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Gustavo Henrique Dionisio
Pede-se abrir os olhos.
Psicanálise e reflexão estética hoje.
Tese apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São
Paulo como parte das exigências para
a obtenção do Título de Doutor.
Área de concentração: Psicologia Social
Orientador: Prof. Dr. João Augusto Frayze-Pereira
São Paulo
2010
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i
PEDE-SE ABRIR OS OLHOS.
PSICANÁLISE E REFLEXÃO ESTÉTICA
HOJE.
Gustavo Henrique Dionisio
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
_______________________________
_______________________________
_______________________________
_______________________________
Tese defendida e aprovada em:___/___/_____
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ii
Sumário
Resumo p. iii
Agradecimentos p. iv
Introdução (estabelecimento de um enquadre) p. 1
Capítulo 1) Fora da clínica, fora de lugar? p. 12
Desdobramentos e contradições da aplicação
1.1) Expressão e desejo p. 22
1.2) Ego Psychology: o legado da psicanálise da arte p. 28
1.3) Problemas metodológicos: a filosofia da aplicação p. 45
1.4) Psicanálise e Estética da Recepção p. 54
Capítulo 2) Do Extraclínico à Implicação p. 71
Psicanálise, arte da escuta
2.1) Articulações francófonas de agora p. 74
2.2) Donald Kuspit e a influência anglo-saxônica p. 82
2.3) Novos fundamentos, reconstruções: p. 92
psicanálise lá e cá
1.5) Psicanálise implicada p. 115
Capítulo 3) De outubro em diante, reflexões estéticas em inglês p. 129
Hal Foster et. alli.
3.1) Primeira repetição. Cinismo e falsidade? p. 133
3.2) Segunda repetição. p. 144
Experiências do real: angústia e trauma
3.3) Hiper-realismo e pictograma p. 151
3.4) Abjeção, poética do estranhamento p. 167
3.5) Terceira repetição. Enquadre, arte e clínica p. 190
Capítulo 4) Restos e aberturas, cortes e indícios p. 204
Georges Didi-Huberman
4.1) Estranha temporalidade: p. 206
o olhar e a quadratura do amorfo
4.2) Do informe ao fetiche: olhar perverso p. 228
4.3) Sintomas da visualidade p. 241
4.4) Perder de vista: Minimalismo e figurabilidade p. 250
4.5) Estética e psicanálise p. 271
Psicanálise, reflexão estética p. 280
Referências Bibliográficas p. 314
iii
Resumo: O presente trabalho pretende investigar como é feita a utilização da
teoria psicanalítica no cenário da reflexão estética e da crítica de arte
contemporâneas. Para tanto, o recorte se concentra em dois pensadores que
se tornaram significativos na atualidade, embora não sejam os únicos: o crítico
Hal Foster e o historiador da arte Georges Didi-Huberman. O objetivo da
investigação é mostrar em que medida os conceitos gerados na práxis
psicanalítica possibilitaram interpretações de ruptura no campo da estética
tradicional. Essa modalidade de análise se torna possível uma vez que se
abandona o paradigma da psicanálise aplicada, ainda corrente no cenário
extraclínico. Por fim, a proposta visa sustentar que a operação do amorfo,
gerada no interior da pesquisa, pode lançar luz a certas experiências estéticas
que vão da modernidade à pós-modernidade das artes.
Palavras-chave: psicanálise; estética; figurabilidade; posterioridade; amorfo.
Abstract: This work intends to investigate the use of psychoanalytic theory
within the aesthetic and critical contemporary art field. To this purpose, this
study focuses on two philosophers who have become significant in our time: the
critic Hal Foster and the art historian Georges Didi-Huberman. This study aims
to show how far the concepts generated in psychoanalytic praxis allowed
interpretations that disrupt the field of the traditional aesthetics. This type of
analysis is possible once we abandon the paradigm of “applied
psychoanalysis”, which is still current in non-clinical setting. Finally, the proposal
wants to argue that the category of the amorphous, generated in this research,
may clarify certain aesthetic experiences that range from the modernity of art
through the post-modernity.
Key-words: psychoanalysis; aesthetics; figurability; deferred action; amorphous.
Résumé: Le présent travail soutient l’investigation à propos de l’utilisation du
méthode psychanalytique chez la refléction estéthique et la critique d’art
contemporaines. Pour cela, le découpage principal de la recherche se
concentre dans le travail de deux théoriciens qui ont devenu très importants à
l’actualité: le critique Hal Foster et l’historien de l’art, Georges Didi-Huberman.
Le but de cette investigation est de faire constater dans quelle mesure les
conceptions provenantes dans la pratique psychanalytique ont permis les
interprétations de rupture dans le champ de l’esthétique traditionnelle. En outre,
ce genre d’analyse est concevable seulement quand on renonce au modèle de
la psychanalyse apliquée bien que dans le milieu extra-clinique il soit courant.
Finalement, la thèse vise soutenir que l’opération de l’amorphe - developpé au
sein de ma recherche -, pourrait éclaircir quelques expériences esthétiques qui
partent de la modernité jusqu’à la post-modernité des arts.
Mots-clés: psychanalyse; esthétique; figurabilité; posteriorité; amorphe.
iv
Agradecimentos
À minha família, pelo apoio de sempre, Antonio, Inês e Fabrício; também à
outra parte dela, Lucia, Roberto, Bachian, e dona Flora; a Flavia, por fazer
parte disso tudo et pour être ma petite Flô; ao meu orientador, João Augusto
Frayze-Pereira, mais uma vez por sua generosidade, sabedoria e paciência(!);
ao Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte do Instituto de Psicologia da
USP, pela oportunidade de realizar o trabalho, assim como aos professores do
Departamento de Psicologia Social e do Trabalho; a Sônia Salzstein e Nelson
da Silva Junior, pela imensa colaboração em meu exame de qualificação; a
Nalva e Ciça, que vão se livrar de mim(!); ao Daniel Delouya e Cathe Koltai,
pela psicanálise que me dão dia a dia; aos afilhados Rodrigo, Fabio e Luiz
Gustavo, por nossa amizade canina; e também, aos amigos Edu Serrano,
Adilson Mendes, Marcelo Checchia, Cadu Machado, Soninha França, Silvio
Yasui, Roberta Kelly e Gaël Cardoso, que estão sempre por aí.
v
Barbara Kruger, Untitled, 1981.
1
Introdução
(estabelecimento de um enquadre)
As últimas palavras do livro Arte, Dor. Inquietudes entre estética e
psicanálise, de João Augusto Frayze-Pereira, definem uma exigência ao leitor:
o estado presente das relações entre arte e psicanálise reivindicaria, do campo
investigativo, “mais reflexão sobre os modos de presença da Psicanálise no
campo particular da atual Crítica de Arte” (2005, p. 377). O estudo que ora se
apresenta tem o propósito de atender, ainda que de maneira parcial, a essa
convocação.
A primeira investida desta pesquisa consistia no mapeamento de
referências que os catálogos de exposições brasileiras atuais fariam à
psicanálise. Com esse objetivo, procurei investigar os rastros da “crítica
psicanalítica” em dois grandes museus paulistas que conservam arte
contemporânea, a saber: o Museu de Arte Moderna (MAM-SP) e o Museu de
Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Ainda que a investigação tenha se
concentrado em um intervalo de tempo bastante modesto, do ano de 2000 a
2005, pouquíssimas (para não dizer nenhuma) foram as citações encontradas.
Parcos, também, são os exemplos de teóricos ou críticos de arte brasileiros
que se apoiam no dispositivo psicanalítico. A premissa que iniciou este projeto
de pesquisa era, portanto, descobrir, nos catálogos de exposições brasileiras
atuais, quais traços da criação freudiana podiam ser encontrados na formação
dos autores.
Historicamente, por exemplo, tivemos no país dois representantes da
crítica de arte que flertaram com a psicanálise entre os anos 1920 e 1940.
Osório Cesar é um exemplo notório: psiquiatra que atuou em aos menos três
periódicos da imprensa paulistana, escreveu sobre arte ao longo de toda sua
vida e nunca deixou de declarar sua influência psicanalítica. Mário Pedrosa, por
outro lado, um dos principais críticos brasileiros, após o período
fenomenológico de suas intervenções, debruçou-se sobre a psicanálise e
incorporou de vez a versão freudiana do inconsciente (Dionisio, 2004).
2
Esta ausência, que me fez abandonar o primeiro objetivo, levou-me no
entanto a encontrar um estimulante material de pesquisa na revista norte-
americana October. E é com base no exame desse material que se define,
mais especificamente, a tarefa que se aqui realizada: compor um campo
teórico consistente para verificar a utilização da psicanálise feita pela reflexão
estética atual. A paisagem que engloba parcela considerável desta crítica de
arte toma para si, ao da letra, os principais pontos discutidos por Freud em
Além do princípio de prazer, um dos mais controversos trabalhos do criador da
psicanálise.
Cabe assinalar que os ensaios encontrados na revista quase nunca se
referem à psicanálise que lhes é compatriota, ou seja, aquela que foi
encarnada institucionalmente pela Psicologia do Ego e cujos autores principais
são Ernst Kris, Heinz Hartmann, Otto Fenichel e Rudolph Loewenstein. É
peculiar, portanto, o fato de que as intervenções de October façam sempre
alusão ao seu mais conhecido rival Jacques Lacan. O embate entre ele e os
analistas “americanizados” se tornaria, com efeito, um capítulo notório da
história da psicanálise, e mencionar aqui essa disputa cumpre apenas uma
necessidade informativa: Kris, como veremos no primeiro capítulo deste
trabalho, foi reconhecidamente um dos principais analistas a se interessar
pelas conexões entre psicanálise e arte. Antes de ter se tornado discípulo
direto de Freud, cabe lembrar que também fora curador e historiador da arte.
Por outro lado, em junho de 1932, mesmo ano em que publicava sua tese
sobre o caso Aimée, Lacan, de sua parte, viria a iniciar sua análise didática,
talvez de maneira não deliberada, com... o próprio Loewenstein.
Mas retornando ao tema central, alusões à psicanálise podem ser
encontradas ao longo de toda a história de October, estejam elas mais
restringidas às citações de Freud e do próprio Lacan, ou ainda, em casos mais
rarefeitos, como os de Melanie Klein e Donald W. Winnicott. Pode-se encontrar,
pesquisando diretamente os volumes, um número considerável de artigos que,
de um modo ou de outro, se remetem ao inventor da psicanálise e aos seus
seguidores: surgem, ali, tanto alusões mais esporádicas, como nos exemplos
de Yves-Alain Bois, Hower Singerman, James Meyer, e, ainda de maneira mais
tímida, Silvia Kolbowski, quanto àquelas que apresentam maior recorrência e
3
sistematicidade, como é o caso de George Baker, Mignon Nixon e Parveen
Adams (os dois primeiros são historiadores da arte e integrantes do corpo
editorial da revista; a segunda, professora de psicologia na Universidade de
Brunel, é convidada com certa frequência a editar volumes especiais).
Neste contexto de arte e psicanálise nos Estados Unidos, os principais
articuladores são os editores Rosalind Krauss e Hal Foster, como se sabe.
Recém-saídos da ArtForum, ambos promoverão uma discussão aberta entre
pós-modernismo e psicanálise, tomando esta última como ferramenta
privilegiada para a discussão. O estímulo à intertextualidade se tornaria
evidente desde o início da revista, e a abrangência da realidade social com a
qual os críticos
se debatiam em meados dos anos 1970, momento em que
surge o periódico, não deve passar aqui despercebida. Sob tais circunstâncias,
o “desejo expresso pelas editoras da October [Krauss e Annete Michelson, sua
parceira na ocasião], o de um profundo debate teórico interdisciplinar, era
sintomático da crescente aceitação de que algo havia efetivamente mudado na
arte”, conforme indica Michael Archer (2001, p. 152).
No tocante à relação entre os dois campos, Foster por exemplo publicou,
além dos artigos dedicados à revista, dois outros ensaios que ganhariam rara
influência no cenário crítico. Compulsive Beauty sua tese de doutoramento,
realizada sob a orientação da própria Rosalind Krauss e The Return of the
Real viriam a se tornar intervenções necessárias a qualquer um que desejasse
estabelecer uma discussão mais pormenorizada da arte recente. Krauss, por
sua vez, foi de fato pioneira em importar o vocabulário analítico para o discurso
crítico, atividade que inclusive vem exercendo do final dos anos 1970 a o
momento presente, como se pode notar no compêndio de ensaios que reúne
em The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, livro repleto
de reflexões que atravessam três cadas de experiência crítica. Seu
conhecido The Optical Unconscious, lançado pouco tempo antes (meados da
década de 1990), demonstra um interesse pelas teorias de Lacan que vai do
início ao fim dos argumentos.
Este breve preâmbulo convém ao anúncio a um extraordinário paradoxo.
No ano de 2005, a revista October publicou um número praticamente todo
4
dedicado à psicanálise (Summer, 113).
1
A espinha dorsal desta edição, ao que
me parece, se apoia no artigo da psicanalista Juliet Mitchell, intitulado Theory
as an Object (“Teoria como um objeto”, numa tradução livre). a crítica e
historiadora da arte Mignon Nixon, além de introduzir e editar o volume, propõe
uma extensa discussão sobre arte e setting em On the Couch (“No divã”), texto
que vem logo em seguida; em complementação, encontram-se duas
entrevistas, uma com Thomas Hirschorn e outra com a própria Mitchell. Além
disso, o número também publica a análise em que Monica Ámor se debruça
sobre o trabalho de Gertrud Goldschmit (1912-94), a partir de uma obra exibida
pela primeira vez em 1969 no Museu de Belas Artes de Caracas (obra que
consiste, grosso modo, em um emaranhado de redes e fios de metal
“conectados e dispersos irregularmente no interior de um cômodo”). Este
ensaio, ao contrário dos demais, quase não se refere à psicanálise. Another
Geometry: Gegos’s Reticulárea é o título da intervenção de Ámor (“Outra
geometria: Reticulárea de Gego – 1969-1982”).
Com isso, resta saber onde residiria o paradoxo mencionado.
Historicamente, é sabido que Juliet Mitchell começara sua carreira intelectual
investigando o movimento feminista e as questões de gênero a ele
relacionadas; tais estudos se concentravam na discussão acerca da posição
“inexistente” e do lugar “escondido” da mulher segundo expressão da autora
em nossa sociedade das décadas de 1950 e 60, das quais ela fora
contemporânea. E como a própria Mitchell reconhece, esta foi sua porta de
entrada ao campo psicanalítico. O encontro definitivo, que acontece a partir de
Psicanálise e Feminismo, publicado em 1974, obrigaria Mitchell a se aventurar
pela prática clínica, experiência pela qual nunca havia passado.
Suas publicações mais recentes tendem a discutir além da questão
sobre a sexualidade, a mulher e a violência – a horizontalidade e agressividade
das relações fraternas, tal como se observa em Siblings: Sex and Violence
(2003), assunto que a propósito é muito explorado pelos psicanalistas. Em
sentido estrito, portanto, suas intervenções não se preocupam
fundamentalmente com a experiência artística. Além de não ser crítica,
1
Não é o único: o volume de n
o
58, lançado no outono de 1991, também se dedicava ao tema.
“Rendering the real” é o subtítulo desta publicação.
5
curadora ou historiadora da arte, a maioria das incursões de Mitchell pelo tema
se concentram na literatura e não nas artes plásticas, como ela mesma declara
em seu ensaio para o número 113.
Isto dito, talvez coubesse perguntar aos editores de October: por que
esta psicanalista teria sido escolhida para ser o personagem central deste
número? Existem vários outros que poderiam estar aí... Ademais, sua “posição”
psicanalítica, diferentemente do establishment editorial da revista, está muito
mais próxima da corrente kleiniana-winnicottiana. Nixon, por exemplo, que
neste volume também foi responsável pela entrevista com a psicanalista
inglesa, não esconde sua inclinação à corrente lacaniana, assim como fazem
diversos autores que publicam periodicamente na revista. O que explicaria,
afinal, esta presença? Eis a questão que incentivou um novo posicionamento
para desenvolver esta investigação.
Como hipótese inicial, serviria a constatação de que October comemora
uma abertura saudável às diferentes linguagens e referenciais tal como se
espera de uma revista que investe maciçamente na intertextualidade. Por outro
lado, além disso, aconvergência entre feminismo, psicanálise e teoria do
filme” (Foster, 1996, p. 184), que influencia todas as transformações da arte
contemporânea entre 1960 e 1990, também poderia justificar sua presença no
núcleo dessa discussão.
A meu ver, a resposta mais adequada seria no entanto muito mais
simples, uma vez que se encaminha ao conteúdo da discussão apresentada
por Mitchell a “teoria como um objeto” –,como veremos na conclusão deste
trabalho. E a resposta é óbvia porque pensar a teoria como objeto supõe
afirmar que qualquer teoria pode assumir esse lugar, ou, de igual modo, perdê-
lo. É certo que, para ser interpretada, a arte demanda um sem-número de
possibilidades discursivas, fazendo com que resista bravamente “ao
reducionismo dos discursos sobre elas proferidos” (Frayze-Pereira, 2005, p.
376). Esta tensão entre teoria e objeto acabou se tornando um dos pontos
centrais da investigação.
Nestas circunstâncias, antes se poderia refletir sobre determinados
percursos realizados pela atividade psicanalítica que se lança ao fenômeno
6
artístico. No que concerne especificamente à recepção de arte, por exemplo,
que tipo de interpretação a práxis freudiana poderia oferecer? Considerando
que as diferentes artes, “na condição de obras de cultura que ultrapassam o
momento imediato de sua instauração no mundo” (Frayze-Pereira, 2005, p.
376), são unidades de múltipla significação, quais leituras se tornariam
praticáveis? E ainda que amparados no dispositivo inaugurado por Freud,
como seria possível trabalhar com textos e obras sem sermos psicanalistas?
Por fim, como se pode escapar da famigerada ideia de psicanálise selvagem?
A relação entre psicanálise e arte é tão antiga quanto tensa, e não é
difícil contar a quantidade de perigos que reside nessa região fronteiriça. Não
obstante, seja no campo da crítica ou do fazer artístico, a psicanálise hoje se
instala de maneira definitiva como obra de cultura. Hoje não é mais possível
voltar atrás. Em função destas constatações, vejo-me obrigado a aprofundar o
recorte: o estudo que ora se apresenta visa investigar, portanto, e por meio de
análises textuais, a presença da psicanálise na atual teoria da crítica de arte.
Desse modo, minha hipótese de base dialoga com a pesquisa realizada
neste mesmo campo por Arte, Dor, para onde se deve retornar. Ali, Frayze-
Pereira sugere, bem perto de “inconcluir”, que
o contato com a Psicanálise apenas através dos livros, no campo da
Crítica, bem como no da Clínica, corre alguns riscos. Pode levar o
interprete a fazer sobrevoos conceituais e a cair na rede confortável
das representações abstratas, cognitivamente anestésicas e
emocionalmente indolores, que o levam a se afastar da Psicanálise e a
perder de vista a própria Arte (...) Resta saber, entretanto, como o
crítico que não é psicanalista fará uso dessa experiência [...] (2005, p.
377, grifos meus)
Noutra perspectiva, ao debater com o crítico literário Georg Steiner, cuja
doutrina reza que toda arte supõe uma “passagem do sentido ao significativo”,
Donald Kuspit declara em “Use and abuse of applied psychoanalysis” que a
diferença essencial entre os críticos praticantes e os não-praticantes da análise
7
se baseia em apenas um fato: para os primeiros, a interpretação psicanalítica
dos fenômenos culturais parece reverter a passagem que vai do sentido ao
significativo, transformando assim em mero sentido o que deveria ser
considerado relevante. Em outras palavras, uma vez que a psicanálise não se
limita a ser uma filologia, ela acaba frustrando a vontade mais imediata de se
celebrar a “ausência de sentido” (meaningfulness), pois, de acordo com a
opinião de Kuspit, nunca adere à “substancialização” que é desejada pela
cultura.
Além disso,
(...) não-psicanalistas que praticam psicanálise aplicada tornam-se
particularmente incertos e ambivalentes a respeito de seu uso
autocontraditórios quanto à sua aplicação. Essa autocontradição não é
simplesmente seu problema objetivo e subjetivo; ela nos indica algo
sobre a própria problemática da psicanálise aplicada. Mas a questão é
o que essa autocontradição nos pode ensinar sobre a psicanálise
aplicada em que medida essa dolorosa, peculiarmente rigorosa
autocontradição nos diz a respeito dos problemas dialéticos (para usar
essa palavra tão gasta, mas ainda inescapável) da psicanálise
aplicada (Kuspit, 1995, p. 316).
Ainda assim, o problema também se refere ao nível inconsciente – como
não poderia deixar de ser que subsiste nas intersecções entre psicanálise e
cultura, pois, “onde inconsciente, psicanálise”.
2
A maioria dos ataques às
saídas extraclínicas surgiram como defesa contra as teses antropológicas de
Freud, assim como manifestam sua resistência diante do “pessimismo”
freudiano quanto à civilização em que vivemos. As controvérsias a propósito de
Totem e tabu, Moisés e a religião monoteísta, assim como a recepção de
Mal estar na cultura, O futuro de uma ilusão e Moral sexual civilizada atestam
este fato com bastante clareza. Segundo Kuspit, seria a falta de um exame
rigoroso a respeito dessa ambivalência seria o grande responsável “pelo
sentido, em meio aos estudiosos da cultura não-analistas, de que a psicanálise
2
Paul-Laurent Assoun (comunicação pessoal, janeiro de 2009).
8
aplicada não apenas castrou e assassinou, mas também desmembrou de tal
maneira o objeto cultural de sua investigação que não se pôde reorganizá-lo
novamente” (1995, p. 316).
A hipótese é de certo modo pertinente; contudo, parece-me que, a essa
visada de fundo assumidamente sociológico, falta ainda discutir problemas
conceituais em torno das principais categorias psicanalíticas que se lançam à
elucidação da experiência com a arte, como é bem o caso, a título de exemplo,
do popular mecanismo de sublimação. O que a maioria dos autores esquece, e
em especial aqueles que não partem do campo psicanalítico propriamente dito,
é que a despeito da ambivalência que se revela no interior das teses culturais
de Freud, também ali um movimento sistemático de desconstrução e de
reconstrução, correção teórica permanente que pulsa ao longo de toda a sua
produção intelectual. E, no que tange à arte e à reflexão estética, também não
se pode assistir, ao longo dos últimos anos, a uma série considerável de
redimensionamentos epistemológicos?
Partindo de circunstâncias como essas, o estudo almeja estabelecer
conexões entre dois personagens significativamente reconhecidos no circuito
do pensamento recente, a saber, o citado Hal Foster e o historiador da arte
Georges Didi-Huberman. A opção se justifica: importando conceitos
psicanalíticos que trazem luz às obras por eles analisadas, ambos trabalhariam
sob uma modalidade de psicanálise que vai além da fácil aplicação dos
conceitos, bem como ainda se afastam da tentadora vontade patográfica,
selvagem em quaisquer casos.
Em certa medida, o fato de que Foster recorra à psicanálise lacaniana,
antiamericana por excelência, abriria portas à entrada de um pensador francês
como Didi-Huberman, fazendo com que as duas intervenções se tornassem
complementares. Investigando questões estéticas de ordem “pré-
representacional” neste caso, pela via da abjeção e do horror Foster se
obrigado a acessar as teorias do trauma e da repetição, assim como a
topologia do real, cujo anel forma uma tríade com imaginário e simbólico. De
inspiração mais freudiana, Didi-Huberman estende seu raciocínio ao encontro
de processos regredientes que configurariam, em princípio, a apreensão
9
estética da arte moderna. Conceitos como “pele”, “detalhe”, “pano” e “incarno”,
por exemplo, desenvolvidos no início de seus estudos, dão provas de uma
modalidade de recepção que se institui pela via de uma “metateoria”, chegando
a se comparar a um esforço de construção metapsicológica, como aqui
pretendo sustentar. Com isso, suas intervenções também conseguem ir além,
pois se demonstrariam capazes de enfrentar não o embate com a arte
moderna mas sobretudo com aquela que surge logo depois.
Em termos metodológicos, deve-se verificar que, implicados com os
trabalhos que recebem, os autores escolhem as psicanálises que se revelam
necessárias à recepção das obras, e não o contrário o que por outro lado não
significa que sejam “ecléticos”. De modo mais preciso, cada discussão que
Foster e Didi-Huberman suscitam é sempre guiada pela demanda das obras de
arte, de maneira que eles nunca se aferram, a priori, a uma determinada escola
psicanalítica, embora mantenham a letra freudiana como ponto de partida o
que sempre se espera, por outro lado, de qualquer psicanalista).
Nestas circunstâncias, o primeiro capítulo se responsabiliza pelo
levantamento de um panorama sobre a noção de psicanálise aplicada,
procurando encontrar suas características essenciais, suas contradições e
seus principais desdobramentos. A seguir – capítulo 2 –, procuro costurar
diversas perspectivas de psicanálise “fora” da clínica (na verdade ela não está
fora, como veremos). Partindo da condição extramuros, consagrada por Jean
Laplanche, e passando depois pela teoria do desligamento de André Green,
chegaremos, numa terceira viragem, à proposição de uma psicanálise
implicada,
3
concebida por João Frayze-Pereira. A meu ver, esta categoria
conseguiria subverter de modo consistente os (ab)usos feitos pelo método da
aplicação, uma vez que ela oferece uma abordagem original do problema. De
qualquer modo, todas as facetas serão pensadas no interior do que se pode
chamar, enfim, de experiência psicanalítica.
As reflexões desenvolvidas pelos críticos-historiadores ora selecionados
serão examinadas na segunda parte do trabalho. No capítulo 3, pretendo
3
Muito recentemente, Jean-Michel Vives sugeriu, em sua introdução ao n
o
80 de Cliniques
méditerranéennes, que o objetivo deste volume, longe de exercer psicanálise aplicada,
coimplica a psicanálise e outros campos do saber” (2009, p. 06, grifos meus).
10
desenvolver uma discussão acerca das ferramentas analíticas empregadas por
Hal Foster, tendo The return of the real como texto-base para a investigação;
em seguida (capítulo 4), concentro-me na teorização que Georges Didi-
Huberman estabeleceu ao longo de três de suas obras: La peinture incarnée,
Devant l’image, e, por fim, Ce que nous voyons, ce que nous regarde. São
trabalhos que se distribuem ao longo de uma década de pensamento crítico. O
ato de fazê-los passar um através do outro poderá, assim considero, criar
aberturas para uma compreensão aprofundada das relações entre psicanálise
e arte, e em especial no que diz respeito à sua recepção, seja isso no cenário
contemporâneo das artes, seja no contexto atual dos estudos psicanalíticos
sobre a forma (conclusão).
É deste modo que o trabalho pretende se situar na fenda entre as duas
vias. Assim como acontece na concretude da análise, os procedimentos devem
suportar o paradoxo que a obra de arte (o analisando) estabelece ao olhar
escuta). Não se trata de uma escolha a ser feita: o campo da experiência
estética que subsiste à teoria da arte e à clínica psicanalítica não situa a
exterioridade dos termos. Haja vista as incursões de Freud pela clínica, pela
arte e pela cultura, psicanálise e estética não seriam termos coextensos? É
impossível afirmar que a existência da psicanálise não depende do exercício de
uma escuta, atividade que se inscreve, aliás, em uma determinada “economia
sensível”. “Fundamental, desde a dinâmica da presença e da ausência do
sensível, a experiência estética é vizinha da experiência psicanalítica: uma
silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz dizer (Frayze-
Pereira, 2005, p. 23). Em síntese, é o que se deve presumir, a meu ver, com
relação aos textos que Foster e Didi-Huberman oferecem ao cenário das artes:
uma reflexão que é crítica na justa medida em que não representa uma
normatividade. Nenhum deles se atreve a julgar a legitimidade das obras. E
apesar da preocupação que eles também demonstram com a legibilidade
da imagem, suas intervenções não visam mediar relações, assim como não se
deixam seduzir pela importação instrumental dos conceitos freudianos. E é
11
deste modo que meu procedimento deseja amarrar uma trança que vai das
aberturas da obra às aberturas do sujeito que a vê.
4
Segundo J.-B. Pontalis, Freud nunca deixou de notar que “a distinção
entre psicanálise médica e aplicada, para ser prática, não pode ser mais
incorreta”. Mesmo em suas origens mas talvez sobretudo aí , a psicanálise
nos permitia apreender o quanto artistas e obras de arte suscitam, “à alta
voz” (1993, p. 16), a linguagem fantasmática do inconsciente. Porém, a
impossibilidade de se enxergar desta forma passou a promover uma série de
contradições e resistências. Espero que este meu percurso consiga agenciar
alguns esclarecimentos no interior desta ilimitada discussão.
4
Didi-Huberman propõe uma ideia como essa em L’image ouverte. Motifs de l’incarnation dans
les arts visuels (2007).
12
Capítulo 1
Fora da clínica, fora de lugar?
Desdobramentos e contradições da aplicação
Não é de hoje que psicanálise, arte e reflexão estética são colocadas
frente a frente, sendo que a relação entre os campos compõe um capítulo
significativo na história das ideias freudianas. Sem dúvida, vê-se crescer em
ritmo considerável o espaço de influência tua, ainda que se possa verificar
um maior repertório de trabalhos, com alcance significativo, da primeira sobre
as demais. Ora um ora outro, a psicanálise buscou, por exemplo, na vereda do
artístico e na sua fortuna crítica, um bom número de instrumentos para
compreender o psíquico; no cenário internacional, teóricos, historiadores e
críticos de arte, por sua vez, nunca deixaram de levar conceitos psicanalíticos
para o interior da cultura artística, sobretudo no momento contemporâneo da
arte, embora esta apropriação seja atravessada por uma série de resistências
discursivas que por si só já justificaria um inquérito mais minucioso dos textos.
Quanto a Freud, digamos que os ensaios dedicados à pintura de da
Vinci e à escultura de Michelangelo são as intervenções, nesse estilo, as mais
sistemáticas, conquanto se saiba também que, da investigação psicológica
sobre Leonardo ao ensaio sobre a escultura de Moisés, isto é, de 1910 a 1914,
houve uma reviravolta teórica surpreendente. Posto que se destaca, nos
demais estudos, a utilização literária em decorrência de uma “provação”
analítica, como em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”, de 1907, ou
mesmo em “Dostoievsky e o parricídio”, publicado onze anos depois, pode-se
observar não obstante que o acento do “Moisés de Michelangelo” finalizado,
aliás, no período entre aqueles dois últimos trabalhos –, revela a olhos nus uma
atitude singular do criador da psicanálise.
Neste ensaio é que se levarão em conta e isso se torna, com efeito,
peça fundamental da engrenagem a figura do espectador e a afluência de
sua percepção estética. Em outras palavras, o texto revela um Freud que se
deixa cativar pelas emoções acarretadas na contemplação da imagem.
Criando, de modo indireto, um novo objeto de pesquisa para o psicanalista,
13
Freud elege como assunto principal a reação sentimental do espectador,
melhor dizendo, aquilo que ele mesmo viria a sentir diante da escultura: de
acordo com a sua leitura, a intenção do trabalho de arte é sempre transmitida
pela solução que o artista consegue dar ao conjunto dos afetos,
representações, deslocamentos, enfim, transformando-os em objeto de arte.
Assim, a obra atinge sua meta porque se mostrou capaz de trazer à superfície
a ponta de um iceberg cujo restante enigmático qualquer trabalho artístico teria
o mérito de denunciar (Frayze-Pereira, 1995).
Comentando um texto de Freud sobre Meyer e que a princípio estava
endereçado a Fliess, Renato Mezan resume em poucas linhas a noção já
relativamente bem conhecida de “psicanálise aplicada”. Na opinião do
psicanalista, as “balizas essenciais da ‘interpretação psicanalítica da obra de
arte’ estão quase todas presentes aqui”, a saber, na análise de da Vinci: “a
concepção da obra como fruto de uma transação de forças, que deixa seu
rastro na forma pela qual aquela se apresenta; o fundamento fantasmático da
ficção, que põe um ponto final nas teorias românticas da ‘inspiração’; o
consequente interesse pela biografia do autor, sobretudo em seus anos de
infância; o fio condutor fornecido por um detalhe aparentemente sem
importância”, e daí por diante (1986, p. 214). A suspensão do sentido,
justificada pelo uso de aspas em psicanálise aplicada, trai a facilidade de se
dizer que as pendências em torno do assunto são matéria acabada. À primeira
vista, não é o que parece, e é acerca disso, mais precisamente, que este
primeiro capítulo pretende levantar alguns questionamentos.
Ora, seria justo afirmar, como propõe André Green, que a psicanálise
aplicada seria a “doença infantil da psicanálise”? (1994, p. 14). O problema é
complexo e exige maior exame. Sophie de Mijolla-Mellor defende a pertinência
da aplicação no sentido de que se refere a “modalidades diferentes de
expressões de um questionamento sobre o sentido do humano” (2005, p.
1447). Pelo sim e pelo não, pelo momento se pode dizer que a expressão
“aplicada” condensa ou sintetiza uma vontade de estender os referenciais
psicanalíticos para fora do campo estritamente clínico. Em termos gerais, da
aplicação fazem parte fenômenos sociais e culturais. A confiar em Freud, por
outro lado, as coisas se complicam ainda mais. “Sempre fui da opinião de que
14
as aplicações extramédicas da psicanálise são tão significativas quantos as
médicas”, escreveu ao dissidente Hendrik de Man, “e na verdade que aquelas
talvez possam ter uma influência maior sobre a orientação mental da
humanidade” (Gay, 1989, p. 209n). De maneira indireta, nesse contexto, uma
das consequências mais importantes da aplicação foi a desmedicalização da
psicanálise, conforme desejava Freud em pessoa.
Em síntese, a aplicação teria a capacidade de “ler, nas maiúsculas da
cultura, coisas que podem ser validadas também nas minúsculas da vida
psíquica individual” (Mezan, 2002, p. 319). Levando em consideração algumas
ressalvas, Mezan se declara entre aqueles que resguardam o alcance da
aplicação. Do seu ponto de vista, qualquer relação que se estabeleça entre
psicanálise e cultura sempre vem a se deparar com o problema. “Trata-se de
uma questão epistemológica que também pode ser elucidada com
instrumentos psicanalíticos”, embora não deva “ser reduzida a essa dimensão”
(2002, p. 326).
De maneira ainda mais aguçada, essa defesa se aproxima da precisão
empregada por Janine Chasseguet-Smirgel em seu texto introdutório a Ética e
estética da perversão. A posição de Chasseguet-Smirgel, talvez estimulada
pelas repetidas acusações de psicanalismo, e mais válida pelo tom corajoso
que polêmico, chega a ganhar ares de fundamento.
Sabemos bem que, hoje em dia, ao menos na França, todo
analista que se arrisca fora dos caminhos da terapêutica é suspeito de
“psicanalismo”, entendido como uma prática imperialista e totalitária, o
exercício abusivo de um poder cuja “legitimidade” pararia nas fronteiras
do consultório analítico. Essa atitude é paradoxal (...) são os mesmos
que, por sua vez, recusam as interpretações psicanalíticas feitas fora
de uma situação analítica, e que acham fundadas as empresas de
Reich, onde ele estuda a Psicologia de massas do fascismo (1933), a
de G. Deleuze e F. Guattari, que escreveram o Anti-Édipo (1972),
subtitulado “Capitalismo e esquizofrenia”, ou a de Marcuse (1955), em
Eros e civilização, que se exprime, de resto claramente, em favor de
uma interpretação psicanalítica da cultura (1991, p. 11).
15
Atacar com esta prerrogativa de invasão de fronteiras seria, se
confiarmos no argumento de Chasseguet-Smirgel, nada mais do que pura
disputa ideológica. Nesse sentido (e enquanto modalidade de desvio), a
aplicação não promove o avanço de nenhum dos campos, arte ou psicanálise.
Sendo apenas um “instrumento ideológico”, escreve, a esse respeito, Frayze-
Pereira, “o método psicanalítico implica a repetição das teorias consagradas e
a reificação dos conceitos: explica o novo pelo conhecido” (2004, p. 38). Em
outra oportunidade, Chasseguet-Smirgel afirmava que a própria noção de “cura
analítica” representaria “uma das aplicações possíveis da análise”. Nesse
sentido, o fim da análise seria entendido como o horizonte máximo da
aplicação. “E é de maneira bastante enviesada que utilizamos a expressão
‘psicanálise aplicada’”, ela acrescenta, como se se tratasse exclusivamente de
um uso “extraterapêutico do freudismo” (1971, p. 8). Ainda assim, a querela de
palavras lugar aos questionamentos metodológicos na medida em que a
ideia da aplicação toca no núcleo dos fundamentos da psicanálise, bem como
gera consequências particulares no ambiente da teoria, da crítica e da história
da arte.
Dada a constatação do caráter extraclínico dessa psicanálise, o que
ainda resta pensar da relação entre o fora e o dentro da clínica? Seria possível
ressignificar o problema da aplicação? Questões desta ordem justificam a
composição de um panorama que procura traçar confluências e divergências a
respeito da díade reflexão estética-psicanálise, sublinhando, em especial,
aquelas que resultam na discussão sobre uma psicanálise “extramuros” para
citar uma concepção cara à Laplanche –, a partir de determinações mais ou
menos extensas. É sabido que grande parte dos conceitos principais da
psicanálise não foi extraída exclusivamente da relação entre analista e
analisando. No tocante ao epistemológico, avançar na problemática da
aplicação pode fazer ampliar a reflexão crítica assim como o desenvolvimento
da metapsicologia, topos freudiano por excelência.
Citando um trabalho no qual Aaron Esman apresenta considerações
acerca do que poderia ou não se intitular “aplicado”, Sergio Telles comenta que
16
em Freud, a íntima imbricação entre análise "clínica" e "aplicada" como
fornecedoras de material para a formação do corpo teórico psicanalítico
acontece muito antes dos trabalhos formalmente ditos de análise
"aplicada", como "Gradiva" e "Escritores Criativos e seus devaneios".
em suas cartas a Fliess, o que faz Freud ao relatar sua identificação
com "Édipo Rei", fato que estende a Hamlet? Trabalhos fundamentais
para a teoria, como "O Chiste e sua relação com o inconsciente",
"Psicopatologia da Vida Cotidiana" e até mesmo "Três Ensaios sobre a
Sexualidade", o derivam da experiência clínica direta. A própria
"Interpretação dos Sonhos", também não veio de uma situação
"clínica", tal como é convencionalmente concebida (2003, s/p.).
O argumento que pretendo construir, neste panorama que inclui o
primeiro e o segundo capítulos, está amparado em duas hipóteses de base: de
um lado, temos as leituras abertas, em que o espectador vem a ser “analisado
pela obra”, como sugere André Green, o que leva a trabalhar em função de
uma psicanálise “implicada”, segundo a concepção de João Frayze-Pereira.
Ambas são modalidades de recepção estética que se revelam contíguas ao
jogo de interpretação empregado por Freud diante do Moisés. Entretanto, para
garantir um melhor arranjo na redação, deixo o conteúdo destas leituras para
ser retratado no capítulo seguinte.
Por outro lado eis a segunda hipótese –, constata-se a presença de
um considerável número de leituras influenciadas pela psicopatologia e pela
psicobiografia, amplamente tributárias do método de interpretação utilizado por
Freud em seu “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância”, aquela à
qual se pode chamar, a essa altura e com todas as letras, de psicanálise
aplicada, como indicam Frayze-Pereira (2005) e Sophie de Mijolla-Mellor
(2005).
O aspecto problemático desse texto sobre de Vinci, cujas teses foram
rebatidas com veemência por historiadores e teóricos da arte (Schapiro, 1955),
não impediu, todavia, os psicanalistas de contra-atacar. Nesta grande
conjuntura, a defesa do ensaio ficaria nas mãos de autores proeminentes: após
o trabalho de Paul Ricœur (1965), seguido da conclusão da tese de Jean Pierre
Maïdani-Gérard, realizada na Sorbonne em 1985, e que parece ser um dos
17
estudos mais rigorosos sobre o assunto, ainda surgiriam investiduras bastante
competentes, como é o caso de Serge Viderman (1990), Jean Laplanche
(1989) e de André Green (1994, 1998), psicanalistas que inclusive se tornariam
reconhecidos pelo público das artes.
Mas a despeito desta diligente “resistência”, cuja representação se
delega a esses autores resistência diante dos ataques à letra freudiana, por
um lado, mas também resistência em admitir a lista de problemas que a análise
patográfica de Freud gerou, de outro –, não se pode dizer que eles apenas
endossem, no escuro, os procedimentos da aplicação; muito pelo contrário, a
preocupação mais comum é a de resgatar, no encadeamento das ideias de
Freud, a relevância de suas teses para a construção de um dispositivo
rigorosamente analítico, sobretudo no tocante à importância que as fantasias
originais acabariam ganhando na teoria de criação, pesquisa que os autores
fazem com muita competência, aliás. De maneira mais destacada, Viderman e
Green levantam discussões críticas o suficiente para pensar o processo sem
no entanto recorrerem ao fechamento metodológico.
Na minha opinião, o conjunto dos poréns referidos ao Leonardo se apoia
em dois pontos de extrema controvérsia. Em primeiro plano, no tom de
segundas intenções que Freud empregara ao ensaio: se observamos
minuciosamente, seu estudo sobre o pintor renascentista serviria mais como
forma de ilustrar a força interpretativa da teoria psicanalítica. Passados dez
anos de sua fundação, é normal que a psicanálise se visse diante da
necessidade de ampliar alcance; contudo, aqui isso se por meio da análise
de uma vida infantil apenas suposta. Como a grade interpretativa está fechada
de antemão, a reconstrução da vida do pintor faz despontar vários temas
pertinentes à “ciência” psicanalítica. Nessa medida, a interpretação de Freud é
“obtida por uma convergência de indícios provenientes das mais diversas
fontes: a psicanálise dos homossexuais, a teoria sexual das crianças, paralelos
mitológicos” (Frayze-Pereira, 1995, p. 96). Ademais, deve-se verificar que,
sobretudo na primeira parte do texto, Freud se escora na historiografia do
século XIX, ou seja, em investigações historicamente datadas em sua
18
própria época. Segundo João Frayze-Pereira, antes de tudo é preciso assinalar
que, ali, “o Leonardo de Freud não é um personagem do Renascimento
italiano”, mas alguém tratado como pertencente ao Ottocento.
O anacronismo de Freud possui determinações que não são muito
difíceis de localizar. Referindo-se a uma conferência em que Leon Kossovitch
discute a questão Freud-Leonardo, Frayze-Pereira comenta que
A questão se verifica tanto nos equívocos da tradução quanto
no desconhecimento de noções básicas do pensamento preceptivo,
regulador das ciências e das artes, que vinculava, sobretudo a partir
dos estudos da perspectiva no século XIV, investigação matemático-
física e estudos retórico-poéticos aos quais Leonardo não era alheio.
(2005, p. 60)
Por essa razão, isto é, orientado por pesquisadores que “perdem a
história como gênero discursivo”, Freud encerra o equívoco de “procurar traço
psicológico em escrito preceptivo, no qual se faz [o] elogio da arte”. Contudo,
“esse elogio da pintura, por ser de ordem retórica”, conclui Frayze-Pereira,
“mostra uma virtude e não uma personalidade. Quer dizer, não é possível
encontrar traço psicológico onde não Psicologia” (2005, p. 60). O maior
obstáculo do texto é tratar o artista do século XIV como homem do culo XV,
erro “concebido nos termos de uma Psicologia expressiva que sequer existia
nos tempos em que viveu o pintor” (p. 61). Nesse caso, a psicanálise se
delineia sumariamente “como um método que é aplicado à obra tomada como
objeto”, objeto que por sua vez “acaba convertido em simples ilustração da
própria teoria psicanalítica” (p. 55).
Por outro lado, a tonalidade de certeza é quase sempre evitada por
Freud, o que lhe garantiria, ao menos à primeira vista, uma relativização do
texto a ser considerada pelos leitores pósteros. Com efeito, Freud aqui se
comporta de maneira muito cautelosa, atravessando temas espinhosos como o
estatuto da obra de arte e da atividade artística, por exemplo: “desejaríamos
indicar como a atividade artística reconduz às pulsões anímicas primordiais”,
19
escreve com decepção, “todavia nossos meios falham justamente aqui.
Limitamo-nos a enfatizar o fato, apenas discutível, de que a criação artística
proporciona também uma válvula de escape para sua vontade sexual” (Freud,
1910[1996], p. 123) isto é, a de Leonardo e a de qualquer homem. Se
generalização possível, ela se justifica somente nos limites de alcance da
teoria, e não através de uma psicologia universal para a criação. Freud
descreve o curso do desenvolvimento psíquico de Leonardo seguindo um estilo
argumentativo que cruza séries motivacionais: aos dados (presumidos) da vida
do pintor somam-se as idiossincrasias de seu circuito pulsional, e assim por
diante.
Em segundo plano, podemos destacar a desastrada “descoberta” feita
pela minuciosa observação de Pfister. Sob a imagem do Cristo com a mãe e a
avó mais especificamente falando, nos contornos do manto que cobre de
maneira parcial as três personagens o fiel discípulo havia demonstrado a
existência de uma sombra de abutre. Em 1919, Freud viria a publicar o achado
sob a forma de uma extensa nota de rodapé, cinco anos depois de ter
publicado seu artigo (anônimo) sobre a escultura de Moisés.
A confusão ganharia notoriedade na história da psicanálise. Fato
conhecido, Freud erra ao apostar na tradução de nibbio por abutre e não por
milhano, que seria a acepção correta. E é dessa maneira que o grande inventor
da psicanálise, “filólogo improvisado”, como alega Germain Bazin,
“impressionou-se com a semelhança de Mut com o alemão Mutter, palavra que
designa mãe” (1989, p. 266). Assim, toda a investigação que se concentra na
mitologia, empregada no segundo movimento do ensaio, depende dessa
pequena embora fundamental constatação
(Pontalis, 1991, pp. 172-189).
Em certa medida, não é justo reconhecer que o próprio Freud teria
autorizado uma associação desta ordem, ainda que a constatação de seu
discípulo não possua “coerênciano contexto do rigor analítico? O perigo mora
exatamente aí: ao explorar os elementos escondidos em filigrana no quadro, a
proposta de Pfister acabaria configurando, e isso com a aprovação de Freud,
uma modalidade de psicanálise que pretende revelar, na imagem, o que se
encontra em estado camuflado. É certo, por um lado, que a escuta psicanalítica
20
supõe a descoberta de elementos inconscientes que sobrevivem por debaixo
da consciência; mas isso o significa, por outro, que nada deva ser ali
construído, que pouco restaria a criar no entre-dois.
À margem, Bazin levanta uma atraente polêmica: teria sido o próprio
Leonardo quem escolheu o motivo da Sant’Ana do Louvre? Não se sabe ao
certo; não obstante resta “a ideia, surpreendente para um exegeta da época de
Freud, de ele ter feito a Virgem sentar-se no colo da mãe”. Tratar-se-ia, mais
uma vez, de uma invenção do artista ou “de algum clérigo que encomendou o
quadro, por razões apologéticas ceis de conceber?” Vários estudiosos
atestam que o motivo, a propósito bastante repetido pelos artistas, fora
importado pelos italianos da Alemanha e da França. E é muito provável que
teria sido visto por Leonardo em algum quadro toscano, o que isentaria o artista
da noção “subjetivante” com a qual Freud se aferra, ao aliar à noção de gênio
um tema que não era de sua total exclusividade. Em resumo, segundo Bazin,
Essa má análise feita por Freud e a importância que os
especialistas mal informados continuam a dar-lhe prejudicaram muito a
credibilidade da psicanálise aplicada à arte. Todavia, essas incertezas
não desmentem o valor que esse modo de investigação dos
significados da obra de arte poderia ter em circunstâncias menos
problemáticas (1989, p. 267).
O método aplicado deu origem a ramificações de peso. É necessário
admitir, a título de exemplo, o quanto uma psicanálise de influência kleiniana
contribuiu à reprodução desses discursos (Klein, 1969). E apesar de não ser,
evidentemente, kleiniana, a princesa Marie Bonaparte publicou, em 1933, um
minucioso trabalho de investigação acerca da poesia e da vida de Edgar Allan
Poe, cujo título Étude psychanalytique denunciava a larga vontade de
biografar que residia no meio psicanalítico da primeira geração, e isso não por
acaso. A edição ganharia um prefácio escrito com pena do pai da psicanálise.
Outro exemplo, porventura ainda mais popular: em 1912, dois anos após
a publicação do “Leonardo...”, Otto Rank e Hanns Sachs, discípulos iminentes
21
da mesma geração, fundam a revista Imago, dedicada à aplicação. O título do
periódico denunciava uma vontade expressa de Freud: remetendo-se à
literatura de Carl Spitteler, cujo trabalho “celebrara o poder do inconsciente
numa nebulosa história de amor” (Gay, 1989, p. 291), Imago serviria
inteiramente às análises culturais, ainda que de maneira muito temerária,
conforme o próprio Freud chega a reconhecer. Para estes psicanalistas, não se
tratava apenas de “demonstrar a extensão do método psicanalítico fora do
tratamento (...), mas de desenvolver as próprias hipóteses desse método num
campo de pesquisa que não era a cura” (Mijolla-Mellor, 2005, p. 1448).
Contudo, a inquietação de Freud diante dos produtos da cultura “não era
simplesmente uma revigorante atividade de férias para ocupar as horas livres”
(Gay, 1989, p. 292), mas assunto que poderia desenvolver ainda mais a ciência
que inventava. Ora, se coube à análise de da Vinci iniciar o método aplicado,
então o lançamento de Imago poderia funcionar como bastião de defesa e, por
conseguinte, tornar-se o canal privilegiado para sua institucionalização.
*
Delineada esta conjuntura, julgo ser desnecessário remontar o conjunto
de textos estéticos de Freud, sobretudo porque outros autores o fizeram de
maneira quase exaustiva (Frayze-Pereira, 1995; Roudinesco, 1995; Kofman,
1996; Coblence, 2005). E ainda noutra perspectiva, uma investigação acerca
da aplicação poderia se concentrar em questões específicas de circuito,
atacando, por exemplo, as vicissitudes que atravessaram (e continuam a
influenciar) a institucionalização da psicanálise mundo afora. Há, como se
sabe, um sem-número de agremiações formadoras espalhadas no cenário
mundial e, sejam ou não afiliadas à International Psychoanalytical Association –
fundada em 1910 pelos discípulos diretos de Freud no Congresso de
Nuremberg, em sua presença – cada uma oferece objetivos relativamente
particulares quanto à formação psicanalítica.
22
No tocante à sua evolução histórica, a psicanálise sofreu, e continua
sofrendo, para que se perpetue, um considerável repertório de mudanças – não
se analisa, hoje, como Freud analisava, costuma-se dizer; Klein, Lacan,
Winnicott, Bion são apenas alguns dos nomes que se tornariam escolas.
Levando-se em conta o contexto institucional, portanto, a ideia “genérica” de
psicanálise aplicada deve apresentar características bastante específicas para
cada caso em que é utilizada – exame que este trabalho tampouco alcança. No
momento, meu intuito é refazer um caminho indiciário que sirva ao
esclarecimento de determinados sinais que sucedem à problemática geral
para não dizer teórico-conceitual – desta modalidade de psicanálise; conquanto
permaneçam indiscutíveis os limites diante dos quais ela se depara, a
aplicação permanece ainda como um modo particular de interpretação,
justamente porque inserida no conjunto de conhecimentos construídos pela
Psicanálise. Ao articular comentadores envolvidos reconhecidamente com a
questão da recepção de arte e com a estética psicanalítica, almejo traçar um
vai-e-vém que indica até onde a corda da aplicação aguenta antes de
arrebentar.
1.1) Expressão e desejo
O campo de leituras que vão da psicanálise à arte é o foco principal da
investigação que Jean-François Lyotard propõe em Dérive à partir de Marx et
Freud, discussão extensa que pode sustentar a linha de base do que pretendo
costurar nesta prévia incursão sobre o tema. Uma vez conhecido o sem-
número de leituras que procuram aproximar arte e psicanálise e dentre elas
muitos são os casos que se apresentam com a insígnia da psicanálise aplicada
–, sua análise se obrigada a considerar que, antes de mais nada, se se
almeja encontrar um argumento que apreenda a experiência psicanalítica como
intervenção teórico-crítica, deve-se procurar as raízes e entraves desta
vertente de psicanálise no interior do próprio cenário analítico. (Suas hipóteses
são no entanto diferentes das que pouco apresentei). Em “Principais
23
tendências atuais do estudo psicanalítico das expressões artísticas e literárias”,
ensaio que leva em máxima consideração a diversidade de inclinações
estéticas que interferem na leitura psicanalítica da obra, observaremos que o
autor divide sua categorização em epistemes, formas possíveis de
interpretação a serem feitas sob a luz do método freudiano.
Em primeiro lugar – e que para ele talvez seja, dentre todas as demais, a
característica mais importante verifica-se uma dimensão expressiva inerente
ao espírito do freudismo. Opondo expressão à ideia de “significação”, na
medida em que esta supõe a existência de um código comum, como é o caso
de um romance analisado a partir da própria língua em que fora concebido, o
aspecto expressivo da leitura psicanalítica advém de uma exigência para
conter, junto à interpretação, o próprio comentário. Ainda que situadas em
domínios de sentido específicos, uma vez que congregam propriedades
particulares, obras literárias e plásticas possuem, em comum, os dois
predicados. Plástica ou literária, toda obra é carregada de “figura”, segundo ele,
embora a ela não esteja limitada.
Aqui, Lyotard não remete apenas a uma imagem em si mesma, mas à
imagem enquanto pintura (Frayze-Pereira, 2005, p. 56) e, consequentemente,
como proposta de intervenção poética. É que no caso dos trabalhos literários
tanto a interpretação quanto o comentário serão sempre carregados das três
demais características que a categoria de figura reúne: 1) o movimento de
recepção das obras, ou seja, quais são as propriedades da imagem que a
fazem induzir a isto ou àquilo no espírito de um determinado leitor, 2) o lugar
em que operam na ordem dos significantes linguísticos e, por fim, 3) a forma
ou a configuração em que um determinado discurso/imagem é dado a ver pelo
seu público.
Se a leitura psicanalítica revela uma vertente expressiva, então
Poderíamos convir que expressão quando o significante da
obra não é traduzível na linguagem do comentário que a interpreta, que
é a significação estrita. Por exemplo, um quadro de Van Gogh não é a
24
tradução do discurso descritivo que faz em suas cartas a Theo.
(Lyotard, 1975, p. 57)
Ora, entre a coisa e a interpretação encontra-se sempre um “a mais”:
comentar é interpretar, é um poder de instituir significações. De acordo com
Lyotard, tais operações figurais possuem exatamente as mesmas
características que Freud utilizara para situar sua tópica inconsciente:
“ausência de contradição, processo primário (mobilidade das cargas),
atemporalidade e substituição da realidade exterior pela realidade psíquica”
(1975, p. 58). Assim, a importância da expressão se justifica pelo fato de que
seria uma modalidade de “presentificação” de operações inconscientes,
oriundas, nesse caso, do processo secundário (representações realistas e
discursivas), de modo que a leitura analítica não escapa a essa determinação.
Para o autor, é a expressão quem sempre precipita a formação da figura, figura
que por sua vez é advinda de uma outra cena, “distinta do lugar da linguagem,
[do pictórico, do escultórico]” (1975, p. 58). A imagem se “expressa” com
insistência e ao rebordo do embargo consciente, quer dizer, ela apresenta um
sentido paradoxalmente outro, desviando o olhar do conteúdo recalcado.
Trazer, ao presente desta cena, aquela outra que sempre diz o que não quer
dizer, e que se revela ao máximo porque escondida: eis o trabalho do
psicanalista.
Para continuar, no entanto, é necessário apresentar o segundo elemento
referente ao corpus da recepção psicanalítica. De acordo com o esquema de
Lyotard, a noção freudiana de desejo se revela fundamental. Sua estrutura
básica de funcionamento depende da satisfação e, por conseguinte, de um
objeto; na ausência do objeto, contudo, o caráter “figural” da imagem perde
todo o sentido. A primazia da imagem na vida psíquica primado que, aliás,
ajuda a entender uma cultura obsessiva pelo audiovisual como a nossa finca
suas raízes nas alucinações mais primitivas, nos estados de “sobrecarga
energética que não encontra[m] saída na realidade e, por regressão, reaviva[m]
os traços de satisfação passada” (Lyotard, 1975, p. 59). Em outras palavras,
Lyotard considera a possibilidade, seguindo o caminho psicogênico da
25
estruturação psíquica, de se deparar com efeitos alucinatórios primários
1
, carga
psíquica primitiva que em tese configura a ontologia da experiência artística,
testemunha de uma realidade transformada e portanto diferente da percepção
concreta.
A lógica dessas imagens não é puramente cognitiva pois elas não são
“compartilháveis”, apesar de habitarem todo psiquismo em formação. O desejo,
aqui entendido como imagem, ou, como produção de imagem, não pode ser
reduzido à alucinação. Toda imagem-desejo tem a propriedade de congregar
diversas expressões da fantasmática original. A fantasia também escapa, por
sua vez, à lógica perceptiva da linguagem, representando-se como figura; com
isso, o aparelho mental permitiria que certos resquícios de experiências
primordiais sejam reorganizados em torno de uma configuração imagética
2
que
se manifesta conforme a insígnia das imagos parentais.
“É no espaço do desejo aberto pelo significante” que a obra toma lugar,
acrescenta Lyotard; em termos econômicos, Freud teria definido o prazer
estético como uma espécie de recompensa secundária de sedução, uma
maneira que o sujeito encontraria para conseguir gozar de seus fantasmas em
liberdade, eliminando parte do peso da reprovação superegoico. Em vista da
maior ou menos plasticidades dos objetos-fenômeno, o artista consegue dar
forma à sua fantasmática singular. Na opinião de Françoise Coblence, por
outro lado, existiria no espectador “uma passividade, um esquecimento
(afortunado) de si mesmo no gozo da forma”, onde se perpetuariam tendências
recalcadas (2005, p. 18). Em “Escritores Criativos e Devaneio”, ao que se pode
notar logo de início, Freud analisava a experiência estética a partir da
recompensa libidinal, em virtude do conteúdo de uma obra que pudesse abrir
possibilidades concretas de realização de desejo, sendo a ela somada uma
diminuição de censura: “há na obra de arte a possibilidade da suspensão das
1
A percepção de Lyotard é, com efeito, bastante aguçada a esse respeito; a questão acerca
das alucinações primárias ganha um papel fundamental nesta investigação, como veremos na
conclusão do trabalho.
2
Seguindo o raciocínio de Lyotard, quando Freud propõe seu Leonardoque consumira muito
de humor e de tempo livre, como se pode confirmar pelas cartas que trocou com Ferenczi no
momento da escritura do texto –, fizera exatamente isso. Em outros moldes, a ordem
fantasmática pode ser entendida como “figura” inconsciente que faz a mediação entre objeto
interno e externo (isto é, no sentido kleiniano do termo), como aventa o próprio Lyotard.
26
barreiras da repressão”, escreve Frayze-Pereira (2005, p. 57). A forma pior ou
melhor acabada do trabalho artístico isto é, o corpo da obra presentificado e
datado como objeto independente de seu percepiens –, oferece para o
espectador um lugar contemplativo que seria paralelo ao do jogo, fenômeno
intermediário que a clínica de Donald Winnicott viria batizar, anos depois, como
objeto transicional.
Terceiro movimento: na compreensão de Lyotard, não se deve entender
que a arte seria, para Freud, no fim das contas, uma simples forma de
reconciliação entre os princípios régios do psiquismo. Não se trata de uma
síntese egoica entre prazer e realidade, o que uma leitura apressada de
“Escritores criativos e devaneio” daria a entender. O filósofo indica no entanto
que
a função da arte não é oferecer um simulacro real de realização de
desejo, senão de mostrar pelo jogo de suas figuras as desconstruções
às quais faz falta entregar-se na ordem da percepção e da linguagem
(quer dizer, na ordem pré-consciente), para que uma figura da ordem
inconsciente não digo: se faça reconhecer, posto que as
desconstruções que habitam as figuras são justamente obstáculo para
uma percepção e inteligência claras (Lyotard, 1975, p. 62).
Com relação ao aspecto formal, sabe-se que opera a mecânica da
“figurabilidade”
que pertence ao processamento onírico. Responsável por
apresentar a imagem como formação sintomática de disfarce (deslocamento e
condensação), a figura serve à expressão do inconsciente de maneira a
cumprir a lei da “boa forma” – o que não significa que as obras não possam ser
poeticamente feias, estranhas ou informes. Mas é a lei formal que assegura a
verdade estética do trabalho. “A força de verdade não trata de que o terror
diante do que não possui um rosto seja ‘superado’, ‘desbordado’, ‘apaziguado’,
‘conhecido’”, acrescenta Lyotard, “mas que o campo seja deixado livre para
que o inapreensível possa traçar ali seu movimento” (1975, p. 68, grifos meus).
27
E se a arte é imaginária porque põe em jogo a dinâmica de satisfações
do desejo, então ela coparticipa das formas de representabilidade psíquica,
que tanto o quadro como o sonho, o sintoma, o ato-falho ou a piada são meios
pelos quais o psiquismo substitui uma realidade ausente, implicando um
sistema mnésico de operações psicológicas. As formações de compromisso
funcionariam, nesse sentido, como uma classe de representantes plásticos (a
meu ver, como representante-representação, Vorstellungrepräsentanz, para
pôr o dedo na metapsicologia). Em termos de objeto plástico, consciente
portanto, digamos que a dinâmica dos processos psíquicos englobaria as duas
facetas da Vorstellung, isto é, a representação de coisa e a representação de
palavra. Isso explica, por exemplo, porque a tragédia teria se firmado como
polo privilegiado da leitura psicanalítica. Como prova, vejam-se todas as
conjecturas a partir do Édipo de Sófocles, de Hamlet ou Rei Lear, mas
sobretudo o caráter teatral (Representänz) da histeria no interior do cenário
psicanalítico. O modo como estas cenas se constituem é essencial ao
pensamento freudiano, e não foi um acaso Freud ter estagiado com Charcot.
Diante destas articulações, seria possível dizer que Freud construíra um
tipo de interpretação exclusivamente tributário da expressividade, portanto
representante de um academicismo cujo objetivo é afiançar o conceito
tradicional de representação? (Frayze-Pereira, 2005, p. 57). Não parece ser o
caso. Veremos conclusões mais aprofundadas sobre a questão, mas, por ora,
deve-se observar que esta forma trabalhar ilumina apenas parte do problema,
que é o da recepção que lida com a arte “retiniana”, desprovida de matéria
“tátil”. Esta modalidade de recepção demanda uma psicanálise que se ancora
no método Leonardo de análise.
Defendo a hipótese de que esta forma de análise teria ganhado sua
máxima relevância a partir do pensamento de Ernst Kris, outro personagem
importantíssimo na história das ideias psicanalíticas. Psicanalista e historiador
da arte contemporâneo de Freud, Kris engendrou sua Psicologia do Ego
partindo de um questionamento a respeito da atividade criativa. Com todo o
seu direito, almejou interpretar a experiência com a arte a partir dos
mecanismos de defesa do eu, ancorando-se, em especial, na nova divisão
tópica proposta por Freud em “O Eu e o Isso”, de 1923.
28
1.2) Ego Psychology: o legado da psicanálise da arte
A reescrita das relações entre arte e psicanálise não pode ignorar o
Psychoanalytic explorations on art, texto de importância histórica que vinha a
se tornar objeto de conhecimento da crítica de arte. Publicado em 1952 e cuja
autoria coube a um dos principais discípulos da segunda geração de
psicanalistas, Psychoanalytic consiste num esforço de construção intelectual
que origem a uma verdadeira psicologia da arte. No entanto, para Kris, a
despeito da urgência teórica que as investigações sobre o estético demandam,
a contribuição da psicanálise pode ser medida se levar em conta as
diferentes técnicas de sua clínica. No entendimento geral de Kris, o que mais
interessa à investigação psicanalítica da arte seriam as determinantes que
configuram o eu-artístico, isto é, quais as condições psíquicas que permitem ao
eu o exercício do processo criativo.
Cabe recordar que, antes de praticar a atividade psicanalítica, Kris
exercia a função de historiador da arte e era um dos mais mencionados
especialistas na Glíptica do Renascimento. Frequentador dos cursos de Dvoràk
e Schlosser em Viena, chegou a se tornar encarregado do departamento de
escultura no Museu de História da Arte da capital austríaca. Anos depois
esposaria a filha de um amigo de Freud, e, aproximando-se dele, empreenderia
uma análise em 1924. Perseguido pelo III Reich, Kris encontra morada em
Londres, num momento em que seus trabalhos eram relativamente bem
conhecidos; terminada a guerra, migra em definitivo para os Estados Unidos,
onde começa a lecionar em diversas instituições.
Aproveitando a ocasião do ensaio para introduzir os pressupostos
essenciais da psicologia do ego derivação conceitual que assumirá como
leimotif em seu trabalho de interpretação – e, na esteira de Freud, em “A
contribuição da psicanálise e suas limitações”, Kris considera que a repetição
de certos temas, observada inegavelmente no decorrer da história, deve
possuir uma explicação psicológica (qual a frequência, como isso se e quais
as variações surgidas? estas são as perguntas a serem feitas). Para ele, o
estudo aprofundado da história da arte nunca pode ser realizado fora do
conjunto mais amplo da comunicação humana, na medida em que a edificação
29
dos discursos acaba sempre atravessada pelos elementos que o constituem:
mensagem – transmissão – recepção.
Citando Scharpe e refletindo a respeito da singularidade das escolhas da
humanidade, Kris acredita que o
material psicanalítico permite-nos avaliar a atuação simultânea de
fatores que levam um indivíduo a pintar, outro a dançar, escrever ou
compor músicas. Às vezes, até mesmo generalizações mais amplas
são possíveis; acreditamo-nos aptos a dizer por que determinada
pessoa prefere a ação, outra a contemplação ou a especulação, por
que este com predisposições aparentemente semelhantes devota
sua vida à ciência enquanto outro à arte (1968, p. 15).
Desse modo, os estudos de psicanálise aplicados à arte devem
contemplar o exame de dois elementos centrais: a infância e/ou a adolescência
do artista e as condições do meio sob as quais surge uma determinada criação
(ou poética).
3
O método consiste em estudar a “evolução do ego não apenas
em relação a seus conflitos típicos, como também na medida em que suas
capacidades e funções superam os conflitos e adquirem autonomia” (Kris,
1968, p. 18). Com a vantagem da não divisão entre forma e conteúdo, que
existem ações esteticamente organizadas entre um e outro, segundo ele,
seriam três as psicanálises possíveis no contexto da aplicação dos conceitos
freudianos: a psicanálise do estilo, a da expressão e a da imaginação criadora.
Para tanto, exige-se em termos complementares que se crie uma
metapsicologia específica do processo criador. De acordo com o psicanalista,
assim como o sonho revela o funcionamento de um determinado
processamento mental, é também possível admitir a existência de um
mecanismo paralelo de processamento de arte.
3
Luigi Pareyson (1997) indica distinções claras entre poética de estética. É comum tomarmos
uma pela outra, ele considera, mas a diferença essencial é que a primeira deve ser
compreendida como programa de arte, enquanto à segunda cabe a tarefa de produzir
categorias gerais sobre o universo do artístico.
30
Com respeito às operações psíquicas, a relação entre id e ego se
concatenaria não somente por meio da satisfação das pulsões na direção do
primeiro (id) para o segundo (ego) – aliás, trata-se de relações de compromisso
indispensáveis ao funcionamento do aparelho psíquico. O caráter mais
polêmico desta teoria alude ao fato de que o ego teria o poder de controlar, na
sua maior parte, a ação dos processos primários. Desse modo, o que desponta
no sonho como sobredeterminado, surgiria na arte como expressão máxima da
“multiplicidade de significados” oriunda da experiência estética. O eu teria,
portanto, autonomia para controlar o movimento que vai da inspiração à
elaboração, atuando como mediador de equilíbrio entre processo primário e
processo secundário.
Para Kris, a necessidade do emprego extra-analítico seria algo
inseparável à construção mesma da psicanálise, tal como ela teria nascido a
partir de diversas influências e descobertas advindas de outros campos de
pesquisa,
4
o que não é muito diferente do que o próprio Freud pensava, como
vimos. “Não se trata de transformar a crítica [literária] numa análise
psicológica”, escreveu em um artigo de 1948 para o número XVII da
Psychoanalytic Quarterly, “mas sim aplicar a nova metodologia [a psicanálise,
no caso] a serviço da crítica” (1968, p. 208, grifos meus).
Sob a égide do narcisismo, que leva o autor a entender o ego “não como
uma série de funções isoladas mas como uma organização psíquica”
propriamente dita, sua psicologia irá se aprofundar, a partir de um método de
investigação estrutural, nas funções que os mecanismos de defesa do eu
exercem no movimento da prática analítica. Investindo mais na técnica que na
teoria, essa psicologia se concentra na exploração ordenada dos mecanismos
defensivos, visando estimular uma maior acuidade de adaptação do indivíduo
ao meio que o circunda, de modo a fazer com que esse indivíduo se torne cada
vez mais consciente de seu próprio funcionamento mental.
Nesse sentido, não “somente a Psicologia do Ego ampliou extensamente
o escopo da terapia psicanalítica”, escreve Kris (1960, p. 17), como também
4
Charles Hanly concebe exatamente esta mesma ideia com relação ao pensamento
extraclínico, muito provavelmente na esteira de Ernst Kris, a meu ver.
31
teria provocado impactos na técnica freudiana direcionada às neuroses corpo
privilegiado de sua atuação. Trata-se, no que concerne à terapêutica, de
ampliar ao máximo possível o potencial de controle egoico: conquistado a
duras penas ao longo do processo de desenvolvimento psíquico,
5
o eu se
tornaria a engrenagem fundamental da organização mental, vis-à-vis aos
conflitos oriundos da experiência estética.
Grosso modo, o principal objetivo das pesquisas de Heinz Hartmann
parceiro de Kris, influenciado neste caso pelas teorias de Anna Freud era
encontrar possibilidades mais bem sucedidas de desenvolvimento da instância
egoica. De acordo com Hartmann, todo e qualquer meio (social ou natural)
exige que o indivíduo se depare com um aglomerado de acomodações
adaptativas; nessa medida, é tarefa da psicologia estudar a estimulação de
maiores cargas de fortalecimento do ego, em virtude do melhor desempenho
de suas unidades funcionais. Em terapia, porções inatas acabariam se
desenvolvendo progressivamente, tornando-se mais disponíveis tanto às
pulsões (o psíquico) quanto à anatomia (o orgânico). Há, aqui, a urgência de
bons ajustamentos na relação do indivíduo com seu ambiente, e assim o
equilíbrio estrutural das instâncias acaba promovendo funções sintéticas de um
ego estruturado (Blanck, 1983, p. 39).
Olhando mais de perto, é como se Kris e colaboradores tomassem o
Wo Es war, soll Ich werden” das “Novas Conferências em Psicanálise” como
axioma da irreversibilidade de trocas entre o eu e o isso. Esta “fidelidade quase
canina” da escola (Mezan, 2002, p. 189) não autoriza certificar, no entanto, que
em Freud o eu seja o senhor de todo o processo de criação artística, tendo
então a primazia,
6
nesse ínterim, sobre o id. Se a interpretação se dirige ao eu
e não ao isso, como afirma o autor de Lenda, mito e magia na imagem do
artista, a investigação psicanalítica das artes poderia encontrar vazão por
meio dos processos de identificação e, dessa maneira, a partir de uma relação
5
Encontramos um exemplo deste processo num comentário de Kris ao texto sobre “a piada”,
de Freud. A risada estaria para a regressão assim como o sorriso para o triunfo do ego,
segundo ele (1968, pp. 170-181).
6
Um comentário simples de Radmila Zygouris pode servir perfeitamente: “o Eu freudiano é
intrapsíquico”, afirma a autora, é um puro conceito. Não é um elemento retirado da
observação”. Mas ele “só se sustenta em relação aos dois conceitos que são o isso e o
supereu, movendo um campo de forças que se exerce sobre ele”.
32
direta com a teoria da sublimação, neste caso entendida como mecanismo de
defesa. Por essa razão, a atividade sublimatória, ao lutar contra a
impossibilidade “de operar uma dessexualização completa”, acabaria se
transformando “numa simples formação reativa(Gagnebin, 1994, p. 19). Mas
não é isso o que acontece, a rigor, dentro da teoria freudiana: a sublimação,
ainda que de fato venha servir à melhor adaptação do eu, funcionaria antes
como destino para satisfazer as pulsões (Trieb) sexuais.
7
Mas, para complicar um pouco mais as coisas, deve-se reconhecer que
esta associação direta entre sublimação e formação reativa teria bases no
próprio pensamento de Freud embora não se possa dizer que ele a autorize
de maneira cabal. Nessa conjuntura, a formação reativa seria entendida
fundamentalmente como “transformação no contrário”, segundo o Freud de “O
motivo dos três cofres” (1996[1913], p. 314), por exemplo. Em 1915 ele
chegaria mesmo a homologar os destinos pulsionais como estratégias de
defesa egoica. Com efeito há, em Freud, uma enorme ambiguidade com
relação à demarcação do processo sublimatório.
As contradições são notórias desde o texto sobre da Vinci, como se viu,
e perduram ao longo de toda a obra, incluídos os artigos sobre a
metapsicologia (Freud, 1910[1996, p. 74-5; Laplanche, 1989, p. 22-3). Entre o
evitamento e o destino, e se “sob certo aspecto ela é uma defesa contra as
pulsões sexuais, sob outro, concomitantemente, [a sublimação] é uma
possibilidade de satisfazê-las” (França Neto, 2007, p. 33). Para sublimar, é
necessário que certas mudanças da matéria psíquica que na verdade
ocorrem ao longo de toda a sua dinâmica – escapem ao recalque. No entanto o
eu pode apenas mediar a situação: como, afinal, se poderia escapar à
repressão, se o eu é justamente uma das consequências lógicas do processo
de recalcamento? No que pertence ao arsenal defensivo do eu, na verdade a
sublimação “não garante nada, não protege de nada”, como declara André
Green; ela apenas permite formas de obtenção de prazer de um modo, por
7
um exercício militante de crítica feita por Lacan à ego-psychology. Seu desacordo pode
ser lido explicitamente no famoso ensaio sobre “O Estádio do Espelho como formador da
função do Eu” (Lacan, 1999, pp. 92-99; Roudinesco, 1994, p. 121-2)
33
assim dizer, “mais civilizado”, o sendo capaz de suprimir outras modalidades
“mais brutas” (1993, p. 322) de satisfação.
Em “O eu e o isso”, Freud escreve primeiro que
Se esta energia de deslocamento é libido dessexualizada, é
licito chamá-la também de sublimada, pois seguiria perseverando
segundo o propósito principal de Eros, o de unir e ligar, na medida em
que serve à produção daquela unidade na qual ou por oposição à
qual o eu se distingue. Se incluímos os processos de pensamento,
em sentido lato, entre esses deslocamentos, então o trabalho do
pensar – este também – é satisfeito por uma sublimação de força
pulsional erótica.
Não obstante, logo na linha seguinte, lê-se:
Vemo-nos aqui de novo diante da possibilidade mencionada
de que a sublimação se produza regularmente pela mediação do eu.
Recordamos o outro caso, em que esse eu faz tramitar as primeiras (e
por certo também as posteriores) investiduras de objeto do isso,
acolhendo sua libido no eu e a ligando à alteração do eu produzida por
identificação (Freud, 1996[1923], p. 46, grifos meus).
Extraordinária ambivalência. Nesse momento, em função da teoria sobre
o narcisismo, na qual ocorre o reinvestimento do eu como objeto de satisfação,
identificação e sublimação são vistas praticamente como sinônimos. Além
disso, o pressuposto de que ocorra a máxima dessexualização do conteúdo
libidinal traz problemas ainda maiores: se se trata, com efeito, de que seja a
libido a fonte da qual partem as pulsões sexuais, como seria possível
dessexualizá-la? A “espiritualização” ou a idealização seriam a saída? Somente
a princípio, que sua decorrência imediata vai de encontro à
desmaterialização e, portanto, à ausência de obra. E a hipótese que sustenta
uma “inibição de meta” tampouco desfaz a ambiguidade, pois “a sublimação
34
nunca pode tramitar se não houver uma certa porção de libido”, como Freud
declararia na XXII de suas Conferências Introdutória à Psicanálise (1996[1916-
17], p. 315). Nesse sentido, o melhor recurso seria compreender a sublimação
como uma forma de metaforização da energia libidinal.
Afora considerarmos que o pensamento de Freud seja tão lacunar a
esse respeito, antes o texto não deixaria dúvidas quanto à função de destino
pulsional a ser cumprido pelo trabalho sublimatório. De acordo com a letra
freudiana, entre o eu e o isso,
A transposição assim cumprida de libido de objeto em libido
narcísica acarreta, manifestadamente, um abandono das metas
sexuais, uma dessexualização e, portanto, um tipo de sublimação. Mais
ainda, aqui se coloca uma questão que merece ser tratada a fundo:
não é esse o caminho universal para a sublimação? Não se cumprirá
toda sublimação pela mediação do eu, que primeiro muda a libido de
objeto em libido narcísica, para depois dar-lhe outra meta? (Freud,
1996[1923], p. 32)
Ora, em se tratando de uma teoria que parte da estruturação egoica
como organizadora e centralizadora da atividade psíquica, nada mais coerente
para Kris do que realizar uma exportação da teoria freudiana da criação guiado
por esse conceito de sublimação. O que não aponta ser nenhum absurdo, uma
vez que o capítulo sobre a sublimação, que deveria compor os artigos de
metapsicologia, de fato nunca veio a ser escrito por Freud, abrindo terreno para
que a psicanálise contemporânea pudesse indicar algumas correções. No que
tange a seu aspecto dinâmico, Kris compreendia o mecanismo sublimatório
segundo a batuta mais rigorosa da doutrina freudiana: para ele, a sublimação
também funcionava a partir da ação combinada entre as diferentes exigências
de satisfação originadas no isso, de tal modo que, por meio da flexibilidade de
repressão própria no artista, torna-se possível a transformação dos conteúdos
inconscientes em matéria artística.
35
De maneira geral, o processo envolveria essencialmente duas
operações: um “deslocamento inicial de energia psíquica”, no qual a energia
que parte da libido será transformada, após a passagem pelo recalcamento,
em objeto a ser apreciado, objeto que em princípio seria publicamente
inaceitável mas que deixa de sê-lo por conta da transformação; a isso se soma
uma “neutralização” destas mesmas energias libidinais, rebaixamento que se
dá, de maneira paradoxal, por meio de uma “agressivização”
8
do conflito entre
o desejo (o sujeito, mais precisamente) e o objeto. Cada operação tem outra
como consequência, assim como acontece na origem de uma fusão com a
descarga de energia pulsional ou, em especial, no surgimento de alterações
das camadas psíquicas organizadoras do ego.
A dinâmica psíquica da sublimação deve ser debitada, como se pode
constatar, sob os encargos do eu-artístico, uma vez que a operação ocorre no
psiquismo criador. Seu sucesso ou fracasso dependerão, do ponto de vista de
Kris, do maior ou menor grau de autonomia que o ego do artista possui em
relação à sua produção, ou melhor, até onde “sua atividade está
desembaraçada do conflito original que voltou seu interesse e talento em
determinada direção” (1968, p. 25). É conforme a largura desse distanciamento
que um determinado artista conseguirá se destacar numa determinada virada
histórica. Suas conquistas estarão sujeitas à confluência exata entre as
características individuais e as exigências de época que no caso ele venha a
satisfazer. Impõe-se, nessas circunstâncias, um processo inequívoco de
comunicação que, ainda segundo o psicanalista, vai “do particular ao geral”
(1968, p. 27).
A confiança na autonomia egoica acaba se tornando matéria de graves
discussões. Ela teria surgido com a Psicologia do Ego visando enunciar uma
certa “autossuficiência” das funções de autoconservação, de acordo com a
revisão do conceito de sublimação feita por Laplanche. Haveria ali, como se
verifica na terceira de suas Problemáticas, uma confusão entre o que é fonte
pulsional e o que é autoconservação, pois são entendidas como sinônimos. “Se
for adotada essa interpretação restritiva”, declara Laplanche, “vemo-nos
8
A concepção foi inventada por Kris e parece se remeter à ideia de uma transformação do
“teor psíquico” das cargas energéticas provindas do isso.
36
conduzidos à ideia de uma anterioridade” perene, quase incontornável. Ora, o
ponto extremo desta posição é encontrado “numa corrente da psicanálise
americana em que essas funções autônomas (entenda-se, as funções de
autoconservação não-sexuais), são pura e simplesmente atribuídas ao ego
ele próprio um ‘ego autônomo’” (1989, p. 52, grifos meus).
Nesse sentido, não é por acaso que Kris aposte suas fichas, no que diz
respeito ao estético, numa função relacional comunicadora à qual todo o
conjunto da experiência com a arte estaria subordinado. Com efeito, ele nunca
abriria mão dessa tese. E para prová-la, propôs um experimento doméstico.
Sugeriu, a um grupo de amigos, a leitura de Frederick Rolfe, escritor de
destaque no início do século XX, esperando deles uma reação psicológica
específica a saber, a que ele mesmo havia sentido: um misto de “fascinação
e repugnância”, ambivalência que de fato viria a se confirmar, posteriormente,
com os colegas leitores. Sobrariam, contudo, dois sujeitos que não
compartilhavam da mesma opinião e, no caso destes, apenas um dos
sentimentos se mantinha. O primeiro alegava estar extasiado diante da leitura,
enquanto o outro apresentou reações de ojeriza após a experiência. Mas como
entender a reação anômala? Nesta situação, explica o pesquisador, as reações
tornaram-se explícitas por sua natureza pessoal, de modo que refletiriam o
prolongamento (ou a neutralização, melhor dizendo) das fantasias em um ego
que tentava compensar uma “ação masturbatória” (1968, p. 27), fato que por
sua vez leva à verdadeira genealogia inconsciente da resposta. (Cabe
mencionar, de passagem, que Kris conhecia a vida pregressa dos participantes
e as associou aos resultados desta pequena pesquisa particular).
Ao interpretar a cena, decidiu de qualquer modo pelo caráter
conservador das imagens, uma vez que tenham funcionado como uma espécie
de mecanismo de defesa “criativo”, haja vista o emprego narrativo exercido
pelas imagens na organização psíquica de cada um dos participantes. Nada é
mais egoico que buscar afastar o conflito de seu alcance; o objetivo máximo da
defesa é deixar terreno livre para as descargas decorrentes. Em termos gerais
e em relação à arte, “sua mensagem é um convite [que parte de] uma
experiência mental comum”, chegando enfim a “uma experiência de natureza
absolutamente única” (Kris, 1968, p. 34). Sob os auspícios da função
37
comunicativa, a imagem ocuparia “um lugar entre o gesto e a palavra”, ainda
que não pressuponha “a presença da pessoa a quem se dirige” (p. 44).
Deve-se notar, no conjunto da reflexão de Kris, que comunicação é o
mesmo que representação, e isso em duplo sentido: num primeiro plano,
quando sugere que as artes se encerrariam em uma função substitutiva à
realidade (seja ela natural, biológica ou mesmo psicológica); num segundo, na
própria ação que o artista executa para recriar a natureza, ao invés de imitá-la
ou reproduzi-la. Sua teoria a respeito do destinatário da arte é praticamente
idêntica: o receptor também deverá perpassar certos estádios de
funcionamento psicológico para que então adentre a experiência estética. Após
o reconhecimento prévio de motivos determinados assuntos podem ser
relacionados a traços de memória familiares –, estes virão a se tornar parte do
espectador. É sabido o quanto a percepção humana é afetada pelo mundo das
imagens; ao eu, portanto, só restaria empregar os aparelhos perceptivo e
psíquico a fim de encontrar soluções mais adequadas que venham a se
inscrever no corpo (no organismo) do indivíduo. Kris propõe a hipótese de que
no final dos procedimentos o destinatário será assaltado por uma indagação
profunda sobre os efeitos do percebido, de maneira a se sentir acometido pelos
mesmos processos de criação que invadiram o artista no momento da
concepção da obra. É como se o espectador, ao vê-la, se tornasse dela um
coautor.
Pois bem, produzindo teorias que investigam os efeitos que a obra
provoca no espectador, o trabalho de Kris não deixaria para trás a discussão
sobre a catarse aristotélica, essencial à teorização do mecanismo
identificatório. É assim que esta concepção, ponto de ancoragem do conceito
de representação, seria por ele reinterpretada a partir do vocabulário
psicanalítico.
Funcionando na ocasião como mecanismo de regressão do ego, o efeito
catártico é aquele que assegura o jogo de ilusão estética, e, de acordo com
Kris, quando se fala em arte falamos de ilusão. Sua função é, primordialmente,
proteger o ego, o que explicaria por exemplo a existência de um evento, tão
comum quanto enigmático, como o sentimento prazeroso ligado ao
38
desagradável (o caso da tragédia seria, nesta perspectiva, o mais evidente,
pelo alto nível de angústia que suscita no espectador). A intensidade do desejo
criada quando o sujeito se encontra diante de um objeto correlato faz com que
ele se mova, segundo a necessidade de autoesgotamento própria do princípio
de satisfação. Contudo, a experiência com a arte determina que este sujeito
repita, mas agora de maneira ativa, aquilo que antes fora vivenciado
passivamente, ainda que nesse exato momento saiba que o brinquedoo jogo
é apenas um brinquedo. No tocante à obra freudiana, percebe-se o quanto
estas teses se amparam em “Personagens psicopáticos no palco”, onde Freud
(1996[1905-6], p. 277) aludia à identificação ao herói como canal privilegiado
de trocas entre as polaridades passivo e ativo.
