuração histórica do poder. Os problemas de dependência,
subdesenvolvimento, marginalização, autoritarismo e patrimonialismo persistem na
configuração pós-colonial (HALL, 2003:56).
Por outro lado, o pensamento e as instituições, a ordem e a razão modernas
foram articuladas pelos grupos excluídos, explorados ou dominados como formas de
emancipação. As narrativas historiográficas oficiais cristalizaram imagens da população
negra como apática, infantilizada, desmobilizada e excluída dos processos de
participação política.
De certa forma, estamos falando da produção de um silêncio das narrativas (mais
historiográficas do que necessariamente históricas) sobre raça e classe nos anos
imediatamente pós-abolição (
GOMES, 2005:27).
Ao contrário, conforme veremos mais a frente, organizações e intelectuais negros
atuaram, propondo mudanças sociais como políticas públicas e reformas legais,
72
“De fato, estudos acadêmicos recentes apontam o Estado como o principal ator na construção da raça. É
claro que alegar que é o Estado que define e aplica os limites raciais não explica por que ele deveria ou
não tomar essas medidas. Estado pode ter a capacidade de construir raças, mas resta saber que a situação
pode ou não levá-lo a exercer seu poder dessa maneira” (MARX, A., 1996:19).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
101
dialogaram com setores da elite e com visões de cidadania próprias de cada período
histórico. Os diversos aparelhos jurídicos, no transcorrer da história das relações raciais
no Brasil, funcionaram e funcionam, ora como instrumentos de exploração, ora, de
dominação, ora, de sujeição, mas, também, de emancipação racial.
A diáspora negra
73
, no Brasil, sempre experimentou como efeitos da conquista
seus governos, suas leis e suas relações, o caráter de pilhagem da propriedade, de
extorsão das leis e de dominação do governo. O governo, as leis, o estatuto da
propriedade são, no fundo, apenas a continuação pós-colonial, em seus efeitos, não
corrigidos, mas reproduzidos por outros meios, da guerra, da colonização e da
escravidão. Se é verdade que o poder político tenta fazer reinar uma paz na sociedade
civil, não é de modo algum para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha
final da guerra (FOUCAULT, 1999:23).
O poder político, segundo Foucault, reinsere perpetuamente uma relação de força nas
instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e de
outros, mediante uma espécie de guerra silenciosa, ou seja, a política – as lutas políticas,
os enfrentamentos a propósito do poder, com o poder, pelo poder, as modificações das
relações de força
é a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na
guerra
.
Aquele processo civilizatório, modernizante, portanto, não se deu sem
deslocamentos nem sem antagonismos. O pensamento e as instituições modernos nunca
se tornaram plenamente objetivos, tiveram suas identidades sucessivamente deslocadas:
movimentos contra-hegemônicos, inconfidências, quilombos, revoluções, resistências,
sincretismos, miscigenações..., deslocamentos dos quais emergem diferentes mitos: o
mito da luta das raças, o mito da democracia racial, o mito do racismo cordial.
73
A diáspora negra é entendida como o processo de dispersão/diferança (diferenciação) das pessoas
negras e a multiplicidade social, política e cultural resultante desta dispersão.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
102
Entendemos por mito um espaço de representação que funciona como princípio de
leitura, chave interpretativa de uma dada situação, e cuja condição de emergência é um
deslocamento estrutural que o mito busca suturar mediante a constituição de um novo
espaço de representação.
La eficacia del mito es así esencialmente hegemónica: consiste en constituir una
nueva objetividad a través de la rearticulación de los elementos dislocados. Toda
objetividad no es, por lo tanto, sino un mito cristalizado (
LACLAU, 1993)
74
.
O objetivo deste capítulo é, pois, visualizar a gênese categorial e histórica
daquilo que se toma como simples fenômeno dado (a “democracia racial”),
problematizando a positividade das relações e identidades raciais estudadas, ressaltando
as peculiaridades e o caráter histórico de uma forma de sociabilidade que se estrutura por
meio de enunciados dotados de forma muito especial: o discurso “cordial” brasileiro.
3.1. Emancipação, justiça e antagonismo social no século XIX.
Até 1830, mesmo após a proclamação da independência, o Brasil esteve sob a
vigência das Ordenações do Reino: Ordenações Alfonsinas (1446-1521), Ordenações
Manuelinas (1521-1603) e Ordenações Filipinas (1603-1830). Conforme previsto no
Título XVI das Ordenações Filipinas, punia-se “a invasão de domicílio com a finalidade
de manter conjunção carnal com mulher virgem, viúva honesta ou escrava branca”, de
onde se infere que caso se tratasse de mulher negra, não se configuraria crime. Foi sob
esta legislação que se realizou a tão declarada miscigenação racial. O Título LXII
equiparava as pessoas escravizadas a animais e coisas (tendência ainda presente em
nossas piadas, injúrias, trocadilhos etc.). Sob as antigas leis portuguesas, o escravizado
era uma “coisa”, propriedade de outra pessoa, sem nenhum direito político ou civil, sem
74
Esta afirmação pode parecer a alguns radical ou esotérica, mas o que ela propõe, e que veremos ser
muito importante para nossa discussão da objetividade do racismo a partir do mito da democracia racial, é
que a objetividade de uma coisa ou acontecimento depende de sua apropriação em um mito que, mais do
que uma crença, é um modo de funcionamento ou regime semiótico dos discursos.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
103
personalidade jurídica, embora fosse condenado pelos crimes que cometesse. O Título
LXX criminalizava reuniões, festas ou bailes organizados por escravizados.
Neste mesmo período a Decisão de 05 de novembro de 1821 determinava as
providências a serem tomadas contra os capoeiras na província do Rio de Janeiro.
Na Constituição liberal de 25 de março de 1824, os direitos civis foram
conferidos a todos os habitantes, mas os escravizados só poderiam fazer queixas ou
petições por meio de seus senhores ou outros homens livres. Isso se repetiu no Código
Criminal do Império, editado em 16 de dezembro de 1830.
Orientaremos nossa análise das relações raciais segundo a distinção proposta por
Silvia Hunold Lara (1988) entre dominação colonial (o período estudado por ela vai de
1750 e 1808) e dominação senhorial. Estenderemos esta distinção para o período pós-
colonial analisando as formas de dominação macro-social e as microtécnicas de poder
na reprodução das relações raciais. É importante destacar sua complementaridade, mas
também suas contradições, pois, como veremos mais adiante, a dominação macro-social
do estado imperial procurou regular e mesmo reprimir as micro-técnicas senhoriais de
poder. Da perspectiva da dominação senhorial e de suas microtécnicas de poder, no
Brasil, a relação entre senhores e escravos era uma relação pessoal de dominação, uma
mistura de punição e perdão, rigor e mercê, castigos e cuidados, violência e
paternalismo, configurando o que se consolidará e será mais tarde chamado de
“cordialidade brasileira”. Segundo Lara, é impossível separar “crueldade” e “bondade”
sem considerar que estes termos são manifestações da própria “essência violenta” da
relação senhor-escravo.:
Quando repreenderem e castigarem estes cativos, seja sim o suplício condigno e
proporcionado, porém as palavras sejam sempre amorosas; e, pelo contrário,
quando lhes fizerem algum bem ou benefício, usem então de palavras mais
dominantes, para que deste modo sempre o amor, o poder e o respeito
reciprocamente se temperem, de sorte que nem os senhores, por rigorosos, deixem
de ser amados nem também, por benévolos, deixem de ser temidos e respeitados
(
Manoel Ribeiro Rocha apud LARA, 1988:15).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
104
Esta combinação patricarcal de amor e temor cumprirá, mais tarde, no período
pós-abolição, uma outra função, reproduzindo, contudo, esta mesma contradição
(performativa) entre as “palavras” e as “práticas” (cf. capítulos 6 e 7).
Porém, muitos senhores, em sua “cordialidade”, levavam seus escravizados à
morte por excesso de trabalho e de castigos, e muitos dos escravizados que chegavam ao
Brasil revoltavam-se, respondendo violentamente (cf. ZALUAR, 1996:59-61).
As pessoas negras escravizadas fugidas ou ativamente rebeldes desempenhavam
um papel que funcionava como fator de dinamização da sociedade. O quilombola,
enquanto forma “extralegal”, era o elemento que, como sujeito do próprio regime
escravocrata, negava-o material e socialmente.
Ao mesmo tempo em que assim procedia, o escravizado rebelde criava novos
níveis de “desajustes”, novos elementos de assimetria social, pois fazia com que se
desenvolvessem elementos que impulsionavam o social no seu sentido global para novas
formas de convivência, nas quais emergiam, como resultante da sua atividade rebelde,
outras formas de prática “divergente” em camadas diversas que, por seu turno, influíam
para que os escravizados passivos se transformassem em elemento dinâmico, passando
de escravo a quilombola.
A ação quilombola deixava expostas as falhas intrínsecas ao escravismo e, ao
mesmo tempo, mostrava o caráter de pilhagem da propriedade, de extorsão da lei e de
domínio do governo. “Portanto, a revolta não vai ser a ruptura de um sistema pacífico de
leis por uma causa qualquer”. A revolta quilombola “vai ser o reverso de uma guerra que
o governo não pára de travar. O governo é a guerra de uns contra outros; a revolta vai
significar a guerra dos outros contra uns” (FOUCAULT, 1999: 129).
O quilombola desempenhou papel importante, não tanto pelas suas intenções ou
atitudes ideológicas, mas pelas conseqüências sociais que produzia: desgaste econômico,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
105
antagonismo social, deslocamentos ideológicos (MOURA, 1981: 249). Os quilombolas e
escravizados revoltados adotaram diversas formas de rebeldia e resistência: o suicídio,
a depressão psicológica (banzo), o infanticídio, a fuga individual ou coletiva, a
organização de quilombolas, as revoltas citadinas pela tomada do poder político, as
guerrilhas nas matas e estradas, a participação em movimentos sociais, a violência
contra senhores e feitores.
A “resistência” do escravizado não se dava, apenas, por uma “reação” violenta à
dominação senhorial. Havia escravizados que reiteravam as expectativas senhoriais de
fidelidade, obediência e trabalho cioso para conseguir suas alforrias ou o cumprimento
de acordos sobre alimentação e vestuário. Outros que, sob ordens senhoriais, invadiam
propriedades alheias, destruíam casas e lavouras ou que se aproveitavam do poderio de
“seus” senhores para se vingarem de outros escravizados. Ademais, houve escravizados
que se aproveitavam de brechas na própria dominação senhorial, devidas a tensões entre
senhores locais ou entre eles e as autoridades públicas, para reivindicar e conseguir
alforrias, doações, liberdades, etc. O antagonismo social não se expressa apenas em
ações violentas ou embates físicos. A ação judicial aparecia como uma daquelas brechas
na dominação senhorial que atualizavam o antagonismo social entre “negros” e
“brancos”.
Depois de 1800, as prisões de escravos fugidos se intensificam. As cadeias de
São Paulo enchem-se de cativos, presos não apenas por fuga ou rebeldia. Outros motivos
eram: a) crimes comuns; b) por penhora contra o “seu” senhor; c) por ordem do “seu”
senhor. Porém, em sua maioria, eram presos devido à fuga. “O potencial de rebeldia do
escravo paulista aumentava em um pólo e consequentemente os mecanismos de defesa
da classe senhorial se aperfeiçoavam” (
MOURA, 1981: 209).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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O escravizado urbano, tendo melhor condição que o rural, dela aproveitava-se
para fugir. Contudo, tinha contato mais freqüente com o aparelho repressor do Estado:
enquanto nas fazendas predominava a figura do administrador e do feitor, nas cidades
era o soldado quem policiava a ordem com mais intensidade.
Em São Paulo, em especial no interior, formaram-se diversos grupos de
escravizados que se evadiam e praticavam desordens. A ameaça constante de rebelião
por parte da massa escravizada desgastava o aparelho repressor das classes dominantes.
Os escravizados do eito e os domésticos reagiam contra o sistema escravista. Por seu
turno, alastrava-se na opinião pública, nos setores desvinculados do regime escravocrata
ou que já sentiam as suas contradições, uma posição crítica em face do mesmo. São
representantes de diversas camadas que, por uma série de razões, são despertadas para a
inevitabilidade da substituição da mão-de-obra escrava pelo trabalho livre.
Essa nova ideologia que se formava em algumas camadas da sociedade paulista,
ganhava cada vez maior influência, deixando de ser raciocínio subversivo para ser aceito
como argumento nos debates cotidianos, discurso contra-hegemônico, dando cobertura e
“racionalizando” as revoltas de escravizados, agora com o respaldo de grande parte da
opinião pública e da imprensa.
Apesar dos “senhores de escravos” exigirem cada vez mais garantias à sua
propriedade e à sua segurança pessoal, os mecanismos de defesa do regime já não
podiam de maneira normal sustar a onda de revoltas dos escravos, quer por perda de
eficácia, quer por perda de legitimidade. Por seu turno, os imigrantes disseminavam a
ideologia antiescravista de várias maneiras. Mascates, pequenos agricultores livres,
homens desligados da estrutura escravista participavam dos eventos. O número de
indivíduos que colaboravam nas fugas dos escravos cresceu durante os anos 80 do
século XIX.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
107
Em Pernambuco, a história do Recife no século XIX foi caracterizada pela
intensa luta política: a Revolução de 1817, a Confederação do Equador, de 1824, a
Revolução Praieira, de 1848. Criou-se um imaginário de lutas e rebeldias. O Recife
convivia com inquietações freqüentes, desafiando o poder central do Rio de Janeiro. As
rebeldias estavam fortemente articuladas por um discurso da modernidade, com seu
projeto civilizatório que se ampliava e hegemonizava a cultura ocidental (REZENDE,
2002:77-78
).
As pessoas negras, escravizadas ou não, participaram, também, de movimentos
sociais de caráter revolucionário como, por exemplo, da revolução pernambucana de
1817, contribuindo para a instalação de uma República independente dos vínculos
coloniais. A participação do escravizado era, de uma parte, espontânea, rebelando-se
contra a situação em que se encontrava, apoiando os insurretos que teriam como objetivo
extinguir a escravidão, e, de outra parte, uma obrigação imposta pelos seus senhores que
estavam envolvidos na luta.
No primeiro caso:
[...] não foram todos os negros, nem todos os mulatos os que tomaram o partido
dos rebeldes e se uniram a eles; porém dos homens destas cores aqueles que
abraçaram a causa dos rebeldes, a abraçaram de um modo excessivo, e insultante,
e fizeram lembrar com freqüência aos moradores as cenas de S. Domingos. Os
homens mais abjetos desta classe, os mesmos mendigos, insultaram seus antigos
benfeitores, seus senhores ou senhoras e se prometiam, como todo despojo, a posse
de uma Senhora, como acontecimento infalível: este grau de orgulho já era temível
quando o Governador Interino Rodrigo José Lobo entrou nesta Capitania, e uma
das medidas mais eficazes que ele tomou foi punir prontamente com açoites a todos
aqueles de que se sabia fato notável desta espécie, ou que tinham cometido algum
atentado a coberto da Rebelião (MOURA, 1981: 69).
Tais fatos se deram no início da revolta, frente o impulso que as forças populares
imprimiram no sentido de radicalizá-la. A participação dos escravizados, porém, deixou
de ser uma atitude política para tornar-se medida militar de emergência.
Ademais, a composição social da revolução será contraditória e antagônica:
abolicionistas e liberais senhores de escravos. Segundo Freyre (1996: 580), o choque de
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108
opinião entre o ouvidor Antônio Carlos Andrada e o Dr. Manuel de Arruda Câmara
exemplifica o antagonismo de interesses que separava, ao menos em dois grupos, o
movimento de 1817.
O ouvidor, brasileiro partidário da Independência, expressava seu horror tanto
político quanto físico a uma revolução radical que, se vitoriosa, o derrubasse “da ordem
da nobreza” e o colocasse “a par da canalha e ralé de todas as cores” e lhe frustrasse “as
mais bem fundadas esperanças de ulterior avanço e de mores dignidades” (a
pud
FREYRE, 1996:580
), palavras características do sentimento de “raça” superior que se
ligara ao de domínio de classe.
Arruda Câmara tinha outra compreensão do problema brasileiro de relações entre
as “raças” e entre as classes:
Acabem com o atrazo da gente de cor (...) isso deve cessar para que logo que seja
necessário se chamar aos logares publicos, haver homens para isto, porque jamais
pode progredir o Brasil sem elles intervirem colletivamente em seus negócios; não
se importem com essa acanalhada e absurda aristocracia ‘cabundá’ que há de
sempre apresentar futeis obstaculos. Com monarchia ou sem ella, deve a gente de
cor ter ingresso na prosperidade do Brasil (apud FREYRE, 1996:581)
.
Para Arruda Câmara, a revolução não significava apenas a separação política de
Portugal, mas a reconstrução inteira da sociedade, passando pela mudança das relações
entre senhores e oprimidos, entre pessoas brancas e homens de cor.
Outro exemplo da participação das pessoas negras em revoltas sociais foi a
Revolta dos Malês em janeiro de 1835, em Salvador. Era festa de Nossa Senhora da
Guia. Enquanto os senhores preparavam a festa, os malês, escravizados que seguiam a
religião mulçumana, escondidos, preparavam a revolta. Mas foram denunciados por
negras libertas, de outra etnia, que alertaram seus ex-patrões sobre os rumores que
ouviram. A revolta foi debelada depois de um dia de lutas entre escravizados e soldados.
O chefe de polícia contou cinqüenta mortos no dia seguinte. Os feridos, não soube dizer
quantos eram (ZALUAR, 1996:60).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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Esses “desajustes” produziram-se em cadeia, criando a necessidade de os
escravizados serem considerados indesejáveis como máquinas de trabalho e obrigando
os senhores de escravo a investirem em aparelhos repressores, instituições de combate
ao quilombola, mobilização de recursos econômicos para combater o escravo fugido. A
posição quilombola influenciou o comportamento de toda a sociedade, principalmente,
durante os séculos XVII, XVIII e XIX. Na classe senhorial e no estado monárquico que
representava, criou a necessidade de mecanismos de defesa quer psicológicos quer
institucionais. O estado escravocrata recorreu a diversos aparelhos ideológicos e
repressivos tais como: justificativas políticas e jurídicas para a escravidão, medidas de
pacificação do escravizado através do uso da religião ou do feitor, incentivo aos
conflitos interétnicos entre os escravizados; máquina que vai dos alvarás da Colônia,
mandando ferrar os fujões, até às leis da regência, contra cativos rebeldes:
Ficar muito tempo na feira ou junto às fontes, fazer ajuntamento de mais de três
escravos, possuir armas, mover ação contra seu senhor eram proibições que
constavam da lei. Essas leis apertavam ainda mais quando havia medo de rebeliões
de escravos, quando a ordem escravocrata esmorecia (ZALUAR, 1996: 56).
Correntes de ferro, gorilhas (que se prendiam ao pescoço), algemas, machos e
peias (para os pés e mãos), o tronco (um pedaço de madeira dividido em duas metades
com buracos para cabeça, pés e mãos), os anjinhos (anéis de ferro que comprimiam os
polegares), chicotes, palmatórias, ferros quentes, libambos (argola de ferro presa ao
pescoço da qual saía uma haste longa dirigida para cima da cabeça do escravizado com
chocalhos na ponta), placas de ferro com inscrições. Os escravizados levavam
“palmatória de pau pela cara e queixadas do rosto”, tinham os chumaços de cabelo
arrancados de uma só vez com torquês de sapateiro. Lara (1988: 77) cita os casos “de
uma menina que teve o rosto queimado pelas brasas de um fogareiro e noutra ocasião foi
obrigada, sob ameaça de açoite, a comer uma porção de doce fervendo que o Mestre do
Campo pusera em sua mão”; “de uma escrava que, sendo surpreendida dormindo fora de
RAÇA E JUSTIÇA
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hora, teve metida ‘uma luz acesa pelas suas partes venéreas’”; de um escravo que “foi
açoitado por três horas seguidas, estando montado em um cavalo de pau com pesos
amarrados aos pés, e, em seguida, foi pendurado pelos pulsos, com um peso preso aos
testículos e anjinhos nos dedos dos pés, por duas horas”; “outro escravo, amarrado em
cama de vento, foi açoitado por seis a sete horas seguidas; quando desmaiava, punham-
lhe sal e limão nos olhos e água nas nádegas; passou a noite preso em correntes e, no dia
seguinte, foi posto nu ao sol, com argola no pescoço, sem comida e água até nove horas
da noite”. Tecnologias políticas do corpo, micro-técnicas de poder que codificavam o
corpo negro: “[...] as marcas rituais africanas, a própria cor da pele, os diversos carimbos
do colonizador, do traficante e do senhor eram signos que traduziam o ato de poder
envolvido na escravização e diziam da qualidade e propriedade do africano tornado
mercadoria” (LARA, 1988:86). A leitura deste texto, impresso no corpo dos
escravizados, identificava não apenas a origem e lugar nas relações escravistas, mas
identificava seu grau de sujeição: a quantidade de cicatrizes provindas dos castigos ou
brigas indicava seu grau de submissão: “Conhece-se o quilombola pelo carimbo no
lombo” (Adágio popular recolhido por Nelson de Senna apud LARA, 1988: 88). O Alvará de
1741 mandava imprimir, a fogo, na espádua do escravizado fugitivo e capturado a letra
“F”, e se cortar a orelha em caso de reincidência. Ademais, defeitos físicos, marcas
deixadas por doenças ou acidentes de trabalho ajudavam a diferenciar, como que seu
“nome próprio”, e a identificar, em caso de fuga, os diversos Manoéis Angolas,
Antonios Crioulos, Domingos Benguelas, etc. Por fim, as marcas corporais, como traços
mnemônicos, funcionavam como obstáculo ao esquecimento, como memória de ser
“sujeito a...”, quer na condição de escravizado quer na de liberto. Produz, assim, toda
uma escritura não-fonética, todo um jogo de linguagem não-verbal, enfim, todo um
discurso não-lingüístico, semiótica dos afectos, enfim, estigmas:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
111
Exemplo de outras maneiras de identificar o “lugar”social ocupado pelas pessoas
pode ser encontrada na carta a Manoel de Carvalho e Melo, dirigida ao Vice-Rei.
Afirmando ser “homem pardo e filho de homem branco e senhor de engenho, que
sempre o criou com estimação, tanto nos estudos da gramática como também das
artes liberais”, e exercer a ocupação de mestre de Capela e meninas na vila de São
Salvador, Manoel pedia ao Vice-Rei que lhe concedesse a “faculdade para poder
usar (...) do ornato da espada ou espadim, quando sair composto”. Isso significa
que sendo “pardo”, Manoel podia ser identificado com categorias sociais não
condizentes com sua pessoa. Aos seus olhos e aos dos demais, entretanto, bastava-
lhe trazer uma espada ou espadim à cinta, para que qualquer dúvida se dissolvesse
e a “qualidade de [sua] pessoa e exercício fosse reconhecida. Temos aqui,
portanto, cor, símbolos da condição senhorial, relações familiares, instrução e
poderio sendo articulados, utilizados e aceitos como marcas distintivas da
condição social diferenciada de Manoel de Carvalho (LARA, 1988:350).
E Lara conclui:
Tais considerações nos levam a concluir que aqueles homens e mulheres
diferenciavam-se uns dos outros através de critérios que envolviam tanto a
dinâmica das relações específicas que mantinham entre si quanto a de suas
inserções num universo mais amplo de outras relações, bem como as diferenças
raciais e de cor. Esses critérios entrecruzavam-se ou sobredeterminavam-se em
função das diferentes situações de confronto vivenciadas por essas pessoas, de
modo a selecionar, dentre as ambigüidades
experimentadas no cotidiano, aquelas
mais importantes ou diretamente ligadas a um momento ou uma relação específica
(LARA, 1988:351. Grifo nosso).
Ou seja, decisões ético-semânticas em meio a contextos sobredeterminados e
agonísticos, buscando superar as ambigüidades vivenciadas.
Porém, em termos da dominação macro-social, a violência do senhor, também,
era regulada, não podendo ultrapassar os limites da “piedade cristã” ou inutilizar a força
de trabalho – o castigo devia ser regrado e medido com instrumentos próprios e técnicas
selecionadas para produção de justiça e de mercadorias, punindo o delito e disciplinando
o trabalho.
Em 10 de junho de 1835, o Império publicou a Lei no. 4 que tratava da aplicação
de pena de morte às pessoas negras escravizadas, em resposta à proliferação de
assassinatos de “senhores de escravos”, não prevendo a possibilidade de recurso em caso
de condenação. Em 11 de agosto de 1836, um Aviso estabelecia que os açoites não
poderiam ultrapassar o número de 50 por dia, com limite máximo de 200. O parágrafo 6
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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do artigo 14 do Código Criminal de então considerava “justificáveis” apenas os
“castigos moderados” que equilibravam exploração, manutenção da vida do escravizado
e continuidade da exploração escravista (MALHEIROS apud ZALUAR, 1996:57):
Contudo, ao fazê-lo, promovia um desequilíbrio na relação senhor-escravo:
repreender o senhor, puni-lo, significava também questionar seu poder, dar
margem à manifestação da queixa dos escravos, promover “perturbações” na
estabilidade da relação de dominação [...] (LARA, 1988:66).
Este dilema apresentado por Lara presente na ação da Coroa no período colonial,
permanece válido no período imperial, para a ação da monarquia brasileira. Não se podia
restringir o poder senhorial sem perturbar a relação senhor-escravo, abrindo-se uma
brecha legal para as reivindicações dos escravizados e para as forças emancipatórias
avançarem contra o controle e dominação senhoriais. O Estado buscava estabelecer
limites ao poder senhorial submetendo-o à dominação estatal, visando a centralizar o
poder num Estado monárquico forte e “moderno” e numa unidade nacional em oposição
a uma descentralização e fragmentação semifeudal nas mãos dos poderes locais. Vê-se,
então, a complexidade da articulação entre as forças sociais na constituição dos atores
políticos e de suas relações não bipolarizadas de poder – os antagonismos, desequilíbrios
e contradições presentes nos discursos: humanidade cristã e escravidão, poder senhorial
e poder imperial, dominação e justiça. Sem criticar a escravidão, o Estado procurava
evitar dois problemas que ela causava: o excesso nos castigos e a rebeldia dos
escravizados, o excesso de poder dos senhores e a anarquia e rebeldia dos escravizados.
Apesar dos limites ao poder privado serem mínimos, eram freqüentemente
transgredidos pelos senhores, acostumados com a impunidade, pois a justiça das
províncias não os punia sistematicamente. Por exemplo, a história de uma menina negra
de 12 anos deflorada pelo seu amo no mesmo dia em que chegou à sua fazenda. Foi feita
uma queixa e o escravo na casa de quem se deu o fato depôs a favor dela. Enquanto o
promotor achava que o senhor cometera um crime, movendo ação contra ele, já que a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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pequena escrava não podia fazê-lo, o juiz, que absolveu esse senhor, concluiu que o
defloramento havia sido incompleto, que a menina poderia ser mais velha do que
aparentava e que senhor só cometeria crime caso ferisse o direito de o escravo manter
seu próprio corpo, isto é, caso o matasse de fome ou de pancada. A menina não tinha
direito à honra. O estupro foi considerado um problema privado, no qual a Justiça não
poderia se meter. Este processo ocorreu em Olinda, Pernambuco, e durou de 1882 a
1884 (
CONRAD apud ZALUAR, 1996:58).
Na Corte de Justiça do Rio de Janeiro, segundo Zaluar, no século XIX a situação
era diferente: na corte de apelação, a maioria dos escravizados que, por meio de seus
curadores, apelavam da primeira sentença era vencedora, sendo o senhor punido, com a
libertação do escravizado, devido aos maus-tratos infringidos a este. Assim foi no caso
de Liberata, jovem escravizada estuprada pelo seu senhor. Comprada quando tinha 10
anos, logo foi feita amante do senhor e com ele teve filhos. A senhora e seus filhos por
isso passaram a persegui-la. Liberata foi testemunha dos infanticídios cometidos por
uma das filhas de seu senhor, o que aumentou a perseguição. Querendo casar-se com o
pardo José, Liberata pede ao padre para interceder junto ao senhor, que estipula um
preço impossível. Liberata recorre, então, ao juiz municipal de Desterro por intermédio
de um advogado, seu curador, pedindo a libertação em razão dos tormentos sofridos. O
senhor a troca ilegalmente com um escravo de seu enteado, tentando livrar-se do
processo. O curador de Liberata resolve contar os crimes cometidos pelo senhor e sua
filha, e ela depõe perante o juiz sobre o que viu. O senhor abre mão de Liberata,
procurando, assim, evitar um processo criminal mais grave contra ele. Os processos
ainda continuaram, pois Liberata quis libertar os filhos que teve no cativeiro. Conseguiu,
depois de mais de vinte anos (entre 1814 e 1835) e 300 páginas de procedimentos
jurídicos (ZALUAR, 1996:58-59).
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114
Por outro lado, a repressão jurídica contra os escravos continuava. Desde 10 de
junho de 1835 entrara em vigor, em resposta aos levantes de escravizados na capital
baiana e ao crescimento de assassinatos de senhores e feitores, a lei que regulamentava a
pena de morte para o escravizado que participasse de insurreições ou cometesse qualquer
ofensa física ao seu senhor. O julgamento era feito pelo júri, composto, em geral, por
proprietários, e sem direito a recurso. O grupo de parlamentares que defendia a pena
capital advogava que sem a referida pena não se manteria a ordem entre os escravizados
que, conforme criam os parlamentares, eram, por sua natureza, indiferentes a outros
castigos.
Em 6 de agosto de 1836, o naturalista Charles Darwin esteve no Recife e
expressou sua impressão, após dificuldades de relacionamento com os brasileiros:
Sinto-me feliz por ter isso acontecido na terra dos brasileiros, pois não sinto por
eles nenhuma paixão – terra de escravidão e, portanto, de aviltamento moral. No
dia 19 de agosto deixamos finalmente as costas do Brasil. Dou graças a Deus, e
espero nunca mais visitar um país de escravos (Apud REZENDE, 2002:159).
Em 14 de junho de 1851, o Decreto 796 regulava os serviços de enterro e
prescrevia a segregação das valas comuns: um tipo destinado às pessoas pobres e
indigentes e outro destinado aos homens e mulheres escravizados. O Decreto 1331-A de
17 de fevereiro de 1854 proibia a admissão de escravizados de ambos os sexos no ensino
primário e secundário no município da Corte.
O Decreto 3.609 de 17 de fevereiro de 1866 determinava a prisão dos
escravizados localizados nas ruas após as vinte e duas horas sem autorização de “seus”
senhores. Os indivíduos escravizados e livres sem propriedades, pessoas negras,
mestiças ou brancas, estavam excluídos dos direitos políticos e civis, sendo obrigados a
ter passaporte para viajar dentro do país, a assinar termos de convivência e segurança
aonde quer que chegassem e a se apresentar diante do juiz de paz em cada comarca pela
qual passassem. Eram todos considerados perigosos vadios e estavam sob permanente
RAÇA E JUSTIÇA
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115
vigilância – a vadiagem e a mendicância eram crimes, assim como a prática de confissão
religiosa diferente da Católica Apostólica Romana.
A Lei 2.040/1871 tratava da questão da alforria, cuja efetivação permanecia
condicionada a uma relação de subordinação, de servidão do ex-escravizado para com
seu “antigo” senhor, sob pena do alforriado ser reescravizado, através da cláusula da
ingratidão, por meio da qual, caso o liberto se mostrasse ingrato, indigno, revelasse
desapreço por seu senhor ou se recusasse a lhe prestar serviços, a alforria seria revogada,
além do fato de que se configurava como crime.
Por seu turno, a campanha abolicionista era conduzida através de instituições
legais. As sociedades abolicionistas, os parlamentares favoráveis à emancipação, as ligas
pela alforria do cativo eram formas legais, canais “normais” de luta. O papel que essas
instituições desempenharam estava legitimado pelos elementos institucionalizados da
época. Aquelas instituições efetivavam outros antagonismos, vivenciavam outros
dilemas, expressavam outras contradições e eram impelidas ao movimento
emancipatório por sentidos diversos daqueles dos escravizados, conforme veremos mais
adiante. Mesmo Luiz Gama, o explosivo advogado mulato de São Paulo que fora ex-
escravo
e o mais notável dos líderes abolicionistas, utilizou os recursos legais para
libertar pessoas negras escravizadas, apoiando-se em uma legislação que, em última
instância, era um dos pilares sobre os quais se sustentavam as práticas escravocratas.
Após 1869, embora não tivesse freqüentado as Academias de Direito do Império, a
advocacia tornou-se seu único ofício, estando majoritariamente relacionado às questões
relativas à liberdade de escravizados.
As relações com os amigos advogados, o conhecimento dos trâmites legais, o
contato com as histórias e esperanças dos escravizados, o apoio da Loja Maçônica
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116
América, que aderira à propaganda emancipacionista, tudo isso fazia com que Gama
visse na Justiça uma possibilidade concreta de luta pela liberdade:
Impus-me espontaneamente a tarefa sobremodo árdua de sustentar em Juízo o
direito dos desvalidos, e de, quando sejam eles prejudicados por má inteligência
das leis, ou por desassisado capricho das autoridades, recorrer à imprensa e expor,
com toda fidelidade, as questões e solicitar para elas o sisudo e desinteressado
parecer de pessoas competentes (apud AZEVEDO, 1999: 200).
Por esta citação, vê-se que Luiz Gama não se contentava em armar-se de
elementos do arcabouço jurídico para fortalecer sua argumentação, mas utilizava a
imprensa para persuadir a opinião pública. Nestes casos, adotava uma retórica irônica,
satírica ou sarcástica.
Todavia, após a morte de Luiz Gama, em 1882, a campanha abolicionista
assumiu, em São Paulo, o caráter de uma revolta geral, franca e determinada,
constituindo-se de dois pólos de ação convergentes: os abolicionistas radicais e os
escravizados fugidos. Antônio Bento, perdendo a fé nos processos legais, começou a
promover o abandono das fazendas pelos escravos, resultando na formação de núcleos
de foragidos, em tentativa de organização civil e militar para a conquista final e a defesa
da liberdade. As propriedades rurais paulistas se despovoaram quase que completamente
dos escravizados, devido às fugas sucessivas.
3.2. Literatura, Ciência, Política e Relações Raciais no século XIX.
Em contraste com os acontecimentos políticos e sociais apresentados acima, a
tradição intelectual romântica que dominou a literatura em meados do século XIX, em
sua maturidade, teve o índio como símbolo das aspirações nacionais brasileiras, tendo
pouco a ver com seu papel histórico. A pessoa negra aparecia, em geral, em papéis-
padrão como o “escravo heróico”, “o escravo sofredor”, “a bela mulata”. O homem e a
mulheres livres de cor eram ignorados pelos escritores românticos, em contraste com as
tentativas posteriores de escritores como Sílvio Romero, Euclides da Cunha ou Graça
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Aranha para confrontar a realidade étnica brasileira. Exceção notável foi o romantismo
de Castro Alves e Luiz Gama. Em sua obra poética da juventude, Luiz Gama elegia a
África como parte da nova nacionalidade que era, então, tematizada por muitos literatos:
[...] num momento em que se defendia a idéia de buscar os elementos formadores
da identidade nacional (base ideológica do Indianismo), é ele o único de nossos
intelectuais a tomar uma atitude de equilíbrio, ao afirmar a participação negra,
pelo uso de uma estratégia que privilegia o ser negro, e pela inserção de sua poesia
de um significante acervo do léxico afro-brasileiro (
MARTINS apud
AZEVEDO, 1999: 76
).
A época em que se vivia exigia uma convivência, nem sempre equilibrada, entre
o antigo e o moderno. O Brasil, no início do século XIX, fizera uma independência
política com influência dos discursos liberais, porém não dera fim à escravidão. Por
exemplo, os movimentos liberais de 1817 e 1824, em Recife, nunca foram explícitos
acerca da abolição ou mesmo da participação de pessoas negras na sua organização.
O Recife era, em meados do século XIX, a terceira cidade do Brasil, com uma
população próxima a 50.000 habitantes, em grande parte pessoas negras. Em 1868, um
grupo de estudantes tomou corpo em Recife, tendo como líder Tobias Barreto, que se
formaria pela Faculdade de Direito em 1869, e que disseminava entre os jovens
diplomados ou ainda alunos as idéias da filosofia materialista alemã. Enquanto isso,
Sílvio Romero, jovem polemista de Sergipe, foi outro enérgico e influente membro desse
grupo – “a Escola do Recife”, que tinha como outros importantes intelectuais brasileiros
Franklin Távora, Araripe Júnior e Inglês de Souza.
Positivismo, evolucionismo e materialismo orientavam os temas, os métodos e os
objetivos estabelecidos. Sílvio Romero e Tobias Barreto lançaram uma campanha feroz
contra o indianismo e o ecletismo, exercendo forte influência sobre uma segunda
geração de alunos como Arthur Orlando, Clóvis Beviláqua, Graça Aranha, Fausto
Cardoso e Sousa Bandeira. A capital de Pernambuco tornou-se um dos primeiros e dos
mais atuantes centros da nova mentalidade crítica. No restante do Brasil, o rompimento
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com as idéias tradicionais se identificava com os progressos do positivismo que adquiriu
força impositiva e se alastrou no Brasil, haja vista ter surgido no momento em que o
pensamento tradicional achava-se mais frágil em sua aceitação social.
Foi nesse contexto de transição entre o romantismo e o realismo que o
movimento abolicionista “explodiu”, após ter levado longo tempo para tornar-se, no
Brasil, uma força política decisiva, impondo-se diante da opinião pública. Tanto as
classes médias urbanas como a maioria da imprensa mantinham, ainda, compromissos
com as oligarquias rurais, não aderindo ao movimento. Propostas isoladas foram feitas
no começo do século XIX. A mais famosa foi a de José Bonifácio de Andrade e Silva, o
patriarca da independência, feita em 1825, mas com pouca repercussão. Visto que raro
era o brasileiro que desejava, ou ousava, opor-se ao tráfico de escravos, este permaneceu
intenso até sua extinção em 1850, devido à pressão britânica, após o que decresceu
constantemente a população servil. Em 04 de setembro daquele ano, a Lei Eusébio de
Queiroz estabeleceu a extinção do tráfico de africanos escravizados para o Brasil.
Contudo, a escravidão deixou de ser uma questão política por uma década e meia,
quando um grupo de abolicionistas franceses solicitou ao imperador que abolisse a
escravidão no Brasil. D. Pedro II observou que a abolição era apenas uma questão de
tempo. Todavia, a extinção do tráfico foi uma etapa na marcha da abolição. Após a
guerra do Paraguai, o governo enfrentou o problema da abolição.
Os efeitos da Guerra do Paraguai (1865-1870) levaram muitos civis a se darem
conta do atraso do país em áreas vitais como educação e transportes, e desconcertou os
militares que viriam a se tornar um poderoso grupo de pressão política. Ficou evidente,
também, a escassez de homens livres aptos ao serviço militar, tornando necessário o
recrutamento compulsivo de escravizados que provaram ser excelentes soldados. Em
retribuição, era-lhes franqueada a alforria, transformando-se muitos deles, em soldados
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119
profissionais. Quando em 1887-1888, foi pedido ao exército que recapturasse
escravizados fugidos tal fato provocou um contra-senso, haja vista os oficiais do exército
conhecerem o valor de ex-escravos quando livres. Muitos militares, inclusive, tornaram-
se receptivos às idéias abolicionistas e republicanas. Ademais, Brasil, Porto Rico e Cuba
eram os únicos territórios escravocratas das Américas depois que os EUA aboliram a
escravidão em 1865.
O Abolicionismo passou, então, para ordem do dia, ainda que, paradoxalmente,
não houvesse um movimento abolicionista organizado. Escritores liberais e manifestos
do Partido Liberal de 1868 e 1869 pediam uma abolição gradual. No entanto, até o fim
da década de 70, não haveria grupos de pressão a agitar a questão, exceto as ações
quilombolas extralegais. Nem mesmo os republicanos fizeram qualquer menção à
escravatura em seu manifesto de fundação de 1870.
Em 28 de setembro de 1871, a primeira medida legal em direção à abolição, a Lei
do Ventre Livre, anterior à formação do movimento abolicionista, foi empreendida pelo
Ministério do Visconde do Rio Branco, declarando livres todas as crianças nascidas, a
partir de então, de mães escravas. Porém, suas mães permaneciam escravas, mantendo as
crianças ligadas ao senhor de suas mães ou parentes, ou abandonadas caso não
encontrassem familiares livres com os quais pudessem crescer. Só em 1879, a questão da
abolição voltaria a ser debatida no parlamento pela iniciativa de Jerônimo Sodré. Surge,
no mesmo ano, como deputado por Pernambuco, Joaquim Nabuco, que logo se tornaria
o líder do movimento abolicionista em formação. Surgiram nesse período sociedades
emancipadoras em todas as grandes cidades. Em Recife, além da figura destacada de
Joaquim Nabuco, não se pode esquecer a presença de José Mariano que fundou o Clube
do Cupim, em outubro de 1884, conduzindo o movimento para um caráter mais popular,
saindo dos limites das disputas nas tribunas.
RAÇA E JUSTIÇA
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Como mais uma etapa de um processo gradual de concessões e de adiamento da
abolição da escravidão, em 28 de setembro de 1885, a Lei dos Sexagenários alforriava
todos os escravizados acima de 60 anos. Não eram muitos os escravizados que
chegavam aos 60 anos, muito menos em condições efetivas de trabalho. A Lei dos
Sexagenários acabou por funcionar como uma aposentadoria compulsória que livrava o
“senhor de escravos” de qualquer responsabilidade sobre os escravizados que
alcançavam tal idade.
Desde o seu início, o movimento abolicionista, de modo geral, compunha-se de
duas tendências: de um lado, a ala moderada liderada por Joaquim Nabuco; do outro
lado, os mais radicais, como Silva Jardim, Luís Gama, Antônio Bento, Raul Pompéia e
outros. A primeira tendência incorporava os elementos legalistas da campanha, aqueles
que lutavam por uma simples modificação jurídica, olvidando a vinculação social
profunda do movimento. Joaquim Nabuco afirmava: “A propaganda abolicionista, com
efeito, não se dirige aos escravos”. Esta tendência não tinha como estratégia a
organização dos escravos, que conduziria à insurreição e ao crime, mas buscava mostrar
aos grupos dominantes os prejuízos morais da escravidão. Tal moderação permitiu-lhe o
intercâmbio de idéias com setores mais conservadores da esfera pública, propiciando-lhe
grande parte de suas conquistas políticas.
Ao contrário, a outra tendência abolicionista conduzia suas ações mais para a
organização dos escravizados para luta contra o cativeiro do que para as ações jurídicas.
Luís Gama, tornando-se porta-voz de centenas de escravizados que se revoltavam contra
situação a que estavam submetidos através de fugas, da compra de alforria, do
assassinato de senhores etc. Enquanto Joaquim Nabuco condenava a “vingança bárbara e
selvagem” dos escravizados, Luís Gama dizia, em pleno tribunal que o acusava de
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121
esconder e proteger pessoas negras fugidas, que o escravizado ofendido no seu direito,
que assassinava seu senhor, praticava um ato de legítima defesa.
Com a emergência do movimento abolicionista, o “negro” forçou o ingresso na
esfera pública, tentando conquistar seu próprio espaço e manifestando-se diante da
opinião pública como sujeito de um discurso anti-escravista próprio e explícito, no
planejamento da liberdade futura. Jornais como Redenção e A Liberdade de Antônio
Bento, em São Paulo, foram núcleos de militância do abolicionismo negro. O
movimento abolicionista, ao mesmo tempo que dava voz pública às pessoas negras,
conduziu ao fortalecimento de uma esfera e opinião públicas autônomas. Foi através da
imprensa que Luís Gama, André Rebouças, Ferreira de Menezes e José do Patrocínio
projetaram-se como líderes abolicionistas negros. Estes militantes negros consolidaram a
presença de uma imprensa negra ou propagadora do abolicionismo negro durante o
século XIX, no Brasil.
Contudo, após a abolição, em 13 de maio de 1888, pela Lei Áurea, o discurso
político negro sofreu uma retração. A crescente marginalização econômica e política
barrou ao “negro” acesso à esfera política e pública, nas quais pudesse articular seu
próprio discurso: exclusão do sistema de relações de produção como trabalhador livre,
substituído pelo imigrante europeu, e a perda do respaldo do movimento abolicionista
que foi desfeito impediu a diáspora negra de assegurar substantivamente a liberdade
formal.
Influenciados pela Campanha Abolicionista, muitos intelectuais ligados a
movimentos liberais, como o republicanismo e o anticlericalismo, tornaram-se também
abolicionistas. Mesmo líderes abolicionistas que preferiram não atacar a monarquia,
como o mulato André Rebouças e José do Patrocínio, seguiam a doutrina liberal
praticamente em todos os seus aspectos, políticos e filosóficos. O primeiro lia John
RAÇA E JUSTIÇA
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122
Stuart Mill; e Joaquim Nabuco confessou inspiração política em Bagehot. Luís Gama
recomendava ao seu filho dois livros: a Bíblia e A Vida de Jesus, de Renan. Em Joaquim
Nabuco, o mais influente dos teóricos do Abolicionismo, o arrazoado liberal se destaca
como o núcleo da mensagem abolicionista.
Diferentes impasses, dilemas, ambivalências, deslocamentos, antagonismos,
resultavam das tentativas de esboço de uma nova nação que buscava romper com a
“velha ordem imperial” sem ter definido um novo projeto político, fazendo dos anos 70
um marco em diversas narrativas históricas – tudo parecia novo: os modelos políticos, o
ataque à religião, o regime de trabalho, a literatura, as teorias científicas. A escravidão
decadente, os escravos em fuga, os vergastos da imprensa, a ação parlamentar, crise
política da monarquia, crise dos militares, crise econômica do regime escravocrata. Esse
período coincide com a emergência de uma nova elite profissional que incorporara os
princípios liberais à sua retórica e passava a adotar um discurso científico evolucionista
como modelo de análise social. Os romances naturalistas da época utilizar-se-iam e
divulgariam largamente os modelos deterministas. A moda cientificista entra no país
mais diretamente através da literatura do que da ciência. A construção das personagens e
dos enredos será determinada pelas conclusões das teorias científicas raciais da época. O
romantismo começa a ser “substituído” pelo realismo. Este é um período fecundo para a
emergência de um novo Mito hegemônico.
Mas, neste contexto, o que pensavam os abolicionistas sobre a questão da “raça”
como coisa distinta da escravidão? É certo que tinham conhecimento das teorias das
“raças” que, assim como os ideais liberais, chegavam da América do Norte e da Europa,
embora, como afirma Skidmore (1975: 37), “suas implicações ainda não pudessem ser
de todo percebidas”. O que parece certo, é que, por um lado, a teoria das “raças” não
funcionou como uma tese particular de um grupo “racial” sobre o outro (Nina Rodrigues
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O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
123
e Euclides da Cunha, por exemplo, eram mestiços), mas permitia a ambos os lados
formularem suas próprias teses; por outro lado, a abordagem da questão racial variou
conforme a tendência abolicionista que a efetivava. Joaquim Nabuco, representante e
líder da tendência moderada, defendia um Brasil mais branco e revelava que se tivesse
vivido no século XVI, ter-se-ia oposto à introdução de escravizados africanos, assim
como era contrário ao plano do uso do trabalhador asiático.
Nesta corrente do movimento abolicionista, tomava-se uma posição determinada
quando a questão era definir se era possível uma sociedade liberal sendo grande parte da
população não-branca. Os abolicionistas brasileiros falaram sobre o papel da raça na
História, prevendo, em sua maioria, um processo “evolucionista” com o elemento branco
triunfando gradualmente, e promovendo a imigração européia, a que eram favoráveis por
dois motivos. Primeiro, os europeus ajudariam a compensar a escassez de mão-de-obra
resultante da eliminação do trabalho escravo, que era tanto mais necessária quanto a taxa
de reprodução da população livre de cor era tida por insuficiente para atender às
necessidades do trabalho. Em segundo lugar, a imigração ajudaria a acelerar o processo
de “branqueamento” no Brasil. Nesse ponto, Nabuco foi surpreendentemente direto. O
que os abolicionistas queriam, explicou ele em 1883, era um país “onde, atraída pela
franqueza das nossas instituições e pela liberalidade do nosso regime, a imigração
européia traga sem cessar para os trópicos uma corrente de sangue caucásico vivaz,
enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo...” (NABUCO apud SKIDMORE,
1975:40
).
Luiz Gama, ao contrário, tinha uma concepção diferente sobre as relações raciais
e a miscigenação no Brasil. Gama tinha consciência das discriminações que sofriam os
pessoas negras:
[...]
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O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
124
O que sou, e como penso
Aqui vai com todo senso,
Posto que já vejo irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mal estilo;
E que os homens poderosos
Dessa arenga receosos
Hão de chamar-me – tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com requinte impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode,
Pouco importa. O que isso pode?
[...]
(
GAMA apud AZEVEDO, 1999: 47)
Já na época de Gama, a palavra “negro” tinha valor pejorativo, estando, no texto
citado, em equivalência com palavras como “bode”, “tarelo”, “Mongibelo”. Como
veremos no capítulo 6, a “zoomorfização” do negro é um recurso comum. Na época de
Luiz Gama, parece que o recurso mais utilizado era o lexema “bode”. A esse respeito,
citaremos uma pequena anedota contada por Filipo Lopes, primeiro tabelião da cidade
de São Paulo, que mostra a consciência de Gama e seu uso satírico daquele termo, em
uso emancipatório do discurso cômico (cf. capítulo 6):
Numa audiência em que Luiz Gama, como advogado, teve a necessidade de
ouvir o Brigadeiro Carneiro Leão, homem que gostava de se referir com incrível
prazer à sua aristocrática ascendência, e que fazia, sempre que calhava, e mesmo
quando não calhava, alusões ao seu brasão, o negro interrompeu o depoente para
esclarecer um ponto, da seguinte forma:
Então, o primo afirma que viu...
Quem é o primo? – indagou o Brigadeiro, estupefato com aquela falta de
respeito.
O senhor, naturalmente, - insistiu Gama.
Mas, primo de quem?
Ora, meu, de certo.
Seu primo? – explodiu o fidalgo num assomo de cólera. Mas baseado em
que parentesco?
Homessa! – explodiu risonho o advogado. Eu sempre ouvi dizer que bode
e carneiro são parentes. E parentes chegados (
MENUCCI apud AZEVEDO,
1999:47).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
125
Quanto à exclusão das pessoas negras do espaço acadêmico e público, citemos
um outro trecho de uma obra de juventude de Gama, Trovas Burlescas de Getulino:
Não borres um livro,
Tão belo e tão fino;
Não sejas pateta
Sandeu e mofino.
Ciências e letras
Não são para ti
Pretinho da Costa
Não é gente aqui.
O negro, Gama se denomina “Pretinho da Costa”, não tem acesso ao discurso
erudito, científico ou artístico. Noutro trecho diz:
Desculpa, meu caro amigo,
Eu nada te posso dar,
Na terra que rege o branco,
Nos privam té de pensar!...
Gama, assim, expressa como o domínio branco no Brasil (“[...] terra que rege o
branco[...]”) passa por uma hegemonia do pensamento, ou seja, num domínio sobre os
aparelhos de produção do discurso e sobre seus fluxos
75
. Como diria Foucault:
O discurso é não apenas o que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é
a coisa para a qual e pela qual a luta existe, o discurso é o poder a ser tomado
(FOUCAULT, 1999a: ?).
A inscrição em itálico do lexema “branco” expressa que o que estamos
chamando de Hegemonia Branca não é exercida apenas por pessoas brancas, mas por
todos que afirmam a “branquitude” como valor e existência superiores. Gama não
apenas tinha consciência disso, como era crítico das práticas de “branqueamento”:
Mulato esfolado
Que diz-se fidalgo,
Porque tem de galgo
O longo focinho;
Não perde a catinga,
De cheiro fallace,
75
“A censura tal como a definimos é a interdição da inscrição do sujeito em formações discursivas
determinadas, isto é, proíbem-se certos sentidos porque se impede o sujeito de ocupar certos lugares”
(ORLANDI, 2002: 107). Esta censura é um dos mecanismos do desconhecimento ideológico: cf. cap. 6.
RAÇA E JUSTIÇA
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126
Ainda que passe
Por brazeo cadinho
Eu sei que pretencio
De Angola oriundo,
Alegre, jocundo,
Nos meus vou cortando;
É que não tolero
Falsários parentes,
Ferrarem-me os dentes,
Por brancos passando.
A crítica de Luiz Gama aos indivíduos que, estando distantes de sua ascendência
africana, pensam-se iguais às pessoas brancas, tem como pressupostos a consciência
com que assume a sua “africanidade” e a insistência na diferenciação de sua origem.
Estes pressupostos evidenciam-se na afirmação de que o “mulato esfolado” ou os
“falsários parentes”, ainda que tivessem pele clara e narizes alongados (“longo
focinho”), não conseguiriam se livrar de uma característica (estigma) que era atribuída
aos africanos: a “catinga”, apesar do “brazeo cadinho” da miscigenação. A origem
africana, pois, não é afirmada por si, como elemento de uma identidade africana. A
afirmação da origem africana é mediada pela discriminação desta ascendência através de
traços estigmatizados como a cor e o cheiro, ressignificando-os. A objetividade da
origem africana é afirmada, antes de tudo, pela exclusão racista. Esta pressupõe aquilo
mesmo que exclui. Racistas e anti-racistas compartilham, aqui, o mesmo pressuposto,
distinguindo-se quanto ao valor dado a este pressuposto. Luiz Gama procura
transvalorar, resignificar a “origem africana”. É aí que reside a luta por hegemonia. Ao
contrário, a fuga à discriminação de alguns afrodescendentes passa pela negação daquela
ascendência, através da negação destes traços:
Se os nobres desta terra, empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados;
E, cedendo a prosápia, ou duros vícios,
Esquecem os negrinhos seus patrícios;
Se mulatos de cor esbranquiçada,
Já se julgam de origem refinada,
E, curvos à mania que os domina,
Desprezam a vovó que é preta-mina:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
127
Não te espantes, ó leitor da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!
Contudo, para Luiz Gama o ser-negro ultrapassava os limites da cor da pele ou
do cheiro (“efeitos de superfície”). A africanidade aparece, para ele, como um vínculo de
sangue, de parentesco, na profundidade dos corpos, para além da caracterização de
tradições culturais compartilhadas. Luiz Gama via na miscigenação uma resposta para as
relações raciais no Brasil. Porém, invertendo o sinal, a miscigenação não era vista como
um processo de branqueamento, mas de africanização, a partir de um processo
simultâneo de recuperação de um passado comum. Eis o seu projeto contra-hegemônico:
construir uma identidade africana, promovendo a valorização dessa ascendência, seu
reconhecimento e aceitação, através da defesa de uma origem comum que sustentasse
seu ideal de igualdade entre pessoas negras e brancas.
Segundo Luiz Gama, não se poderia afirmar com certeza quem era branco, pois
“[...] tais afirmativas neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que
concerne à melindrosa presunção das cores humanas [...]” (apud AZEVEDO, 1999:63).
A construção de uma identidade africana, através da positivação do ser negro, e a
afirmação de que todos no Brasil de certa forma possuíam ascendência africana são dois
lados da mesma moeda. Seu diferencial em relação ao discurso racista está no primeiro
lado da moeda. O segundo lado está presente, também, nas argumentações de Gobineau,
Sílvio Romero, Nina Rodrigues. Sílvio Romero afirmava que o Brasil: “Formava um
paiz mestiço... somos mestiços se não no sangue ao menos na alma” (apud
SCHWARCZ:11). A positivação da ascendência africana é, portanto, o que distinguia o
discurso de Gama do discurso racista. Além, é claro, da diferença no acesso aos
aparelhos ideológicos. Vamos nos deter na primeira distinção:
Oh Musa de Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o leão se põe rendido,
Despido do furor de atroz braveza;
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
128
Empresta-me o cabaço d’uruncugu;
Ensina-me a brandir tua marimba,
Inspira-me a ciência da candimba,
Às vias me conduz de alta grandeza.
Nesta citação, Gama usa uma estratégia de síntese disjuntiva, integração e
diferenciação, síntese e oposição de itens léxicos referentes a tópicos que pertencem a
universos simbólicos e culturais diferentes: a “musa da Guiné” integra num tópico
“clássico”, um tópico “africano”, uma entidade da mitologia grega tem como origem
uma região geográfica do continente africano. Destaque-se, ainda, os itens léxicos:
“d’uruncugu” e “candimba”, “azeviche” e “denegrido” (itens diferenciadores).
Estes recursos muito utilizados, dentre outros movimentos artísticos, no
parnasianismo e no romantismo, como estratégia de construção de uma identidade
nacional a partir de um modelo europeu tido como universal, foram utilizados, também,
por Luiz Gama. Vejamos outro exemplo:
Quero que o mundo me encarando veja,
Um retumbante Orfeu de carapinha,
Que a lira desprezando, por mesquinha
Ao som decanta de Marimba augusta;
E qual Arion entre Delfins,
Os ávidos piratas embaiando –
As ferrenhas palhetas vai brandindo
Com estilo que presa a Líbia adusta.
Desta vez, a locução integradora (síntese disjuntiva) é “Orfeu de carapinha”.
Uma personagem da mitologia grega (Orfeu) apresenta um traço físico característico dos
pessoas negras (carapinha). Os itens léxicos diferenciadores são “Marimba” e “Líbia”,
em oposição a “lira ([...] a lira desprezando[...]”)”, “Arion” e “Delfins”. Dessa forma
Luiz Gama se utiliza, como estratégia contra-hegemônica, de uma forma literária
hegemônica, socialmente aceita pelos grupos que a ela tem acesso, os grupos letrados,
para exaltar valores externos a esses grupos sociais. Essa estratégia visa, ademais, à
superação de diferenças dentro da “raça”, da união através da constituição de uma
tradição comum, ultrapassando as fronteiras étnicas, sob uma única identidade africana.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
129
Todavia, a identificação com a África devia, segundo Gama, estar ligada à
insubordinação, à idéia de que os africanos podiam ser, e muitas vezes o foram, agentes
de sua própria história.
Apesar dos escravizados e libertos africanos não serem um todo homogêneo,
existindo diferenças étnicas históricas entre eles e uma variedade de tradições culturais
sendo recriadas, a “África” a que Luiz Gama recorre aparece em seus elementos
simbólicos (o cabaço de urucungu ou a marimba), rearticulados dos nagôs, haussás, jejes
e outras etnias, homogeneizando a multiplicidade e heterogeneidade de etnias africanas.
Como projeto de hegemonização, não buscava a oposição de uma “africanidade” a uma
“brasilidade” que representava a escravização, mas o resgate de uma origem africana
comum, que superava não só as diferenças étnicas, mas também as distinções entre
pessoas brancas e pessoas negras criadas pelo regime escravista, como meio de
integração positiva do negro à sociedade brasileira. Um outro projeto de “democracia
racial”, alternativo às relações raciais concretas que, então, existiam. A miscigenação
não era suficiente para a sua construção, mas poderia ser o seu ponto de partida, não por
uma homogeneização dos traços e cores, mas pelo reconhecimento e valorização de uma
mesma origem. Mas é preciso enfatizar que essa origem não é meramente cultural, mas é
vínculo de sangue, de parentesco, portanto origem biológica. Isso mostra que as teorias
raciais não eram exclusividade de um grupo “racial”. “Brancos que regem...”, “mulatos
esfolados da cor esbranquiçada que desprezam a vovó preta-mina” ou o “Orfeu de
carapinha oriundo de Angola que não tolera falsários parentes”, cada um deles faz usos
diferentes das teorias raciais.
A importância do pensamento e da ação de Luiz Gama para a emancipação das
pessoas negras escravizadas foi registrada por Sílvio Romero:
Eu disse que uma vez que a escravidão nacional nunca havia produzido um
Terêncio, um Epicteto, ou sequer um Espártaco. Há agora uma exceção a fazer: a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
130
escravidão entre nós produziu Luiz Gama, que teve muito de Terêncio, Epicteto e
Espártaco (apud AZEVEDO, 1999).
Luiz Gama fez Sílvio Romero rever sua crença no “mito da passividade dos
escravizados”. Personagem importante do pensamento social brasileiro anterior à
Abolição, Sílvio Romero (1851-1914) foi um dos reformadores liberais que enfrentaram
as questões de “raça” e meio ambiente. “Negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-
escravos – ‘classes perigosas’ a partir de então – nas palavras de Sílvio Romero
transformam-se em ‘objeto de sciencia’” (SCHWARCZ, 1993:28). Afirmava: “É uma
vergonha para a ciência do Brasil, que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos
aos estudos das línguas e das religiões africanas” (ROMERO apud RAMOS, 1995:169).
Entre os principais autores que o influenciaram estavam Taine, Renan, Préville, Broca e
Gobineau. Defendeu ser a miscigenação uma das causas da instabilidade moral do
brasileiro, denominou os “arianos” de a grande, bela e valorosa “raça”, adotando a
ideologia do branqueamento. Seu problema central era saber se a mistura racial fora ou
não benéfica. Sua abordagem da sociedade contemporânea e sua expectativa de futuro
variavam conforme sua avaliação da instabilidade ou antagonismos sociais, da dinâmica
dos significados e das identidades sociais, abordados por ele através da avaliação da
estabilidade ou do conflito psicológico da população brasileira e das mesclas de cores e
povos:
Os dois grandes agentes de transformação – a natureza e a mescla de povos
diversos – estão por enquanto em ação, e o resultado não pode ser determinado
com segurança. (...) Ainda entre nós as três raças não desapareceram confundidas
num tipo novo, e este trabalho será lentíssimo. Por enquanto, a mescla nas cores e
a confusão nas idéias é o nosso apanágio. (...) O povo brasileiro como hoje se nos
apresenta, se não constitui uma só raça compacta e distinta, tem elementos para
acentuar-se com força e tomar um ascendente original em tempos futuros. Talvez
tenhamos ainda de representar na América um grande destino histórico-cultural
(
ROMERO apud SKIDMORE, 1976:53).
Sílvio Romero escrevera que depois dos primeiros trinta anos do Império, durante
os quais o Brasil fora governado por uma elite de brancos – “resto de gente válida” diz
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
131
ele, identificando a superioridade moral e o senso de administração e de governo com a
raça branca – as condições se foram modificando com as “centenas de bacharéis e
doutores de raça cruzada”, atirados no país pelas academias: a do Recife, a de São
Paulo, a da Bahia, a do Rio de Janeiro. Mais tarde, pela Escola Militar, pela Politécnica
(FREYRE, 1996:586).
Outro pensador importante no período analisado foi Euclides da Cunha. Entre os
autores que o influenciaram destacam-se Gumplowics e Ratzel. Em sua principal obra,
Os Sertões, Euclides da Cunha expressa as teorias da antropologia racista, vendo a
formação da população brasileira à luz da teoria da “luta das raças” de Gumplowicz, na
qual a evolução cultural de um povo define-se, em última análise, como evolução étnica:
“A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social” (CUNHA apud
RAMOS, 1995). Para Euclides da Cunha, a mistura racial é prejudicial e o mestiço é um
degenerado, sem a energia física dos ascendentes selvagens (não-brancos), sem a atitude
intelectual dos ancestrais (brancos), é um desequilibrado ou um histérico. O mestiço
brasileiro é um retrógrado, mas não definitivamente, deixando de sê-lo através do
processo civilizatório: “Estamos condenados à civilização”; “ou progredimos ou
desaparecemos”. Este processo civilizatório tem como motor a luta das raças.
Oliveira Viana, embora adotando a teoria das seleções étnicas de Lapouge, que
afirmava que o Brasil estaria destinado a ser um imenso Estado Negro, contrapõe-lhe a
tese da “evolução arianizante” da população brasileira. Para ele, a inferioridade da
população brasileira era resultante de seu elemento negro, mas era passageira, pois as
relações raciais no Brasil eram um processo no qual o “sangue ariano” modelaria os
mestiços em direção ao tipo de homem branco, seria, portanto, uma força civilizatória,
evolução arianizante. Modernizar-se, civilizar-se é ocidentalizar-se e branquear-se. Não
basta a construção de uma identidade nacional, mas ela tem que ser branca.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
132
Nos textos do Nina Rodrigues, advogava-se o estabelecimento da diferença entre
as “raças” e a condenação da mestiçagem com sua conseqüente degeneração das “raças”.
Em seu livro “Africanos no Brasil”, Nina Rodrigues pretendia fazer um inventário das
populações negras residentes no Brasil, destacando as diferenças e estabelecendo
hierarquias entre os próprios grupos negros africanos, sendo um obstáculo ou ameaça à
civilização branca – “um dos fatores de nossa inferioridade como povo” (RODRIGUES
apud SCHWARCZ, 2001: 208). O problema central era a “inexistência de uniformidade
étnica” (Rodrigues) e a excessiva mistura da população brasileira:
[...] a associação entre doença e mestiçagem era demonstrada não só por meio de
relatos médicos e estatísticos, como também por imagens e fotos, que expunham, de
forma muitas vezes cruel, a grande incidência de moléstias contagiosas na
população mestiça brasileira (
SCHWARCZ, 2001: 209).
Outras questões abordadas, em especial pela medicina legal foram: a autonomia
da profissão; estudos sobre alcoolismo, epilepsia, embriaguez e alienação; temas
práticos de medicina legal; análise do perfil do criminoso, analisando a correlação entre
“criminalidade e degeneração”. Os estudos sobre frenologia ou craniológica cumprirão
o papel de identificar as “raças”, refletir sobre o atraso e a fragilidade dos cruzamentos:
Ademais, Nina Rodrigues e a “Escola Bahiana” afirmavam a impossibilidade de
se punir da mesma maneira “raças” com níveis de evolução diversos: “Não pode ser
admissível em absoluto a igualdade de direitos, sem que haja ao mesmo tempo, pelo menos,
igualdade na evolução...” (
Gazeta Médica da Bahia apud SCHWARCZ, 2001: 212).
Os crimes, no entendimento de Nina Rodrigues, eram quer manifestações do
comportamento anti-social próprio das “raças inferiores”, quer expressão do conflito,
“da luta pela existência entre a civilização superior da “raça” branca e os esboços de
civilização das “raças” conquistadas ou submetidas” (apud SKIDMORE, 1989:76). Por
essa afirmação, é possível constatar a preocupação com o antagonismo social, de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
133
“natureza racial”. Ademais, Rodrigues opunha-se à tese do “branqueamento" defendida
pelas elites e proposta por Sílvio Romero:
Não acredito na unidade ou quase unidade étnica, presente ou futura, da
população brasileira, admitida pelo Dr. Sílvio Romero. Não acredito na futura
extensão do mestiço luso-africano a todo o território do país; considero pouco
provável que a raça branca consiga predominar o seu tipo em toda a população
brasileira (
Idem:78).
Afirmava, inclusive, que o Brasil não poderia seguir o modelo de
industrialização dos EUA, “porque não temos as aptidões da sua raça”.
Os Médicos legistas, frenologistas e discípulos de Lombroso, como Raymundo
Nina Rodrigues, acreditavam que “as raças inferiores chegam à puberdade mais cedo do
que as superiores” (RODRIGUES apud SILVA, 2000: 364), e, por isso, defendiam a
redução da idade de responsabilidade penal para as “raças inferiores”. Além disso, a
criminalização da vadiagem foi aclamada, pois os selvagens seriam incapazes para um
trabalho físico continuado e regular, conforme comprovaria a fisiologia comparada das
“raças” humanas.
A produção rodrigueana e seus pressupostos lombrosianos influenciaram a
literatura médica nacional e, sobretudo, o discurso hegemônico nas Faculdades de
Direito de Recife e São Paulo. No entanto, não exerceu influência sobre os responsáveis
pela revisão do Código Penal Brasileiro de 1890. Adotaram-se, na condução política do
Estado e na reformulação do Código Penal, princípios mais próximos dos modelos
evolucionistas, sociais e raciais da Faculdade de Direito de São Paulo (cf. adiante).
Em 1894, afirmou que a responsabilidade penal das “raças inferiores” deveria
ser diferente das “raças brancas civilizadas”. Os mestiços eram para ele um problema
que tentou evitar dividindo-os em três subgrupos: a) o tipo superior (inteiramente
responsável); b) os degenerados (um grupo parcialmente responsável, o restante,
totalmente irresponsável); c) os tipos socialmente instáveis, como os pretos e índios
(com “responsabilidade atenuada”).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
134
O acirramento e a sistematização da discriminação racial, via um “racismo
esclarecido”, surge como resposta, de um lado, ao crescente inconformismo da diáspora
negra, expresso nas revoltas escravas e na ascensão social de algumas pessoas negras e
mulatas livres. Por outro lado, à crise do sistema escravista, que pressupunha uma
estratificação rígida de castas. Estes dois fatos, juntamente com a miscigenação,
ameaçavam a estabilidade, não apenas dos valores e das instituições, mas também da
estratificação e hierarquia sociais que lhes servem de base. A modernização do
pensamento e das instituições e a conservação da hierarquia aristocrática confluíam no
acirramento e racionalização da discriminação nas relações raciais. Dois vetores em
oposição (modernização vs conservação) que tiveram, a partir de alianças na formação
do bloco dominante, como resultante a adoção do “racismo científico”.
Era preciso conservar e racionalizar as desigualdades sociais, através de sua
naturalização:
Não pode ser admissível em absoluto a igualdade de direitos sem que haja ao
mesmo tempo, pelo menos, igualdade na evolução... No homem alguma cousa mais
existe além do indivíduo. Individualmente sob certos aspectos, dois homens
poderão ser considerados iguaes; jamais o serão, porém se se attender ás suas
funções phisiologicas. Fazer-se do indivíduo o princípio e o fim da sociedade,
conferir-lhe uma liberdade sem limitações, como sendo o verdadeiro espírito da
democracia, é um exagero da demagogia, é uma aberração do principio da
utilidade publica. A Revolução Franceza inscreveu na sua bandeira o lemma
insinuante que proclamava as ideas “liberdade, egualdade e fraternidade”, as
ideas de Voltaire, Rousseau e Diderot as quais ate hoje não se puderam concilliar
pois abherrant inter se... (
Gazeta Médica da Bahia apud SCHWARCZ,
2001:212).
O racismo científico funcionou, assim, como um movimento de contra-reforma,
que buscava articular, num discurso modernizante, positivista, uma força conservadora,
realizando aquilo que Gramsci chamou de “revolução passiva”, ou seja, um processo de
transformação que exclui a participação, no novo bloco de poder, das massas e grupos
populares, inovando o país “pelo alto”. A abolição da escravidão e a proclamação da
república significaram, para essa corrente, não a emancipação das pessoas negras, mas
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
135
sua exclusão das relações de produção, quer como mercadorias, quer como trabalhadores
livres.
Fica, ainda, por responder por que, apesar da importância do apelo ao racismo
científico na constituição do pensamento e das instituições modernas no Brasil, ele não
conduziu à adoção de políticas de Estado francamente segregacionistas.
Haja vista que a revolução passiva ocorre pela rearticulação de forças do bloco
dominante sem participação das forças e grupos populares, a hegemonia e a dominação
daquele bloco não se vêem ameaçadas pelo processo revolucionário. Ademais, no
contexto das relações raciais, a unidade desse bloco, diferente do que ocorreu nos EUA e
na África do Sul, não foi rompida por um conflito interno como a Guerra da Secessão
Americana ou as guerras entre descendentes de africânderes e ingleses pela colônia sul-
africana. A unidade dos EUA foi mantida através de concessões federalistas aos estados,
que tiveram sua autonomia política reforçada, dentre outras coisas, pela adoção de
políticas segregacionistas estaduais, fortalecendo o domínio racial ameaçado pela
abolição da escravidão. Na África do Sul, as políticas segregacionistas também teriam
funcionado como mecanismos de manutenção da unidade nacional ameaçada pelas
guerras interétnicas entre as pessoas brancas, e entre pessoas brancas e outras etnias (Cf.
MARX, A., 1996). No Brasil, as revoluções passivas nunca colocaram em risco a
unidade nacional e o domínio exercido pelo poder de Estado do bloco dominante, a não
ser, em alguns episódios separatistas como, por exemplo, a Guerra dos Farrapos,
duramente reprimida, na segunda metade do século XIX, e alguns movimentos
regionalistas a partir da década de 30 (GUIMARÃES, 2001:87). Posição semelhante foi
defendida por Florestan Fernandes:
[...] a perpetuação, em bloco, de padrões de relações raciais elaborados sob a
égide da escravidão e da dominação senhorial, tão nociva para o “homem de cor”
produziu-se independentemente de qualquer temor, por parte dos “brancos”, das
prováveis conseqüências econômicas, sociais e políticas da igualdade racial e da
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
136
livre competição com os “negros”. Por isso, na raiz desse fenômeno não se
encontra nenhuma espécie de ansiedade ou de inquietação, nem qualquer sorte de
intolerância ou ódios raciais, que essas duas condições fizessem irromper na cena
histórica (
FERNANDES, 1978: 194).
Aquele movimento de contra-reforma conduziu a uma transformação das
tecnologias de poder. Tomando emprestada uma distinção de Foucault, podemos dizer
que as tecnologias disciplinares do corpo
76
próprias da escravidão foram alteradas e
subordinadas a uma tecnologia regulamentadora da vida. As tecnologias disciplinares
deixam de atuar sobre as relações de castas próprias das relações escravocratas e
monárquicas e passam a atuar sobre e a partir das relações de classe próprias do trabalho
livre e de uma sociedade republicana. Trata-se, em ambos os casos (disciplinar e
regulamentar) de tecnologias do corpo, mas, enquanto na primeira o corpo é
individualizado, na segunda os corpos são recolocados nos processos biológicos de
conjunto: “É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não
infinito pelo menos necessariamente numerável. É a noção de ‘população’”. Os
mecanismos implantados por esta nova tecnologia de poder vão se tratar, sobretudo, de
previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais da morbidade, da natalidade,
da longevidade, da criminalidade, da normalidade, visando a deixar a vida mais sadia e
mais pura. O antagonismo social toma a forma de política de saúde:
Portanto, relação não militar, guerreira ou política, mas relação biológica. E, se
esse mecanismo pode atuar é porque os inimigos que se trata de suprimir não são
os adversários no sentido político do termo; são os perigos, externos ou internos,
em relação à população e para a população. Em outras palavras, tirar a vida, o
imperativo da morte, só é admissível, no sistema de biopoder, se tende não à vitória
sobre os adversários políticos, mas à eliminação do perigo biológico e ao
fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da
raça
(FOUCAULT, 1999:292).
76
Não queremos com o uso desta categoria tornar equivalentes o “autoritarismo” do regime escravocrata
com a “disciplina” das sociedades disciplinares européias. A disciplina em nossa sociedade servia apenas
para os escravos e demais grupos subordinados ao autoritarismo do senhor, mas não para este, disponível
aos maiores “desatinos”. As categorias são utilizadas para marcar a diferença entre as tecnologias
políticas.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
137
As “raças inferiores” (africanas, ameríndias e asiáticas, enfim, não européias) são
a personificação do perigo biológico, obstáculo ao fortalecimento biológico e cultural da
civilização brasileira.
No Direito, a relação e tensão entre as tecnologias de poder disciplinares e
regulamentares se expressou nas disputas entre as Escolas “Clássica” e “Positivista” de
Direito Penal (cf. RIBEIRO, 1995). A Escola Clássica de Direito penal surge com os
princípios da criminologia clássica formulados por Cesare Beccaria, inspirado nas
teorias políticas de Hobbes, Montesquieu e Rousseau. As suas principais características
são a defesa do livre-arbítrio absoluto do indivíduo e a tentativa de definir a moralidade
dos fatos. O indivíduo é considerado plenamente responsável por seus atos e, portanto,
iguais perante a lei. A pena tem a função de requalificar o indivíduo através do castigo e
de servir de exemplo para regular a ação de outros indivíduos. A perspectiva neoclássica
de direito penal defendia um livre-arbítrio relativo, salientando as condições mitigadoras
(fatores que influenciam no livre-arbítrio) na aplicação da pena: o ambiente físico e
social onde o crime tinha sido cometido, a ficha de antecedentes do criminoso e suas
características tais como: incompetência, patologia, insanidade e comportamento
impulsivo. Os neoclássicos estabeleceram uma gradação das responsabilidades em que
homens adultos eram totalmente responsáveis, enquanto as crianças, os velhos, menos
responsáveis, e os loucos, considerados incapazes, tentando conciliar o livre-arbítrio
com um certo tipo de determinismo social e psicológico como as principais causas do
crime. Para os clássicos e neoclássicos, o poder público é instaurado para garantir a
liberdade dos indivíduos.
Por outro lado, a recepção das teorias científicas deterministas significava a adesão
a um discurso secular e temporal que, no contexto brasileiro, transformava-se em
instrumento de combate contra-hegemônico a uma série de instituições hegemônicas, de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
138
instituição de um novo projeto hegemônico que implicava na reconfiguração das forças
sociais, mas mantendo a subordinação das classes subalternas. Foi o que chamamos mais
acima de contra-reforma de uma revolução passiva. No caso da faculdade de Direito de
Recife, a introdução simultânea dos modelos evolucionistas e social-darwinistas foi uma
tentativa de adaptar o Direito a essas teorias, aplicado-as à realidade nacional e, portanto,
ao novo projeto de hegemonia. Recife talvez tenha sido o centro que aderiu de forma
mais radical às doutrinas deterministas da época e a um cientificismo que então se
difundia. A faculdade de Direito de São Paulo, por outro lado, foi mais influenciada pelo
modelo político liberal. Ademais, enquanto Recife se caracterizava pelo caráter
doutrinador dos intelectuais da faculdade, em São Paulo se destacava o grande número
de políticos que partiam majoritariamente de São Paulo, ou seja, enquanto em Recife se
formava uma elite intelectual, em São Paulo se formava a elite política que comandava o
país:“no estudo do Direito, o mundo academico e o mundo político se penetram
mutuamente”(SCHWARCZ, 1993:174).
Ou seja, as mudanças não estavam se efetivando, apenas, no “mundo das idéias” ou
nos anseios de liberdade política. Os espaços urbanos ganhavam importância, novos
comportamentos integravam os costumes sociais, a burguesia queria fazer do mundo o
grande mundo das mercadorias e do liberalismo. Os povos da América, como o Brasil,
que conseguiram se libertar do regime colonial, passaram a conviver com uma
dominação mais sofisticada e mais complexa.
No passado colonial, as relações de dominação eram articuladas como relações
desiguais de poder e exploração entre metrópoles e as colônias. No regime pós-colonial,
imperial ou republicano, essas relações são deslocadas e reencenadas como lutas entre
forças sociais nacionais, como antagonismo internos e fontes de instabilidade no interior
da sociedade descolonizada, ou entre ela e o sistema global como um todo. Ou seja, a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
139
expulsão dos colonizadores significou sua internalização, seja como ideal de um projeto
de civilização ou desenvolvimento (p.ex. o conceito de patologia dobranco” de
Guerreiro Ramos), seja na inserção marginal ou dependente nas relações capitalistas
internacionais, econômica, política ou cultural. E isso se deu tanto na manutenção das
relações escravistas quanto após sua abolição, tanto no Império quanto na República.
Como dissera Joaquim Nabuco ainda no período escravista:
O processo natural pelo qual a Escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante
vitalidade do nosso povo durou todo período do crescimento, e enquanto a Nação
não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos
aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá
por diante, mesmo quando não haja mais escravos (apud BARROZO, 2004: 121).
Entendendo os traços da escravidão como o principal elemento da nossa
constituição, Nabuco defendera que a emancipação dos escravos deveria ser apenas o
começo de uma verdadeira reforma moral e social como únicos meios de suprimir a
escravidão da constituição social, inclusive e, em especial, das instituições do Estado,
dentre as quais as relativas ao Direito. Porém, não foi isto que foi feito. As instituições se
“modernizaram” de forma a reinserir sob outras formas as relações sociais da sociedade
escravocrata: autoritarismo, paternalismo, patrimonialismo, patriarcalismo, racismo,
concentração fundiária...
Na faculdade de Direito de Recife, as principais influências intelectuais eram
aquelas conhecidas pelos estudos na área da criminologia: Lombroso e Ferri.
Na Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife (RAFDR), é evidente a
importância da antropologia criminal, defendida como o único método científico no
combate “ao estranho fenômeno da criminalidade, quando os homens de sciencia que
conhecem a idiosyncrasia defeituosa destes individuos terriveis e ao mesmo tempo o
perigo eminente que elle é para o agrupamento humano, discuttem com a alma magoada
a necessidade de seu desapparecimento traquilisador para os que ficam...” (SCHWARCZ,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
140
1993:156). Veja-se como esta citação confirma a assustadora análise de Foucault sobre o
racismo como biopoder citada acima: tirar a vida aparece como a eliminação do perigo
biológico. Eliminação que tranqüiliza os que sobrevivem.
Os estudos de antropologia criminal e direito penal tiveram extraordinário papel,
como matéria para a qual convergiam todos os importantes debates sobre o destino do
Brasil:
[...] chama a atenção o número de artigos e resenhas na área de direito e
antropologia criminal. Perfazendo um total de 47% dos ensaios da revista
[RAFDR], esse tipo de artigo não só é bastante corriqueiro como reproduz uma
perspectiva comum de aceitação. “Seria dar provas de uma inopia mental o
desconhecer alguem o renovamento porque tem passado o direito criminal
moderno”, afirmava o prof. Tito Rosa em 1895 (RAFDR), como que supondo um
senso comum de época (
SCHWARCZ, 1993:159).
Como vimos mais acima, esta perspectiva era própria da Escola Positivista de
Direito Criminal que via o indivíduo como “‘uma soma das características phisicas de sua
raça, o resultado de sua correlação com o meio’(RAFDR, 1913:58). O fenótipo passava a
ser entendido, portanto, como ‘o espelho d´alma (RAFDR, 1921:71)’, no qual se refletiam
virtudes e vícios” (SCHWARCZ, 1993:166).
3.2 A Abolição da Escravidão... E depois?
Menos de um ano depois de assinada a Lei Áurea, em abril de 1889, uma comissão
formada por libertos no Vale do Paraíba, em São Paulo, enviou uma carta a Rui Barbosa,
então jornalista, reivindicando apoio para denunciar a pouca efetividade da legislação do
fundo de emancipação de 1871 que previa recursos do governo imperial e principalmente
responsabilidade dos ex-proprietários de escravizados em relação àqueles nascidos livres
e beneficiados pela lei. O não cumprimento da lei ocorria, especialmente, no caso da
parcela do imposto a ser destinada à “educação dos filhos dos libertos” (GOMES, 2005:
10). Vieram o regime republicano em novembro de 1889 e um ministério para Rui
Barbosa em 1891, mas permaneceu a inexistência de políticas públicas para além da
intolerância e da truculência.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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Um mês depois da carta da comissão de libertos, em maio de 1889, também no Vale
do Paraíba, uma senhora chamada Pequetita Barcelos encontrava-se bastante assustada
com o primeiro aniversário da abolição, denominando o 13 e maio de “malfadado dia”.
Em meio às disputas entre republicanos e monarquistas, temia por sua vida e de sua
família, pois os libertos, segunda missiva enviada por ela a seus parentes, estavam
“altaneiros” e já não faziam questão de outras coisas, “mas sim da raça”.
As primeiras décadas pós-emancipação foram decisivas. No mundo rural, festas e
comemorações cederam lugar à apreensão. Fazendeiros, insatisfeitos com a abolição
imediata, tentavam manter os ex-escravizados nas unidades produtivas, muitas vezes
recorrendo ao uso da violência. Migrações de famílias negras inteiras alternavam-se com
organizações coletivas, como as comunidades negras rurais. Alguns libertos negociaram
permanência e relações de trabalho com antigos proprietários. O status das pessoas
negras, então, oscilava entre o de camponeses, parceiros e vadios, abrindo fronteiras ou
fechando portas. Nas áreas urbanas, ao contrário do êxodo rural de uma massa negra
supostamente desqualificada e excluída do mercado de trabalho, assistia-se ao
ressurgimento de tradições operárias, no qual o debate sobre raça e nação chegava
muitas vezes à violência física, em confrontos sindicais entre trabalhadores nacionais e
estrangeiros, muitos dos quais confrontos direitos entre negros e imigrantes.
Para muitos libertos, apelidados de “os 13 de maio”, em cidades como Rio de
Janeiro, Salvador e Recife uma face dos debates tinha como interlocutores os
propagandistas republicanos, em embates na rua e na imprensa. Também no interior
foram vários os conflitos, até mesmo armados, entre libertos e propagandistas
republicanos. Diante da reticência que o movimento republicano tivera em relação à
escravidão e ao abolicionismo, além dos discursos republicanos, muitas vezes inspirados
no racismo e determinismo científicos, criticando os desdobramentos do pós-
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emancipação e a politização dos libertos, não é difícil entender tal posição de alguns
libertos negros. Tal confronto foi alvo de polêmicas nos jornais, sendo potencializado
pelo cenário político da época. Com a organização da Guarda Negra no Rio de Janeiro,
em fins de 1888, a mobilização negra ganhou nova visibilidade, provocando episódios e
repercussões diversos em outras partes do Império. Teria sido criada em 1888, alguns
meses após a abolição, pela Confederação Abolicionista, nas dependências do periódico
abolicionista Cidade do Rio, justamente quando da comemoração do aniversário da Lei
de 1871 e como uma homenagem à Princesa Isabel que recebera do Papa Leão XVII a
Rosa de Ouro. Ali, teriam se reunido abolicionistas como João Clapp, José do Patrocínio
e representantes da Liga dos Homens de Cor. A Guarda Negra seria uma organização de
libertos que teria como objetivo proteger a liberdade do “negros” e, em especial, a figura
da Princesa Isabel que a representava.
O aparecimento da Guarda Negra, na imprensa, em julho de 1888, coincide com
uma campanha de recrutamento militar forçado que tinha como alvos os capoeiras e os
considerados “vadios”. A guerra nas ruas estava declarada.
A notícia da criação da Guarda Negra provocou alvoroço, surgindo especulações
sobre seus objetivos, influências e lideranças. Na cidade de São Paulo, os periódicos
Província de São Paulo e a Redenção registraram polêmicas sobre a Guarda Negra. Em
Campinas, no começo de 1889 um grupo de libertos distribuíram um documento
intitulado “Protestos dos homens de cor” que, dentre outras coisas, dizia:
Os libertos, aqui reunidos em assembléia popular para tratarem do interesse da
sua classe, vêm declarar que de modo algum concordam com a organização da
Guarda Negra com o fim de defender o trono da Princesa (
Apud GOMES, 2005:
16).
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Em São Luís, um grupo de pessoas negras reagiu à proclamação da República invadindo
a redação do periódico republicano O Globo, sendo imediatamente reprimida pela força
policial local, com a morte de vários ex-escravizados.
Após um confronto em um comício republicano, em 30 de dezembro de 1888, na cidade
do Rio de Janeiro, no qual houve tiros e muitos feridos, em função da intervenção
policial, periódicos diversos revezavam-se noticiando o conflito com interpretações
variadas. As folhas republicanas consideravam a Guarda Negra uma milícia de
navalhistas e capoeiras arregimentada pelo ministério do conservador João Alfredo para
intimidar e provocar os “seguidores dos ideais republicanos”. O que mais assustava
observadores da época era a deflagração de um conflito aberto entre libertos e
republicanos, o que levou a reforçar imagens de manipulação política. Porém, algumas
vezes, o discurso da manipulação cedia lugar ao discurso do terror, como os que
impressionaram a senhora Pequetita Barcelos.
Alguns periódicos abolicionistas e políticos como José do Patrocínio saíram em
defesa da Guarda Negra, apontando outras razões para o conflito naquele comício. Os
editoriais de José do Patrocínio esforçavam-se por elaborar uma versão racional da ação
da população de cor contra os republicanos durante o comício de Silva Jardim,
afirmando que a Guarda Negra, ao invés de um grupo de desordeiros, era “um partido
político tão legítimo como outro qualquer”, sendo um grupo representativo de “negros”
livres e libertos. Tentava-se, então, articular a questão racial no discurso político
público, além da emergência da expectativa do surgimento de um possível confronto
político racial.
A questão racial, aparentemente tornada invisível na campanha abolicionista,
surgira cristalina em torno da participação da Guarda Negra. Enquanto setores
republicanos diziam que evocá-la era manipulação monarquista, políticos negros e
setores organizados como a Liga dos Homens de Cor tentavam colocá-la na pauta
dos debates (
GOMES, 2005: 20).
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Enquanto alguns libertos eram estigmatizados sendo chamados de “13 de maio”,
fazendeiros e políticos foram apelidados de “republicanos de 14 de maio”, nos meses que
sucederam à abolição. A demanda frustrada dos fazendeiros por indenização soava
muitas vezes como tentativa de reescravização. Os libertos perceberam rapidamente que
seus ex-senhores haviam trocado suas roupas de fazendeiros por fardas republicanas.
O tema racial foi usado freqüentemente como recurso político para mobilizar a
população da Corte em defesa dos interesses abolicionistas. Patrocínio acusava a
propaganda republicana de expressar um ódio aos “homens de cor”, resultante da
insatisfação dos setores agrários com a abolição:
O modo como os republicanos de 14 de maio estão dirigindo a propaganda contra
as instituições vigentes tem provocado em toda parte do país a maior indignação.
Desnaturado o sagrado ideal da República, servem-se dele como a arma de
vingança contra a Monarquia, os quais não queriam e não querem ainda agora se
conformar com a igualdade de todos os brasileiros. Contra os homens de cor são
vulcânicas as explosões de ódio (
Cidade do Rio 31/12/1888 apud GOMES,
2005:21).
Reclamando indenização, defendendo interesses privados e preocupados com o
controle do trabalho dos ex-escravizados, os “republicanos de 14 de maio” haviam,
segundo Patrocínio, “desnaturado o sagrado ideal da República”. O ardor com que
atacavam a Monarquia e os libertos soava à intolerância racial.
Em outro momento dirá, ainda, Patrocínio:
(...) explorando a má vontade dos ex- senhores contra os libertos,(...) açulavam o
ódio contra a raça negra, insinuando, para ser agradável aos fazendeiros, que a
República não tarda e que com ela virá imediatamente a indenização e a opressão
para o liberto (
Cidade do Rio 02/03/1889 apud GOMES, 2005: 22).
Patrocínio, sendo um político mulato, sofria constantes e agressivos ataques
racistas. Em 1881, a se casar com uma mulher branca, foi violentamente atacado por
parte da imprensa. Nem os abolicionistas brancos, seus correligionários, lhe pouparam
acusações de cunho racista. Por isso, assim como Luís Gama, Patrocínio tomou como
acusações quase pessoais os termos raciais encontrados nos debates sobre o fim da
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escravidão. Porém, segundo Gomes, as acusações de preconceito racial visavam, muito
mais, apontar o absurdo que seriam tais discriminações numa sociedade miscigenada e
sem ódios raciais do que de denunciar as elites que tratavam a questão da emancipação.
Isso reforça nossa afirmação anterior de que setores dos movimentos sociais negros
também articularam o discurso da miscigenação e da cordialidade racial brasileira.
Enquanto articulistas políticos se enfrentavam na imprensa, as ruas da cidade do
Rio de Janeiro eram ocupadas por libertos e militantes republicanos que defendiam
através de conflitos violentos suas opções políticas. Republicanos, precavendo-se contra a
agitação pró-monárquica da maior parte da população negra da Corte, iam armados aos
comícios e vários deles descarregavam os revólveres contra pessoas negras armadas de
paus e pedras. A imprensa reduzia os conflitos a uma ação dos “pretos monarquistas
pobres” contra os “brancos republicanos de boa família”. Os primeiros “massa ignorante”
e não “sujeito político” seriam manipulados pelas elites conservadoras.
Porém, os discursos em torno da Guarda Negra e da mobilização racial são um
emaranhado de lutas, projetos e expectativas que articulavam percepções diversas de
libertos no urbano e no rural a respeito de “raça”, “cidadania”, “liberdade” e “trabalho”,
bem como disputas simbólicas de setores abolicionistas, monarquistas e republicanos,
tendo vários sentidos e significados para diferentes agentes e personagens. Mais do que
projetos antagônicos, supostamente desvirtuados ou monopolizados, havia disputa e
articulação de símbolos, emblemas e significados diversos envolvendo aqueles conflitos,
na constituição de um projeto hegemônico pós-abolicionista.
Com o golpe militar republicano de 15 de novembro de 1889, a Guarda Negra
desaparece dos noticiários jornalísticos e das intrigas entre militantes monarquistas e
republicanos.
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O Código Penal de 11 de outubro de 1890, modernizando o sistema jurídico
brasileiro, aboliu a pena de morte e instalou um regime penitenciário correcional, fixou a
responsabilidade penal em 9 anos (segundo Nina Rodrigues, “as raças inferiores chegam
à puberdade mais cedo que as superiores”), criminalizou a capoeiragem (tão
inconveniente em tempos da campanha republicana), o curandeirismo e o espiritismo
(perseguindo as expressões religiosas e de sabedoria de matriz africana e indígena), a
mendicância e a vadiagem (como defendia Nina Rodrigues, os selvagens seriam
incapazes para um trabalho físico continuado e regular, conforme a fisiologia comparada
das raças humanas).
Entre dezembro de 1889 e o final de 1890, eclodiram greves e protestos de
carpinteiros navais, tecelões, gráficos, alfaiates e carroceiros, nem todos libertos ou
negros, mas que buscavam recuperar o processo de formação da classe operária em suas
dimensões étnicas. O aparato legal e policial da intolerância republicana invadiu ruas e
cortiços atrás de capoeiras, “desordeiros” e “vadios”.
Porém, as mobilizações não pararam de acontecer: conflitos entre fazendeiros e
seus ex-escravizados sobre a posse e o uso da terra e sobre o controle da mão-de-obra,
migrações para outras áreas rurais e urbanas, organizações camponesas e sindicais e
outros formatos de organização e ação política rearticularam os discursos do período pós-
emancipação, ainda que a partir de narrativas nas quais as questões raciais não eram
exclusivas ou explícitas. A questão racial ainda não tinha sido articulada em um discurso
racial emancipatório e próprio, politicamente independente. Isso irá mudar nas primeiras
décadas do século XX.
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CAPÍTULO 4
GENEALOGIA DAS RELAÇÕES RACIAIS: O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA RACIAL
Quase tudo que chamamos “cultura superior” é baseado na
espiritualização e no aprofundamento da crueldade.
Nietzsche. Além do Bem e do Mal § 229
4.1 Relações Raciais na República Velha: a Revolta da Chibata e a Imprensa Negra
No início do século XX, o Brasil passava por uma grande agitação social, surgindo
movimentos populares de vários matizes: o cangaço, as romarias de Padre Cícero, a
Guerra de Canudos e o Contestado. A participação das pessoas negras era expressiva
nesses movimentos, confrontando-se com a República Oligárquica. Em 19 de novembro
de 1907, Rui Barbosa publicava um despacho que ordenava a queima de livros e
documentos referentes à escravidão negra no Brasil. A capoeira foi criminalizada.
Tecnologias disciplinares como os castigos corporais na Marinha, que haviam sido
abolidos um dia após a proclamação da República, foram legalizados um ano depois,
sendo autorizadas pela lei 25 chibatadas para as penas mais graves. A Marinha de
Guerra do Brasil era uma das instituições na qual a Abolição da Escravidão e a
Proclamação da República alteraram apenas parcialmente as crenças, os valores e as
práticas dos oficiais da Marinha. O uso do açoite como tecnologia disciplinar continuou
sendo aplicado nos marinheiros, na sua esmagadora maioria pessoas negras, por
determinação da oficialidade branca. Aliados a esse castigo, os baixos salários e a
discriminação racial incentivavam um clima de bastante tensão.
Ao raiar do dia 16 de novembro de 1910, toda a tripulação do navio Minas Gerais
(887 praças e 107 oficiais) é convocada para assistir aos castigos corporais a que seria
submetido o marinheiro negro Marcelino Rodrigues Menezes, também conhecido como
“Baiano”: 250 chibatadas. A tripulação do Minas Gerais também contava com oito
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carrascos que utilizaram uma corda de linho com pequenas agulhas de aço amarradas
nas pontas.
Durante o castigo, Marcelino Menezes desmaia de dor, mas a surra continua. Ao
fim das 250 chibatadas, suas costas estão banhadas em sangue, lanhadas de cima a
baixo. Desacordado, ele é desamarrado, embrulhado num lençol e levado aos
porões. Lá, jogam iodo em suas costas e o deixam estrebuchando no chão
(
GRANATO, 2000:39).
Naquela mesma noite, os marinheiros do Minas Gerais, liderados por João
Cândido, então com 30 anos de idade, decidem sublevarem-se dias depois.
João Cândido Felisberto, que em 1890, dois anos após a abolição, tinha dez anos
de idade, foi mandado para se tornar aprendiz de marinheiro como castigo por
insubordinação, ao atirar uma vara no neto do patrão de seu pai, seu ex-senhor.
A Marinha, nessa época, com dificuldade de preencher seus quadros, é o destino
da escória da sociedade e serve de castigo aos jovens indisciplinados, que podem
ingressar muito cedo na vida militar. Na maioria dos casos, esse jovens chegam à
Marinha indicados pela polícia. Ao mesmo tempo, seus quadros superiores são
ocupados pela elite [...] (
GRANATO, 2000:8).
Vinte anos depois, na noite de 22 de novembro de 1910, os marujos tomaram os
navios fundiados na Guanabara, prendendo e expulsando oficiais e matando aqueles que
resistissem através das armas. Às dez para as onze da noite, terminada a luta no convés,
João Cândido manda disparar um tiro de canhão, sinal combinado para dar alerta aos
outros navios envolvidos. O São Paulo, o Bahia e o Deodoro respondem. Assim João
Cândido passou a ser comandante-chefe do Minas Gerais, Gregório Nascimento do São
Paulo, André Avelino do Deodoro e Ricardo Dias Martins, o “Mão Negra”, do Bahia.
Os marujos revoltados expedem um rádio para o Catete, com mensagem ao
presidente da República Hermes da Fonseca e ao ministro da Marinha, informando que a
Esquadra está levantada, reivindicando o fim dos castigos corporais, melhoria na
alimentação e anistia aos rebeldes, ameaçando bombardear a cidade se não fossem
atendidos. Veja-se como as reivindicações feitas não apresentam qualquer formulação
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acerca da realidade da população negra na Marinha ou na sociedade brasileira, mas
apenas reivindicações pontuais e setorizadas dos marujos.
O estrondo do primeiro tiro de canhão, vindo da direção do mar, fez tremer a
cidade do Rio de Janeiro. Menos de cinco minutos depois, novo tiro. Dessa vez, janelas
e vidraças são quebradas em casas do Centro da cidade. Os líderes da revolta
determinam que as fortalezas de Santa Cruz, Laje e São João não atirem nos navios, pois
senão seriam arrasadas pelos canhões.
O governo ficou estarrecido, supondo tratar-se de um golpe político das forças
inimigas do governo do Marechal Hermes da Fonseca, recém-eleito. O desespero tomou
conta da população do Rio de Janeiro, a, então, capital do Brasil. Muitas pessoas
fugiram.
Diante da impossibilidade de combate e com perigo iminente de um bombardeio, o
governo cedeu. Depois de muitas reuniões políticas, das quais participou, entre outros, o
então senador Rui Barbosa (que embora derrotado nas eleições presidenciais, ainda
trazia a popularidade da campanha civilista (pela eleição de um presidente civil)), o
governo aboliu os castigos físicos e concedeu anistia aos revoltados. Foi Rui Barbosa
quem condenou os “abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo,
levantamos a indignação dos nossos compatriotas” (apud MOURA,1992: 68) e quem
apresentou no Senado o projeto de anistia aos marujos, de autoria do senador Severino
Vieira.
No dia 26 de novembro de 1910, após cinco dias de revolta, os rebeldes
entregaram as armas e devolveram os navios para o comando de oficiais.
As forças militares não se conformaram com a solução política encontrada para a
crise, apertaram o cerco contra os marinheiros. O Almirante Negro (como a imprensa
apelidou João Cândido), sentindo o perigo, procura Rui Barbosa e Severino Vieira, mas
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não é recebido. No dia 28 de novembro, dois dias depois da anistia, os marinheiros
foram surpreendidos pela publicação do Decreto no. 8.400 baixado pelo Marechal
Hermes da Fonseca, que expulsava da Marinha por atos de indisciplina os participantes
da Revolta da Chibata, provocando novo clima de tensão nas Forças Armadas. Na
madrugada de 4 de dezembro, 22 marinheiros foram presos acusados de conspiração e
seriam encaminhados para Ilha das Cobras. No dia 9, ocorre uma sublevação na
guarnição da Ilha das Cobras, dando o pretexto para que o presidente Hermes da
Fonseca decretasse o estado de sítio.
Os poucos sublevados daquela ilha propõem rendição incondicional que não é
aceita. A ilha é bombardeada até ser arrasada. Com o estado de sítio decretado e a
rebelião da Ilha das Cobras controlada, o governo determina o desembarque dos
marinheiros dos navios Minas Gerais e São Paulo. Ao desembarcar, João Cândido é
preso e levado ao 1º. Regimento da Infantaria junto com seus companheiros,
permanecendo incomunicáveis. Na manhã de 24 de dezembro de 1910, João Cândido e
mais 17 companheiros são transferidos do Regimento de Infantaria para a Ilha das
Cobras, onde são trancafiados numa prisão solitária, subterrânea, encravada numa rocha,
em forma de cúpula. No dia 25 de dezembro, 16 marinheiros morrem por asfixia.
Em 18 de abril de 1911, João Cândido, foi, então, internado num Hospital de
Alienados. Na ficha de João Cândido é feita a seguinte descrição física do paciente: “o
indivíduo tem estigmas físicos de degeneração, mais próprias da raça” (apud
GRANATO, 2000:90). Imperava nos hospitais o racismo científico com suas tecnologias
regulatórias da vida (cf. FOUCAULT, 1999b). Os estigmas físicos são sintomas
corporais da degeneração da “raça”, são marcas individuais, indicadores aparentes de
processos coletivos, populacionais. Os estigmas sobre os corpos dos indivíduos negros
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são os rastros de um processo populacional de degeneração racial. Neste caso, João
Cândido é apenas um caso individual em uma amostra populacional.
Após 18 meses da prisão de João Cândido, a irmandade da Igreja Nossa Senhora
do Rosário, protetora dos pretos, que lutara pela abolição da escravatura, contratou três
dos mais ilustres advogados da época para defender os marujos presos na Revolta da
Chibata. O julgamento iniciou ao meio-dia de 29 de novembro de 1912 e terminou perto
das quatro horas da madrugada, quando o presidente da Corte do Conselho de Guerra
iniciou a leitura da sentença que absolveu os réus. Em sua conclusão está escrito:
Considerando, finalmente, que não existe nos autos nenhuma prova de que os réus
tenham praticado qualquer ato que, autorizando a suspeita de participação na
referida revolta, revista a figura jurídica do artigo 93 do Código Militar, e que as
faltas que lhe são imputadas constituem simples infrações disciplinares
[...] (apud
GRANATO, 2000:94, grifo nosso).
Livre, o Almirante Negro consegue colocação como timoneiro na tripulação do
veleiro Antonico, de propriedade de um angolano naturalizado brasileiro, que
transportava açúcar para o sul do país. Porém, pouco mais de um ano depois, o
comandante dos Portos de Santa Catarina, Ascânio Montes, que servira em 1910 no
Minas Gerais, como oficial de maquinista, reconheceu o Almirante Negro como o
homem que o aprisionou no Minas Gerais, e usou de seu cargo para pedir a demissão de
João Cândido do Antonico. Algum tempo depois, João Cândido é contratado como
timoneiro do navio Ana, embarcação de luxo, que fazia o transporte mensal de
passageiros entre Florianópolis e o Rio de Janeiro. Dois meses depois, é novamente
demitido a pedido do mesmo comandante dos Portos de Santa Catarina.
Nessa época, em São Paulo, tem início uma relevante manifestação de identidade
étnico-racial na luta pela cidadania da diáspora negra brasileira. Em 1915, começa a
circular o jornal O Menelick, o primeiro da chamada imprensa negra paulista, que
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expressava a ideologia de um segmento negro urbano, cujos jornais sucedem-se até
1963, quando é fechado o Correio d´Ébano.
São Paulo passava, no início do século, por um processo de urbanização e
industrialização intensas, mudanças profundas nas relações sociais e na mentalidade das
pessoas, convertendo-se no principal centro de modernização tecnológica e institucional.
O conflito passa a ser usado regularmente, pelos grupos destituídos de qualquer
expressão na antiga estrutura de poder, como forma de pressão e transformação da
realidade social.
É nesse contexto, em meados da primeira década, que surge a imprensa negra,
ligando-se ao clima geral de fermentação de idéias, de ebulição social e de renovação
política. A imprensa negra, apesar das limitações decorrentes da desorganização social,
da incapacidade de cooperação em fins coletivos próprios, da inexperiência política e
dos elevados índices de analfabetismo da diáspora negra, suscitou uma nova atitude
política que reunia aspirações integracionistas e assimilacionistas em reivindicações
igualitárias, e mobilizou um segmento da diáspora negra para o debate e a busca de
soluções para os “problemas raciais brasileiros”.
Diante de tais problemas, os paulistas negros recorreram à fundação de uma
imprensa alternativa, na qual fossem expressos seus desejos, as denúncias contra o
racismo, bem como as suas vidas associativa, cultural e social, concentrando-se nos
acontecimentos da comunidade, divulgando a produção dos seus intelectuais,
aconselhando, orientando e criando um código de moral puritana a ser obedecido pelos
pessoas negras. Buscava, assim, superar a desorganização social da diáspora negra,
produzindo mobilização e cooperação coletivas necessárias ao enfrentamento das
insatisfações e das tensões resultantes das relações raciais. Produzindo uma “vontade
coletiva” contra-hegemônica. Os jornais feitos “por pessoas negras para pessoas negras
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eram aparelhos ideológicos que produziam discursos (de “desmascaramento racial”)
próprios para constituição dos movimentos sociais e políticos negros:
Esses jornais, mantidos pelos próprios grupos que os editavam e alguns membros
da comunidade que se cotizavam para ajudá-los, constituíram um fato único no
Brasil. A obstinação desses grupos negros em manterem um espaço ideológico e
informativo independente, bem como a sua consciência étnica, determinou a sua
continuidade, embora intermitente. Por outro lado, esses jornais também serviram
de veículo organizacional dos negros. As discussões que se travam nas suas
páginas, a colocação permanente de problemas específicos da comunidade, as
denúncias contra o racismo e a violência através de fatos concretos, tudo isso levou
a que os negros de São Paulo fundassem o maior movimento político negro no
Brasil: a Frente Negra Brasileira (
MOURA, 1989:71).
As categorias “classe” e “classe de cor” eram as mais recorrentes, usadas pelos
redatores nas matérias ou notas com as quais leitores e editores se identificavam como
faces inseparáveis de um mesmo recurso descritivo. A “classe dos homens de cor” era a
protagonista das cenas escolhidas para descrever o cotidiano e as experiências de
organização em grupos associativos, com um domínio mais amplo em seu registro
narrado, descrito ou impresso do que nas relações cotidianas. As identidades
reconfiguradas, articulando raça, cor e classe, ganharam laços territoriais e cotidianos
nos ambientes exclusivos, no lazer e na vida dos salões, intermediando os espaços
individual/doméstico e coletivo/público.
Contudo, pouco se sabe sobre suas lógicas nas fábricas e nos debates da classe
operária. A imprensa negra era altamente setorizada nas suas informações e dirigida a
um público específico: em seus jornais não se encontravam notícias ou comentários
sobre a Coluna Prestes, a revolução de 1930, o movimento de 1932 em São Paulo, a
revolta comunista de 1935, o movimento sindical, as lutas operárias, greves e a
participação das pessoas negras nesses eventos que colaboraram para minar o domínio
das oligarquias da República Velha que sustentavam o racismo científico no Brasil.
Cautela tática ou inexperiência política, estes silêncios, além de isolarem os movimentos
sociais negros de outros movimentos políticos, dão-lhes um caráter meramente
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integracionista ou assimilacionista em que não contestavam a ordem social estabelecida,
mas buscavam participar dela. O discurso racial negro dos movimentos sociais negros
não apresentava um projeto alternativo para o Brasil:
Pela própria natureza das coisas, essa “revolução dentro da ordem” e para a
“pureza e a normalidade da ordem” estava destinada ao malogro. Mesmo
contentando-se em ficar dentro dos limites da ordem social estabelecida,
pretendendo apenas expurgá-la de elementos ou de influências condenáveis à luz
dos mores em vigor, o “negro” jamais poderia ter êxito sem a compreensão,
cooperação e a solidariedade do “branco”. Por isso, os movimentos vão eclodir e
desaparecer ou diluir-se em certas instituições antes de alcançarem seus fins
últimos e de preencherem as funções histórico-sociais revolucionárias, a que se
consagravam (
FERNANDES, 1978:9).
As reivindicações do “negro” aparecem como questão de justiça mínima,
utilizando-se de argumentos puramente morais, vendo-se reduzidas à crítica dos
costumes, ao moralismo e ao legalismo. Avançava na constatação das causas sociais
das dificuldades de ascensão social do negro, mas ainda não havia consolidado a
percepção de como a relações raciais eram constitutivas das grandes questões
nacionais, demais desigualdades sociais e modernização do país; muito menos, advertia
que os problemas enfrentados pela diáspora negra brasileira não eram meramente
raciais, mas decorriam de sua vulnerabilidade, devida às relações raciais, a problemas
sociais outros como a questão agrária, as relações trabalhistas, os modelos de
desenvolvimento, os processos de industrialização e urbanização etc. Só mais tarde, tal
consciência vai se formando.
A imprensa negra via-se, pois, limitada tanto quantitativa quanto qualitativamente.
Por um lado, apenas os segmentos letrados da diáspora negra eram diretamente
mobilizados (na década de 40, por exemplo, as taxas de alfabetização para homens e
mulheres pretas eram, respectivamente, 21,05% e 14,51%; enquanto, para os pardos,
28,29% e 21,04% (cf. BELTRÃO, 2003)); por outro lado, um discurso proselitista e
integracionista não propunha um projeto político ampliado, nem se articulava a outros
movimentos e projetos alternativos à ordem social, política e econômica vigente.
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Os movimentos de inspiração marxista tentavam a adesão das pessoas negras,
argumentando que a culpada pela situação social do negro era a exploração capitalista.
Esses movimentos lograram a participação das pessoas negras num movimento de massa
juntamente com outros grupos étnicos e nacionais, imigrantes que vieram a formar a
classe operária em São Paulo.
Porém as discriminações raciais internas aos movimentos de classe e no mercado de
trabalho, resultando em diferenças de mobilidade social ascendente entre pessoas negras
e os grupos brancos nacionais e imigrantes europeus, consolidavam uma especificidade
não-subordinável ao discurso marxista ou irredutível à “luta de classes”.
Ademais, a ascensão social do negro, quando ocorria, conduzia à redefinição de
interesses e de lealdades: a formação de uma “elite” de pessoas negras dava-se sob a
condição de isolar-se das massas negras, rompendo com pessoas ou estilos de vida
considerados degradantes.
Ora, a imprensa negra, além de enfatizar a especificidade das relações raciais e da
situação do negro, buscava reaproximar aquelas “elites” da “massa” da diáspora negra,
formando uma “elite intelectual negra”, uma “elite negra”, mais do que uma “elite de
pessoas negras”.
Em 1923, o Clarim da Alvorada, um dos jornais mais importantes da imprensa
negra, tentou realizar o Primeiro Congresso da Mocidade Negra, enviando convites aos
intelectuais negros:
A formação de uma elite atuante e respeitada era essencial. O que estava em jogo
era o padrão de reação do negro à ordem racial vigente. Seria impossível ter êxito
sem integrar as “classes médias de cor” no seio dos movimentos e compeli-las a
sair de seu esplêndido isolamento egoísta (
FERNANDES, 1978:24).
Porém, o Congresso da Mocidade Brasileira foi considerado uma manifestação
politicamente alarmante e perigosa, acentuando-se seu suposto caráter desagregador,
pois expressaria, por parte dos pessoas negras, tendências de segregação racial. A
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
156
mobilização e organização da pessoa negra e suas reivindicações contundentes
expunham, segundo a ideologia hegemônica e vigente até hoje, a sociedade brasileira ao
“perigo dos ódios e das lutas raciais”, provocados pelo “preconceito do preto” e não do
“branco” (cf. FERNANDES, 1978:65).
Esses movimentos serviram para reforçar entre “brancos” e “negros” sentimentos
de lealdade com a ordem social vigente e fazê-los tomarem consciência da conveniência
de regular formalmente as garantias de igualdade jurídica e política perante a lei,
conduzindo à inclusão de um dispositivo de combate ao preconceito de cor na
Constituição de 1934.
Porém, os temores das pessoas brancas da quebra da paz civil e da ordem legal por
um conflito racial eram infundados, pois os movimentos sociais negros partilhavam uma
aversão ao conflito racial que resultasse em desordem e desintegração sociais,
“confinando a esfera de antagonismo às restrições impostas pelas gradações da cor da
pele”, restrições à plena integração social. No Manifesto do Congresso da Mocidade
Negra afirmava-se:
O problema do negro brasileiro é da integração absoluta, completa, do negro, em
“toda” a vida brasileira (política, social, religiosa, econômica, operária, militar
etc.), deve ter toda formação e toda aceitação em tudo e em toda parte, dadas as
condições competentes, físicas, técnicas, intelectuais e morais, exigidas para a
“igualdade perante a lei” (
FERNANDES & BASTIDE, 1971:232).
A Revolução de 30 foi outro caso de revolução passiva. O racismo assimilacionista
no Brasil, após a década de 30, aparecia como uma resposta à questão: como manter as
desigualdades sem a segregação ou a dominação racial explícita que as oligarquias
tradicionais e as teorias raciais propunham? E sem o risco de um conflito racial.
Segundo o entendimento de Guimarães, a democracia racial deve ser vista como:
[...] um compromisso político e social do moderno Estado republicano brasileiro,
que vigeu, alternando força e convencimento, do Estado Novo de Vargas até a
ditadura militar. Tal compromisso consistiu na incorporação da população negra
brasileira ao mercado de trabalho, na ampliação da educação formal, enfim na
criação das condições infra-estruturais de uma sociedade de classes que desfizesse
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
157
os estigmas criados pela escravidão. A imagem do negro enquanto povo e o
banimento, no pensamento social brasileiro, do conceito de “raça”, substituído
pelos de “cultura” e “classe social”, são suas expressões (
GUIMARÃES, 2002:
110).
Ou seja, a instituição de uma nova ordem hegemônica. Tal tendência de integração
do “negro” entra em ressonância com o movimento modernista que, em 1922 a 1927,
contribui para a criação de uma percepção da cultura e identidade nacionais que será
apropriada pelos movimentos sociais negros em seus discursos de integração nacional
das pessoas negras. A heterogeneidade e a mistura são características da cultura
brasileira, sendo o negro elemento desta mistura. O importante no movimento
modernista não está na constatação daquela mistura (que já tinha sido feita pelo
romantismo, pelo realismo e pelas teorias raciológicas), mas, na sua valorização. De
posse dessa valorização, os movimentos sociais negros desferem uma ofensiva contra as
teorias racistas da inferioridade do negro, da degeneração do mulato ou do
braqueamento da população. Um dos principais alvos neste período foi Oliveira Viana,
que era chamado, nos círculos dos militantes negros, de “mulato safado”
(FERNANDES, 1978).
Esses movimentos sociais e culturais, além de políticos e econômicos, vão integrar
uma conjuntura de crise a sociedade oligárquica da República Velha, conduzindo a
fortes pressões de transformação das estruturas e instituições sociais. Tais pressões vão
repercutir nos processos eleitorais, rompendo com a, então, vigente política do “café
com leite”.
4.2 Revolução de 30 e Estado Novo: identidade nacional e “democracia racial”
Em fins de 1929, inicia-se a disputa para as eleições presidenciais entre a chapa
governista, formada por Júlio Prestes para presidente e Vital Soares para vice-presidente,
e a chapa oposicionista, com os nomes de Getúlio Vargas, então, governador do Rio
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O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
158
Grande do Sul, e João Pessoa, da Paraíba. Num processo supostamente marcado por
fraudes eleitorais, a chapa governista vence a eleição presidencial em 1º. de março de
1930. Em 1º. de maio, Getúlio Vargas lança um manifesto contra as fraudes eleitorais,
apelando para a reação popular. As fraudes eleitorais eram comuns na República Velha,
e ajudavam a manter a política do “café com leite”, na qual se revezavam as oligarquias
rurais de São Paulo e Minas Gerais.
Em 26 de julho, João Pessoa, que fora candidato pela chapa de oposição, é
assassinado em Recife, agravando o quadro político e propiciando o avanço do
movimento militar oposicionista, que dá início à “revolução” em 3 de outubro de 1930.
No dia 24, Washington Luís é deposto por uma junta de generais. No dia 3 de novembro,
as forças civis que comandaram a “revolução” após um acordo com os militares da junta
governista, passam ao comando desta para Getúlio Vargas. Aos militares foram
entregues três ministérios: os da Guerra e da Marinha, e o das Relações Exteriores. Aos
“tenentes”, são concedidas interventorias nos estados, visando quebrar o poder das
oligarquias regionais que ainda se opunham ao novo governo.
Para Guimarães, a “democracia racial brasileira” foi resultante de um “pacto
econômico e político que uniu a massa negra urbana (formada principalmente por
trabalhadores) e os intelectuais negros ao establishment (elites políticas, intelectuais e
econômicas) do Estado desenvolvimentista” (2002: 11). A revolução de 30 e o Estado
Novo se caracterizaram pela incorporação tutelada das massas urbanas à sociedade
oligárquica e pela construção de uma ordem institucional que permitisse a incorporação
dos novos atores à arena política. A inclusão do “negro” se dá através de políticas
nacional-populistas de integração subordinada das classes e grupos populares, e através
da redução dos poderes das oligarquias tradicionais com suas ideologias racistas. As
políticas sociais neste período, não se definem como intervenção compensatória ou
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
159
redistributiva, mas se inscrevem num movimento de construção nacional (nation
building) e de integração social. Dentre essas políticas, podemos citar a criação da
legislação trabalhista e do Ministério do Trabalho que provocou uma revolução nas
relações trabalhistas no Brasil, mas que além de deixar os movimentos e sindicatos dos
trabalhadores de fora da direção dessa revolução, subordinou-os através dos chamados
sindicatos “pelegos”; outra política de Estado foi a criação da “Lei dos 2/3” que
estabelecia que as empresas instaladas em território nacional deveriam cumprir a cota
mínima de 2/3 de trabalhadores brasileiros em seus quadros, atacando, assim, a exclusão
da população brasileira, em grande parte negra, do mercado de trabalho, devida a intensa
imigração de trabalhadores europeus que eram preferidos para ocupar os postos de
trabalhos das empresas. Contudo, ao contrário do que aconteceu em outras experiências
de cunho nacionalista e populista no mundo, o Estado Novo não desenvolveu ações
abertamente racistas contra a diáspora negra, mas, ao contrário, propagou a ideologia da
“nacionalidade morena” do “povo mestiço”, que sustentava o populismo nacionalista de
Vargas, o “pai dos pobres”, quebrando parte do poder das oligarquias regionais que se
sustentava, também, sobre o domínio racial.
Acreditamos que a instauração de uma “revolução-passiva” se dá pelo
estabelecimento de formas de integração subordinada dos grupos e classes subalternos.
Essa relação entre revolução-passiva e integração subordinada deverá ser aprofundada
em outro trabalho que não aqui. A integração subordinada do negro foi resultante da:
[...] pressão exercida pelos ideais de integração nacional acima das diferenças
raciais muito importantes em um país de formação tão heterogênea, como o Brasil,
e de igualdade fundamental entre todos os brasileiros, [que] está na base mesma
do estado de opinião, que prevalece entre brancos, contrários às medidas
ostensivas de discriminação econômica ou social com base na cor e à
exteriorização do preconceito de cor (
FERNANDES & BASTIDE, 1971:230).
É nesse contexto de profundas transformações políticas nos meios de dominação
macrossocial que é fundada, em 16 de setembro de 1931, a Frente Negra Brasileira
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O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
160
(FNB), que chegou a reunir seis mil filiados e criou uma milícia frente-negrina,
organização para-militar.
Em 1932, as pessoas negras relutam em apoiar a revolução constitucionalista
paulista de cunho regionalista e separatista que clamava pelo cumprimento da
Constituição republicana de 1891 e se insurgia contra os novos arranjos das elites
oposicionistas no pós-revolução de 30. Todavia, em meio à mobilização de diversos
setores da sociedade paulistana, surgiu a Legião Negra, instalada na Barra Funda. Em
virtude do trabalho, por ela realizado, de “arregimentação dos homens de cor”, centenas
alistaram-se no Exército Constitucionalista, sendo, imediatamente, instruídos
militarmente, equipados e uniformizados. Em 20 de julho de 1932, em apenas quatro
dias, o alistamento alcançara 500 pessoas negras. Seu principal idealizador e
comandante civil era o dr. Joaquim Guaraná de Sant’Ana, integrante da FNB. O cargo
foi ocupado mais tarde pelo dr. José Bento de Assis, considerado, então, “um dos mais
ilustres representantes da raça negra”, professor do Ginásio Estadual de Campinas e
renomado latinista.
Embora a FNB não tenha formalmente, como instituição, aderido aos
revolucionários paulistas de 1932, muitos frentenegrinos como Vicente Ferreira e
Joaquim Valentim alistaram-se na Legião Negra, que contou, também, com o apoio da
Associação Beneficente São Benedito, de Campinas, que colocou à disposição o
Hospital da Raça Negra, por ela mantido.
Em 21 de julho de 1932, o Correio de São Paulo publicou um manifesto lançado
por Guaraná Sant’Ana:
Descendentes da Raça Negra do Brasil
Estamos vivendo a hora mais decisiva da nossa História. Nós, os construtores da
grandeza econômica da nossa pátria, que, com nosso sangue, a temos redimido de
todas as opressões e com o leite da Mãe Negra, que a todos nós embalou e ensinou
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O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
161
com suas lendas e canções, o grande amor ao Brasil, somos neste momento um dos
maiores soldados desta cruzada pelo dever que temos de defender o imenso
patrimônio que durante três séculos e meio acumulamos.
A dedicação e espontaneidade com que viemos cerrar fileiras pela defesa da
Constituição é prova indiscutível de que os descendentes da Raça Negra, bravos
como Henrique Dias, intemeratos como Patrocínio e sábios como os Rebouças,
saberão, coerentes com o passado, não desmentir os seus feitos na conquista da
vitória pela qual nos batemos: o Regime da Lei – a Constituição.
Vinde, sem demora, onde já se acham acantonados centenas dos nossos irmãos
negros, formar com eles batalhões – a Legião Negra (GOMES, 2005: 71-72).
O manifesto indica, dentre outras coisas, os significados da relação entre setores e
intelectuais negros e o momento político da época, mencionado “união” e “pátria”, mas
evocando, também, idéias e percepções sobre nacionalismo, integração e diferenças
raciais. A afirmação de pertencimento e de integração evoca simultaneamente o desejo
de reconhecimento e a explicitação da desigualdade histórica. As referências históricas –
Henrique Dias, militar; Patrocínio, político; Rebouças, engenheiro – reafirmam a
participação da população negra na construção (com suor, sangue e leite) do país, não
apenas como escravos ou trabalhadores. E esse patrimônio, igualmente e, sobretudo,
negro, que é preciso defender. Cumprir a Lei, a Constituição, era o primeiro passo para
garantir aquilo que ela deveria permitir: a desigualdade entre pessoas brancas e negras.
Temas fundamentais na construção do imaginário da nação dos anos 30 surgem com
força no processo de mobilização de setores negros. Em 1932, as “classes de cor”
precisavam se tornar “soldados”, estabelecendo, nos discursos, possíveis condensações:
classes de cor/soldado/povo. Por outro lado, muitos temiam conflitos de natureza racial:
o periódico A Noite, do Rio de Janeiro, apresentou uma matéria no início da campanha
militar reafirmando a idéia de “brasilidade”. As tropas deveriam ter “unidade cívica” e
não divisões raciais.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
162
Ao contrário da FNB que se manteve neutra e sob desconfiança antes de apoiar
Getúlio Vargas em 1933, a Legião Negra tentou articular ao discurso do civismo e do
patriotismo o tema da “raça negra”.
Em 1933, é constituído, como instrumento de comunicação da Frente Negra, o
jornal A Voz da Raça.
Uma visão direitista levou muitos adeptos da Frente Negra a posições simpáticas
acerca do integralismo e do nazismo. A Ação Integralista Brasileira, que surgira por
volta de 1932, tinha “como características o anticomunismo, a simpatia pelo fascismo
europeu, o nacionalismo, a oposição ao sistema político liberal e o respeito aos valores
autoritários como a disciplina e a ordem” (GRANATO, 2000:113). Dentre os seus
membros encontravam-se Dom Hélder Câmara e João Cândido, o Almirante Negro, que
chegou a usar o uniforme integralista. Este último havia sido convidado pelo próprio
Plínio Salgado, líder do movimento integralista.
Em seu jornal A Voz da Raça, os frente-negrinos colocam como seu slogan “Deus,
Pátria, Raça e Família”, decalcado do slogan integralista “Deus, Pátria e Família”.
Com esta orientação ideológica, a Frente Negra se desenvolveu rapidamente,
criando núcleos em vários estados do Brasil. Haja vista que atendia todas as condições
exigidas pela Justiça Eleitoral da época, a Frente Negra entra, em 1936, com pedido para
se transformar em partido político. Houve divergência entre os membros do Tribunal
sobre a constitucionalidade do pedido, pois, alguns deles alegavam que a Frente Negra
tinha tendências racistas, e afinal, a Constituição de 1934, proibia formas de organização
racistas. Mas o pedido foi aceito.
Em 1937, apóiam o golpe de Vargas que implementou o Estado Novo e algumas
políticas que iam ao encontro das reivindicações dos grupos negros liderados pela FNB:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
163
Tratava-se, (...), do protesto negro contra uma organização social (a da Primeira
República), que tinha material e culturalmente acuado as populações negras e
mestiças em espaços secundários e marginais (
GUIMARÃES, 2001: 88).
Contudo, como a ditadura de Vargas prescindia de organizações políticas livres,
a FNB acabou sendo extinta pelo Estado Novo, sendo perseguida, juntamente com
sindicatos e organizações de oposição ao Governo Vargas.
O período da Frente Negra Brasileira é marcado pela politização do discurso,
buscando consolidar um discurso que produzisse a consciência de como as relações
raciais eram constitutivas das grandes questões nacionais:
O discurso torna-se cada vez mais nacionalista, às vezes xenófobo, as acusações
de preconceito transformam-se em explicação para a pobreza negra, oriunda do
desemprego dos artesãos e artistas negros e sua substituição por imigrantes
estrangeiros. Tal discurso, entretanto, é pouco convincente qua discurso negro,
pois sustenta-se, por um lado, na recusa dos vestígios de tudo que seja africano ou
lembre a África. Não é convincente, tampouco pelo que tem de “puritanismo
negro”[...]. De fato, a busca de aparência de moralidade atinge seu ápice
justamente nessa fase, com tudo que representa de inculpação sub-reptícia das
vítimas de preconceito (
GUIMARÃES, 2002:92).
Tratava-se de práticas articulatórias que constituíam num campo agonístico um
novo projeto hegemônico que integrasse a questão racial e a população negra, enfim, o
discurso negro:
As divergências entre a FNB e seu apoio a Vargas e a adesão da Legião Negra ao
ideário revolucionário paulista, mais do que um erro de ótica política de uns e
manipulação de outros, permite avaliar o quanto de lógicas próprias havia em
torno dos conceitos de cidadania, democracia e nacionalidade. Tudo estava sendo
cuidadosamente pesado – de diferentes modos – por associações e ativistas negros.
Só participar do debate não era a questão. E nem mesmo marcar posição. Os
negros deveriam ser incluídos entre o “povo” que lutava pela “liberdade”, e havia
uma disputa menos para anunciar os interlocutores do que para definir a pauta do
debate sobre a questão racial (
GOMES, 2005: 76).
Contudo, os setores negros que tentavam a inserção política – inclusive as
dimensões partidárias – nos debates sobre cidadania continuariam a ser tratados como
coadjuvantes ou tornados invisíveis.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
164
4.2.1 Cordialidade e Estigmatização
No plano das práticas sociais cotidianas, consolidou-se o que iremos denominar
aqui de “cordialidade”. A “cordialidade” das relações raciais brasileiras é expressão da
estabilidade das desigualdades e da hierarquia raciais que diminuem o nível de tensão
racial. A cordialidade não é para “negros impertinentes”. As relações cordiais são fruto
de regras de etiqueta que estabelecem uma reciprocidade assimétrica que, uma vez
rompida, justifica a “suspensão” do trato amistoso e a adoção de práticas violentas.
(...) se manifesta sempre numa situação de desigualdade hierárquica marcante –
uma diferença de status atribuído entre agressor e vítima – e de informalidade das
relações sociais, que transforma a injúria no principal instrumento de
restabelecimento de uma hierarquia racial rompida pelo comportamento da vítima
(
GUIMARÃES, 2004: 36).
A cordialidade é como que uma tolerância com reservas, associada ao
clientelismo e patrimonialismo nas relações sociais, reproduzindo relações de
dependência e paternalismo. A associação entre cordialidade, clientelismo e
patrimonialismo parece ser parte da explicação da manutenção de um racismo
institucional não-oficial – relações sociais difusas e informais que se infiltram e
“aparelham” as instituições oficiais.
A articulação de cordialidade, clientelismo e patrimonialismo configura o que
chamaremos de “Complexo de Tia Anastácia”, no qual a pessoa negra aparece “como se
fosse da família” ou como sendo “quase da família”. A proximidade social quase nunca
transpõe o limite do “como se” ou do “quase”. No Complexo de Tia Anastácia, mesmo
as contigüidades são distâncias. Este complexo instaura o que estamos chamando de
integração subordinada, definindo as formas hegemônicas em que se apresenta a
discriminação racial: o estereótipo racial (cf. cap. 1) e o não-dito racista (cf. cap.7).
Técnicas políticas do corpo que não buscam seu disciplinamento ou sua regulamentação,
mas sua estigmatização, como integração subordinada, na qual, questões políticas e de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
165
estratificação social tomam a forma de questões “estéticas” ou “escolhas afetivas”: “boa
aparência”, “bom gosto” e “bons costumes”. Todavia, o negro não é excluído ou
subordinado por sua “má aparência”, porém, tem “má aparência” pois é excluído ou
subordinado – sua “feiúra” é expressão de sua inferioridade social.
Os processos de integração subordinada permitem uma
[...] generalização de trajetórias bem-sucedidas de negros e mulatos na sociedade
brasileira, ainda quando estas pessoas pudessem reconhecer que efetivamente
sofreram constrangimentos e humilhações por conta de sua cor. O que faria este
comportamento efetivo não seria a ausência de discriminação, mas o fato de esta
não ser realçada ou considerada um obstáculo insuperável (
GUIMARÃES,
2002:86).
O negro consegue ascender socialmente desde que não transgrida o “pacto de
silêncio”
77
imposto pelas normas de “cordialidade” que regulam as trocas de favores e a
distribuição da gratidão como forma de obrigação.
Foi ao constatar de forma impressionista estas micro-técnicas de poder de
“integração subordinada” e “reciprocidade assimétrica” que Gilberto Freyre afirmou:
[...] essa simpatia e essa cordialidade, transbordam principalmente do mulato.[...]
O mulato formado, em competição com o advogado branco, com o médico, com o
político, procurou vencer o competidor, agradando mais do que eles, aos clientes,
ao público, ao eleitorado, ao “Povo”;[...] (
FREYRE, 1996: 644-645).
Noutro lugar diz, ainda:
E esse desejo de intimidade com as pessoas nos parece vir, [...] de condições
peculiares ao período de rápida ascensão de um grupo numeroso, da população –
o grupo mulato – ansiosa de encurtar, pelos meios mais doces, a distância social
entre ele e o grupo dominante (
ibidem: 646).
A cordialidade aparece, aqui, como estratégia de ascensão social dos grupos
subordinados:
[...] socialmente incompleto, o mulato procura completar-se por esse esforço doce,
oleoso, um tanto feminino. Até que atingida a madureza social, pelo menos nas
suas qualidades e condições exteriores, ele se torna muitas vezes o arrivista, o
rastaqüera, o novo-culto, extremando-se alguns naquela “hiperestesia do
arrivismo” [...] (i
bidem: 647).
77
Numa espécie de Anistia geral pós-escravocrata que perdoa opressores e revoltados, mas mantém
intocada a hierarquia social e as desigualdades correlatas.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
166
Que transformação se deu entre a “revolta quilombola” e este “mulatismo moral”?
A integração subordinada promovida pelas revoluções passivas operadas sucessivamente
pela Abolição da escravidão, pela Proclamação da República e pela Revolução de 30
conduziu à desmobilização e desarticulação das forças populares, dentre as quais as
forças emancipatórias negras: do “quilombismo” ao “mulatismo”.
A cordialidade tem a incumbência de defender a paz e a ordem sociais, cuja
estrutura política é organizada de maneira que alguns possam se defender contra os
outros, ou dito de outra forma: defender sua vitória, perenizando-a na sujeição
hegemônica, na “democracia racial”. É, pois, uma estratégia de repressão de forças
emancipatórias, mediante a criação de redes de interdependência e da integração
subordinada dos grupos marginalizados, desmobilizando e deslegitimando as lutas ou
confrontos emancipatórios.
Portanto, a “cordialidade” não é meramente, como diria Nietzsche, uma “moral de
escravo”, mas também uma “moral de senhor”, na qual o discriminador se impõe
limites, de tal forma que a cor dos indivíduos envolvidos não apareça como fator
relevante da organização de sua conduta. Institui-se, assim, um pacto de silêncio de
ambas as partes.
78
A cordialidade, através do não-dito racista, faz com que a discriminação social não
seja atribuída à “raça” e, caso seja, a discriminação seja vista como episódica e
marginal, subjetiva e idiossincrática. Todavia, a cordialidade não se confunde com
gentileza, mas se expressa nas próprias formas de agressividade, reduzindo as relações
sociais a relações pessoais e informais, relações privadas. A relação entre cordialidade e
agressividade é importante na constituição dos laços pessoais, como processo de
78
“O controle é, [...], duplo: do branco sobre si próprio e do preto sobre si próprio. Era o que dava
às relações inter-raciais no Brasil o clima de doçura [...]” (FERNANDES & BASTIDE,
1971:209).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
167
individuação e diferenciação que conduz ao laço pessoal nas relações familiares e de
amizade. O não-dito, por exemplo, se efetiva não apenas nas piadas ou nos eufemismos,
mas também na injúria racial. Em termos lingüísticos, a cordialidade se expressa em
modalizações afetivas, patêmicas.
Quando essas relações raciais “cordiais” se infiltram nas instituições oficiais,
através das práticas de patrimonialismo e clientelismo, constitui-se o que estamos
chamando de racismo institucional. Através de valores e práticas personalistas, privadas
e informais que ocupam os espaços e aparelhos institucionais formais e públicos.
Nessa forma de relações raciais, trata-se, antes de qualquer coisa, de micro-
técnicas “cordiais” do corpo, a estigmatização, (re)produzindo, distribuindo e
consumindo suas marcas, odores, cores, texturas, gostos, fluxos, gestos, gozos etc. Desta
forma é que se opõem, como “raças”, dois organismos, “branco” e “negro”, enquanto
acessos diferentes dos indivíduos aos seus “próprios” corpos, e, a partir daí, aos demais
bens sociais: “A questão é primeiro a do corpo – o corpo que nos roubam para fabricar
organismos oponíveis” (DELEUZE, 1977:69). Porém, aqueles elementos, ou objetos
parciais (estigmas) destacados de um fundo corporal impessoal, não têm o mesmo
estatuto. A cor da pele ocupa o lugar do Significante central que conecta, organiza e
totaliza todos os demais elementos. A cor torna-se sinédoque das relações raciais.
A “cor da pele está” para a pessoa, assim como a “cabeça” está para o boi: a parte
pelo todo – o pecuarista diz: “tenho 1000 cabeças”; diz-se: “Ei, moreno...” ou “Aquele
negro...”. Assim como “cabeça” não se refere apenas ao corpo inteiro do boi, mas ao seu
valor como unidade econômica, “negro” não se refere apenas ao corpo inteiro da pessoa
(sua “raça”), mas ao status como identidade social (racial). A redução à “parte do corpo”
significa, pois, a integração a um “todo” mais amplo, econômico ou social, uma
reificação. Nestes casos tomar a “parte pelo todo” é estabelecer e reificar uma
RAÇA E JUSTIÇA
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168
modalidade de relação social: respectivamente, relações de propriedade e relações
raciais.
Desta forma, o “corpo negro”, conforme um regime semiótico racista, é o próprio
lugar da exclusão. A miscigenação não eliminou a discriminação, apenas a pluralizou,
matizou, modalizou, conforme a presença ou ausência gradual de características
“negras”, mas principalmente pela tonalidade da cor da pele – de um racismo bivalente
para um racismo polivalente. A cor da pele se apresenta como variação intensiva que
desestabiliza a variável “raça”. Variação intensiva do gradiente de cor (mais ou menos
escuro) ao invés da variável extensiva (parte extra partes) das categorias raciais (branco,
negro, mulato, não-branco...).
A estigmatização racial é o exercício de uma vigilância difusa e ciosa da hierarquia
e dominação raciais, provocando intensidades de dor, nem sempre corpóreas, mas que
repercutem no corpo, mutilando-o, esfolando-o, fragmentando-o, codificando-o,
semiotizando-o, não apenas simbolicamente ou imaginariamente. Afeta o corpo com
marcas mais sociais do que corporais, mas que repercutem no corpo como estigmas (cf.
capítulo 7). O estigma é uma demarcação corporal de uma relação social de
desigualdade, resultante de uma reificação dos processos de dominação/hierarquização.
A estigmatização é uma máquina expressiva provida de uma força ilocutória e que
conforme regras ou convenções sociais, determina atos de linguagem tais como a ofensa
e a ridicularização, exemplos de um conjunto variável de formas eficazes de produzir e
distribuir papéis, obrigações e vínculos sociais, “estigmas” que marcam e demarcam os
corpos.
Elaborei, sob o esquema corporal, um esquema histórico-racial. Os elementos que
utilizei não me foram fornecidos pelos “resíduos de sensações e percepções de
ordem... táctil, vestibular, cinestésica e visual”, mas pelo outro, o Branco, que os
tecera para mim com mil detalhes, anedotas, contos [grifo nosso]. Pensava poder
construir um eu fisiológico para equilibrar o espaço, localizar sensações e eis que
me exigiam em excesso (
FANON, 1983: 92).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
169
A estigmatização pelo não-dito (piadas, injúrias, trocadilhos, provérbios, ironias...)
é resultante de uma “espiritualização da crueldade” – “racismo espirituoso” (cf. capítulo
6). Marca-se e demarca-se o corpo sem o uso direto da violência física, através do açoite
da injúria ou da impressão a fogo pela piada. O estigma é, pois, um “ato ou
transformação incorporal” dos corpos: atribui-se aos corpos, modifica-os, mas se
distingue dos corpos. Caracteriza-se por sua dupla face:
é o expresso de uma proposição e o atributo de um corpo, sendo a instantaneidade
a marca de sua realização, pois é no momento mesmo de sua enunciação que se
produz o efeito sobre os corpos (
ALMEIDA, 2003: 72).
Os enunciados “isto é um assalto!”, “o réu é culpado!”, “a escravidão está
abolida!”, “negro sujo!”, em situações determinadas, não informam, mas transformam
uma situação de corpos, realizam uma transformação incorporal que institui,
respectivamente, “vítimas”, “condenados”, “trabalhadores livres”, “negros”, como puros
atos incorporais – os atributos dos corpos se transformam sem qualquer alteração
corporal.
A estigmatização, como prática hegemônica, técnica política do corpo, tem o poder
de organizar superfícies, envolver o corpo em superfícies, segundo diversos
procedimentos (estiramento, fragmentação, corte...). Para a estigmatização, o mais
profundo é a pele. O estigma é uma fissura, um sulco sobre a superfície, marcando-a e
demarcando-a, mas ameaçando a organização do sentido que se desdobra sobre a
superfície dos corpos que delimita.
A superfície pode ser dilacerada por explosões e rasgões violentos, abrindo chagas,
fazendo os corpos recaírem em sua profundidade, pulsação anônima em que as próprias
palavras não são mais do que afecções do corpo (cf. capítulo 7). Em caso contrário, o
estigma participa de um processo de individuação dos corpos, torna-se “cicatriz”,
“memória”, “insígnia”, “marca”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
170
A ordem da superfície é por si mesma fendida. Porém, como evitar que o traçado
silencioso da fissura incorporal na superfície torne-se, também, seu aprofundamento na
espessura de um corpo ruidoso? Isto é, seja incorporada. Este é o papel das práticas
articulatórias.
O “corpo negro” é, assim, experimentado como um corpo mutilado, dilacerado,
estigmatizado, expropriado, reificado em objetos parciais, mesmo na fase pós-escravista:
é um modo minoritário de apropriar-se de si, do próprio corpo, do próprio do corpo.
“Olhe, um negro!”[...] “Mamãe um negro, tenho medo!”[...] Então, o esquema
corporal, atingido em vários pontos, desabou, cedendo lugar a um esquema
epidérmico racial. De repente, não mais se tratava de um conhecimento de meu
corpo em terceira pessoa mas em três pessoas. De repente, invés de um, deixavam-
me, dois três lugares.[...] Não encontrava coordenadas febris do mundo. Eu existia
em triplo: ocupava muito espaço. Ia ao encontro do outro... e o outro, evanescente,
hostil mas não opaco, transparente, ausente, desaparecia. A náusea... (
FANON,
1983:93).
A estigmatização, em termos psicanalíticos, conduz o negro a um corpo
masoquista (DELEUZE, 1996: 10), na produção de um eu ideal a partir de um ideal
branco de eu
79
que faz da auto-negação objeto de desejo. A constituição do sujeito passa
pela negação do corpo, ou de parte dele, pelo “branqueamento”. O corpo masoquista é
resultante da busca de emancipação daquilo que aparentemente aprisiona e exclui – o
corpo negro como o próprio lugar da exclusão. Na armadilha racista, a emancipação
passa, assim, pela própria negação do corpo, na busca de descodificá-lo. O corpo negro é
como que afetado por uma “doença auto-imune”: um grupo de células infectado por um
agente externo do tipo vírus (estigma) será de imediato destruído pelo sistema
imunológico do corpo ao qual pertence. A descodificação é uma metamorfose dolorosa
do corpo com uma dose de espiritualidade violenta. É preciso “cortar da própria carne”,
pois se “sofre na pele”:
79
“Por mais dolorosa que seja esta constatação, somos obrigados a fazê-la. Para o Negro, há apenas um
destino. E ele é branco.” (FANON, 1983:12).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
171
No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu
esquema corporal. O conhecimento do corpo é uma atividade unicamente
negadora [grifo nosso]. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do
corpo reina uma atmosfera incerta (
FANON, 1983:92).
Multiplicam-se os casos de crianças negras na escola que, quando solicitadas a
desenhar-se, desenham meninos ou meninas pintadas como crianças brancas (alucinação
negativa); crianças negras que dizem, enquanto se beliscam, que é feio ser negro, pois,
quando querem magoá-las, as outras crianças referem-se à sua cor; crianças negras que
brincam com toalha de banho na cabeça para imitar apresentadoras de programas
infantis com seus longos e louros cabelos; que bebem ou passam água sanitária na pele
para tentar desbotar sua cor; casos de adolescentes que passam facas na pele do braço
tentando esfolá-lo; o jovem surpreso diante do espelho, ao deparar com a imagem de um
negro – passou tanto tempo tentando fazer os outros esquecerem que ele era negro, que
acabou ele mesmo esquecendo (anosognosia racial); ou homens e mulheres negros que
se suicidam
80
...
Mas é possível também uma descodificação e recodificação afirmativasBlack is
beautiful, estética, arte, dança e cultura negras: o lugar da exclusão ou da subordinação
se torna o próprio lugar da emancipação, transformando a exclusão em autonomia: da
aparência à pertença; da alteridade à identidade; da objetividade à subjetividade, enfim,
da fatalidade que me atinge ao cuidado de si
81
, na constituição de um corpo narcisista. É
por aqui que, em geral, segue o movimento social negro no Brasil, em especial, no
Norte-Nordeste, com ênfase (e um certo reducionismo) no corporal, no estético e no
cultural. Esta oscilação/dilema vivida/o pele pessoa negra entre o corpo masoquista e o
corpo narcisista chamamos de síndrome de Fanon.
80
Todos estes casos são baseados em relatos e experiências verídicas.
81
“Oh, corpo, faça de mim um homem que questione sempre!” (FANON, ib.:190).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
172
Não foi no Estado Novo que surgiram a cordialidade e a estigmatização como
tecnologias políticas, mas foi a partir da década de 30 que a cordialidade racial e a
estigmatização dos pessoas negras produziram, segundo certas transformações e
adaptações, uma utilidade política e econômica que consolidou o sistema instaurado pelo
Estado Novo e o fizeram funcionar no conjunto. A estigmatização e a cordialidade
infiltraram-se nos mecanismos globais e, enfim, no sistema do Estado inteiro, sendo por
estes colonizadas e sustentadas. O assimilacionismo estatal consiste, especialmente,
numa vontade de conformismo, tendo como sua contrapartida, a cordialidade, como
“eticidade” nas relações de poder. A cordialidade se reveste de um caráter quase
mensurável, valendo como indicação do grau de hegemonia de que dispõe um grupo
dominante. O Estado possui, então, um papel ético-moral associado à sua crescente
capacidade de realizar “assimilações” em todos os grupos sociais, através de uma
atividade formativa e cultural.
4.2.2 “Democracia Racial”, Cultura e Hegemonia
No pensamento social brasileiro, aquelas mudanças na hegemonia, pela
rearticulação do bloco dominante, conduziu à constituição de um ideário anti-racialista e
na valorização da herança cultural em uso por brasileiros negros, mulatos e caboclos.
Nas ciências sociais, autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio
Prado Jr; na literatura, Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz.
As mudanças econômicas e políticas fomentadas pela Revolução de 30 colocaram
em evidência os esforços de reflexão dos intelectuais acerca da identidade
nacional. O melhor exemplo caberia a Casa-grande & Senzala de Gilberto Freyre,
“o mais importante marco do período” (
MAIO, 1999: 147).
Ainda hoje, a obra Casa Grande & Senzala é considerada a expressão maior da
nova ideologia. Para alguns, a obra fundadora, fonte do Mito da Democracia Racial.
Porém, tal crença faz parte do mito. Sem negar o papel que a obra possa ter assumido em
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
173
sua constituição, não podemos reduzi-lo ao texto de Casa Grande & Senzala. Isto seria
um ingênuo reducionismo fetichista que conferiria poderes mágicos ao texto de Freyre.
Ao contrário, é preciso evidenciar as condições sociais que permitiram ao texto adquirir
sua aura e produzir seus efeitos limitados. Algumas destas condições foram apresentadas
nas secções anteriores. A obra, portanto, faz parte de um processo mais amplo com o
qual contribuiu sem ser sua causa suficiente ou, mesmo, necessária.
Como consolidação deste processo, as instituições de ensino, dentre elas as
faculdades de direito e as academias de polícia, começam a retirar de seus currículos as
disciplinas racistas e as demais instituições abolem de seus documentos formais
referências raciais. Falar em “raça”, quando não significava sinal de ignorância e
anacronismo, era expressão de preconceitos racistas. Ocorre, então, uma informalização
do discurso racista, provocando mudanças em sua estrutura.
O Mito da Democracia Racial é constituído por uma forma dramática que sintetiza
o processo de formação de uma vontade coletiva como “povo” ou “nação” brasileira,
fantasia concreta que atua sobre uma multiplicidade heterogênea, segmentada e
estratificada. Através do “mito das três raças”, o novo bloco dominante torna-se
hegemônico, alcançando a capacidade prática e imaginária de transcender o horizonte de
uma determinada classe ou grupo social, interpelando, assim, uma vontade coletiva
nacional-popular, como protagonista de um efetivo drama histórico: o povo brasileiro,
fruto da miscigenação, do sincretismo, da mistura cultural.
O movimento modernista e, em especial, o regionalista propunham uma reforma
cultural como expressão do nacional-popular, da cultura popular. Nestes autores ou
artistas (Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos,
Jorge Amado...), o projeto nacional passa por uma recomposição popular. Foi neste
contexto que a cultura afro-brasileira foi transformada em cultura popular ou folclore,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
174
e, só então, em cultura brasileira. Foram sublinhadas as redes de intercâmbio,
empréstimos, condicionantes recíprocos. O popular era definido por uma série de
características internas e por um conjunto de conteúdos tradicionais, anteriores à
industrialização e à massificação da cultura.
Na folclorização, ocorre a redução 1) da diversidade das culturas populares (afro-
brasileiras, indígenas, nordestinas...) à unidade da “arte”, da “música” e da “culinária”
nacionais; 2) dos processos sociais (p. ex. relações raciais) aos objetos ou aos produtos
(reificação) que adquiriram em épocas passadas. A cultura afro-brasileira, como cultura
popular, é associada ao não-moderno e “museificada”, congelada no tempo, ou
atualizada, “modernizada” como cultura brasileira. Separa-se, assim, numa oposição
político-cultural, o popular, “tradicional”, fixo, ultrapassado, particular, pura memória
ou sobrevivência, do erudito, “moderno”, dinâmico, ultrapassagem, universal, puro
progresso ou vivência (cf. CANCLINI, 1988).
No campo político, o populismo converge com esta tendência acadêmica ou
intelectual. A concepção “estatista” do populismo varguista busca fazer com que as
classes ou grupos acreditem que o Estado condense os valores populares ou nacionais,
conciliando os interesses de todos e arbitrando seus conflitos.
A cultura brasileira se tornou o grande espaço de integração subordinada do negro.
Primeiramente, não é toda e qualquer forma ou expressão cultural, mas, sobretudo, a
cultura popular ou não-erudita, em especial, as formas que se utilizam de expressão não-
verbal, como as artes plásticas, a dança e a música. Essa forma de integração foi
reforçada pela participação do negro em esportes importantes para a cultura e identidade
nacionais como o futebol. Estes processos permitiram valorizar a contribuição do
“componente” negro para a cultura nacional, mas fechando o acesso a formas de
discurso verbal próprias aos espaços públicos de deliberação e intervenção políticas.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
175
A integração subordinada das pessoas negras se deu pela “espetacularização do
corpo negro” nos espaços públicos politicamente “neutros”, pelo menos nos moldes da
política estatal moderna, reforçando a despolitização (censura) do discurso racial
provocada pelo desconhecimento ideológico e pelo não-dito.
Todavia, as forças de emancipação negra buscaram fazer da cultura o espaço da
resistência e da luta contra-hegemônica (inclusive, questionando as formas modernas de
fazer política, centradas no lingüístico
82
), numa verdadeira guerra de posição, na religião
(sincretismo católico e afro-brasileiro), na música (reggae, hip-hop, maracatu, MPB...),
na capoeira...
83
As expressões da cultura popular negra não são, necessariamente e
intrinsecamente, formas de resistência contra o poder, ou manifestações contra-
hegemônicas, mas podem ser simples recursos populares para resolver seus problemas
ou organizar suas formas de vida à margem ou nos interstícios do sistema hegemônico,
sem colocá-lo em questão, ou, enfim, podem representar, sobretudo, a ambigüidade, o
caráter não resolvido das contradições e antagonismos das classes ou grupos
subalternizados, modalidades de auto-afirmação conservadora (populismo, interesses
corporativistas, fundamentalistas ou tradicionalistas). Os movimentos de afirmação da
cultura negra, ao afirmarem o que há de negro na cultura, misturam o autônomo com a
reprodução da ordem imposta, não podendo ser situados no quadro de uma polarização
extrema usada apenas para apontar confrontações, antagonismos.
82
“A música, o dom relutante que supostamente compensava os escravos, não só por seu exílio dos
legados ambíguos da razão prática, mas também por sua total exclusão da sociedade política moderna, tem
sido refinada e desenvolvida de sorte que ela propicia um modo melhorado de comunicação para além do
insignificante poder das palavras – faladas ou escritas” (GILROY, 2001: 164).
83
“Não é nada novo declarar que para nós a música, o gesto e dança são formas de comunicação, com a
mesma importância que o dom do discurso. Foi assim que inicialmente conseguimos emergir da
plantation (...)” (Eduardo Glissant apud GILROY, 2001: 162).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
176
A resistência é, pois, árduo processo de reelaboração do próprio e do alheio, de
seleção e combinação, para se proteger e se desenvolver em condições que os grupos
subalternizados não controlam. Tal processo exige, freqüentemente, transações entre o
hegemônico e o subalternizado.
84
No plano ideológico, a transação aparece como a
tendência a incorporar e valorizar positivamente elementos produzidos “fora” do grupo
(critérios de prestígio, hierarquias, desenhos e funções dos objetos), sem questionar o
sistema de dominação. Por vezes, a transação é uma forma de obter certa reciprocidade
dentro da subordinação, sendo tão assimétrica que supõe não apenas o não
questionamento, mas, sobretudo, a aceitação da problemática e sua “solução” nos termos
estabelecidos pelo discurso hegemônico. As próprias identidades, sendo relacionais,
acabam por depender do processo de transação.
4.3 As décadas de 40 e 50 do Século XX: da “Cultura” à “Classe”.
4.3.1 O Teatro Experimental do Negro
É naquele contexto que começa a militar uma das mais expressivas lideranças dos
movimentos sociais negros, do século XX, no Brasil: Abdias do Nascimento. Sua
participação na Frente Negra foi limitada pela sua condição de militar, tendo sido preso
várias vezes e, finalmente, expulso do Exército, por suas tentativas de combater a
discriminação racial.
Abdias do Nascimento foi um dos fundadores, em 1944, do Teatro Experimental
do Negro (TEN), que pretendia organizar um tipo de ação que simultaneamente tivesse
significação cultural, valor artístico e função social, reclamando, através da criação de
oportunidades coletivas, a abertura de oportunidades reais de ascensão econômica,
cultural, política, social para o negro, respeitando-se sua origem africana.
84
O hegemônico e o subalternizado não são propriedades intrínsecas das práticas, mas modalidades,
ambíguas e transitórias, dos conflitos em se articulam, pólos de uma relação variável. Cf. CANCLINI,
1988.
RAÇA E JUSTIÇA
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177
(...) o Teatro Experimental do Negro, ou TEN, (...) se propunha a resgatar, no
Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-africana, degradados e
negados por uma sociedade dominante que, desde os tempos da colônia, portava a
bagagem mental de sua formação metropolitana européia, imbuída de conceitos
pseudo-científicos sobre a inferioridade da raça negra. Propunha-se o TEN a
trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, através da educação, da
cultura e da arte (
NASCIMENTO, 2004:210).
As reações de diversos setores da sociedade foram de desconfiança e resistência:
Pela resposta da imprensa e de outros setores da sociedade, constatei, aos
primeiros anúncios da criação deste movimento, que sua própria denominação
surgia em nosso meio como um fermento revolucionário. A menção pública do
vocábulo “negro” provocava sussurros de indignação. Era previsível, aliás, esse
destino polêmico do TEN, numa sociedade que há séculos tentava esconder o sol
da verdadeira prática do racismo e da discriminação racial com a peneira furada
do mito da “democracia racial”. Mesmo os movimentos culturais aparentemente
mais abertos e progressistas, como a Semana de Arte Moderna, de São Paulo, em
1922, sempre evitaram até mesmo mencionar o tabu das nossas relações raciais
entre negros e brancos, e o fenômeno de uma cultura afro-brasileira à margem da
cultura convencional do país (
NASCIMENTO, 2004:210).
Inclusive a idéia do Teatro Experimental do Negro foi “polidamente” rechaçada pelo
intelectual mulato Mário de Andrade, de São Paulo. Contudo contou com adesão de
várias pessoas que iniciaram os trabalhos do TEN. Conforme Abdias do Nascimento:
Teríamos que agir urgentemente em duas frentes: promover, de um lado, a
denúncia dos equívocos e da alienação dos chamados estudos afro-brasileiros, e
fazer com que o próprio negro tomasse consciência da situação objetiva em que
se achava inserido. Tarefa difícil, quase sobre-humana, se não esquecermos a
escravidão espiritual, cultural, socioeconômica e política em que foi mantido
antes e depois de 1888, quando teoricamente se libertara da servidão.
A um só tempo o TEN alfabetizava seus primeiros participantes, recrutados entre
operários, empregados domésticos, favelados sem profissão definida, modestos
funcionários públicos – e oferecia-lhes uma nova atitude, um critério próprio que
os habilitava também a ver, enxergar o espaço que ocupava o grupo afro-
brasileiro no contexto nacional.[...]
Em 1945, o TEN estrearia a sua primeira peça: O Imperador Jones, peça de
Eugene O´Neill, com Aguinaldo de Oliveira Camargo. A peça foi encenada uma única
vez no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, graças à “intervenção direta do Presidente
Getúlio Vargas, num gesto no mínimo insólito para os meios culturais da sociedade
carioca” (NASCIMENTO, 2004: 214). A crítica, então, saudou entusiasticamente a
encenação da peça.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
178
Além de sua ação cultural, o TEN fortalecia sua ação política, promovendo, em
1945 (primeira reunião) e em 46 (segunda reunião), a Convenção Nacional do Negro
Brasileiro, em São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente. No fim das deliberações,
constituiu-se um Manifesto à Nação Brasileira, contendo seis reivindicações, dentre as
quais estavam a admissão de gente negra para a educação secundária e superior e a
formulação de lei antidiscriminatória, garantindo-se sua efetividade. O Manifesto foi
encaminhado a todos os partidos políticos. A lei anti-discriminatória seria aprovada no
Congresso em 1951, sendo batizada de “Lei Afonso Arinos”. Um dos principais alvos de
Abdias do Nascimento e do TEN foi, o que mais tarde, na década de 50, seria
denominado por Florestan Fernandes, “mito da democracia racial” e que impediria a
politização, nos espaços públicos, da desigualdade e da discriminação raciais brasileiras.
Em 1950, o TEN realizou o I Congresso do Negro Brasileiro, no Rio de Janeiro.
Com o objetivo de atingir a alienação estética da sociedade convencional, um Concurso
do Cristo Negro foi realizado sob a responsabilidade do sociólogo Guerreiro Ramos, no
Rio de Janeiro, em 1955. Guerreiro Ramos também era responsável pelo Instituto
Nacional do Negro, realizando nos seus seminários de grupo-terapia um trabalho
pioneiro de psicodrama, visando a desenvolver uma terapia para a consciência dilacerada
do negro vitimado pelo racismo.
O jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro divulgou os
trabalhos do
TEN em todos os seus campos de ação, entre 1948 e 1951. O
jornal trazia reportagens, entrevistas, e matérias sobre assuntos de interesse à
comunidade. A precariedade dos recursos financeiros do
TEN, e do poder
aquisitivo de seu público, não lhe permitiu uma permanência maior
(
NASCIMENTO, 2004: 214).
4.3.2 O Projeto UNESCO
Nos anos de 1951 e 1952, a Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (UNESCO) patrocinou um conjunto de pesquisas referentes às
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
179
relações raciais no Brasil, visando apresentar ao mundo uma experiência considerada,
então, singular e bem-sucedida, tanto nacional quanto internacionalmente.
O Projeto UNESCO, como se convencionou chamá-lo, produziu um amplo e
diversificado quadro das relações raciais no Brasil, contribuiu para o aparecimento de
novas análises do processo de modernização da sociedade brasileira, além de ter
oferecido uma oportunidade ímpar para o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil
dos anos 50.
Enquanto cientistas brasileiros e estrangeiros procuravam tornar inteligível o
cenário social brasileiro, uma sociedade internacional, criada após o Holocausto,
procurava localizar na periferia do mundo capitalista uma espécie de “anti-Alemanha
nazista” com reduzida taxa de tensão étnico-racial (MAIO, 1999: 142).
Foi Arthur Ramos, então, diretor do Departamento de Ciências Sociais da
UNESCO, quem desenhou um plano de trabalho que previa a realização de pesquisas
que dessem atenção especial à integração de pessoas negras e indígenas ao mundo
moderno.
Para Arthur Ramos, o tema das relações raciais assumia um lugar privilegiado
para a percepção e análise dos desafios da transição do tradicional para o
moderno, do cenário de significativas desigualdades sociais e raciais, da
diversidade regional e da busca em conformar, em definitivo, uma identidade
nacional (
MAIO, 1999: 142).
Contudo, Arthur Ramos falecera oito meses antes da aprovação pela UNESCO da
realização da pesquisa por ele idealizada. Mantiveram-se, apesar de não ter definido com
maiores detalhes o tipo de estudo que tinha em mente, suas preocupações a respeito do
Brasil, tanto na versão final do Projeto UNESCO quanto nos resultados das diversas
pesquisas.
Segundo Chor Maio, Arthur Ramos colocava entre parênteses, em fins dos anos
40, as grandes sínteses explicativas do Brasil elaboradas nos anos 20 e 30, enquanto
procurava, no estudo de campo, analisar a realidade brasileira. Só então, dizia Ramos:
RAÇA E JUSTIÇA
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180
[...] poderemos nos aventurar a propor “interpretações” do Brasil, ensaios de
conjunto ou planos normativos de ação, até agora reservados aos estudos
impressionistas que podem ser muito interessantes, mas conduzem a
generalizações apressadas e perigosas. [...] Do ponto de vista antropológico, não
há uma “cultura” brasileira, mas “culturas” que só agora começam a ser
estudadas e compreendidas. Ainda é cedo portanto para indagarmos do “caráter
nacional” do seu ethos, em visões generalizadoras que lancem mão do critério
histórico ou social (
MAIO, 1999 :143).
Esta foi, segundo Chor Maio, a agenda que prevaleceria no processo de
estruturação do Projeto UNESCO.
No plano internacional, a persistência do racismo, em especial, nos EUA e na
África do Sul, a emergência da Guerra Fria e os movimentos de descolonização africana
e asiática mantiveram a relevância da questão racial na pauta da política internacional da
ONU, levando à publicação, em maio de 1950, pouco mais de um ano após a Declaração
Universal de Direitos Humanos da ONU, da 1ª. Declaração sobre Raça, primeiro
documento, apoiado por um órgão de ampla atuação internacional, a negar qualquer
relação determinista entre características físicas, comportamentos sociais e atributos
morais, relação ainda em voga no racismo científico dos anos 30 e 40. Logo em seguida,
foi criada, ainda no início de 1950, a Divisão de Estudos sobre Problemas Raciais do
Departamento de Ciências Sociais da UNESCO.
O projeto abordaria, inicialmente, apenas a Bahia, contribuindo para sua escolha a
existência de uma longa tradição de estudos sobre o negro na cidade de Salvador.
Ademais, em junho de 1950, o antropólogo americano Charles Wagley, que tinha
estreitas relações com o Brasil, estabeleceu contatos com a UNESCO, informando que
se encontrava no Brasil, da existência de um convênio Universidade de Columbia/
Estado da Bahia e colocando-se à disposição para a realização de um trabalho conjunto.
Porém, vários outros cientistas sociais posicionaram-se pela ampliação do Projeto
UNESCO. O próprio Wagley colocava-se favorável à possibilidade de estudos em outras
regiões:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
181
[...] quanto aos estudos urbanos sobre tensão racial (ou sua inexistência), me
pergunto se Salvador não seria um tanto especial e se os estudos em São Paulo e
no Rio de Janeiro não demonstrariam aspectos diferentes do quadro brasileiro de
relações raciais em geral. Acabo de assistir ao Congresso Nacional do Negro no
Rio [de Janeiro] e alguns dos trabalhos e algumas das discussões pareciam
indicar diferenças entre Rio e São Paulo [...] (
apud MAIO:145).
Deve-se notar a influência que o Congresso Nacional do Negro Brasileiro,
patrocinado pelo TEN, realizado em agosto de 1950, no Rio de Janeiro, quanto às
diferenças regionais das relações raciais no Brasil. O evento tentava aproximar cientistas
sociais e intelectuais, de modo geral, dos movimentos sociais negros, buscando a
associação entre trabalho acadêmico e intervenção política (ibidem: 146).
Guerreiro Ramos, sociólogo e militante do TEN, propôs que o 1º. Congresso do
Negro Brasileiro tentasse sensibilizar o governo do Brasil para convencer a UNESCO a
patrocinar um Congresso Internacional de Relações de Raça que produzisse soluções
práticas, evitando os estudos meramente descritivos ou de cunho acadêmico. Tentava,
assim, oferecer uma alternativa ao projeto UNESCO no Brasil. Contudo, a proposta do
TEN não contemplava a adoção de uma investigação-piloto conforme indicativo da
Conferência da UNESCO em Florença.
A proposta de Guerreiro Ramos inclusive foi incorporada na declaração final do
Congresso do Negro, publicada em setembro de 1950, porém, não teve repercussão
imediata junto à UNESCO.
Desde 1948, Guerreiro Ramos vinha assumindo uma posição crítica em relação
aos estudos sobre a cultura afro-brasileira. A seu ver, esses estudos (históricos,
folclóricos e antropológicos) não contribuíam para o entendimento da vida
social dos negros no Brasil contemporâneo, ou seja, para superar as
desigualdades sociais entre brancos e negros. Indo além, Guerreiro Ramos, no
Congresso do TEN, revelaria o padrão de trabalho sociológico que deveria
nortear as ciências sociais no Brasil e que foi objeto de controvérsia durante a
década de 1950 (
MAIO, 1999: nota 14, p.154).
No entanto, estes episódios evidenciam o antagonismo político em torno do projeto,
além da influência dos movimentos sociais negros neste antagonismo:
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(...) é importante ressaltar a influência do movimento negro, por meio do
Congresso do Negro Brasileiro de 1950, que teve um certo impacto sobre, pelo
menos, três sociólogos que vieram a participar do Projeto Unesco — Charles
Wagley, Roger Bastide e Costa Pinto. Indo além, o evento patrocinado pelo Teatro
Experimental do Negro procurou mudar a natureza do projeto, atribuindo-lhe um
caráter nitidamente político (
ibidem: 150).
Na seqüência, o sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, que participara do debate
acerca do estatuto científico do conceito de raça, resultando na 1ª Declaração sobre Raça
chancelada pela UNESCO, propôs que esta e a Universidade do Brasil acordassem a
realização da pesquisa no Rio de Janeiro, “analisando a situação racial brasileira na
perspectiva de uma sociedade em franco processo de industrialização” (PINTO apud
MAIO, idem:145).
Roger Bastide, que representara a França no 1º. Congresso do Negro Brasileiro, foi
convidado para realizar a pesquisa em São Paulo. Bastide, ainda sob o impacto do
Congresso, respondeu ao convite, ponderando que o projeto não poderia se limitar ao
trabalho de pesquisa, mas estimular a cooperação entre intelectuais brancos e
associações negras, dando um sentido prático às reflexões teóricas que poderia intervir
junto aos poderes públicos. Bastide contou com a preciosa colaboração do sociólogo
Florestan Fernandes.
Apesar daquela disputa “geopolítica” tanto quanto teórico-metodológica em torno
da abrangência do projeto, o coordenador do projeto UNESCO Alfred Métraux e o seu
assistente Ruy Coelho ainda acreditavam que a Bahia seria o principal foco, com a
realização de “pesquisas adicionais” fora da Bahia. Esta posição viria a ser revista:
A opção preferencial pelo cenário baiano parecia adequar-se à imagem do Brasil
como uma democracia racial, onde a interação entre as raças seria harmoniosa.
No entanto, os objetivos da investigação foram ampliados, graças sobretudo à
atuação de Charles Wagley, Costa Pinto, Roger Bastide, Ruy Coelho e Otto
Klineberg, acrescida da visita de Alfred Métraux ao Brasil, no final de 1950, após
a qual ele veio a afirmar que o caso paulista seria “susceptível de alterar a
imagem talvez demasiadamente otimista que se fazia do problema racial no
Brasil” (
Ibidem: 151).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
183
Ainda hoje, a Bahia apresenta-se como a experiência mais bem sucedida do “Mito
da Democracia Racial”. Um estado com cerca de 80% de população negra, com uma
indústria cultural e uma política cultural e turística voltadas, principalmente, para as
formas de manifestações artísticas e culturais negras; uma forte presença e influência do
candomblé e dos sincretismos afro-católicos. Porém, uma sociedade profundamente
oligárquica e racialmente hierarquizada, com os maiores índices de desigualdade racial
do país, onde o poder das oligarquias se sustenta no “apadrinhamento” político das
lideranças negras. Grande parte, por exemplo, dos babalorixás e das ialorixás são
afilhadas políticas de Antônio Carlos Magalhães, ex-governador e atual senador pela
Bahia. Não é incomum encontrar no Pelourinho placas honoríficas em bares ou
restaurantes.