Nesta visada, a psicologia do artista se aproximaria da psicologia do ator
e, por extensão, das catexias identificatórias: em certas casualidades, o ator
que representa um papel pode perceber que vive uma vida equivalente à de
seu personagem e, “se ele deseja dar um outro final à peça, é porque deseja
corrigir alguma coisa na sua ‘vida’” (Kris, 1968, p. 38). Não se supõe,
evidentemente, que a teoria acredite que o ator venha a confundir sua própria
vida com a da ficção. Quando Kris se refere à “pessoa do artista” está se
remetendo à sua “personalidade artística”, nada mais; ainda assim, nem por
isso
ficamos sem a impressão de que, pela escolha de seus exemplos, nosso
historiador-psicanalista
9
procuraria erigir uma ponte sem mediações entre caso
clínico e obra de arte.
Ainda que munido desses reparos, não é minha intenção defender a
redução da escola americana às limitações de sua teoria sobre a aplicação. No
“tocante à interpretação”, escreve a esse respeito Renato Mezan, “é necessário
dizer que a ego-psychology seguiu à risca as pegadas da psicanálise
vienense”. De acordo com Meza, esta disciplina que se firmaria como
Psicologia do Ego foi “o ramo da psicanálise que menos se afastou do
vocabulário de Freud e de sua concepção geral da psique, do desenvolvimento
mental e do processo terapêutico”. Tomadas as devidas precauções, isso não
9
Deve-se mencionar que as teorias de Ernst Kris tiveram papel determinante no pensamento
de um historiador da arte tão importante como Ernst Gombrich, por exemplo, a quem me
remeto a seguir. Kris construiu, é certo dizê-lo, uma boa parte de categorias que influenciariam
a disciplina de História da Arte até o momento atual.
39
significa por outro lado que devamos compartilhar ou reproduzir suas
conclusões de maneira acrítica, isto é, também acreditando “que a sua era a
única e verdadeira psicanálise” (2002, p. 189).
Ao fim e ao cabo, talvez o grande limite deste método de recepção
resida no uso que a ego-psychology fez da Teoria da Empatia (Einfühlung) de
Lipps e Worringer. Nesse contexto, a noção de empatia teria sido “confundida
com uma comunicação intersubjetiva imediata”, como indica Françoise
Coblence, perdendo-se num processo de identificação afetiva cujo movimento
“constituirá um suporte curativo”. De sua parte, Julia Kristeva (1997) aponta
quais seriam as consequências diretas de uma apreensão como esta: dizer que
se trata de uma “intersubjetividade” é o mesmo que declarar a reificação da
experiência analítica, reduzindo o fenômeno da transferência à simples empatia
entre dois psiquismos. Se existe algum nível de intersubjetividade em
psicanálise, pode-se concluir com Kristeva, é somente na medida em que ela
se traduza a uma categoria negativa tal como “transsubjetividade”, ou
“horizontalidade do transindividual”, propostas por Lacan (1997; Zygouris,
2006, p. 55).
O maior risco da posição empática é o de se apoiar “na concepção de
um sujeito reunificado, para o qual o recalcado não terá nenhuma
especificidade”, de acordo com o entendimento de Coblence (2005, p. 26).
Assim, as reflexões estéticas da Psicologia do Ego disfarçariam uma latente
má-compreensão: para além do simples sufocamento do recalque, pode-se
dizer que a concepção original de Lipps teria aberto todo um espaço de
experimentação estética, ambiente que pôde privilegiar saberes dirigidos ao
modo como os objetos de arte se apresentam ao espectador. Em outras
palavras, seu surgimento traria consigo uma verdadeira teoria da recepção.
Com efeito, a empatia se inicia no mecanismo de identificação, mas não se
reduz a ele: partindo do familiar, proporciona uma compreensão do que é
“estranho como estranho” (Coblence, 2005, p. 46). No vocabulário filosófico, a
empatia não seria, tomada à risca, o “sentir com” (Einfühlung) desejado por
Ferenczi, tampouco o “sofrer com o outro sem sofrer em si mesmo” ofertado
40
pelas terapias humanistas contemporâneas. Importando-a ao campo
psicológico, a empatia permitiria a existência da relação de transferência em
análise, e, desse modo, é ela quem abre espaço a uma escuta analítica
propriamente dita.
Quando se compreende o conceito da ab-reação (catarse) via Psicologia
do Ego, deve-se levar em consideração que é característico do ego garantir um
controle o mais competente possível das descargas que evadem o sistema
psíquico, mantendo concomitantemente uma relativa autonomia de ação diante
das forças pulsionais que surgem na direção contrária. Ao final, o resultado
seria conquistar um tipo de insight capaz de proporcionar total “liberdade para
viver a experiência de maneira protegida”, cuja decorrência promove um prazer
duplo: aquele que surge como consequência da descarga de afetos, de um
lado, e, de outro, o controle que o ego revigora e que assim, ao revigorar,
ganha mais prazer a cada nova situação.
As questões aí propostas ganham ainda maior proveito quando
adentram o campo da História da Arte. Em “A Psicanálise e a História da Arte”,
Ernst Gombrich sugere um sistema de construções históricas a ser elaborado
diante de uma categoria estética chamada por ele de representação conceitual.
Conforme o pressuposto de base, os paradigmas da pesquisa histórica
deveriam se debruçar nas fórmulas “representacionais” que um determinado
objeto possui, o que garantia a certeza de que se está falando de um homem
ou de uma mulher, de um cavalo ou de um cachimbo... Na esteira da
psicanálise de arte de Kris, Gombrich acredita que toda atitude estética advém
de um tipo específico de reação ou descarga: o “entendido de arte deseja
identificar-se com o artista”, declara, “precisa ser puxado para dentro do círculo
encantado e partilhar seu segredo”. Assim, a arte cresce evolui em
função do que produz enquanto “novidade” no interior de sua própria
instituição, formada pelo triângulo “artista, público e contexto”.
Nesse contexto, recepção estética e subjetividade estão em profunda
conexão. A respeito da Europa pintada por Ticiano, por exemplo, comparada
em relação à de Rafael, sua antecessora, Gombrich declara aos psicanalistas
de Londres, em 1952, que
41
Não deve ter escapado aos senhores que dentro da esfera da
pintura a relação estética ocasiona uma maior liberdade. Essa Europa,
pintada para Filipe II da Espanha, é sem dúvida mais abertamente
erótica do que qualquer coisa que circulou antes. No entanto, o
conteúdo erótico não é escondido nem imposto. É absorvido, por assim
dizer, nesse processo estético de recriação, de troca de concessões.
Podemos suspeitar de que um aumento dessa participação ativa, da
atividade projetiva, vem acompanhado talvez de uma liberação de
tabus convencionais. Mesmo o piedoso Rei da Espanha podia olhar
para uma obra-prima do pincel como essa sem sentimentos de culpa,
pois quem poderia negar que se tratava aqui de arte no seu mais alto
grau? (1999, p. 37).
Em outras palavras, tais ideias nos levariam a entender que o historiador
acredita que a arte seja um meio privilegiado embora não exclusivo para
integrar, em virtude do que fabrica como “prêmio de realização estética”, a
pulsão e suas componentes agressivas? Nesse sentido, a saída encontrada
por Rafael seria mais adequada porque ele consegue oferecer uma experiência
visual que não é “nem escondida nem imposta” ao eu. A piada visual é muito
mais complexa que a anedota verbal, e é assim que determinadas imagens
precisariam, para serem fruídas, não de uma “evolução da humanidade”, como
o próprio Gombrich conclui, mas do desenvolvimento de sua evocação
perceptiva visual (1999, p. 37).
Gombrich recomenda uma sugestão lúdica para averiguar, por canais
estritamente psicanalíticos, certas generalizações possíveis à experiência
estética. Brincando com a conjectura de que as satisfações orais poderiam
servir como modelo genético de explicação para o problema do prazer estético,
apresenta os fatos: no senso comum, quando entramos numa exposição,
falamos a respeito do “gosto” que dedicamos à arte, o sabor de cada quadro
etc., bem como somos capazes de discriminar, no íntimo de cada um, aquilo
que em certa comida realiza satisfações mais primitivas, pois é através da
alimentação que encontramos o seio materno, tal como, adiante, o treino das
primeiras faculdades críticas ad hominem.
42
Retornando à experiência estética, a metáfora culinária empregada por
Gombrich certificaria em si mesma o equilíbrio de dosagens, sem o qual o
alimento se tornaria insosso ou desprezível. Isso explica a sensação de mais-
de-sedução que existe em certas obras de arte, obras que embora desejem
atrair, acabam provocando repulsa por conta de seu gosto exagerado, excesso
de regressão e de passividade que exige do espectador. Para ilustrar, o
famoso historiador sugere que o Impressionismo teria sido um verdadeiro
divisor de águas entre dois modos de satisfação estética: “Podemos vê-lo como
o ápice do progresso que conduz à equiparação cada vez mais estreita do
símbolo pictórico às aparências, e como o começo de uma arte abertamente
regressiva, o primitivismo(Gombrich, 1999, p. 42). Não obstante, a pergunta
que permanece sem reposta é se o Impressionismo divide o muro das
compensações do gosto ou produz uma poética específica para chegar até aí.
Quando Picasso se transforma, isto é, faz das linhas cubo e dota suas
personagens de sentimentos atraentes, “em termos psicológicos”, declara
Gombrich, “a coisa interessante não é o fato de ter ele feito o que estava mais
ou menos na gica da situação, mas o quanto teve de esforçar-se para
escapar da maestria e do sentimento e satisfazer a demanda de mais atividade
e mais regressão” (1999, p. 42). Honestamente, o que importa, quando
olhamos Picasso, não é o fato de que seu inconsciente esteja neste ou naquele
trauma exposto, ou que ele tenha ultrapassado seu Édipo assim ou assado;
interessa perceber, no entanto, que em seu momento Picasso “se acha numa
situação em que seus conflitos particulares adquirem relevância artística. Sem
os fatores sociais (...) o estilo ou a tendência, as necessidades privadas não
podiam ser transmutados em arte(p. 43). No entendimento de Gombrich, se o
gosto é de fato acessível à análise psicológica, isso não significa que a arte
também o seja; e ainda que o artista dependa dos símbolos, articulando-se
àqueles que estão disponíveis em sua época, isto não é tudo: o que o artista
faz deve ir além porque a “verdadeira obra de arte claramente realiza mais do
que a satisfação de alguns anseios analisáveis” (p. 44).
Por fim, e para não deixar nenhuma dúvida a respeito de suas filiações,
Gombrich declara que é
43
o ego que adquire a capacidade de transmutar e canalizar os impulsos
do id, e uní-los nesses cristais multiformes de miraculosa complexidade
que chamamos obras de arte. Elas são símbolos, o sintomas, de tal
controle. É o nosso ego que, em ressonância, recebe dessas
configurações a certeza de que a solução do conflito, a consecução da
liberdade sem ameaça à nossa segurança interior, não está totalmente
fora da apreensão da mente humana ambiciosa (1999, p. 44)
Uma das principais ideias que faz com que o historiador se aproxime de
Kris (aliás, os dois almejaram escrever a quatro mãos um ensaio sobre a
caricatura, o que não chegaria a se concretizar) encontra-se, na minha opinião,
na concepção de arte que compartilham. Entendido como efeito de
reconciliação entre as diferentes pulsões, os dois consideram que o gosto seria
uma espécie de integração, decorrente da maior ou menor capacidade de
adaptação egoica conquistada pelo psiquismo; além do mais, Gombrich ratifica
o interesse que a psicanálise demonstra pelos objetos de arte pertencentes a
épocas muito anteriores ao momento contemporâneo, ainda que o texto a que
me reporto aqui tenha sido publicado no início dos anos 1950.
Mas isso não é o bastante: segundo Gombrich, Kris teria sido
responsável por toda uma renovação no debate sobre as reações psicológicas
do espectador. A “interação entre o artista e o espectador”, indica o historiador
da arte, “é um fator muitas vezes esquecido. Sua formulação teórica do ponto
de vista da psicanálise, devemo-la a Ernst Kris, que é meu guia e mentor
nessas coisas”. Ora, o caráter inaugural desta psicologia da “atitude” estética,
atribuída neste caso a Ernst Kris, impede que a compreendamos meramente
como uma tentativa ingênua de teorização. Pois teria sido ele, ademais, o
primeiro a sublinhar o fato de que a emergência do que se poderia chamar a
atitude estética com relação à pintura ocasiona um novo tipo de reação, ou,
como ele mesmo diz, de descarga” (Gombrich, 1996, p. 35-6).
Não obstante, é muito provável que esta aproximação à qual assistimos,
cujo ponto de partida é o vetor da psicanálise aplicada e se completa na
psicologia do ego, produza ressonâncias em historiadores da arte que cedem à
vontade de acrescentar um substrato “humano” e menos “idealista” ao
44
fenômeno estético, revelando uma vontade de decifrar a gênese da criação
artística por meio dessa abordagem. Na França, por exemplo, Rene Huyghe,
antigo conservador do Louvre, assumia uma cadeira de Psicologia da Arte no
Collège de France exatamente no mesmo momento em que Gombrich e Erwin
Panofsky eram transferidos para Londres, assim como o próprio Ernst Kris
“dava continuidade ao trabalho que iniciara em Viena junto a Freud sobre as
relações entre Psicanálise e Arte” (Frayze-Pereira, 2005, p. 33).
Entendendo a obra de arte como linguagem, Huyghe deseja propor uma
teoria que dê cabo da interação entre os termos – arte e linguagem. Em
“Psychologie des arts plastiques” – artigo publicado, a propósito, em uma
revista de psicologia , ele adverte que qualquer análise sistemática da
imagem impõe muita atenção à consciência de “interdependência ativa”, algo
que existe entre a obra, seu tempo e suas invariantes, ou melhor, às
“constantes psicológicas” que remontam a uma explicação mais tardia da
personalidade do artista” (1993, p. 163, grifos meus). A insistente aproximação
que vai da psicologia à arte deveria ser amparada, para o autor, menos pelo
legado freudiano e mais pelas colaborações que Carl Gustav Jung reuniu em
torno de sua psicologia do espírito coletivo:
Se os métodos demasiado sistematizados de certos
psicanalistas freudianos estão a prescrever, a psicanálise, até onde o
mais se ampliou, em particular por Jung, pode ajudar a determinar as
imagens nas quais a repetição ou a analogia revela as preocupações
mais íntimas e mais constantes do artista; suas mutações revelam
aquelas de seu ser profundo” (Huyghe, 1993, p. 164).
E a respeito, por exemplo, das “dualidades” encontradas em Delacroix
seu objeto de estudo privilegiado Huyghe observa que os traços
contraditórios de sua arte estão também presentes em sua vida pessoal, de
modo que a análise “de sua imaginação e de suas obsessões vêm a corroborar
e esclarecer aquilo que sabíamos das contradições de sua pessoa” artística
(acrescentaria de minha parte). Assim, a aproximação da psicologia à forma faz
45
com que se esclareçam, uma diante da outra, psicologia e forma, no entanto
sempre tendendo à psicologia do artista; para Huygue, existiriam equivalências
simbólicas entre forma e vida, pois é no visível da obra que reside a natureza
complexa do criador. Inconsciente e consciente fazem sentido se se admite
que, neles, possamos encontrar uma síntese que parta da própria composição,
da sua singular fisionomia – estreita união entre psicologia coletiva e individual.
1.3) Problemas metodológicos: a filosofia da aplicação
É bem provável que o pensamento psicanalítico norte-americano do pós-
guerra tenha sofrido forte influência da psicologia do ego. Não seria absurdo,
neste sentido, constatar que um filósofo canadense como Charles Hanly vigore
entre os principais especialistas no que tange à Applied Psychoanalysis, campo
que mal saía do forno se encontrava envolto de uma série de contradições
acerca de sua legitimidade. E são precisamente estes os problemas que o
autor almeja dirimir com O problema da verdade na Psicanálise Aplicada.
As diretrizes metodológicas de Hanly partem da sobredeterminação
psíquica como elemento estruturante; ela representaria, nesse sentido,
condição obrigatória à leitura das obras de arte, assim como de suas
derivações partem quaisquer análises que desejam sair do campo clínico
estrito (no caso, clínico seria aqui sinônimo de consultório).
Os efeitos da sobredeterminação surgem de duas maneiras: por um
lado, “como uma consequência da natureza do trabalho onírico”, e, por outro,
como decorrência da “estrutura dos processos psíquicos em geral” (Hanly,
1994, p. 41). Em outras palavras, a ação psíquica “normal” coloca em
funcionamento os mesmos mecanismos de defesa presentes no trabalho do
sonho deslocamento e condensação –, produzindo transformações nos
conteúdos inconscientes que estão em vista de emergir à consciência. Dessa
maneira, pode-se considerar que os textos, pinturas e obras serão afetados
pelos mesmos processos que compõem a atividade onírica; a diferença é que
46
as obras serão organizadas, ao final, pelo processamento secundário. O ponto
de partida é a constatação de que ambas atividades advém de um mesmo
substrato psíquico: o inconsciente e suas (re)produções – tese que revela
ressonância em relação às conclusões deste trabalho.
Em sua posição extraclínica, as análises aplicadas produziriam
previsões textuais em lugar de previsões clínicas, uma vez que a interpretação
lida com o todo da obra e não com a concretude da sessão. Neste contexto, a
verdade estará limitada ao estado hipotético, portanto, sendo ou não
confirmada pela clínica. Os limites desta postura já haviam sido observados por
Laplanche, no entanto. Em se “Leonardo”, Freud esquematiza a análise em
duas vias de interpretação, sendo uma simbólica – bastante produtiva, de
acordo com Laplanche, porque era a primeira grande teoria que surgia após a
Traumdeutung –, e outra mitológica. “Numa obra de ‘psicanálise aplicada’”,
escreve o psicanalista, “a via que poderíamos chamar ‘associativa passa
frequentemente para o segundo plano, estando parcialmente ausentes as
associações do sujeito” (1989, p. 59). Ora, para que a análise aconteça, a
transferência deve alargar suas fronteiras, sendo assim estabelecida entre o
leitor e o texto. A premissa fundamental da aplicação se resumiria à
necessidade de garantir avanços na clínica por meio de conceitos germinados
em um trabalho interpretativo extemporâneo.
No entanto, ainda que as análises aplicadas religião, arte, sociedade
ou política) não possam contar com as associações do paciente ou com um
processo de transferência que se instaura entre dois inconscientes estas são
condições fundamentais para que o terapêutico possa advir –, o fato de se
localizarem para fora do setting é compensado pela vantagem de sua abertura
ao público. Mas o só. Se é verdade que “o analista de obras de arte, ao
contrário do psicanalista, está privado das associações fornecidas pelo
paciente”, por outro lado a obra, sendo também um produto humano, poderia
ser comparada às associações pretensamente livres de um paciente “privado
de motricidade, porém vítima” de seu próprio inconsciente, que ambos
procurarão escapar da “insistência repetitiva da manobra crítica” (Gagnebin,
1994, p. 254).
47
Hanly não deixa de apreender os cuidados que são exigidos pelas
psicanálises aplicadas. O leitor deve estar consciente que as saídas
extraclínicas podem não escapar ilesas das ofertas ideológicas, tal como se
em qualquer ciência ou filosofia. Assim, é possível que a interpretação seja
utilizada de modo puramente instrumental.
Um texto, um evento, uma vida ou um artefato podem sempre
ser interpretados ao longo de linhas psicanalíticas; mas tal abordagem
omite dois passos essenciais: a identificação da prova no objeto que
autorize uma abordagem psicanalítica e a identificação da prova no
objeto que autorize a interpretação específica feita.
E mais:
Uma forma especializada de pensamento ideológico na
psicanálise aplicada é a interpretação de, digamos, um romance, a
partir de um ponto de vista clássico, autopsicológico, objeto relacional,
kleiniano etc., sem consideração de uma suposta evidência no texto
que justifique a aplicação e uma teoria em vez de outra. (Hanly, 1995,
p. 44)
A evidência que permita o uso do arsenal psicanalítico é um fator
indispensável ao objeto, como ele considera. Contudo, Hanly indica que se se
toma por verdadeiro que a psicanálise do infantil é a própria psicanálise (basta
citar a obra de Melanie Klein), logo se deve assumir que a psicanálise aplicada
seja de mesma origem, uma vez que esta modalidade de análise figurou,
desde os primórdios da clínica e da teoria freudianas, como instrumento
fundamental à pesquisa; as leituras de Dostoiévski, Jensen
10
e Sófocles feitas
por Freud podem prová-lo. Outra justificativa que acena à revista Imago: desde
10
Kris relata que Jensen teria de fato lido a interpretação feita por Freud à sua Gradiva e que,
em parte, teria concordado com a leitura (1968, p. 21).
48
sua mais remota origem, a teoria psicanalítica procurou extrair, da arte,
conceitos cruciais para sua legitimação posterior.
A meu ver, no entanto, o reducionismo se revela quando o trabalho de
construção analítica se torna uma simples exploração ilustrativa das “fontes de
verdade psicológica nas obras de arte”, mesmo na “melhor das intenções”, isto
é, “no sentido de esclarecer, enriquecer e explorar a esfera dos conceitos
clínicos e teóricos” (Hanly, 1995, p. 48). A precaução com a exportação dos
conceitos deve ser levada a toda prova, sobretudo ao se adentrar no circuito
complexo, paradoxal e ambíguo das artes plásticas. Nesse sentido, a proposta
de fazer “interagir” a psicanálise com as demais ciências teria conseguido
reelaborar a dificuldade epistêmica. Para Sophie de Mijolla-Mellor, todo o
interesse que a psicanálise lança a um determinado domínio deve ser
acompanhado pela interrogação da validade de seu método. Esse raciocínio
supõe “proceder a uma inquirição epistemológica renovada sobre o valor do
método psicanalítico, suas capacidades para encontrar outras lógicas e,
portanto”, conclui a autora, “não proporcionar uma nova luz sobre o domínio
onde ela se aplica, mas, em contrapartida, ser ela própria elucidada quanto à
sua essência e à sua eventual fecundidade” (Mijolla, 2005, p. 1448).
Ademais, Hanly acredita que a “verdade sobre cada um reside na
subjetividade”, pois o sujeito “pode se lembrar de seu próprio passado como
ele realmente foi. O terreno do autêntico trabalho analítico é o respeito por essa
solidão” (1995, p. 40). O curioso é o quanto esta passagem esconde, sob a
máscara de uma “vontade filosófica” (o que seria afinal a Verdade?), que pouco
se aplica à prática da psicanálise. Hanly pressupõe a legitimação de verdades
num passado que, para quem experimenta uma rotina de sessões um
analisando sabe muito bem o que quero dizer com isso –, toma forma como
narrativa. Assim, a lembrança é o resultado de um processo de encobrimento.
No decorrer da práxis psicanalítica, a genealogia do passado individual não
revela uma “verdade” do sujeito, ao menos não no nível do que propõe Hanly:
se essa verdade existe, existe porque é construída. Ora, é como se ele
acreditasse que o problema das lembranças encobridoras e a força de
influência inconsciente nos discursos não interferissem na lógica da narrativa.
49
Cabe mencionar que, para Hanly, a ideia experiência estética é sinônimo
de distanciamento psíquico: ao olhar uma cena ou ao ler um romance, por
exemplo, estaremos identificados em maior ou menor grau com os
personagens da trama. O prazer estético é garantido por uma distância que
permite fruir a obra sem sujar as os. De acordo com a teoria, a experiência
com a arte é determinada pelo movimento destas identificações somadas a
projeção e introjeção. A identificação, que seria a operação que ocorre
primeiro, consiste na forma original com que o sujeito estabelece um laço
afetivo com o objeto; em seguida, ela dará lugar a uma vinculação libidinal que
adentra o espaço psíquico disponível ao ego eis a introjeção. A projeção, por
sua vez, seria o movimento contrário a essa internalização, e assim exterioriza
o que foi introjetado. Desta maneira, a dinâmica interna do artista e a psicologia
do espectador seriam expressões, por assim dizer, homólogas.
Não se pode afirmar que esta teoria teria maior validade num embate
com obras de cunho figurativo, quer dizer, datadas historicamente, de modo a
serem interpretadas a partir do conceito tradicional de representação?
11
A título
de exemplo, tem-se o interesse renovado que a “psicanálise da arte” presta à
investigação do passado cultural. A produção de arte atual pouco interessa à
psicanálise aplicada, com efeito: a se deparar com a pulverização própria do
cenário contemporâneo, é como se os psicanalistas fizessem um recuo do
olhar (Green, 1994, p. 11). O que é possível fazer, então, diante das poéticas
“não-retinianas” suscitadas no cenário da arte de hoje?
“Compreender a arte moderna, pelo menos após Cézanne, com a noção
de representação e sua correlata a sublimação”, escreve João Frayze-
Pereira, é o anúncio de uma vontade de “ignorar a modernidade das artes”.
(...) não é um exagero pensar que tudo que importa em matéria de
pintura, pelo menos após zanne (ao contrário da facilitação do
adormecimento da consciência e da realização de desejo inconsciente
11
No entendimento de Hanly, existem três fatores concorrentes no processo sublimatório: a
substituição do objeto por outro socialmente aceito, a alteração do modo de gratificação
psicológica e, por fim, a neutralização pulsional do retorno mnêmico.
50
do espectador), é produzir no suporte uma espécie de análogo do
próprio inconsciente, suscitando inquietude, revolta, perplexidade,
interrogação (...) Isto é, se a arte de hoje tornou-se diferente é porque a
angústia a perfura, subvertendo sua função. Porém, se a análise
freudiana em matéria de artes plásticas parece inaplicável à pintura é
que não só a pintura de hoje tornou-se diferente, mas no próprio tempo
em que Freud escreveu, dos primeiros escritos de 1895 aos últimos de
1938, a pintura mudara de maneira, de problema, de temática (2005,
p. 58).
Por outro lado, Hanly considera que a psicanálise aplicada é um campo
rigorosamente interdisciplinar, uma vez que se afirma na fronteira da clínica
com as humanidades. O que o significa que deva ser confundida com as
“biografia[s] informada[s] psicanaliticamente” (palavras do filósofo), seja sob a
autoridade de uma análise que destaca a vida do artista como objeto de
investigação (a psicobiografia), seja partindo da obra para produzir suas
interpretações (o que é bastante óbvio para qualquer investigador que se
aventura à reflexão sobre arte). O jogo da falácia intencional, que se expressa
na vontade de atribuir, ao autor estudado, aquilo que o pesquisador acredita
que ele deveria ou desejaria dizer de maneira “consciente”, ganha contornos
ainda mais precisos porque a “intenção que encontra expressão na obra de
arte pode ser uma intenção inconsciente que requer interpretação (1994,
p.62).
A meu ver, no entanto, este é o lugar preciso dos maiores entraves do
método aplicado. Seu emprego consiste basicamente no procedimento
analógico-comparativo, e toda função analógica pressupõe a leitura em chave
de decifração. Mesmo que o exame venha a se concentrar no que é intrínseco
à obra, desviando-se então das atribuições extemporâneas, sua aspiração
totalizante se deixar revelar a olho nu.
A psicanálise pode também estudar uma obra de arte por seus
próprios méritos, independentemente da vida de seu criador. Freud
sugeriu, num contexto clínico, que as pessoas, constante e
desavisadamente, dão expressão a seus pensamentos e desejos
51
inconscientes, “se os lábios estão calados, ele conversa com as pontas
dos dedos; a revelação transpira por todos os seus poros”. Mesmo se o
trabalho de decifração possa não ser sempre tão simples como esta
afirmação sugere, pode-se pressupor que toda grande obra de arte terá
uma dimensão inconsciente que pode ser decifrada a partir das
indicações que devem ser encontradas dentro da própria obra (Hanly,
1995, p. 63).
Assumindo que as ressalvas por mim apresentadas estejam corretas, o
maior avanço epistemológico da aplicação se concentra em sua teoria sobre o
processo de criação. Ao contrário do que as correntes psicologistas costumam
asseverar (no caso, refiro-me aos signatários da psicologia do ego, com quais,
a meu ver, Hanly se identifica, embora não o diga), Hanly afirma que “é às
pulsões, às suas vicissitudes e aos seus derivativos que deve remontar o
material temático original da grande literatura” (1995, p. 108). Para ele, o eu
“sozinho” não consegue solucionar as demandas da criação artística, mesmo
quando pensamos que o trabalho de arte seja uma atividade sublimatória.
Assim como acontece na atividade onírica, o trabalho de produção artística
depende de um alto nível de funcionamento primário (inconsciente), A partir do
momento em que a libido do objeto se converte em libido narcísica, com a
entrada do narcisismo secundário, a ação inconsciente desempenha a tarefa
de configurar conexões associativas de imagem que afiançam um
reconhecimento público do objeto produzido.
Mesmo na linguagem literária, por exemplo, a própria “escolha das
palavras e sua combinação são orientadas pré-conscientemente por
deslocamentos que enriquecem enormemente seu poder evocativo”, (1995, p.
110). Como diria Lacan, a própria sintaxe é pré-consciente: é isto que
possibilita que as formas artísticas proporcionem uma liberdade para explorar,
na qualidade de substituição de uma realidade por outra (interna pela externa e
vice-versa), experiências que de maneira diferente seriam negadas à
consciência, sob efeito da repressão. Em meio à experimentação artística,
conclui Hanly, move-se um vaivém entre regressão e suspensão do julgamento
52
de realidade. E é por esse motivo que podemos “compreender intuitivamente” o
de que se trata quando se olha para a obra de arte.
Para melhorar as coisas, as noções de forma e conteúdo não se
desenvolvem em separado nessa teoria. A cisão entre forma de um lado e
conteúdo de outro se desfez, com razoável clareza, na estética da
formatividade de Luigi Pareyson, por exemplo. Ao fazer da forma substância
privilegiada nos processos de concepção artística, ele resolve o divórcio entre
forma e conteúdo por meio da constatação inequívoca de sua codependência.
Na maioria dos casos, adverte o estético,
12
por muito tempo “o conteúdo foi
visto no simples assunto ou argumento tratado, que podia ser um objeto natural
a ser representado, uma história a ser contada ou um sentimento a ser
cantado” (1997, p. 55). Noutras ocasiões, o conteúdo teria sido reduzido ao
tema ou ao motivo através dos canais do “sentimento inspirador”. Em paralelo,
a forma seria tratada como “perfeição exterior”, a partir do “esmero técnico e
estilístico” com os quais o artista trabalha, diferenciando-se dos não-artistas.
Pareyson defende, de maneira categórica, a inseparabilidade dos termos: o
conteúdo nasce como tal no próprio ato em que nasce a forma, e a forma não é
mais que a expressão acabada do conteúdo” (p. 56).
Além disso, a teoria da formatividade,
encerra o perigo, explicitado em algumas teorias (...) de desvalorizar o
aspecto físico e sensível da arte: a forma pode ser uma imagem
puramente interior, não realizada num objeto real e quando um artista
encontra seu próprio caminho, isto não acontece porque ele enfrenta
problemas técnicos ou tenta resolver dificuldades formais, ou se
exercita numa determinada linguagem artística, mas e sempre por
uma íntima vontade expressiva (Pareyson, 1997, p. 57).
A inexorabilidade entre forma e o conteúdo se reflete, na pensamento de
Hanly, nas relações que ele estabelece entre afeto e representação, condições
12
Pareyson sugere que o tomemos por estético e não por esteta; esteta, ao contrário do que
se costuma conceber, seria para ele o artista, e não o filósofo.
53
fundamentais para o entendimento da histeria e das patologias decorrentes do
isolamento entre os termos. A histeria, “doença da visualidade”, produziu
imagens que se tornariam um capítulo na história da arte (Didi-Huberman,
1982). Ora, toda obra de arte delineia uma conjunção entre afeto e
representação, seja por meio do enigma proposto no inconsciente das linhas (a
ideia não evidente, a representação subreptícia), seja pelo fascínio que
provoca no espectador (a afetação decorrente da Vorstellung, inseparável da
forma).
No entanto, Hanly também considera que as obras servem à ilustração
da materialidade do funcionamento psíquico. Assim, elas esquematizariam
certos mecanismos ainda que essenciais próprios ao aparelho mental. Ao
comparar a diferença entre o impressionismo de Monet e o expressionismo de
Van Gogh este que não tratava o motivo com tanta “serenidade burguesa”
mas os apresentava em sua grave circunspecção –, o filósofo sugere que no
último existe “uma defesa implicitamente em ação contribuindo para a escolha
do tema, estilo de pintura e tratamento da forma” (Hanly, 1995, p. 113, grifos
meus). Para ele, em suma, a estrutura da obra e a estrutura do psiquismo
jamais serão exatamente coextensivos, muito pelo contrário: a configuração
formal convém à reprodução da organização psíquica.
Nesse sentido, o modelo mais adequado para compreender a
experiência com a arte seria o do exercício lúdico, que o brincar consiste em
si mesmo numa atividade de criação. O que Hanly deixa de mencionar em seu
argumento é o fato de que o artístico não depende apenas do exercício
inovador. Ninguém melhor que a crítica de arte para constatá-lo: se não
existirem condições sociais e de circuito que reconheçam a artisticidade da
fatura, os trabalhos sequer chegam a existir (socialmente, culturalmente,
mercadologicamente etc.). E se é certo dizer que o espaço imaginário está em
íntima ligação com a vida, com os sonhos e com a realidade, e que sem ele
não existe arte, isso não quer dizer que “a boa literatura” seria “capaz de imitar
a realidade psíquica” (1995, p. 139, grifos meus).
54
Ao fim e ao cabo, talvez o maior problema da aplicação
13
seja na
verdade uma espécie de engodo epistêmico. Ora, tomar a imitação como
paradigma da teoria da arte não é, de modo algum, uma ação desconhecida;
tampouco é atual a discussão sobre os limites com os quais a mimese
aristotélica já se deparou. Eis a entrada para uma estética da recepção.
1.4) Psicanálise e Estética da Recepção
A maioria das análises feitas por psicanalistas se dirige à literatura. Além
do caráter mais “psicologicamente explícito” dos textos literários, o escritor é
aquele sobre quem recai a liberdade de escolha de assuntos e temas,
liberdade essa que não teria sido ofertada aos artistas plásticos. O “preço da
incerteza de sua vida material”, afirma Germain Bazin, “não correspondia ao
modo de operar da arte de outrora”, que era regulada basicamente pelo
sistema da encomenda. O que não eximiria, ainda segundo ele, certos
psicanalistas (e tampouco os historiadores) de terem se apropriado de uma
série de mal-entendidos. Um dos exemplos mais patentes é a atribuição da
repetição de um determinado tema a um artista que, a bem da verdade, não o
havia escolhido, mas apenas executado, dado que era um costume das
escolas de formação anteriores à Arte Moderna.
Esses problemas corroboram a pertinência de análises histórico-textuais,
tais como as da Estética da Recepção, por exemplo. Na Escola de Constança,
certos pesquisadores empregariam o método “imanentista” à leitura da obra, o
que dificultaria a ocorrência de contradições daquela ordem. Em termos
discursivos, a grande questão indicada pela escola de Constança se resume a
“o que significa ao espectador, em termos objetivos, a experiência estética”?
13
É desse modo que justifico o recorte de uma investigação que vai em direção ao cenário das
artes. Não é minha intenção generalizar estas considerações, extrapolando os limites para
levar a crítica da aplicação à filosofia, à história ou às ciências humanas, temas que Hanly
desenvolve em seu ensaio.
55
De acordo com Hans Robert Jauss, um de seus principais articuladores,
quando lançamos o olhar a um determinado objeto, ou quando ouvimos uma
canção ou lemos um poema, estamos colocando em funcionamento duas
condições sensíveis essenciais: agindo dialeticamente, “fruição compreensiva”
e “compreensão fruidora” são os estados cognitivos primários do processo de
recepção, aos quais será acrescida, a seguir, a complexa demanda de reflexão
“ato reflexivo”, segundo as palavras de Wolfgang Iser, outro autor iminente.
Mais especificamente falando, Jauss concebe de antemão que a
recepção não é um sinônimo para o efeito estético: se na recepção o
condicionamento da leitura se realiza no destinatário, no efeito o que surge
como determinante é o texto, a obra em si. Em síntese, o efeito, que alude a
relações com o passado, se distinguiria da recepção porque esta depende de
um “destinatário ativo e livre, que, julgando de acordo com as normas estéticas
de seu tempo, modifica, pela sua existência presente, os termos do diálogo”
(Starobinski, 1991, p. 19). A análise não pode se desviar dos meios ideológicos
sob os quais a obra foi concebida, assim como deve se ater ao consumo e
historicidade concorrentes. Para Jauss e Iser, o espectador de arte tem uma
função e um lugar específicos no mecanismo de produção. E ainda que a
estrutura da obra não seja reduzida à sua recepção, a história da arte depende
da existência de um destinatário. Assim, o imperativo da contextualização não
exerce função de fundo mas de figura, e é a união exata entre esses elementos
que assegura a experiência estética. “O prazer estético que, desta forma [pelo
prazer de si no outro], se realiza na oscilação entre a contemplação
desinteressada e a participação experimentadora”, escreve a esse respeito
Jauss, “é um modo da experiência de si mesmo na capacidade de ser outro,
capacidade a nós aberta pelo comportamento estético” (1979b, p. 77).
Por essa razão, a estética da recepção seria, mutatis mutandis, uma
fenomenologia da experiência com a arte. Enquanto ciência parcial, deve
recortar e aprofundar o questionamento acerca da produção, reprodução e
consumo de arte. Estes pressupostos definem o trabalho do leitor: segundo
Iser, o exercício de recepção consiste em trazer à tona os dizeres concretos do
texto; em outras palavras, trata-se de “realizá-lo”, um ato de Konkretisation,
(Ingarden). Ora, existe sempre algo de implícito na obra de arte: todo
56
texto/imagem tem o mérito de apresentar tantos as questões quanto as
respostas, cuja virtualidade de sentido está à espera de ser concretizada pela
recepção. O “trabalho literário possui dois polos”, escreve Iser, “aos quais
podemos chamar de artístico e de estético: o artístico se refere ao texto criado
pelo autor, e o estético à realização efetuada pelo leitor” (1990, p. 274). Por
conseguinte, o “trabalho literário” não é idêntico ao texto ou à leitura: ele está a
meio caminho entre os dois.
A convergência entre leitor e texto margem ao mundo virtual que é a
obra de arte. No entanto, este espaço intermediário que foi criado entre eles
não deve ser identificado, simplesmente, com “a realidade do texto ou com a
disposição individual do leitor” (Iser, 1990, p. 275). Segundo o teórico alemão
Assim como o leitor usa as várias perspectivas oferecidas a
ele, pelo texto, de modo a relacionar os padrões e as “visões
esquematizadas” entre si, ele coloca o texto em movimento, e esse
processo resulta finalmente num despertar de respostas internas.
Portanto, ler faz como que o trabalho literário desdobre seu próprio
caráter dinâmico (p. 275).
Em meio ao adensamento “quente” do textual residem elementos não-
escritos que desejam participação ativa, demandando uma posição criativa por
parte do espectador. Na visão de Iser, além de atraírem o leitor, os aspectos
não apresentados pela superfície do texto seduzem-no a completar as
entrelinhas, construindo assim uma realidade textual particular. Dado o convite,
o espectador se diante da responsabilidade de manejar o processo vivo da
interpretação. Por outro lado, o texto também aceita seus próprios encargos, de
modo a impor certos limites às implicações o-escritas, “com a finalidade de
preveni-las de se tornarem muito embaçadas e enevoadas”. Mas conforme as
implicações vão sendo “trabalhadas pela imaginação do leitor” (Iser, 1990, p.
276), elas aumentam o universo da significação linguageira de modo
considerável.
57
Para os autores, a leitura de cunho psicológico, que em geral recai no
método psicanalítico, deve ser rejeitada em nome da análise fenomenológica.
Segundo Iser, por exemplo, as interpretações psicanalíticas convém apenas à
ilustração de “ideias predeterminadas respectivas ao inconsciente”, e portanto
não compõem análises que partem do objeto.
Deixando a leitura psicológica de lado, o pressuposto da estética da
recepção é investigar como as sentenças agem umas com as outras de
maneira a compor um “todo” com a imaginação do leitor. Articulada à
imaginação, a da memória se transforma em peça fundamental no trabalho de
leitura. “Isso é de especial importância nos textos literários”, acrescenta o autor,
“pelo fato de que eles não correspondem a nenhuma realidade objetiva para
fora deles mesmos” (1990, p. 276). As frases “individuais” o trabalham
juntas com o intuito de configurar uma ideia; elas “também formam uma
expectativa ao olhar”. Ao estabelecer relações entre “passado, presente e
futuro”, o leitor faz com que o texto/imagem “revele seu potencial de
multiplicidade de conexões”, o que se pode definir pelo movimento de
“retrospecção avançada”.
14
Afinal, não se trata de suprir a expectativa do leitor
com formas prontas, mas de estimular sua contínua e perpétua “modificação”
(Iser, 1990, p. 278).
Nas palavras de Iser,
O fato de que leitores completamente diferentes podem ser
diferentemente afetados pela “realidade” de um texto particular é uma
evidência bastante satisfatória do grau em que textos literários
transformam a leitura num processo criativo que vai além da mera
percepção do que está escrito. O texto literário ativa nossas faculdades
próprias, permitindo que recriemos o mundo que ele apresenta (p.
279).
14
Esta ideia se aproxima, surpreendentemente, da concepção freudiana de posterioridade ou
de “ação diferida”, como veremos no capítulo 3.
58
Desde que consideradas as condições particulares de cada leitor, as
possibilidades serão ilimitadas. Os hiatos podem ser completados das mais
variadas formas. Assim, cada recepção se torna um exercício inexaurível para
“realizar” a obra, que, quanto mais fragmentário o texto, maior o esforço do
espectador. O leitor “irá completar os intervalos à sua própria maneira, tal como
excluirá várias outras possibilidades” (Iser, 1990, p. 280). Fazer uma segunda
leitura de um texto é um exemplo inequívoco a esse respeito: a ação poderá
garantir a melhor apreensão do texto ou o bloqueio das especificidades que ele
antes ofereceu.
O leitor experimenta o livro como um espelho no qual se revelam
elementos de sua experiência pessoal, embora saiba que a realidade em que
vive é concretamente diferente daquela. A realidade literária, no entanto,
deverá impactá-lo dependendo da extensão com a qual “ele, por si mesmo,
complementa a parte não-escrita do texto”. De maneira indireta, a proposta de
Iser inclui o leitor em uma experiência psicanalítica na qual ele vem a se tornar,
tomadas as devidas proporções, um “analisado” do texto. “Por certo”, conclui,
“é apenas deixando para trás o mundo familiar de sua própria experiência que
o leitor pode participar verdadeiramente da aventura que o texto literário lhe
oferece” (1990, p. 282). Ora, é possível ativar o trabalho da imaginação
quando nos deparamos com uma ausência. Convidado a criar, a modo com o
qual o sujeito imagem aos vazios se aproximaria do mecanismo de
figurabilidade
engendrado na Interpretação dos Sonhos. Trata-se de um
processo de formação imagética que interessa à reflexão estética de hoje,
como veremos adiante.
A estética da recepção se afirma portanto como uma modalidade
singular de “hermenêutica literária”. Esquadrinhando as relações de tensão que
habitam entre o texto e sua atualidade, o método procura as estruturas de
sentido conforme mediadas pela condição histórica; esta sua consciência da
multideterminação denota um salutar não-reducionismo. É o que se pode ler na
introdução para Äesthetische Erfahrung und literarische Hermeneutik, texto
chave que faço questão de citar:
59
É de modo parcial que a necessidade estética é
manipulável, pois a produção e a reprodução da arte, mesmo sob as
condições da sociedade industrial, não consegue determinar a
recepção: a recepção da arte não é apenas um consumo passivo, mas
sim uma atividade estética, pendente da aprovação e da recusa, e, por
isso, em grande parte não sujeita ao planejamento mercadológico
15
(Jauss, 1979, p. 57).
Uma das necessidades principais da teoria da recepção estética é
produzir uma limpeza no campo ideológico. Nesse sentido, consiste em
apartar, do exercício de leitura, antigos condicionamentos morais, sejam de
roupagem kantiana ou luterana – no caso dos mais antigos –, ou sob os rótulos
mais recentes do new criticism e do formalismo russo. Assim como se pode
averiguar nesta passagem de Der äesthetische Genuss und die
Grunderfahrungen der Poiesis, Aisthesis,
A diferenciação do prazer estético realizou-se sob a
necessidade de sua justificação, ante as instâncias da filosofia e da
religião. Mas também a reflexão moderna sobre a conduta de prazer,
que era capaz de liberar a produção e a recepção da arte, permaneceu
por muito tempo subordinada a argumentação retórica e moralista
16
(Jauss, 1979b, p. 64).
Estaríamos em face de um “desejo latente” da teoria? Se o objetivo é
construir, a partir do ato de expectação, os alicerces de uma leitura que
ultrapassaria de uma vez as perspectivas icônica, marxista ou
estruturalista,
17
a estética da recepção vem a se destacar na ordem
15
Não custa sublinhar o fato de que as publicações de pensadores como Jauss, Iser e outros
se localizam temporalmente no contexto da divisão Alemã, e que portanto sofreram inúmeras
restrições dentro de um debate já bastante atravessado pelas ideologias, das quais a acusação
de ser “alienada” não deixaria de surgir naquele momento.
16
Aqui ele se remete ao sofista Górgias, que funda a tradição retórica do “prazer pela palavra”.
O discurso provoca um processo, tal como a “transformação do pathos arrebatador na
serenidade ética” (Lima, 1979, p. 67).
17
Não é objetivo deste trabalho construir uma história para a Estética da Recepção, no entanto
não é demais reconhecer que, segundo Luiz Costa Lima (1979, p. 11), existem algumas
60
“imanentista” do dia. O contexto histórico é o da segunda metade dos anos
1970, recordemos. De cada fase de hostilidade dirigida à arte, diriam os
autores, a experiência estética, em sua capacidade de resistência, emerge
sempre com formas novas e inesperadas, assim como as teorias que visam
interpretá-la. Esquivando-se das proibições impostas por um determinado
zeitigeist ou reinterpretando os cânones do passado, cabe aos artistas
descobrir novos meios de expressão, e, correlativamente, de leitura.
Chegamos a um ponto crucial: com efeito, pouco se comenta sobre o
assunto, mas é fato que os teóricos não deixariam de estabelecer um diálogo
com aquilo a que Jauss viria chamar de “estética psicanalítica”. Se a recepção
é uma práxis assim como a psicanálise, não se deve perder de vista que o
irredutível em ambos os casos são os limites da percepção. Portanto, se a arte
é feita para ser percepcionada, como defende G. C. Argan, não é menos
verdade que seja determinada, de algum modo, no interior do Unbewussten.
Este predicado –“inconsciente” não interessa à Escola de Constança, no
entanto. No caso, Jauss identificava a teoria psicanalítica da arte à arrastada
tradição aristotélica da “recepção como imitação”. Para ele, mais do que
colocar, no jogo das interpretações, uma anamnesis entre “técnica perfeita” e
“reconhecimento perceptivo”, a recepção dependeria de uma operação mental
que faz com que o espectador seja afetado pela “tessitura” do trabalho. Para
que a recepção venha a termo, é necessário que o receptor se identifique com
os heróis ou personagens em ação e, com isso, livre escoamento às suas
próprias paixões através de um gozo com a narrativa.
“O entendido de arte deseja identificar-se com o artista”, escrevia Ernst
Gombrich na década de 1950; ele “precisa ser puxado para dentro do círculo
encantado e partilhar seu segredo. Deve também tornar-se criativo sob a
orientação do artista” (1996, p. 36). Descarregando na obra um autêntico alívio
espiritual, o espectador reafirma o efeito catártico provocado pela arte. À arte
também restaria o papel de tela de projeções.
correspondências teóricas entre o grupo de Constança e o estruturalismo de Praga; também
não se deve esquecer que o grupo de Constança publicaria suas teses somente algum tempo
depois do grupo de Praga.
61
Ora, a catharsis aristotélica pode ser melhor compreendida a partir do
que o prazer estético exerce na conjuntura da curiosidade agostiniana: no
pensamento de Santo Agostinho, o olho, enquanto órgão de sentido, nunca
deixa de carregar os riscos de sucumbir ao “gozo sexual” incitado pela beleza.
A constatação de que existe um tipo específico de prazer na experiência
estética exigiria, em contrapartida, uma força máxima de controle espiritual; por
conseguinte, serão encontrados nas formas artísticas resquícios de uma
atração que corresponderiam ao fruitio (ou seja, tudo aquilo que para Santo
Agostinho não é uti, utilizável), um desejo de saber quase “genético”. Nesse
sentido, o prazer com a obra seria um fenômeno influenciado pelos
mecanismos de identificação e empatia (Einfühlung), aos quais nos vemos
forçados a retornar.
A catharsis, enquanto uma das funções fundamentais da
experiência estética, explica (...) porque a transmissão de normas
sociais pela exemplaridade da arte permite, diante do imperativo
jurídico e da coerção institucional, dispor-se de uma margem de
liberdade e, ao mesmo tempo, de se identificar com um modelo: o
prazer catártico é tanto liberação de alguma coisa quanto para
qualquer coisa. Por certo, a identificação não é por natureza um
fenômeno estético. Mas os modelos heroicos, religiosos ou éticos
podem ganham muito em poder sugestivo se a identificação se opera
através da atitude estética. O prazer catártico faz, então para citar
Freud –, a função de atrativo (Verlockungsprämie) e pode induzir o
leitor ou o espectador a assumir muito mais facilmente normas de
comportamento e a se solidarizar com um herói, em suas façanhas e
em seus sofrimentos (Jauss, 1991b, ps. 62-3)
Em princípio, no entanto, a catarse seria apenas um dentre os
elementos que compõem a reflexão freudiana (para não dizer psicanalítica)
sobre a arte. Vejamos mais de perto: na história da psicanálise, por exemplo,
representa o início do atendimento. No entanto Freud abandonara o uso clínico
da hipnose e com isso, a utilização da catarse logo nos primeiros
atendimentos após o período charcotiano-breueriano. “Recordar e abreacionar
62
eram, naquele tempo”, escreve de próprio punho, “as metas que se procurava
alcançar com o auxílio do estado hipnótico” (Freud, 1996[1914], p. 67). Com o
procedimento, esperava-se que as resistências fossem abolidas com mais
facilidade. O problema é que o alívio imediato da descarga continha, como
contrapartida, uma tendência ao retorno: os sintomas aparentemente
desapareciam, mas voltavam a se manifestar passado um tempo de latência. A
conclusão a que Freud é levado aparenta um tom de contradição, conquanto
tenha se tornado essencial à prática clínica: é impossível fazer análise sem
alguma força de resistência.
É muito comum ver não-psicanalistas acusarem de “psicologistas” as
saídas culturais do freudismo. Ainda que Jauss reconheça que as conquistas
do campo freudiano estão além da pura vontade de “cura”, ele atribui à
psicanálise a ação de sempre retificar sua teoria pelas vias da escuta clínica,
18
o que demonstraria sua insuficiência em relação à contemporaneidade das
obras. Com esses procedimentos de confirmação, a psicanálise negaria, a
priori, todas as conquistas da estética da recepção, criada para interpretar a
arte a partir de uma conjuntura contextual. Para Jauss, é como se a leitura
psicanalítica se resumisse à confirmação tardia de que o efeito da obra é
sempre catártico e nada mais.
No meu ponto de vista, esse argumento impede que os teóricos
ultrapassem as barreiras clínicas, e assim demonstram seu desconhecimento
quanto às questões metapsicológicas do dispositivo freudiano. E nem seria o
caso de as conhecerem. Apesar disso, quando insinuam que a dimensão
intersubjetiva da experiência com a arte estaria ausente na estética
psicanalítica, justamente porque se trata de uma “impossível comunicação”,
talvez os autores se esqueçam que a psicanálise que é uma teoria elaborada a
partir da clínica, de modo que privilegia o trabalho de inconsciente a
inconsciente. Ora, a psicanálise sabe que é possível apreender o mundo no
seu estrato pré-consciente e pré-verbal. A rigor, a práxis analítica fornece
provas de que não haveria “incomunicabilidade”, portanto. A possibilidade de
18
Essa ressalva se aproxima em muito do que pensava Karl Krauss a respeito da psicanálise
como um todo: Krauss acusava a psicanálise de “curar as doenças que ela mesma inventava”.
No entanto, a confirmação da teoria pela clínica é um traço inexorável à psicanálise, sendo ela
aplicada ou não; sem isso, perde-se de vista sua ética.
63
se pensar a existência de um inconsciente não significa atribuir uma carga
fechada de determinações ao comportamento individual. Segundo Freud, o
aparelho psíquico só funciona porque se insere numa intersubjetividade.
Explicando de maneira mais esquemática: segundo Jauss, se de um
lado da corda temos Freud, do outro se encontra a estética marxista que
“manteve tão decididamente que o caráter do prazer estético está relacionado
com o futuro” quanto a estética psicanalítica teria insistido no oposto, ou seja,
“que o prazer estético se relaciona com o passado, com o retorno do
recalcado” (Jauss, 1979b, p. 70). Nessas circunstâncias, é como se a
psicanálise da recepção se limitasse a condições genealógicas que fatalmente
se esgotam no Complexo de Édipo.
Mas não parece ser esse o caso, e a história recente das análises
direcionadas a obras de arte não permite associações como essas. Freud, de
sua parte, não analisa apenas o Hamlet, cujo conteúdo vem, de fato, quase
pronto para uma psicanálise; no conjunto da obra de Shakespeare, ele também
se concentrou, por exemplo, no Mercador de Veneza, e isso conforme uma
investigação bastante minuciosa acerca da psicologia do espectador, assim
como se pode notar logo da primeira à última linha de “O motivo da eleição do
cofre” (Freud, 1996[1913], p. 303).
A exemplo do que fizeram os psicólogos da escola americana, os
colaboradores da estética da recepção também se debruçaram sobre os
fenômenos da fantasia e da ilusão, contexto em que Sartre se tornaria
personagem importante. De acordo com Iser, se a recepção pressupõe
relações dialéticas entre sujeito e objeto, isso também implica reconhecer que
se encontra um “prazer de si no prazer do outro” conforme elaborado pelo
filósofo francês. Ora, a ilusão é, com efeito, o seu exercício: o princípio da
identificação ao herói funciona como uma “necessidade antropológica” capaz
de assegurar um prazer que, combinado ao alívio por não ser o próprio sujeito
sujeito às ações da narrativa, distancia e protege o receptor. Ao se deparar
com a obra, o indivíduo acessa certas quantidades de investimento psíquico
ligadas ao conteúdo fantasístico, garantindo-lhe uma autoproteção contra a
dor. Consequentemente, a capa protetora possibilita um “gozo de desrecalque”
64
frente à cena contemplada, pois ela seria vivida, no presente momento, em seu
mundo interno.
19
O prazer de si no outro prevê a possibilidade de se participar
ao mesmo tempo de dentro e de fora da cena. Uma vez que o psiquismo
consiga se lançar, pela via das projeções, ao âmago da alteridade dos
personagens o herói, o vilão, a donzela –, o espectador conseguirá vivenciar
a experiência estética como fonte de satisfação.
Com isso, Jauss consegue enxergar algo mais que uma simples
retomada da teoria aristotélica, concluindo que “a teoria da Freud sobre o
autoprazer estético no prazer no outro não se esgota em uma reprise
psicanalítica da catarse”. Este ponto é, com efeito, crucial: a reflexão avança na
medida em que o esteta percebe um “princípio de prazer” que é subjacente à
recepção. Pressentindo a insuficiência da proposta de Aristóteles, Jauss
considera que o “que a doutrina tradicional do prazer catártico incluía é
atualizado por Freud e, ao mesmo tempo, superado pela nova descoberta,
segundo a qual, ao puro ganho de prazer estético na economia psíquica, se
acrescenta uma função mais ampla a de um prazer primário ou de uma
‘bonificação de incentivo’ (Verlockungsprämie) para a ‘liberação de um maior
prazer advindo de fontes mais profundas” (1979b, p. 79).
De sua parte, no entanto, Freud jamais negara a presença da ilusão na
experiência com a arte, e os limites da compreensão psicanalítica de Iser e
Jauss não escaparam a Luiz Costa Lima, tal como se depreende em A
literatura e o leitor: textos de estética da recepção, coletânea inaugural
publicada no Brasil. “Ora”, argumenta em favor do médico vienense, diante de
um idealismo disfarçado nos textos dos teóricos de Constança, “a
reconsideração do Freud mais sério parece inestimável para uma teoria da
literatura que não mais se delicie com a subversão do poético”. Mas é isto o
que se deixa de lado. Iser, por exemplo, esquematiza a ponto de manifestar
uma vontade de estipular certos “tipos ideais” de leitor.
19
Essas considerações se articulam ao que Germain Bazin escreveria no ensaio dedicado à
psicanálise dentro de História da história da arte: “Para Freud, a arte é o produto do desejo
(libido), não por um jorro direto, mas pelo caminho tortuoso da compensação a um recalque
desse desejo imposto pela sociedade que se interpõe entre o criador e sua obra. A alma se
manifesta nessa água turva da neurose, da qual, entretanto, Freud, que é um romântico,
dispensa certos gênios, admitidos a abeberar-se da fonte pura”. Bazin rejeita, em outros
termos, a estética psicanalítica: “Recorrer automaticamente à sexualidade, como o faz Freud,
para encontrar as fontes da criação é afastar-se de suas verdadeiras causas” (1989, p. 270-1).
65
Por outro lado, Iser chega perto de perceber a dimensão do vazio que
qualquer texto e em especial, os escritos ficcionais tem por mérito trazer à
tona, vazio que, em outras palavras, pode ser traduzido pela influência que os
processos inconscientes exercem tanto na leitura quanto na produção de arte.
E o que mais pode fazer um psicanalista, senão revelar os hiatos do discurso
de seu paciente? “Isso para não falar de uma teoria que se querendo do
ficcional – i.e., que não o tome apenas como um elemento a integrar na
historiografia social, não se limite ao circuito fechado de experiência e
análise estéticas” (Lima, 1979, p. 36). Se o texto enquanto Gestalt oferece ou
motiva certas projeções e identificações do leitor, e se esse espectador deve se
comportar sempre como um estrangeiro diante da obra, então é inerente ao
objeto “concentrar-se nos vazios comuns a todas as relações humanas,
explorá-los, torná-los sistemáticos”. Se proceder deste modo, é provável que
espectador venha a descobrir o “papel que o inconsciente desempenha na
caracterização dos textos ficcionais como estratégias de articulação de vazios”
(ps. 24-36).
Em relação à psicanálise do intérprete, as ideias de Iser e Jauss
parecem se concentrar, mais especificamente, em “Escritores criativos e
devaneio”, texto no qual Freud se refere ao poeta como um ser dotado da
habilidade de seduzir o outro através de uma “vontade puramente formal, quer
dizer, estética, que nos brinda com a figuração de suas fantasias(1996[1908],
p. 135, grifos meus; Gay, 1989, p. 288). Segundo ele, a vontade formal induz
ao desprendimento cada vez maior de cargas de prazer; de acordo com o
Freud daquele momento, a forma é o lugar onde residem as experiências
vividas como prêmio de sedução ou de prazer prévio. Mais uma vez, a teoria
conduz à antiga tese da liberação catártica, sobretudo quando lemos, numa
passagem de Freud, que
todo prazer estético que o poeta nos oferece leva em conta o caráter
desse prazer prévio, e que o gozo genuíno da obra poética advém da
liberação de tensões no interior de nossa alma. Acaso contribui a este
resultado, ainda que em menor medida, que o poeta nos habilite a
66
gozar na sucessão sem culpa ou vergonha de nossas próprias
fantasias (1996[1908], p. 135).
Os desejos insatisfeitos são expressão e motor pulsional das fantasias, e
estas, seguindo esta lógica, são retificações de um desejo que permanece
insatisfeito; em dado momento, o prazer estético oportuniza uma nova
possibilidade de satisfação àquele desejo reprimido. Neste Freud, a
temporalidade da satisfação não ocorre de maneira linear: as catexias saem do
presente e recorrem ao passado, para então se lançarem ao futuro. A partir
de uma vivência atual, o poeta produziria uma regressão a lembranças
anteriores (infantis), levando-as a se projetar em um futuro mais próximo de
realização e, neste caso, pela via formal. A situação atual faz com que se
anime uma anterior; a circunstância faz aliança como desejo que, por sua vez,
retroalimenta a invenção poética. o desejo, como se sabe, carrega marcas
passadas e procura novos objetos de realização.
Retornando às intervenções de Lyotard, delineadas no início deste
trabalho, podemos compreender o quanto a dimensão catártica, ainda que
inseparável da experiência estética, não representa apenas um obstáculo ao
entendimento da recepção psicanalítica. A catarse forneceria, por exemplo,
pistas adequadas para a interpretação de poéticas modernas. Uma vez que se
encontra, dentre suas principais características, uma abertura do olhar “sem
imposições[,] em que poderiam deixar-se ver as operações que formam as
figuras mais profundas”, ela permitiria surgir uma expressão que “condensa”,
por assim dizer, o espírito da modernidade. Com isso, o próprio papel da
tragédia edípica deixa de ser um mero exercício de ilustração ou de aplicação,
para assumir uma posição que designaria relações complexas de encontro e
reconhecimento no interior do dispositivo freudiano.
Conforme a história de Édipo vai sendo transformada em “romance das
origens”, romance ao qual estaríamos todos psicologicamente assujeitados,
Marthe Robert
considera que
67
esse romance das origens não revela apenas as origens psíquicas do
gênero aquém dos acidentes individuais e históricos de onde brota
incessantemente uma obra singular: ele é o próprio gênero com suas
virtualidades inesgotáveis e seu infantilismo congênito, o gênero falso,
frívolo, grandioso, mesquinho, subversivo e maledicente de que todo
homem é efetivamente filho (...), mas que devolve também a todo
homem algo de sua primeira paixão e sua primeira verdade (2007, p.
49).
André Green discutiu implicações como essas, embora com resultados
contrários, em Un œil en trop (1981): ao analisar minuciosamente a função que
Édipo ganha na teoria freudiana, Green entendia que ali não se pode
encontrar a reconciliação dos polos psíquicos opostos. O que restaria de Édipo,
afinal?, pergunta-se: uma historieta que ri do edifício psicanalítico? Não, de
modo algum. Diante da peça de Sófocles, o espectador conseguiria vislumbrar
somente o desconhecimento. A vulgata que por vezes se associa ao Édipo
freudiano ganha força quando sua estrutura psíquica se
descontextualizada, retirada de sua função subjetivante. Por ora,
compreendemos que o Édipo Rei traduz uma expressão trágica porque a obra
põe em jogo uma determinada verdade (inconsciente), que é a das
equivalências simbólicas entre a cena trágica e a cena psicanalítica. “A dupla
norma que obriga de um lado ao sujeito a praticar a livre associação, e de outro
ao analista a prestar aos dizeres do paciente uma ‘atenção igualmente
flutuante’”, lê-se no ensaio de Lyotard, “não equivale a ter aberta, livre de
obrigações secundárias, uma região de onde as formas figurais poderão
manifestar sua presença?” E assim finaliza: “Uma vez aberta esta área, a
diferença entre a arte e a análise não é, quiçá, mais ampla que a que separa o
desejo de ver daquele de dizê-lo” (1975, p. 77).
Voltando ao problema da recepção, talvez o entendimento do prazer
estético como retorno do recalcado seja a resposta mais coerente que a
estética da recepção pôde encontrar em sua leitura de Freud. Se se sublinha,
no seguinte trecho: “desde que se entenda que este prazer é determinado pela
distância interior do eu, que se faz estranho a si próprio, e a superação
(Aufhebung) desta distância em uma catarse que brota do prazer do trabalho e
68
da relembrança” (Jauss, 1979b, p. 79), os significados fortes de trabalho e
relembrança, pode-se compreender com maior nitidez as conclusões a que
chegaram. Trabalho e lembrança são, com efeito, operações psíquicas
privilegiadas pela atitude receptiva analítica. Além disso o que justificaria, por
si só, a posição dos teóricos de Constança –, muitos psicanalistas pressupõem
que o recalcamento seja o dínamo privilegiado de produção de imagens, aqui
incluídas as que são consideradas artísticas.
Para Wolfgang Iser, tratando-se ou não de um retorno do recalcado, o
que está em jogo é a figuração (picturing) pela qual a imaginação constrói
imagens no decorrer da leitura. Segundo ele, esta figuração é apenas “uma das
atividades por meio das quais formamos a ‘gestalt’ do texto literário” (1990, p.
283). Como se sabe, toda forma necessita de um mínimo de organização para
se tornar perceptível; porém, essa gestalt não indica o verdadeiro sentido do
texto, pois, “na melhor das hipóteses”, escreve Iser, ela é somente “uma
compreensão configurativa”. “Com o texto literário, esta compreensão é
inseparável das expectativas do leitor”, e, assim como existem expectativas,
tem-se “uma das mais potentes armas do repertório do escritor a ilusão”
(1990, p. 284).
Sua árdua procura por verdades cognitivas, somada à vontade de impor
padrões textuais inteligíveis que determinam a leitura, impede que a
psicanálise tenha aí um lugar. Neste método de interpretação, “com certeza
discrepâncias surgirão. Elas são o lado reverso da moeda interpretativa, um
produto involuntário do processo que cria discrepâncias ao tentar evitá-las”
(Iser, 1990, p. 290). Ora, esta confusão que acomete o leitor é mesmo
indispensável a qualquer atividade de leitura, já que provoca o anseio de refletir
sobre experienciado, sendo talvez esta “a principal função da crítica literária”.
Auxiliando “tornar conscientes aqueles aspectos do texto que de outro modo
permaneceriam subconscientes”, a reflexão estética “satisfaz (ou ajuda a
satisfazer) nosso desejo de falar sobre o que foi lido” (p. 290). Assim, se esta
“urgência” se remete a um “evento vivo” (p. 290) e portanto sempre aberto,
então ela acaba obrigando o leitor a procurar por mais e mais consistência, na
tentativa de compreender aquilo que, durante a leitura, não lhe soa familiar.
69
Em suma, de acordo com Iser, ler significa suspender “as ideias a as
atitudes que moldam nossa própria personalidade”. No entanto, ao fazê-lo o
sujeito procura absorver esse não-familiar, utilizando-se do mecanismo de
identificação, deixando borrar as fronteiras entre o eu e o outro:
Geralmente o termo identificação é usado como se fosse uma
explanação, embora seja de fato nada mais que uma descrição. O que
é normalmente designado por “identificação” é o estabelecimento de
afinidades entre um e outro um terreno familiar no qual nos sentimos
aptos a experimentar o não-familiar. A meta do autor, assim, é provocar
a experiência e, sobretudo, uma atitude quanto a ela.
Consequentemente, a identificação” não é um fim em si mesmo, mas
uma estratégia pela qual o autor estimula atitudes no leitor (Iser, 1990,
p. 291)
Identificação, como vimos até o momento, é um conceito muito caro à
psicanálise. Na doutrina de Lacan, por exemplo, ele chega a depender da
alienação primordial com a qual o humano edifica seu imaginário. Se o
princípio de prazer se regula apenas quando evita o desprazer, o alívio pode
surgir de satisfações que vêm tanto de fora para dentro quanto de dentro para
fora, de acordo com o funcionamento dialético e inseparável dos mecanismos
de identificação e projeção.
Na esteira de Georges Pulet, Iser considera que o processo de se
identificar, puramente descritivo, depende de dois elementos: (1) “a história de
vida do autor deve ser excluída do trabalho” assim como (2) “a disposição
individual do leitor” deveria sê-lo “do ato de ler” (1990, p. 292-3). Assim sendo,
o texto deve ser considerado como uma consciência em si, de tal modo que os
pensamentos do autor acabam tomando um lugar subjetivo no leitor. Nessa
perspectiva, a divisão entre texto e audiência não será mais externa, vindo a se
localizar no interior da vida mental do espectador. “Quando lemos”, completa o
filósofo, “ocorre uma divisão artificial de nossa personalidade, porque tomamos
como tema, para nós, algo que na verdade não somos” (1990, p. 293).
70
A questão não para por aí. É impossível dizer que a interpretação que os
teóricos de Constança fizeram de Freud seja outro tipo de redução: Iser, por
exemplo, sabe o quanto a experiência de recepção está intimamente ligada à
capacidade que o ser humano tem de desejar, assim como o ato de recepção
demanda todo um circuito de implicações subjetivas. Ao “ter que pensar a
respeito de algo que nunca experienciamos”, escreve a este respeito, “não
significa que se está apenas numa posição de concebê-lo ou mesmo de
entendê-lo”; segundo Iser, “isso também significa que tais atos de concepção
são possíveis e bem-sucedidos no nível em que conduzem a algo que é
formulado em nós”. Em outras palavras, o trabalho de leitura exige que o leitor
reformule sua própria capacidade de decifração, pois ali “trazemos à tona um
elemento de nosso ser em relação ao qual o nos encontramos diretamente
conscientes (1990, p. 294, grifos meus). Tal como se numa (boa)
psicanálise, as possibilidades de transformação de si não podem ser excluídas
do horizonte de realização da ação receptiva.
Vejamos, portanto, certos modos por meio dos quais elas poderiam
atualmente se manifestar.
71
Capítulo 2
Do extraclínico à implicação
Psicanálise, arte da escuta
Ainda que a aplicação tenha sido um método criado no epicentro das
reflexões sociais e estéticas de Freud, existe, noutra vertente do próprio
pensamento freudiano, uma outra modalidade de relação entre espectador e
obra. Também por ele construída, esta leitura introduz “cortes” no arsenal
interpretativo da “psicanálise da arte” tradicional. Com efeito, a Freud não
passaria despercebida a existência de uma psicologia específica do público de
arte. Com respeito aos fundamentos, seria mais correto dizer que aquela teoria
que visa aplicar o vocabulário analítico ao fenômeno estético se remete à
necessidade de construir uma psicanálise da criação artística, isto é, uma
psicanálise que não deseja se envolver com os problemas da recepção estética
propriamente dita (Frayze-Pereira, 2005). Consanguínea da leitura biográfica,
seus procedimentos acabam tendendo inevitavelmente à psicopatologia. Ainda
assim, é preciso reconhecer que esta psicologia, seja do artista ou de
“personagens-protagonistas”, inaugura um cenário propício ao surgimento de
uma estética psicanalítica; as conclusões alcançadas por Freud acerca da
figura do Dichter em “Escritores criativos e devaneio primeiro texto desse
gênero – provam-no indubitavelmente.
Com isso, o conceito de sublimação, entendido como mecanismo de
defesa, acabaria servindo, lógica e legitimadamente, de fundamento epistêmico
ao método aplicado: ao compreenderem a sublimação como formação reativa,
por exemplo, as correntes que discutem a criação enquanto fenômeno
puramente egoico acabam recaindo numa tentativa de domesticar os
processos advindos do id, o que faz diminuir o campo de atuação do conceito
de sublimação. A ego-psychology é uma delas, como pudemos antes observar.
Entretanto, desde “O Eu e o Isso” sabemos que esta entidade chamada Eu é
também em grande parte inconsciente. Desejando purificar o objeto, esta
modalidade do sublimar associada à formação reativa suprime todo o poder de
72
ruptura que o fenômeno artístico oferece ao psíquico. Claro está que quaisquer
psicologias da recepção não seriam obrigatoriamente imunes a este modo de
pensar, como mencionei há pouco; mas o que acontece na obra freudiana é
exatamente o contrário: despreocupada com a feição mais “psicologista” da
primeira abordagem, isto é, aquela inaugurada com o texto sobre Leonardo da
Vinci, a segunda leitura, cujas decorrências pretendo apresentar nas linhas
subsequentes, se refere a um Freud em posição de espectador de arte e
reconhece sua espinha dorsal no ensaio sobre o “Moisés de Michelangelo”, no
qual Freud conduzirá uma leitura imprevista e à beira do poético.
Dar forma a uma reflexão dentro do espaço analítico e a partir das
reações do espectador: não se deve encará-lo como coisa qualquer. A pedra
angular da recepção estética freudiana residiria aí, uma vez que, sem ela, é
bem provável que o chegássemos a suspeitar, em termos de funcionamento
psicológico, da importância de um conceito como Complexo de Édipo, ou a
significação inconsciente dos sonhos, da sexualidade infantil, enfim, as
descobertas mais caras à psicanálise. A própria análise da peça de Sófocles
teria seguido, curiosamente, um caminho semelhante, como afirma a esse
respeito Renato Mezan: “Freud evoca primeiramente a emoção sentida pelo
espectador ao assisti-la, atribuindo-a à revivescência de um sentimento
efetivamente experimentado” (1985, p. 198, grifos meus). Em outras palavras,
ao importar a imagem de Édipo para o interior do arcabouço conceitual de sua
ciência, Freud teria encontrado um meio para representar a relação primordial
com a função materna, bem como as identificações seguintes que se edificam
na relação com a função paterna, chegando até o desenlace do complexo e à
entrada do sujeito no Complexo de Castração etc.
Sarah Kofman chega a assumir que este modus operandi a
compreensão, no sujeito, do efeito criado pela obra – tenha se tornado a
reflexão mais utilizada por Freud em suas meditações sobre o artístico,
raciocínio que com efeito deveria perdurar, segundo ela, em decorrência da
pobreza teórica advinda das investigações instrumentais, desejosas de provar
a capacidade da arte para testemunhar em favor do psicanalista. Assim, sem
querer ou sem saber, Freud, médico vienense que desejava ser homem de
letras, viria a criar sua própria estética. Seja quando trata do ponto de vista do
73
espectador e dali retira seus comentários sobre a obra; seja quando a relação é
vetorizada em sujeito–obra de arte, ou quando parte do momento em que o
trabalho foi consolidado pela mão do artista e se destina ao observador, o
psicanalista assumiria uma posição privilegiada ao compartilhar seu saber
crítico. Lugar que, além do mais, evidentemente não é o do artista ou o do
esteta.
O que chama atenção nesse contexto é que, em princípio, o ensaio
chegou a ser “recusado” por Freud: ele abdicaria de assiná-lo na ocasião de
sua primeira publicação, conforme declara James Strachey em seu prefácio
para a Standard Edition, o que de fato Freud viria a fazer dez anos depois.
Na oportunidade, a autoria do manuscrito ficara a cargo “de ***”. Portanto,
poderíamos especular que houve, em sentido propriamente inconsciente, uma
certa reticência de Freud em relação ao que a experiência estética conseguiria
provocar ao campo psicanalítico? Qual o sentido latente desta hesitação?
Mesmo “no auge de sua busca de expansão do poder explicativo da
psicanálise”, declara Nelson da Silva Junior (2007, p. 16), “Freud reserva
sempre um lugar privilegiado ao artista enquanto um arauto, um precursor
genial das intuições analíticas, estas conquistadas à custa de suor e
lágrimas. Diante deste duplo do psicanalista”, acrescenta a esse respeito, “o
Freud-conquistador acaba por depor as armas”. É, com efeito, o que viria a
confessar no final dos anos 1920, em uma passagem bastante conhecida de
“Dostoiévski e o parricídio”. As correspondências trocadas entre ele e Arthur
Schnitzler revelam a verdadeira ambivalência que Freud demonstrava no
caso, admiração e amargura, conforme a opinião de Peter Gay – em relação ao
fenômeno artístico. O prefácio destinado ao livro que Marie Bonaparte
escrevera sobre Allan Poe é uma excelente ilustração desta ambiguidade. Vale
a pena citá-lo:
Neste livro, minha amiga e discípula Marie Bonaparte dirigiu a
luz da psicanálise sobre a vida e a obra de um grande poeta de nio
patológico. Graças ao seu trabalho interpretativo se compreende agora
em que medida algumas das características de sua obra estão
condicionadas pelas peculiaridades do homem, no entanto se averigua
também que esta última é a sedimentação de intensas ligações
74
afetivas e vivências dolorosas de sua primeira juventude. Tais
indagações não estão destinadas a explicar o gênio do poeta, mas
mostram os motivos que o despertaram e o material que o destino lhe
ofereceu. Existe um fascínio especial para estudar as leis da vida
anímica dos seres humanos em indivíduos notáveis (Freud,
1996[1933], p. 229).
Ainda assim, as sequelas desta sua reflexão extensa ganharam um
impacto de enorme valor, de modo a configurar novos paradigmas para olhar a
obra de arte. Os ataques que o acusavam de reduzir a leitura ao conteúdo,
feitos em grande medida pela crítica de arte profissional, não passaram
despercebidos pela classe psicanalítica. O perigo de que as análises se
tornassem improdutivas foi observado pelo próprio Ernst Kris, que alertara
sobre possíveis equívocos. “A análise clínica dos artistas criativos sugere que a
experiência de vida do artista é, às vezes, a fonte de sua visão apenas num
sentido limitado” lê-se nesta passagem acertada –, “que sua capacidade de
imaginar conflitos pode ultrapassar consideravelmente o campo de sua
experiência pessoal, ou, para colocar de modo mais preciso, que pelo menos
alguns artistas possuem o dom especial de generalizar a partir de qualquer que
tenha sido sua experiência pessoal” (1968, p. 288).
A acusação de reducionismo serviu no entanto como exigência para
seguir adiante. Vejamos como.
2.1) Articulações francófonas de agora
O que ainda restaria acerca da discussão sobre a psicanálise aplicada?
Seria possível articular interpretações que escapao ao todo, de modo a se
inaugurar um campo epistêmico próprio e à maneira de trabalhar de Freud?
Para Catherine Desprats-Pequignot, irredutibilidade ao inconsciente e
autorreferenciamento da leitura pela clínica deveriam ser os motes de uma
75
psicanálise que deseja sair das cercanias da aplicação; não é novidade
reconhecer que a espinha dorsal da psicanálise é a sua “prática clínica”, como
vimos com o próprio Charles Hanly no capítulo anterior. A clínica, no entanto,
não pode ser restringida ao cotidiano de consultório. O espaço analítico merece
ser compreendido segundo fronteiras mais ampliadas: praticar a psicanálise
significaria, grosso modo, colocar à prova as descobertas de Freud, e isso
dentro ou fora da sessão, mas desde que havendo transferência.
Como se pode ler logo nos primeiros argumentos de Desprats-Pequignot
em “Champs de l’art Champs de psychanalyse”, “a psicanálise não tem nada
a dizer sobre a arte ou da arte no campo que concerne somente a ela” (1993,
p. 210). Os perigos da aplicação recaem sobre a psicanálise na medida em que
os procedimentos de leitura se armem de uma grade interpretativa fechada de
antemão. Procurando, nesse sentido, determinações de verdade que residem
na obra ou no autor, o intérprete mantém a leitura na superfície, e assim
acabda minando toda a sua força de intervenção cultural. Fora do enquadre
clínico, acrescenta a psicanalista, pode-se operar apenas com o método da
psicanálise, quer dizer, o artifício que sai à procura de pistas clínicas sem levar
em conta a relevância do vínculo transferencial, ainda que na melhor das
ocasiões este método esteja ancorado numa interpretação que questione e
ajude “a pensar e elaborar em psicanálise” (Desprats-Pequignot, 2008, p. 23).
No entanto, nestes casos e somente nestes, justifica-se uma marcha
progressiva de avanços teórico-clínicos, o contrário do que ocorre com as
leituras selvagens, de pouquíssimo interesse.
Quando se questiona do interior de seu próprio domínio, a psicanálise
atingiria o ponto máximo de aptidão para produzir ampliações no pensamento
crítico. É o caso de Lacan, de acordo com Desprats-Pequignot, que enxergara
em Hamlet a possibilidade de avançar na questão do desejo, ou, sobretudo, em
Freud, quando percebera, em seu estudo sobre da Vinci, a necessidade de
introduzir as problemáticas do narcisismo e da sublimação ou ainda quando
propôs a elucidação do caráter obsessivo da personagem principal na Gradiva
de Jensen. A arte faz avançar a clínica, portanto. O confronto com o objeto
artístico tem a vantagem de emancipar a práxis psicanalítica. Simples
conclusão: basta remontar aos textos estéticos de Freud. Na medida em que a
76
sirva como matéria a pensar, a experiência estética elucidaria processos
psíquicos envolvidos tanto na criação quanto na recepção, ou seja, tudo aquilo
que em matéria de arte nos anima e nos interessa.
Recentemente, Desprats-Pequignot chega a afirmar que
Falar em psicanálise por meio do viés artístico, de uma
realização literária, pictórica ou outra, é então falar, ao passar pelo
campo da arte, de algo que concerne, antes de qualquer coisa, seu
próprio campo e seu próprio questionamento. É refletir sobre um
procedimento, uma obra, e os solicitar na medida em que possam
oferecer uma visão e ser ferramenta para que sejam tomados pelas
interrogações suscitadas pela clínica e reconsideradas as hipóteses,
mas também reencontrar formas de solução que nos podem dar
matéria para novos avanços. Por meio do questionamento da arte, tal
como em outros domínios, em psicanálise consegue-se a elaboração
de um conjunto de problemas e a reflexão sobre seu objeto, não se
transportando-exportando do campo da arte ou de outros domínios
(2008, p. 21-2).
Argumento diante do qual Charles Hanly (1993) dificilmente concordaria,
para não abandonarmos a linha de raciocício. Segundo o exame metodológico
do autor canadense, a teoria não consegue se sustentar a partir de conquistas
extemporâneas, quer dizer, no nosso caso, a psicanálise não poderia garantir
avanços a partir dos quais a arte tenha ganhado um papel meramente
ilustrativo, funcionando como canal de percepção a realidades psicológicas.
Esta censura, no entanto, não cabe, a meu ver, à reflexão de Desprats-
Pequignot. Se a irredutibilidade ao inconsciente é um fato inconteste, por que
não levá-la, então, à interpretação da experiência estética? Cercear as
descobertas apenas no interior do campo “exclusivamente” psicanalítico, isto é,
o da escuta clínica isso bastaria? Ora, pode-se concluir com Desprats-
Pequignot que existe uma condição de reversibilidade na relação entre Arte e
Psicanálise, sem a qual se impedem todas as análises: se é possível pensar
que certos artistas produzem psicanálise – exemplo: quando Freud reconheceu
seu duplo em Arthur Schnitzler, escritor que teria chegado a “verdades
77
psicanalíticas” embora nunca tenha passado pela prática da análise por que
não se poderia pensar o inverso, a psicanálise oferecendo respostas para a
esfera do artístico?
É, evidentemente, o que aconteceu a algumas escolas modernistas que
surgiram ora a partir do surrealismo francês ora a partir do expressionismo
alemão.
1
Existem casos ainda mais recentes como os de Rachel Whitehead,
artista contemporânea que estabelece um diálogo com a teoria de Lacan, ou o
de Ítalo Svevo, declarado em A Consciência de Zeno, seu romance mais
significativo; haveria, ainda, o exemplo mais velado de Lolita, romance em que
Nabokov explora todas as consequências de uma conjuntura edípica, bem
como o acontecimento das Imagens do Inconsciente, pesquisadas no Brasil
pela Dra. Nise da Silveira e interpretadas por Mario Pedrosa. Tem-se, ainda, O
quarto do filho, filme de Nanni Moretti; as vídeo-instalações de Sarah Lucas ou
Glenn Ligon, com Beyond the Pleasure Principle e The Orange and Blue
Feelings, respectivamente... a lista é interminável.
Nesse sentido, vale a indicação de André Green: “seria bom refletir
quanto ao efeito de duplo sentido da relação entre literatura e psicanálise:
efeito da psicanálise sobre a literatura e efeito da literatura sobre a psicanálise”.
É possível generalizar a afirmação a todo o campo da arte, evidentemente. De
Freud a Lacan, acrescenta o psicanalista, “há uma marca do literário sobre a
obra de pensamento psicanalítico, um quadro formal da linguagem e da
escritura, que, por si sós, justificariam um estudo nesse sentido” (Green, 1994,
p. 12).
Retomemos o caráter dialético da reflexão trazida por Desprats-
Pequignot. Quando um artista, pensa ela, um pintor, digamos, compõe a
pincelada de uma determinada forma x, o que na verdade está fazendo é uma
problematização de seu próprio campo, e é por isso que o criador se implica,
afinal, com a inauguração de diferentes modos de olhar a arte e o mundo o
que por outro lado incluiria, no espelho reflexo, a criação de modos diferentes
1
Cabe, antes de mais nada, esclarecer um ponto: ao longo deste trabalho, não pretendo
mostrar como a presença da psicanálise se encontra nas obras ou nos programas de arte, mas
almejo, em especial, demonstrá-lo no próprio trabalho da crítica de arte contemporânea, algo
que pretendi adiantar há pouco, por meio da citação da Estética da Recepção de Jauss e
colaboradores.
78
em que o mundo nos olha de volta, de acordo com suas próprias palavras. Este
posicionamento faz com que sua psicanálise se aproxime da teoria da arte por
meio de uma provável leitura de Merleau-Ponty, autor cuja filosofia subjaz ao
pensamento de Frayze-Pereira, chegando a estar muito próxima das ideias
expostas por Georges Didi-Huberman (1998) historiador e teórico da arte a
ser explorado nos capítulos seguintes.