Voltando ao ano de 1950, além de Charles Wagley, nas comunidades rurais,
caberia a Thales de Azevedo a realização de um estudo sobre a mobilidade social das
pessoas negras na cidade de Salvador. Devido ao seu rápido processo de industrialização
e urbanização, os estados do Rio de Janeiro e São Paulo foram inseridos no Projeto
UNESCO para servir de contraponto à experiência baiana.
No primeiro semestre de 1951, iniciaram-se os contatos entre a UNESCO e o
Instituto Joaquim Nabuco (IJN), criado por Gilberto Freyre em 1949, em Recife. Em
agosto de 1951, Freyre, que tinha sido o primeiro brasileiro a ser convidado para ocupar
o cargo de diretor do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, propôs que o IJN
compusesse a pesquisa sobre relações raciais no Brasil. A proposta foi aceita. René
Ribeiro, responsável pelo Setor de Antropologia do IJN, conduziria a pesquisa na cidade
de Recife.
As pesquisas do Projeto UNESCO foram realizadas entre os anos de 1951 e 1952.
Segundo Oracy Nogueira, citado por Chor Maio (1999:152), o projeto inaugura a etapa
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
184
do estudo sistemático acerca das relações raciais brasileiras. Esta nova etapa, também,
caracteriza-se pelo distanciamento da abordagem culturalista da situação racial
brasileira, e o amadurecimento das ciências sociais no Brasil. Deve-se acrescentar que
esta nova etapa significou, também, a introdução da problemática das classes sociais,
categoria sob a qual, a partir da qual ou em relação a qual a problemática racial será
abordada.
A partir de meados dos anos 50, formar-se-á um grande consenso teórico que
transformará o processo de industrialização em questão central na explicação dos
fenômenos sociais brasileiros em transição do tradicional ao moderno, do patrimonial
para a ordem social competitiva, do escravismo para o capitalismo, capitalismo
mercantil para o capitalismo industrial. Nesse contexto, as classes sociais serão os
principais agentes e o principal conceito das explicações sociológicas (GUIMARÃES:
20002:16).
4.4 A “democracia racial” na década de 60: classe, desenvolvimento e autoritarismo
Nos anos de 1960, a teoria das classes avançou sob a influência do marxismo e de
todas as formas de explicação estrutural. A problemática do desenvolvimento econômico
e social e do papel histórico das classes sociais naquele desenvolvimento será expresso,
segundo Guimarães (2002:16), sob a forma de análise de classes, em três movimentos
teóricos:
a) uma sociologia econômica que se preocupa com o desenvolvimento
econômico-social, enfocando as relações entre as classes, o Estado
nacional e a ordem capitalista mundial;
b) uma sociologia política, constituída pelos estudos sobre patrimonialismo,
clientelismo, populismo e democracia, focando as instituições e os
sistemas políticos, o Estado e seu contexto social;
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
185
c) Estudos de formação das classes sociais brasileiras: do empresariado
nacional; das burocracias; das classes médias; da classe operária industrial;
do proletariado rural.
O processo de industrialização envolvia não apenas o desenvolvimento das forças
produtivas e da mecanização, mas também a aceleração da divisão social do trabalho, o
domínio crescente do capital sobre o trabalho e das necessidades industriais sobre a
economia agrária, tendo como agentes o Estado, a classe operária, o campesinato, a
classe média e a burguesia.
No início dos anos 60, o consenso nas ciências sociais era o de que os anos 30
marcaram um esgotamento da economia agroexportadora e o surgimento de uma nova
economia urbano-industrial, na qual novas classes se tornariam os principais agentes da
mudança social e política: operariado, as classes médias urbanas e a burguesia industrial
(GUIMARÃES, 2002:20).
Pensadores importantes deste período foram Antônio Cândido, Maria Isaura
Pereira de Queiroz, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, entre outros.
A vitalidade dos trabalhos realizados por Roger Bastide e Florestan Fernandes
pode ser constatada pelos desdobramentos do projeto original nas obras das novas
gerações da Escola Paulista de Sociologia tais como Fernando Henrique Cardoso, Otávio
Ianni e Maria Isaura Pereira de Queiroz.
Pode-se observar uma alteração de pontos de vista no trabalho de Florestan
Fernandes na passagem dos anos 50 para os 60. Enquanto em 1955, na obra “Brancos e
Pretos em São Paulo”, Florestan confiara na prevalência progressiva da integração sobre
as diferenças raciais decorrente de uma transformação das mentalidades influenciadas
pelos novos padrões urbanos e burgueses de sociabilidade, na obra de 1965, “A
Integração do Negro na Sociedade de Classes”, a atitude cética substitui o otimismo
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
186
anterior. Na década de 50, o problema racial no Brasil é analisado, sobretudo, como uma
questão de classe social. No livro de 1965, Florestan evidencia a constituição
problemática da cidadania decorrente da marginalização social do negro e da
persistência da antiga ordem patrimonial na sociedade brasileira. É aí que analisa o que
chamou de “mito da democracia racial”, que sequer era nomeado na década de 50,
entendido como ideologia que dificulta o reconhecimento do racismo e da discriminação
na sociedade brasileira.
Após 1964, as liberdades políticas foram cerceadas. Ainda, assim, os movimentos
sociais negros permaneceram articulados. Em 1966, quando o Brasil hospedou um
Seminário Contra o Apartheid, o Racismo e o Colonialismo, recebendo simultaneamente
a visita oficial de um ministro do governo da África do Sul, o TEN organizou um
protesto público, realizado no Teatro Santa Rosa, no Rio de Janeiro. Neste mesmo ano, o
TEN preparou-se para apresentar-se no Primeiro Festival Mundial de Artes Negras,
realizado em Dacar, Senegal. Este país, após a independência, havia se tornado a capital
da négritude, movimento político-estético protagonizado pelos poetas antilhanos Aimée
Césaire e Léon Damas e pelo Presidente do Senegal, poeta Léopold Senghor. No Brasil,
enfrentando o tabu da “democracia racial”, o Teatro Experimental do Negro era a única
voz a encampar sistematicamente a linguagem e a postura política da négritude, no
sentido de priorizar a valorização da personalidade e cultura específicas do negro como
estratégia de combate ao racismo.
Entretanto, como o festival era patrocinado pela UNESCO, órgão
intergovernamental, e as gestões para participação eram feitas através de canais oficiais,
o governo brasileiro impediu a ida do TEN para Dacar.
Em 1968, o Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo convidou Abdias do Nascimento para falar sobre o tema da
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
187
negritude, porém o diretor da faculdade proibiu o uso do auditório da faculdade. A
palestra teve que ser realizada no pátio interno da instituição, sob ameaça de repressão.
As faculdades de Direito e Medicina, na mesma intensidade em que se apresentaram
como as maiores representantes do racismo científico do final do século XIX e início do
XX, aboliram o discurso acerca das relações raciais, transformando-o em tabu. No
mesmo ano, o TEN abriu outra frente de ação, quando lançou em exposição no Museu
da Imagem e do Som a primeira coleção de seu Museu de Arte Negra.
Todavia, com o endurecimento do regime autoritário e da repressão interna, através
do AI-5, Abdias do Nascimento teve que deixar o país. A questão racial virara assunto
de segurança nacional, sendo proibida sua discussão.
A “democracia racial” passou a ser uma das principais ideologias do regime
autoritário com suas práticas repressivas de manutenção da ordem e da segurança
nacionais. Com o endurecimento do regime autoritário, as elites intelectuais negras
foram, juntamente com as demais, desarticuladas, sendo lançadas numa espécie de
semiclandestinidade, isoladas das organizações propriamente clandestinas. É neste
período que, no plano internacional, desencadeiam-se as lutas pelos direitos civis nos
EUA e as guerras de libertação dos povos negro-africanos lusófonos que articularam
diversos setores sociais pelo mundo afora, influenciando os demais movimentos sociais
negros no Brasil e no Mundo. O Teatro Experimental do Negro continuou em cena, já
em termos internacionais, através da atuação de Abdias do Nascimento, exilado,
denunciando o racismo brasileiro em vários fóruns do mundo africano, da Europa, das
Américas e dos Estados Unidos.
4.5 Anos 70: movimentos negros, novos movimentos sociais e democratização
No início dos anos 70, em São Paulo, o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN)
reforma o teatro negro. No Rio Grande do Sul, o Grupo Palmares reivindica a mudança
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
188
das comemorações do dia 13 de maio para o dia 20 de novembro, em memória de
Zumbi. No Rio de Janeiro, iniciava-se o movimento “soul” que seria batizado de Black
Rio. Em 1974, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos e a Sociedade de Estudos da Cultura
Negra no Brasil, com a colaboração do Museu de Arte Moderna, realizaram as Semanas
Afro-Brasileiras, entre os dias 30 de maio e 23 de junho, com exposição de arte afro-
brasileira, danças rituais Nagô, música sacra, popular e erudita afro-brasileira. Ademais,
ocorreram palestras e seminários. Após o seminário, os militantes negros cariocas
passaram a se reunir nas dependências do Centro Afro-Asiático.
Em meados da década de 70, quando se intensificou a oposição ao regime militar,
concentrando-se em torno de um único partido, duas forças políticas se destacavam na
luta anti-racista: (a) o movimento social independente que conduziria à formação do
Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU); e (b) o Grupo de
Negros do MDB.
O MNU teve uma atuação importante na luta contra a discriminação,
caracterizando-se sua ação, basicamente, em contestar o regime autoritário, assim como
em denunciar para o país e o mundo o racismo existente nas relações sociais da
sociedade brasileira.
Naquele momento, não havia espaço para atuar junto ao Estado, que era
refratário e hostil a qualquer ação que desmistificasse a “democracia racial
brasileira”. Portanto, o MNU, em sua ação de denúncia, incorporou aliados e
popularizou no meio político que lutava contra a ditadura militar a temática
racial (
SILVA, 2000: 64).
Coube ao MNU, criado em 1978, a radicalização política. Abdias do Nascimento,
que voltara ao Brasil, em julho daquele ano participou da fundação do MNU. Diversas
outras entidades ligadas aos movimentos sociais negros foram constituídas durante a
década de 70, fenômeno que se generalizou em quase todas as grandes cidades
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
189
brasileiras até meados da década de 80, todavia, diversas entidades não sobreviveram
por muito tempo.
No Rio de Janeiro, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África, de grande
importância nos anos 70, desfez-se durante a década de 80. O Instituto de Pesquisas das
Culturas Negras (IPCN), consolidou-se como a mais visível. Em São Paulo, o MNU
tornou-se referência obrigatória para os pequenos e pouco duradouros grupos negros
politizados, após a desagregação do Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN), entidade
pioneira do movimento na década de 70. Na Bahia, surge o Ilê Ayê e o Olodum,
ocorrendo, na década de 80, fenômeno semelhante ao das escolas de samba do Rio de
Janeiro: definiu-se uma hegemonia cultural no âmbito do Movimento Negro que se
instituía: em quase todas as regiões foram criados Blocos Afro, buscando-se a
politização da “massa” através das matrizes africanas ressignificadas. Na Bahia,
constituiu-se uma representação local do MNU que tem expressiva importância na
região Nordeste e na ação política no âmbito nacional. Em Brasília, na década de 70, foi
constituído o Centro de Estudos Afro-Brasileiros. No Rio Grande do Sul, esvaziou-se a
ação pioneira do Grupo Palmares que surgira em 1971.
Enfim, a segunda metade dos anos 70 foi marcada pelo reflorescimento das
organizações do movimento negro que se empenharam nas denúncias dos casos de
racismo, contestando o ideário da “democracia racial”. É neste contexto que as mulheres
negras irão se organizar, inicialmente, não como movimento autônomo de mulheres
negras, constituindo, algumas vezes, núcleos de mulheres do movimento negro. Com o
tempo, ao criarem suas formas próprias de organização, seus próprios encontros,
seminários e articulações, o movimento de mulheres negras constituiu-se numa outra
vertente do movimento de mulheres e tem enriquecido o feminismo com questões sobre
a diferença e a igualdade entre mulheres negras e brancas, introduzindo a necessidade
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
190
concreta de se utilizar também da categoria “raça”, além de “gênero”, para a
compreensão da realidade de exclusão das mulheres brasileiras. De forma simétrica,
introduz a categoria de “gênero” nos movimentos sociais negros, enfatizando a
especificidade da desigualdade e discriminação da mulher negra. Assim, hoje, as
mulheres negras organizadas, embora se constituam em uma vertente dos movimentos
de mulheres, não se confundem mais com as feministas brancas:
Os movimentos de mulheres negras vão mostrar a inserção específica das
negras no mercado de trabalho, em geral, no setor de serviços; vão denunciar
que as mulheres negras formam a maior parte da população analfabeta do país,
que a educação formal apresenta imagens estereotipadas e parciais sobre o
período da escravidão e que as mulheres negras são excluídas das formas de
representação política (ROLAND, 2000: ?).
4.6 Nova República, velhos mitos... e a Nova Abolição? – Legislação Anti-racista
No início da década de 80, começou a se destacarem, em diversas regiões, os
Grupos de União e Consciência Negra (GRUCONs), contando, inicialmente com o
apoio de setores da Igreja Católica. Juntamente com os Agentes de Pastorais Negros
(APNs), cumpriram importante papel no interior, não apenas, da Igreja Católica, mas
também das Igrejas Batistas e Metodistas, com a criação de Ministérios voltados para a
questão racial e valorização do negro e das culturas de matriz africana.
Em meados da década de 80, surgiram diversos grupos de mulheres negras, dentre
os quais podemos citar: o Coletivo de Mulheres de São Paulo (1983), o Grupo de
Mulheres Negras Mãe Andresa do Maranhão (1986), Centro de Mulheres de Favela e
Periferia do Rio de Janeiro (1986), Maria Mulher no Rio Grande do Sul (1987), Coletivo
de Mulheres Negras de Belo Horizonte (1987), Geledés – Instituto da Mulher Negra de
São Paulo (1988). Durante este período, os diversos movimentos sociais, dentre os quais
estavam todas as vertentes dos movimentos sociais negros, reivindicavam a anistia
política ampla e irrestrita para os cassados e exilados políticos, liberdade sindical e
partidária, eleições diretas para todos os cargos políticos, liberdade de imprensa e
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
191
manifestação, convocação de uma Assembléia Constituinte. Com a efetivação da
liberdade de organização partidária e com a criação de novos partidos como, por
exemplo, o Partido dos Trabalhadores e o Partido Democrático Trabalhista, alguns
grupos negros se organizaram no interior dos mesmos. Com esses avanços nos processos
de participação política, através do fim de alguns dos entraves autoritários à participação
e com o crescimento da mobilização e organização dos grupos negros, novas conquistas
e avanços da questão racial se sucederam no nível do aparelho de Estado:
Tanto no Estado de São Paulo (...), onde foi eleito o governador Franco
Montoro, como no Rio de Janeiro, que elegeu Leonel Brizola, fatos políticos
relevantes se deram. Em São Paulo, em agosto de 1984, por reivindicação do
grupo de negros do MDB, partido vitorioso em 1982, foi criado pelo Governo
Estadual o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra
(
SILVA, 2000: 66).
Em 1982, realizaram-se as primeiras eleições estaduais nos quais se elegeu em São
Paulo Franco Montoro, um candidato da oposição (MDB), com fortes laços com a
democracia cristã e que tinha como compromisso garantir a participação da sociedade
civil na gestão estadual, através dos conselhos. Montoro nomeou, em 1983, trinta
conselheiros para o Conselho Estadual da Condição Feminino (CECF). Todas as
conselheiras eram mulheres brancas, fato que desencadeou um processo de mobilização
de mulheres militantes do movimento negro paulista, resultando na criação do Coletivo
de Mulheres Negras de São Paulo e na nomeação de duas mulheres negras para o CECF.
Em 1984, com base na experiência do CECF, e após muita articulação política, em
especial, do grupo de negros do MDB, conseguiu-se a criação do Conselho de
Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra. Neste mesmo ano, o Coletivo
de Mulheres Negras organizou o 1
o
. Encontro Estadual de Mulheres Negras, no qual
compareceram mais de 450 pessoas. Dentre os temas tratados destacavam-se as relações
com os homens negros e as mulheres brancas, a saúde, a violência, a participação
política, a estética, o mercado de trabalho, a educação, a mídia e a religião.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
192
O Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra era um
colegiado constituído por militantes negros advindos da sociedade civil e representantes
de diversos órgãos que cuidavam das políticas públicas do Estado de São Paulo:
educação, segurança, trabalho e comunicação.
A falta de vontade política, a desconfiança e a inexperiência da burocracia para
tratar com as questões relativas ao racismo em suas diversas dimensões (preconceito,
discriminação e desigualdade raciais) gerou dificuldades de caráter político e
operacional. Por outro lado, estas dificuldades eram reforçadas pela desconfiança dos
movimentos sociais negros que continuavam a ver no Estado um oponente natural de sua
causa. Porém, grandes foram os avanços que contribuíram para consolidação de
instituições e cultura democráticas:
No campo da educação foi (...) importante a ação do Conselho. Inúmeras ações
fizeram que as escolas estudassem a população negra de uma forma mais
adequada à nossa verdadeira realidade. No setor de comunicação também se
avançou bastante. Um importante encontro com os homens que cuidam da
propaganda brasileira foi feito em 1986. É desse período o início de uma melhora
na forma como a propaganda retrata o negro. Também neste período é editado um
jornal pelo Conselho, que chegou a ter uma tiragem de meio milhão de exemplares
(
SILVA, 2000: 67-68).
Em 1987, as mulheres negras presentes no XI Encontro Feminista, em Garanhuns,
Pernambuco, manifestaram sua insatisfação com o pouco espaço dado aos seus
problemas, resolvendo, então, organizar o 1
o
. Encontro Nacional de Mulheres Negras
que ocorreu em dezembro de 1988, em Valença, no Rio de Janeiro.
Durante a década de 80, desenvolveu-se uma das mais importantes dimensões da
luta negra no Brasil: a mobilização das comunidades negras rurais ou remanescentes de
quilombos, espalhadas por todo o território nacional, organizando-se na luta por suas
terras, suas identidades e por seus direitos humanos.
Tancredo Neves, após ser eleito Presidente da República pelo Colégio Eleitoral,
decidira criar a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, vinculada à Presidência
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
193
da República, com o objetivo de esboçar um projeto de constituição que deveria servir
de modelo para um grande debate constitucional. Com a morte de Tancredo, que o
impediu de tomar posse como Presidente, José Sarney convocou os membros para a
Comissão, que seria dirigida pelo jurista Afonso Arinos. Nenhum negro fora convocado,
provocando a insatisfação e contestação da militância negra, em especial, em São Paulo.
Franco Montoro intercedeu junto ao Presidente José Sarney, que nomeou, dentre outros,
o professor Hélio Santos, antigo membro do Conselho de Participação e
Desenvolvimento da Comunidade Negra. Diversas propostas foram incluídas no esboço
constitucional feito pela comissão e depois foram aproveitadas pela Constituição de
1988.
No dia 13 de maio de 1986, em Brasília, o então presidente José Sarney
comprometia-se a criar uma fundação para tratar da questão racial negra no país. A
Fundação Cultural Palmares tornou-se o órgão federal, oficial, encarregado de
desenvolver trabalhos específicos para diáspora negra brasileira. A fundação, como diz
seu nome, acabou sendo criada dentro do Ministério da Cultura. Mais uma vez, a
questão racial era tratada como questão de cultura. Com o aprofundamento das
demandas e do poder de reivindicação dos movimentos sociais negros como, por
exemplo, os movimentos quilombolas, demonstrou-se a inviabilidade da Fundação
Cultural Palmares de dar conta das necessidades e direitos da pessoa negra, ou sequer de
representá-la de forma integral.
Nas eleições de 1986, a representação negra no Congresso aumentara, embora
muito aquém de uma representação significativa. O caminho aberto por parlamentares
como Abdias do Nascimento levou à aprovação de dispositivos propostos pelos
parlamentares negros da Constituinte de 1988, deputados Benedita da Silva, Carlos
Alberto de Oliveira Caó e Paulo Paim, anunciando a natureza pluricultural e multiétnica
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
194
do país (Art.215, §1º.), estabelecimento do racismo como crime inafiançável e
imprescritível (Art. 5º., inciso XLII), e determinando a demarcação das terras dos
remanescentes de quilombos (Art. 68, Disposições Transitórias).
O constituinte Carlos Alberto Caó foi eleito pelo PDT como deputado federal pelo
Rio de Janeiro, de onde saiu para ocupar o cargo de Secretário do Trabalho do governo
Leonel Brizola. Caó afirmava, acerca de sua emenda constitucional que considera crime
inafiançável a prática de racismo, que a proposta de construção de um Estado
democrático e de uma sociedade civilizada tem como um de seus centros de gravidade a
superação das discriminações raciais. Num artigo publicado pelo Jornal da Constituinte,
Caó afirma:
Mais do que nunca a Abolição se situa como obra inacabada, incompleta e
historicamente frustrada.
E noutro lugar:
Cabe, agora, à Constituinte de 1987 responder, com efetividade, a essa questão.
Romper com a seqüência regular de desvios que têm afastado a sociedade, o
Estado e a Nação da construção de uma democracia política, de caráter
multirracial. São complexos e diversificados os interesses gerais da sociedade
brasileira. Mas não podemos mais tergiversar diante da exigência histórica de
conquista da cidadania pela maioria da população negra. A nova Constituição
deve, assim,oferecer a base normativa para combater o racismo em nosso País.
Por seu turno, o deputado federal Bernardo Cabral, relator da emenda de autoria
de Caó, afirmou, após a aprovação da emenda:
(...) a Assembléia Constituinte tomou uma histórica decisão, um ato de afirmação
que abre reais perspectivas de construção, em nosso país, de uma democracia
pluri-racial, de um estado que incorpora definitvamente à sua estrutura de decisões
a diversidade cultural, étnica e política que singulariza e caracteriza a nação
brasileira.
Descontada a retórica política pouco realista, fica a percepção do avanço político e
histórico. A Lei 7.716/89, Lei Caó, constituiu-se em importante instrumento na luta por
judicialização do racismo, apresentando-se como inequívoco avanço quando comparada
à sua antecessora a Lei Afonso Arinos. A criminalização do racismo e a utilização da
Lei Caó tornaram-se formas políticas importantes de visibilização e publicização do
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
195
racismo e das lutas por sua erradicação. Contudo, por pouco mais de uma década, o
recurso judicial tornou-se e ainda é para grande parte da opinião pública, o principal,
senão o único instrumento ou ação de combate ao racismo, desconhecendo a
abrangência da agenda política dos movimentos sociais negros e o conjunto complexo
de iniciativas levadas a efeito por vários segmentos destes movimentos, inclusive no
campo das políticas públicas, acesso a direitos e democratização da política.
Apesar dos significativos avanços políticos e legais, a Lei Caó sofreu de um baixo
nível de eficácia ou aplicação nos dezesseis anos de vigência. Neste mesmo período, a
disposição transitória relativa às comunidades quilombolas teve sua regulamentação
adiada ou vetada, não estando, até hoje, regulamentada. Estes problemas apontavam,
contudo, a necessidade do aprofundamento e fortalecimento da organização política e
social por iniciativa dos movimentos sociais negros.
Desde a experiência da Frente Negra, não se tinha avanços tão significativos do
ponto de vista da construção de um discurso e de uma identidade políticos que abrissem
a possibilidade de um efetivo processo de participação e representação democráticas, na
busca do enfretamento do preconceito, da discriminação e da desigualdade raciais.
Neste período foi realizada as experiências dos SOS Racismo, serviços de
atendimento por ONGs negras a casos de discriminação racial. Pernambuco teve um
exemplo deste projeto, financiado pelo Ministério da Justiça, entre 2000 e 2002 e
realizado pela ONG Djumbay: Organização pelo desenvolvimento da arte e cultura
negras.
No início da década de 90, entidades dos movimentos sociais negros, em especial,
ONGs como o Geledés – Instituto da Mulher Negra, estruturaram serviços de
assistência legal para vítimas de discriminação racial, conhecido como SOS Racismo. O
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
196
serviço pioneiro realizado pelo Geledés, em São Paulo, foi reproduzido por diversas
entidades pelo Brasil todo.
Em 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, de 2000, foi lançado no
estado de Pernambuco o Projeto SOS Racismo, iniciativa proveniente de uma ação
conjunta entre o Ministério de Justiça, a organização Djumbay e a Secretaria de Justiça e
Cidadania de Pernambuco (SEJUC).
Segundo Carneiro(2000), o SOS Racismo de São Paulo tem os seguintes objetivos:
Em primeiro lugar, a criação de jurisprudência para os casos de discriminação
racial. Em segundo lugar, mudanças na legislação anti-racista, uma vez que a
demanda processual que estamos criando em relação ao crime de discriminação
racial tem revelado as limitações da legislação vigente destinada à punição deste
crime e a divulgação dessa situação tem sensibilizado juristas e parlamentares
para a necessidade do aperfeiçoamento dessa legislação, particularmente no
âmbito do Código Penal Brasileiro. Este é um dos maiores desafios desse trabalho,
tendo em vista o fato de que a legislação disponível não dá conta de todas as
situações de discriminação atendidas pelo SOS Racismo, já que 80% dos casos
atendidos não se encontram incluídos no escopo da legislação anti-racista
existente.
Espera-se, ainda, um fortalecimento da consciência de cidadania da população
negra, no sentido da utilização da via jurídica como forma de enfrentamento da
discriminação racial (
CARNEIRO, 2000: 313-314).
Porém, ainda segundo Carneiro (2000), o atendimento jurídico à vítima encontra,
no momento de lavrar o boletim de ocorrência na delegacia, o primeiro obstáculo para a
punição efetiva da discriminação racial. E identifica como fatores que conduzem a esta
dificuldade: 1. a discriminação racial é tratada no Brasil como assunto irrelevante ou de
menor valor; 2. o Código Penal não tipifica adequadamente o crime de racismo; 3.
tipificação precária na legislação especial anti-discriminatória (Lei Caó); 4. a
desqualificação do crime de racismo como injúria ou difamação como estratégia para
invisibilizá-lo. Esta situação teria motivado o deputado Paulo Paim (PT/RS) a apresentar
e aprovar a Lei no. 9459/97, que integra aos crimes de injúria a motivação racial; 5. a
impunidade corrente das violações dos direitos de cidadania; 6. a escassa jurisprudência
em casos de discriminação racial no Brasil; 7. o descaso da autoridade policial para com
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
197
os direitos da população negra; 8. a dificuldade das vítimas de racismo para
conseguirem testemunhas a seu favor; 9. o ônus da prova que obriga a vítima a fornecer
as provas da violação que sofreu.
Para solucionar este último problema, Carneiro (2000:316) propõe reformular a
legislação penal, abrindo precedentes para aplicação do princípio da inversão do ônus da
prova, mudando a posição jurídica no tocante às diligências para produção das provas.
A inversão do ônus da prova em termos de direito penal é bastante problemática,
pois coloca em questão a presunção legal juris tantum da inocência do réu ou
representado na ação penal: em que medida pode-se exigir do réu que forneça um álibi,
ao passo que, em princípio, presumido inocente, tem o mais estrito direito ao silêncio?
As presunções legais não constituem elementos de prova, mas, ao contrário, dispensam
qualquer prova os que delas se beneficiam; elas impõem o ônus da prova àquele que
deseja derrubá-las, quando essa prova em contrário é admitida. É este mesmo princípio
que sustenta o tipo penal da calúnia. Expresso pelo princípio Quisquis præsumitur bônus
(todos são presumidamente bons), tal presunção legal provoca um “reforço harmônico”
na presunção da existência de uma democracia racial, levando ao tratamento dos casos
individuais como transgressões eventuais àquela democracia.
Contudo, a inversão do ônus da prova não deve levar à negação da inocência do
réu, mas ao reconhecimento da maior dificuldade da vítima de discriminação racial de
provar a discriminação sofrida, comparada à possibilidade do réu de provar sua
inocência presumida, e o caráter sistemático e difundido do racismo na sociedade.
Outra sugestão feita no sentido de superar os obstáculos semânticos e processuais
colocados pelo racismo é a instituição de uma modalidade “culposa” do racismo. Neste
caso não se trata mais de provar a culpa de quem quer que seja, mas o grau de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
198
“materialidade” do dano provocado ou sofrido: a objetividade do fato jurídico não
dependeria, assim, de sua causa final, mas, sim, de sua causa eficiente.
No intuito de efetivar a potencialidade política que o tratamento legal da questão
racial tem para o avanço do debate sobre o racismo em nossa sociedade, os movimentos
sociais negros vêm fomentando a criação de uma rede de SOSs Racismos, suja
experiência já se espalha também no nível regional em países como Uruguai, Peru,
Argentina e Paraguai.
Esse processo convergiu com uma série de outros condicionantes (p.ex., a
“judicialização da política” (cf. MACIEL & KOERNER, 2002 e CARVALHO, 2004))
que veremos mais adiante, aumentando a importância do poder judiciário nas estratégias
contra-hegemônicas:
As organizações do movimento social vêm colocando para a sociedade e levando
para o Poder Judiciário os grandes temas políticos: a questão ambiental, a
questão da violência contra a mulher, a questão da desigualdade, a questão do
racismo. Do enfrentamento destes problemas dependem a consolidação da
democracia e o exercício pleno da cidadania em nossa sociedade (
CARNEIRO,
2000: 322).
Por iniciativa do Programa de Saúde do Geledés – Instituto da Mulher Negra,
realizou-se, em 1993, o Seminário Nacional “Políticas e Direitos Reprodutivos das
Mulheres Negras”, do qual resultou a declaração de Itapecirica da Serra, documento que
se constitui num marco do movimento de mulheres negras (ROLAND, 2000:244).
Em 1995, as mulheres negras compareceram organizadas à 4ª. Conferência
Mundial da Mulher que se realizou em Beijing. Neste mesmo ano, o 1
o
. Encontro
Nacional de Comunidade Negras Rurais, ocorrido em Brasília, representou a
consolidação no plano nacional de um movimento que já vinha se articulando a nível
regional.
No início do século XXI, com a participação do Brasil na Conferência Mundial de
Combate do Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada na cidade de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
199
Durban, na África do Sul, em 2001, foram propostas e adotadas várias medidas de
Ações Afirmativas para combater a discriminação e desigualdade raciais. Mais
recentemente, com a vitória Luís Inácio “Lula” da Silva, candidato do PT para a
Presidência da República, criou-se a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial – SEPPIR, da Secretária Matilde Ribeiro, ligada à Presidência da
República, e está tramitando no Congresso Nacional o “Estatuto da Igualdade Racial”,
proposto pelo, então, deputado e, agora, Senador Paulo Paim.
4.7 O movimento anti-racista e a judicialização das relações raciais
A criação e o uso de dispositivos jurídicos (como os presentes nas Constituições
Federais desde 1934, em especial, as Leis Afonso Arino e a Lei Caó) também foram
utilizados pelos movimentos sociais negros como estratégia de visibilização e
enfrentamento das diversas formas de discriminação racial. Esta estratégia, juntamente
com o processo de expansão do Poder Judiciário na ação decisória das democracias
contemporâneas, conduziu ao que estamos chamando de judicialização das relações
raciais, num contexto de relação problemática entre instituições judiciais e instituições
políticas na democracia.
Desde a transição democrática vem aumentando, de um lado, o recurso aos
dispositivos da legislação anti-discriminatória como possibilidade de enfrentamento da
questão racial, por outro lado, vem aumentando a importância das instituições,
procedimentos e agentes judiciais na resolução de conflitos sociais e políticos. As
transformações constitucionais pós-88 permitiram o maior protagonismo dos tribunais
em virtude da ampliação dos instrumentos de proteção judicial, e teriam sido descobertas
por minorias parlamentares, governos estaduais, entidades da sociedade civil e
profissionais. Essa expansão pode ser interpretada em sentido sistêmico, implicando no
risco de perda das diferenciações funcionais entre os subsistemas do direito e da política,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
200
se não na realidade, ao menos nas expectativas dos atores sociais, como no caso da
relação entre Ministério Público, guardião dos direitos individuais indisponíveis e
direitos coletivos e difusos
85
, e segmentos dos movimentos sociais em um ativismo
positivo na produção de cidadania, mediante os instrumentos da “audiência pública”, do
“ajustamento de conduta” e da “ação civil pública”, além, é claro, da “ação penal
pública”. Os instrumentos judiciais funcionariam como mais uma arena pública que
propicia a formação de opinião e o acesso do cidadão à agenda das instituições políticas.
Mas poderiam, também, ser meros substitutivos destas últimas.
A judicialização das relações raciais, em alguns casos, viria em resposta à
desqualificação e despolitização do discurso racial que vedaram ao negro o acesso aos
espaços de poder político, fazendo com que o direito passasse a ser percebido como a
salvaguarda das expectativas de alguns setores dos movimentos sociais negros,
comportando-se de modo substitutivo ao governo, às políticas públicas, aos partidos e
aos próprios movimentos sociais negros que não eram capazes de mobilização social em
torno da questão racial, conforme as condições decorrentes da consolidação do “Mito da
Democracia Racial”.
Os grupos negros marginalizados destituídos de meios para acessar os poderes
políticos buscam vocalizar suas expectativas de direito e justiça no processo judicial.
Com o deslocamento para os espaços jurídicos, a discriminação racial passa, então, a ser
tratada como um fato eventual, individual, subjetivo e idiossincrático de violação de um
direito igualmente individual, enfraquecendo uma cidadania negra politicamente ativa.
Os próprios movimentos sociais negros, desanimados e desarticulados pelas condições
colocadas pelo “Mito da Democracia Racial”, transfeririam para a lei e os aparelhos
jurídicos a demanda de uma real capacidade de transformação das relações raciais. Sem
85
O Ministério Público, como “agente político da Lei”, seria, segundo alguns autores (cf. MACIEL &
KOERNER, 2002), o exemplo mais evidente da judicialização da política.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
201
política, a judicialização do social perde a possibilidade de se elevar ao plano do Estado
e das instituições efetivamente decisórias em matéria de interesse público, e se perverte
em panacéia.
Porém, a lógica de resolução de conflitos, própria ao discurso jurídico, é distinta
dos espaços públicos de deliberação política. José Eduardo Faria apresenta um
interessante quadro que resume as diferenças na lógica do jurídico e do político na
produção da justiça. Ainda que visivelmente relativa e fictícia, tal distinção ajuda-nos a
visualizar as pretensões institucionais e as relações problemáticas que os atores entretêm
ao participarem destes dois jogos de linguagem:
Quadro 1
Sistema
Características Político Judicial
Atores Várias partes representadas por
vários partidos
Em princípio, duas partes e um
terceiro participante (o juiz)
Litígio Coletivos
Contraditório Plurilateral Bilateral
Princípio decisório básico Regra de maioria como critério
e fundamentado da decisão
Aplicação da lei por um juiz
técnico e imparcial
Horizonte decisório Prospectivo Retrospectivo
Visão do ator Macro Micro
Racionalidade Material Formal
Autonomia Relaciona as demandas que
decide com base na
conveniência e na
representatividade
Não pode escolher demandas
nem postergar decisões
indefinidamente
Alcance Toda a sociedade Só as partes do processo
Fonte: FARIA, 2005:32
A judicialização das relações raciais reforça os mecanismos de despolitização e de
exclusão dos discursos políticos negros dos espaços públicos de deliberação política. À
“espetacularização do negro” ligada ao reducionismo culturalista das relações raciais,
vem somar-se a “judicialização do racismo” ligada ao reducionismo legalista das relações
raciais, na integração subordinada do negro. Porém, enquanto no primeiro reducionismo
o “negro” aparece como sujeito ativo de uma “contribuição cultural”, no segundo, o
“negro” aparece como sujeito passivo, mero beneficiário de direitos garantidos em lei:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
202
cidadania passiva composta de clientes da ação administrativa do Estado. Em ambos os
reducionismos, está excluída a participação do “negro” como protagonista, ator
autônomo, sujeito político que constituiria a sua vontade e a sua opinião no âmbito da
sociedade civil e da esfera pública, canalizando-as por meio de múltiplos fluxos, para o
interior dos sistemas político e jurídico. Isto se daria, por exemplo, na ação do Ministério
Público, segundo a interpretação criticada por Maciel & Koerner: o voluntarismo
político, orientação ideológica dos membros do Ministério Público brasileiro na busca da
afirmação do papel político da instituição, seria constituído pela visão de uma sociedade
civil incapaz de defender seus interesses e de instituições políticas insatisfatórias no
cumprimento do seu papel representativo. Consistindo em uma visão tutelar da sociedade
brasileira, na qual o desenvolvimento da cidadania dar-se-ia não pela via de instituições
representativas, mas por meio de um poder externo, preferencialmente a-político
(2002:119-120).
Contudo, os mesmos autores problematizam esta interpretação mais adiante:
Os conceitos de hipossuficiência, assim como o de tutela, têm dimensão jurídica – é
provável que os integrantes do MP os tenham interpretado nesse sentido em suas
respostas – e, por isso, parece-nos no mínimo apressado dar-lhes um conteúdo
político-ideológico imediato. O mesmo ocorre com as concepções de promotores e
procuradores do seu papel pedagógico e ativo na promoção dos direitos coletivos.
Tais afirmações constituem não matéria de opinião mas remetem ao próprio
desenho institucional do MP e à função profissional dos seus membros
(
ibidem:121).
Ademais, a permeabilidade e abertura do Ministério Público a valores do ambiente
externo acabaram por conferir-lhe crescente visibilidade pública e legitimação social à
sua intervenção nas disputas de natureza coletiva e difusa. Os movimentos sociais
encontram nas lideranças institucionais do Ministério Público fortes aliadas para a
inserção de suas demandas na agenda política brasileira. Nessa perspectiva, a
“judicialização da política” seria o processo mediante o qual uma comunidade de
intérpretes, através de um amplo processo hermenêutico, busca concretizar os princípios
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
203
abstratamente configurados na Constituição Federal. Entretanto, o recurso à ação civil
pública para casos de discriminação racial ainda é muito limitado, preferindo-se o uso da
ação penal pública. Ademais, devido à tendência de desqualificação dos crimes de
racismo como crimes de injúria, ou seja, crimes contra a honra, as ações têm tomado a
forma de ações penais privadas, sem intercurso do Ministério Público, tornando a ação
de caráter privativo e individual.
Neste contexto, o sistema de justiça está intimamente centrado na defesa da ordem e
paz sociais representadas pela “democracia racial”. A inclusão e aplicação de dispositivos
anti-racistas pelo sistema de justiça têm significado que aqueles dispositivos assumem a
função de mascarar ou dissolver o fato da dominação racial, para fazer com que apareçam
no seu lugar, de um lado, a “democracia racial”, do outro, a obrigação legal da obediência
a essa ordem democrática e pacífica. O problema do “racismo” passa a ser o problema
central como prática desviante, contravenção ou crime, que põe em risco a “democracia
racial” brasileira.
É preciso, ao contrário, tendo como ponto de partida a dominação racial, tanto em
seu segredo como em sua brutalidade, mostrar como os aparelhos jurídicos são os
instrumentos de dominação racial, mas, também, como, até onde e de que forma, o direito
veicula e aplica as relações raciais, como relações de poder, lutas políticas, antagonismos
sociais. É preciso examinar o direito, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada,
mas sob o aspecto dos procedimentos de hegemonização que ele efetiva; ou melhor, em
que a legitimidade da autoridade judicial é resultante de procedimentos de
hegemonização (cf. capítulo 7) e, portanto, está ligada à legitimidade das relações raciais
como relações de poder.
Define-se assim um plano mais complexo de interações entre os agentes sociais,
políticos e judiciais nas diferentes arenas de decisão. O padrão de decisões
judiciais seria referido a esse plano, a partir do qual podem-se formular pesquisas
empíricas sobre o comportamento decisório em relação a temas e objetos
específicos, evidenciando-se, assim, os impactos daquelas transformações sobre a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
204
prática judicial, bem como os projetos alternativos de juristas e operadores do
direito às situações de mudança e de recalcitrância (
MACIEL & KOERNER,
2002: 131).
A ação judicial contra o racismo deve, pois, ser compreendida como uma ação num
campo político complexo que combina uma série de ações, numa verdadeira “guerra de
posição”, luta contra-hegemônica:
A ação judicial é uma justa na qual está em jogo uma luta de idéias, de problemas,
de interpretações, enfim, de modos de existência, onde os próprios árbitros estão
imersos. Uma justa, conflito ritualizado por meios retóricos e dialéticos. A ação judicial
é a continuação por outros meios (retóricos e dialéticos) do antagonismo social.
Pelo uso da retórica exclui-se o recurso à violência e à carícia, mas não à ameaça e
à promessa. A violência é, portanto, adiada, suspensa, não eliminada. Na ameaça ou na
promessa, a violência e a carícia, respectivamente, efetivam-se como possibilidade
condicional. A ameaça é violência condicional, daí que toda norma seja uma ameaça
(castigo) ou uma promessa (recompensa). Em outras palavras, se na justa retórica ou
dialética a violência é excluída, é como seu “exterior constitutivo”: não há retórica onde
não haja violência possível. A violência é, simultaneamente, a condição de possibilidade
e de impossibilidade da retórica e, portanto, é o que está em jogo em toda tentativa de
convencimento ou persuasão. É o risco para quem vier a perder o duelo judicial.
Na ação judicial, a justificação ou persuasão implicam em poder usar da violência
legítima do poder de polícia. A justa retórica ou disputa dialética visa a acessar os meios
de produção social da violência, a favor de uma das partes que vence a controvérsia.
Cada ação judicial é um confronto individual no campo de batalha do judiciário formado
por um conjunto de outras ações judiciais, por sua vez, inserido numa “guerra de
posição”, luta hegemônica que se dá em diversos outros campos de batalha: legislativo,
executivo, midiático, escolar, religioso, cultural, econômico...
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
205
CAPÍTULO 5
PARA ALÉM DE BRANCO E PRETO: O (DES)CONHECIMENTO IDEOLÓGICO DAS
RELAÇÕES RACIAIS
O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos
permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como
expressão de poder dos senhores: eles dizem “isto é isto”, marcam
cada coisa e acontecimento com um som, como que se
apropriando assim das coisas.
Nietzsche, Genealogia da Moral, § 2
5.1 (Des)conhecimento ideológico e relações raciais
O Mito da Democracia Racial efetivou-se pelo deslocamento (elisão) do discurso
racial (racista ou não) do registro e do âmbito do discurso “sério” (lógico,
argumentativo, sistemático, racional, formal e público), caracterizando o que estamos
chamando aqui de (des)conhecimento ideológico. O discurso racial, então,
entrincheirou-se no discurso “vulgar” (estético, espirituoso, aforismático, passional,
informal e privado), através da forma do não-dito, que abordaremos no próximo
capítulo.
Como imaginário social, o Mito da Democracia Racial é um horizonte: não é um
objeto entre outros objetos, senão um limite absoluto que estrutura um campo de
inteligibilidade e que é, assim, a condição de possibilidade da emergência de todo e
qualquer objeto. Portanto, o Mito da Democracia Racial não é meramente uma crença,
ou falsa consciência, mas um modo de funcionamento das práticas discursivas, um
dispositivo.
O (des)conhecimento não é simplesmente “ausência” de conhecimento,
ignorância passiva e inata. Ao contrário, trata-se de desconhecimento ideológico,
mecanismo que, qualificados os saberes sérios, demarcadas as questões
“verdadeiramente” relevantes, marginaliza saberes e narrativas tidas como “vulgares”,
irrelevantes, falsos problemas, sem-sentidos. O Mito da Democracia Racial colocou a
questão racial no Brasil como um falso problema, um sem-sentido. Essa situação
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
206
apresentou-se, a partir de meados da década de 30, na ausência de algum interesse
“sério” e “oficial” acerca das questões raciais no Brasil. Esta situação foi reforçada pelas
modernas teorias genéticas que põem em dúvida a validade de categoria “raça” como
conceito descritivo da diversidade humana.
O afastamento das teorias raciais (racistas ou não) pelo desconhecimento
ideológico do racismo aparece como resultante da aplicação do que Paul Feyerebend
chamou princípio de coerência, segundo o qual se deve evitar ou afastar hipóteses que
sejam incompatíveis com teorias bem assentadas como, por exemplo, as modernas
teorias genéticas e sociológicas (classistas ou culturalistas). A aplicação deste princípio
tem importantes conseqüências epistemológicas (cf. FEYERABEND, 1977 cap. III e
IV):
Não apenas ocorre que a descrição de cada fato singular depende de alguma teoria
[...], como também ocorre existirem fatos que são desvelados apenas com o auxílio
de alternativas da teoria a ser submetida a teste e que se tornam inacessíveis tão
logo essas alternativas se vêem excluídas. [...] Ora, se é verdade [...] que muitos
fatos só se manifestam à luz de teorias alternativas, recusar-se a examinar essas
alternativas resultará em afastar, ao mesmo tempo, fatos potencialmente
refutadores (
1977: 51 e 54).
E mais adiante Feyerabend conclui:
Com base, em nossas considerações, também se torna evidente que o êxito aparente
[da teoria aceita] não pode ser visto como sinal de verdade e de correspondência
com a natureza. Muito ao contrário, surge a suspeita de que a ausência de
dificuldades maiores se deva a uma redução do conteúdo empírico, provocada pela
simples eliminação de alternativas e de fatos passíveis de se verem descobertos
com o auxílio de tais alternativas. Em outras palavras, surge a suspeita de que o
pretenso êxito se deva à circunstância de a teoria, ficando projetada para além de
seu ponto de partida, transformou-se em ideologia. Essa ideologia ‘tem êxito’ não
porque bem se afeiçoe aos fatos, mas porque não se especificam fatos que
pudessem constituir-se em teste e porque alguns desses fatos são afastados (
1977:
55).
O desconhecimento ideológico do racismo produz uma ausência de dados e fatos
sobre as relações raciais. Até meados da década de 80, por exemplo, eram quase
inexistentes indicadores sociais que apresentassem a desigualdade racial da população
brasileira (cf. PAIXÃO, 2003:1-12). A eliminação de uma teoria racial como teoria
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
207
alternativa conduziu à eliminação de alguns dados e fatos que seriam evidenciados por
esta teoria alternativa, fosse ela verdadeira ou não.
No sistema jurídico, padece-se da ausência de um sistema de informação
confiável para produção de dados, em especial, pertinentes à discriminação. A ausência
destes dados é, segundo a Anistia Internacional (2001: 20), um indício significativo de
que existem deficiências no sistema jurídico, uma vez que a informação é uma
ferramenta essencial para lutar contra o racismo na administração de justiça. A detecção
de práticas discriminatórias é o primeiro passo para encontrar formas de combater a
discriminação. Porém, sem estatísticas de práticas discriminatórias, torna-se difícil
denunciar e demonstrar que essa discriminação existe, pois, freqüentemente, só se pode
detectar procedimentos racistas analisando os padrões de detenção, condenação e
imposição de penas em relação com a origem racial do processado ou da vítima do
delito, a origem racial dos implicados na administração de justiça etc.
No sistema jurídico de Pernambuco, cada instituição que o compõe possui seu
próprio sistema de informação, quando o possui, tendo sua própria forma de organizar os
dados, de forma não integrada. Não há um sistema integrado que unifique as
informações dos processos conforme o tipo penal em todo território do estado. Além
disso, o tipo penal do racismo não se encontra visível em muitos destes sistemas, ou,
então, encontra-se agregado em classificação mais ampla como “Leis especiais” (por
exemplo, o RAF da Corregedoria do Ministério Público de Pernambuco, em anexo),
tornando difícil estabelecer a qualidade, quantidade e localização dos casos de
discriminação racial. O Departamento de Estatística da Polícia Civil existe a pouco mais
de quatro anos, porém, apesar de abranger todo o estado, o seu atual sistema tem menos
de dois anos. A Central de Inquéritos do Ministério Público de Pernambuco, possui um
dos melhores sistemas de informação dentre as instituições pesquisadas, com dados a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
208
partir de 1998, porém apenas para a capital, ainda que já esteja planejada a ampliação de
seu sistema para todo território de Pernambuco. O sistema de informações do Tribunal
de Justiça disponível na Internet (www.tjpe.gov.br), não localiza os casos por seu tipo
penal, mas apenas pelo número do processo, nome das partes ou número da OAB dos
advogados. Visivelmente, tal sistema tem função meramente processual. Em vista disso,
uma vez terminado o processo e enviado para o Arquivo Geral, ele é baixado do sistema,
não podendo mais ser localizado, a não ser através do acesso em cada vara criminal.
Portanto, quanto mais antigo um processo, mais difícil sua localização. É preciso, então,
descobrir o número da caixa ou lote no qual está arquivado. Em decorrência, o acesso
aos autos dos processos muitas vezes necessita um trabalho manual de seleção dentre
milhares de outros processos. Isso demonstra pouca preocupação institucional com a
gestão de conhecimento
86
, a aprendizagem organizacional
87
e o controle social
88
pela
sociedade civil.
Por outro lado, o (des)conhecimento ideológico instaura uma multiplicidade de
indeterminações semânticas, incoerências conceituais, contradições lógicas, paradoxos,
lacunas que definem um limite de inteligibilidade à determinação dos objetos e à
objetividade do saber, constituindo um campo de conhecimento possível, do qual
constitui seu outro. A exclusão do discurso racial funciona, então, como condição de
possibilidade de instauração de todo um campo de saber que se estabelece centrado em
categorias como “cultura” ou “classe”. Não são estas categorias que excluem,
86
A gestão de conhecimento é entendida como “um conjunto de processos sistematizados, articulados e
intencionais, capazes de incrementar a habilidade dos gestores públicos em criar, coletar, organizar,
transferir e compartilhar informações e conhecimentos estratégicos que podem servir para a tomada de
decisões, para a gestão de políticas públicas e para a inclusão do cidadão como produtor do conhecimento
coletivo” (BATISTA et al 2005: 9).
87
A aprendizagem organizacional é entendida como o processo de detectar e corrigir erros, estando
relacionada à “capacidade da organização de buscar, sistematicamente, formas mais apropriadas para
solucionar seus problemas e, assim, incrementar sua eficácia e eficiência” (CALMON, 1999:6).
88
O controle social tem a ver com processos de constituição de espaços públicos autônomos nas
sociedades democráticas, onde organizações, redes, fóruns, movimentos sociais e cidadãos em geral
acompanham e se manifestam sobre as decisões de interesse público tomadas pelo poder público.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
209
necessariamente, a categoria “raça”, porém são formas de saber que têm aquelas
categorias por centro, e cujas respectivas estruturas conceituais excluem, ou subordinam
as categorias de cunho racial.
Daí as armadilhas semânticas, e as confusões conceituais no âmbito da “questão
racial”: a confusão, por exemplo, entre “discriminação” e “preconceito”:
(...) tratar como sinônimos os termos preconceito e discriminação pode implicar
não apenas uma perigosa e totalitária devassa na esfera da liberdade individual,
como também – o que é mais freqüente e perverso – na omissão estatal pura e
simples face da discriminação, motivada, entre outras razões, pela indefinição dos
limites, do papel e dos instrumentos estatais destinados ao enfrentamento da
discriminação e à promoção da igualdade (
SILVA Jr., 2000:373).
E há, também, a indeterminação da classificação racial e a confusão entre “raça”, “etnia”
e “cor” etc. Neste último caso, é interessante notar a confusão feita nas pesquisas oficiais
na operacionalização da variável “cor/raça”.
Nos questionários do IBGE, a confusão aparece no próprio nome do item
“cor/raça”. A enumeração das categorias que apresentam os indicadores sociais do
conceito “raça” expressa aquela mesma confusão. Do mesmo jeito que “gênero”
(conceito) não se reduz a “sexo” (indicador) e “pobreza”(conceito) a “renda”
(indicador), “raça” (conceito) não se reduz a “cor da pele” (indicador). Contudo, o
questionário do IBGE mistura no mesmo item categorias como “branca”, “preta”,
“amarela”, “parda”, “indígena”. Enquanto a primeira e a terceira categoria se referem,
simultaneamente, a “raça” e “cor” (muitos brancos se autoclassificam como da cor
amarela), a última refere-se a “etnia”, de tal forma que muitos dos que poderiam ser
classificados como pardos são classificados como indígenas por seu pertencimento a
uma comunidade indígena. A própria categoria “parda”, além de referir-se à cor da pele,
refere-se ao mestiço, sem, contudo, diferenciar mulato, caboclo ou cafuzo. Esse
problema se acentua quando se somam pretos e pardos na categoria “negra”. Essas
confusões surgem, em parte, da necessidade estatística de fixar e enquadrar elementos
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
210
dinâmicos e heterogêneos em categorias discretas e contáveis, justaposição e adição de
partes extra partes. Na linguagem, é possível parar a infinidade do vago ou pôr em
movimento a estabilidade das determinações conceptuais, traduzindo-a em gradualidade
infinita. Dessa forma, uma classificação estatística, que não é única, pode funcionar
como uma espécie de reagente que permite a identificação de zonas de agitação, não
como a nomeação de entes fixos e puros (THEMUDO, 2000: 165). Veja-se, por
exemplo, a diferença dos indicadores estatísticos, sociais e econômicos, entre “negros” e
“brancos” ou entre “pretos” e “pardos”.
A indeterminação na classificação racial intensifica-se, haja vista que não se pode
estabelecer uma “linha de cor” inequívoca entre “brancos” e “pardos claros” ou
“afrodescendendentes da pele branca”. No fundo, todo problema encontra-se na
dificuldade de estabelecer uma diferença, um corte, uma diversificação de algum tipo
num contexto contínuo, que tende a manter-se anulando toda diferença, ou num contexto
micrologicamente discreto, que tende a multiplicar infinitamente as diferenças,
anulando-as.
Nas relações raciais brasileiras, alguém pode ser escuro em relação a outrem e,
simultaneamente, claro em relação a um terceiro. Portanto, as relações raciais não
podem ser adequadamente descritas por uma lógica bivalente (verdadeiro ou falso, ser
ou não-ser, negro ou não-negro, branco ou não-branco), isto é, do terceiro excluído
(mestiço?), mas requer uma lógica da cor, lógica intuicionista, e, por último, lógica vaga
(mais verdadeiro ou menos falso, assim como, mais alto ou menos baixo), polivalente,
na qual é problematizada a validade de regras como o terceiro excluído, a dupla negação,
o princípio de não-contradição, ou distinções metodológicas entre linguagem-objeto e
metalinguagem. O discurso racial cotidiano, assim, apresenta a estreita e necessitante
relação que as chamadas lógicas “não clássicas” entretém com o uso comum da
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
211
linguagem. O discurso racial cotidiano está amiúde sujeito àquele tipo de ambivalência
intuicionista que regula a lógica da cor. Ocorre, no uso comum da linguagem, a
compactação de dois tipos lógicos: lógica da classe (bivalente, discreta, exclusiva) e
lógica da cor (vaga, contínua, gradualista).
Segundo a lógica da classe, a “raça” de alguém deve ser entendida como uma
função descritiva: “a R de x” ou Rx, em que R é uma relação de um-para-muitos. Para
que “a R de x” descreva um termo preciso, x deve ser um termo com o qual algo tenha a
relação R e não deve haver mais de um termo tendo a relação R com x, pois o artigo “a”
deve implicar unidade: “a” “raça” de alguém (x). Devemos dizer que “a R de x” “existe”
quando há apenas um termo, e mais nenhum, que tenha a relação R com x. Se R é uma
relação de um-para-muitos, “a R de x” existe sempre que x pertença ao domínio inverso
de R e não em caso contrário. Relativamente a “a R de x” como uma função no sentido
lógico, x é o argumento da função, e, se y é o termo que tem a relação R com x (“negra”,
por exemplo), então y é o “valor” da função para o argumento x. Se R é uma função de
um-para-muitos, o âmbito dos argumentos possíveis para a função “a R de x
compreende todos os que têm “raça”, enquanto o âmbito dos valores é formado por
todas as “raças” que podem ser atribuídas.
As relações raciais definidas pelo dispositivo do Mito da Democracia Racial e
seus mecanismos tornam problemática, exatamente, a “unidade” de y (associando a cada
valor de x um (e somente um) valor y = R(x).), cujo valor passa a ser dependente de uma
experiência histórico-lingüística (discursiva), tendo o regime de funcionamento diferente
do de uma função simplesmente descritiva dependendo de maneira contínua de um
multiparâmetro π (condicionais contrafactuais, quantificação sobre domínios
indeterminados (p.ex., distintas classificações raciais possíveis), possíveis referências a
espaço e tempo não atuais, correções em sentido modal e intencional). Ou seja, alguém
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
212
(x) pode ser mais ou menos negro, preto, pardo, moreno (valores de y) conforme o
contexto relacional, parâmetros externos. R passa a ser uma função não-linear, marcada
por uma singularidade. A semântica clássica da lógica da classe entra visivelmente em
conflito com certas experiências elementares nas relações raciais cotidianas. Portanto,
nos termos da lógica da classe, a relação R (as relações raciais) não existe: “não há raças
puras”. O princípio de não-contradição se funda no fato de que seria impossível que o
mesmo termo, simultaneamente, tenha e não tenha o mesmo sentido, fazendo deste o
modelo mesmo da entidade do ente e da objetividade.
Porém, há identidades raciais. As identidades só podem permanecer estáveis num
sistema fechado. Porém, na medida em que cada identidade é relacional, as novas
relações de exterioridade (contexto) nos limites do sistema transformam as identidades.
O caráter não fixado de toda identidade implica, por um lado, em polissemia, pluralidade
de significados associados de modo instável a um significante (lingüístico ou extra-
lingüístico: p.ex. a cor da pele); esta instabilidade pode resultar não da ambigüidade de
significado, mas dos contextos em que o significante se apresenta. Neste caso, trata-se de
ambigüidade e equivocidade e não de polissemia (LACLAU, 1992:136).
O discurso racial cotidiano valida proposições como “mais negro”, “menos
negro” ou “negro de verdade” (como se existissem “pessoas mais ou menos
verdadeiramente negras”), assim, como “mais claro” ou “mais escuro”. Ademais,
diferente da lógica da classe, na qual a negação de uma classe mantém com esta uma
relação de disjunção exclusiva e complementar, ou seja, o que não é verdadeiro é
necessariamente falso, e vice-versa, na lógica da cor, ao dizer branco eu implico,
certamente, não-preto, mas ao dizer não-preto eu não implico nada, ou melhor, deixo
aberta uma pluralidade de cores possíveis. Há graus diversos de identidade
(objetividade) ou de modos de existência e a diversidade destes graus é estabelecida pela
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
213
forma como os corpos se relacionam entre si. Predicados como “preto” e “branco” não
são mutuamente exclusivos, não podem ser completamente enquadrados com base na
lógica do terceiro excluído, mas requerem uma lógica intuicionista, e por último, uma
lógica vaga.
Tal lógica permite o uso de conectivos de polivalência tais como “quase”
(“quase-negra”), “como” (“amorenada”, “sapecada”), “pouco” (“pouco-morena”,
“pouco-branca”), “bem” (“bem-branca”, “bem-clara”), “nem...nem...” (“nem negro nem
branco”). Com tais conectivos, demarca-se uma diferença, mas, também, uma
aproximação a, uma vizinhança de um limite (“branco” ou “negro”).
Em 1976, o IBGE fez sua Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
utilizando uma questão “aberta” para o indicador de cor e o resultado foi que os
brasileiros se auto-atribuíram 135 cores diferentes dentre as quais “branca-morena”,
“branca-suja”, “baiana”, “melada”, “morena-bem-chegada”, “roxa”, “lilás”, “quase-
negra”, “puxa-para-branca” e até “verde”, sendo bastante expressivas da forma de
tangenciar a referência/aparência racial (substantivamente “branca” e adjetivamente
“morena” ou “suja”).
1. Acastanhada;
2. Agalegada;
3. Alva;
4. Alva-escura;
5. Alvarenta;
6. Alvarinta;
7. Alva-rosada;
8. Alvinha;
9. Amarela;
10. Amarelada;
11. Amarela-
queimada;
12. Amarelosa;
13. Amorenada;
14. Avermelhada;
15. Azul;
16. Azul-marinho;
17. Baiano;
18. Bem-branca;
19. Bem-clara;
20. Bem-morena;
21. Branca;
22. Branca-
avermelhada;
23. Branca-melada;
24. Branca-morena;
25. Branca-pálida;
26. Branca-
queimada;
27. Branca-sardenta;
28. Branca-suja;
29. Branquiça;
30. Branquinha;
31. Bronze;
32. Bonzeada;
33. Bugrezinha-
escura;
34. Burro-quando-
foge;
35. Cabocla;
36. Cabo-verde;
37. Café;
38. Café-com-leite;
39. Canela;
40. Canelada;
41. Cardão;
42. Castanha;
43. Castanha-clara;
44. Castanha-escura;
45. Chocolate;
46. Clara;
47. Clarinha;
48. Cobre;
RAÇA E JUSTIÇA
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214
49. Corada;
50. Cor-de-café;
51. Cor-de-canela;
52. Cor-de-cuia;
53. Cor-de-leite;
54. Cor-de-ouro;
55. Cor-de-rosa;
56. Cor-firma
57. Crioula;
58. Encerada;
59. Enxofrada;
60. Esbranquecimen
to;
61. Escura;
62. Escurinha;
63. Fogoio;
64. Galega;
65. Galegada;
66. Jambo;
67. Laranja;
68. Lilás;
69. Loira;
70. Loira-clara;
71. Loura;
72. Lourinha;
73. Malaia;
74. Marinheira;
75. Marrom;
76. Meio-amarela;
77. Meio-branca;
78. Meio-morena;
79. Meio-preta;
80. Melada;
81. Mestiça;
82. Miscigenação;
83. Mista;
84. Morena;
85. Morena-bem-
chegada;
86. Morena-
bronzeada;
87. Morena-
canelada;
88. Morena-
castanha;
89. Morena-clara;
90. Morena-cor-de-
canela;
91. Morena-jambo;
92. Morenada;
93. Morena-escura;
94. Morena-fechada;
95. Morenão;
96. Morena-parda;
97. Morena-roxa;
98. Morena-ruiva;
99. Morena-
trigueira;
100. Moreninha;
101. Mulata;
102. Mulatinha;
103. Negra;
104. Negrota;
105. Pálida;
106. Paraíba;
107. Parda;
108. Parda-clara;
109. Polaca;
110. Pouco-clara;
111. Pouco-morena;
112. Preta;
113. Pretinha;
114. Puxa-para-
branca;
115. Quase-negra;
116. Queimada;
117. Queimada-de-
praia;
118. Queimada-de-
sol;
119. Regular;
120. Retinta;
121. Rosa;
122. Rosada;
123. Rosa-
queimada;
124. Roxa;
125. Ruiva;
126. Russo;
127. Sapecada;
128. Sarará;
129. Saraúba;
130. Tostada;
131. Trigo;
132. Trigueira
133. Turva;
134. Verde;
135. Vermelha.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
215
Este conjunto de 135 cores não é uma classificação com 135 categorias, mas um
conjunto heterogêneo de classificações com localização histórica e geográfica
particular. Por outro lado, cada uma das 135 cores não é uma expressão subjetiva,
idiossincrática e singular, mas se relacionam uma com as outras, conforme uma
diversidade de classificações, apenas sob as quais têm sentido, com validade social
local, idiomáticas, dialetos relativamente (in)traduzíveis entre si.
Se relacionadas com variáveis como sexo, idade, classe, raça (com categorias
previamente padronizadas), localização geográfica etc, pode-se encontrar fortes
correlações, encontrando subgrupos “idiomáticos” e um certo padrão de diferenciação
das classificações raciais. Esta gramática descritiva do discurso racial cotidiano e
informal não é incompatível com a constituição de uma gramática-padrão formal,
utilizada, por exemplo, em questionários ou formulários. Esta foi interditada ou
desvalorizada pelo desconhecimento ideológico das relações raciais.
Não se trata, aqui, de dizer que seja mais ou menos real ou mais ou menos
autêntico, uma ou outra das formas de relacionar “cores”, mas se trata de mostrar que
nenhuma dessas formas é essencial e que elas não são necessariamente opostas ou
excludentes. Primeiramente, porque “raça” não se reduz, necessariamente, à “cor”,
podendo, ambas, fazerem parte de um mesmo jogo de linguagem, no qual “raça” é uma
forma de separar e diferenciar ou agrupar e integrar as “cores”. Assim como azul-celeste
é mais claro e azul-turqueza é diferente de azul-marinho, mas ambos são tipos ou tons
de azul, não é preciso negar a pluralidade de “cores” (jambo, marrom-bombom, moreno,
quase-negro, preto...) dos indivíduos para poder agrupá-los na categoria “negro”. Se
“branco-amorenado” ou “branco-sujo” fazem parte dos “brancos” ou dos “negros”, isso
depende do jogo de linguagem ou discurso de que fazem parte. Por exemplo, “azul-
esverdeado” e “verde-azulado” são a mesma cor?
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
216
Não se trata de uma pluralidade de experiências-construções subjetivas, mas de
uma objetiva pluralidade de sentido (sobredeterminação). Contudo, dizer que podemos
ter diversos “jogos de cores ou raças” e que nenhum deles é mais essencial, autêntico ou
original que os outros não significa que eles têm o mesmo valor, pois, ao contrário, têm
conseqüências sociais e políticas diferentes – faz toda diferença se os indivíduos se
opõem como “Brancos” e “Negros” como dois blocos polarizados e pretensamente
homogêneos e fixos, desvalorizando suas diferenças “internas”; se se opõem como duas
multiplicidades sem desvalorizar ou esquecer as diferenças “internas”; ou se se
diferenciam sem se agrupar, enfatizando a diversidade e a diferença (alteridades), mais
que as identidades. Portanto, a constituição dos “jogos de cores”
223
vai depender dos
processos articulatórios e do antagonismo social subjacente a eles.
Trata-se, portanto, nas diferentes classificações, de analisar práticas
articulatórias que definem quais são ou não válidas, ou seja, de saber quais relações
podem se compor diretamente para formar uma nova relação mais “extensa”, ou quais
os poderes podem se compor diretamente para constituir um poder, uma potência
224
mais “intensa”: “Em que ordem e como compor as potências, as velocidades e
lentidões?” (DELEUZE, 2002: 131). Este processo compõe diferentes relações de
poder, conforme uma amplitude, limiares (mínimo e máximo), variações ou
transformações próprias.
A pluralidade de “jogos de cor” ou de classificações cromáticas não significa,
necessariamente, a inexistência das cores. Não é porque o espectro de cores, segundo o
223
“Um jogo de linguagem: Referir se determinado corpo é mais claro ou mais escuro que um outro. –
Mas agora existe um jogo semelhante: enunciar a relação de claridade de certos tons de cor (...) A forma
das proposições em ambos os jogos de linguagem é a mesma: ‘X é mais claro que Y’. Mas, no primeiro, a
relação é externa e a proposição temporal; no segundo, a relação é interna e a proposição atemporal”
(WITTGENSTEIN, 1996:13).
224
Força de existir, poder de afetar e ser afetado. Cf. DELEUZE, 2002.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
217
léxico inglês, tem uma cor a menos que o léxico português (violeta e anil são a mesma
cor: Violet) que o arco-íris não existe, ou, ainda, que a percepção cromática dos
anglófonos é diferente dos lusófonos, ou que uma seja mais verdadeira que a outra. O
que há são diversas experiências semântico-pragmáticas, classificações, interpretações,
discursos diferentes dos “objetos” cromáticos (veja-se, também, a distinção entre cores
quentes (amarelo, laranja e vermelho) e frias (anil, violeta, azul e verde)).
Em termos físicos, o espectro de cores é um contínuo de variação nas
freqüências de onda eletromagnética em contraste com a experiência fenomenológica
que a percebe como uma série de faixas de cores distintas e aparentemente discretas,
mas que são organizadas semanticamente de formas diferentes.
Da mesma forma, não é porque o polimorfismo humano (conforme a variação
genética) possibilite múltiplas interpretações sociais (histórica e geograficamente
distintas) de “raça”, isto é, que esta seja uma realidade socialmente sobredeterminada,
que as “raças” não existam senão nas palavras (nominalismo), ou nem mesmo aí
(positivismo).
Porém, enquanto a existência do espectro das cores permanece politicamente
neutra, pelo menos fora da filosofia acadêmica, a existência do polimorfismo humano é
alvo de disputas políticas e interpretações sociais, pois não é eticamente indiferente,
tornando problemática a objetividade de todo discurso e identidade raciais:
A contribuição humana a essa equação de dificuldade torna-se até mesmo maior
conforme o objeto sob investigação se aproxima do cerne de nossas preocupações
práticas e filosóficas. Podemos ser capazes de aplicar o máximo de objetividade a
decisões taxonômicas sobre espécies de pogonóforos do oceano Atlântico, mas
vacilamos no estudo da taxonomia das espécies fósseis humanas ou, até pior, na
classificação racial do homo sapiens (
GOULD, 2001:22-23).
O que a genética moderna descobriu foi a impossibilidade de uma classificação
racial única, portanto, completa e consistente dos seres humanos:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
218
Uma raça é um grupo de indivíduos que podem ser reconhecidos como
biologicamente diferentes de outros. Para que sejam “reconhecidas” em termos
científicos, as diferenças entre a população que gostaríamos de designar como
raça e as populações vizinhas precisam ser estatisticamente significativas de
acordo com algum critério definido. O limiar de significação estatística é
arbitrário. A probabilidade de uma distância determinada atingi-lo aumenta com o
número de indivíduos e genes testados.
Nossos experimentos mostraram que mesmo populações vizinhas (de vilarejos ou
cidades) costumam ser bastante diferentes entre si. Há um limite ao número
máximo de indivíduos de um lugar que podem ser testados. Mas o número máximo
de genes testados é tão elevado que em princípio poderíamos detectar e provar a
relevância estatística de uma diferença entre qualquer par de populações, não
importando sua proximidade geográfica ou genética (
CAVALLI-SFORZA,
2003: 44-45 (grifo nosso)
).
A linguagem, justamente enquanto regime de uma nomeação que é também
numeração, é um típico contexto em que o discreto se liga ao contínuo. Dizer é sempre
criar zonas de continuidade numa realidade discreta ou inversamente, introduzir o
discreto, estabelecer cesuras, distinções no que é contínuo, numa passagem do contínuo
do ser ao discreto da língua, e do discreto da experiência ao contínuo da língua
(D´AGOSTINI, 2002:48). Já vimos no capítulo 2 que o entrelaçamento discreto de uma
classificação (oposição semântica) é a discretização (codificação) de um espaço
classificante intrinsecamente heterogêneo (sobredeterminado), sedimentado e informado
(hegemonizado) por um acontecimento ideal discriminante (decisão ético-semântica).
Por isso, nenhum sistema classificatório é único, variando conforme os critérios
utilizados. A classificação taxonômica da biologia, por exemplo, utiliza,
preponderantemente, critérios anatômicos e aparentes (fenomenológicos), mesmo assim,
tem que conviver com seus “ornitorrincos”. Foi a partir destes critérios que se
desenvolveram as classificações raciais do racismo científico do século XIX e início do
XX.
Para que uma taxonomia ou sistema classificatório seja funcional, ele deve ser 1)
exaustivo, isto é, todo termo-objeto deve ter um lugar na árvore taxonômica; 2) coerente
(decidível), ou seja, cada termo-objeto pode ser colocado em apenas um lugar na árvore
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
219
taxonômica e não em vários; 3) simples, apresentando a classificação na sua forma mais
econômica, com o menor número possível de lugares.
Para além destes critérios, a escolha (decisão ético-teórica) entre diversos sistemas
classificatórios possíveis deve-se, portanto, a critérios práticos, não apenas “científicos”,
mas, também, sociais e políticos, possibilitando não apenas a compreensão, mas
também à intervenção no meio ambiente
225
. Esta abordagem é orientada pela pergunta:
por que classificar “raças” humanas? Luigi Cavalli-Sforza afirma que:
[...] parece prudente abandonar qualquer tentativa de classificação racial segundo
critérios tradicionais. Entretanto, existe um motivo prático
para continuarmos
interessados em diferenças genéticas (
CAVALLI-SFORZA, 2003:50. Grifo
nosso).
A genética moderna utiliza como critério classificatório a distribuição estatística
de freqüências gênicas em populações genéticas. A pluralidade de caracteres ou
marcadores genéticos e a continuidade na variação das freqüências destes marcadores
tornam fortemente “arbitrária” qualquer tentativa de classificação, pois implicaria na
utilização de categorias discretas que estabelecessem descontinuidades ou fronteiras
para as freqüências gênicas. Tais problemas teóricos e metodológicos surgem sempre
que se utiliza como indicador de um conceito (“raça”, pobreza...) uma variável
“numérica” (série compacta
226
ou contínua
227
) e que se precisa estabelecer uma linha
que defina uma unidade categórica. Um exemplo: o ponto de fusão e o ponto de
solidificação são idênticos? Então, neste ponto, a água se liquefaz ou se solidifica? Qual
o estado da água à 0°C? Qual o sentido? Qual dos dois sentidos? Outro exemplo, as
225
Segundo uma terminologia neokantiana (cf. RICKERT, WEBER), a diversidade de formas de
classificação racial seria resultante de “interesses cognitivos” diferentes, da “relação com valores” ou do
“valor-relevância”.
226
A “compacidade” de uma série é sua propriedade de haver sempre outros termos entre dois quaisquer
desta série, de modo que não haja nunca dois consecutivos, havendo, portanto, um número infinito de
termos entre dois quaisquer. Cf. RUSSEL, 1963.
227
Uma série é contínua quando é compacta e todo membro desta série é o limite de uma progressão ou
regressão.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
220
discussões infindáveis entre economistas ou sociólogos para o estabelecimento de uma
“linha de pobreza” no contínuo da renda. Estas dificuldades metodológicas não levaram,
contudo, ao afastamento do conceito de “pobreza” das teorias econômicas ou
sociológicas. Ademais, “pobreza” não é um conceito menos passível de ingerências de
caráter político. Os mesmos problemas estão presentes em categorias como “classe” e
“cultura”: Quais as diferenças entre classes rica, média e pobre? Além das diferenças de
renda (onde se situa a linha que distingue as classes?), que diferenças nos valores e nos
costumes diferenciam as classes sociais? Onde começa e termina uma cultura? O que
delimita sua unicidade? As culturas são incomensuráveis? Como manter a unidade na
diversidade de uma cultura? Que elementos pertencem a uma cultura? O que existe de
comum entre maracatu e samba como cultura negra ou brasileira? O que é que existe de
negro na cultura negra ou nordestina?
Em outras palavras, existe tanta diferença entre dois elementos de uma “mesma”
cultura quanto entre dois elementos de culturas “diferentes”. Por um lado, a
heterogeneidade “interna” torna problemática a própria delimitação entre “interno” e
“externo”, “próprio” e “estranho”, “uno” e “diverso”. Por outro lado, a rigor, toda coisa
ou entidade é singular, havendo tanta diferença entre duas coisas de “mesmo” nome
(casos de um mesmo conceito) quanto de nomes (conceitos) diferentes. Portanto, toda
identidade é instituída pela seleção ou escolha dentre uma multiplicidade virtualmente
infinita de traços das coisas (destacadas, por sua vez, do fluxo dos acontecimentos) e
abstração dos demais traços, considerados acidentais ou irrelevantes num dado contexto
prático. Nossa experiência fenomenológica está repleta destes casos de indecidibilidade,
inelimináveis de nossa forma de ordenar o mundo.
O que, portanto, pareceria estar por trás do evitamento de teorias ou hipóteses
raciais é um temor de determinados usos políticos (racismo) dessas teorias ou hipóteses;
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
221
é um terror histórico das conseqüências políticas que a categoria de “raça” poderia
acometer. Um tabu fetichista que vê na categoria “raça” ou numa “identidade racial” um
conteúdo intrinsecamente racista, totalitarista, irracional... A identidade racial carregaria
consigo um mal intrínseco, esquecendo-se quanto se fez em nome de outros ideais ou
palavras ainda válidas, política e epistemologicamente, como “pátria”, “nação”,
“cultura”, “classe”, “região”, “civilização”, “razão”, “progresso”, “verdade”... Aliás, o
que fornece o sentido racista à categoria “raça” é sua articulação com as categorias
supracitadas (“raça e razão”, “raça e civilização”, “raça e cultura”, “raça e progresso”...)
e não a categoria “raça” em si mesma, mera categoria descritiva da variabilidade
biológica: polimorfismo humano. O problema estaria em seu “poder explicativo”
228
: na
co-variação entre “raça” (x) e o segundo termo (y) do par ordenado (x, y).
O desconhecimento ideológico das relações raciais, portanto, é decorrente não
meramente de obstáculos teóricos e metodológicos, mas estes obstáculos são barricadas
e trincheiras de uma luta política travada no e pelos discursos científicos. Todavia, estes
obstáculos, ao mesmo tempo em que impedem o avanço de um terror racial no discurso
científico, impedem, também, o avanço de um discurso racial emancipatório, mantendo
as duas forças num equilíbrio assimétrico, pois, se não se instaura o terror, continua-se
reproduzindo um domínio racial. Mantém-se, assim, a neutralidade científica, e
exorciza-se um passado (racismo científico) como “não-científico”, como pensamento
pré-científico, preconceito.
Aquele mesmo tabu fetichista de “raça” levou algumas correntes dos
movimentos sociais negros a buscar outras categorias como forma de superar as
dificuldades da população negra em se constituir como um sujeito histórico,
confrontando a dispersão e fragmentação de suas posicionalidades e instituindo formas
228
Entenda-se “poder explicativo” em seu sentido propriamente político, não apenas epistemológico.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
222
de reagregação social e política para além da “raça”: “povo negro”, “etnia”, “cultura
negra”, “afrodescendência”, “afro-brasileiros”, “negritude”, “africanidade”... Porém,
nenhuma dessas identidades sociais está livre da mesma problemática da identidade
racial.
A nossa perspectiva defende que a realidade social é sobredeterminada por
relações raciais, culturais, econômicas, políticas, e que as diversas identidades se
constituem pela negociação e articulação de diferenças no interior dessas diversas
relações sociais. Portanto, as identidades sociais não são previamente dadas, mas são
instituídas por processos de diferenciação e integração sociais, processos articulatórios.
A multiplicidade de classificações raciais (científicas ou não) é decorrente da
diversidade de laços (alianças) e antagonismos (disputas) sociais que se podem
constituir no social pelas articulações discursivas, que variam histórica e
geograficamente. É a perspectiva do que estamos chamando de “teoria racial crítica”.
Ademais, que haja infinitas interpretações ou discursos raciais “válidos” (prática
e logicamente consistentes) não significa que todo discurso acerca de “raças” seja
válido: a pluralização dos discursos não implica em sua “trivialização”. Ou seja, o que
está em jogo não é insignificante ou indiferente, nem a decisão (escolha de um dos
modos de classificação) é reversível. Na prática, em geral, a decisão é forçosa, isto é,
não há possibilidade de não escolher.
Estas dificuldades, portanto, não são meramente resultantes de uma realidade
complexa e dinâmica, afinal, toda realidade o é. O que falta é um ponto nodal, uma
compreensão pública (teoria, senso comum...) que a torne inteligível e modelável,
fixando os significados dos elementos, ou melhor, o que existe é um ponto nodal que
embaralha discursos: a morenidade. A palavra “moreno” opera uma síntese conjuntiva
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
223
entre séries heterogêneas (branca e negra), tornando o discurso racial, em si mesmo, um
sem-sentido ou subordinando-o aos discursos classistas ou culturalistas. A palavra
“moreno” é um valor em si mesmo vazio de sentido, e, pois, suscetível de receber
qualquer sentido. Este aspecto fica claro no uso da palavra correlata “parda” nos
documentos oficiais. Este elemento não pertence a nenhuma série (nem branco nem
negro), ou antes, pertence a ambas simultaneamente e não pára de circular através delas
(mais ou menos branca, mais ou menos parda, quase-branca, quase-negra). Um valor
simbólico zero, marcando a necessidade de um conteúdo simbólico suplementar,
podendo ser um valor qualquer: quem é moreno? O que é ser pardo? Limite de duas
séries convergentes, ele aparece em uma série como excesso, mas com a condição de
aparecer na outra como uma falta (DELEUZE, 1999:52-53). Daí os parênteses no
(des)conhecimento ideológico, marcando esta ambivalência. “Não há racismo, pois
somos todos morenos”, “A democracia racial é a democracia dos morenos”; “Ser igual
(brasileiro, cidadão...) é ser moreno”; “Igualdade da morenidade” – isto é um saber que
demarca um não-saber, que “denigre” diferenças, borra fronteiras. Por outro lado, a falta
de uma compreensão coletiva e pública, ou melhor, o (des)conhecimento ideológico, é
expressão de um antagonismo social que põe em questão toda fixação, tornando-a
sempre parcial
229
, impossibilitando a asserção de enunciados de cunho racial.
A elisão de categorias “raciais” não é suficiente para explicar a indeterminação e
indefinição em torno à “questão racial”. Primeiro porque, como condição de
possibilidade, ou melhor, como condição de verdade do discurso “sério” hegemônico, a
exclusão de um discurso racial deveria, ao contrário, afastar toda e qualquer
229
“(...) se algo escapa não é tanto por conta de uma mera inadequação dos instrumentos ou
incompetência do investigador, nem por conta de uma inesgotável riqueza do real. É antes porque as
unidades de conhecimento – fatos, instituições, grupos sociais, períodos históricos, culturas, etc. – são
marcadas por uma falta constitutiva, um “buraco” no ser que clama por preenchimento, mas que jamais se
deixa coincidir inteiramente com os ‘candidatos’ a preencherem esse vazio. (...) – teorias, métodos,
autorias, novos temas e modos de questionamento – (...)”. BURITY, 2002: 10.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
224
indeterminação. Em segundo lugar, a exclusão do discurso racial deveria tornar
impossível toda e qualquer “questão racial”, indefinida ou não, confusa ou não. Como
se explica, então, a existência de uma questão racial que mal se constitui numa
problemática, mas que perturba o desempenho tranqüilo dos discursos hegemônicos?
A oposição de projetos contra-hegemônicos em articulação no campo de
discursividade é que põe em questão a fixidez e estabilidade dos sentidos produzidos
pelos discursos hegemônicos, (re)inscrevendo, como num eterno retorno do recalcado,
significantes racializados que insistem e permanecem relativamente soltos, indefinidos,
“nômades”, mas que desestabilizam os pontos nodais, contagiando e barbarizando os
sistemas, provocando erros, lapsos, sem-sentidos. Enfim, as indeterminações
conceituais são a expressão semântico-discursiva de um antagonismo social subjacente,
relações raciais conflituosas. O (des)conhecimento ideológico do racismo, pois, é
resultante do conflito de identidades sociais mutuamente excludentes. É
simultaneamente sua condição de possibilidade e de impossibilidade.
Em termos jurídicos, aquelas dificuldades tomam a forma de lacunas e de
armadilhas semânticas e conceituais dos itens léxicos empregados pelos textos legais
anti-racistas, pelos operadores jurídicos e pelas relações raciais concretas. A
sobredeterminação (ou indeterminação da decisão) surge quando a relação entre as
normas e qualquer resultado a que um juiz possa chegar é fraca demais para alcançar ou
justificar a decisão, ou seja, quando a relação justificatória entre as razões jurídicas
existentes e os resultados é fraca demais para sustentar a afirmação de que qualquer um
dos resultados disponíveis a que um juiz pode chegar é justificado ou adequadamente
afiançado pelo grupo das razões jurídicas (cf. COLEMAN & LEITER, 2000).
Vejamos um exemplo. A significação dos sinais de trânsito é derivada das
normas de trânsito. Assim, a luz vermelha do semáforo significa “pare”, pois existe uma
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
225
norma que define “vermelho, pare” e que pune quem descumpre essa implicação
jurídica. Essa norma determina que “quem ultrapassa o sinal vermelho deve ser
multado”. Os casos simples têm uma aplicação determinada da norma. Contudo,
imaginemos o caso de alguém que ultrapassou o sinal porque estava socorrendo alguém,
levando-o ao hospital. A aplicação da norma determina a aplicação da multa, ou não?