Em particular, contudo, um argumento desta ordem contribui
especificicamente à compreensão da psicanálise extraclínica, sob um modelo
que não se arvora à simples decifração ou à fácil interpretação, tal como
insinuados pelas análises aplicadas. Assim, a “utilização” do dispositivo
psicanalítico pelo espectador de arte se compõe de um processo reflexivo, pois
revela uma multiplicidade de significações subjetivantes da qual a leitura nunca
pode escapar. Nessa medida, entre criação e recepção dispõem-se espaços
psíquicos intermédios,
2
localizados segundo uma certa equidistância (“certa”
porque não é perfeita) entre sujeito e objeto.
Segundo Merleau-Ponty, com efeito, o sensível não se limita ao caráter
“positivizante” que a filosofia clássica ambiciona sustentar. Para o
fenomenólogo, o perspectivismo é a prova cabal da estrutura do funcionamento
perceptivo. Se em certa medida ela é organizada segundo o funcionamento da
consciência, nem por isso deixa de lado o conjunto inesgotável da sensibilidade
humana. A lateralidade pela qual os objetos se oferecem à nossa visão
demonstra a existência de uma outra cena, espaço mental que no entanto não
deve ser necessariamente reduzido ao topos freudiano: “Opaca”, afirma
Frayze-Pereira, a coisa “sempre se oferecerá a nós por perfis, implicando
sempre um ‘alémdo atual: sua face explícita remete-nos às que permanecem
implícitas”. Por exemplo, ao olho não é possível enxergar, positivamente, todas
as faces de um cubo. porém, o olho percebe o conjunto porque a percepção
funciona segundo a estrutura gestáltica. E é precisamente no interior desta
condição que o perspectivismo da percepção se afirma, em virtude de que “o
visível, o tangível, de modo geral, o sensível, não se limitam ao que aparece na
superfície” das coisas do mundo (2005, ps. 103-4). A próprio visível, como se
2
É claro que esta noção está atravessada pelos conceitos de espaço potencial e de objeto
transicional de Winnicott (1975).
79
sabe, é atravessado de fora a fora por um invisível sem o qual ele não existiria.
E a escuta clínica que não deixa de pertencer à percepção, pois é do ouvido
e do corpo que se trata – não é imune a essa condição.
Fechado o parêntese, retornemos à obra de arte. Cabe mencionar que a
discussão de Lyotard não a definia como “êxito”, ou melhor, como fenômeno
psíquico que se posicionaria em franca oposição à ordem patológica do
sintoma. No que tange ao fenômeno estético, esta vontade de superar
sintomatologias é, para ele, nada mais que um tipo de subordinação ao
academicismo. Vontade apaziguadora para reconciliar, encontra-se do lado
oposto à potência de desconstrução inerente ao objeto de arte. Assim, não é a
referência à doença ou à sanidade o que garante a um quadro o estatuto de
obra de arte (ainda que Van Gogh fosse louco, nem por isso todo louco é Van
Gogh), tampouco a profundidade do conflito que o artista estabeleça com essa
referência. De quê interessaria um irmão morto, um pai ausente ou uma mãe
fálica em relação à qualidade pictórica? A olhos atentos, Van Gogh hoje não
seria mais ou menos artista se por acaso seu diagnóstico angariasse provas
definitivas. E se ainda é tarefa do artista dar a ver os problemas que a arte
endereça à sua própria história, tais usos da psicanálise tornam-se inúteis em
arte e em psicanálise (Desprats-Pequignot, 1993). Numa visada
transdisciplinar, pode-se dizer que do interior da experiência estética sempre
surgirão interrogações que fornecem, ao psicanalista, modos de resolver
problemas de sua área específica – leia-se, não-artística – de investigação.
Ora, em seu tempo de teorizar, a criação artística acaba demandando,
do intérprete-analista, uma contrapartida criativa.
O sonho, a fantasia, o sintoma são entendidos em psicanálise
como criações de desejo. A psicanálise pode, ao solicitar o campo da
arte, avançar no que estas criações não são, do ponto de vista da
organização libidinal inconsciente, processos psicanalíticos engajados,
sem relação com aquilo que chamamos comumente de criação. E
também o que de um ponto de vista psicanalítico permite fazer uma
certa divisão entre aquilo chamaremos de criação segundo o modos da
sublimação ou criação-sintoma, aquilo que não é desinteressante no
80
trabalho clínico, mas não carrega nenhum julgamento de valor estético
ou comercial (Desprats-Pequignot, 2008, p. 12)
Seja a produção inconsciente considerada “criação de desejo”, a forma a
ser dada a um determinado objeto artístico sempre dependerá de uma
conjuntura interna. Mas para que o objeto comunique para além de si, a
concepção de experiência estética é demandada a concluir o processo social
da arte, especialmente pelo fato de que toda obra de arte implica outra
subjetividade que não a do criador. Toda obra necessita, com obrigatoriedade,
de um olhar que venha a seu encontro.
A partir desta vontade reflexiva, assim a psicanálise consegue
precipitar um entendimento não-totalizante sobre o que impulsiona a ação
criadora, por um lado, e, por outro, uma teoria de “corte” a respeito dos
sentimentos, sensações e experiências psicológicas que a obra de arte vem a
produzir no espectador. Neste Outro a quem a arte se endereça, o é difícil
constatar um certo nível de escolhas, a menor ou maior permanência de
sedução inconsciente por uma ou outra obra. Mas a dimensão singular da
recepção estética se aproximaria de um tipo de satisfação psicológica que é
altamente resistente e está sempre pronta a um retorno em circuito, que
reedita marcas anteriores de satisfação. A hipótese de que haja este vai-e-vem
na relação com o objeto de arte é justificada pela própria estrutura do
funcionamento psíquico, que em determinadas circunstâncias também visa à
repetição, como Freud indicara.
Voltando a Desprats-Pequignot,
A arte não se encontra evocada ou convocada justamente pela
psicanálise, que não o seja do ponto de vista do criador, ou do ponto
de vista da obra, na medida em que permite colocar questões que
interpelam a psicanálise por ela mesma, de perceber as respostas que
servem a ela de “modelos para pensardos avanços teóricos que lhe
são específicos. Quer dizer que a psicanálise reflete sobre a arte não
por ela mesma ou para dizer qualquer coisa que concerne somente seu
81
campo, mas pelo fato de que, por isso, ela pode retomar questões,
encontrar respostas que são matéria aos avanços teóricos pelos quais
ela refletiu sobre seu objeto (1993, p. 212).
Ler uma obra de arte o seria uma operação aproximada da escuta de
um paciente? E não se trata, com efeito, de um dispositivo aberto para receber
objetos-fenômeno, modo de pensar que esclareceria questões de ambos os
cenários? Não, responde a psicanalista Eis o limite de seu alcance: Desprats-
Pequignot acredita, categoricamente, que o surgimento de novas questões,
uma vez destinadas ao campo analítico, pertencerão invariavelmente ao seu
discurso, embora o psicanalista nunca deixe de ser aquele a observar, nas
lacunas de textos e obras, as imagens que poderão servir de “representação
pragmática” ao analisando (1993, p. 213). Por outro lado, para ela, a tela ou o
suporte do trabalho seriam, em si mesmos, uma representação exata do
psiquismo se é que ali se pode dizer “representaçãoe não a coisa mesma.
Se é com a subjetividade de outrem que a prática da análise joga o jogo clínico,
as conclusões de Desprats-Pequignot se deparam com o iminente paradoxo: a
metáfora do “psiquismo como tela”, explorada por André Green (1994) aas
últimas consequências, sempre envolve relações de um lugar a outro.
Sob os interstícios de seu funcionamento, na opinião da autora,
As questões colocadas por Freud e que se colocaram a ele
dentro do interesse dado aos criadores e ao campo da arte surgiram do
seio mesmo do trabalho analítico, de tanto seu trabalho clínico quanto
teórico, e concerne ao seu primeiro guia de trabalho. Sob os traços de
Freud, a teoria psicanalítica encontra no campo da arte não somente
uma ajuda para colocar suas próprias questões, elaborar suas próprias
soluções, mas isso lhe permite articular aquilo que se presentifica na
palavra de um sujeito dentro do quadro de análise e o que se aproxima
daquilo que na arte (obra ou processo de criação) pode ser aplicado na
medida em que possibilidade de prosseguir a elaboração teórica
(Desprats-Pequignot, 1993, p. 212).
82
Ainda que relativamente limitado, se torna possível verificar que este
conjunto de argumentos vai de encontro às advertências quanto ao perigo da
“psicanálise selvagem”, quer dizer, uma psicanálise que, de acordo com João
Frayze-Pereira, “perde de vista sua própria especificidade ao ser aplicada
sobre a arte como uma grade interpretativa que pretende dar legibilidade à
obra ou ao seu autor”
3
(2005, p. 444). É inerente ao trabalho psicanalítico
jamais se lançar à totalização do saber, ainda que sendo ele inconsciente,
mesmo porque a estrutura da falta é a sustentação da experiência psíquica,
seja ela neurótica, psicótica ou perversa. Do mesmo modo, a análise não se
deixa estagnar ao preço de valores pré-estabelecidos, pressuposto daquilo que
não se deseja saber sobre o objeto.
Neste registro, a posição freudiana valeria mais como postura ética do
que propriamente estética no contexto de qualquer investigação que pertença
às ciências humanas. Segundo Desprats-Pequignot, exercer psicanálise
selvagem quanto a isso Freud refletia em 1910, não por acaso no mesmo
momento em que se fundava a Associação Internacional de Psicanálise é o
mesmo que reduzir a complexidade do sexual ao simples ato de fazer sexo, ou
crer que a experiência analítica se baste pelo reconhecimento dos sintomas,
que a interpretação prescinda da relação transferencial e das associações
livres trazidas pelo paciente em sessão etc.
2.2) Donald Kuspit e a influência anglo-saxônica
Outro panorama significativo da discussão arte-psicanálise pode ser
encontrado em “Some contemporary psychoanalytic constructions on art”, da
autoria de Donald Kuspit. Embora não seja psicanalista mas professor de
história e filosofia da arte, Kuspit conseguiu acompanhar uma série extensa e
3
Deve-se destacar a confusão que existe entre neurose e criação. Ainda que a neurose seja
por um lado um tipo de criação, por outro, é uma criação “privada” para o outro ou até para o
próprio sujeito criador e, desse modo, o “criado” padeceria do mesmo modelo de
funcionamento da neurose.
83
atual de trabalhos em língua inglesa. O ponto comum da maioria dos estudos
inventariados por Kuspit pressupõe a existência de um poder curativo na
experiência com a arte, ainda que ele funcione durante intervalos de curtíssima
duração, como declara. No conjunto, incluem-se autores como David Kleinberd,
Richard Almond e Claire Kahane. Conforme sua constatação, existiriam duas
modialidades básicas pelas quais a cura se manifesta: por um lado, ela se
traduz nos efeitos terapêuticos provocados pela ação de criar/produzir/formar,
o que em outras palavras representaria um verdadeiro self-treatment para o
artista; de outro lado, isto é, com relação ao público, presume-se a ocorrência
de reestruturações inconscientes que o trabalho de recepção estética
conseguiria oferecer ao espectador comum. Para Kuspit, ainda que a teoria se
destine apenas à psicologia do prazer estético (ou do gosto), permanecendo,
desse modo, como uma suposição de certo modo “superficial”, ela no entanto
explicaria também, num primeiro nível de interpretação, porque a arte é uma
experiência tão aditiva ao olhar, repetitiva e ao mesmo tempo imprescindível.
A pesquisa de Kuspit aponta certos autores cujas intervenções fazem
avançar os conceitos psicanalíticos, a serem “usados de modo flexível, como
também incisivo, mantendo sua importância humanística”. São eles Laurie
Adams, Mary Gedo, Ellen Handler Spitz e Danielle Knafo nomes que
trabalham sob a rubrica da psicanálise kleiniana, e, consequentemente,
apoiados na sua teoria das relações objetais. Ao Art and Psychoanalysis de
Adams, por exemplo, coube informar como certos conceitos nominalmente,
complexo de Édipo, fantasia da cena primária, e, numa diferente leitura, a
inquietante estranheza podem esclarecer o “conteúdo psicológico da arte
visual” (Kuspit, 1996, p. 262). Os ensaios de Gedo, Knafo e Spitz, por outro
lado, concentram-se no trabalho psicobiográfico, psico-iconográfico ou psico-
histórico. A despeito do método utilizado, a maior virtude aqui é que todos “os
três autores são sensíveis a temas em desenvolvimento e deixam claro que a
arte é inevitavelmente autorrepresentação projeção, com efeito, um tipo de
fantasia egoica”.
Além disso, Kuspit destaca o modo como são usadas, pelos autores, as
categorias psicanalíticas. Na sua compreensão, aqui elas conviriam mais a
explicar, não sem “considerável consistência, o conteúdo e os processos
84
psicológicos implícitos em uma obra de arte sem minar a sua estética” (Kuspit,
1996, p. 263).
Do mesmo modo em que neste trabalho se dividem leitura aplicada de
implicada, Kuspit decompõe a psicanálise extraclínica em duas vertentes de
funcionamento: de um lado, analisa entusiasticamente a biografia psicanalítica
que Stuart Feder fez de Charles Ives: “My father’s song”. De outro, a reflexão
que Hal Foster publicara, a respeito do Surrealismo francês, em Compulsive
Beauty, é totalmente rejeitada pelo crítico. Neste texto, desprovido de
“experiência psicanalítica” e mais interessado pela psicanálise cultural” que
pela clínica propriamente dita, Foster teria partido da noção de estranho
(Unheimlich), apenas para articulá-la artificiosamente à lógica da pulsão de
morte. Na opinião de Kuspit,
A diferença entre Feder e Foster é emblemática da diferença
entre uma aproximação psicanalítica considerável, sistemática e sutil
para com a arte, e uma outra, trabalhada segundo a moda daquilo que
é no geral descrito como um uso acadêmico de ecletismo psicanalítico,
para assim procurar refazer considerações a respeito do modernismo
segundo uma maneira supostamente original ou ao menos
academicamente não-convencional (1996, p. 259).
Se o leogio de Feder salta aos olhos, pode-se dizer que haveria motivos
“conscientes” para tanto: enquanto este não peca pelo uso excessivo de
jargões e trabalha a partir do uso relacional da investigação biográfica e da
psicologia do ego, Foster, ao contrário, representaria a pior estirpe da
interpretação psicanalítica, na medida em que força elevar à verdade uma ideia
acima das outras. Em termos de todo, Foster empregaria uma “completa
descontextualização da Psicanálise” (Kuspit, 1996, p. 260). A análise que
Feder propõe no estudo de Charles Ives, na mão contrária, “de modo algum
diminui sua música, mas torna transparente este seu aspecto importante”, sem
no entanto destruir sua complexidade. “Isto”, declara Kuspit, “é típico do melhor
tipo de aproximação entre psicanálise e arte: completo conhecimento de um
85
assunto tanto quanto da arte em questão, e uma aplicação escrupulosa, não-
forçada, do entendimento psicanalítico à vida do artista e do papel que sua
produção artística tenha exercido nela” (1996, p. 259).
Para ele, o exame de Foster, que segue o gosto de uma tradição
nascida com o Optical Unconscious, de Rosalind Krauss, seria recheado de
uma psicanálise “sumária”, repleta de citações “inadvertidas” ou “simplórias”, e
que assim deixa a desejar em “substância argumentativa”, para não mencionar
o uso reificado de uma “teoria que serviria mais para provar teses que para
questionar seus objetos”. Se o lado bom do emprego das categorias
psicanalíticas é a sua fertilidade antiacadêmica, a contrapartida oferecida por
Hal Foster submergiria, entretanto, no reducionismo, um tipo de conformismo
renovado e estrategicamente ideológico.
4
Na esteira do mais famoso
psicanalista francês Lacan, que no entendimento do crítico “mistifica e
psicologiza” a dialética hegeliana quando propõe a tese sobre estádio do
espelho –, Rosalind Krauss teria se tornado a maior responsável pela
escolarização anedótica recente da psicanálise, tornando-a escolástica e “mais
acadêmica que a própria academia”. Ao transformar percepção em metafísica,
Krauss (orientadora de Foster, diga-se de passagem) apenas privilegia “certos
artistas modernistas como definitivos após revisá-los “psicanaliticamente”
(Kuspit, 1996, p. 261).
Ora, mas aquela posição assumida por Feder em sua investigação sobre
Charles Ives não estaria, rigorosamente, muito mais próxima das investiduras
da psicanálise aplicada? Em termos concretos, dois dos principais traços de
seu método denunciam-no: a utilização do recurso biográfico junto ao apelo à
psicologia do ego (Feder, 1990, p. 124). A propósito, o modelo da pesquisa é
inequivocamente psicobiográfico. No estudo sobre Ives, Feder declara
expressamente o quanto sua música “captura nosso interesse por conta de
suas intricadas conexões com cada aspecto da vida do compositor”. O foco
4
Roland Barthes (1999, pp. 149-53) defendeu, em As duas críticas, a existência de duas
vertentes básicas de análise que prevaleceram, na década de 1970, em meio à crítica literária
francesa. Havia a universitária/positivista, de um lado, e sua antagonista, a ideológica, dentro
da qual caberiam aquelas que demandam um conhecimento fora do literário – nominalmente, o
existencialismo, o marxismo, a fenomenologia e a psicologia/psicanálise. Suas posições, no
entanto, foram bastante debatidas pelos teóricos da Estética da Recepção, como se pôde
observar no capítulo anterior.
86
principal é a investigação minuciosa sobre a infância do músico, “enquanto
possa ser estudada através dos métodos da psicanálise aplicada”
(p. 115).
Nessa perspectiva se justifica, por exemplo, dar atenção particular à relação do
artista com o pai, “não apenas em relação à escolha de carreira de Ives, seu
caráter e estilo, mas também à natureza de sua música(Feder et alli, 1990, p.
116). Em meio a um texto repleto de citações desta ordem, sua obra musical
acaba servindo de elemento secundário. Na descrição dos procedimentos
utilizados, o próprio Feder menciona que
Em complemento ao material biográfico usual, a música
propriamente dita compreenderá uma parte dos dados. A quem
acredita que isso possa ser inconcebível, apresenta-se o fato de que
suas observações, anotações de diário, reminiscências, bem como
aquilo que poderia compor ordinariamente o material biográfico padrão,
no geral encontram-se escritos diretamente nos manuscritos! Além
disso, não obstante, as constantes referências autobiográficas podem
ser apreendidas por meio de sua música, tal como se pode perceber
em termos puramente auditivos (Feder, 1990, p. 116)
.
Nestas circunstâncias, as escolhas metodológicas de Kuspit se
tornariam acentuadamente contraditórias. Ainda que os argumentos sobre uso
da psicanálise sejam por ele bem delineados, os limites de sua leitura
emergem quando se o embate concreto com as obras de arte. Na minha
opinião, o que Foster pretendia demonstrar em seu texto, ao contrário do que
indica Kuspit, por exemplo, é em que medida o movimento surrealista, tanto
histórica quanto poeticamente, teria sido influenciado por uma determinada
psicologia a noção de automatismo psíquico encontrada por Janet torna-se,
aqui, incipiente –, assim como pela própria Psicanálise no contexto de pós-
guerra (Foster, 1993, pp. 04-13). Logicamente, portanto, as categorias de
estranho e de pulsão de morte lhe serviriam de ferramenta para trabalhar. Para
Hal Foster, é como se a “suprarrealidadecriada por Breton, Aragon, Ernst ou
Bellmer, cujas imagens se tornaram ilustrativas, demandasse um tipo de
repetição que, neste caso específico, não depende de uma energia propulsora
87
originada no princípio de prazer, uma vez que o se trata de uma força de
libertação mas de uma compulsão. Quando alguém se depara com o
estranhamento, diria Freud, é porque ali reside algum traço psíquico que
remete o sujeito a uma situação de angústia. A associação entre “automatismo”
e “autômato(onde se tem a imagem de algo que é vivo e morto ao mesmo
tempo), feita largamente pelos surrealistas, fornece provas para se pensar na
pulsão de morte como força motriz desta modalidade de repetição. Em termos
político-sociais, por exemplo, a passagem por uma Guerra Mundial estimularia
a relfexão sobre os efeitos destrutivos da experiência humana como um todo.
Embora não seja psicanalista, é considerável o manejo que Foster
consegue empregar ao repertório das ideias de Freud. A título de exemplo, o
historiador americano não se abstém de apontar, nesse contexto, uma série de
contradições a serem observadas na última teoria pulsional de Freud
ambiguidades que auxiliariam, ainda que por outros meios, em sua
compreensão particular do programa surrealista.
Se todas as pulsões são definitivamente conservadoras, pode a
vida ser oposta à morte? Assim como a fórmula “uma urgência inerente
à vida orgânica” sugere, a pulsão de morte pode não estar além do
princípio de prazer, mas é anterior a ele: dissolução vem antes da
amarração (binding) tanto no nível da célula quanto no ego. Neste
sentido, a pulsão de morte pode ser a fundação, em vez da exceção,
do princípio de prazer, podendo servir a ele. Poderia ser que esta teoria
(...) trabalha em prol de suspender tais contradições, o que seria sua
função última? De qualquer modo, estas complicações em Freud
também aparecem no surrealismo (Foster, 1993, p. 11).
A partir de uma leitura mais aberta, não se pode concluir que as
intervenções alçadas em Compulsive Beauty proporcionariam mais questões
que respostas à reflexão estética contemporânea? No final da introdução ao
seu livro, Foster alega que, por outro lado,
88
se o surrealismo serve de fato à psicanálise, trata-se de um serviço
prestado de maneira ambivalente, às vezes de modo inadvertido o
mesmo quando o surrealismo persegue a liberação apenas com a
finalidade de executar a repetição, ou quando proclama o desejo
somente para indicar a morte. Na minha opinião, certas práticas
surrealistas intuem, assim, descobertas estranhas (uncanny) da
psicanálise, às vezes resistindo a elas ou as atravessando, por vezes
para explodi-las até (1993, p. 17).
Mas é no momento em que Kuspit faz a revista dos trabalhos dirigidos à
literatura nomeadamente, Literature and Psychoanalysis”, coleção publicada
pela editora da Universidade de Nova Iorque, onde inclusive é professor que
certos aspectos ainda latentes de sua reflexão se revelam modus operandi de
análise. O que em especial admira, a título de exemplo, na investigação que
Andrea Freud Loewenstein fez a respeito das Metáforas da projeção nas obras
de Wyndham Lewis, Charles Williams, e Graham Greene, são a misoginia e
antissemitismo, ou seja, a atitude elogiável segundo Kuspit de trazer à tona
sua própria hostilidade diante dessas condições, agressividade que sentiu
durante sua permanência na Inglaterra.
Não anseio, com isso, defender a ideia de que Kuspit se tornaria o
bastião de defesa da psicanálise selvagem. Vale observar, entretanto, o quanto
ele exalta o caráter autoanalítico do estudo de Loewenstein, que soa quase
como um depoimento autobiográfico, tal como o próprio crítico insinua (o que
por outro lado demonstra um certo tipo de “implicação subjetiva”, por assim
dizer). Talvez isto se justifique pela comparação feita por ele entre artes
plásticas e literatura: caindo no lugar comum, Kuspit sustenta que o arsenal
psicanalítico seria “mais adequado (para) e constitutivo da obra literária que da
arte visual”, uma vez que seu poder de tradução não alcança diretamente a
correspondência entre as linguagens. Para ele, não se pode negar o
“inseparável [...] caráter erótico do olhar, privilegiado por Freud, depois do tato,
como o maior veículo de excitação libidinal” (Kuspit, 1995, p. 304). No entanto,
a despeito destas afinadas conclusões, o fato de não ter formação psicanalítica
não o eximiu de exercitar uma psicanálise aplicada.
89
Em outra direção, Kuspit supõe haver, nos estudos iconográficos, uma
larga tendência a negar o fator erótico/sensual da arte, isto é, aquilo,
precisamente, que mais fascina o espectador. Tratar-se-ia, nestes casos, nada
mais nada menos, da emersão do recalcamento, sequelas que
impossibilitariam ultrapassar as barreiras repressivas no interior da prática
interpretativa. Se considerarmos que a imagem é uma modalidade psíquica
primária subserviente às identificações (a noção de imago está para isso),
então já a simples percepção revelaria um material inconsciente sedimentado o
suficiente para apresentar uma boa sorte de ambiguidades, daí a enorme
resistência que os psicanalistas enfrentariam diante da imagem. A arte visual
parece estar mais próxima do estádio sensório-motor que a literatura, de modo
que as simbolizações evocadas pela primeira seriam mais corporais, mais
carnais do que no segundo caso. Isso também explicaria o caráter mais
“misterioso” e “inefável” (Kuspit, 1996, p. 311), quer dizer, erógeno, de sua
matéria. Caminho interessante, deve-se destacar: não por esta via, entretanto,
que o crítico segue em sua teorização.
Mais um exemplo, para que não fiquemos na superfície. A respeito de
Narcissism and the literary libido, de Marshall Alcorn, D. Kuspit refere, em tom
quase acintoso de reprovação, que
Para Alcorn, a literatura é um interesse enquanto investimento
narcísico”, e por razão de seu uso como artifício retórico do eu. Mas
esta concepção de narcisismo escorrega mais e mais a cada passo
que ele ou são as palavras corretas sobrecarregadas e
esotéricas? Seu desenvolvimento do conceito, tanto em termos
literários quanto psicanalíticos, parece refletir seu próprio narcisismo
intelectual. E de fato ele sobreintelectualiza o “narcisismo” até o ponto
em que chega a parecer autorreificante, isto é, quase metafísico
(Kuspit, 1996, p. 264).
5
5
Os grifos são meus e se dirigem ao psicologismo da frase.
90
Ao fim e ao cabo, a compreensão mais objetiva que o crítico possui da
psicanálise se revelaria, neste ensaio de 1996, em meio ao comentário que faz
de uma pesquisa de C. F. Alford dedicada à “teoria psicanalítica da tragédia
grega”. Na opinião de Kuspit, ali se apresenta um dos principais avanços do
alcance clínico da terapia psicanalítica: “restituir o indivíduo à comunidade com
respeito e compaixão pelos outros, e um ego forte o suficiente para resistir o
apenas às necessidades impiedosas (internas e externas) bem como à
prosperidade ultrajante” (p. 265, grifos meus). Além do fato de o estudo de
Alford não se apoiar na doutrina lacaniana o que sabemos ao revisitar a
“Psychoanalytic Constructions”...), da qual, como se pode inferir a partir do que
foi tratado até o momento, Kuspit certamente não compartilha, é curioso notar
que em suas posições o imperativo de sustentação egoica se alia também à
Psicologia do Ego.
Ora, conforme o argumento que defende em “Visual art and art criticism”
(Kuspit, 1995), quando um intérprete se dispõe a fazer “psicanálise da arte”,
dele se exige a postura de um eu analisado cuja capacidade autocrítica e
questionadora tenha sido conquistada na análise tese com a qual concordo
parcialmente. Ainda que a experiência psicanalítica seja exigida por leituras
desta ordem, não se trata apenas de uma aposta cega nas capacidades do eu,
secundaridade que visaria “apagar” o sujeito do inconsciente. Se é verdade que
a psicanálise tenha se tornado “inevitável e inescapável, assim como o tempo”,
permanecendo como força constante de transformações culturais, é justamente
porque o pensamento analítico abre portas à desordem primária do pensar,
assim como “o tempo muda e o clima varia” (Kuspit, 1995, p. 307). A rejeição a
que se assiste, na teoria e na crítica de arte, diante da psicanálise, seria
motivada em larga escala por uma resposta defensiva para a autopreservação
desse eu, segundo Kuspit... Contudo não é correto dizê-lo? , se tudo fosse
inconsciente, o inconsciente não existiria.
Para finalizar esta primeira incursão na crítica psicanalítica de Donald
Kuspit, presente em função de relevância no circuito da arte atual, restam ainda
duas perspectivas de fôlego a serem retratadas. A primeira sugere que, apesar
das diferenças entre as diversas leituras por ele discorridas, todas deveriam ser
alocadas no interior do que ele considera ser a “grande aventura psicanalítica”.
91
E essa aventura, sob seus olhos, não seria “exatamente eclética ou pluralista
uma democracia de teorias mas sim um tipo de campo em que as forças
psicanalíticas magnetizam qualquer fenômeno artístico que por ali se localize”
(1995, p. 267). Retomando a divisão feita por Baudelaire entre o crítico poético
e o crítico matemático (sendo o último identificado ao psicanalista, por
derivações óbvias), Kuspit considera que, a despeito da psicologia da pessoa
do crítico – que de fato não se pode negar que exista –, a crítica poética poderá
avançar na medida em que revele a erótica latente dos trabalhos de arte,
tornando-a “metaforicamente manifesta”. Conquanto tenha sido um “crítico
matemático por excelência”, Freud elaborou, através de sua oferta
transferencial, uma aproximação poética no embate com a arte, assim como
“preferia examinar suas comunicações a articular suas evocações”.
Para Kuspit, em suma,
(...) a única esperança para a interpretação psicanalítica, hoje a única
coisa que pode salvar suas interpretações da matematização e
standardização, ou seja, da psicologia matemática – é uma crítica
psicanalítica que seja poética, e por fim uma integração dialética do
matemático e do poético, talvez uma possibilidade ilusória. Apenas isso
pode evitar as ciladas de se fazer uma crítica literária [para a arte
visual], caindo na velha armadilha que consiste em transformar
imagens primitivas em ideias comunicantes (1995, p. 311-2).
Assim, psicanálise e estética poderiam caminhar lado a lado desde que
houvesse uma “integração dialética” entre o poético e o matemático. Se por
“estético” entendermos uma atitude de desafio e de subversão às práticas
seriadas e estanques, então o exercício da psicanálise é, sob esta condição,
uma atitude estética enquanto tal.
Contudo, ainda seria justo perguntar: por que a necessidade de
harmonização? Se a psicanálise encontra no artístico uma maneira de
exemplificar suas conquistas teóricas, só o faz porque assume o efeito de
antecipação que o trabalho artístico demonstra diante das teorias
92
(prescindindo, aliás, de setting). Em outras palavras, se é verdade que a arte
ilustra, por assim dizer, um conceito psicanalítico, ela o faz antes do conceito,
de modo que esta associação entre conceito e obra só se obtém no après-coup
da relação entre sujeito e objeto.
Em segundo lugar, e em termos epistemológicos, Kuspit apresenta dois
tipos “neoestéticos”, segundo define, de aproximação entre arte e
interpretação. Ambos são relativamente “inadequados” e partem da experiência
onírica como nódulo central de compreensão, cabendo entre elas, inclusive,
forte antagonismo. Ao primeiro tipo delega-se a tarefa de estabelecer relações
entre obra, sonho e desejo, tendendo à irredutibilidade do desejo e a um fator
de intersubjetividade necessário para a leitura via mais vantajosa, a meu ver.
De outro lado, restaria uma teoria que alia psicanálise e teoria social: apoiada
em uma “nova objetividade radical”, torna-se responsável por efeitos de
transgressão e de mudança sociais – uma crítica às ideologias, em suma.
É preciso assumir que, seja uma seja outra, tais modalidades adentram
a magnetização de ideias que o campo psicanalítico oferece à arena cultural. E
é o antagonismo entre estas posições que, ao se exercer, sustentam a noção
de psicanálise aplicada, paradigma a ser rejeitado pois, feito este percurso,
restaria pouca disponibilidade para se utilizar a psicanálise como instrumento
artificial de enfrentamento perante o fenômeno estético.
2.3) Novos fundamentos, reconstruções: psicanálise lá e cá
No que concerne ao estabelecimento sistemático de categorias a serem
trabalhadas no campo da “crítica psicanalítica”, André Green foi, seguramente,
um dos personagens mais relevantes. Para ele, sendo o crítico um “escritor-
leitor”, sua responsabilidade é produzir uma “prática teórica”, que “em todos
os planos em que pode ser exercida, [a psicanálise] é fundamentalmente
sustentada por uma atividade crítica”. Limitando um domínio que invoca a
relação de inconsciente a inconsciente, o “métododo crítico-analista poderia
93
ser denominado, “na falta de um termo mais adequado, de epistemologia
subjetiva”. Será obrigatório, a tal práxis, ter como meta o estudo e a
interpretação das relações entre inconsciente e obra, exigência de uma escuta
que é sempre colocada à prova. Como paralela à atividade do crítico literário, a
crítica de arte que segue este caminho se implica na apreensão de que, em
toda obra, a “existência desse inconsciente está presente nas articulações
temáticas, nas censuras dos textos, nos silêncios brutais, nas ruturas de tom e
sobretudo nas manchas, nas escórias, nos detalhes aparentemente pouco
importantes” (Green, 1994, p. 13, grifos meus), nos elementos invisíveis e não-
ditos que servirão de objeto ao estudioso da matéria.
A noção de mancha se torna aqui paradigmática e assim faz avançar a
metáfora do psiquismo enquanto tela. Entendida como “cartografia” do
inconsciente, a mancha é mais precisamente uma forma de mediação entre
concepções analíticas e estéticas. Próxima da pictoriedade informe, exige
poder de transformação no outro, da mesma maneira que, diante de uma obra
ou texto, o psicanalista age como se se transformasse, ainda que não
deliberadamente, como considera Green, “pois é a transformação que se
impõe a ele”. Só assim o interesse do trabalho se dispõe à dimensão de escuta
que textos e obras proporcionam, transformando o ato de recepção em atenção
flutuante do olhar. Com isso, a recepção ultrapassa as articulações solitárias do
espectador pela relação entre-dois (Green, 1994, p. 16; Frayze-Pereira, 2005,
p. 410). Tendo estabelecido as obras como ponto de partida, e nelas
restringindo a observação quanto ao que incitam de maneira associativa
6
naquele que as contempla, a abertura estará dada a um trabalho de
desligamento. Restará ao psicanalista ouvir as tramas de texto/contexto
conforme as modalidades particulares de seu ofício.
Ao espectador cabe, portanto, desligar a obra; isso significa fazer a
reestruturação de um traçado cujos indícios manifestam a atuação das
elaborações secundárias, responsáveis por todo o acabamento da obra. A
6
Desejo apenas sublinhar que não pretendo trabalhar de modo analógico, mas associativo, tal
como se em minha própria análise pessoal. Por associação livre entende-se, segundo o
consagrado dicionário de Laplanche e Pontalis, uma ideia “que ocorre ao sujeito,
aparentemente de forma isolada”. O método associativo em psicanálise, que se difere da
doutrina associacionista alemã, depende da experiência clínica, onde é possível observar que
um resto mnêmico remete de maneira complexa a outros elementos numa determinada cadeia
(Laplanche & Pontalis, 1992, p. 37).
94
escuta, uma vez desligada, coloca a imagem sob suspeita, pois sabe que os
rastros foram disfarçados pela organização formal. Na qualidade de produtos
secundários, imagem e fantasia seriam fenômenos praticamente idênticos; a
diferença básica é que, no caso da fantasia, o sujeito almeja uma racionalidade
“sobre a qual a pessoa que fala baseia sua esperança de ser compreendida e
reconhecida” conforme o princípio de “aceitabilidade semântica”.
Na ótica de Green, uma das principais características do texto literário
e de muitos trabalhos modernos e pós-modernos, por extensão, a meu ver é
fazer “absoluta questão de ser inaudito” (1994, p. 17). Assim, o objetivo do
crítico se acerca, justamente, em desfiar os tecidos dessa secundaridade para
encontrar, “aquém dos processos de ligação, o desligamento encoberto pela
ligação” (p. 18). A metapsicologia do desligamento se resume à
Passagem dos processos primários aos processos
secundários: uma energia livre (não ligada) tendendo à descarga,
utilizando os compromissos da condensação e do deslocamento,
fazendo coexistir os contrários e indiferente à temporalidade,
transforma-se em energia ligada cuja descarga é adiada, contida e
limitada, obedecendo às leis da lógica e da sucessão temporal (p. 17).
Retornamos ao ponto inicial. Se, diante da elaboração secundária, o
espectador consegue encontrar a lógica dos vestígios acidentais, que residem
no nível do desejo e do substrato primário, é porque ele se encontra em
pleno trabalho clínico, no sentido do que vai além da prática de gabinete.
não se pode mais negar que, apesar de todas as advertências que ainda
demarcam o atravessamento dos campos, qualquer estudo que se assuma
“freudiano” deve reconhecer que as conquistas alcançadas só fazem sentido se
servirem ao pensamento clínico. Ora, o estabelecimento de um limiar clínico
nunca deixa de ser fundamental a qualquer psicanálise, por mais fora da clínica
que se esteja. Em outras palavras, “pensar psicanaliticamente implica escutar
(...) as questões singulares e comoventes, isto é, ambíguas e por isso mesmo
perturbadoras, daquele que sofre” (Frayze-Pereira, 2004, p. 445, grifos meus).
95
Isto dito, refletir estética ou analiticamente significa em ambos os casos e
tendo em vista uma aproximação não-forçada dar forma a alteridades que,
quase sempre de forma inarticulada, apresentam-se como experimentação
sensível, localizando-se na cavidade que vai do não-dito ao dito, do não-ser
artístico à forma perceptível. Não obstante, neste campo ilimitado que resulta
do encontro eu-outro não existem contratos de garantia.
Ainda que o olhar possa se perder na paisagem de traços primários do
texto, a leitura flutuante faz com que estas unidades mínimas de sentido sejam
registradas no inconsciente do espectador, sobretudo na medida em que o
fascínio produzido pela obra comova o leitor no registro de seu consciente. E
se diante da obra o analista conta apenas com o conjunto de suas próprias
associações – e não com as do analisando –, logo, ele se transforma no
analisado do texto (Green, 1994, p. 18). Mas interpretações que esta virada
teórica consegue precipitar se legitimarão somente a partir dos efeitos estéticos
que a obra leva à consciência do “crítico-psicanalista”: trata-se, de fato, “de
uma experiência pois ele revela abertamente as falhas de sua leitura e os
limites de sua autoanálise”
7
(Green, 1994, p. 18).
Seguindo por uma mesma linha de raciocínio encontraremos em Arte e
Psicanálise, do crítico britânico Peter Fuller, outro exemplo de leitura que não
se prende aos alicerces da aplicação,
8
salvo algumas diferenças conceituais.
Ali o autor procura indagar a fundo qual a inscrição história do trabalho de
expectação. “Como pode uma obra de arte sobreviver às suas origens”?
Segundo Fuller cuja posição crítica parte do campo sociológico, para
somente depois chegar à psicanálise a questão nunca foi respondida, seja
por Marx ou pelos formalistas americanos, mesmo da melhor estirpe. Ora, seu
desejo de respondê-la não é gratuito: trata-se de um meio privilegiado para se
aproximar de determinações mais atuais sobre a experiência estética. Com
efeito, a diversidade de leituras não consegue exaurir a dúvida, sejam elas de
cunho materialista ou de origem psicofísica (cabe apontar que as teses de
7
Talvez este aspecto permita que a ideia de desligamento seja também pensada em termos
de pulsão de morte, como indicam Julia Kristeva (1997) e René Major (comunicação pessoal,
janeiro de 2009). Para a autora, quando Freud sugere Thânatos, é exatamente disso que está
falando: dé-liaison, força de retorno ao inorgânico.
8
A sugestão de incluir o trabalho de Fuller é autorizada pela pesquisa de Frayze-Pereira
(2005, ps. 75-6).
96
Fuller surgiram em meio a uma longa discussão a respeito da vontade de
“politização” das artes, movimento que ocorreu no contexto subsequente à II
Guerra, principalmente na Europa e Estados Unidos).
Portanto, a simplicidade de sua questão abriga, como pano de fundo, em
primeiro lugar, problemas de mediação ideológica, político-social, espiritual e
econômica. Num segundo nível, Fuller deseja sugerir que estas condições não
impedem que uma pessoa, “entrando no Museu Vitória e Alberto, olhe para
uma escultura proveniente de uma antiga civilização indiana”, isto é, uma que o
sujeito desconheça completamente, e ainda “consiga apreciá-la”, ainda que
haja tanto distanciamento (Fuller, 1983, p. 18). Qual seria, portanto, a razão
mais íntima, o “resíduo interior” através do qual obras hoje tão
descontextualizadas como a Venus de Milo ou a Gioconda, por exemplo,
causem tanto impacto no espectador, e isso a despeito de todas as obras que
com elas rivalizaram na a história da arte?
A hipótese formulada por Fuller exige, como medida prévia, a existência
de uma componente pessoal necessária
9
em toda obra que sobrevive e se
sedimenta no imaginário público; segundo ele, tal “elemento” conseguiria
escapar das determinações históricas, biológicas ou culturais, uma vez que a
arte não faz parte das coisas que progridem no sentido “positivo” da superação,
como é o caso da tecnologia, das medicinas ou do capital. De acordo com sua
argumentação, uma escultura de Carl Andre ou de Dan Flavin (se é que se
trata de escultura) não pode ser comparada qualitativamente com um vaso da
dinastia Ming, por exemplo, sobretudo se considerarmos que as conquistas
civilizatórias são nada mais que um exercício do poder; também não é possível
asseverar que certas inovações estilísticas de uma época são “superioresàs
de outra dada uma conjuntura social particular. “A inovação estilística
consistente nem sempre está relacionada com uma igual melhoria consistente
de qualidade”, acrescenta o autor (Fuller, 1983, p. 26).
Para discutir a questão com maior profundidade, Fuller toma como ponto
de partida a ideia de que a Psicanálise seria antes de tudo uma teoria da
9
Não precisamos sequer de um psicanalista para admití-lo. O historiador da arte Ernst
Gombrich (1999, p. 31) atestava o mesmo em uma conferência que homenageava Ernst Jones,
proferida na British Psycho-Analytical Society, em novembro de 1953.
97
significação, uma semântica com isto querendo dizer que não é determinada
pelos sistemas físicos de causalidade, teoria que lhe deve ter sido transmitida
muito provavelmente pela Psychoanalysis Observed
de Charles Rycroft. Em
segundo lugar, seu argumento se completa com a ênfase nas representações
metapsicológicas da angústia e da pulsão, uma vez que as considera
conceitos-chave à leitura; para Fuller, neste ínterim, angústia e pulsão se
tornariam essenciais porque existe uma constância de condições biológicas
comuns a todos os seres humanos, condições que ademais impõem um
funcionamento próprio a seu processo de constituição psíquica e de
organização interna.
Não é o caso, entretanto, de a psicanálise ser vista como uma “teoria
biológica da significação”. Reservando a si o direito de não se assumir como
ciência conforme os pressupostos da observação e da padronização, em
virtude de que o objetivo da psicanálise é o plano do subjetivo, nem por isso
escapa às necessidades de coerência interna. É desse modo que o crítico
garante um método por falta de palavra mais adequada psicanalítico de
leitura, cujas interpretações podem ir de Michelangelo à Rothko ou Natkin,
como é o caso em seu Arte e Psicanálise. Deve-se destacar que, ao final de
cada ensaio, o procedimento de sua leitura acaba produzindo uma “teoria
específica” para cada obra, ponto alto de sua metodologia: para discutir as
sucessivas mutilações sofridas pela Vênus de Milo, por exemplo, acessa a
teoria do objeto interno de Melanie Klein; com relação ao surgimento da
abstração, Fuller se ampara no conceito winnicottiano de espaço potencial, de
tal maneira que cada obra de arte ou cada poética a ser analisada exige uma
modalidade diferente e específica de psicanálise
10
(Frayze-Pereira, 2004, p.
37).
Nesta linha de raciocínio, a interpretação da estética freudiana oferecida
por Sarah Kofman em A infância da arte se revela bastante proveitosa. Ali, a
psicanalista nos convida a crer que, ao propor uma aplicação da psicanálise à
10
Peter Fuller justifica, no prefácio ao texto (1983, p. 14), que seu acesso ao circuito de ideias
psicanalíticas é de cunho eminentemente inglês. Ele o se inclina às teorias de Jacques
Lacan e colaboradores, conforme declara, em função do caráter “formalista” de suas análises.
98
arte, Freud não o teria feito a partir de um emprego positivista, isto é, torcendo,
moldando objetos de determinada esfera de estudos para fazê-los caber em
outra, ao gosto de Procusto. Bem ao contrário, para ela Freud havia percebido
que o objeto em jogo é exatamente o mesmo na arte e na psicanálise, embora
reconheça que sua forma de repetição surja de maneira específica em cada
um. Mais aprofundadamente, a principal tarefa de Freud neste contexto teria
sido a de procurar parentescos de estrutura no interior de dicotomias
superficiais; em outra ótica, sua disposição para encontrar relações de
identidade na alteridade inexorável das relações é o que pôde inaugurar o que
viemos até o momento chamando de dispositivo analítico. Normal e patológico,
infantil e adulto, arte e sonho são partes componentes de uma mesma
engrenagem que é concomitantemente contínua e diacrônica; basta
reconhecer a consanguinidade entre os termos.
Mas a partir de um exame mais atento, é ainda preciso enxergar que
ocorreu uma mudança de nuances no jogo da aplicação, cujas determinações
vão se distribuindo no intervalo de uma década psicanalítica, como verifica
Kofman. A saber, segundo ela, essa variação significativa vai de “O interesse
científico da Psicanálise” de 1913 a “Uma breve descrição da Psicanálise”, de
1923. Segundo a autora, Freud haveria indicado, no primeiro momento, a
existência de relações diretas entre história de vida (infância e
desenvolvimento) e objetos de arte, surgindo estes no artista como “reações a
essas estimulações (Anregungen)”. Dez anos depois quer dizer, após
conceber sua tópica do aparelho psíquico –, nasce em Freud uma
necessidade de compreender o trajeto entre o “impulso do desejo inconsciente”
(leia-se, pulsão) e a obra de arte, tomando a princípio as sequelas “afetivas”
(Affectivewirkung) que a obra oferta a quem está disposto a recebê-la. Não
obstante, ainda neste caminho, “a avaliação estética da obra de arte, assim
como a explicação do dom artístico”, acrescenta, “não [seriam] tarefas para a
Psicanálise” (Kofman, 1996, p. 08), conforme Freud declararia, alguns anos
depois, a respeito de Dostoiévski, por exemplo. Dentre os três fatores que
concorrem na complexa personalidade do escritor russo, adverte o criador da
psicanálise, dois são qualitativos, enquanto um é quantitativo. São eles “a
extraordinária altitude de sua afetividade, a disposição pulsional perversa que
99
devia movê-lo a ser um sadomasoquista ou um deliquente”, e por fim “o talento
artístico, não analisável (Freud, 1996[1927], p. 176, grifos meus). Como
sugere Kofman, o talento está aquém da obra: traço quase “absoluto” e
portanto de impossível captura, é inacessível à psicánalise. Já o além, ou
melhor, “o trabalho do artista, seria tributário de uma psicologia do ego, da
ciência da estética”, e assim de pouco interesse ao psicanalista (Kofman, 1910,
p. 10, grifos meus).
Contudo, tais inquietações não poderiam proporcionar uma nova
hipótese a respeito do uso biográfico? Se o artístico não é, com efeito, matéria
analisável, restaria conceber uma teoria da criação que so se pode sustentar
com a vida psíquica dos criadores. Como se sabe, Freud chegara a destacar a
tonalidade desafiadora de suas análises, demonstrações que expunham aquilo
que ninguém deseja saber sobre determinado artista. É curioso, aliás, constatar
que Freud nunca abriria mão desta posição, mesmo depois das polêmicas
acerca de seu Leonardo. Em seu penúltimo texto sobre arte, por exemplo
conferência escrita por Freud e lida por sua filha na ocasião de recebimento do
Prêmio Goethe –, ainda assistimos a esse tipo de recurso.
Isso nos ensina que a operação de aplicar psicanálise à arte encerraria
efeitos de um “triplo assassinato”: da ideia de artista-gênio, produtor sui
generis; do mito interior (porque psicológico) do herói herói que a princípio
exerce função de protoforma ao complexo edípico, alicerce mais seguro da
novela familiar do neurótico; e, finalmente, o assassinato do pai e de seus
substitutos correlatos. Em Kofman, o percurso segue a lógica da organização
edípica núcleo central do processo de criação –, até chegar, por meio da
regressão, à problemática do narcisismo e à ambivalência da relação que o
público estabelece com a personalidade do artista: “de um modo ambíguo, o
culto do artista é ao mesmo tempo culto do pai e culto do herói, isto é, culto de
si mesmo, porque o herói é o primeiro ideal do ego”. Para a autora, a grande
ambiguidade de aceitação da psicanálise aplicada se deve à ferida narcísica
que ela engendrou no homem da razão. A resistência que sua leitura encontra
nos meios especializados é ainda tangente. Por sua vez, a desconstrução que
a psicánalise opera na “venerada” personalidade do artista justificaria a
prudência que Freud sempre teve com respeito ao assunto. Afinal, toda atitude
100
crítica, seja ela filosófica, estética ou científica, demanda uma modalidade
bastante particular de renúncia pulsional: a de se desejar ser o pai de si
mesmo.
Kofman indica que em “O interesse científico da Psicanálise” (1913)
havia surgido uma primeira preocupação com a psicologia do espectador. Na
ocasião, Freud propunha que a força de atração que certas obras imprimem no
espectador é amplamente entrecortada pelas raízes libidinais do autor, de tal
modo que faria jus, ao psicanalista, dar inteligibilidade aos efeitos psíquicos
que o trabalho do artista consegue despertar, na recepção particular dos vários
sujeitos. O socorro que Kofman presta a Freud, nesse caso, é digno de nota:
Tornar inteligíveis os efeitos da afetividade, estabelecer os
vínculos entre as disposições, os acasos da vida e a produção, entre a
obra de arte e outras produções culturais ou psíquicas em geral, sonho
ou neurose, mostrar suas semelhanças e diferenças, esta é portanto a
única tarefa a que Freud se propõe, pelo menos de forma declarada.
(Kofman, 1996, p.12)
Em suma, a tarefa última à qual Freud teria se lançado, ainda de acordo
com a psicanalista francesa, seria a de criar, no seio da psicanálise, a
capacidade de garantir o máximo de legibilidade possível sem recorrer à
metafísica tradicional. Se a obra, conquanto produto consciente e inconsciente,
significação ao símbolo e ao sintoma de maneira coetânea, então é bem
provável que, ao nos debruçarmos sobre a secundaridade do texto,
encontraremos um conjunto de rastros de recalcamento que reverberam
formas afetivas – sensíveis – no outro que é a arte.
Nas palavras de Janine Chasseguet-Smirgel, de outra maneira,
Como um mergulhador de águas profundas, que descobre um
reinado submerso, a obra esclarece subitamente o inconsciente, e a luz
que ela projeta se espalha até a superfície. Apesar do caráter global e
101
imediato do fenômeno, nós podemos, descompondo-o em seus
elementos, reencontrar os deslocamentos, os símbolos sucessivos e as
imagens condensadas que chegaram à expressão consciente terminal
(1993, p. 97).
Quando Laplanche, em meados dos anos 1980, pretendeu recorrer a um
retorno aos fundamentos da Psicanálise, viu-se diante da mesmíssima
questão: se por diversas vezes o pensamento de Freud se ancorava em
ciências “outras” estranhas até, num certo sentido para definir aquilo que
observava na experiência clínica, o que pensar de uma psicanálise que
extrapole as fronteiras do dispositivo freudiano? A resposta, segundo
Laplanche, é que a experiência psicanalítica
11
pode ser definida a partir de
quatro pilares – a teoria, a história, a clínica propriamente dita (a noção de cura
é, nesse sentido, absolutamente determinante) e a psicanálise extramuros, que
é aqui a que mais nos interessa.
A ideia de uma exportação, que Laplanche propõe para se opor
declaradamente à noção de psicanálise aplicada, afigura-se como um modo de
compreender que a saída do perímetro da cura é parte integrante do próprio
exercício da psicanálise, não sendo nunca secundária, desse modo. Além
disso, a ferramenta da aplicação presumiria e é aqui onde vemos seu dulo
mais problemático, como escreve o autor –
que de um domínio privilegiado, que é com efeito o da cura, extrair-se-
iam uma metodologia e uma teoria que se transportariam, depois, a
outro domínio simplesmente – como numa espécie de engineering – do
mesmo modo como a ciência aplicada do engenheiro é, em definitivo,
para se construir uma ponte, uma engenhosa derivação a partir de
conceitos fundamentais da física ou da mecânica (1987, p. 20).
11
Por “experiência” Laplanche compreende a reunião de três termos alemães, a saber: a)
Experiment, advindo do experimentalismo; b) Erlebnis, que traduz a noção de experiência
vivida, e por fim c) Erfahrung, que é um movimento de contato com o objeto, “em contato com o
movimento do objeto” (1987, p. 24).
102
Como é sabido, o progresso da psicanálise se deve em boa parte ao rol
de investigações que Freud dedicara aos estudos extracura, como nos casos
de Schreber e Leonardo, para não mencionar Totem e Tabu, Psicologia dos
grupos e análise do eu, Moisés e o Monoteísmo, Mal estar na civilização etc.
Com isso, o próprio termo aplicação, “em sua acepção ampla”, perderia, “desde
logo, o seu sentido em razão da importância dos textos citados e, ao mesmo
tempo, de sua fecundidade teórica” (Mijolla-Mellor, 2005, p.1447). Em outras
palavras, ao ampliar as fronteiras, a psicanálise sempre acaba invadindo o
meio cultural, e não somente como modalidade do pensar mas de se viver, de
forma que não lhe resta outra opção senão enfrentar as questões decorrentes
do encontro. No entanto, sabe-se o quanto essa invasão é vista com maus
olhos pelos pensadores da cultura. E embora o signifique um uso incorreto
da psicanálise, essa espécie de “abuso” pode ser interpretado pelos detratores
como pura manipulação ideológica, como vimos com Chasseguet-Smirgel
(1991). O trauma causado pela psicanálise à cultura, afirma a esse respeito
Donald Kuspit, é visto ou como vontade de julgar ou como vontade de poder,
uma vez que expõe “seus efeitos e fontes psicológicas escondidas” (1995, p.
320).
Da parte de Freud, sabemos o quanto se utilizou de vinhetas clínicas
para interpretar a cultura. que o inverso também é verdadeiro, e isso não
impediu o desenvolvimento das ideias psicanalíticas, muito pelo contrário.
Freud certamente conhecia o poder metabólico que a cultura tinha a exercer
em seus progressos psicanalíticos.
12
“Claramente”, declara Kuspit, “existe uma
continuidade cultural entre a psicanálise cnica e discurso cultural não
psicanalítico, tal como Freud implicitamente reconhecia” (1995, p. 321). Assim
sendo, fica difícil desmentir a constatação de que as balizas que opõem
psicanálise e cultura sejam meramente artificiais, por mais tensas que se
revelem. E se é verdade que a psicanálise se arvora à interpretação de
diversos “mundos”, esses mundos nunca deixarão de ser atravessados, daqui
por diante, pela psicanálise.
12
O trabalho de Mezan (1985) lança um extenso panorama sobre as influências históricas
sofridas por Freud, e mostra o quanto ele buscava para além do que se vivia na Viena fin de
siècle.
103
A esteta Murielle Gagnebin assume, no momento da discussão, uma
posição significativa. Sua principal intervenção consiste em indagar, ao campo
da crítica, o porquê de sua rejeição ao “aspecto sexual na arte”. Segundo a
autora, teóricos, historiadores e críticos de arte, em sua grande maioria,
opõem-se manifestadamente à fecundidade que a exploração acerca do sexual
poderia proporcionar à reflexão estética. “O sonho nos dá numerosos exemplos
desta natureza sexual da forma, notadamente na medida em que é usada para
‘apresentar’ os pensamentos do sonho, ou seu conteúdo”, escreve a esse
respeito Françoise Coblence (2005, p. 141-2). Na esteira de Freud, Gagnebin
acredita que, desfeito o novelo progrediente dos processos de deslocamento e
de condensação, encontraremos o substrato de natureza sexual que reside na
obra, ali escondido pela mistura da matéria. Para Gagnebin, entretanto, este
efeito de defesa hermenêutica, ou melhor, de recusa diante do sexual, se
transcreve na ação, no seio da crítica, de mais se preocupar ao “como” ao
invés dos “por quês”.
Mas afinal o que seria, então, criticar?, ela se pergunta. Em suas
próprias palavras, criticar
(...) é uma arte de ler, ler formas, ler textos, uma arte que
revela, enredada em sua própria economia, desejo e desgosto.
Lembremos, de passagem, que essa arte se pratica dentro de um
cômodo, seja de leitura ou de trabalho, onde frequentemente estamos
sozinhos e afastados do mundo. Ademais, aquele que para,
posteriormente, desenvolver uma crítica, se percebe mudo pela ideia
de um enigma secreto a descobrir, em outras palavras por uma
fascinação pessoal e subjetiva do oculto (Gagnebin, 1994, ps. 10-1).
Mas isso não é tudo: criticar é também experimentar, ainda que muito
indiretamente, o desejo do artista pelo seu espectador. De outra forma, o
“desejo do desejo” do artista se lança e se articula intimamente ao trabalho do
crítico, no qual a interpretação procede a partir de uma perspectiva que
“valoriza um certo terreno do olhar, quer dizer, um olhar que opera por
transformações, por telescopagens, onde escolha, deslocamentos e
104
condensações, favorecendo a expressão de um sentido, carregam em si as
marcas de um excessoou de uma violência poderíamos dizê-lo na esteira
de Piera Aulagnier. Relação oblíqua, atração pelo fingido, pelo dissimulado,
gozo dico, desejo do desejo do outro, prática do exagero”, a atividade crítica
seria nada mais nada menos que uma grande erótica”. Crítica: prazer de ler,
gozo do olhar. “Fetichista e sádica”, acrescenta Gagnebin, “ainda que
fortemente ligada à cena primária na medida em que sua curiosidade emerge,
tal como a criatividade, a crítica carrega múltiplos destinos da libido” (1994, p.
11).
Em termos metapsicológicos, Gagnebin averigua a existência de duas
condições psíquicas fundamentais que definem a leitura crítica: em primeiro
lugar, numa postura impressionista e simpatizante, tem-se a maior ou menor
capacidade que o eu possui para se autodescentrar, propriedade de se perder
na “empatia alienante”, ainda que prazerosa, de respeito à obra. Esta empatia
é no entanto sempre conjugada à habilidade de encontrar caminho de volta ao
Eu. Nessa conjuntura de início, considera a autora, uma das feridas narcísicas
permanece aberta, ainda que ela tenha sido aceita e reconhecida pelo
espectador-crítico: sua personalidade se ameaçada diante de uma
desorganização pulsional bruta, intensa; a imagem a ver a “estruturação
impossível” de seu narcisismo (1994, p. 11). Historicamente, como considera
Gagnebin, este grupo é composto por críticos que escreveram no início do
século XX, como no caso dos franceses Jacques Rivière, Charles Du Bos e
seus pares.
Continuando com a esteta, a segunda atitude que caracteriza a atividade
crítica é a dominação. “Na aventura especular da exegese”, escreve, em
complemento, “o espelho proposto pela interpretação é um espelho ativo
(1994, os. 11-2). Mesmo de maneira indesejada, todos os métodos utilizados
pela crítica, sejam eles associativos, metafóricos ou genéticos, sejam mais ou
menos austeros ou generosos, todos se encontram no conjunto inevitável da
parcialidade, uma vez que são orientados por teorias particulares, caminhos
que no entanto visam apreender o objeto em sua completude. Como não
pensar que a pulsão de dominação seria o grande gerenciador da atividade
crítica? A autora conclui:
105
Um exemplo preciso pode nos dar esta medida. Penso aqui na
paixão atual pelos pré-textos em literatura, pelos esboços em pintura.
Considerar os rascunhos de um escritor ou os esboços de um artista,
embriagar-se dos acidentes da pluma como aproximações
morfológicas, significa introduzir-se no interior do sonho do artista – em
companhia do leitor ou do contemplador roubar seus pensamentos
latentes (Gagnebin, 1994, p. 12).
Por que ela se remeteria aqui à pulsão de dominação? Porque, noutro
sentido, fazer crítica também significa arregimentar fraturas na obra, desmontá-
la, tornar pública sua intimidade, manejar suas entranhas a partir de um
determinado método. Gagnebin chega a estabelecer, ainda que
hipoteticamente, uma causalidade psicanalítica para o que acontece neste
cerco: a vontade de dominação que sustenta a ação crítica está inscrita na
ferocidade resultante da frustração narcísica
13
sentida pelo espectador, uma
vez condenados “a trabalhar sempre a partir da obra de um outro (1994, p.
13). A esta altura sabemos em que medida o liame estabelecido entre o
artista e o objeto (de seu desejo) determina a produção de arte. Quanto à arte
contemporânea, por exemplo, a autora supõe a existência de um estatuto
“teratológico” que acompanharia o caminho mortífero que vai do desejo ao
objeto. Voltaremos a ele em momento oportuno.
Partindo da fase empática inicial, onde o conflito parece “ter sido
internalizado”, e chegando assim à etapa dominadora, as condições psíquicas
da crítica de arte podem ser compreendidas no interior de um espaço potencial,
espaço lúdico de não-posse em que a fusão eu-outro (“je deviens toi et tu
deviens moi”) demonstra suas marcas: ser e não ser ao mesmo tempo (1994,
p. 15). É o que justifica evocar, para Murielle Gagnebin, uma erótica particular
da crítica, “persuadida de que nela reside o enigma da foraclusão que afeta a
noção mesma de sexualidade organizadora no interior dos discursos críticos”.
Segundo a autora, esta erótica se situa num movimento que transfiguraria “um
coito numa sodomia” (1994, p. 16). Na etapa primária de “total cumplicidade”, o
13
Esta interpretação diz respeito, mais especificamente, ao que se pode considerar como
matematização ou formalização da obra de arte, cujas fórmulas aprisionariam o trabalho do
artista numa axiomatização “ideal”, abordagem estimulada entre as décadas de 1960 e 70.
106
sujeito se (com)funde com o objeto, leia-se, o crítico com o obra, e ali o
intérprete se transforma em obra na medida em que a obra coincide com o
intérprete. Na segunda fase, contudo, a fusão sucede ao tu me maîtrises, mais
je te tiens, quando a erotização troca de lugar e reivindica seus direitos à obra,
“que vira sua presa” (1994, p. 17). Ora, se o fenômeno estético tem suas
contas a pagar à perversão, esta por sua vez tem o direito de cobrar suas taxas
à atividade crítica.
À necessidade teórica de formular o sexual, necessidade (...)
confrontada às obras que põem eletivamente em cena o sexual e a
teoria analítica, se juntará então a compreensão de que “a pulsão de
dominação” é esse movimento da teoria que procura subjugar a pulsão
(...) à crítica que, de um lado, procede de uma fase em que a união
corporal, através da troca, visa a fusão e que, de outro lado, se
encaminha a uma outra fase em que a violência da invenção
ordenadora cria um novo corpo, a crítica se situa, bem ou mal, antes no
cerne do pré-genital que do genital e o solicita continuamente
(Gagnebin, 1994, ps. 17-8)
Eis a plica possível a uma “foraclusão”
do sexual exercido pela crítica.
Atestar o caráter perverso de sua estrutura de funcionamento, denunciar a
relação de proximidade com que se encontra da cena sexual primária, esses
não seriam motivos suficientes? “Toda hermenêutica é, assim, crítica da obra e
crítica de si mesma”, conclui a psicanalista; há outros riscos: todo exibicionismo
também se revelaria aí: “Trabalhar o mais próximo possível do sexual,
estabelecer-se no interior do corpóreo, fazer da fascinação e da sedução seus
álibis” (1994, p. 19).
“Diante da extraordinária evolução do romance e do tema em pintura,
que parecem ter percorrido, neste século XX, todos os registros da libido, não é
surpresa que a atividade crítica tenha provocado os psicanalistas”, acrescenta
Gagnebin (1994, p. 20). Evolução que seria sucedida, em seguida, pelas
representações da “prégenitalidade” que as obras de Beckett, Joyce e Duras,
Pollock, Wols e outros vinham pôr a termo. No momento vizinho à arte
107
contemporânea, surgiriam o Nouveau Roman (Robbe-Grillet, Butor), a Minimal,
a Pop e a Body Art, a Arte Conceitual a lista é infinda –, que também não
deixariam de exigir bastante da psicanálise, como veremos logo adiante.
Segundo Gagnebin, perduram certas modalidades de recalcamento,
denegação ou de foraclusão (Verwerfung) do sexual no progesso histórico da
teoria e da crítica de arte. Atualmente, elas se distribuem em dois sistemas
discursivos: o primeiro aposta na autonomia máxima da obra, separando-a do
sujeito criador; aqui, a obra vale pelo que remete aos seus princípios internos
de organização. Esta tendência, fenomenológica por excelência (via Maldiney e
Martineau, segundo a autora), considera a obra como “sujeito ontológico” e faz
da imagem “um ícone laico”, afastando-a da ideia de representação, seja ela
“mundana, afetiva, verbal, visual” (1994, p. 21). a segunda vertente, que
também se apoia na condição autônoma da obra, evita a por assim dizer
“subjetivização” da construção crítica e confia na arbitrariedade da relação
entre significante e significado. “Nesta ótica”, de cunho eminentemente
estruturalista e cuja herança remonta principalmente à linguística de Saussure,
“a obra é uma ‘combinação’ (Hjelmslev), fechada para uns, aberta ao infinito
para outros”. O que faltaria a esta leitura, no entanto, é o fato de que “a união
do Significante e do Significado cessa de ser arbitrária desde que haja estilo.
Se o linguista se ocupa da língua, o crítico se interessa pela palavra, pelos
idioletos”, que o artista é justamente aquele que desfaz a arbitrariedade
significante por meio de seus atos criativos (1994, ps. 21-22). E ainda que
Lévi-Strauss, a título de exemplo, tenha “reduzido os detalhes escabrosos de
seus mitos a puras relações de posição, também a crítica de arte de inspiração
estruturalista nega a qualidade pulsional do sexo”, resignando-o a uma
estrutura de relações que reduz consideravelmente a força do simbólico, ainda
que a estrutura seja de fato extremamente complexa.
Há, não obstante, outra posição ao lado destas duas, a saber, a de um
conjunto de críticos que optam não pela autonomia, mas pela heteronomia da
obra de arte. “A obra, nestes casos, não contém nela mesma o princípio de sua
instauração”; aqui “ela é produção(Gagnebin, 1994, p. 24). São pensadores
que questionam o meio e a história, as ideias e as mentalidades, bem como a
evolução das estruturas sociais. Ainda assim, mesmo no melhor dos casos
108
Goldmann, Starobinski e Auerbach, em literatura, Francastel, Hersant e Arasse,
em artes plásticas –, se se considera que a coisa sexual existe, sugere
Gagnebin, ela o é determinante. Nesses trabalhos, “a sexualidade não
possui nenhum papel especial, ela é no mais das vezes um assunto entre
outros na paisagem social da obra” (1994, p. 25).
Por outro lado, serão os críticos que atestam a importância da
personalidade do artista como algo “fundamental na gênese da obra” – quando
é o caso, evidentemente os pioneiros a abordar a questão da sexualidade na
imagem, ainda que a princípio essa aproximação tenha ganhado um colorido
bastante psicopatológico. Albert Thibaudet, por exemplo, um dos primeiros,
recorria à psicanálise apenas para reescrever coisas conhecidas sob nova
roupagem, conforme a avaliação de Gagnebin. Por outro lado, entretanto, o
inventor da psicocrítica Charles Mauron teria conseguido estabelecer
avanços significativos nesse período. Na opinião da autora,
A psicocrítica, a partir do modelo da liberdade associativa, opta
então pela superposição de textos e não por sua comparação racional,
a fim de trazer à vista repetições penosas, redes imprevistas de
associações, relações dramáticas entre as estruturas distintas. Todas
essas figuras definem, pouco a pouco, um conjunto de metáforas
obsedantes que permitem liberar o mito pessoal do autor. Sob a
elaboração definitiva trata-se, com efeito, de descobrir o sonho
profundo, quer dizer, a situação intrapsíquica do artista (Gagnebin,
1994, p. 25).
A leitura de cunho diagnóstico é última forma de recepção que J. F.
Lyotard encontra em sua pesquisa acerca da crítica psicanalítica. Mais
precisamente, é aí onde se antecipam todas as tensões entre arte, doença e
saúde mental. Lugar privilegiado à exposição de temas, autores e personagens
sob a rubrica do estudo psicopatológico da criação, suas investigações servirão
de estofo a leituras que comparam o objeto de arte à psicologia do artista. É
retornar à história da psicanálise: em 1911, Karl Abraham, um dos principais
discípulos freudianos da primeira geração, publica uma “pequena monografia
109
psicanalisando Giovanni Segantini, o pintor tirolês do final do século XIX, morto
prematuramente, que na época desfrutava de alto apreço pelas suas paisagens
camponesas místicas”. Nesse meio tempo, Otto Rank, “leitor onívoro e escritor
fluente, tentava abarcar o mundo estudando a psicologia do artista, o tema do
incesto na literatura e os mitos em torno do nascimento do herói” (Gay, 1989, p.
290). Ao fim e ao cabo, o arcabouço teórico da aplicação encontra sua origem
aqui. Seus contratempos também não foram de todo obliterados pelo inventor
da psicanálise:
Reconhecidamente, algumas das patografias de artistas e
poetas produzidas no círculo vienense eram ingênuas e precipitadas, e
por vezes suscitavam a irritação manifesta de Freud. Mas, bem ou
malfeita, a psicanálise aplicada foi, quase desde o início, um risco
coletivo. Freud achava adequado tal interesse generalizado, mas não
precisou das instâncias de ninguém para pôr a cultura no di (Gay,
1989, p. 291)
No melhor dos casos, declara Lyotard, as interpretações mais
aprofundadas
14
estão reunidas em torno da psicocrítica de Mauron. Afinada à
atividade crítica, sua metodologia também confia à clínica o expediente de
compreensão estética, o que não exclui, a rigor, que o comentário “patográfico”
seja congruente ao estilo do artista, ou, em outros casos, que os paralelos
possíveis entre estilo e inconsciente sejam totalmente respeitados. Ora, este
seu tom renovador mereceria reconhecimento, segundo Lyotard e Gagnebin.
Longe de pretender estabelecer relações imediatas de um
suposto trauma inicial com o conteúdo manifesto de tal obra, [Mauron]
interpõe entre estes dois extremos formações intermediárias que
correspondem a capas superpostas de formas cuja sedimentação
representaria, em suma, o nascimento das obras em sua pluralidade a
partir de uma matriz profunda (Lyotard, 1975, p. 71).
14
Com esta ideia não quero dizer que Mauron está na mesma categoria daqueles que
trabalham com as leituras diagnósticas, os quais Lyotard está certamente criticando.
110
A respeito da postura cuidadosa com que Mauron trata seu leitor,
Lyotard acrescenta: uma “condição metodológica de semelhante construção”,
isto é, rigorosamente psicocrítica, “deve ser o estilo próprio do artista estudado,
quer dizer: a nova problemática pictórica ou literária que introduz como criador”
(1975, p. 70). Nessa perspectiva, o estilo deve se articular, por obrigação, à
problemática inconsciente do artista, dentro da qual ambos serão estudados
como “caso” particular.
Ainda assim, o que se deixa à margem nestas leituras é o esquecimento
consciente da dimensão de ausência ou “despossessão” (as palavras são de
um Lyotard certamente influenciado por Lacan), abstenção imperdoável mesmo
no caso de Mauron. Se a mitologia pessoal do artista não é, com efeito,
suficiente para dar conta da cena fantasmática, logo ela acaba sendo
identificada ao tema ou conteúdo. Daí resulta o deslizamento da interpretação
ao psicologismo: a leitura se perde, é certo, uma vez que não consegue
comportar, ou melhor, suportar os espaços vazios que todo trabalho artístico
tem por rito apresentar.
15
Para Lyotard, enquanto esta psicanálise não
compreender que o desejo de ver é um sinônimo para o desejo de verdade,
recairá sempre na chancela psicopatológica. Seguindo neste raciocínio, a
atividade artística seria apenas o inverso do processo primário. Mantendo esse
raciocínio, a teoria faz repetir as operações do circuito pulsional na direção
contrária, aplicando-as aos processos internos de composição da obra, assim
como também “às figuras saídas do fantasma” (1971, p. 73).
Isto, aliás, não impede que o olhar psicanalítico seja uma reedição da
velha dicotomia entre sujeito e objeto do conhecimento, objeto cujo destino é o
de acabar “convertido em simples ilustração da própria teoria” (Frayze-Pereira,
2005, ps. 55 e 67), tal como o próprio Lyotard aventava. Quando não, tanto
pior: torna-se vítima da vulgata da aplicação, na qual a aproximação com a arte
se garante pelo hábito de valer, de maneira unilateral, como método no
sentido mais conservador do termo.
15
A influência de Blanchot é aqui evidente (1999). Parece-me que este vazio pode ser
concebido como uma espécie de Angst, característica da arte moderna e contemporânea, algo
que alguns críticos perceberam, sem dúvida, e que pretendo desenvolver ao longo dos
próximos capítulos.
111
E para piorar as coisas, é
bastante frequente que, ao falar de uma pintura ou escultura, o
psicanalista se comporte como cego. Habituados a escutar seus
pacientes, a refletir sobre significantes verbais, certos analistas
parecem não saber mais olhar. É como se encontrassem na tragédia
de Édipo o modelo ideal de existência: é-lhes necessário perfurar os
olhos para imaginar que descobrem o invisível. E é essa cegueira que
torna imprudentes certas análises (Frayze-Pereira, 2005, p. 56).
Apesar dos pesares, a psicocrítica também não consegue manter sua
concentração nos espaços intermédios da imagem, espaços nos quais as
obras de fato aparecem:
(...)quanto ao trabalho artístico ou literário, [a psicocrítica] inverte a
relação da expressão com o acordo aberto pela diminuição do sentido,
não se contenta com exteriorizar em sintomas suas figuras profundas,
expõe, se não a fantasmática mesma, ao menos suas características,
dispondo a seu encontro um espaço aberto, um espaço desconstruído,
até desnaturalizar as leis da linguagem e da percepção de maneira que
as operações formadoras das figuras do inconsciente e de seus traços
possam, nesta campo livre, produzir outras figuras, novas figuras, que
serão então poéticas ou plásticas (Lyotard, 1975, p. 72).
João Augusto Frayze-Pereira mostra, de modo mais preciso, quais
seriam os principais riscos epistemológicos que no geral o uso da aplicação
incorre. Na tentativa de encontrar chaves de resposta para os problemas da
criação, os analistas acabam utilizando o canal de resposta biográfica como
dispositivo de interpretação, na melhor das vezes, ou a resposta patológica, na
pior delas, em direção ao trabalho artístico. Partindo de tais pressupostos,
garatujas infantis, desenhos de loucos ou de “dementes” e expressões da
112
modernidade poderiam andar de mãos dadas.
16
Ao passo em que as leituras
psicogenéticas vão ganhando relevância, a obra termina por ser “reduzida à
função sintomática de mascarar significados” que esses analistas acreditam
“desvelar por um poder interpretativo oriundo desse saber”.
Nessa direção correm as abordagens inspiradas pela
Psicanálise que se esmeram em alongar a série de diagnósticos
lançados sobre as obras, seus temas ou autores. Quer dizer, o que se
entende por Psicanálise da Arte nada mais é do que a aplicação, sobre
as obras, de uma grade interpretativa que pretende esclarecer uma
verdade da obra ou de seu autor. Entretanto, tais interpretações quase
sempre são não apenas selvagens, mas sem grande interesse, tanto
para a Arte quanto para a Psicanálise. Elas costumam remeter, no final
das contas, à configuração de posições psíquicas genéricas e a
algumas transformações frequentemente banais (Frayze-Pereira, 2005,
p. 56).
Apesar de seus limites, conforme pensa Gagnebin, o trabalho
desenvolvido por Mauron teria sido essencial àqueles que classificam a obra
como criação de um sujeito ao mesmo tempo consciente e inconsciente. Não
obstante, as barreiras de sua leitura se revelam sem cessar: ainda que a
psicocrítica consiga entrelaçar, com eficiência, os textos a serem analisados,
Mauron se prende demasiado na pessoalidade do artista (para tomarmos, a
esse respeito, uma concepção desenvolvida por Pareyson em Os problemas
da estética). Mesmo não se esquecendo da obra, Mauron não objetiva outra
coisa que não seja a descoberta da personalidade inconsciente do autor,
“reduzindo a obra a um tema único e portanto estático (Gagnebin, 1994, p.
26). Mauron confundiria, em segundo lugar, o latente com o implícito, como se
o latente estivesse por detrás da obra, ou seja, supostamente num outro topos
e não em seus próprios interstícios, como bem advertiu Jean Starobinski
(2001).
16
Grande perigo: tais interpretações não podem dar margem à suposição de uma “arte
degenerada”, assim como fez o III Reich?
113
Após a investigação psicocrítica, e profundamente influenciado por ela,
surgirá entre os anos 1950 e 1960 um movimento de “crítica temática”, grupo
bastante “inquieto diante do enraizamento psicológico e corporal da matéria
literária e pictórica”. Permitindo-se fazer uma leitura “parcial e longitudinal”,
atestada pelo “gosto original e engenhoso pelos aspectos imprevistos, insólitos,
das obras” (Gagnebin, 1994, p. 26-7), figuram aqui nomes como o próprio
Starobinski, Yves Hersant e Georges Didi-Huberman. A seu respeito, Gagnebin
ressalva que, a despeito do aspecto “sofisticado” das leituras, seus temas
“ainda ressaltam o pensamento lógico. Tudo se passa como se o recalcamento
ou o evitamento parecessem rivalizar com a sutileza das propostas”. De uma
coisa, no mínimo, essa leitura estaria isenta: “o recalcado não faz retorno, aqui,
precisamente sob a inteligência refinada destas leituras sensíveis” (Gagnebin,
1994, p. 27).
Mesmo contra sua vontade, é necessário reconhecer que o método
empregado por Gagnebin se revela muito próximo deste modelo “temático”.
Enquanto princípio de organização, para que a sexualidade seja levada a termo
nas análises críticas é preciso “descartar-se do artista propriamente dito”, como
declara. Didi-Huberman, por exemplo, se encontra em franca oposição à crítica
temática, chegando mesmo a denunciá-la, como veremos (capítulo 4). Ainda
assim, o cuidado de não reduzir a leitura aos “sintomas extravagantes”, para
então trabalhar a partir de um método que dispensa a “capacidade interpelante
do autor”, isso tudo provocaria uma ruptura significativa jogo de idealizações
representado pela psicanálise aplicada. Mais além, amparada em Green,
Blanchot e Deleuze, Gagnebin considera ainda que a leitura tem a tarefa
exclusiva de “se centrar na matéria artística na medida em que ela seja
percorrida pelas pulsões universais” que a constituem como “objeto
transnarcísico”, pulsões que revelam ligações entre o narcisismo do autor e do
espectador (1994, p. 27).
A esteta investe num modelo de interpretação que faz avançar a crítica
do psicologismo, elencando, enfim, as concepções de escritura e leitura,
conceitos que garantem uma tonalidade processual à recepção, com isso
almejando ultrapassar o acento vertical que as leituras psicologizantes
empregam à pessoa do artista. No meio psicanalítico, o problema residiria,
114
também segundo ela, no interior do circuito que leva o Freud de Uma
lembrança de infância de Leonardo da Vinci àquele do Moises de
Michelangelo. E é por isso que a “crítica psicanalítica” poderia ser igualmente
dividida em duas grandes frentes.
A primeira delas – mais sensível às determinações históricas, biográficas
e ideológicas das obras procuraria ilustrar ou “confirmar um ponto preciso da
teoria”: neste conjunto, a autora reúne autores como Didier Anzieu, Demoris,
Clair e outros. Mas não deixam de figurar os psicanalistas que procuram
esclarecer “a obra pelos temas gerais que formam o tecido da descoberta
freudiana e seus derivados kleinianos, winnicottianos ou lacanianos”
(Gagnebin, 1994, p. 29), tais como André Green, Guy Rosolato, Wajeman e
Marthe Robert, Pierre Fédida, Anne Clancier ou Donald Meltzer, cada um à sua
maneira. a segunda modalidade de crítica psicanalítica na qual Gagnebin
considera se incluir junto a Bellemin-Noël e Gilbert Lascaux, principalmente
estará mais atenta à questão do estilo, produzindo assim “textanálises” em que
autor e personagem são apenas um. governa o paradigma da “economia do
desejo”, isto é, um olhar que apreende, nas obras, os “extraordinários passos
estratégicos onde o Eu gerencia, num estilo particular para cada ocasião, as
modalidades de defesa diante das forças cegas da libido” (Gagnebin, 1994, ps.
29-30).
Três critérios metodológicos caracterizam esta modalidade de recepção,
de acordo com a autora. Primeiro: a questão acerca da estrutura fantasmática
deverá ser prevalecente na leitura, deixando-se problemas biográficos e sócio-
históricos como pano de fundo. Segundo Gagnebin, querer “psicanalisar obras
de arte à maneira de um paciente deitado no divã” seria “um empreendimento
bastante aleatório”, assim como seria uma verdadeira “audácia” querer
“analisar artistas por intermédio de suas obras”. Seu projeto, no entanto, é
outro: para Gagnebin, trata-se de descobrir o conteúdo “inconsciente de uma
obra a partir de seus elementos estruturais e de suas eventuais antecipações
ou prolongamentos no tecido reticular do inter-icônico” (1994, p. 30).
Segundo: neste contexto, serão reveladas tanto as forças em conflito
quanto suas figuras virtuais. E é este ponto de vista econômico que sustenta a
115
possibilidade de não se afastar do horizonte metapsicológico. “É a luta que tece
a autêntica respiração do fazer artístico”. Na diferença que há entre artista e
espectador, o primeiro descobre a gravidade do endereçamento ao segundo,
de modo que a obra se transforme em um por fazer que “exige ser levado em
conta pelo próprio espectador”. Com relação ao objeto de arte, o espectador
poderia partilhar de “seus requisitos, quem sabe endossar uma ou outra de
suas polaridades”. É na medida em que o econômico se sobressai ao tópico
que a obra se transforma no teatro onde as forças se enfrentam. Assim como o
analista, o esteta libera “um drama” que a ele compete “conter ou desamarrar
por meio de seu trabalho de interpretação” (1994, ps. 30-31).
Terceiro: a escuta a ser colocada em funcionamento é clandestina por
excelência. Olhar oblíquo: sua atenção está centrada nas tensões latentes, nos
brancos e margens, nas hesitações, escansões e silêncios. O que está cena,
aqui, é uma “práxis do irrepresentável”. Assim “a estética do trompe-l’œil dará
lugar a uma orgânica do trompe-regard”. Estética e psicanálise se inscrevem,
nesse cenário, a partir de um ponto-de-basta comum:
Entre o inefável da arte e o indizível da psicanálise, haveria
mais que um simples paralelo? (...) Tal é, formulado às pressas, o
problema do drama narrativo na análise. Da mesma maneira, a obra de
arte pareceria ser habitada por uma fantasia inconsciente,
eminentemente móvel, sempre traindo alguma causa originária, que
obrigatoriamente retorna sob máscaras diversas. Deslocada, tão logo
desvelada, essa causa originária e original que estrutura toda criação
carrega, de fato, as marcas daquilo que torna a práxis analítica
fundamentalmente interminável (Gagnebin, 1994, ps. 31-32).
2.4) Psicanálise implicada
Para prosseguir, no entanto, surge a necessidade de pensar em
relações de implicação tomando de empréstimo a categoria criada por João
116
Frayze-Pereira em extensão a Alain de Grosrichard. A ideia de implicação se
encontra, nesta ótica, um pouco além da “relação entre duas proposições”
(Lacan, 1992, p. 57), que é o seu sentido primeiro. O que se poderia sublinhar,
a partir daí, não é a existência mesma de uma relação, mas a ideia de conjunto
que esta noção comporta.
Em outras palavras, a proposta assume que, na posição de espectador,
se crítico ou teórico resistem ao lugar de analisado da obra e, desse modo, se
autorizem a ocupar a posição do analista, estarão apenas reeditando os velhos
passos da psicanálise aplicada. Ora, a relação entre sujeito e obra implica a
necessidade de que primeiro consiga se desvencilhar da sedução
“coisificadora”, enunciada no mais das vezes com a premissa de se adotar uma
postura racionalizada diante do trabalho artístico; sem isso se assiste ao total
desmantelamento da recepção estética. De um lado, avalia por sua vez André
Green, “uma interpretação muito superficial colocará em evidência a
racionalização do analista; de outro, uma construção artificiosa indicará que ele
deu o que costumamos chamar, no jargão analítico, uma interpretação
‘chapeada’” (1994, p. 18).