Há os que defendem o Dura Lex sed Lex. Há os que advogam a interpretação da norma
tendo por chave interpretativa a intenção ou objetivo da norma: evitar acidentes, evitar a
morte, salvar vidas. Há, ainda, os que recorrem a uma hierarquia normativa, na qual
uma norma superior à norma de trânsito torna válida sua transgressão: o direito à vida.
Estes recursos hermenêuticos (heurística) visam a dar conta de uma sobredeterminação
na aplicação da norma a partir de sua própria definição dos casos que regula, recursos
que visam, ademais, a justificar a decisão a ser tomada. O (des)conhecimento é a “falta”
destes recursos para uma aplicação determinada da lei, ausência de uma heurística,
conjunto de regras e métodos para resolução de conflitos.
A sobredeterminação (ou indeterminação) exigiria a “discricionariedade
judicial” como forma de determinar um resultado único. Aquela “sobredeterminação” e
esta “discricionariedade” parecem corresponder ao que denominamos, respectivamente,
“indecidibilidade” e “decisão ético-semântica”. Estes fatos não atingem apenas o juiz e
o espaço do tribunal, mas todo o sistema de justiça e diversos operadores de direito:
legisladores, advogados, promotores, policiais... – neste aspecto, o (des)conhecimento
ideológico das relações raciais conduz a uma “desinformação” e um “despreparo” dos
operadores do direito para lidarem com os litígios relativos à discriminação racial. A
combinação de discricionariedade e despreparo resulta em racismo institucional.
Contudo, aquela combinação não é suficiente para explicar o racismo institucional, pois
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
226
não explica as decisões judiciais, apenas sua indeterminação; é preciso, ainda, entender
os significados e valores envolvidos na decisão, ou melhor, que a tornam válida.
Outro efeito do (des)conhecimento ideológico é “despolitizar” setores inteiros
das relações raciais cotidianas, excluindo a problemática racial dos espaços públicos,
negando-lhe conteúdo político. “Ser político” é aquele que tem consciência histórica,
sabe dos problemas e busca soluções apropriadas (cf. DEMO, 1991:15). O
desconhecimento ideológico do Mito da Democracia Racial provoca, pois, o
empobrecimento político
230
da população negra, com uma perda de organicidade de
suas ações coletivas, da competência em administrar o trajeto histórico, mudando a
natureza e as relações sociais, enfim, da auto-determinação.
Este fato se apresenta na estruturação dos campos de saber referentes à questão
racial. Além de, como vimos na secção anterior, a categoria “raça” ter perdido
importância e poder explicativo diante de categorias como “cultura” e “classe”, a
distribuição dos trabalhos referentes à “questão racial e etnicidade” obedece a uma
hierarquia nas temáticas e abordagens definida pela problemática colocada pelo Mito da
Democracia Racial.
O Mito da Democracia Racial se produz por um policiamento disciplinar dos
saberes pela “ciência”, conforme critérios de seleção que permitem descartar o falso
saber, formas de homogeneização dos conteúdos, formas de hierarquização entre os
saberes, e de organização interna desses saberes.
Segundo levantamento da produção intelectual sobre as relações raciais no
Brasil entre 1970 e 1990, realizado pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos, “a maior
complexificação das abordagens teóricas e o recurso a diversificadas metodologias
230
Entendemos pobreza política, conforme proposto por Pedro Demo (1991), como a falta de organização
política da sociedade civil, sobretudo, frente ao Estado, às elites políticas e às oligarquias econômicas.
“Na pobreza não encontramos somente o traço da destituição material, mas igualmente a marca da
segregação. (...) Por isso pobreza é sempre também humilhação, degradação, subserviência, e não só
fome. (...) Pobreza em sua essência é discriminação, injustiça” (DEMO, 1991:10 e 11).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
227
mostram a vitalidade da pesquisa nesse campo”, dada sua importância na constituição
histórica da identidade nacional e das ciências sociais. Porém, por outro lado, está-se
longe de se ter “razoavelmente esquadrinhada pela pesquisa científica toda a vasta
experiência social do negro na sociedade brasileira, notadamente no período pós-
abolição”.
Neste aspecto, por exemplo, nota-se a inexistência do negro na historiografia
brasileira, enquanto sujeito ou objeto histórico, antes e após a abolição. E mesmo
durante a escravidão, o negro é abordado como força produtiva, ou categoria econômica
das relações de produção escravocratas. São poucos os trabalhos acerca da participação
do negro nos diversos movimentos sociais, destacando os componentes raciais desses
movimentos, em suas demandas, agendas, estratégias e organização. Poucos, ainda,
quase insignificantes, são os trabalhos sobre os movimentos sociais negros no período
pós-abolição.
Tabela 5.1
TEMAS PROPORÇÃO
Escravidão e Abolição
47%
Participação Política, Cultura e Identidade
18,4%
Religião
16,7%
Relações Raciais e Desigualdades
10,9%
Bibliografias, Fontes Impressas e Estudos Gerais sobre o Tema
7%
Fonte: BARCELOS et al., 1991
A tabela 5.1 revela o amplo interesse despertado pelo passado escravista (47%),
vindo da parte dos historiadores, em especial, de orientação marxista que pouco se têm
dedicado ao período pós-abolição. A questão racial se configura, assim, como coisa de
um passado superado ou que não se conseguiu superar (“sobrevivência”) nas novas
relações de produção pós-abolição. Sobre o período pós-abolição, são notáveis a atração
exercida pela questão da identidade étnica e o rastreamento das manifestações culturais
(18,4%) e sobre a experiência religiosa (16,7%), temas constantes e principalmente
visitados por antropólogos, herdeiros da problemática colocada por Gilberto Freyre. O
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
228
tema Relações Raciais e Desigualdades, no qual predominam os estudos sociológicos, é
uma perspectiva das relações raciais acentuada nos anos 80, mas que, ainda assim,
representam apenas 10,9% dos trabalhos levantados. Se durante a década de 70
predominaram os estudos sobre escravidão e religião, na segunda metade da década de
80, predominaram os estudos sobre desigualdades raciais.
Na Universidade Federal de Pernambuco, entre 1970 e 1990, de 18 (dezoito)
trabalhos identificados referentes à temática racial ou étnica, 11 (onze) são relativos a
“Escravidão e Abolição”; 6 (seis) a “Religião”; e 1 (um) é uma biografia. Todos os
trabalhos são dissertações de mestrado, tendo sido a primeira defendida em 1975 e a
última, em 1989. Duas dissertações em Antropologia; quatro, em Sociologia; e doze, em
História. Na USP, no mesmo período, de 76 (setenta e seis) trabalhos identificados, bem
mais do que na UFPE, 42 (quarenta e dois) são relativos a “Escravidão e Abolição”; 21
(vinte e um), a “Participação Política, Cultura e Identidade”; 10 (dez), a “Religião”; 2
(dois), os “Estudos Gerais”; e, apenas 1 (um) refere-se a “Relações Raciais e
Desigualdade”. 42 (quarenta e dois) trabalhos são teses de doutorado, tendo sido a
primeira defendida em 1970 e a última, em 1990. Quarenta e um trabalhos em História,
vinte e dois trabalhos em Antropologia, oito trabalhos em sociologia, e 5 em ciências
sociais. Este trabalho não identificou nenhum trabalho no campo do Direito, na UFPE
ou na USP.
Segundo pesquisa realizada por Dora Lúcia Bertúlio (1998: 8-9), um dos
primeiros estudos de Direito e Relações Raciais, após o fim do racismo científico, foi
escrito em 1951, por um advogado e ensaísta de Recife, Pernambuco, encontrado por
ela na Biblioteca Internacional de Harvard – Law School, Cambridge MA-EUA:
É um ensaio em que o autor pontua a necessidade dos juristas perceberem o
tratamento diferenciado dado aos negros no Brasil, ferindo todos os princípios e
conceitos de Direito. No trabalho o autor denuncia, aos operadores jurídicos, o
racismo no sistema jurídico brasileiro. A base de sua argumentação são os
Direitos Fundamentais Constitucionais versus a má qualidade de vida da
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
229
população negra e sua intensa representação no sistema penitenciário (ibidem:
8).
O trabalho de Eunice Aparecida de Jesus, realizado na Universidade de São
Paulo, em 1982/3, constitui-se, segundo a autora, na primeira tentativa de inserir a
discussão racial na Academia de Direito. “Igualdade Jurídica e Preconceito Racial” foi
o primeiro trabalho acadêmico (Dissertação de Mestrado em Direito) em que foi
apresentado para os estudiosos e operadores jurídicos o racismo incrustado nas relações
jurídicas. Apenas em 1989, na Universidade Federal de Santa Catarina, aparece o
segundo trabalho de introdução da discussão de “raça”/racismo na academia jurídica
sob o título: “Direito e Relações Raciais – uma introdução crítica ao racismo”:
[...] a autora faz reflexões sobre a propriedade de se introduzir estudos sobre raça
e racismo no corpo do estudo do Direito, trazendo as relações raciais racistas de
nossa sociedade como elemento interferente na formação dos valores jurídicos e,
por conseguinte na formulação de políticas jurídicas. Pontua ainda no trabalho, a
necessidade da academia jurídica considerar o racismo brasileiro presente
tacitamente na legislação pátria e, explicitamente no comportamento do corpo de
operadores jurídicos do sistema jurídico para reflexão em seu interior e nos fóruns
de estudos de prática jurídica (
ibidem: 9).
Vê-se, assim, que, se até meados da década de 30 do século passado, a temática
racial era constitutiva do pensamento jurídico, quase que desapareceu como objeto de
estudo por um período de 50 anos, até meados da década de 80, quando começam a
emergir, consoante outros campos de saber e acadêmico-institucionais, os trabalhos
acima referidos. Principalmente a partir de meados dos anos 80, aquela situação vem
paulatinamente sendo revertida em diversos campos de conhecimento e de intervenção
institucional, desembocando na Lei n.º 7.716/1989, Lei Caó, que está disposta na Carta
Magna de 1988.
A existência de legislação criminal e constitucional sobre a prática de racismo
demonstra o grau de impregnação do racismo nas relações cotidianas, e foi uma
conquista dos movimentos sociais negros brasileiros. A aprovação de mecanismos
propostos pelos parlamentares negros da Constituinte de 1988, deputados Benedita da
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
230
Silva, Carlos Alberto de Oliveira Caó e Paulo Paim, seguindo o caminho aberto por
Abdias do Nascimento, anunciando a natureza pluricultural e multiétnica do país (Art
215 § 1.º), estabelecendo o racismo como crime inafiançável (Art 5.º, Inciso XLII), e
determinando a demarcação das terras dos remanescentes de quilombos (Art 68,
Disposições Transitórias), marca o grau de mobilização da comunidade negra, que
participou de comissões parlamentares e manifestou-se de diversas formas para
assegurar essas conquistas. A partir, também, da consolidação de uma crescente
intelectualidade negra, da inclusão da temática em alguns programas de pós-graduação,
revistas e centros de pesquisa mais importantes do país tais como o Grupo de Trabalho
de Relações Étnicas e Raciais, da ANPOCS; o Centro de Estudos Afro-Asiáticos, da
Universidade Cândido Mendes; o Núcleo da Cor, da UFRJ; a Cor da Bahia e o Centro
de Estudos Afro-Orientais da UFBA; e, mais recentemente, o Grupo de Estudos sobre
Relações Raciais e Violência da UFPE.
Na verdade, sempre se deu (veja-se como exemplo Luiz Gama) um enfrentamento
entre os saberes disciplinados, “sérios”, conteúdos do ensino oficial, como, por
exemplo, a História, e os saberes ligados às lutas sociais, por exemplo, a história oral ou
escrita como consciência dos sujeitos em luta:
É, nesta medida, que vocês têm perpetuamente dois níveis de consciência e saber
histórico, dois níveis, claro, que vão ficar cada vez mais defasados um em relação
ao outro. Mas essa defasagem jamais impedirá a existência de um e de outro: de
uma parte, um saber efetivamente disciplinado sob forma de disciplina histórica,
de outra, uma consciência histórica polimorfa, dividida e combatente, que nada
mais é que o outro aspecto, a outra face da consciência política (
FOUCAULT,
2002: 223).
5.2 LEGISLAÇÃO ANTI-RACISTA
No espaço jurídico, o desconhecimento ideológico toma a forma de ausência de
doutrina, jurisprudência e de lacunas e de armadilhas semânticas e conceituais dos itens
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
231
léxicos empregados pela legislação anti-racista, pelos operadores jurídicos e nos casos
sub judice.
Os movimentos sociais negros conseguiram que a discriminação racial fosse
qualificada como crime, não mais como contravenção. É no artigo 5º. XLII da
Constituição de 1988 que o racismo deixa de ser contravenção e passa a ser crime
inafiançável e imprescritível, revogando a Lei Afonso Arinos de 1951. Em 1988, a
Nova Constituição tornou o bem-estar de todos, livre de preconceito racial, um dos
princípios fundamentais da República:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
XLII – a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
No ano seguinte, o Congresso aprovou uma nova lei anti-discriminatória que
regulamentou a previsão constitucional de punição criminal do racismo. O Senador
Carlos Alberto Caó (PDT), o primeiro relator da lei, defendia que o racismo é
equivalente à morte civil e, portanto, tem que ser tratado como um crime. Para Caó,
tratar a discriminação racial como contravenção expressava a tolerância do Estado
brasileiro.
A Lei Caó, como viria a ser chamada a Lei 7.716 de 05 de janeiro de 1989, continuou a
tratar a discriminação racial como aqueles “crimes resultantes de preconceito de raça ou
cor” (RACUNSEN, 2003), porém acrescentou práticas não previstas na Lei Afonso
Arinos de 1951.
Durante a década de 90, os movimentos sociais negros asseguraram três emendas à lei
anti-discriminatória de 1989. A primeira tendo sido aprovada em 21 de setembro de
1990, ou seja, pouco mais de 20 meses após a aprovação da Lei Caó. Seis anos e oito
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
232
meses depois, novas emendas são feitas à Lei Caó, demonstrando um alto grau de
instabilidade da Legislação anti-discriminatória e seu caráter intensamente dinâmico. E
este processo não parou: desde de 2000, tramita no Poder Legislativo Federal o Estatuto
da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função
de sua etnia, raça e/ou cor.
A Lei 7.716 de 5 de janeiro de 1989, em seu texto original, pune o que chama de
“crimes resultantes de preconceito de raça ou cor”. Em nenhum momento, aparece a
palavra “discriminação”. Poder-se-ia inferir, como faz Racunsen, que estes crimes são a
própria discriminação racial como prática resultante de preconceito. Fica patente o
caráter subjetivista desta definição haja vista que a discriminação seria definida por um
elemento externo, sua causa ou razão que é o “preconceito”. Seria a ausência ou
presença do preconceito que definiria uma prática ou comportamento como
discriminatório.
Porém, na Lei 9.459 de 13 de maio de 1997, que altera os artigos 1º e 20 da Lei
7.716/89, o artigo 1º passa, então a afirmar: “Serão punidos, na forma desta lei, os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional”. Além de ampliar as formas de preconceito, distingue-se a
“discriminação”, assim, dos “crimes resultantes de preconceito”, passando a ser,
juntamente com este, uma das causas ou razões dos crimes previstos no demais artigos.
Porém, não define o que seriam “discriminação” ou “preconceito” e o que os diferencia
uma do outro.
Nos artigos 3º a 14, os comportamentos criminalizados são definidos pelos verbos
utilizados na redação da Lei, todos referentes à exclusão ou segregação, tais como
“impedir”, “obstar”, “negar”, “recusar”, seja o acesso a serviços públicos ou a
residências, seja o atendimento em estabelecimentos, seja o convívio familiar e social.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
233
Para Guimarães (2004: 43), “a redação da Lei 7.716 é a principal responsável pela
dificuldade de enquadrar o racismo realmente existente no Brasil”. Segundo o autor, um
racismo de assimilação e de tratamento diferencial das pessoas negras, mais do que de
segregação e exclusão.
(...) o problema consiste exatamente no fato de que tais formas de discriminação
segregacionista são residuais no mundo atual e, quando exercidas, o são de modo
sutil, disfarçando-se o motivo racial sob alguma transnominação ou tropo, tais
como aparência física (boa aparência), uso ocupacional (elevadores de serviço)
ou título de propriedade (locais exclusivos para sócios ou proprietários ), e
escondendo-se sob motivação técnica ou mesmo cultural (mérito escolar,
preferência de clientela, qualificações tácitas etc.) (
GUIMARÃES, 2004:36).
Ao contrário de Guimarães, preferimos dizer que a segregação racial se dá de
“modo oblíquo”, mas não de modo sutil.
Na Lei 8.081 de 21 de setembro de 1990, acrescenta-se o artigo 20 que estabelece o
crime e as penas aplicáveis à discriminação ou preconceito pelos meios de comunicação
ou publicação de qualquer natureza. Vê-se que, já em 1990, é acrescentada a palavra
“discriminação” à redação da Lei, porém, apenas no artigo 20.
A Lei de 9.459/97 altera este artigo tornando o uso dos meios de comunicação e de
publicações como um caso particular. O novo artigo 20 define como crime “praticar,
induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou procedência
nacional”.
O artigo 20 acabou abarcando uma definição geral do tipo penal de crime de
racismo (praticar, induzir ou incitar), ao contrário dos artigos anteriores que definem
formas particulares de crimes resultantes de discriminação ou preconceito (impedir,
obstar ou recusar). Desta forma, o artigo 20 acaba sendo mais geral que os precedentes,
incorporando-os. Mas, ao mesmo tempo, tornando-se excessivamente vago, pois não
define o que seria “praticar discriminação” ou “praticar preconceito”(quase um
oxímoro, a não ser que se o entenda como “pôr em prática um preconceito” ou se
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
234
confunda “preconceito” com “discriminação”, mas, neste caso, teríamos um pleonasmo
em “praticar discriminação ou preconceito”), permanecendo dependente da fórmula
casuística dos artigos 3º a 14. Devido ao seu caráter vago e à natureza do racismo,
conforme expressa por Guimarães, a quase totalidade das alegações de racismo
qualificadas na Lei Caó referem-se ao tipo penal previsto no artigo 20.
Ademais, a fórmula de elaboração legislativa da Lei Caó não é usual, pois os
tipos penais previstos do artigo 3º ao 14 mantém relação de subordinação com o artigo
1º da mesma Lei, que lhes limita a amplitude – adequação limitativa por subordinação
intrínseca.
Assim, não será crime, por exemplo, “negar ou obstar emprego em empresa privada”
por si só (art.4º), mas apenas se tal fato derivar de preconceito ou discriminação de raça,
cor, etnia, religião ou por procedência nacional.
A mesma Lei 9.459/97, apresentada pelo, então, Deputado Federal Paulo Paim (PT/RS),
também, acrescentou um parágrafo ao artigo 140 do Decreto-lei No. 2.848 de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal), estabelecendo o tipo penal da injúria racial. O
parágrafo terceiro do artigo 140 diz que quando a injúria, que é um crime contra a
honra, como calúnia e difamação, utilizar elementos de raça, cor, etnia, procedência ou
origem, a pena será maior que a da injúria “simples”. Desde 1989, a polícia classificava
a maior parte das alegações de discriminação como injúria, um crime contra a honra de
alguém, juridicamente menos grave do que o racismo. Os policias tendiam a ver como
injúria um problema racial:
In classifying most allegations as injúria, police focused upon verbal prejudice and
downplayed the nonverbal aspect of incident. Most allegations contained verbal
prejudice and passed this bar for condemnable verbal behavior (
RACUNSEN,
2003: 17).
Embora o artigo 14 pudesse ser aplicado a problemas qualificados como injúria, foi
muito pouco acionado. A polícia analisava muito pouco a conduta não-verbal e lia os
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O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
235
enunciados relevantes literalmente (duplo efeito de um fetichismo lingüístico das
autoridades jurídicas). Um insulto racial poderia ser qualificado conforme o artigo 14
desde que se entendesse que interferiu no convívio familiar e social. Porém, apesar do
artigo 14 não especificar o local para obstar a convivência familiar e social, importantes
juristas, como Celso Limongi, membro da associação “Juízes para Democracia”,
declaravam que o artigo 14 não era pertinente para “insultos na rua” (cf. RACUNSEN,
2003).
Por isso, a Lei de injúria racial de Paulo Paim significou um importante avanço, porém
acabou reforçando a supervalorização do componente verbal da discriminação racial.
Além disso, muitos casos de racismo continuam a serem qualificados como mera injúria
“simples”.
A injúria racial não é considerada crime de racismo, mas sim delito de injúria (ofensa à
honra subjetiva de outrem) com base em elementos preconceituosos, pois não faz parte
da Lei específica. Em conseqüência, admite-se, ao contrário da Lei Caó, concessão de
liberdade provisória mediante fiança conforme estipulado pelo Código de Processo
Penal, sendo considerado crime prescritível e de ação penal privada, nos termos do art.
145 do Código Penal, estando sujeita, inclusive à extinção da punibilidade por
decadência.
Quanto a este último aspecto Santos (2001: 143) defende que deveria ter havido
modificação da espécie de ação penal, dada a relevância da conduta criminalizada,
adotando-se para espécie a ação penal pública condicionada.
(...) a desinformação e a falta de recursos acabam sendo obstáculos para a
maioria das poucas vítimas que levam as ocorrências ao conhecimento da polícia.
Depois de lavrado o boletim de ocorrência e depois de voltar para prestar
declarações, a maioria acaba deixando de contratar advogado ou de procurar
assistência jurídica gratuita para intentar a ação penal (
SANTOS, 2001: 143).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
236
Ademais, Santos nota a desclassificação constante, por decisão judicial, da conduta
inicialmente qualificada no art. 20 da Lei 7.716/89 para injúria qualificada. Como a
ação penal fora iniciada pelo Ministério Público (ação penal pública), a desclassificação
da denúncia do Ministério Público leva à extinção da punibilidade do agente por conta
da decadência.
No Congresso “Construindo os Direitos Humanos no Estado da Pobreza”, promovido
pelo Ministério Público Estadual de Pernambuco (MPPE), o promotor Roberto Brayner
Sampaio, integrante do GT Racismo do MPPE, apresentou a tese intitulada “Racismo e
injúria qualificada – inconstitucionalidade e questões procedimentais – decadência e
prescrição”, na qual sugere a inconstitucionalidade do art. 140, §3º, dado que ameniza
uma violação de direitos humanos, considerando-a ação privada e retirando a
imprescritibilidade do racismo, como está garantida na Constituição. Para Sampaio, se a
injúria discriminatória se trata de qualificadora por racismo, o tipo penal há de ser, da
mesma forma, um crime imprescritível. Porém, o tipo penal da injúria discriminatória
dificulta a possibilidade da vítima de racismo exercer seu direito à petição, já que está
passível ao prazo decadencial. Assim, “além de desnecessário, o referido tipo penal da
injúria qualificada por racismo padece de constitucionalidade”, afirmou Roberto
Brayner Sampaio.
Temos, portanto, um caso de antinomia na legislação anti-discriminatória. A antinomia
se estabelece quando diante de um caso concreto existem no ordenamento jurídico duas
diretrizes incompatíveis, às quais não se pode, simultaneamente, conformar-se, seja
porque impõem duas obrigações em sentidos opostos, seja porque uma proíbe o que
uma outra permite e não é, pois, possível se conformar a uma sem violar a outra.
Em 7 de abril de 1997 foi promulgada a “Lei contra a Tortura”, Lei 9.455/97, que
previu:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
237
Constitui crime de tortura:
I – Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe
sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira
pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa.
Nota-se, primeiramente, que, enquanto as alíneas “a” e “b” definem a tortura como meio
ou instrumento para obter algo (“com o fim de...”, “para provocar...”), a discriminação
racial é apresentada como “motivo” ou “razão” (“em razão de...”), mais uma vez
destacando o aspecto subjetivo da discriminação racial, confundida com preconceito, e
abrindo a necessidade de provar o dolo. Diferentemente das outras leis apresentadas,
não aparece a palavra “preconceito” na redação do texto legal, talvez substituído pela
palavra “discriminação”. Ademais, a Lei 9.455/97 não estabelece tratamento ou
penalidade diferenciada para casos em que se consiga provar a razão discriminatória,
diferenciando, apenas, uma subcategoria do tipo penal da tortura: “tortura
discriminatória”.
Tais legislações foram produzidas no Poder Legislativo Federal, no qual a força política
obriga a transformar as oposições de poder, de interesse e de pontos de vista – o
antagonismo social – em uma controvérsia de opiniões que, regulada conforme
procedimentos legislativos, deve conduzir a uma decisão impositiva. Neste campo, não
há poder político neutro superior às partes. Uma pluralidade de interesses e valores,
entre os quais se instaura uma dialética, resulta em uma decisão tomada pela maioria de
votos. O poder legislativo não pode desprezar neste processo a opinião pública e os
grupos de pressão que se manifestam de diversas maneiras.
Faz-se necessário ganhar esta opinião pública para as iniciativas do legislativo,
para impedir reações de descontentamento que só podem arruinar o prestígio e
minar a legitimidade do poder, criando uma oposição, que não deixaria de ser
explorada, entre o país legal e o país real (
PERELMAN, 2004: 202).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
238
Desta forma, o legislador redigirá o texto da lei em termos mais ou menos vagos, mais
ou menos precisos, significando a imprecisão ou vagueza, que o próprio legislador não
deseja tomar uma posição determinada, fixar determinado sentido, seja pelo fato de
estarem ausentes todos os elementos de informação, seja por não haver consenso ou
acordo dos membros do legislativo sobre a maneira de regulá-los. Ou seja, a imprecisão
é função direta do nível de antagonismo no interior do legislativo, da falta de unidade da
vontade do legislador.
(...) como saber se a vontade do legislador coletivo é idêntica à expressa por todos
os participantes dos debates parlamentares? Pode perfeitamente suceder que se o
texto não manteve as precisões fornecidas nos debates, foi porque elas não foram
aceitas pela maioria, que votou um texto mais vago (
PERELMAN, 2004: 205).
Em conseqüência, “o” legislador estenderá o poder de apreciação daqueles que deverão
aplicar as leis, tomando as decisões definitivas em cada caso particular. Diante de tais
dificuldades semânticas, em última instância, é necessário deixar ao poder judiciário a
competência de decidir o modo como a lei será efetivamente aplicada, ao menos até o
dia em que “o” legislador, insatisfeito com a forma como os textos existentes são
efetivamente aplicados, os modificar, obrigando o poder judiciário a levar em conta sua
“vontade claramente manifesta”. Algumas tentativas vêm sendo feitas no sentido de
aperfeiçoar a legislação anti-racista.
Desde de 2000, vem tramitando no Poder Legislativo Federal o Projeto de Lei
3.198/2000 do Estatuto da Igualdade Racial (EDIR), documento legal proposto pelo
agora Senador Paulo Paim. O EDIR trata de direitos à saúde, à educação, à cultura, ao
esporte e ao lazer, à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos
religiosos da população afrodescendente. Segundo seu artigo 1º, o EDIR tem por
objetivo “combater a discriminação racial e as desigualdades raciais que atingem os
afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas desenvolvidas pelo
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
239
Estado”. Diferente das leis anteriores, o Estatuto avança três definições importantes em
seus parágrafos 1º a 3º:
§ 1º. Para efeito deste Estatuto, considera-se discriminação racial toda distinção,
exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem
nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento,
gozo ou exercício, em igualdade de condições de direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer
outro campo da vida pública.
§ 2º. Para efeito deste Estatuto, consideram-se desigualdades raciais as situações
injustificadas de diferenciação de acesso e gozo de bens, serviços e
oportunidades, na esfera pública e privada.
§ 3º. Para efeito deste Estatuto, consideram-se afro-brasileiros as pessoas que se
classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga.
Em nenhum momento se faz uso da palavra “preconceito”. O Estatuto finalmente
apresenta uma definição legal da discriminação racial, definida mais pelos seus efeitos
(anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício de direitos) que por seus
motivos, causas ou razões, ampliando as formas sob as quais a discriminação se exerce
(distinção, exclusão, restrição ou preferência). A discriminação é baseada em
diferenciações sociais como raça, cor, descendência ou origem nacional e não mais
resultante de preconceito de raça, cor, descendência ou origem nacional. Esta definição
é baseada no artigo 1º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial (CERD), adotada pela Assembléia Geral das Nações
Unidas, em 21 de dezembro de 1965 e ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968,
portanto tendo efeitos legais internos. Diz o referido artigo:
Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação racial”
significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça,
cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado
anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em
igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos
campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida
pública.(grifo nosso)
Note-se que as definições são praticamente idênticas a não ser pela palavra
“resultado” na definição da ONU que torna não essencial a constatação de intenção
discriminatória ou valores preconceituosos na definição da discriminação racial. A
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
240
discriminação é definida por seu “objeto ou resultado” não por suas “razões ou
intenções”. O que significaria a ausência exatamente deste termo no EDIR? O relator
teria achado redundante falar em “objeto ou resultado” (como nos termos “mesmo
plano” e “igualdade de condições”), ou, ao contrário, quis excluir este acento nos
“resultados” da definição da discriminação?
O parágrafo 2º define a desigualdade racial de tal forma que a torna resultante da
discriminação racial conforme definida anteriormente. Ademais, acrescenta o aspecto
privado, além de público, das diferenciações injustificadas. Porém, não fica claro o que
se entende por “situações injustificadas de diferenciação” – o que as torna
injustificadas? Parece-nos que é justamente o fato de pressupor a discriminação racial
como causa destas desigualdades.
O parágrafo 3º define o que são afro-brasileiros, para os efeitos jurídicos e
políticos do Estatuto, a partir da auto-classificação (“pessoas que se classificam...”),
tentando, ainda, dar conta da multiplicidade, virtualmente, infinita de formas que esta
auto-classificação pode se dar (“negros, pretos, pardos ou definição análoga”). Todavia,
a expressão “análoga” marca um lugar de indeterminação, deixando vago e, portanto,
aberto e contingente, o que vem a ser esta definição análoga, ou seja, que outras formas
pode assumir a auto-classificação. Além disso, a pretensão de sinonímia
(substitucionalidade) entre os termos, por exemplo, “afro-brasileiros” e “negros” é
problemática. O termo “afro-brasileiro”, portanto, é menos uma categoria específica, do
que uma “meta-categoria” (“mots-valise
231
, “ponto nodal”
232
) que nomeia um conjunto
heterogêneo de categorias inscritas, por sua vez, numa multiplicidade de classificações
231
Cf. PETITOT, 1977 que se reporta ao tempo pontual e bifurcante do lapso constitutivo das mots-valise
que articulam uma série significante marcada por um excesso e uma série significada marcada por uma
falta, numa estrita “síntese disjuntiva”.
232
Segundo TORFING, 1999: 98, os pontos nodais não se caracterizam por uma densidade suprema de
significado, mas por um certo esvaziamento de seus conteúdos, que facilita seu papel estrutural de
unificar um campo discursivo em uma cadeia de diferença e equivalência.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
241
raciais, aberta às decisões singulares (“pessoas que se classificam...”), estabelecendo
entre aquelas categorias uma cadeia de equivalência. A palavra “afro-brasileiro” contém
em si várias palavras e encerra vários significados; irradiando para o campo de outros
sentidos e apontando ou dando chave de compreensão jurídica para outras palavras. Ela
busca anular ou suturar, com efeito, a priori, um lugar de instabilidade produtora e
estruturante. A necessidade de definir os afro-brasileiros decorre da delimitação de
quem são os sujeitos de direito instituídos pelo Estatuto, em especial, nos casos dos
sistemas de cotas. Esta importância dada à auto-classificação parece apresentar uma
preocupação ética de evitar o uso de recursos considerados ilegítimos de classificação
racial, impondo a outrem uma identidade com a qual ele não se identifica. Por outro
lado, é mais uma porta de entrada do subjetivo/contingente pela definição dos conceitos
legais.
O Estatuto da Igualdade Racial regula, ainda o Fundo da Igualdade Racial para a
implementação de políticas públicas que tenham por finalidade promover a igualdade de
oportunidades e a inclusão social da pessoa negra; o direito à propriedade definitiva das
terras ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombos; o direito de acesso ao
mercado de trabalho.
Institui o sistema de cotas em 20% das vagas relativas a cargos e empregos
públicos, aos cursos de graduação das instituições de educação superior. Quanto aos
meios de comunicação, determina a obrigatoriedade de cota não inferior a 20% do total
de atores e figurantes para pessoas negras, nos filmes, programas televisionados, peças
publicitárias e salas cinematográficas.
O projeto de Lei do Estatuto pretende acrescentar ao artigo 20 da Lei 7.716/89 o
item A, tipificando o crime de racismo através da Internet. Procura, também, garantir à
vitima de discriminação racial o direito de acesso à justiça, através da Ouvidoria
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
242
Permanente do congresso Nacional, da Defensoria Pública, do Ministério Público e do
Poder Judiciário em todas as suas instâncias, determinando um Programa Especial de
Acesso à Justiça para a população afro-brasileira, pela qual se incluirá a temática da
discriminação racial e desigualdades raciais no processo de formação profissional das
carreiras jurídicas da Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública, a criação
de varas especializadas para o julgamento das demandas criminais e cíveis originadas de
legislação anti-discriminatória e a adoção de estruturas institucionais adequadas para a
operacionalização das propostas.
Para efeitos de ação civil pública, o projeto do Estatuto prevê que prevalecerá o critério
de responsabilidade objetiva (a obrigação de reparar independentemente de culpa),
inversão do ônus da prova (cabendo aos acionados provar a adoção de procedimentos e
práticas que asseguram o tratamento isonômico sob o enfoque racial) e que as
condenações em dinheiro serão destinadas ao Fundo de Promoção da Igualdade Racial
(DUARTE, 2003:60-61).
Mesmo que ainda não tenha sido aprovado, o Projeto de Lei do Estatuto da Igualdade
Racial representa um esforço de superação das dificuldades (algumas de natureza
semântica e/ou procedimental: lacunas, antinomias e ambigüidades) experimentadas
pelas outras leis anti-discriminatórias, integrando, num único mecanismo legal, o
conjunto de iniciativas não apenas de sanção legal à discriminação, mas de políticas
públicas de promoção da igualdade racial, enfrentando, assim, não apenas a
discriminação racial, mas, também, a desigualdade racial.
Merecem destaque, também, outros dois projetos de lei apresentados pelo Senador
Paulo Paim. O Projeto de Lei do Senado no. 013 de 2004 altera o Decreto-Lei no. 2.848,
de 07 de dezembro de 1940, que cria o Código Penal Brasileiro, incluindo a previsão de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
243
agravantes aos crimes praticados por motivo de racismo. O artigo 61, inciso II, seria
acrescido da alínea “m”:
Artigo 61 – São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não
constituem ou qualificam o crime.
II – Ter o agente cometido o crime:
m) por motivo de discriminação, preconceito de raça, cor, etnia ou religião.
Mais uma vez, não é estabelecida uma distinção entre discriminação e preconceito,
sendo, ambos, apresentados como motivo da ação criminosa. A discriminação deixa de
ser a própria ação concreta e passa a ser entendida como sentimento. No texto de
justificação do PL no. 013, a proposta teria por objetivo o “enquadramento do fator
subjetivo que impele a ação concreta de indivíduo que pratica um crime, tendo como
origem seu sentimento preconceituoso ou racista”. A discriminação é fator subjetivo e
não ação objetiva.
O Projeto de Lei do Senado no. 309 de 2004 define os crimes resultantes de
discriminação e preconceito racial, de cor, etnia, religião ou origem, revogando a Lei
7.716/89. Segundo o texto da justificação, o art. 20 da Lei 7.716/89, acrescentado pela
Lei 9.459/97, teria rompido parcialmente com o casuísmo das leis anti-racistas
anteriores. A estratégia do casuísmo se efetua pela seleção de um número finito de
situações que caracterizariam o racismo penalmente relevante. O artigo 20 teria
estabelecido um tipo genérico de discriminação racial.
Contudo, permaneceria a questão de saber como um ato de discriminação racial
deveria ser punido caso, analisado seu aspecto “substantivo”, enquadrar-se num outro
tipo penal, como, por exemplo, o crime de lesões corporais. Seria possível classificá-lo
conforme o caput do artigo 20 da lei 7.716/89? Ainda segundo o texto da justificação do
PL no.309 de 2004, alguns autores (não citados) afirmam que “a motivação” racista,
como elemento subjetivo que dá especial coloração aos crimes raciais, não é suficiente
para decidir qual é a conduta especial”. Isso só seria possível através do detalhamento
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
244
da conduta. Novamente, destaca-se a “motivação”, como elemento subjetivo, como
definidor do crime de racismo. Porém, o detalhamento da conduta concreta é que
permite decidir acerca de outras disposições penais, não acerca do racismo. “resultado:
um sem-número de condutas, embora facilmente identificadas no senso comum como
prática de racismo, deixam de caracterizar a infração do caput do art. 20 da Lei 7.716,
de 1989, uma vez que sujeitas a disposições penais mais específicas”.
Portanto, o elemento subjetivo da motivação definiria o gênero, enquanto os
elementos objetivos da conduta, as espécies. Em vista disto, o projeto de lei adota a
seguinte “estratégia criminalizadora”: cria um tipo genérico de crime racial (art. 1º.),
descrevendo mais detalhadamente o aspecto objetivo da ação discriminatória por
acréscimo de outros verbos típicos: “negar”, “impedir”, “interromper”, “constranger”,
“restringir”, “dificultar” (art. 2º.). Estes verbos, segundo o texto, seriam mais conformes
com as manifestações do racismo na sociedade brasileira, “geralmente sub-reptícias,
insidiosas, veladas e não explicitamente acusativas”. Em seu primeiro parágrafo, o texto
de justificação afirma que o racismo, no Brasil, é negado por diversos discursos que
pregam a plena assimilação do “negro” e do “mulato” à cultura dominante, que a
discriminação racial não é assumida como rotina, mas, no máximo, como prática
eventual ou episódica, ou não é confessada como sentimento pessoal, estando sempre
em outrem.
Porém, se o racismo nacional tem estas características, é menos devido aos
acontecimentos expressos pelos verbos especificadores do que pela identificação da
motivação definidora do racismo genérico: “negar, impedir, interromper, restringir,
constranger ou dificultar por motivo de preconceito racial...”. Sem motivação não há
discriminação, “apenas” lesão corporal, maus tratos, ameaça, abuso de autoridade ou
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
245
homicídio (art. 2º. §2º. I-IV e §3º.). Daí a importância do elemento verbal para a
identificação do racismo.
[...] a ofensa verbal que acompanha a maioria dos atos de discriminação [é tida]
como a única evidência disponível para o queixoso de que a discriminação sofrida
por ele é realmente de cunho racial, e não apenas de classe, como é muito comum
no Brasil (GUIMARÃES, 2002:169).
Parece-nos, ao contrário do que afirma Guimarães e Paim, que a problemática da
legislação penal anti-racista é menos uma questão da adequação às manifestações do
racismo nacional, e mais de definir ou demarcar quais as formas de sua manifestação
que são criminalizáveis, passíveis de serem definidas num tipo penal: a discriminação
racial. É o que Paim chama “estratégias de criminalização”. Não devemos, contudo,
confundir o racismo com suas manifestações discriminatórias “criminalizáveis”, mesmo
que sub-reptícias, insidiosas e veladas. Daí que a legislação não consiga fugir de um
certo casuísmo, na medida em que o que torna uma ação criminalizável como racismo,
para além de todo caso particular, apareça como um fator subjetivo. O casuísmo é uma
tentativa de demarcar as formas concretas (elementos objetivos) que pode assumir
aquele fator subjetivo (elemento subjetivo). De delimitar a unidade de dispersão
daquelas formas concretas.
Estas questões estão relacionadas à teoria do tipo penal. Tipo é o conjunto dos
elementos descritivos do crime contidos na lei penal, é o ponto de partida de toda
construção jurídico-penal objetiva ou subjetiva, partindo-se, sempre, do conceito de
figura típica: a antijuridicidade e a culpabilidade precisam ser apreciadas sob o aspecto
do tipo. Não basta que o fato seja antijurídico. Exige-se que se amolde a uma norma
penal incriminadora. Daí a questão da adequação típica, que consiste na conduta
subsumir-se no tipo penal (JESUS, 2002: 269-270).
Ao descrever o delito, a lei penal deve restringir-se a uma definição meramente
objetiva, precisa e pormenorizada. O melhor exemplo de descrição típica simples e
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
246
correta é o crime de homicídio: “Matar alguém”. Tal tipo só descreve os elementos
objetivos, materiais, da conduta. Os elementos objetivos do tipo se referem à
materialidade da infração penal, no que concerne à forma de execução, tempo, lugar etc.
São também chamados descritivos.
A forma do tipo é composta de um verbo, em geral, transitivo, no modo infinitivo,
que expressa a conduta: “matar alguém”, “discriminar alguém”, “constranger alguém”,
“ofender a honra”. O verbo é considerado o núcleo do tipo, a sua parte mais
significativa. O verbo, muitas vezes, não indica uma conduta em si injusta, tornando-se
tal em face de outros elementos do tipo. Em alguns casos, além de conter elementos
objetivos, o tipo possui elementos normativos ou subjetivos. Segundo Deleuze (1999), o
modo infinitivo do verbo é a expressão do sentido, da transformação incorporal, do
acontecimento. Ao invés de uma mera designação de um estado de coisas, o verbo
infinitivo expressa um acontecimento, no plano do sentido, não meramente da
designação, transformação incorporal na superfície, não diretamente nos corpos. Esta
concepção é muito distante do empirismo ingênuo apresentado por Jesus, como se verá
a seguir. “Matar”, “constranger”, “ofender”, “discriminar” não são perceptíveis pelos
sentidos, mas expressos pelo “sentido”, assim como “florescer” ou “verdejar”.
Por exemplo, a percepção da morte como estado de coisa e qualidade ou o
conceito de mortal como predicado de significação, permanecem extrínsecos
(destituídos de sentido) se não compreendem o acontecimento de morrer como o
que se efetua em um e se exprime no outro (
DELEUZE, 1999:148).
Efeitos de superfície, eles têm uma “objetividade” completamente distinta. O
sentido não existe nem nas coisas nem no espírito, nem como existência física nem
como existência mental. É atributo das coisas, mas expresso da proposição, não
existindo fora dela. O verbo “típico” no infinitivo – “matar”, “discriminar” – expressa
uma constante, verdade eterna, nem passada nem futura, que se distingue de suas
efetuações temporais: “x
1
matou y
1
, no tempo t
1
...”, “x
2
discriminou y
2
no tempo t
2
...”; e
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
247
dos conceitos de “homicídio” e “discriminação”. As relações descritas pelos verbos,
conforme suas valências, estão associadas a morfologias espaço-temporais bem
definidas. Toda morfologia é o resultado de uma situação dinâmica de conflito entre
actantes que devem repartir entre si um espaço. Tal situação está associada a entes
geométrico-algébricos que são singularidades isoladas de um potencial que define uma
repartição dos espaços em domínios ou actantes. Aqueles entes correspondem sempre à
categoria gramatical do verbo (
THOM, 2004: 170-171). Por exemplo, a discriminação
refere-se ao acontecimento “discriminar”. Ao contrário, o preconceito não está
relacionado à qualquer acontecimento, senão como modo ou causa: “pensar
preconceituosamente”, “agir” por preconceito. No capítulo 7, veremos o funcionamento
desta “lógica do sentido” nas relações raciais. Em outro lugar que não aqui, será
fecundo fazer uma análise semântica dos verbos “típicos” da legislação anti-racista,
quem sabe constituindo uma matriz valencial
233
dos verbos “típicos”.
Nos elementos típicos normativos cuida-se de pressupostos do injusto típico que
podem ser determinados através de juízos de valor da situação de fato:
“indevidamente”, “sem justa causa”, “dignidade”, “honra”, “direitos”. Para
doutrinadores como Jesus, são “noções que só são compreensíveis espiritualmente, ao
contrário daquelas, que podem ser compreendidas materialmente”. Portanto, são menos
objetivas que as anteriores.
O tipo, ainda segundo Jesus, não deixa de ser objetivo quando descreve
particularidades e modalidades da conduta, determinados estados e acontecimentos que
devem constituir a base da responsabilidade penal do agente, suscetíveis de serem
233
Uma matriz valencial é um esquema que explicita a valência de um verbo. Implica não apenas o
número de lugares vazios (argumentos) que ele admite, mas também as relações sintáticas e propriedades
semânticas. Cf. BORBA, 1996.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
248
espacial e temporalmente perceptíveis pelos sentidos. Vê-se aqui que a noção de
elemento objetivo padece de um empirismo ingênuo.
Em vista disto, o elemento típico subjetivo é entendido como referente aos estados
anímicos ou psicológicos do sujeito. Sua intenção, objetivo ou propósito é apresentado
como elemento psicológico da ação, estados anímicos que discriminam, subjetivamente,
o justo do injusto: “com o fim de”, “por motivo de”. “Sem a intenção, a palavra é quase
letra muda”; “(...) em determinadas hipóteses um mesmo fato é permitido ou proibido
pelo Direito, segundo a intenção do autor ”; “(...) a ausência de tais elementos subjetivos
enseja a atipicidade do fato”. Estas citações de Jesus mostram o quanto o elemento
subjetivo pode ser importante para definição de um tipo penal. Porém, tal concepção
apresentada padece de um psicologismo que distingue o elemento subjetivo do objetivo.
Devido à combinação com o empirismo ingênuo, o psicologismo do elemento subjetivo
é acompanhado de um certo ceticismo que o coloca numa posição desvantajosa em
relação aos elementos típicos objetivos. O elemento subjetivo aparece como uma certa
imperfeição na definição do tipo. Após afirmar que a lei penal deve restringir-se a uma
definição meramente objetiva, o autor assevera: “Todavia, muitas vezes a impaciência
do legislador leva-o a inserir no tipo elementos referentes ao estado anímico do sujeito”
(JESUS, 2002:274). Esta “imperfeição” deve-se ao fato de que a intenção sempre se
instala na diferença entre ser e aparecer, permanecendo, por natureza, duvidosa,
suspeita. A esta concepção do elemento subjetivo do tipo penal chamaremos
“subjetivismo psicologista”. Ao contrário, “discriminar” é tão objetivo quanto “matar”,
ainda que possa ser, penalmente, menos lesivo.
A reforma penal brasileira de 1984 foi inspirada na Teoria Finalista da Ação, com
a conseqüente alteração da Parte Geral do Código Penal. Para a Teoria Finalista da
Ação, a ação humana seria composta de movimento corpóreo ou ausência deste,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
249
dominado ou não pela vontade, sempre dirigida a uma finalidade, não se podendo retirar
da ação humana o seu objetivo. Desde o início a ação humana seria indivisível,
devendo-se levar em conta a sua integralidade, em sem aspecto “interno” e “externo”
(SILVA, A., 2000: 61).
Segundo o finalismo, o fato natural é a ação finalisticamente direcionada a uma
vontade (típica ou extra-típica), entrando, desta forma, em um tipo penal com a sua
finalidade (intencionalidade). Por isso o “dolo” passa a ser o elemento subjetivo de
todos os tipos penais: é a vontade consciente de realizar a conduta típica. Por isso, se o
agente, por erro, sem querer, inscrever-se nos elementos do tipo, será afastado o “dolo”:
o erro de tipo vai afastar o tipo penal subjetivo. Nesse caso, temos um fato
objetivamente típico e subjetivamente atípico. O que está em questão, portanto, é a
objetividade/subjetividade típica do racismo: “o que é o racismo?” (tipicidade), “quão
objetivo é o sujeito racista?”, “como atestar o motivo ou a intenção do sujeito de uma
ação discriminatória?”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
250
Capítulo 6
PSICOPATOLOGIAS DAS RELAÇÕES RACIAIS COTIDIANAS NO BRASIL: O NÃO-DITO.
(...) descobriram a expressão adequada para designar sua atividade
quando afirmam que só lutam contra “frases”. Porém se esquecem de
acrescentar que a estas frases por eles combatidas não sabem opor
mais que outras frases e que, ao combater somente frases deste
mundo, não combatem de modo algum o mundo real existente.
Karl Marx, A Ideologia Alemã.
Aos que desprezam o corpo quero dar o meu parecer. O que devem
fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do
seu próprio corpo e, por conseguinte, ficarem mudos.
Nietzsche
Não se pode decidir se um enunciado é racista ou não o examinando
isoladamente de seu contexto discursivo, pois é mais uma questão de “discurso” que de
“linguagem”, isto é, diz respeito aos usos efetivos da linguagem entre determinados
sujeitos humanos para a produção de efeitos específicos. Dito de outra forma: o
acontecimento discursivo racista é resultado mais do ato ilocucionário
234
que do ato
locucionário.
Um mesmo fragmento de linguagem (locução) pode ser racista em um contexto
(ilocucionário) e não em outro. O racismo tem, em geral, o seu próprio léxico (“raça”,
miscigenação, degeneração, evolução, branqueamento...), mas o que há de mais
ideológico nele são os interesses (não necessariamente individuais) de poder (pessoal ou
institucional) a que ele serve e os efeitos políticos que gera. É a partir desses elementos
que podemos identificar uma situação discursiva como racista ou não.
Do mesmo modo, a ausência (não-dito) daquele léxico não significa,
necessariamente, a ausência da ideologia ou prática racista. A presença (dito) ou
ausência (não-dito) do léxico racista pode caracterizar ou não um discurso racista,
dependendo dos objetivos políticos que efetiva através daquela presença ou ausência.
234
Austin define o ato de fala de ilocucional como aquele que se faz falando, aquilo que se faz pelo
próprio fato de falar. Prometer, ordenar, perguntar, felicitar, insultar são atos ilocucionais.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
251
Com Ducrot, podemos dizer que o problema do não-dito
[...] é saber como se pode dizer alguma coisa sem, contudo, aceitar a
responsabilidade de tê-la dito, o que, com outras palavras, significa beneficiar-se
da eficácia da fala e da inocência do silêncio. (...) A significação implícita, por sua
vez, pode, de certo modo, ser posta sob a responsabilidade do ouvinte: este é tido
como aquele que a constitui por uma espécie de raciocínio, a partir da
interpretação literal da qual, em seguida, ele tiraria, por sua conta e risco, as
conseqüências possíveis (
DUCROT, 1977: 20).
Resulta daí a utilização pelo discurso racista de uma diversidade de recursos tais
como implícitos, denegações, discursos oblíquos, figuras de linguagem, trocadilhos,
chistes, frases feitas, provérbios, piadas e injúria racial, micro-técnicas de poder,
funcionando num registro vulgar e passional. Esta formação discursiva constitui uma
situação onde inexiste um discurso racista sistemático e explícito (“sério”),
descaracterizando a “intenção” do discriminador
235
. Trata-se, pois de abordar o não-dito
como tecnologia de poder, que produz corpos dóceis, sujeitos “cordiais”.
Para descrever estas micro-técnicas de poder, será útil a distinção conceitual
feita por Ducrot (1977) entre “significação” e “sentido”. A “significação” aparece como
o significado “literal” do enunciado produzido pelo ato locucionário (componente
lingüístico). O “sentido” é produzido pelos efeitos contextuais (componente retórico)
que fazem com que uma mesma significação venha a ter sentidos diferentes.
Por exemplo, nos enunciados “Tem alguém falando na sala de aula” ou “Você
está pisando no meu pé”, sua significação é seu conteúdo constativo, isto é, a afirmação
de que “Existe alguém que está falando na sala de aula” ou “Você está pisando no meu
pé”. Contudo, seu sentido vai depender de quem fala e com que objetivo,
desempenhando que papel. Se no primeiro caso, o sujeito da enunciação for uma
professora, e o sujeito do enunciado (“alguém”) for um aluno, o sentido do enunciado
será a ordem “Cale-se!”. No segundo caso, na maioria dos contextos, não faço apenas
235
“Entretanto, nos dirão que não há intenção nem desejo de humilhá-lo. Estamos de acordo; mas é
justamente esta ausência de intenção, esta desenvoltura, esta despreocupação, esta facilidade em fixá-lo,
aprisioná-lo, primitivá-lo, anticivilizá-lo que é humilhante.” (FANON, 1983:28)
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
252
uma afirmação ou asserção, mas peço, talvez ordene, que meu interlocutor saia de cima
de meu pé. Esses exemplos são o que Searle chama de “atos de fala indiretos”, casos em
que um ato ilocucionário é realizado através de um outro: um pedido ou uma ordem,
através de uma afirmação. O falante comunica ao ouvinte mais do que realmente diz,
contando com informação de base, lingüística e não lingüística, que compartilhariam, e
com as capacidades de racionalidade e inferência que teria o ouvinte.
Outra maneira de distinguir a significação e o sentido é que, enquanto a primeira
é “ruidosa”, o segundo é “silencioso” (não-dito, pressuposto). Como veremos mais
adiante (capítulo 7), nunca digo o sentido daquilo que digo.
Em termos lógicos, a significação é a condição de verdade de uma proposição,
ou seja, o conjunto das condições sob as quais uma proposição “seria” verdadeira. A
condição de verdade não se opõe ao falso, mas ao absurdo: o que é sem significação, o
que não pode ser verdadeiro nem falso. Uma proposição falsa tem uma significação e
um sentido.
Em um enunciado, o sentido, vetor semântico, é a intersecção entre significação
(carga semântica) e força, cuja direção e sentido constituem o valor da força. “Formar
uma intenção” é também “chegar a um julgamento”. O sentido, como intersecção de
força e significação, possui um valor ou componente avaliativo, resultante de um ato de
julgamento, na formação da intenção ou vontade. Realizar a análise do não-dito, como
estigmatização, é:
[...] restituir-lhe suas possibilidades de abalar fisicamente; é dividi-la e reparti-la
ativamente no espaço; é tomar as entonações de uma maneira concreta absoluta e
devolver-lhes seu poder de ferir e de realmente manifestar alguma coisa; é voltar-
se contra a linguagem e suas origens baixamente utilitárias, suas origens de fera
encurralada, puramente alimentares; é, enfim, considerar a linguagem sob forma
de Encantação (
ARTAUD apud LINS, 1999:17).
A análise do não-dito não deve afastar a possibilidade do mal-entendido ou do
mal-dito. Ao contrário, é essa possibilidade, intrínseca ao discurso, que sustenta o não-
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
253
dito. Na impossibilidade de se mal-entender ou mal-dizer, seria impossível o recurso ao
não-dito. Isso é assim, pois a condição de existência do mal-entendido e do mal-dito é a
mesma do não-dito: há algo na situação de enunciação que produz o sentido rejeitado,
renegado. A diferença entre estes ditos estaria em atestar o caráter involuntário e a fonte
desse sentido rejeitado (respectivamente, a recepção (mal-entendido), a emissão (mal-
dito) ou a prática extralingüística (não-dito)).
No racismo “cordial”, metafísica da vida cotidiana, o terror racial toma a forma
de ironia ou sarcasmo; a tragédia racial torna-se comédia ou humorismo: racismo
espirituoso. Esta fórmula é muito bem expressa por Sartre acerca do anti-semitismo.
Vale a pena citá-lo:
Sabem [os anti-semitas] que seus discursos são levianos, contestáveis; mas
divertem-se com ele: ao adversário é que incumbe usar seriamente as palavras,
pois acredita nas palavras; os anti-semitas têm o direito de brincar. Gostam
mesmo de brincar com o discurso, porquanto, dando razões chistosas, atiram o
descrédito sobre a seriedade do interlocutor; deliciam-se com a má-fé, pois visam,
não persuadir mediante bons argumentos, porém intimidar ou desnortear
(
SARTRE, 1960:11).
Deve-se destacar, na citação de Sartre, a diferença entre, de um lado, “persuadir” e
“intimidar”, como propósitos ilocucionários distintos, conforme a terminologia de
Searle, por outro lado, entre “seriedade” e “brincadeira”. Mas Sartre vai mais além, e
apresenta a noção de “razões chistosas” que realiza a síntese disjuntiva das duas séries
afetivas, dos dois propósitos ilocucionários. Como funciona esta síntese é o que
tentaremos ver neste e, sobretudo, no próximo capítulo.
No humor, o que é impessoal e pré-individual são os acontecimentos, livres e
móveis, o que é mais profundo do que todo o fundo é a superfície, a pele. O
antagonismo e o sentido acabam com sua relação de oposição dinâmica, para entrar na
co-presença de um “gênese estática”, como não-senso da superfície e sentido que
desliza sobre ela. O humor é a coextensividade do sentido e do não-senso, é a arte das
superfícies e das dobras, dos acontecimentos móveis e do ponto aleatório sempre
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
254
deslocado, suspendendo-se toda significação, designação e manifestação, abolindo-se
toda profundidade trágica e altura dialética ou dialógica.
6.1 O insulto racial.
O insulto racial visa a (re)marcar a fronteira, a distância social (identidade,
status), mas que, aqui, se vê ameaçada de ser apagada, rasurada, trans-posta, enfim,
trans-gredida. O insulto, assim como o discurso espirituoso, “significa a violação de um
tabu, ou seja, consiste na expressão de nomes, atos ou gestos socialmente interditos”
(LEACH apud GUIMARÃES, 2002:171), que expressam uma opinião depreciativa de
uma pessoa ou grupo. Contudo, essa violação se dá na forma mais explícita do que no
discurso espirituoso, ainda que a agressividade permaneça no plano simbólico, ou seja,
sem danos fisiológicos
236
. O insulto racial funciona como tentativa de legitimar uma
hierarquia social baseada na idéia de “raça”.
Os negros, por exemplo, estão sujeitos a insultos diretos ou indiretos, que visam
confirmar a definição cultural de sua inferioridade “inata” e, talvez, mais
significativamente, procuram lembrá-los continuamente de tal inferioridade,
fazendo-os assimilar o significado de baixa estima social que lhes é devotada
(
FLYNN apud GUIMARÃES, 2002:172).
O insulto, assim, vem lembrar o lugar (identidade) do insultado e a distância
social que o separa do agressor, que ataca a integridade social do transgressor.
Encontramo-nos no campo da humilhação e do dano moral.
Contudo, o insulto não precisa referir-se a algum atributo objetivo da pessoa
insultada – a função do insulto não é acusatória, mas evocatória, ou seja, evoca um
estigma, papel socialmente desvalorizado, equiparando o alvo do insulto ao mesmo
estatuto social: não é preciso ser homossexual para se ofender com o insulto de “viado”,
236
A agressão simbólica, como comportamento socialmente ritualizado, tem a tripla função de suprimir as
lutas corporais no interior de um grupo social, consolidar a unidade do grupo e opor esse grupo, como
entidade independente a outros grupos semelhantes. A agressão simbólica visa, ainda, a evitar os riscos da
luta corporal, liberando a pulsão agressiva: os adversários medem as suas forças sem se ferirem
mutuamente (cf. LORENZ, 1974: 71-96).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
255
“bicha”; nem precisa ter namorada ou esposa para ofender-se com “corno”; ou ter por
mãe uma prostituta para sentir-se agredido por “filho da puta”; nem ser negro, enfim,
para ofender-se com “não faça isso; isso é coisa de negro”. É neste sentido que o
insulto, assim como as demais formas de discurso analisadas aqui, não exercem apenas
uma função evocatória, mas também provocatória: meio de provocação, lugar de
agitação das forças, o insulto provoca algo ou alguém, algo em alguém, algo a alguém...
Assim como no enunciado do professor: “tem alguém falando na sala de aula”,
os enunciados “negro sujo!” e “macaco!” não são enunciados assertivos, mas injuntivos,
ou seja, ainda que não se expressem pela forma gramatical do imperativo, se efetivam
como ordens “fique no seu lugar!”. É como nos casos da pergunta retórica: “você sabe
com quem você está falando?”, ou na interpelação: “Ei, você aí...”. No primeiro caso,
não se trata de uma interrogação. No segundo caso, o uso do vocativo fixa um lugar ao
mesmo tempo que, conforme o contexto, ordena: “Pare!” ou “Venha aqui!”.
Ademais, a própria revolta contra o insulto reforça os estigmas expressos: o
ofendido compartilha da mesma linguagem do ofensor
237
, na medida em que pertencem
ao mesmo ambiente social. Como veremos mais adiante, este fato vai possibilitar a
inversão da acusação de racismo, fazendo da pretensa vítima o preconceituoso,
complexado que se ofende com a simples menção à sua cor, por exemplo.
Por outro lado, quando o alvo do insulto “coincide” com o próprio papel ou
identidade estigmatizada, “junta-se a fome com a vontade de comer”. É o que ocorre
quando se ofende um negro em referência à sua cor, origem étnica ou pertencimento
cultural. Este tipo de injúria, segundo tipologia proposta por Guimarães (GUIMARÃES,
2002:173), é do tipo sintética, podendo ser usado sem o acompanhamento de adjetivos
237
“Uma certa solidariedade prática está embutida nas estruturas de qualquer linguagem compartilhada,
mesmo que grande parte dessa linguagem possa ser permeada pelas divisões de classe, gênero e
raça”(EAGLETON, 1997:26).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
256
ou qualificativos: “Negro!”, “Preto!”, passam a ser a síntese de toda uma constelação de
estigmas referentes à posição ocupada nas relações raciais. Uma variante deste tipo é o
emprego dos diminutivos: “negrinho”, “pretinha”; aumentativos: “negrona” ou
corruptelas: “nêgo”, “neguinho”, “pretim”... Este tipo de insulto racial busca a simples
nominação do Outro, de modo a lembrar a distância social ou justificar uma interdição
ao contato: “Não falo com preto. Prefiro esperar o gerente”. Às vezes, nem mesmo a
palavra-estigma precisa ser pronunciada, apenas a segregação é evocada: “Você não
deveria estar aqui; qualquer um poderia estar aqui, menos você”. Na maioria dos casos,
segundo pesquisa de Guimarães
238
, tais termos insultuosos vêm acompanhados de
outros termos que procuram acompanhar a cor do agredido com outra dimensão do
estigma: “negro safado”, “negro vagabundo”, “preto sujo”, “preto fedorento”.
Outro tipo comum de injúria racial é a animalização do Outro ou implicação de
incivilidade que atribui incivilidade (“bugre”, “selvagem”) ou a animalidade ao
ofendido principalmente através de termos como “macaco” e “urubu” ou “bicho preto”,
além de expressões como “lugar de nêgo é na jaula”, usados indistintamente para ambos
os sexos. Porém, quando se trata de mulheres, além de injúrias raciais, acompanha, às
vezes, o insulto sexual, atribuindo devassidão moral: “vaca”, “galinha” ou “cadela”.
Podem, ainda, ser usados outros termos para ofender sexualmente, além de atribuir
sujeira: “filhas de uma barata preta, vagabunda”.
Um terceiro tipo de insulto é a acusação de anomia social, em termos de a)
conduta ilegal ou delinqüente: “ladrão”, “folgado”, “safado”, “sem-vergonha”,
“aproveitador”, “pilantra”, “maconheiro”, “traficante”; b) imoralidade sexual:
“vagabunda”, “bastardo”, “puta”, “filho-da-puta”, “gigolô”, “sapatão” ou “viado”; e c)
estigmatização religiosa: “macumba”, “macumbeira”, “despacho”.
238
Alguns dos exemplos apresentados aqui são tirados de nossa própria pesquisa ou experiência.
RAÇA E JUSTIÇA
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257
Um quarto tipo é a invocação da pobreza ou da inferioridade social do Outro,
através de a) termos referentes a tal condição: “não falo com gente de sua classe”,
“maloqueira”, “desclassificado”, “analfabeto”; b) referência a uma origem subordinada:
“favelado”, “lugar de negro é na senzala”, “escravo” c) uso de diminutivos: “negrinho”
ou “negrinha”; d) acusação de impostura quanto ao status social: “nêgo besta”, “nêga
metida”. Um quinto tipo é a acusação de sujeira: “fedida”, “merda”, “podre”,
“fedorenta”, “nojenta”, “suja”, “porqueira”. Enfim, a evocação de defeitos físicos ou
mentais: “queimada”, “cabelo ruim”, “cancerosa”, “maldito”, “desgraça” e “raça”
Guimarães destaca, ainda, que o insulto racial não ocorre apenas, como acredita
o senso comum, no Brasil, numa situação de conflito, ou seja, de ruptura de uma ordem
formal de convivência social. O insulto racial pode ocorrer durante o conflito, mas, ao
contrário, pode ocasionar o conflito, podendo ser uma arma de última instância ou um
primeiro trunfo a ser sacado. O que motiva o insulto racial e a ordem em que ele aparece
são, segundo o autor, elementos decisivos para a análise.
Freqüentemente, os termos injuriosos ocorrem em situações definidas
ambiguamente pelo agressor, situando-se entre a intimidade da brincadeira
(proximidade expressa pelo insulto ritual que simboliza a ausência de formalidade e a
intimidade entre os membros de um grupo), sendo utilizado de forma que possa ser
interpretado como brincadeira, e o distanciamento expresso pelo conteúdo semântico
das palavras ofensivas.
O insulto racial pode aparecer em cinco tipos de situações: 1) quando a relação
entre as pessoas envolvidas está bastante desgastada por algum motivo, seja de
convivência vicinal ou familiar, seja de ordem contratual ou de qualquer outra; 2)
quando durante uma disputa qualquer, esgotados os meios de convencimento e o uso de
ameaças plausíveis, diante da recusa ou falta de assentimento da vítima, usa-se da
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injúria como “último” recurso; 3) quando uma falha involuntária da vítima provoca o
ódio do agressor; neste caso é como se o agressor manifestasse como insulto, devido a
um fato desencadeador, uma predisposição ou animosidade racistas; 4) quando não há
nenhum conflito e o insulto serve como meio de demarcar a separação racial entre
agressor e vítima, reivindicando uma segregação social; 5) quando o agressor vê-se na
posição de ser corrigido ou repreendido por ter cometido uma falha e, para reverter a
posição, agride verbalmente a vítima.
Nos quatro últimos tipos, o insulto é considerado por Guimarães como uma
forma ritual de ensinar a subordinação, através da humilhação, mais que uma arma de
conflito. Todos estes tipos podem vir acompanhados, em seguida, de uma campanha
sistemática de humilhação pública, em geral, na vizinhança ou no local de trabalho.
Apesar dos mecanismos sociais analisados, o estigmatizado ou discriminado,
ridicularizado ou ofendido, parece afetado por um mal absoluto, quase abstrato, de
fisionomia espiritual. Pelo insulto ou ridicularização, o social torna-se lugar da
manifestação do “racismo” como promiscuidade do discurso, aparentemente, sem
nenhum proveito para a realidade, sem nenhum propósito ou função sociais aparentes, e
que produz um delírio ou devaneio comunicativo, “uso lúdico” da linguagem que
expressa uma demanda sádica.
A injúria, como vimos nos exemplos anteriores, também tem como fonte
lingüística as figuras de linguagem (metáforas, metonímias, eufemismos), os
trocadilhos, provérbios, piadas reorientando-os para um contexto de maior
agressividade. Parece, neste sentido, haver mais uma diferença de grau ou contexto do
que de natureza ou conteúdo entre esses elementos, tornando controversa, em alguns
casos, a distinção entre a piada, a injúria e a admoestação racista. Por exemplo:
1. “Só podia ser... é negro por derradeiro”
2. “Pensa que negro é gente”
RAÇA E JUSTIÇA
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259
3. “Sabe quando negro é gente? R. – Quando está no banheiro. Pois diz: tem
gente!
4. “Negro quando não caga na entrada caga na saída”
5. “Negro de alma branca”
6. “Cabelo ruim”
7. “Cabelo de bombril”
8. “Nariz de bujão”
9. “Azeitona preta...”
10. “Macaco!”
11. “Lugar de nêgo é na jaula!”
12. “Suco de pneu!”
13. “Negro Safado!”
14. Qual a diferença entre uma mulher preta grávida e um carro com o pneu
furado? R. – Nenhuma. Ambos esperam um macaco”
15. Como se chamaria a filha de Pelé com Xuxa? R. – Grasha”.
16. Qual a diferença entre o preto e o câncer? R. – É que o câncer evolui.”
17. Qual a diferença entre poluição e solução? R. – Poluição é jogar um preto
no mar; solução é jogar todos”.
6.2 O discurso espirituoso: piadas, provérbios e trocadilhos.
Vamos tratar, agora, de diversos discursos como as piadas, os chistes, os gracejos,
os trocadilhos etc. dentro da categoria genérica de discurso espirituoso. Ainda que haja
diferenças no funcionamento sócio-lingüístico daqueles diversos discursos, tais
diferenças não são relevantes para os propósitos deste trabalho.
O discurso espirituoso tem um efeito similar ao que Freud (1996/1905) constata
no chiste: tendemos a atribuir ao “pensamento” (conteúdo) nele inscrito o benefício de
nos ter agradado na “forma” (expressão) de sua inscrição, em seguida, não tendemos a
criticar aquilo que nos divertiu, o que anularia e desperdiçaria a fonte de um prazer. O
“invólucro” chistoso ou espirituoso suborna e confunde nossa capacidade crítica. O uso
de métodos cômicos com propósitos hostis pode tornar o interlocutor, possivelmente
indiferente ou crítico, cúmplice ou correligionário de seu preconceito, ódio ou desprezo,
aliado diante do qual o objeto cômico
239
do dito espirituoso deve sentir vergonha, sendo
239
Por provocarem o riso, o cômico e o espirituoso são conceitos muitas vezes considerados
intercambiáveis. Porém, como chamara a atenção Bergson (...), “será cômica talvez a palavra que nos
faça rir de quem a pronuncie, e espirituosa quando nos faça rir de um terceiro ou de nós”.
RAÇA E JUSTIÇA
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260
o interlocutor subornado com a dádiva do prazer produzido. Como veremos adiante, é
no invólucro e em seu respectivo efeito cômico que o discriminador se
desresponsabiliza do conteúdo: “eu apenas queria fazer rir” – é o que Freud chamou
“princípio da confusão das fontes de prazer”. Onde a argumentação, discurso “sério”,
tenta aliciar ou cooptar a crítica do interlocutor, o discurso espirituoso se esforça por
excluí-la do campo, (re)produzindo, assim, estigmas através da ridicularização. Que o
leitor não nos tome como advogando o pensamento sério ou “politicamente correto”
como pensamento mau-humorado e sem graça. O discurso espirituoso também pode ter
por propósito o ataque contra os valores, verdades e instituições, podendo reforçar ou
atacar um argumento na produção de um discurso polêmico. Pode, assim, ter fins tanto à
esquerda quanto à direita, tanto emancipatórios quanto reacionários. É o caso, por
exemplo, das sátiras e das charges, como os exemplos abaixo do chargista Pestana:
Desse modo, quando rimos de nosso interlocutor (porque ele fez ou disse algo ridículo), nós: a) não nos
identificamos com ele e b) somos superiores a ele. Já quando rimos com nosso interlocutor (porque ele
disse algo espirituoso acerca de si mesmo, de nós ou de um terceiro), nós: a) nos identificamos
com ele e b) não podemos ser, portanto, nem superiores nem inferiores a ele. Isso pode ocorrer porque,
enquanto na relação cômica bastam dois elementos (observado e observador) entre os quais se exige
distanciamento, na espirituosa há de haver três: o observador comunica aquilo que sabe do observado
(que, independente de ser ele próprio ou o receptor da mensagem, é funcionalmente o segundo elemento
na relação) a um terceiro. O observador se torna, portanto, o emissor de uma mensagem sobre a situação
ou o indivíduo cômico (o observado) que visa a aliciar o receptor, provocando-lhe o riso através da
identificação e da cumplicidade na observação compartilhada. Segundo Freud, “à elaboração do chiste
acha-se indissoluvelmente ligado o impulso a comunicá-lo” (...). A relação cômica é, por conseguinte,
uma relação de primeira mão, que pode inclusive prescindir do verbal, na qual o riso se caracteriza pelo
caráter antagonista, menosprezador e marginalizante, ao passo que a espirituosa é uma relação de segunda
mão (o receptor tem do observado um relato, formulado de uma certa maneira, que lhe é comunicado pelo
emissor)” (ROSAS, 2003: 138).
RAÇA E JUSTIÇA
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261
Estas charges transvalorizam os sentimentos de ridículo, absurdo e vergonha que
o racismo provoca. São expressões espirituosas da indignação.
Parte do prazer produzido pela piada advém da superação de um obstáculo social
“interno” ou “externo”, permitindo aos ouvintes desfrutarem a pulsão agressiva ou
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262
sexual (no caso do discurso obsceno). Tal superação libera uma descarga de prazer
expressa na risada (que varia, em intensidade, do discreto sorriso à eufórica gargalhada).
O propósito hostil ou sexuado reprimido pode, com o reforço do prazer derivado da
forma cômica do discurso, ganhar força suficiente para superar a inibição, que de outra
forma a sobrepujaria em força, gerando desprazer. Em termos etológicos, a existência
de um mecanismo de inibição impede que o comportamento agressivo seja
desencadeado sobre determinadas espécies de indivíduos. Esse mecanismo consiste em
ritualizar a agressão, desviando-a de seu objeto físico:
(...) o riso desenvolveu-se pela ritualização a partir de um movimento de ameaça
reorientada, como no cerimonial de triunfo. Semelhante a este e ao entusiasmo
militante, o riso faz nascer entre os participantes, um forte sentimento de
camaradagem, acrescido de uma ponta de agressividade contra “os de fora”
(
LORENZ, 1974: 279).
O discurso espirituoso produz, pois, um prazer preliminar (cf. FREUD,
1996/1905: 132-133) de fonte psicolingüística que serve para iniciar a grande liberação
de prazer de fonte psicosocial, bonificação de prazer, mais-gozar advindo da superação
de inibição social que garantia a “segurança ontológica” da identidade, então,
ridicularizada.
A vergonha ou a humilhação sofrida é expressão da ameaça à integridade social
da identidade em disputa, quer essa integridade ora se chame honra, ora prestígio, ora
dignidade. Ameaça aquela que pode causar, no contexto do discurso jurídico, um “dano
moral”. Ademais, a vergonha ou humilhação causada pela discriminação racial revela o
caráter relacional da identidade. Na vergonha, de súbito, tem-se consciência de si
escapando-se de si mesmo, enquanto tendo seu fundamento fora de si. É-se para si pura
remissão a outro. A vergonha é vergonha de si ao outro, tornando possível as
identidades sociais, ao mesmo tempo em que as subverte.
RAÇA E JUSTIÇA
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263
O riso é uma sanção a toda a “quebra de expectativa” não perigosa à integridade
orgânica ou da identidade social dos que riem, não se julgando aquela quebra grave o
bastante para reprimi-la com meios mais violentos como o insulto ou a agressão
física
240
. O ridículo ou cômico é, assim, aquilo que quebra a expectativa gerada por
dada situação ou contexto: o desajeitado, o estúpido, o louco, o anormal, o esquisito, o
diferente. O riso é, pois, uma exclusão, uma “proteção”, um “esconjuro” contra a
impureza, o mal, o estigma de que é portador o ridículo. Na medida em que se revolta
contra o dano provocado, abre-se uma disputa que efetiva o antagonismo constitutivo da
identidade, pondo em questão a objetividade desta. O funcionamento ou regime jurídico
do discurso teria por função mediar e resolver esta disputa ou conflito social chamado,
no contexto jurídico, “litígio”. Este regime instaura-se quando a “revolta” se torna
“queixa”, efetivando um sujeito individual ou coletivo (nos casos de direito difuso
infringido) que se apresenta como “vítima”. O agente do dano pode reafirmá-lo, mas,
desta vez, inscrito num discurso “sério”, próprio ao espaço jurídico, o que significaria
uma “confissão”; ou pode negá-lo, lançando mão da ambigüidade e ambivalência do
discurso espirituoso, tentando esvaziar de sentido o litígio.
Ademais, as piadas, assim como os provérbios, são apresentados como menções,
discursos indiretos
241
, e não afirmações, isto é, o locutor (sujeito da enunciação) não é
seu autor (sujeito do enunciado) – aquele repassa o que lhe contaram, podendo eximir-
240
“Pensemos em várias pessoas ingênuas, em garotos, por exemplo, que se riem “juntos” de vários
outros ou de um só que não pertence ao grupo deles. Esta reação, como outros gestos de apaziguamento
reorientados, contém uma grande dose de agressão dirigida para o exterior, sobre não-membros do grupo;
e também o riso, difícil de se entender de outro modo, que se produz quando se dá uma súbita
descontração de uma situação de conflito. Muitas anedotas provocam o riso fazendo nascer uma situação
conflitual que explode subitamente e de modo inesperado” (LORENZ, 1974: 194-195).
241
Não é a distinção dos sujeitos o que explica o discurso indireto, mas é o agenciamento coletivo
impessoal que explica todas as vozes presentes em uma voz, em suma, as palavras de ordem na
intertextualidade e polifonia do discurso. Cf. DELEUZE & GUATTARI, 1995.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
264
se do conteúdo dito
242
, ainda que não do dizer. Sua intenção é ser espirituoso e bem-
humorado (animus jocandi
243
), não advogar ou difundir alguma crença ou fato racista. O
piadista apresenta-se, então, como núncio do social, de um sujeito impessoal
244
,
Outro
245
que se consuma no riso de outrem, o interlocutor que, em seu riso, se solidariza
com o piadista, referendando a aliança social que institui o Outro da piada, excluindo
parcialmente ou “totalmente” a “identidade ridícula”. Na exclusão parcial, o “indivíduo”
ridicularizado, por exemplo, permanece ligado ao “grupo”, mas de forma subordinada
como objeto de desejo sádico – é um “amigo” sempre alvo da chacota, do gracejo, do
insulto: ele se faz presente, por assim dizer, pela sua ausência e vice-versa – “bode
expiatório” que garante a solidariedade do grupo. A exclusão é o que torna as
identidades sociais possíveis e o que as subverte – o mesmo ato que instaura o laço
social é o que exclui ou marginaliza, a identidade põe e pressupõe a alteridade. Toda
relação é distância.
242
“Observe-se que, embora possam transmitir informação confiável, todas as piadas, sem exceção, se
inserem no modo de comunicação não-confiável. Por conseguinte, o emissor não se compromete com a
verdade de sua mensagem – nem está interessado em fornecer muita informação ao receptor. Pelo
contrário, valendo-se do conhecimento compartilhado – aquilo que em inglês se diz shared knowledge, ou
seja, um sistema de referências e interdições comum aos membros de uma determinada cultura –, o
emissor elabora ou, simplesmente, veicula um discurso cujas lacunas serão preenchidas de um modo que
ele pode prever com razoável segurança. Assim, o ouvinte previsível e necessariamente coopera,
buscando encontrar as informações que faltam em um universo de expectativas do qual tanto ele quanto o
falante partilham, já que pertencem à mesma comunidade interpretativa” (ROSAS, 2003: 143).
243
“No âmbito da injúria, não se pode negar que o animus jocandi exclui o dolo. Contudo, isso somente
se dará em condições especialíssimas, pois ‘é preciso, para reconhecer-se a ausência de dolo, que o
animus jocandi é o único escopo da ação, e que o fato se contenha na órbita do gracejo, de modo a afastar
qualquer vontade de ofender’ ” (SANTOS, 2001: 147).
244
O modo impessoal do discurso enuncia-se como: “Diz-se que os negros...” ou “Dizem que os
negros...”, mas não “Eu digo que...” ou “Eu acho que...”. A ideologia com “bastante freqüência parece
ser uma miscelânea de refrões ou provérbios impessoais, desprovidos de tema; no entanto, esses chavões
batidos estão profundamente entrelaçados com as raízes de identidade pessoal que nos impele de tempos
em tempos, ao assassinato ou à tortura” (EAGLETON, 1997:31)
.
245
Em termos lacanianos, o “Outro” não é unicamente a sede do “código” lingüístico, mas intervém
como sujeito, ratificando uma mensagem no código, constituindo a “lei” como tal, uma vez que é capaz
de lhe acrescentar esse traço, essa mensagem como ela mesma designando o para-além da mensagem, do
dito. Portanto, mais do que um mal-entendido acerca do que foi dito, trata-se de uma disputa pelo lugar do
Outro, ou seja, pela constituição da “lei” ou do “código” legítimos, ou, em outros termos, pela instituição
da hegemonia. Com a judicialização do conflito, quem passa a ocupar, sucessivamente, esse lugar são as
diversas instâncias do sistema de justiça, com seus respectivos discursos: delegacia (BO e inquérito),
Ministério Público (denúncia), Tribunal ou juizado (auto e sentença).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
265
O interlocutor funciona como um apoio ou reconhecimento social para
institucionalização daquela relação de poder, efetivando um Outro hegemônico, autor da
piada, do qual o locutor é apenas médium. Este pode prescindir daquele apoio ou
reconhecimento, desde que a distância social ou a assimetria de poder seja suficiente,
entre o locutor e o alvo da piada, para superar a inibição social, “interna” ou “externa”.
A piada visa, pois, (re)marcar esta distância que, por seu turno, não pode ser tal que
conduza à indiferença.
Por fim, as piadas seriam uma manifestação de uma tendência geral do discurso
vulgar à narrativização. Neste caso, haveria dois níveis: um conceitual, de caráter
genérico, em que determinados lexemas-valores são afirmados ou negados em
operações sucessivas que formam um algoritmo lógico que pode se exprimir por uma
correlação de contrários. Outro narrativo, em que estas operações transformam-se em
ações realizadas por personagens antropomorfas, conforme categorias definidas por um
modelo actancial. As próprias ações agrupam-se em sintagmas narrativos, constitutivos
de um modelo transformacional que articula as situações inicial e final da narrativa
segundo as relações antes e depois (GREIMAS, 1973). Em outras palavras, regras,
normas, valores e inferências podem ser apresentadas como estórias, contos, fábulas e
piadas. É uma espécie de “mitologia espirituosa” que transmite códigos sociais.
6.3 Figuras de linguagem e denegações
O significado racial interdito pode ser dito (posto, não mais pressuposto) sob a
condição de ser figurado (metáfora, metonímia, eufemismo, ironia, humor, pergunta
retórica) ou negado.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
266
A figura é um recurso estilístico que permite expressar-se, ao mesmo tempo, de
modo não usual (literal) e codificado. Não usual, pois, existem significantes que são
considerados típicos a determinados tipos de discurso comum e cotidiano, que seriam
deslocados de seu uso típico. Nas figuras, o que estaria “fora de lugar’ seriam as
palavras: uma palavra estaria no lugar de outra assumindo o significado desta. Na
verdade, o significado literal é uma norma discursiva que fixa significados ou
significantes padrões (próprios). Portanto, codificado, pois cada figura constitui uma
estrutura conhecida, repetível e transmissível. Apresentaremos alguns exemplos de uso
figurado de tópicos (conteúdos) raciais.
a. Metáfora: “macaco”, “tição”, “carvão”, “grafite”, “cabelo
ruim”(praticamente uma catacrese), “dia de branco”, “cabelo de bombril”.
b. Metonímia: “escuro”, “preto”. “Branco” e “negro” são catacreses da
sinédoque pela cor da pele.
c. Eufemismos: “boa aparência”, “escuro”, “moreno”, “afro-brasileiro”,
“pessoa de cor”, “simpatia”.
d. Ironia: “Só podia ser...”, “pra variar...”, “mas como é bonitinho...”.
e. Pergunta retórica: “desde quando negro é gente?”.
Algumas das figuras de linguagem tornam-se, com freqüência, apelidos,
marcando a identidade de uma pessoa ou grupo de pessoas. É o caso do nome “Pelé” ou
todos os outros exemplos de pessoas negras famosas (reais ou imaginárias) que se
tornam apelidos para outras pessoas negras: “Djavan”, “Saci”, “Anastácia”, “Xica da
Silva”... O curioso do apelido “Pelé” é que é um apelido discriminatório que foi
“consagrado” por aquele que o portava, de tal forma que, hoje, o apelido refere-se,
como um nome próprio, mais à pessoa que o consagrou do que ao seu significado
anterior: se sou chamado de “Pelé”, sou comparado ao jogador Edson Arantes do
Nascimento, porém, quase que certamente, não pelas minhas habilidades futebolísticas.
Os apelidos raciais funcionam, contraditoriamente, como “nomes próprios genéricos”.
Nomeiam uma pessoa, mas por sua “equivalência” com outra pessoa, cujo nome ou
RAÇA E JUSTIÇA
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267
apelido, nomeia uma classe de equivalência. Uma mesma palavra pode ser ora, um
apelido, ora um eufemismo, ora uma injúria: “negrinho”, “Pelé”, “Saci”.