O modelo raso, achatado, não seria ele um sintoma da cegueira diante
das imagens?, interroga-se Gilbert Lascault. Assim, aventar a hipótese de que
a psicanálise aplicada seria uma espécie de racionalização no sentido
psicanalítico, e não filosófico , que começa no espectador-analista e chega
até a obra, não é de todo absurda. Acontece que certos profissionais,
acostumados a “refletir sobre significantes verbais”, pretendem resolver, de
maneira apressada, os “problemas da criação artística e da especificidade de
uma obra” (Frayze-Pereira, 2005, p. 56) reduzindo toda sua leitura ao nó górdio
do Complexo de Édipo ou do Complexo de Castração. Até aí, nada a censurar
a priori; nestas bases, contudo, ao excluir mais uma vez o processo de leitura,
nem Psicanálise nem Teoria da Arte avançam em suas arenas. Nesta
perspectiva, quando o analista não suporta o lugar de analisado da obra, criam-
se, nele é este o pressuposto defesas psíquicas contrárias à aventura que
o trabalho de arte o convida a fazer, como também indicaram Gagnebin e
Desprats-Pequignot. Há, por conseguinte, uma condição regressiva na leitura
psicopatológica: os traços sintomáticos da patologia psíquica que se encontram
117
por detrás da obra deverão ser desvendados por um psicanalista que, munido
de vestígios nosográficos, acredita-se detentor de um saber que esgota o
restante das explicações possíveis. Em vez de criar ou construir, o analista
deduz. São modos de ilustrar como o eu-analítico se protege diante da
iminência ameaçadora de um outro.
Mas a superação da leitura aplicada, leitura que teria sido encorajada,
como sugerem Frayze-Pereira (2005, ps. 60-1) e Mijolla-Mellor (2005, 1447-8),
pelo Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1996[1910]), já
indicado aqui, também pode ser encontrada no interior do próprio pensamento
freudiano. Com Leonardo, é ainda possível conjecturar que a força que esta
interpretação ganhou se articula aos conceitos de sublimação e narcisismo,
aos quais Freud aludia naquele momento o que acaba levando a uma certa
de idealização
17
da figura do artista, mesmo considerando que a intenção de
Freud era exatamente oposta, como se pode ler logo na introdução de seu
estudo.
18
No entanto, se ao nos depararmos com o Leonardo assistimos a uma
série de problemas insuperáveis a desastrosa tradução de milhano por
abutre, a ilusão retrospectiva concernente à sobreposição do tempo em que o
pintor viveu (Quattrocento) ao momento no qual escreveram os historiadores
nos quais Freud se apoiou – não se pode dizer que o mesmo aconteça, de fato,
com a tessitura do “Moisés de Michelangelo”, texto que seria publicado,
anonimamente, apenas quatro anos depois.
Como se sabe, a interpretação de Freud para este Moisés é disparada
por um detalhe e por um detalhe apenas:
19
a mão direita do personagem em
conluio com a barba e com a posição em que se encontram as tábuas da lei,
retratadas supostamente pouco antes de serem destruídas pelo profeta,
momento em que vinha a testemunhar a idolatria de seu povo ao Bezerro de
17
João Frayze-Pereira (comunicação pessoal, dezembro de 2009).
18
Não era um romântico a celebrar o artista como um criador quase divino”, é o que se afirma
na biografia escrita por Peter Gay (1989, p. 287); para o historiador, era evidente a relutância
de Freud em reconhecer os aspectos puramente criativos da obra do escritor e do pintor”.
Segundo ele, “o artista criativo, o mais prezado entre os seres humanos, aparecia, em algumas
abordagens psicanalíticas, como nada mais que um neurótico hábil com boa capacidade de
expressão” (p. 300).
19
Ricouer sugere, por sua vez, que existe uma relação entre esse texto e o método da
interpretação de sonhos (1965). Talvez esta associação venha ganhar mais sentido nos
capítulos seguintes, nos quais o conceito de figurabilidade passa ao primeiro plano da análise.
118
Ouro. Porém, a perspicácia da leitura de Freud afasta, do personagem, esta
por assim dizer “passagem ao ato”, que, com efeito (isto é, conforme as
Escrituras), Moisés viria a cometer. E no decorrer do que vai percebendo no
mármore, Freud sugere a incontestável virtude de caráter do herói, conquista
psíquica que faria deste um homem superior ao Moisés histórico: “sujeitar sua
própria paixão em benefício de uma causa a que se devotou”. Uma renúncia de
páthos, por certo, mas neste caso inventada pela sensibilidade de um artista
que explora a ambiguidade da “oposição artística entre o fogo interior e a calma
exterior de sua pose” (Freud, 1996[1914], ps. 238 e 227).
A biografia de Freud escrita por Peter Gay comprova em definitivo a
força dessa interpretação. “Como se poderia esperar”, lê-se em Uma vida para
nosso tempo, “Freud desenvolveu uma interpretação inteiramente própria.
Exceto os poucos que haviam interpretado a estátua de Michelangelo como um
monumento à grandiosidade intemporal, os historiadores da arte, em sua
maioria, entendiam-na como uma representação da calmaria que precede a
tempestade”. Freud, no entanto, havia concluído que Michelangelo pretendera
mostrar seu Moisés enquanto dominava sua tempestade interior e, assim,
estava ciente de que sua interpretação contradizia o texto bíblico, embora isso
não abalasse sua convicção de que havia um caráter humano na imagem,
traço que denota a originalidade do artista. O que soa, “em boa medida”, como
se estas conjecturas de Freud fossem também “uma leitura de si mesmo” (Gay,
1989, ps. 294-5), assim como alguns psicanalistas viriam especular.
Deixando de lado estes aspectos biográficos e ressaltando os termos
dinâmicos,
ao situar uma hermenêutica na dinâmica que vincula seu olhar à obra e
esta ao olhar, Freud rompe com o preceito da verdade estática,
atemporal, fixada ao ser descoberta por um olhar de sobrevoo em
relação ao objeto. Ao contrário, é o não-dito (ou o não visível) que é
capaz de revelar criativamente uma história ou uma sucessão de
acontecimentos no decorrer da análise de uma obra. E nesse processo
de instauração de uma leitura é o ponto de vista do espectador que
paulatinamente se infiltra no campo da criação, uma vez que a obra
119
também se faz tributária do olhar que a interroga (Frayze-Pereira,
2005, p. 26).
Aparentado ao trabalho do detetive, o movimento de reconstrução em
Freud revela o particípio passado de uma cena, quer dizer, segundo as
próprias palavras do “vendedor de cavalos”, o “resto de um movimento
transcorrido” (Freud, 1996[1914], p. 234). Ora, tais constatações levam a
presumir que tanto o desligamento quanto à implicação seriam tributários de
um modo de trabalhar rigorosamente freudiano (Freud, 1996[1914], p. 227). Se
o objetivo principal do desligamento é percorrer, em retrospectiva, os caminhos
que a elaboração secundária edificou ao lidar com o conjunto dos pensamentos
inconscientes, então o ensaio sobre Michelangelo se tornaria fonte
paradigmática da “recepção psicanalítica”.
Por quê retomar este ensaio, discutido quase à exaustão? Em
primeiro lugar, pelo fato de que a obra de Michelangelo gerou, com efeito, um
grande número de leituras muitas vezes contraditórias. Sua abertura à
interpretação é inequívoca, e acolhe as mais diversas modalidades verdade
da qual Freud era ciente. Em segundo lugar, pode-se averiguar que nesse caso
específico o pai da psicanálise não demonstra interesse em esgotar a
personalidade de Buonarroti como fizera no exemplo de da Vinci –, ou seja,
ele não pretende encontrar nenhum substrato anímico da sua vida psíquica, ou,
de modo ainda mais ambicioso, o núcleo essencial de sua criação artística.
Enfim, pode-se dizer que o estudo sobre a estátua de Roma, que Freud
realizara obsessivamente ao longo de suas várias visitas à capela de San
Pietro, perfaz, com efeito, uma possibilidade dinâmica de aproximação
psicanalítica das obras (Gagnebin, 1994, p. 28), alçando o horizonte máximo
de sua realização. É o que Frayze-Pereira pretende indicar com a proposta de
uma psicanálise implicada, isto é, que não seja meramente exportada do seio
da psicanálise e transplantada a um corpo de conhecimentos para fora de seu
aparato (2005, p. 63).
A psicanálise é ao mesmo tempo formadora e formada pela cultura:
assim, a implicação assume que o leitor também esteja sob a condição de
120
determinações em via de mão dupla. Trata-se de “uma interpretação que não é
exaustiva”, ademais, pois “é posta à prova ao ser comunicada” (Frayze-Pereira,
2005, p. 65). Se ao interpretar uma obra o analista pode contar com suas
próprias associações como sugeriam AndGreen, e Catherine Desprats-
Pequignot –, então o resultado da leitura se constrói mediante o enigma
proposto pela obra, assim como pelos efeitos subjetivos que a obra abre ao ser
percepcionada. É “a obra que orienta a atividade do espectador”, acrescenta
Frayze-Pereira, “é a experiência com ela que solicita uma teoria que lhe
corresponda” (2005, p. 76).
Em equivalência ao processo pessoal de análise, o inconsciente do
analista se configura no interior da cena interpretativa a partir da sua “eficácia”
de alteridade já que esta é a sua ferramenta privilegiada de trabalho. At last but
not least, ao responder à inquietação que a obra lhe oferece para então derivar,
a partir dela, certas consequências psicológicas que seu conteúdo dispõe, é
como se Freud estivesse falando, inconscientemente, sobre aquilo que o
enquanto olha (Freud, 1996[1914], p. 218; Desprats-Pequignot, 2008).
Retomando a discussão de Murielle Gagnebin, em outras palavras,
É atestar que Freud, ousando se livrar de todo um jogo de
projeções e de retomadas racionais, situa de pronto a hermenêutica no
trajeto que liga seu olhar à obra e a obra ao seu olhar, rompendo ao
mesmo tempo com a ideologia de uma verdade estática da obra, uma
verdade descoberta de uma vez por todas (1994, p. 28).
É desnecessário dizer que esta posição rejeita a aplicação das teorias
freudianas a qualquer que seja o objeto em pauta. Sem dúvida, o emprego do
vocabulário psicanalítico pode ser usado para ilustrar ou “interpretar” os
fenômenos mais diversos; no entanto, ao proceder desse modo, isto é, ao se
eleger a teoria psicanalítica como modalidade exclusiva de reflexão sobre arte,
“será nada mais nada menos do que converter a obra psicanalisada num
sintoma da teoria” (Frayze-Pereira, 2005, p. 64). A rigor, as significações que
vão ganhando forma do decorrer da análise não estão por detrás de uma
121
carapaça manifesta, à espera de serem encontradas; em outras palavras,
dentro do espaço analítico o sentido é sempre criado.
“Moisés de Michelangelo” figuraria então como espécime sui generis
deste modo de trabalhar; ainda que situe um Freud “fora” de sessão, o ensaio
apresenta decorrências fundamentais ao trabalho analítico, aquilo que se pode
apreender da abertura à livre associação combinada à atenção flutuante.
Transação que pressupõe a construção de sentido que vai do singular ao
singular, como indica Renato Mezan (1990), o procedimento tem o mérito de
disponibilizar uma capacidade “analítica” cada vez maior ao aparelho psíquico.
Mais do que analisar, diante da estátua Freud desejou ampliar o rol de
sensações que são produzidas no enfrentamento com o objeto de arte (Frayze-
Pereira, 1995). Ao contrário de forçar genealogias edípicas, Freud pára para
ouvir; seu olhar-escuta o conduz ao não-saber.
Isto dito,
(...) é sem sentido pretender que essa maneira de trabalhar possa ser
reduzida aos termos formais de um método aplicável indiferentemente
a qualquer objeto. A condição de que se tenha tido a experiência da
psicanálise para praticar a Psicanálise, ainda que sobre textos ou
quadros, delimita a especificidade da interpretação psicanalítica. (...)
Ora, esse caráter da prática psicanalítica coloca a Psicanálise da Arte
fora dos limites de uma simples psicanálise aplicada, pois não se
restringe a uma verificação do método ou dos conceitos da Psicanálise.
(Frayze-Pereira 2005, p. 64-5).
Ora, se se constata a dedicação interna com a qual Freud se dispôs
para analisar a escultura, e pensando que essa necessidade interior seja
idêntica àquela demandada pela experiência de escuta clínica, o se poderia
dizer que paciente e obra habitam um mesmo lugar?
A possibilidade de se conceberem semelhanças entre obra e paciente
justificaria, afinal, a própria noção de implicação. Nenhum dos autores antes
citados autorizaria uma associação desta ordem. Mesmo segundo Frayze-
122
Pereira, no entanto, o paciente não é uma obra de arte, “embora com ele
possamos nos relacionar como se ele fosse uma obra de arte” (2004, p. 34,
grifos meus). A meu ver, esta analogia remete a uma metaforização radical da
posição do espectador: ainda que não sejam a mesma coisa, analisando e obra
requerem o mesmo cuidado no encontro com o outro. Em ambos os casos, as
compreensões imediatas que devem ser evitadas, como certifica o próprio
Frayze-Pereira vão dando lugar a reflexões cada vez mais complexas. A
disponibilidade do analista-espectador, deve-se acrescentar, “é exigida pela
própria singularidade da obra, porque é próprio à obra de arte apresentar uma
coesão, uma unidade orgânica tão poderosa que ela remete mais a si mesma e
a sua história do que a qualquer outro ente no mundo”. Nessa ótica, a obra
seria de antemão “um corpo autorreferenciado, uma junção insubstituível e sutil
de uma forma e de uma significação, composto segundo a vocação de cada
arte” (Frayze-Pereira, 2004, p. 35).
Assim, antes de assumir qualquer pressuposição teórica, o espectador
deve esperar pelas demandas que a obra de arte pode lhe oferecer. Sua
paciência será recompensada pelo universo incomensurável de possibilidades
hermenêuticas. Em outras palavras, “pode-se dizer que tanto na relação
terapêutica com o paciente como no exame de uma obra de arte que se ter
um primeiro tempo”, um tempo da experiência, de acordo com o autor,
“segundo o qual o olhar vai ao encontro da realidade sensível que se oferece a
ele sem reconhecer nela estruturas fixas” (2004, ps. 35-6).
No pensamento de Freud, esta necessidade de reservar um tempo
precedente de reflexão é autorizada pela própria prática da psicanálise. A título
de exemplo, ele considerava, em “O início do tratamento”, que esse tempo de
latência, por ele intitulado de “tratamento de ensaio”, deveria ser manejado ao
longo de uma ou duas semanas, durante as quais o psicanalista diz somente o
indispensável. Nesse momento, o analista não se o direito de interpretar,
assim como não deve tirar conclusões prévias, sejam elas técnicas ou
diagnósticas. Assim, conviria estabelecer o mesmo procedimento no contato
com a obra. Nascido deste encontro, o respeito salutar entre espectador e arte
é condição a priori da interpretação.
123
Para além da posição defensiva ou confortável que a ideia de método
assegura, pode-se aventar que o espectador implicado sabe que as
interpretações surgidas na relação com a obra nunca deixarão de estar
influenciadas por sua própria contratransferência. Nessa perspectiva, se
considerarmos que a transferência do analista como outros preferem chamá-
la sempre vem antes,
20
para retomar uma recomendação certeira de Radmila
Zygouris, então este espectador, assim como o psicanalista, estará sempre
alerta ao emaranhado de seus mecanismos psíquicos, bem como o conjunto
de afetos, sensações e pensamentos que atua nos encontros. A partir das
advertências técnicas recomendadas por Freud a respeito desse tempo
preliminar, parece-me que o círculo de “uso” teórico da psicanálise acaba
inevitavelmente retornando à querela da aplicação. Desse modo, a psicanálise
aplicada poderia ser analisada não apenas como modalidade de defesa (uma
projeção, por exemplo), mas como um verdadeiro jogo transferencial.
Ao fim e ao cabo, tais questões de ordem epistemológica impõem, na
verdade, uma discussão ética. Ora, o caráter mais ou menos normativo das
interpretações reflete a especificidade de uma postura propriamente humana.
“Será sobretudo uma onipotência típica do registro do narcisismo a grande
responsável pela intolerância ao desvio”, escreve a este respeito Nelson da
Silva Junior, “o que tem como consequência inevitável formas mais ou menos
veladas de abuso de poder por parte do terapeuta”. Seguindo indicações de
Mezan, Silva Junior considera que a maior garantia ética do psicanalista é o
grau de consciência que possui de sua “própria vulnerabilidade diante dos
processos inconscientes, assim como uma atitude consequente diante de tal
vulnerabilidade, sob a forma de ‘análise da contratransferência’, de modo a
separar seu próprio interlocutor ausente para retomar uma noção cara a
Pierre Fédida das representações que faz do paciente” (2006, p. 199). Nesta
linha de raciocínio, a psicanálise é possível se aquele que a interpela seja
visto como um enigma incompreendido de antemão.
20
Ao entrar na sala, o analisando se depara com um psicanalista... que estava ali à sua
espera.
124
Segundo o autor,
Um analista deve escutar na passividade de sua incerteza.
Falar em passividade na incerteza serve assim, antes de mais nada,
para pensarmos uma condição da linguagem, e, ainda mais
precisamente, uma condição da recepção do sentido. Isso supõe uma
preexistência do outro no material da palavra analítica – existência
anterior, portanto, à alteridade explicitamente nomeada ou invocada no
discurso consciente (Silva Junior, 2007, p. 31).
Enquanto o psicanalista se mantiver em posição de fechamento aos
novos encontros, todo o fenômeno da transferência isto é, a condição sine
qua non à experiência da análise, sendo ou não terapêutica estará para ele
inacessível. No tocante à técnica, Freud insinuava que só a aposta num vínculo
conseguiria vencer as diversas resistências diante das quais a análise esta
sujeita (1996[1913a], p. 143). E se é verdadeiro – cabe repetir – que ao
analisar obras o analista possa contar apenas com as suas próprias
associações, o que fazer na ausência de transferência? Em meio a condições
tão limitantes não resta muito a fazer. Segundo Julia Kristeva, de outro modo, o
fenômeno da criação em análise está fortemente articulado à experiência da
intimidade, indício de uma subjetividade, representação interna do “eu
pensante pensando-se” que deve ser bem conservada. Para tanto, escreve
Kristeva, “não temos outro meio senão o da contratransferência, de uma parte,
e, de outra, de uma escuta diferenciada identificável a uma ‘poiética’ que dá,
digamos, um estilo ao discurso no interior da cura” (1997, p. 80). Ora, os efeitos
contratransferenciais não devem personificar a matéria malquista a ser
extirpada; de sua parte, eles também podem ser analisados. Trata-se, quando
é o caso, de uma “economia que atualiza a heterogeneidade do aparelho
psíquico” (p. 95).
A insistência de certos temas ou formas de expressão surge logo no
momento em que o princípio da atenção flutuante adentra o curso da recepção,
fato que nos permite fazer mais paralelos com o setting terapêutico: ali, os
sentidos, conquistados no atravessamento da relação analista-analisando, o
125
autorizados unicamente pelo vai-e-vem entre fala sensível e escuta clínica.
Articulações vão se tornando evidentes porque ambos sujeitos estão incluídos,
de maneira criadora e coparticipativa, em um processo que configura a
“aventura psíquica” de se fazer análise. E sua duração pode custar o mesmo
tempo que se leva para olhar uma obra de arte: nunca se sabe.
(...) mesmo admitindo com Freud que o símbolo é o que dissimula ou
disfarça o desejo, ele é também o que o revela, aquilo que o designa.
E, nesse caso, não razão para se dissipar um símbolo (como se ele
fosse um anteparo interposto), visando avançar numa região situada
além ou aquém da obra de arte. Se ambiguidade e transcendência são
essenciais ao simbólico, o olhar flutuante coparticipará das formas (...)
quer dizer, torna-se possível à obra expressar uma experiência atual,
ao objeto estético conservar sua legitimidade, ao olhar do espectador-
analista pertencer às formas que se oferecem a ele nos objetos visíveis
(Frayze-Pereira, 2004, p. 36).
Se cada sessão, cada encontro entre psicanalista e paciente é um
fenômeno singular, como observa Frayze-Pereira, então “cada psicanálise
escapa de ser uma repetição ao infinito daquilo que teoricamente se sabe,
dada a atualidade ecumênica das doutrinas” (2004, p. 37). Por se deixar
conduzir pela regra de ouro da análise, seja partindo do analisando seja diante
da obra, restaria ao espectador o trabalho de dirigir sua escuta, da mesma
maneira como se diz, no jargão psicanalítico, “dirigir o tratamento”. Em outras
palavras, pode-se dizer que o “modo de pensar psicanalítico, enquanto trabalho
de reflexão, não é um método porque não é um instrumento ao qual o sujeito
pode recorrer para garantir a adequação das suas operações”. Trabalhar com a
obra sob o rigor psicanalítico representa importar a operação da formatividade
para o interior do universo analítico:
“um fazer formativo tal que enquanto faz
nega o feito, o instituído, e inventa o por fazer e o modo de fazer, o instituinte”
(p. 39).
Nas palavras do autor,
126
Considerar o paciente como se fosse uma obra de arte implica
interrogar a noção de método, implica uma profunda mudança de
postura do analista com relação ao conhecimento, com relação à
abordagem das questões teórico-clínicas, não somente em sua prática
particular, mas sobretudo no tocante à difusão da Psicanálise e à
formação do próprio psicanalista (Frayze-Pereira, 2004, p. 40).
Eis que nos vemos diante de outro paradoxo: a meu ver, pensar em
psicanálise da arte ou em psicanálise aplicada seria, no rigor do termo, não
fazê-las. Ao invés de subsumir uma pela outra, seria muito mais adequado
aproximar arte e psicanálise, justamente porque elas partem de uma mesma
estrutura, isso se considerarmos, como se deseja no vocabulário freudiano,
que obra e leitura sejam sobredeterminadas. Nesse sentido se pode dizer que,
para Freud, “a obra possui uma dimensão invisível cuja construção é suscitada
pelo visível” (Frayze-Pereira, 2005, p. 72). Implicar-se também significa
reconhecer, como disse André Green, que o investigador não exclui suas
estruturas subjetivas do campo interpretativo sobre o qual se debruça. Desta
maneira – e desta maneira apenas – o espectador pode assumir que a leitura é
de fato algo arriscado a fazer, “pois o intérprete está livre de um lado
exatamente porque ligado ao outro, podendo acontecer que as descobertas
resultantes afetem sua relação com seu próprio inconsciente”. E se, na
contramão, esta psicanálise assume o compromisso de ser “derivada das artes
ou engastada nelas, pois não é uma forma a se aplicar à matéria exterior, não
é um modelo que ajusta abstratamente o objeto artístico às suas exigências
teórico-conceituais” (Frayze-Pereira, 2005, p. 74, grifos meus; p. 23), ela nos
conduz à constatação de que as interpretações são sempre congeniais à forma
– aí está o seu mais alto risco.
Mas o que fazer, enfim, ao aceitá-lo? O mais simples possível, nada
mais, nada menos: deixar-se conduzir à experiência radical de alteridade
ofertada pelo fenômeno estético.
*
127
Embora a questão sobre o fora-da-clínica tenha ganhado, até o
momento, um corpus relativamente consistente, a discussão ainda não se pode
dar por satisfeita. Se é verdade que a concepção de psicanálise extramuros,
defendida por Laplanche (mas também, em certa medida, por Donald Kuspit,
Sarah Kofman e Janine Chasseguet-Smirgel), consegue revelar a cavidade
problemática que reside no intervalo que vai da experiência analítica à cultura,
isso não significa necessariamente que ofereça a eficácia interpretativa exigida
pelo dispositivo psicanalítico. Com isso pretendo afirmar que, salvo a
aproximação de fronteiras, a interpretação extramuros não garante, como
consequência direta, o que não quer dizer que não a tenha, a demanda de
implicação subjetiva inerente à legibilidade de obras de arte. Adotar uma
postura não violenta e antipsicopatológica é o mínimo que a obra exige de seu
espectador. Em outras palavras, é precisamente o que as reflexões de André
Green, Murielle Gagnebin e de João Frayze-Pereira fazem ventilar. Executar a
análise extramuros não assegura que o intérprete deixou de alçar “sobrevoos
conceituais”; neste registro, ele ainda pode se perder “na rede confortável das
representações abstratas, cognitivamente anestésicas e emocionalmente
indolores” que o distanciariam da experiência estética, como sentencia Frayze-
Pereira (2005, p. 377).
Tampouco desejo afirmar, de maneira tão irresponsável, que os
problemas se resolvem com a investigação da secundaridade, ou que a leitura
se encerre, em definitivo, nos alicerces da implicação. Qualquer relação com o
outro provoca resistências, defesas, identificações, projeções. Longe de
fundamentar exercícios totalizantes, tais leituras têm o mérito de demonstrar a
intensa fertilidade que provocam à arte e à psicanálise, de modo que se um
dos termos for excluído todo o sentido da interpretação cai por terra. É muito
comum, com respeito à fortuna crítica produzida pelos psicanalistas, que as
análises acabem servindo mais à psicanálise que à arte. A princípio, trabalhar
de maneira implicada significaria abrir espaço para que um dia se possa
prescindir da própria psicanálise, tal como se dá na experiência concreta do
divã. Não existem apenas análises intermináveis...
Talvez a hesitação de Freud em assinar seu “Moises de Michelangelo”
ganhe maior coerência a partir de agora: ele sabia que, ao escrever o ensaio
128
que de fora a fora quase nunca se remete ao vocabulário que ele próprio
concebeu –, estava produzindo algo que ia além da ciência que ambicionava
construir. Era um passo muito largo, mesmo para um homem como Freud; não
admira que tanto houvesse titubeado.
129
Capítulo 3
De outubro em diante, reflexões estéticas em inglês
Hal Foster et. alli.
Da sugestão para entendermos o “analisando como obra de arteà tese
sobre a “obra como analista do espectador” ergue-se alguns degraus a
percorrer. Em meio a essas tantas inversões, existiriam com efeito obras que
pressupõem a análise de quem as vê, de modo que o trabalho crítico é
chamado a intervir. As motivações presentes em The return of the real, do
crítico e historiador da arte Hal Foster, dão provas de uma reflexão que merece
destaque neste eixo de relações implicadas. Ao investigar o problema da
“estranha temporalidade inerente à concepção de vanguarda, temporalidade
perdida, aliás, segundo ele, “em histórias da arte do século XX”, Foster teria
conseguido ampliar a própria categoria de vanguarda ao percorrer um trajeto
que vai da experiência estética à psicanálise. “Tal como a vanguarda recua ao
passado”, escreve, bastante influenciado pelo Freud do “Homem dos Ratos”,
“ela também retorna do futuro, reposicionada de modo inovador com a arte do
presente” (1996, p. x).
Alinhavada em suas publicações mais maduras, esta mudança
paradigmática – cuja radicalidade é inaugurada em Walter Benjamin e depende
de sua dialética supõe a necessidade de discutir, a partir dos eixos vertical e
horizontal, quer dizer, diacrônico e sincrônico, como a categoria tradicional de
vanguarda viria se tornar insatisfatória, sobretudo em função do surgimento de
poéticas contemporâneas que a tematizam e rediscutem, neste caso particular,
ao longo das cadas de 1960 e de 1990. É claro que historiador americano
está se referindo a Teoria da Vanguarda, conforme a proposta inaugurada por
Peter Bürger em seu mais reconhecido ensaio. Segundo Foster, existem certas
nuances discursivas determinadas sem dúvida pelos circuitos de produção e
crítica de arte que inauguram novas categorias de sujeito, da noção de outro
da cultura e das transformações tecnológicas subsequentes (1996, p. 208),
assim relativizando a concepção histórica de vanguarda. Na linha que conduz
do moderno ao s-moderno não caberia, de acordo com o autor, presumir a
130
existência de uma progressão horizontal. Para ele, o eixo de seu
desenvolvimento é ao mesmo tempo cíclico e descontínuo: a partir da
articulação entre os diferentes discursos, revela-se uma concepção singular de
temporalidade para cada uma destas “épocas”. Traduzindo em outras palavras,
pode-se dizer que de trinta em trinta anos isto é, conforme se estabelecem
determinados ciclos econômicos do capitalismo tardio –, o espírito estético da
modernidade acabou exigindo reelaborações de seu passado, visando saber,
afinal, para onde ir.
Esta ressignificação crítica em torno do conceito de vanguarda foi na
verdade inspirada, não obstante, como Foster não deixa de reconhecê-lo, por
uma intervenção em que Benjamin Buchloh
discorre a respeito das condições
que apontam o estancamento histórico daquela concepção. Em consequência
de um intenso debate com o texto de Bürger, é de fato Buchloh quem a
princípio reconhece a necessidade de importar, da psicanálise, uma teoria da
história que conseguisse satisfazer a complexidade do fenômeno de “pós-
modernização” da arte. Para o adorniano Bürger, como se sabe, a noção de
vanguarda teria morrido junto aos ismos do século XX. Na posição contrária,
Bürger insiste que, em termos de arte, o que surge após os movimentos do
início do século não seria muito mais do que mera imitação.
E é em função de julgá-la como “deficiência crítica” que Buchloh busca
o auxílio de Freud. Sua reação quase chega às vias de fato: “Melhor que
descartar quarenta anos de história da neovanguarda com a ingenuidade de
um historiador da arte que limita seu campo e predetermina suas fronteiras”,
declara em “The primary colors for the second time”, “talvez seja mais
apropriado investigar as condições fatídicas de recepção e de transformação
dos paradigmas da vanguarda” (1986, p. 43). Ainda segundo Buchloh, o
repertório de repetições acessado pela vanguarda contemporânea possui um
conjunto de especificidades que impõe outra sistematicidade à análise. Ora, a
presença da repetição na arte contemporânea visaria nada mais que trazer à
superfície algo que antes tenha sido reprimido, como indicava o trabalho de
Freud. O prefixo neo, neste caso, antes de ser julgado como simples vontade
novidadeira, sugere que alguma experiência passada carece de elaboração
presente.
131
Nas palavras de Buchloh,
Este esclarecimento deveria ser desenvolvido, a princípio,
dentro da prática discursiva propriamente dita, e não por uma procura
de recursos em categorias transcendentais como causalidade e
determinação. Tampouco se pode elucidar a relação entre a vanguarda
histórica e a neovanguarda a partir de um propósito centralizado, o de
um momento autêntico de originalidade diante do qual todas as
atividades subsequentes surgem como meras repetições (1986, p. 43).
Inspirado pelas conclusões de Buchloh, Foster então propõe a
concepção de parallax, procurando circunscrever uma teoria da história que
abranja este movimento pendular da modernidade. Seu procedimento, em
linhas rápidas, “envolve o deslocamento aparente de um objeto causado pelo
movimento real de seu observador. Esta imagem [parallax] enfatiza que nossos
enquadramentos do passado dependem de nossas posições no presente”,
assim como as posições de agora serão redefinidas por meio de novos
“enquadramentos”. Desse modo, o presente, tal como Benjamin adiantara em
suas Teses sobre a História, é uma somatória de memórias do passado com as
prospecções de um futuro por vir.
No que concerne à especificidade do campo psicanalítico, Foster está
sugerindo um resgate da teoria do trauma, cuja temporalidade é bastante
característica: Nachträglichkeit é o conceito utilizado por Freud para definir a
ressignificação que histérica faz da sedução infantil de qual teria sido vítima.
Assim, a condição de reflexividade do observador sempre estará demarcada,
seguindo a teoria de Foster via Freud, por uma força de “retroação temporal”
(deferred action). “Em Freud, um evento é registrado como traumático apenas
através de um evento posterior que o recodifica retroativamente”, quer dizer,
por meio de uma “ação diferida”
1
(Foster, 1996, p. xii).
1
A tradução de Nachträglich por deferred action opção feita pela Standard Edition das obras
completas de Freud é motivo de controvérsia. Laplanche e Pontalis sugerem que traduzir por
“ação diferida” faria perder seu caráter dinâmico, pois seria entendida como uma “descarga
132
Empresto a noção de ação diferida de Freud, para quem a
subjetividade, nunca dada de uma vez por todas, é estruturada numa
série de antecipações e reconstruções de eventos que, por natureza,
são geralmente traumáticos: chegamos a ser quem somos apenas na
ação diferida (1993, p. 05).
A partir de um processo dialético como este, modernismo e pós-
modernismo podem ser “compreendidos, senão constituídos, de maneira
análoga”. Não se exclui que o significado mais amplo de vanguarda seja
atravessado pelo mesmo entrecortar de antecipações futuras e reconstruções
do passado. “Cada época sonha a próxima”, lê-se na sua conclusão
benjaminiana para The return of the real, “mas ao fazê-lo revisa a que lhe foi
anterior; assim como uma época conduz à próxima, esta compreende a
anterior” (Foster, 1996, p. 218). De acordo com esta dinâmica temporal, a ideia
de que exista um presente “em si” se torna absurda, assim como o marco
sincrônico funcionaria apenas como uma ferramenta de esquematização. A
rigor, o presente seria uma mistura de tempos. E como pensava Freud, nesse
sentido, a dimensão do sexual sempre vem antes ou depois do que deveria vir,
nunca no momento “presente”. Por essa razão, a consciência que se tem de
um determinado período “não apenas surge depois do fato”: ela “também está
sempre em parallax(1993, p. 06), isto é, funcionando segundo o processo de
retroação.
A noção de “posterioridade” (conforme a tradução proposta para
Nachträglichkeit por Laplanche e Pontalis) é no entanto pouco referida dentro
do circuito de ideias psicanalíticas, ainda que tenha sido sublinhada com
insistência na obra freudiana. Quanto ao conceito propriamente dito, não existe
uma definição rigorosa ou qualquer teoria de conjunto. Além disso, em
psicanálise a temporalidade anda sempre de mãos dadas com a tese da
causalidade psíquica, onde de fato recai o maior conjunto de investigações
teórico-clínicas. Em suma, a tese defende que certos acontecimentos
presentes contingências mais ou menos significativas teriam o poder de
retardada”, o que não condiz à aplicação freudiana. Para Freud, haveria, nesta posterioridade
(sugestão desses autores) um verdadeiro processo de elaboração.
133
ressignificar experiências anteriores, no geral traumáticas, ou conseguiriam
dotar-lhes de uma “eficácia psíquica”, como por meio de uma interpretação, por
exemplo.
Além de alargar o conceito de história, a categoria de “posterioridade”
ainda acabaria ampliando os limites da própria reflexão estética é o que
Foster almeja fazer, com relação às poéticas que investiga. A psicanálise
proporcionou-lhe a compreensão de que o passado que retorna não é um
passado qualquer: se a repetição deixa de ser entendida apenas como farsa,
justificando, portanto, sua presença enquanto procedimento de criação, então
as poéticas de neovanguarda teriam o direito de exigir, ao exercício da crítica,
novas interpretações.
3.1) Primeira repetição. Cinismo e falsidade?
A coisa repetível pode ser muito variável conforme as singularidades em
jogo, e é mesmo preciso “distinguir a repetição da coisa repetida” (Zygouris,
1999, p. 20). Nem por “referência” nem por “simulacro” em The return of the
real Foster sugere uma terceira via de leitura para a pop art americana dos
anos 1960.
2
Sua posição evita tanto o caráter temático das interpretações, ou
seja, aquilo a que se assiste, na melhor das hipóteses, com os ensaios em que
Thomas Crow faz “sentimento e política” andarem lado a lado, quanto a
rotulação de superficialidade que pensadores pós-estruturalistas como Barthes,
Baudrillard, Foucault e Deleuze viriam delegar àquela poética. Ainda que as
duas referências tenham falado de seu presente de maneira indireta, a partir da
“reconstrução de momentos passados” combinada à “antecipação de
momentos futuros”, tampouco teriam deixado de se revelar insuficientes
(Foster, 1993, p. 07). A propósito, a delegação de “arte como simulacro ou
como “coleção de citações” fora bastante disseminada no início dos anos 1980,
2
Foster refere que seu trabalho se concentra especialmente nas imagens de “Death in
America”, expostas naquela década por Andy Warhol em Paris.
134
sobretudo após o surgimento da noção de “transvanguarda” cunhada pelo
crítico e curador italiano Achille B. Oliva. Todo programa de arte que vise à
apropriação do passado se tornaria figura central na discussão estética
contemporânea, e é diante destes procedimentos pop es-pop que a reflexão
de Foster procura um espaço para habitar.
Enquanto a leitura referencial tenderia ao método relacional, fazendo
associações entre a arte pop e o mundo da moda, a cultura gay ou o universo
televisivo das celebridades, a interpretação pela via do simulacro o aposta
na presença de quaisquer níveis de profundidade ou de interioridade subjetiva
nos trabalhos. Não foram poucos os críticos que condenariam as imagens, no
geral pela acusação de destituição de senso histórico ou pelo registro de uma
arte cínica, sem substância. A referencialidade, por outro lado, também não
melhorou o estado de coisas: “A maioria das descrições a respeito da arte de
suporte fotográfico do pós-guerra divide-se de algum modo nessa linha”,
conclui o crítico, na “imagem como referência ou como simulacro” (Foster,
1996, p. 128). De modo mais preciso, Foster sugere que
A compreensão empática de Warhol, ou mesmo a engajada, é
uma projeção, não mais que a superficial, de um Warhol passivo, ainda
que esta projeção viesse dele mesmo: “Se você quer saber tudo sobre
Andy Warhol, apenas olhe para a superfície de minhas pinturas e
filmes, e estou eu. Não nada por detrás”. Ambos campos
perfazem o Warhol que eles querem, ou dão o Warhol que merecem;
não dúvidas de que assim o façam. E nenhuma das projeções está
errada. Acredito que as duas são persuasivas. Mas não poderiam estar
ambas corretas... ou podem? Podemos ler as imagens de Death in
America” como referenciais e simulacrais, conectadas e
desconectadas, afetivas e desafetadas, críticas e complacentes?
Acredito que devemos fazê-lo (1996, p. 130)
.
Revelada a estratégia empobrecedora do “ou ou”, examinemos mais a
fundo os pormenores: se o vazio na sentença I want to be a machine”, de
Warhol, pode ser colocado em dúvida pelo caráter desejante do I want, é
135
porque este buraco deve ser entendido como trauma e não como
esvaziamento. Ao experimentar o choque de também ser máquina, assombro
aproximado daquilo que “paralisa o mecanismo associativo do espectador”
(Benjamin, 1994, p. 107), é como se no sujeito se instalasse um trauma que lhe
serviria de mecanismo mimético-defensivo. Por um lado, quando confessa qual
é seu almoço predileto durante os últimos vinte anos “o que mais, além de
Sopa Campbell’s”? –, o artista estaria metaforizando o caráter de “compulsão à
repetição” de sua vida; por outro, no entanto, também a compulsão de sua
própria arte. Em outras palavras, a cada vez que se adere a uma sociedade em
que produção e consumo se tornam elementos seriais, mais exposta se revela
a estrutura compulsiva desta mesma sociedade.
Declarar o “automatismo, até mesmo seu autismo” em escala cultural
seria o horizonte de realização do mais famoso artista pop: “Se você não pode
com eles, junte-se a eles”, diria com certeza. Nestas circunstâncias, trata-se de
pensar em que medida o traumático e o compulsivo repõem a questão formal
da repetição na imagem contemporânea. Assiste-se, neste contexto, tanto ao
esgotamento da significação quanto a uma espécie de artifício de defesa contra
o afeto que guiariam Warhol (e outros de mesma linhagem) até o final de sua
carreira (Foster, 1996, p. 131). Esse vazio autístico/afásico de significância é
marcado por um aglomerado de caracteres psicológicos, características
acessadas inclusive por quase toda a arte desde Duchamp: a obsessão pelo
comportamento repetitivo e pelo funcionamento maquínico, a crise da noção de
identidade como categoria fixa, que passa a ser vivida como perda de sentido
referencial ora, quem é o “eu” e quem é o “tu” nas sentenças duchampianas?
–, assim como o narcisismo intrínseco às videomedias denunciado por
Rosalind Krauss etc.
Antes, porém, seria preciso ter em mente que o niilismo capitalista de
Warhol é parte integrante de sua poética. E as performances dele decorrentes
se aproximam, de maneira quase infantil, ao acting out: “há um sujeito ‘por
detrás’ desta figura de não-subjetividade que a apresenta como uma figura”; do
contrário, “o sujeito traumatizado seria um oximoro para o qual não há um
sujeito presente em choque” (Foster, 1996, p. 131). Com isso, pode-se dizer
que o fascínio que a pop-art suscita no espectador possuiria um caráter de
136
certo modo “panóptico”: não haveria ali, por detrás do vazio, o anão o artista
– que manipula o “boneco” da imagem, como Benjamin indicava?
A crítica que Donald Kuspit promove da apropriação de imagens feita
por Warhol revela-se muito menos simpática. Sem desvios, a opinião de Kuspit
se insere nas acusações de cinismo e indiferença. A querela entre ele e Foster
não é apenas de ordem “metodológica” ou psicanalítica, como se poderia
constatar (no primeiro capítulo deste trabalho). O cerne de toda a discussão é,
com efeito, crítico: segundo Kuspit, Warhol teria sido desavergonhadamente “o
primeiro pseudo-vanguardista de maior visibilidade” (1995, p. 102). Para ele,
neovanguarda equivale a pseudo-vanguarda: a tese sobre a repetição
enquanto mentira, aventada por Marx em seu “18 Brumário”, teria sido
definitivamente provada pelo advento da arte pop, junto à sua decorrência
lógica, a appropriation art.
A título de exemplo, o crítico sugere o exame de Jeff Koons: artista
bastante recente, Koons teria se apropriado de uma imagética “que é muito
bem sucedida e ganha dinheiro com esse sucesso”, notoriedade que, aliás, é
devida, em parte ao menos, ao seu aspecto chocante e “sensacionalista”. A
esse respeito, Koons não esconde o fato de ter se casado com uma das mais
conhecidas porn-stars internacionais. Segundo Kuspit, ao exibir suas imagens
de citação pornográfica o “pseudo-vanguardista” estaria apenas reeditando
(copiando, melhor dizendo) o velho procedimento da transposição consagrado
pelas vanguardas históricas, método que consiste em “trazer imagens vulgares
ou banais para o interior da galeria”, tornando-as assim mais excitantes do que
seriam em seus contextos inexpressivos de origem (1995, p. 102). Esse
procedimento de ironização, intrínseco à apropriação de imagens, acabaria
encerrando a “criticalidade” da história da arte contemporânea porque nela não
haveria mais um autoquestionamento mas somente o conforto de uma
distância cínica. “O artista de vanguarda é um mito no qual investimos muito de
nós mesmos”, escreve logo no início de The cult of the avant-garde artist;
“desinvestindo-o e o desmascarando quebrando o encanto descobrimos o
137
pesadelo do artista neovanguardista dando-nos um mito da arte ao invés de um
mito da experiência” (1995, p. 03).
De fato, a idealização tipicamente modernista do artista de vanguarda
acabou, e nem é preciso ir tão longe para reconhecê-lo: a própria Rosalind
Krauss discutia o assunto, dez anos antes, em The originality of the avant-
garde and other modernist myths (1986). Por outro lado, no que concerne ao
psicológico, segundo Kuspit, Winnicott e Fromm teriam mostrado que é no
espaço de diferença entre compulsão e espontaneidade (leia-se, liberdade) que
poderá surgir o self verdadeiro, integração que sustenta toda a atividade
criadora. O artista moderno, munido supostamente de uma maior capacidade
para sentir o mundo à sua volta, ampara-se numa força heroica de buscar a
verdade por detrás das aparências. Do contrário, o artista da neovanguarda,
farsante por excelência, também “nos diz que podemos ter uma profunda,
mágica experiência ao esfregar a lâmpada de Aladim da arte, enquanto que o
artista de vanguarda nos diz que podemos ter uma arte profunda, mágica, ao
esfregarmos a lâmpada de Aladim da experiência”. Mas, afinal, em “quem
podemos acreditar e confiar?”, pergunta-se Kuspit (1995, p. 03). Em ninguém.
Na neovanguarda, no entanto, aquele heroísmo idealizado pelo artista de
vanguarda se transformou em narcisismo primário; seu caráter defensivo e
autocelebratório nos faz aproximar da experiência narcótica.
Em resumo,
Isto significa, ao contrário do artista vanguardista original, que o
artista pseudo-vanguadista não põe em questão o status quo visual,
aquilo que, com efeito, carrega consigo o questionamento do status
quo psicossocial. Ele simplesmente o “eleva” ao retrabalhá-lo e
recontextualizá-lo ironicamente, o que não quer dizer que ele o
repense. De fato, nossa sociedade tem sucesso com uma
recontextualização “decorativa”, com a reciclagem criativa” de velhas
ideias e imagens. (...) Tornou-se crescentemente difícil imaginar
questões que poderiam ameaçar, de verdade, o status quo burguês
(Kuspit, 1995, p. 102).
138
Assim sendo, “o pós-modernismo desfaz ou reverte a própria reversão
modernista de valores: o pós-modernismo retorna à reação passiva ao invés da
asserção ativa, à negação da vida em vez da sua afirmação”. A função
“naturalmente” terapêutica da arte moderna apontada por Nietzsche, de acordo
com Kuspit, é perdida em absoluto na pós-modernidade, já que em seu espírito
se “aponta que a arte não mais existe para satisfazer a necessidade de
transfiguração do self” (1995, p. 13). O artista como “terapeuta espontâneo” e a
arte como “meio de cura” não existem mais (se é que um dia existiram, pode-se
acrescentar). O crítico o acredita que a arte pós-moderna tenha conseguido,
ou mesmo ambicionado, desmistificar o modernismo heroico antecedente; pelo
contrário, ela o teria “remistificado” por meio do autoinvestimento narcisista,
reduzindo-o a uma iniciativa desprovida de experimentação estética profunda.
Decadente, a neovanguarda acaba reforçando a reificação do estético na
medida em que o conduz ao subjetivismo espetacular. Sua vontade pode
ser significada como traço de ressentimento.
Kuspit acrescenta que o recurso ao narcisismo não seria um privilégio da
arte s-moderna e estava presente no próprio contexto das vanguardas
históricas. A linha que divide vanguarda e neovanguarda seria mais tênue do
que parece. “De fato”, declara, por fim, “a arte da neovanguarda completa o
projeto iniciado pela vanguarda: não apenas continua, de maneira
“democratizante”, a abrir a esfera fechada da arte a todo tipo de criação
afirmando um pluralismo universal que rompe qualquer cânone mas também
a arqueologiza como relíquia”. Sem uma escala quantitativa que as separe, “a
autossatisfação pós-modernista é tão decadente e rbida quanto a
dissatisfação modernista” (1995, ps. 17 – 23)
Esta linha de raciocínio é bastante ilustrativa do que significa falar em
psicologização do fato estético; sem freios, ela se escancara na passagem
seguinte:
De fato, a apropriação irônica é inconscientemente uma forma
de submissão melancólica ao status quo visual e psicossocial. O artista
pseudo-vanguardista reifica os já reificados kitsch e a arte de
vanguarda no interior do fenômeno estético pela razão de seu
139
sucesso social (santificação secular) –, como se fizessem retornar ao
processo dialético. Mas a ironia é sempre resignação ao insight de que
basicamente nada pode ser mudado (...) Visto pelo do filtro da ironia, o
mundo parece particularmente perverso, o que faz parecer mais
mágico sedutoramente realizador de desejos do que nunca será na
realidade (Kuspit, 1995, p. 103).
O apelo ao irônico é, para ele, produto da resignação e da impotência
para realizar mudanças significativas. Frutos desta linhagem, os artistas o
acusados de “egotistas”. Seus trabalhos expressam um modo de mascarar o
aspecto depressivo das impossibilidades que contaminam a subjetividade da
neovanguarda. Son este ângulo, a plástica da ironia apenas manteria “viva a
ideia de mudança revolucionária ao passo em que a reifica numa estratégia de
evolução artística”. Este intenso processo de apelação gerado pelas imagens
apropriadas, bem como seu sistema de reprodução e de consumo de massa,
criam um verdadeiro culto do objeto de arte, lida como idealização fetichista.
Repleto de teor apelativo, acrescenta o crítico, o culto “se torna peculiarmente
anônimo, perdendo a especificidade emocional e existencial que o fez
significativo a um indivíduo particular. Deixa de ser um meio através do qual ele
pode se encontrar, um catalisador de individuação” (Kuspit, 1995, p. 103).
Nostalgia mórbida, a appropriation art não passaria de um tipo de “clonificação”
da vanguarda, e, uma vez que sejam clones, suas imagens retóricas, frias e
vazias expressariam a matéria desprovida de afeto e de humanidade. De sua
parte, os artistas, sem respeito por aquilo de que se apropriam, não
compreendem a relevância ou a implicação inconscientes que estão contidos
no procedimento repetitivo de ironização.
Sem se deixar influenciar, no sentido tradicional, pela imagem que
captura, o appropriation artist tenderia, nesta lógica, a negar “seu valor de fonte
criativa” e a ver o trabalho como mera construção visual. Em função da perda
de “empatia” que acomete seu entendimento sobre a história da arte, “ele não
possui nenhum sentimento perante a sua importância vital” (1995, p. 107). Nos
termos de uma psicologia profunda, segundo Kuspit, esse artista não possuiria
o bom discernimento acerca das “nuances sensório-motoras a diferenciação
140
erótica imanente que constitui a arte da qual ele se apropria”. Para ele e
este é o ponto central de sua tese as possibilidades terapêuticas
3
da arte de
vanguarda, cujo estilo funciona como “terapia compensatória para o eu
derrotado pela sociedade” (1995, p. 19), vêm a ser destruídas pelas
intervenções neovanguardistas. O argumento é de que a arte pós-moderna
mascara, enfim, uma “atitude destrutiva esquizo-paranoide em relação à arte
‘parental’” (Kuspit, 1995, p. 106-7, grifos meus).
Desse modo, a vontade narcísica de sucesso e riqueza se tornaria cada
vez mais urgente no comportamento do artista de neovanguarda. Ele a percebe
como força motriz da experiência moderna, embora não compreenda seu valor
dialético intrínseco. “Um sintoma considerável desse território artístico é o uso
explícito da inovação artística para ganhar fama e fortuna”, lê-se no mesmo
ensaio (Kuspit, 1995, p. 20), independentemente do que esta inovação venha a
produzir na realidade concreta. Conforme esse raciocínio, conquistá-las é a
recompensa que o artista espera ganhar em decorrência de seu
negligenciamento do poder terapêutico vanguardista anterior. A questão acerca
do valor econômico que a obra recebe no cenário contemporâneo seria apenas
mais um dos elementos aos quais o circuito de arte se deve remeter. Como se
sabe, cada vez mais o dinheiro empregado na compra dos trabalhos acaba
interferindo no ou compondo o próprio processo de criação. E apesar de
todo este impacto que os preços suscitam, a obra de arte na pós-vanguarda
reafirma a função de ser uma mercadoria como outra qualquer. Sob essa ótica,
o carisma que cerca a vida do artista de neovanguarda funcionaria como
ingrediente para excitar o amálgama de posteridade e de acúmulo financeiro.
Isso significaria dizer, em outra perspectiva, que a crítica de Kuspit se
ampara em um Freud cuja apreciação estética se revela inequivocamente
conservadora. Hoje se pode reconhecer que a afirmação de que o artista
almeja com exclusividade “fama e fortuna” é, com justiça, um dos mais
problemáticos julgamentos que o inventor da psicanálise publicou a respeito
3
É curioso observar que os títulos empregados por Kuspit (1995) aos capítulos de The Cult of
the avant-garde artist são quase autoexplicativos: “Atitude terapêutica preliminar: o objeto
provocativo como caminho para a primordialidade Picasso e Duchamp”, “A cura geométrica:
arte como uma questão de princípio Mondrian e Malevich”, “A cura expressiva: arte como
recuperação da emoção original expressionismo e surrealismo” e “Fama como cura para
tudo: o carisma do cinismo – Andy Warhol”, e assim por diante.
141
da psicologia do artista. Se por um lado coube à Freud trazê-lo ao lugar comum
o artista seria um “neurótico” ou um “psicótico” como todos nós isso não o
impediu de moralizá-lo numa certa medida. Freud erra e por que não dizê-lo?
quando entra em terreno tão espinhoso. Mas, ainda assim, Kuspit curiosa e
ironicamente
o repete. Para ele, como se vê, a consciência que o artista possui
de sua incapacidade para a mudança o conduz à condição patética de procurar
meios desesperados de compensação. Nesse sentido, a vulnerabilidade do
artista encontraria na ironia a fonte mais confiável de amparo contra a
impotência à qual se vê condenado.
Assim, a arte da apropriação é uma crise no sentido do
propósito da arte. Ela é a expressão exterior de uma crise interna. Ela
implica uma bancarrota criativa, ou a redução da criatividade de
vanguarda a uma brincadeira irônica jogada com a finalidade de seu
próprio divertimento. Ela reduz a criatividade vanguardista a uma fina
indiferença” para com as velhas regras da arte com o objetivo de criar
um novo jogo. Com um mal humor inconsciente, a arte de apropriação
nos diz que a arte acabou, mas que o jogo pode continuar e que jogos
mais espertos podem ser inventados para a nossa diversão. A arte de
apropriação é a pancada mortal à vanguarda, ou uma maneira de
dançar em cima de seu caixão (Kuspit, 1995, p. 107).
A “dessubjetivação” que a neovanguarda parece sustentar se torna,
afinal, nociva, pois procura evitar as experiências de dor e de sofrimento
inseparáveis da condição humana. “Completamente extrínseca”, acrescenta, “a
arte de apropriação zomba e trivializa a inovatividade da arte da qual se
apropria. Não consegue compreender a inovação de dentro, assim como
compreender seus valores humanos” (1995, p. 108). Logo, não criação;
apenas um uso mórbido e parasitário da imagem, a pobreza da cópia, a
resposta simples, o plágio, em resumo. Sua crítica sugere que os pseudo-
vanguardistas não conseguem entender que a arte possa ser a expressão
legítima de um sofrimento. E de maneira ainda mais preocupante
preocupante para os propósitos desta tese –, insinua que a neovanguarda
esquece “a necessidade de cura que visaria”, no homem, “a uma totalidade”
142
(Kuspit, 1995, p. 109, grifos meus). A vanguarda, entendida como tradição
cultural e vontade criadora, estaria morta para estes artistas. As “ofensas
visuais” que os “apropriadores” oferecem ao público, captadas de maneira tão
vulgarizada, conduzem à banalização da própria exaltação histórica da
vanguarda. E seria esse, de modo mais preciso, o movimento temporal que
ocorre entre vanguarda e neovanguarda, segundo a leitura de Kuspit; é o
máximo que sua intervenção consegue alcançar.
Como se pode prever, a tonalidade psicopatologizante de sua
investigação chegará à beira do acinte; a certo momento, Kuspit constata que a
“aniquilação ingênua da arte de vanguarda” feita pelos artistas da apropriação
seria na verdade “uma triste maneira de evitar seu próprio sentimento de não
existir como um artista em seu pleno direito”. Suas conquistas sociais ou
econômicas os famosos quinze minutos de fama vaticinados por Warhol
encorajariam no público a ilusão de que o sucesso está à espera de todos.
Contudo, o que na verdade estaria ocorrendo é a suspensão temporária do
princípio de realidade (1995, p. 109-10). Se a arte é um compartilhamento da
criatividade entre o artista e o espectador, a relação de confidência estará
salvaguardada entre eles: dessa maneira, o pressuposto de que “todos podem
fazer arte” autorizado pelos “pseudoartistas” não é visto com bons olhos pelo
seu exame. Tudo aquilo que Foster e Buchloh delegaram positivamente às
poéticas de neovanguarda é aqui reduzido ao predicado de “pseudoarte”, a
mais pura falsidade. Se Kuspit lesse a interpretação aberta que Leo Steinberg
(2000) oferece às montagens e combine-paintings de Robert Rauschenberg,
destacando o alargamento de fronteiras que o artista teria inaugurado entre
arte e vida, ficaria decerto incomodado.
Como se vê, a relação estabelecida entre as duas temporalidades
moderna e pós-moderna ganha contornos absolutamente distintos em Kuspit
e Foster, como não poderia ser diferente. Para o primeiro, ainda que a arte
moderna procure articular o conflito entre diferentes tempos – o “externo”
correndo mais depressa que o “interno” –, o sentimento de decadência vivido
em seu meio é o reflexo da impossibilidade de uma reconciliação. A
duplicidade da vivência temporal torna fragmentárias as sensações internas,
segundo ele. Na psicanálise kleiniana acessada de perto pelo crítico –, sabe-
143
se bem quais são as consequências do splitting: mesmo que visando preservá-
la, as porções psicóticas invadem a experiência psíquica, fragmentando-a.
Para Kuspit, é exatamente o de que se trata: “a vontade subjetiva de
gratificação imediata não pode ser reconciliada com a realidade, tendo-se que
postergar a gratificação”; desse modo, o “medo da decadência” se transforma
em verdadeiro desespero diante da tendência ao adiamento infindo da
gratificação (1995, 22-3). O pseudoequilíbrio almejado pela neovanguarda não
seria nada além de uma tentativa lúdica e artificial para reconciliar as partes.
E é neste lugar que as fantasias de gratificação neovanguardistas
entram em cena. Oferecendo satisfação imediata, criariam a ilusão de
completude. Na relação que se estabelece entre as duas temporalidades, não
se encontraria “paz e equilíbrio” entre o tempo interno e o tempo externo o
que estaria presente na arte tradicional, de acordo com Kuspit –, embora este
desequilíbrio seja a forma pela qual a modernidade crê se libertar. O nó górdio
da condição moderna implica a problemática do dentro e do fora de maneira
ainda mais precisa: medo da decadência acompanhado do desejo de eterna
juventude. Ao contrário da arte de vanguarda, que nos deu “um prazer tal como
experimentamos amadurecidamente” isto é, uma satisfação madura
porque adiada –, “a arte pós-moderna nos infantiliza”.
Seguindo o raciocínio,
A ilusão é muito mais satisfatória porque encarna a crença de
que o sentimento frustrante de adiamento que assombrou a arte de
vanguarda que parecia ser o início do fim do desejo primordial, uma
decadência interna que a arte de vanguarda tentou parar e reverter ao
perseguir a primordialidade, a pedra mágica da juventude eterna dos
sentidos e de si – está próximo do verdadeiro propósito da arte, que é o
de restaurar o sentimento de gratificação imediata que supostamente
tivemos quando crianças (Kuspit, 1995, p. 23).
É desse modo que o conflito e a consciência de frustração vividos pela
vanguarda seriam foracluídos pela experiência neovanguardista. O aspecto
144
construtivo-terapêutico da arte moderna se vê relegado ao segundo plano, se é
que ainda existe. De acordo a psicologia da arte de Kuspit, considera-se que o
artista s-moderno, ao contrário do vanguardista, seria alguém “feliz consigo
mesmo e com o mundo; não existe tensão dialética entre sua pessoa, sua arte,
e o mundo. Afinal de contas, ele é fundamentalmente criativo, e o mundo sabe
disso e está feliz por ele fazê-lo” (1995, p. 25). Parasita da vanguarda, a
neovanguarda aproveita ao máximo o acúmulo de fama inaugurado pelos seus
predecessores. Afinal, ele “pensa que é significativo unicamente porque é um
artista”, como insinua o autor.
3.2) Segunda repetição. Experiências do real: angústia e trauma
Na o exatamente oposta, “realismo traumático” é a indicação que
Foster propõe para elaborar este não-lugar da temporalidade estética atual. Em
analogia ao funcionamento do aparelho psíquico, o real antes reprimido pelo
pós-estruturalismo pós-moderno retornaria agora como ferida ou trauma,
reedição permanente da experiência sofrida. Warhol, por exemplo, como
lembra Foster, nunca deixou de declarar seu apreço pela mesmice, sobretudo
em função da sua alta capacidade para esvaziar o sentido da imagem. E
conforme Freud havia estabelecido, uma das principais atribuições da
repetição é fazer com que o evento traumático retomado em sonhos, ações,
imagens e sintomas se apague no presente por meio da sua integração na
economia simbólica.
Contudo, as repetições do artista americano não teriam a mesma função
de restauração, pois não dizem respeito ao “domínio do trauma. Mais do que o
paciente libertado do objeto no luto”, o autor indica, “elas sugerem uma fixação
obsessiva no objeto na melancolia” (1996, p. 131-2). A saída não é tão simples,
e o exemplo da acumulação de “Marilyns” não poderia ter um sentido mais
profundo. Além de reproduzir os efeitos traumáticos, a rie na realidade os
produz. Ora, tais repetições carregam contradições radicais no seu interior, não
145
pressupõem elaborações a priori. Se por um lado a dialética da imagem
apropriada oferece uma proteção diante da significação traumática, por outro
também proporciona uma abertura das defesas contra ela: “uma defesa contra
[um] afeto traumático e a sua produção” (1996, p. 132).
Para então pensar o trauma, Foster decide se lançar ao dispositivo
psicanalítico (lacaniano, como ele mesmo confessa). Com a recusa da postura
reducionista “pós-modernismo de reação”, dirá, noutro lugar e munida da
crítica à incompetência das leituras anteriores (temático-referencial e
iconográfica), sua intervenção alude a afinidades insuspeitadas entre o
surgimento da arte pós-moderna e a teoria psicanalítica do olhar (regard ou
gaze, no original francês e na tradução inglesa, respectivamente) desenvolvida
no interior do “retorno à Freud” feito por Lacan.
Cabe assinalar, neste contexto, que Lacan pronunciava o seminário
sobre “Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise”, de onde sai a teoria
sobre o olhar, à mesma época em que Andy Warhol expunha uma série de
trabalhos em Paris (estamos em 1964). O episódio é apenas peculiaridade,
sem dúvida, pois “diferentemente da teoria do simulacro de Baudrillard e
companhia, a teoria do trauma de Lacan não é influenciada pela arte pop”,
como o próprio Foster aponta (1996, p. 132), e sim pelo surrealismo francês,
passagem notória na história da arte e da psicanálise. Ainda assim, se vale
dizer que “Os quatro conceitos...” não foram influenciados diretamente pelo
trabalho de Warhol, tampouco se pode afirmar, de maneira categórica, que
certas imagens criadas pelo artista não teriam sido atravessadas pela teoria
lacaniana. Sequer é provável que eles um dia tenham se encontrado; contudo,
a “unidade conceitual” das obras permanece, no mínimo, como um pano de
fundo para os dois casos (Liu, 2002). Ora, este seminário, que inaugura toda
uma discussão psicanalítica sobre o olhar, adentrou de maneira inegável o
circuito das artes, servindo particularmente ao minimalismo e à arte conceitual.
4
Na ocasião, Lacan procurava definir a noção de trauma em termos de
um encontro perdido com o real encontro que, por não se consumar, produz
4
No campo psicológico, ainda hoje a questão do olhar é tratada mais frequentemente pelas
correntes behaviouristas, psicofísicas ou gestaltistas.
146
no sujeito um impulso de repetição. Repetir, no entanto, em psicanálise não é o
mesmo que reproduzir: em seu domínio, a repetição funciona conforme a
estrutura de um “retorno em espiral”. Uma premissa como essa permite a
Foster a compreensão de que a “repetição em Warhol não é uma reprodução,
no sentido de representação (de um referente) ou simulação (de uma imagem
pura, um significante apartado”. Uma vez perdido, o encontro com o real nunca
pode ser representado; e se é o caso, acaba sendo vivido como repetição
porque sua presença “serve para exibir o verdadeiro entendimento do
traumático”, ou melhor, ela “serve para dar forma ao real entendido como
traumático” (Foster, 1996, p. 132).
Embora esteja para além dela, o real pode ser encontrado durante a
atividade onírica. No sonho, a perda do objeto é experimentada por meio da
figurabilidade. Ora, apenas no sonho o real pode ganhar uma forma – única por
sinal , justamente porque sonhando o sujeito não vê. Assim, o sonho no qual
Freud diz “Pai, não vê que estou queimando?” seria, nesta perspectiva, um dos
resultados mais ilustrativos da análise da perda. “O sujeito não no que isso
vai dar”, comenta Lacan a esse respeito; “ele pode amesmo oportunamente
se destacar, dizer para si mesmo que é um sonho, mas não poderia em
nenhum caso se apreender dentro do sonho à maneira como, no cogito
cartesiano, ele se apreende como pensamento” (Lacan, 1998, p. 76). No que
tange à experiência estética ainda recente, Slavoj Zizek considera que o sonho
seria o “paradigma simbólico” que contorna a passagem da modernidade à
pós-modernidade. Para ele, o paradoxo que a caracteriza é o da
incompatibilidade entre simbólico e gozo. O que o sonho de Freud indicaria, em
termos de verdade inconsciente, é o fato de que o pai não consegue ver que há
um outro gozando ao invés dele.
Se se considera, nesta ótica, que o sonho seja um locus privilegiado
para a experiência psíquica com o real, nada mais adequado que retornar,
como função complementar, ao sonho que decerto foi o mais repetidamente
interpretado ao longo de toda a história da psicanálise. Ao figurabilizar a
injeção de trimetilamina a ser aplicada em Irma, Freud teria nos oferecido um
exemplar princeps do contato com aquilo que, anos mais tarde, Lacan viria a
147
chamar de real. A principal característica do real é, porém, nunca se deixar
interpretar em definitivo. É o que assegura sua existência perene.
Neste sonho da injeção de Irma, portanto, Freud não escapa
simplesmente do inconsciente ou do real do desejo de Irma: ampara-se
sobre eles. Esta é a razão pela qual a psicanálise pode reivindicar
encontrar-se no inconsciente e no desejo da mulher, precisamente
porque registra, com rigor, sua inacessibilidade (...) É em sua recusa a
interpretá-los que a psicanálise os mantém (Lacan, 1998, p. 30, grifos
meus).
No decorrer da experiência com o real, “alguma coisa” de ordem
psíquica pode vir a atravessar, isto é, “algo” deve produzir um corte: algo é
com efeito o máximo que se pode dizer a seu respeito invade o sistema e
instala uma ruptura na série de repetições. E esta ruptura, por sua parte,
encontra-se “menos no mundo e mais no sujeito entre a percepção e a
consciência de um sujeito tocado por uma imagem” (Foster, 1996, p. 132). O
princípio a que Foster se refere neste momento é o da Tycke
5
aristotélica,
situação que forma às modalidades de encontro e desencontro entre sujeito
e objeto conforme retomado pelo psicanalista francês.
Trata-se de um preceito em três faces. Em primeiro lugar, quando ganha
valor simbólico o objeto se transforma em Agalma; no caso contrário, torna-se
Automaton, que é a modalidade de repetição característica do sintoma e
portanto ancorada pelo recalcamento (Zwangswiederholung). Mas é somente
na terceira opção que o encontro entre sujeito e objeto pode se dar pela via do
real, isso que escapa ao simbólico e que instaura a confusão entre o interior e
o exterior. O real está, por conseguinte, para além do sintoma. Nestes termos,
tiquê seria então o encontro original com o real, ou melhor, é o acidente que
nos leva ao seu encontro. Fazer uma análise, por exemplo, representa uma
experiência concreta com o real de acordo com Lacan. O real, enquanto tiquê,
5
Um equivalente para a Tycke seria a noção de punctum desenvolvida por Roland Barthes em
A Câmara Clara (1984), que em linhas gerais seria o efeito singular que um determinado
conteúdo da obra pode vir a provocar no espectador.
148
está além e ao mesmo tempo por detrás “do autômaton”, ou seja, “do retorno,
da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo
princípio do prazer” (Lacan, 1998, p. 56).
A essa altura se pode reconhecer as garras do tigre. O encontro
sugerido supõe a estrutura da repetição desenvolvida por Freud nos estudos
sobre a histeria, categoria que se tornaria cara a Foster: Nachträglichkeit
(“deferred action”). Na condição psíquica, todo encontro se remete a uma falta
“o encontro enquanto que podendo faltar, enquanto essencialmente faltoso”,
segundo Lacan e, nesta lógica, à própria conjuntura do traumático. É o que
faz como que entendamos melhor o que significa, em termos práticos, a função
da “ação diferida” mencionada momentos antes. O trauma se configura na
conjuntura de um après-coup. No tocante ao psicanalítico, tais esclarecimentos
possuem uma importância e tanto: ao contrário do que insinuavam ou ainda
insinuam certas acusações, o que Freud pretendia demonstrar é que existe
uma alternativa concreta para a vulgata da “fatalidade” psíquica dirigida à
psicanálise. E não se deve confundi-la à sobredeterminação psíquica. A
profundidade da entrada em análise certifica esta constatação de maneira
ainda mais concreta: a escuta clínica consegue verificar o quanto um sujeito é
capaz de modificar seu passado em função das experiências psíquicas que
vive depois. Existem, para Freud, a amplitude de reinscrições, novas
configurações que serão feitas obrigatoriamente ao longo de uma análise. Se
toda lembrança é de fato encobridora, assim ela é porque houve algum tipo de
reorganização posterior, vai-e-vem temporal que leva à elaboração psíquica.
Tornou-se também um lugar comum, à crítica ou à historiografia,
renunciar as conclusões da teoria psicanalítica na medida em que ela definiria
a história atual do sujeito como determinada por uma infância extática. Nestes
moldes, o destino humano estaria para sempre aprisionado aos momentos
iniciais da vida mental, o que restringe, ou melhor, impossibilita o espaço de
intervenção terapêutica. Ora, esta censura se aproxima da crítica à psicanálise
aplicada e teria os devidos méritos se não fosse pelo esforço do próprio Freud:
não são todas as experiências passadas que virão demandar uma eficácia
psíquica ulterior. A ressignificação é exigida para aquilo que permaneceu,
atrás, impossível de ser integrado em um conjunto de homeostase. É nesse
149
ínterim que nasce o trauma e é por sua razão que se demanda a exigência de
um “tamponamento” psíquico, isto é, um tipo de obturação que deve ser
administrado pelo princípio do prazer em virtude do trauma.
No entendimento de Laplanche, ainda restariam dois aspectos
essenciais à condição traumática. Em primeiro lugar, não basta que alguma
coisa do exterior simplesmente chegue à “criança para que funcione como
elemento de trauma e sedução”. Em termos quantitativos, para que o trauma
se instale é necessária uma “contribuição externa que, ao invadir a
organização psíquica, provoca uma estimulação “demasiado forte para que a
criança seja capaz de ligá-la”. Do ponto de vista qualitativo, de modo
complementar, haveria uma “inadequação entre, por um lado, as capacidades
de elaboração da criança nesse momento, o equipamento intelectual que ela
tem à sua disposição, e, por outro, o nível do problema que se lhe apresenta”
(Laplanche, 1989, p. 88). Cabe ressaltar, além disso, que os contornos do
trauma são sempre mediados qualitativamente pelo desejo e pela fantasia, “na
medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de
absolutamente primeiro, de determinante na função de repetição” (Lacan, 1998,
p. 61). No que concerne ao psíquico, real e realidade se distinguem,
peculiaridade que se torna crucial: a sedução pela qual a histérica fora
submetida não é uma experiência ipsis literis, e isso Freud cansou de afirmar
depois de fazer as correções em sua teoria: a lembrança da sedução,
traumática por excelência, tende muito mais à fantasia do que ao
acontecimento em si.
A esta exigência respondem esses pontos radicais no real que
chamo de encontros, e que nos fazem conceber a realidade como
unterlekt, untertragen, o que em francês se traduziria pelo termo
mesmo, em sua soberba ambiguidade na língua francesa, de
souffrance. A realidade es em souffrance, lá esperando (Lacan,
1998, p. 57).
150
Mas, afinal, em que medida este desvio nos pode auxiliar? Ele indica, ao
menos, que tanto em Freud quanto em Lacan se pressupõe o desencontro na
relação entre eu e outro, entre sujeito e objeto e entre mundo interno e mundo
externo, para usar o vocabulário kleiniano. E ainda pode ser, além do mais, que
este conflito seja na verdade o fator de precipitação do traumático na
experiência com o real. Em termos plásticos, se o trauma discutido por Foster
pode manter seu sentido, seja ele estético ou clínico, é porque se remete a
uma estrutura de funcionamento muito específica: a infinidade de
possibilidades contida no vasto terreno da criação humana.
Retornando ao campo da crítica, Foster sugere que ao olharmos as
imagens de Warhol, assistimos a verdadeiros “estouros” (“popping”, para
remeter às suas próprias palavras) que, embora não sejam detalhes peculiares,
fornecem uma equivalência visual dos encontros perdidos com o real. É pouco
dizer que tais estouros sejam acidentais; eles configuram, além disso,
operações automáticas, tecnológicas e repetitivas, de maneira a serem
introduzidos no inconsciente ótico contemporâneo.
6
Seu aspecto acidental
conduz, à primeira vista, a um efeito de choque. Ainda assim, este
procedimento de repetição pode ir além e “produzir uma segunda ordem de
trauma, no caso, ao nível da técnica, onde o punctum quebra a cena e permite
o real a empurrar” (Foster, 1996, 136).
Não se exclui a presença dos afetos que é originada: inequívoco é o
preço de angústia cobrado pelas imagens do real. Em termos fenomênicos, por
exemplo, elas exercem o paradoxo de serem videntes não-visíveis. Isso
significa dizer que, embora não o vejamos, seremos vistos pelo real; mas o real
não seria aquele que, ao olharmos, sempre lá está, olhando-nos de volta? Se é
o caso, esta reflexividade tampouco é direta porque produz restos de... nada.
Em outras palavras, viver a experiência com o real equivaleria a carregar
marcas da pulsão de morte. De acordo com Foster, as “fotografias de acidente”
feitas pelo mais famoso artista pop americano indicam algo desta ordem de
experiência. Ter a prova do que “é sonhar na era da televisão, Life, e Timeé
apreender o que significa ter pesadelos análogos aos das pessoas vítimas de
6
Foster destaca, na cena de Ambulance Disaster, por exemplo, o a imagem trágica da
morte causada pelo acidente, mas a faixa branca colocada no rosto da personagem morta.
151
trauma que se preparam “para desastres que aconteceram”. O mérito de
Warhol, neste contexto, é propor as múltiplas repetições que a recepção destas
imagens suscitam. Wiederkehr o “retorno de um encontro traumático com o
real, algo que resiste ao simbólico” é a concepção que Lacan opôs à
Wiederholung o retorno do sintoma, isto é, o recalcado que não consegue
sair do lugar (Foster, 1996, p. 138).
De acordo com Hal Foster,
Nesse sentido, diferentes tipos de repetição estão em jogo em
Warhol: repetições que se fixam no real traumático, que o exibem, que
o produzem. E essa multiplicidade ilustra o paradoxo não apenas de
imagens que o afetivas ou desprovidas de afeto, como também de
espectadores que não são nem integrados (que é o ideal para a maior
parcela da estética moderna: o sujeito composto pela contemplação),
nem dissolvido (que é o efeito de muito da cultura popular: o sujeito
entregue às intensidades esquizoides do signo-mercadoria)
(1996, p.
136).
3.3) Hiper-realismo e pictograma
Em respeito ao método, Foster revela uma extrema cautela ao refletir
sobre as afinidades entre psicanálise e arte: “Tais analogias entre o discurso
psicanalítico e a arte visual”, justifica, “valem pouco se nada os media; aqui,
todavia, tanto teoria quanto arte remetem à repetição e o real à visualidade e
ao olhar”
(1996, p. 138). Como se viu anteriormente, a problemática em torno
do olhar e do olho sustenta grande parte do discurso psicanalítico que vai de
encontro ao fenômeno estético. A escolha de Foster pela psicanálise do olhar é
no entanto motivada por uma unidade histórica. Ele não o confessa, embora
constate que “contemporâneo à disseminação do pop e ao surgimento do
superrealismo, o seminário de Lacan sobre o olhar segue o seminário sobre o
real” (1996, p. 138).
152
Para Lacan, o olhar é uma entidade paradoxal; não sendo um privilégio
do olho, o olhar não pertenceria a um indivíduo de carne e osso: o órgão
apenas dá suporte aos contornos da experiência sensível. O olhar tanto em
Lacan quanto em Merleau-Ponty, a quem o primeiro recorre com insistência à
época do seminário XI, sobretudo por conta da publicação de O visível e o
invisível encontra-se, a rigor, no mundo. Deste modo, a matemática da
experiência sensível se resume à mais simples: aquilo que vale para a
linguagem também vale para o olhar. Ambos estariam num mesmo plano de
determinações e ambos preexistem o objeto. Dessa maneira, e em função de
uma antecipação intrínseca ao desenvolvimento da espécie humana, o sujeito
tende a sentir o olhar como ameaça que lhe vem do exterior. Quanto ao
aspecto psicológico que aqui nos interessa, se o olhar residir fora do sujeito é
bem provável que se torne persecutório. Ao mesmo tempo, sua posição
enquanto objeto a permitiria a capacidade de simbolizar, como outra prova do
paradoxo, aquilo que retorna de fora para dentro, a saber, o material psíquico
proveniente da castração.
Aprofundando o sentido psicanalítico da crítica ao sujeito cartesiano,
Lacan desafia o velho privilégio do sujeito da visão e da autoconsciência,
mostrando em que medida eles seriam determinados pelo exercício do anel
imaginário. E não é demais apontar o quanto o famigerado texto sobre o
“Estádio do Espelho como formador da função do eu” levou esta crítica às suas
últimas consequências. Nele Lacan propunha que, diante de sua impotência
motora, de sua insuficiência orgânica (por exemplo, o bebê ainda o possui
uma completa mielinização encefálica) e de sua dependência da amamentação
(estágio de infans), a vida humana demanda a antecipação de um je”, isto é, o
sujeito do inconsciente, lugar onde a subjetivação se inicia em sua forma
primitiva. O fenômeno é precoce porque ocorre antes da dialética de
identificação ao outro e da organização linguageira, garantias fundamentais ao
processo de subjetivação. “O eu é sentido, neste estádio, apenas como
imagem do eu”, lê-se no comentário que Rosalind Krauss fez ao texto (1958, p.
197). Sujeito e eu serão entidades absolutamente diferentes na teoria
lacaniana: a primeira inscrição do eu no mundo é possível porque a ele pré-
existe um sistema simbólico estruturante.
153
Portanto, a imagem especular seria o limite do mundo visível, uma vez
que a consciência de sua unidade proporcionaria a unidade mais ampla da vida
perceptual exterior. As imagos corporais – imagens inconscientes do corpo que
são internalizadas passam a ser condicionantes do mundo perceptivo. A
identificação que se entre o eu e o espelho deve ser introjetada no sujeito,
de maneira a configurar para ele um mundo de proteção, ainda que precário.
Em outras palavras, o estádio do espelho serve de saída ao desamparo
fundamental (Hilflösigkeit), experiência original de “queda” que deixará suas
marcas na história de todo e qualquer sujeito. Aqui persiste, como pressuposto,
a condição de se sentir o corpo como não-unitário, como corpo despedaçado.
Sabe-se que na primeira infância a organização perceptiva ainda não
está de todo instituída, e o infans experimenta seu corpo como uma “unidade
fragmentada”. Originado no imaginário, este fenômeno psíquico ressurge na
vida adulta através dos canais de experiência onírica ou nas alucinações. É
imprescindível sublinhar que a visão no espelho e a percepção do corpo
fragmentado andam sempre de mãos dadas, sendo que este não vem antes
daquela; mas não só: também surge, no extrato psíquico, uma angústia
decorrente dessa divisão original, o que faz com que a criança se precipite a
realizar identificações alienantes (inconscientes): a “identidade (autodefinição
de si) é primordialmente fundida à identificação (uma conexão sentida com o
outro)”. O estádio do espelho apenas assegura a totalidade ortopédica de um
psiquismo por vir, o que se traduz pelo funcionamento imaginário do corpo
combinado à identidade alienante, que por sua vez é o próprio funcionamento
mental consciente (moi, para diferenciar do je). “É no interior desta condição de
alienação”, acrescenta Rosalind Krauss, “que o imaginário se enraíza” (1985, p.
197).
A imagem corporal é dada de antemão como Gestalt, sistema em que a
percepção do todo age em conformidade à lei da boa forma. Mas mesmo a
Gestalt é uma percepção de corte: na medida em que garante uma estabilidade
mental ao “eu”, prefigura também a dimensão alienante, sendo portanto
anterior à separação. Para Lacan, estão em jogo, aqui, duas méconaissances
fundamentais: na primeira, o eu que olha no espelho está alienado do isso e,
por este motivo eis a segunda não se reconhece como alienado. Ora, a
154
captura do sujeito pela imagem é sustentada pela apreensão de sua própria
forma. Em teoria, as funções instintivas também ganhariam uma certa
ordenação, embora sejam por natureza desordenadas. É o que delimita a
complexidade do caminho que vai da pulsão a seus destinos. Por outro lado, a
evolução humana não seria asseverada pela adaptação, e o caráter prematuro
do nascimento é a melhor verificação desse fato. É assim que a visão de uma
unidade no espelho acaba compensando a condição do desamparo
fundamental. A insuficiência orgânica do ser humano em seus primeiros
estágios de crescimento é assim suplantada pelo ideal imaginário de unidade.
Por essa razão, toda identificação é, também, uma forma de alienação.
Na sequência, Foster se ampara no esquema dos cones para
fundamentar o argumento, baseando-se na superposição entre sujeito e objeto
como equivalentes ao ponto geometral e ao ponto de luz respectivamente, tal
como indicado por Lacan (1998, ps. 90-104; Foster, 1994, p. 139). Ao olharmos
a imagem, pode-se dizer, após determinadas derivações lógicas, que a
imagem nos olha de volta; no gráfico, olhar e sujeito da representação se
destacam em um mesmo plano horizontal, enquanto imagem e tela (aqui
entendida como anteparo) estarão contidas no plano da intersecção entre os
cones. No meio do percurso que vai do sujeito ao objeto encontram-se a
imagem e a tela, isto é, elas prefiguram ali uma estrutura intermediária de
separação. Esta presença margem a verificar, em termos psíquicos, o
caráter “reflexionante do olhar. Em outras palavras, isto significa, de acordo
com a demonstração de Foster, que “o sujeito se encontra sob o olhar do
objeto, fotografado por sua luz, retratado por seu olhar” (1996, p. 139, grifos
meus).
Antes é necessário reconhecer que a investigação deste percurso que
vai do que vemos ao que nos olha foi iniciada por Merleau-Ponty. Segundo o
filósofo, a preexistência do olhar em relação ao olho seria ao mesmo tempo
uma metáfora e uma concreção. “Eu vejo de um ponto”, deduz, a esse
respeito, Lacan, “mas em minha existência sou olhado de toda parte” (1998, p.
73). Somos seres olhados no espetáculo do mundo, diria Merleau-Ponty, ainda
que isto não se por meio do olho (leia-se, por meio do corpo), mas através
da carne do mundo. E, ao sermos olhados ele decerto acrescentaria essa
155
presença alteritária se mostra. Algo me olha porque tem a ver comigo “no nível
do ponto luminoso onde está tudo que me olha (...) O que é luz tem a ver
comigo”, afirma Lacan, por sua vez, “e graças a essa luz, no fundo do meu
olho, algo se pinta” (1998, p. 94-95), deixando-se conduzir do amorfo à forma.
Para Zizec, de outro modo, este estado, pré-ontológico por excelência, é
deformado pelo olhar em anamorfose, assim como é “sustentado por um gozo
incestuoso: a distorção anamórfica da realidade é o meio pelo qual o olhar se
inscreve na superfície do objeto” (1991, p. 47).
Escorregadio, no entanto, o “olhar se nos apresenta na forma de uma
estranha contingência, simbólica do que encontramos no horizonte e como
ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva” instaurada
pela angústia de castração.
Na medida em que o olhar, enquanto objeto a, pode vir a
simbolizar a falta central expressa no fenômeno da castração, e que
ele é objeto a reduzido, por sua natureza, a uma função punctiforme,
evanescente - ele deixa o sujeito na ignorância tão característica de
todo o progresso de pensamento nessa via constituída pela pesquisa
filosófica (Lacan, 1998, p. 74).
A psicologia do espectador poderia então indicar que
A função do quadro – em relação àquele a quem o pintor,
literalmente, dá a ver seu quadro tem uma relação com o olhar. Essa
relação não é, como pareceria à primeira vista, de ser armadilha de
olhar (...) O pintor, aquele que deverá estar diante do seu quadro,
oferece algo que em toda uma parte, pelo menos, da pintura, poderia
resumir-se assim - Queres olhar? Pois bem, veja então isso! Ele
oferece algo como pastagem para o olho, mas convida aquele a quem
o quadro é apresentado a depor ali seu olhar, como se depõem as
armas (1998, p. 97),
156
como também ocorre ao criador da psicanálise. “Freud sempre marcou, com
infinito respeito, que ele não pretendia destacar o que, da criação artística,
constituía o verdadeiro valor”, recorda Lacan. Sua aceitação tácita da
impossibilidade de interpretar o artista, acompanhada de uma consciência
temerária diante do conhecimento que a arte pode produzir, sempre marcou
presença no decorrer de seu pensamento. “No que concerne aos pintores,
assim como aos poetas, há uma linha na qual ele para sua apreciação. Ele não
pode dizer, ele não sabe o que ali, para todos, para os que olham ou que
ouvem, constitui o valor da criação artística” (Lacan, 1998, p. 107).
No raciocínio de Foster, se imagem e tela possuem a função de
anteparo é porque configuram certas mediações de defesa contra a entrada do
objeto-olhar. Ora, se a castração, mesmo causadora de angústia, ainda pode
servir de guarda-costas contra a invasão indiferenciada do Outro, o que afinal
restaria, em auxílio do sujeito, contra a indiferenciação em si mesma?
Chamem-nas “convenções de arte, esquema de representação” ou mesmo
“códigos da cultura visual”, as mediações, por mais enigmáticas que sejam, são
modos de se proteger diante da invasão do real que é representado, grosso
modo, pelo olhar do Outro, segundo o vocabulário lacaniano.