Quando não consegue evitar que o significado interdito supere as restrições da
repressão, permanecendo pressuposto, a negação permite que o enunciado se constitua
pela integração subordinada do significado interdito. Veremos duas formas em que essa
integração subordinada pela negação pode ser feita: a afirmação negativa do racismo e
a negação direta do racismo. Em primeiro lugar, não temos pretensão de que estas
formas sejam exaustivas. Em segundo lugar, apresentaremos estas formas através de
exemplos, sem o objetivo de defini-las sistematicamente. O objetivo é meramente
exemplificativo das formas que podem assumir o não-dito.
Um dos exemplos de afirmação negativa do racismo é o uso das orações
coordenadas adversativas que acabam por expressar um sentido racista pressuposto:
“Você é negra, mas não deve ter vergonha disso” (pressuposto: “as pessoas negras
devem ter vergonha de serem negras”); “Ele é negro, mas é muito inteligente
(pressuposto: “as pessoas negras não são inteligentes” )”, “Sou negro, mas sou honesto”
(pressuposto: “as pessoas negras são desonestas”). A afirmação negativa demarca uma
exceção que comprova a regra: “Apesar de ser negro...”. As pessoas do convívio direto
são elogiadas sob a condição de serem comparadas a um modelo do qual são uma
exceção.
A negação direta do racismo aparece como uma negação polêmica, ou seja,
resposta a uma afirmação possível ou passada. No primeiro caso, antecipa-se a uma
possível acusação de racismo a algo que dirá (ou acabou de dizer) ou fará (ou acabou de
fazer), “justificando-se”: “Não tenho nada contra negros, mas...”. No segundo caso,
tenta opor-se a uma acusação já feita. Podemos classificar a negação direta do racismo
em três tipos, conforme o elemento da ação que é enfatizado:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
268
i.Negação do racismo: “Não há racismo” ou “Isto não é racismo”;
ii. Negação da intenção racista: “Eu não tive a intenção” ou “Não era o que
eu queria dizer (fazer)”;
iii.Negação do sujeito racista: “Eu não sou racista” ou “Não tenho nada
contra os negros”
No próximo capítulo, analisaremos de forma mais detida o funcionamento destas
formas de negação direta do racismo.
6.6 Silêncio e fetichismo lingüístico
Muitas vezes a discriminação se dá sem qualquer enunciação de caráter racial
explícita ou implícita. As relações raciais constituem, neste caso, um jogo de linguagem
não-verbal, não-dito, discurso silencioso, mais corporal do que verbal, pelo qual os
indivíduos mobilizam e se apropriam das forças, corpos e acontecimentos sociais. O
“discurso silencioso” se configura na forma mais forte de não-dito. Nestes casos, é
muito difícil caracterizar a prática discriminatória a partir do comportamento individual.
É preciso confrontá-lo com outros comportamentos ou inseri-lo numa série divergente
de comportamentos repetidos (práticas) que separa e distribui “brancos” e “negros”. Por
exemplo, nota-se que determinado indivíduo a evita ou se recusa a apertar a mão de
outro b. Tal comportamento social (aperto de mão) tem sentido não-verbal (respeito,
aceitação, atenção) expresso pelos gestos e definido pelas normas de etiqueta social.
Ademais, constata-se, em nosso exemplo, que o primeiro indivíduo é branco, enquanto
o último é negro. Contudo, ainda não parece suficiente apresentar essa diferença para
caracterizar um ato de discriminação, ao menos de caráter racial. Porém, percebe-se,
ademais, que aquela recusa se inscreve numa série divergente de recusas e aceitações,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
269
ou seja, há uma classe Κ formada de indivíduos que são cumprimentados e outra classe
~Κ disjunta da qual faz parte b; percebe-se também que aquelas classes geradas pelas
séries divergentes coincidem respectivamente com as classes disjuntas A e B formadas,
respectivamente, por indivíduos brancos e negros. Em suma, percebe-se um padrão na
distribuição dos cumprimentos realizados pelo indivíduo branco a. Em verdade, esse
indivíduo a poderia ser negro, pois o que caracterizaria a prática discriminatória não
seria a diferença entre os indivíduos a e b em interação, mas a diferença entre as
classes Κ e ~Κ de indivíduos cumprimentados ou não e sua correlação com as “classes
raciais” A e B: regularmente, cumprimenta-se indivíduos brancos e não indivíduos
negros – [(A⊂Κ) (B~Κ)]. A discriminação se efetivaria como um padrão regular de
distinção, exclusão, restrição ou preferência. Esse padrão regular é o que conduz à
atribuição de uma “intenção” não confessada que funcionaria, por um lado, como a
causa daquele padrão, por outro, como o sentido constituído pelo jogo de linguagem
não-verbal produzido pelas relações raciais.
Porém, como vimos mais acima, a “cordialidade” das relações raciais estabelece
uma relação inversamente proporcional entre a estabilidade das desigualdades e da
hierarquia raciais e o nível de tensão racial, fazendo da discriminação racial direta
instrumento de restabelecimento de uma hierarquia racial rompida pela atitude da
vítima. A cordialidade funciona, em termos econômicos, como um “princípio de
rarefação do racismo” que se efetiva através de procedimentos de otimização das
práticas de hierarquização racial com um mínimo de atos diretos de discriminação
racial. Isso significa que a discriminação direta e explícita é ativada em situações
“excepcionais” e “reativas” de ameaça à hierarquia racial, em outras palavras, em
contextos de alta estabilidade ou crescimento das desigualdades, o recurso à
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
270
discriminação é reduzido ao mínimo. Desta forma, aquele padrão de distribuição do
aperto de mãos torna-se irregular e fragmentário, pois se pode (ou deve-se) apertar a
mão de algumas pessoas negras, oscilando segundo o nível de tensão racial. As classes
K e K deixam de ser disjuntas. Um terceiro é incluído. Seu sentido torna-se ambíguo.
O padrão torna-se observável apenas como uma distribuição estatística das
desigualdades.
O discurso discriminatório se efetiva como a distribuição diferenciada de cores,
afectos e emoções, gestos, atitudes e comportamentos, acompanhados ou não de
locuções, modulações, entonações, enfim, distribuição diferenciada de discursos (dentre
os quais as sentenças judiciais). O fazer não está contido no dizer, mesmo quando este
dizer é o dizer do fazer, ou mais ainda, quando este dizer é ele próprio um fazer
(RICOEUR, 1988). Contudo, existe um querer-dizer, mesmo que não-dito, no fazer. A
ação de alguém expressa algo para outrem na interação.
Neste último sentido, a atribuição e atestação da intenção visam a responder “o
que significam aqueles atos?”. Por que aqueles outros o executam? Essa atribuição de
intenção ou imputação de motivo se constitui pela construção ¥ (cf. figura 7.1 adiante)
de uma narrativa que define os sujeitos e suas correspondentes ações.
A busca de motivos é[...] a busca de uma resposta a uma indagação. Se essa
resposta se afigurar satisfatória, então podemos organizar a nossa própria ação,
levando em consideração, dessa maneira, a outra pessoa. Se as conseqüências que
se seguem são as esperadas, então a nossa avaliação tende a ser confirmada.
Mesmo quando as conseqüências não são totalmente as previstas, podem ser
determinadas corretamente por um tipo de explicação em cima de explicação,
como quando se diz que o ato do outro parece uma coisa mas na realidade está
disfarçado de alguma forma sob o tipo que foi antecipado (
STRAUSS, 1999:
66).
Tal atribuição de motivo é simultaneamente atribuição de valor (egoísta, ridícula,
trágica, acidental, ambígua, sem sentido, irracional, racista...) à ação ou acontecimento
em questão. Por exemplo, algumas situações discriminatórias se apresentam como
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
271
cômicas quando narradas, constituindo-se em fonte das anedotas, não tanto por uma
desaprovação daquela situação, desaprovação que a exporia ao ridículo, mas por se
apresentar como um engano, um mal-entendido: quando um advogado negro é
confundido com um pastor, devido à sua roupa de trabalho; ou a dona de casa negra
confundida com a empregada doméstica. O que é esconjurado pelo riso não é a
discriminação per se, mas o engano e a confusão que a produzem (o Mito da
Democracia Racial tornaria a discriminação um engano, logo, cômica).
Aquela recusa de a ao cumprimento de b pode expressar desprezo, sendo
acompanhada por um discreto descobrir do dente canino de um lado do rosto,
aparentado a um leve sorriso. O desdém pode vir acompanhado de um sorriso ou risada
irônicos, significando que o outro é tão insignificante que só inspira diversão.
O desdém pode ser expresso, ainda, pelo fechamento parcial dos olhos ou pelo
desviar dos olhos ou do corpo todo, como se não valesse a pena olhar a pessoa
desdenhada, ou que olhá-la fosse desagradável; o nariz pode estar ligeiramente
enrugado, acompanhado de uma leve bufada ou expiração, parecendo querer dizer para
a pessoa desprezada que ela cheira mal.
O desdém pode, enfim, dar lugar à raiva ou indignação pela presença impertinente
do ente ou pessoa indesejada. Se moderado, este tipo de sentimento pode se manifestar
por certa gravidade no comportamento, ou por algum mau humor. A passagem do
desdém para a raiva depende da distância social que separa os indivíduos, da relação de
poder e prestígio e, portanto, do grau de “ofensa” que a presença de um indivíduo
provoca em outro: “os insignificantes só merecem indiferença”. A raiva, pois, em geral,
é sintoma de um sentimento de ameaça ou prejuízo, efetivo ou possível, real ou
imaginário.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
272
Neste estado afetivo, o coração e a circulação são sempre atingidos: o rosto fica
vermelho ou roxo, com as veias da testa e do pescoço dilatadas. O grau de
enrubescimento e dilatação varia da raiva à fúria. A respiração também é afetada: o
tórax se arqueia e as narinas se dilatam. O corpo, freqüentemente, é mantido ereto,
pronto para a ação imediata, mas algumas vezes se dobra na direção do alvo ou objeto
da raiva. A boca pode ficar firmemente fechada, com os dentes fortemente cerrados,
algumas vezes, expostos pelos lábios retraídos. São comuns gestos como levantar os
braços com o punho fechado e uma intensa e contundente gesticulação, acompanhada
de um tremor muscular. A voz fica muito alta, áspera e dissonante, acentuando os
fonemas guturais e bilabiais. O cabelo, às vezes, se arrepia. Aparece um franzido bem
marcado na testa; as sobrancelhas se contraem e se rebaixam, e os olhos são mantidos
fixos e bem abertos.
Esta reação pode se consumar na agressão física do objeto de raiva ou na agressão
simbólica mediante o uso de insultos, pela mudança para uma modulação agressiva da
voz ao evocar o outro: “negro!”, ou, ainda, pelo uso de gestos obscenos e injuriosos.
Nos casos de raiva moderada ou de desdém, o agressor pode utilizar-se de outras formas
de agressão simbólica como as ironias, os trocadilhos, as piadas, os provérbios.
Estes comportamentos descritos podem provocar, no alvo das agressões racistas,
um comportamento similar de agressividade, raiva ou desdém, mas, pode também,
provocar outros estados afetivos, com seus respectivos comportamentos, como horror,
vergonha e tristeza.
Tal bifurcação no comportamento da vítima de discriminação (assim, como do
agressor quando opta, por exemplo, entre o “silêncio” ou a “injúria”, a “piada” ou a
“agressão física”) pode ser representada pelo modelo de Zeeman acerca da
agressividade, segundo o qual o comportamento agressivo é determinado por dois
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
273
fatores em conflito: “cólera” e “medo”. Sobre um plano de controle (u,v) são
representados esses fatores. Enquanto que o comportamento do indivíduo, que vai do
“ataque” à “retirada”, da “queixa” à “introversão”, é representado sobre o eixo vertical.
Para cada combinação de “cólera” e “medo” existe, pelo menos, uma forma de
comportamento provável, como veremos mais adiante, sendo a “queixa judicial” uma
delas: obtém-se, então, uma superfície de comportamento. Na maioria dos casos, existe
um único modo de comportamento, mas em algumas zonas há dois modos possíveis, a
partir de pontos e linhas de indecidibilidade. Sobre o plano de controle, a cúspide marca
o limiar em que o comportamento torna-se bimodal. Se um indivíduo encolerizado se
assusta, o seu comportamento segue a trajetória A sobre a superfície de controle. O
percurso adotado sobre a superfície de comportamento desloca-se para a esquerda sobre
o plano superior da superfície de comportamento até atingir a curva da dobra; o plano
superior se divide e o percurso cairá de súbito sobre o plano inferior: o indivíduo
interrompe seu “ataque” e se “retira” imprevisivelmente. Do mesmo modo, um
indivíduo assustado que se encoleriza segue a trajetória B. O indivíduo permanece no
plano inferior que se divide e, assim, salta para o plano superior, deixando de se
“retirar” e “ataca” subitamente. Em resumo, um indivíduo que está simultaneamente
“encolerizado” e “assustado” (ambivalência) deve seguir (decidir por) uma das duas
trajetórias em C. O fato de se deslocar sobre A, tornando-se mais agressivo, ou de se
deslocar sobre B, tornando-se mais submisso, depende de maneira crítica dos “valores”
de u (“cólera”) e v (“medo”).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
274
Figura 6.1
Como vimos no capítulo 2, a relação entre aqueles valores no plano de controle e
dos comportamentos na superfície de comportamento dependem de vetores de força
subjacente ao conflito entre os dois fatores de controle, que determinam a curvatura da
dobra sobre a superfície. Cada combinação possível de fatores u e v expressa, portanto,
uma dada configuração de forças, relação de poder.
No contexto do racismo cordial, a discriminação ostensiva aparece como uma
fatalidade, um acontecimento “catastrófico” (singularidade) que provoca a frustração
das expectativas investidas na situação de interação social, desorientando o indivíduo
objeto de discriminação. A reorientação repentina e intensa da atenção transforma-se em
surpresa, que por seu turno, pode constituir-se em espanto, e, esse, em assombro
estupefato. A passagem da atenção para a surpresa se dá pela elevação das sobrancelhas
e abertura progressiva dos olhos e da boca. O grau de abertura coordenada da boca e dos
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
275
olhos corresponde ao grau de surpresa experimentada. Este quadro pode evoluir para
um estado de terror ou de horror.
Se a discriminação manifestar-se mediante agressividade meramente simbólica,
reduzindo a ameaça de danos à integridade física, o assombro pode refluir para o estado
de vergonha.
Um sentimento vivo de vergonha vem acompanhado do forte desejo de ocultá-lo.
Nessas situações, desviamos o corpo todo, mais especialmente o rosto, que de
alguma forma tentamos esconder. Uma pessoa envergonhada dificilmente agüenta
o olhar dos presentes, de tal maneira que quase sempre abaixa os olhos ou olha de
soslaio. Como geralmente também há um desejo de não demonstrar vergonha, faz-
se uma tentativa vã de olhar a pessoa que provocou esse sentimento; e o
antagonismo entre essas tendências opostas leva à movimentação incessante dos
olhos (
DARWIN, 2000:300).
O indivíduo envergonhado enrubesce, em especial, no rosto, ao mesmo tempo que
procura demonstrar-se indiferente ou inalterado, procurando restabelecer a situação de
cordialidade ou mostrar-se imune à discriminação constrangedora, quer negando o
estigma de que é portador, quer negando que ele seja motivo de vergonha, ou seja,
desestigmatizando-o, revalorando-o.
As pessoas tomadas pela vergonha, em geral, ficam mentalmente atrapalhadas,
gaguejam, fazem movimentos desajeitados ou caretas estranhas e deixam escapar
comentários impróprios, deslocados, podendo-se observar tremores involuntários de
certos músculos faciais. Seu coração bate rápido e sua respiração fica alterada. Este
quadro pode evoluir para um estado de verdadeiro “remorso existencial”, ou seja,
vergonha de si, culpa de ser.
Segue-se, então, a tristeza, o abatimento e o desespero. O discriminado permanece
imóvel e passivo, eventualmente balançando-se de um lado a outro. A circulação torna-
se fraca, o rosto empalidece, os músculos ficam flácidos, as pálpebras caem, as
sobrancelhas tornam-se oblíquas, a cabeça se inclina sobre o peito, os olhos
permanecem opacos e sem expressão, e muitas vezes ficam úmidos de lágrimas. Podem
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
276
ocorrer choros prolongados e reiterados. A respiração se torna fraca e lenta, sendo
interrompida, com freqüência, por suspiros profundos.
As emoções são um meio natural de avaliar o ambiente que nos rodeia e reagir
de forma a potencializar as condições de existência, aumentar a potência de agir, o
poder de afetar e ser afetado. Avaliamos, conscientemente ou não, os objetos que
causam as emoções, notando não só a presença de um objeto mas sua relação com
outros objetos e sua ligação com o passado. As emoções, pois, tem a ver, sobretudo,
com processos cognitivos acerca do valor das coisas, estado de coisas e acontecimentos.
A estigmatização interpõe uma etapa de avaliação (preconceituosa) não
automática entre os objetos (estigmas) que podem causar emoções e as respostas
emocionais, acomodando-as aos ditames das relações raciais. As reações que levam a
preconceitos raciais e culturais se baseiam em emoções sociais cujo funcionamento
reside em detectar diferenças (estigmas) em outros indivíduos e promover agressão ou
retraimento (DAMÁSIO, 2004: 48).
As emoções sociais incluem a simpatia, a compaixão, o embaraço, a culpa, o
orgulho, a vergonha, o ciúme, a inveja, a gratidão, a admiração e o espanto, a
indignação e o desprezo, constituindo-se a partir do rearranjo de pedaços de outras
reações fisiológica e semanticamente mais simples. Por exemplo, o desprezo utiliza as
expressões faciais do nojo, uma emoção primária, que evoluiu em associação com a
rejeição automática a alimentos potencialmente tóxicos (DAMÁSIO, 2004: 54). O
discurso racial, pois, pressupõe, sobretudo, uma semiótica dos afectos.
A estigmatização provoca intensidades de dor, nem sempre corpóreas, mas que
repercutem no corpo não apenas simbolicamente ou imaginariamente. Contudo, na
medida em que o Mito da Democracia Racial torna impossível a homologação ou
atestação discursiva do sentido produzido na pessoa negra, atribui-se a ela um estado
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
277
psicótico, reduzindo todas estas intensidades e experimentações a delírios e fantasias:
traduz-se tudo em fantasmas.
No corpo psicótico, toda palavra é física, afeta imediatamente o corpo: uma
palavra, freqüentemente de natureza epidérmica, aparece como em uma colagem que a
fixa e a destitui de seu sentido. Explodindo em pedaços, decompõe-se em sílabas, letras,
sobretudo consoantes que agem diretamente sobre o corpo, penetrando-o. A palavra
deixa de exprimir um atributo de estado de coisas, seus pedaços se confundem com
qualidades sonoras insuportáveis, fazem efração no corpo em que formam uma mistura,
como se eles próprios fossem feridas dolorosas, encarnadas, cicatrizes. As partes do
corpo determinam-se em função dos elementos decompostos que os afetam e os
agridem (cf. DELEUZE, 1999: 90-91). Toda inscrição é estigma: “deNEGRir”, “lista
NEGRA”, “esCLARecer”, “NEGRitar”, “a coisa está PRETA”, “MULAto”.
No “politicamente correto”, trata-se menos de recuperar o sentido que de destruir a
palavra, de conjurar o afeto ou de transformar a paixão dolorosa do corpo em ação
triunfante, a obediência em comando.
Entretanto, em sua resposta fetichista, a moralidade das palavras busca a
purificação das palavras, como se os sentidos não estivessem nas relações com outras
palavras não tão puras. Aliás, o sentido de uma palavra “politicamente correta” está na
sua relação com a “incorreta”, ou seja, no fato daquela se colocar como substituta desta.
Por exemplo, o argumento etimológico do politicamente correto avalia as palavras por
sua origem, ou sentido original, pecado original que continuaria a macular seu sentido
atual. “Mulato” continuaria a dizer “como mula” e “denegrir”, “tornar negro”, como se
o “átomo” ainda fosse “indivisível” e a “psicologia”, a “ciência das borboletas”. O
sentido das palavras seria hereditário e sem descontinuidade, discriminando-se grupos
de palavras como “impuras” conforme sua ancestralidade ou ascendência.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
278
Este é mais um dos efeitos do não-dito e do desconhecimento ideológico que
fazem das identidades e relações raciais entidades fantásticas e resultantes de
superstições ou preconceitos lógicos, fetichistas. Tudo se passa na superfície
246
.
O discurso discriminatório, repitamos, se efetiva, pois, como a distribuição
diferenciada de afectos e emoções, gestos, atitudes e comportamentos, acompanhados
ou não de locuções, modulações, entonações: “Branco” e “Negro”, enquanto acessos
diferentes dos indivíduos aos seus “próprios” corpos, e, a partir daí, aos demais bens
sociais.
6.5 Tipologias da discriminação racial
Guimarães (2004: 93-106) desenvolveu uma tipologia dos casos de discriminação,
tendo como princípios organizadores o tipo de direito restringido e o âmbito das
relações sociais onde ocorreu a discriminação. A noção de direitos e suas respectivas
violações são importantes como critérios de organização dos casos, pois tais eventos
devem ser entendidos como parte de uma luta para definir um espaço público. Segundo
a tipologia proposta por Guimarães, baseada na noção de direitos individuais, os casos
de discriminação estudados por ele no Brasil podem ser agrupados em quatro grandes
categorias: (1) os que restringem os direitos de ir e vir, ou seja, a livre circulação ou
permanência das pessoas em lugares públicos (ruas e estradas, seja a pé, seja através de
transportes coletivos ou individuais, e áreas de condomínios residenciais); (2) os que
ferem direitos de consumo de bens e serviços (em bares, boates, escolas, clínicas
médicas, lojas comerciais, salões de beleza, clubes recreativos, consulados e repartições
estatais etc., assim como bens e serviços ofertados por indivíduos autônomos); (3) os
246
Exemplificativo deste efeito é o paradoxo de Crisipo. Este filósofo estóico ensinava: “se dizes alguma
coisa esta coisa passa pela boca; ora, tu dizes uma carroça, logo uma carroça passa pela boca”. O
paradoxo aparece, segundo Deleuze, 1998, como a destituição da profundidade, exibição dos
acontecimentos na superfície, desdobrando a linguagem ao longo deste limite.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
279
que ferem direitos relativos ao emprego e ao exercício profissional; (4) as agressões
raciais (físicas, verbais e simbólicas), conflitos de natureza privada nas relações sociais.
A partir da teoria do reconhecimento de Honneth (2003), é possível construir
uma outra tipologia que tem pontos de encontro com a de Guimarães, mas que
acrescenta os efeitos “subjetivos” dos atos de discriminação sobre a integridade pessoal
das vítimas. O racismo inflige (1’) maus-tratos e violações; (2’) privações de direitos e
exclusão; (3’) degradação e ofensa; ameaçando, tanto a integridade física ou social,
quanto a dignidade da pessoa humana. Algumas das formas de desrespeito social só
demonstram seu caráter racial em taxas ou indicadores estatísticos, não sendo este
visível nos casos individuais.
Os maus-tratos físicos, como a tortura, a violação ou o homicídio, representam
um tipo de desrespeito que impõe uma dor não puramente corporal, mas fere
duradouramente a confiança em si e no mundo, sendo acompanhada por uma espécie de
vergonha social. O Mito do Racismo Cordial, variante do Mito da Democracia Racial,
dificulta a visibilização deste aspecto do racismo nacional.
As taxas de vitimização por homicídio revelam que a distribuição das mortes na
população não é aleatória. Considerando-se a identidade racial e o sexo, as principais
vítimas dos homicídios são os homens e, em qualquer dos sexos, os negros.
Considerando-se a identidade racial e a idade, adolescentes e jovens são as principais
vítimas, em especial se forem negras. As pesquisas demonstram que a probabilidade de
ser vítima de homicídio aumenta entre as pessoas negras. A taxa de mortalidade de
pessoas negras (pretas e pardas segundo a classificação do IBGE) por homicídios foi
87% maior do que a de pessoas brancas segundo dados de 1999 e 2000. A mesma taxa
foi 21% mais alta para as pessoas pretas do que para as pardas em 2000. Porém a taxa
de vitimização das pardas foi 53% mais alta que a das pessoas brancas (SOARES,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
280
2004). No Recife, entre as mulheres mais jovens, de 20 a 39 anos, a principal causa de
morte são os assassinatos. E as mulheres negras, de uma maneira geral, segundo a
sanitarista Soni Santos, têm dez vezes mais chances de perder a vida por esse motivo
que as brancas. Para as que têm de 20 a 29 anos, o risco é 40 vezes superior (Jornal do
Commércio (Pernambuco), 20.11.2005). Ademais, a cor de uma pessoa é fator
importante na vitimização pela polícia em casos de tortura e execução sumária. Visto
que o sistema inquisitorial brasileiro privilegia a confissão como elemento central da
prova, o racismo expõe desproporcionalmente as pessoas negras à ação policial como
alvos “torturáveis” (LEMOS-NELSON, 2001). Apesar de fatos como estes, ainda se
afirma que não há conflito racial ou que o racismo nacional não recorre ao ódio ou à
violência.
A privação de direitos ou a exclusão social representam não somente a limitação
violenta da autonomia pessoal, mas também uma perda de auto-respeito, ou seja, da
capacidade de se referir a si mesmo como parceiro em pé de igualdade na relação com
outras pessoas.
O sistema jurídico brasileiro dispensa aos negros um tratamento que, das ruas às
delegacias de polícia e aos tribunais de justiça, viola a presunção de inocência,
invertendo o ônus da prova, tornando os negros “culpados até prova em contrário”, e
obrigando-os a constantemente provar sua inocência. Pessoas brancas e negras cometem
crimes violentos nas mesmas proporções, todavia os réus negros tendem a serem mais
perseguidos pela vigilância policial, enfrentam maiores obstáculos de acesso à justiça
criminal e revelam maiores dificuldades de usufruir o direito de ampla defesa
assegurado por lei. Recebem, então, em geral, um tratamento penal rigoroso, com maior
probabilidade de serem punidos em comparação com os réus brancos. Segundo dados
do NEV (Núcleo de Estudos sobre Violência –USP): há maior incidência de prisões em
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
281
flagrantes para réus negros (58,1%); a população negra é mais vigiada e abordada pelo
sistema policial de que a população branca; há maior proporção de réus brancos
respondendo processo em liberdade (27,0%) do que réus negros (15,5%); há maior
proporção de negros condenados (68,8%) do que de réus brancos (59,4%); quanto à
absolvição, há 37,5% de réus brancos contra 31,2% de réus negros; de todos os brancos
que se dispuseram a apresentar provas testemunhais, 48,0% foram absolvidos, enquanto,
entre os negros, apenas 28,2%. Dois terços da população carcerária são formados por
pretos ou pardos. Por outro lado, a população negra tem maiores dificuldades de acesso
à justiça, em geral, e nos casos de racismo, em particular. A impunidade do racismo é
generalizada e banalizada.
Segundo relatório publicado pela Anistia Internacional (2001:33), em alguns
países, a negligência e a falta de interesse das autoridades pelos abusos que se cometem
em um contexto racista se traduzem na inexistência de mecanismos adequados para
detectar e corrigir as constantes discriminações. O racismo institucional também nega a
certos grupos seu direito, em condições de igualdade, de proteção da lei. A inação do
Estado, não só sua ação, pode implicar em discriminação racial na administração da
justiça:
En Brasil, al igual que em muchos otros países, el racismo en la administración de
justicia se traduce en impunidad para los que violan los derechos humanos. El
Estado cierra deliberadamente los ojos ante los abusos que cometen sus agentes y
otras personas contra ciertos grupos, dejando a estas comunidades vulnerables
ante nuevos abusos. El racismo también excluye a ciertos grupos de personas del
pleno acceso a los mecanismos ordinarios para obtener una reparación y un
resarcimiento judicial, lo que refuerza la confianza de los autores de los abusos en
que no tendrán que responder de sus actos.
Por fim, a “dignidade” e a “honra”, ou o “status” de uma pessoa ou grupo refere-
se à medida de estima social que é concedida conforme uma hierarquia social de valores
no interior de uma tradição cultural de uma comunidade. Se esta tradição cultural for
hegemonicamente racista, como no caso brasileiro, aquela hierarquia social de valores
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
282
toma a forma do preconceito racial e da estigmatização, considerando determinadas
formas de vida, como a afro-brasileira, em seus aspectos físicos e/ou culturais, de menor
valor ou degradados. Tal experiência de desvalorização social tira das pessoas atingidas,
homens e mulheres negros, toda a possibilidade de atribuir-se um valor social positivo,
conduzindo a uma perda de auto-estima pessoal, ou seja, uma perda da possibilidade de
se entender a si próprios como seres estimados por suas características físicas,
intelectuais ou sociais.
Todavia, estes sentidos produzidos, nem sempre verbais, são negados não apenas
pelo silêncio que os acompanha, mas tem como condição de existência o fetichismo
lingüístico nas relações raciais. Este se apresenta em suas versões fraca e forte.
I. Versão fraca: sem a expressão verbal a prática discriminatória
perde objetividade, ou seja, no contexto do discurso jurídico, sem
verbalização não há como provar o racismo.
II. Versão forte: a discriminação racial se confunde com o seu
componente lingüístico, diferenciando da prática que acompanha
e da qual é a sua expressão lingüística de sentido: expressão de
sua motivação racial.
O fetichismo lingüístico nas relações raciais, em sua versão fraca ou forte, nega
qualquer objetividade ao componente extralingüístico das relações raciais.
Na versão fraca, o componente lingüístico é condição necessária do racismo.
Assim, um policial ou a instituição policial que tem o nível de letalidade de sua ação
distribuído de forma desigual e correlacionada à cor das vítimas, mas que não
acompanha sua ação de um discurso racial verbalizado, individual ou
institucionalmente, não poderia ser considerado racista, pois não se conseguiria atestar
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
283
sua motivação ou intenção racista, e, portanto, a objetividade da discriminação racial,
sem a presença de uma expressão verbal.
Na versão forte, a expressão verbal é condição suficiente, dispensando a
componente não-lingüística, isto é, as práticas concretas. Nesta versão, a discriminação
se reduz à sua expressão verbal pelo discriminador: de tal forma que se um
espancamento policial ou prisão injusta é acompanhado de expressões injuriosas de
caráter racista, ao invés de se qualificar tal prática como “discriminação racial mediante
tortura ou abuso de autoridade”, isto é, forma de violência racista, qualifica-se de
“tortura ou abuso de autoridade e injúria qualificada”. Daí a tendência dos atos de
racismo serem desqualificados para injúria racial.
Do lado do discriminado, o fetichismo lingüístico pode fazer com que os
elementos fonéticos de uma palavra (“negro!”, “macaco!”...) sejam experimentados
como qualidades sonoras insuportáveis que agem diretamente sobre o corpo,
penetrando-o e a ele se misturam, no mesmo momento que o corpo se reparte. A reação
à discriminação acaba se limitando a uma discussão sobre palavras, restrita, em geral, à
dimensão vocabular, esvaziada de suas dimensões sintática e pragmática – a semântica é
reduzida ao léxico, a um dicionário de palavras racistas. Na ausência de um léxico
“literalmente” racial, não se entende a discriminação como “racismo”.
6.6 Consciência Negra: discurso racial e movimentos sociais negros.
Contudo, no “racismo”, não se trata de palavras, mas de discursos, e, no discurso
racista, como vimos até aqui, a linguagem não se define mais pelo que diz, ainda menos
pelo que a torna significante, mas por aquilo que a faz fugir, fluir e explodir – o
antagonismo das relações raciais. Este antagonismo pode se expressar na violação de
expectativas normativas de comportamento dos atores em interação, expectativas
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
284
decorrentes do Mito da Democracia Racial, levando a sentimentos de ira, indignação,
vergonha ou culpa.
A experiência traumática da discriminação racial pode vir acompanhada de
sentimento que venha a revelar ao indivíduo que o respeito social e a dignidade pessoal
lhe são socialmente recusados. As experiências de desrespeito devidas ao racismo são,
como percepção subjetiva do antagonismo social, a fonte emotiva e cognitiva da
resistência social e dos levantes coletivos, enfim, da ação política nas lutas sociais.
As lutas sociais são processos práticos nos quais experiências individuais de
desrespeito, como a discriminação racial, são entendidas como experiências vividas por
um grupo inteiro, podendo, assim, influir na exigência coletiva de respeito, justiça e
integração sociais. Vai-se, assim, para além dos limites das intenções e interesses
individuais, constituindo-se em um movimento coletivo: os movimentos sociais negros.
As formas que assumem estes movimentos dependem das formas de desrespeito
e de lesões que procuram articular nos debates públicos. É possível uma atitude
afirmativaBlack is beautiful, estética, arte, dança e cultura negras: o lugar da exclusão
ou da subordinação se torna o próprio lugar da emancipação, transformando a exclusão
em autonomia: da aparência à pertença; da alteridade à identidade.
A Consciência Negra leva ao engajamento nas ações políticas dos movimentos
sociais negros, arrancando os envolvidos da situação traumatizante do rebaixamento
passivamente sofrido e lhes proporcionando uma auto-relação nova e positiva de auto-
estima e respeito: Orgulho Negro. É, pois, uma determinada forma de prática ou
cuidado de si. A Consciência Negra, como expressão de uma constituição ativa de
identidade, restitui ao indivíduo um pouco de seu auto-respeito, visto que ele demonstra
em público sua negritude, não mais como motivo de vergonha e negação, mas como
algo que deve ser zelado e pelo qual historicamente se luta. A Consciência Negra
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
285
apresenta-se como uma experiência de reconhecimento no interior de um grupo político,
cuja solidariedade, não apenas com os vivos, mas, também, com personalidades
históricas, ancestrais: Zumbi, Xica da Silva, Luís Gama, Dandara, Luther King, Malcom
X, Steve Biko, faz os homens e as mulheres negros alcançarem uma espécie de estima
mútua. Estes se sentem herdeiros de uma comunidade e uma tradição políticas.
Portanto, determinada ideologia política conduz do mero sofrimento à ação
ativa, informando a pessoa atingida acerca de sua situação social. Reações emocionais
negativas como a vergonha ou a raiva, a humilhação ou o desprezo compõem sintomas
afetivos (diminuição da potência de agir) que permitem aos sujeitos reconhecerem que
determinadas formas de reconhecimento social estão lhe sendo denegadas, ou que
determinado status (estigma) social está lhe sendo impingido de modo considerado
injustificado ou equivocado. Daí a experiência de desrespeito estar sempre
acompanhada de reações emocionais negativas (HONNETH, 2003: 213-224).
Porém, nem toda queixa contra o racismo é uma atitude afirmativa de
identidade, de auto-determinação, ou de emancipação, podendo ser mera reação
individual e despolitizada à dor e ao ressentimento, em um caso particular, realização ou
expressão de sentimentos negativos, tristes, sem colocar em questão a estrutura social
que produziu a discriminação.
A Consciência Negra, ao contrário, não é mera expressão ou reação emocional,
mas decorre da determinação do que provoca estas afecções, da causa destes
sentimentos negativos, ou seja, do que é inconveniente, do que não convém à
integridade da pessoa negra: o racismo. Esta determinação não é meramente cognitiva
ou lógica, mas política e ética, isto é, prática. Neste sentido, a Consciência Negra não é,
simplesmente, negação do ou combate ao racismo, mas afirmação e comemoração
(aumento da potência de agir) daquilo mesmo que é negado ou depreciado pelo racismo.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
286
É preciso, pois, revelar o substrato político daquele vínculo entre, primeiro, o
sofrimento causado pela experiência de desrespeito social e a reação emocional
decorrente e, segundo, entre esta e o engajamento do sujeito num conflito prático ou luta
social. Elementos de natureza ética, portanto ideológica, é que transformam aqueles
sentimentos em motivações para ação política. Por exemplo, as idéias de direito e de
justiça. Porém, aqueles sentimentos, enquanto sintomas subjetivos/cognitivos da
transgressão de determinados valores sociais ou ideais, passam pelo necessário
reconhecimento do que vem a ser aquela transgressão, ou seja, o sentimento de
indignação não é inato, mas deriva de determinadas formações discursivas, com suas
técnicas de si, que lhe dão sentido social. A relação entre sofrer e indignar-se pelo
sofrimento sentido depende da possibilidade de saber de quê se sofre. O Mito da
Democracia Racial dificulta reconhecer as razões do sofrimento ou, pior do que isso,
conduz à internalização destas razões, ou seja, o próprio sofredor é a causa de seu
sofrimento: seu mau humor, seu complexo (baixa auto-estima), seu racismo às avessas.
Em vez de indignação, culpa. A vítima de discriminação racial é, pois, duplamente
deslocada: por ser negra e por não saber conviver com isso numa democracia racial.
Em suma, a Consciência Negra, que emerge da articulação entre o trauma
pessoal do racismo, a indignação social e a ação política, decorre de um discurso
político “racializado” que estabeleça aquela articulação.
A Consciência Negra é a expressão de uma prática política de rearticulação de
corpos sociais que libera as forças imanentes das estruturas de formas pré-determinadas,
para constituir seus próprios fins, inventar sua própria constituição. Neste processo, as
fronteiras dos corpos sociais estão sujeitas, continuamente, a mudanças, à medida que a
prática articulatória decompõe certas relações e compõe outras.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
287
O processo de articulação política, a composição de relações raciais afirmativas,
movimenta-se entre a multiplicidade e a coletividade, entre a população negra e o “povo
negro”. A prática afirmativa dos movimentos sociais negros é direcionada para a criação
de corpos sociais, planos de composição ou identidades que os fortalecem
politicamente, enquanto permanecem, simultaneamente, abertos às forças reais dos
antagonismos internos. O “povo negro” é reunido através dessa prática como um corpo
social definido por um conjunto de comportamentos comuns, necessidades e desejos.
Por exemplo, o mito heróico de Zumbi dos Palmares, comemorado no dia 20 de
novembro de cada ano, Dia da Consciência Negra, é a narrativa dramática, espaço de
representação que busca rearticular o espaço de objetividade estrutural dominante,
constituindo-se num novo imaginário social, pela representação de um sujeito político e
histórico contra-hegemônico.
A composição ou a constituição do “povo negro” de algum modo “nega” a
multiplicidade das forças sociais, mas, ao contrário, eleva a multiplicidade a um nível
mais alto de poder.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
288
CAPÍTULO 7
AS METAMORFOSES DO SUJEITO: DO NÃO-DITO RACISTA AO RACISMO INDIZÍVEL
Já um simples gracejo demonstra como é prazeroso exercitar nosso poder
sobre o outro e chegar ao agradável sentimento da superioridade. (...) saber
que outro sofre por nosso intermédio tornaria imoral a mesma coisa pela
qual normalmente não nos sentimos responsáveis? Se não o soubéssemos,
contudo, também não teríamos prazer em nossa própria superioridade, que
justamente só se pode dar a conhecer no sofrimento alheio, no gracejo, por
exemplo.
Nietzsche, Humano Demasiado Humano, § 103.
Onde quer que as responsabilidades sejam procuradas, aí costuma
estar em ação o instinto de querer punir e julgar. (...) A doutrina da
vontade é inventada essencialmente em função das punições, isto é, em
função do querer-establecer-a-culpa.
Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos
Enquanto nos capítulos 3 e 4 procuramos apresentar como se constituíram as
condições históricas de formação das relações raciais contemporâneas, no atual capítulo,
tentaremos apresentar as condições sistemáticas de reprodução daquelas relações. É
preciso apresentar, aqui, como se dá a interação entre os mecanismos do não-dito e do
(des)conhecimento ideológico na produção do silenciamento do discurso racial e da
pseudo-inefabilidade do racismo brasileiro como expressões da subjetividade “cordial”.
O atual capítulo tentará esquematizar o dispositivo do Mito da Democracia Racial e
suas regras de formação.
A genealogia do Mito da Democracia Racial significou o deslocamento de um
“regime causalista” no racismo científico para um “regime simbólico” da relação entre
as diferenças e as desigualdades raciais. Em termos discursivos, isso levou à
substituição de associações internas (similaridade, conexão causal etc.) próprias do
discurso “sério” por outras, ditas externas (simultaneidade temporal, contigüidade
espacial, similaridades fônicas etc.) próprias do discurso “vulgar”. Ao contrário,
portanto, das narrativas comuns (inclusive nos movimentos sociais negros), não há
continuidade entre o racismo científico do final do século XIX e início do XX, com o
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
289
discurso racial da segunda metade do século XX no Brasil. São formações discursivas
diferentes.
O deslocamento (θ) do “racismo” do discurso “sério” (Δ
1
) para o discurso
“vulgar” (Δ
0
) produz o (des)conhecimento ideológico no primeiro, e o não-dito no
segundo (cf. Figura 7.1). Duas séries de acontecimentos discursivos, quase simultâneas
e sempre uma remetendo para a outra. O não-dito, porém, não é, como veremos, uma
forma exclusiva de (Δ
0
). Estas duas séries e a interação entre elas estruturam o
dispositivo do “Mito da Democracia Racial” como um espaço de exterioridade no qual
se desenvolve uma rede de lugares distintos, de diferentes posições de sujeito.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
290
Não é a ação isolada dos dois mecanismos, mas a circulação entre eles que faz
funcionar o dispositivo.
Em termos lingüísticos, a diferença entre o discurso sério (Δ
1
) e o vulgar (Δ
0
)
está nos mecanismos de modalizações e organização tópica: por exemplo, organização
seqüencial contínua (altas centração temática e organicidade seqüencial, ou seja,
integração semântica e sintática) e modalização racional (uso de vocabulário “formal” e
operadores lógicos) em (Δ
1
); descontinuidade tópica (baixas centração temática e
Δ
0
Δ
1
¥
Ë
Δ
1
: Discurso “Sério” (lógico, argumentativo,
sistemático, racional, formal e público)
Δ
0
: Discurso “Vulgar” (estético, espirituoso,
aforismático, passional, informal e privado)
¥ : RACIONALIZAÇÃO
Ë :ELABORAÇÃO INCONSCIENTE
θ: DESLOCAMENTO
θ
Figura 7.1
π < 0
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
291
organicidade seqüencial) e modalização afetiva (vocabulário coloquial e operadores
fáticos) em (Δ
0
).
Os campos Δ
0
e Δ
1
, na realidade concreta, não são incompatíveis, mas são os
limites inferior e superior de uma série (orientada pela centração temática, organicidade
seqüencial e modalização) na qual, quanto mais próximo da vizinhança de Δ
1
, maior a
intensidade da interdição ao discurso racial. Podemos, assim, organizar o tipos de não-
dito que vimos no capítulo anterior.
A figura 7.2 apresenta a escala de implicitude do discurso racial. Os retângulos
sobre o eixo representam os limiares diferenciais que demarcam pontos de mudança
qualitativa na série que vai de Δ
0
a Δ
1
. Os limiares apresentados não são exaustivos,
apenas exemplificativos. Quanto mais próximo à vizinhança de Δ
1
, mais implícito se
torna o conteúdo racial do discurso, ou seja, maior a intensidade do valor absoluto de π.
Δ
1
injúria
piada
silêncio
subentendido
negação
eufemismo
trocadilho
provérbio
π
máximo
π
mínimo
Figura 7.2
Δ
0
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
292
Ademais, a possibilidade de utilizar os recursos da linguagem “vulgar” não é a
mesma para todos os indivíduos de uma comunidade. As condições de assertabilidade
da linguagem “vulgar” pode variar conforme o sexo, a idade, a classe etc. Ou seja,
homens ou mulheres, adultos ou crianças, classes populares ou classes médias não
teriam o mesmo poder, em um mesmo contexto, de utilizar o mesmo dentre os
diferentes recursos da linguagem “vulgar”. Porém, por outro lado, quanto mais comum
o uso, menor deve ser a inibição social contra aquela prática, logo, menor o grau de
implicitude. Portanto, homens adultos das classes populares têm condições diferentes
para recorrer à injúria, à piada ou aos ditos espirituosos do que as mulheres ou crianças
de classe média. Em suma, as diversas formas de discriminação racial devem variar em
função destas variáveis, tornando, assim, os diferentes indivíduos mais ou menos
passíveis a serem representados legalmente, por exemplo.
7.1 Elaboração inconsciente: do interdito ao não-dito
A força hegemônica π atua como uma interdição ao discurso racial “sério”. Ela
mantém o discurso racial, racista ou não, fora dos discursos formais, oficiais. Porém, e
por isso mesmo, o discurso racista atua no limite (para além) do campo discursivo
“sério”. A inibição social sobre os enunciados de cunho racista, nas relações “cordiais”,
provoca um recalcamento das formações racistas, que passam por uma elaboração (Ë)
que reinscreve os traços do discurso anterior em um outro registro, articulando as
formações do não-dito racial. O discurso racial, racista ou não, torna-se informal,
coloquial, “vulgar”.
No corpo social, o deslocamento (θ) se apresenta como a desarticulação das
instâncias públicas de controle e encaminhamento, próprias de (Δ
1
), desarticulação que
se dá pela emergência dos fantasmas coletivos (democracia racial, racismo cordial),
pelo desligamento dos atos a seus fins (inintencionalidade) e por sua inadequação aos
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
293
meios (contradição performativa). Na forma do não-dito, nenhuma verdade racial é
revelada, nenhuma escolha radical se coloca para as consciências pela presença do
“racismo”, criando a condição para a reprodução do (des)conhecimento ideológico.
Ademais, no Brasil, aquela desarticulação se dá pela “condensação” entre os discursos
“sério” e “vulgar”, entre (Δ
1
) e (Δ
0
), na interpenetração entre o público e o privado,
entre o formal e o informal. O racismo institucional, por exemplo, aparece como
práticas informais da instituição: nepotismos, paternalismos, trocas de favores, relações
interpessoais, simpatias, indiferenças...
O não-dito é composto de dois momentos: o pouco-sentido (peu-de-sens) e o
passo-de-sentido (pas-de-sens)
247
. O pouco-sentido opera como uma demanda de
sentido, evocação de um sentido mais além, segundo a qual o enunciado vem interrogar
o Outro a propósito do pouco-sentido: “o que significa isso?”. O passo-de-sentido
corresponde à visão geral do sentido, naquilo que ele tem de metafórico e alusivo. O
passo-de-sentido opera através da homologação do pouco-sentido do enunciado pelo
Outro, tornando significativo uma aparente ausência de sentido ou sem-sentido: “Ah,
então era isso!”. A intenção do sujeito é o que introduz no não-dito justamente o passo-
de-sentido (cf. LACAN, 1998): “o que você quer dizer com isso?”. “Querer dizer algo”:
eis a decisão de sentido que constitui o cerne do que costumamos chamar de princípio
de não-contradição, ou seja, um enunciado contraditório não quer dizer nada, ou, em
termos positivistas, não se refere a nada, portanto, é sem significação. A referência ou
designação é o que, sendo preenchida, faz com que a proposição seja verdadeira; e não
sendo preenchida, falsa. Toda designação supõe um sentido.
247
Esta tradução de pas-de-sens procura trazer a dubiedade de sentido provocada pelo termo usado por
Lacan, que simultaneamente, significa “sem-sentido”, “nenhum sentido”, mas também “passagem de
sentido”. Esta dubiedade expressa a concepção lacaniana sobre os Witz (chistes) analisados por Freud,
como sem-sentidos que criam novos sentidos – o sem-sentido é uma passagem de sentido.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
294
Em termos discursivos, o sentido de um discurso advém da relação entre uma
significação lingüística (enunciativa) e o contexto em que ocorre o enunciado, da
interação entre seus componentes lingüístico e extra-lingüístico
248
. Contudo, aquele
componente já tem uma significação (lingüística) independente
249
de seu uso no
contexto:
[...] as circunstâncias da enunciação são mobilizadas para explicar o sentido real
de uma ocorrência particular de um enunciado, somente depois que uma
significação tenha sido atribuída ao próprio enunciado, independentemente de
qualquer recurso ao contexto (
DUCROT, 1987:16).
Contudo, o que constatamos, no capítulo precedente, é que a significação
(denotação) e o sentido (conotação) podem entrar em contradição (performativa),
fazendo do não-dito uma técnica discursiva próxima da “ironia”, ou seja, diz-se
exatamente o contrário do que está dito.
A remissão na linguagem a uma “intenção prática” (função pragmática) inscreve
uma “demanda” (função semântica) resultante de uma transformação que faz com que
aquilo que é significado seja algo “para além” da “intenção prática”, que seja
(re)articulado pelo uso do significante (função sintática). Em outras palavras, a função
sintática do discurso rearticula (traduz) a função pragmática (força ilocucionária) em
função semântica (conteúdo proposicional). Esta distinção entre dois “tipos” de intenção
pode ser traduzida na distinção que Grice (apud MARTINS, 2002:91) estabelece entre
dois tipos de significado, o “significado do falante” – de caráter pragmático – e o
“significado convencional” – de natureza semântica. O primeiro significado se consuma
por uma implicatura, ou seja, uma inferência sobre a intenção do falante, que resulta da
decodificação de significados e da aplicação de princípios conversacionais:
248
“[...] há, pois, um ‘uso’ na representação, sem o qual a representação permanece privada de vida e sem
sentido; e Wittgenstein e seus discípulos têm razão em definir o sentido pelo uso. [...] e o uso está na
relação da representação a algo de extra-representativo, entidade não representada e somente expressa.”
DELEUZE, 1999:148.
249
Esta significação é produzida pelas relações formais, sintagmáticas e paradigmáticas, entre os
significantes que compõem determinada cadeia enunciativa.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
295
Para deduzir que uma implicatura conversacional determinada se faz presente, o
ouvinte operará com os seguintes dados: (1) o significado convencional das
palavras usadas, juntamente com a identidade de quaisquer referentes pertinentes;
(2) o princípio da cooperação e suas máximas; (3) o contexto, lingüístico ou
extralingüístico, da enunciação; (4) outros itens de seu conhecimento anterior; e
(5) o fato (ou fato suposto) de que todos os itens relevantes cobertos por (1) – (4)
são acessíveis a ambos os participantes e ambos sabem ou supõe que isto ocorra
(
GRICE, apud MARTINS, 2002:92).
Portanto, os processos de atestação de intenção inscritos no fluxo de justiça são
função dos processos discursivos de implicatura.
Contudo, no fetichismo lingüístico, em sua versão fraca, as duas séries (da
“demanda” e da “intenção”, “semântica” e “pragmática”) devem manter entre si uma
relação necessária ou causal (a “demanda significada” é pura e simples tradução da
“intenção prática”). Em sua versão forte, é cortada qualquer relação (causal, lógica ou
ontológica) entre as duas séries. O “racismo” é, assim, reduzido ao “preconceito racial”
(“demanda”), expresso na série lingüística (puro jogo significante sem relação com a
prática concreta). Enquanto na versão fraca do fetichismo a relação entre língua e
mundo é necessária, na versão forte, a relação é impossível.
No não-dito, quem diz alguma coisa, ao mesmo tempo diz mais e diz menos do
que “quer” dizer. Enfim, pelo não-dito, sempre se fala demais ou de menos: “não foi
isso que eu quis dizer”; “não ponha palavras na minha boca”... O discurso aparece
afetado por uma certa “heteronomia”, resultante da contradição entre a “demanda
significada” pelo discurso (inocência do silêncio: “negação do racismo”) e a “intenção
prática” do discurso (a eficácia da fala: “discriminação racial”). É nessa confusão entre
prática e fala, por um lado, e, linguagem e silêncio de outro, que se efetiva o fetichismo
lingüístico, no curto-circuito das séries. Ademais, é daquela contradição que decorre o
paradoxo da realização do não-dito: a “frustração” necessária da “demanda significada”
– a “indignação” que questiona a “inocência” do discurso – satisfaz sua “intenção
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
296
prática”
250
. O não-dito racista deve, ingenuamente, ofender. Em suma, sem fetichismo
não há contradição e, em conseqüência, não há não-dito. Este quadro configura o que
Denys Turner denominou “contradição performativa”: “uma contradição entre um
significado transmitido explicitamente e um significado transmitido pelo próprio ato de
transmitir” (Apud EAGLETON, 1997:35). Assim, o fetichismo faz da oposição entre o
lingüístico e o extralingüístico uma contradição real, relação objetiva que nega o
antagonismo social subjacente à produção de sentido.
251
A contradição é a expressão
semântico-fetichista de um antagonismo social subjacente, relações raciais conflituosas.
O múltiplo e o antagônico (disseminação inumerável da diferença) tomam a forma da
contradição e da negatividade a fim de resolvê-los na suposta identidade contraditória
de um discurso (conceito), unidade narrativa de um sujeito. O não-dito, pois, é
resultante do conflito subjacente de identidades sociais mutuamente excludentes.
250
Por paradoxal que isto seja, quando se trata de humor, o malogro (infelicity) inicial na comunicação
muitas vezes deve ser interpretado como um requisito para o sucesso (felicity) final da interação. Grosso
modo, o processo inferencial seria: ao interpretar o texto, o ouvinte é induzido a erro pela violação do
princípio de cooperação, volta atrás e reinterpreta, com base nas máximas próprias ao modo não-
confiável
de comunicação, a informação fornecida. Finalmente (e, digo eu, também idealmente), reage de acordo –
isto é, rindo”(ROSAS, 2003: 142. grifo nosso). O não-dito é, pois, uma forma de tornar um discurso não-
confiável em discurso válido. Um discurso não-confiável é o que transgride um dos sub-princípios do
princípio de cooperação – contribua para a conversação conforme exigido, no momento em que ela
ocorre, pelo objetivo ou rumo da troca verbal de que você está participando (GRICE apud ROSAS, 2003:
141):
1. relação: seja pertinente
2. qualidade:
a) não diga algo que você considere falso
b) não diga nada que não seja suscetível de comprovação
3. quantidade:
a) torne sua contribuição tão informativa quanto necessário
(aos objetivos do intercâmbio em questão)
b) não torne sua contribuição mais informativa que o necessário
4. modo:
a) evite obscuridade
b) evite ambigüidade
c) seja conciso
d) seja organizado
251
It is because A is fully A that non-A is in contradiction to A. (...) In the case of social antagonism the
situation is entirely different: the identity of A is threatened by the antagonistic force”. Cf. TORFING,
1999:44.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
297
A significação só ganha sentido em função de um adversário, em termos de
manipulação e de objetivo. A contradição e a ambigüidade não têm adversário, pois não
podem ser contraditas. A contradição e a ambigüidade eliminam o antagonismo entre
significados diferentes, pois apagam as diferenças, ou afirmam, simultaneamente,
significados, conforme o princípio da não-contradição ou do terceiro excluído,
contraditórios ou incompatíveis (síntese). Segundo a teoria do sentido de Deleuze, as
proposições que designam objetos contraditórios têm um sentido. Sua designação,
porém, é impossível, e elas não têm significação alguma, ou seja, são absurdas. Nem
por isso deixam de ter sentido. As noções de absurdo e de não-senso não são sinônimas.
O princípio de contradição se aplica ao real (designação) e ao possível (significação),
mas não ao impossível: “Quadrado redondo”, “matéria inextensa”, “o homem negro é
branco”, “Alva-escura”, “Branca-suja”, “acidente intencional” (culposo?),
“deliberadamente sem intenção”.
É preciso enfatizar, contudo, que a “intenção” ou a “demanda” não são nenhuma
essência ou ente oculto, transcendente ou exterior ao discurso, mas são significados por
este, como efeitos de sentido. A “intenção” ou “demanda” tem no ocultamento sua
expressão, sendo significada no próprio ato do não-dito.
A “intenção” não deve ser entendida como o produto unicamente do que há
“aqui” dentro, em um mundo mental privado, subjetivo, esfera privilegiada de vivências
imediatamente acessíveis e absolutamente certas para a “primeira pessoa” que as
experimenta. É o “subjetivismo psicologista”. Segundo esta concepção, conhecemos
nossos estados mentais melhor do que tudo o mais, e do que todos os demais. Ao
contrário, não há experiências não interpretadas, a que se teria um acesso apenas
privado e que se furtariam à descrição e avaliação conforme enunciados publicamente
criticáveis. A atestação da intenção é discursivamente articulada, mesmo para seu
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
298
sujeito, através de práticas sociais de responsabilização e justificação em ¥. Tal retorno
a (Δ
1
) se efetiva quando um dos interlocutores envolvidos no acontecimento discursivo
inscrito em (Δ
0
) aciona um discurso crítico quanto aos pressupostos e pretensões de
validade do acontecimento vivido. É o caso da queixa. Ela desloca o discurso para o
campo do discurso jurídico que está inscrito em (Δ
1
). Aquela racionalização (¥) de (Δ
0
)
para (Δ
1
), do “vulgar” ao “sério”, se faz pela construção, pelas partes em litígio, de
argumentos e narrativas divergentes, antagônicas.O funcionamento ou regime jurídico
do discurso teria por função mediar e resolver esta disputa ou conflito social chamado,
no contexto jurídico, “litígio”. Este regime instaura-se quando a “crítica” se torna
“queixa”. O suposto “racista” pode reafirmar o ato de discurso, mas, desta vez, inscrito
no campo discursivo “sério” (Δ
1
), o que significaria uma “confissão”
252
; ou pode negá-
lo, lançando mão da ambigüidade e ambivalência em (Δ
0
), tentando esvaziar de sentido
o litígio: desqualificar o tipo penal. O “retorno” do discurso racial ao campo (Δ
1
) do
discurso sério é interditado pela força hegemônica do Mito da Democracia Racial.
Através de quais mecanismos, é o que veremos neste e nos próximos capítulos.
7.2 Racionalização: do não-dito ao não-intencional
A inintencionalidade do não-dito racista se produz retroativamente pelo
comentário racionalizante (¥), no campo discursivo “sério” (Δ
1
), sobre o que foi dito ou
não no campo vulgar (Δ
0
). A racionalização busca garantir, para um contexto
determinado, a validade de enunciados, justificada para um público.
A “intenção” é derivada de uma pretensão de coerência e identidade do fluxo da
ação, apreendida pelos traços de diferenciação e coesão narrativos. É o que distingue a
ação do puro acontecimento que é causado. Descrever uma ação como feita
252
Contudo, não se trata apenas de “confissão”, mas de rearticulação dos elementos discursivos num
registro onde assumem uma formulação racista ostensiva, “causalista”, sistemática, “reflexiva”,
aparentada a um “racismo esclarecido” ou “sério” francamente repreensível nas relações raciais
assimilacionistas hegemônicas e, provavelmente, pelo próprio discriminador.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
299
intencionalmente é explicá-la pela razão que o sujeito da ação teve de fazer o que fez,
ou seja, uma ação intencional é uma ação feita “por uma razão”: preconceito, racismo.
A narrativa, pois, torna “razoável” a ação narrada atribuindo-lhe uma “razão de ser” ou
motivação.
A racionalidade de uma ação se mede pelo fato de o sujeito da ação ter
alcançado um determinado resultado da ação com base em meios deliberadamente
escolhidos e empregados, e de ter sido motivado por “razões” conhecidas pelo próprio
sujeito. A inintencionalidade, portanto, depende de sob qual narrativa ou descrição da
ação o agente não estava a par do que estava fazendo, descaracterizando, em termos
jurídicos, o “dolo”.
A “intenção”, assim, pode se constituir discursivamente, mesmo que não seja
expressa por uma “demanda” explícita articulada lingüisticamente (conteúdo
proposicional), através do efeito simbólico das práticas (força ilocucionária). Neste
sentido, a “intenção” é uma qualificação secundária atribuída a uma ação observável por
todos. A intenção, como sentido
253
, é constituída na própria trama das relações sociais
em que está inserida, tornando-se compreensível para os que a tomam do ponto de vista
do conhecimento ou da atestação, da verdade ou da veracidade.
A “intenção” faz de um indivíduo o “sujeito” de “sua” ação, não apenas a sua
causa, tornando-o, portanto, responsável pela ação, participando de um jogo de
interpelação, imputação e responsabilização, jogado num campo agonístico,
agenciamento coletivo que põe em questão a objetividade e veracidade dos sujeitos
envolvidos:
(...) a possibilidade de suspeitar da veracidade de uma declaração de intenção
pleiteia contra seu caráter de descrição e contra a pretensão à verdade ligada às
descrições, essa mesma possibilidade de suspeitar prova a si somente que o
253
Os sentidos são abordados, na presente tese, como categorias objetivas, formas de modo de ser,
determinações de existência pelas quais os sujeitos se pautam, medem as forças que mobilizam.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
300
problema colocado depende de uma fenomenologia da atestação que não se deixa
reduzir a uma criteriologia apropriada à descrição (
RICOEUR, 1991:91).
A partir dessa fenomenologia proposta por Ricoeur, será preciso uma
desconstrução da atestação, problematizando a idéia de sujeito soberano, fonte do
sentido e da intenção
254
e apresentando as relações de poder envolvidas na atestação da
veracidade de uma intenção declarada, negada ou ocultada, e o antagonismo social
subjacente, que conduz à indeterminação da intenção. A veracidade da intenção não é a
verdade no sentido de adequação do conhecimento ao objeto, e sua determinação não se
exprime em proposições suscetíveis de serem consideradas verdadeiras ou falsas. A
indeterminação sobre a intencionalidade da discriminação racial tem forte vínculo com
a objetividade desta, exigindo decisões ético-semânticas dos envolvidos no processo
sobre o que significa “querer discriminar naquele caso”: o que é que distingue as ações
que são intencionais das que não o são? A objetividade performativa dos casos está,
pois, fortemente relacionada à sua subjetividade, ou seja, aos processos relativos de
subjetivação, às atribuições de individualidade e suas distribuições moventes no
discurso. Atestar a intenção de uma ação não consiste em analisar as relações entre o
agente e o que ele fez (ou quis fazer, ou fez sem querer); “mas em determinar qual a
posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito” (FOUCAULT,
2002:109).Trata-se, pois, de deslindar, no discurso, agenciamentos, processos de
subjetivação (S+) e dessubjetivação (S-) de acontecimentos (
e
) em ações (
a
), ou vice-
versa, através dos jogos de linguagem (
l
). Ou, segundo o preceito de Freud: “Wo Es
war, soll Ich werden” (Onde estava Isso, o Eu estará).
254
“(...) a fenomenologia não era capaz de dar conta, (...), dos efeitos de sentido que podem ser
produzidos por uma estrutura de tipo lingüística, estrutura em que o sujeito, no sentido da fenomenologia,
não intervinha como aquele que confere o sentido” (FOUCAULT apud GREGOLIN, 2004:27).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
301
O estigma negro, contudo, enquanto “dado da realidade” (relação social
reificada), como que instaura no social a anarquia radical e a absoluta gratuidade, a
inintencionalidade do mal, fatalidade sem significação, destino absurdo:
(...) o fato de a palavra de ordem ser como um corpo estranho no corpo, um
discurso indireto na fala, explica o prodigioso esquecimento: “O executante não
acusa a si mesmo, acusa o aguilhão [o estigma], a instância estrangeira, o
verdadeiro culpado, por assim dizer, que transporta por toda parte com ele. (...) O
aguilhão é o testemunho perpétuo de que nem mesmo fomos o autor de tais atos.
Sentimo-nos vítimas dele, e não resta o menor sentimento para com a verdadeira
vítima. É, portanto, verdade que os homens que agiram por ordem se consideram
perfeitamente inocentes”, eles recomeçam, de forma ainda melhor, com outras
palavras de ordem (
DELEUZE & GUATTARI, 1995:24).
A ação discriminatória acha-se, assim, associada a palavras de ordem, iterações
recursivas, atos reflexos, comportamentos pulsionais inatos (“quase instintivos”
255
) ou
rotineiramente condicionados, habituais e emocionais (como, por exemplo, na injúria).
Não se trata, aqui, de mera metáfora ou imagem fisiológica, mas de uma “efetiva”
dessubjetivação, desresponsabilização, impunibilidade. A emoção aparece como uma
perturbação do corpo, por vezes uma verdadeira convulsão, que não se reconhece como
“própria”, como “minha”. Trata-se, pois, no discurso, do (des)agenciamento coletivo
dos fluxos, pulsões, afectos e formas. O registro patêmico ou emocional do discurso
“vulgar” desce “às profundezas da glote para reencontrar os cantos do corpo antes da
255
cf. mais abaixo citação de Olavo Carvalho.
e
a
l
S+
S-
Fi
g
ura 7.3
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
302
invenção da palavra, [...] sintaxe gerada pelo ventre, pulmão, esôfago, intestino onde
[...] a violência é meu tom de voz, meu nível baixo [...]” (LINS, 1999:17). No discurso
“vulgar”, o sentido é mais corporal que lingüístico, mais fonológico que morfológico,
mas expressivo que representativo – gestos, entonações, suspiros, sopros, gemidos... A
discriminação parece provir, assim, de um modo inesperado, da camada vegetativa de
base fisiológica (indignação, repulsa, vergonha, ultraje...), ou resultar de conseqüências
não intencionais da ação (atos falhos).
Não somente não há mais sentido, mas não há mais gramática ou sintaxe e, em
última instância, nem mesmo elementos silábicos, literais ou fonéticos articulados
(gritos, sopros, gemidos, silêncios). Nada mais impede as proposições de se abaterem
sobre os corpos e de confundir seus elementos sonoros com as afecções do corpo,
visuais, táteis, auditivas... Tudo se passa aqui, age e padece, abaixo do sentido, longe da
superfície: subsentido, infrasentido. Longe de garantir uma ramificação de séries
segundo o sentido, operam uma cadeia de associações entre elementos tônicos e
dinâmicos: inflexões (DELEUZE, 1999: 85-96).
O estatuto do corpo “próprio”, na fronteira da causalidade natural e da
motivação, é o que funda a continuidade entre causa e motivo, constituindo-se numa
zona de instabilidade semântica (indecidibilidade) que possui vários pontos de
singularidade. Ademais, o traço característico do emocional é que o seu objeto seja a
sua causa e vice-versa, sobrepondo, assim, intencionalidade e causalidade, produzindo
um caráter ambíguo da ação e uma certa indeterminação na atestação da intenção: uma
ação movida ou provocada por uma emoção é ou não voluntária? Um ato impulsivo ou
passional é intencional? Até que ponto uma ação emocionalmente orientada é
conscientemente motivada? Não estou com isso negando a relação entre “paixão” e
“responsabilidade”, ou entre “sujeito” e “emoção” mas destacando o caráter
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
303
problemático desta relação, na definição do “dolo” pelo discurso jurídico (cf. capítulo
9). Assim, um motivo pode não apenas legitimar uma ação responsável, mas pode,
também, desresponsabilizar um sujeito irresponsável.
O racismo aparece, enfim, como uma fatalidade, acontecimento sem sujeito (ou
sujeito inconsciente?) que atinge e surpreende tanto o discriminado quanto o suposto
discriminador, “racismo sem racista”, pelo qual nenhum dos sujeitos pode ser
responsabilizado.
Vejamos, por exemplo, o lapso de linguagem. Um lapso ocorre justamente
porque há mais de uma afirmação envolvida, não sendo nada mais do que o resultado da
interferência entre duas proposições que indicam atitudes distintas em relação a um
mesmo fato: “(...) o lapso de língua expressa uma interferência entre duas proposições”
(THÁ, 2001:42).
Os atos falhos apresentam a idéia de que o mundo poderia ser diferente do que
ele de fato é, ou de como o sujeito esperaria ou desejaria que o mundo fosse, situações
contrafactuais de como o mundo poderia ser. A lógica modal chama a estes diferentes
estados de “mundos possíveis”.
Um acontecimento discursivo pode processar, simultaneamente, dois estados
possíveis e diferentes relativos à mesma situação: um estado de coisas atual, o outro
aparece como a situação contrafactual nos pensamentos de seu sujeito. Analiticamente,
é preciso admitir e reconhecer como expressões válidas e verdadeiras de seus
pensamentos ambas as proposições, tanto a interferida quanto a interferente, mesmo que
elas se apresentem como paradoxais ou contraditórias. Todavia, em razão de mal-
entendidos, vergonha, sentimentos de pudor, temores de ser prejudicado ou mal-visto,
os sujeitos invocam o acaso como causa do engano, procurando minimizá-lo, reduzindo
a algo que poderia não ter ocorrido, ou ocorrido de outra forma. A reação pode ser
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
304
enérgica e violenta, tentando tornar evidente que de maneira alguma é isso que o sujeito
pensa: não se reconhece a proposição interferente como válida e verdadeira de seus
pensamentos. Porém,
O lapso é um fato, tanto quanto o delito o é, e, tanto quanto o delito, tem um autor.
De nada adianta o autor do delito, ou do lapso, negar que o cometeu e negar sua
verdade. Um ato realizado passa a ter existência independente e a produzir
conseqüências por si próprio, muitas vezes à revelia da vontade ou das intenções
do seu autor. “Minha interpretação abriga a hipótese de que, quando uma pessoa
fala, podem ser expressas intenções das quais ela própria nada sabe”(FREUD,
1916:84) (
THÁ, 2001:52).
Enfim, o ato falho aparece como problemático: ele quis ou não dizer aquilo? Ele
quis ou não fazer isto?
7.3 O discurso “sério”: do não-intencional ao inefável
O não-dito pode, ainda, tomar a forma do pressuposto e/ou do subtendido, não
sendo, pois, exclusivo do campo “vulgar” (Δ
0
). O pressuposto apresenta-se, mesmo
numa argumentação inscrita em (Δ
1
), como “evidência” ou “acordo” entre os
interlocutores, não por uma necessidade lógica ou empírica, mas por uma necessidade
que o locutor cria por sua própria fala, instaurando, a partir dela, um discurso de que o
pressuposto constitui a regra. O pressuposto põe em jogo uma “deontologia lingüística”:
a recusa ou a crítica dos pressupostos aparece necessariamente como polêmica e
agressiva, pois ameaça o sucesso ou a realização ilocucionária do ato de discurso. Tal
fato, em muitas situações, faz com que o destinatário o evite. No não-dito, o discurso
assume o papel de um “presente de grego”. Na medida em que inicia uma seqüência
discursiva, enquanto “dom simbólico”, obriga o destinatário a aceitar e retribuir, como
forma de manutenção do laço social estabelecido pelo “dom” (cf. DUCROT, 1977:88).
O locutor pode, assim, aproveitar-se daquela situação para “fazer passar”, no
discurso, certas proposições que, afirmadas diretamente, seriam mais fáceis de serem
questionadas, pois já estariam tematizadas. Tal funcionamento tem a ver com a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
305
organização tópica do discurso e sua coesão isotópica, ou seja, com o conteúdo e sua
integração a um mesmo conjunto temático. Haja vista que o pressuposto não faz parte
do encadeamento dos enunciados postos, colocar em questão ou tematizar o pressuposto
é quebrar a coesão isotópica do discurso. O poder do não-dito racista está em, fazendo o
interlocutor continuar o diálogo, ficar diante de um dilema: ou “deixar passar”, e, com
isso, subscrever o pressuposto, reforçando, por sua omissão cúmplice, aquilo que é
apresentado como evidente: o estigma negro; ou se opõe a ele, mas, então, pode ser
acusado de interromper a conversa, de mudar de assunto, de pretender “envenenar a
discussão”, de “elevar o tom” da conversa, coisas que, dependendo dos laços sociais
entre os interlocutores e das relações de poder entre eles, o destinatário pode não ter
interesse de desempenhar. O não-dito é, pois, não apenas forma de produção
(estigmatização), mas, também, de circulação, de disseminação do estigma negro. Fazer
circular o estigma e fazer falar as singularidades pré-individuais e impessoais, não-
intencionais, é a tarefa do não-dito.
No domínio do Mito da Democracia Racial, culpado (reprovável) é aquele que
tenta apresentar o discurso racial, racista ou não, na forma do discurso sério,
tematizando as relações raciais (“elevar o tom” = “envenenar a conversa”): Reconhecer
a idéia de raça e promover qualquer ação anti-racista baseada nesta idéia é interpretado
como racismo (cf. GUIMARÃES, 1999). Três exemplos serão ilustrativos desta regra
de interdição. A primeira é uma citação do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho:
A lei inventada pelo deputado petista Paulo Paim, que qualifica como racismo
e torna crime inafiançável (porca miséria!) o uso de expressões correntes como
“português burro”, “judeu esperto” ou “mulato pernóstico”, não só demonstra o
cinismo com que a esquerda dominante se arroga o direito de controlar o uso do
vocabulário, mas também o intuito perverso de usar esse controle para ressuscitar
e acirrar conflitos raciais que a quase instintiva democracia racial brasileira já
havia eliminado (
CARVALHO, 1997:224).
Além de mostrar completo desconhecimento da legislação anti-racista, em
particular da lei de injúria qualificada proposta por Paim e aprovada no ano em que foi
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
306
publicado o texto do qual extraímos esta citação, Carvalho reduz a questão ao “uso de
expressões correntes” e ao “direito de controlar o uso do vocabulário”. Por fim, afirma
que a legislação anti-racista ressuscita e acirra conflitos raciais que já haviam sido
eliminados pela “quase instintiva democracia racial brasileira”. E daí seu veredicto:
“porca miséria!”. Em primeiro lugar, quem torna o racismo, em geral, inafiançável é a
Constituição Federal de 1988. Em segundo lugar, fica patente o fetichismo lingüístico
acerca das manifestações do racismo. É como se a lei tratasse do uso de um vocabulário
e, portanto, buscasse controlar ou censurar um conjunto de palavras proibidas e não a
prática de um crime já previsto no Código Penal brasileiro, que é o crime de injúria,
qualificando-o, ou seja, apresentando como agravante o uso de valores racistas,
xenófobos ou nacionalistas para atacar a honra de uma pessoa. Por fim, está muito bem
resumida a defesa da “democracia racial brasileira”. Primeiro, qualificando de “intuito
perverso” a tentativa de trazer a questão do racismo para o debate público. Esta tentativa
traria à cena algo que não existia antes dela, isto é, os “conflitos raciais” não existiriam
antes daquela tentativa que, esta, sim, poria em risco a “democracia racial”.
Concordaríamos com Carvalho, desde que entendêssemos que a ausência de conflitos
raciais não significa a ausência de racismo, ao contrário, pode significar a estabilidade
de um regime racista: “Pax Alva
256
, resultante do que estamos chamando aqui de “Mito
da Democracia Racial” e que Carvalho chama de a “quase instintiva democracia racial”.
Tanto o termo “quase” quanto o termo “instintiva” são bastante sugestivos acerca da
natureza do que se acredita ser a “democracia racial brasileira” e que destacamos na
secção anterior. Ela teria eliminado os conflitos raciais, não estando em questão se tais
conflitos são emancipatórios ou não. O que está em jogo, portanto, é a manutenção da
paz e da ordem sociais vigentes. Evitar o conflito é, sobretudo, afastá-lo do debate
256
“Paz Branca”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
307
público e político. Porém, a inexistência de um racismo oficial e de um debate público
acerca dele não significa a inexistência do racismo em outras formas de discurso não-
oficiais: Fazer de conta que o problema não existe, não é resolvê-lo.
Outro exemplo é o dos antropólogos Yvonne Maggie e Peter Fry. Num artigo
que apresenta e analisa a opinião contrária dos leitores de jornais acerca da política de
cotas universitárias para pessoas negras afirmam os autores:
O que mais chama a nossa atenção nas cartas é a coerência dos argumentos. Os
leitores que as escreveram sugerem que a introdução de cotas raciais talvez não
alcance o que pretende e terá efeitos que irão muito além das finalidades explícitas
nos pronunciamentos dos governantes, em particular uma bipolarização racial e
um aumento de tensão inter-racial, sobretudo nas camadas menos favorecidas da
população. Todos aqueles que são a favor ou contra reconhecem que as cotas
raciais representam uma ruptura com a tradição a-racista brasileira (
MAGGIE
& FRY, 2004: 69).
E mais adiante reforçarão:
O argumento de que as cotas acabarão incentivando animosidades “raciais” não
pode ser facilmente descartado, porque a sua lógica é cristalina. Não se vence o
racismo celebrando o conceito “raça”, sem o qual, evidentemente, o racismo não
pode existir (
MAGGIE & FRY, 2004:77).
Nestas duas citações estão presentes as mesmas três premissas do texto de
Carvalho, ainda que estes últimos autores não chegassem às mesmas conclusões. A
primeira citação destaca já no início o que chama de “coerência de argumentos”.
Segundo nossa análise, esta expressão marca exatamente o lugar do (des)conhecimento
ideológico. Trata-se do estabelecimento retórico do ethos, caráter que o orador deve
parecer ter, porém, nestes casos, através do recurso de atribuí-lo a outro com o qual se
concorda. Todo o artigo se apresenta como a apresentação das próprias idéias pelo
comentário das idéias dos leitores. Ele apresenta duas premissas ou pressupostos: de um
lado, o temor do “aumento de tensão inter-racial”, de outro, da “ruptura com a tradição
a-racista brasileira”. Não fica claro o que os autores querem dizer com “tradição a-
racista”. Seria a inexistência de qualquer forma de racismo nas relações sociais,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
308
políticas, culturais e econômicas, ou a inexistência de um racismo oficial e
institucionalizado? No segundo caso, ainda haveria racismo nas relações sociais não-
oficiais ou informais. Neste caso, as cotas significariam trazer a temática racial para o
plano do discurso oficial, com suas práticas e instituições, nas políticas públicas. No
primeiro caso, as cotas instaurariam um problema inexistente na sociedade brasileira.
Na segunda citação, mais uma vez o recurso ao ethos retórico: “a sua lógica é
cristalina”. A necessidade de dizê-los indica o caráter polêmico ou erístico do que está
em discussão, portanto, nada cristalina. Porém surge uma nova premissa, reduzindo a
questão do racismo a uma questão meramente conceptual, teórica ou terminológica. É
outra versão do fetichismo lingüístico apresentado por Carvalho, mas desta vez numa
outra direção. O racismo desapareceria com a eliminação do conceito de “raça”. Do
conceito ou da palavra “raça” e afins. Diferente do liberalismo lingüístico de Carvalho,
defende-se uma eliminação da palavra “raça” e, com ela, “seu” conceito. É como se o
conceito “raça” pertencesse à palavra “raça”. Ao contrário, o deslocamento entre a
palavras “raça”, “cor” ou “etnia” pode mudar, mas não eliminar as relações e os
conflitos raciais. Enfim, o racismo independente de que nome se dê a ele.
Um último exemplo é apresentado pela psicóloga social Maria Aparecida Silva
Bento:
Quando uma pessoa branca se detém diante de uma banca de jornal, não estranha
que, das dezenas de revistas expostas, quase 100% exibam brancos na capa e com
freqüência no seu interior. Este contexto é supostamente natural para o
observador. No entanto, quando a pessoa visualiza, na mesma banca, uma revista
com imagens de negros na capa, intitulada Raça – A Revista dos Negros
Brasileiros, ela imediatamente reage: racismo às avessas! Uma revista só de
negros? (
BENTO, 2005: 165).
Aquele contexto dito natural é o que a autora chama de branquitude e está
sempre subentendido. A naturalidade da exclusão do negro (“não estranha...”) de
determinados espaços demarca a branquitude como natural, normal. A quebra desta
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
309
naturalidade é atacada como racismo, pois reinsere no dito aquilo que estava
subentendido: as relações raciais.
Grande parte das manifestações racistas são clandestinas e mal dimensionadas.
Os legados cumulativos da discriminação, privilégios para uns, déficits para
outros, bem como as desigualdades raciais que saltam aos olhos, são explicadas e,
o que é pior, freqüentemente “aceitas”, através de chavões que nenhuma lógica
sustentaria, mas que possibilitam o não enfrentamento dos conflitos e a
manutenção do sistema de privilégios.
O “racismo às avessas” é apenas um “chavão” de uma caixa de ferramentas
(“chavões”) que possibilita a interdição daquele movimento de tematização das relações
raciais e do racismo. Esta tematização das relações raciais é o que estamos chamando de
discurso racial. O discurso racial, racista ou não, só pode ser realizado no campo
“sério” sob a condição de ser subentendido ou ser negado.
O subtendido não deve ser confundido com o pressuposto. Este aparece desde o
componente lingüístico, como “significação”, aquele, desde o componente retórico,
como “sentido”:
Existe sempre, para qualquer enunciado, um “sentido literal” do qual os seus
subtendidos eventuais ficam excluídos. Estes aparecem portanto como acrescidos
(
DUCROT, 1977:142).
Assim, um locutor pode sempre se entrincheirar atrás da significação literal de
suas palavras (“não foi isso que eu disse”), alegando que se “põe palavras em sua boca”.
O subtendido pode sempre ser retratado. O raciocínio que produz o subtendido não tem
como ponto de partida apenas o enunciado, mas se baseia no acontecimento constituído
pela enunciação. O subtendido não é inferido daquilo que foi dito, mas do fato de que
foi dito. Esta não-tematização dos pressupostos e subtendidos racistas é causada, em
(Δ
1
), pelo (des)conhecimento ideológico que, em sua organização tópica (temática),
exclui as relações raciais como objeto válido de discurso.
Parte da indeterminação do racismo decorre do não-dito racista que torna
ambígua, quanto à intenção, a pretensa discriminação. Por outra parte, decorre do
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
310
(des)conhecimento ideológico das relações raciais que dificulta o recurso a enunciados
asseveráveis (“palavras de ordem”, “discursos autorizados”, “doutrinas”...), recursos
providos de autoridade para a construção de uma justificativa válida que torne a decisão
judicial razoável, e à produção de narrativas e argumentos que justificam essa decisão.
A gênese das categorias que dão sentido às identidades raciais (cf. capítulos 3 a 5), a
partir das relações raciais, demarca os processos de atribuição de sentido (intenção,
motivação, caráter, qualificação...) aos acontecimentos individuais e coletivos.
Intenções elementares de ação e inferências práticas simples são lingüisticamente
estruturadas, ou seja, o agir intencional depende essencialmente do uso de proposições
intencionais, tanto quanto o saber proposicional depende do uso de proposições
enunciativas (RICOUER, 1991).
Assim como Ricouer (1991), defendemos a tese de que a determinação da
responsabilidade de um sujeito é questão de decisão, deliberação, antes que de
constatação: “a atribuição de uma ação a um agente parece mais uma sentença [...] pela
qual um juiz atribui a cada uma das partes em competição o que lhe pertence” (p.131).
Os processos de atestação de intenção, portanto, fazem parte dos fluxos de
justiça que, mediante decisões ético-semânticas, fixam os sentidos das ações, ao mesmo
tempo que as distribuem e atribuem a sujeitos, numa situação de afrontamento entre
reivindicações rivais, ou seja, são processos de subjetivação num campo agonístico. O
sentido, incorporal enquanto modo de ser, toma corpo sob o efeito do princípio
hegemônico que aí se manifesta. É o que chamaremos mais adiante de constituição do
senso comum.
Aqueles processos, segundo o funcionamento dos mecanismos do “Mito da
Democracia Racial”, dificultam bastante a imputação de racismo e a responsabilização
de sujeitos ou agentes coletivos, haja vista o racismo ser entendido como um problema
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
311
de preconceito pessoal, idiossincrático e subjetivo, porém, que sempre é atribuído na
“terceira pessoa”: o racismo nunca é meu, sempre de outrem.
Contraditoriamente, admitir que o racismo é um problema social acaba se
tornando uma forma de desresponsabilização, pois “social” torna-se um outro nome
para “ninguém” ou “outrem” e para “inintencional”: o “racismo sem racistas” é uma
“função social não voluntária”, “estrutura sem agente”. Portanto, se o racismo é
subjetivo e individual, mas não se consegue atestar a intenção racista do indivíduo, não
há racismo, pelo menos, não como ação penalmente responsável.
A discussão sobre o “caráter” de alguém, sua caracterização, é um dos
mecanismos importantes na atestação de intenção de uma ação desse alguém.
Entendemos por caracterização a definição do caráter de um sujeito (RICOUER,
1991). Por caráter, entendemos o conjunto de marcas distintivas que permitiriam
reidentificar um “mesmo” sujeito na diversidade de suas ações. Entre os “princípios”
que o mecanismo da caracterização põe em funcionamento estão: a identidade
numérica e qualitativa (ou seja, A=A), a continuidade e permanência temporais, e a
coerência entre ações de um “mesmo” sujeito. Aliás, seriam estes princípios,
materializados em técnicas de si e de governamentalidade (p.ex. a responsabilização),
que efetivariam a mesmidade do sujeito no fluxo temporal dos eventos: a identidade
narrativa.