Ao contrário dos animais, o ser humano não é de todo capturado pelo
olhar do mundo; por isso ele consegue escapar, mesmo que pelos canais
imaginários, ao enquadramento do display absoluto. Complementar ao registro
imaginário, o simbólico certifica ao humano a condição para criar imagens, de
tal modo que se nos torna possível “manipular e moderar o olhar” (Foster,
1996, p. 140). Se não houvesse uma medição desta ordem, seríamos
praticamente todos cegos: o encargo principal da tela de proteção é negociar
com a violência invasiva do olhar, visando baixar as armas do real, conquanto
esta possibilidade tenha também seus próprios limites, como veremos logo
adiante.
Antes, porém, Foster sugeria, em Postmodernism in Parallax, que esta
reflexão acerca da neovanguarda não deve ser compreendida como uma
intervenção subjetivista. Embora Lacan não especifique “sua teoria do sujeito
como histórica”, Foster acredita na necessidade de fazê-lo, uma vez que este
157
sujeito, “traumatizado, blindado e agressivo, não é um ser qualquer que
atravessa a história e a cultura”. Em filigrana, as ideias de Lacan estão se
remetendo ao sujeito moderno como ser “fascístico”, cuja função era suportar o
maior sintoma vivido naquele momento: “uma história de Guerra Mundial e de
mutilação militar, de disciplina industrial e fragmentação maquínica, de
matança mercenária e terror político”, segundo a leitura de Foster. A esse
sujeito uma vez constituído, nada resta além das vivências persecutórias, a
invasão de pulsões destruidoras que tem como meta retornar ao estado
“fragmentado e fluido” anterior, ou seja, isto tudo que caracteriza a função
primordial da pulsão de morte (1993, p. 08). Nesse sentido, a monstruosidade
“estrutural” do famoso Frankenstein poderia muito bem ilustrar este sujeito da
pós-modernidade (Copjec, 1991, p. 31).
Ninguém duvida que Frankenstein seja de fato um monstro; aos olhos de
seu criador, sua monstruosidade lhe impossibilitaria possuir uma capacidade
por assim dizer desejante. A esse respeito, a hipótese levantada por Copjec em
“Vampires, breast-feeding and anxiety” revela grande pertinência diante das
questões alçadas por Foster em relação ao movimento pendular da
temporalidade moderna e contemporânea. Causador incessante de angústia, o
encontro com o real demanda ao sujeito saídas para dele escapar. Nesta
circunstância, lembremos que, para Freud, a angústia (Angst) é resultado de
um excesso de proximidade com um objeto que antes fora familiar. E se a
proximidade com o real é a fonte de angústia – “termômetro” de proteção
encontrado pelo sujeito, seja ele mais ou menos adequado à adaptabilidade do
ego pode-se dizer que a angústia ainda “aumenta com a emergência do
sujeito moderno, o que significa a inclusão do real dentro do simbólico” (1991,
p. 41), fenomênica a ser retratada pela novela de Mary Shelley.
Nessa medida o sujeito procurará domesticar, recusar esse olhar que é,
na verdade, interior; deseja negá-lo assim como um dia o olhar o enganou.
Diante da violência fragmentária que se dirige do olho ao olho, a produção de
imagens feita pelo homem sugere a urgência de escudos contra os perigos de
invasão, uma modalidade simbólica de negação que seja capaz de evitar o
colapso definitivo da subjetividade. A partir do argumento de Foster, um bom
número de imagens pós-modernas podem se encaixar perfeitamente aqui.
158
No que tange ao lugar do espectador, Lacan considera que algumas
poéticas ambicionam o trompe-l’œil com a finalidade de enganar o olho e o
real; em sentido mais amplo, no entanto, e diante desta impossibilidade, o
fenômeno estético aspiraria ao dompte-regard, isto é, à domesticação que une
imaginário e simbólico na luta contra o real. Enquanto o segundo possui o
cargo de escudo, o interesse pelo trompe-l'œil se justifica, na contramão, em
função dos cortes que impõe à categoria de representação, e,
consequentemente, ao problema da ilusão em arte. A complexidade de seus
efeitos se detém no que essa forma “não rivaliza com a aparência” mas ataca
aquilo que se encontra supostamente para além dela: a velha concepção
kantiana de Ideia. “É porque o quadro é essa aparência que diz que ela é o que
aparência, que Platão insurge contra a pintura como contra uma atividade
rival da sua” (1998, p. 109). E essa “outra coisa” é justamente aquilo que Lacan
procurava apreender com a concepção de objeto a.
Teoria que o demonstra total coerência, no entanto, em relação à
produção artística mais recente, como Foster reconhece. O conceito de
representação, ao qual Lacan ainda se atém, tem pouca serventia. Piera
Aulagnier,
7
ao avançar no traçado da categoria, concebe que o conceito de
representabilidade deve ser traduzido, em primeiro plano, pela metabolização
que é sofrida pelo objeto quando atravessado pelo processo primário. Segundo
a psicanalista ocorre, no interior do aparelho psíquico, um reconhecimento do
que vem de fora antes de qualquer outra operação; num segundo momento, o
ato de representar se constitui com a significação que a elaboração secundária
promove ao objeto, resultado daquele reconhecimento. Assim, o processo
secundário produz atribuições de sentido para que o objeto possa ser incluído
no esquema (sistema) de funcionamento geral do psiquismo. Nessa medida,
para que a atividade psíquica se torne viável é necessário que a psique se
7
No entendimento de César e Sára Botella, os limites da preocupação de Aulagnier com a
figurabilidade se revelam na conexão que pretende estabelecer entre figurabilidade e
funcionamento psicótico. A meu ver, no entanto, o casal não entendeu a proposta: com efeito,
Aulagnier estudou as características da Darstellbarkeit nos casos de psicose, ao passo que os
Botella o fizeram a partir de condições limítrofes o que não as exclui mutuamente. Ademais,
como se pode observar, eles não demonstram as particularidades de sua ressalva (Botella,
2007b, ps. 82-3).
159
aproprie (de) ou incorpore uma matéria que é, de antemão, exterior. Todavia,
mesmo a matéria exógena primordial não é de todo “amorfa”:
trata-se de informações emitidas pelos objetos, suportes de
investimento, objetos cuja existência e, portanto, a irredutibilidade de
algumas de suas propriedades deve ser reconhecida pela psique. Eis
porque a experiência de todo encontro confronta a atividade psíquica a
um excesso de informação que ela vai ignorar, até o momento em que
este excesso a obriga a reconhecer que o que não é incluído na
representação própria ao sistema, volta à psique sob a forma de um
desmentido, referente a sua representação de sua relação ao mundo
(Aulagnier, 1979, p. 34).
Para Aulagnier, a excitabilidade da pulsão, no sentido do que se define
como representação da excitabilidade corpórea no interior do psíquico, é uma
atividade a ser intitulada de pictográfica: esse trabalho de transformação
solicitado ao psiquismo consiste “em metabolizar um elemento de informação
que vem de um espaço que lhe é heterogêneo em um material homogêneo à
sua estrutura, a fim de permitir à psique (...) representar o que ela quer
reencontrar de sua própria vivência”. E esta representação pictográfica dos
fenômenos que se apresentam ao aparelho, cuja morfologia configura uma
espécie de metabolização, é uma condição sine qua non à totalidade da
experiência psíquica. “O representado se dá à psique como a apresentação de
si próprio. O agente representante na representação o fruto de seu trabalho
autônomo e aí contempla o engendramento de sua própria imagem” (Aulagnier,
1979, p. 42-43). Mais tarde, isto é, quando conseguir representar, o sujeito
viverá um autoencontro com as produções originárias que ficaram guardadas
pelo recalcamento primário (Urverdrängung).
se pode deduzir neste momento que a primeira estrutura de encontro
é a relação seio-boca: ainda que ambivalente, a pulsionalidade oral testemunha
na sua origem um desejo de vida para fora para o outro, portanto. E em
qualquer sociedade a oferta está marcada pelos seus hábitos culturais ligados
à amamentação; exemplos: a) o desejo da mãe pela criança e suas qualidades;
160
b) os sentimentos conscientes da mãe pelo filho; c) o discurso cultural que
impõe um modelo de função materna. Desse modo, o pictograma se define
pelo estabelecimento precoce de um esquema relacional eu-não eu,
representação primária que a atividade psíquica faz dela mesma. Continuando
com Aulagnier, este processo inicial é a “figuração de uma percepção pela qual
se apresentam, no originário e para o originário, os afetos que ali se localizam
de forma sucessiva, atividade inaugural da psique, para a qual, como sabemos,
toda representação é sempre autorreferente e indizível, não podendo
responder a nenhuma das leis a que deve obedecer o dizível, por mais
elementar que ele seja” (1979, p. 52). De outro modo, o pictograma é a
“representação que forja o originário, os sentimentos que ligam o Eu aos seus
objetos” por meio de um autoengendramento de representações psíquicas que
se inserem nas modalidades do par prazer-desprazer (1979, p. 61, grifos
meus).
Seguindo esta linha de pensamento, existiria uma equivalência entre
excitabilidade e erogeneidade no que tange às zonas de investimento libidinal.
A atividade decorrente da excitação provocada no encontro com os objetos
ver, pensar, provar, para ficar nos mais conhecidos será investida pela libido
num momento posterior, constituindo-se adiante como fonte orgânica de
prazer. “Este investimento da atividade sensorial é a condição mesma da
existência de uma vida psíquica”, conclui a psicanalista, “por ser a condição do
investimento da atividade de representação”. A informação sensível existe à
consciência porque foi previamente forjada por uma representação no interior
do espaço psíquico. Excitação, erogeneização e representação – esta é a
ordem dos fatores formam a tríade indissociável que designa “as três
qualidades que devem necessariamente possuir um objeto, para que ele possa
ter um status de existente para a psique” (1979, p. 63).
A tese principal de Aulagnier defende a preexistência psicológica de uma
violência
original, anterior a qualquer outra e fundamentalmente necessária ao
aparelhamento psíquico. Não se deve confundi-la com a agressividade, no
entanto. Tal como sucede no mecanismo de posterioridade, a oferta do seio
nunca é sincrônica, e sempre surge antes ou depois da demanda. Assim, no
início a mãe acaba direcionando mensagens ininteligíveis à criança,
161
mensagens que neste momento ela não conseguiria compreender. Dessa
forma, a urgência de significação é vivida nos primórdios da vida mental,
ainda que isso se dê no substrato inconsciente. Esta invasão se impõe a
despeito do sujeito, embora nele imprima marcas de uma decalagem entre os
dois espaços essenciais, isto é, o psíquico (interno) e o mundo (externo). Com
isso se proporciona, por conseguinte, este tipo de “violência” elencado pela
autora: experiência a ser vivida como imposição repressora, a violência original
é o parti pris da constituição mesma do aparelho mental. Em termos gerais,
Aulagnier conclui que o pictograma é a “ação psíquica pela qual se impõe à
psique de um outro uma escolha, um pensamento ou ação, mas que são,
entretanto, apoiados num objeto” (1979, p. 38).
Ora, se o conceito de representação abriga uma vontade de
domesticação, como vimos, então aqui ele nos serve como contraponto a ser
debatido até o final: a principal tese defendida por Foster em The return of the
real se dirige à comprovação de que as obras por ele analisadas estão
recusando peremptoriamente o anseio de pacificar. É como se esta arte
quisesse que o olhar brilhe, que o objeto permaneça, que o real exista, em toda
a glória (ou horror) de seu desejo pulsante, ou ao menos que se evoque essa
sublime condição” (1996, p. 140).
As obras pós-pop em evidência evitam o realismo na medida em que
oferecem certos “truques ilusionistas” cuja estrutura possui um sentido
traumático. O hiperrealismo se distingue do realismo não apenas quanto à
referência retiniana, mas, sobretudo, quanto à expressão do trauma que ela
vem delinear. Segundo Foster, tais imagens provocam tamanha ilusão de
profundidade ilusão quase perfeita, diríamos, se não fossemos psicanalistas
que chegam a se aproximar, como poucas outras, da contenda de Zêuxis
com Parrásios: é que por detrás da imagem hiperreal residem “o olhar, o
objeto, o real” (1996, p. 141). Além de ser enganado pela superfície da
imagem, o homem também se deixa ludibriar pelo que mora detrás dela. Na
captura da imagem hiperreal, nesse sentido, pouco importa em termos de
verossimilhança. Interessa o impacto da alienação.
162
Mas, como se sabe, por outro lado, em termos psicanalíticos, o real não
pode ser representado. Sua definição é sempre negativa conhecemos
apenas o que não é –, e sua apreensão “fenomênica” é dada apenas como
resto. Com efeito, não é possível, ao humano, criar a ilusão perfeita; e ainda
que fosse, “isto não responderia à questão do real, que sempre permanece,
para aquém e além, a nos trapacear” (Foster, 1996, p. 141).
Nisso reside a ambiguidade fundamental da imagem no pós-
modernismo: é um tipo de barreira que permite o sujeito a manter
distância do real, protegendo-o contra sua irrupção, seu “hiperrealismo”
excessivamente intrusivo que evoca a náusea do real (Zizec, 1991, p.
59).
Para uma análise mais ampla dessa questão, Zizec sugere que se deve
conceber
o monstro como um tipo de tela de fantasias onde a multiplicidade de
sentidos pode surgir e lutar por hegemonia. Em outras palavras, o erro
das análises de conteúdo é proceder muito apressadamente e crer de
pronto na superfície da fantasia em si mesma, a forma/enquandre vazia
que fornece espaço ao aparecimento do conteúdo monstruoso. A
questão crucial não é “o que significa o fantasma?”, mas “qual é esse
espaço constituído onde entidades como o fantasma podem emergir?”
(1991, p. 63).
E no que tange à experiência com a arte, de que interessam estas
especulações? Ora, são cruciais para sustentar a ideia de que a estrutura
faltante do desejo, homóloga à experiência do real, está presente no próprio
ato da recepção estética, como não poderia ser diferente: “há algo de que
sempre, num quadro, podemos notar a ausência”. É precisamente nesta
brecha que “o poder separativo do olho se exerce ao máximo na visão. Em
todo quadro, ele pode estar ausente, e substituído por um buraco” (Lacan,
163
1998, p. 106). Sob esse ângulo, a visada psicanalítica de Foster se tornaria
ainda mais pertinente: para que a imagem hiper-realista seja de fato olhada,
considera, a experiência desejante deverá vir à tona. Tomadas as devidas
proporções, não é possível dizer que toda obra de arte colocaria em cena algo
desta ordem de acontecimentos? É o que justifica a extensa penetração das
imagens hiper-reais: elas provocam, a partir de um enfrentamento sem
mediações, o questionamento direto desta falta.
No entanto, acabamos nos deparando com mais uma torção: todo
desejo de contemplação demanda, de sua parte, algum tipo de pacificação, por
menor que ele seja. “Isso lhes eleva a alma”, escreve Lacan a respeito dos
espectadores, “os incita, a eles, à renúncia” (1998, p. 108). Como antes
mencionado, a pintura e a arte tematizam o dompte-regard, a ação que tenta
domar o olhar. Contudo, ela não é suficiente: o apetite e a voracidade do olho
(wisstrieb) exigem graus de satisfação que apenas a experiência estética talvez
pudesse sanar.
Como uma arte de trompe-l’œil, o super-realismo também se envolve
no combate, mas o super-realismo é mais do que trapacear o olho. É um
subterfúgio contra o real, uma arte comprometida não apenas com a sua
pacificação, mas também em prendê-lo debaixo de superfícies, embalsamá-lo
em aparências (...) O super-realismo promove este fechamento em três vias ao
menos. A primeira representa a realidade aparente como um signo codificado.
Frequentemente apresentado como fotografia ou cartão-postal, este super-
realismo mostra o real enquanto absorvido no interior do simbólico (...) A
segunda reproduz a realidade aparente como uma superfície fluida. Mais
ilusionista que a primeira, este super-realismo desrealiza o real com efeitos de
simulacro (...) A terceira representa a realidade aparente como um conundrum
visual, com reflexões e refrações de vários tipos. Nesse super-realismo, que
participa dos dois primeiros, a estruturação do visual é tensionada ao ponto de
implosão, de colapso no espectador. Diante dessas pinturas alguém pode
sentir o olhar e se sentir olhado por vários lados (...) (Foster, 1996, p. 141-2).
Seria possível dizer que estas três vias possuem a mesma profundidade
psicológica? E, se é o caso, quais seriam as suas particularidades? Para
164
Foster, o hiper-realismo dialoga subterraneamente, isto é, no registro subjetivo,
com a arte surrealista, no sentido do real que se localiza por debaixo da
consciência, provocado pelas intervenções do grupo francês. Os objetos
usados pelos artistas contemporâneos encontram-se esvaziados de
significação afetiva porque são “coisas de plástico” e tocam na angústia da
coisificação da vida. Ainda assim, “os sujeitos relacionados a esses objetos não
desapareceram”, assim como as histórias vividas por eles não podem ser
apagadas com tanta facilidade.
Com respeito à influência de uma pela outra, Foster adverte contra a
vontade de estabelecer supostas analogias entre as poéticas: ao contrário do
surrealismo, o hiper-realismo desejaria “mais esconder que revelar esse real”,
dissimulá-lo, em função do medo despertado pela situação traumática. “Como
resultado”, acrescenta o crítico, “sua ilusão falha não somente quanto a
trapacear o olho, mas também em adestrar o olhar, uma proteção contra o real
traumático”. O hiper-realismo fracassaria em não conseguir remeter ao real; ao
visá-lo, torna-se ele mesmo traumático, traumática ilusão”. Ora, se algo foi
antes recalcado, conclui Foster, muito freudianamente aliás, então é certo que
haverá um retorno, embora neste caso a ilusão traumática chegue a romper “a
superfície super-realista de sinais” (1996, p. 144-5). Sob o olhar de Murielle
Gagnebin, por exemplo, o artista contemporâneo exaltaria o pré-genital porque
procura recuperar aquilo que antes teria sido “omitido ou negado” em sua
vivência psíquica (1994, p. 250). Nessa medida, mesmo as imagens hiper-
realistas não suportariam o retorno do real.
Estas turbulências não o mera coincidência. Para Foster, ao contrário
de Kuspit, a visão construcionista é a “posição básica” das poéticas pós-
modernas, assim como também é “paralela à posição básica da arte feminista,
ao menos em sua aparência psicanalítica: que o sujeito é ditado pelo simbólico.
Tomadas juntas”, escreve, no momento central de seu argumento, “estas duas
posições levaram muitos artistas a se concentrar na imagem-tela (refiro-me
novamente ao diagrama lacaniano da visualidade)”, ora para destacar uma
negligência que se remete ao real, ora para direcioná-la ao sujeito (Foster,
1996, p. 146). Certos trabalhos de Richard Prince, Sherrie Levine e Barbara
165
Kruger,
8
para ficar nos mais notórios, escapariam ao trauma do retorno porque
conseguem se amparar nas “imagens-tela” – isto é, apresentam a própria
imagem intermediária como arte –, de modo a não oferecer ao público uma
experiência receptiva esquizofrênica (1996, p. 145).
“A apropriação, as coisas tomadas oportunamente para o nosso uso”,
na ótica do historiador da arte Michael Archer, “era a atividade a que todos nós
estávamos condenados devido à nossa condição de pós-modernos” (2001, p.
165). Em princípio, a apropriação pode ser definida pelo seu exato contrário,
quer dizer, ela na verdade seria uma estratégia de desapropriação, de
descolonização da imagem. Sua condenação acaba, porém, posicionando o
intérprete em um lugar crítico, sobretudo porque o trabalho se utiliza da
reprodutibilidade fotográfica como meio de questionar a unicidade da obra de
arte e o valor de verdade das imagens documentais (Levine), ao mesmo tempo
em que forçam “o ilusionismo fotográfico a um ponto implosivo” (Prince),
problematizando o valor referencial da representação (Kruger). Em outras
palavras, ao propor uma nova chave para a recepção de obras de arte
anteriores e ao empregar o livre jogo de citações, a poética da apropriação
também cumpriria o objetivo (moderno) de concretizar a posição do artista
como espectador, pois a obra a ser concretizada depende do seu lugar
enquanto receptor de arte. A despeito da acusação de indiferença a falsidade,
a poética da apropriação co-participa do longo processo de ressignificação que
vem sendo exigido pela arte pós-moderna.
Contudo, a relação entre a Appropriation art e a concepção de tela,
suscitada em Foster pela leitura de Lacan, o é assim tão linear, de acordo
com a opinião do autor americano: se a apropriação chega a ser crítica diante
da tela (a tela entendida aqui como anteparo ou écran), chegando mesmo a lhe
ser hostil, ela também pode, do contrário, perceber-se em certo momento
fascinada, apaixonada por ela. Ora, esta patente ambivalência alude, mais uma
vez, à presença do real: “assim como a arte de apropriação se esforça por
expor as ilusões da representação”, ela viria da mesma forma atacar “a própria
imagem-tela” que protege o olhar (Foster, 1996, p. 146). Para Foster, Prince é
8
Levine e Kruger são responsáveis pelo retorno da arte feminista nos anos 1980.
166
quem mais conseguiria desrealizar, em termos aparentes, a imagem hiper-
realista, a despeito de que as realize tendo em vista criar “motores” de desejo.
Presente na maioria de suas imagens, a ambiguidade radical desse
ataque à tela proporciona fórmulas inquietantes: “um homem empurra uma
mulher para fora da água, mas a carne de ambos parece estar queimada tal
como numa paixão erótica que também é uma radiação mortal”. Em suas
imagens mais fortes, Prince transforma “o prazer imaginário das cenas de
férias” em verdadeiro pesadelo, tornando-o “obsceno” e “deslocado por um
êxtase real de desejo disparado pela morte”. Na opinião de Foster, haveria ali
“um gozo que se oculta por detrás do princípio do prazer” (1996, p. 146). Dessa
maneira, as principais características da obra de Prince se remetem a
experiências de gozo e de angústia a serem vividas ao mesmo tempo.
Vigoraria, ao longo dos desdobramentos pelos quais a neovanguarda é
atravessada, um deslocamento poético que vai da “realidade como efeito de
representação” ao “real como coisa do trauma” (Foster, 1996, p. 146).
Esquecido pela teoria contemporânea da arte, é esse o grande shift a ser
ressignificado, histórica e psicologicamente, pelas novas expressões que
surgirão depois de 1960. O foco da produção de arte mais recente teria então
passado da posição da “imagem-telaà localização do “objeto-olhar”, mudança
a propósito bastante contundente. Trata-se de uma transformação conceitual
que viria “do real, entendido em termos pós-estruturalistas, como efeito de
representação, ao real, entendido em termos psicanalíticos, como um evento
de trauma” (1996b, p. 75). A noção de tela continua a servir, neste contexto,
ainda como forma de anteparo, que se traduz na função cultural de
representação. O que ela representa são os códigos, as convenções artísticas
da cultural visual a serem atacados pelas poéticas pós-modernas.
De maneira explícita, a violência do real pode ser verificada em quase
todo o repertório de imagens de Cindy Sherman: em seus filmes e foto-
montagens, a artista evocaria “o sujeito sob o olhar, o sujeito-como-figura”,
lugar onde na verdade pouco se vê. Na maior parte do tempo o sujeito é visto e
capturado pela imagem. O olhar, que surge tanto de fora quanto de dentro,
carrega consigo a problemática psicológica (e não fenomenológica) do
167
estranhamento. “A estudada coerência estilística” de cada uma de suas fotos
em preto-e-branco faz com que “pareçam cenas em torno das quais
poderíamos facilmente imaginar uma completa narrativa cinematográfica com
enredo e caracterização”. Não obstante, uma possível “apreensão instintiva da
identidade de Sherman” se logo desmentida de sequência a sequência, pois
em cada ocasião ela se “apresenta como uma pessoa inteiramente diferente”
(Archer, 2001, p. 194). Em uma conhecida imagem de autocontemplação
diante do espelho (Untitled Film Still #2, 1977), a artista teria conseguido, como
nenhuma outra, captar as lacunas situadas entre uma imagem concreta e outra
imaginada desejada talvez –, imagens que “bocejam em cada um de s” no
intervalo de um “(des)reconhecimento onde a indústria da moda e do
entretenimento operam dia e noite” (Foster, 1996, p. 148).
3.4) Abjeção, poética do estranhamento
Embora o ensaio seja tão repetidamente acessado pelo campo
psicanalítico, é passada a hora de retomar as teses mais importantes que
Freud levantou acerca da experiência com o “estranho” (Das Unheimliche).
Localizado no coração da psicanálise, este trabalho extrapola seu próprio
circuito e vem a se tornar, com efeito, verbete indispensável no linguajar da
reflexão crítica atual. Um número especial da October (58, Fall 1991), por
exemplo, chegou a se dedicar a ele do início ao fim, ainda que o tema
“manifesto” da ocasião isto é, aquele declarado no frontispício do volume
seja bastante lacaniano à primeira vista. Rendering the real é o título deste
número; organizado por Parveen Adams, psicanalista e editora-associada da
revista, o compêndio reúne estudiosos que se baseiam quase exclusivamente
em Lacan, embora partam da noção de estranhamento conforme proposta por
Freud.
E se fosse correto afirmar a existência de uma estética freudiana
propriamente dita, ela certamente se constituiria no bojo do que Freud oferece
168
nestas linhas. Posterior aos trabalhos dedicados a Michelângelo e Leonardo da
Vinci, Dostoiévski e Jensen, este é o estudo em que se revela um Freud
caracteristicamente “moderno”, na minha opinião: logo nas linhas iniciais, Freud
dirá que, independentemente da acepção dos “gostos”, caberia à ciência
estética chegar à compreensão de “nossas qualidades de sentir”, ao invés de
se dedicar à elaboração de doutrinas sobre a “beleza” tal como a estética e a
crítica de arte tradicionais a consideravam até o momento. Com estas
categorias em mente, o psicanalista parte ao encontro de um tema que suscita
enorme terror e angústia. “O estranho seria sempre, em verdade”, escreve o
perplexo Freud, “algo de dentro diante qual alguém o se orienta, por assim
dizer”. O estranho é “aquela variedade do assustador que se remonta ao
conhecido de antigamente, ao que é familiar desde muito tempo” (Freud,
1996[1919], ps. 221 e 220).
Seguindo, em primeiro lugar, o rastro deixado pelas confusões
semânticas
9
que procuram circunscrever o termo, Freud compreende que o
Unheimliche, no sentido mais útil de “não-conhecido”, “não-familiar” ou
“selvagem”, é na verdade uma derivação de heimlich, cuja significação chega,
às vezes, de modo supreendente, a coincidir com ele; heimlich é algo antes
“familiar” ou “doméstico” que viria a ganhar, por alguma condição especial
posterior, a qualidade de assustador. Mas o caráter angustiante da experiência
não se justifica apenas porque se trata de um elemento imprevisto ou
desconhecido: apresentando-se como novidade ao sujeito, a sensação
unheimlich é estranha porque em algum momento de seu passado “algo” novo
se agregou ao componente antigo fazendo com que se tornasse “terrível”. E o
que justificaria, afinal, a ocorrência desta inversão radical? É sob o enredo
desta “coisa” inominada que Freud enfrentará as condições de segredo e de
ambiguidade inerentes ao estranhamento.
Analisando, a princípio, O Homem de Areia de E. T. A. Hoffmann, o
psicanalista propõe que o elemento desencadeador do estranhamento não é,
como a princípio se poderia pensar, o fato de que o protagonista Nathaniel se
9
Sugiro que o leitor se remeta ao próprio texto de 1919, no qual ele discorre acerca de uma
grande variedade de significados possíveis, desde a etimologia mesma da palavra a as
acepções poéticas que ela vai ganhando com o passar do tempo.
169
apaixone por Olímpia, uma boneca viva que foi construída por dois homens
(aliás, muito relevantes à história). Para Freud, o que suscita a reação do
estranho é o tema em si mesmo, ou melhor, a propriedade que a obra tem de
oferecer sensações provenientes do imaginário infantil mais arcaico.
O medo que a criança sente diante da ameaça de que lhe sejam
arrancados os olhos, “por conta de suas malcriações”, por exemplo, seria um
dos fenômenos mais aflitivos da infância. Era bastante comum, conforme ele
mesmo constatava naquele momento, ouvir mães ou babás dizerem aos
pequenos que o Homem de Areia os viria buscar, caso desobedecessem aos
pais, não fizessem a lição ou não fossem logo dormir. Cabe antes apontar que
o efeito de estranhamento não se relaciona com uma incerteza cognitiva do
que está acontecendo, assim como a afamada leitura de Tzvetan Todorov
procuraria defender, anos depois, em seu estudo psicológico da literatura
fantástica. Toda afirmação de certeza é apenas um fenômeno da consciência
afirmaria, sem dúvida, Freud. A rigor, este medo se originaria sob os auspícios
de uma experiência muito mais primitiva, constitutiva até, uma vez que haveria,
em todo e qualquer sujeito, homem ou mulher, uma equivalência simbólica
entre “perder os olhos” e “perder o pênis”. De acordo com Freud, esta fantasia
de furar os olhos se articula nitidamente com a angústia de castração, à qual
retornamos uma vez mais.
Mas não é apenas este tipo específico de angústia que proporciona as
sensações Unheimlich. Mantendo sua interpretação na escrita de Hoffmann,
Freud propõe o problema do duplo idêntico como outra modalidade de
manifestação do estranho, a exemplo do que o escritor teria conseguido ilustrar
de modo impactante em Os elixires do diabo. Pouco tempo atrás, Otto Rank,
investigando o tema mais a fundo, havia descoberto relações entre a sombra, o
espelho e o eu, atestando que a experiência do “equivocar-se acerca de seu
próprio eu” seria uma formação narcísica que visa à segurança, ou seja, é a
constituição de uma barreira contrária à possibilidade de morte egoica,
promovida em muitos casos pela radicalidade a que certas identificações
podem chegar. A cena na qual Freud se confunde com sua própria imagem, ao
se olhar no espelho da cabine do trem para Londres, viria a se tornar, para
Rank, paradigmática neste sentido: “antes de ser um mensageiro sinistro da
170
morte, o duplo é o refúgio de todas as aspirações não-realizadas do ego”; é a
designação da instância dita superegoica ou ego ideal (Mezan, 2002, p. 69).
Por outro lado, o preço a pagar por uma apreensão relativamente
harmônica de nossa autoimagem é ter que lidar com os restos “amorfos” que o
horror contém – eis a sensação sem-nome, característica da angústia daí
proveniente (Zizek, 1991, p. 55). O amor por si mesmo, oriundo do narcisismo
primário, pressupõe um retorno a si justamente porque existe um outro alhures,
este outro que se localiza, em termos tópicos e paradoxais, em si mesmo. E
esta duplicidade, pensando que no momento Freud ainda defendia a tessitura
de sua primeira tópica, representa a oposição consciente-inconsciente. Aqui
está o primeiro duplo que causa estranhamento: o outro de nós mesmos.
Lacan chega a sugerir uma tradução do Unheimlich por extimi”, que o
estranho está fora porque antes fora incorporado (identificação projetiva?),
de modo a ser experimentado como algo exterior, embora tenha ganhado
vida na experiência interna. O primeiro discernimento do fenômeno Unheimlich
é a ação de um reconhecimento: “A imagem é mais fundamental que seu
dono”, lê-se no comentário de Mladen Dolar ao texto de Freud, “ela institui a
sua substância, seu ser essencial, sua alma”. A autoimagem seria, em outras
palavras, o que permite ao indivíduo dizer “eu”, podendo então se considerar
um “ser humano” a partir da apreensão do si mesmo (1991, p. 12).
“A psicanálise não fornece”, entretanto, “uma nova e melhor
interpretação do estranho; ela o mantém como um limite à interpretação”, e
consegue dar forma apenas às resistências oriundas do estranhamento. “Em
outras palavras, a psicanálise difere de outras interpretações por conta de sua
insistência no nível formal do estranho mais que em seu conteúdo” (Dolar,
1991, p. 20). Assim, a formalização do olhar como objeto a seria a expressão
encontrada por Lacan para circunscrever a tentativa malsucedida de apreendê-
lo. E a esquematização das definições de duplo anímico, autoerótico e
narcísico feita por César e Sára Botella (2007b, ps. 118-9) podem servir de
protótipo no mesmo sentido. Em hipótese, a única operação que conseguiria
arranhar mais de perto algumas de suas fronteiras é o fenômeno da criação
artística.
171
No caso de Hoffman, o duplo em questão se remete a um splitting mais
simples, conduzido de maneira quase casual: “O pai é dividido em pai bom,
protetor e portador da Lei universal, e pai mal, castrador, figura ciumenta e
ameaçadora que evoca o pai da horda primitiva, o pai associado ao terrível
gozo” (Dolar, 1991, p. 10), o Sandman em pessoa. O estranhamento pode
ser apreendido na medida em que o duplo seja “uma formação proveniente das
épocas primordiais da alma superadas [e] que naquele tempo possuíram
sem dúvida um sentido mais benigno” (Freud, 1996[1919], p. 236). É como se a
experiência psíquica sofresse uma regressão a estádios mais precoces do
desenvolvimento, retrocedendo ao momento em que o eu se confundia com o
outro, o estádio em que o seio (na sua equivalência com as partes boas ou
más da mãe) e a criança eram vividos como um só. O caráter conservador das
pulsões contribui, amiúde, para a manutenção destes traços inatos. O estranho
é Freud chega mesmo a afirmá-lo com todas as letras um retorno do igual
(ou do real?). É verdade que o circuito gira, mas em seu giro ele sempre
retorna ao sujeito. Como as fronteiras entre fantasia e realidade estão
borradas, particularmente na primeira infância, pelas marcas da repressão
primária, o efeito de estranhamento pode ser entendido, nesta linha de
raciocínio, como o resultado lógico de uma íntima relação entre a castração e o
seio materno. E numa outra chave de compreensão, não se poderia dizer que o
que nos olha enquanto vemos é, de modo mais preciso, este duplo que é ao
mesmo tempo interno e externo?
Em suma, o Unheimliche, de cujo un diríamos que completa heimlich na
sua origem, eque o completa porque foi “sintomatizado” pelo signo do recalque,
é nada mais do que a coisa familiar que retorna depois de passar pelo
processo de recalcamento, ainda que o próprio Freud reconheça que nem tudo
que se submeta à repressão deva, por obrigação, gerar sequelas estranhas.
Para que a inquietude se concretize, deve-se constituir um suporte adequado
de objetos-fenômeno: atualizadas em uma obra (o objeto em questão) que
reanima os complexos infantis, as condições para a reação do estranhamento
dependerão invariavelmente do material utilizado pelo artista, e, assim sendo,
do complemento de um processo de identificação no outro sem o qual se
tornaria inapreensível.
172
Na segunda camada de significação, o fato de que Nathaniel se
apaixone por um autômato não é, de longe, o que acontece de mais estranho
nessa narrativa: estranho é sobretudo o fato de que seu amor seja ele mesmo
automático. “Uma tela branca, olhos vazios, e um ‘oh’!” é o suficiente para
conduzir nosso herói às loucuras da paixão. A grande questão que nos resta
seria: “quem é efetivamente o autômato na situação”? (Dolar, 1991, p. 09).
Nada melhor que a sessão analítica para verificar o que seria, em
termos concretos, a ação de estranhar. Mladen Dolar acrescenta, a esse
respeito, que
A boneca mecânica apenas ilumina o caráter “intersubjetivo”
das relações. É a característica explorada pela posição do analista: por
sua vez, o analista também expressa no máximo um “Oh!e (e
talvez um “Boa noite, querida!”); ele faz de si mesmo um autômato para
dar lugar à dimensão do Outro, o interlocutor real do “monólogo” do
paciente, visando ainda produzir aquela estranha forma de amor, talvez
o amor em seu mais puro e estrito sentido, que é o amor transferencial.
As prolongadas conversas de Nathaniel com Olympia prefigurariam a
sessão analítica (1991, p. 09).
A forte presença de bonecos ou de “mortos-vivos” não deixou de seduzir
um número considerável de artistas contemporâneos, de modo que a tese
acerca do parallax parece mesmo se confirmar. As referências ao autômato e
ao duplo na literatura moderna de Hoffman e Poe, amplamente tributárias do
Iluminismo (Dolar, 1991; Zizec, 1991), retornariam, nesse sentido,
figurabilizadas pela mão de artistas recentes como Christian Carez, Bernard
Faucon, Jorge Ribalta e Joel-Peter Witkin, para citar apenas alguns. Por sua
vez, o cinema sabe explorá-lo como ninguém. Hoje não é novidade assistirmos
à invasão de humanoides de outros planetas e a robôs humanizados da
cabeça aos pés, ou ainda a Avatars que substituiriam nossos limitados
organismos. Por outro lado, os silêncios narrados por Werner Herzog em “O
enigma de Kaspar Hauser”, ou por Tim Burton em “Edward Scissorhands”,
ambos personagens de uma gestualidade robótica, comportando-se a partir de
173
uma “humanização claudicante”, por assim dizer, aproximariam o espectador
contemporâneo da curiosa nosografia – inclusive também mais atual – do
autismo. No vocabulário psicológico, os dois casos expõem um tipo de sujeito
que não teria sido “capturado por sua imagem no espelho”, isto é, trata-se de
sujeitos “sem ego” como recomenda Zizec (1991, p. 650). Corpos, e nada mais.
Para Dolar, se aprofundada, a questão ganha ares de fundamento:
aquilo que é “correntemente chamado de pós-modernismo e este é apenas
um modo de desembaraçar a confusão crescente a respeito deste termo é
uma nova consciência do estranho como dimensão fundamental da
modernidade”; o que não significa, entretanto, que a pós-modernidade tenha
superado a modernidade: isso apenas implica ao “anúncio de seus limites
internos, sua cisão, que lá está desde seu início” (1991, p. 23).
Neste contexto, pode-se ainda presumir que Balzac, diga-se de
passagem o último escritor lido por Freud, teria com efeito inaugurado uma
larga discussão sobre o tema, a despeito de tê-lo feito de maneira tão indireta,
remontando à ilusão pela via do engano no campo na pintura. A obra-prima
ignorada é uma narrativa que proporciona subsídios para continuar, sem no
entanto esgotá-la, a reflexão moderna sobre “o que ainda o tem forma”, tal
como veremos no capítulo seguinte com o filósofo e historiador da arte
Georges Didi-Huberman.
De sua parte, ao examinar o Cartão de Londres de Leonardo Da Vinci,
André Green também poderia estar escrevendo sobre a mesma gênese. Não é
o caso. Não obstante, diante destas telas o esboço de Leonardo e a obra
fictícia de Frenhofer, que se distanciam praticamente em três culos , Green
consegue apreender que
Talvez este círculo reproduza o limite do quadro remetendo a
um além do limite que não está na tela, apontando para um espaço
que seria menos o da extensão do campo visual que o que está além
dos limites do visível. Assim, o espaço do quadro seria portador de
toda a carne cujas delícias fantasiadas ou nostálgicas o corpo da mãe
evoca; no entanto, além, se abriria outro espaço, onde o figurável não
174
tem mais lugar, e que só ao pensamento caberia construir. Mas
somente a partir do figurável (1990, p. 92).
Apesar de seu apelo à estética da representação, Green consegue
ampliar a noção de tela em função da análise do esboço: “Ninguém teria hoje a
ingenuidade de pensar que aquilo que transpira do homem através da obra
poderia ser senão um produto complexo”, lê-se em Revelações do inacabado,
“mescla de lembrança com densa carga de impregnação afetiva, de fantasias
suavizando a ferida daquilo que o foi, pertencendo a diferentes períodos do
passado, aos quais se somam as vivas impressões dos momentos, as novas
circunstâncias do presente, resolvendo-se o conjunto numa construção
singular, forte por toda a organização formal que dará seu estilo definitivo à
criação” (1990, p. 94). Tal como o pictograma, a tela aludiria à formação
psíquica mais fundamental, uma vez que, agora segundo Green, ao servir de
tela a vida psíquica pode ser experimentada pelo sujeito a partir das imagens
que deixa ou proíbe aparecer, conteúdos que a censura vela ou deixa revelar
ao extrato consciente. Nessa medida, toda tela exige o interesse de um
espectador.
Então ele [o espectador] é obrigado a reconhecer a existência
de procedimentos cuja aplicação ao trabalho da consciência, com suas
funções intelectuais, levaria quem a eles se arriscasse a correr perigos
que é difícil imaginar: condensação, deslocamento, anulação,
isolamento, transformação no contrário, inversão, desdobramento,
cisão etc. Eles são indício de formigamento e de fervilhamento mental
produtor de efeitos sempre no limite do desmoronamento do sentido,
perpétua ameaça pesando em nossa posição no seio do real. A função
da tela é ser testemunha muda, receptáculo precário, apoio incerto,
guia hesitante ou censor paralisante, mas também, às vezes,
maravilhoso revelador (Green, 1990, p. 94).
Em imagens mais recentes, Foster constata que o ataque à tela de
proteção flerta com o perigo de uma “perda total”; em seus retratos de moda,
175
por exemplo, Cindy Sherman faz como que “o intervalo entre corpo imaginado
e concreto” se transfigure deliberadamente, e não cinicamente, como sugere
Dondald Kuspit, em um corpo “psicótico”. E outras imagens (no caso, as Sex
Pictures do início da década de 1990) sugerem que as proteções egoicas
foram, de uma vez por todas, por água abaixo. De modo complementar, seus
ensaios fotográficos sobre a “história da arte” conduziriam, sob esta ótica, a um
tipo de dessublimação que leva a artista a consequências radicais: “com
sacolas cicatrizadas para seios e carbúnculos temerosos de narizes, estes
corpos destroem as linhas retas da representação apropriada, decerto da
própria subjetividade” (Foster, 1996, p. 148).
Como se pode constatar sem muita dificuldade, a maior parte destas
cenas apresenta o horror como dispositivo visual privilegiado (Horror Pictures,
apresentadas em meados dos anos 1990). Não se trata, porém, de uma
qualidade qualquer do grotesco. Nestes casos, não estamos mais pisando
no terreno do estranhamento. As imagens repulsivas de Sherman ligam o
horror ao que é inimaginável: ela ataca a ideia da maternidade tal como a
conhecemos, incitando sensações de repulsa diante de um corpo que, a priori,
dificilmente seria repugnante, o corpo de uma e. Do estranhamento à
abjeção, ainda resta um sério caminho a ser percorrido. Assim, não se poderia
conjeturar que a destruição do corpo materno é na verdade uma maneira
desesperada para recuperá-lo? Na linguagem metapsicológica atual, de acordo
com o casal Botella (2007b, p. 117), o funcionamento psíquico do fenômeno
estranho dá mostras de ser atravessado de fora a fora por efeitos traumáticos,
provocados pelas experiências originais, e portanto maternas, de ausência de
satisfação.
Ora, a obturação da ausência real de uma mãe é bastante conhecida na
história da psicanálise – a criança com o carretel. Em termos analíticos, jogar é
também criar: a repetição e o retorno do real seriam forças de criação
semelhantes à conjuntura do fort-da. Essa tentativa de dominar a vivência do
desamparo fundamental é a expressão mais verdadeira do modo como o
sujeito lida com a solidão, essa que por sua vez é despertada pela angústia
primordial da separação eu-outro, espaço em que se a “invenção de um
mundo no qual a criança traça, através de seu gesto e do uso de um objeto, os
176
limites de um território que ele percorre enquanto minúsculo nômade, mestre
do tempo de seu desamparo” (Zygouris, 1999, p. 13). Portanto, se o
acontecimento da perda sugere a novidade, logo também exige novos
encontros, isso tudo configura, por conseguinte, a estrutura de um encontro
com o real. No entendimento de Lacan, “não se trata em Freud de nenhuma
repetição que se assente no natural, de nenhum retorno da necessidade”
(1998, p. 62). Nessa medida, torna-se imprescindível reencontrarmos a espiral
de Thânatos: que a repetição se remete em parte à pulsão e, nessa medida,
também à pulsão de morte, então é o novo que aí está para se atualizar.
Contudo, é quase impossível referir-se ao questionamento
contemporâneo do corpo materno sem se voltar ao Post-partum document de
Mary Kelly. Esta obra, que antecede Interim, famosa instalação que alcançaria
resultados muito parecidos, viria a se tornar fonte de intensas discussões, tanto
no circuito das artes quanto no cenário psicanalítico. Usando referências
visuais de origem pessoal, conforme se em depoimento da própria artista,
Post-partum pretendia, a princípio, debater o estatuto do desejo da mãe como
meio de construção da feminilidade a partir de questões sobre o fetichismo e a
objetificação da mulher.
Para fora do desejo materno – ela então se perguntava como pensar o
desejo da mulher? Seria ele figurabilizado definitivamente pela máscara de
Joan Rivière? Ou seria apenas um tipo de prazer narcísico? “Esta investigação
parece ter escavado uma disposição psíquica que fora profundamente
problematizada pela ideia de se ser como homem”, refletia a artista a esse
respeito. Para ela, o “dilema histérico poderia, de fato, ser colocado, ‘sou uma
mulher, ou sou um homem?’”, partindo da problemática anunciada no Post-
partum. A conclusão a que chegou seria, decerto, óbvia, se o fosse
“contemporaneamente” crucial: para pensar o feminino, Kelly arremata, deve-
se pensar o masculino.
Em meio à reconhecida tonalidade feminista de seus trabalhos, o
conjunto da obra de Kelly é, ademais, influenciado desde o início pela
psicanálise lacaniana (Archer, 2001, p. 140). Conceitos como “estádio do
espelho” e “patologias masculinas do eu” são por ela importados com relativa
177
frequência. Seu interesse por aquilo que “Lacan o diz”, segundo ela mesma
testemunha, visa no entanto criticar, a princípio, a falicização totalizante da
cultura, o fato de que a posição masculina seja privilegiada na oferta de
identificações. Neste contexto, a literalidade do trabalho é o que menos
importa: toda a relevância reside na força afetiva que suas obras almejam
atingir.
Com respeito a essa qualidade, Mignon Nixon associa, em uma
articulação surpreendente, o Post-Partum de Kelly aos bitos colecionistas
10
de Freud. Iniciada em 1973, a obra de Kelly manifestaria, a partir de uma
posição subjetiva específica, um “museu psico-conceitual da maternidade” que
visa comemorar “a primeira infância do filho da artista”. Seria possível observar
o mesmo comportamento no ato do colecionador: a presença sistemática da
afetividade se revela através do cuidado que ele tem para com os objetos
colecionados. Assim, na seleção de objetos apresentada por Kelly no Post-
partum “todo elemento se refere à figura materna que a psicanálise freudiana
concebe” (Nixon, 2005, p. 61, grifos meus).
Nas palavras de Nixon aqui influenciada por John Forrester,
reconhecido historiador da psicanálise –, essa obra
adota os próprios hábitos colecionistas de Freud para constituir a
questão do materno tanto material quanto linguisticamente, em coisas
e em palavras. Compartilha da ambição, em Freud, de transformar
sonhos, piadas, e atos falhos em “material cientificamente sério”,
estendendo esta lógica aos “objetos encobertos por vergonha”
associados à maternidade. Ao arquivo de “peidos e caretas” reunidos
por Freud, Kelly junta manchas fecais, fala de bebê e fetichismo
materno, incorporando o maternal e localizando seus objetos também
nos discursos públicos da Psicanálise e da Arte Conceitual (2005, p.
62)
10
Uma associação parecida ocorreu aos curadores da exposição La passion à l’œuvre: Rodin
et Freud collectioneurs”, realizada no museu Rodin de Paris entre outubro 2008 e fevereiro de
2009. Na ocasião, Forrester apontava que, a despeito das antiguidades que acumulou, a maior
coleção de Freud é aquela das aparições do inconsciente: atos falos, lapsos, sonhos, piadas.
178
Interim, por outro lado, procurava demonstrar, de acordo com a opinião
de Parveen Adams, a experiência de ser analisado pela obra. Ir à exibição de
Interim “é como ir à análise”, sentencia (1991, p. 81). Para a crítica e
psicanalista, Interim conseguiria proporcionar um aparato transferencial
suficiente para suportar o discurso do analista (partindo do quadrípode
proposto por Lacan em O avesso da psicanálise). Desse modo, o analista,
permanecendo na posição de objeto a, daria espaço de subjetivação ao
espectador-analisando, lugar onde vem surgir o “sujeito barrado”. As imagens
de Interim, impregnadas de interpretação, ilustram toda a “textualidade
silenciosa” que configura o horizonte máximo do trabalho analítico. Ora falando,
ora em silêncio, seu procedimento deixa revelar que ele é um ser “desejante” e,
portanto, faltante. Seu silêncio também pode confessar que “não sabe” aquilo
que o analisando espera ou supõe que saiba. No rigor da letra freudiana, é
possível que o desejo do analisando (isto é, do outro) apareça se lhe é
reservado um espaço, assim como a análise consiste em mostrar como “a
roupa que se veste” vem a se tornar um objeto de desejo. “Como pode uma
imagem interrogar o objeto de desejo e interromper o movimento do desejo em
seu desconhecimento do objeto?”, questiona Adams. Ao fim e ao cabo, a
imagem em si não é o objeto do desejo; ela é apenas um limite, isto é, a
fronteira do mundo simbólico. E no seu limite a imagem, substância materna
por excelência, é uma aparição de ordem pré-verbal muito próxima da “coisa”
(das Ding) e, nesta lógica, do real.
Segundo Hal Foster, as fotos de Sherman não representariam somente
o informe (Bataille), mas se referem a uma obscenidade radical em cujo
paradoxo “o objeto-olhar é apresentado como se não houvesse nenhuma
maneira de fazê-lo, nenhuma estrutura de representação para contê-lo”, ou
seja, sem proteção alguma da tela (1996, p. 149). Com certeza não é disso que
Benjamin está falando ao discutir a penetração que a fotografia viria a ganhar
nas sociedades futuras, mas poderia ser o caso: “Retirar o objeto de seu
invólucro, destruir sua aura”, indica, “é a característica de uma forma de
percepção cuja capacidade de captar o ‘semelhante’ no mundo é o aguda
que, graças à reprodução, ela consegue captá-la até no fenômeno único”
(1994, p. 101).
179
Nas Disgust pictures que Sherman apresentava no final dos anos 1980,
por exemplo, o abjeto faz questão de explorar as propriedades de cor que
existem no vômito, método peculiar que revelaria, de maneira ainda mais
desavergonhada, sua face obscena. Ora, nessa perspectiva, o próprio vômito
não representaria a necessidade de um retorno, uma vez que se trata de uma
resposta orgânica frente ao que não foi digerido? A rigor, seu procedimento
consistia em perguntar “se seria possível tirar uma fotografia que pudesse
suplantar o apelo do meio” (Archer, 2001, p. 194), mas que ao mesmo tempo
jamais fosse desejável para se pendurar na parede. A meu ver, é como se a
imagem estivesse em relação direta com a pulsão escópica, isto é, num lugar
intermediário entre sujeito e obra onde não nenhuma defesa para o
primeiro; ali, residem apenas o horror e a monstruosidade contidos na
repugnância.
Trata-se, afinal junto ao ataque à tela como suporte do ilusionismo –,
11
de um longo processo de descentramento da categoria moderna de sujeito.
Acessado repetidas vezes por Sherman, o sujeito é, num primeiro momento,
capturado pelo olhar; logo depois, no entanto, será invadido por ele; no final
do processo o sujeito chega a ser “obliterado” pelo olhar. Se analisarmos a
perspectiva geometral, que aqui está sendo desinstituída, constataremos o
quanto é importante a força do anteparo para a obra; com Sherman e com a
abject art, porém, o distanciamento fornecido pela tela de suporte será, enfim,
desestruturado pela imagem. As fotos revelam que a demarcação de um
anteposto serve apenas como estabelecimento de um espaço, não
satisfazendo assim à totalidade da visão (Lacan, 1998, p. 86). Nessa ótica, sua
poética conduziria o ilusionismo ao encontro derradeiro com o real, a ponto de
instaurar torções que o transformariam em uma arma contra si mesmo. Aqui,
não mais espaço para encobrir o real com “superfícies de simulacro”. Ao
contrário, estas inversões nos fazem descobri-lo em coisas estranhas, que são
colocadas em performances” no geral relacionadas ao corpo ou à matéria
orgânica. “Às vezes a tela parece tão despedaçada que o objeto-olhar não
11
É muito provável que esta relação entre fotografia e real tenha sido influenciada pelo próprio
Barthes: em A Câmara Clara ele considera que a fotografia seria uma espécie de imagem
“louca”, mas de qualquer modo tocada pelo real” (1984, p. 159), cujo real ganha outro sentido
em Foster.
180
apenas invade o sujeito-como-figura mas também o devasta” (Foster, 1996, p.
149).
Em outros exemplos, a aversão ao ilusionismo chega a um tipo muito
especial de negação, a saber, aquele no qual perdura a “quebra de limitese a
presença cita de “corpos violados” (1996, p. 152), como nos casos de Robert
Gober, Kiki Smith, e, no momento atual, Joel-Peter Witkin: nestas fotografias
abjetas, “o corpo surge como um duplo direto do sujeito violado, cujas partes
são exibidas como resíduos de violência e/ou traços de trauma” (Foster, 1996,
p. 152). Assim, o real estaria para o objeto a assim como o objeto a está para a
inquietante estranheza. Como vimos, a angústia proveniente do estranhamento
se configura pela proximidade com o objeto que fora perdido, e não com a sua
ausência. O duplo, por sua vez, seria um fenômeno que o contém (o objeto);
não sendo espelho, é uma imagem mais interna que externa, e, por esse
motivo, estranha, portanto fazendo movimentar a pulsão de morte e a
compulsão à repetição.
Além de demonstrar a impossibilidade de se permanecer sem um
mínimo de anteparo, tais imagens indicam o quanto é insuportável manter-se
na terceira posição do esquema de cones indicado por Lacan, isto é, aquele
lugar destinado ao olhar. Se o homem sabe jogar com o imaginário (leia-se,
com o anteparo), é porque se inscreve no campo do simbólico, que “é aqui
lugar de mediação” (Lacan, 1998, p. 105). Uma amostra desta ambiguidade
radical pode ser aferida nas obras de Gober:
Suas pias de gesso, embora fizessem referência à fonte ready-
made de Duchamp, eram, como toda sua obra, feitas à mão. As
instalações de Gober também evocam uma sexualidade ambivalente,
como ocorria ocasionalmente com parte da obra de Duchamp. Em
salas cobertas por um papel de parede que representava uma cena de
floresta, um pênis e uma vagina, um enforcado ou um menino
dormindo, todos constituindo motivos que se repetiam, Gober distribuía
suas pias, caixas com iscas para ratos e para dejetos de gatos (...) e
um charuto descomunal (Archer, 2001, p. 186).
181
Isto dito, chegamos a um dos pontos cruciais da relação entre
psicanálise e reflexão estética contemporâneas. É a partir da arte abjeta (além
dos citados, cabe mencionar artistas como Katarina Fritsch, Mathew Barney
e Charles Ray), que se pode dizer que o abandono da categoria de sublimação
segundo a perspectiva por mim descrita nos dois capítulos anteriores teria
dado seu último suspiro. Se, com efeito, a imagem pós-moderna rejeita o
ilusionismo quando traz à tona o estranho e o retorno do real, então não
restaria mais nenhum espaço à antiga teoria. E uma vez que o acesso ao
objeto e à representação se torna impossível, surgem imagens que possibilitam
sentir as feridas decorrentes da perda. Tomando de empréstimo a concepção
de Julia Kristeva, Foster acredita que a abjeção seria “uma substância
fantasmática não apenas alheia ao sujeito”; ela é também muito íntima dele
tal como ocorre com o fenômeno Unheimlich “íntima demais, de fato, e essa
excessiva aproximação” é o que produz pânico. O objetivo maior da abjeção
seria conduzir a percepção “às fronteiras do corpo violado”; dito de outra
maneira, os efeitos do horror resgatam certos traços inconscientes que foram
inscritos na passagem pelo Complexo de Édipo: eles tocam “na fragilidade de
nossas fronteiras” entre interno e externo, ou, em termos mais precisos, entre o
“corpo materno” – que surge aqui, novamente, enquanto reino do horror – e um
terceiro, “a lei paterna” (1996, p. 152-3).
A interpretação que Rosalind Krauss faz da teoria de Kristeva sugere
que seu conceito “intermediário” de abjeção exprime uma clara intimidade com
a estrutura do funcionamento borderline. Se, com efeito, o estado limítrofe se
caracteriza pela incapacidade que a criança apresenta para se separar do
materno, então a abjeção, “mortalha membrano-mucosa de odores e
substâncias corporais” que é representada pela mãe deve ser remetida às
vicissitudes internas das primeiras experiências psicológicas. Nem nem cá, e
arrastada por uma condição sem limites, a criança acaba perdendo sua batalha
pela autonomia, uma vez “performada como um tipo de mímica da
impassibilidade das próprias fronteiras do corpo, com a liberdade surgindo
apenas ilusoriamente como evacuação convulsiva” (Bois; Krauss, 1997, p.
237). Assim, a proximidade exagerada se torna grave ameaça contra a
definição de si mesmo. A decorrência poética, manifestada com os ataques ao
182
corpo da mãe e da mulher, como nos exemplos de Kelly e de Sherman,
encontra aí sua melhor justificativa.
O abjeto, entendido como esta extensão materna
indiferenciável um tipo de feminino sublime, embora composto do
infinitamente impronunciável desgosto corporal: de sangue, de
excreção, de membranas mucosas é definitivamente ligado, na
teorização da arte abjeta, como múltiplas formas de uma ferida.
Porque, seja ou não dado o tema sobre o feminino numa obra
qualquer, é o aspecto de ter sido ferido, vitimizado, traumatizado,
marginalizado que é visto como principal neste contexto (Bois; Krauss,
p. 238).
No tocante aos processos de subjetivação surgem, em concomitância,
as funções de ruptura e de conservação, sendo elas componentes da abjeção.
É inerente ao abjeto provocar o afastamento, pois é somente ao se livrar
“disso” (do grotesco, daquilo que provoca náusea) que o sujeito pode dizer
“eu”. A problemática apresentada pelas imagens abjetas se revela amplamente
provocativa “porque coloca a questão, crucial à arte abjeta, da possibilidade de
uma representação obscena ou seja, de uma representação sem uma cena
que dirige o objeto ao espectador” (Foster, 1996, p. 153). O espectador,
relegado agora ao fora da cena, não possui nenhuma tela que o proteja. É
como se as sequelas dos aviltamentos colocados em prática pelas vanguardas
contemporâneas quebrassem a intersecção dos anéis imaginário, simbólico e
real (conforme idealizados por Lacan). Sua consequência mais imediata é o
próprio colapso de sentido que oferecem ao olhar. Assim, a crise da superfície
surge logo em seguida como sequela do esgotamento, quando a imagem é,
como nunca antes, estraçalhada pelo real.
Aqui a condição de imagem-tela e de ordem simbólica
respectiva é absolutamente importante; a valência da arte abjeta
depende disso. Se intacta, o ataque à imagem-tela deve reter um valor
transgressivo. Entretanto, se fragmentada, essa transgressão deve
183
estar apaziguada, e esta velha vocação da vanguarda chega a seu
final. Mas ainda existe uma terceira opção, que a reformula: repensar a
transgressão não como uma ruptura produzida fora da ordem simbólica
e por uma vanguarda heroica, mas como uma fratura encontrada por
uma vanguarda estratégica dentro da ordem. Neste sentido, o objetivo
da vanguarda não seria romper absolutamente com essa ordem (o
velho sonho dissipado), mas expô-la em sua crise, registrar não
apenas seus pontos de colapso, mas também os de abertura,
12
considerando as novas possibilidades que tal crise poderá abrir
(Foster, 1996, p. 157).
Além de acessar o traumático e o fragmentário, constatemos em que
medida as imagens repugnantes não deixam de se remeter a mecanismos
confessadamente regressivos. Quanto a isso, existem exemplares notórios: o
uso livre de excrementos (Andres Serrano, John Miller, Piero Monzani) e o
surgimento de uma infantilização, observada através de pequenas construções
com brinquedos, bichos de pelúcia degradantes ou “palhaços obscenos” (Bruce
Nauman, Mike Kelley, Joel-Peter Witkin), que se tornam material privilegiado.
Por um lado, as obras tendem a se identificar e a se aproximar da
abjeção; de outro, procuram imprimir cortes em seu funcionamento pegá-lo
no ato, “torná-lo reflexivo ou, ainda, repelente” (Foster, 1996, p. 157). Para
Foster, estas figuras de regressão o também figuras de perversão, pois se
referem ao desvio que o perverso faz diante da lei do pai. Como veremos, no
momento oportuno, com Janine Chasseguet-Smirgel, perversão e estética
andam sempre lado a lado: o sujeito provoca, transgride a lei com a certeza de
que ela está lá. Não há, aqui, necessidade para a diferenciação sexual, uma
vez que a fixação na analidade pode conjurar a falta-a-ser. Na mistura dos
sexos, tudo converge no bolo fecal, a uma estrutura de borda comum a todos,
seja homem ou mulher.
Nesse sentido, o fazer das fezes obra exigiria um exame mais amplo da
grave “reversão simbólica” exposta por essa arte. Na história da arte, pode-se
dizer que sua inauguração coube aos Acionistas e aos performers da Body-Art,
12
um jogo de palavras entre breakdown e breakthrough feito por Foster de impossível
tradução.
184
todos nascidos na década de 1950: “fotos, raios X, voz, exames clínicos,
cabelos, unhas, excrementos”, sangue, sêmen e “todo tipo de vestígio humano”
foram largamente utilizados por artistas como Gina Pane, Orlan, Vito Acconci
ou Bruce Nauman, Herman Nitsch e Swarzkogler. São experiências plásticas
cuja proposição se aliava à radicalidade da crítica social, numa situação
específica de pós-guerra (Frayze-Pereira, 2005, p. 302).
Não obstante, o primeiro passo dado pelo homem visando o social e à
civilização foi a repressão da analidade e do olfato, como assinalou Freud.
Assim, a regressão perversa possuiria também o seu próprio efeito de trauma:
a necessidade de se retornar a um recalcamento tão original daria provas de
que algo não pôde ser elaborado ali. O abuso das passagens-ao-ato se torna
um resultado bastante conveniente em meio a tamanhas repressões. Não é tão
simples transformar dejetos em obra de arte, e a “Merda do Artista” de Piero
Manzoni retrata, sem dúvida, dada a conjuntura, esse problema de
transposição. Com sua ão extrema, no entanto, o artista criou um modo de
atravessar e ao mesmo tempo simbolizar as barreiras de um determinado
sistema normativo de arte.
Se a acusação de cinismo dirigida à neovanguarda representa nada
mais que a expressão de uma crítica conservadora, não por isso se deve
deixar de observar que reside uma ironia político-cultural no interior destas
imagens reativas (segundo a opinião de Benjamin Buchloh), onde o caráter
repressivo da organização social é denunciado “à margem”. Emissário do
desafio à “visualidade lica” decorrente da posição ereta do corpo e “modelo
primordial da pintura e da escultura tradicionais (...) Este duplo desafio da
sublimação visual e da forma vertical é uma forte ocorrência na arte do século
XX” (Foster, 1996, p. 160).
O predicado “visual” aqui aposto à sublimação pode conduzir a um
entendimento mais acurado do problema. Não se trata de extirpar a sublimação
do campo estético, uma vez que o fenômeno da criação, por mais distante da
beleza que ela esteja, continuaria funcionando, em termos psíquicos, segundo
suas premissas. No entanto cabe sublinhar, mais uma vez, a necessidade de
ressignificá-la a partir de novos referenciais. Com efeito, não se veem, nas
185
obras em questão, maiores rastros de uma imagem “sublimada”, idealizada: as
coisas aparecem como são (pênis, vaginas, ânus), sem informações cobertas;
não se encontra, no conjunto das imagens, a presença invisível de referências
exteriores à imagem. O retorno à analidade, por exemplo, visto a partir desta
postura provocadora, deve ser considerado a partir de uma autoconsciência
que o conduz à paródia de si mesmo. A neovanguarda “não apenas testa a
repressiva autoridade anal da cultura tradicional do museu (que em parte é
uma projeção edípica), bem como zomba da eroticidade anal narcisista da
vanguarda artística rebelde” (Foster, 1996, p. 161).
A ruptura com a institucionalização da experiência estética nos leva ao
campo da psicanálise do simbólico, da lei e, portanto, do lugar do pai. Assim, o
que resta para entendermos a ofensiva contra o corpo materno? Como sugere
Foster, este corpo se tornou ignóbil ou “sem gosto” porque se deixou reprimir
pela lei paterna. Trapos, farrapos e lixo serão por conseguinte o único material
a ser aproveitado.
Mike Kelley, por exemplo, fazia questão de declarar sua escolha por
materiais que se encontram a meio caminho entre informe e abjeto, objetos
cuja função primordial seria expressar, por meio de um estranho impulso de
indistinção, o desejo paradoxal de não ter desejo, expressão máxima de uma
fadiga frente à indiferença contemporânea. Com esta disposição o artista
alcançaria, de maneira indireta, a mesma profundidade conceitual explorada na
reflexão de Foster: a uma série de imagens concebida a quatro mãos, Kelley e
Paul McCarthy dariam o título, nada menos que curioso, de Heichi: midlife
crisis trauma center and negative media. Engram abreaction release zone”, no
qual praticamente todas as categorias discutidas até o momento se dispõem.
A configuração fantasmática destas imagens se aproxima adiantando
parte dos resultados de um percurso que visa elaborar “desmatérias”, algo
que se poderia traduzir, noutras palavras, por uma regressão que se encontra
aquém “do infantil e do inorgânico” (Foster, 1996, p. 164). Para Foster, é como
se Kelley procurasse fazer do “materialismo” fato social ou psicológico; mas, ao
fazê-lo, as coisas caem no plano da indistinção visual. Um bom número de
obras de Kelley indica um desgaste de si mesmo visto através de mensagens
186
insensíveis, irônicas em certa medida: “Eu sou um inútil para a cultura, mas
Deus me ama” é o que se numa série de estandartes que realizou em
1987. É também inequívoco que a questão da perda viria a se tornar elemento
central no interior de sua obra. “Com frequência”, escreve Archer a respeito,
“Kelley usava objetos feitos em casa, brinquedos investidos de um amor
desmedido por quem se dispusesse a possuí-los” (2001, p. 210), coisas que
retratam a sensação intolerável do abandono.
Ora, este “indizível impensável” relacionado ao corpo da mãe possui
uma representação peculiar na cultura ocidental, de acordo com a investigação
feita por Renato Mezan em “A Medusa e o telescópio”. O título do ensaio revela
o fim da história: são inúmeras as associações deste horror à imagem da
Medusa, ser “que transforma em estátua de pedra todos aqueles sobre quem
recai seu olhar”. E a presença da Górgona nunca foi assunto tão atual. Mezan
sugere, ao largo, que estas associações esclarecem a gramática da pulsão
escópica, bem como o complexo de castração a ela articulado, “vinculação que
os une numa mesma rede de representações” (2002, p. 61). Trata-se de um
modo particular de desmentir, ou seja, aquele do qual o perverso não consegue
se livrar; as serpentes que compõem o cabelo do monstro, símbolos fálicos tout
court, provam-no com nitidez. “O que a imagem conota é tanto a realidade da
castração quanto a denegação de que ela existe e é eficaz. Mas por que seu
agente precisa ser uma figura feminina?”, indaga Mezan. “Porque a castração
denegada, antes de ser a do próprio sujeito, é a castração da mãe” (2002, p.
64).
Contudo, a realidade imposta pela Medusa se localiza, em termos
temporais, no aquém da realidade da castração. Em momento oportuno
(capítulo 4), veremos algumas das características principais desta modalidade
particular de negação, cujos traços possuem, junto da pulsão escópica,
relações íntimas com a criação e com a experiência artística. Por ora,
assinalemos apenas que o trajeto da pesquisa de Mezan conduz a este exato
lugar: se a Medusa exige o corpo da mãe no nível de sua castração é porque a
metáfora serve como porta de entrada ao momento mítico da origem de seu
horror, o registro do narcisismo primário. O “pavor do informe”, isto é, aquilo
“que abole todas as categorias”, a “homogeneidade absoluta da morte” seriam
187
experiências conectadas a fenômenos psicológicos anteriores, nos quais se
assistiria à “dissolução de si no retorno ao indiferenciado”. Está em jogo, neste
contexto, um tipo “irrepresentável” de incesto, ainda que “não sob a forma de
um coito entre dois adultos, um dos quais é a mãe do outro”. Para o autor,
“Gorgô se ergue como a representação do caos, daquilo que mistura todas as
regiões do ser e embaralha as espécies, os sexos, o aquém e o além(2002,
ps. 66-70). Em nenhum momento Mezan menciona a concepção do real
conforme elaborada pelo vocabulário lacaniano; o que não impede que se
possa associá-lo a esse lugar onde não existe alteridade.
Regressando às indicações de Foster, pode-se dizer que uma
amostragem significativa da arte contemporânea está marcada por um tipo de
descompensação desta ordem, seja pela via da “esquizofrenia dos anos 1980”,
seja pelo pêndulo mania-depressão característico das expressões melancólicas
de dez anos depois. “O arrombamento do corpo, o olhar devorando o sujeito, o
sujeito se transformando em espaço, o estado da total similaridade”, declara,
são as “condições evocadas na arte recente”. Se o objetivo principal dos
artistas modernos era transcender a “figura referencial” da instituição burguesa,
no mesmo passo em que os pós-modernos se contentariam com a “imagem
absoluta”, certos artistas de hoje ultrapassam estas fronteiras enquanto
desejam possuir “a coisa real” (1996, p. 165).
A bipolaridade da arte pós-moderna revela os seus sintomas em virtude
de que “muitos artistas se vêm levados pela ambição de habitar um lugar de
total afeto e ao mesmo tempo serem totalmente esvaziados afetivamente, de
possuir a vitalidade obscena da ferida e ocupar a niilidade radical do corpo”
(Foster, 1996, p. 166). Surpreendente recuo a Além do princípio de prazer: toda
queda simbólica é sempre acompanhada de uma angústia, aqui trazida pelo
fantasma decorrente da perda. Puro afeto, nada de afeto: se o que nos resta é
a esquizofrenia ou, em outras palavras, a ruptura simbólica da linguagem –,
é possível encontrar sustentação nos alicerces na imagem, por mais
precária que seja esta bengala.
Murielle Gagnebin considera que esta recente fascinação pelo repulsivo
exprime uma “prodigiosa cancerização da arte”. E as razões psíquicas de sua
188
origem reverberam no campo social. Afinal, a psicanálise nunca deixou de ser,
como Freud sempre alertava, uma psicologia social.
Como sugerido, existe uma insatisfação com o modelo
textualista da cultura e com a visão convencional da realidade tal
como se o Real, reprimido no pós-modernismo pós-estruturalista,
tivesse retornado como traumático. Assim, também, um
desilusionamento com respeito à celebração do desejo como livre
passaporte para um sujeito móvel tal como se o Real, dissolvido por
um pós-modernismo performativo, fosse orientado contra o mundo
imaginário da fantasia capturada pelo consumismo (Foster, 1996, p.
166).
Mesmo consideradas as diferentes forças em ação, a crise simbólica
permanece. Se a conjuntura em torno do paterno tornou-se, ao lado da
diferença sexual, uma “nova instituição”, como sugere Michel Tort, contestar a
dogmatização que os transforma em meio privilegiado de subjetivação significa,
no mínimo, perceber que a crise da autoridade também se inscreve na própria
psicanálise. Relacionada ao colapso simbólico, as reflexões em torno do
trauma e da abjeção se mantém pertinentes, ainda que de maneira parcial:
“para muitos na cultura contemporânea a verdade reside na matéria traumática
ou abjeta, no corpo doente ou danificado”. Traumático ou abjeto, é nos limites
do corpo que encontraremos o irredutível. E se “existe um sujeito da história
para o culto geral da abjeção, ele não é o Trabalhador, a Mulher, ou a Pessoa
de Cor, mas o Cadáver” (Foster, 1996, p. 166). Este corpo é o meio pelo qual
se chega a verdades, apreendem-se identidades, mas, sobretudo, são
percebidas as diferenças.
Nada restaria, portanto, a construir? A alteridade teria sido reduzida ao
niilismo? “A abjeção seria uma recusa do poder, sua artimanha ou sua
reinvenção?” Como se pôde notar, a cultura atual se apoia na redefinição de
sua experiência insistindo pela via do trauma. No seu conjunto, essa
experiência viria afiançar a existência de um sujeito que, passado o momento
da inscrição traumática, retorna como “vítima, testemunha” ou “sobrevivente”
189
(Foster, 1996, p. 168). Ainda assim, não existe, de acordo com o dispositivo
psicanalítico, um sujeito concreto “do trauma; a posição é evacuada, e nesse
sentido a crítica do sujeito é mais radical aqui”. Como resolver a equação? “No
discurso do trauma”, conclui Foster, “o sujeito é evacuado e elevado ao mesmo
tempo” (1996, p. 168). O retorno do real se converte no retorno ao “referencial”
o que revigoraria, com efeito, a força da questão inicial, levantada acerca da
apropriação de imagens. Assim, a ambiguidade comporta tanto a aparição
quanto o desaparecimento de um sistema de referências.
Gagnebin resume as vicissitudes deste momento da arte:
De outro modo, recorrendo à agressão sob todos os aspectos,
louvando o desmembrado e o dilacerado, o informe e o putrefato, o
imundo e o viscoso, em suma, todas as figuras do horror, chegando,
em alguns, a trabalhar com o esperma resfriado, o sangue coagulado,
a urina e o excremento, eles antecipam o destino último da matéria
para além da morte: despedaçamento, desagregação, putrefação,
aniquilamento... (1994, p. 250)
No mundo moderno, a conquista da alteridade, tão almejada pelos
artistas, provocaria tamanha “crise na identidade cultural” que forçou a
vanguarda a resolvê-la por meio de construções simbólicas insuspeitadas,
como por exemplo o retorno ao primitivismo, “reconhecimento-e-renegação
fetichistas desta alteridade”. Todavia, mesmo a resposta dada pelos modernos
era um tipo de repressão. Gerenciado por esses artistas, “o outro retornou no
exato momento de seu suposto eclipse” (Foster, 1993, p. 15). E este regresso
se transformaria no que se convencionou chamar de pós-moderno. Como
vimos com Freud, a repetição é um tipo de defesa simbólica que objetiva
enfrentar violências sem nome. “Deveria ser evidente”, entretanto escreve a
este respeito Joan Copjec –, que a “negação do real pelo simbólico representa
um problema especial”. Mas, por fim, como isso poderia se presentificar? A
resposta é tautológica, senão sarcástica: “por meio da repetição”, isto é, pela
via da “tentativa – e erro – repetida do significante para se designar a si
mesmo” (1991, p. 28). A este ponto, reencontramos, não sem alguma ironia, a
190
fórmula de um dos maiores e mais inteligentes detratores que a psicanálise
enfrentou ao longo de sua história, o pensador Karl Krauss: “O início é o fim”.
Em meio a forças sociais tão destrutivas, as poéticas aqui recortadas
revelaram a desilusão de se pensar o desejo como “passaporte aberto do
sujeito móvel” (Foster, 1996b, p. 89). Com todas as consequências visíveis, o
retorno do real seria tanto o exercício da foraclusão quanto o retorno do
recalcado, ambos a serem vividos ao mesmo tempo no circuito da arte pós-
1990. Ora, não estaríamos no umbigo de um questionamento mais amplo que
se endereça à nossa atual vida psicossocial? Nem nem cá, vemo-nos diante
do assombro cada vez mais presente do funcionamento limítrofe, imagem
potencial daquilo que a cultura contemporânea enfrenta no seu dia a dia.
3.5) Terceira repetição. Enquadre, arte e clínica
Após realizar este percurso pela reflexão de Hal Foster, cujo princípio
norteador leva a reelaborações poéticas contemporâneas, bem como o avanço
da categoria psicanalítica de repetição, que serviu como meio de compreender
certas facetas da arte pós-moderna, vejo-me obrigado a fazer um novo recuo
antes de continuar. Afinal, não parece ser esta a palavra de ordem? Superados
ou não os traumas, como a reflexão estética pode fazer com que a psicanálise
reelabore suas próprias repetições?
Logo no início de “On the Couch”, intervenção para o número 113 de
October, dedicado à psicanálise, Mignon Nixon denuncia uma grave condição
que assalta tanto o campo psicanalítico quanto o circuito da arte
contemporânea; depois de fazer suas inúmeras incursões, mais ou menos
abrangentes, no cenário cultural, a psicanálise agora se vê, em paralelo à
reflexão estética, segundo ela, diante da obrigação de fazer um novo
13
retorno
às origens de seu dispositivo. No que concerne à produção artística, o estado
13
Novo se remete, evidentemente, ao pensamento psicanalítico pós-lacaniano.
191
de coisas se revela semelhante. “Ambas chegaram ao ponto de ‘máxima
resistência’”, assim indica a crítica e historiadora, “que é o da análise do
enquadre”. Ora, uma vez passadas as transformações que ambas viveram
ao longo de suas histórias, para onde se dirigir? Nas palavras de Nixon,
A sobrevivência do artista como figura pivô no pós-modernismo, para
além da suposta morte do autor uma tendência central em muito da Arte
Conceitual evidencia por ela mesma o papel que a transferência ganha ao
estabelecer, e sustentar, uma dinâmica de transferência em arte. Um artista
não-identificado descrevendo uma obra não-identificada para outro artista não-
identificado produz transferência à audiência (...) A presença de um ouvinte na
cena, mesmo (ou sobretudo) sendo ele silencioso e invisível, estimula a
dinâmica. O que é de ainda maior interesse às histórias da Arte Conceitual e da
crítica institucional, entretanto, é a transferência para o enquadre (2005b, p.
45).
Fato conhecido, foi com o surgimento da Arte Conceitual que os
elementos até então considerados adjacentes à obra passaram a ser obra,
sendo então incorporados em definitivo ao objeto de arte. Para vê-lo, basta ir a
qualquer mostra recente: os horários de abertura e fechamento da exposição
deixaram de ser coadjuvantes, assim como o tempo de duração da exibição; a
função dos textos críticos e dos catálogos também compõe a obra etc. Com
isso, não se deve considerar que, em paralelo ao que ocorre na prática
analítica, o “enquadre” da arte se situaria na relação de transferência e não nos
preceitos técnico-práticos definidos de antemão? Nessas condições, por
exemplo, o texto crítico, criado ou não sob encomenda pela curadoria, adentra
os perímetros do objeto e exige um lugar de coautoria (Salzstein, 2008). Isto
significa dizer que o paradigma da psicanálise aplicada continua lançando seus
fantasmas e atingindo o cenário da reflexão de hoje.
É dado na crítica contemporânea que teoria e prática da
psicanálise são separáveis, que a teoria psicanalítica alcançou uma
autonomia em relação a seu quadro geral. Mas esta divisão (em termos
192
psicanalíticos, esta cisão), tem dado margem a uma psicanálise
acadêmica que é com frequência abandonada, com certa justiça,
porque institucionalizada, dócil, dogmática uma forma de crítica
cultural em que o crítico de fato “encara a si mesmo como um sujeito
que sabe o que está acontecendo” (Nixon, 2005b, p. 76).
Com isso, o horizonte do enquadre toca no perigo de se cair nas malhas
da violência interpretativa. Os psicanalistas e os críticos precisam vigiar-se o
tempo todo ao fazê-lo; os artistas por sua vez conseguiriam problematizá-lo
sem tanta dificuldade. A reconstrução histórico-fotográfica de consultórios
oferecida por Nixon neste ensaio não poderia ter um melhor emprego. Tais
registros, que nascem em maio de 1938, quando Freud ainda atendia na
Bergasse 19, partiram da iniciativa de Edmund Engelman, fotógrafo trazido ao
consultório por August Aichorn. No conjunto de retratos analisados por Nixon,
destaca-se a importância que o divã viria a ganhar em termos formais, a
começar pelas peças que pertencem ao Museu Freud de Viena. O relevo se
torna ainda maior quando se pensa no Museu Freud de Londres, já que nele se
conserva o móvel original que pertenceu ao criador da psicanálise.
Mas, afinal, por que levantar a questão sobre a presença do divã, se
hoje em dia ele é tão questionado, nos próprios termos do enquadre, pela
influência cada vez maior das psicoterapias breves? Para os propósitos desta
pesquisa, esta indagação aparentemente despretensiosa nos traz de volta ao
epicentro do problema: acessar a presença do divã significa reativar a
problemática do olhar.
A historieta que ilustra umas das pedras angulares da análise já deve ter
entrado nos ouvidos de quase todos que se dizem psicanalistas: Freud, além
de o desejar que suas expressões faciais interferissem na fala do paciente,
assim como evitava dar vazão aos seus pensamentos inconscientes na
sessão, tampouco gostava de ser olhado durante “um dia inteiro”, segundo
testemunhou em 1913. A renúncia visual no contato entre analista e analisando
teria a função de “efetuar um deslocamento do desejo escópico do rosto do
analista para o meio-ambiente da análise” (Nixon, 2005b, p. 49). Estes
preceitos técnicos, no entanto, não devem tomados como pontos fixos,
193
dogmáticos, de acordo com o próprio psicanalista; são apenas sugestões. Do
contrário, se isso vem a acontecer, no entanto, assistiremos a outro processo
também bastante elucidado pelos psicanalistas: repressão. Ora, não é possível
tornar-se analista apenas ao interpretar o texto freudiano como um livro de
receitas a ser seguido. Pelo sim e pelo não, o divã “essa montanha russa!
como diria uma de minha pacientes se tornou “um ícone da cultura moderna”
(2005b, p. 40). São escassas, no entanto, as linhas em que Freud se dedica a
ele, e de igual forma a literatura psicanalítica quase nunca discute o assunto,
talvez por se tratar de um procedimento técnico relativamente pouco
controverso é muito comum os psicanalistas avaliarem o uso do divã como
condição obrigatória ao processo terapêutico.
A cena psicanalítica é referida no geral como enquadre assim como sua
quebra é entendida como resistência. O enquadre, apesar da dissimetria
essencial que representa e que própria da relação analítica, é aquele
procedimento que continência ao enigma de se fazer análise. Em meio à
dissolução subjetiva conduzida pelas sessões seu aspecto “regrediente”, de
acordo com a opinião de Cesar Botella, à qual se retornará –, deve permanecer
a constância do enquadre; assim, ele é a grande sustentação do liame
psicanalítico, e é também a sua existência que permite a saída da análise.
Como Mary Kelly conseguiu demonstrar em Post-partum document e em
Interim, toda resistência implica uma transferência, sendo que ambos são parte
constituinte da ideia de enquadramento.
A fotógrafa americana Shellburne Thurber, por exemplo, iniciou um
grande projeto que visava documentar consultórios de psicanalistas durante o
período que viveu em Buenos Aires. De volta a Boston, continuou a retratá-los,
no entanto concentrada no divã e em sua disposição no interior da sala: o
tamanho e o lugar do analista em relação ao móvel, bem como a posição de
mais ou menos destaque que ganhava dentro do cenário. A partir das imagens
de Thurber, pode-se sugerir a hipótese de que está em ação, no espaço físico
dos consultórios, um tipo muito especial de sobredeterminação psíquica: a
observação da fotógrafa descobre que a maioria dos divãs retratados se
aparentava ao estilo da peça utilizada por Freud, uma vez que os “símbolos
poéticos da cultura contemporânea” invadem a cena com pouca frequência
194
(Nixon, 2005b, p. 52). A despeito do arranjo mais geral de sala, os demais
objetos dão brechas para que o analisando consiga experimentar algo do
“sabor pessoal” que cada analista possui: quais são os livros, os quadros, as
imagens dispostas, quais as coleções oferecidas à vista e daí por diante.
Não é preciso ir muito longe: como se pode inferir por meio de uma
análise “institucional” do dispositivo analítico, a onipresença do divã fornece
uma identidade ao mesmo passo em que garante a legitimidade de quem
pratica o atendimento, principalmente se pensarmos na verdadeira crise que o
consultório psicanalítico vem passando ao longo dos últimos anos. Assim, não
é à toa que divã e enquadre estejam na crista da onda das discussões
institucionais. Não obstante, ao observar um dos consultórios fotografados,
Nixon recorda que
Atrás do divã está o analista não o ocupante de fato deste
consultório, mas Freud. Ou melhor, dezesseis Freuds, seu rosto
barbado repetido em múltiplos retratos dispostos num arranjo
“warholesco” de retratos fotográficos tirados em diferentes momentos
de sua vida (2005b, p. 52).
Ao contrário dos artistas, a maioria dos psicanalistas não toma as
características da sala de atendimento como fazendo parte do setting ou do
enquadre. É claro que têm consciência de sua disposição, ou mesmo das
associações (livres?) que podem gerar, mas ainda assim poucos meditam
sobre as suas condições de uso ou variâncias. Isso no geral acontece em
função de uma prescrição técnica: o consultório não poderia representar uma
grande fonte de sedução e de escopofilia? Quando ocorre, se os pacientes se
referem por exemplo ao mobiliário, ao maior ou menor conforto do divã e da
sala, tudo isso encaminha o profissional a trabalhar no registro ético da
transferência, e, neste contexto, a quebra do enquadre será inevitavelmente
interpretada como resistência.
De acordo com Nixon, tais constatações condizem ao surgimento de
duas modalidades de interesse pela psicanálise na arte contemporânea: a
195
primeira, mais inclinada à Arte Conceitual, como indica a autora, manifesta uma
maior preocupação pela “lógica freudiana de colecionar e é materializada
particularmente no suporte de objeto-base ou fotográfico”. No segundo caso,
vê-se uma busca para “explorar, por meio do deo, a ‘dinâmica da
transferência’ em Psicanálise” (2005b, p. 59).
Com referência ao hábito colecionador de Freud, vejamos o exemplo de
Susan Hiller, que em meados dos anos 1990 apresentou uma obra composta
por cinquenta caixas de madeira numeradas e cujo molde segue a forma dos
recipientes que guardam amostras arqueológicas; no seu interior, dispõe-se
uma seleção variada de objetos. Ali, cada uma das caixas é arranjada,
intitulada e acompanhada por um pequeno texto ou imagem adjacente. Para
Nixon, influenciado tanto pelo “gabinete de curiosidades” quanto pelo “FluxBox,
After the Freud Museum [esse é o título do trabalho] faz da heterogeneidade da
coleção de Freud seu princípio organizador (2005b, p. 59, grifos meus). No
mesmo ano, Cornelia Parker retirava plumas de travesseiros nos quais
“analisandos um dia se deitaram”, e, a partir desse “traço de talking cure,
produziu outro, um fotograma”. A artista colecionou também as cinzas de
cigarro que se grudavam aos panos de limpeza do Museu Freud, assim como
“coletava exalações de Freud como material para desenho” (2005b, p. 60). Seu
interesse maior era retratar o caráter histórico da “pessoa Freud”, incorporando
os vestígios corporais acessíveis em seu trabalho, isto é, uma ação análoga a
que Freud desejou lançar ao mito de Leonardo, ainda que se utilizando de
métodos claramente distintos.
Todos estes trabalhos (Hiller, Parkerou e Thurber) dialogam com a
vontade colecionadora de Freud sem no entanto apresentarem a intenção de
reunir um arquivo geral. Do contrário, limitam-se a apresentar pequenos
fragmentos, à exemplo do criador da psicanálise. “O modelo de coleção em
Freud é expansivo, porém seletivo”, prossegue Nixon, no ponto alto de seu
ensaio, e sempre “aspira iniciar novas coleções sonhos, parapraxias e
piadas”, combinando-as “à coleção de objetos da antiguidade que
representavam, para ele, a própria civilização” (2005b, p. 61).
196
Fato público, o Museu londrino de Freud se propõe a realizar exposições
de artistas recentes envolvidos com a psicanálise e, neste ínterim, Sarah Lucas
apresentou, em 2000, a performance Beyond the Pleasure Principle; a partir de
uma “série selvagem e bem humorada de intervenções”, ocupou os cômodos
“com instalações de mobiliário invertido”, roupas íntimas e, num lugar bastante
destacado isto é, logo acima do divã “uma fotografia ampliada do torso
sem-cabeça da artista, e que mostra um mamilo saindo maliciosamente de um
buraco pela sua camiseta” (2005b, p. 62). Nas entrelinhas, reside a disputa
magna entre Melanie Klein e Anna Freud, como se pode notar; para a crítica,
no entanto, o que se destaca é a transgressão de setting que a instalação de
Lucas insinua: “uma fragmentação espetacular do enquadre que o museu
acomodou com prazer” (2005b, p. 63).
A dinâmica transferencial destas imagens ganha sentido quando se
percebe que
Ao demonstrar seu desafio ao mestre com respeito ao setting
isto é, acessando, no contexto de seu milieu, uma transferência
negativa em relação à psicanálise Lucas também reivindica a
Psicanálise para ela mesma. Emprestando o título de uma obra de
Freud, na qual o próprio mestre se encontra cercado à suas teorias,
Beyond the Pleasure Principle usa a Psicanálise como um objeto que,
tal como pensa Juliet Mitchell, sobrevive através do todos nossos
esforços para destruí-lo (2005b, p. 64)
Ora, o apontamento de Nixon ganha posição central no interior desta
investigação; com efeito, Além do princípio do prazer é o lugar para o qual
converge parcela significativa da recepção estética contemporânea, sendo que
Hal Foster é com certeza um dos autores que se destaca, ao lado de
Rosalind Krauss. no que concerne à produção artística, o mérito de Lucas é
ter figurabilizado a questão na carne da arte. Freud estava correto: os artistas
encontram verdades críticas sem a necessidade dos críticos.
The Orange and Blue Feelings, que Glenn Ligon realizou em 2003,
expressa a vontade de adentrar nesse panorama. Trata-se, grosso modo, de
um vídeo por ele editado a partir de 3 sessões em que se encontram o artista e
197
sua analista. Ambos aparecem em movimento, embora o rosto da profissional e
a imagem de Ligon, sempre fora de quadro, jamais sejam vistos. Existem
alguns objetos dispostos na sala, mas eles não são explorados. A câmera, em
certo momento, se concentra na janela que dá para a rua, de modo que o vídeo
passa a apresentar a “exploração de ansiedades de Ligon concernentes a um
trabalho recente”. Nesse sentido, a obra retrataria uma psicanálise in media
res: “A figura da analista, com sua voz rouca, com sua esquiva coquete e
vestido flamboyant, é filmada com total imparcialidade” (Nixon, 2005b, p. 64).
Enquadre e setting são vistos aqui com “rara curiosidade, tal como o ambiente
habitual da sala de estar de um vizinho no qual um vaso ou uma foto é
ocasionalmente movido sem alterar o efeito geral”. É como se um “mal gosto”,
junto de uma “confusão confortável”, tivesse institucionalizado a mobília por
meio do enquadramento. Com o vídeo, Ligon mostra sua agonia diante da
possibilidade de que a terapia venha “viciar sua arte” (2005b, p. 66), preferindo
então destinar arte e análise a lugares separados.
Isso não seria uma espécie de transferência lateral ou, novamente, uma
resistência à análise? Nixon detém-se à primeira hipótese: é fato que alguns
pacientes cometem a passagem-ao-ato de serem, por impulso, “infiéis” à
situação analítica, não trazendo a exploração de seus desejos para a sessão.
Ligon, no entanto, tem a consciência desta contenção (deslocamento?), e sabe
o quão prejudicial ela pode se tornar para o liame transferencial. “Sua solução”,
por outro lado, “é fazer de sua terapia objeto de sua arte ao transformar o
consultório em set para dentro dele filmar. Este gesto, todavia, vai além da
infidelidade com respeito à situação analítica e a dissolve” (2005b, p. 66, grifos
meus).
A meu ver, no entanto, o grande acting-out do filme de Ligon é a
fragmentação que o artista imprime aos limites do enquadre. Recordemos: é
também o que acontece com as instalações de uma Mary Kelly munida de
armas contra a proteção da tela. No dispositivo oferecido por Ligon, o analista
não é mais o “diretor do método”, conforme a designação empregada por
Laplanche. “Paradoxalmente, o enquadre é a única coisa que o analisando
pode recusar”, escreve a esse respeito Radmila Zygouris, que é da ordem
do manifesto e exige um acordo prévio entre as duas partes, mesmo que
198
pareça ser imposto pelo analista como se não houvesse escolha” (1999, p. 18).
Dirigir o método não significa dirigir a análise, que é um processo muito mais
amplo: ainda que em certos momentos o analista venha a ser “a estrela do
show”, isso não significa que o analisando deva abandonar seu lugar de
personagem principal.
Ao refletir sobre a situação proposta pelo artista, pode-se dizer que
ainda estaria acontecendo uma psicanálise? Não é esta a resposta a ser
procurada; no “vídeo de Ligon”, afirma Mignon Nixon, “a análise se dissolve”,
ainda que a “traição” do analisando possa oferecer possibilidades futuras de
“realocação” do enquadre a partir da ideia de “transferência da transferência”
inspirada em Laplanche.
Na minha opinião, o encadeamento da transferência é diretamente
proporcional ao estabelecimento do enquadre. E eles podem ampliar ou
esgotar a intervenção, seja isso no campo analítico, seja no exercício de
reflexão sobre arte. Em uma escrita que se aparenta à vinheta clínica, é de
maneira curiosa que Nixon retrata uma conversa entre o artista e sua
terapeuta:
“Um menino fez isso?”, a terapeuta pergunta. “Acredito que era
um garoto”, Ligon responde de modo incerto, mostrando-se curioso
diante do que diz a terapeuta, “a não ser que eu esteja me projetando
para trás”. Em seguida, a terapeuta se interessa pelo fato de que o
artista copia. Mesmo quando criança, declara, ele “nunca desenhava
por imaginação”, preferindo copiar de fontes materiais. “Talvez seja
tempo”, ela insiste, “talvez tenha se passado um longo tempo”. “Jogar
seus estêncils no fogo, por assim dizer?”, Ligon demanda. “Mmm, não
sei”. “Eu tenho uma grande ansiedade com relação a falar do trabalho
artístico em terapia”. Ele relata sobre fazer arte na escola quando ainda
era criança, sobre quando fora ridicularizado por uma professora ao ter
pintado o mar com azul e laranja num papel-machê. “Você pensava
que a aula de arte deveria ser aquela em que tudo seria bom, onde não
existiriam regras”, ela devolve. “Todo mundo tem suas coisas”,
relembra. “No fim, pintei de preto o barco”. “Você não gosta das minhas
cores. se ferrar”, a terapeuta brinca. “Estava pensando nas pessoas
199
ouvindo esta conversa na galeria”, ele comenta. “É embaraçoso”
(2005b, p. 67).
Quanto à temática envolvida, The Orange and Blue Feelings se
concentra, basicamente, no desaparecimento de um retrato de Malcolm X que
o artista exibiria no Walker Art Center de Minneapolis. O sumiço da pintura
originaria, nele, ansiedades de perda que o artista vem a associar com certas
experiências de sua infância. A propósito, o quadro que sumiu havia sido
elaborado com a ajuda de uma criança: durante o período em que foi artista-
residente do Walker Art Center, Ligon convidou um grupo de crianças para
colorir livros com imagens de heróis negros da História Americana. Uma delas
chamou sua atenção porque vinha atribuindo “bochechas avermelhadas” e
“lábios de batom rosa” à figura de Malcolm X, seu mais estimado modelo de
pai. Ligon reproduziu a imagem em larga escala e então a ofertou ao museu.
A vídeo-análise foi exposta junto ao retrato original do ídolo negro feito
pelo menino. Ligon havia recuperado o desenho que estava no lixo entre a
primeira e a segunda sessões de gravação. Não lembrava, contudo, se havia
relatado o fato à analista, e aquilo que não queria ou não podia dizer em
sessão acabará retornando, sob a forma de um ato, no final da história: a
revelação desta lateralidade é concomitante ao término do vídeo e ao
rompimento da análise, da qual o artista viria a se desligar pouco tempo depois
da primeira exibição do vídeo.
Quanto a isso, a hipótese aventada por Nixon acaba remontando à
“transferência da transferência” de Laplanche: ora, a dissolução da análise
pode significar o deslocamento da transferência para outros lugares e outras
possibilidades, o que não traz nenhuma novidade em termos psicanalíticos.
Entretanto, a tonalidade confessional que Ligon imprimiu no trabalho foi visto
com surpresa e desapontamento pela crítica. Seria o caso de associar esse
autocentramento à “estética do narcisismo”, proposta em relação ao vídeo por
Rosalind Krauss? Para a autora, haveria, neste suporte, uma ação reflexiva
no sentido do que acontece diante do espelho em cujo seio reside a
alienação do eu pelo eu. Assim, a ausência de texto garantiria o “fascínio
200
narcisista” da vídeo-arte. Não obstante, em toda análise a existência do outro
está sempre colocada de antemão: o simples fato de que exista “um” outro faz
com que o sujeito se remeta ao outro de si mesmo, princípio inexorável de
alteridade que o dispositivo psicanalítico veio demonstrar definitivamente. Ora,
nada melhor que a dissimetria do enquadre para dar provas desta diferença.
“No vídeo de Ligon”, por exemplo, “a dissimetria é o princípio organizador.
Terapeuta e paciente estão relegados a planos diferentes. Um é visível, o outro
não. Um é homem, o outro é mulher. Um é branco e o outro, como se sabe, é
negro” (Nixon, 2005b, p. 68).
Este filme não é única obra de Ligon que põe em jogo uma discussão
sobre a subjetividade. Seus trabalhos impressos também engendram
ponderações sobre o assunto. Portanto, seu vídeo não poderia ser acusado,
tão rapidamente, de ser um mero apelo narcisista. Se, para ele, pintar significa
o mesmo que adaptar um texto em filme, e se em The Orange... ele o faz a
partir de sua experiência autobiográfica, nada mais se lhe deve exigir em
termos de alteridade, pois é justamente na relação entre esta e a identidade
que o sujeito pode se revelar em sua plenitude.
An inadequate history of conceptual art, de Silvia Kolbowski,
seria mais
um exemplo sui generis de problematização do enquadre. Seu processo de
criação consistiu em um convite enviado a sessenta artistas para depor, de
memória, a respeito de alguma experiência de criação da qual tivessem
participado entre os anos de 1965 e 1975. Segundo ela, um número relevante
de depoimentos viria a ganhar um tácito matiz analítico: alguns esqueciam
detalhes, outros declaravam, ao pé da letra, resistir às lembranças, assim como
outros repetiam episódios etc. História inadequada poderia ser “outro nome
para a própria psicanálise, porque o sujeito da psicanálise é construído por
resistência e repressão, tanto no esquecimento quanto na lembrança”. A
instalação de Kolbowski, além de ampliar as fronteiras da história da arte
conceitual, acaba provocando um debate entre memória e psicanálise. E com
seu procedimento, dentro do qual fala e gesticulação são amplamente
retratados, evoca-se, mais do que um simples jogo de cena, o “discurso híbrido
que constitui uma das principais descobertas clínicas de Freud: que as
201
palavras e os gestos do analisando podem não carregar a mesma mensagem”
(Nixon, 2205b, p. 73).
No filme, a voz de Kolbowski nunca aparece. “Seu papel de estimular e
coletar histórias orais é marcada somente pela textura de um silêncio e de uma
invisível presença”, o que a aproximaria, de modo definitivo, da posição em que
se mantém o analista. Vejamos o setting: o convidado era instruído a não
pesquisar antecipadamente a obra a ser descrita rmula que segue a
máxima da associação livre , bem como a “não revelar sua própria identidade
e não revelar a autoria do trabalho descrito”. Tais regras serão, por vezes,
quebradas pelos depoentes, assim como também ocorre dentro da sessão de
análise. Deve-se mencionar, neste contexto, que este traço é parte constituinte
do processo. Assim, Kolbowski teria questionado, psicanaliticamente a história
da Arte Conceitual, ao demonstrar que aqueles que a testemunharam, e
mesmo aqueles que a produziram, não conseguem se lembrar dela de maneira
exata” (2005b, ps. 74-5, grifos meus).
Mas em que medida estas considerações devem ganhar importância no
conjunto do que foi trabalhado até então? Afinal, qual seria o fundamento para
se pensar o enquadre em meio a um questionamento acerca da reflexão
contemporânea sobre arte?
Os problemas apresentados pelas fotografias de consultório e pelos
vídeos de Ligon e Kolbowski tocam fundo aspecto que Nixon não alcança
em uma questão decisiva do quadro psicanalítico, à qual a proposição do
enquadre sempre deverá retornar: ora, o pressuposto de uma escuta que seja
rigorosamente sensível é a origem mesma das pesquisas freudianas, assim
como se pode dizer que a teoria psicanalítica começa a partir do momento
em que a “senhorita Emmy Von N” pede para ser ouvida e nada mais. Se a
talking cure não é um privilégio da psicanálise, nem por isso seu campo de
intervenção deixa de ser exclusivo no que tange à sua prática. Sem dúvida
equivalente a ela, a experiência com a arte é capaz de edificar, de maneira
singular ou antecipatória, conhecimentos ilimitados sobre o campo do psíquico.
Em outras palavras, processo e enquadre, escuta e interpretação,
experiência estética e experiência psíquica andam inexoravelmente juntos. Em
202
sessão, a interpretação é representada pelas falas mais ou menos adequadas,
embora o mais importante é que sejam “encontradas”, isto é, “criadas” na
relação. Isto significa que a interpretação é operacional, processual e co-
participativa; quando o psicanalista a emite, tem em mente que partirá “por
obrigação” das associações que o analisando faz em seu processo particular
de regressão. E é assim que a psicanálise com P maiúsculo (teórica e clínica)
nasceu: no après-coup do dispositivo inventado por Freud e só depois do
paciente... Nachträglichkeit. Trata-se, no processo analítico”, resume Daniel
Delouya, “assim como nos privilegiados insights gerados na vida cotidiana, de
um vivido, configurado como tal quando um elemento recalcado adentra a
consciência, ou seja, se torna experiência, vivência afetiva”. E o final deste
processo se depara com o problema central da práxis: “o contato e qualidade
imediata e sensível da coisa do inconsciente” (2003, p. 18). Desse modo, a
essência mesma do trabalho “já afasta a psicanálise de todo e qualquer
pressuposto do método científico” e de seus recursos quantificáveis,
aproximando-se cada vez mais da estética. “O método analítico”, lê-se em
Epistemopatia, “atravessa, visa atingir e resgatar o contato com o objeto
(2003, ps. 34-38, grifos meus).
Como sugere Radmila Zygouris, todo o dispositivo da análise comporta
duas características pulsionais que aqui nos interessam: “o aspecto estático
que imobiliza e usa as pulsões na manutenção da estase e o aspecto dinâmico
que leva à mudança” (1999, p. 17). Ainda que o analista seja responsável pelo
direcionamento da regra fundamental, isso não significa que o enquadre tem o
direito de se fechar ad absurdum em uma ritualização de si mesmo, devendo
se abrir à dimensão mais ampliada do processo analítico. Antes da relação de
transferência, que seria, como penso, uma espécie de “metalinguagem do si
mesmo”, reside a precondição do contato, “pulsão básica da existência” a ser
definida como um vínculo inédito, por sinal – que nunca se repete. Em
paralelo, seria exatamente o que acontece na experiência com as obras de
arte, em relação ao que é vivido na atividade de recepção.
Ainda segundo a psicanalista, a análise é um espaço privilegiado para
se trabalhar com o “Isto quer dizer aquilo”: “isto” a composição, a obra, o
vínculo sempre demanda um dizer sobre si, sendo que “aquilo” toma o lugar
203
da interpretação, de um saber, enfim, construído. “Aquilo” é portanto um meio
aproximativo para se representar o que é “isto”. Em sessão, continua a autora,
o id pode se expressar na presença de alguém que ganhou importância
transferencial, o que proporciona um espaço de criação; e o prazer pulsional do
id se expressa justamente aí, conclui (Zygouris, 2002, p. 44). Só assim é
possível escapar à repetição compulsiva.
No intervalo que vai do “paciente como obra de arte” à “obra de arte
como analista do espectador” reside a dimensão sensível de um olhar que é
também escuta. E no que tange às fronteiras entre a reflexão sobre arte e a
experiência psicanalítica, as linhas seguintes pretendem mostrar como isso
ainda se mantém possível.
204
Capítulo 4
Restos e aberturas, cortes e indícios
Georges Didi-Huberman
A problemática inaugurada com a incidência, no circuito da reflexão
crítica, das categorias de pulsão de morte, posterioridade, repetição e
enquadre impõe uma continuidade que vise o domínio psicanalítico do olhar,
uma vez que se destina à recepção de arte. Portanto, para avançar nesta
trama de relações que vão da estética à psicanálise, convém adicionarmos,
como apontado anteriormente, a esfera de uma escuta conforme privilegiada
pelo dispositivo analítico (Green, 1996; Frayze-Pereira, 2005). A despeito das
diferenças teóricas que decerto vêm se acumulando, nesse contexto, a partir
do pensamento de Freud, parece-me que dispor lado a lado a escuta e o olhar
faz com que se construam operações de corte na intersecção das fronteiras.
Ora, se seguirmos a tese de que o paciente pode ser comparado a uma
obra de arte, que lugar restaria ao psicanalista? De receptor ou coautor? Os
perigos da coautoria talvez estimulem a rejeição de contribuições vindas da
psicanálise pela teoria da crítica. O abandono desta modalidade de leitura é
justificado em sua própria origem: se a recepção recai na patografia, não pode
servir de acréscimo à fortuna crítica. Por essa razão, resta-nos a posição de
receptor ou de analisando do texto e é com base nessa escolha que pretendo
aprofundar a discussão.
É necessário assumir que esta articulação não é nova e remete ao
problema da crítica psicanalítica debatida por Green e Laplanche; não
obstante, o que ainda pode se tornar questão é observar como se a
abertura da experiência de recepção à psicanálise e, concomitantemente,
como seria possível encontrar afinidades eletivas entre leituras que partem de
nichos tão diferentes à primeira vista. Como este trabalho não parte do
espectador comum mas daquele a que se pode considerar “privilegiado”, o
recorte se permite atravessar o continente para encontrar, nas intervenções de
Georges Didi-Huberman, um auxílio na construção de uma leitura que possa
enfrentar as poéticas modernas e contemporâneas. Pode-se ainda considerar
205
que este apelo ao pensamento francês estava dado no próprio pensamento
de Foster, uma vez que ele incluiu, de maneira sistemática, como vimos, a
psicanálise lacaniana em todo o seu argumento.
Ao ler o famoso Le chef d’œuvre inconnu, que Balzac escreveu na plena
modernidade de 1831, Georges Didi-Huberman lança, embora sem mencioná-
la, uma intervenção que pode servir à recepção da arte recente. Ao dialogar, do
início ao fim, com a práxis freudiana, sua reflexão tem como ponto de partida a
famosa pintura aludida no romance para chegar, enfim, a uma hermenêutica
brilhante do personagem de Frenhofer. Nesse sentido, e para além dos
problemas “pictóricos” que residem ali, em La peinture incarnée serão
encontrados critérios sólidos para a abertura de um corpus cuja estrutura opera
em função da interposição dos elementos, estes que por sua vez se
apresentam em relação de codependência: nomeadamente, trata-se de
incarnat (incarno),
1
pan (pano), détail (detalhe) e peau (pele), aos quais me
dedicarei ao longo deste capítulo.
Em Devant l’image, por outro lado, Didi-Huberman perseguirá questões
metodológicas que são fundamentais à disciplina da história da arte. Apoiando-
se especialmente no conceito de sintoma que ele retira de Freud e o dos
compêndios psicopatológicos –, filósofo edifica sua reflexão a partir dos
“restos” de imagem. Nesse ínterim, a conjuntura do sintomático deve ser
obrigatoriamente ampliada: “Hoje é de acordo geral que a arte, assim como as
formações culturais”, indica a esse respeito Silva Junior, “têm para a
psicanálise um estatuto análogo ao do sintoma: a teoria analítica deve
transformar-se a partir do que neles não compreende” (1999, p. 19).
Por fim, em Ce que nous voyons, ce que nous regarde, a problemática
se desloca para os limiares que residem entre o olhar e o ser olhado. A partir
desta ação “reflexionante”, Didi-Huberman deriva uma rie de
questionamentos a respeito das interpretações que foram feitas ao
minimalismo, poética que serviria como uma luva para definir “isso que nos
1
A proposta de traduzir o incarnat por “incarno” é de minha responsabilidade. É necessário
indicar que não subsiste, nesta sua teoria sobre a encarnação, “o sopro de reflexão sobre o
deus”; trata-se, mais precisamente, de uma vontade de encontrar o substrato da carne do
visual, cujo método o obriga no entanto a retomar textos de tradição cristã, uma vez que eles
teriam aberto a dialética da imagem por meio da imagem dialética.
206
olha de volta”. Aqui, o trabalho de figurabilidade, concepção à qual Freud
emprega máxima importância em sua Interpretação dos Sonhos, torna-se
chave mestra na compreensão do conceito de imagem e de seus processos de
formação.
O recorte que escolhe as três obras se justifica, para além das questões
por elas trazidas, pelo próprio momento a que se referem. Publicadas entre
meados dos anos 1980 e 1990, isto é, pari passu ao trabalho de Foster
analisado no capítulo anterior, tais leituras, que vão de Fra Angelico à arte
minimal, projetam-se no futuro e proporcionam o convite à recepção da arte de
agora, como é o caso da arte abjeta. Com efeito, em nenhum momento Didi-
Huberman se remete a essa poética, que não é objeto de sua investigação.
No entanto, no meu ponto de vista, bem poderia sê-lo. Assim sendo, refazer
este percurso, ora representado pela construção intertextual de uma
“metateoria”, poderia assegurar coerência às interpretações que se orientam
com o movimento pendular da temporalidade artística. Em uma operação que
vai do moderno ao pós-moderno, assim como da forma ao amorfo, o conjunto
de suas reflexões pode revelar indícios e canais de influência a serem
aproveitados pela recepção de arte que se considera implicada.
4.1) Estranha temporalidade: a quadratura do olhar amorfo
“O que vemos só vale – vive – em nossos olhos pelo que nos olha”. É
deste modo, a partir de uma condicional, que Georges Didi-Huberman inaugura
sua intervenção em O que vemos, o que nos olha. Nesta reflexividade
primordial, da qual Merleau-Ponty tinha plena consciência, é possível ver na
medida em que somos vistos pelo mundo. Inelutável, contudo, é a “cisão que
separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”. Ao abrir os olhos
para ver o que está fora, algo nos olha de volta, permanece ali,
inflexivelmente, a cada piscada, para então se dividir em dois, olhando-nos de
dentro e assim produzindo imagens psíquicas.
207
O ato de ver nos remete “a um vazio que nos olha”, acrescenta Didi-
Huberman, “nos concerne e, em certo sentido, nos constitui” (1998, pp. 29-31).
Este vazio constitutivo, experiência quase biológica da existência humana,
deriva-se também em duas outras partes, sendo uma delas a dimensão de falta
ou de ausência, onde a visualidade funciona como dínamo dialético de “desejo
e vida”, “vida da visão”, como o filósofo considera (p. 129), sendo a outra
representada pelo luto e pelos seus desdobramentos, na medida em que é
entendido como o resultado de um trabalho psíquico que deve ser feito quando
alguém se depara com a morte.
Ao comentar o Ulisses de Joyce, Didi-Huberman compreende que se a
matéria do pensado é altamente complexa (“diáfano, adiáfano”, “inelutável
modalidade do visível”), nem por isso ela deixa de ser física, “algo que passa
através dos olhos” assim como uma “mão passaria através de uma grade”. Isto
porque a visão sempre se depara com o volume inexorável do corpo humano,
unidade na qual residem coisas “de onde sair e onde reentrar, volumes dotados
de vazios, de cavidades ou de receptáculos orgânicos, bocas, sexos”, assim
como “o próprio olho” (1998, p. 30). É desta maneira que o olhar implica o
olhado, como “se a invenção de uma imagem, por mais simples que seja,
correspondesse primeiro ao ato de construir, de fixar mentalmente um objeto-
questão”, imagem-objeto que é um quase-sujeito, objeto-fenômeno que sirva à
satisfação buscada pelo olho. “Algo como aqueles cofrezinhos de chumbo, de
ouro ou de prata que, nas fábulas de nossa infância ou de nossa literatura,
encerram os destinos ou os desejos inconscientes de seus heróis” (p. 106).
No momento em que a coisa ganha contornos de imagem e enfim se
apresenta ao olhar de outrem, sua aparição configura uma “irrecusável
sensação de paradoxo” (Didi-Huberman, 1990, p. 09) frente à qual o sujeito
pode se perceber mais ou menos insatisfeito. Em todo caso, a imagem-
paradoxal alude à “arqueologia de coisas esquecidas ou despercebidas no
interior das obras desde sua criação, seja ela mais recente ou mais antiga”.
Fazer portanto da insatisfação um discurso significa construir arenas singulares
de conhecimento sobre a arte. Trata-se, nesta ocasião, de uma recepção que
conjuga um objeto privilegiado com um espectador também privilegiado. Em
outras palavras, a insatisfação pode ser o motor que conduz ao exercício de
208
reflexão estética, atividade cujo ponto de partida deve ser, invariavelmente, a
própria obra.
Sendo ou não assumida uma relação de consanguinidade entre teoria e
crítica de arte, resta um segundo questionamento que vai de encontro à
protetora “suposição de saber” sob a qual o pensar crítico pode se esconder,
tal como ocorre no caso do “médico especialista que se dirige a seu paciente
com a autoridade de direito” (Didi-Huberman, 1990, p. 10). Seu tom de certeza
deve ser atacado enquanto durar sua resistência em assumir o caráter
artesanal, ficcional e inventor da reflexão sobre a arte. De acordo com Didi-
Huberman, os livros tradicionais de história da arte de “Vasari a Panofsky”,
como propõe – ambicionam oferecer um objeto a ser reconhecido em “todas as
suas faces”, sem restos, portanto. Essa tradição de história sempre se
apresenta “completa”: seu espírito totalizador produz, como resultado imediato,
uma ciência na qual se traduzem conceitos em imagem e imagens em
conceito, nada mais. Mas vejamos mais de perto:
Colocar seu olhar sobre uma imagem de arte torna-se,
portanto, saber denominar tudo isto que vemos de fato: tudo aquilo
que se lê no visível. um modelo implícito de verdade, que
sobrepõe estranhamente a adæquatio rei et intellectus da metafísica
clássica a um mito – positivista, por sua vez – de omnitradutibilidade de
imagens. (...) Como pudera se constituir e com tamanha evidência
um tal fechamento do visível sobre o legível e daí em diante sobre o
saber inteligível? (1998, p. 13).
Por essa razão, Didi-Huberman indica a urgência de uma “história crítica
da história da arte” cujo método desejaria investigar justamente aquilo que a
outra diz e não diz, bem como tudo o que porventura nega. Destinada a
produzir “todos sem partes”, esta recepção tentaria superar o “iconografismo da
escultura tradicional” bem como “o ilusionismo da pintura moderna”. Nadando
contra a corrente, a postura sugerida por Didi-Huberman exige uma
“metacrítica” em plena força, e é em vista desta necessidade que o apelo à
obra freudiana ganha relevância em sua teorização. Em outras palavras, a
209
metapsicologia é trabalhada no seu pensamento a partir de um paradigma
crítico, que de fato é próprio à psicanálise e a priori antipsicopatológico.
Esperar do freudismo “uma clínica das imagens de arte ou um método de
resolução de enigmas tornar-se-á tão simplesmente ler Freud com os olhos”,
escreve o autor, deixando à margem toda a riqueza que a escuta das obras
pode revelar. Convém reconhecer que no interior de sua “teoria estética”
sobrevivem posições metodológicas que estão intimamente comprometidas
com a práxis psicanalítica. O cuidado é dado de antemão: “Exprimir as coisas
em termos de sobredeterminação comporta, é necessário reconhecer”, declara,
“a desvantagem de deixar tudo em um mesmo nível de existência, e então em
um sentido de se suspender a interpretação” (1990, p. 145).
Ora, a suspensão de sentido é, no entanto, marca decisiva da escuta em
análise: a regra de ouro da associação livre se articula à atenção flutuante de
modo a compor a situação do enquadre. Basta lembrar a origem mais remota
das primeiras pesquisas freudianas: a teoria psicanalítica nasce a partir de
uma escuta sensível que, imiscuída na relação entre analisando e analista,
pôde assegurar a forma com a qual a identificamos até hoje. Como vimos no
capítulo anterior, a interpretação do analista é, em sessão, sempre encontrada
isto quer dizer que ela seja processual, criada portanto. Partindo de seu
próprio contexto, Didi-Huberman afirma que
Fazer a história de um paradigma visual torna-se então fazer a
história de uma fenomenologia de olhares e de tatos [que] exige
encontrar a articulação de dois pontos de vista aparentemente
estrangeiros, o ponto de vista da estrutura e o ponto de vista do
acontecimento quer dizer, a abertura feita à estrutura. Ora, que
podemos conhecer de singular? Eis uma questão central para a história
da arte: uma questão que a aproxima, do ponto de vista epistemológico
– e longe de toda “psicologia da arte” – da psicanálise (1990, p. 40).
210
Como o autor declara abertamente, a influência neokantista da
iconografia de Panofsky
2
não teria melhorado a condição presente historiografia
da arte: abrindo somente para melhor fechar, o enquadramento esquemático
no qual se apoia deixa pouquíssimo espaço para a “negatividade inalienável de
um não-saber” que é inerente ao campo da arte (Didi-Huberman, 1990, p. 13).
Nesta perspectiva de entrada ao negativo, a dimensão do saber não se revela
apenas como sinal, via respostas brandas e verdades domesticadas. Com a
insistência em que vão se repetindo, os vazios surgem então como sintoma,
choque de imagem que requer acesso a diferentes linguagens. Seguindo esta
linha de raciocínio, observa-se a que ponto a eficácia da leitura dependerá das
vicissitudes metodológicas escolhidas.
O maior obstáculo da iconografia panofskyana pode ser observado no
uso que a teoria faz do conceito de representação. Entendido grosso modo
como a junção de camadas primárias e secundárias de significação formal, a
leitura exigiria um nível de inteligibilidade que se aparenta ao processo do
deciframento. “Na poética das artes figurativas”, sugere Robert Klein, “um
grande papel é representado por toda uma classe de símbolos não explícitos,
para não dizer inconscientes, em que coisa e significação parecem quase
confundir-se” (1998, p. 315, grifos meus). Contudo, o recalcamento desta
“coisa inconsciente” feito pela iconografia se transforma em fator de prejuízo no
jogo da interpretação, fazendo com que a leitura deixe de ser jogo para virar
esquema. A enorme necessidade de se encontrar tendências “essenciais” da
mente humana no interior dos “sintomas” culturais talvez seja, precisamente,
seu calcanhar de Aquiles.
Em termos epistemológicos, seria possível afirmar que estamos diante
dos efeitos decorrentes de uma velha ferida narcísica, que não é outra senão a
que fora imposta à vontade de totalização. Passados séculos de filosofia e
ciência, a responsabilidade pela ferida ainda continua sob a responsabilidade
do pensamento freudiano. Foi somente com o advento da psicanálise que o eu
2
A questão se dirige ao método iconográfico que Panofsky aplicou “a certas obras da Idade
Média e do Renascimento (Didi-Huberman, 1990, p. 16); a meu ver, podemos incluir nesta
crítica, por extensão, a própria concepção de psicanálise aplicada, no sentido por mim
explorado no primeiro capítulo deste trabalho.
211
unidade irredutível das ortopedias do pensar deixaria de ser o senhor de
sua própria morada.
Se o nome de Freud aqui vem fazer frente ao de Kant, o é
para estabelecer a disciplina da história da arte sob o jugo de uma
nova concepção de mundo, de uma nova Weltanschauung. O
neofreudismo, como o neokantismo tanto quanto toda teoria investida
de um pensamento potente, se encontra longe de estar no abrigo de
usos espontâneos, sejam mágicos ou tirânicos. Mas
incontestavelmente, no campo freudiano, todos os elementos de uma
crítica de conhecimento próprio para se retrabalhar em profundidade o
estatuto mesmo disto que chamamos genericamente de ciências
humanas (Didi-Huberman, 1990, p. 14).
Para produzir uma leitura nestas bases, Didi-Huberman se posiciona em
favor de uma implicação. Desprovido de códigos a priori e consentido às livres
associações, por outro lado, este ato de produzir cortes no visível assegura
para si a tensão entre o mundo de aparências da imagem (o imaginário, por
assim dizer) e seu Outro traumático, sintomático. Agregando um modo de
trabalhar que, como o próprio autor reconhece, não é novo, sua leitura inclui
níveis de “exigência impossível do visual” em cujas determinações residem
cargas significativas de contradição. É assim que a teoria pode se afastar do
conceito metafísico de Ideia. Ancorada em Walter Benjamin, ou melhor, no
“entrelaçamento da forma produzida e da forma compreendida, ou seja ‘lida’
(não decifrada como tal, mas retrabalhada na escrita)” (1991, p. 181), esta
teoria e em prática um trabalho de desligamento que respeita as condições
próprias de legibilidade (Lesbarkeit) da imagem. “É evidente que essa noção de
legibilidade, extremamente original”, prossegue o teórico, “opõe-se de antemão
a toda compreensão vulgar ou neopositivista do ‘legível’”, quer dizer, o
esquematismo iconográfico que é criticado desde o início de Devant limage e
que se pretende capaz de reduzir a leitura a seus “‘temas’, a seus ‘conceitos’
ou a seus ‘esquemas’” (1991, p. 182).
212
Se não espaço para o fechamento, as lógicas que visam decifrar a
imagem a própria ideia de aplicação teriam muito pouco a fazer. Porém,
esta leitura, dialética “porque explosiva, portanto fascinante, permanece ela
mesma ilegível e ‘inexprimível’ enquanto não se confrontar com seu próprio
destino, sob a figura de uma outra modalidade histórica que a colocará como
diferença(Didi-Huberman, 1991, p. 183). É portanto admissível compreender,
como efeito de diferenciação, que cada obra de arte contém em suas próprias
fronteiras o gérmen transformador das formas aceitas como obra.
3
Basta
indicar que, com efeito, em cada momento histórico da arte surge um tipo mais
ou menos hegemônico de discurso que conseguiria se impor com força maior.
E a combinação entre insatisfação e sensibilidade lança pistas ao que se
institucionaliza neste discurso, sendo ele oficial ou não.
Nas palavras de Didi-Huberman,
O crítico de arte, com efeito, se acha diante de seu próprio
vocabulário como diante de um problema de faíscas a produzir de
palavra a palavra, friccionando, por assim dizer, palavras com palavras.
Como encontrar, como produzir com palavras a conflagração que, na
imagem, nos olha?
A resposta para este ato reflexivo não é encontrada na simplicidade da
descrição, assim como não está na “vontade de fechar um sistema conceitual”,
mas em
seu constante desenvolvimento, seu constante dilaceramento pelo
friccionar aporético, fulgurante, de palavras capazes de prolongar de
certo modo a dialética (a crise) em obra na imagem. Tal seria a tarefa
do historiador-filósofo, [...] seu trabalho sempre recomeçado com as
palavras e seu poder de originalidade (Didi-Huberman, 1998, p. 184).
3
É o que se pode dizer diante da tese: “Assim, a fenomenologia dos volumes negros de Tony
Smith terá produzido um efeito crítico na história moderna da escultura americana” (Didi-
Huberman, 1998, p. 183).
213
Aos olhos de Didi-Huberman, o problema exige esta posição não apenas
do receptor mas também da obra criticada, em virtude de que ela exerça em si
mesma uma função crítica, assim como “o crítico da obra faça ele mesmo
obra”. Trata-se, em outras palavras, de uma intensa demanda de
transformação interna que muito se aproxima, aliás, como não poderia ser
diferente, da reflexão estética contemporânea aqui selecionada: “pois lá onde a
obra se transforma em outras, também a crítica deverá se transformar em
outras (outras críticas, e mesmo outras obras)” (1998, p. 187).
A noção de imagem dialética adquire seu pleno sentido nesse contexto.
Entendida como eficácia de instabilidade, ela age como expressão máxima das
“formas em formação”, tal como se estivéssemos diante de uma porta que não
sabemos se está meio aberta ou meio fechada. Em outras palavras, a imagem
dialética, imagem crítica em si mesma, é nada mais que a dialética da imagem:
modificando as regras atuais de seu próprio jogo, a imagem crítica dirige ao
outro, seja ele historiador, crítico, filósofo, leigo ou psicanalista, o trabalho da
recepção. E ao final destas torções, a dialética se revelará no ato do “réveil – o
grande despertar, segundo concebera Walter Benjamin. Nesse sentido, se se
trata, de fato, de réveiller, no entanto não existe despertar sem um sonho (rêve)
do qual se desperta.
Ainda quando operam o esquecimento ou a privação onírica sabemos
disso desde a Traumdeutung –, o trabalho do sonho nunca se entrega em sua
totalidade, deixando assim seus rastros, “refugos” ou “‘restos noturnos’ que
continuarão trabalhando infletindo, transformando, ‘figurando’ – a própria vida
consciente” (Didi-Hubermanm, 1998, p. 189). É preciso estar dormindo para
acordar: ora, toda mudança de estado não implica uma mudança de tempo?
Amparado em Benjamin, Didi-Huberman propõe um conceito de história que
poderia servir, não por coincidência, de complemento à tese sobre a
posterioridade, tal como ela foi desenvolvida no capítulo anterior. A dialética do
tempo assume a existência de uma série de atravessamentos possíveis entre
passado, presente e futuro. “Então compreendemos que a imagem dialética
como concreção nova, interpenetração ‘crítica’ do passado e do presente,
sintoma da memória – é exatamente aquilo que produz história” (p. 177).
214
O que mais se coloca em evidência nesta imagem é o impacto produzido
pela condensação dos vestígios, dos indícios ou destroços que serão
apresentados em detalhe ao sonhador (como não lembrar da Venus?). A
psicanálise, por sua vez, sabe disso um bom tempo. o se deve tomar
como “objeto de atenção todo o sonho”, Freud escreveu a respeito, “porém os
fragmentos singulares de seu conteúdo” (1900[1996], p. 125). Na situação de
análise, interessa saber quais são os sinais, qual o colorido desse fantasma
que representa aquilo que um dia foi o objeto original, sombra fugidia das
experiências psíquicas elementares. “É essa a sombra do objeto, quando cai
sobre o ego”, sugere Christopher Bollas, “deixando no adulto alguns traços de
sua existência” (1992, p. 16). O detalhe, nesse sentido, é um veículo de
escape, pois proporciona o acesso a certas pistas que por sua vez remetem a
um contexto mais amplo. Não obstante, sua manifestação se expressará de
acordo com os sinais íntimos de sua face oculta, tanto mais anacrônica,
4
conflituosa ou suspensa ela seja.
Ora, o detalhe não havia funcionado como ponto de mudança
estratégica da relação entre Freud e a experiência estética? Investido de uma
força interpretativa extraordinária, a leitura que o psicanalista dirige à estátua
de Michelangelo imagem que na capela de São Pedro havia capturado com
tanta paixão, e como nenhuma outra, seu olhar –, prova-o de maneira cabal.
Afinal, o detalhe, na medida em que encarna o indício, seria um meio “visual”
equivalente ao exercício da prática psicanalítica (Freud, 1910[1996]). Além do
mais, é também o detalhe que, no contexto da sessão, suscita à escuta as
ferramentas da associação livre e da atenção flutuante. Mas não só: sua
pertinência se estende ao caráter sensível da experiência com a arte, como
Freud percebeu. Na opinião de Françoise Coblence, o cuidado de Freud em
respeito ao detalhe possuiria uma origem mais estética que técnica: segundo a
autora, sua atenção testemunha uma séria preocupação relacionada à forma.
Foi tanto nas obras de arte visíveis quanto nos textos que
Freud encontrou aquilo que desencadeou nele a exigência de pensar,
4
Para ele, ademais, a reflexão dialética benjaminiana demonstra ter afinidades eletivas com o
trabalho de Carl Einstein, historiador da arte que foi contemporâneo de Benjamin.
215
como se ele tivesse que se livrar do fascínio através da observação (o
Moises de San Pietro in Vincoli), do mistério através da investigação (a
Sant’Anna) e do encanto através da interpretação (a Gradiva). Mas, a
princípio ele se deixou arrebatar, captar por uma imagem, um
movimento ou um andar, numa captura que é a única passível de
provocar o despojamento de si e a falência de qualquer pensamento
garantido (Pontalis, 1991, p. 208).
Por outro lado, assim como aponta Didi-Huberman, o detalhe também
possui, a tomá-lo no senso filosófico comum, três funções básicas. A primeira é
recortar, talvez o mais óbvio de seus empregos: todo detalhe é nada mais nada
menos que um recorte. Mas o detalhe também possui a função de aproximar
eis a segunda –, no sentido de que o olhar que se dirige ao que foi recortado se
esforça para focalizar: toda visão demanda aproximação e profundidade. Por
fim, e uma vez que se apresenta como parte, o detalhe pressupõe uma
operação de inversão simétrica e, por essa razão, integra o todo da imagem.
Conhecemos, desde o surgimento da Gestaltpsychologie, a obrigatoriedade
psicofísica entre parte e todo. “O detalhe é um pedaço do visível que se
escondeu e que, uma vez descoberto, se exibe discretamente e se deixa
definitivamente se identificar (no ideal)”. Apreensível ao olho, “o detalhe é
considerado a última palavra do visível” (1990, p. 317).
Dadas as funções, o que resta, enfim, da relação entre o olho e o
detalhe? Para o historiador, tem-se o reconhecimento de uma dialética que se
apresenta, “de pronto”, sob os contornos dun coup visuel que, de tão
inquietante ao espectador, faz implorar por uma abertura cada vez maior de
sentido: “trabalho do diáfano e trabalho do pano” (Didi-Huberman, 1998, p.
123). Ora, se se exagera na focalização do detalhe, o olhar é ofuscado; noutra
sentido, se o olho está muito próximo do objeto, perde-se: a matéria deixa de
ser detalhe para se transformar em pano. Nessa situação, procuramos “o
detalhe para encontrá-lo”, escreve Didi-Huberman, “no entanto cairemos de
surpresa no pano” (1990, p. 317).
O detalhe está para o manifesto assim como o pano está para o latente:
o fio de extensão contida que configura o primeiro é inversamente proporcional
216
à intensidade explosiva do segundo. É para “além do princípio do detalhe”
que
se localiza a desmesurada apreensão do pano. Embora latente, “o pano salta
aos olhos, mais frequentemente no primeiro plano dos quadros, frontalmente,
sem discrição”. O paradoxo reside aí, precisamente: o pano “não se deixa
identificar ou fechar”; mas uma vez “descoberto, permanece problemático”
(Didi-Huberman, 1990, p. 317). É preciso mesmo olhar o que faz saltar aos
olhos, eis a conjuntura do pano. O detalhe, por outro lado, tem uma definição
precisa: “seu contorno delimita um objeto representado, algo que possui lugar,
ou ainda que tem seu lugar no espaço mimético; sua existência tópica é
portanto especificável, localizável, como uma inclusão”. Todavia o pano, real da
pintura, delimita, do contrário, “menos um objeto que uma potencialidade:
qualquer coisa se passa, passa, extravaga o espaço de representação”,
acresce Didi-Huberman. O pano resiste a se incluir no quadro “porque ali
causou explosão ou intrusão” (1990, p. 315). Parece inclusive possuir um teor
análogo ao que foi introduzido por Proust em Em busca do tempo perdido: “a
preciosa matéria do pequeno pano no muro amarelo”,
5
sua complexa
“ossatura”. Não se exclui, de sua definição, o teor onomatopeico de um “pá”,
uma surpresa ou incandescência.
Se o pano se remete ao real é porque ele conseguiria imprimir “furos no
simbólico”, como indicava Lacan. E, seguindo a mesma linha de raciocínio, se
sua consistência é paralela à da coisa, então o pano se encontra em relação de
intimidade com o incarno. Objeto de reflexão estética que vêm de Cennini a
Diderot, passando por Hegel e Merleau-Ponty, o incarnat é a operação visada
ad absurdum pela pintura de Frenhofer. Expressão de sua busca trágica por
um não-sei-quê de cor e forma, o incarno é a pura exigência fugidia de carne
em obra, substância colorida e portanto viva que subjaz à experiência estética.
Se então a cor, “voz da carne”, sabe demonstrar que “não é simplesmente algo
a ser depositado sobre seu ‘objeto’, mas constitui o aparato mesmo do
trabalho de arte, pode-se então concluir que “ela se torna aquilo que restitui
5
Esta noção, pan originalmente, encontra muitas barreiras de tradução. Uma demonstração
mais concreta se em Devant l’image, onde Didi-Huberman se debruça sobre La dentellière,
de Vermeer (1990, pp. 298-306). Frédéric Vinot lança um extenso comentário sobre o termo
em “Du pan du tableaux au pan du transfert” (2009, pp. 191-200), lembrando que o termo parte
de Proust. Stéphane Huchet (2001) propõe a tradução por pano, que aqui adotarei, por seu
caráter mais pragmático.
217
‘vida’ e ‘natureza’ à pintura, algo que ela visa tradicionalmente” (Didi-
Huberman, 1985, p. 21). Esta coisa animada isto é, formada de sangue e de
carne, e que neste sentido garante o estatuto ontológico da obra em que se
atualiza, ainda que seja nada mais que uma simples passagem representa
toda a potência criadora que conduz a imagem da amorfia à forma.
É necessário então interrogar-se sobre este incarno, a começar
pela impossível decomposição da palavra. In está dentro, está acima?
E a carne o seria aquilo que designa em todo caso o sangramento
absoluto, o informe, o interior do corpo, por oposição à sua superfície
branca? Então por que as carnes são constantemente invocadas, nos
textos dos pintores, para designar seu Outro, quer dizer, a pele? É sem
dúvida porque este equívoco mesmo, esta impossível decomposição
constituem de antemão uma das maiores fantasias da pintura. E a
fantasia não é o sonho que abre parêntese com respeito à prática, mas
uma relação que se estabelece com o objeto de desejo ao ponto em
que se desvia da atenção e da ação, não conscientemente, ao dividir o
sujeito. A fantasia se desvia da obra e a convoca, engendra, divide
(Didi-Huberman, 1985, p. 24).
Trata-se, noutro ponto de vista, de uma ambiguidade radical que
sustenta, ao artista, a conquista de um saber. Sua principal decorrência
consiste na atualidade de um estilo ao qual ele se autoriza e desenvolve. Caso
contrário, o incarno deixa o artista à deriva, condenando-o à superfície
aporética de um pintor que não fará outra coisa senão deformar suas imagens.
O pathos angustiante desta oscilação implica os limites do corpo, pois
extrai da percepção a sua matéria subjacente, concomitantemente superficial e
transparente, do sintoma. Este colorido-limite estará, no entanto, subjugado
sempre a dois “imperativos categóricos”, que são os da “configuração
fantasmática” e da conjuntura do “entre-dois”. Assim, na medida em que
compartilha a forma do sintoma, representa uma realidade de duas faces,
dando a ver o dentro (carne) pelo fora (pele) e vice-versa. Matéria fluida, o
incarno se estrutura no interior das trocas entre profundidade e superfície,
terminando, diabolicamente, por “enganar o pintor” assim como, por
218
suposição, o espectador. Afastado do princípio de identidade, o incarno
representa o “relevo orgânico do problema figural da superfície” (Didi-
Huberman, 1985, p. 24).
Quando retoma o sonho de injeção em Irma, sem dúvida o mais ilustre
da literatura psicanalítica, Didi-Huberman sente a presença das qualidades
impalpáveis desta matéria esquiva: “Existe aí uma terrível descoberta, aquela
da carne que nunca vemos, o fundo das coisas, o inverso da face, do rosto,
das secreções por excelência, a carne de onde tudo sai, ao que é o mais
profundo do mistério, da carne enquanto sofrimento”. Em outras palavras, o
que se a ver é “sua forma em si mesma”, sendo ela qualquer “coisa que
provoca angústia”, ou melhor, tudo aquilo que está bem longe de nós e que é
o mais informe” (1985, p. 126, Freud, 1996 [1900], pp. 128-141).
Cabe mencionar que, no pensamento inconsciente do sonho, Freud e
seus colegas chegam à conclusão de que Irma havia sido “infectada por uma
seringa suja, na qual havia uma solução de trimetilamina, uma das substâncias
produzidas pela putrefação do esperma” (Mezan, 2002, p. 42). Nestas
circunstâncias, a imagem onírica faz prevalecer um tipo de horror que sem
muita dificuldade se pode associar às imagens abjetas de Sherman ou Kelley
discutidas pela intervenção de Foster. Com isso, vejo-me obrigado a adiantar
parte das conclusões deste trabalho: a meu ver, aqui o sujeito é levado a se
deparar com espaços psíquicos muito anteriores à diferenciação sexual, ou, em
termos mais precisos, anteriores à separação primária entre eu e outro, matéria
que se continuará investigando até o momento de encerrar.
Esta coloração de fronteira, tão sexual quanto a pulsão, e que remonta à
lucidezza aristotélica de Dolce, ganha contornos modernos a partir do que se
poderia chamar de uma histerização do corpo feminino na pintura, fenômeno
vivido na tradição médico-fisiológica que surge na Renascença e vai até o
século XVIII, porventura como efeito do fascínio surgido na história da
visibilidade da mulher (Didi-Huberman, 1981)
.
O princípio da alloiôsis, tal como
o teórico o recupera, traduziria de maneira mais apropriada o aspecto
sintomático deste incarno, assim como melhor definiria aquilo que o
complementa violência disjuntiva que lhe é inexorável: caos e síncope
219
alocados nas zonas convulsivas da obra. Eis a relação dialética entre o incarno
e o pano. A pele, por outro lado, funciona aqui como invólucro, forma formada
que sustenta a aparição da quadratura.
Articulados os termos da estrutura pele, pano, incarno, detalhe –, não
estaríamos diante de uma metateoria? Assim como a reflexão sobre o real, o
estranho interesse pela carne de dentro não seria também o exercício de uma
lógica regrediente, cuja estrutura se revelaria em proximidade com a
metapsicologia? Ora, perseguir esta desmatéria, que vai ganhando imagem ao
longo de um processo recepção, implica um outro desvio que conduziria o
espectador aos caminhos do pulsional.
Cabe referir que, a princípio, o caráter dinâmico desta metateoria
funciona conforme a flexibilidade própria do fenômeno plástico; enquanto
trabalho formante, a “plasticidade designa a propriedade que um corpo possui
de se modificar”, declara a esse respeito Françoise Coblence, “mas também de
conservar suas modificações”. Nestas circunstâncias, o plástico asseguraria a
possibilidade de se “mudar de forma e de se manter uma forma”, permitindo
conjugar movimento e estabilidade ao mesmo tempo. “As artes ditas plásticas,
a matéria dita plástica, as substâncias ou os alimentos plásticos”, prossegue a
filósofa, “têm em comum o dar e tomar forma, o poder de modificar essa forma
dentro dos limites que são os da resistência de seu material” (2005, p. 13).
Ora, foi precisamente com “A pulsão e seus destinos” que Freud
procuraria lançar uma primeira sistematização à plasticidade deste conceito-
chave, dando-lhe por assim dizer uma figurabilidade singular no universo das
ideias psicanalíticas.
Ponto de partida: pulsão não é instinto, e quanto a isso Freud é bastante
claro. A noção de instinto propriamente dita (Instinkt) quase não se manifesta
no conjunto da obra freudiana; quando ocorre, pretende designar apenas a vida
animal do ser humano. E embora se inicie com esta tonalidade, o texto
freudiano não se apoia em nenhuma teoria behaviourista ou etológica, mas
pretende indicar um padrão hereditário e estável de comportamentos. A
constante funciona a partir de uma tensão somática inicial cuja ação demanda
objetos de satisfação e de relaxamento duráveis, a partir de esquemas inatos
220
que são fixos e possuem finalidade adaptativa. Portanto, se a pulsão é um
estímulo para o psíquico, então ela surgiria de fora do aparelho, fazendo-lhe
exigências de satisfação. Quando capturada pelo aparato psíquico, a pulsão
passa, em seguida, a funcionar de acordo com as suas leis intenas.
Além disso, a pulsão também não se confunde ao “estímulo mental”
(Reiz, excitação fisiológica), que funciona de acordo com o arco reflexo da
ação-reação. A premissa biológica é de que o sistema nervoso tende a se livrar
dos estímulos que chegam, procurando rebaixá-los a um nível mínimo. Assim,
o funcionamento visa conservar o organismo isento de estimulação, seguindo
os princípios de constância (mais baixa intensidade possível) e de prazer (isto
é, de evitar o desprazer).
Neste início de teoria (1915), a pulsão será concebida, em Freud, a partir
de uma dualidade entre o sexual e a autoconservação (ou pulsões do eu); esta
divisão, entretanto, receberá alguns reparos a partir da criação da Segunda
Tópica, realizada por volta de 1920 com a introdução da pulsão de morte.
Embora significativa, a mudança não procura estabelecer torções estruturais,
pois mantém o sexual no papel determinante, uma vez que a urgência do
“prazer de órgão” nunca deixará de ser a finalidade visada (e repetida) pelo
sujeito do inconsciente.
Sob este ponto de vista biológico, a Trieb é aquilo que se situa entre o
psíquico e o somático. Como define Freud, trata-se de “uma medida de
exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua
ligação com o corpo”. A pulsão é, portanto, um representante (representänz) da
estimulação interna, surgindo do anímico para requerer o corpóreo. A hipótese
inicial de Freud divide as pulsões em sexuais e de autoconservação na
medida em que elas organizam duas ordens particulares de demanda, o que
faz com que sejam, logo na origem, parciais. Sua satisfação, por conseguinte,
é determinada pela mesma estrutura de funcionamento.
A montagem do sistema pulsional depende de quatro componentes
essenciais. Em primeiro lugar, toda pulsão é movida por uma pressão interna
a libido –, que é o seu trabalho motor. Medida de exigência de força, esta
pressão (Drang) exige a contrapartida de uma descarga. Sua tarefa final é a de
221
encontrar satisfação (Befriedigunderlebnis) – satisfação que, a propósito, é
sempre parcial, pois carrega as marcas de uma experiência original –,
eliminando ao mínimo possível o coeficiente de estimulação. É este o Ziel, o
alvo da pulsão; caminho paradoxal que segue para suprimir a estimulação na
fonte, sua finalidade é contornar o objeto, como sugeria Lacan. Não obstante,
como a satisfação plena é apenas uma ficção, o alvo se expressa pelo retorno
em circuito, Verkehrung, conforme Freud propõe (1900[1996], p. 176),
repetindo-se no vai-e-vem. Mas a pulsão também possui uma origem Quelle
que é localizada no corpo e experienciada como zona de borda, ou seja, de
um processo somático que precipita inscrições econômicas no psiquismo: é a
representação que um estímulo originado em um determinado órgão vem a
ganhar. Portanto, a fonte se localiza nos limites corporais, ou, em termos
fenomênicos, nas estruturas que exercem função intermediária entre o
Innenwelt e o Umwelt, zonas que inclusive engendram ou não estádios o
ânus, a boca, e os genitais, por um lado, o olhar e a voz de outro.
Deixemos em separado o objeto (Objekt), pois, como Freud indica, trata-
se do elemento mais variável da pulsão. Em poucas palavras, compreende-se
por objeto o meio pelo qual a pulsão procura se satisfazer. Seus contornos
possuem alta ressonância psíquica, uma vez que, na distância entre a pulsão e
seu objeto, interpõem-se desejo e fantasia. Objekt, neste sentido, é diferente
do Gegenstand: enquanto este sentido às coisas que estão no mundo, aos
objetos-fenômeno que se oferecem à percepção, o primeiro diz respeito ao
fator de construção, a uma síntese de representações. O que é investido na
dinâmica pulsional não é uma representação “de” objeto, como se costuma
dizer, mas uma “representação-objeto” (Objektvorstellung). Funcionando
segundo o princípio da identidade de pensamento, o objeto busca restabelecer
uma unidade com os resquícios das primeiras experiências de satisfação com
as quais o sujeito se deparou. Para a pulsão, desse modo, o objeto estará para
sempre perdido. Em sua procura, só consegue tateá-lo.
Apresentar este panorama sobre o conceito de pulsão tem o sentido de
estabelecer uma relação entre seus componentes e a dialética do olhar e da
imagem proposta por Didi-Huberman. A meu ver, a desmontagem dos
elementos, indicada pelo historiador em sua leitura do Chef d’œuvre inconnue,
222
revela uma intenção análoga à montagem metapsicológica da Schautrieb. É
assim que a decomposição em quatro termos (pano, pele, detalhe e incarno)
revelaria, no que tange à forma, um movimento de retorno ao pré-simbólico,
isto é, a um momento anterior à representação, assim como se com a
matéria pela qual se “formam” as pulsões. Se a obra de arte é objeto-fenômeno
para o olhar, este por sua vez deveria sê-lo à pulsão, uma vez que o olhar seria
o objeto da pulsão escópica.
Desse modo, a experiência estética nos permitiria sustentar que, em
algum nível, a ideia de sublimação ainda sobrevive enquanto processo e
destino. Longe de se associar à beleza ou à idealização, toda criação artística
trabalha visando à formatividade. O que a crítica em geral pretende atacar é a
lei da verticalidade da recepção e a natureza sufocante da leitura gestáltica. Se
retirarmos do conceito o caráter de “pureza” que com frequência lhe é
empregado – e isso inclusive no interior da própria psicanálise, quando o define
como mecanismo de defesa do ego , talvez se torne desnecessário falar em
“dessublimação”, categoria que aparece com relativa frequência no cenário da
crítica de arte contemporânea.
Retornando à metapsicologia, mesmo esta primeira associação não
pretende insinuar que toda a fenomenologia do olhar se restringe à pulsão
escópica. Como adverte Pontalis, a condição de parcialidade das pulsões
desautoriza pensá-lo. Seria um equívoco deixar com que o universo do olhar se
esgote nas cercanias do escópico: pode ser que esta pulsão defina “mais o
órgão captado pelo objeto que o próprio olhar”. E ainda que as teorias possam
almejar aprisioná-la, a visão do pintor este é sem dúvida o melhor exemplo
nunca é “inteiramente estimulada” pela pulsão, uma vez que o artista tem o
poder “de restituir à visão o conjunto da percepção” (1991, p. 207).
Em Freud, o olhar sempre foi mais do que o simples Blick “expressão
dos olhos, a relação dos olhos com o objeto considerado” (Assoun, p. 47).
Optando por Schauen, o criador da psicanálise pretende integrar tanto o “dirigir
o olhar para alguma coisa” quanto o contemplar, “deixar pousar o olhar sobre o
entorno”. No verbo alemão, deve-se sublinhar, há um recurso de injunção e de
intrusão. A pulsão de ver seria, nestas circunstâncias, uma verdadeira sequela
223
do enigma visual construído no perímetro ao redor do fallus, objeto ausente-
presente que simboliza a primeiríssima separação eu-outro.
Conviria, quando alguém se propõe tratar do visual, no
pretender incluir tudo unicamente na categoria do olhar. O campo
visual é imenso, e talvez não seja unificável. Entre a observação, por
exemplo, que mantém o objeto a distância, e a contemplação, que se
apoia nele, a distancia é considerável, assim o é entre a olhadela do
sedutor e o olhar apaixonado da melancolia amorosa, entre as
fotografias posadas de um Nadar, que revelam a interioridade, e a
metralha do repórter profissional, que pulveriza a superfície. Logo,
sobre o visual não há visão de conjunto, inadequada por natureza a
seu objeto (Pontalis, 1991, p. 221).
Ainda que não tenha sido compreendida em toda sua extensão, como
assinalou Freud, a pulsão de ver “não é senão uma das funções suscetíveis de
fixação” (Assoun, 1999, p. 49). A experiência de ver o sexo nu forma visual
que, com efeito, poucos discordariam, não é “bela” revela o fator libidinal do
olho. Ao lado do cheiro e do toque, primeiros destinos objetais, o olhar é quem
dispara o amor, fazendo com que os atributos do objeto adentrem o psiquismo
e, por conseguinte, precipitem a libido do eu. Como se sabe, à Schautrieb
corresponde ainda uma Schaulust, mesmo que da maneira mais indireta.
6
Em
termos dinâmicos, ela é um direcionamento do sujeito ao objeto; em sua forma
passiva, torna-se um meio para manter o sujeito o mais próximo possível de
seu narcisismo. É após a fixação mais ou menos estanque entre uma pulsão
um determinado objeto que se desenha a “experiência pulsional própria ao
registro do escópico”. “Eis aqui, portanto, uma constatação capital”, acrescenta
Paul-Laurent Assoun: Freud não separa uma pulsão parcial escopofílica
específica, mas admite que existiria uma “escopicidade estrutural” no interior da
pulsão (1999, p. 220). Desse modo, e desde que haja circuito pulsional, o isso
sempre quer ver.
6
Na obra freudiana, segundo a definição de Luis Hans, o Trieb passa antes pela noção de
Unlust, que o principio de prazer age basicamente em função de uma supressão do
desprazer (1999, p. 61).
224
No que tange à recepção de arte, a “potência de uma obra que se faz
discurso em sua apresentação organiza”, por sua vez, uma dada “ordem do
pulsional”, abrindo portas ao olhar que “procura um lugar de apoio onde a
imagem o requere. E é a partir “deste encontro (tensão olhar-imagem) que
nasce a representação” (Masson, 2004, p. 73). Segundo Céline Masson, a obra
de arte “interpela vivamente a fantasia de quem olha. A descoberta no sentido
do fazer-obra tem a ver com o que se des-cobre da fantasia”. Nesta
perspectiva, a obra de arte possuiria um valor indexado de trocas na economia
pulsional. “Trata-se de levar em conta as relações entre as formas, as imagens
e a linguagem”, adverte a autora, “e as pulsações que surgem deste
entrecruzamento” (p. 58). Ao mesmo tempo falso-semblante e “semblante de
verdade”, a obra empresta voz àquilo que não fala no homem, àquilo que ele
nunca poderá nomear: “ali onde ele não é, ou não é mais, mas ainda onde
outras figuras fantasmáticas circulam e são surpreendidas pelo trabalho da
obra que as aspira” (p. 68).
Conquanto se reconheça de maneira ampla a influência exercida por
Merleau-Ponty na questão da reflexividade, não se deve ignorar em que
medida a reflexão de Didi-Huberman também se confessa tributária em relação
à Freud, mesmo quanto a este aspecto particular. Basta adentrar “Pulsão e
destinos de pulsão”: se encontram os pormenores de uma teoria
psicanalítica da percepção. Laplanche percebe com astúcia qual é o destaque
dado por Freud neste texto de 1915: em meio aos momentos ativo e passivo,
responsáveis pela origem de “tendências, atividades ou fantasias” que
envolvem os pares sadismo-masoquismo e voyeurismo-exibicionismo,
constata-se o momento propriamente reflexivo no qual ocorre a substituição do
objeto externo – outra pessoa – pelo próprio sujeito (1985, p. 136).
Para Freud, as trajetórias das pulsões sádica e escópica se dividiriam
em três etapas principais. Em primeiro lugar, teríamos no sadismo uma
atividade violenta que se dirige a uma outra pessoa como objeto, ao passo que
no escópico encontramos, de modo equivalente, “o ver como atividade dirigida
a um objeto alheio”. No segundo momento, acontece o “retorno à própria
225
pessoa”, no qual o objeto é abandonado e substituído pelo próprio sujeito, e
isso em ambos os casos: a agressividade do sadismo é exercida a si mesmo,
enquanto no escopismo a visão vai de encontro ao próprio corpo, o que em
outras palavras significa que o “membro sexual” estaria sendo “olhado pela
própria pessoa”. Esta inversão se opera da passividade à atividade o sujeito
não agride, e deseja sofrer a agressão; não olha, prefere ser olhado. Em
seguida, nasce o imperativo de um terceiro que se una a esta relação até então
binária. Busca-se um outro, que não o próprio sujeito, para infligir dor, o que se
pode chamar agora de masoquismo propriamente dito, ao mesmo tempo em
que o “objeto próprio passa a ser olhado por uma pessoal alheia”, onde se
inaugura o “prazer de mostrar” que define o exibicionismo.
Um detalhe sugerido por Laplanche indica ainda que o primeiro
momento da pulsão sádica não é, obrigatoriamente, sexual, pois conjura
apenas uma forma de exercício da agressividade. Assim, a questão sexual
nasceria apenas no segundo momento, no qual ocorre o retorno à própria
pessoa, “momento reflexivo intermediário entre o ativo e o passivo”, como
acrescenta Mezan. “O que aprendemos aqui”, indica o psicanalista, é “que o
prazer propriamente sexual aparece na posição reflexiva”, quer dizer, como
consequência da intensidade da dor que se associa às cadeias de prazer e
desprazer (2002, p. 51, grifos meus).
No caso da pulsão de ver, por extensão, teríamos uma condição idêntica
o surgimento do sexual entre o ver e o ser visto se não fosse por outro
detalhe que podemos encontrar no estudo de Freud. Ao estabelecer um
segundo esquema, ele percebe que mesmo a primeira visão não é dirigida ao
outro, mas ao próprio sujeito, “olhar o seu próprio membro”, para depois se
dirigir a outrem. A parte ativa vem apenas em segundo lugar e não no início,
como antes Freud previa. Assim, faltaria ao sadismo esta fase antecedente.
“De fato, inicialmente a pulsão de ver é autoerótica, tem sem dúvida um objeto,
contudo este se encontra no próprio corpo” (1996[1915], p. 125). Logo, a
pulsão visual seria constituída originariamente por uma dimensão reflexiva:
entre o que vemos e o que nos olha manifesta-se o sexual, e esta talvez seja a
principal diferença entre ver e olhar. Ver, ademais, não é a pulsão de ver; só há
pulsão quando a autoconservação se encontra, ali, desligada.
226
Numa pesquisa meticulosa a respeito do olhar, Mezan conclui que,
A pulsão visual se revela assim como um verdadeiro paradigma
da sexualidade, na medida em que nela a dimensão reflexiva é
originária e, portanto, seus objetos por excelência são a fantasia e o
sonho, ambos produções psíquicas nas quais o ver desempenha uma
função essencial (2002, p. 55, grifos meus).
Dessa maneira, pele e incarno, detalhe e pano formariam uma espiral de
relações transversais onde o trabalho de figurabilidade emprega seus
contornos pulsantes, momento chave a se chegar segundo os moldes da
reflexão estética ora investigada. Tais posições, que colocam em
funcionamento uma atenção sistemática ao psíquico, têm por consequência
ativar a plasticidade do olhar receptivo. A meu ver a quadratura do amorfo,
como desejo chamá-la, é outra maneira de circunscrever as fronteiras do real
traumático e da pulsão que, de sua parte, possui também alto nível de
plasticidade, como indica Coblence (2005, p. 12). Trata-se, a rigor, de um
conjunto de ideias que extrapolam seu campo e fornecem subsídios para
enfrentar a recepção de obras mais recentes, tais como o minimalismo algo
que Didi-Huberman faz, com efeito, em Ce que nous voyons, ce que nous
regarde , bem como poéticas que se encaminham ao informe, à apropriação
ou à abjeção tratadas no capítulo anterior.
O entrecruzamento dos termos inspira uma transformação na própria
concepção de abertura que, emergindo do fundo como figura, cria intimidades
com a pulsão de morte.
Mas o que é uma abertura? Uma abertura não é simplesmente
um buraco, mas antes de tudo a possibilidade de uma passagem por
este. Uma abertura, uma porta ou uma janela, por exemplo, sendo
essencialmente a possibilidade de uma passagem entre dois espaços
diferentes, não pertence a nenhum destes espaços. Uma abertura não
é, portanto, feita de espaço. A “matéria” da abertura é a possibilidade, a
227
possibilidade de uma passagem. Este local não espacial da abertura é
um intervalo. O intervalo que abre a possibilidade da passagem de um
espaço ao outro se faz pela ruptura deste. Assim, a abertura se
constitui por uma negatividade própria do espaço (Silva Junior, 1999, p.
20).
Com efeito, não é de uma rigorosa abertura que se trata? A análise que
Didi-Huberman oferece à obsessão do pintor de Obra-prima ignorada faz
ressaltar o seu “desfiguramento”, ou, melhor ainda, a desfigurabilidade que o
pintor impõe à imagem do quadro; com isso, avento a hipótese de que sua
teoria parte do moderno mas se lança ao estado contemporâneo da arte. Se no
encalço do incarno nos aproximarmos do trajeto a ser feito pelas tramas da
pulsão escópica
isto é, de procurar, em termos qualitativos, o “reverso da
pele”
, surge uma associação possível com relação às poéticas de hoje que
conseguiriam fazer, do caos e da mistura, obra. É deste modo que os conceitos
ultrapassam seu objeto e esclarecem outra esfera de recepção, embora isto se
torne possível apenas com o intermédio de uma articulação, necessária
embora não exclusiva, com a psicanálise. Em outras palavras, afirmar que o
problema estético proposto por Didi-Huberman no caso, pela via da
quadratura do amorfo possa ser empregado na recepção de arte
contemporânea só faz sentido se considerarmos que a práxis psicanalítica
povoa a cena do início ao fim.
Ora, é que a mesma “urgência” à qual a psicanálise responde encontra
um suporte adequado o suficiente na reflexão de Didi-Huberman. Basta
acompanhar o processo: seu trabalho, que parte da leitura do romance de
Balzac, chega em seguida à composição de uma teoria estética que estaria
contida nas filigranas do Chef d’œuvre inconnue, para no final oferecer uma
análise da figurabilidade de um quadro que existe apenas dentro do livro. É
assim que nos vemos diante da “metacrítica” de um quadro que de fato não
vemos... lemos. É na medida em que a formatividade da pintura vai ganhando
seu discurso no interior do romance que a leitura vem a se tornar imagem.
Teoria que ambiciona ver “de dentro”: como o aliá-la à endoscopia?
Sínteses do visível e do inteligível, telescópio e microscópio representam o
228
efeito quase absurdo da capacidade do olhar investigativo atual. A rede de
conceitos edificada por Didi-Huberman e a concepção plástica que Freud aliara
à pulsão, como aqui pretendo aproximá-las, não se encontrariam em posição
análoga a essa performance visual? Noutros moldes, este ato de estabelecer
uma investigação acerca dos processos que se instauram do amorfo à forma
representaria, de forma mais adequada, a concepção de um dispositivo
autoscópico, uma vez que “ver o dentro” não escapa do “ver-se” de dentro
(Didi-Huberman, 1998). Discuti-lo seria portanto o mesmo que adentrar os
veios microscópicos da relação eu-outro, a ponto de se chegar a fronteiras
irrepresentáveis onde o olho não alcança mais.
A força desta constatação obriga repensar a própria noção de carne.
O incarno, que é pele e que é sangue, [...] seria como a cor
mesma do ser-olhado de um corpo, na medida em que é desejado. A
enrubescência vem à pele (o sangue vai ali surgindo, do fundo até a
superfície) no momento em que o olhar, como se diz, fura”, penetra a
pele, quer ir até o fundo. O incarno seria [...] uma doença da pose,
enquanto a pose se faz momento de uma dialética do desejo (Didi-
Huberman, 1985, p. 73)
4.2) Do informe ao fetiche: olhar perverso
Cabe, nesse momento, reconhecer o quanto a escatologia batailleana se
tornaria imprescindível à crítica de arte mais recente, incluindo aí os autores
analisados até o momento. Radicalizada numa posição heterônoma, como
Bataille desejava, a operação do informe pode ainda esclarecer algumas
vicissitudes do próprio interesse norte-americano pela psicanálise. Em
L’informe, mode d’emploi, exposição realizada entre 21 de maio e 26 de agosto
de 1996 no Centre Georges Pompidou de Paris, os curadores Yves-Alain Bois
e Rosalind Krauss, que não por acidente são também coeditores da revista
229
October, elencavam tulos como “Materialismo de Base”, “Horizontalidade”,
“Entropia” e, como não poderia faltar, “Pulsação” dentre os vetores principais
que compunham a mostra. Cada um destes, por sua vez, deriva um certo
número de verbetes que conduzem sucessivamente a novas categorias, tal
como ocorreria num “dicionário absurdo”, segundo depoimento dos curadores.
Deve-se registrar que, sem exceção, todas as categorias serão atravessadas,
do início ao fim, pela psicanálise freudiana e lacaniana (Bois, 1996).
Do ponto de vista de Bois e Krauss, o informe não se remete a um
conceito, substância ou tema, mas a uma verdadeira operação, a algo
dinâmico e processual portanto, assim como Bataille desejara indicar. Deste
modo, o traço ligado ao escatológico não deve ser compreendido pelo que
remete à primeira vista: para o pensador francês, o que mais importa é o
aspecto “liquefeito” ou “oxidante” da operação que pretende circunscrever. Ora,
em se tratando de um processo de rigorosa inconsistência, e que se destina à
compreensão da arte moderna, a operação do informe pode esclarecer, de
modo decisivo, certas questões debatidas tanto por Foster quanto por Didi-
Huberman
Em termos contextuais, por exemplo, a posição de Bataille se revela
contrária às interpretações de cunho iconográfico ou formalista que se
digladiaram durante o período da arte moderna, postura com a qual Didi-
Huberman concorda por inteiro, como vimos pouco. Foster tampouco
pensaria de maneira diferente: sua recusa da leitura referencial ou de simulacro
testemunha a escolha de uma outra posição.
Na letra batailleana,
Um dicionário começaria a partir do momento em que ele não
fizesse mais sentido, mas necessitasse de palavras. Assim, informe
não é apenas um adjetivo que busca esse sentido, mas um termo que
serve ao desmantelamento, em geral exigindo que cada coisa tenha
sua forma. O que ele designa não tem direito ao sentido e é esfacelado
como uma aranha ou um vaso de terra. É necessário, com efeito, para
que os acadêmicos estejam contentes, que o universo tenha forma.
Toda a filosofia não possui outro objetivo: trata-se de vestir um casaco
230
naquilo que é, um traje matemático. Do contrário, afirmar que o
universo não se assemelha a nada e é nada mais que informe significa
que o universo é algo como uma aranha ou um escarro (1970, p. 219).
Se insisto em fazer referência ao informe, é porque ao serem reunidos
em livro, os textos escritos por Krauss e Bois para exposição do Pompidou
carregam, no tocante aos objetivos desta investigação, uma proveitosa
ambiguidade. Quando publicado nos Estados Unidos, o catálogo para
L’informe, mode d’emploi se apresenta com o título Formless. É certo que, a
despeito de uma precisão etimológica, traduzir informe diretamente para o
inglês pode acarretar uma enorme dificuldade, como é bem o caso; mas esta
escolha específica “sem forma”, a marca de uma ausência não faria com
que a proposição se aproximasse mais da ideia de uma amorfia? É com esta
categoria que procurarei trabalhar ao longo de meu argumento.
Não pretendo afirmar, por meio da causalidade, que o paradoxo
encontrado nesta tradução possa justificar a tese. Não obstante, é possível
reconhecer que esta ambivalência auxilia na defesa da proposta: a meu ver, o
informe estaria para o moderno assim como o amorfo está para o
contemporâneo. Não quero com isso dizer que a arte contemporânea é sem
forma, mas que há um momento sem-forma em toda forma. Refazer os
caminhos desta formação é, a meu ver, a operação à qual os críticos-
historiadores aqui elencados estão dispostos a fazer. Entre informe e amorfo,
surgem aparições disformes, que são aliás muito características da arte pós-
moderna. Contudo, a operação consiste num processo tão impalpável quanto o
real ou tão informe quanto a “coisa”. Coisa-a-ser, a operação do amorfo
demanda uma presença obrigatória da reflexão psicanalítica, sem a qual perde
sua força. É e precisamente o que ocorre, na minha opinião, com as
intervenções de Foster e Didi-Huberman, procedimento que no entanto não se
concatena na teoria oferecida pelo autor de A história do olho.
Outro argumento, exposto pela própria Rosalind Krauss no breve
comentário que faz a respeito da exposição “From the Informe to the Abject”,
que acontecia no mesmo período que a mostra organizada por ela e Bois, pode
231
corroborar esta posição. No seu entendimento, o título daquela exposição nos
induziria a crer que, se o informe alcança algo para além de sua
conceitualização sobre o moderno, seu horizonte de realização se destina às
poéticas da abjeção, tese da qual desconfia. Como se lê em “The destiny of the
informe”, conclusão para o catálogo, Krauss não concorda com as leituras da
abjeção a partir de teorizações “temáticas”, “semânticas” ou “representacionais”
que, segundo ela, ainda se manteriam presas à separação da forma com o
conteúdo. Se é o caso de que a arte abjeta seja aqui “invocada”, isso deve ser
feito, tanto em Kelley como em Sherman, “de uma forma muito mais
operacional do que é o discurso corrente do mundo da arte, com sua
insistência em temas e substâncias”, escreve (1997, p. 251).
Em seu trabalho de curadoria feito para o Beaubourg, Krauss chegaria –
recorrendo sempre, no caso, a Lacan – a ponto de tatear esta condição amorfa.
A organização em quatro vetores, que segundo ela e Bois conseguiria
demarcar – e não definir a “taxonomia volátil” que caracteriza o informe
(1997, p. 24), revela um matiz quase sintomático. “Base materialism”, por
exemplo, se define como a matéria carnal (leia-se, não ideal) do informe;
“horizontality”, por outro lado, sugere uma crítica à verticalização imposta pelo
processo civilizatório, às estruturas de poder que vêm a ser criticadas pelas
imagens informes por natureza horizontais. “Pulse” complemento imediato do
materialismo, envolve a pulsação não seria uma konstante Kraft? “que
perfura o autofechamento desencarnado da pura visualidade”, incitando uma
“irrupção do carnal” ao atacar a “exclusão modernista da temporalidade do
campo visual” (p. 32). O pulso procura recuperar a presença do corpo (do
coração?) e, assim, a concretude da carne e a sexualidade, em suma. Por fim,
“entropy” designa a qualidade que toda matéria possui de degradar sua energia
constante e irreversivelmente, degradação que leva a um aumento contínuo do
estado de “desordem e de não-diferenciação no interior da matéria” que existe
em qualquer sistema (p. 34).
Pode-se reconhecer, sem muita dificuldade, o acento regrediente que a
acepção “excrementória” de Bataille deixa revelar. E se a preocupação da
heterologia se dirige em princípio ao residual ou ao impossível, ao que é
diferente, desviante e não generalizável, é porque ela flerta com a matéria
232
oriunda de uma experiência não-representável. “Grande leitor de Freud desde
sua descoberta de ‘Psicologia de grupo e análise do ego’”, relembra Elisabeth
Roudinesco, “Bataille também tomava nota daquela teoria da pulsão de morte
que revolvia a história do movimento psicanalítico” (1994, p. 145). Partindo de
um Freud, por assim dizer, mais sociológico, ele também “via na loucura uma
experiência do limite que conduzia ao nada e à acefalidade, e, no inconsciente,
um não-saber interno à consciência que revelava a fenda do ser e sua atração
para o abjeto, o dejeto e as coisas baixas: um instinto sem qualquer traço
biológico” (p. 147).
A quadratura está completa: quatro vetores do informe em Krauss,
quatro termos do amorfo em Didi-Huberman,
7
quatro elementos da pulsão em
Freud. Esta vontade de escrutinar a carne de dentro, anunciada em primeiro
plano no sonho de Freud com Irma, em seguida com Hal Foster e a apreensão
do real na arte, e que enfim chega a Didi-Huberman, onde o incarno é sinônimo
de “qualquer coisa que funcione como verdade absoluta e como alteridade
absoluta(1985, p. 61, grifos meus), não se poderia remontá-la também a uma
investigação acerca do funcionamento perverso e de seus mecanismos?
Antes de prosseguir, deve-se indicar que a abertura mencionada
também permite estabelecer articulações entre o incarno e a zona de borda,
espaço-limite cujo modus operandi é servir de conduto entre corpo e
psiquismo, interior e exterior, matéria corporal que em muitos casos serve de
fonte às pulsões. E qual seria a estrutura mais adequada para compreender
esta localidade intermédia senão a de zona erógena examinada por Freud? O
surgimento de teses que afirmam a existência de uma relação de identidade
entre as satisfações pulsionais primárias e a produção de arte contemporânea
não é uma eventualidade. The return of the real, como vimos, torna-se aqui um
exemplo privilegiado. Se o colorido incarno visado pela pintura nunca é
realizado em termos palpáveis, como sugere Didi-Huberman (1985, p. 26), ou
seja, tal como se na realização sempre incompleta da pulsão à satisfação,
7
Mesmo correndo algum risco, sugiro que estes termos se relacionam de maneira quase
direta: a horizontalização por exemplo, se remeteria ao pano, na medida em que ele é a
superfície plana da pintura. O detalhe se articula à pulsação (separação entre tempo e espaço);
o materialismo de base à pele, que é o ponto de partida do trabalho de arte. O incarno, por sua
vez, se traduz por entropia, ordem estrutural de um sistema que visa à estagnação (e ao
retorno).
233
então o processo da formatividade, no qual ele está contido, também
funcionaria segundo a ordem desejante. É assim que a obra de arte chegaria a
se subjetivar: “É um colorido através do qual a pintura pode se imaginar como
corpo e como sujeito: colorido da vicissitude, e daí seu despertar ao desejo” (p.
26). Nesta ótica, e levada a cor às suas últimas consequências – do diáfano em
Aristóteles à feminização convulsiva da histeria – surge a problemática do
sexual, sem a qual desejo e satisfação perdem as arestas.
Mas se se trata de uma mistura quase indiscernível a descrição da
pintura de Frenhofer não deixa mentir a seu respeito –, tão radical quanto a
pura puissance, então o incarno se revela em íntima proximidade com os
traços da estrutura perversa, onde mistura e ambiguidade serão valorizados,
ganhando a condição de ídolo. Comentando uma carta de Dolce a
Alessandro Contarini, Didi-Huberman considera que “este desejo [incarnat] irá
mesmo fazer a mistura difficile dos sexos: homem e mulher no mesmo corpo”;
“hermafrodita”, o incarno, tal “como o desejo, se desdobra e se realiza na
ordem de um absoluto que admite, que exige mesmo o vício, a falha a
mancha
(1985, p. 70). A propósito, esta noção de mancha servirá, para Lacan,
como exemplo geográfico do que pode se apreender do Inconsciente: ela
representa um elemento perceptivo essencial na investigação “do sentido do
quadro e, por um revezamento estético, torna-se um motivo de superação da
filosofia da consciência que a psicanálise não podia deixar de criticar, de
abalar” (Huchet, 2001, p. 183).