À qualificação da ação discriminatória e à atestação de intenção, junta-se a
caracterização do sujeito, ou seja, a discussão se determinado indivíduo é ou não
racista. Os aspectos fragmentário e descontínuo das práticas discriminatórias dificultam
a caracterização de alguém como “racista”. Sua prática discriminatória nunca é, do
ponto de vista narrativo e individual, suficientemente, consistente e coerente para que se
lhe pudesse atribuir o caráter racista: “racistas podem ter amigos negros?”. Como
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
312
vimos, aquela fragmentariedade narrativa é efeito do fato de que, no racismo “cordial”,
a discriminação ostensiva só é acionada quando a estabilidade da hierarquia racial é
colocada em ameaça. Esta fragmentariedade constitui o recurso chamado álibi negro
257
,
ou seja, o recurso retórico a uma relação, situação ou pessoa como exemplum in
contrarium: refutação da generalização mediante indicação direta dos casos particulares
compreendidos em seu enunciado aos quais não se pode aplicar: um amigo negro, um
parente negro próximo, cônjuge negro, gostos pessoais, hábitos etc. que o aproximem de
pessoas negras.
A caracterização do sujeito constitui um entimema cuja premissa maior seria:
“todo sujeito possui a qualidade que não hesitamos em atribuir à determinada ação sua”.
Portanto, pressupõe que a ação lhe seja atribuída pela intenção – a caracterização é o
argumento que justifica pelos seus atos a qualidade atribuída ao agente: Esta pessoa é
corajosa porque, em dada situação, comportou-se corajosamente; aquela outra é
covarde, porque se comportou como covarde. Esta premissa é problemática, em sua
generalidade, pois alguém que se comportasse uma vez corajosamente e outra vez
covardemente deveria ser qualificado, contraditoriamente, de corajoso e covarde. Esta
contradição se dá quando se perde a natureza dinâmica do sujeito, seu processo sempre
aberto de identificação, mais do que uma identidade fixa. Se acrescentarmos, contudo,
um quantificador que relativize a generalidade tal como “freqüentemente”, “quase
sempre” ou “nem sempre” teremos: “Gilberto quase sempre é covarde” ou “Gilberto
nem sempre é racista”. O que é indecidível é fixar se “o copo está meio cheio ou meio
vazio”, ou onde começa o “quase”. O que estaria, portanto, em questão não seria se o
ato é discriminatório ou não, mas se o sujeito teve intenção de discriminar ou se é
257
Tomamos esta expressão emprestada da professora de direito Liana Lins da Faculdade Integrada do
Recife – FIR.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
313
racista. Ou melhor, conforme a teoria jurídica dos tipos, um ato discriminatório será ou
não crime conforme seus elementos subjetivos: intenção ou caráter.
7.4 Semântica como sintomática: do inefável ao inegável
O “racismo” como intenção ou caráter de um sujeito é o sentido de uma ação.
Porém, o sentido é próprio da linguagem. É o atributo de uma ação que só a linguagem
pode apreender, mas que não pode ser dito no discurso empírico, pois nunca dizemos,
ao mesmo tempo, alguma coisa e o sentido daquilo que dizemos (ou fazemos). O
sentido é como a esfera em que estou instalado para operar as designações possíveis, e,
mesmo, para pensar suas condições. O sentido está sempre pressuposto desde que eu
comece a falar, o que seria impossível sem aquela pressuposição. Portanto, nunca digo o
sentido daquilo que digo (cf. DELEUZE, 1999: 39-44). Quando perguntamos o que
quer dizer esta palavra ou enunciado, as respostas dadas são sempre apenas paráfrases,
traduções mais ou menos inexatas de palavras ou enunciados por outras palavras ou
enunciados. A significação é, portanto, esta transposição de um nível de linguagem a
outro, e o sentido é apenas esta possibilidade de transcodificação (GREIMAS, 1975:13).
O sentido só pode ser dito, no uso habitual, através de outro acontecimento discursivo a
1
(comentário, interpretação, meta-linguagem) que toma um primeiro a
0
(e seu sentido)
como objeto, tendo seu sentido dito, por sua vez, por a
2
, numa regressão infinita do
pressuposto: a
0
, a
1
, a
2
, a
3
... Cada nome a é tomado primeiro na designação que opera e,
em seguida, no sentido que exprime, uma vez que é este sentido que é o designado ao
outro nome. Na medida em que se interdita o comentário a
i+1
sobre o acontecimento a
i
,
a única maneira que o “racismo”, como pressuposto de um acontecimento discursivo,
poderia ser dito, por esse mesmo acontecimento, é travestido de não-senso, sem-sentido,
em uma espécie de meta-discurso que, de uma só vez, diz a si mesmo e diz a seu
sentido. No não-dito racista, este sem-sentido se acentua pela contradição performativa
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
314
entre o acontecimento discursivo e seu sentido racista. Paradoxalmente, o sentido é dito
com a condição de ser não-senso. O “racismo” torna-se um discurso sem-sentido, um
dizer o indizível, aquilo que não é dizível, mas que deve ser dito, porém apenas como
não-dito, pois o desconhecimento ideológico do racismo barra a possibilidade de que o
“racismo”, como sentido de um acontecimento discursivo, seja tomado como objeto de
(ou seja dito por) outro acontecimento discursivo (“sério”). Haja vista que o sentido de
um acontecimento discursivo só pode ser dito através de outro, torna-se “impossível” o
advento do “racismo” como “sentido” de uma ação, de um enunciado, de um discurso.
Enfim, torna-se “impossível” a qualificação de uma ação (discriminação) como
“racismo”.
Assim, o “racismo” torna-se pura função do antagonismo social na forma de
discriminação: “Social antagonism involves a loss of meaning, which cannot be
symbolized. In a Wittgensteinian sense, social antagonism cannot be Said, but only
shown” (TORFING, 1999:44). O não-dito marca, pois, não apenas o interdito, mas,
também, o dito impossível, o indizível.
O Mito da Democracia Racial não é meramente uma crença enganosa ou falsa
consciência, mas, como dispositivo, efetiva as relações raciais como um jogo
antifrástico da negação do racismo, ou seja, afirma o contrário do que significa, institui
o que nega mediante o próprio ato de negação – Verneinung, contradição performativa.
Paradoxalmente, o que é negado não existe “antes” ou “fora” do ato de negação, mas é
instaurado pelo e no ato de negação: “Ninguém é racista”, “Nada é... “Nada aflige o
Negro”, ou seja, o Ser-negro é ameaçado pelo Nada.
Nada é nada de uno. A unicidade de significado é o que determina a não-
contradição da “essência”. Com o jogo antifrástico do Mito da Democracia Racial o que
é colocado em questão é a “essência” (o que é o racismo?) e não a “existência” do
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
315
racismo. O “nada” e o “ninguém” significamo a ausência de existência, mas sim de
“essência”, ou seja, de unidade de significado. Aqueles que se recusam a fixar o
significado das palavras suprimem a “essência” das coisas: o racismo é sempre erro,
mal-entendido, absurdo, simulacro, chiste, engodo (“pregar uma peça”, piada, figura de
linguagem). Porém, numa concepção canônica, palavras que dizem coisas que não têm
“essência” são palavras que dizem coisas que não existem, absurdas, impossíveis, pois
não têm designação possível. O não-ser assombra o Negro. O Ser-Negro é habitado por
um vazio existencial que o aterroriza. O terror racial se insurge como Nada. Como o
indizível negado.
É ao negar que eu afirmo: ao negar locucionariamente o racismo, o reproduzo
ilocucionariamente. O que é pressuposto não pode ser negado. A negação ou
falsificação de uma proposição não põe em questão seu pressuposto (cf. DUCROT,
1977).
O paradoxo do Mito da Democracia Racial consiste em que se o racismo é
inefável (indizível), ao mesmo tempo é inegável. Dado que a “negação do racismo”
confirma o próprio racismo, segue-se que o racismo é inegável – consequentia
mirabilis: reafirmação através da negação, eterno retorno do recalcado.
O paradoxo é, em primeiro lugar o que destrói o bom senso como sentido único,
mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas. O
Mito da Democracia Racial é, pois, um quase-transcendental, ou seja, ao mesmo tempo,
condição de possibilidade (quase-inegável) e de impossibilidade (quase-inefável) da
discriminação racial, do estigma. E de sua iterabilidade essencial para além de todo
contexto. O estigma é uma marca que permanece, que não se esgota no presente de sua
inscrição (discriminação racial) e pode dar lugar a uma iteração que comporta uma força
de ruptura com seu contexto.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
316
Aquele paradoxo é a conseqüência semântica de um fundamental imanentismo
no plano pragmático, ou seja, da natureza auto-referencial da prática discursiva, sua
recursividade, quando os elementos de um discurso devem ser empregados para definir
o próprio discurso, quando o discurso fala de si, quando uma prática coloca a si mesma
como objeto. Neste caso, não se pode sair do prático e a distinção entre discurso
(ilocucionário) e meta-discurso (locucionário) gera um jogo de recíproca refutação (a
contradição performativa) e de repetição, iteração, disseminação, recursividade,
objetividade auto-referencial, recorrência: toda a forma é geradora de força, toda força é
geradora de forma, todo discurso pressupõe outro, um interminável discurso indireto
livre... Campo de translação de enunciados-atos imanentes que seriam unidades
elementares à própria articulação. O estigma se transmite de um segundo a um terceiro,
de um dito a outro, retomando o que foi dito, repetindo o que foi feito.
O sentido é produzido pelo não-senso (sem-sentido) e seu perpétuo
deslocamento no campo de discursividade, nascendo da posição respectiva de elementos
que não são, por si mesmos, “significantes”. O sentido, seja a intenção ou caráter de um
sujeito, seja o atributo de uma ação, não é origem, princípio ou causa, mas é produzido.
Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou re-empregado, mas algo a produzir por
meio de novas maquinações. É um efeito de superfície, inseparável da superfície como
de sua dimensão própria. Resultado das relações corporais
258
, de suas ações e paixões,
das práticas discursivas, o sentido é sempre um efeito: efeito de superfície, efeito de
posição, efeito de linguagem (“efeito Carroll” (DELEUZE, 1999: 73)). A superfície
plana é o caráter de um discurso. O mais profundo é a pele: é seguindo a fronteira,
258
Os corpos e suas misturas produzem o sentido, não em virtude de uma individuação ou identidade que
o pressuporia. A individuação dos corpos e sua ordenação supõem o sentido e o campo de discursividade
em que ele se desdobra. Portanto, o sentido é produzido pelos corpos tomados na sua profundidade
indiferenciada, na sua pulsação sem medida que age por seu poder de organizar superfícies, de se
envolver em superfícies, ora pela formação de um mínimo de superfície para um máximo de matéria (a
forma esférica), ora pelo acréscimo das superfícies e sua multiplicação segundo procedimentos diversos
(estiramento, fragmentação, dobra, corte...). cf. DELEUZE, 1999:129.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
317
margeando a superfície que passamos dos corpos aos sentidos (cf. DELEUZE, 1999).
Por exemplo, ao estigma. Esta superfície pode dobrar-se, produzindo uma bifurcação,
uma repartição.
O não-senso ou sem-sentido não é falta ou ausência de sentido. Do ponto de
vista de uma estrutura, há sempre sentido demais, sobredeterminação: excesso
produzido pelo sem-sentido como privação de si mesmo. O sem-sentido é, ao mesmo
tempo, o que não tem sentido, mas que como tal opõe-se à falta de sentido, operando a
doação de sentido.
Os próprios paradoxos operam a gênese da contradição e da inclusão nas
proposições desprovidas de significação: o conjunto que se compreende como elemento
(p.ex. o conjunto de todos os conjuntos); o elemento que divide o conjunto que supõe
(p.ex. o barbeiro do regimento, terceiro incluído). A força dos paradoxos reside em que
eles não são contraditórios, mas nos fazem experimentar a gênese da contradição. O
princípio da contradição se aplica ao real e ao possível e, não, ao impossível do qual
deriva, isto é, aos paradoxos ou ao que representam os paradoxos (DELEUZE,
1999:77): o sem-sentido, a indecidibilidade, o antagonismo social, os conflitos raciais.
O interdito, o não-senso é, pois, o “conflito racial”, as relações raciais. O discurso racial,
racista ou não, pode instaurar o conflito racial como sem-sentido, não-senso (cf.
capítulo 5), discurso paradoxal que deve permanecer distante do campo “sério” do
discurso com suas leis regressiva
259
e disjuntiva
260
: determinações de significação
261
.
259
A lei regressiva afirma que o sentido de um nome deve ser designado por um outro nome. Cada nome
de grau diferente remete, do ponto de vista a significação a classes ou propriedade de “tipos” diferentes
(teoria lógica dos tipos): toda propriedade deve ser de um tipo superior às propriedades ou indivíduos
sobre os quais ela recai e toda classe deve ser de um tipo superior aos objetos que contém. Cf.
DELEUZE, 1999: 69-76 e RUSSEL, 1963: 128-140.
260
A lei disjuntiva afirma que a propriedade ou os termos com relação aos quais se faz uma classificação
não pode pertencer a nenhum dos grupos de mesmo tipo classificados com relação a ele. Um elemento
não pode compor os subconjuntos que determina, nem do conjunto cuja existência pressupõe. DELEUZE,
1999: 71.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
318
A força hegemônica toma a forma do temor do conflito racial. A verdadeira cara
da “moral cordial” mostra-se como uma reação ao perigo, ao absurdo, ao sem-sentido e,
portanto, uma busca de conservação, construindo, a partir desta reação todo um modo
de conceber as relações sociais: Mito da Democracia Racial brasileira. Porém, o
antagonismo, como vimos nos capítulos 3 e 4, nunca deixou de existir, apenas mudou
suas formas de manifestação, sendo a “democracia racial” uma delas. Em outras
palavras, a “democracia racial” se constitui por um ato de exclusão das relações raciais.
Mas o que dizer sobre o ato de exclusão em si, sobre a diferença constitutiva entre
“democracia racial” e as “relações raciais”: é ela mesma racial ou não? Tal alternativa é
indecidível, pois a “democracia racial” é constituída por um ato de exclusão que se
inscreve, ele mesmo, nas relações raciais. O que se tenta, portanto, é impedir que as
relações raciais se apresentem como relações políticas nos espaços de debate público,
nos discursos formais e institucionais de forma explícita. Portanto, a expressão
“democracia racial” é uma contradictio in adjecto, isto é, uma contradição nos termos,
pois só há democracia sob a condição de não ser “racial”. Entenda-se esta afirmação na
ambigüidade que lhe é própria, significando, ao mesmo tempo, que a verdadeira
democracia é anti-racialista (não fala sobre “raças” ou “relações raciais”) e que relações
raciais democráticas são impossíveis. Ao contrário, uma verdadeira democracia racial só
existe sob a condição de lidar com as relações raciais e resolver publicamente os
conflitos raciais, mediante um processo articulatório sempre provisório e parcial.
O sentido e o sem-sentido têm uma relação que não pode ser concebida como
uma relação de exclusão, como entre o verdadeiro e o falso. O sentido é produzido a
partir do sem-sentido, da sobredeterminação, do antagonismo. A “democracia racial”, a
partir do “conflito racial”, das relações raciais.
261
O interesse das determinações de significação é o de engendrar, respectivamente, os princípios de
não-contradição e do terceiro excluído.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
319
Isto conduz à necessidade de decisões ético-semânticas para
“(re)contextualização” nos processos de atestação da intenção, de caracterização do
sujeito e qualificação da ação na responsabilização do sujeito. Na decisão do sentido
(ético-semântica), este aparece como uma norma extrínseca ao discurso, como uma
decisão que pode ser recusada – força hegemônica.
Enfim, por tudo que vimos até aqui, o Mito da Democracia Racial implica numa
certa experiência lógica (semântica), ou seja, na revelação de certo defeito do regime da
bivalência (ser ou não-ser) aplicado em contextos conceptuais como o do Mito da
Democracia Racial e, simultaneamente, na sugestão de que diversos tipos de negações,
e diversos regimes lógicos (discursivos) – trivalentes, paraconsistentes, vagos – estão
em ação nas relações raciais brasileiras. Ademais, vimos que este jogo é jogado no
campo idiomático “vulgar” (Δ
0
), no qual o sentido é mais corporal que lingüístico, mais
fonológico que morfológico, mas expressivo que representativo. O discurso “vulgar”,
por não ser realista, ou seja, não fazer referência a algo no mundo, em outras palavras,
por não possuir valor ou pretensão de verdade, não está submetido ao princípio da não-
contradição ou da identidade. Os racistas podem dizer tudo que dizem, pois seu discurso
só se apóia em si mesmo, puro acontecimento discursivo, e não na natureza dos seres
nem na sua própria intenção de significar: “efeito sofístico”
262
.
A angústia e o desespero são a experiência da indeterminação ou
sobredeterminação das relações raciais. Na angústia, o sujeito constata o adelgaçamento
do tecido dos enunciados à sua disposição para falar: isso pela própria insistência das
relações raciais (retorno do recalcado) se fazerem enunciar ao deslocar-se de um
enunciado a outro (iterabilidade do código). Os enunciados se tornam insuportáveis
assim que ficam (en)carregados das relações raciais traumáticas (antagônicas). Neste
262
Cf. a noção de “efeito sofístico” em CASSIN, 2005.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
320
sentido compreendemos a exigência do equívoco, do ambíguo, do não-dito: sem eles
não poderíamos mais participar das relações raciais sem nos assumirmos como racistas.
Aquela exigência faz, pois, parte de uma competência social para participar,
ingenuamente ou cordialmente, das relações raciais brasileiras. É dessa perspectiva que
o discriminador reage à descoberta da discriminação mobilizando a mesma negação:
“isso eu não pensei; nisso (nunca) pensei”. O indizível pelo desconhecimento ideológico
deixa uma marca – o próprio símbolo da negação forjado sobre as marcas do rejeitado:
o não-dito.
Do lado do discriminado, a angústia decorre da impossibilidade de tornar
inteligível a intensidade que o afeta, de falar sobre o sofrimento que o aflige. O seu
sofrimento só ele sente, mas para saber que o sente, ou saber o que sente, é preciso
utilizar categorias intersubjetivamente válidas, ou seja, para que ele saiba o que sente é
preciso que outrem também possa sabê-lo. Porém o desconhecimento ideológico do
racismo impossibilita (foraclusão) ou invalida (recalcamento) o uso de categorias
raciais, dificultando a articulação da experiência traumática (antagônica) do racismo, em
todas as suas dimensões (preconceito, discriminação e desigualdade), a um discurso
racial – afasia racial...
Mesmo que muitos dos atos discriminatórios não sejam passíveis de queixa
judicial, muitos casos de racismo deixam de ser notificados como fruto da quase-
inefabilidade do racismo que, assim, provoca uma subnotificação da discriminação. Por
exemplo, o Ministério Público do Trabalho de Pernambuco diz não ter recebido nenhum
caso de discriminação racial em relações trabalhistas, talvez uma das áreas sociais onde
a discriminação seja mais sistemática. Este fato é agravado pelo princípio da rarefação
do racismo que reduz ao mínimo o número de ocorrências passíveis de queixa judicial.
Isso será melhor apresentado na última parte desta tese.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
321
Agora que vimos algumas das regras do jogo antifrástico do racismo brasileiro, e
seu efeito sofístico, veremos, nos próximos capítulos, como elas são jogadas (played) no
interior do sistema jurídico – com suas pretensões de univocidade de sentido, coerência
e completude, fundadas numa lógica bivalente da argumentação jurídica (justo ou
injusto, culpado ou inocente), com suas regras processuais. Veremos, em outras
palavras, como se dá o processo de tradução, racionalização (¥) jurídica (Δ
1
) daquele
jogo (Δ
0
). Os percalços da racionalização do discurso racial no processo judicial.
A ambigüidade ou a contradição afeta a objetividade do objeto (dimensão
ontológica), a verdade da proposição (dimensão lógica) e a crença do sujeito (dimensão
psicológica). Na tradução para Δ
1
, não se trata tanto, no antagonismo, de “racismo”
versus “anti-racismo”, mas de “há racismo” versus “não há racismo”: problema da
tipicidade.
O processo de racionalização implicará na “negação do racismo”, em diversas
formas judiciais. Nosso trabalho, portanto, preocupa-se com os processos de
(des)objetivação do “racismo” a partir do conflito entre os sujeitos sociais envolvidos no
fluxo de justiça.
No contexto do espaço jurídico, o problema da objetividade é que sempre “que um
juiz profere uma decisão, ele afirma a existência do que estamos designando fato
jurídico; (...)”. A questão é, pois, saber se aqueles fatos “são válidos independentemente
do que um certo juiz pensa ou, talvez, independentemente do que todos os advogados e
juízes pensariam” (COLEMAN & LEITER, 2000: 316), após uma subtração a um
horizonte semântico ou hermenêutico. Contudo, quando um estado de coisas ou evento
acarreta conseqüências jurídicas, é da existência ou da inexistência deste estado de
coisas ou evento que é preciso convencer as autoridades jurídicas.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
322
Parte 2:
O RACISMO INSTITUCIONAL:
O Fluxo dos Casos de Racismo no Sistema Jurídico na Região Metropolitana de
Recife
CAPÍTULO 8
A TRAJETÓRIA DOS CASOS NO SISTEMA JURÍDICO: JOGO DE LINGUAGEM NO
PROCESSO PENAL
O mundo tem um curso “necessário” e “calculável”, mas não porque nele vigoram
leis, e sim porque faltam absolutamente as leis, e cada poder tira, a cada instante,
suas últimas conseqüências. Acontecendo de também isto ser apenas interpretação
– e vocês se apressarão em objetar isso, não? – bem, tanto melhor!
Nietzsche, Além do Bem e do Mal, § 22
8.1 O Sistema Jurídico na Região Metropolitana de Recife: levantamento de dados.
Nosso objetivo nos próximos dois capítulos consistirá em, primeiramente,
identificar quando a invariabilidade “nomológica” (ou estabilidade estrutural) dos fatos
e práticas sociais (por exemplo, das trajetórias dos casos) expressa relações de
dependência congeladas ideologicamente que podem, a princípio, ser transformadas.
Não existe prática a não ser através de uma ideologia e dentro dela. Porém, não existe
ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos. Por meio da interpelação, o sujeito “é
chamado a existir”, é constituído como sujeito pela ideologia. A “evidência” da
identidade é o resultado de uma identificação-interpelação (responsabilização) do
sujeito. Em seguida, será preciso desconstruir os sentidos-identidades fixados que
promovem aquela “lei geral” dos fatos sociais, revelando as práticas articulatórias e de
fixação dos sentidos-identidades que orientarão as ações que reproduzem os fatos.
Nossa tarefa consistirá, neste capítulo, em reconstruir o sistema, recuperando
seus atributos a partir de um conjunto finito de amostras que o representa. Esta
reconstrução é feita através de algum tipo de interpolação sobre as amostras,
preenchendo as lacunas. Cada amostra poderá ser representada como um conjunto C de
curvas situadas em uma mesma instância ou plano Z, cuja interpolação será usada para
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
323
reconstruir a superfície que delimita o sistema, distribuindo os casos (figura 8.1 – fonte:
PEIXOTO & GATTASS, 2000: 2).
A área definida pelos contornos corresponde à proporção dos casos em uma dada
instância ou plano. A figura 8.1 b) é a representação de uma bifurcação, por exemplo,
em injúria qualificada e crime de racismo, ou decadência e instauração de ação penal
privada (ver mais adiante).
É preciso, antes de iniciarmos a análise, alertar que não se deve ver os casos no
sistema jurídico como representativos dos casos de discriminação racial que ocorrem
nas relações raciais cotidianas para além do sistema. Os casos no sistema jurídico que
estamos analisando são aqueles em que as supostas vítimas, por alguma razão, decidem
resolver o caso no sistema penal, representando, portanto, apenas uma parte dos casos
de discriminação ocorridos nas relações raciais. Nem todas as ocorrências de
discriminação são passíveis de resolução judicial ou, ao menos, criminal. Ademais, não
temos como mensurar quantos dos casos passíveis de criminalização deixam de ser
apresentados ao sistema jurídico. Portanto, as características encontradas nos casos
analisados não devem ser generalizadas para além do sistema. Talvez expressem ou
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
324
sejam representativas das ocorrências que tendem a serem denunciadas, dependendo do
perfil e das relações das partes e do contexto em que ocorreu a discriminação.
Haja vista sabermos de antemão que o número de casos criminais de racismo no
sistema jurídico não é muito grande, optamos por tentar acessar a totalidade dos casos
ocorridos na Região Metropolitana do Recife (RMR) (figura 8.2).
Figura 8.2
População Total por Raça, 2000
Pernambuco
Total Brancos Negros
7.918.344 3.238.329 4.585.950
% 41% 58%
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil
Tabela 8.1
Segundo dados do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, em 2000, a
população negra representava 58% da população de Pernambuco (Tabela 8.1).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
325
População Urbana por Raça, 2000
Pernambuco
Urbana Brancos Negros
6.058.249 2.541.330 3.403.515
% 42% 56%
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil
Tabela 8.2
A população urbana representa 76,5% da população total. As pessoas negras que
residem em espaços urbanos são 43% da população de Pernambuco e 74% da
população negra de Pernambuco. A população total da RMR, em 2000, é 2.639.670
pessoas, ou seja, cerca de 1/3 da população pernambucana, distribuída da seguinte
forma:
População Total, Urbana e Rural, 2000
Municípios da Microrregião Recife (Pernambuco)
Município Total Urbana Rural
Abreu e Lima (PE) 89.039 77.696 11.343
Camaragibe (PE) 128.702 128.702 0
Jaboatão dos Guararapes (PE) 581.556 568.474 13.082
Moreno (PE) 49.205 38.294 10.911
Olinda (PE) 367.902 360.554 7.348
Paulista (PE) 262.237 262.237 0
Recife (PE) 1.422.905 1.422.905 0
São Lourenço da Mata (PE) 90.402 83.543 6.859
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil
Tabela 8.3
Em 1998, o Dieese e o INSPIR estimavam que a população negra representava 64% da
população total da RMR e 63% da População Economicamente Ativa (PEA) (INSPIR e
Dieese, 1999: 15). Segundo dados do Dieese, em 2004, a população negra representa
cerca de 71,4% da população em idade ativa na RMR, a segunda maior proporção
dentre as regiões metropolitanas (gráfico 8.1).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
326
Vê-se pelos dados que a população negra não representa uma minoria quantitativa
na RMR, tendo forte presença na população com idade economicamente ativa. É neste
contexto geográfico-humano que se desenvolvem os casos que analisaremos.
Os casos analisados aqui entraram no sistema jurídico entre os anos de 1998 e
2005. Conseguimos levantar um total de 53 casos que teriam conseguido superar a fase
do mero registro de ocorrência feito nas delegacias, tornando-se inquéritos policiais.
Ano de Entrada
2 1,3 3,8
7 4,4 13,2
7 4,4 13,2
7 4,4 13,2
6 3,8 11,3
8 5,0 15,1
4 2,5 7,5
12 7,5 22,6
53 33,3 100,0
106 66,7
159 100,0
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
Total
Válidos
SystemInválidos
Total
Freqüência % % válido
Tabela 8.4
Gráfico 8.1
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
327
A tabela 8.4, acima, mostra a distribuição dos casos encontrados conforme o ano
de entrada no sistema jurídico. Temos uma média de 6,6 casos por ano que chegam, no
mínimo, à fase de inquérito. O gráfico 8.2 apresenta os casos obtidos segundo o ano de
entrada no Sistema Jurídico, apenas dos casos que produziram inquéritos.
Gráfico 8.2
Ano de Entrada
Ano de Entrada
20052004200320022001200019991998
%
30
20
10
0
23
8
15
11
131313
4
Vê-se que cerca de 23% dos casos foram registrados no ano de 2005.
Praticamente, todos os casos deste período ainda estão com os processos em andamento,
impossibilitando algumas conclusões quanto ao destino final dos casos, haja vista, não
se terem concluído.
Além dos casos encontrados, tivemos acesso a alguns dados estatísticos do
Departamento de Estatística da Polícia Civil (DESTAC) para os anos de 2002 em
diante, conforme veremos a seguir (tabelas 8.5 a 8.10). A partir deles, tiramos o número
médio de registros de ocorrência de casos de discriminação racial (22,7 B.O.s por
ano
263
) e estimamos a quantidade de casos para o período estudado de 7 (sete) anos,
chegando ao total de 159 casos. Desta forma, para os fins estatísticos que pretendemos,
263
Esta média é uma estimativa grosseira, certamente, muito aquém do número real de ocorrências,
baseada no número de ocorrências de crime de racismo registradas na região metropolitana e no número
de inquéritos de injúria qualificada. Este último número é menor ou igual ao número de ocorrências de
injúria qualificada ao qual não tivemos acesso. Por isso, a média está subestimada.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
328
acrescentamos os 106 casos restantes que não viraram inquéritos policiais sobre racismo
ou injúria racial, ainda que não consigamos ter acesso aos boletins de ocorrência
produzidos (ver tabela 8.4). Com esta interpolação, fazemos com que os inquéritos
analisados representem 33% do número estimado de registros de ocorrência de
discriminação racial. Portanto, mais de 66% dos registros de ocorrência não se tornam
inquérito policial.
A maior quantidade dos casos foi, inicialmente, identificada conforme os dados
coletados na Central de Inquéritos do Ministério Público de Pernambuco (MPPE). A
partir dos quais, procuramos localizar os casos identificados em suas respectivas Varas
Criminais da Capital no Fórum de Justiça da Capital, no bairro de Joana Bezerra. O
gráfico 8.3 mostra a distribuição dos casos conforme as varas criminais: 16,22% dos
casos foram distribuídos para a 7ª. Vara Criminal da Capital; 13,51% foram distribuídos
para a 3ª. Vara Criminal da Capital e 10,81% para a 1ª. Vara Criminal da Capital.
264
Infelizmente, a Central de Inquéritos dispunha apenas dos inquéritos produzidos
na capital
265
: 88,68%. Os demais casos da Região Metropolitana do Recife foram
conseguidos através da solicitação do vice-corregedor do Ministério Público aos
promotores das comarcas da Região Metropolitana de Recife para que estes
identificassem casos de racismo, injúria qualificada e tortura nos últimos 5 (cinco) anos.
As respostas, em sua maioria, foram negativas. Foram identificados, apenas, 1 (um)
caso em Olinda, 1 (um) em Abreu e Lima, 1 (um) em Itapissuma, outro em Bonito. Não
está evidente se a informação das comarcas da RMR corresponde à realidade dos fatos,
porém, quando comparamos com os dados estatísticos da DESTAC, parecem
verossímeis. O número de ocorrências registradas é insignificante se comparado ao da
264
Mesmo quando o total dos casos é inferior a 100, utilizamos a proporção percentual (%) para
uniformizar a informação, facilitando a leitura.
265
Há um projeto para, em 2006, ampliar o banco de dados para todo território de Pernambuco.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
329
capital. Porém, tal informação não corresponde a todo o período trabalhado com os
casos da capital, mas apenas aos últimos 5 (cinco) anos. O caso de São Lourenço da
Mata foi encontrado no site do Tribunal de Justiça, no link referente à jurisprudência
sobre casos de racismo. É a única jurisprudência dos últimos 7 (sete) anos (cf. Gráfico
8.4).
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Gráfico 8.3
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
330
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Gráfico 8.4
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
331
8.2 As ocorrências de discriminação racial
É provável que haja uma subnotificação dos casos de discriminação racial. Muitas
pessoas não reconhecem ou não se sentem motivadas a prestar “queixa” de
discriminação racial. Não é possível mensurar a intensidade desta subnotificação,
porém, algumas comparações permitirão ter uma noção da sua existência.
Se compararmos o crime de racismo, ora com um crime de menor potencial
ofensivo como o de injúria, ora de maior potencial ofensivo como o de tortura,
poderemos estabelecer estes como parâmetros (máximo e mínimo) que nos permitam
inferir o quão pequeno é o número de casos de racismo e injúria racial.
Pelas tabelas 8.7 e 8.8, podemos perceber, primeiro, que o número de ocorrências
de racismo correspondem a pouco mais de 2% dos casos de injúria registrados entre
2002 e 2003. Ademais, apenas 0,74% dos casos de injúria produz inquérito, ou seja,
uma vez que, como veremos mais adiante, apenas os casos de injúria qualificada
instauram inquérito (a injúria simples instaura Termo Circunstancial de Ocorrência –
TCO), 0,74% dos casos de injúria, entre 2002-2003, torna-se inquérito de injúria
qualificada. Por outro lado, 41,16% dos casos de injúria tornam-se TCO. Um nível de
permanência no sistema bem superior ao do racismo, no mesmo período, apenas 17,3%
das ocorrências de racismo tornaram-se inquéritos.
No período de 1998 a 2005, foram encontrados 53 inquéritos para casos de
racismo ou injúria qualificada para toda Região Metropolitana, enquanto foram
registrados 78 inquéritos para casos de tortura, apenas na cidade de Recife, segundo
dados conseguidos na Central de Inquéritos do Ministério Público de Pernambuco. A lei
de tortura no. 9.455 é do ano de 1997, sendo, também, além de bastante recente,
controversa na constituição de seu tipo penal. Quando se leva em consideração a última
formulação da lei 7.716 e a instituição da qualificadora da injúria que são, também, de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
332
1997, vê-se a distância na aplicabilidade da legislação dos crimes de tortura e da
legislação anti-racista. Mesmo sendo um crime de maior potencial ofensivo, podendo
levar a penas de até 10 anos de reclusão, e tendo como controversa, por um lado, 1) a
distinção entre o tipo penal da tortura e os tipos penais da lesão corporal e do abuso de
autoridade; por outro, 2) os elementos subjetivos do tipo – “intenso sofrimento mental”
(quando é que este se torna tortura?), “com o fim de...” – o número de ocorrências
registradas e de inquéritos instaurados é bem maior que nos casos de racismo.
Comparando-se as tabelas 8.5 e 8.6 com as tabelas 8.9 e 8.10, observa-se que, no
período entre 2004-2005, as ocorrências da RMR representaram 28,33% dos casos do
Estado de Pernambuco. Vê-se, também, pelas tabelas 8.5 a 8.10, que a quase totalidade
das ocorrências registradas ocorreram em espaço urbano. Isto não expressa,
necessariamente, a realidade da discriminação racial para além do sistema jurídico, mas
deve-se, entre outras coisas, à diferença no acesso à justiça entre os espaços urbano e
rural. Deve-se destacar, também, que comparando a tabela 8.4 com as tabelas 8.7 a 8.10,
nota-se que, enquanto o número de inquéritos vem crescendo entre 2002 e 2005,
contraditoriamente, o número de ocorrências diminuiu. Isto pode significar que uma
proporção maior de registros de ocorrência discriminatória produz inquérito policial, ou,
talvez, um número maior de ocorrências tem sido denunciado ao Ministério Público,
sem produzirem Boletim de Ocorrência (B.O.). Com as informações que temos não é
possível ter certeza, mas em pesquisa posterior poderemos responder.
Ocorrências verificadas na circunscrição do Estado de Pernambuco no ano 2004
Ocorrência
Tipo de crime/ocorrência
Urbana Rural Praeira Total
Racismo
37 0 0 37
Fonte: Banco de Dados do DESTAC Tabela 8.5
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
333
Ocorrências verificadas na circunscrição do Estado de Pernambuco no primeiro
semestre de 2005
Ocorrência
Tipo de crime/ocorrência
Urbana Rural Praeira Total
Racismo
20 2 1 23
Fonte: Banco de Dados do DESTAC Tabela 8.6
Movimento de registros de ocorrências criminais e procedimentos policiais iniciais
da meso-região Metropolitana no ano de 2002
Ocorrências TCO IP Inst. Natureza
da
Ocorrência
Urbana Rural Praia Total Insta. Remetido TR(%) Portaria Flagrante Total
Injúria
839 2 0 841 185 140 75,67% 13 0 13
Racismo
31 0 0 31 0 0 0% 4 0 4
Fonte: Banco de Dados do DESTAC Tabela 8.7
Movimento de registros de ocorrências criminais e procedimentos policiais iniciais
da meso-região Metropolitana no ano de 2003
Ocorrências TCO IP Inst. Natureza
da
Ocorrência
Urbana Rural Praia Total Insta. Remetido TR(%) Portaria Flagrante Total
Injúria
1518 53 3 1574 809 671 82,94% 4 1 5
Racismo
21 0 0 21 0 0 0% 2 3 5
Fonte: Banco de Dados do DESTAC Tabela 8.8
Ocorrências verificadas na circunscrição da Região Metropolitana no ano de 2004
Ocorrência
Tipo de crime/ocorrência
Urbana Rural Praieira Total
Racismo
10 0 0 10
Fonte: Banco de Dados do DESTAC Tabela 8.9
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
334
Ocorrências verificadas na circunscrição da Região Metropolitana no primeiro
semestre de 2005
Ocorrência
Tipo de crime/ocorrência
Urbana Rural Praeira Total
Racismo
6 0 1 7
Fonte: Banco de Dados do DESTAC Tabela 8.10
8.3 A movimentação dos casos de discriminação racial no sistema jurídico
8.3.1 Registro de ocorrência
Entendendo-se vítima de discriminação racial, a pessoa supostamente
discriminada pode dirigir-se a uma delegacia para prestar a notitia criminis,
popularmente denominada “queixa” ou ao Ministério Público (MP) para apresentar a
representação.
Se for realizado o flagrante do ato discriminatório, as autoridades policiais e seus
agentes, assim como qualquer cidadão, podem, em presença de testemunhas, dar “voz
de prisão” a quem se encontre em flagrante delito, como dispõe o art.301 do Código de
Processo Penal (CPP), encaminhando-se para a delegacia onde será produzido, pelo
escrivão de polícia, após interrogatório da autoridade policial, o “flagrante” ou “auto de
flagrante”, que tem alto valor probatório, fixando a certeza da infração e de sua autoria.
Caso não haja prisão em flagrante, deverá ser produzido pelo escrivão o Boletim de
Ocorrência (B.O.), registrando a data, horário, local do fato, os nomes das partes
envolvidas, e a narrativa do fato, indicando a lista das testemunhas.
Observa-se, pelas tabelas 8.7 e 8.8, que de um total de 27 inquéritos instaurados
4 (14,8%) foram flagrantes. Dos nossos 53 inquéritos analisados, entre 1998 e 2005,
apenas 6, ou seja, 11,3% foram resultantes de prisão em flagrante, 66%, foram
resultantes de Boletim de Ocorrência e os 22,7% restantes não temos informação sobre
origem. A tabela 8.11 mostra a proporção das prisões em flagrantes, considerando-se
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
335
todos os casos (159) e o total dos casos válidos, ou seja, conhecidos (41). Neste último
caso, a proporção dos flagrantes sobe para 14,6% e a dos boletins de ocorrência para
85,4%.
266
Como apenas um dos casos de prisão em flagrante teve seu processo
finalizado (decadência), não foi possível estabelecer se havia relação entre o fato dos
casos terem origem, ou não, em prisão em flagrante e suas trajetórias no caso. O que
parece certo é que a prisão em flagrante não acelerou significativamente a velocidade do
processo, pois a imensa maioria dos casos iniciados com prisão em flagrante ainda não
foi finalizada, apesar dos casos com réu preso terem prazos processuais menores.
Mesmo porque, nenhum dos réus permaneceu preso, todos respondendo processo em
liberdade.
Prisão em Flagrante
6 3,8 14,6
35 22,0 85,4
41 25,8 100,0
118 74,2
159 100,0
Sim
Não
Total
Válido
DesconhecidoInválido
Total
Freqüência % % válido
266
Em todos os gráficos estão sendo considerados apenas os casos conhecidos. Em alguns casos não nos
foi possível acessar os autos, não sendo possível, em conseqüência, saber, por exemplo, se houve ou não
flagrante, em que situação se deram os fatos ou qual o perfil das vítimas, acusados ou testemunhas.
Tabela 8.11
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
336
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N
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s
A maioria dos casos ocorreu nos bairros de Boa Vista (11,1%), Casa Forte
(8,9%), Casa Amarela (8,9%), seguidos de Vasco da Gama (6,7%), Santo Amaro
(6,7%) e Boa Viagem (6,7%).
Âmbito das relações sociais
7,1%
3,6%
10,7%
25,0%
7,1%
3,6%
39,3%
3,6%
Meios de Comunicação
Família
Negócios
Trabalho
Nas ruas
No trânsito
Vizinhança
Consumo
Gráfico 8.5
Gráfico 8.6
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
337
39,3% dos casos, nos quais se teve acesso aos fatos ocorridos, aconteceram nas
relações de vizinhança; 25,0% em relações de trabalho e 10,7% nos negócios. No bairro
da Boa Vista, metade dos casos se deu nas relações de trabalho e a outra metade, nos
negócios. No bairro de Casa Forte, todos os casos ocorreram nas ruas, enquanto em
Casa Amarela, 66,7% dos casos aconteceram em relações de trabalho e os demais, nas
relações de vizinhança. Em Vasco da Gama, metade dos casos refere-se a relações de
vizinhança e a outra metade a relações de trabalho, enquanto em Boa Viagem, todos os
casos se deram em relações de trabalho. Pelos dados, percebe-se que a maioria dos
casos ocorreu em bairros populares da zona norte de Recife, em relações de vizinhança
(60%) ou de trabalho (56%).
8.3.2 O inquérito policial
Nos casos de “baixo potencial ofensivo”, com pena máxima de até dois anos,
como no caso de injúria simples que tem pena máxima de 1 (um) ano, deve ser
produzido um Termo Circunstancial de Ocorrência (T.C.O.) e encaminhado para
Juizado Especial. Não nos foi possível mensurar quantos casos de discriminação racial
acabam sendo qualificados como injúria simples, ao invés de injúria qualificada ou
crime de racismo. Porém, no próximo capítulo, pretendemos analisar dois casos deste
tipo de trajetória que denominaremos ε. Nos casos de injúria qualificada, a pena é de um
a 3 três anos, devendo produzir I.P. a ser encaminhado para vara criminal.
A Delegacia de Polícia Civil procederá, então, ao Inquérito Policial (I.P.),
apurando a existência ou não do fato denunciado. O I.P. consiste na peça que visa à
apuração de um ato infracional e sua autoria, servindo de base à ação penal ou às
providências cautelares. É a investigação que, mediante instrução extrajudicial,
procedimento administrativo, e à falta de flagrante, origina-se de simples representação,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
338
indício, notícia ou informação, sendo considerado menos eficiente que o flagrante na
produção de elementos de convicção (art.304 CPP).
Nos crimes de ação penal pública, como o tipo penal definido pela Lei Caó (no.
7.716/89), o inquérito policial poderá, também, ser iniciado mediante requisição do juiz
ou representante do MP, por delação de qualquer pessoa que tenha conhecimento de
existência de infração penal ou após flagrante. Já nos crimes de ação privada, como o
tipo penal da injúria qualificada (art. 140 § 3º.), a autoridade policial somente irá
instaurar I.P. a requerimento do ofendido ou seu representante legal.
Todas as peças do I.P. serão reduzidas num só processo, formando os “Autos do
Inquérito”, sendo feito, ao final, um relatório acerca do que tiver sido apurado.
Tratando-se de crimes de ação privada, os autos serão remetidos ao juiz competente,
aguardando iniciativa do ofendido ou representante legal (a queixa-crime), bem como
poderão ser devolvidos ao requerente que os pedir. A autoridade policial, porém, não
poderá mandar arquivar o I.P. que acompanhará a denúncia (ação pública) ou a queixa
(ação privada). Em se tratando de ação penal pública, o I.P. deverá ser remetido para
vara criminal que o enviará ao M.P. para que o mesmo apresente ou não denúncia.
Enquanto para a polícia, 59,62% dos inquéritos referem-se a crimes de racismo,
para o Ministério Público, estes são apenas 25%. 69,44% referem-se a injúrias
qualificadas e 5,56% foram requalificados para outro tipo penal. Ou seja, cerca de
34,62% dos casos tiveram sua qualificação inicial modificada pelo Ministério Público.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
339
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Gráfico 8.7 a
Gráfico 8.7 b
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
340
O insulto estava presente em 86,7% dos inquéritos analisados, representando
71,4% dos crimes de racismo e 95% dos crimes de injúria qualificada. Portanto, o uso
de termos insultuosos é decisivo para identificar a ocorrência da discriminação racial,
qualificada nas formas de injúria ou crime de racismo, porém não para distinguir estas
duas formas. Não é possível, pelos dados que temos, afirmar que exista uma relação
entre o uso dos termos insultuosos e a qualificação dos casos pelo MP (cf.tabela 8.12).
Uso do Insulto
86,7%
13,3%
Com insulto
Sem insulto
Qualificação do Caso pelo MP * Uso do Insulto
2 5 7
28,6% 71,4% 100,0%
1 19 20
5,0% 95,0% 100,0%
1 1
100,0% 100,0%
3 25 28
10,7% 89,3% 100,0%
N
%
N
%
N
%
N
%
Crime de Racismo (Lei
7716/89)
Injúria Racial (CP 140/3)
Outros
Qualificação
do Caso
pelo MP
Total
Sem insulto Com insulto
Uso do Insulto
Total
Gráfico 8.8
Tabela 8.12
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
341
8.3.3 A denúncia do MP ou a queixa-crime
Caso o M.P., em vez de oferecer a denúncia, solicite o arquivamento do I.P. ou
de quaisquer peças de informação, o juiz poderá determinar o arquivamento se aceitar as
razões apresentadas. Em caso contrário, remeterá os autos ao Procurador Geral de
Justiça do M.P. O Procurador, por seu turno, oferecerá denúncia ou indicará outra
promotoria do M.P. para fazê-lo. Se o Procurador Geral reiterar o pedido de
arquivamento, o juiz, então, estará obrigado a determinar o arquivamento. A ação penal,
condicionada ou incondicionada, é iniciada pela denúncia do M.P., devendo conter a
exposição do fato criminoso, a identificação do acusado, a classificação do crime, o rol
de testemunhas. No ato do recebimento da denuncia, o “indiciado” passa a ser chamado
“réu”. A denúncia é argumentativa, indicando as provas por meio das quais a acusação
formou sua opinio delicti. Tivemos apenas um caso de pedido de arquivamento do
inquérito, correspondendo a 0,76% dos inquéritos instaurados, mas 33% dos casos
qualificados como crime de racismo. Os demais casos de arquivamento por solicitação
do MP foram por decadência do direito de queixa.
O M.P. pode, também, apresentar parecer desclassificando o crime de racismo
para outro crime que não seja de ação blica incondicionada como a injúria
qualificada, na qual a vítima tenha que constituir advogado particular ou defensor
público. No caso de ação penal privada, o juiz, de posse do I.P. aguardará a iniciativa do
ofendido que deverá se manifestar no prazo estabelecido por lei, após o qual o juiz
determinará que o I.P. seja arquivado. O ofendido ou seu representante legal “decairá”
de seu direito de queixa ou de representação se não a fizer dentro do prazo de 6 meses,
contando do dia em que souber que é o autor do crime, ou em que se esgotar o prazo
para o oferecimento da denúncia (art. 38 CPP). Uma vez feita a queixa, inicia-se a ação
penal. Os casos de racismo aguardam prioridade de crimes de maior poder ofensivo, em
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
342
especial, com réu preso, nos quais os prazos processuais são menores e o fluxo,
portanto, mais veloz.
Qualificação do Caso pela Polícia
17 17,5 -,5
18 17,5 ,5
35
Crime de Racismo (Lei
7716/89)
Injúria Racial (CP 140/3)
Total
N
Observado
N
Esperado
Resíduo
Qualificação do Caso pelo MP
8 11,7 -3,7
25 11,7 13,3
2 11,7 -9,7
35
Crime de Racismo (Lei
7716/89)
Injúria Racial (CP 140/3)
Outros
Total
N
Observado
N
Esperado
Resíduo
Há uma diferença significativa entre a freqüência das categorias da variável
“qualificação do caso” pelo Ministério Público (tabela 8.13), mas, não, pela Polícia
(tabela 8.14). Ou seja, podemos afirmar que o Ministério qualifica os casos mais como
injúria qualificada do que como crime de racismo, apesar de a Polícia qualificá-los,
praticamente na mesma proporção (a diferença é mínima apesar de percentualmente
parecer maior). Isto significa que alguns casos entendidos pela Polícia como Crime de
Racismo são qualificados pelo Ministério como Injúria qualificada. Parece haver uma
considerável discordância (antagonismo) entre os sentidos aplicados aos casos pela
Delegacia e pelo Ministério Público.
Tabela 8.13
Tabela 8.14
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
343
Se o M.P. apresentar denúncia de um crime de racismo e o juiz desclassificar o
tipo penal apresentado na denúncia, entendendo-o como um crime de injúria, o juiz
decretará a extensão de punibilidade em virtude de decadência, e conseqüente
arquivamento do feito. Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a
punibilidade, deverá declará-lo de ofício. Tanto a denúncia como a queixa será rejeitada
quando já estiver extinta a punibilidade pela prescrição ou outra causa. 11,7% dos casos
finalizados caíram em decadência, representando 68% dos inquéritos produzidos. Ou
seja, 68% dos inquéritos não instauram processo penal.
8.3.4 O processo penal
Instaura-se o processo penal com o despacho do juiz ordenando a citação do réu
que representa o ato processual pelo qual se dá conhecimento ao réu da acusação contra
ele intentada, a fim de integrar a relação processual para que possa defender-se. Na ação
penal privada poderá ser concedido o perdão pela parte ofendida, por meio de
declaração expressa nos autos, sendo o acusado intimado a dizer, no prazo de 3 dias, se
o aceita, porém seu silêncio significará aceitação. Uma vez aceito o perdão, o juiz
julgará extinta a punibilidade.
a) o acusado
Uma vez instaurado o processo penal, procede-se ao interrogatório do acusado,
modalidade de prova que é, simultaneamente, meio de defesa, pois possibilita ao réu
defender-se da acusação que lhe é imputada, sendo de poder exclusivo do juiz, não
podendo o advogado intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e respostas. O
juiz poderá determinar novo interrogatório a qualquer tempo. Havendo co-réus, cada um
deles deverá ser interrogado separadamente.
O réu será perguntado sobre seu nome, naturalidade, estado civil, idade, filiação,
residência, meios de vida ou profissão e lugar onde exerce a sua atividade e, ainda, se
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
344
sabe ler e escrever. Em 62,7% dos inquéritos, os acusados eram do sexo feminino
(gráfico 8.9); 39,3% eram solteiros e 32,1% casados (gráfico 8.10); 42,1% dos réus que
tiveram sua cor registrada foram declarados de cor “branca” ou “clara”, 42,2% dos
acusados que tiveram sua cor registrada foram declarados de cor “parda” ou “parda
clara”, 5,3% “morena”, 5,3% “pessoa de cor” e, apenas, 5,3% “negra” (gráfico 8.11). O
número de acusados que não tiveram sua cor registrada foi grande, representando 88%
dos acusados; 39% dos acusados tinham curso superior completo. 21,7%, o nível médio
completo. Ou seja, 60,7% tinham, no mínimo, o nível médio. Como veremos, um nível
de escolaridade superior ao das vítimas. 50% dos acusados tinham entre 41 e 50 anos.
Outros 25%, entre 31 e 40 anos; 14,3%, entre 51 e 60 anos. Ou seja, 89,3% dos
acusados tinham mais de 30 anos. Existe uma diferença significativa entre as faixas
etárias dos acusados diferentemente do que ocorre com as vítimas. Estas informações
estão sendo dadas a título informativo e meramente descritivo. Em trabalhos posteriores
deveremos analisar o que podem significar e porque se apresentam desta forma. Por
exemplo, porque a maioria dos acusados é mulher, diferentemente do que acontece com
as vítimas, onde a diferença na proporção entre os sexos é insignificante? Não
acreditamos que isto expresse a realidade externa ao sistema jurídico. Algumas
hipóteses podem se levantadas: a) quando os agressores são mulheres as vítimas
sentem-se mais à vontade para apresentar queixa? b) haveria formas de discriminação
“masculina” e “feminina”, sendo estas mais passíveis de queixa do que aquelas? Por
exemplo, à medida que se espera que as mulheres sejam menos agressivas física ou
verbalmente, quando, assim, se comportam, são socialmente sancionadas. Por outro
lado, o uso de uma linguagem “vulgar” (obscena, ofensiva, agressiva) é mais comum
entre homens, servindo, inclusive, como indicador de “masculinidade”, tornando mais
ambígua a prática discriminatória que aparece como “cordialidade masculina”. Além
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
345
disso, as práticas “masculinas” de discriminação seriam menos parecidas com
“briguinhas” ou “desentendimentos” privados e pessoais. Talvez por isso mesmo a
proporção de casos de discriminação considerados crime de racismo seja maior entre
homens que entre mulheres, ainda que permaneça superior, entre aqueles, a proporção
de injúria qualificada (cf. tabela 8.15). Podemos afirmar, então, que existe uma relação
significativa entre o sexo dos acusado e o tipo de ação penal que será definida.
Sexo do Acusado * Qualificação do Caso pelo MP
5 20 25
20,0% 80,0% 100,0%
4 5 2 11
36,4% 45,5% 18,2% 100,0%
9 25 2 36
25,0% 69,4% 5,6% 100,0%
N
%
N
%
N
%
Feminino
Masculino
Sexo do
Acusado
Total
Crime de
Racismo (Lei
7716/89)
Injúria Racial
(CP 140/3)
Outros
Qualificação do Caso pelo MP
Total
Tabela 8.15
Sexo do Acusado
3,9%
33,3%
62,7%
ambos
Masculino
Feminino
Gráfico 8.9
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
346
Estado Civil do Acusado
10,7%
17,9%
32,1%
39,3%
Viúva
Separado
Casado
Solteiro
Cor do Acusado
5,3%
5,3%
5,3%
21,1%
21,1%
5,3%
36,8%
pessoa de cor
clara
negra
parda
parda clara
morena
branca
Gráfico 8.10
Gráfico 8.11
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
347
Escolaridade do Acusado
39,1%
4,3%
21,7%
4,3%
13,0%
8,7%
8,7%
Superior Completo
Superior Incompleto
Médio Completo
Médio Incompleto
Fundamental Completo
Fundamental Incomple
Analfabeta
Idade do acusado na data do fato
14,3%
50,0%
25,0%
3,6%
7,1%
de 51 a 60 anos
de 41 a 50 anos
de 31 a 40 anos
de 21 a 30 anos
de 11 a 20 anos
Informado da acusação que lhe é feita, o acusado será interrogado. Se negar a
acusação, no todo ou em parte, será convidado a indicar as provas de sua defesa. Se o
réu confessar a autoria, será perguntado sobre os motivos e as circunstâncias da ação e
se outras pessoas concorreram para o evento.
Gráfico 8.12
Gráfico 8.13
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
348
A confissão consiste no reconhecimento, feito pelo próprio réu, da própria
responsabilidade. Portanto, a negação da acusação de racismo pelo acusado, como
veremos no próximo capítulo, não significa, necessariamente, a negação dos fatos
apresentados na acusação ou de sua autoria, mas da qualificação desses fatos, dos
sentidos, razões e relações envolvidos. Faz-se, portanto, uma redescrição retórica dos
fatos, a partir dos elementos fornecidos pelo Mito da Democracia Racial, conforme
adiantados nos capítulos anteriores. Portanto, não se trata apenas de afirmar ou negar os
fatos, mas de negar que os fatos narrados constituam crime: o que está em jogo, neste
caso, não são fatos, mas interpretações.
b) a vítima
Sendo possível, o ofendido será identificado e perguntado sobre as
circunstâncias da infração, quem seja o autor da mesma e as provas que possa indicar.
50% das vítimas eram do sexo feminino; 42,6% eram solteiros e 42,3% casados; 66,7%
das vítimas que tiveram sua cor registrada foram declarados de cor “parda”, 16,6%
“morena” ou “morena clara” e 16,4% “negra”. O número de vítimas que não tiveram
sua cor registrada foi ainda maior que entre os acusados, representando 92,5% dos
acusados; 5,3% das vítimas tinham curso superior completo; 31,6%, o nível médio
completo. Ou seja, 63% tinham, no máximo, o nível médio completo. Escolaridade
inferior à dos acusados; 22,2% das vítimas tinham entre 41 e 50 anos; 29,6%, entre 31 e
40 anos; 22,2%, entre 21 e 30 anos. Outros 18,5% das vítimas tinham menos de 20
anos. Não existe uma diferença significativa entre as faixas etárias das vítimas. O que
possam significar estas características dos acusados, teremos que tratar em outro
trabalho que não aqui.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
349
Sexo da Vítima
5,8%
44,2%
50,0%
ambos
Masculino
Feminino
Estado Civil da Vítima
11,5%
42,3%
46,2%
Separado
Casado
Solteiro
Gráfico 8.14
Gráfico 8.15
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
350
Cor da Vítima
16,7%
8,3%
66,7%
8,3%
negra
morena escura
parda
morena
Escolaridade da vítima
5,3%
5,3%
31,6%
15,8%
10,5%
26,3%
5,3%
Superior Completo
Superior Incompleto
Médio Completo
Médio Incompleto
Fundamental Completo
Fundamental Incomple
Gráfico 8.16
Gráfico 8.17
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
351
Idade da vítima na época do fato
7,4%
22,2%
29,6%
22,2%
11,1%
7,4%
de 51 a 60 anos
de 41 a 50 anos
de 31 a 40 anos
de 21 a 30 anos
de 11 a 20 anos
menos de 10 anos
c) as testemunhas
A grande maioria das decisões judiciais, em matéria criminal, e, em especial, o
crime de racismo, funda-se em provas testemunhais. O depoimento das testemunhas
deverá ser prestado oralmente e, não sendo permitida à testemunha trazê-lo por escrito,
não lhe sendo vedada a breve consulta a apontamentos.
Qualquer pessoa pode ser testemunha no processo penal.
As testemunhas deverão ser inquiridas uma de cada vez, de forma que uma não
ouça o depoimento da outra. Antes de iniciado o depoimento, as partes poderão
contraditar a testemunha, argüir circunstâncias ou defeitos que a tornem suspeita de
parcialidade, ou não merecedora de confiança. O juiz fará consignar a argüição ou
deferi-las, apenas, se julgá-las não pertinentes ao processo. O juiz não deverá permitir
que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais, a não ser que sejam consideradas
inseparáveis da narrativa do fato.
Quanto ao número de testemunhas, a lei estabelece, com o objetivo de evitar a
demora no encerramento do processo um número máximo. No processo comum, defesa
e acusação podem arrolar até 8 (oito) testemunhas cada.
Gráfico 8.18
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
352
8.3.5 A sentença judicial
Na fase final do processo, caberá ao juiz, pelo exame das provas existentes nos
autos e pelo disposto no direito vigente, proferir a sentença, aplicando a lei ao caso
concreto. Em sentido amplo, a sentença é qualquer pronunciamento judicial de primeiro
grau, envolvendo um julgamento. Em sentido estrito, a sentença representa uma decisão
definitiva proferida por juízo monocrático (um único juiz), que encerra a relação
processual, julgando o mérito da causa. Porém, convém distinguir as decisões dos meros
despachos que são atos praticados no processo e que visam ao seu regular
processamento.
As decisões em sentido amplo podem ser classificadas em interlocutórias
simples, interlocutórias mistas e definitivas (GIUSTI, 2004:89-90). As decisões
interlocutórias simples são as que decidem sobre questões que emergem do processo,
conduzindo ao seu regular desenvolvimento, a exemplo da decisão que recebe a
denúncia, entre outras. As decisões interlocutórias mistas são decisões, com força de
definitivas, encerrando uma parte ou todo do processo, sem, contudo, decidir sobre o
mérito da causa em juízo. Quando encerram uma parte do processo são chamadas não-
terminativas, a exemplo da suspensão condicional do processo. Ao contrário, quando a
decisão encerra o processo sem o julgamento do mérito, denomina-se terminativa, a
exemplo da decisão que reconhece a ilegitimidade da parte. As decisões definitivas são
as decisões em sentido estrito, que solucionam o litígio. Podem ser condenatórias,
quando acolhem a pretensão punitiva, ou absolutórias, quando, ao contrário, não
acolhem àquela pretensão. As decisões absolutórias podem ser próprias quando,
efetivamente, não acolhem referida pretensão, ou impróprias, quando, embora recusem
a pretensão, reconhecem a prática da infração e impõem medida de segurança ao réu. As
decisões definitivas podem ser, ainda, denominadas terminativas de mérito, nos casos
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
353
em que não se verificam a condenação ou absolvição, a exemplo da decisão que declara
extinta a punibilidade.
A sentença absolutória de natureza declarativo-negativa proclama a inexistência
do jus puniendi, a partir das seguintes condições: a) estar provada a inexistência do fato;
b) não haver prova da existência do fato; c) não constituir o fato infração penal; d) não
existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; e) existir causa que exclua o
crime ou isente o réu de pena; e) não haver prova suficiente para a condenação. A
grande maioria dos casos de discriminação racial absolvidos deve-se aos itens c) e e).
Em nossa amostra há apenas quatro sentenças em sentido estrito, ou seja, que julgam o
mérito dos casos, sendo duas delas absolutórias. As sentenças representam 2,5% das
ocorrências registradas e 7,5% dos inquéritos produzidos, 16% dos processos
instaurados e finalizados.
A sentença é um ato jurídico processual que produz seus efeitos “desde já”, isto
é, ou libera o réu da relação, ou cria o status de réu condenado, podendo, tais efeitos,
serem parcialmente suspensos em grau de recurso. A sentença deverá conter um
relatório, uma fundamentação ou motivação, e um dispositivo ou conclusão.
O relatório deverá conter os nomes das partes ou, ao menos, indicações
necessárias para identificá-las, assim como, a exposição sucinta das razões apresentadas
pela acusação e pela defesa. Na fundamentação, o juiz desenvolve o raciocínio jurídico
justificando os motivos pelos quais formou sua convicção, indicando os motivos de fato
e de direito em que se funda sua decisão, bem como os dispositivos de lei aplicáveis ao
caso concreto. O dispositivo consiste no verdadeiro comando a ser obedecido pela
aplicação da lei, contendo a data e a assinatura do juiz.
Dos quatro casos que terminaram em sentença de mérito (uma absolvição por
injúria qualificada, uma condenação por injúria qualificada uma absolvição por crime de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
354
racismo e uma condenação por crime de racismo), três sofreram recurso. Este último
possui acórdão produzido pelos Desembargadores do Tribunal de Justiça que não
aceitaram a apelação criminal e mantiveram a sentença condenatória. Os outros dois
casos ainda estão em processo no Tribunal de Justiça, esperando o parecer do
Desembargador-relator. Nossos dados, ratificam a afirmação de Shecaira & Correia Jr
(2002: 424):
Em 2001, de acordo com os dados fornecidos pelo jornal Folha de São
Paulo, com base em levantamento do Ministério das Relações Exteriores feito para
3ª. Conferência da ONU contra o racismo, realizada na África do Sul em agosto de
2001, há no Brasil menos de 150 processos por crime de racismo. A maior parte
deles tramitou em Estados da Região Sudeste. Minas Gerais contabiliza 97,
seguido por São Paulo, com 19, Rio de Janeiro com 6 e Espírito Santo com 1.
Embora existam inúmeras ocorrências policiais (só na Região Sudeste são mais de
800), o número de casos que redundaram em processo criminal são relativamente
diminutos.(...) Nossas leis,, pensadas e concebidas para a punição do racismo, esta
é a verdade, fracassaram, não saíram do papel, transformaram-se em “letra
morta”, o que motivou a arguta observação de Hédio Silva Jr., segundo a qual
houve “uma vitória no texto legal e uma derrota no cotidiano”.
8.4 O sistema jurídico e a distribuição dos casos
O estado de um sistema num dado instante ou instância é dado pela distribuição
das posições e direções dos casos que o constituem. Sua relação com o seu estado em
qualquer outro instante ou instância deve-se às forças que atuam sobre o sistema. A
variação de um estado (posição e direção) no sistema é determinada pelas forças que
agem sobre esse sistema, aplicando-lhe uma trajetória. As forças são determinadas pelo
estado do sistema nesse instante ou instância. A resultante ou dominante de um conjunto
de forças é chamada aqui de força hegemônica. Conhecendo o estado de um sistema no
instante inicial, podemos calcular como este estado varia, sua trajetória, e indicar o
estado provável do sistema em qualquer outro instante.
Uma vez que as trajetórias são prováveis, é possível recorrer a uma abordagem
estatística de base probabilística. A descrição estatística corresponde a uma
generalização do conceito de trajetória, que encontramos quando tomamos uma dada
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
355
distribuição dos casos. O problema do cálculo das trajetórias é substituído pelo da
análise da evolução da função de distribuição estatística. O estado do sistema no
instante inicial pode ser disposto conforme certa probabilidade, em vez de ser fixado de
forma precisa. Sendo assim, em qualquer outra instância o sistema terá, também, uma
distribuição aleatória, e essa distribuição poderá ser deduzida da distribuição no
momento inicial. É possível, pois, determinar regras de formação variáveis (hipotéticas)
que governam a evolução de distribuições de probabilidades. Estas regras são
discursivas, ou seja, regras que presidem o surgimento, o funcionamento, as mudanças,
o desaparecimento, em determinado momento, de um discurso, regras que definem
aquele jogo que autoriza o que é permitido dizer, como se pode dizê-lo, quem pode
dizê-lo, a que instituições e práticas sociais está vinculado o que é dito, enfim, o que
deve ou não ser aceito como verdadeiro. Trata-se de um sistema de dispersão, de
repartição e de repetição dos enunciados e seus elementos: formação discursiva.
O direito é, pois, constituído a partir de variantes sobre as quais se estabelecem
regras “hipotéticas” – fundamentadas na quantificação de percentuais efetivos de
aplicação e de variação, sem os quais a regra não seria válida. A aplicação categórica
(quando o Coeficiente Hegemônico π = ±1) passa a ser de fato uma variação limite da
regra variável do sistema, o caso em que ela atinge a “plenitude” de aplicação e passa a
ser categórica. O sistema pode ser estabelecido, por esse método, nas bordas de práticas
heterogêneas, na diversidade de sujeitos e na ambigüidade de sentido, sobre a
estruturação interna da variação inerente à prática discursiva, mostrando a variabilidade
inerente ao sistema e incluindo a variação na instituição das regras de formação e dos
padrões discursivos. Nosso método consiste em estabelecer séries diversas (p.ex.,
trajetórias), entrecruzadas (mesmo tipo), divergentes muitas vezes (tipos diferentes),
mas não autônomas, que permitem circunscrever o “lugar” do acontecimento, as
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
356
margens de sua contingência, a vizinhança de sua singularidade, as condições de sua
aparição. Em outras palavras, localizar os pontos de inflexão pela força hegemônica.
Assim, como os autores anteriores constataram, o número de ocorrências é
significativo, porém cerca de 81% delas, levando-se em consideração os casos válidos
(que já tem um destino final, ou seja, que tiveram sua movimentação encerrada), não se
transformaram nem em inquérito policial (IP) de caso de racismo nem de injúria
qualificada: portanto π
1
= -0,62. Existe uma diferença considerável entre o número de
casos que não se tornam IP (trajetórias β, ε ) e os que prosseguem no sistema (cf. tabela
8.17). Outra considerável proporção dos casos, 13% dos casos válidos termina em
decadência do direito de queixa (trajetória η), ou seja, apesar do inquérito produzido,
não foi dada queixa-crime por injúria qualificada, no prazo de 6 meses após o fato (cf.
tabela 8.18). Isto significa que 94% das ocorrências registradas nem ao menos chegam à
abertura de processo, encerrando-se antes de virarem ação penal.
Levando-se em consideração apenas os inquéritos produzidos, os casos de
decadência representam cerca de 68% dos casos, contra 32% dos casos que se tornam
ação penal privada ou denúncia de crime de racismo, prosseguindo no sistema, sendo
85% dos casos de injúria que não se transformam em ação penal: portanto, π
2
= -0,70.
(cf. tabela 8.18). Pela intensidade do Coeficiente Hegemônico π na instância, é-nos
possível afirmar que existe uma diferença entre a proporção de casos de decadência e os
demais inquéritos de injúria qualificada. O mesmo não ocorrendo com as demais
instâncias, pois, devido a esta mesma dissipação dos casos, a quantidade de casos a
partir deste ponto é muito pequena para podermos afirmar que exista diferença no
encaminhamento dos casos no judiciário (cf. as tabelas 8.16 a 8.21 na página 343).
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
357
Trajetórias dos Casos no Sistema Jurídico
106 66,7 80,9
17 10,7 13,0
4 2,5 3,1
1 ,6 ,8
1 ,6 ,8
1 ,6 ,8
1 ,6 ,8
131 82,4 100,0
2 1,3
26 16,4
28 17,6
159 100,0
Ocorrência não se
transforma em IP ou TCO
Decadência
Absolvição, suspensão
condicional do processo,
perdão
Condenação da injúria
qualificada
Arquivamento do IP de
crime de racismo
Absolvição, suspensão
condicional ou
trancamento do processo
Condenação do crime de
racismo
Total
Válido
Destino desconhecido
Processo em andamento
Total
Inválido
Total
Freqüência % % válido
A partir de agora, podemos construir uma tipologia das trajetórias assumidas
pelos casos de discriminação racial no sistema penal (cf. gráfico na página 360):
0. α é a trajetória na qual os casos não são nem ao menos denunciados pela
vítima, não ingressando no sistema jurídico, ou seja, não produzindo
registro de ocorrência. Portanto, segundo a figura 2.8 (capítulo 2), α =
〈δ
0
,
0
, sendo o número subscrito correspondente ao comprimento da
trajetória /α/ = 0;
1. β é a trajetória segundo a qual os casos tem sua ocorrência registrada,
mas não produzem nem TCO nem IP como racismo, podendo ser
requalificados para outros tipos penais. β = 〈δ
0
, δ
1,
1
; /β/ = 1;
Tabela 8.16
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
358
2. ε é a trajetória na qual os casos são encaminhados para juizado especial,
sendo considerados injúria simples; ε = 〈δ
0
, δ
1,
1
’’; /ε/ = 1;
3. Em η, os casos são considerados nos IPs como injúria qualificada, mas
ocorre extinção da punibilidade por decadência antes que possa ser
aberto processo de ação penal privada por queixa-crime, devido ao
esgotamento do prazo processual. η = 〈δ
0
, δ
1,
δ
2,
2
; /η/ = 2;
4. Em θ, há instauração do processo, finalizando com sentença absolutória.
θ = 〈δ
0
, δ
1,
δ
2,
δ
3
,
δ
4
,
δ
5
; /θ/ = 5;
5. μ é a trajetória dos casos considerados como injúria qualificada e
terminados com sentença condenatória. μ = 〈δ
0
, δ
1,
δ
2,
δ
3
,
δ
4
,
δ
5
; /μ/ = 5;
6. ρ é a trajetória na qual os casos, após inquérito, são considerados crime
de racismo, mas o MP solicita seu arquivamento. ρ = 〈δ
0
, δ
1,
δ
2,
2
; /ρ/ =
2;
7. τ refere-se aos casos em que há apresentação de denúncia pelo MP, mas
suspensão condicional do processo, trancamento do processo, ou
sentença absolutória. Estas 3 categorias podem ser consideradas
subtrajetórias de τ como acontece com ε e β ou μ, θ e η. Porém, devido
ao pouco número de casos, resolvemos mantê-las agregadas. τ = 〈δ
0
, δ
1,
δ
2,
δ
3,
δ
4,
δ
5
; /τ/ = 5;
8. ω refere-se à trajetória dos casos de ação penal pública que terminam em
sentença condenatória. ω = 〈δ
0
, δ
1,
δ
2,
δ
3,
δ
4,
δ
5
; /ω/ = 5.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
359
Tabela 8.17
<= 2 106 ,81
> 2 25 ,19
131 1,00
β+ε
Total
Trajetórias dos Casos
no Sistema Jurídico
Categoria N
Prop.
Observada
Tabela 8.18
<= 3 17 ,81
> 3 4 ,19
21 1,00
η
Total
Trajetórias dos Casos
no Sistema Jurídico
Categoria N
Prop
Observada
Tabela 8.19
<= 4 3 ,75
> 4 1 ,25
4 1,00
θ
= μ
Total
Trajetórias dos Casos
no Sistema Jurídico
Categoria N
Prop.
Observada
Tabela 8.20
<= 6 1 ,33
> 6 2 ,67
3 1,00
ρ
Total
Trajetórias dos Casos
no Sistema Jurídico
Categoria N
Prop.
Observada
Tabela 8.21
<= 7 1 ,50
> 7 1 ,50
2 1,00
τ
= ω
Total
Trajetórias dos Casos
no Sistema Jurídico
Categoria N
Prop.
Observada
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
360
Com os dados que temos, tentaremos, agora, comparar as freqüências das
trajetórias observadas com as trajetórias esperadas dos casos. Para tal, é preciso dizer
quais freqüências seriam esperadas. A hipótese de nulidade H
o
dá a proporção de casos
que adotam cada uma das trajetórias do sistema, ou seja, a partir da hipótese de
nulidade, podemos deduzir as freqüências E
i
esperadas.
Segundo nosso modelo apresentado no capítulo 2, cada decisão nas instâncias do
sistema jurídico representa uma proporção estatística de ½ sob H
o
, isto é, a partir de um
ponto aleatório ou ponto de indecidibilidade. Cada trajetória tem um número diferente
de decisões, implicando em proporções finais diferentes que são dadas por 1/2
m
, onde m
é o número de decisões tomadas, sendo 1 m 4. O fluxograma dos casos apresenta a
distribuição esperada dos casos conforme eles vão sendo repartidos “meio a meio” nas
diversas bifurcações do sistema. Esta distribuição esperada é apresentada, também, na
tabela 8.22 a seguir. Nenhuma das freqüências esperadas é inferior a 5. Existe uma
grande diferença entre a distribuição observada dos casos estudados nas trajetórias e sua
distribuição esperada pela hipótese de nulidade. Em outras palavras, há uma quebra da
simetria na distribuição dos casos nas trajetórias, efeito de uma intervenção
hegemônica.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
361
TIPOLOGIA DAS TRAJETÓRIAS: Fluxograma dos Casos
α
ω
τ
ρ
θ
η
ε
β
μ
1/4
1/8
1/4
1/16
1/16
1/16 1/16
1/8
?
Figura 8.3
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
362
Segundo a tabela 8.22, observa-se, também, que a maior diferença entre a
freqüência observada e a freqüência esperada está no soma das trajetórias β e ε, ou seja,
a grande maioria dos casos sai do sistema antes da produção do inquérito, não apenas
porque está no início do percurso de ramificações do processo, mas tem uma proporção
(0,83) muito acima da esperada (0,5) na distribuição dos casos. F
o
(x) é a distribuição
teórica e S(x) é a distribuição efetiva. Existe, portanto, uma intensa força de finalização
dos casos neste intervalo do sistema, haja vista O
i
>E
i
.
Trajetórias (X)
α β+ε η θ μ ρ τ ω
O
i
(E
i
) ? 106
(64)
17
(16) 4 (8) 1 (8) 1 (16) 1 (8) 1 (8)
F
o
(x) ? 0,5 0,125 0,0625 0,0625 0,125 0,0625 0,0625
S(x) ? 0,81 0,130 0,0305 0,0076 0,0076 0,0076 0,0076
(O
i
– E
i
)
? 42 1 4 7 15 7 7
Tabela 8.22
Apesar daquela distribuição quebrar a simetria na distribuição das freqüências
das trajetórias, não ocorreu uma quebra da hierarquia destas freqüências. Ao contrário,
ela foi reforçada, pois a imensa maioria dos casos foi eliminada no início das trajetórias,
aumentando a freqüência das menores trajetórias β, ε e η. Neste último caso, quase não
há diferença entre o observado e o esperado. Nos demais casos, O
i
< E
i
. Sendo assim,
ainda existe uma diferença no número de casos para cada uma das 7 trajetórias, e
quaisquer diferenças observadas não são variações aleatórias.
Em resumo, existe uma intensa pressão para que os casos sejam finalizados antes
mesmo que sejam colocados sob julgamento no processo penal e, após aberto processo,
antes que seja julgado o mérito dos casos sob julgamento. Isto produz a seguinte
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
363
distribuição dos casos segundo suas trajetórias, levando-se em consideração apenas os
processos já finalizados.
Trajetórias
α β+ε η θ μ ρ τ ω
% ? 81% 13% 3,05% 0,76% 0,76% 0,76% 0,76%
Tabela 9.23
A distribuição dos casos no sistema corresponde a uma “estrutura motivacional”
na qual cada proporção é o efeito de um “poço de potencial” (atrator) para o qual se
dirigem (são atraídos) os casos (cf. secção 2.4). Semanticamente, esta estrutura
motivacional se expressa na adesão mais ou menos forte às razões apresentadas nas
justificações das decisões. Cada proporção faz parte de um efeito de sentido cuja
signficação analisaremos no próximo capítulo.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
364
CAPÍTULO 9
O DISCURSO JURÍDICO
O que não está nos autos não está no mundo.
Res judicata pro veritati habetur
.
267
Adágios jurídicos
9.1 Gênese estática do direito: do não-dito ao inaudito
Veremos, agora, como se dá o processo de tradução, racionalização (¥) jurídica
(Δ
1
) daquelas trajetórias, em outras palavras, a judicialização das relações raciais no
processo penal.
A racionalização conduz à constituição do bom senso e do senso comum. Ao
contrário do paradoxo, cuja potência consiste em mostrar que o sentido toma sempre os
dois sentidos ao mesmo tempo, as duas direções ao mesmo tempo (a indecidibilidade), o
bom senso se diz de uma direção. O bom senso é senso único, exprime a existência de
uma ordem hegemônica conforme a qual é preciso escolher uma direção e se fixar a ela,
indo, assim, do mais diferenciado ao menos diferenciado. Sua função é, pois, de
previsão. O bom senso é essencialmente repartidor; sua fórmula é “de um lado ou de
outro lado”, mas a diferença é posta no início, tomada em um movimento dirigido
encarregado de acumulá-la, igualá-la, anulá-la, compensá-la (DELEUZE, 1999). Uma
tal repartição implicada pelo bom senso se define precisamente como distribuição fixa,
em que todos os caracteres citados anteriormente se reúnem. Porém, a distribuição fixa
que o bom senso opera pressupõe uma outra distribuição aberta sobre a qual opera:
campo de discursividade. O bom senso desempenha papel capital na determinação da
significação, mas nenhum na doação de sentido. Porém, a doação de sentido não se faz
sem que sejam determinadas condições de significação às quais os termos das séries,
uma vez providos de sentido serão, ulteriormente, submetidos em uma organização
267
Coisa julgada é tida como verdade.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
365
hegemônica que os refere às leis de formação (bom senso e senso comum). O bom
senso não apenas determina a direção particular de um sentido único como, também,
determina primeiro o princípio de um sentido único (p.ex.,“democracia racial”),
mostrando que este princípio, uma vez dado, nos força a escolher tal direção de
preferência à outra, estando, portanto, associada à força hegemônica.
No senso comum, o “sentido” não é dito mais de uma direção, mas de uma função
que relaciona uma diversidade qualquer à forma da identidade. O senso comum
identifica, reconhece, assim como o bom senso prevê. Subjetivamente, o senso comum
subsume uma diversidade de faculdades, órgãos, afetos e impulsos a uma unidade capaz
de dizer “eu”: unidade de vontade. Objetivamente, o senso comum, através das práticas
articulatórias, subsume a diversidade dada e a refere à unidade de uma forma particular
de objeto ou de uma forma individualizada de mundo.
Para instaurar o bom senso e o senso comum jurídicos, o sistema precisa recorrer a
algumas pretensões. Existem, por exemplo, presunções legais juris tantum que admitem
a prova em contrário e, por esta razão, pertencem ao domínio da prova. Por exemplo, a
presunção da inocência do acusado ou réu até uma prova em contrário. Esta presunção
impõe o ônus da prova ao acusador. Assim, ninguém é racista até que se prove. Esta
presunção vai de encontro à afirmação de que vivemos numa sociedade racista, na qual
as relações sociais são sistematicamente discriminatórias. Portanto, reforça, ainda que
indiretamente, a tese da “democracia racial”. O racismo será sempre um ato individual,
desde que o discriminado consiga prová-lo. É esta mesma presunção que é
desconsiderada quando se trata de suspeitos negros ou pobres, em alguns processos
penais como homicídio, roubo e estupro.
A presunção de inocência é o pressuposto do princípio do in dubio pro reo, ou
seja, na dúvida, o réu permanece inocente. A inocência é o estado natural de toda
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
366
pessoa. A ambigüidade, a indeterminação, a contradição, a equivocidade, enfim, a
dubiedade mantém a dúvida e, portanto, a inocência. A dimensão da significação deve
se dar já pronta no sentido da lei, concebido como predicado geral: “o racismo”; mas,
também, a dimensão de designação deve ser dar na relação suposta do sentido como um
objeto qualquer determinável ou individualizável: “a discriminação racial” (fato
jurídico); assim, como na dimensão da manifestação, no posicionamento de um sujeito
que conserve a forma da pessoa, da consciência pessoal e da identidade subjetiva como
caracteres empíricos: “o racista”. Assim, dá-se no sentido da lei tudo que seria preciso
engendrar a partir dela na decisão.
Ao contrário, a verdadeira decisão dá-se a partir de um não-senso, ponto de
indecidibilidade, quase-causa imanente, senão em um campo de discursividade
impessoal, não tendo a forma de uma consciência pessoal sintética ou de uma identidade
subjetiva. Só após a decisão colocam-se um sujeito que se manifesta, classes e
propriedades objetivas significadas e sistemas designáveis individualizados de maneira
objetiva. Contudo, é forçoso, para o sistema, que o não-senso e o sentido estejam em
uma oposição simples e que o sentido apareça simultaneamente como originário e como
confundido com o texto da lei. O não-senso, portanto, é jogado para o lado do fato
desqualificado, sendo rejeitado todo predicado ou toda propriedade que não exprimem
nada de real: “fora da pessoa ou indivíduo não distinguireis nada...” (DELEUZE, 1999).
Fora da pessoa não há culpa.
Ademais, ao lado das presunções simples, juris tantum, existem em direito
presunções irrefragáveis juris et de jure que, por não admitirem a prova em contrário,
foram muitas vezes assimiladas a ficções.
268
Um exemplo de presunção irrefragável é
268
PERELMAN (2004) discorda desta identificação entre as presunções irrefragáveis e as ficções
jurídicas. Aqui, manteremos a distinção, ainda que não estejamos certos de sua adequação, pois baseada
num problemático saber acerca da realidade dos fatos pelo sujeito jurídico. Ou seja, a presunção
irrefragável poderia ser uma ficção que acredita na sua realidade, ou que não se sabe contrária à realidade.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
367
expresso pelo adágio: “Ninguém ignora a lei”. Isto é, ninguém poderá, sobretudo em
direito penal, apresentar como escusa válida o fato de ignorar as prescrições legais. A
inocência pode ser negada, mas a ciência da lei, não. É assim que se instituem sujeitos
penalmente responsabilizáveis.
Enfim, o sistema jurídico tem a pretensão de ser consistente, completo e decidível
(portanto, axiomatizável). Tal pretensão configura-se como uma ficção jurídica. A
ficção jurídica, ao contrário da presunção irrefragável, é uma qualificação dos fatos
sabidamente contrária à realidade jurídica. A necessidade de recorrer à ficção é
significativa, pois indica que a realidade jurídica constitui um freio inadmissível à “boa”
administração da “justiça”.
Aquele que recorre à ficção jurídica manifesta uma revolta contra a realidade
jurídica, a revolta de quem acredita não ter condição para modificá-la, mas
escusa-se a submeter a ela, porque ela o obrigaria a tomar uma decisão que julga
injusta, inadequada ou insensata (
PERELMAN, 2004: 89).
O recurso à ficção é a expressão de um mal-estar que desaparece com a
intercessão de legislador ou uma interpretação da lei que leva em conta a
modificação da ideologia jurídica. É o caso, por exemplo, do problema da
proporcionalidade da pena no tipo penal da injúria qualificada. A pena para a
injúria simples é de um a seis meses de detenção, enquanto para a injúria
qualificada é de um a três anos de reclusão. Tal distância entre as penas causou
perplexidade a doutrinadores como Damásio de Jesus, pois a qualificadora do §
3º. do art. 140 do CP atua como medida de culpabilidade, numa violação dos
princípios da proporcionalidade e da lesividade. Há uma grande desproporção na
proteção do bem jurídico honra e na proteção de outros bens jurídicos, como o
bem jurídico vida, que, no homicídio culposo, recebe menor punição: a pena,
isoladamente aplicada, é a detenção de um a três anos, ao passo que na injúria
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
368
qualificada é de reclusão cumulada de multa. Isto, segundo acentua Damásio de
Jesus, dificulta a aplicação do § 3º. do art. 140 do CP.