Continuando com o nosso teórico,
O exercício da pintura o teria então a ver com esta estrutura
de perversio que não se fixa jamais de fato em um contrato, em
dispositivo, se relança sempre de sua própria ruptura ou aporia, como
desejo, a ponto de se abismar, com efeito, ao suicídio? (Didi-
Huberman, 1985, p. 65)
Ao provocar a dúvida da existência fálica, e, consequentemente, da
significação do corpo feminino Catherine Lescault, por exemplo almeja-se
234
responder à pergunta que não é outra senão a do perverso: “de que substância
corporal é feita uma mulher?” Sem resposta, a questão que leva o pintor de
Balzac o desespero se transcreveria, nos termos desta investigação, ao “de
que substância corporal sefeito um quadro de incarno absoluto, quer dizer,
‘vivo’, um quadro da pele, do corpo, da mulher-feita-pintura?” (Didi-Huberman,
1985, p. 62).
Não obstante, se a pintura, como sugere o filósofo, encontra sua
genealogia na condição perversa, antes se deve compreender que a estrutura
da perversão possui uma organização própria, cujo ponto nodal é representado
justamente pelo olhar.
A raiz mais arcaica do olhar perverso se encontra no sentimento de
pudor. Fruto de uma hesitação da pulsão escópica, o “pudor seria esta
qualidade melancólica do corpo olhado que resiste ao desejo perverso de ver
(ver a fundo, ver a substância)” (Didi-Huberman, 1985, p. 75). Pudor e
despudor são, portanto, fenômenos diferentes de uma mesma estrutura. Não
se trata de um mecanismo de defesa, neste sentido? Como se sabe, o olhar
perverso quer mas não deseja ver. Assim, o “pudor não é única qualidade do
sujeito olhado: doença da pose, ele afeta toda a estrutura, todas as partes em
jogo; é menos o resultado corporal de um segredo guardado pelo indivíduo,
subtraído aos olhares”, lê-se em La peiture incarnée, “que fenômeno-indício de
um segredo de troca de olhares” (p. 76).
Porém a visão é algo que se pode perder mesmo quando dela se dispõe
fisicamente. “Perdemo-la quando ficamos fascinados, estupefatos’, quando a
morte”, dirá Pontalis, “e não mais a vida, está dentro dos olhos” (1991, p. 205).
Diante do vazio e da angústia decorrentes do vir-a-ser da “morte perceptiva”,
restaria apenas uma solução plástica, recurso que na verdade é, sobretudo,
psíquico: ou obturar a angústia por meio do recalcamento o que Didi-
Huberman entende, em outras palavras, como “preencher o vazio pondo cada
termo da cisão num espaço fechado, limpo e bem guardado pela razão”, ainda
que esta repressão seja apenas uma maneira de negar o vazio, isto é, uma
“vontade de permanecer a todo custo no que vemos” (Didi-Huberman, 1998, p.
39) –, ou suturá-la pela construção de um modelo fictício, uma realidade
235
habitável que contornos ao esvaziamento da imagem original. No primeiro
caso, tautologia, “vitória maníaca e miserável da linguagem sobre o olhar”.
Para este olho, deparar-se com uma obra como a de Frank Stella (o exemplo é
deliberado) é o mesmo que lidar com nada mais que um volume”. What you
see is what you see, pensaria este olho, tal como na década de 1960 o artista
havia dito, “esse volume não é senão ele próprio, por exemplo, um
paralelepípedo de cerca de um metro e oitenta de comprimento...” No segundo
caso, não muito diferente do primeiro, confere-se o exercício da crença, “uma
verdade que não é nem rasa nem profunda, mas que se enquanto verdade
superlativa e invocante, etérea mas autoritária” (p. 39).
Ora, essa “recusa das latências do objeto” que Didi-Huberman percebe
em ambas as leituras representaria, de maneira inconsciente, um tipo de
recusa ainda maior, visto que concerne à negação de uma realidade perceptiva
decerto mais fundamental: a realidade da castração.
As duas escolhas não podem ser compreendidas senão como uma, pois
tanto a “sutura” (a tese sobre a crença) quanto a “invenção” (a tese sobre a
tautologia) compõem uma fenomênica que se justapõe à posição psíquica
denegatória
8
(Verleugnung), atitude de esquiva diante de uma realidade
faltante. não estamos mais no terreno do recalque (Verdrängung) ou da
foraclusão (Verwerfung): nesta diferente conjuntura, não outra saída para o
sujeito senão desmentir a dimensão constitutiva daquela falta. Localizado
“aquém da cisão aberta pelo que nos olha no que vemos”, o horror da ausência
se torna insuportável. Para escapar, o sujeito se obrigado a produzir uma
realidade sem impedimentos,
9
atitude que a propósito não se distancia muito de
um cinismo.
Neste contexto, as caixas de Tony Smith não passariam de “um volume,
nada mais” (Didi-Huberman, 1998, p. 39), portanto. O próprio Didi-Huberman
chega muito perto da constatação psicanalítica: embora seja extática e não
cínica, o exercício da crença seria uma extensão da tautologia. Nas palavras
8
Evidentemente, remeto-me aqui à noção de perversão no sentido de estrutura psíquica, e não
de “perversidade”.
9
“Seja como for, o homem da crença verá sempre alguma outra coisa além do que vê”. (Didi-
Huberman, 1998, p. 48).
236
do teórico, trata-se de “um outro recalque, que não diz respeito à existência
como tal da cisão, mas ao estatuto de sua intervenção lógica e ontológica”
(1998, p. 41, grifos meus). Audaciosa, sua leitura consegue perceber a fineza
da clínica psicanalítica. Trata-se com, efeito, de um outro recalque; e a ação
denegatória se remete a ele uma vez que o recalque é o horror a ser evitado.
Mas o que ainda se pode dizer desta modalidade de recalcamento? E o
que significaria dotá-lo de uma grandeza estética, por exemplo?
A crença suposta da realidade perversa se refere a algo que ali não está
mas deveria estar.
10
“Pois a tautologia, como crença, fixa termos ao produzir
um engodo de satisfação: ela fixa o objeto do ver, fixa o ato o tempo e o
sujeito do ver” (Didi-Huberman, 1998, p. 76). Ao dizer “não vejo”, o analisando
pode querer expressar justamente o contrário, e o não entra para evitar que
a representação inconsciente da falta ascenda à consciência, o que por outro
lado funciona como uma espécie de “suspensão” do elemento recalcado.
Deste tipo particular de negação (Verneinung) resulta, conclui Freud, “uma
aceitação intelectual do reprimido com a persistência do essencial da
repressão” (1996 [1925], p. 254). Em certos casos, negar algo significa afirmar
que “isso é algo que eu preferiria reprimir”, um tipo de operação mental que é
de fato essencial à funcionalidade do sistema psíquico.
É assim que a impossibilidade de ver uma determinada realidade pode
se revelar como sintoma de uma ruptura no circuito do olhar. Ver é uma ação
perceptiva, objetiva na sua medida. Olhar, por outro lado, se inclui na ordem do
subjetivo, o que permite que um sujeito “olhe mas não veja”, como se diz.
Proposto em termos psicanalíticos, o paradoxo da visualidade demonstra que
uma realidade não pode ser vista porque está sendo olhada. Nessas
circunstâncias, a recusa o seria a expressão das introjeções que o eu-prazer
escolhe para si, expulsando deste modo o conteúdo mau e introjetando, do
objeto, o que lhe parece bom? Não olhar um objeto significa dizer que aquilo
10
Esta tese se apoia na iconografia cristã: a fórmula “ver a ressurreição” serviria aqui
perfeitamente, já que onde se o vazio, vê-se o Cristo. Ver para crer. Algo próximo teria
ocorrido, também, com os objetos não relacionais e volumes específicos dos minimalistas
americanos dos anos 1960.
237
que o sujeito não vê não está, com efeito, no objeto, embora esteja nele
presumido.
Para apreender de modo mais aprofundado os meandros dessa
realidade psíquica, Janine Chasseguet-Smirgel (1991) alude à existência
precoce de um “monismo sexual fálico” trata-se de outra formulação para o
“todos têm pênis” proposto por Freud como primeiro tempo do complexo de
castração. De qualquer modo, a tese sobre a universalidade, que a criança
desenvolve ao longo de seus primeiros anos de vida, será contradita quando a
criança se deparar com sua ausência factível do pênis no corpo da mãe.
Associada à castração, vale ressaltar, esta experiência é eminentemente
visual. No momento em que descobre a falta, o menino logo teme perder este
seu objeto valioso; e ao olhar para si mesma, por outro lado, a menina acredita
que um dia seu pênis crescerá.
“Dar a ver é sempre inquietar o ver”, é o que lemos com surpresa em Ce
que nous voyons..., “é sempre uma operação do sujeito, portanto uma
operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa”
(1998, p. 77) e com ela toda a incerteza do visível. A metapsicologia da
negação não poderia ser mais clara. Desde o Projeto para uma psicologia
científica, Freud já sabia que “a percepção não é um processo puramente
passivo”, que o ego, deixando-se envolver pelas moções pulsionais
primárias, “envia de maneira periódica ao sistema perceptivo pequenos
volumes de investimento por meio dos quais recebe amostras dos estímulos
externos” (1996[1915], p. 256). É que o inconsciente, regido pelo princípio do
prazer, não diz não.
Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” Freud conservava a
ideia de um “desvio normal” que ocorreria entre a pulsão e seu objeto, desvio
necessário para sustentar o progresso dos estágios psíquicos, e, por
conseguinte, o próprio exercício da relação sexual. Para Freud, o termo
“perversão” tampouco significa, em si mesmo, uma doença. Sabemos o quanto
ele se esforçou para distanciá-la das teorias da degenerescência que reinavam
no seio da psiquiatria da época: o que caracteriza a patologia é o seu grau de
fixidez, rigidez e unicidade sobreinvestido nos objetos. O desvio (que segundo
238
Freud se estabelece por uma potência de amor!) apenas garante uma
inclinação à posição psíquica, e não obrigatoriamente sua sintomatologia.
O caráter selvagem e polimorfo da sexualidade perversa é parte
integrante das manifestações da própria sexualidade humana. Comum a todos,
esta polimorfia é o estado bruto, infantil, no qual a libido se exerce por meio das
pulsões. Neste caso, então, é como se o sujeito se tenha feito crer, por uma
“via curta” e através de um mecanismo de fixação, que a sua sexualidade pré-
genital seria superior à genitalidade, e assim à unificação final das pulsões
parciais. A denegação do recalque se traduziria, em Freud, mais exatamente,
por “uma supressão parcial do recalque” (Chasseguet-Smirgel, 1991, p. 174,
grifos meus). Sua ação, que se inclina ao afastamento da realidade, suscita
marcas de um abalo em seus alicerces. Nessa medida, a conjuntura da crença
e da tautologia ganha aqui plena significação.
Aprofundando anda um pouco mais, esta supressão funciona como uma
estratégia de controle à ameaça de castração, sendo que seu objetivo é
sustentar a relação entre o sujeito e a realidade circundante. Além do mais,
trata-se de uma posição em viragem dialética porque é negativa em relação à
neurose (leia-se: ao recalque), se aceitarmos que “a neurose é, por assim
dizer, o negativo da perversão”,
11
tal como a famosa proposição de Freud fizera
crer (1996, [1901-1905], p. 150) no início de sua teoria. Nesse momento
(estamos em 1905), desprovidos dos artigos de metapsicologia,
12
de se
entender que esta xima se dirige em particular ao nível “pré-tópico” do
aparelho. Em termos clínicos, o fantasma inconsciente do neurótico seria
manifestado de maneira consciente nas perversões; e se o é o caso, deve-
se reconhecer no mínimo que o desmentido (Verleugnung) seria, com efeito,
uma espécie de “alucinação negativa”, assim como adverte André Green.
11
A despeito de uma série de autores sugerirem a incapacidade desta tese (McDougall, 1983),
mantenho-a pelo nível dialético que comporta e que não deixa de fazer sentido aqui. A título de
exemplo, Freud chegou a propor, em carta a Fliess datada de 06 de dezembro de 1896, que a
histeria não seria a sexualidade repudiada, “e sim a perversão repudiada(Moussaieff-Masson,
1986, p. 213)
12
Carta a Fliess de 24/01/1897. É sugestivo mencionar que toda esta conjuntura implica em
uma regressão ao estádio anterior (ou seja, anal) da organização psíquica; se o sujeito não
consegue se ancorar na genitalidade, e isso por questões específicas à sua posição psíquica,
como vimos, então o retorno e a fixação decorrente a uma etapa anterior se fazem
necessários. A neurose é também uma espécie de conservação ou regressão da sexualidade
ao estado infantil, mas neste caso não há fixação.
239
A indicação desta démarche em torno da denegação se mantém
pertinente, neste contexto, já que refletir acerca de uma teoria analítica do olhar
é, também, e isso sem correr muitos riscos de erro, trazer à baila toda a
estrutura do funcionamento polimórfico, e, consequentemente, a dimensão
perversa da experiência estética e suas relações apreensíveis com a recepção
de arte. “As representações modernas e contemporâneas adotaram um
comportamento transgressivo, às vezes perverso”, considera Céline Masson,
“por uma ação transformadora do mundo e uma ética de destituição e de
recuperação dos poderes do pai para mais-gozar” (2004, p. 77). De acordo
com Donald Kuspit, por outro lado, assim “como alguns psicanalistas
consideram, a arte é perversa, mas sua perversidade tanto em aparência
quanto em substância – é autêntica rebelião social, uma necessidade social em
um falso mundo”. Não custa repetir: associar, aqui, perversão e arte não
representa pensar psicopatologicamente, mas esteticamente. “A arte é algo tão
‘necessário’ porque articula esta falsidade a perversidade do mundo”, conclui
o crítico americano, “em sua própria negatividade perversa” (1999, p. 309).
O fenômeno da criação possui características peculiares nesta estrutura.
Chasseguet-Smirgel presume que, a partir das identificações que deverão
surgir entre o sujeito e o ideal do eu, o fator de criação nas perversões se
ancora no mecanismo da idealização, e, portanto, não na sublimação das
pulsões, o que não impede que os fins perseguidos sejam semelhantes.
“Realmente, em todos os casos, o ato criativo é promovido pelo desejo
(narcisismo) de achar a perfeição perdida e, de algum modo, representa,
portanto, em um certo nível, uma maneira de promover o encontro do ego com
o ideal do ego” (1992, p. 161, grifos meus). Por essa razão, a criação
representaria uma forma de enaltecimento do falo, com a qual o perverso,
privado de possibilidades de identificação paterna bem ajustadas, faz da
criação algo fictício, ilusório: trata-se da produção de um objeto idealizado em
cuja fantasia primordial se pode dizer que o sujeito, no seu imaginário, está
recobrindo “merda com meia de seda”.
Nesse contexto, o princípio grego da hybris funcionaria como um modus
vivendi exemplar: ao procurar abolir o universo genital (leia-se: a castração e o
recalcamento) e assim, de maneira desesperada, toda a realidade das
240
diferenças, as perversões vêm certificar o caráter regressivo e ao mesmo
tempo tautológico de sua vida mental. A organização psíquica que sobrevive se
apoia, como se sabe, no mecanismo de clivagem do eu (Ischspaltung),
conforme um arranjo intrapsíquico no qual coexistem duas realidades a
princípio inviáveis: reconhecimento e recusa da carência fálica na mulher.
Cohabitam, pari passu, desvio e cisão neste olhar. Desviando-se em face à
castração, o olho abole a diferença entre os sexos e elege a “mistura” como
objeto privilegiado de investimento libidinal. O what you see is what you see
poderia ser substituído pelo what you see is what you actually don’t want to
look at. É dessa maneira que a recusa de uma determinada realidade se
completa com a denegação de seu fantasma correspondente.
Se o olho “percebe” a castração, é porque já está dada a
fantasia de que ela existe: trata-se de uma interpretação, não de uma
percepção. Em outras palavras, é porque o olho já gravita na órbita das
representações ligadas à castração tanto como veículo da
curiosidade a ser punida quanto como símbolo do genital masculino
que a visão da vagina “confirma” a validade das fantasias
correspondentes, reforçando o vínculo que já unia os olhos aos genitais
(Mezan, 2002, pp.64-5, grifos meus).
Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se dizer então que a experiência
estética seria revestida pelo... fetiche? E, por outro lado, como o fenômeno do
fetichismo poderia lançar luz às obras de arte e à recepção? Se há resposta,
sem dúvida ela não pode se reduzir a uma condição supostamente perversa da
arte. Na compreensão de Didi-Huberman, do contrário, trata-se de
compreender em quê o “fetiche não cessa de vacilar entre passagem (brancura
do brilho), marmorização (brancura congelada do aspecto) e escurecimento
13
(cinza desfigurador que esconde), desaparecimento” (1985, p. 112-3). Com seu
artigo sobre o “Fetichismo”, Freud retornaria às questões levantadas nos
“Três ensaios” e, a partir daí, faria com que o sentido perceptivo do engano
adentrasse na conjuntura da vida pulsional (não era isso que ele pensava de
13
Neste caso, o autor utiliza encendrement, cujo radical semântico se remete a “cinzas” e não
à cor cinza simplesmente.
241
antemão, todavia estivesse introduzindo a sorte de objetos substitutos do pênis
na experiência subjetiva da criança).
Glanz auf der Nase, o brilho no nariz ao qual se referia, naquela ocasião,
o paciente de Freud, sintomatificava uma operação de recusa de realidade que,
além de ser vivida como algo exterior, impunha ao sujeito um desvio e uma
fixação do olhar, criando no eu a clivagem que rejeita o conteúdo ou o
fragmento desta realidade. No texto de 1927 constatamos, por exemplo, que a
visão do horror se remete a um momento muito anterior, pois pertence à
experiência visual da cena primária. Em outras palavras, o retorno do recalcado
se manifestaria, no caso atendido, como tradução para a
Vorstellungrepresentänz, na qual o brilho se transforma em substituto do falo,
criando assim o fantasma de uma mãe fálica. Essa recusa, que é nada mais
que a tentativa de assegurar que o objeto (o falo) ainda existe, se vincula ao
controle onipotente exercido pelo sujeito com a finalidade de “dominar qualquer
perda” (Frayze-Pereira, 2005, p. 290), que por ele é vivida como
irrepresentável. O contrato perverso executa não apenas o desvio e a
suspensão da perda, que no final seria um substituto simbólico da lei paterna,
mas também “um ritual que garante a repetição do desejo e a suspensão do
‘golpe final’ (...); é enfim uma troca que carrega (...) o estatuto de aparências na
representação’” (Didi-Huberman, 1985, p. 63).
4.3) Sintomas da visualidade
Haveria aqui, a princípio, um complexo jogo sintomático. Entre
visibilidade e invisibilidade, o potencial sintomático faz com que a forma se
atualize ou não (1); este e cá, isto é, esta desarticulação (dislocalité) própria
ao sintoma surge na medida em que os afetos sejam mais ou menos forçados
a se ligar a uma determinada representação e, neste ínterim, de vacilar em seu
percurso
(2); acrescenta-se, ademais, o que faz bascular entre o dinamismo e
a imobilidade (3), ou seja, aquilo que garante seu alto teor de contradição (4).
242
O sintoma, aos os olhos de Didi-Huberman, traz à tona a “temporalidade
paradoxal daquilo que Freud, ensaiando ele mesmo interpretar a estrutura da
crise histérica, nomeou ‘simultaneidade contraditória’ de uma ‘situação
entretanto plasticamente figurada’” (1985, p. 31).
Mas também existe uma economia de forças na composição do sintoma,
outra potência que, na medida em que é ambígua visível e invisível –, se
oferece de maneira oblíqua à vontade “tátil” do olhar. Enquanto sintoma, a
dimensão pujante do incarno faz agir o paradoxo da visibilidade, em virtude de
que ora é dissimulada (as observações de Freud com respeito aos estudos
sobre a histeria confirmam-no), ora paradigmática. O sintoma é, portanto, “um
acontecimento crítico, uma singularidade, uma intrusão”, conclui Didi-
Huberman. Ilustração de uma “estrutura significante”, “sistema em que o
acontecimento tem por encargo fazer surgir”, o sintoma se apresenta parcial
e “contraditoriamente, de maneira que o sentido surge apenas como enigma ou
fenômeno-indício, e não como conjunto estável de significações” (1990, p. 307-
8). um quê de exagero no sintoma, e é por isso que Freud não deixaria de
apontar o caráter visual do acontecimento sintomático “seu valor de éclat”,
sua aparição intempestiva, como a leitura de Didi-Huberman leva a entender.
14
Seja uma satisfação ou um meio para se chegar a ela, o objeto tanto
mais plástico, mais flexível – é aquilo que se pode perder porque já está
perdido. Trata-se mesmo de um paradoxo: “É, no fundo, uma negação
imaginária, uma negação do possível desaparecimento do objeto adorado”,
conclui o filósofo, “que aqui está em jogo: imaginário porque é a imagem que
vem justamente hieratizar, legitimar esta negação” (1990, p. 79). Tal como
ocorre ao desejo, o sintoma se estrutura a partir de uma falta. Não obstante,
este espaço vazio se remete, mais do que tudo, aos limites do corpo, ao qual
devemos retornar.
14
É provável que a relação entre sintoma e leitura feita por Didi-Huberman tenha um
fundamento na própria história contemporânea da psicanálise. Em sua biografia de Lacan,
Roudinesco reporta a rusga em que Jacques-Allain Miller discípulo primeiro do mestre e
Jacques Ranciére se envolveram, cada um reivindicando a originalidade da leitura
sintomática” para si (1994, p. 311). Não tenho condições para dizer se o trabalho do historiador
sofre esta influência. De qualquer modo, parece-me que a noção bachelardiana de corte
epistemológico pode empregar um maior sentido aqui.
243
Tanto em Joyce quanto em Merleau-Ponty, por exemplo, o que está em
jogo não são as vicissitudes de um corpo qualquer, mas as propriedades do
corpo materno conforme foram adiantadas por Stephen Dedalus em O retrato
do artista quando jovem. Seus olhos “perscrutadores”, fixando-o da morte “para
sacudir e dobrar” sua alma, dizem o máximo que podem a respeito de si. De
maneira brilhante, Joyce percebe que há uma perda incrustada no parto, a mãe
é o corpo com o qual o bebê um dia esteve fusionado e sempre continua
acreditando estar ao longo do seu primeiro desenvolvimento. No que concerne
ao psíquico, trata-se de uma introjeção da imago materna que, com mais ou
menos dificuldade, todo sujeito deverá realizar. Assim, perder de vista o corpo
da mãe, muro de arrimo da visão e do tato, se traduz na grande obra de perda
que sustenta o visual.
Perder de vista: acaso isso o seria o que de mais insuportável na
perda? Ora, cada perda anunciaria, no outro, uma “retirada absoluta do amor”,
e, “em nós”, por outro lado, “a inquietação de uma fragilidade essencial: não
ser capaz de amar o invisível”. Ausência presente da imagem, aqui reside o
paradoxo da visualidade: “poder sempre acalmar a angústia suscitada em nós
pela ausência, garantindo que o objeto amado esteja inteiramente ao alcance
de nosso olhar e que nos reflita em nossa identidade” (Pontalis, 1991, p. 205).
Em outras palavras, pode-se dizer que no sujeito do olhar nasce a premência
de o perder de vista, mas também de não se fazer perder de vista pelo
objeto que o “sustenta por sua própria presença” (Assoun, 1999, p. 51). A
perda seria, por essa razão, o fim e o começo.
O olhar do perverso procura, no corpo da mulher, a afirmação de algo
que agora não está mas que esteve imaginariamente, no corpo
impecável d’A mulher que figurabiliza a mãe mítica. Diante das imperfeições
que o corpo faltante dá a ver, a solução é virar o rosto, ou, noutros casos, ainda
que na mesma lógica, maquiá-lo, adorná-lo para que assim alcance a
completude. Se por um lado o “corpo da ‘mulher incomparável’ não está nas
qualidades de seu entalhe (seu limite, sua proporcionalidade, sua escala), mas
nas de seu detalhe (Didi-Huberman, 1985, p. 84), então a problemática se
volta a esse detalhe que falta. O que obriga acenar, mais uma vez, às
propriedades da pulsão de morte, que Freud engendraria como tensão a Eros:
244
nesta psicanálise do olhar, o fenômeno estético ocupa um lugar intermédio,
nem visível nem invisível, ou seja, no equilíbrio entre “a vertigem da distância e
a cegueira da proximidade” (Frayze-Pereira, 2004, p. 450).
Como já constatamos com a ajuda de Hal Foster, a pulsão de morte – tal
como qualquer pulsão é aquilo que está para além do princípio do prazer, de
modo que escapa ao aparato psíquico; sua potência autônoma e dispersa de
destruição poderia ser representada pelo paradoxo da desordem pulsional.
Retornaremos mais uma vez a ela, no momento de concluir. Por ora, a teoria
indica que a ordem do sexual é aqui apenas contingente e não um atributo a
priori, expressando-se de acordo com a forma que a pulsão irá receber ao ser
capturada no interior do aparato. Embora haja uma diversidade de fontes
pulsionais (oral, anal, fálica, escópica), toda pulsão é, a princípio, vazia de
forma e de sentido.
Então começamos a compreender que cada coisa a ver, por
mais exposta, por mais neutra de aparência que seja, torna-se
inelutável quando uma perda a suporta ainda que pelo viés de uma
simples associação de ideias, mas constrangedora, ou de um jogo de
linguagem –, e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue. (...)
O mar, para Dedalus, torna-se uma tigela de humores e de mortes
pressentidas, um muro horizontal ameaçador e sorrateiro, uma
superfície que é plana para dissimular e ao mesmo tempo indicar a
profundeza que a habita, que a move, qual esse ventre materno
oferecido à sua imaginação como um “broquel de velino esticado”,
carregado de todas as gravidezes e de todas as mortes por vir (Didi-
Huberman, 1998, p. 33).
Experiência do materno que pode ser apreendida
No movimento perpétuo, perpetuamente acariciante e
ameaçador, da onda, da “maré que sobe”, [onde] há de fato esse
arquejo materno no qual se indica e se murmura, contra a têmpora de
Stephen ou seja, exatamente entre seu olho e sua orelha que uma
morta para sempre o olha. Nas ovas de peixe e no sargaço que o mar
245
arquejante expele, diante de Stephen, portanto toda a dor vomitada,
esverdeada, de alguém de onde ele vem, que diante dele trabalhou
como se diz do trabalho de parto seu próprio desaparecimento. E
este, por sua vez, vem pulsar em Stephen, entre seu olho e sua orelha,
turvando sua língua materna e turvando sua visão. (p. 33-4)
Essa conexão entre o mar,
15
a mãe e o corpo morto não poderia
responder ao olhar que se dirige à obra de arte? A título de exemplo, as
instalações de Mary Kelly mencionadas no capítulo anterior comprovariam este
dado sem muita dificuldade. A perda, aqui, é inelutável porque inexorável ao
olho: ao dirigir o olho a um objeto qualquer, algo terá caído, algo sempre
escapa ao ótico uma vez que não se pode ver tudo. Inaugurado o paradoxo, é
também conhecido o sem-número de tentativas para resolvê-lo; o jogo do
carretel, que Freud descreveu em Além do princípio do prazer, seria uma
ilustração perfeita desta ação que visa controlar o que ao mesmo tempo está e
deixa de estar, ou seja, condição para se criar coordenadas espaço-temporais
no interior de uma ambiência onde perdura a presença ausente... de uma mãe!
Se na limpidez de um quadro figurativo, escreve Didi-Huberman, “isso se
representa” e “isso se vê”, outra coisa deverá surgir, de modo reflexivo e em
igual potência, no escuro: aquilo que vemos também nos olha, entre visão e
olhar existirá sempre uma fissura.
“Mas, enquanto é o próprio agir que engendra espontaneamente o lugar
no movimento de ida e volta do carretel”, lê-se em Devant l’image, “devemos
reconhecer nas figuras da arte uma capacidade diferentemente complexa de
desvio (esse movimento tão difícil de pensar geneticamente, e que Freud
apreendia, tateando, através da palavra sublimação) e de volta” (Didi-
Huberman, 1990, p. 197-8). Ora, se o desvio se remete à expressão da falta,
então esta “se torna a operação mesma de um desejo, isto é, um repor em jogo
perpétuo, ‘vivo’ (quer dizer, inquieto) da perda”. O carretel, em seu perene vai-
e-vem, dinamiza o movimento rítmico de retorno ao grau zero do desejo, a
ponto mesmo de fazer, do desejo, obra: “em outras palavras, um monumento
15
O mar teria sido, a propósito, um meio de composição largamente empregado pelos artistas
modernos, conforme a opinião de Rosalind Krauss (1994, p. 22). Cabe mencionar que a língua
francesa comporta uma homofonia entre mãe (mère) e mar (mer) que não ocorre no português.
246
para compacificar o fato de que a perda sempre volta, nos traz de volta” (1990,
p. 115-6).
É certo que o acontecimento visual de uma obra de arte se concretiza a
partir das dimensões de “memória” e de identidade que consegue carregar; no
entanto a imagem também se revela sobretudo aí, talvez a partir do que
nela se “apresenta como esquecido” (Didi-Huberman, 1990, p. 189), segundo a
dialética que implica identidade e alteridade. “Fechar os olhos para ver”, como
propõe Blanchot via Joyce: na imagem, a matéria viva para o olhar seriam na
verdade restos de tempo e de espaço. Ao ganharem voz, eles calam quando
gritam e sussurram ao falar. É assim que estes vestígios produzem sintoma,
legando ao outro as marcas de sua passagem. Mas com os olhos fechados, no
entanto, a metáfora perde sua penetração: no “despertar lúcido que supõe
nossa relação habitual ao visível, na completude ideal proposta pelos
dispositivos de representação”, completa Didi-Huberman (1990, p. 191),
“alguma coisa, um resto, portanto, uma marca de esquecimento” retorna aos
olhos com toda a sua potência.
Sintoma quer dizer a escansão infernal, o movimento
anadiômeno do visual no visível e da presença na representação. Ele
nos fala da insistência e do retorno do singular no regular, nos fala do
tecido que se despedaça, da ruptura do equilíbrio e então do novo
equilíbrio (...) E isso que ele nos diz não se traduz, mas se interpreta
sem fim. Coloca-nos diante de sua potência visual tal como diante da
emergência do processo mesmo de figurabilidade (p. 195).
Para melhor compreender sobre isto que “resiste” ao escópico, tomemos
o diedro pulsional desenhado por Laplanche. O esquema nos conduz a
entender, a partir da teoria do apoio, que o funcionamento do sistema direciona
a ordem sexual concebida aqui como operação do olhar que é ao mesmo
tempo representação e interiorização de uma cena – ao encontro de seu
anteparo na autoconservação que não corresponde exatamente ao olhar,
mas, sim, à visão, quer dizer, a orientação de ordem perceptiva, função que
Laplanche categoriza como “háptica”, coextensa ao tato.
247
Com isso torna-se possível observar, através da própria teoria pulsional,
a cisão entre o ver e o olhar. No primeiro dos termos, tem-se a zona erógena, a
cena primordial, a excitação impulsiva; no segundo, a adaptação, a orientação
espaço-temporal e a observação. Diante de um quadro de necessidade, a
percepção da imagem assume uma função de satisfação primária, deixando
como resto certos traços mnêmicos do desejo original. Assim, os vestígios
visuais que darão contorno ao olhar podem ser entendidos como objeto causa
do desejo (o objeto a de Lacan). Neste ponto de vista, a pulsão escópica não
se apoiaria na necessidade, mas se voltaria àqueles vestígios. O que há de
“particular na pulsão de ver é que, em Freud”, completa Laplanche, “ela
manifesta-se sempre independentemente de uma referência precisa a uma
dada fase libidinal” (1989, p. 80). É dessa maneira que não existe, em tese,
uma “fase” escópica ao lado da oral, sádico-anal etc.
A beleza, isso que seduz o olho, como ensinava Freud nos “Três
ensaios”, seria portanto um exercício autêntico de sublimação; se a captura é
independente dos cânones, então o sublimar ainda se remete à arte. Diante do
belo, ao olhar resta ser tração de ambiguidade entre os termos pulsionais, algo
que, a propósito, é característico do campo artístico: se de lado está próximo, é
o olhar quem desperta o desejo no sujeito; se afastado, está impedido da
realização cognoscível. Nesta perspectiva, a beleza seria um gênero muito
sofisticado de “recusa do genital”, embora também seja sua condição sine qua
non. O olho não apenas constata a necessidade adaptativa que a realidade lhe
demanda (propriedade oftalmológica fundamental à conservação da vida
orgânica), como também percebe as propriedades singulares dos objetos. Eis o
que “decide do destino ‘perverso’ do olho”, conclui Paul-Laurent Assoun. Além
de preencher esta sua função biológica de “monitoramento”, o olho deseja
detalhar “o corpo do outro, do objeto erótico. Ele despe com o olhar” (1999, p.
24).
Em termos psíquicos gerais, estimular e seduzir seriam operações
conexas. Para Freud, por exemplo, a acepção forte do Reiz – excitação/atração
se coaduna ao Verführen que se traduziria pelo “fazer desvio” dos
caminhos normais. Laplanche considera que, na visão, onde se elege o olho
como meio e suporte privilegiado de funcionamento, ao mesmo tempo
248
convivem e se opõem as duas modalidades básicas da pulsão. No visual,
portanto, o sexual e a autoconservação se encontram em conflito permanente
(1989, pp. 24-90). Enquanto função adaptativa, a visão supriria as
necessidades de orientação espaço-temporal; como atividade erógena,
circunscreve a excitação do olhar como testemunha da cena primária, deixando
pistas na forma de uma “sintomatologia escópica”, de cujo deslocamento
metonímico se comprovam os vários sentidos de ambivalência que residem no
olho. Nestas condições, o brilho estaria para o belo assim como a percepção
que desperta e ao mesmo tempo intimida –, estaria para o desejo.
Conforme pensava Freud, os órgãos genitais, que com muita difculdade
se podem considerar belos, são ativadores de excitação para o olhar, o que
leva a concluir que beleza e atração (Reiz) nunca estão ligados diretamente ou
são igualmente proporcionais. Momento depois, no entanto, Freud reformula
sua concepção de beleza e sugere que entre o belo e o sexual existe uma
relação de codependência, interpretada, neste caso, como efeito de
determinações filogenéticas de recalcamentos primordiais (olfativo e, depois,
visual), como se fosse de responsabilidade da natureza fazer as ligações entre
o belo e a excitação sexual dele decorrente (Coblence, 2005, p. 120-3).
Ver, portanto, seria o bastante à autoconservação; contudo, é “para
preencher sua função de objeto erótico que o olhar advém ao olho” (Assoun,
1999, p. 25). Em suma, no tocante ao psíquico, para que se apreenda o objeto
é necessário que ele venha a ser olhado e não apenas visto. No caso do olhar
perverso, não obstante, o olho estaria funcionando em prol do
escamoteamento da castração, obedecendo assim às defesas psíquicas; é um
“detalhe” anatômico, com efeito, a unidade de sentido que o perverso não
deseja ver. Detalhe que no entanto abre uma rota de fuga admissível diante da
coisa inominada, do destino insuportável de Édipo, da visão irrepresentável,
ofuscante e sobretudo atraente da cabeça da Medusa...
Neste perspectiva, cada detalhe se remete a outro detalhe. O fetiche,
detalhe indispensável para o perverso, “é sempre sublime ao sujeito do olhar”
porque fora criado para revidar a uma demanda específica: obturar a falta
“perceptiva” por meio da imaginarização de uma realidade idealizada. Por esse
249
motivo, o detalhe do pé apenas aludido no quadro de Frenhofer poderia ganhar
ares de fetiche, e, nessa meda, de falo para o voyeur.
16
Tenderíamos a
“encontrar o fetiche ao procurar o inencontrável”, escreve Didi-Huberman. Ora,
a estrutura mesma do fetiche se baseia num processo de criação, por mais
idealizado que ele seja. É como se Frenhofer não soubesse ou não quisesse
saber que todo seu trabalho em torno de Lescault fosse, a bem da verdade,
uma espécie de luto, um “processo suspenso entre suas duas implicações
divergentes”. Eis a particularidade da negação do artista de Balzac, que se
expressa por meio de “um fetiche, no qual procede a relíquia (trata-se aqui do
brilho do detalhe, o pé); e a violência melancólica da surpresa (pan) de cores,
esta beleza-caos, esta beleza visceral” (1985, p. 112).
Contudo, como propõe Freud, se “o trabalho de luto deve conduzir o eu,
ao termo de uma rebelião, a aceitar o veredicto rigoroso da realidade”, então “a
relíquia ganha sentido a partir do desejo de conservar alguma coisa daquilo de
que se separa, sem, entretanto, dever renunciar a se separar” (Didi-Huberman,
1985, p. 113). Para Cesar e Sára Botella, de outro modo,
Ao constituir um objeto fetiche, o fetichista reconhece à sua
maneira a falta do nis na mulher e então concilia a percepção de
seus órgãos de sentido a seus devidos lugares; mas, ao mesmo tempo,
ele conserva, na sua percepção endopsíquica, qualquer coisa de
irrepresentável e terrificante advindo de sua sexualidade infantil, na
qual o resultado antitraumático é a crença de que a mulher possui um
pênis (2007b, p. 216, grifos meus).
16
Esta hipótese se deve à leitura que André Green (1994, p. 30) fez do como
“representante da falta”, em sua análise do Cartão de Londres, esboço de da Vinci que
pertence ao acervo da National Gallery, em Londres.
250
4.4) Perder de vista: minimalismo e
figurabilidade
No que tange à recepção de arte, reconhecimento e recusa seriam
mecanismos decisivos, ainda que não manifestos, da leitura que a crítica dos
anos 1960 viria a estabelecer diante da minimal art. Sob a insígnia do
“antropomorfismo” e “teatralidade” delegados à poética escondem-se os signos
de uma ação denegatória do olhar. Quanto a isso, a posição assumida por Didi-
Huberman exprime uma interpretação mais analítica que nunca: segundo ele, a
discussão fora até o momento “deslocada – ou recolocada – na cavidade
mesma daquela cisão que faz a partilha da crença e da tautologia”, nem
“reivindicada obsessivamente” pela primeira, nem “rejeitada triunfalmente” pela
segunda. Desse modo, a denegação exercida por teatralidade e
antropomorfismo não deseja perceber que “a interioridade está efetivamente aí,
embora fragilizada. Está aí, depois afastada, depois novamente aí, na dobra de
uma constante dialética visual, na síncope de um ritmo” (1998, p. 139). E a
complexidade desta trama ganha corpo porque não se ignora que o fantasma
configurado pelo “reconhecimento e recusa” exige um outro olhar (McDougall,
1991, p. 25). A meu ver, é por essa razão que Didi-Huberman insinua, aqui, um
jogo de implicações. Boa parte das antinomias erigidas pela crítica tem o papel
de escamotear uma verdade que por natureza é ambígua. Não aceitando o
paradoxo que comportam, deixam de apreender o problema da dupla distância
que as obras
17
conseguem afirmar em face do olhar crítico.
Com relação à leitura que Michael Fried fez do texto e não da obra
de Donald Judd, Didi-Huberman comenta:
Mas pouco importa, afinal de contas, se o crítico é capaz de ver
o que é feito, portanto de assinalar a disjunção – sempre interessante e
significativa, com frequência mesmo fecunda – que trabalha nesse
17
A ideia não se restringe ao minimalismo, como o autor mesmo o atesta. De minha parte,
acredito que este distanciamento pode ser encontrado na arte pós-moderna (ou
contemporânea) de modo mais generalizado, como no caso da pop-art, na arte conceitual mas
sobretudo na body-art.
251
intervalo dos discursos e dos objetos. (...) Ora, muitas vezes o crítico
de arte não quer ver isto: isto que definiria o lugar de uma abertura, de
uma brecha que se abre em seus passos; isto que o obrigaria a sempre
dialetizar portanto cindir, portanto inquietar – seu próprio discurso. Ao
se dar a obrigação, ou o turvo prazer, de rapidamente julgar, o crítico
de arte prefere assim cortar em vez de abismar seu olhar na espessura
do corte. Prefere então o dilema à dialética: expõe uma contrariedade
de evidências (visíveis ou teóricas), mas se afasta do jogo contraditório
(o fato de jogar com contradições) acionado por parâmetros mais
transversais, mais latentes menos manifestos do trabalho artístico.
(1998, p. 70)
Mas de sua parte, o que o próprio filósofo pôde dizer a respeito dos
trabalhos de Judd, Stella ou LeWitt? E que tipo de questionamento conseguiu
oferecer ao minimalismo, a esta vertigem proveniente de uma arte que, ao falar
de si mesma, estabelece como programa a apresentação de um conteúdo
mínimo de... arte? Matéria privilegiada em Ce que nous voyons, ce que nous
regarde, o objeto minimalista, compreendido como “não-relacional”, seria no
entanto “suficientemente bom” para obturar os vazios da imagem, no caso por
meio da construção de um vazio no espaço. Para a maioria dos artistas desta
geração, a obra visa nada mais que a totalidade indecomponível que se
estrutura a partir de um valor de Gestalt. Simetria, simplicidade e
reconhecimento instantâneo são portanto características fundamentais à fatura
minimal. Supostamente desprovida de interioridade e latência, a obra
minimalista daria início a um longo processo de dessubjetivação.
De acordo com Didi-Huberman, o minimalismo procura eliminar a
imagem para deixar permanecer a forma, ou seja, a poética almeja produzir um
objeto que não representa nada, que não se remete a um alhures e que, ao ser
olhado, não olha de volta. É difícil pensar que um volume geométrico “possa
inquietar nosso ver e nos olhar desde seu fundo de humanidade fugaz, desde
sua estatura e desde sua dessemelhança visual que opera uma perda e faz o
visível voar em pedaços” (1998, p. 146). As intervenções do teórico, que não se
inclinam nem a crença nem a tautologia, satisfazem-se com a inquietude
destas obras que vivem entre o que vemos e o que nos olha, movimento
252
pendular de sístole e diástole que conduz o espectador a experimentar a obra
ao invés de apenas falar dela.
A despeito dos objetos serem criados a partir de estruturas
aparentemente simples, mínimas, como se sabe, resta ainda, para que o
espectador a experimente, aumentar o grau de complexidade da leitura: “antes
de tudo”, conclui o autor, “a força do objeto minimalista foi pensada em termos
fatalmente intersubjetivos” (1998, p. 63). A obra é com efeito pensada enquanto
specific relation, conforme indica Rosalind Krauss: “abrupto, forte, incontrolável
e desconcertante”, o objeto minimalista se torna, face o espectador, “uma
espécie de sujeito desejante. Com isso, se se considera que a
dessubjetivação era a meta principal do programa minimal, pode-se dizer então
que ela não se realizou. A dimensão da experiência e da diferença não podem
ser recalcadas na relação com a obra. Uma vez expostas, as obras estarão
entregues às vicissitudes relacionais que residem no espaço que vai do sujeito
ao objeto e do objeto ao sujeito.
“A constatação deveria ser óbvia”, acrescenta Didi-Huberman, “mas
merece ser sublinhada e problematizada na medida em que as expressões
tautológicas da ‘especificidade’ tendiam antes a obliterá-la” (1998, p. 66). Na
tautologia, o objeto deixa de ser específico e sua especificidade se desloca à
“teatralidade”. Daí, no entanto, a intensidade dos minimal objects, daí sua alta
capacidade de questionar o circuito vigente das artes: via paradoxo. Da Idade
Média a Carl Andre ou Dan Flavin, da diferença entre imago e vestigium à
proposição de “um objeto visual que mostrasse a perda” (1998, p. 35) – volume
portador de vazio, ele mesmo dirá, adiante –, surgirão formas requeridas pelo
problema relacional. Ora, a visão perdida desse corpo que jaz carrega, em
suas entranhas, a face impossível de si mesma, aquilo que representa o
destino deste corpo (vidente) que, um dia, virá a perecer. Lembremos que no
próprio jogo do fort-da o objeto é, de início, morto; ele só ganha vida no
momento em que supõe a relação (lúdica) com um outro.
Talvez não façamos outra coisa, quando vemos algo e de
repente somos tocados por ele, senão abrir-nos a uma dimensão
253
essencial do olhar, segundo a qual seria o jogo assintótico do próximo
(até o contato, real ou fantasmado) e do longínquo (até o
desaparecimento e a perda, reais ou fantasmados (Didi-Huberman,
1998, p. 161).
Em uma pequena vinheta sobre a Black Box, de Tony Smith, encontram-
se elementos “subjetivantes” que podem ganhar, no contexto, um emprego
pertinente. Exemplo: o artista relatou, em conversa com o crítico E. C. Goosen,
que mesmo “sem retórica do fantasma ou de mistério” (Didi-Huberman, 1998,
p. 90 e p. 127) não conseguia mais dormir depois de ter visualizado a ideia do
grande cubo. O acontecimento é aqui destacado porque, a meu ver, não é
possível concordar com a “ausência fantasmática” proposta ali por nosso
teórico, ideia que ele talvez acabe sugerindo por precaução. Tampouco me
parece errado constatar que estaríamos diante de uma espécie de obsessão
pelo objeto no sentido do olhar da criança seduzida pelo brinquedo –,
sobretudo na medida em que se registra uma inversão. Se ele representa a
presença da mãe, o cubo que olhamos se abre e nos olha de volta, de dentro
para fora. Assim, sob o perigo de cair na patografia, Didi-Huberman acaba
tomando, neste caso, o dito pelo dito (“heurística imaginária”, como ele mesmo
aponta), cujos limites a própria psicanálise vêm denunciar.
Cheio, vazio, não este é o paradoxo dos objetos minimalistas? E afinal,
que discursos se podem elaborar a partir de uma simples caixa, um cubo, um
caixão?
18
Não seria este valor de ausência um dos elementos formais mais
significativos na arte contemporânea?
“É que o ‘conteúdo’ se abre, para
apresentar que aquilo em que ele consiste não é senão um objeto de perda
ou seja, o objeto mesmo, no sentido radical, metapsicológico do termo” (1998,
p. 141). Tal como a obra de arte que é uma caixa vazia, o fetiche é um objeto
real e ilusório; a dependência do perverso quanto à sua presença será
observada quanto maior for seu valor de garantia para obturar as falhas da
verdade sexual e da “renúncia à onipotência que isso exige” (McDougall, 1991,
p. 73).
18
É surpreendente, diga-se de passagem, o processo associativo pelo qual sua recepção é
conduzida: do carretel se vai ao cubo, e do cubo à caixa e, finalmente, ao tijolo.
254
Se se pensa que o olhar serviria de objeto à pulsão escópica, o que
dizer daquele que se encaminha à obra de arte, sendo ele um olhar crítico?
Ora, se é característico da pulsão sair em busca de objetos-fenômeno
imaginemos, por exemplo, o deslizamento semântico que vai de “fezes” a
“dinheiro”, como Freud demonstra na Psicopatologia da vida cotidiana –, o que
acontece à subjetividade quando é para o universo das obras de arte que suas
pulsões ou seus desejos se endereçam?
“As imagens as coisas visuais” e os objetos à vista “são sempre
lugares”, indica Didi-Huberman: “elas aparecem como paradoxos em ato
nos quais as coordenadas espaciais se rompem, se abrem a nós e acabam por
se abrir em nós, para nos abrir e com isso nos incorporar” (1990, p. 247).
Seguindo os passos do filósofo, a abertura da imagem se deve ao pano, que
por sua vez nasceu na relação dialética com detalhe, ressignificando-o. Mas é
também com a pele e com o incarno que a subjetividade haverá de lidar, uma
vez atravessada pelo amorfo. Glanz auf der nase: não é à toa que o sistema
fechado da paixão se resumia, no paciente de Freud, à intensidade mais ou
menos brilhante da pele do nariz de suas mulheres. Seu esplendor devia ser
tão branco (pano) quanto a pele da Gradiva: “mármore fascinante, de branco
encantador, fascínio ao ponto de viver; vida que resplandece até o rmore, à
espera, melancolicamente, que uma chuva de cinzas a venham soterrar” (Didi-
Huberman, 1998, p. 112).
Nesta perspectiva, o mais conhecido romance de Jensen corporificaria,
por outros meios, uma problemática idêntica a de Balzac: ao apresentar uma
ilusão a partir dos deslocamentos de um que vai-e-vem, Gradiva seduz o
olhar do protagonista e faz com que ele mergulhe num abismo prestes a não
mais voltar. O fetiche, que em certa medida é o detalhe fundamental que
procura conjurar a castração, está sempre relacionado ao circuito no qual o
olhar se desmente. Se o obturação, o sujeito cai. É pouco arriscado
afirmar que é “ao olhar o Glanz que o sujeito se sente olhado dilacerado,
revelado. É onde se encontra a função mais íntima da instituição do sujeito
no visível” (1998, p. 87).
255
No caso Dora, como observa Didi-Huberman, em que a brancura da
Senhora K lembrava-lhe a Madona Sistina de Rafael, Freud já havia percebido,
via transferência, o quanto a limpeza cromática do branco poderia encarnar o
elemento sedutor, presença desejante. Ao mesmo tempo guardião e porta, o
pano da imagem encerra enquanto abre os poros do recalcamento. “Seria a
função psíquica das imagens fazer-nos considerar na compulsão de
repetição nossas diferentes mortes?”, completa o teórico (1998, p. 249). Se
identificado à dimensão transferencial da análise, a superfície do pano serve de
âncora ao trauma. Uma vez que a sua função originária é “começar pelo fim”,
os efeitos do pano deslegitimam a evidência da coisa vista. Nesse contexto, o
pano ao mesmo tempo proporciona e obtura o horror (Vinot, 2009, p. 196).
A inversão intransponível para Frenhofer, “insuperável desligamento” a
fazer, encontraria grafia apropriada na concepção lacaniana de alienação. “O
sujeito”, aponta Didi-Huberman, seguindo aqui os passos de Lacan, “mantém
com seu Outro uma relação ‘circular’, faz retornos e inversões, faz sobretudo
‘torções no retorno’” (1985, p. 47). Entre o ser (o sujeito) e o Outro (o sentido, a
linguagem), um espaço terceiro que acolhe o que não faz sentido, local
onde o sujeito não pode ver e, por isso, está alienado. Assim como se com
o terceiro nódulo da trança, “capaz de abrir a cisão do que nos olha no que
vemos”, o pano se posiciona entre a pele (o corpo, o sangue) e o plano (a tela)
da obra. Trata-se de uma matéria inconsciente, nessa medida, e é do mesmo
modo que “se fecha sobre nós, nos cerca, nos toca” e enfim nos “devora”
(1998, p. 87).
Ora, este efeito de confusão e de non-sens encontra
precisamente sua condição de soberania na diferença entre ordens de
grandeza que um mesmo objeto é suscetível de autorizar: é o (...)
disjuntivo do próximo e do distante, no qual alguns quadros
perturbadores nos impõem ao constrangimento e à dimensão sublime
sob a espessura do brilho e do pano. (Didi-Huberman
,
1985, p. 52-3)
256
Do seu ponto de vista, o brilho que sobra dos efeitos do pano é o non-
sens da imagem, inconsciente do visível que o se remete a um “invisível”.
Com efeito, este brilho (éclat) encerraria o fantasma original da obra de arte:
fantasiando viver, a obra deseja se apresentar em corpo como um sujeito vivo.
Ao contrário do brilho, o pano é puro sintoma da pintura no quadro, é “esta
parte da pintura que interrompe ostensivamente, de lado a lado, tal como uma
crise (...), a continuidade do sistema representativo do quadro” (Didi-Huberman,
1990, p. 313). Porém, a imagem deve ser entendida, aqui parece-me
necessário sublinhar –, como sendo causa material” (p. 308). Neste moldes, é
possível que a teoria avance para além da pintura e se autorize a pensar no
conjunto mais amplo das artes visuais.
Ainda se pode vislumbrar uma terceira função do brilho: ela nos obriga
regressar ao detalhe e ao amorfo, isto é, ao lugar da “quase alucinação, com o
efeito de ‘real’” que lhe é próprio. Essa terceira faceta do brilho, cuja
singularidade está ora in praesentia ora in absentia, representa o “fenômeno-
indício de um paradigma instável” (Didi-Huberman, 1990, p. 313). Este brilho do
real provoca a surpresa de um eureka, de um “é isso”, eficácia de um achado
ou de uma redescoberta no interior do visível. “O que produz efeito em uma
representação plástica é a expressão do desejo”, indica por sua vez Céline
Masson, “que pulsa pela figurabilidade para deixar marcas e marcar uma
presença (...) É este gesto mesmo de se fazer imagem que presencia um
desejo e um destinatário” (2005, p. 66). Ora, todo este movimento de choque e
fascínio, de brilho e de escuridão possui efeitos análogos ao quais Freud aludia
em seu sonho com Irma, justo naquele “momento em que a mulher abre sua
boca e poderíamos dizer no momento em que ela abre a si mesma(Didi-
Huberman, 1985, p. 126, grifos meus).
A esta altura já se pode dizer, retrospectivamente, que o incarno é causa
de angústia e, sendo assim, de estranhamento (Unheimlich). Ademais, o
incarno – tal como a pulsão para Freud – não existe, não é algo a ser realizado.
Isso não quer dizer que sejam, pulsão e incarno, inertes, que não tenham vida
ou não possam ser experienciados. Mas que tipo substância poderia ser
encontrada entre o somático e o psíquico, isto é, neste “espaço” intermédio e
atópico? A rigor, nenhuma. Afinal, a substância do incarno é apenas a que se
257
inscreve na língua, nas representações, no afeto. “Um sintoma, então”, conclui
Didi-Huberman, “mas um puro sintoma da pintura” e da arte (1990, p. 28).
Cortada de fora a fora pelo inconsciente, a região do visual produz sintomas,
cortes no interior do visível. E como vimos ao longo deste trabalho, a angústia
é o afeto preferido de um número significativo de poéticas pós-modernas.
Pois bem, na última estética proposta por Freud, é a conjuntura da
angústia, e não a do belo, que funciona como motor de sensibilidade. Mas
afinal, por que o familiar (heimlich) se tornaria estranho?, essa é a pergunta
que o psicanalista anseia responder. Seria por que esta saída representaria
uma espécie de transgressão, ou por que a pulsão teria sido capturada pela
morte, desejando retornar ao estado inorgânico? Nem uma nem outra. Na
medida em que se remete ao olhar e a um lugar e tempo específicos de
percepção, a angústia, forma em gestação, configuraria uma experiência
estética em si mesma, pois o objeto de estranhamento “está diante de nós
como se nos dominasse, e por isso nos mantém em respeito diante de sua lei
visual” (Didi-Huberman, 1998, p. 228). Por um lado, como expressão do duplo,
assusta porque é tão familiar; por outro, assombra porque se trata de uma
compulsão à repetição, como vimos, do retorno de um conteúdo recalcado que
se transforma em algo inteiramente desconhecido. Kelley, Sherman, Gober ou
Witkin estão inseridos neste contexto, tal como Foster conseguiu mostrar. Mas
não apenas eles.
Talvez haja na própria serialidade minimalista algo
dessa repetição apreendida como ideia fixa com a condição,
é claro, de interpretá-la segundo uma vertente obsessiva na
qual o objeto se tornaria ameaçador pela razão mesma de ser
específico no autoengendramento de sua forma, de seu
número, de sua matéria (Didi-Huberman, 1998, p. 229).
No interior do aparelho, as defesas psíquicas surgem como anticorpos.
Desprovido do olhar, o sujeito indefeso se compele, diante da imagem, a “tudo
observar”. Portanto a observação, nesta linha raciocínio, seria a maneira mais
258
sofisticada para se cegar diante do perigo, pois ela serve para abandonar o que
nos olha enquanto vemos. Ao distanciar, o visual se arma, rejeita a imprecisão
da coisa e decreta que o objeto deve ser o mais amplamente visível; no
encalço da totalidade, o visual abdica ao fascínio de “ser captado pelo olhar
mudo e pelas ordens proferidas pelo hipnotizador”, quer dizer, a se ver
“adormecido, subjugado, assujeitado à onipotência da coisa e do amor cego”
(Pontalis, 1991, p. 206).
De qualquer modo, o ponto capital do estranhamento é o seu fator de
desorientação, do qual emanam sensações de irrealidade que borram as
fronteiras entre o real e o imaginário (Hans, 1999, p. 238). Por essa razão, arte
e sonho ensinam que, para olhar, é preciso desaprender a ver: a “visão do
pintor e a transferência na análise dariam lugar a isso” (Pontalis, 1991, p. 211).
É bastante provável que este descentramento se origine nas primeiras
experiências ligadas ao sexo feminino e, mais especificamente, ao ventre
materno, lugar de onde se vêm
19
mas para o qual nunca se pode retornar. Ora,
a imagem artística remete à estrutura de um limiar, acrescentaria Didi-
Huberman, um “quadro de porta aberta”, “brecha num muro, ou uma rasgadura,
mas trabalhada, construída, como se fosse preciso um arquiteto ou um escultor
para dar forma” a estas úlceras que são na verdade as “mais íntimas” (1998, p.
243).
Uma perda original, perder de vista o objeto: nada pode elucidar melhor
a ferida interna. Na fenda que persiste entre ver e olhar, a complexidade da
imagem estranha, imagem-crítica por excelência, apresenta-se ao mesmo
tempo aquém e além daquilo que o olho pode apreender. E se a metáfora de
Joyce “fechar os olhos para ver” ganha aqui seu sentido mais pleno, então
se pode compreender a fundo o sonho que Freud descrevia quando da morte
de seu pai, palavra-chave para qualquer psicanálise do olhar.
Fato conhecido da literatura psicanalítica, durante a madrugada anterior
ao enterro de seu pai Freud teria sonhado com um “cartaz, placa ou mural”
19
Cabe mencionar aqui a relação íntima entre o caos (pano?) e a “mão materna” da linha à
qual Paul Klee se referia em seu Diário (Pontalis, 1996, 210).
259
onde se lia a inscrição “pede-se fechar os olhos” ou fechar “o olho”. Ao analisar
seu conteúdo manifesto, constata que ambas versões, no singular (olho) e no
plural (olhos), têm uma significação latente particular (como não poderia ser
diferente). A segunda é óbvia, e se remete ao respeito dos costumes
empregados em qualquer funeral. A primeira variante, no entanto, se refere ao
ato de “fazer vistas grossas”, e insinua que Freud deveria ser indulgente com
relação à morte de seu pai. Conquanto seja produzido para confundir o eu
consciente, o duplo sentido (“ou... ou”) da imagem é quem acesso à
interpretação do desejo e de seu objeto correlato, permitindo deixar pistas no
curso que vai do olhar à coisa olhada. Sintoma pertinente? Ao confessar o
acontecido a Fliess, Freud alega ao que se com surpresa que o sonho
acontecera na noite posterior ao funeral de seu pai, ao contrário do que viria a
publicar na edição definitiva de sua Interpretação dos sonhos.
Pelo menos três observações podem ser destacadas aqui, dentre as
quais as duas primeiras são indicadas por Renato Mezan. Por um lado, este,
que é o primeiríssimo sonho pessoal narrado por Freud no livro, “diz respeito
precisamente aos olhos” (2002, p. 37); em segundo lugar, coexistem aqui dois
grupos separados de associações, um que se remete ao livro e outro que se
refere à carta, conjuntos de associações que no entanto não devem se excluir
mutuamente, mas serem anexados um ao outro (p. 38). Em terceiro, tratar-se-
ia de um simples lapso cometido por Freud, manifestação que abre portas a um
conteúdo inconsciente que ele talvez desejasse encobrir – efeito de seu próprio
recalcamento assim como faz o analisando ao se deparar com seu desejo de
morte do pai.
20
Esta vinheta encontrada na Traumdeutung vem a se tornar o paradigma
da visualidade
em Didi-Huberman, uma vez que ela traduz a problemática do
sintoma como equívoco. Segundo ele, o modelo dedutivo de interpretação
(leia-se: o idealismo de Panofsky, denegação frente à insistência do sintoma)
poderia ser muito bem substituído pelo método freudiano da sobreinterpretação
(Überdeutung). Partindo dos efeitos da sobredeterminação psíquica, a
20
A fórmula edipiana seria algo como “Não se deseja que o pai morra, mas que o filho o mate”.
Minha hipótese acerca do lapso autorizou o trocadilho que se no título desta tese. Com
efeito, para olhar a imagem, deve-se abrir os olhos. Fechá-los é o que no geral os psicanalistas
fazem diante da imagem.
260
sobreinterpretação é a ferramenta utilizada para interrogar os matizes da
subjetividade em suas diversas camadas. Ora, se o funcionamento do aparelho
psíquico tem como ponto de partida a sobredeterminação esta é a hipótese
inicial , a interpretação deve procurar o que está para além da linha
cronológica no sintoma, isto é, tudo aquilo que encaminha o sujeito ao
equívoco, ao retorno, ao corte e ao conflito permanentes.
Com relação ao método, a atitude do olho demandaria uma outra
posição diante da imagem, tal ocorre, em paralelo, na investigação da outra
cena inconsciente. Sob este ângulo, o ato de déchiffrer, que é a procura de um
oculto a ser traduzido conforme a linguagem dominante, será substituído pelo
déchirer, operação em que as heterogeneidades do sentido esquadrinham, no
interior de um jogo transferencial que se estabelece entre espectador e obra,
modalidades abertas de atualização imagética, possibilidade para que o olhar
venha a se figurar.
Afinal, ver a imagem na sua totalidade se tornaria algo indesejado. Nesta
leitura que funciona por cortes, e que tanto convém à recepção da arte
contemporânea, as obras interessam na medida em que sejam imagens
críticas, indícios de crise e de sintoma. Tomando-as na sua parcialidade, isto é,
psicanaliticamente, comprovariam a “reflexividade negativa” de nosso pêndulo
dialético. A imagem crítica é aquela que critica a imagem de si-mesma, sendo
dotada de uma eficácia interna para revolucionar os modos de vê-la. Portadora,
por conseguinte, de uma função metacrítica, quer dizer, ciente de suas
condições ideológicas e sobrevivendo como perda, a imagem crítica resiste às
interpretações violentas do deciframento e da totalização.
O surgimento da psicanálise contribuiu, mais ou menos diretamente,
com a ruptura na lógica da representação. Se a noção de sintoma, tal como
desenvolvida até o momento, consegue mesmo dilacerar ou libertar a própria
concepção de imagem, a teoria freudiana sobre o sonho também exige seu
direito de querer um lugar ao sol. no início do século XX Freud antecipava o
questionamento da análise “coesa” da imagem, mostrando os perigos da
interpretação simbólica “método do deciframento” que trataria “o sonho como
261
uma sorte de escritura cifrada em que cada signo de ser traduzido, a partir
de uma chave fixa, em outro significado conhecido” (1996[1900], p. 118-9).
Noutro momento, Freud chega a declarar que o conteúdo do sonho não
é dado por meio de uma “pictografia” na qual cada “um dos signos deverá ser
transferido à linguagem dos pensamentos inconscientes. Equivocar-nos-
íamos”, acrescenta, de maneira surpreendente, “se quiséssemos ler esses
signos segundo seu valor figural em lugar de fazê-lo segundo sua referência
significante” (1996[1900], p. 285). Ao contrário de aliar o conceito de
representação ao “quadro ou ao desenho figurativo” um tipo de redução que
surrealistas como Dalí acabariam fazendo,
21
por exemplo –, Freud teria
insistido, na contramão, no valor de deformação (Entstellung) e no jogo de
rupturas lógicas que a imagem produz enquanto captura o olhar. De um meio a
outro, processos de translação deverão interferir, produzindo então mudanças
significativas. Basta pensar nos rostos de Picasso ou nos espaços de Bacon,
como assinala Pontalis, assim como nos efeitos de distância pelos quais a
percepção ótica se engana, por exemplo, como indica Frayze-Pereira (1984).
“A deformação se prenderia, nesse caso, à violência da passagem”; esta
violência, “de natureza diferente da que as palavras podem exercer sobre
outras palavras”, as obriga a se inserir “numa língua diferente” (Didi-Huberman,
1991, p. 214).
Ao sonhar, como se sabe, a censura inconsciente divide o material
onírico em duas partes: o conteúdo manifesto do latente, e a imagem do
pensamento. No entanto, seu poder de dissimulação não é total e deixa
escapar alusões ao conteúdo original, marcas de referência indireta que
guardam o material inconsciente nas entrelinhas; isso tudo para cumprir, em
meio a uma série refrataria de disfarces, a satisfação parcial de um desejo
reprimido. Contudo, a deformação não sobrevive sem um trabalho de
figurabilidade, mecanismo com o qual Freud tentara liquidar a configuração
imagética do sonho. O subitem que aparece na parte D do sexto capítulo da
Interpretação, “Die Rücksicht auf Darstellbarkeit” tomar em consideração a
figurabilidade significa a exigência de transformação a que estão subjugados
21
Afirmação com a qual concordaria Pontalis (1991, p. 215), destacando a homologia que
percebe entre o espaço do sonho e o espaço da pintura.
262
os pensamentos oníricos, reivindicação que na verdade os liberta, sob
determinadas circunstâncias, para que então se apresentem como imagens
visuais. Desse modo, o trabalho da figurabilidade não é outra coisa senão uma
força de ligação que o psiquismo impõe aos pensamentos inconscientes;
orientando-os a “convergir todos os dados do momento”, a figurabilidade
articula estímulos internos e externos numa única unidade inteligível.
A obediência do sonho à condição de figurabilidade atesta seu caráter
transformador: sem linguagem articulada ou motricidade, “só restam àquele
que dorme, para falar e para se mover, as imagens” (Pontalis, 1991, p. 209). E
qual seria a real natureza desta transformação?, ainda se pode perguntar. Se
uma resposta plausível, ela não se limita apenas ao onírico, mas implica
uma concepção mais profunda (leia-se, anterior) dos processos inconscientes.
Em outras palavras, o trabalho de figurabilidade não é apenas um conceito; ele
orienta tanto a técnica quanto a clínica psicanalíticas. “É que o espaço do
sonho e o espaço da sessão nunca deixam de estar relacionados” (Pontalis,
1991, p. 213, grifos meus). Segundo a definição concisa de Mauro Meiches,
Esta imagetização criará uma dramaticidade vivicadora dentro
do sonho que será, em seguida, submetida a um arranjo sintático por
um processo secundário, no instante de cruzar a barreira de censura
entre o inconsciente e o sistema pré-consciente/consciência (1997, p.
12).
De acordo com Pontalis (1990, p. 214), o conceito de figurabilidade
deriva uma dupla possibilidade interpretativa: uma do tipo “história em
quadrinhos”, e outra “alusiva”. Na primeira, “a imagem substitui a palavra, o
texto: inicialmente destinada a ilustrá-los, pode chegar a ponto de encobri-los”.
No segundo caso, o sonho levaria em conta artefatos que não se revelam com
clareza no discurso, mas nele estão incluídos no ritmo e no estilo. Trata-se de
elementos que são na origem figuráveis, embora não sejam, de antemão,
visuais. De qualquer modo, ambas não impedem que um determinado poder de
encarnação, “representado pela pintura ou, vez por outra, pelo sonho”,
263
apresente sua tonalidade visceral, deformada, desfigurada. Talvez seja a
“coexistência, no quadro, do in-significante (a forma, o significado) e do super-
significante (o excessivamente distinto)”, que produza essa impressão (p. 215-
6). Dinâmica e economicamente, escreve por sua vez Didi-Huberman, “uma
forma sempre surge e se constrói sobre uma ‘desconstrução’ ou uma
desfiguração crítica dos automatismos perceptivos” (1998, p. 217)
Refazer os caminhos de ligação pelos quais os conteúdos psíquicos
encontraram vazão, com a ajuda da elaboração secundária, é o que encaminha
o espectador a uma leitura que abdica da ambição de totalidade, pois, ao longo
do caminho de figurabilização da imagem artística, traços irão fatalmente se
perder, tal como acontece às lembranças encobridoras. Quando se aventa que
a injunção do sintomático seria ela mesma uma espécie de manufatura, ainda
que pouco estável, de cortes no registro do visível, isso significa dizer que o
que antes “não podia aparecer” ganha, agora, a exclusividade de uma forma
própria.
Por essa razão, pode-se afirmar que o trabalho de figurabilidade visa
configurar imagem nos espaços psíquicos que se encontram vazios
intervalos, a bem dizer, brechas que se localizam no interior da tópica do
aparelho –, onde se testemunha à criação ou à descoberta de formas que
antes não existiam. “A Darstellung aparece agora como realização, ou
expressão, da Vorstellung”, acrescenta Françoise Coblence (2005, p. 64).
Formar é dotar a coisa de um conteúdo simbólico, é dar a ela um estofo de
significação mínima. Nessa medida, o trabalho de figurabilidade também
comporia o estatuto ontológico da imagem artística.
Se toda imagem artística é capaz de engendrar fascinação e vertigem,
logo, ela possui uma “grande atualidade psíquica”, pois seja rupestre ou pós-
moderna, a imagem (crítica) é suscetível de modificar suas próprias
configurações. Se antes nada havia, a obra é, logicamente, a presença de uma
ausência, “presença subjetiva ligada a uma ausência fundamental” (Masson,
2005, p. 66). Aprofundando um pouco mais o problema, a questão apontaria à
tópica de um inconsciente ótico, bem ali onde surtem os efeitos escópicos da
“coisa inconsciente” que insiste. Não se trata de um questionamento da
264
“antivisão” ou do invisível, mas da posição em que inconsciente freudiano se
torna capaz de explicar uma lógica interna como a do modernismo (Krauss,
1994, p. 22). O modelo usado por Freud para conceber o aparelho psíquico foi
em diversas vezes, como é sabido, comparado ao esquema ótico,
22
função
primordial de recepção de imagens. Trata-se de uma constatação de peso: a
meu ver, as propostas apresentadas por Didi-Huberman em Devant L’image e
em La peinture incarnée partem da aceitação da premissa de um esquema
ótico. Conquanto estas reflexões enfrentam poéticas mais antigas, por
outrolado conseguem lançar luz à função da recepção de arte no momento
contemporâneo, mas isso apenas sob a condição de acessar, ainda que de
maneira indireta, a metapsicologia do olhar e da imagem.
Para Didi-Huberman, meditar sobre “a perda diante do ganho”, melhor
dizendo, sobre “o não-saber recolhido no interior do saber ou o furo incluído na
trama”, são operações que acabam redirecionando a interrogação sobre “o
trabalho mesmo da figurabilidade da obra nas imagens de arte”. Repensar seu
objeto em vista do não-saber que implica o espectador, eis um convite atraente
à aposta dialética: “a figurabilidade se opõe àquilo que entendemos
habitualmente por ‘figuração’, de maneira que o momento visual que ela faz
advir se opõe ou, sobretudo, faz obstáculo (...) no regime ‘normal’ do mundo
visível” (1990, pp. 15-38). No espaço da crítica de arte tradicional, o vidente
acredita dominar o visível, assim como o ótico (o percepiens) subjuga o
háptico. Mas não só: refletir sobre “o elemento do não-saber que nos ofusca a
cada vez que colocamos nosso olhar sobre uma imagem de arte” pressupõe
uma transformação do olhar que se estende à recepção estética. Assim como a
psicanálise pôde sustentar uma abertura moderna frente às tiranias do visível
(a imitação, a repetição) e do legível (a iconologia), as reflexões de Foster e
Didi-Huberman conseguem ampliar, de modo notável, a fortuna crítica das
imagens modernas e pós-modernas, não sem apostar na força de interpretação
proporcionada pelas ideias psicanalíticas.
Continuando com o historiador francês, consideremos que, em princípio,
toda imagem possui uma latência e uma energética. Mesmo a “mais simples
22
A arte se colocaria diante da psicanálise como uma alteridade, como algo que é outro,
certamente diferente, mas, nesta exata medida, faz com que ela reflita a respeito de si.
265
imagem”, escreve, “não a perceber algo que se esgotaria no que é visto, e
mesmo no que diria o que é visto. Talvez haja imagem a pensar
radicalmente para além da oposição canônica do visível e do legível”. Diante da
imagem, “nosso ver é inquietado”, retira do objeto “toda a sua perfeição e toda
a sua plenitude. A suspeita de algo que falta ser visto se impõe doravante no
exercício de nosso olhar” (Didi-Huberman, 1998, pp. 95-119). Ora, a
inquietação é a pedra fundamental da experiência estética, uma vez que as
obras de arte, por mais simples que sejam,
sabem apresentar a dialética visual desse jogo no qual soubemos (mas
esquecemos de) inquietar nossa visão e inventar lugares para essa
inquietude. As imagens da arte sabem produzir uma poética da
“representabilidade” ou da “figurabilidade” (a Darstellbarkeit freudiana)
capaz de substituir o aspecto regressivo notado por Freud a propósito
do sonho, e de constituir essa substituição em uma verdadeira
exuberância rigorosa do pensamento. As imagens da arte sabem de
certo modo compacificar esse jogo da criança que se mantinha apenas
por um fio, e com isso sabem lhe dar um estatuto de monumento, algo
que resta, que se transmite, que se compartilha (p. 97).
Bem entendido, o trabalho de figurabilidade supõe a permanência e o
jogo das contradições, e não a sua resolução. Nestes moldes, a recepção “não
justifica um conceito que sintetizaria, apaziguando, os aspectos mais ou menos
contraditórios de uma obra de arte. Procura apenas mas é uma modéstia
muito mais ambiciosa – justificar uma dimensão ‘verbal’” que sustenta o espaço
da palavra significativa, dito fissurado pelo movimento do dizer que abre a
imagem, “que nela cristaliza aquilo mesmo que a inquieta sem repouso” (Didi-
Huberman, 1998, p. 117). Mas é também função do Darstellbarkeit transformar
pensamento latente em conteúdo manifesto no decorrer de uma “passagem de
meios”, cuja substância é permeada por recordações visuais infantis que lutam
para se exprimir (rückübersetzt). O sonho seria “o substituto da cena infantil
modificada por transferência para o recente”, como indicam Laplanche e
Pontalis (1984, p. 215). Daí o recalcado se aliar à atração pelo visual: “a
relação entre o visual e o inconsciente não é contingente, mas essencial”
266
(Pontalis, 1991, p. 209). Contudo, a transformação não desfaz o liame entre os
dois meios, pois condiz a um “mesmo conteúdo em duas linguagens
diferentes”. O conteúdo do sonho, escreve Freud, “nos é dado, por assim dizer,
em uma pictografia, em que cada um dos signos de se transferir à
linguagem dos pensamentos do sonho” (1900[1996], p. 285, grifos meus). É um
erro achar que a imagem formada encerra um desenho ou uma simples
figura. A noção de rebus surge agora, em seu nível de sintoma, justamente
para contradizê-lo.
Suponhamos que me mostrem um quebra-cabeça: uma casa
sobre cujo telhado pode-se ver um bote, depois uma letra isolada,
depois uma silhueta humana correndo, cuja cabeça lhe foi cortada etc.
Diante disso poderia pronunciar o seguinte veredicto crítico: tal
composição e seus componentes não têm sentido. Não existem botes
nos telhados das casas, e uma pessoa sem cabeça não pode correr;
ademais, a pessoa é maior que a casa e, se o todo pretende figurar
uma paisagem, nada têm o que fazer ali as letras soltas, que por certo
não se encontram espalhadas pela natureza. A apreciação correta do
quebra-cabeça somente se obtém, como é evidente, quando em vez de
pronunciar tais veredictos contra o todo e suas partes, empenho-me
em substituir cada figura por uma silaba ou uma palavra que seja
capaz de figurar em virtude de uma referência qualquer. As palavras
que então se combinam não ficam mais sem sentido, e ainda podem
resultar uma bela e significativa sentença poética. Assim, o sonho é um
rebus dessa índole, e nossos predecessores no campo da
interpretação dos sonhos cometeram o erro de julgar a pictografia
como composição pictórica. Como tal, lhes pareceu absurda e
desprovida de valor (Freud, 1996[1900], p. 286).
O psicanalista já sabia, com efeito, do vigor de descontinuidade próprio à
formação da imagem onírica; quando analisa as estruturas do sonho, constata
que os conectivos (as conjunções), por exemplo, não ganham tradução visual.
Implicadas na língua, certas relações lógicas não encontram meio de
representação inconsciente porque são puros efeitos de consciência,
funcionando de maneira análoga à negação (Verneinung). Uma restrição
267
semelhante pode ser encontrada nas artes visuais: antes de conhecerem suas
condições próprias de expressão e figurabilidade, as artes teriam procurado
outros meios para suprir esta impossibilidade de representação. “Em quadros
antigos”, Freud observa em 1900, “encontram-se balões que saem da boca das
pessoas onde se o que o pintor desesperava por retratar” (1996[1900], p.
318, grifos meus).
O exame dessa descontinuidade na representação pode ser
compreendido a partir das leis do deslocamento: a “intensidade e valência
psíquicas, o interesse que recai sobre uma representação, hão de distinguir-se
desde logo da intensidade sensorial, a intensidade do representado” (Freud,
1996[1900], p. 312). Por outro lado, César e Sára Botella consideram que a
condição de figurabilidade é um meio privilegiado de acesso “à inteligibilidade
dos processos e conteúdos psíquicos inconscientes” (2007b, p. 11). Por
conseguinte, se tomarmos por certa a tese de que figurabilidade é uma
tendência geral de organização psíquica,
23
como propõe a dupla, a defesa de
uma recepção psicanalítica pode pisar em solo mais seguro.
Em linguagem metapsicológica, os autores alegam que
Quando a vida psíquica se organiza bem, se organiza na
primeira tópica. Isto é, liberdade de pensar verdadeiramente.
Quando se chega a ter um funcionamento psíquico, somos capazes de
reprimir representações que nos incomodam, e, se estamos bem
analisados, deixamos que a repressão desapareça e servimo-nos do
que estava reprimido. Para mim, o funcionamento na primeira tópica é
a liberdade de funcionamento em relação à repressão, no sentido
clássico freudiano. Essa liberdade tem seu funcionamento entre os
processos primários deslocamento, condensação, alucinação e que
possa ser ligado em representações de palavras. uma liberdade
absoluta, quer dizer, com os processos primários: é o sonho. Liberdade
é, quando se dorme, sonhar com todo o seu deslocamento até chegar
23
Deve-se notar que o uso da figurabilidade funciona como substituto da contratransferência e
não se confunde à noção kleiniana de identificação projetiva; o uso se como processo
regrediente no analista, é um recurso para superar angústias arcaicas (psicóticas, no caso) do
paciente (Botella, 2007, s/p.)
268
à representação que nos convém e, ao despertar, pôr aquilo em
representações de palavras e nos servir daquilo (Botella, 2007a, s/p.).
Liberdade: para experimentá-la, nestes termos, a olhar deve ultrapassar
a mera tradução do legível, abster-se dos esquadrinhamentos “figurativos”. Na
medida em que não se contenta com as significações autossuficientes, a
leitura sintomal considera o que está para além da representação.
Mas ainda não se deve dar por satisfeito: uma vez que sofra, com mais
ou menos intensidade, certos efeitos de distorção o que no interior da teoria
analítica supera, parafraseando o próprio Didi-Huberman, a interpretação
fenomenológica da atividade onírica –, a imagem artística tem o rito de
alargar as fronteiras de sua lógica visual correspondente. Em face do olhar, a
obra enfim se abre. Sensível à recepção, sua imagem é como aquela do sonho
que, ao se deixar decompor, revela a natureza plástica e reversível de seus
nódulos, deixando apresentar sua outra cena. Na arte contemporânea, não
obstante, nem sempre a imagem está dada de antemão; mesmo nestes casos,
no interior da recepção que toda obra de arte demanda a construção do
discurso vem só-depois. Assim, sugiro qualquer reflexão sobre a arte de agora
acabará se atendo, em algum momento, ao movimento de regrediência exigido
pela sua imagem.
Esse caminho se justifica porque as imagens figuradas no sonho o, a
rigor, desfiguradas pela figurabilidade. Por mais paradoxal que venha a ser, a
figurabilidade produz uma plástica de imposições inconscientes na qual a “lei
insistente de exceção, a lei ou a soberania daquilo que se excede no visível” se
torna o leitmotiv de um olho que desejaria refazer o curso da formatividade. Em
outras palavras, é também o que significa trabalhar no registro metapsicológico
do olhar.
Para fazê-lo, no entanto, deve-se assumir que as relações de causa e
efeito desaparecem “diante da copresença” que explode a concepção
esquemática de imagem concebida por Kant e seguidores,
segundo Didi-
269
Huberman. Panofsky é contemporâneo de Freud, e interpreta as imagens da
renascença a partir da leitura iconológica. o segundo, quando estuda
imagens antigas, produz uma interpretação que poderia se abrir às artes
moderna e contemporânea. Como antípoda do circuito fechado da
representação (repräesentation), o princípio da não-contradição, que Freud
estabelece ao inaugurar sua teoria sobre o inconsciente, é aquele que
permitiria a convivência de conteúdos contraditórios dentro de um mesmo
espaço psíquico. Segundo a premissa de que se apresentem em imagem, os
conteúdos ampliam sua própria margem de significação devido à alta
capacidade de transformação que a matéria possui.
Seria possível dizer que a estética freudiana engendraria uma ruptura no
paradigma pictural?
É de fato sob o ângulo da falha, da falta a falta de
expressão” lógica (diese Ausdrucksfähigkeit abgeht) –, que as artes
plásticas serão aqui convocadas em relação à figurabilidade do sonho;
e não é indiferente encontrar sob a pluma de Freud a indicação lapidar,
porém tão justa, que a “falta de expressão” nas artes plásticas “é
devida à natureza da matéria utilizada (in dem Material)”, tal como “esta
falta de expressão está ligada à natureza da matéria psíquica (am
psychischen Material) na qual o sonho se dispõe” (Didi-Huberman,
1998, p. 200)
A partir desta posição, portanto, e em termos de um programa de crítica
ou de teoria da arte,
A relação do sujeito com a forma se verá, enfim, e
sempre nos dois quadros problemáticos [ou seja, de função e
de relação], perturbada de parte a parte. Perturbada porque
violentamente deslocada: deslocada a questão do belo e do
julgamento de gosto; deslocada a questão do ideal e da
intenção artística. Sempre uma coerção estrutural terá sido
270
dialetizada com o lance de dados “estranho” de cada
singularidade sintomática (p. 218).
A reflexão que Didi-Huberman constrói em torno do sintoma evita que o
trabalho de recepção seja conduzido à procura do por detrás (Didi-Huberman,
1990, p. 276), como se em sua face oculta a imagem guardasse para si um
“tesouro de significantes” escondido e à espera de ser desvendado. O que de
fato importa, assim considera o filósofo, é produzir uma leitura que constrói o
sentido ao mesmo tempo em que o deixa ser construído pelo olhar. Tal como
ocorre – digo por minha vez – no processo “terapêutico” da análise, os sentidos
para o vivido serão criados a partir da escuta e no interior da situação, lugar
onde o analisando não está sozinho. Nos dois casos, o paradigma da
escuta/recepção se baseia portanto na rasgadura, no dilaceramento; ambas
teorias também sabem que, uma vez sustentado pelo balizamento da imagem
onírica, o umbigo do sonho (o umbigo da imagem) permanece não-
interpretável. Em paralelo, na experiência com o real sempre se deixa um
resto, como indicava Lacan. Nessas condições, a leitura da obra é possível
se um certo número de fissuras esteja aberto na imagem e no olhar.
desde a Traumdeutung Freud considerava que a interpretação nunca
é exaustiva: “ainda quando parece que a resolução é satisfatória e sem
lacunas”, advertia, “segue aberta a possibilidade de que através de um mesmo
sonho se veja insinuado outro sentido”. Nesta investigação, que explora estas
modalidades de recepção que desejam ver a matéria amorfa durante e depois
da formação, estão em jogo os lugares intermediários em que a opacidade se
desembaraça da transparência e onde a figurabilidade se desvencilha da
representação. Minha defesa do emprego do “amorfo” se justifica, mais uma
vez, em sua dimensão temporal: não se trata de ver a forma a meio caminho,
mas de encontrar a forma formada que se torce e que, ao se torcer, se revela.
No trajeto final da reflexão aqui recortada, por outro lado, Didi-Huberman
não considera que a questão se encerre no “irrepresentável” isto seria
apenas uma renovação da metafísica do olhar e da imagem, segundo ele.
Nesse contexto, o irrepresentável se traduziria, de modo surpreendente, no
271
apelo a “uma poética da desrazão, do pulsional, ou uma ética da contemplação
muda, ou ainda uma apologia da ignorância diante da imagem”. Ora, pode-se
dizer que neste momento acabamos de nos deparar com um limite da sua
compreensão analítica. A princípio, “pulsional” e “desrazão” não são sinônimos,
e sequer se assemelham, diferença que a obra de Freud procurou marcar
sistemática e historicamente. Ainda que a leitura de Didi-Hubberman pretenda
“colocar um olhar sobre o paradoxo, sobre a espécie de douta ignorância com
a qual as imagens nos coagem” (1990, p. 175), assim produzindo quebras nas
sínteses metafísicas, com efeito nela subsiste a dimensão clínica do
irrepresentável que não é apreendida pelo autor.
Talvez as conclusões alcançadas por esse trabalho possam corrigir esta
má-compreensão. Antes, porém, observemos que
Toda a beleza da análise freudiana está em nos fazer tangível
a intensidade singular das imagens do sonho através da disjunção do
afeto da representação, disjunção que nos faz compreender por que
uma cena terrível, a morte de um ser querido, por exemplo, pode
afigurar-se-nos absolutamente “neutra” ou “desafetadanum sonho e
por que, reciprocamente, um simples cubo negro poderá de repente
mostrar-se de uma louca intensidade (Didi-Huberman,
1998, p. 218).