A violação de um princípio geral que faz parte do direito não escrito pode
ser evocada na justificativa da sentença, sem referência a uma lei ou regra legal
escrita e, até mesmo, em oposição a ela, quando se quer evitar a aplicação da lei
que se considera injusta, ao menos nas circunstâncias do caso, como veremos num
exemplo apresentado no capítulo 9.
Este mesmo recurso poderia ser usado para superar as antinomias da
legislação anti-racista e melhorar sua aplicabilidade. Contudo, parece que o grau
de mal-estar não é tão grande assim, restando como conveniente o legalismo e a
leitura literal dos textos: “aos amigos, o princípio da proporcionalidade; aos
inimigos o texto literal da lei”...
A pretensão de completude, consistência e decidibilidade é o pressuposto do
“princípio da coisa julgada”: Res judicata pro veritati habetur (Coisa Julgada é
tida como verdade). Isto significa que ninguém poderá ser julgado mais de uma
vez pelo mesmo crime. Mas, por outro lado, este princípio procura encerrar o
fluxo de justiça no interior do sistema jurídico, contendo a oscilação de sentido e
retirando toda validade de um conflito ulterior em torno de um caso já julgado.
Esta é outra das diferenças básicas entre o sistema jurídico e o sistema político. A
sentença adquire a força de coisa julgada quando não mais estiver sujeita a
recurso, tornando-se imutável e indiscutível. No processo penal, coisa julgada de
autoridade relativa surge adstrita à sentença penal, ou acórdão, de caráter
condenatório, os quais se pode revogar, modificar ou anular a qualquer tempo,
seja por meio de hábeas corpus, seja por revisão criminal. Coisa julgada de
autoridade absoluta existe quando se forma em face de sentença, ou acórdão, de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
369
caráter declaratório ou constitutivo. Sua imutabilidade decorre da preclusão dos
prazos recursais ou do exaurimento dos recursos. É estável “por natureza”.
Tal princípio tem como objetivo fazer do litigo um processo de recondução à
“paz”, ao restabelecimento de uma situação “original” tomada sem crítica como
de maior valor, ao invés de abri-lo à construção política de possibilidades
negociadas de existência. Em nosso caso, aquela “situação original” é a
“democracia racial”. Neste nível, não se trata mais da pretensão de inocência
passível de prova, mas da recondução à “paz original” perdida pelo
questionamento da “inocência natural”. O conflito original será tomado como
perturbação intermitente e isolada da ordem civil, a ruptura e o descumprimento
de um compromisso (que ninguém pode alegar não conhecer), o qual deve ser
restabelecido. O sentido da lei não é tido como um projeto politicamente
negociado a ser promovido pelas instituições políticas, mas como um estado já-
dado e que deve ser conservado, protegido daqueles que tentam questionar a
“tradição a-racista” e a “paz racial”.
Eis o bom senso e o senso comum jurídicos. Estas duas forças complementares
são componentes da hegemonia. É nesta complementaridade que se efetiva a
hegemonia. O bom senso não poderia fixar nenhum começo ou fim, nenhuma direção,
não poderia distribuir nenhuma diversidade, se não fosse capaz de relacionar esta
diversidade à forma de identidade e de permanência. Inversamente, esta forma de
identidade permaneceria vazia se não fosse capaz de determiná-la por aquelas
diversidade e duração. É preciso que a qualidade ou tipicidade do caso seja parada e
medida, atribuída e identificada, com um instrumento de medida regrado e igualmente
imutável. A hegemonia, sob aquelas formas do bom senso e do senso comum, é gerada
por regras de formação, leis, princípios, algoritmos de uma formação discursiva, como
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
370
sistema de dispersão. A hegemonia se constitui, então, como a distribuição fixa de
trajetórias em um sistema, conforme as identidades e qualidades fixadas. É isto que
analisaremos neste capítulo.
9.2 Das trajetórias aos sentidos.
Retomando o que trabalhamos no capítulo 7, os fluxos de justiça, judiciais ou não,
são formados, no plano narrativo, por três processos decisórios (fatores): a tipificação da
ação (“há ou não há racismo”); a atestação da intenção (“há ou não há intenção”); e a
caracterização do sujeito (“é ou não é racista”); resultando na atribuição de uma ação a
um sujeito e na imputação ou responsabilização desse sujeito. Estes processos se
efetivam através da produção de narrativas, argumentos e justificações jurídicas,
enunciados que relacionam objetos, tipos de enunciação, conceitos, escolhas temáticas,
procurando responder às seguintes perguntas: quem?, o quê?, onde?, quando? e por
quê?. A natureza das perguntas está relacionada, fundamentalmente, ao conjunto de
parâmetros nos quais se desenvolve um processo de manutenção de uma forma ou
identidade. As perguntas constituem uma classificação topológica de certos espaços de
regulação nos quais as formas são “desdobradas”. Onde? e quando? são perguntas
relacionadas à localização espaço-temporal. Quem? refere-se ao sujeito e o quê? ao
objeto ou fato. Por quê? liga-se à causa ou motivo do fato. Esses diversos lugares ou
posições dos sujeitos, dos objetos e dos conceitos representam pontos singulares
(DELEUZE, 1998a: 21). Nossa hipótese é de que o dispositivo do “Mito da Democracia
Racial”, mediante os mecanismos do não-dito racista e do desconhecimento ideológico
do racismo, interfere na produção das narrativas, argumentos e justificações que ligam
aquelas singularidades, em cuja proximidade assumem esta ou aquela forma, este ou
aquele sentido, afetando, assim, as decisões nos fluxos de justiça. No capítulo anterior,
iniciamos a análise dos fluxos de justiça no interior do sistema jurídico penal, ou seja,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
371
os fluxos de justiça judiciais. Analisaremos estes processos conforme se efetivam em
cada trajetória identificada, relacionando os sentidos produzidos e a distribuição dos
casos naquelas trajetórias.
É preciso trabalhar sobre a estruturação interna da variação inerente à prática
discursiva, mostrando a variabilidade inerente ao sistema e incluindo a variação na
instituição das regras e padrões discursivos. De um exame macroscópico da morfologia
de um processo e do estudo local e global de suas singularidades, podemos tentar
reconstruir a dinâmica que a gera. Embora a construção de um modelo global seja difícil
ou mesmo impossível, a interpretação dinâmica local das singularidades do processo é
possível e útil e é uma preliminar indispensável. O método adotado dá ênfase,
sobretudo, à morfogênese do processo, ou seja, nas descontinuidades do fenômeno,
processo qualitativo.
As trajetórias do fluxograma são constituídas por singularidades e inflexões
expressas em diferentes relações de equivalência e diferença, conforme o resultado das
disputas, das práticas articulatórias. Estas enfatizam nas narrativas e nas argumentações
uma daquelas duas relações. É fundamental para o sistema estabelecer sobre as linhas de
variação contínua, os pontos de divergência e reconduzir, a partir deles, os discursos a
um plano em que teses opostas possam ser comparadas, e no qual os argumentos
alegados a favor de uma solução tornem-se objeção à outra e vice-versa. Porém, a
condição de possibilidade da oposição e da contradição é o formigamento de diferenças
livres, multiplicidade informal e potencial, antagonismo social, fluxo.
Em toda parte, os pares, as polaridades, supõem feixes e redes; as oposições
organizadas supõem irradiações em todas as direções. [...] O espaço e o tempo só
manifestam oposições (e limitações) na superfície, mas, em sua profundidade real,
supõem diferenças distintamente volumosas, afirmadas e distribuídas [...]
(DELEUZE, 1988b: 98).
As polarizações dialéticas seriam superfícies, o conflito de opostos no litígio é a
apenas uma aparência do jogo profundo de diferenças, antagonismo e articulação,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
372
expressão da mobilidade imediata das coisas. A oposição é apenas a imagem negativa
do jogo de forças. A diferença de quantidade é a essência da força: o que determina a
qualidade das forças é a diferença de quantidade ou de intensidade.
Traçaremos, assim, mapas semânticos do sistema, semantogramas, cujos sentidos
emergem, repentinamente, quando a acumulação de variações atinge um determinado
nível, quando a atividade do sistema atinge uma “freqüência crítica”, nível de
significância, limiar diferencial. É um exemplo de função descontínua
269
. Os
semantogramas devem estabelecer relações de semelhança, de vizinhança, de
afastamento, de diferença, de transformação dos temas, dos conceitos, das opiniões. A
construção destes mapas se dará, inicialmente, pela narrativização dos “autos” que
serão tratados como narrativas de segundo grau, ou seja, a narrativa da disputa entre
narrativas de um fato, a descrição de uma trajetória, de um processo. A trajetória de um
caso é a sucessão das forças que o dominam, gerando-se uma diversidade de sentidos.
Um processo tem tantos sentidos quantas forem as forças capazes de se apropriarem
dele: “apropriar-se quer dizer impor formas, criar formas explorando as circunstâncias”
(DELEUZE apud OLIVEIRA, 2000: 99).
Os sentidos analisados consistem em enunciados sobre o sistema surpreendido no
ato de decidir sobre certos objetos e situações, conforme um eixo semântico. A
delimitação de um discurso deve ser buscada na dispersão dos pontos de escolha que ele
deixa livres. Mais do que buscar a permanência dos temas, dos conceitos e das opiniões
através do sistema, mais do que retratar a dialética de seus conflitos para delimitar
conjuntos enunciativos, devemos demarcar a dispersão dos pontos de escolha e definir,
antes de qualquer decisão ético-semântica, um campo de possibilidades estratégicas (cf.
FOUCAULT, 2002: 42), campo de discursividade. A questão do sentido dos enunciados
269
O valor de uma função descontínua é constante desde um ponto a outro de um intervalo de uma série,
e se altera repentinamente de um intervalo da série a outro.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
373
deixa de ser um problema teórico, com uma única solução, conforme o real, mas se
torna um problema prático de elaborar o sentido mais adequado à solução concreta que
se preconiza por uma ou outra razão, não havendo acordo entre as partes sobre o sentido
e o alcance dos termos que intervém na apresentação do problema. Portanto, “interpretar
é determinar a força que dá sentido à coisa. Avaliar é determinar a vontade de poder que
dá valor a uma coisa” (DELEUZE apud OLIVEIRA, 2000:99).
9.3 Argumentação e narrativas
A retórica vem responder ao projeto de uma teoria do discurso, no qual a
persuasão é condição necessária do consenso, sempre parcial, e do trato com o conflito,
ou seja, de instituição/articulação da hegemonia. O modelo retórico visa a retomar
certas possibilidades analíticas da formalização esquemática para descrever os usos
operatórios da argumentação, captando não apenas o conteúdo dos argumentos, mas,
sobretudo, sua arquitetura recorrente.
A racionalidade dos agentes, no interior do discurso jurídico, estrutura-se pela
retórica e por normas processuais, ou seja, o raciocínio opera com discursos persuasivos
para si e para os interlocutores. Persuadir será entendido aqui como induzir ou afetar a
ação, fazendo parte de um processo de deliberação. Os argumentos são sempre
apropriação de tópicos socialmente construídos e somente operam em redes de sentido
impossíveis de serem reduzidos à subjetividade dos agentes envolvidos.
A ordem normativa, jurídica ou não, é, necessariamente, um tópico discursivo
evocado por um ou mais agentes no campo de ação, sendo um recurso de persuasão
retoricamente constituído. A retórica é, pois, um procedimento de edificação, uso e
modificação dos parâmetros normativos da ordem social, tal como a “democracia
racial”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
374
Os momentos nos quais o corpo normativo envolve as acareações é, dentro de
limites, negociável pelos atores em jogo para que entendimentos sejam possíveis. O
primeiro movimento retórico é o enquadramento dos fatos. Está suposto para os
interlocutores que os fatos poderiam ser outros, mas são aqueles porque somente eles
permitem a conclusão à qual uma das partes quer chegar. Os fatos retoricamente
enquadrados (Ef) são objeto de disputa entre os interlocutores, que tentam fazer a
reconstrução persuasiva mais eficaz de cada caso, visando à obtenção de uma decisão
mais favorável. Para compreendermos melhor este processo faremos uma incipiente
análise estrutural das narrativas e de descrição dos fatos. Caberá em outro lugar
aprofundar tal análise, evidenciando suas variações e transformações.
Os argumentos são compostos, desenvolvendo-se por estágios, conhecidos na
lógica como premissas e conclusão, conectados entre si por termos modais, parâmetros
para a validade da conclusão do argumento: “necessariamente”, “possivelmente”,
“devem”, “podem”, “com certeza”, “sem dúvida”.
É preciso distinguir o papel dos fatos (Ef) e das justificativas (J), visto os
primeiros serem explícitos, para deduzir-se deles as proposições (P), e os segundos,
normalmente, podem ficar implícitos.
Quanto maior a coesão (integração) da hegemonia, menor serão os estágios da
argumentação ( ou Ef P). Ou seja, a validade dos enunciados não é questionada, os
enunciados vão sendo usados pelos agentes sem desafios. Porém, se houver alguma
discordância, os interlocutores terão de acionar a autoridade de suas justificativas e
sustentações. Quanto ao qualificador modal Q, a modulação é dada pelo uso de palavras
como “necessariamente”, “possivelmente”, “devem, podem”, “com certeza”, “sem
dúvida”, ou qualquer outra que dê os parâmetros para a validade da conclusão do
argumento. O modelo tem um estágio chamado “problema” (“problemático”), unido a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
375
uma “conclusão/ solução” por meio de um qualificador modal que expressa ou grau de
superação do problemático pela decisão ético-semântica. Veja-se a figura 9.1.
270
A
afirmação do qualificador modal, retoricamente, expressa a força que é feita para
superar o caráter problemático, indecidível da realidade. Afirmar que a conclusão é, por
exemplo, “indubitável” só tem sentido num campo agonístico que se apresenta como
polêmico, ambíguo, problemático. Esta é, pois, afirmação de convicção, uma tomada de
posição no confronto, cuja força ou poder no campo de discursividade é expresso pelo
qualificador:
(...) a argumentação é um processo em estágios, cuja aceitação começa a ser
definida pela modulação empregada e pelas suas conseqüências em termos dos
critérios demandados para avaliar sua validade no campo em que se colocou.
Argumentos são referidos ao campo (field-dependent) e qualquer debate sobre a
validade substantiva de um argumento é, doravante, vinculado ao campo em que
esse argumento é enunciado (
MAGALHÃES & SOUZA, 2004:584).
270
A figura apresentada é baseada no modelo retórico de MAGALHÃES & SOUZA, 2004.
Acrescentamos os dois eixos “funcional” e “qualificativo”, conforme distinção proposta por GREIMAS,
1973. Veremos o que significa tal distinção mais adiante.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
376
Então, (Q´), (D)
Figura 9.1
Visto que (Ef) Então, (Q), (RP)
A menos que (R)
Dado que (J)
Considerando
que (S)
Onde,
(Ef) Enquadramento dos fatos;
(Q) é o qualificador modal;
(RP) é a reconstrução do passado;
(S) é a sustentação;
(J) é a justificativa;
(S) é sustentação;
(R) é a refutação;
(D) é a decisão;
f é o eixo funcional;
q é o eixo qualificativo.
(J´)
(S´)
(R´)
f
q
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
377
A análise das narrativas como enquadramento dos fatos deve se dar pelo
estabelecimento da correlação entre, no mínimo, dois elementos narrativos não idênticos
pertencentes a duas narrativas diferentes. Deve-se constatar, então, a existência de uma
disjunção paradigmática que, operando no interior de uma categoria semântica dada, faz
com que se considere o segundo elemento narrativo como a transformação do primeiro. A
transformação de um dos elementos narrativos tem por conseqüência provocar
transformações em cadeia ao longo de toda a série. Na narrativa dos autos, aquela disjunção
paradigmática apresenta-se como disjunção sintagmática ou diacrônica, pois é incorporada
como elemento narrativo de uma mesma narrativa de 2º. grau, ou seja, como conflito
narrativo desta. A disjunção paradigmática é a expressão lingüística da divergência entre as
partes, do litígio. A narrativa dos autos é, pois, uma derivada das narrativas dos fatos. E é
aqui que entra a necessidade de acionar a autoridade de suas justificativas e sustentações,
ou seja, as argumentações, já que o enquadramento retórico dos fatos é objeto de disputa
entre as partes.
9.4 A narrativização das trajetórias
Como já afirmamos, os fluxos de justiça, judiciais ou não, são formados, no plano
narrativo, por três processos decisórios (fatores): a tipificação da ação (“há ou não há
racismo”); a atestação da intenção (“há ou não há intenção”); e a caracterização do sujeito
(“é ou não é racista”). Podemos formalizar estes processos definindo-os como segue:
Q
(s)
: “Qualificação da Ação”;
I
(s)
: “Atestação da Intenção”;
C
(s)
: “Caracterização do Sujeito”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
378
Chamaremos estes processos de qualificações, ou seja, predicados “estáticos” que
expressam estados de coisas. Obediente a um princípio de ordem classificatória, fundada
sobre relações de conjunção e disjunção, a soma das qualificações forma um inventário
qualificativo, fazendo aparecer os micro-universos semânticos como o universo do hábito e
da permanência (senso comum, classe de determinações e taxionomias). Tais processos
qualificadores são constituídos por eixos semânticos: a) “há ou não há racismo”; b) “há ou
não há intenção”; e c) “é ou não é racista”; que serão analisados como articulações sêmicas
entre semas opostos s vs
s, sendo s = “racismo” e
s = “não s”. Esta articulação será
chamada de “adequabilidade típica”. Por seu turno, os semas são elementos diferenciais de
significação, p. ex., “branquitude” vs “negritude”, “racismo” vs “não-racismo”. A análise
centra-se, portanto, sobre a relação antonímica entre semas sobre um eixo semântico. O
mesmo sema é atribuído a eixos semânticos diferentes:
Q
(s)
= s (é o atributo de) Q ;
(racismo) (ação)
I
(s)
= s (é o atributo de) I ;
(racismo) (intenção)
C
(s)
= s (é o atributo de) C .
(racismo) (sujeito)
Portanto, (
Q
(s)
vs Q
(s)
) significa “a ação é racista” vs “a ação não é racista”, (I
(s)
vs
I
(s)
) significa “a intenção é racista” vs “a intenção não é racista” e (C
(s)
vs C
(s)
) significa
“o sujeito é racista” vs “o sujeito não é racista”. Vemos, destarte, que uma estrutura
elementar pode ser captada e descrita quer sob a forma de eixo semântico, quer sob a forma
da articulação sêmica. Segundo Greimas, a descrição sêmica é, quanto ao rendimento
prático, muito superior ao inventário dos eixos semânticos e parece, segundo o princípio de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
379
simplicidade de Hjelmslev, ter preferência sobre estes últimos. Assim, podemos reduzir as
descrições semânticas à oposição s vs
s. Será necessário, portanto, fazermos uma análise
semântica da “adequabilidade típica do racismo”: o que é o racismo? Faremos isso em
outro trabalho.
Em termos topológicos, os semas s e
s correspondem aos fatores u e v do plano de
controle, e a narrativa à superfície. Em razão das dificuldades metodológicas que surgem na
análise discursiva de superfície, a teoria semiótica de Greimas obriga-se a repercuti-las e
resolvê-las em um “nível epistemológico profundo”, a partir do qual se realiza um
“percurso gerativo” no qual se deve, em cada nível, ser competente para produzir o seguinte
(GREIMAS & FONTANILLE, 1996: 9-20).
O fluxo de justiça é modo de solução de uma problemática ou supersaturação inicial
rica em potenciais, de um intolerável que deflagra o movimento, porém, o fluxo atualiza e
conserva as tensões iniciais em cada uma de suas fases (ALMEIDA, 2003:120). A
ambigüidade inicial, portanto, pode ser formalizada por: (s ∧♦
s), onde é o operador
modal de possibilidade “é possível” e a conectiva lógica de conjunção “e”. Portanto, esta
fórmula é a fórmula lógica da contingência: “é possível que s e é possível que não s”. A
decisão ético-semântica pode ser entendida como a negação daquela
ambigüidade/contingência, transformando (s ∧♦
s) em (
s
s)(
s ∨∨ s)
271
(onde é conectiva lógica para disjunção “ou” e ∨∨ para a disjunção exclusiva
“ou...ou...”). Em termos lógicos a contingência de “é possível que s e é possível que não s
271
Assim como LÉVI-STRAUSS, 1991:37, advertimos que o recurso intermitente a símbolos de caráter
lógico-matemático não deve ser levado muito a sério. A semelhança entre nossas fórmulas e a dos
matemáticos é apenas superficial. Nossas fórmulas são uma tentativa de formalizar a semântica estrutural dos
discursos analisados, simplificando seus conteúdos, não devendo ser consideradas como algoritmos que,
empregados com rigor, permitiriam encadear ou condensar demonstrações. Veremos, adiante, que os
fenômenos estudados são bastante arredios a este propósito algorítmico.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
380
é transformada em “é impossível que s ou é necessário que s” que implica em “ou não s ou
s”, prevalecendo apenas um dos semas. Esta transcrição formal da narrativa descreve a
isotopia da narração, na estrutura elementar (plano de controle) subjacente a suas
diferentes manifestações e translações léxicas na superfície. O fluxo é o surgimento de
fases relativo à problemática inicial que ele jamais esgota. As unidades morfológicas,
lingüísticas (lexemas) ou não (morfemas), são os lugares de manifestação e de encontro de
semas provenientes sempre de categorias e sistemas sêmicos diferentes e que, entretém,
entre si, relações hierárquicas, ou seja, em qualquer unidade morfológica do discurso,
existem relações hierárquicas entre semas pertencentes a sistemas sêmicos diferentes. Uma
rede de conexões organiza um campo tenso, agitado por problemas, afetos e intensidades.
É segundo este modelo semântico que analisaremos os autos do processo. Tal
hipótese constitui o quadro, provisório, que, talvez, permita-nos realizar a descrição dos
conteúdos no interior de um micro-universo dado. Esta estrutura simbólica é a maquinaria
das matrizes distribuindo lugares, cuja ocupação é, por si só, efeito de sentido. A “cúspide”
é a mais simples dessas matrizes.
Ela corresponde à noção de eixo semântico, efetuando um duplo desdobramento da
identidade e puncionando um lugar de equivocidade e um ponto de conflito: (s ∧♦
s), no
plano de controle. As decisões são “incompossíveis”, mas comportam alguma coisa de
Figura 9.2
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
381
comum e de objetivamente comum que representa o signo ambíguo do elemento genético,
com relação ao qual vários mundos aparecem como casos de solução para um mesmo
problema. Em termos narrativos (na superfície), há vários desfechos possíveis, cada um dos
quais é o ponto de partida de novas bifurcações. Não nos encontramos diante de um mundo
individuado constituído por singularidades já fixas e organizadas em séries convergentes,
nem de indivíduos determinados que exprimem este mundo. Ao contrário, encontramo-nos
diante do ponto aleatório, diante do signo ambíguo, abrindo diferentes mundos e
individualidades como variáveis ou possibilidades, trajetórias diferentes.
Como lógica da separação, a lógica estrutural pode caracterizar-se pela rejeição das
bifurcações da identidade (s ∧♦
s) (
s
s), levando à disjunção exclusiva
(
s ∨∨ s). Tal formalização poderia ser considerada um algoritmo apenas se as funções
que aí se manifestam fossem atribuídas a um único actante. Não é o caso, a não ser em
intervalos ou instâncias locais (modelo local).
Os modelos funcionais e qualificativos são subordinados a modelos de organização
de um nível hierárquico superior que são os modelos actanciais. Uma vez constituídos em
categorias, os actantes poderão fornecer os quadros estruturais que permitem organizar os
conteúdos depreendidos graças à análise predicativa (funcional e qualificativa).
Um micro-universo semântico só pode ser definido como universo, isto é, como todo
de significação, se lhe é possível surgir a qualquer momento diante de nós como um
espetáculo simples, como uma estrutura actancial. Assim, o enunciado
Gilberto discrimina Florestan
manifesta a categoria S, com seus termos s e
s, da seguinte maneira:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
382
A
1
(s) + F (s +
s) + A
2
(
s).
Em outros termos, os actantes A
1
e A
2
são personificações de semas (s e
s) que
compreendem e produzem efeitos de sentido, ou seja, expressões antropomórficas de uma
estrutura semântica subjacente, sendo F a função que desempenha os actantes.
O fazer do sujeito narrativo encontra-se assim reduzido, num nível mais profundo, ao
conceito de transformação, isto é, a uma espécie de pontualidade abstrata esvaziada
de sentido, que produz ruptura entre dois estados. O desenvolvimento narrativo pode,
então, justificar-se como segmentação de estados que se definem unicamente por sua
“transformabilidade”. O horizonte de sentido que se perfila por detrás de tal
interpretação é o do mundo concebido como descontínuo, o que corresponde, aliás, ao
nível epistemológico, à colocação do conceito indefinível de “articulação”, primeira
condição para poder falar do sentido enquanto significação (
GREIMAS &
FONTANILLE, 1996:10
).
Dado um micro-universo semântico, os actantes (A
i
) são esferas de ação constituídas
por feixes de função (F
k
), sendo atribuídas a atores (a
j
), indivíduos ou coisas que atualizam
aquelas funções. As funções são entendidas como predicados “dinâmicos” que expressam
processos. Os predicados funcionais introduzem na organização da significação a dimensão
dinâmica, fazendo aparecer os micro-universos semânticos constituídos por séries de
mudanças, algoritmos de funções seqüenciais que afetam os actantes. Se definirmos as
funções F
1
, F
2
, F
3
como constituindo a esfera de atividades de um certo actante A
1
, a
invariância dessa esfera de atividades de um “processo” a outro permite-nos considerar os
atores a
1
, a
2
, a
3
como expressões ocorrenciais de um só e mesmo actante A
i
, definido pela
mesma esfera de atividade. A distribuição das funções no processo é dada pelo Código de
Processo Penal.
Em nossa interpretação actancial, a cúspide age como um acontecimento sintático
ideal, uma estrutura narrativa elementar, distribuindo lugares (minima), que suporemos
investidos por actantes identitários (X e Y). Em uma análise funcional (dinâmica),
inicialmente, o único lugar actancial é investido por um actante X. À travessia do primeiro
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
383
segmento da cúspide, um outro actante Y aparece, cuja influência cresce até o momento em
que entra em conflito com X. Após a travessia deste estrato de conflito, a influência de X
decresce até sua captura por Y que continua como actante sobrevivente. Ou pode refluir e
desaparecer. Em uma análise qualificativa (estática), um actante tem um caráter ambíguo,
problemático (X ou Y): Teve ou não intenção? É ou não racista? É ou não racismo? Seja
a” um elemento subjetivo ou objetivo, e X e Y as qualidades ou predicados de “a”. A
pretensão de inocência de X(a) é posta em questão por uma acusação que apresenta Y(a),
instaurando um conflito ou contradição X(a) vs Y(a) que pode levar à condenação,
confirmando a qualidade Y (racista) ou à absolvição, resgatando a qualidade X (inocente)
de a.
Em termos narrativos (modelo actancial), X e Y correspondem, respectivamente, à
“vítima” e ao “réu”, ou segundo outras terminologias, ao “acusador” e ao “acusado”, ao
“reclamante” e ao “reclamado”, ao “querelante” e ao “querelado”, enfim, à “acusação” e à
“defesa”. Os demais atores se distribuiriam de acordo com a categorização dos actantes,
proposta por Greimas:
a) “sujeito” vs “objeto” (poder): a primeira categoria actancial é de ordem
teleológica, sendo uma modulação do “poder-ser” (verbo modal
272
);
272
Não se trata, aqui, dos substantivos “poder” e “saber”, mas dos verbos modais que, segundo Greimas, são
os seguintes: “dever”, “poder”, “saber” e “querer”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
384
b) “destinador” vs “destinatário” (saber): de ordem etiológica, esta categoria é
uma modulação do “saber-ser”. O destinador é Árbitro, o atribuidor do Bem,
aquele que detém o Saber. O destinatário é aquele que se beneficia, o
Obtenedor virtual desse Bem ou Saber;
c) “adjuvante” vs “oponente” (querer): esta categoria refere-se às funções que
consistem em trazer auxílio, agindo no sentido do desejo ou da vontade, ou
facilitando a comunicação do objeto (adjuvante); em oposição as que
consistem em criar obstáculos, opondo-se quer à realização do desejo, quer a
comunicação do objeto (oponente). Daí que se apresentem como a modulação
do “querer-ser”.
Mantendo entre si a seguinte relação:
Os atores no processo penal se distribuem da seguinte maneira:
Sujeito....................................... “vítima” (ou réu)
Objeto....................................... “aplicação da lei”, “justiça”, “democracia racial”
Destinador................................ “juiz”, “Estado”, “Legislação”
Destinatário.............................. “Sociedade”, “Humanidade”, “vítima” (ou “réu’)
Oponente.................................. “réu” (ou “vítima”)
Adjuvante................................. “Delegado”, “Ministério Público”, “Testemunhas”
As partes, a vítima (V
n
)
273
e o acusado (A
n
), correspondem ao sujeito e ao oponente,
e ocuparão uma ou outra função segundo a trajetória do caso. A prevalência de uma ou
outra parte define a trajetória (narração) conforme sua relação com os demais atores:
273
Na notação utilizada, A representa o acusado, V a vítima, T a testemunha, D o delegado, M o Magistrado e
P o promotor. Os números subscritos indicam o número do caso em nosso corpus, sua localização na matriz
de dados. Os números sobrescritos diferenciam, em um mesmo caso ou processo, as vítimas, as testemunhas e
os acusados.
Destinador
Adjuvante
Oponente
sujeito
Destinatário
objeto
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
385
“Delegado” (D
n
), “Promotor Público” (P
n
), “Testemunhas” (T
n
), “Juiz” (M
n
,). É segundo
estas relações que um semema prevalecerá sobre o outro: “crime” vs “não-crime”,
“racismo” vs “não-racismo”, “crime de racismo” vs “injúria qualificada” etc.
Em resumo, a narrativa se reduz à seqüência da prova, em uma sucessão temporal
(que não é nem contigüidade nem implicação lógica), com uma liberdade de sucessão, isto
é, respectivamente, os dois atributos da irreversibilidade e da escolha. A análise da
narrativa admite conceber como possível a descrição dos modelos transformacionais. A luta
– par funcional enfrentamento vs êxito – deve dar conta da própria transformação.
A luta aparece inicialmente como o enfrentamento do adjuvante e do oponente, isto
é, como manifestação, portanto, “efeito de superfície”, simultaneamente, funcional,
dinâmica e antropomórfica, daquilo que Greimas (GREIMAS, 1973:251-287) considera
como os dois termos – positivo e negativo – da estrutura de significação complexa. O
enfrentamento é imediatamente seguido da função “êxito”, que significa a vitória do
adjuvante sobre o oponente, ou seja, a destruição do termo negativo em proveito do termo
positivo, dissolvendo a estrutura complexa, onde a denegação do termo negativo não deixa
subsistir senão o termo positivo da estrutura elementar. A narrativa, enfim, é suscetível de
uma dupla interpretação, conforme dois tipos de modelos imanentes: a) um modelo
constitucional que parece ser uma forma protocolar de organização (qualificação) dos
conteúdos axiológicos contraditórios, apresentados como insatisfatórios ou inevitáveis; b)
um modelo transformacional que oferece uma solução ideológica, uma possibilidade de
transformação (função) dos conteúdos investidos.
A conseqüência não é apenas a saída da luta, mas é, também, a sanção de um
contrato, a prova de sua realização, e implica o restabelecimento parcial do contrato global
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
386
rompido. Os conteúdos destas funções (contrato, violação, luta, prova e conseqüência)
variarão conforme as trajetórias dos casos.
9.5 Trajetórias e narrativas
Os processos que têm uma mesma trajetória serão chamados trajetória-equivalentes,
ou seja, dois processos quaisquer são trajetória-equivalentes se e somente se toda a solução
de qualquer um dos processos é também solução do outro. Uma solução de um processo é
um “conjunto” ordenado Φ de m decisões ϕ
0
, ϕ
1
,...,ϕ
m-1
, γ
m
, onde 0 m 4, produto
interno de um espaço vetorial que descreve as transformações sintagmáticas (de uma
instância à outra) em sua trajetória.
Isto significa que em dois processos A e B diferentes, mas trajetória-equivalentes, A
pode ser obtido através de um número finito de operações elementares sobre a trajetória de
B, sem alterá-la: difeomorfismo, transformações paradigmáticas. Em outras palavras, os
processos trajetória-equivalentes serão considerados semanticamente equivalentes
(metáforas um dos outros), por força das próprias decisões tomadas no sistema.
Se a diferença entre as trajetórias existe apenas no eixo sintagmático de sucessão
diacrônica, a equivalência existe no eixo paradigmático e vice-versa. Porém, a relação entre
diferença e equivalência é indecidível sendo resolvida por um conjunto finito Φ de decisões
que formam a solução do processo, enfatizando, através de uma luta política, ora a
diferença, ora a equivalência. Uma trajetória se refere a uma multiplicidade de
componentes intensivos de forças, e não a uma essência unitária.
A relação indecidível entre as duas lógicas é fixada em uma hierarquia determinada
de instâncias decisórias finitas. As diferenças tornam-se variáveis de uma “mesma”
trajetória (paradigmas), ou trajetórias distintas. Neste caso, uma disjunção semântica
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
387
paradigmática pode produzir trajetórias distintas. Em outros termos, o que distingue uma
variação paradigmática, estruturalmente estável, entre processos trajetória-equivalentes e
uma disjunção paradigmática, “catastrófica”, entre trajetórias diferentes é indecidível. Ou
seja, não existe nenhuma relação necessária ou única a priori entre um caso e a trajetória
adotada. Como veremos mais adiante, um mesmo caso pode, em princípio, adotar
trajetórias diferentes conforme a correlação de forças no campo de discursividade. Por
exemplo, um mesmo caso poderá ser considerado injúria simples, injúria qualificada ou
crime de racismo, podendo produzir inquérito ou não, e assim por diante. Não há
relativismo nesta afirmação. Não queremos com isso dizer que não há decisão mais
adequada para um caso, ou que não haja erro. Porém, a identificação tanto de uma quanto
do outro depende de um conjunto de condições que não determinam, inequivocamente, uma
única solução que seria válida. Condições estas que se apresentam num contexto
sobredeterminado e agonístico.
Porém, no conjunto, há distribuições prováveis deste caso sobre as trajetórias. Nossa
análise, portanto, será sobre as trajetórias prováveis dos casos: suas diferenças e
equivalências.
9.5.1
Trajetórias β e ε (Não produz inquérito)
81% (106) das ocorrências registradas, levando-se em consideração os casos válidos
(que já tem um destino final), não se transformaram nem em inquérito policial (IP) de caso
de racismo nem de injúria qualificada.
Não temos como analisar, a partir dos autos, quais as razões apresentadas para que as
ocorrências registradas na delegacia não viessem a produzir inquérito por racismo ou
injúria qualificada. Temos conhecimento, mediante informantes, de fatos que parecem
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
388
sugerir o que pode estar ocorrendo com os casos entre o registro de ocorrência e a produção
do inquérito policial.
Em um dos casos, uma arte-educadora que trabalhava como “palhacinha do trânsito”,
cuidando da utilização adequada de uma faixa de pedestres, após questionar uma motorista
que estaria sobre a faixa, teria sido chamada por esta de “negra safada” e “rapariga”. A
motorista evadiu-se, em seguida. Dirigindo-se à delegacia, a arte-educadora registrou a
ocorrência, retornando dias depois, ao ser chamada para assinar um Termo Circunstancial
de Ocorrência (T.C.O.). Chegando à delegacia, acompanhada dos advogados, constatou-se
uma resistência da delegada em reorientar o caso como injúria qualificada, instaurando
inquérito policial, recusando-se a investigar a autoria através do número da placa do carro.
A delegada, numa atitude hostil, negou a veracidade do fato, afirmando se tratar de mentira.
Ademais, disse desconhecer esta legislação anti-racista, insistindo em enviar o caso como
injúria simples, mediante T.C.O., para Juizado Especial Criminal. A delegada declarou que
sua prioridade são os casos de homicídio e a “ação policial de verdade”, como nos casos de
seqüestro relâmpago, comuns em sua delegacia. Portanto, em casos parecidos,
encaminharia como T.C.O., pois não perderia tempo investigando casos como aquele de
menor potencial ofensivo, passíveis de serem resolvidos em Juizado. Observa-se, assim,
uma discordância, implícita, quanto ao potencial ofensivo atribuído à injúria qualificada
pelo parágrafo terceiro do artigo 140 do Código Penal. Tendo pena máxima superior a dois
anos, deve ser produzido I.P. e julgado em Vara Criminal, pois não é considerado,
legalmente, como de baixo potencial ofensivo. Porém, é conveniente para alguns
delegados, simplesmente tratar tais casos como de baixo potencial ofensivo, encaminhando-
os para Juizado.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
389
Em outro caso relatado, a vítima, ao dirigir-se a uma delegacia para denunciar um
caso de discriminação, no qual ter-se-ia afirmado, numa briga de vizinhança, que “negro
não era para morar aqui” (fato, como veremos, freqüente), vê o escrivão recusar-se a
registrar o ocorrido, pois, segundo ele, não entendia aquele fato como racismo, e que,
portanto, não iria registrá-lo no Boletim de Ocorrência (B.O.). Voltando outro dia à
delegacia, agora, acompanhado das advogadas, para pedir notícia do B.O., o escrivão
reafirmou que não havia registrado a ocorrência, pois, segundo ele, se fosse registrar todo
caso de pessoas que chamam a outra de “negro” como racismo, não pararia mais de
registrá-los e não trabalharia em outra coisa, dando a entender que tais fatos eram
freqüentes, mas não registrados. O escrivão afirmou, também, que era negro e tinha uma
mãe negra que o chamava de “neguinho”, perguntando às advogadas: “eu vou registrar
queixa contra minha mãe?”. Teria coisas muito mais importantes para se preocupar do que
registrar todos os casos de pessoas que chamam o outro de “negro”. Mesmo porque, não
considerava ofensa chamar uma pessoa negra de “negro”. Certamente, o escrivão não fala
apenas por si, mas pela autoridade policial responsável pela delegacia onde trabalha,
apresentando a prática de seleção dos casos que devem assumir.
Sabe-se, também, da prática de mediação e conciliação entre as partes feita nas
delegacias. Porém, a desistência e o perdão da vítima só são legais nos casos de ação penal
privada. Nos crimes de racismo, uma vez comunicados a uma autoridade competente,
devem ser encaminhados à justiça, sendo o processo assumido pelo Estado, representado
pelo Ministério Público, não cabendo desistência ou perdão. Contudo, muitos casos são
“resolvidos” na delegacia, sem instauração de inquérito. Será necessário, ulteriormente,
dando seguimento a este trabalho, realizar uma pesquisa com as delegacias.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
390
9.5.2 Trajetória η (Decadência)
Neste tipo de trajetória, temos dezessete (17) processos que representam, como
vimos no capítulo anterior, 13% dos processos (cf. capítulo 8). Ou seja, uma freqüência
observada superior à esperada (16). Ainda que tal diferença seja estatisticamente
insignificante. Porém, quando se leva em conta apenas os casos que foram considerados de
injúria, a freqüência observada dos casos de decadência é 17 (85%), enquanto a esperada é
10 (50%) (cf. tabela 8.16 no capítulo anterior). É, portanto, decisiva a decisão anterior de
qualificar o caso como injúria qualificada, conduzindo a um baixo grau de antagonismo
nesta instância, e um elevado Coeficiente Hegemônico (π = 0,70). Analisaremos, a seguir
um exemplo de decadência, apresentando algumas análises sobre os sentidos envolvidos ou
ausentes dos autos.
δ
1
: o auto de prisão em flagrante
No dia 1º de março de 2004, foi registrado o Auto de Prisão em Flagrante Delito de
A
34
, conduzida por T
1
34
, soldado da Polícia Militar de Pernambuco, acompanhado pelas
testemunhas T
2
34
e T
3
34
. T
1
34
expôs que, por volta das 12 horas e 17 minutos, encontrava-se
de serviço na plataforma da Rua da Imperatriz com a Av. Sete de Setembro, no Centro de
Recife, quando foi solicitado pela vítima que declarou que teria sido detratada moralmente
pela pessoa da autuada que teria proferido “palavras ofensivas à sua pessoa, reportando-se à
sua cor”, e que a autora do delito encontrava-se no Banco L
34
. T
1
34
dirigiu-se, juntamente
com um colega até o estabelecimento comercial citado e, ali, procurou esclarecer os fatos.
E não existindo um acordo entre as partes, conduziu ambas a um posto policial e ali foi
acionada uma viatura para levá-las para a delegacia. Afirma que durante o tempo em que
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
391
conversou com as partes, não ouviu qualquer tipo de palavra que “denegrisse” a vítima em
sua origem ou cor, mas que tal foi confirmado pelas testemunhas.
A testemunha T
2
34
, auxiliar de serviços gerais, com 4ª série primária, casado,
respondeu que estava no Banco L
34
, quando ouviu e viu A
34
dizendo para V
34
que a estava
chamando de “bonequinha” para não chamá-la de “negra”, pois que o pai da mesma
preferia que as filhas fossem prostitutas, mas que não se casassem com um negro. A
34
declarou, ainda, que não tinha polícia, não tinha exército que calasse a boca dela, pois era
racista mesmo. T
2
34
afirmou não ter ouvido demonstração de qualquer discussão
antecedente, sendo sua atenção desperta pelo tom alto usado por A
34
, cujo comportamento
foi constrangedor não só para a vítima como para todas as pessoas presentes ali, por ter sido
uma conduta altamente humilhante para V
34
que logo passou a chorar, saindo do banco e
voltando, momentos depois, acompanhada de policiais militares. A
34
, ao ver os policiais,
negou as acusações, passando a chorar. Diante daquela situação, T
2
34
prontificou-se,
voluntariamente a acompanhar os policiais até à delegacia.
A testemunha T
3
34
, professor universitário, divorciado, respondeu que estava na fila
do caixa no Banco L
34
, assim como a senhora A
34
, e na fila dos idosos uma “garota de cor
morena”, V
34
. Sem nenhum motivo aparente, A
34
passou a resmungar dizendo que aquela
“bonequinha”, reportando-se à V
34
estava atrapalhando a fila. Ao ouvir tais palavras, V
34
foi até A
34
e perguntou-lhe o porquê de chamá-la de “bonequinha”. A
34
, então, declarou que
a estava chamando “bonequinha” para não a chamar de “negra”, pois era racista e não
gostava de negro, pois o pai dela dizia que era melhor ter uma filha prostituta que casar
com um negro. V
34
pediu a A
34
para “não dizer tais palavras”, pois se tivesse uma
autoridade naquele momento a prenderia. A
34
retorquiu que não tinha polícia, nem exército
que a fizesse gostar de negro. Tais palavras, proferidas em tom alto, teriam causado
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
392
constrangimento e surpresa a clientes e funcionários. Na presença da polícia, A
34
alegou
não ter falado nada, ao contrário, teria sido agredida por V
34
. T
3
34
afirmou, ainda, que a
vítima nada fizera para ser detratada de tal forma.
Note-se a referência, em ambos os testemunhos, ao “constrangimento” e “surpresa”
dos demais presentes diante das “palavras proferidas em tom alto”, indicação de sua
desaprovação a uma declaração explícita de racismo.
A vítima V
34
, dona de casa, 25 anos, com 2º grau completo, casada, apresentou uma
versão ligeiramente diferente dos testemunhos. V
34
fora ao banco para realizar um
pagamento que não conseguira fazer numa farmácia, sendo autorizada por uma funcionária
do banco a utilizar o caixa dos idosos para agilizar o atendimento. Após efetuar o
pagamento, retornou para falar com a funcionária do banco, conforme combinado, quando,
então, ouviu alguém lhe chamar de “bonequinha”. Após resolver seu assunto com a
funcionária do banco, voltou ao local onde teria sido chamada de “bonequinha”,
procurando saber quem o teria dito e porque. A
34
assumiu tê-lo dito, afirmando que o fez
para não ter de chamá-la de “negra”. Continuou dizendo que não gostava de negros. V
34
rebateu ao que o escrivão chamou de “ofensa”, chamando A
34
de “idiota” e “palhaça” e
dizendo que esta deveria saber, primeiro, porque foi ao caixa dos idosos, para depois falar,
não sabendo onde estava que não lhe dava um “tabefe”. O escrivão descreve a confissão de
fé racista como uma “ofensa” a qual a vítima respondeu. A
34
, então, respondeu “cale a boca
sua negra ou saia daqui sua negra”, declarando, ainda, que não gostava de negros. Após T
34
voltar com os policiais, A
34
teria dito: “Não tem polícia nem exército que cale minha boca,
pois não gosto de negros”, acompanhando com gestos das mãos batendo no peito. V
34
soube, então, que A
34
teria falado que o pai desta preferia ter uma filha prostituta a ter uma
filha casada com um negro. V
34
declarou ter-se sentido “ofendida com as palavras
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
393
injuriosas referentes à sua cor”. Esta descrição dos fatos (Ef
V
) feito pela vítima, segundo
registrado pelo escrivão, reduz os fatos a “palavras injuriosas referentes a cor”, de um lado,
e “sentimento de ofensa”, de outro. Respectivamente, fetichismo lingüístico e subjetivismo
na qualificação do racismo.
No interrogatório, A
34
, dona de casa, viúva, 49 anos, com o primário incompleto,
muda de estratégia e confirma o enquadramento dos fatos feita por V
34
.
δ
2
: o Inquérito Policial
No relatório de 05 de março de 2004, o delegado D
34
relata os depoimentos tomados
descrevendo os fatos (Ef) como “palavras ofensivas referentes à cor”, não como uma
afirmação pública de racismo, indiciando a acusada nas sanções penais previstas no art. 140
§ 3º do Código Penal Brasileiro (CPB), “salvo melhor apreciação do Douto Julgador”.
Apesar dos esforços da advogada da vítima Ad
V
34
, militante do Observatório Negro,
organização do movimento social negro, o Ministério Público (MP) mantém a qualificação
proposta por D
34
. Ad
V
34
argumentou que se tratava de prática de discriminação, ao
distinguir racialmente em espaço público, e incitar o preconceito racial, enquadrando-se no
art. 20 da lei 7.716/89. Porém, assim não entendeu o MP:
Na injúria não há imputação de fatos precisos, mas sim de atribuições genéricas de
qualidades negativas, no caso depreciando certa qualidade da vítima, traduz, assim, a
opinião pessoal do agente que exprimiu o desprezo que sente pela vítima, sendo nota
característica a exteriorização do desprezo e desrespeito a condição pessoal da
ofendida, no caso em relação a sua cor, presente a injúria preconceituosa quando a
ofensa à dignidade e ao decoro envolva algum elemento discriminatório, como, por
exemplo, “preto”, “negra”, “japa”, “turco”, “judeu” e porque não “branquelo” ou outras
expressões semelhantes, ou seja, não envolvendo segregação racial, como exemplo, o
de impedir o acesso às entradas sociais em edifícios..., estaremos diante do crime de
injúria qualificada.
Deve-se, assim, com todo cuidado necessário, considerar que certas palavras e gestos
poderão assumir conteúdo variável de acordo com as condições de tempo, lugar, meio
social, natureza das relações existentes entre as partes, antecedentes culturais, idade,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
394
sexo, dentre outros fatores, e assim não apenas considerando todas as circunstâncias e
as palavras ditas pela indiciada é que entendemos pela existência do crime tipificado
no art. 140 § 3º, do CPB e não previsto na Lei 7.716/89 (preconceito de raça ou cor).
Poderíamos nos perguntar sobre o sentido do sintagma “...e porque não “branquelo”...”,
o porquê de seu aparecimento. A promotora P
34
parece estar tentando dizer que não se trata
“apenas” de um crime contra negros, podendo atingir pessoas brancas, justificando, assim,
o uso do dispositivo legal. Parece estar subentendido, reforçando o que dirá mais adiante,
que não se trata de racismo, mas do uso de expressões depreciativas da cor, a que todos
estão sujeitos, inclusive (“porque não?”) as pessoas brancas. A necessidade desta referência
é significativa. É como se houvesse a necessidade de afirmar que os brancos também são
vítimas de discriminação que, portanto, é uma prática difusa que não (sic) diferencia sua
vítimas, não se constituindo numa relação de poder polarizada.
O crime tipificado por P
34
é de iniciativa privada, iniciando-se mediante propositura
de queixa-crime pela vítima ou seu representante legal, determinando-se que se aguarde a
manifestação da vítima. Em sentença do dia 10 de fevereiro de 2005, após apresentar o
relatório sucinto do caso, assim decide o juiz M
34
:
O crime em questão, injúria, está tipificado no art. 140 § 3º, do CPB, crime que
somente se procede mediante queixa, conforme determina o art. 145, e no prazo
determinado no art. 103, todos do mesmo Diploma Penal, ou seja, seis meses contados
do dia em que a ofendida veio a saber quem é a autora do crime.
O fato criminoso ocorreu no dia 01/03/2004, e, conforme o disposto no art. 103 do
CPB, o prazo para o oferecimento da queixa expirou em 01/09/2004, pelo que é de
reconhecer-se a extinção da punibilidade.
ISTO POSTO, com fundamento no art. 107, IV, do Código Penal Pátrio, decreto a
extinção da punibilidade, pela decadência, do fato imputado a pessoa de [A
34
].
Assim, encerrou-se o processo, antes mesmo, da abertura de ação penal, ou seja, na
fase postulatória, portanto, sem julgamento do mérito do caso. Como vimos, grande
proporção dos casos de injúria e, por seu turno, dos inquéritos produzidos, termina nesta
fase. Não temos, a partir dos autos, como saber quais os elementos envolvidos na decisão
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
395
da vítima de não dar seguimento ao processo, apresentando queixa-crime em juízo.
Juntamente com a trajetória anterior, esta trajetória padece de uma ausência de informações
quanto às razões que a produziram. Será necessário, ulteriormente, dando seguimento a este
trabalho, buscar as vítimas e questionar-lhes suas razões. Aquela ausência de informações,
contudo, não se deve, meramente, aos limites de nossa opção quanto ao corpus a ser
analisado: os autos do processo. Tal “vazio semântico” nas trajetórias precedentes expressa
o silêncio do próprio sistema, que não apresenta as razões jurídicas para as decisões que
produziram estas trajetórias. Não que não haja sentidos envolvidos (que poderíamos acessar
por entrevistas com as vítimas), mas eles não são apresentados nos autos, ocorrendo num
nível extra-jurídico: “não há nada fora dos autos”. Portanto, a grande maioria das decisões
ético-semânticas são juridicamente silenciosas, informais, mantendo o discurso acerca das
relações raciais fora do sistema. Não se sabe, formalmente, o que leva os delegados
(trajetórias β e ε) e as vítimas (trajetória η) à decisão de finalizar a movimentação dos casos
de racismo na fase postulatória. Estas decisões não são juridicamente justificadas. Neste
último caso, menos números que os anteriores, ainda se produz o I.P., apresentando as
razões para o indiciamento dos acusados, porém, como etapa administrativa, postulatória da
ação penal, fora do poder judiciário. Todavia, a maioria dos casos que produziu inquérito
foi encaminhada como injúria qualificada, remetendo, provisoriamente, para as vítimas a
decisão de prosseguir ou não, tornando-os passíveis de decadência. No próximo caso
apresentado, aparecerão alguns argumentos que oficializam as razões que podem vir a
dificultar o prosseguimento dos processos.
Parece, então, haver uma relação inversamente proporcional entre a freqüência dos
casos em uma trajetória e a extensão desta trajetória. O que significa, também, a “extensão”
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
396
de discurso produzido acerca dos casos é significativamente menor quanto mais freqüente é
a trajetória daqueles casos. De forma simplificada, a força hegemônica tende a encurtar a
trajetória dos casos e, em conseqüência a extensão dos discursos produzidos sobre eles,
tendendo para o silêncio.
9.3.3 Trajetória θ (Absolvição de processo de Injúria Racial, perdão da
vítima, ou suspensão condicional do processo)
Neste tipo de trajetória, temos quatro processos que representam, como vimos no
capítulo anterior, 3,05% dos processos (cf. capítulo 8). Metade (dois) dos processos
sofreram suspensões condicionais do processo, um quarto (um) perdão da vítima, enquanto
outro quarto (um) absolvição. Analisaremos, a seguir o único processo de absolvição por
caso de Injúria Qualificada de nossa amostra.
δ
1
: o registro da ocorrência
Em 27 de fevereiro de 2000, V
4
13
, solteira, do lar, residente em Santo Amaro,
compareceu à Delegacia Policial de Apuração dos Crimes contra Crianças e Adolescentes
(DPACCA), queixando-se contra A
1
13
, A
2
13
, ambos de maioridade, residentes, também, em
Santo Amaro, em virtude dos mesmos, já há algum tempo, chamarem as filhas da queixosa,
V
1
13
, de 16 anos, e V
2
13
, de 10 anos, e, também, sua sobrinha V
3
13
, de 16 anos, de “negras
safadas”, “macacas”, “prostitutas” e “faveladas”, caracterizando agressão moral e
discriminação racial, agravando-se a situação a partir do dia 18 de fevereiro de 2000, por
volta das 10:30, quando os já referidos infratores ameaçaram uma das adolescentes, V
3
13
,
afirmando que daria um tiro em sua boca. Acrescentou, ainda, que A
1
13
, no dia 3 de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
397
fevereiro, mostrou seu órgão genital a sua sobrinha, em local público, fatos que foram
testemunhados.
δ
2
: o Inquérito Policial
Em 16 de maio de 2000, V
4
13
compareceu, novamente, à DPACCA, para representar
criminalmente contra A
1
13
e A
2
13
, que se encontravam chamando suas filhas V
1
13
, V
2
13
e
sua sobrinha V
3
13
de negras safadas, macacas, prostitutas e faveladas, demonstrando com as
agressões crime previsto na legislação em vigor, como racismo, bem como as difamando,
razão pela qual representa contra os acusados. As agressões teriam se agravado no dia 18 de
abril, quando A
2
13
,, aproveitando-se da ausência de V
4
13
, passou a propalar várias acusações
contra as citadas jovens, chegando a agredi-las moralmente. A
1
13
, ainda, ameaçou as
adolescentes de morte e mostrou os órgãos genitais para a sobrinha da queixosa que, diante
dos fatos, procurou a delegacia.
No mesmo dia, V
1
13
, repetiu o que havia dito sua mãe, acrescentando que, ao chegar
do colégio, tomou conhecimento que ocorrera uma discussão entre sua mãe e os vizinhos
A
1
13
e A
2
13
que acusava sua prima V
3
13
de a ter xingado. Após este desentendimento, A
2
13
passou a detratar a declarante, sua irmã e sua prima. A
2
13
chamou V
1
13
de “puta”, “negra”, e
que “seu lugar é na Febem e na favela”, dizendo, ainda, que “os seus cabelos são iguais aos
das partes dela”. Qualquer gesto de V
1
13
é tomado por A
2
13
como xingamento, reagindo esta
com agressões. Certo dia, V
1
13
chegara da escola, cantando uma música do “Tchan”. A
2
13
disse que aquilo era com ela, iniciando uma discussão. V
1
13
diz nunca ter desrespeitado sua
vizinha, bem como seu esposo. Igualmente, sua irmã ou prima. Quanto à A
3
13
, todas as
vezes que V
1
13
encontra-se na janela do seu quarto, passa a lhe “dar o dedo”, “banana” e
outros gestos, sempre denotando que são com a sua pessoa. O casal A
1
13
e A
2
13
e a senhora
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
398
A
3
13
ficam todo o tempo a agredir V
1
13
, sempre a taxando de negra safada e de cabelos de
bombril. V
1
13
declara, enfim, que desconhece os motivos pelos quais as pessoas citadas não
deixam sua vida e de seus familiares em paz.
Em seguida, V
2
13
declarou que desde que nasceu reside em Santo Amaro e há mais
de quatro anos tem o casal A
1
13
e A
2
13
como vizinhos, dando-se muito bem com ela e seus
familiares. Até que o casal, mais precisamente A
2
13
passou a chamar sua mãe de negra e,
conseqüentemente, a declarante, sua irmã e sua prima, que mora com ela. A
2
13
chama V
2
13
de “macaca, negra favelada, maconheira safada”, dizendo que “negro só serve para viver na
cadeia e para morrer, puta safada”. Inicialmente, V
2
13
e seus familiares não davam muita
atenção para as agressões de sua vizinha, no entanto, as agressões passaram a ficar mais
freqüentes, motivando sua mãe a comparecer à delegacia. Repetiu a história do gesto
obsceno com os genitais contada por A
1
13
, acrescentando que outra vizinha A
3
13
,
igualmente, passou a agredi-la verbalmente. Segundo V
2
13
, as pessoas acusadas costumam
criar confusões com os vizinhos, e desejavam que sua genitora agisse da mesma forma.
Como não foram respaldados, passaram a criar caso com a declarante e seus familiares.
V
2
13
, V
1
13
e V
3
13
não podem mais passar por locais onde as pessoas citadas se encontram
que estas passam a xingá-las. Um tio de V
2
13
não freqüenta mais sua residência, pois é
portador de pontes de safena, não agüentando a agressões praticadas contra ela e seus
familiares.
Estas últimas declarações permitiriam o enquadramento no art. 14 da Lei 7.716/89, o
que, de fato, não ocorrereu, como veremos.
Por fim, V
3
13
apresenta suas declarações. Afirma que há três anos reside com sua tia,
e, desde então, tomou conhecimento que o casal vizinho A
1
13
e A
2
13
e outra vizinha A
3
13
ficavam a agredi-la e a suas filhas, tratando-as de negras, prostitutas, maconheiras safadas.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
399
Estando a residir com sua tia, conseqüentemente, passou a ser agredida da mesma forma.
Declarou que, havia dois meses, por volta das 22:30h, V
3
13
dirigiu-se ao portão da
residência de sua tia para fechá-lo, quando A
1
13
chegava, tendo descido do carro, indo
urinar atrás do mesmo, e quando a avistou, expôs seus genitais para fora, ficando a balançá-
lo para V
3
13
. No mês de fevereiro, quando V
3
13
, como de costume, foi fechar o portão da
residência, A
2
13
estava varrendo à sua frente da residência dela e, ao avistar V
3
13
, disse: “O
que foi negra, nunca viu gente não? Aqui não tem rola para você, sua negra safada,
maconheira”. V
3
13
comunicou sua tia, por telefone, chorando. Quando V
3
13
foi à procura de
A
2
13
para saber os motivos pelos quais ela estava a agredir sua sobrinha, obteve como
resposta que V
3
13
era maconheira, tendo como provar, e que negro para ela devia ser tratado
como cachorro, viver na favela e na Febem, e não naquele bairro. Quanto ao restante,
repetiu as declarações sobre A
3
13
e sobre a ameaça de morte feita por A
1
13
.
No dia 26 de maio de 2000, são feitos os termos de declaração das testemunhas de
acusação. T
1
13
declarou ser amiga de V
4
13
e seus familiares há quatro anos, em
conseqüência, tem conhecimento dos fatos denunciados que repete. Em uma de suas visitas
à amiga, T
1
13
presenciou as agressões praticadas por A
2
13
e A
3
13
. As filhas de sua amiga não
podem sequer abrir a janela, que passam a serem agredidas por A
2
13
, e A
3
13
. Presenciou
quando A
3
13
, ao avistar as meninas, disse: “lugar de negro é na favela. Os cabelos de meus
pentelhos são melhores do que os que você tem na cabeça
”. T
1
13
ficou “morta de
vergonha
”. Esta declarou, ainda, que, várias vezes, saiu do trabalho, atendendo um
telefonema das filhas da amiga. Atribui as agressões a suas amigas ao fato delas serem “
de
cor
” e possuírem uma boa situação financeira, o que não ocorreria com as acusadas.
T
2
13
declarou viver há vinte anos em Santo Amaro, conhecendo V
4
13
e seus
familiares. Certa vez, T
2
13
foi à residência de sua amiga V
4
13
, entregar uns produtos da
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
400
Avon, e, como ela estivesse em casa, foi atendida por suas filhas e sua sobrinha. De
repente, as vizinhas A
2
13
, A
3
13
apareceram, tendo A
2
13
começado a agredir as filhas de sua
amiga dizendo: “Lugar de negro é na favela”. Que para ela “todo negro é macaco, putinhas
safadas”. A outra vizinha A
3
13
surgiu mostrando um cacho de bananas, dizendo que os
cabelos do pentelho dela eram melhores do que os das meninas. Segundo T
2
13
, não houve
motivo para que as adolescentes fosse agredidas daquela maneira. Diante do que
presenciou, não poderia eximir-se de testemunhar, apesar de ser afilhada da mãe de A
2
13
,
A
3
13
(aqui se descobre que as acusadas são irmãs).
T
3
13
disse que há mais de 20 anos trabalha como manicure, tendo V
4
13
como
freguesa. No dia 18 de fevereiro de 2000, encontrando-se na casa de V
4
13
, A
1
13
chegou ao
portão, gritando que atirava na boca de V
4
13
e de sua sobrinha. T
3
13
afirmou ter
conhecimento dos vários fatos apresentados na queixa, atribuindo as agressões à inveja,
pois suas freguesas vivem bem financeiramente.
No dia 15 de junho de 2000, é realizado o interrogatório dos acusados. A
3
13
, 58 anos,
viúva, branca, de cabelos loiros curtos e lisos, segundo o auto de qualificação, declarou que
é irmã de A
2
13
, sendo sua vizinha. Negou todos os fatos que lhe foram imputados, dizendo
que V
4
13
, há algum tempo atrás, passou a criar confusões com A
2
13
. No entanto, fariam as
pazes a seguir. Todos os problemas surgiram depois que a sobrinha passou a residir na
companhia da mesma. Todo o problema surgira depois que as filhas de sua vizinha
agrediram sua mãe, uma anciã de 77 anos, que costumava ficar na frente da sua casa
sentada fazendo crochê, chamando-a de velha amarela, que precisava de “rola”, visto que o
marido já era velho. Quando A
3
13
foi ao encontro delas para chamar-lhes a atenção,
surgiram os problemas. As adolescentes, além das agressões que praticam contra ela e seus
familiares, ficam jogando bola na frente da casa para incomodá-la. Tomou conhecimento de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
401
que sua vizinha jurou que incriminaria A
3
13
e seus familiares, aproveitando-se da condição
de ter a “pele escura” para acusá-la de racismo.
A
2
13
, 47 anos, casada, branca, de cabelos loiros curtos e lisos, negou todas a
acusações, afirmando que V
4
13
vem criando confusões, há mais de cinco anos, resultando
em outros processos. V
4
13
teria jogado a filhas e a sobrinha contra ela, acrescentando que
todas as crianças da rua gostam de sua pessoa. Adianta que em momento algum tem nada
contra “pessoas de cor”. Inclusive, seu esposo é proprietário de um veículo de táxi, cujo
motorista é de “cor escura”, tendo total liberdade dentro de sua casa. A
2
13
tem, também,
parentes que são casadas com “pessoas de cor” e não tem nada contra eles. Estes
argumentos compõem um processo de caracterização do sujeito como não racista (C
(s)
). A
formalização deste argumento, segundo o modelo retórico proposto é: “nada disto
aconteceu” (Ef
A
), dado que “não tenho nada contra pessoas de cor” (J
A
), considerando-se
que “tenho amigos e cunhados negros, inclusive a própria vítima” (S
A
). Este último
argumento é recurso retórico do exemplum in contrarium: o “álibi negro” (cf. secção 7.3).
Ao contrário, é vítima da vizinha e suas filhas que a agridem com expressões como
“alma sebosa”, “amarela safada”, “mulher gaieira”. Durante o dia, V
4
13
tranca as filhas em
casa, soltando depois das 22:00h. Enquanto isso, elas ficam a fazer desordem dentro de
casa. A genitora de A
2
13
encontra-se hospitalizada, pois, toda a vez que chegam, em sua
residência, intimações, passa mal. Afirmou que V
4
13
jurara incriminá-la, alegando que esta
havia chamado aquela e suas filhas de negras, o que não ocorrera. Aduziu, enfim, que V
2
13
,
certa vez, após terem se entendido, esteve em sua casa, confidenciando-lhe que vivia
traumatizada, em virtude da mãe viver arrumando homens, e levando-os para dentro de
casa, obrigando-as a chamá-los de “pai”.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
402
A
1
13
negou todas as acusações acrescentando que, realmente, esteve com V
4
13
,
quando solicitou dela que deixasse em paz sua esposa A
2
13
, visto chamá-la de “gaieira” e,
conseqüentemente, a ele de “corno”. Disse à V
4
13
que se ela continuasse com tais
afirmações, tomaria providências, após o que ela passou a propalar que ele a havia
ameaçado. Afirmou que se davam muito bem, chegando, certa vez, a socorrer uma de suas
filhas, apagando as chamas do corpo dela com sua própria camisa. Disse ter tomado
conhecimento das agressões sofridas por sua sogra.
No dia 14 de agosto de 2000, o delegado D
13
conclui seu relatório. Diante dos
depoimentos contrários afirma:
Ressalte-se que esta Autoridade procurando dirimir dúvidas quanto as acusações
impostas ao acusados, cuidou em determinar fosse realizada uma sindicância na
localidade onde residem os envolvidos, e tal qual foi a surpresa, quando as pessoas
sindicadas, informaram, confirmaram os dados da queixa prestada, ou seja: que os
problemas envolvendo as partes são, realmente, originados pelas pessoas acusadas.
E conclui:
Isto posto, de acordo com as provas constantes nos autos, INDICIO [A
1
13
], [A
2
13
] e
[A
3
13
], todos devidamente qualificados nos presentes autos, como incursos nas penas
dos art. 139, 140 § 3º. e 233 do Código Penal Brasileiro, e como vítimas [V
1
13
], [V
2
13
],
[V
3
13
].
No dia 22 de setembro de 2000, a promotora P
13
emite um parecer confirmando os
tipos penais indicados pelo I.P., opinando que as peças informativas aguardassem em
Cartório pela iniciativa das vítimas, visto tratarem-se de crimes passíveis de ação penal
privada. Quanto ao art. 233 do CPB, crime de ato obsceno, apesar de ser passível de ação
penal pública incondicionada, trata-se de crime cuja pena máxima é igual a um ano, sendo,
portanto, de competência do Juizado Especial Criminal.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
403
δ
3
: a queixa-crime
Logo a seguir, o advogado de acusação (da vítima) Ad
V
13
apresenta a queixa-crime.
Aos tipos penais apontados por D
13
e P
13
, acrescenta o artigo 138 do CPB, calúnia.
Ad
V
13
inicia seu texto com uma epígrafe citando Florestan Fernandes:
As fontes de distinção e de separação não eram primariamente raciais. Mas convertiam-se
como tal, na medida em que atrás do senhor estava obranco, por trás do escravo, ocultava-
se o negro ou o mestiço.
Florestan Fernandes – “O Negro no Mundo dos Brancos”
Aos fatos já apresentados, Ad
V
13
acrescentou que A
1
13
havia sido representado
criminalmente no Juizado Especial Criminal do Recife pela ameaça contra V
4
13
, onde o
MPPE, fulcrado na Lei 9.099/95, propôs a transação penal, aceita imediatamente pelo
acusado, para evitar uma audiência de instrução, passando A
1
13
a cumprir a rotina de,
mensalmente, prestar serviço à comunidade, fornecendo material a uma escola pública
dessa capital.
Após narrar os fatos ocorridos com V
3
13
, prossegue:
Nas declarações dessa menor encontra-se uma peculiaridade. Revela-se a dimensão
das conseqüências nefastas na integridade moral da sua família, naquilo que a nossa
Carta Fundamental de 1988 é mais veemente: nas garantias fundamentais da
liberdade, igualdade e intimidade da pessoa humana, como conta, a menor, referindo-
se ao episódio de um tio que deixou de freqüentar a sua residência em virtude de se
portador de pontes de safena e não suportar as agressões das vizinhas. Constrangedor.
Sufocante. Criminoso!
Nas considerações finais:
Diante do exposto, resta caracterizado o descumprimento da norma contida no
Dispositivo Legal Fundamental, cujo teor é cediço:
“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação.”
A lei substantiva protege expressamente a honra da pessoa humana, em sua parte
especial dedicada aos crimes contra a pessoa. Alude, o Código Penal Brasileiro, à honra
na sua dignidade e decoro, em seus artigos 138, 139, 140, caput e parágrafo
terceiro, onde reside o concurso material de crimes da presente queixa-crime, quais
sejam: calúnia, difamação, injúria simples e injúria qualificada de racismo.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
404
A seguir argumenta:
Doutrina e jurisprudência abraçam a tese da injúria simbólica e explícita, em foco face
às agressões imputadas a uma das indiciadas, que enquadra-se perfeitamente, tais atos,
no tipo penal do artigo 140 e seu parágrafo terceiro, este último introduzido ao Código
Penal em 1997, não se confundindo com o crime de racismo.
Conclui seu texto com a citação de Gilberto Freyre:
A tradição conservadora no Brasil se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em
“princípio de autoridade” ou “defesa da Ordem”. Entre estas duas místicas – a da ordem e a da
Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia – é que se vem equilibrando entre nós a vida
política, precocemente saída do regime de senhores e escravos.
Gilberto Freyre – “Casa Grande & Senzala”
No dia 08 de junho de 2001, o advogado de defesa Ad
A
13
requereu a extinção do
processo sem o julgamento do mérito, por entender que o prazo ao Direito de Queixa-crime
é decadencial.
3 – Doutor Magistrado, analisando o silogismo da argumentação da Demandante,
logicamente se chegará a seguinte conclusão:
3.1 Que o CONHECIMENTO DO FATO se deu no início do mês de fevereiro, ou seja,
dia Primeiro, pois a frase citada como um todo – “O mês de fevereiro do ano
corrente...”, não fazendo sentido o marco inicial – “A partir do dia 18 de fevereiro...”,
sendo apenas um artifício usado pela Demandante para mascarar a DECADÊNCIA do
prazo;
3.2 Que as seguintes frases – “...as agressões se intensificaram...”, e, “...uma seqüência
de fatos...”, demonstram uma atividade preexistente, que apenas aumentou de
intensidade, e, em seqüência gradativa, cujo CONHECIMENTO DO FATO se deu em
data anterior ao dia 18 de fevereiro, ou seja, no dia Primeiro de fevereiro de 2000.
3.3 Assim, conclui-se que do dia Primeiro de fevereiro até o dia 18 (dezoito) de agosto
de 2000, perfaz o prazo de 6 (seis) meses e 17 (dezessete) dias, prazo intempestivo para
o Direito de Ação da QUEIXA-CRIME.
Este argumento pretende ter força de convicção, na medida em que se apresenta
como comparável a raciocínios formais, lógicos. Contudo, apenas um esforço de redução
ou de precisão, de natureza não-formal, permite dar a tal argumento uma aparência
demonstrativa, percebendo-se as diferenças entre esta argumentação e uma demonstração
formal, silogística. Esta forma de argumento é qualificada de quase-lógica (PERELMAN &
THYTECA, 1996:219-296). Esta pretensão é apresentada pelas expressões “silogismo” e
“...logicamente se chegará a seguinte conclusão”, tentando atribuir aos argumentos
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
405
apresentados a força de uma necessidade apodítica, encobrindo a manobra ardilosa de
tentar recuar os fatos para o início de fevereiro e utilizar este referencial como marco para
contagem do prazo decadencial. No nosso modelo retórico, este recurso corresponde ao
qualificador modal (Q) “necessariamente”. Com esta manobra tentou evitar que fosse
julgado o mérito da queixa, instaurando-se ação penal.
No dia 13 de junho de 2001, Ad
V
13
pede o indeferimento da preliminar de
decadência, considerando-se as seguintes datas:
DIA 18 de Fevereiro de 2000 – agressões (injúrias qualificadas, injúrias simples,
calúnia, conforme queixa prestada na delegacia nesse dia).
DIA 22 de Fevereiro de 2000 – Novas agressões (injúrias simples e qualificadas).
DIA 18 de Agosto de 2000 – Protocolizada a queixa-crime nesse MM. Juízo de
Direito, após a conclusão do inquérito policial.
δ
4
: a ação penal privada
Diferindo da trajetória anterior, M
13
indefere a preliminar de decadência, sob os
protestos de Ad
A
13
, iniciando a ação penal privada, na Vara dos Crimes contra a Criança e o
Adolescente. No dia 13 de março de 2002, é realizado o interrogatório das acusadas. Aberta
a audiência, A
2
13
foi cientificada sobre seus direitos, sendo indagada e respondendo que não
era verdadeiro o fato narrado na acusação, sendo caluniada por V
4
13
que a chamou de
“mulher safada e vagabunda”. Nunca tratou mal, xingou ou discutiu com as filhas de V
4
13
,
sendo tudo invenção dela, não sabendo seu motivo, pois nunca caluniou ou injuriou
ninguém. Conhece todas as testemunhas indicadas, nada tendo contra elas.
A
3
13
respondeu que não é verdadeira a narrativa da queixa, não conhecendo as
testemunhas arroladas, nem as provas apuradas contra sua pessoa na fase policial. A
3
13
teria
sido vítima das calúnias e injúrias promovidas por V
4
13
. Nunca discutiu com ela ou com
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
406
suas filhas, sendo tudo uma cisma de V
4
13
para prejudicá-la. As acusadas, portanto, mantém
a negação de todos os fatos (Ef) da queixa.
Ouvidas as testemunhas, passou-se às alegações finais. Primeiro a acusação Ad
V
13
,
em 20 de agosto de 2003, que inicia, antes de entrar no mérito, esclarecendo dois pontos
considerados vitais: a) não se trata de delitos de menor potencial ofensivo, como tenta
provar a defesa; b) as agressões foram anteriores à data de 18 de fevereiro e continuaram a
acontecer após aquela data. O que não expressa a passividade das vítimas ou inocuidade da
infração. No primeiro ponto, argumenta que as penas dos tipos penais imputados aos
acusados têm pena mínima superior a um ano, não sendo tratadas pelo Juizado Criminal
Especial. Porém acrescenta:
Mas, a inconveniência maior de taxar a vexata quaestio de menor potencial ofensivo
não está na letra da lei, e sim nos fatos, sendo certo que nem tudo o que não pode ser
aferido por um corpo de delito direto, como as lesões da alma, merecem menor
guarida, sobretudo quando se trata de criança e adolescente.
Note-se que a vexata quaestio é definida como “lesões da alma”. Quanto ao segundo
ponto apresenta os seguintes argumentos:
Não obstante, há indícios de que antes da data supra, ambas as quereladas já haviam
agredido as menores querelantes e a sua representante legal. Ocorre que tais
acontecimentos não tiveram a magnitude dos fatos do dia 18, não ganharam as ruas,
não chegaram ao conhecimento de inúmeras testemunhas, permaneceram intramuros.
Direito não provado não é direito, e, na lição do mestre Pontes de Miranda o que
não está nos autos, não está no mundo. Esse diapasão não é justificativa,
porém, para imaginar que as querelantes aceitavam as agressões ou, noutra
perspectiva, acostumaram-se com elas. Não. Simplesmente não havia o que fazer,
mormente quando se constata que mesmo quando se está cercado de provas, inúmeras
testemunhas, sindicâncias da polícia, esse tipo de notícia crime é anotada com
restrições na polícia e no Judiciário, imagine-se quando não apoiado num certo lastro
probatório. Ademais, Eminente Julgador, a representante legal das querelantes, como
se provou na instrução, sempre buscou o caminho da paz, procurando o acolhimento
no direito quando não lhe restava saída. Poder-se-ia dizer até que o procurou por
acreditar ser esse o único caminho viável da paz. Já disse certa vez o pensador
Francesco Carnelutti “O direito é um triste substitutivo do amor. Quando o
amor e a compreensão entre os homens cessam, nasce o direito para
dirimir os conflitos entre os homens”. Com efeito, o transtorno de um processo
judicial, mormente por cuidar de lembranças tão viscerais e dolorosas, considerando-
se ainda o tempo (o interstício deste perfaz 3 anos), as audiências constrangedoras, o
desgaste inerente a um processo de natureza criminal, enfim, nada disso foi almejado
pelas vítimas.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
407
Esta citação é, sobremaneira, sugestiva, pois apresenta uma série de razões que
teriam levado às vítimas a tomarem as decisões sucessivas de denunciarem e manterem um
processo penal. Apresenta estas decisões como a superação de uma série de desafios ou
obstáculos que vão desde a reunião de um conjunto de condições “probatórias”, as
restrições na polícia e no judiciário, até os constrangimentos morais e sociais. Estes
obstáculos explicariam que um conjunto de situações semelhantes permaneça aquém
(intramuros) do espaço público da justiça, negando-lhes, mesmo, o estatuto da existência:
“o que não está nos autos não está no mundo”. A riqueza desta argumentação está em que,
ainda que se refira a um caso particular, parece apresentar as justificações que estavam
ausentes das trajetórias anteriores por nós apresentadas (α, β e ε), superando o silêncio que
as caracteriza. Tais trajetórias teriam estes obstáculos como razões para não se estenderem
além, como quase ocorreu com este caso. Este texto demarca o ponto de inflexão que
distingue as trajetórias anteriores desta: a queixa apresentada antes do prazo decadencial.
Entrando, então, no mérito, argumenta mais adiante:
Concernente ao lastro probatório recolhido dos autos, é insofismável o seu caráter. Na
data supracitada, a primeira querelada, (...), abordou a sobrinha da querelante,
questionado-lhe acerca dos seus olhares. Diante da indiferença desta, iniciou uma
seqüência de impropérios com indubitável animus injuriandi e contornos racistas, que
alcançaram a pessoa da representante legal (...), quando esta surgiu diante da
residência, tomando conhecimento das ofensas.
O uso de expressões como “insofismável” e “indubitável” expressam o qualificador
modal Q do argumento, e só tem sentido num contexto de antagonismo quanto aos
sentidos, dubiedade, ambigüidade, controvérsia, em torno da intenção (animus) envolvida
nos fatos. Ad
V
13
tenta tornar indubitável que a intenção foi dolosa, ou seja, que houve
intenção de ofender: animus injuriandi.
Mas como ele sustenta esta afirmação? Vê-se mais adiante:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
408
O consagrado historiador Florestan Fernandes, em sua obra O NEGRO NO MUNDO
DOS BRANCOS, observou acuradamente que “as fontes de distinção e de separação
não eram primariamente raciais. Mas convertiam-se como tal, na medida que atrás do
senhor estava o “branco”, por trás do escravo, ocultava-se o negro ou mestiço”. São as
nossas raízes e é a nossa cultura a gênese de toda discriminação racial ainda hoje
encontrada no cotidiano das relações humanas. Na presente vexata quaestio o motivo
do crime não foi objeto de confissão ou afirmação taxativa de alguma testemunha.
Assim é também na sociedade – nada é declarado, nada é explícito, mas basta uma
mera visita aos livros de história ou aos melhores postos de trabalho para se constatar a
realidade. Cerra-se os olhos, faz-se ouvido de mercador, na contramão da evolução da
espécie. [...] Não obstante é possível extrair dos fatos, sem qualquer apelo à
sensibilidade, dado o modo em que se desdobram, pelos termos em que se deram, a
motivação das quereladas. Está implícita a discriminação de cor no conteúdo das
agressões ora ventiladas, não chegando estas a percorrer o interstício do crime de
racismo, pois a querelante não foi, ainda, compelida a se retirar do convívio social, mas
configurou-se na plenitude a injúria qualificada pelo preconceito, inserido em nosso
ordenamento jurídico pela Lei 9.459/97, preenchendo uma lacuna no parágrafo 3º. do
artigo 140 do Código Penal.
No final desta citação, ficam claras as razões da qualificação (decisão ético-
semântica) dos fatos no tipo penal da injúria qualificada, distinguindo-a do crime de
racismo. A necessidade desta precisão, ainda nas alegações finais, parece advir da tentativa
da defesa de tentar demonstrar desproporcional a ação, considerando-se que se tratou de
fato de importância menor, não crime. Aqueles argumentos definem a diferença específica
do ato motivado pela “discriminação de cor”. É no próprio ato (“extrair dos fatos”) que será
buscada a intenção envolvida (“motivação das quereladas”), de forma objetiva (“sem apelo
à sensibilidade”), sem qualquer referência a elementos psicológicos ou anímicos. Mas
como isso seria possível se a motivação está “implícita” (“não foi motivo de confissão ou
afirmação taxativa”)? Pelo recurso hermenêutico à cultura e à história, intertexto (“mera
visita aos livros de história”) que permite a interpretação dos fatos: “há motivação racista”
(Ef
V
), dado “o modo em que se desdobram os fatos” (J
V
), considerando-se “nossa cultura e
nossas raízes” (S
V
).
No início de suas considerações, o advogado de defesa Ad
A
13
reafirma sua crença na
justeza da preliminar de decadência por ele apresentada, protestando contra seu
RAÇA E JUSTIÇA
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409
indeferimento. Vê-se que pelas considerações da defesa e da acusação, a controvérsia em
torno da decadência foi acirrada, surgindo em ambas alegações finais. Inconformada, a
defesa chegou a dizer que o promotor se achava o “verdadeiro inquisidor do mundo
moderno, o que é inconcebíbel”. Afirma Ad
A
13
mais adiante, acerca do mérito do caso:
Em audiência o próprio magistrado verificou as contradições apresentadas pela
testemunha e pelos informantes das querelantes no tocante ao declarado na peça
exordial e em Juízo, ademais, vale salientar, que todos os depoentes são unânimes em
afirmar que as acusadas não cometeram nenhum crime, e, que o que
realmente houve foi apenas vias de fato orais por partes de ambos, e não crime como
quis fazer crer a representante das querelantes, que em verdade é a verdadeira criadora
de confusões e envolvendo meninas em suas briguinhas pessoais;
A estratégia da defesa, desde o início, é “a melhor defesa é o ataque”, tentando
inverter a acusação e atacando de forma a inibir a vítima. Vê-se, pela citação, que a defesa
modificou sutilmente seu enquadramento dos fatos (qualificação da ação), não negando,
como vinha fazendo até então, a existência dos fatos denunciados, mas os requalificando
como “apenas vias de fato orais por parte de ambos, e não crime”, “briguinhas pessoais”.
Há uma dupla redução: 1) ao aspecto verbal dos fatos; 2) ao acontecimento temporal
isolado; como se tratasse de uma ocorrência isolada e meramente verbal (oral), fruto da
tensão (vias de fato). Ademais, foi cometido de ambas as partes, ainda que tenha sido
iniciado pela suposta vítima. Vemos aqui de onde surgiu a necessidade do advogado de
acusação de justificar a decisão da vítima de apresentar o caso à justiça e, começamos a
entender o risco de, ao fazê-lo, ser acusada de “criar confusão”. Abrir um processo é estar
preparado para um combate retórico que pode deixar feridos.
Após colocar dúvidas sobre a idoneidade das testemunhas e, portanto, afirmando a
precariedade das provas testemunhais, jogando dúvidas sobre a realidade dos fatos
narrados, cita Florian, acerca da noção de prova:
“Provar é fornecer, no processo o conhecimento de qualquer fato, adquirido, para si, e gerando
noutrem a convicção da substância ou verdade do mesmo fato.”
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
410
Prova – “a que conduz a uma convicção íntima é aquela que ministrada na
instrução do processo não deixa dúvida pela convergência de circunstâncias,
elevação moral com que é manifestada, induvidosa e concorrente de elementos”.
RF. Volume no. 147/292.
Mais adiante, declara:
O ônus da prova recai exclusivamente sobre a acusação, pois as presunções, como se
sabe, importam na dispensa do referido encargo para quem as tem e a seu favor.
Assim, incumbindo ao acusador a demonstração da culpabilidade do réu, qualquer
dúvida sobre os fatos argüidos deve levar a ABSOLVIÇÃO. Viu-se, com efeito, que a
exigência do procedimento probatório, para superação da presunção de inocência, é
indispensável em todo processo, devendo-se fornecer elementos insofismáveis e
idôneos para a aferição da culpabilidade.
Enquanto a acusação afirma que os fatos são insofismáveis, a defesa requer que eles
o sejam. Este recurso comum a um argumento quase-lógico tenta, respectivamente,
eliminar ou manter a indecidibilidade ou dubiedade acerca do sentido dos fatos julgados.
Estes diferentes propósitos estão baseados na mesma exigência lógica da identidade (e não-
contradição) dos fatos para a dedução necessária e única da decisão judicial. Daí a
conclusão da defesa:
Se alguma dúvida pairar sobre quaisquer acusações, outra não pode ser a sentença,
senão de absolvição, ex vi do princípio clássico do Direito:
In dubio pro reo
A partir dos séculos XIV e XV começaram a aparecer inquéritos que buscavam
estabelecer a verdade absoluta, princípio fundamental para que existissem,
procurando-se, desde então ouvir determinado número de testemunhas e exames
documentais, cuidadosamente recolhidos e discutidos através dos tempos, chegando
aos dias atuais, com toda gama de conhecimentos postos a disposição para que os
então agentes da Lei, encarregados de suas elaborações e acompanhamentos, possam
oferecer subsídios vastos e tão necessários ao julgamento do árbitro competente. Com
efeito, hodiernamente, é INCONCEBÍVEL que alguém possa ser condenado baseado
em “QUEIXAS” incompletas e aleijadas, eivadas de erros e contradições, que não
apresentam PROVAS de espécie alguma, sequer TESTEMUNHAIS, resumindo-se
aos depoimentos UNICAMENTE DOS INFORMANTES E DE UMA
TESTEMUNHA DESAFETA DAS QUERELADAS, tornando-se INTERESSADA
no processo, SUSPEITAS, portanto.
A estratégia é desqualificar, praticamente, as únicas provas possíveis em casos de
racismo, as testemunhas, questionando, ao mesmo tempo, sua suficiência e confiabilidade.
Da objetividade das provas depende a objetividade dos fatos. Portanto, provas subjetivas
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
411
implicam fatos subjetivos. A subjetividade infiltra-se na nervura do real, tornando-o poroso,
rarefeito.
δ
5
: a sentença absolutória
Na sentença de 31 de outubro de 2003, M
13
, nas preliminares, ou seja, antes de entrar
no mérito, avalia negativamente o texto da queixa-crime apresentada por Ad
V
13
:
A queixa-crime (...) apresenta-se, por sua falta de técnica e clareza, nos limites da
inépcia, mas apta a ser recebida, como o foi, pois relata, pelo menos, algumas
condutas ou fatos que, em tese, configuram delitos. Tal requisito não se confunde com
o meritum causae, isto é, não significa que as imputações correspondam à verdade
real.
Inicia sua análise dos autos pela avaliação dos prazos processuais:
O prazo semestral do art. 103 do CP foi obedecido, como bem colocou a Promotoria de
Justiça (...).
Em preliminar, ainda, anoto que o crime do art. 140, caput, do Código Penal, a injúria
simples, expressa na Queixa-crime e nas razões finais das Quereladas (...), teve extinta
a sua punibilidade pela prescrição. O delito referido, que é o menos grave dos crimes
contra a honra, tem pena máxima inferior a um ano, sendo o prazo de prescrição de
dois anos, na forma do art. 109, VI, do Código Penal. A Queixa-Crime foi recebida no
dia 16/05/2001, logo o prazo prescricional ocorreu na data de 16/05/2003.
Como veremos, no julgamento dorito, o único crime que se configurou, no presente
caso concreto, foi o de injúria simples, já prescrito.
M
13
após afirmar que não houve decadência, como queria a defesa, prenuncia seu
julgamento do mérito, afirmando que o único crime que se configurou como tal foi a injúria
simples, porém, ultrapassado o prazo prescricional, isto é, o prazo de prescrição ocorreu
cinco meses e 15 dias antes de ser dada a sentença, sendo, assim, extinta a punibilidade
(impunibilidade) deste crime.
Mais adiante inicia o julgamento do mérito:
A Queixa-Crime é IMPROCEDENTE.
(...)
Mas considerou o Ministério Público que nesta ação deve ser julgada procedente o
delito de difamação (art. 139 do CP), em relação à Qurerelada A
2
13
, pelo fato da mesma
ter chamado as Querelantes de “puta” ou de “maconheira”, denegrindo “a imagem das
mesmas perante a sociedade, ferindo a honra subjetiva”(...).
Não é exato, data venia.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
412
(...) a injúria é a ofensa à dignidade ou decoro de outrem, e pode até ser anunciada de
maneira vaga ou indeterminada. Mas, para a caracterização do delito do art. 139 do CP,
exige-se fato preciso, determinado, concreto (...), embora não se exija que o agente
descreva o fato em minúcias. Não se difama alguém simplesmente por chamá-lo de
“puta” ou “maconheira”, sejam esses fatos verdadeiros ou não.
O entendimento jurisprudencial pacífico é o que se segue.
“Para que ocorra a difamação é necessário que o fato seja determinado e que esta
determinação seja objetiva, pois a imputação vaga e imprecisa mais se enquadra no
crime de injúria”.
Este trecho das justificativas de M
13
é bastante exemplificativa dos elementos
semânticos envolvidos na organização axiológica (classificatória) dos tipos penais, e do
caráter controverso desta organização. Primeiramente, discorda do MPPE quanto à sua
qualificação dos fatos (Q
V
) conforme o sentido atribuído às expressões “puta” e
“maconheira”. Em seguida, serve-se de uma citação de um julgamento anterior
(“entendimento jurisprudencial pacífico”) para sustentar sua qualificação dos fatos. O uso
do adjetivo “pacífico” surge da necessidade de excluir ou negar a controvérsia. A
jurisprudência citada parece colocar a distinção entre a “difamação” e a “injúria” na
oposição: “determinado” vs “indeterminado”, “preciso” vs “vago”, “objetivo” vs
“subjetivo”. A qualidade distintiva (traço diferencial ou sema) da difamação é a
“determinação objetiva” (“determinação” e “objetividade”). A injúria seria, então,
indeterminada e subjetiva? Parece não ter sido relevante para M
13
, o fato de a acusada ter
afirmado, nos autos, que poderia provar que a vítima era maconheira.
Julgada a improcedência da difamação, prossegue:
Restam a injúria simples, delito que já prescreveu, e a injúria qualificada (art. 140, § 3º.
do CP), que requer, como veremos, um elemento subjetivo especial, ou um dolo
específico, que não ficou devidamente comprovado, embora a Promotoria de Justiça,
nas suas Razões Finais, afirme que o delito qualificado referido foi praticado pelas
Quereladas (...).
Cabe, aqui, uma breve análise sobre a configuração dos crimes contra honra em nosso
Direito. Crimes que têm definições técnicas precisas e características próprias.
M
13
prosseguirá, então, apresentando aquilo que chamou de “definições técnicas precisas”
e “características próprias”. Estas definições serão procuradas na Doutrina, recorrendo a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
413
alguns autores consagrados, sem referência ao caráter controverso destas definições nada
precisas. Ademais, apresenta estas definições como de caráter técnico, negando suas
dimensões ético-semânticas ou político-hermenêuticas, conforme vimos no capítulo 7.
Todos os três delitos não admitem modalidade culposa.
Deve haver, sempre, o dolo de dano (direto ou eventual). Sem dolo não há crime contra
a honra. Nenhum crime.
(...)
Na injúria (art. 140 do CP), não há imputação de um fato, mas a opinião, como define
CELSO DELMANTO, que o agente apresenta a respeito do ofendido (in “Código Penal
Comentado”, Ed. Renovar, 5ª. Edição, 200, p.281). Enquanto na difamação o agente
faz a imputação de um acontecimento, ou de uma conduta desonrosa concreta, na
injúria tem-se a expressão de um simples juízo de valor depreciativo.
Identifica, portanto, dois elementos subjetivos presentes no tipo penal da injúria: a) o
dolo e b) um juízo de valor depreciativo. Mas qual seria, então, a diferença entre uma
injúria e uma afirmação de inferioridade do negro? Este último elemento estaria presente
nas expressões utilizadas pelas acusadas contra as vítimas, porém, o dolo não:
Tem-se decidido pela inexistência de dolo nas expressões proferidas no calor de uma discussão,
tanto no delito de injúria, quanto no delito de difamação.
(...)
Havendo dúvida quanto à intenção criminosa nas expressões ofensivas, frutos de incontinência
verbal, proferidas no calor das discussões, não se pode configurar, por falta de dolo, nenhum dos
delitos contra a honra, principalmente a injúria preconceituosa ou discriminatória.
O que M
13
quereria dizer com este “principalmente”? Esta expressão deixa clara a
importância que é dada à identificação da intenção nos casos de racismo, neste caso, a
injúria preconceituosa. Paradoxalmente, a própria motivação da injúria, que denota seu
objetivo de ofender, pois não se buscaria outra coisa no calor da discussão, é o que
descaracteriza o dolo. A raiva, que busca agredir o outro mediante ofensa, torna sua
intenção duvidosa (I
(s):
: “dúvida quanto à intenção criminosa”), transformando a ofensa
numa mera “incontinência verbal”:Q
(s)
(fetichismo lingüístico). Esta decisão está baseada
num intertexto demarcado pelo sujeito indeterminado do verbo “ter” (‘tem-se”) que se
refere à prática consuetudinária (hegemônica) dos julgamentos de crime contra a honra:
RAÇA E JUSTIÇA
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414
“trata-se de incontinência verbal”(Ef), dado que “há dúvidas quanto à intenção
criminosa”(J) e considerando-se que “tem-se julgado assim...”(S), então, “absolvo...”(D).
Mais adiante, acrescenta:
A testemunha compromissada (...), um homem de cor negra, afirmou, em Juízo, que
nunca sofreu “qualquer tipo de agressão” por parte das Quereladas (...)
O Magistrado acata o “álibi negro” das acusadas, como se o mérito da questão fosse
se aquelas são racistas e não se os atos praticados o são. A apresentação desta testemunhas
expressa o processo de caracterização do sujeito C
(s)
, negando seu caráter racista.
Para finalizar:
A qualificadora do § 3º. do art. 140 do CP atua como medida de culpabilidade, numa
clara violação dos princípios da proporcionalidade e da lesividade, princípios básicos
do Direito Penal de hoje, segundo a melhor doutrina. O legislador pretende
transformar a injúria, o menos ofensivo dos delitos contra a honra, num crime de
racismo, para evitar, com o dispositivo, segundo MIRABETE, a alegação do acusado
nos delitos resultantes de preconceito de cor ou raça (Lei 7.716/89), de que teria
praticado um crime de injúria simples, menos grave, em todos os sentido (...).
É mais um dos absurdos dos nossos legisladores.
O Juiz é um crítico da lei, nunca um mero aplicador de normas. Busca-se, sempre, no
Direito Criminal de hoje, a proporcionalidade das penas, o que vai dificultar a aplicação
do § 3º. do art. 140 do CP, como acentua DAMÁSIO E. DE JESUS, no seu estudo
“Injúria por Preconceito” (...).
O antagonismo entre o judiciário e o legislativo, personificado como “legislador”,
fica claro no adjetivo “absurdos”, não o único absurdo. Antagonismo justificado não apenas
pelo “absurdo” mais pelo fato de que o “juiz é um crítico da lei, nunca um mero aplicador
de normas”. Crítica que qualifica a lei de absurda.
Enfim, o magistrado julga extinta a punibilidade da injúria simples e absolve as rés
das imputações de calúnia, difamação e injúria qualificada. A acusação recorreu da decisão
e o processo se apresenta recentemente no Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Veremos pelo processo seguinte (no.27), como pode ser controversa a atestação da
intenção e a, conseqüente, qualificação da ação. A mãe das vítimas, que aparece como sua
RAÇA E JUSTIÇA
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415
representante legal, também, foi vítima das agressões cometidas pelas acusadas. Porém,
como é maior de idade, houve a cisão (bifurcação) do processo que foi, então, julgado
numa Vara Criminal comum. O mesmo caso produziu dois processos diferentes. Portanto
V
27
= V
4
13
, A
1
27
= A
2
13
e A
2
27
, = A
3
13
, ou seja, a vítima do próximo processo é a
representante legal das adolescentes vitimadas, enquanto, as acusadas respondem a outro
processo. Porém, como veremos terá uma trajetória diferente: Condenação por injúria
racial.
9.3.4 Trajetória μ (Condenação por Injúria Racial)
Neste tipo de trajetória, temos apenas um processo que representa, como vimos no
capítulo anterior, 0,76% dos processos (cf. capítulo 8). Este processo (no.27) ocorreu na
Cidade de Recife. Infelizmente, não nos foi possível ter acesso aos autos deste processo,
porém conseguimos a Sentença que a seguir analisaremos. Como este processo refere-se ao
mesmo caso do processo anterior (no.13), algumas informações quanto aos fatos já foram
apresentadas. Porém, não temos informações quanto às alegações finais da defesa e da
acusação que podem ter sido decisivas na diferença da sentença para os dois processos. Foi
apresentado recurso contra a sentença de condenação, encontrando-se o processo,
atualmente, no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). O Desembargador-Relator
responsável não nos deu acesso ao processo, pois, para resguardar a intimidade das partes,
apenas permite acesso dos advogados ou partes do processo. A alegação de que se tratava
de pesquisa, na qual o nome-próprio das partes não seria revelado, não foi suficiente para
conseguirmos as informações.
RAÇA E JUSTIÇA
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416
δ
5
: a sentença condenatória por Injúria qualificada
Em 06 de julho de 2004, no início da sentença, relata-se o conteúdo da Queixa-crime,
peça que está em julgamento, haja vista a ação penal privada iniciar-se com ela:
Em síntese, narra a queixa-crime que no dia 18 de fevereiro de 2000, a Querelante se
encontrava em seu lar quando a Querelada (...) incomodou-se pela presença da
sobrinha da Querelante diante de si, inquirindo-a sob a forma de lhe encarar, não
obtendo resposta, insurgiu contra a Querelante, com palavras de baixo calão,
disparava: “negra de favela”, “uma negra dessa não deveria morar aqui”, “negra para
mim é cachorro”, “macaca”, “maconheira”.
(...)
Inexitosa a reconciliação promovida em audiência inaugural.
Não havendo conciliação, recebe-se, então a Queixa-crime, seguindo-se à instrução
criminal. A defesa Ad
A
27
levantou, como no processo anterior, preliminar de decadência,
contestada por Ad
V
27
. O parecer do Ministério Público (P
27
) foi pela improcedência da
preliminar. Decidindo M
27
apreciar a questão quando do julgamento do mérito. Foram
ouvidas as testemunhas arroladas, passando-se para as alegações finais. A defesa Ad
A
27
arguiu que V
27
não se desincumbiu de provar o alegado na inicial, e sendo, como é a prova,
frágil, insuficiente para uma condenação, requer a absolvição. Veja-se que a estratégia
montada por Ad
A
27
é a mesma de Ad
A
13
, questionando o poder de convencimento das
provas. M
27
passa, então, ao julgamento do mérito:
Ouvidas em juízo, não obstante a negativa da ré [A
1
27
] de que tenha discutido com a
Querelante, a ré [A
2
27
], que é sua irmã, confirmou a ocorrência, afirmando inclusive
que recomendou a irmã que pedisse desculpa à Querelante, propondo-se ela própria à
reconciliação.
Diferentemente de M
13
, M
27
se apega às contradições nos depoimentos das acusadas
e na negativa do cometimento dos fatos denunciados. Ora, desta vez, quem se torna
duvidosa é a negativa das acusadas, em confronto com os testemunhos apresentados:
A instrução criminal trouxe provas cabais de que as Quereladas ofenderam à honra
subjetiva da Querelada, ao dispararem contra a Querelante palavras ofensivas com
referências depreciativas à cor da pele desta. Destaco de toda instrução, as palavras das
testemunhas T
1
27
, T
2
27
, verbis:
RAÇA E JUSTIÇA
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417
T
1
27
: “Que a depoente declara já ter ouvido, pessoalmente [A
1
27
,] e [A
2
27
,] chamarem a
querelante de que negra dessa natureza não deveria morar aqui e sim na favela, e que
negro só presta para morrer, e que os pelos pubianos da denunciada [A
1
27
] eram mais
lisos que os cabelos da filha da querelante e que a casa da querelante era ponto de
droga...”
T
2
27
: “...ouviu quando a Querelada [A
1
27
] disse para a Querelante, e nessa ocasião a
Querelada [A
2
27
] também estava presente, que a querelante era, além de negra,
rapariga, maconheira e deveria morar numa favela, e logo em seguida viu o marido de
[A
1
27
] ir até a casa da querelante e chegou a afirmar que elas duas parassem com essas
coisas se não daria um tiro em cada uma delas (...) Que no momento em que a
depoente chegou a ouvir as frases acima, não chegou a ouvir a Querelante dizer
qualquer coisa...”
É notável que o que eram provas contraditórias de “incontinência verbal” para M
13
,
são “provas cabais de que ofenderam a honra subjetiva”. Façamos, aqui, um pequeno
parênteses para apresentarmos um exemplo que pode demonstrar o quanto oscila o sentido
em torno de casos como este. Em um processo (no.52), consta do Inquérito Policial que A
52
por diversas vezes, da mesma forma, circunstâncias e maneiras, durante meses e meses
seguidos, há muitos anos, vinha proferindo expressões preconceituosas, discriminatórias e
humilhantes, contra seus vizinhos de “paredes coladas”: V
1
52
, V
2
52
, V
3
52
; até que no dia 28
de março de 2005, por volta das 18:00 horas, na rua onde moram no bairro do Rio Doce,
Olinda, após chegarem de uma audiência relativa a um Termo Circunstancial de
Ocorrência, no qual as vítimas fizeram uma transação penal de doação de cestas básicas,
devido à acusação de prática de ameaça contra A
52
, culminou com este no muro de sua
casa, diante de outros vizinhos, se vangloriando e de forma humilhante e jocosa se
dirigindo às vítimas: ... lugar de nêgo é na jaula ou num sítio e não junto aos brancos...
Vocês não merecem morar aqui... Vocês já viram ter justiça pra nêgo?...
” O Ministério
Público (P
52
) entendeu, conforme expresso em denúncia-crime apresentada em 07 de
setembro de 2005, que, desta forma, A
52
demonstrou uma “crença preconceituosa e
discriminatória” na superioridade e na divisão de raças, em função da cor da pele, ou seja, o
crime passa a ser entendido como a expressão de uma crença; segundo P
52
, abominável
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
418
conduta que se constitui numa grave lesão aos direitos fundamentais das vítimas, com a
prática de crime inafiançável e imprescritível, afrontando a Carta Cidadã, sem contar as
responsabilidades por danos morais. Concluindo, então: “Dessarte, com as expressões
ditas, o [A
52
] (...) incorreu na prática de racismo e está sujeito às sanções do art. 20 da Lei
no. 7.716/89 (Lei Anti-racismo) c/c o art. 71, C. Penal (...)
”.
Sabemos que esta decisão resultou da adesão de P
52
aos argumentos da advogada da
vítima Ad
V
52
que faz parte do Observatório Negro, organização dos movimentos sociais
negros. Segundo esta, trata-se não meramente de injúria, mas da incitação ao racismo ao
propagar idéias de segregação com expressões ditas em público como “lugar de negro não é
junto aos brancos”, “vocês não deveriam morar aqui” e “negro não tem justiça”, esta
última, na forma de uma pergunta retórica. Ora, há semelhanças com algumas das
expressões apresentadas no processo no. 27: “lugar de negro é na favela e não aqui”. Outra
semelhança é a recorrência e extensão temporal das ocorrências, não se limitando a um
caso isolado, mas a um contexto continuado de antagonismo entre as partes. Porém,
enquanto no processo 52 o fato foi tipificado como crime de racismo, no processo 27 foi
considerada injúria qualificada, inocentada no processo 13. Apesar do agravante, não
presente no processo 52, da ameaça de morte. Parece que esta foi considerada como crime à
parte, sem qualquer nexo com o conflito racial (racismo cordial?). O processo 52, porém,
ainda está em processo, não se sabendo se foi aceita a denúncia do MPPE.
Voltando à sentença do processo no. 27. O magistrado M
27
considerou inaceitável a
tentativa da defesa Ad
A
27
de insinuar parcialidade nas declarações da testemunhas,
sustentando-as, diferente de M
13
, como elementos de convicção, provas válidas que
contradizem os depoimentos das acusadas, estes, sim, contraditórios. Notável o giro de 180º
em relação ao processo anterior.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
419
A combativa defesa ainda argumenta de que se trata de crime impossível ante a
“impossibilidade de execução em razão dos meios”. De forma alguma. O meio utilizado,
a palavra falada, é plenamente compatível e inclusive o mais comum para a prática do
delito da espécie, muito embora também o possa ser praticado com gesto, palavra
escrita ou todo e qualquer ato que exprima desprezo pelo outro.
Porém, assim como no processo anterior, o atual magistrado considera não haver
crime de calúnia ou difamação, pois não há a descrição de fato determinado, mas “simples
epíteto depreciativo”, com animus injuriandi. Considerou, também, que se trata de um
único fato, não cabendo se falar em concurso material de crimes de injúria simples e injúria
qualificada, visto que se daria o “bis in idem”, ou seja, julgar-se um mesmo fato mais de
uma vez, proibido em nosso ordenamento jurídico.
Resta pois bem configurado, não havendo dúvida da ocorrência do fato, da autoria ou
do dolo que venha em benefício das Quereladas, o delito previsto no art. 140, § 3º,
injúria qualificada em razão de preconceito de cor.
Condena-as, pois, por injúria qualificada, absolvendo-as dos demais tipos. Observe-
se a afirmação taxativa da “ocorrência do fato” (Q
(s)
), da “autoria” (C
(s)
) e do “dolo” (I
(s)
).
Em relação ao processo anterior, há uma inflexão na decisão tomada por M
27
em relação à
decisão de M
13
, dando ao caso uma outra trajetória.
9.3.5 Trajetória ρ (Arquivamento de inquérito de Crime de Racismo)
Neste tipo de trajetória, temos apenas um processo que representa, como vimos no
capítulo anterior, menos de 1% das ocorrências de discriminação (cf. capítulo 8). Este
processo (no.08) ocorreu na Cidade de Recife. Infelizmente, não nos foi possível ter acesso
aos autos deste processo, porém conseguimos o Pedido de Arquivamento do Ministério que
nos dará indícios de que se tratava o caso e das razões aventadas para o seu arquivamento.
O inquérito apresentado teve por objetivo elucidar a queixa prestada por V
08
, perante
a Delegacia Especializada da Mulher, contra os diretores A
1
08
, A
2
08
de academia de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
420
ginástica localizada no bairro de Casa Forte, por infração, em tese, às disposições do art. 9,
da Lei 7.716/89. Este artigo reza sobre “impedir o acesso ou recusar atendimento em
estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público” (cf.
anexo). Segundo o MPPE, as provas colhidas nas diligências feitas pela polícia, indicam
que a suposta vítima não teve aceita a renovação de sua matrícula na academia, em razão
do descumprimento contumaz das regras de utilização de seus equipamentos, gerando
dificuldades para os administradores, haja visto utilizar-se das máquinas, extrapolando o
tempo de uso, causando prejuízo aos demais alunos, que aguardavam, não atendendo nem
mesmo o aviso dos monitores.
Conclui, então, o P
08
:
Tal fato, por si só, não constitui crime, uma vez que não há nenhum dispositivo legal no
ordenamento jurídico do país, proibindo a utilização de normas disciplinadoras por
parte de qualquer estabelecimento, desde, é óbvio, que não firam direitos e garantias
individuais, consagrados na Constituição Federal.
Ora, a Lei 7.716/89, trata dos crimes resultantes do preconceito de raça e de cor,
inexistindo nestas peças qualquer indicação de que a vítima tivera recusada sua
matrícula por problemas dessa ordem, não fazendo a mesma qualquer alusão a esse
respeito.
Pelo exposto, face à atipicidade do fato, nos posicionamos pelo ARQUIVAMENTO,
destas peças, submetendo o parecer às disposições do art. 28 do CPP.
Não fica claro, como este caso foi qualificado como racismo. A citação anterior dá a
entender que nem mesmo a suposta vítima V
08
, teria feito “qualquer alusão a esse respeito”.
Talvez, o delegado D
08
ou algum outro actante tenha entendido, pela exposição da vítima
V
08
e pela identificação racial desta, que a recusa de matriculá-la tinha características de
discriminação racial. O que discorda P
08
, entendendo que o fato não se enquadra no tipo
penal apresentado (“atipicidade”), propondo, então, o arquivamento. Como este se efetivou,
infere-se que o juiz M
08
concordou com o entendimento de P
08
. Este é mais um exemplo de
controvérsia quanto à identificação do tipo penal do racismo e de como ela é resolvida no
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
421
interior do sistema. Veremos outros exemplos mais adiante, onde, em alguns deles, esta
controvérsia, não implica no arquivamento do processo.
9.3.6 Trajetória τ (Absolvição em caso de Crime de Racismo)
Neste tipo de trajetória, temos apenas um processo que representa, como vimos no
capítulo anterior, menos de 1% das ocorrências de discriminação, proporção bem inferior à
esperada numa distribuição sob a hipótese de nulidade (cf. capítulo 8). Este processo
(no.51) ocorreu na Comarca de Itapissuma. Infelizmente, não nos foi possível ter acesso aos
autos deste processo, porém conseguimos a Sentença que passamos a analisar.
δ
5
: a sentença absolutória
No dia 27 de fevereiro de 2003, nas Preliminares da sentença, M
51
descreve que a
representante do MPPE P
13
, com exercício na Comarca de Itapissuma, ingressou com Ação
Penal contra A
13
, qualificado nos autos a que não tivemos acesso, imputando-lhe a prática
de ato delituoso previsto no artigo 20, § 2º., da Lei 7.716/89, argumentando que na data de
23 de agosto de 2000, por volta das 22:00 horas, durante um comício que se realizava na
localidade denominada “Mutirão”, em Itapissuma, A
13
teria, “com preconceito de cor”
insultado a vítima V
13
, através do sistema de som, chamando-o de “Negrinho safado” e
“Negro besta”. A
13
negou a prática delitiva, conforme constaria no termo de qualificação e
interrogatório nos autos. Foi requerido por P
13
a realização de perícia na fita cassete
constante nos autos, onde estaria a gravação do comício no qual teria ocorrido o caso de
racismo.
Em promoção final, P
13
solicitou a absolvição do acusado considerando não existir
nos autos prova do cometimento do crime, tendo a defesa, também, requerido a
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
422
improcedência da denúncia para absolver o réu, por falta de provas. Passando, então, à
decisão, afirma M
13
:
O acusado, ao ser interrogado pela autoridade policial, negou haver praticado os fatos
narrados na denúncia, esclarecendo que “não atingiu ninguém de forma racista, ou
tampouco viu que estivesse no local em tela, o indivíduo [A
13
] (...);QUE, o interrogado
reconhece claramente tratar-se de sua voz inserida na fita em tela, onde em seu
discurso, em momento algum faz ofensa ao nominado, (...) QUE, viu-se surpreso com
a queixa prestada por aquele cidadão, inclusive o interrogado é pessoa de cor escura
e respeita a raça negra, bem como milita na política há trinta anos e nunca detratou
ninguém (...)”. E em Juízo informou: “que nunca teve qualquer desavença contra a
vítima, e que não a pessoa da vítima na multidão, inclusive que não se encontrava em
nenhum palanque, estando todos no nível do solo, inclusive que é pessoa de cor, tendo
seus genitores, irmãos e esposa também de cor e que respeita e tem orgulho da raça
que pertence, tendo já inclusive proferido palestras sobre o preconceito de cor ”.
O réu nega a ocorrência dos fatos (Ef), mas a seguir acrescenta (“inclusive”) que é
“pessoa de cor”, tendo familiares “de cor”, “orgulho da raça” e que profere palestras sobre
“preconceito de cor” (J). Este é o recurso retórico do exemplum in contrarium, “álibi
negro”, que desloca o mérito da discussão: não se trata mais de saber se o ato negado é
racista ou não (Q
(s)
), mas se o sujeito da ação é racista ou não (C
(s)
). Está subentendida a
seguinte pergunta retórica: “Poderia alguém que é “de cor” e que possui uma esposa “de
cor” praticar um ato racista? Não apenas nega ser racista, como afirma ter “orgulho da raça
que pertence”, expresso em seus discursos anti-racistas (“sobre o preconceito de cor”).
Mais adiante, M
13
prossegue:
Na fita cassete que acompanha os autos e que a pedido da representante do Ministério
Público foi transcrita em sua totalidade, nada consta com respeito a preconceito de cor
ou insulto dirigido contra a vítima.
Somente em um momento o acusado profere a palavra “Neguinho”, porém, jamais a
direciona à pessoa da vítima.
(...)
O acusado confirma vez por outra utilizar-se da palavra “Neguinho” para dirigir-se
amigavelmente a pessoas de seu conhecimento.
Quantas pessoas de modo carinhoso se dirigem a seus conhecidos chamando-os de
“Neguinho” ou “Negão”, sem tratar-se de ofensa?
Esta pergunta retórica confirma o sentido atribuído pelo réu à palavra “neguinho”
constante na fita cassete, demonstrando, também, o caráter problemático, equívoco, do uso
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
423
de expressões raciais. O sentido, porém, é fixado como “modo carinhoso”. Por outro lado, a
vítima parece ter problemas com suas provas materiais e testemunhais. A primeira não
confirma a versão apresentada pela vítima. Quanto à segunda, todas as testemunhas são
correligionárias de seu partido, oposição ao acusado, portanto, suspeitos: “Constata-se que
tudo não passou de intriga em época de eleição
”, diz M
13
. O antagonismo envolvido
mantém as dúvidas quanto à objetividade (“materialidade”) dos fatos denunciados:
De todo o apurado, inexistem nos autos quaisquer provas de que o acusado tenha
praticado o delito que lhe foi atribuído, não se justificando a formulação de um Juízo
Condenatório, porém a consideração do Princípio “Favor Rei”, também conhecido
como In dubio pro reo.
Na hipótese, embora com indícios da ocorrência do ilícito, se tenha instaurado a ação
penal, não ficou comprovada cumpridamente sua materialidade.
EX EXPOSIS, (...) ABSOLVO O RÉU (...), das imputações que lhe foram feitas na
denúncia.
Pura semiótica: a dubiedade das provas, apesar dos indícios, conduz à manutenção da
inocência do réu.
9.3.7 Trajetória ω (Condenação por Crime de Racismo)
Neste tipo de trajetória, também, temos apenas um processo que representa, como
vimos no capítulo anterior, 0,76% dos processos, proporção bem inferior à esperada numa
distribuição sob a hipótese de nulidade (cf. capítulo 8).
δ
1
: o registro da ocorrência
Este processo (no. 49) teve sua ocorrência registrada no dia 09 de março de 1999, na
9ª. Delegacia de Polícia Metropolitana de São Lourenço da Mata. Foi produzida uma
certidão da queixa, na qual V
49
, divorciada, então com 34 anos, professora, queixou-se que
no dia mesmo dia, por volta das 9:30, quando encontrava-se no seu setor de trabalho,
chegou A
49
, que não reside na cidade, sendo irmão de um proprietário de uma loja de
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
424
móveis no município. A
49
, ao chegar ao colégio, passou a discutir com a proprietária do
mesmo. Neste momento, a queixosa interveio na discussão e foi chamada pelo acusado de
“negra safada”, tendo como testemunha a própria proprietária do colégio T
2
49
, T
3
49
e T
4
49
,
mães de alunos no colégio.
δ
2
: o Inquérito Policial
No dia 12 de março de 1999 foram produzidos os termos de declaração.
A depoente, que denominaremos V
49
, declarou trabalhar na escola do município, que
estava funcionando, no ano anterior, numa casa pertencente ao acusado A
49
. A proprietária
do colégio resolveu entregar a casa, pois estava ficando pequena para a quantidade de
alunos. No dia 09 de janeiro de 1999, por volta das 9:00h da manhã, V
49
estava trabalhando
no citado colégio, quando chegou A
49
, procurando a proprietária da escola T
2
49
que o
atendeu na secretaria do colégio, na qual V
49
estava fazendo alguns serviços escolares.
Após certo tempo de conversa entre T
2
49
e A
49
, iniciou-se uma discussão porque A
49
disse
que queria o ressarcimento dos prejuízos deixados pelo colégio na casa dele e que iria
entrar na justiça. Em certo momento da discussão entre T
2
49
e A
49
, V
49
disse: “Não discute
não, deixa ele entrar na justiça
”. A
49
virou-se para V
49
e disse: “cala a boca negra safada,
eu detesto negro e além do mais negro metido
”. V
49
sentindo-se ofendida pelo
preconceito
” foi à delegacia prestar queixa, logo em seguida. Este enquadramento dos fatos
pela vítima (Ef
V
) faz parte do processo Q
(s)
, no qual s significa que a ação é racista: Q
(s)
Ef
V
. Percebe-se a diferença neste enquadramento dos fatos e o feito na queixa. Lá apareceu,
apenas, a expressão “negra safada”. Além disso, as duas testemunhas desaparecerão do
processo, surgindo uma nova testemunha T
1
49
.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
425
No mesmo dia, foram ouvidas as testemunhas. A primeira testemunha T
1
49
declarou
que no dia 09 de março de 1999, por volta das 9:00h da manhã, encontrava-se na secretaria
da escola L
49
, resolvendo alguns problemas escolares, pois T
1
49
fornece fardamento para a
referida escola. De repente A
49
chegou querendo conversar com a proprietária do colégio.
Na secretaria, estava, além de T
1
49
, da diretora da escola, também, a professora V
49
. A
proprietária do colégio T
2
49
começou a conversar com A
49
. Depois de alguns minutos a
conversa transformou-se em discussão. Em certo momento, A
49
falou que iria colocar a
escola no juizado de pequenas causas para sanar o prejuízo que o colégio tinha deixado no
imóvel dele. Em certo momento, V
49
disse para T
2
49
: “Não discute não, deixa (...) ele
colocar na justiça a escola
”. A
49
virou-se para V
49
e disse: “Cala a boca negra, eu não estou
falando com você, pois nem de negro eu gosto
”. V
49
sentindo-se ofendida com o
preconceito
” de A
49
foi até a delegacia comunicar o fato que havia ocorrido.
A segunda testemunha T
2
49
declarou que, no ano anterior, a escola de sua
propriedade L
49
estava funcionando em uma casa pertencente a A
49
. Funcionava, no
momento do depoimento, em outra casa, porque a de A
49
ficou pequena para a quantidade
de alunos que pretendia estudar no colégio. T
2
49
entregou a casa sem dever nenhum
dinheiro para A
49
. No dia 09 de março de 1999, T
2
49
estava na secretaria da escola,
atendendo as mães dos alunos, estando na secretaria a professora V
49
e T
1
49
. De repente,
chegou A
49
querendo conversar com T
2
49
, que o atendeu. A
49
, um pouco nervoso, falando
alto, em certo momento, disse para T
2
49
que iria colocá-la na justiça para que pagasse os
prejuízos que o colégio deixara na casa dele. Nesse momento V
49
olhou para T
2
49
e disse:
Deixa ele colocar na justiça (...), não discute não com ele”. A
49
virou-se para V
49
e disse:
Cala boca negra, não fiz negócio com negro e não gosto de negro”. V
49
sentindo-se
ofendida
” de imediato foi à delegacia para comunicar o ocorrido. Note-se as diferenças
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
426
entre os depoimentos das testemunhas e destas em relação ao da vítima. O enquadramento
dos fatos (Ef), ainda que concordante no geral, difere em detalhes que muitas vezes podem
ser decisivos. Veremos que novos elementos irão surgindo, tornando-se relevantes, à
medida que os casos vão percorrendo as instâncias judiciais. Compare-se, por exemplo,
estas narrativas com as produzidas nas audiências da ação penal. O mesmo pode-se dizer do
enquadramento dos fatos feito pelo acusado (Ef
A
.).
No dia 19 de março de 1999, foi feito o interrogatório do acusado A
49
, 45 anos,
divorciado, funcionário público, de cor parda. Após devidamente qualificado e cientificado
das acusações que lhe foram imputadas, não sendo obrigado a responder às perguntas que
fossem formuladas, A
49
declarou que no dia 09 de março de 1999, estava, por volta das
09:30h, conversando com T
2
49
, a qual foi sua locatária, sobre o fim do contrato de locação,
pois A
49
queria receber o colégio do mesmo jeito que havia alugado. Por motivo de ser
escola, estava um pouco estragada. Estavam conversando no interior da secretaria do
colégio, onde se encontrava V
49
que se meteu no assunto dizendo: “Deixe ele colocar no
juizado de pequenas causas
”, acrescentando “Não irá ganhar nada”. Nisto A
49
, não
gostando da forma como V
49
entrou na conversa, pois não a conhecia e esse assunto não lhe
importava, disse-lhe: “
Você se releve à funcionária que é, e esta conversa não lhe diz
respeito. Não a conheço, nem esta conversa é para ser tratada com você
”. A
49
diz que a
conversa encerrou exatamente aí, tendo se retirado e ido embora sem se despedir da
proprietária do colégio. A
49
nega com veemência” que tenha chamado V
49
de “negra
safada”; nega, também, que a mandou calar a boca, nem lhe chamou tampouco de “negra
metida”. Disse apenas as palavras anteriormente mencionadas e não cometeu nenhum tipo
de crime de raça contra V
49
. Não a conhecia, nem nunca tinha visto anteriormente, nem
sabia que trabalhava no colégio (apesar ter dito que se relevasse à funcionária que era). A
49
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
427
afirmou nunca ter cometido crime de racismo contra ela nem contra ninguém. Nunca foi
preso nem processado anteriormente (o que, ver-se-á mais adiante, não era verdade). Em
termos retóricos, este elemento constitui o ethos, que consiste, em parte, em apresentar uma
boa imagem ou impressão de nós mesmos, sugerindo que nossos próprios discursos devem
refletir o bom caráter quando retratamos aqueles que o possuem. É um dos elementos dos
argumentos ad hominem, segundo os quais a justificação ou a refutação se baseará no que
se sabe da pessoa do locutor ou interlocutor, de suas idéias, hábitos, convicções. Estes
argumentos compõem, por seu turno, o processo de caracterização do sujeito. Diferente
dos argumentos ad rem, não se baseará no fato ou assunto em questão, deslocando mérito
da discussão, dos fatos para os próprios interlocutores. Veremos que estas estratégias
retóricas terão grande importância no presente caso.
No relatório do I.P., o delegado D
49
afirma ter chegado ao seu conhecimento a
delação prestada por V
49
de que sofrera “discriminação racial”. E mais adiante, após
resumir os depoimentos de acusação:
Em seu depoimento, prestado no cartório desta delegacia, a querelante, (...), expressa o
sentimento de que com esta expressão dita em bom tom pelo (...) (querelado), a mesma
sofreu descriminação (sic) racial, crime previsto na nossa Carta Magna.
Note-se a presença recorrente a expressão “sentimento de que (...) sofreu...”,
“sentindo-se ofendida”. A discriminação aparece em todos estes momentos como
impressão ou afecção subjetiva, não como dano objetivo, mesmo que “moral” ou “pessoal”.
“No subjetivismo psicologista”, a objetividade do racismo é duplamente subjetiva: 1)
depende da intenção do acusado discriminar ou agredir; 2) depende da vítima sentir-se
discriminada ou ofendida. De um lado, “intenção”, de outro, “sentimento”. Só haveria
racismo quando ambas as condições fossem atendidas. O “sentimento” é o resultado
pretendido ou visado pela “intenção” do discriminado (A), quando há “dolo”, cuja ação o
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
428
realiza no discriminado (V). Portanto, o racismo é considerado como um “sentimento”,
pretendido em A e realizado em V, sendo o ato discriminatório a passagem de um a outro,
da potência ao ato. Porém, seu efeito permanece psicológico.
Após relatar a versão do acusado A
49
, o relatório continua:
No que ficou visto na presente peça informativa, o querelado nega ter expressado
preconceito de cor.
Concluindo:
Não foi possível por esta delegacia determinar a idoneidade dos testemunhos.
Tratando-se o preconceito racial previsto na lei maior, deverá [A
49
], diante de V, Exa.,
responder às imputações a ele atribuídas.
É o relatório.
São Lourenço da Mata, 26.03.1999
Observe-se, no relatório, a indiscernibilidade entre “preconceito” e “discriminação”.
Além disso, D
49
parece desconhecer a Lei Caó, indicando a Constituição Federal como
legislação pertinente. De qualquer forma, remete para Juízo, baseado na crença em infração
à Constituição Federal.
δ
3
: a Denúncia do MP
No dia 30 de abril de 1999, o Ministério Público do Estado de Pernambuco (MPPE),
por sua representante na Comarca de São Lourenço da Mata, apresenta denúncia contra
A
49
. Na denúncia, a Promotora P
49
afirma:
(...) o acusado virou-se para a vítima e disse: “cala a boca nega safada, eu detesto nego e
além do mais negro metido”, bem como disse: “Eu não estou falando com você, pois
nem de negro eu gosto”, praticando, com essas expressões, preconceito de raça e de
cor.
E logo a seguir:
Autoria e materialidade configuradas, está o acusado incurso nas sanções penais do art.
20, caput, da lei No. 7.716/89.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
429
Como este artigo tem pena mínima de 1 (um) ano, poderia ser, conforme o art. 89 da
lei No. 9.099/95, proposta a suspensão condicional do processo. Contudo, como nos autos
não constavam os antecedentes criminais de A
49
, P
49
ficou impossibilitada de analisar se
A
49
atendia os requisitos para aquele instituto. Em visto disso, P
49
requereu ao Magistrado
que solicitasse ao Instituto Tavares Buril (ITB) os antecedentes criminais de A
49
, após o
que seja aberto vistas dos autos para P
49
se pronunciar acerca do cabimento ou não da
proposta de suspensão condicional do processo. Em caso afirmativo e, realizada audiência
de conciliação, sendo aceita a proposta por A
49
, requer que seja concedida a suspensão
condicional do processo. Se não for aceita a proposta ou não for cabível, P
49
requer que seja
recebida a denúncia e processado o acusado até o final julgamento. O que de fato se deu.
δ
4
: a ação penal pública
Aos 04 de agosto de 1999, na sala de audiências, em presença da Juíza de Direito da
Comarca de São Lourenço da Mata J
49
, realizou-se o interrogatório do réu. A
49
que muda,
parcialmente, seu depoimento, afirmando que “é verdadeira em parte a imputação que lhe é
feita
”. Pois, após a intervenção de V
49
, “dizendo que o mesmo fosse procurar os seus
direitos
”, A
49
, dirigindo-se a V
49
, teria dito: “Negona ou nega, não intervenha, pois isto não
é de competência sua, que é uma simples funcionária do colégio
”. Afirma, ainda, que “não
teve intenção de discriminar a vítima e utilizou a expressão negra ou negona como vício de
linguagem
”. Que “estaria descriminando (sic) a vítima se a chamasse de loira ou alemã”.
Estes dois elementos fazem parte da justificação (J). No entender de A
49
, deu à V
49
o
tratamento adequado, negando ter proferido as frases consignadas na denúncia, não
possuindo preconceito de qualquer espécie, não sendo comum chamar as pessoas
salientando a condição física das mesmas, tais como cor, altura, peso etc., ocorrendo,
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
430
apenas, quando se encontra numa situação tensa ou que requer muita atenção. Afirma que
tratamento desta espécie é comum entre colegas de trabalho. Estes argumentos compõem o
processo e “caracterização do sujeito” que, neste caso, tenta evidenciar que não é racista.
Esta banalização do que é chamado por A
49
de “vício de linguagem” segundo nosso modelo
funciona como a sustentação (S) das justificativas apresentadas: “é apenas umcio de
linguagem” (Ef
A
49
), dado que “Não tive intenção” (J
A
49
), considerando-se que “é comum
entre colegas de trabalho” (S
A
49
). Representam, respectivamente, os processos de
qualificação da ação (Q
(s)
), atestação da intenção (I
(s)
) e caracterização do sujeito (C
(s)
),
sendo que s significa a negação do racismo. Ademais, não conhecia a vítima,
desconhecendo seu cargo ou qualquer parentesco com a diretora da escola, mas atribui a
acusação a uma vingança contra a ação exitosa que moveu no juizado de pequenas causas.
Diz que provará sua inocência através do depoimento de sua irmã que estava no momento
do fato. Já foi processado na Comarca de Nazaré da Mata por violação do art. 129 do CPB,
sendo absolvido. Este fato foi negado no depoimento à polícia. Nunca foi preso e, sendo
policial civil a 23 anos, nunca respondeu a inquérito administrativo.
No dia 14 de outubro de 1999, são ouvidas as testemunhas de acusação (T
1
49
, T
2
49
) e
a vítima (V
49
).
T
1
49
, inquirida por P
49
repetiu o que afirmara no I.P.:
(...) o acusado dirigindo-se à vítima respondeu: “cala a boca negra, eu não fiz negócio
com negro e nem de negro eu gosto”.
Porém, acrescenta que a vítima ficou calada. Inquirida pela defesa, respondeu que
não sabia informar da existência de amizade entre A
49
e V
49
, não tendo ouvido A
49
chamando V
49
de negra safada.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
431
T
2
49
, inquirida por P
49
, repetiu o afirmara no I.P. e confirmou as expressões utilizadas
por A
49
e relatadas, também, no depoimento de T
1
49
. Porém, acrescentou que “a vítima
ficou abismada com as palavras do acusado e chegou a argumentar que não se considerava
negra
”. A
49
teria, então, ignorado a vítima e continuado a sua conversa com T
2
49
. Aquilo
magoou muito V
49
, fazendo com que prestasse queixa na delegacia. Esta afirmação de T
2
49
parece dar a entender que o que motivou a queixa não foi tanto as expressões que
impunham uma identidade que V
49
recusava, mas a indiferença que lhe impossibilitou de
argumentar em contrário contra o rótulo imposto. T
2
49
disse conhecer o acusado há cerca de
três anos, nuca tendo presenciado ou ouvido comentários sobre atitudes preconceituosas
contra A
49
, reforçando assim C
(s)
. Também, não ouviu A
49
chamar V
49
de negra safada.
Parece que a presença ou ausência da expressão “safada” passou a ter uma relevância
significativa, como se os demais elementos não fossem suficientes, ainda mais se tratando
de ação penal pública contra crime de racismo enquadrado no art. 20 da lei 7.716/89 e não
de ação penal privada contra injúria qualificada segundo § 3º. do art. 140 do CPB. Parece
uma estratégia da defesa para desqualificar a versão da vítima, na qual a expressão “negra
safada” aparece. É mais um elemento a ser utilizado no argumento ad hominem para
desqualificar a vítima e seu discurso, fazendo-a contradizer-se.
Passou-se, então, à assentada da vítima V
49
, que afirmou que:
(...) o acusado dirigindo-se a declarante respondeu: “cala a boca sua negra safada,
detesto negro e além do mais negro metido, procure seu lugar eu não fiz negócio com
você, eu fiz negócio com ela”.
V
49
argumentou que estava presente no momento da celebração do contrato e que A
49
proferiu as palavras acima declinadas na frente de pais e alunos. Além disso, V
49
declarou
que, após o delito, tomou conhecimento que o acusado era uma pessoa agressiva e que
costumava fazer ameaças, apesar de não ter sido ameaçada, não voltando a ter contato com
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
432
o acusado. Inquirida pela defesa, afirmou que preferia não mencionar o nome das pessoas
que a alertaram sobre o temperamento do acusado, acrescentando que este não havia
mandado recado ameaçador através de outras pessoas. Esta é a estratégia retórica de V
49
para desconstruir o ethos de A
49
, fornecendo um elemento que permite, no argumento ad
hominem, construir uma caracterização C
(s)
desfavorável ao acusado, mas neste caso
utilizando elementos sêmicos diferentes do racial: “agressividade”, “autoritarismo”.
Tendo sido ouvidas as partes, passou-se, então, às alegações finais feitas pelos
representantes das partes.
Em junho de 2000, a advogada de V
49
, constituída em assistente do MPPE,
apresentou as alegações a seguir. É pertinente, para compreendermos seu conteúdo,
destacar que a referida advogada é militante do Movimento Negro Unificado – MNU.
(...) Enquanto a vítima é professora, trabalhadora em Educação, luta pela
sobrevivência, bastante dedicada, está a concluir brevemente o curso superior ligado a
sua área de atuação – EDUCAÇÃO – não obstante ter a pele clara, não rejeita a sua
origem NEGRA. Sabe das dificuldades do povo negro, principalmente ela que é mulher
e vive numa sociedade opressora, a brasileira, onde se destacam três tipos de
manifestação de racismo – o individual, o cultural e o institucional.
A estratégia da advogada de V
49
(Ad
V
49
) é apresentar a discriminação racial sofrida
por sua cliente como a manifestação individual do racismo. Neste caso, V
49
é apresentada
como representante do “povo negro” em luta contra uma “sociedade opressora”. As outras
manifestações teriam, segundo Ad
V
49
, origens históricas no colonialismo e imperialismo,
que implantaram a estratégia da dominação. Em termos do modelo retórico proposto: dado
que “tem a origem negra” (S
V
49
), considerando-se que “vive numa sociedade opressora”
(J
V
49
) “então...”
Mais adiante continua:
O preconceito é uma doença cuja manifestação é a discriminação.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
433
Sob o pretexto de ser uma raça inferior, os dominadores escolheram os Africanos pra
escravizar, destarte, este povo lutando com as dificuldades de adaptação com o dialeto,
os costumes e a religião do branco, apesar de toda a crueldade sofrida, souberam se
impor e também armaram estratégias para a libertação, e com isto fomentaram o ódio
dos senhores que até hoje transparece por meio do racismo
.
As alegações finais de V
49
redimensionam o caso, colocando num enredo mais amplo
que a história do Brasil, fazendo parte de um antagonismo social maior. Até que ponto não
faz corresponder a intervenção de V
49
a “estratégias para libertação” e a resposta de A
49
ao
“ódio dos senhores”? O litígio torna-se a expressão local de uma luta histórica.
Destacou quanto ao réu:
Por ser brasileiro não pode ser racista. Que realmente fez a agressão, mas, só cometeria
racismo se chamasse a vítima de “alemã ou loira”...
Não teve a intenção de cometer racismo...
Não gostou da intromissão da vítima.
Não apresentou testemunhas.
Quanto à vítima destaca:
(...) não quer tornar mais hediondo o crime cometido pelo Acusado.
Tem na sua cor e etnia o melhor dos legados, contra as quais, a dela e de milhares de
outros brasileiros, jamais cometerá o Injusto de tamanho porte.
O ato do acusado foi para aniquilá-la, jogá-la fora de tempo e ao mesmo tempo
envergonhá-la, pelo menosprezo.
Até então desconhecia a reação difusa e aniquiladora de tamanha ofensa, que tomou-
lhe o âmago, fragilizando-a, tornando-a confusa e desvitalizada e permaneceu assim
por vários dias.
As pessoas ao redor pareceram-lhe enormes e acusadoras, sentiu-se um objeto de
chacotas, sem valor, um trapo ambulante, diante delas. Foi este o sentimento do
momento.
A dor moral deixa feridas abertas e latentes que só o tempo com vagar, cuida cicatrizar,
mesmo assim, sem apagar registro.
(...)
Nada há nos autos que justifique a conduta delituosa do réu. Não houve agressão por
parte da vítima, é como se estivesse desarmada e não esboçou reação, calou-se de
perplexidade.
Mais uma vez apresenta V
49
como representante de milhares de brasileiros.
Apresenta, então, através de imagens fortes, os efeitos do ato discriminatório sobre sua
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
434
pessoa, salientando a confusão mental, a perda de vitalidade e auto-estima e o prejuízo à
sociabilidade. Amplia deste modo o enquadramento dos fatos (Ef
V
49
)
Do outro lado, a defensoria pública apresenta suas alegações finais em favor de A
49
.
Como A
49
não apresentou outro defensor no prazo legal, lhe foi dado um Defensor Público
Ad
A
49
que ofereceu as alegações finais da defesa. Em termos do modelo retórico, as
alegações finais da defesa representam a refutação dos argumentos da acusação: “ao menos
que” (R
V
49
), portanto, S
A
49
R
V
49
= “a inexistência de intenção ou dolo”:
Em alegações finais diz que o réu deverá ter a seu favor o seu próprio depoimento
(...) quando afirma que utilizou a palavra negra apenas como vício de linguagem,
jamais tendo a intenção de ferir alguém, muito menos uma pessoa que não conhece.
O hábito, o vício da linguagem e até mesmo o preconceito racial é tão arraigado na
alma do povo brasileiro que a própria vítima, preconceituosa afirma pelas palavras da
2ª. Testemunha (...) que: “a vítima ficou abismada com as palavras do acusado
e chegou a argumentar que não se considerava negra...
Ora, diante de tal testemunho e, em razão da intenção do acusado em não ferir a vítima
com sua observação, só resta o caminho da improcedência da denúncia, por ser de
justiça.
A alegação final do Defensor Público está sustentada sobre dois argumentos: 1) o
preconceito racial é tão difuso que até a suposta vítima procura negar sua identidade negra
(C
V
(s)
); 2) o acusado não teve intenção de ferir a vítima (I
A
(s)
). Estes dois argumentos,
apesar da forma como foram apresentados no último parágrafo não são complementares.
Pois, o preconceito é difundido, mas não se apresenta na intenção do acusado. O
preconceito é arraigado na alma do povo, mas não do acusado. Para se sustentar, tal
argumentação teria que ter por subentendido que apenas a vítima, neste caso, é
preconceituosa (C
V
(s)
) ao sentir-se ferida com um mero vício de linguagem do acusado
(Q
A
(s)
). Este é um argumento ad hominem que tenta desqualificar a acusação,
desmerecendo o acusador: “quem és tu pra reclamar de racismo?”. O sofisma é: Se ela não
for racista, então, pelas mesmas razões, ninguém o é.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
435
δ
5
: a sentença condenatória
No dia 16 de maio de 2001, a juíza M
49
emite a sentença. Após confrontar as
declarações do acusado com os elementos de prova (testemunhos, ou seja, Ef
T
), M
49
entende que o réu violou o tipo previsto no art. 20, caput, da lei 7.716/89. O acusado
assumiu uma postura discriminatória em relação à raça negra ao declarar “cala a boca
negra, eu não fiz negócio com negro e nem de negro eu gosto”. Note-se que a declaração
assumida na sentença provém da versão das testemunhas, não, da vítima. Continua a
magistrada afirmando que o sentimento de desapreço, de não gostar de negros denota o
preconceito do acusado e, ao verbalizar tal sentimento, agiu com discriminação. O crime
estaria, assim na expressão de um sentimento? Mas não é disto que trata o art. 20 e muito
menos é do que se trata no fato em julgamento. A
49
não meramente expressou uma opinião
ou sentimento, como é descrito aqui, mas obstou o livre convívio social, a sociabilidade em
condições de igualdade, demarcando um lugar social de inferioridade, distinguindo,
preterindo e ofendendo publicamente V
49
. Mais adiante M
49
afirma:
O Brasil, inobstante a imagem de democracia racial, é, indiscutivelmente, um país
preconceituoso, racista. Um preconceito mascarado, camuflado, latente, diariamente
exercido em “pequenas” manifestações, como as piadas sobre negros e judeus.
M
49
adere às alegações de Ad
V
49
e afirma o caráter racista das relações sociais
brasileiras, fazendo do direito um instrumento de transformação desta realidade: “O Direito
surge, então, para coibir e reparar essas transgressões, que atingem, principalmente, a
dignidade do ofendido
”. O qualificador modal é “indiscutivelmente”, excluindo a
controvérsia acerca da existência de uma democracia racial. Porém, ainda que afirme o
caráter racista da sociedade brasileira, M
49
o reduz ao conjunto de manifestações
lingüísticas “espirituosas” como as piadas: preconceito mascarado, camuflado, latente.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
436
Manifestações lingüísticas que atingem a dignidade do ofendido, entendida como elemento
subjetivo (linguagem subjetividade): “Não podemos, destarte, considerar “mero vício de
linguagem” o uso de expressões que desrespeitam, agridem o ser humano (...)
”. M
49
,
acompanhando a acusação Ad
V
49
, desconsidera as alegações da defesa de inexistência de
dolo e atém-se às conseqüências sociais e pessoais da ação. Ao se enquadrar como uma
prática social, revela-se sua intenção “preconceito mascarado, camuflado, latente,
diariamente exercido
”.
Mais adiante, refuta a argumentação da defesa nas alegações finais:
O argumento do Nobre Defensor de ser a vítima também racista, por, supostamente,
negar a condição de negra, é totalmente descabido, mesmo porque a ofendida não está
sendo acusada. E se, hipoteticamente falando, a título de debate, a vítima tivesse desta
forma agido, só corroboraria o antes declinado, pois a opressão racial é tamanha, ao
ponto de obrigar o próprio negro a postergar suas origens, objetivando a acolhida em
uma sociedade de aparências.
Acrescente-se: o fato de ser o réu policial civil agrava sua ação, em vista do dever
funcional de observar a lei e tratar a todos com urbanidade. Tal assertiva ganha, ainda,
relevo ao se analisar o local do crime: um estabelecimento de ensino, com a presença
de pais e alunos, expondo a vítima e causando-lhe mágoa, como salientou a
testemunha (...)
Nesse passo, insubsistentes as afirmações do Ilustre Defensor.
Isto posto, julgo PROCEDENTE a denúncia e CONDENO [A
49
], já qualificado, nas
sanções do art. 20, caput, da Lei no. 7.716/89, alterado pela Lei no.9.459/97.
É notável a ressignificação que é feita quanto ao hipotético racismo ou preconceito
da vítima. A auto-negação da condição de “negro” é a própria prova do racismo sofrido por
uma “sociedade de aparências”: “a opressão é tamanha”. Esta decisão ético-semântica
apresenta elementos de um movimento contra-hegemônico.
Desta vez, acompanhado de um advogado particular, em 05 de agosto de 2001, A
49
recorre da decisão ao Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE) nos seguintes
termos:
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
437
(...) a Sentença protelada pelo Juízo “a quo”, merece ser reformada, uma vez que, data
vênia, não se coaduna com as provas dos autos. Pois as mesmas dão conta de ter agido
o acusado de modo a não vir atingir a honra subjetiva da suposta vítima, uma vez que
houve recuo da reprimenda, pois o crime de preconceito racial não se confunde com
injúria, a medida que este protege a honra subjetiva da pessoa, que é o sentimento
próprio sobre os atributos físicos, morais e intelectuais de cada pessoa, e aquela é
manifestação de um sentimento em relação a raça, razão porque apela daquela decisão.
A estratégia da nova defesa é desqualificar o tipo penal aplicado, questionando a
condenação nas “penas constantes do Art. 20 caput, da Lei 7.716/89”. Entende que o fato
denunciado enquadrar-se-ia no tipo penal da injúria, caso se caracterizasse o dolo. Coisa
que a defesa argumentará em contrário. Após afirmar que os depoimentos das testemunhas
arroladas pelo MP serem contraditórias, relembra o fato de V
49
, ser preconceituosa,
afirmando que não se considerava negra. A seguir afirma:
EGRÉGIA CÔRTE DE JUSTIÇA, não deixem que continuem tamanha aberração de
provas contraditórias constantes nos presentes autos venham condenar o acusado, pois
VV. Excias., Desembargadores cultos e dignos que elevam aos pícaros do Direito à
Justiça do nosso Estado, fazendo-a um espelho onde se mirem as dos outros Estados
do nosso País, por certo, ao manusearem os autos, verão que existem provas de que o
acusado, no momento que a suposta vítima intrometeu-se na discussão entre o acusado
e a locatária, não teve o acusado a intenção dolosa de ofendê-la.
Ad
A
49
reafirma serem contraditórias as provas. Após utilizar o recurso retórico do
Elogio ao destinatário, tornando-o sábio o suficiente para aderir a minha tese, apresenta a
tese de que o acusado não teve intenção dolosa de ofender. A argumentação de Ad
A
49
é
composta de três teses diferentes: 1) não se trata de racismo, mas de injúria; 2) as provas
são contraditórias; 3) há provas de que não houve intenção de ofender. Estas teses são
aparentemente contraditórias. A terceira sustenta-se na segunda, ou seja, se o fato for
enquadrado no tipo penal da injúria, não houve intenção dolosa, portanto não houve crime...
Porém, apela para provas que acabara de afirmar contraditórias. Parece que o argumento só
se sustenta sob o pressuposto que é exatamente esta contradição o que prova a ausência de
intenção.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
438
Em 14 de agosto de 2001, P
49
274
apresenta suas contra-razões de recurso.
Inicialmente, observa o Ministério Público que o Recorrente [A
49
] confessou, e as
testemunhas confirmaram, ter proferido as seguintes expressões em discussão com a
vítima: “cala a boca nega safada. Eu detesto nego e além do mais nego metido. Eu não
estou falando com você pois nem de nego eu gosto”.
A vítima (...) corrobora as expressões contidas na inicial, ditas pelo acusado, levando ao
entendimento, pela análise dos autos, de que resta configurado o tipo penal de
preconceito racial.
O P
49
parece insistir sobre o tipo penal aplicado pela M
49
, porém, após reforçar o
parecer desta sobre a natureza do fato jurídico, retoma a ênfase no seu aspecto injurioso:
(...) Verifica-se, pois que a DD. Magistrada atuou com o costumeiro acerto ao afirmar
que “Não podemos, destarte, considerar ‘mero vício de linguagem’ o uso de expressões
que desrespeitam, agridem o ser humano, (...)”
Saliente-se que o recorrente teve efetivamente a vontade de denegrir a vítima, pois
proferiu as expressões por ele mesmo confessadas, no momento em que discutia com a
empregadora da vítima, de forma acirrada. Assim, não cabe entendimento de que o
recorrente chamou a vítima de negra por que ela é na verdade negra, não podendo
chamá-la de branca. Ora, é bem diferente chamar uma pessoa de negra e em tom de
cordialidade e chamá-la de negra em tom de discussão.
O P
49
distingue, muito bem, a diferença ilocucionária da injúria e do vocativo.
Porém, não fica claro se a injúria é apenas um dos atos ilocucionários envolvidos, sendo a
ofensa um dos efeitos, ou se é o ato punido como preconceito racial, o que significaria uma
confusão de tipos penais, sendo esta uma das teses de Ad
A
49
. Apesar de se julgar a
procedência de uma sentença para crime de racismo, os argumentos utilizados são os
mesmos para a qualificação dos casos de injúria qualificada. Esta ambivalência, como
vimos, é o efeito da combinação simultânea de propósitos ilocucionários distintos. Além
disso, desaparece qualquer referência ao aspecto social destas práticas. O dolo é
274
Da mesma forma que ocorreu com o advogado de defesa, houve troca de promotores, haja vista a mudança
de instância. Porém, como fizemos com o advogado, mantivemos o mesmo símbolo para o promotor, pois se
trata, nos dois promotores, de uma personificação da instituição do Ministério Público Estadual. Os símbolos
representam mais uma função do que um indivíduo específico. Os números subscritos identificam os casos no
corpus analisado.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
439
caracterizado pelo tom de discussão, não mais por uma prática social ordinária em uma
sociedade racista, como aparece na sentença.
Em 08 de novembro de 2001, um Procurador de Justiça do MPPE reafirma as contra-
razões, defendendo a manutenção da sentença, sendo acompanhado, em 22 de novembro de
2001 pelo Desembargador-Relator do TJPE. Este repete os argumentos das contra-razões
de recurso apresentadas pelo Promotor de Justiça.
Em 12 de dezembro de 2001, inicia-se o julgamento do recurso. O Desembargador-
Revisor discorda do voto do Desembargador-Relator, suscitando uma Preliminar de
Nulidade do Processo, devido à ausência nos autos da proposta de suspensão condicional
do processo ou das razões de seu não oferecimento. Surge, então, uma dúvida sobre a
apenação da lei, denominada pela Procuradora de Justiça presente, “essa Lei de cor”.
Nenhum dos presentes ao julgamento do recurso conhece as penas definidas pela Lei Caó.
Após uma consulta, confirma-se que a pena mínima é de um ano, cabendo oferecimento da
suspensão condicional, o que deveria levar à aprovação da Preliminar de Nulidade
apresentada pelo Desembargador-Revisor. Porém, surge nova questão levantada pela
Procuradora de Justiça: nenhum dos Códigos do Tribunal tinha a Lei 9.459/97, ou seja, a
lei que institui o art. 20. Os Desembargadores alegam que a Lei que está em questão é
7.716/89, porém a Procuradora lembra a existência de uma “nova lei” que modifica aquela.
A pedido do MPPE o julgamento foi sustado para que pudesse oferecer parecer a respeito
da preliminar.
Em 19 de dezembro de 2001, é retomado o julgamento. A Procuradora de Justiça
afirma que mesmo com a modificação trazida pela lei posterior, a pena mínima continua de
01 (um) ano. Contudo, há referências nos autos e na sentença a maus antecedentes do
acusado, habituado a fazer ameaças, impossibilitando que fosse proposta a suspensão
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
440
condicional. O Desembargador-Revisor, contudo, insiste na preliminar. Por maioria de
votos, a preliminar é rejeitada, sendo solicitado, então, o voto do Revisor quanto ao mérito.
Após lembrar que há controvérsias nos testemunhos quanto ao uso da expressão “nega
safada”, o afirma:
(...) Entendo mais que se está dando um dimensionamento exageradamente amplo à
definição contida no art. 20, da Lei no. 7.716/89. É de se temer que esse entendimento
que se vem dando ao preconceito de raça ou de cor venha a ter uma ação mais negativa
do que benéfica à sociedade. O exagero exegético de discriminação ou preconceito pode
levar ao nascimento de uma cultura racista entre nós, sobretudo entre as pessoas de
cor negra.
Ficam explícitas duas preocupações do Revisor. Uma de natureza exegética,
referente a um “dimensionamento exagerado” da definição de preconceito de “raça ou de
cor”. Uma segunda preocupação quanto aos efeitos sociais desta exegese. Como já vimos, a
noção de “exagero” e “demasia” implicam numa indeterminação, tanto quanto “quase” ou
“suficiente”, dependendo de uma decisão exegética (ético-semântica) que estabeleça onde
começa o exagero e termina o razoável, um limiar de sensibilidade (variações pequenas da
causa não têm efeito). Quanto à segunda preocupação, fica evidente o que analisamos, na
segunda parte da presente tese: o temor do conflito racial que venha a estabelecer uma
cultura racista inexistente. Note-se contra quem se dirige este temor, quem personifica esta
ameaça: “sobretudo entre as pessoas de cor negra”.É a partir deste temor que se define o
limiar de sensibilidade. Para aqueles que acreditam na existência de uma cultura racista que
a lei deve combater, como processo civilizatório, pedagógico, o limiar é máximo, pois o
alvo está sempre mais além. Porém, para os defensores da “democracia racial” brasileira, o
exagero é aquilo que possa ameaçá-la. Observe-se a divergência entre este voto do
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
441
Desembargador-Revisor e a sentença de M
49
, quanto à crença numa “democracia racial”
ou numa “sociedade das aparências”.
275
O Revisor prossegue:
No momento em que o Recorrente teria dirigido à vítima palavras que a ofenderam,
estava discutindo com a Diretora do Colégio em que trabalhava. Não vejo na atitude do
acusado o dolo específico de praticar, induzir ou incitar a discriminação (separação) ou
preconceito (ódio irracional ou aversão) de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional.
(...)
Admito que as palavras proferidas pelo ora Recorrente foram ditas mais por seu estado
emocional, no momento da discussão com a Diretora do Colégio, emocionalidade que
teria acrescido com a repentina intervenção da vítima, do que pela vontade informada
pela intenção de praticar, induzir ou incitar separação entre raças que formam o
homem brasileiro, resultado, em grande parte, da miscigenação, e que, longe de
desmerecer, é motivo de valorização diante do somatório de qualidades positivas das
diversas raças. O crime de que trará o art. 20, da Lei no. 7.716/89 somente é punível a
título de dolo.
E, a meu ver, faltou este elemento subjetivo o dolo para que se possa cogitar da
punibilidade do agente. (grifo nosso)
Antes de mais nada, iniciemos por esta estranha defesa da miscigenação racial. Ela é,
sobretudo, significativa por seu deslocamento, causando uma descontinuidade na isotopia
(constante temática) do discurso, ou seja, ele aparece como um “parêntese” em meio a uma
argumentação sobre o dolo da ação sub judice. Este “parêntese”, ou digressão, causa
estranhamento, pois não parece motivado por nenhum dos elementos em questão no
julgamento do recurso, ou mesmo, dos autos do processo. De onde ela teria vindo? Para
nós, ela é o indicativo da intertextualidade do discurso que está servindo de base para a
decisão do Revisor: o Mito da Democracia Racial. É este intertexto que está pressuposto na
afirmação da ausência de dolo: não há intenção dolosa, pois não há como incitar a
275
Conforme vimos no capítulo seis, podemos modelizar esta divergência, usando o modelo de Zeeman que
representa num plano de controle (u,v), o conflito entre dois fatores. Ou seja, o temor do conflito racial pode
gerar a “fuga” ou o “ataque”: “o temor do exagero exegético” vs “a coibição de indiscutível e tamanha
opressão racial”. Porém, há uma hierarquia entre os dois fatores, personificados pelo Desembargador e pela
Juíza.
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O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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separação entre raças miscigenadas. O que existe é a expressão de uma forte emoção, não
orientada por nenhuma intenção racista.
Ocorreu, então, uma divergência entre o Desembargador-Relator e o
Desembargador-Revisor, sendo necessário o voto de um terceiro Desembargador que
assim se pronuncia:
(...) Mesmo que tenha ocorrido deformação nas declarações prestadas pelas
testemunhas, uma vez que é sabido que as palavras passam de uma pessoa para a outra
de forma diferente, não há dúvida de que a expressão “negra” foi usada.
Ninguém diz em relação a uma pessoa branca: “Afaste, branco, que não gosto de
branco”; “Não quero negócio com branco”. Ninguém diz isso, só diz em relação à
pessoa de cor negra: “Negro, se afaste que não gosto de você. Não gosto de negro”.
Observe-se que a decisão ético-semântica vai girar em torno do que significa chamar
alguém de “negro” num contexto de conflito:
Quando se usa tal expressão, está-se discriminando a raça negra, não há a menor
dúvida. Há dolo específico no sentido de discriminar, com a devida vênia do Eminente
Revisor.
Em algumas oportunidades não ocorre isso, mesmo quando o acusado usa tal
expressão. Quantas vezes nós chamamos a pessoa amada “nega”: “Vem cá, nega”;
“Neguinha, eu gosto de você”. Nestes casos não há discriminação, a expressão é usada
de forma carinhosa. Se há dolo, é de dolo de carinho. É expressão de afeto. Mas,
quando a pessoa se dirige a alguém na forma como o acusado se dirigiu, ele age
dolosamente no sentido de discriminar.
Por essa razão, pedindo vênia ao Eminente Revisor, acompanho o voto do Relator,
negando provimento ao recurso.
Mais uma vez, o argumento direciona-se para o caráter ofensivo do uso de um
vocábulo como “negro”, ou seja, trata-se de argumento próprio dos casos de injúria
qualificada, apesar de em nenhum momento questionar-se a qualificação da sentença para
crime de racismo. De qualquer forma, em tal argumentação, o Desembargador
desconsidera o elemento emocional como descaracterizador do dolo e vai procurar
evidenciá-lo, como na sentença de M
49
, no enquadramento do fato julgado como tipo de
prática social recorrente e agressiva, distinta de outros usos da expressão “nego” ou “nega”.
Busca, assim a intenção como propósito ilocucionário socialmente reproduzido, sem apelar
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443
para qualquer elemento psicológico ou anímico. A intenção é inferida da ação e não o
contrário. Uma inferência sobre a intenção do falante, que resulta da decodificação de
significados e da aplicação de princípios conversacionais socialmente conhecidos, mas cuja
aplicação é negada pelo (des)conhecimento ideológico das relações raciais (cf. capítulo 5).
Portanto, intenção como “efeito de superfície” não como “interior” ou “transcendente”.
Por maioria de votos, no mérito, negou-se o provimento ao recurso, ou seja, foi
mantida a sentença inicial de M
49
. Portanto, o que permitiu “resolver” a controvérsia foi o
número N dos pareceres autorizados: N(I
(s)
) > N(I
(s)
) Q
(s)
, ou seja, o a maioria dos
desembargadores percebeu dolo (atestação da intenção), implicando na qualificação da
ação como racismo.
9.6 Considerações Finais, Possibilidades Estratégicas
Vê-se como, apesar da variedade de casos, estes podem ser relacionados como a
variação em torno dos mesmos elementos, que determinam a trajetória dos casos. Apesar da
aparente estabilidade estrutural que determina as distribuições entre os casos, constata-se a
interferência de um campo hegemônico, horizonte de tensões inarticuladas, antagonismo
social subjacente que, embora se situando num aquém de sentido, permitiria dar conta das
manifestações “ondulatórias” insólitas reconhecidas na superfície do discurso (GREIMAS
& FONTANILLE, 1996:15). Por exemplo: os sentidos extrajurídicos na fase postulatória
que expulsam os casos do sistema sem o julgamento do mérito; a divergência entre a
Delegacia e o Ministério Público quanto ao tipo penal da discriminação em foco (racismo
ou injúria?); a bifurcação de um mesmo caso com decisões finais divergentes; afirmação e
negação simultâneas do dolo, ora como efeito de superfície, ora como força interior; a
afirmação da existência de crime de racismo apontando-se, contraditoriamente, os
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elementos lingüísticos (“piadas”, “palavras ofensivas”) e subjetivos (“querer ofender”,
“sentir-se ofendido”) próprios do crime de injúria qualificada; divergências resolvidas pelo
voto da maioria: a maior quantidade define a qualidade do fato. Estes exemplos
demonstram o quão ambíguas ainda são as razões jurídicas ou não jurídicas produzidas
pelas decisões ético-semânticas. O ponto do sistema em que tal ambigüidade parece bem
menor é na fase postulatória da ação penal, antes e após o inquérito policial: a diferença na
proporção das trajetórias adotadas pelos casos é expressiva. A imensa maioria dos casos
tem sua movimentação encerrada. Porém, as razões ou sentidos produzidos não constam
dos autos, ou seja, são juridicamente silenciosos, informais, não-ditos, não se apresentando
como razões ou sentidos produzidos pelo sistema. Reproduz-se, assim, o
(des)conhecimento ideológico das relações raciais pelo sistema jurídico. A discriminação
racial torna-se inaudita, extraordinária, rara. A ambigüidade do não-dito racista é reforçada
pela impossibilidade de tematizá-lo, de dizer o não-dito, de julgar o mérito. O
(des)conhecimento ideológico impede a utilização de recursos que permitam “extrair” ou
“inferir” a “intenção” ou “sentido” racista da ação discriminatória, pois não há o que extrair
ou inferir, haja vista que “longe de desmerecer, [a miscigenação] é motivo de valorização
diante do somatório de qualidades positivas das diversas raças
”.
Porém, é possível, também, identificar forças contra-hegemônicas que buscam
reorientar esta realidade. Contudo, deve-se notar que tais forças não se reúnem de forma
unívoca em uma mesma instância, órgão ou pessoa. Ambivalências se apresentam: outros
sentidos resistem, onde sentidos dominantes incidem. Uma formação discursiva não deve
ser compreendida como um bloco homogêneo relacionado a uma ideologia hegemônica
numa relação de exterioridade com a ideologia contra-hegemônica. Trata-se de enfrentar a
leitura, no interior do próprio discurso contra-hegemônico, na maneira mesma em que se
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organiza, da dominação da ideologia hegemônica. Coloca-se a questão da presença da
heterogeneidade no próprio interior do discurso contra-hegemônico e vice-versa
(GREGOLIN, 2004:129). Uma ideologia não é idêntica a si mesma, existindo apenas sob a
modalidade da contradição que organiza o antagonismo que lhe é subjacente. Onde a
condenação penal ao racismo se impõe, ainda, assim, se o faz por razões que o reduzem à
concepção hegemônica do que vem a ser a discriminação racial no Brasil: manifestações
lingüísticas espirituosas cuja intenção é provocar um sentimento negativo na vítima.
Fetichismo lingüístico e subjetivismo psicologista: a discriminação racial é percebida como
preconceito racial. Quando o sentido racial da discriminação não é tido como uma
“intenção”, “motivo interior” ou “emoção”, acaba sendo tomado como o significado
“interior” a uma expressão verbal daquela “emoção”, ou puro significado lingüístico, às
vezes oculto. O sentido “racista” de um ato de discriminação passa então a ser procurado
em uma “interioridade” mental ou lingüística que se constitui como uma interiorização do
lado de fora, uma (re)duplicação do outro. Uma dobra do lado de fora constitui o lado de
dentro (a subjetividade) do sujeito (DELEUZE, 1991). Devido a esta duplicidade, a
“intenção” sempre se instala na distância entre o dentro e o fora, entre ser e aparecer
permanecendo duvidosa, suspeita, conforme a superfície se apresente transparente ou
opaca. A transparência requer plena representabilidade, e não há como consegui-la senão
numa democracia plenamente emancipada, ou sociedade plenamente justa na qual a
opacidade inerente à alteridade radical não é constitutiva das relações sociais. A
transparência deve ser constituída por meio de sua demarcação de uma opacidade essencial:
porém, a linha demarcatória não pode ser pensada desde o lado da transparência que, então,
se torna ela mesma opaca, pois o que lhe constitui (a oposição com a opacidade) não
transparece. A exclusão em si da opacidade, a diferença constitutiva entre transparência e
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opacidade é transparente ou opaca? A alternativa é, segundo Laclau, indecidível, estando,
portanto sujeita, em maior ou menor grau, a práticas articulatórias que visem a (des)dobrá-
la ou (des)articulá-la. Quando as práticas articulatórias operam num campo cruzado por
processos articulatórios antagonistas, são denominadas práticas hegemônicas. Há uma
dimensão antagonística, um “conflito racial” que não é redutível a um fundamento único,
ou seja, a condição da verdadeira emancipação racial, como movimento da opacidade à
transparência, fluxo de justiça, é uma opacidade constitutiva que nenhum fundamento
político, jurídico, moral ou epistemológico pode erradicar. A construção da justiça e da
democracia, racial ou não, será sempre habitada por uma incompletude e provisoriedade
inultrapassáveis, assim como as identidades que as instituem (cf. LACLAU, 1994).
A “justiça” se configura como um conjunto de significados que, no âmbito de um
complexo ideológico-discursivo, opera como um horizonte, ou seja, como um momento de
totalização equivalente, presente ou futura, de várias confrontações e lutas parciais. Este
horizonte está sempre presente, mas seu papel pode variar significativamente (LACLAU,
1996:45-46). De um lado, há uma desproporção radical entre a situação efetiva de
dominação racial e a possibilidade de combater a força hegemônica, travando uma batalha
eficaz de posição contra a mesma, sendo concebida e vivenciada, exclusivamente, num
nível imaginário. Neste caso, o imaginário político-jurídico não permite a totalização de
uma massa de confrontações parciais, ações judiciais particulares, mas, ao contrário,
constitui o significado primário das mesmas. Mas, por isso mesmo, o espaço jurídico, por
exemplo, só pode ser concebido como uma totalidade fechada que dará conta de garantir a
realização plena da justiça (cf. capítulo 4), reduzindo o poder de ação política contra a
Hegemonia Branca, segundo os limites impostos, de um lado, pelo direito penal e suas
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condições de punibilidade, e , de outro, pelo direito em geral e pela judicialização da
política a ele associado.
Parece-nos que este primeiro horizonte das relações raciais é o que, ainda, predomina
no momento atual do fluxo de justiça na Região Metropolitana de Recife, reproduzindo o
Mito da Democracia Racial.
Por outro lado, cada luta parcial, cada ação judicial pode atingir o objetivo de se
constituir como uma batalha em uma guerra de posições e, assim sendo, retirar de si
mesma, de seu caráter único e diferencial, o mundo de significados que permitam a
constituição de uma identidade social ou política. O momento de totalização é, portanto,
apenas um horizonte, e seu relacionamento com os antagonismos concretos torna-se
instável, assumindo uma certa exterioridade, extravasando da ação penal, em particular. Por
exemplo, na ação civil ou trabalhista. E do espaço jurídico, em geral. Por exemplo, na
instituição das políticas públicas de promoção da igualdade racial, tais como as políticas de
cotas raciais e as demais propostas de políticas de ações afirmativas, como a lei
10.639/2003 que inclui nos currículos escolares o ensino de história e cultura africana e
afro-brasileira, com a conseqüente disputa por reconhecimento de um discurso racial anti-
racista, com sua “representação” pública e política, e de radicalização da democracia
através da democratização das relações raciais.
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O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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ANEXOS
Anexo 1
LEI No. 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989
Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
O Presidente da República, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a
seguinte Lei:
Art. 1º – Serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de
cor.
Art. 2º – (Vetado).
Art. 3º – Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da
Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos.
Pena: reclusão de dois a cinco anos.
Art. 4º – Negar ou obstar emprego em empresa privada.
Pena: reclusão de dois a cinco anos.
Art. 5º – Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender
ou receber cliente ou comprador.
Pena: reclusão de um a três anos.
Art. 6º – Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de
ensino público ou privado de qualquer grau.
Pena: reclusão de três a cinco anos.
Parágrafo único: Se o crime for praticado contra menor de dezoito anos a pena é agravada de
1/3 (um terço).
Art. 7º – Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer
estabelecimento similar.
Pena: reclusão de três a cinco anos.
Art. 8º – Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou
locais semelhantes abertos ao público.
Pena: reclusão de um a três anos.
Art. 9º – Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de
diversões, ou clubes sociais abertos ao público.
Pena: reclusão de um a três anos.
Art. 10º – Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias,
termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades.
Pena: reclusão de um a três anos.
Art. 11 – Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores
ou escada de acesso aos mesmos.
Pena: reclusão de um a três anos.
Art. 12 – Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios, barcas, barcos,
ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido.
Pena: reclusão de um a três anos.
Art. 13 – Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças
Armadas.
Pena: reclusão de dois a quatro anos.
Art. 14 – Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar
e social.
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
465
Pena: reclusão de dois a quatro anos.
Art. 15 – (Vetado).
Art. 16 – Constitui efeito da condenação a perda do cargo ou função pública, para o servidor
público, e a suspensão do funcionamento do estabelecimento particular por prazo não superior a três
meses.
Art. 17 – (Vetado).
Art. 18 – Os efeitos de que tratam os arts. 16 e 17 desta Lei não são automáticos, devendo ser
motivadamente declarados na sentença.
Art. 19 – (Vetado).
Art. 20 – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 21 – Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, 5 de janeiro de 1989;
168º da Independência e 101º da República.
José Sarney
Paulo Brossard
Anexo 2
LEI No. 8.081, DE 21 DE SETEMBRO DE 1990.
Estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito de raça,
cor, religião, etnia ou procedência nacional, praticados pelos meios de comunicação ou por publicação
de qualquer natureza.
O Presidente da República, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a
seguinte Lei:
Art. 1º – A Lei no. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo:
“Art. 20 – Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de
qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou procedência nacional.
Pena: reclusão de dois a cinco anos.
§ 1º - Poderá o juiz determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do
inquérito policial, sob pena de desobediência:
I) o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II) a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.
§ 2º - Constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do
material apreendido.”
Art. 2º – São renumerados os arts. 20 e 21 da Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, para arts. 21 e
22, respectivamente.
Art. 3º – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 4º – Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, 21 de setembro de 1990;
169º da Independência e 102º da República.
Fernando Collor
Bernardo Cabral
RAÇA E JUSTIÇA
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O RACISMO INSTITUCIONAL NO FLUXO DE JUSTIÇA
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Anexos 3
LEI No. 9.459, DE 13 DE MAIO DE 1997
CRIME DE PRECONCEITO
Alterou os arts. 1º. E 20 da Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crime resultantes
de preconceito de raça ou de cor e acrescentou parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei no. 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal).
O Presidente da República, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a
seguinte Lei:
Art. 1º – Os arts. 1º e 20 da Lei no. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passam a vigorar com a
seguinte redação:
“Art. 1º – Serão punidos na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
“Art. 20 – Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou
procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 1º – Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, embalagens, ornamentos,
distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do racismo.
Pena: reclusão de um a cinco anos e multa.
§ 2º – Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de
comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 3º – No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvindo o Ministério Público
ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência:
I) o recolhimento imediato ou busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II) a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.
§ 4º – Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da
decisão, a destruição do material apreendido.”
Art. 2º – O art. 140 do Código Penal fica acrescido do seguinte parágrafo:
“Art. 140º...
§ 3º – Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou
origem:
Pena: reclusão de um a três anos e multa.”
Art 3º – Esta Lei entre em vigor na data de sua publicação.
Art. 4º – Revogam-se todas as disposições em contrário, especialmente o art. 1º da lei no.
8.081, de 21 de setembro de 1990, e a Lei no. 8.882, de 3 de junho de 1994.
Brasília, 13 de maio de 1997;
176º da Independência e 109º da República.
Fernando Henrique Cardoso
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