4.5) Estética e psicanálise
Para que a leitura se estruture no paradoxo da disjunção, é necessário
que existam coeficientes de plasticidade psíquica. De acordo com Françoise
Coblence (2005, p. 13), nesse sentido,
A plasticidade designa a propriedade que possui um corpo de
se modificar, mas também de conservar suas modificações. Ela o
assegura por sua vez a possibilidade de mudar de forma e de guardar
272
uma forma; ela permite a junção de movimento e estabilidade. As artes
ditas plásticas, a matéria dita plástica, as substâncias ou os alimentos
plásticos têm em comum as ões de dar e tomar forma, e de poder
modificar esta forma nos limites do que a resistência do material
oferece.
A psicanálise é de fato uma práxis. Segundo a definição canônica de
Freud, trata-se de um tipo de experiência de cura/tratamento articulada a um
modo de conhecer. Vale dizer que, independentemente do lugar onde se
configure, seu exercício depende de algumas condições, como a existência de
duas pessoas, um setting e um enquadre, como vimos; seu método, que é
complementar ao enquadre, não é outro senão o clínico. Por essa razão, a
psicanálise se refere tanto à epistemologia entendendo por episteme um
conjunto hegemônico de lógicas relativamente constantes que ataca um objeto
qualquer quanto ao método, que, no caso, é a própria situação clínica. Esta
situação demanda, em seu desenrolar, que todo conhecimento seja sempre
elaborado a posteriori. Se a única regra da análise é a associação livre “sua
regra de ouro” porque exclusiva, uma vez que nenhuma outra clínica criou algo
aproximado –, e se ela impõe que os sentidos da fala estejam sempre à espera
de serem construídos, são os fenômenos posteriores (e não os predecessores)
que darão sentido ao dito. Eis que nos descobrimos, uma vez mais, diante do
après-coup.
Toda reflexão sobre arte pressupõe um dizer. E o dizer, que é o grande
material da análise, é uma espécie de movimento em looping que forma a
experiências vividas e fantasiadas, conteúdos que foram marcados em maior
ou menor grau pelos operadores psíquicos que rodeiam a subjetivação. Diante
da imagem de arte, no entanto, o dizer “se acha diante de seu próprio
vocabulário como diante de um problema de faíscas a produzir de palavra a
palavra, friccionando, por assim dizer, palavras com palavras”. Ainda assim, “a
toda fala poderosa”, isto é, um discurso crítico, uma teoria da arte, ainda que
ela seja uma jaculação elementar, como dizia Lacan, “é preciso um objeto
adequado, ou seja, eficaz, ainda que excessivamente simples e indeterminado
(...) minúsculo, trivial ou insignificante” (Didi-Huberman, 1998, p. 182; p. 81).
273
É deste choque que nasce a forma, é na complexa relação que se
configura entre sujeito e objeto que alguma coisa vem a se atualizar, com
efeito, como forma. Assegurado por esta vontade, o objeto a nascer demanda
um suporte no mundo que lhe sirva. Segundo Luigi Pareyson, a Arte se como
pura invenção, criação no sentido radical de um vaivém de determinações
transversais entre forma e processo de formação. Em outras palavras, arte “é
um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer” (1997, p.
26).
Nessa medida, sonho e sintoma não seriam também canais de
formatividade? Ora, é de responsabilidade do aparelho psíquico garantir um
trabalho de formação de imagens, daí a figurabilidade receber aqui um papel
central; porém, como a lembrança (da imagem) é sempre encobridora, as
formas geradas serão mais formantes que formadas. É a interpretação do
sonho que proporciona um desdobramento ao sintoma, “dando acesso a
alguns elos de uma cadeia de representações que o sintoma, por sua vez,
dissimula” (Pontalis, 1991, p. 209). Portanto, a força dinâmica da formatividade
“não nega o olhar do espectador” pois ele está de antemão incluído “na
estratégia da própria forma”. E é ao abranger o outro que transcorre do “ser
olhada” (a obra) ao “olhar”. Nesse jogo de passe no qual o sujeito se
transforma em objeto funda-se um limite de distanciamento onde ver se traduz
em perder, espaço equidistante entre “luto e desejo” (Didi-Huberman, 1998, pp.
226-7).
Não obstante, um processo como esse pode ser identificável, no interior
da fortuna crítica psicanalítica, para além da própria figurabilidade.
Talvez só haja imagem a pensar radicalmente
metapsicologicamente para além do princípio do prazer: Freud, como
se lembram, terminava sua passagem com uma alusão ao “jogo do
luto” (Trauerspiel, a tragédia) e apelava a “uma estética guiada pelo
ponto de vista econômico” (eine ökonomisch gericktete Asthetik) (...)
Talvez haja imagem a pensar radicalmente para além do princípio
de imitação. É talvez no momento mesmo em que se torna capaz de
274
desaparecer ritmicamente, enquanto objeto visível, que o carretel se
torna uma imagem visual (Didi-Huberman, 1998, p. 83, grifos meus).
Em Freud, as concepções de plástico e de plasticidade se encontram
com frequência associadas à pulsão, mas, também, à natureza visual das
cenas histéricas, em especial quando se remete ao caso de Frau Emmy. Por
conseguinte, a dimensão plástica seria consubstancial ao fenômeno histérico e,
assim entendido, seu quadro sintomático não seria nada mais do que uma
espécie de “ataque plástico”: na neurose de conversão, a “cena é uma
apresentação plástica da bissexualidade da fantasia” (Coblence, 2005, ps. 73-
91). Didi-Huberman não desconhece este fato. Como ele mesmo propôs, o
detalhe estaria para o processo de fetichização na obra assim como o pano
estaria para a sua histericização (1990, p. 309). Servindo como suporte para a
ausência de contradição da dinâmica inconsciente, a dimensão plástica
consegue admitir que uma lembrança poderia ser ainda mais angustiante que a
cena de origem, por exemplo; trata-se de uma formatividade cujas
“reminiscências estão essencialmente ligadas a cenas visuais, e a lembrança é
visual, quase visual demais, por demais plástica” (Coblence, 2005, p. 75-6). E
como não poderia ser diferente, a imagem artística é composta da matéria a
mais conflituosa:
De um lado, uma exigência de apresentação e de expressão
plástica traduz a força do desejo inconsciente e parece estar de acordo
com ele; mas, de outro lado, é sempre como falta de meios, quer dizer,
falta de palavras, que a apresentação plástica intervém, lembrando-nos
do estatuto inferior de linguagem que é a imagem (Coblence, 2005, p.
93)
Ainda que a princípio ligado à escultura para se discriminar de pintura
e literatura –, o substantivo plástico (Die Plastik), atendo-se ao Freud do
“Moises”, qualificaria a imagem visual ou sensorial “por oposição às palavras
articuladas na língua e às abstrações”. E por que oposição? Precisamente pelo
275
fato de que a plasticidade é derivada do processo primário, no qual se tem
mais liberdade de metamorfose. Tal definição, em termos gerais, sublinha o
aspecto sui generis que a expressão artística exerce no interior da experiência
corriqueira. No contexto da obra freudiana, este uso “aí compreendendo as
diferenças entre a utilização da plástica pela escultura e do adjetivo plástico
para caracterizar as imagens”, condiz à “tradição estética da época de Freud”
(Coblence, 2005, p. 79).
Nessa medida, a estética freudiana seria, ainda que apenas de início,
uma teoria historicamente datada, subjugada à larga tradição que vem de Kant
a Hegel. Entretanto, a reflexão freudiana deu mostras de sua própria
capacidade plástica: superando o caráter social da idealização que ronda o
terreno da criação, Freud apresenta duas outras estéticas: a primeira, que
surge com “O Moises e Michelangelo” (Frayze-Pereira, 1999; Gagnebin, 1994),
é seguida pelo ensaio sobre “O estranho”, o que a meu ver fecharia o conjunto
de sua reflexão sobre arte.
A plasticidade evocada por Freud não concerne apenas às pulsões, mas
à vida psíquica como um todo. No entanto, o substrato primário é aqui
privilegiado porque sua mobilidade revela que “as pulsões parciais se
comunicam por assim dizer umas com as outras”, escreve Freud no início dos
anos 1920, “que uma pulsão que vem de uma fonte erógena particular pode
dar sua intensidade para o reforço de uma pulsão parcial de outra fonte, que a
satisfação de uma pulsão pode substituir a de outra” (1996[1923], p. 45). A
natureza plástica da vida psíquica também interfere nas possibilidades de
variação qualitativa respectivas ao objeto do olhar; com efeito, ela proporciona
que o circuito chegue à sua finalidade satisfação. Como antes mencionado,
dentre os quatro elementos do circuito pulsional o objeto é quem possui maior
nível de plasticidade, sendo o termo mais variável da pulsão. Sua função
primordial é criar meios para a satisfação, mesmo na mais alta limitação de
contingências do objeto. Em resumo, a pulsão funciona, em termos dinâmicos,
de acordo com a estrutura da complementaridade: deseja, de qualquer
maneira, associar-se ao objeto, estando ele dentro (no eu) ou fora do aparato.
276
O mecanismo de sublimação volta a exigir sentido: “A plasticidade surge
em serviço da vida individual e coletiva”, indica Coblence (2005, p. 135); “ao
permitir às pulsões sexuais sua plena satisfação, permite evitar a frustração
satisfazendo à cultura”. É assim que a plasticidade das pulsões e a criação de
formas plásticas são deparadas frente a frente, pela via do destino (e não da
defesa). “A pulsão reprimida nunca cessa de aspirar à sua satisfação plena,
que consistiria na repetição de uma vivência primária de satisfação”, conclui
Freud; “todas as formações substitutivas e reativas, e todas as sublimações,
são insuficientes para cancelar sua enérgica tensão”. A diferença entre o
prazer de satisfação encontrado do pretendido “engendra o fator pulsionante,
que o admite se aferrar a nenhuma das situações estabelecidas”
(1996[1923], p. 42). Vemos justificada a grande atração humana pelo plástico.
Graças à plasticidade da libido e à flutuação, à lassidão dos
processos primários, o prazer preliminar e a sublimação constituem as
vias de descarga, possíveis ao isso, como qualquer descarga, embora
escolhidas pelo eu. Elas asseguram, de fato, uma articulação entre o
quantitativo e o qualitativo (Coblence, 2005, p. 139).
Nesse sentido, a apresentação plástica da imagem não seria nenhuma
novidade: expressão de um retorno, ela é a matéria psíquica que foi
retrabalhada pela elaboração secundária, transformada, agora, em forma. A
respeito do sonho, Freud adverte que, dentre “os vários pensamentos
acessórios ligados aos pensamentos oníricos essenciais[,] dá-se preferência
àqueles que admitem representação visual (Darstellung), e o trabalho do sonho
não se furta a esse esforço de remodelar pensamentos inadaptáveis numa
nova forma verbal”. Contanto que o processo facilite as representações
(Vorstellung) e, “desse modo, alivie a pressão psicológica causada pela
constrição da ação de pensar” (1900[1996], p. 327), mantém os efeitos de
fechamento e abertura que sustentam a aparelhagem psíquica.
No tange à arte, no entanto, entender a imagem como simples retorno
do recalcado é atestar o empobrecimento da experiência estética. “Poderia a
277
intensidade de uma forma chegar a definir-se metapsicologicamente como o
retorno do recalcado na esfera do visual e, de maneira mais geral ainda, na
esfera da estética?” pergunta-se Didi-Huberman (1998, p. 230). Afinal, neste
nível a transformação não é uma mudança qualquer.
Com isso, proponho que o trabalho de figurabilidade deve ser entendido
como operação de formatividade, isso em função do temperamento plástico da
pulsão e dos objetos de arte. Se a Dastellbarkeit designa o sistema de
convergência em que o sonho ganha forma, onde a reunião das partículas Da
(aí), e stell (pôr, ficar de pé, montar) compõe uma espécie de mediação
presentificar, descrever, apresentar e representar , então o processo
metacrítico que transporta o olho ao amorfo teria as mesmas propriedades
daquele que proporciona forma ao que não tem. Trata-se mesmo de um
direcionamento ao outro, e não por acaso Darstellende Kunst é a expressão
alemã para designar o que chamamos artes plásticas (Hans, 1999, p. 382).
Esta sugestão poderia provocar torções na atividade de recepção. Sua
extensão possui duas fronteiras “a recepção e a preensão da forma, de um
lado, a explosão de toda a forma, de outro”. Não se trata de reconhecer e
recusar, mas de manter e transformar: é no espaço transitivo entre “esses
limites que poderá se desdobrar a plasticidade do sujeito em si mesmo”
(Coblence, 2005, p. 131). Nada contraria a existência de uma ação plástica que
vai do inconsciente ao corpo e, daí, ao objeto, à obra; se a recepção se insere
no conjunto mais amplo das determinações sociais, assim como “obra” são
aqueles trabalhos que conquistaram o status de arte em seu zeitgeist, a
recepção tampouco deixa de ser um trabalho psíquico transsubjetivo.
E uma vez que o inconsciente é a matéria bruta e irredutível com a qual
o psicanalista trabalha,
Quando se trata de examinar as ligações entre o visual e o
inconsciente, não nada a se referir à escultura nobre, formada de
imortais e de estátuas imperecíveis de deuses ou heróis. Aos
antípodas do ideal plástico hegeliano ou da grande tradição da
escultura na qual Michelangelo figura como grande representante, a
278
referência à plástica apresenta um visível de ordem mais inquietante,
ligado ao toque e à dimensão háptica do espaço, próximo à
modelagem e aos materiais mais triviais. A modelagem e seus tateios
parecem mais próximos do inconsciente, ou ao menos da tentativa que
se deve fazer para “visualizar” o psíquico (Coblence, 2005, p. 89-90).
Eis o gosto “moderno” da estética freudiana: para representar o
inconsciente, se lhe tornou necessário recorrer aos “pólos desvalorizados pela
estética e pela história da arte clássicas”. A ele foi “preciso renunciar à nobreza
do desenho e à pura visibilidade, ao ideal de belo da pintura antiga”. Para
vislumbrar uma forma para o inconsciente, Freud se viu obrigado a apelar “à
modelagem, ao tátil, à cor”, enfim, “à baixeza da pintura moderna(Coblence,
2005, p. 90), ainda que esta apropriação não tenha sido consciente uma vez
que contraria seus gostos artísticos.
A concepção heterogênea de cor, advinda, no caso, deste atrito entre
“ótico e háptico”, torna-se bastante afinada com os propósitos deste trabalho.
Partindo do anátema do incarno, ela deriva uma ampliação do espaço analítico.
Se é verdade que a cor encarna o visível e o tátil, logo, ela se remete ao corpo,
que o corpo pode tocar e ser tocado ao mesmo tempo, como indicara
Merleau-Ponty. Visível e tangível nunca serão extemporâneos: “A plástica tem
a ver com o inconveniente das sensações, a ambivalência dos sentimentos, um
inconsciente de representações, ou melhor, de sua apresentação sensível”
(Coblence, 2005, p. 101).
Passagem-ao-ato que configura formas e sensações, a plástica se
remete ao inconsciente que atua no corpo, mas não somente no “corpo
orgânico e histérico que, como recorda Freud, ignoram a anatomia” (Coblence,
2005, p. 141, p. 103). A ampliação do espaço se concretiza, mais
especificamente, a partir do enfrentamento em que a crítica psicanalítica se
veja obrigada a fazer diante da arte contemporânea: formas que por natureza
seriam “sensíveis-sexuais”, imagens mais ou menos radicais, sedutoras,
deformadas, belas e assustadoras.
*
279
Espero que a hipótese sobre a quadratura tenha enfim se tornado
inteligível. Com a proposta, pretendo de minha parte operar um corte na
reflexão estética de Didi-Huberman. A própria disposição dos quatro termos
comporta uma abertura a ser aproveitada. Indico, portanto, a possibilidade de
estruturá-la a partir de uma nova organização, com o intuito de diferenciá-la do
informe desenvolvido por Bataille – no qual a teoria de Didi-Huberman se
inspira,
24
mas não apenas –, conservando, no entanto, seu caráter processual.
Assim, propor a operação do amorfo implica fazer uuma torção espaço-
temporal. Num primeiro nível, tomemos a própria temporalidade dos quatro
elementos: ainda que se remetam à pintura moderna (a Obra-prima ignorada),
a meu ver os termos criados em La peinture incarnée se projetam ao futuro,
conseguindo estender seu campo da recepção a obras de arte pós-modernas,
como antes inclusive adiantei.
Numa segunda camada de significação, defendo a diferença entre
informe e amorfo em função de um argumento tópico: a princípio, o informe é
aquilo que vive a meio caminho entre o nada e a forma, de modo que
representaria um processo inacabado de formatividade. esta premissa do
amorfo, que nele incluiria o informe, refere-se a uma operação de retorno, isto
é, um mecanismo que parte da forma formada e procura refazer o caminho de
uma formação que, por sua vez, já aconteceu.
Daí toda a importância da regrediência no contexto desta investigação,
com a qual, feito esse percurso, pretendo concluir.
24
Comunicação pessoal, dezembro de 2008.
280
Psicanálise, reflexão estética.
Subsiste uma convergência insuspeitada entre Hal Foster e Georges
Didi-Huberman. Reunindo em sequência as intervenções, a intenção deste
trabalho teria o mérito de produzir unidades de sentidos que acolhem um
traçado que inclui uma parte significativa da reflexão estética contemporânea.
Para tanto, surgiu a estes autores esta é a tese que venho sustentar a
necessidade de acessar conceitos advindos da práxis psicanalítica; no bojo de
ambas as discussões, tais categorias funcionariam, assim, como condição sine
qua non.
São lados de uma mesma moeda: em seu trajeto particular, Didi-
Huberman abarca uma extensa reflexão que vai da história à teoria da arte, no
mesmo passo em que Foster, debruçando-se diretamente sobre poéticas mais
recentes, no geral dedicadas à fotografia ou, em menor escala, ao vídeo e à
pintura, oferece uma intervenção que provoca aberturas no pensamento crítico.
Partindo de questões que envolvem o real e a repetição, bem como as noções
de trauma e de estranhamento, chegaremos à quadratura do amorfo, passando
então pela teoria da figurabilidade e pela presença do minimalismo como
ilustração paradigmática da experiência visual.
Ora, as repetições que ocorrem nos ciclos vividos pela arte
contemporânea serão reinterpretadas por Foster, sem dúvida na esteira de
Rosalind Krauss, a partir de uma teorização psicanalítica rigorosa. Repetir,
neste contexto, significa criar, inventar ou construir, assim como também
ocorre, em paralelo, às lembranças encobridoras investigadas por Freud. Seu
resgate da noção de trauma, complementar à repetição, caminha neste mesmo
registro. É como em outro contexto resumiu Murielle Gagnebin, de maneira
lapidar: “Interpretar transporta o presente ao passado sob a forma da repetição
que permite a lembrança, pois libera o presente do passado para construir a
memória e, evidentemente, engaja o porvir, no sentido de que construir é
sempre, bem ou mal, antecipar” (1994, p. 259). De sua parte, a concepção de
sintoma da qual Didi-Huberman se apropria não remete diretamente ao
processo de criação artística, discurso corriqueiro nas psicopatologias que
281
consideram que o ato criativo é fruto de “efeitos sintomáticos”. Seu trabalho, do
contrário, promove a inserção de verdadeiros cortes no registro do visível.
Não obstante, o enlace não pode ser verificado unicamente no vai-e-vem
de uma reflexão à outra. A conexão ganha maior alcance se se acessarem as
análises que André Green (1997) e Cesar e Sara Botella (2007b) oferecem em
seus estudos sobre a representabilidade psíquica. Se o problema da
representação foi superado no contexto do pensamento estético os
inúmeros ataques à tela, bem como ao conceito de sublimação são um sintoma
deste colapso como pensá-lo no que tange à realidade psíquica? O que
significaria falar em figurabilidade acessada tantas vezes por Didi-Huberman
– ou em pulsão de morte – ao qual Foster recorre com insistência – na
ausência do conceito de representação?
A meu ver, é apostando neste propósito que os psicanalistas almejaram
construir um corpus clínico-teórico que engloba, indiretamente, a reflexão dos
pensadores ora selecionados. Não se encontram, em Foster e Didi-Huberman,
quaisquer citações de Green ou do casal Botella (e o contrário é também
verdadeiro, como não poderia ser diferente). Nesse sentido, é como se a
investigação destes psicanalistas preenchesse certas lacunas
metapsicológicas da reflexão estética que se inclina à psicanálise, problemas
que talvez se refiram à ausência de uma experiência clínica propriamente dita.
Não se trata, é claro, de uma deficiência, mas de um complemento, por assim
dizer. Ora, a força de implicação das leituras se revela a despeito desse fato:
cada interpretação se ampara em diferentes psicanálises para diferentes obras.
O que exige recuar ao “aparente paradoxo” que havia iniciado esta
investigação, sem o qual não se pode avançar. Afinal, o que justificaria a
presença da intervenção de Juliet Mitchell para o número 113 de October,
dedicado majoritariamente à arte e psicanálise? Não é possível concluir as
teses levantadas se a pergunta fica sem resposta: na minha opinião, é possível
reconhecer que o perímetro estabelecido por Mitchell entre psicanálise e
reflexão sobre arte equivale ao corpus que se foi construindo até este exato
momento. No caso específico da autora, no entanto, trata-se de uma reflexão
que a princípio não se dirige ao circuito das artes.
282
“Teoria como um objeto” (Theory as an object) é o curto título de seu
ensaio. Cabe sublinhar, de antemão, que a partícula as possui, nessas
circunstâncias, um significado mais amplo, para além do comparativo: o se
trata de metaforizar a teoria por meio do objeto, mas de pensá-la exercendo-se
conforme as vicissitudes (psíquicas) do funcionamento objetal.
A concepção winnicottiana de “uso de objeto” recebe, aqui, um
predicado especial. A teoria das relações objetais, publicada pelo psiquiatra
inglês em 1968, no ensejo de uma comunicação a ser feita na Sociedade
Psicanalítica de Nova Iorque, estabelece que por objeto se deve entender, a
princípio, a totalidade de uma “pessoa”, invariavelmente “alguém significativo”
para um determinado sujeito. Em termos psicogênicos, segundo a definição de
Winnicott, antes do “uso” propriamente dito deve surgir a estrutura da relação
objetal, com a qual se observa na criança a experiência de um puro êxtase de
compartilhamento, momento em que não há divisão entre eu e outro.
“A relação de objeto pertence à transferência”, indica Radmila Zygouris,
“na qual o objeto é ‘subjetivo’, isto é, alucinado”. Já o uso do objeto, evento que
é subsequente à relação, “o situa fora da esfera subjetivada”, de maneira que o
objeto “se torna real por poder sobreviver ao tratamento que o paciente lhe
inflige na transferência” (2002, p. 24). Conquistando o estádio da relação, o
sujeito será capaz de fazer alterações no seu próprio self, e, assim, progredir
ao estádio do uso. Portanto, é possível usar o objeto se uma relação fora
antes concatenada, demandando um ambiente propício para o seu surgimento.
Após a aquisição das relações de objeto, o uso se institui pela capacidade que
o sujeito adquire para destruí-lo (o objeto). E ao ser usado e destruído, o objeto
escapa, por outro lado, ao controle narcísico onipotente, transformando-se em
fenômeno intermediário.
Ainda de acordo com Winnicott, é apenas ao destruir o objeto que o
sujeito percebe sua independência em relação a ele, ou melhor, o sujeito
consegue compreender que o objeto sobrevive apesar da destruição, o que
liberta o sujeito das identificações totalizantes. Nesse sentido, o fator humano
de destrutividade seria uma resposta às experiências agressivas vividas em
uma etapa precoce. Por outro lado, é também esta destrutividade que permite
283
que o mundo externo seja estabelecido como Umwelt: ver o mundo é criá-lo,
propõe por sua vez Juliet Mitchell, assim como criar é uma experiência psíquica
fundamental. Na medida em que compartilhamos a realidade, pode-se
acrescentar, ela também é criada por nós.
A exigência principal para um “bom uso” é que o objeto seja forte o
suficiente para sobreviver à destruição imposta pelo sujeito. Entre antes e
depois, isto é, se ainda permanecer “vivo”, o objeto se desloca a outros
espaços mentais; a partir de agora, uma vez suspensa a destrutividade inicial,
ele poderá ser amado e apreciado. Destruir o objeto significa, em outras
palavras, dizer que a operação está mais fora que dentro do sujeito, pois o
funcionamento não depende somente da ação destrutiva, mas sobretudo da
aptidão de sobrevivência do objeto. É assim que ele passa a ser usado
justamente porque sobreviveu, conferindo valor à sua existência independente.
De acordo com Mitchell, a noção de uso pode ser mais aproveitada na
clínica de pacientes borderline. Coube a Winnicott, neste contexto, apontar o
quanto a psicanálise tende a neurotizar a relação terapêutica, fenômeno que se
expressa com um tratamento que parte no geral da clínica da histeria ou da
neurose obsessiva, deixando de lado as “porções psicóticas” da personalidade.
Tudo ia bem nos moldes da análise, a não ser pelo fato de que se tornavam...
intermináveis. Nestas situações, os pacientes seriam incapazes de usar o
analista” (Mitchell, 2005, p. 29). Entenda-se aqui, por analista, a somatória da
“pessoa” do analista com a cnica por ele empregada, como também a teoria
acrescida do setting. O uso de objeto pode ser observado com clareza pelo
canal das vias transferenciais, segundo a repetição de relações originais que é
dramatizada aqui-agora no par analista-analisando. A tensão criada nesta
relação entre-dois estaria muito próxima, aliás, da experiência vivida na relação
entre o artista e o espectador de arte.
Ainda que menos “carnal”, uma teoria pode muito bem assumir a função
de objeto; nestas circunstâncias, a teoria deverá ser “suficientemente boa” para
sustentar o fato de ser usada, seja ela qual for. Como se viu, a possibilidade de
destruir o objeto é coetânea à extinção da simbiose eu-outro. portanto uma
urgência de liberdade aqui. “A teoria suficientemente boa auxilia a pessoa a
284
usá-la, a transformá-la”, escreve Mitchell, “no contexto necessário de ambiente
ao objeto que poderá ser usado (2005, p. 33). Assim ela se torna livre da
alienação no outro.
No tocante ao circuito das artes,
O artista ou crítico é auxiliado, pela teoria psicanalítica, a
desenvolver a capacidade de destruir essa teoria, de modo que ele
pode dela fazer uso como uma teoria independente do artista/crítico.
Pode auxiliar a formular que a Psicanálise, ainda enquanto um objeto-
ambiente ao qual o artista/crítico se relaciona no êxtase de uma
relação compartilhada (ou em termos winnicottianos, no qual ele
projeta seus próprios sentimentos), pode se tornar, por meio de sua
destruição, não mais um objeto-ambiente, mas um objeto-uso (Mitchell,
2005, p. 33)
Sob este ângulo, cabe interrogar o que artistas e críticos estariam
fazendo quando evitam o emprego da teoria psicanalítica. Haveria, por parte
deles, o receio de cair nas malhas de uma identificação total com o discurso,
correndo o risco de perder de vista as diferenças de realidade que estão em
jogo? Na opinião de Mitchell, trata-se de uma atitude que não condiz à
projeção, mas a um nível de identificação que nega as possibilidades de
diferenciação. Destruir não representa a necessidade de se substituir uma
teoria por outra; significa que, apesar disso, no sujeito ainda existe a
capacidade para usá-la.
“A teoria psicanalítica não se transforma de dentro”, escreve Mitchell,
mas se comporta de maneira diferente porque artista e/ou crítico “podem usá-
la” (2005, p. 33). Sua posição defende, portanto, que artista e crítico não
devem abandonar a psicanálise com a justificativa de “perder a criatividade”,
uma vez que o estamos no caminho do ódio. Inconsciente e ligada à
fantasia, a destrutividade se combina ao amor. É o analista-ambiente quem
predispõe, no analisando, as competências para destruir: na fase do
desenvolvimento inicial da análise, o psicanalista se refere ao paciente
285
utilizando “interpretações esparsas, e estas são feitas apenas para indicar os
limites do próprio entendimento do analista com relação ao paciente, da e
com relação ao bebê, da teoria psicanalítica com respeito à obra de arte e/ou
seu criador” (p. 34).
É certo que, destruída ou não, nenhuma teoria conseguiria abranger a
criatividade como um todo, pois não se ignora o fato de que cada artista e cada
obra de arte estabeleçam singularidades próprias. “O que fora destruído é o
que, muitos anos antes, escrevendo a partir de uma perspectiva diferente, eu
chamei de ‘identicalidade[identicatily], declara Mitchell. Quando “o sol brilha”,
ela acrescenta, “não estou necessariamente brilhando também
1
(2005, p. 35).
A teoria é mais ou menos vulnerável, podendo ou não permanecer, o que vai
depender de sua condição de sobrevivência à destruição, em virtude de que
ela seja fundamental ou suficientemente boa. Entretanto, assim como uma boa
mãe, a teoria, seja psicanalítica ou estética, como neste caso, deverá abdicar
da vontade de saber tudo, deve se retirar do jogo narcísico da identicalidade,
cujo pressuposto, em paralelo aos problemas da maternagem, seria o de
conhecer todas as dores que o bebê possa vir a ter.
Ainda que aparentemente não desejando fazê-lo, Mitchell chega a
propor uma “teoria psicanalítica da história da arte”; ao defender que a
destruição da teoria o pode ser associada a uma acepção “benigna” ou
“domesticada” de jogo, e assim assumindo os riscos de que o objeto (leia-se, a
teoria) possa ou não sobreviver, a psicanalista argumenta que não é a
resistência do objeto que assegura o sucesso de sua permanência. Há, para
ela, uma importante diferença qualitativa entre os vários modos de criar.
O artista excepcional aceita grandes riscos; lida com a
possibilidade de não-sobrevivência do objeto, sua o-retirada no
momento preciso, mas possivelmente quando é tarde demais. A arte
em que o artista é igual à sua criação significa relação objetal; já a arte
que faz retiradas, temendo pela morte do objeto, uma vez confrontado
1
A expressão original é when the sun shines, I am not necessarily shining too”. Remeto-me a
ela porque o verbo “shine” comporta uma ambiguidade de difícil tradução.
286
à sua destrutividade, permanece próxima da magnitude (Mitchell, 2005,
p. 36).
Aquele que usar a teoria (e que não regrida ao se relacionar com ela),
“seja ele clínico, artista, crítico, historiador ou paciente, a ajudará a se
transformar e sobreviver, ou a sobreviver e, então, mudar” (p. 36). Ora, um
acordo de cavalheiros pode, com efeito, acabar com uma psicanálise; a
aceitação tácita do bate-papo em sessão nada mais é do que um modo mais
sofisticado para se evitar a loucura no interior do setting, loucura de todos nós
a ser vivida na presença de um outro. Paradoxalmente, o próprio evitamento
também que proporciona funcionamentos loucos e regressão a relações
objetais. No caso do uso de objeto, do contrário, inaugura-se o processo da
individuação, uma vez que está prevista a hora que o outro não vai mais existir,
já que o sujeito dele não depende mais.
Chegando a esse ponto, é possível observar em que medida a
exposição de Mitchell permite repensar o campo das importações da
psicanálise. Trata-se, a meu ver, de uma ética-estética: se o campo analítico é
ilimitado e suas possibilidades de investigação nunca acabarão, isso não
justifica que se deva endossar que uma espécie de psicanálise (pensemos na
prática do consultório, por exemplo) tenha que permanecer ad infinitum. A
radicalidade da experiência analítica leva a conclusões desta ordem. O
horizonte de realização de toda psicanálise é que o paciente possa um dia dela
prescindir, ou, em termos mais precisos, que a própria psicanálise venha a
prescindir de si mesma. Nessa perspectiva, se o uso da teoria psicanalítica
ainda se sustenta por algum motivo no contexto da reflexão estética, é
provavelmente porque sobreviveu aos ataques de destruição.
Ainda com respeito ao assunto, cabe mencionar uma ressalva trazida
por Mignon Nixon na introdução deste mesmo número de October. Segundo
ela, a apropriação direta da teoria do uso pode ser tornar perigosa, pois daria
margem a um efeito de domesticação que, de acordo com a sua própria
observação, já vem ocorrendo no cenário da arte recente. Ao introduzir, no
campo estético, a psicanálise do jogo, certas obras “frequentemente operam
287
numa zona confortável de contato modesto com objeto”, ou, noutros casos, no
“engajamento vago de intersubjetividade com o outro. Na arte e na crítica
contemporâneas”, ela acrescenta, “duas posições derrotadas identificação
com o texto enquanto doxa e uma relação doentia com o objeto ou com o outro
– evitam os riscos que envolvem o uso da teoria” (2005, p. 04).
Lacan teria sido um dos principais responsáveis a ventilar novos ares na
relação do leitor com o texto/obra, uma vez que ele ataca a questão estrutural
da “relação do sujeito com os sistemas de representação” (Lacan, 1984, p. 04).
Nestas condições, a questão sobre a transferência se torna assunto central: se
o psíquico está inscrito na linguagem e na relação com o outro, então é
fundamental dar atenção ao componente (psíquico) de alienação ao qual toda
leitura esta sujeita. O grande problema, neste sentido, teria sido o
recalcamento, feito pela crítica, deste fator alienante, substituindo-o com a
“excessiva identificação ao texto” eis a identicalidade vivida hoje. Esse
fenômeno faria desaparecer, do escopo teórico-crítico, o recurso aos textos
técnicos de Freud, retorno salutar que é feito por Juliet Mitchell neste ensaio
para October.
*
Retorno salutar que é também praticado pelos críticos-historiadores aqui
selecionados. Usando a teoria cada um a seu modo, suas reflexões sobre arte
se concentram em categorias essenciais à práxis psicanalítica.
Como adiantei na introdução da pesquisa, uma parte considerável da
crítica de arte norte-americana atual se empenha em discutir problemas
referentes a Além do princípio de prazer, a saber, a questão da pulsão de
morte e da compulsão à repetição; Foster é um dentre esses críticos, como se
pôde verificar em The return of the real (capítulo 3). Didi-Huberman inclina-se,
por outro lado, e dentre outros assuntos, à metapsicologia da figurabilidade
(capítulo 4), que aflui na mesma direção. No meu ponto de vista, o conjunto
288
das reflexões almeja antecipar, numa certa medida, o pensamento analítico,
ainda que ela não seja mencionada.
O movimento de retorno (Nachträglichkeit) feito por ambos vai em
direção às categorias de desligamento e de implicação, assim como foram
costuradas no decorrer deste exame. O conceito de irrepresentável, proposto
André Green (1993), Murielle Gagnebin (1994) e, mais recentemente, a quatro
mãos, César e Sára Botella (2005), nunca é mencionado pelos filósofos, a não
ser no caso de Didi-Huberman que, na situação, não o compreende segundo
as mesmas condições.
2
O que também não poderia ser diferente: Green
apresentava seus primeiros resultados no exato momento em que nossos
pensadores lançavam as intervenções que foram aqui investigadas (entre
meados de 1980 e meados de 1990). La figurabilité psychique, livro em que o
casal Botella estuda com profundidade o problema da irrepresentabilidade,
seria publicado apenas em 2000. Porém, as investigações se veem conectadas
neste exato ponto cego: é ao lidar com o irrepresentável que a reflexão estética
se depara com a realidade do processamento primário.
Deste modo, ainda restam indagações a serem feitas antes de concluir:
como é possível que a pulsão de morte tenha pertinência em relação ao
fenômeno estético, uma vez que ela não é tão “plástica” quanto a pulsão
sexual? O que deriva mais um problema: se d algum modo serve ao fenômeno
artístico, é porque a pulsão de morte se aproxima do trabalho de figurabilidade.
As estruturas teriam portanto uma composição idêntica? Pode-se dizer que
existe uma relação genealógica entre elas?
Além de ser autônoma em relação à libido, é sabido que a Todestrieb
funciona conforme a mecânica do retorno: sua ânsia em transformar o desejo
em desejo de não desejar se expressa por um movimento de regresso a
lugares anteriores ao desejo. “Esta tendência regressiva para um impossível
‘antes’ é o que chamamos Thanatos”, indica Piera Aulagnier. “Não é a morte
formulada pelo discurso que é desejada, mas antes este impensável para o
discurso: antes da vida, antes do desejo, antes de um prazer que não seja
2
Inaugurada com a pintura da Idade Média, a questão sobre o irrepresentável possui uma
história cultural própria. Afinal, talvez ainda perguntem os artistas, como representar o deus ou
a sua encarnação?
289
alterado por um momento onde o desprazer é ou se possível; enfim, um
‘antes’ de um ‘ter que representar’, sinônimo de ‘ter que existir’” (1979, p. 56).
Ora, pensar em “antes ou depois” remete à questão do tempo, e a
diferença entre pulsão de morte e pulsão de vida reside neste tema crucial.
Não “sendo apta a acolher representações”, é quase impossível flagrar a
pulsão de morte individualmente (Mezan, 2002, p. 135). No entanto, conforme
certas coordenadas espaço-temporais, pode-se dizer que a pulsão de morte
adentra a problemática do objeto e, “logo, do espaço e do corpo”, assim como
a dos afetos. Mas afinal, como? “Espera, angústia da perda, ambivalência,
amor, ódio, destruição-alucinação do objeto”, eis as representações da pulsão
a serem vividas na pele. Aqui a representação é, por conseguinte, não-
representação. “Objetivamente, o tempo passa de qualquer jeito”, atesta
Zygouris, mas a repetição e a colocação da pulsão “em ato invisível” e
independente de qualquer “espera ou investimento de objeto” selam a
presença dominante de Thânatos. Ao contrário de Eros, a pulsão de morte
operaria “em silêncio” (Mezan, 2002, p. 135). Se bem que, a rigor, o há tanto
silêncio assim: se do lado de cá (pulsões de vida) temos o colorido das
fantasias, dos desejos ou objetos, do lado de (morte) teremos o barulho do
trauma, da repetição e do estranhamento.
As primeiras insatisfações levam a subjetividade à repetição. Em sua
origem, a pulsão o é boa ou má. É “apenas devido à inadequação do objeto
e à impotência do sujeito em encontrar o objeto adequado que ela se torna
destruidora do objeto tanto quanto do sujeito” (Zygouris, 1999, p. 15). A
passagem que conduz da forma ao amorfo receberia contornos mais sensíveis
se entendêssemos que
Quando conseguimos realizar a transformação da pulsão até então
utilizada na manutenção da imobilidade da estase em desenvolvimento e
movimento, torna-se então possível utilizar a transferência para transformar a
tendência à destruição ativa do objeto externo em força de transformação e
produção (Zygouris, 1999, p. 15).
290
Eros se relaciona tradicionalmente às propriedades de ligação, enquanto
Thânatos se dirige aos processos de desligamento. André Green assinala,
contudo, que as duas operações podem ocorrer em ambas as pulsões, assim
como se no par sadismo-masoquismo, por exemplo. Nessa perspectiva, o
desenvolvimento que ele faz na teoria das pulsões nos serve em sentido
estratégico. Segundo André Green, haveria nas pulsões de vida uma função
“objetalizante”: trata-se além de uma capacidade para se criar relações de
objeto de uma competência para “transformar estruturas em objeto, mesmo
quando o objeto não está mais diretamente em questão”. A partir de
investimentos significativos, sua função primordial é dotar de propriedades
objetais a matéria que é anobjetal; noutros termos, a operação consiste em
fazer, do próprio investimento, objeto.
Já no caso contrário,
a meta da pulsão de morte é de realizar ao máximo uma função
desobjetalizante através do desligamento. Esta qualificação permite
compreender que não é somente a relação com o objeto que é
atacada, mas também todos os substitutos deste o eu, por exemplo,
e o próprio investimento na medida que ele sofreu o processo de
objetalização (...)[;] a manifestação própria à destrutividade da pulsão
de morte é o desinvestimento (Green, 1988, p. 65).
Aventemos uma hipótese metapsicológica: se em algum momento as
ligações se tornam disponíveis à pulsão de morte na mesma medida em que
as pulsões de vida se articulam às representações –, só lhe seria possível fazê-
lo em relação àquilo que se inscreve como irrepresentável. Isto posto, os
mecanismos de defesa contra a angústia podem se ressignificar a partir da
dualidade pulsões de vida pulsões de morte. Ainda de acordo com Green,
quanto mais próximo se está da defesa primária o recalque (Verdrängung) –,
“mais a polaridade ligação-desligamento vem acompanhada de um religamento
no inconsciente”; mas quanto mais próximo se está das defesas secundárias
recusa (Verleugnung), foraclusão (Verwerfung) –, e portanto mais afastado do
recalque, constata-se a presença maior do desligamento, que limita ou impede
291
a existência de religações. O “sucesso do desinvestimento desobjetalizante” se
manifesta por meio de um sentimento de “morte psíquica (alucinação negativa
do eu) que, às vezes, precede por pouco a ameaça da perda da realidade
externa e interna” (Green, 1988, p. 67).
Para além do princípio de prazer, junto à pulsão se encontra a
compulsão à repetição, entrelaçadas, aliás, “em comunidade íntima”, como
indicara Freud (1996[1920], p. 22). Essa comunhão, que visa restabelecer o
estado anterior da vida anímica, não escapa entretanto à necessidade de “ligar
as moções pulsionais que chegam, substituir o processo primário que as
governam pelo processo secundário, transformar sua energia de investimento
livremente móvel em investimento de predominância quiescente (tônica)”.
Assim, o princípio de prazer é uma tendência que serve às conjecturas da
pulsão: o trabalho psíquico de ligação “seria uma função preparatória destinada
a acomodar a excitação para logo tramitá-la definitivamente em prazer de
descarga” (p. 60). Como se sabe, na organização temporal do aparelho
psíquico surgem primeiro os processos não-ligados (primário), que adiante
receberão ligações (secundário).
Tomadas as devidas proporções, a ação do desligamento o poderia
ser considerada um terceiro estrato tópico, isto é, um processo por assim dizer
terciário?
*
As noções de representabilidade e presentabilidade se articulam
espontaneamente com o trabalho de figurabilidade. O conceito de
representação, ainda que originado no pensamento filosófico, tornou-se uma
questão fundamental da clínica psicanalítica. Na história das ideias freudianas,
o problema se manifesta no contexto da tradução de Darstellbarkeit. A opção
pela figurabilidade não é, com efeito, hegemônica. Na Standard Edition inglesa,
por exemplo, os tradutores sugerem o termo representability. Na França, a
equipe responsável pela última edição das Obras Completas de Freud preferiu
292
a expressão “presentabilidade” (presentabilité). Desse modo, o conceito vai
criando controvérsias ao longo de suas sucessivas traduções.
Françoise Coblence recorda que a definição original pertence a Konrad
Fiedler – filósofo que Freud provavelmente não leu sendo publicada em
primeira mão em Sobre a origem da atividade artística, de 1887 (Coblence,
2005, p. 62). Para ela, a alternativa da figurabilidade mascara a dimensão do
sensível por debaixo do paradigma figural, fazendo com que a interpretação se
incline ao figurativo. Se, por um lado, a escolha pela figurabilidade define
ligações com o processo de concepção de imagem, por outro perderia em
acuidade metapsicológica, pois reduz o sensível ao visível. No entanto, o uso
de presentabilidade, tal como defendido por ela (e pela tradução francesa
oficial), seria mais adequada a este processo que engendra pulsão e
recalcamento em um só lugar.
A partir de uma pesquisa longitudinal, César e Sára Botella sugerem
quatro formas de aparição do termo: figuração (figuration), encenação (mise en
scène), figurabilidade e presentabilidade. Psicanaliticamente falando, os Botella
sustentam que as duas primeiras opções teriam se tornado improdutivas.
Para eles, e ao contrário da opinião de Coblence, a última alternativa
presentabilidade tampouco preenche as lacunas: sua conotação “objetiva ou
objetivante” (2007b, p. 23) contradiz a teoria freudiana sobre o sonho. Segundo
a dupla, toda apresentação exige um esforço de elaboração secundária que
deixa escapar o conjunto das construções primárias, isto é, alucinatórias da
imagética onírica. Ademais, a origem cultural da categoria permite que César e
Sára Botella continuem defendendo, de maneira irrevogável, a figurabilité.
Ainda que emprestado à ciência e inusitado na linguagem corriqueira, o termo
designa “uma propriedade única e específica do trabalho do sonho cuja
existência jamais fora suspeitada até o momento e para a qual nenhum termo
já existente podia corresponder” (Botella, 2007b, p. 27).
Ainda de acordo com a dupla de psicanalistas, é a presentabilidade que
conduz à “figuração”; haveria nesta definição um processo “pictural” que
caminha do interior ao exterior, tal como se na manufatura de um quadro,
isto é, “quando um pintor se esforça para figurar um afeto, um estado da alma
293
ou ainda o conteúdo de um pensamento(2007b, p. 28). Didi-Huberman, por
sua vez, concorda com esta escolha, e justifica: “Eis porque a tradução de
Darstellbarkeit (...) por figurabilidade é pertinente: ela inclui a tradição secular
da ‘tropologia’ grega e latina, sob a autoridade das palavras tropos e figura”, ao
passo que indica a “qualidade de ‘presença’ e de eficácia que seus efeitos (as
figuras elas mesmas) carregam” (1990, p. 186).
O que Coblence esquece é que “plástica” e Darstellbarkeit andam
sempre juntos. Uma vez que não são exclusivos do mundo visual, podem advir
de qualquer qualidade sensível. Apesar disso, o lapso da autora tem a
vantagem de ampliar, indiretamente, sua própria concepção de “plástica”. “Se”,
ela prossegue, “com o plástico o acento dado é maior sobre a apresentação do
visível que sobre sua representação, a profundidade ou a heterogeneidade do
campo se manifesta por outros meios como a construção perpectivista, pela
cor” (2005, p. 95). Com isso, o confronto com o mundo externo exigiria, da
presentabilidade, o controle criativo e a eleição de um suporte, sem o qual o
construto (a obra de arte) não é compartilhado. Seu funcionamento é
semelhante ao da criação.
É sabido desde a Interpretação dos sonhos que a vida em vigília exige
um sistema de percepção consciente cujo objetivo é dotar de inteligibilidade os
fenômenos do mundo. Portanto, pensar nas controvérsias da tradução não é
uma simples questão de palavras, mas remonta a uma escolha terminológica
inequívoca: além de atender à imanência da figura/forma nos produtos
psíquicos, sua definição strictu sensu sugere levar em consideração o trabalho
do sonho em sua profundidade. aí um funcionamento mental que engloba a
dinâmica de concepção imagética que é anterior aos processos secundários.
O que obriga fazer um retorno à atividade pulsional de ligação que
concerne ao trabalho onírico, momento em que a representabilidade pode ser
enfim reelaborada. Ora, aquém da organização secundária encontram-se
imagens de natureza perceptivo-alucinatória que são características do
trabalho de figurabilidade. Esta produção de imagens é interferida pela
atividade pré-consciente, assim como a sessão de análise é atravessada, do
início ao fim, por um movimento de regrediência que se prolonga ao
294
inconsciente. Trata-se de um “estado de sessão”, como define casal Botella,
domínio da “memória sem lembrança” (2007b, p. 31). Nessa medida, se é
verdade que, ao recebermos a obra, seríamos por ela analisados, isso
acontece porque a obra nos faz um convite que equivaleria a esse estado de
sessão. “A ‘propriedade essencial’ do trabalho do sonho”, isto é, “a coerência
pela Figurabilidade, seria uma ‘coerção’ inerente à vida psíquica noturna”,
escrevem os psicanalistas, coação a ser entendida como “definição freudiana
da pulsão tal como ela aqui se apresenta: ‘uma medida de exigência de
trabalho imposta ao psiquismo em consequência de sua relação com o
corporal” (2007b, p. 35).
Conquanto o trabalho de figurabilidade tenha sua origem no domínio
onírico, não se deve restringi-lo ao sonho. Como indicam os psicanalistas, a
própria prática clínica demanda que a figurabilidade venha a ser uma estratégia
de intervenção. Por outro lado, como desejo sugerir, sua mecânica convém à
compreensão de questões estéticas atuais. Ao fim e ao cabo, o conceito abre
espaço para a análise da “regressão regredienteem que os fenômenos vão
ganhando forma, movimento de “frente para trás” que é perseguido pelas artes
moderna e contemporânea, cuja dinâmica não escapa aos olhares de Hal
Foster e de Georges Didi-Huberman. Antes de mais nada, suas interpretações
pretendem recuperar aquilo que se encontra no momento prévio à
representação. Ora, falar qualquer coisa a respeito do inconsciente implica
saber que toda representação de palavra é apenas uma tentativa mais ou
menos hesitante para se chegar ao conhecimento da matéria investigada. Na
esteira de Freud, é como se Foster e Didi-Huberman almejassem realizar
aproximações que trazem à tona características do mundo “inconsciente” das
poéticas por eles analisadas. Do estético ao psíquico, trata-se da
especificidade de um trabalho “que se produz unicamente dentro do universo
regrediente”. Estamos em face de um espaço pararelo ao do sonho, com efeito,
mas de qualquer modo “para além das representações de palavra” (Botella,
2007b, p. 31-2).
Estas articulações caminham na contra-mão de Thânatos; procuram, na
justa medida, inverter as polaridades e realizar novas construções. Partindo da
regrediência, são modos de pensar que tendem ao arranjo de ligações,
295
possibilitando uma inteligibilidade ao eu-espectador. E este “movimento
antitraumático de sobrevivência” (Botella, 2007b, p. 33) não deve ser
confundido com algum tipo de mecanismo de defesa. Ora, o retorno ao real e
ao alucinatório, ao pano e ao incarno pretenderia, em princípio, “comunicar o
incomunicável”, uma vez que eles mesmos seriam consequências do trauma.
Não é apenas de ligação que o novo poderá surgir. Como princípio disjuntivo,
“recusa da permanência do mesmo”, o corte promovido pela pulsão de morte
“pode ser a provocação na natureza e na cultura da emergência de outras
formas, posto que opera desligamentos, impõe limites e”, o que é mais
fundamental, “novos começos, ao invés de reproduzir o existente” (Frayze-
Pereira, 2005, p. 311).
O real lacaniano possui equivalência na concepção da realidade
psíquica em Freud. Mas na categoria inaugurada pelo psicanalista francês
atrelava-se “uma ideia de morbidez, de ‘resto’ ou de ‘parte maldita’ tomada,
sem mencioná-lo, da ciência herotológica de Bataille”. Ora, tanto esta quanto
as demais categorias aqui trabalhadas não se distanciam muito de uma
“viscosidade” para com a morte. Não é coincidência, portanto, que a concepção
batailleana do informe ronde o cenário de tempos em tempos. Nesse sentido,
as torções que fundaram o real não escapam à análise crítica de Foster: “Ali
onde Freud construía uma realidade subjetiva fundada na fantasia”, indica
Elisabeth Roudinesco, “Lacan pensava uma realidade desejante excluída de
toda simbolização e inacessível a todo pensamento subjetivo: sombra negra ou
fantasma que escapa à razão” (1994, p. 226). Na topologia dos nós, o real
também se atravessado de fora a fora pelo conceito de “vazio-mediano”
retirado do taoísmo; encontra-se portanto a meia distância entre o inominável,
o inefável e o impossível.
A interpretação proposta por Monique Schneider ao “sonho de um
homem”, que aparece em meio ao “Infantil como fonte do sonho”, parte B do
quinto capítulo da Interpretação, faz com que as características reunidas por
Lacan no conceito de real se revelem mais freudianas do que nunca. Na
ocasião, o criador da psicanálise pretende mostrar como o sonho se utiliza dos
restos diurnos. A cena onírica é quase prosaica: um homem dois meninos
brigando, irmãos provavelmente o que a descrição de Freud insinua, mas
296
sem explorá-lo). Um deles é derrubado, e o sonhador se projeta para castigar,
com sua bengala, o agressor; este, por sua vez, busca proteção ao lado de
uma mulher, que por suposto seria sua mãe. Ela se vira para o sonhador e lhe
lança um “olhar terrível”, de modo que ele escapa apavorado. O medo se
explica: “Em seus olhos se vê a carne vermelha que surge da pálpebra inferior”
(1996[1900], p. 215, grifos meus).
Na opinião de Schneider, trata-se do
Horror de um olhar transformado em boca, em sexo feminino...
O olhar já não pode funcionar como aquilo que vem circunscrever,
limitar, represar os poderes da garganta-precipício. Ele atualiza por si
a carne aberta e irrepresentável (...) Sonho-fornalha, em que
aparece, na carne avermelhada, o que podemos discernir como um
limite do imaginário freudiano, espécie de beirada além da qual nada
mais se dá a ver (apud Mezan, 2002, p. 45)
A partir das associações do paciente, Freud cria uma malha em que os
elementos vão se organizando aos poucos. A imagem da carne vermelha teria
sido provavelmente estimulada pela visão, no dia anterior, de uma mulher que
o havia interpelado. Através de uma complexa cadeia de pensamentos, a
mulher é associada à ação de urinar: o sonhador se lembrava de tê-lo feito ao
longo de um passeio dia antes; quando a viu, no sonho, ela estava na mesma
posição, e, assim, a carne à mostra estaria relacionada à “abertura” dos
genitais femininos, visão que se remete à castração. Não seria possível que
esta imagem se tornasse convidativa ao horror do retorno ao indiferenciado?
Freud por ele mesmo acrescenta que “isso visto na sua infância” ou seja, os
genitais da mulher reapareceria “numa lembrança posterior como carne viva’
ou ferida” (1996[1900], p. 215).
Para o ficar apenas na teoria, uma vinheta que Hanna Segal recolhe
de seus atendimentos aufere um sentido bastante afiado ao argumento.
Durante uma sessão, Segal conta a seu analisando que deveria se ausentar
por algumas semanas; o afastamento havia sido combinado com antecedência,
297
de modo que o paciente estava ciente disso. No encontro seguinte, ele relata
que havia experimentado, ao longo de um passeio pelo parque, dias depois da
referida ausência, uma sensação clara de que iria morrer a qualquer momento,
impressão que chegaria a “paralisá-lo”. Narrando o fato, não deixa de dizer à
analista que também desejara “matá-la” na ocasião, responsabilizando-a por
ter sofrido aquela experiência alarmante. Assim, invadido pela percepção
gélida da morte, seu analisando teria experimentado, no episódio do parque, “a
sensação, entre outras, de não ter membros, olhos, boca”. O que ele descrevia,
conclui a psicanalista, era algo como ser “um embrião disforme”.
Este paciente sempre tinha manifestado uma enorme
resistência com respeito a qualquer ideia de separação. Sua reação
podia ser entendida como o desejo de retornar ao ventre da mãe. Mas
uma vez que experimentou a vida, o retorno ao ventre é um processo
violento, mutilador, provocando o retorno ao estado de embrião
disforme, pois somos obrigados, como ele havia fantasiado, a cortar os
próprios membros, desfazer-se dos órgãos dos sentidos. Não se trata
de um retorno anódino ao ventre materno, mas de uma expressão
violenta da pulsão de morte (Segal, 1988, p. 39).
Ampliando as considerações clínicas, estaríamos autorizados a aventar
que a dor
(Frayze-Pereira, 2005) seria um canal para a satisfação da pulsão de
morte? Se é o caso, então se pode sugerir que este lugar psíquico abrigaria o
conjunto das imagens mutiladas, monstruosas e abjetas da
contemporaneidade.
Ao aprofundar sua investigação acerca do conteúdo infantil que
condiciona o trabalho onírico, Freud se lembra de um sonho que havia
acontecido numa condição em que ele se encontrava “cansado e faminto” após
chegar de uma viagem. Na narrativa, o sonhador (Freud) tem a vontade
(insatisfeita) de comer “pudim” havia três mulheres na cena, dentre as quais
uma o impediu de comer; em seguida, ele tenta vestir uma parca que o lhe
servia, quando um homem desconhecido também o inibe de fazê-lo, dizendo
que o casaco não era seu.
298
Com relação à insatisfação de comer pudim, Freud tem a certeza de que
a mulher que o privara do Knödl era a manifestação de uma personagem
encontrada na primeira novela que havia lido, isto por volta dos seus treze
anos de idade. Esta mulher, no caso, seria a personagem da mãe, aquela que
“dá a vida” e o “primeiro alimento”. A cena faz com Freud se recorde de um
episódio com a sua própria mãe, que no sonho a mulher esfregava as mãos
para fazer os bolinhos: Freud se lembra que a mãe tentava fazê-lo crer que o
homem era originado do barro, teoria que mesmo ao pequeno Freud não era
convincente. Para persuadi-lo, ela friccionou uma mão com a outra, soltando
pequenas escamas de epiderme, provando assim que o “ao pó voltarás” seria o
destino final do todo homem. “Meu assombro diante dessa demonstração ad
oculos fora ilimitada”, relembra, “e me rendi ao que depois veria expressado
nas seguintes palavras: ‘deves uma morte à natureza’” (1996[1900], p. 219).
Em seguida, as associações terminarão com a lembrança do professor Fleisch,
cuja assonância se remete, não por acaso é o que penso –, a algo
comestível, “carne”, especificamente.
Afora alguns pormenores, todas as cenas lidam com um pensamento
inconsciente de impossibilidade. Cabe destacar que as imagens criadas nesta
figurabilidade conjuram o materno e a morte em plena concomitância. O seio,
primeiríssima fonte de alimentação e beleza, se articula no sonho ao caráter
inevitável da morte, conteúdo irrepresentável por excelência e ao qual se
delega um “retorno ao pó”, como se diz. E antes de ganhar o colorido do desejo
e da fantasia, o seio é nada mais que... um pedaço de carne. Assumindo a
função de objeto originário, o seio vai deixando marcas, rastros sensório-
perceptivos que podem se combinar a experiências psíquicas de angústia,
muito próximas de um afeto sem objeto ou de um vazio sem nome. Em vista
disso, autorizo-me a aventar que as associações marginais
concentradas neste
sonho terminam por antecipar a existência de Thânatos, conceito que Freud
viria a elaborar somente vinte anos depois. Chegando perto de Além do
princípio de prazer, é bem provável que o inventor da psicanálise tenha se
lembrado, mesmo que num relâmpago, que sua teoria sobre a “posterioridade”
esteve sempre correta.
299
Não é necessário ir muito mais longe. A exploração de imagens
mutiladas que Hal Foster executa pela via da abjeção ganha ampla
significância quando posta lado-a-lado à noção de incarno, tema preferido de
Georges Didi-Huberman. A meu ver, ambos promovem um retorno à
modernidade para então se lançarem ao contemporâneo. No caso do primeiro,
tal constatação revela fina coerência com a sua concepção particular de
vanguarda, pois o resgate da teoria sobre o parallax convém ao
estabelecimento de relações diretas entre as duas temporalidades.
De um lado a outro, pode-se sugerir que a operação do amorfo,
conforme desejo defini-la na esteira da teorização de Didi-Huberman, e que a
princípio vale para a arte moderna, conseguiria “sonhar” com o momento pós-
moderno da arte, servindo também à análise das imagens traumáticas feita por
Hal Foster. Aberta à regrediência, a imagem contemporânea se revela a partir
desta estrutura. Nestas circunstâncias, a operação em jogo condiz a um
movimento que refaz os traçados da formação, seguindo o caminho que parte
da forma formada e reescreve o trabalho da figurabilidade que a instituiu. Não
me parece, por um lado, que a categoria venha a ser um sinônimo para a
anamorfose de Lacan, no sentido do que ele a concebe como manifestação do
fantasma lico, “encarnação imaginada do menos-fi [(-φ)] da castração” (1998,
p. 88). E é assim que, por outro, também se diferencia do informe, na medida
em que Bataille o desloca ao inacabado da forma, portanto a um processo que
para no meio do caminho. Dele, no entanto, mantém-se o interesse pelo
inassimilável (Roudinesco, 1994, p. 150), o que permite opor o amorfo às
modalidades de recepção que ambicionam incluir tudo no pensável.
O trecho de Foster a seguir não deixa dúvidas quanto ao objeto de
interesse aqui invocado:
Estas condições extremas são sugeridas por certas cenas de
desastre, expandidas por meio de significações como sangue
menstrual e descarga sexual, vômito e fezes, decadência e morte. Tais
imagens evocam o corpo virado do avesso, literalmente o sujeito em
forma abjeto, descartado. Mas elas também evocam o fora virado para
dentro, o sujeito-como-figura invadido pelo objeto-olhar (1996, p. 149).
300
O indesejável, o incontrolável, o impossível e o irrepresentável: isso tudo
que não se pode ligar, seja pelo lado da libido narcísica seja pelo lado da libido
objetal, é o tema maior na reviravolta freudiana de 1920. Sujeitada à
compulsão à repetição e ao processo primário – cuja energia permanece livre –
, a pulsão de morte se encontra para fora do sexual, pois não necessita do
objeto (seja ele total ou parcial). Mas por que falar em pulsão de morte e não
em pulsão do olhar (Schautrieb) neste momento? A meu ver, porque estamos
lidando com algo pré-sexual e, logo, anterior à castração e ao surgimento do
objeto psíquico. A sensação de perigo da pulsão de morte se justifica pelo fato
de que a ausência da ideia de morte no isso não é incompatível com a
percepção da angústia de morte no eu. A morte psíquica sentida no eu pode
conduzi-lo, para além do narcisismo de morte, a sensações de destruição em
virtude de um “transbordamento, a invasão, a equalização introduzida pela
pulsão sexual não-ligada” (Green, 1988, p. 28).
Vejamos na origem. Com relação ao dualismo pulsional, segundo Freud,
O modo em que as pulsões destas duas classes se conectam
entre si, se misturam, se ligam, seria ainda totalmente irrepresentável;
no entanto, em vista que isso acontece de maneira regular e em
grande escala, uma suposição indispensável dentro de nosso
argumento (1996[1923], p. 42, grifos meus).
E ele continua:
Uma vez que tenhamos adotado a representação {a imagem}
de uma mistura entre as duas classes de pulsões, se nos impõe
também a possibilidade de uma desmistura mais ou menos completa
entre elas. Nos componentes sádicos da pulsão sexual, estaríamos
frente a um exemplo clássico de uma mistura pulsional a serviço de um
fim; no sadismo é tornado autônomo, como perversão, o modelo de
uma desmistura, ainda que não levada ao extremo (p. 42).
301
Surpreendentemente, é a sublimação que opera aqui a desmistura das
pulsões (Freud, 1996[1920], ps. 55-7). Nestas circunstâncias, funcionando de
modo avesso à mecânica defensiva, a sublimação faz desligamentos no interior
do conjunto pulsional. Como contrapartida, há uma liberação de pulsões que se
ligam à destrutividade. Assistimos, neste momento, a uma inversão peculiar:
em termos metapsicológicos, a sublimação não estaria aqui a serviço de Eros,
mas de Thânatos. Desse modo a repetição, forma basal do funcionamento
psíquico, seria portanto uma vicissitude construtiva e não destrutiva da pulsão
de morte (Reechardt, 1988, p. 54). O paradoxo reside no “que o aparente
‘enriquecimento’ do eu, beneficiado pela crença no apoio ligado ao aumento da
libido narcísica, sob auspícios da libido de objeto”, permitiria em termos de
ação à pulsão de morte (Green, 1993, p. 300). Sob esse ângulo, toda criação
pressupõe, em algum momento, a destruição. A diferença é que no momento
criativo a pulsão visa realizar uma função objetalizante, tal como foi indicada
por André Green: fazer dos objetos objetos do eu, ou, em outras palavras, e ao
contrário do que pensa Lacan,
3
fazer da coisa objeto.
Para o casal Botella, a categoria de pulsão é concebida, mesmo em
Freud, no contexto de um aparelho psíquico que quase o prevê espaço aos
processos regredientes. Sublinhando o aspecto progrediente das ligações
psíquicas, Freud teria insistido na tese de que o modelo não sobrevive sem o
princípio da percepção-identidade, responsável imediato pelas representações
de palavra. Em Freud, o princípio seria encontrado da seguinte forma: se
alguma coisa existe no eu como representação é porque pode ser
reencontrada na percepção da realidade psíquica. Em outras palavras, isso
significa que a teoria freudiana das pulsões seria bastante dependente da
representabilidade e da secundariedade. Porém, não é menos verdade que
nela uma abertura ao que sobrevive aquém da representação. “Uma delas é a
ideia de que o pensamento por representações de palavra não é a única forma
existente do pensar” (Botella, 2007b, p. 47).
Explorar estas condições pré-lógicas de raciocínio implica compreender
a metapsicologia como uma experiência radical de negatividade. O negativo,
3
Sublimar é “elevar o objeto à dignidade da coisa”, escreveu (Lacan, 2000).
302
que por definição é tão irrepresentável quanto o real ou o amorfo, se
transforma em figura no fundo da investigação acerca da figurabilidade. Ora,
como seria possível articular o irrepresentável às representações, isto é, ao
princípio da inteligibilidade da imagem? Na minha opinião, é isto o que desejam
propor as metateorias de Hal Foster e de Georges Didi-Huberman: trata-se de
uma discussão clínica, no sentido extenso do termo, que no entanto não se
remete à experiência da sessão. Assim como ocorreu a Bataille, Leiris e
Artaud, é como se Foster e Didi-Huberman tivessem sido “atravessados pela
aventura teórica do freudismo” embora seu “interesse pela doutrina vienense”
nunca tenha dependido “da prática da análise” (Roudinesco, 1994, p. 135). Em
seu lugar próprio, a reflexão estética contribui com a teoria psicanalítica da
percepção, tentando obturar seus lugares “atópicos”. Como dizia Freud, o
conhecimento psicanalítico não é exclusivo; os artistas os críticos? chegam
a verdades analíticas antes dos psicanalistas, ainda que por meio de diferentes
canais.
De acordo com Julia Kristeva, cabe ao psicanalista dar sentido e forma
ao que não tem representação, uma vez que a experiência analítica conduz o
sujeito às fronteiras do pensamento, reconciliando-o, na volta, com o fora-do-
tempo que é a pulsão (1997, p. 24). Com isso, a proximidade das categorias
permitiria traçar alguns paralelos “orgânicos”: assim como se no campo
psicanalítico, a estética, “confrontada constantemente ao mistério da carne e
da encarnação”, lida do mesmo modo com os paradoxos do irrepresentável.
“Nesse sentido”, alega Murielle Gagnebin, “ela se aproxima, mais que as outras
ciências ditas humanas, da psicanálise, cuja vocação consiste em representar
a dor psíquica, que, como se sabe, excede por natureza todas as tentativas de
representação (1984, p. 06). Perseguindo objetos com alto grau de parentesco
atos fugidios, complexos, impalpáveis –, psicanálise e estética se esclarecem
em mútua relação.
Em sessão, no lugar de interpretar, figurabilizar, propõe o casal Botella.
Atitude semelhante à reflexão dos personagens aqui selecionados. Nas
ocasiões propícias, aquilo que o analista enuncia, permitindo ao analisando
manter o investimento em suas próprias representações, tem a vantagem de
compor a potência sensorial das “imagens visuais, mas também a
303
particularidade de poder provocar um efeito contrário àquele da interpretação”.
Diante das imagens, nossos críticos-historiadores analisam e são analisados
por elas, e se pode mesmo dizer que o processo de trabalho psíquico
demandado é praticamente o mesmo. No vocabulário metapsicológico, trata-se
de produzir, no analista isto é, enquanto espectador –, “uma forma de pensar
sempre reveladora de algo do irrepresentável que existe no analisando” (na
obra); irrepresentável em virtude de conter traços perceptivos “que jamais
ascenderam à representação” mas que podem agora “se apresentar, tornar-se
inteligíveis graças à sua integração dentro de um trabalho de figurabilidade”
(2007b, p. 68).
No tocante ao circuito de arte, Gagnebin reconhece o quanto a produção
da segunda metade do século XX investiu no prazer da “descoberta, do gesto
inédito, da expressão a qualquer custo” e da “jubilação do ‘fazer’ a qualquer
preço”. São transformações consideráveis, de modo que não passam ilesas
pelo crivo da recepção. “Essa apologia do espírito da invenção exigiu
paralelamente que o crítico se tornasse um bricoleur (...) mas também jogador
e poeta(1994, p. 238). Estes personagens se tornaram indispensáveis porque
os críticos se deparam cada vez mais com poéticas nas quais a criatividade
subjuga a criação, e onde o que importa são as qualidades “especiais” do
objeto final. Nessa posição, artista e crítico tenderiam a se confundir ou a se
sobrepor; ao escrever, por exemplo, muitos oferecem “fragmentos quase
poéticos e se aliam à obra sem a preocupação de gerar a tradicional
intermediação entre obra e espectador” (Basbaum, 2001, p. 09), reclamando
assim “um domínio morfológico e estilístico análogo ao dos trabalhos”
(Salzstein, 2008, p. 232). Nestas condições, os críticos acabam por assimilar
como seus os interesses artísticos de criação, ao preço de se absterem da
formação do espectador comum.
É como se estivéssemos diante de um trabalho de figurabilidade em
segundo nível, apresentado sob a forma de texto e contrário ao espelho da
mimese. Diferente da concepção isolada de figurabilidade, segundo a definição
do casal Botella, o trabalho de figurabilidade é “um processo psíquico que,
desenrolando-se pela voz regrediente, seria determinado por uma tendência a
fazer convergir todos os dados do momento” (2007b, p. 83). Se considerarmos
304
que a obra é o “lugar da emergência, no ato mesmo da negação, da
infigurabilidade”, como propõe Gagnebin (1984, p. 16), então o trabalho de
recepção seria o seu inverso. Este trabalho, no entanto, consiste em ligar
estímulos internos e externos, “todos os elementos heterogêneos presentes em
apenas uma unidade inteligível”. A partir da “simultaneidade atemporal”, na
qual a forma originária elementar não seria a infigurabilidade mas a
“inteligibilidade alucinatória(Botella, 2007b, p. 83, grifos meus), o exercício de
da recepção encontraria outros locais de morada.
Sob estas condições, o psicanalista não pretende revelar o recalcado,
encontrar os conteúdos latentes que vivem debaixo da superfície; na abertura
do seu olhar, ele deseja apenas encontrar-criar. Artista, crítico e psicanalista
são três posições que se deixam habitar pelas visões alucinatórias. Como
declaram Cesar e Sára Botella, a circunscrição deste espaço não se remete a
“um conflito inscrito, recalcado, de um ali a ser revelado, respondente à
noção de interpretação segundo a primeira pica (...)[,] caracterizada pelo
atravessamento entre instâncias como valor de processo” (2007b, p. 237).
O estado de sessão apontado pelos autores se refere à condição
alucinatório-regrediente acessada pelo analista no cotidiano da sua escuta,
acesso que, por extensão, também ocorreria ao artista e ao espectador de arte,
no meu ponto de vista. No estado de sessão predomina o funcionamento
intermediário da vida psíquica, aspecto “talvez absurdo, monstruosono qual
se observa um eu que não seria “nem diurno nem noturno” (2007b, p. 238,
grifos meus). A meu ver, as imagens retratadas por Foster (apropriação,
abjeção) e trabalhadas por Didi-Huberman (incarno, detalhe, pele, pano) nos
remeteriam a fenômenos de mesmíssima natureza.
Ainda segundo o casal Botella, o estado de sessão permite acessar um
tipo de regressão que está aquém do nível transferencial/libidinal; sendo ao
mesmo tempo tópica e formal, ela permitiria ao aparelho “investir o sistema de
percepção até sua plena vivacidade sensorial”. Adjacente ao pensamento
anímico, esta regressão tópica experimentada na sessão é o que mais pode
“colaborar ao desenvolvimento da inquietante estranheza (2007b, p. 121,
grifos meus), espaço onde reinam o informe e o abjeto, a negatividade e a
305
pulsão. É disso que as reflexões sobre arte dizem sem falar. Olhar de dentro
para dentro significa abrir os olhos para ver, deparar-se com o irredutível de
uma experiência radical de alteridade. Com “O eu e o isso e com Além do
princípio de prazer, Freud nos teria conduzido em primeira mão ao vazio do
irrepresentável, à carne amorfa de dentro. Nessa medida, os tateamentos aos
quais nossos historiadores da arte se dedicam são similares aos da fatura
psicanalítica.
Não seria o caso de considerar que o trabalho crítico de interpretação é
constituído por uma estrutura equivalente à da interpretação psicanalítica? Em
tonalidade proustiana, Gagnebin insinua o paralelo entre interpretação e
rememoração: “É certo que a sensação mobiliza os sentidos e o espírito, até
mesmo os imobiliza”, escreve, “mas é a consideração da história do sujeito,
com suas repetições e retornos, de súbito desenrolada como um filme, que
permitirá ao absurdo medusante de imagens isoladas a se constituir em
sequências significantes” (1994, p. 257).
As obras analisadas por Foster e os conceitos empregados por Didi-
Huberman seriam avaliados, segundo a esteta, sob a luz das poéticas
“teratológicas”. Assim considerada, Gagnebin propõe uma leitura que almeja
examinar “a especificidade da relação mantida pelo artista com seu
espectador” (1994, p. 240), passando por imagens que teriam sido
determinadas segundo algumas constantes: “retorno ao arcaico”, “prazer tátil
de execução”, “abandono do humor”, “vizinhança com a pulsão”, “estranha
facticidade” e “perversão derrisória”. Centrada em artistas dos anos 1970 e 80,
sua investigação sublinha o macabro e a atrocidade, a monstruosidade, a
repugnância e a náusea. Nos trabalhos de Herman Nitsch e do grupo vienense,
por exemplo, “é o homem ele mesmo, nu e coberto de sangue animal que é
apresentado”, ou seja, cortado como um pedaço de “bife” (1994, p. 241-2). Os
suportes escolhidos cortar, quebrar, despedaçar – são características da
atividade digestiva, e, portanto, estão ligadas à oralidade. Nessa conjuntura,
porém, o “grotesco, o bizarro, o cômico desertaram a cena. Neste fim de
século, o monstruoso não tem humor” (p. 245).
306
Sua reflexão consegue chegar muito perto da discussão suscitada neste
trabalho, uma vez que se dirige aos modos de capturar o que na pulsão de
morte subsiste enquanto “força interior”, sua dimensão plástica. Afinal, tais
obras evocam uma “proximidade manifesta com a pulsão”, o que em outras
palavras equivale, para ela, ao terreno do instintivo elementar” (Gagnebin, ps.
245-7, grifos meus). Estranha distorção que merece ser observada: se estamos
na arena do pulsional é porque abandonamos o instintivo; e seu o limiar é
problemático porque visa estabelecer uma espécie de elo perdido entre o
orgânico e o psíquico. Embora ela saiba a diferença que existe entre instinto e
pulsão, Gagnebin utiliza o primeiro termo. Quanto a isso, o argumento a seguir
pode esclarecer algumas diferenças que existem entre a sua análise e a que
ora se apresenta.
Pesquisada ou sofrida, esta contiguidade [com a pulsão]
parece situar estas diferentes produções não mais no registro
costumeiro da sublimação, no sentido conferido pela teoria
psicanalítica freudiana, mas sobretudo naquele do deslocamento e,
talvez com mais certeza, no domínio da formação reativa (Gagnebin,
1994, p. 245).
Sua intervenção endossa que, no mecanismo sublimatório, no qual deve
haver os desvios de meta e de objeto, funcionam operações psíquicas como “a
reflexão, a exigência de composição, funcionamento da memória, inscrição
numa duração, a contemplação meditativa ou a liberdade associativa”
(Gagnebin, 1994, p. 245). Estes procedimentos que são elencados por ela
configuram, no entanto, apenas o domínio das elaborações secundárias.
Como vimos ao longo dos capítulos anteriores, é possível o sentido do
conceito de sublimação diante da análise das poéticas contemporâneas.
Contudo, se se considera que a sublimação é um destino pulsional e que nesta
perspectiva procura esclarecer o fenômeno da criação no seu sentido mais
amplo, não é necessário invalidá-la. Em outras palavras, substituir a
sublimação por deslocamento ou formação reativa significaria dar um passo
307
atrás: ao invés de destino da pulsão, a sublimação volta a operar como
mecanismo de defesa, o que limitaria em muito a sua extensão. “A formação
reativa”, como define a própria Murielle Gagnebin, “é, em resumo, mais um
contrainvestimento que uma elaboração criadora” (1994, p. 246). Não seria
possível atestar, ainda que no contexto da arte mais repugnante, que não há ali
uma força criadora que se manifesta através de um trabalho psíquico
substancial?
Ao que me parece, a hipótese do teratológico também não apreende o
aspecto clínico da experiência regrediente, fator esse que poderia ser incluído,
na esteira das descobertas do casal Botella, no circuito da reflexão estética
atual. Gagnebin chega a quase percebê-lo quando averigua a forma dialética
com a qual as regressões e antecipações se denotam na imagem artística
(1994, ps. 250-1). A decorrência lógica de sua teoria nos leva a crer, no
entanto, que as reações do espectador possuem uma natureza puramente
defensiva, apoiada no contrainvestimento face à imagem. Precipitando, no
espectador, certos deslocamentos (na melhor das hipóteses) ou formações
reativas (na pior), as imagens teratológicas forçariam o uso da “denegação” por
parte do espectador. Assim elas demandariam, ao eu recém-abandonado pela
proteção da “imagem-tela”, o desvio do olhar.
Ora, em vista das diversas modalidades de recepção aqui investigadas,
pode-se afirmar que uma parte expressiva da crítica contemporânea seria mais
partidária do tipo denegatório de recepção, como por exemplo indica Foster em
relação às leituras de “simulacro ou referencial” direcionadas ao pop e à
apropriação, assim como o percebe Didi-Huberman em relação às leituras da
crença e da tautologia que se dirigiram ao minimalismo.
Não “poderia ser que esses artistas procuram, baseando-se pela libido
demoníaca e recusando a tela do cultural”, questiona-se, “de modo mais ou
menos deliberado, despertar um público empanturrado e sonolento ao
confrontá-lo com figuras oriundas da regressão?” (Gagnebin, 1994, p. 250). Até
aí, concordamos. Concentrada na figura do artista, Gagnebin não se conta
de que o fenômeno estético também depende das modalidades perceptivo-
alucinatórias, traço que fora percebido de maneira astuta pelos artistas de
308
neovanguarda. A meu ver, os bichos de pelúcia de Kelley, por exemplo,
representariam um intenso questionamento acerca do caráter regressivo do
progresso moderno. O que Gagnebin não percebe, ironicamente, é que a ação
regrediente não é sinônimo de regressão no sentido mais rasteiro da
“infantilização”. Em suma, devo apenas indicar que o aspecto regrediente das
imagens abre portas ao processo de regrediência no ato da recepção. Por
conseguinte, isso também se com a crítica e com a teoria da arte dele
decorrentes. Se aqui existe um arsenal defensivo, ele nunca virá antes.
*
Como se pode notar, as categorias negativas se tornaram mais
adequadas às questões do momento;
4
servem não porque são
proporcionais às demandas do objeto de estudo, mas sobretudo em virtude de
que os pensadores aqui examinados provêm rigorosamente do campo
filosófico.
A teoria mais recente sobre o irrepresentável poderia, nesse sentido,
ligar as fronteiras da psicanálise com a teoria da crítica. Afinal, “irrepresentável”
não é o mesmo que representação inconsciente. Mas a ideia de uma
representação que se furte à consciência, e que supostamente não poderia
existir, cria margem a problemas desnecessários. Com efeito, ambas as
categorias procuram apreender quais o os limites de nosso próprio sistema
de representação (Botella, 2007b, p. 208); no entanto, o universo do
irrepresentável, que decerto implica a representação, vai de encontro a
fenômenos de ordem exclusivamente negativa que podem ser somente
nomeados, nunca representados. Sem muitos exageros, escrevem os Botella,
“podemos concluir que, nos escritos analíticos”, o uso deste termo “deveria ser
reservado àquilo que, da pulsão, não pode se inscrever no
4
As teses sobre o teratológico são apresentadas por Gagnebin em 1994; de para cá, um
distanciamento que permite chegar a conclusões que a complementem. Curiosamente, no
entanto, a autora ofereceu, quase 20 anos, uma categoria própria de “irrepresentável”,
por ela no entanto pouco desenvolvida (1984).
309
Vorstellungrepräesentant, isso que não tem possibilidade de se fixar em uma
cadeia de representações governada pelo desejo inconsciente” (p. 206).
Esta última questão que os psicanalistas propõem remonta às
capacidades de conhecer que aparelho psíquico possui. O que o ser humano
pode apreender do objeto, seja ele interno ou externo, são apenas
“emanações, qualidades que emergem dos órgãos dos sentidos,
características em evolução que repercutem sobre sua consciência”. Existe
portanto a face desconhecível
da experiência psíquica: o objeto em si mesmo é
inapreensível. Nesse sentido, o modo como conhecemos, que se via
representações de coisa ou de palavra, não passa de um meio bastante
limitado, “uma grosseira redução do vasto domínio do desconhecível” que, por
outro lado, produz seus modos particulares para atingir o conhecimento
(Botella, 2007b, p. 204).
Ao fim e ao cabo, a teoria do irrepresentável se torna bastante pertinente
às análises propostas: é inevitável postular a existência de um traço
originário”, consideram Cesar e Sára Botella, “aquele da falta, um traço
indiscernível entre a perda do objeto e aquele da satisfação alucinatória
(2007b, p. 227). Trata-se de uma inscrição revelada em negativo que é incapaz
de alcançar descarga. Sua única aparição “positiva” reside no paradoxo: o
vestígio de uma falta. “O dualismo representação-percepção, determinante
para o pensamento do homem”, nasce “com a projeção sobre a ausência,
sobre o vazio, deixados pelo objeto” (p. 73). Esta marca original terá efeitos
determinantes no desenvolvimento psicogênico: a princípio, inaugura um
domínio de indistinção que abarca a mente em sua totalidade. É comum, aliás,
experimentá-lo de noite, diriam os psicanalistas, que o sonho é a
reatualização perene daquela primeira inscrição. Ao sonhar, estamos sempre
expostos “ao risco da não-representação traumática”. Quando não se torna
pesadelo, sonhar “é uma forma imediata e momentânea de escapar ao traço
originário, graças ao reinvestimento alucinatório do objeto do qual o sonho
procede” (p. 228).
Ora, em termos psicanalíticos, como se sabe, o fenômeno da
alucinação, cuja representação é fundamentalmente inconsciente, não é um
310
evento exclusivo das psicoses. Utilizando-se do deslocamento, cabe ao
trabalho psíquico transformá-la em percepção, dirigindo-a para o mundo
externo uma vez que houve a impossibilidade de receber, no espaço interno,
uma forma aceitável para o sujeito. Como considera André Green, a vida
psíquica tende ao alucinatório “e a realização do desejo se aplica apenas a
uma parte de sua produção” (1993, p. 250).
Segundo Freud, a própria atividade onírica seria um gênero especial de
alucinação, e, na lógica psíquica, ela acaba servindo como um meio de aplacar
o desejo. Não se deve confundir, entretanto, satisfação com “prazer”, o que
possibilita falar em alucinação negativa. Se se pode afirmar, como insistem
alguns psiquiatras e psicanalistas, que a alucinação é na verdade um tipo de
negação da realidade ou da consciência, seja no caso da positiva ou da
negativa –, é somente porque a imagem alucinatória consiste numa negação
do processamento secundário, que investe no estrato primário e se justapõe,
em certa medida, à perda da realidade.
Cabe recordar que o fator regrediente também se submete ao
processamento primário, e, dessa forma, às representações pulsionais de
mesma origem. Ainda assim, os processos primários não são obrigatoriamente
um fenômeno alucinatório: “O exemplo da fantasia inconsciente mostra que o
processo primário pode permanecer aquém de sua realização alucinatória e de
sua modalidade consciente para ser ‘sonhado’” (Green, 1993, p. 227-8). Em
outras palavras, o estrato primário é aquele espaço que fica a meio caminho
entre interno e externo, entre percepção e representação; apresenta-se à
percepção como “pré-forma” e “determinação indeterminada”, matéria que seria
análoga ao aglomerado que configura o isso, ou seja, amorfa. Assistimos, aqui,
ao “trabalho do negativo” para citar a expressão consagrada por Green. A
alucinação negativa não é a ausência de representação, mas a “representação
da ausência de representação”, isto é, o reverso da representação, jogo que
envolve, portanto, o irrepresentável.
311
Nos canais da regrediência a angústia se torna o afeto principal.
5
Nos
moldes do funcionamento psíquico, não é a ausência da percepção do objeto o
verdadeiro causador de angústia no bebê: com efeito, a angústia é suscitada
por uma perda, mas no caso a perda se refere à representação do objeto, isto
é, ao perigo que o eu ainda que rudimentar sofre diante da não-
representação (Botella, 2007b, p. 60). Assim, este sentimento, que a propósito
completa o sistema, seria decorrente da carência de representações ligadas às
satisfações primárias, condição delineada pela ausência do objeto vivida como
falta de representação. A infiltração de sua ameaça, agindo sob “a influência de
fatores patógenos”, é a comprovação de que seria o “conjunto do sistema de
limites que não assegura os fechamentos necessários dos diferentes registros
da vida psíquica” (Green, 1993, p. 251). A observação de certos pacientes
levou Green a observar um superinvestimento perceptivo que se instala, de
modo irregular, no funcionamento mental; em sua dinâmica, subsistiria a
“permeabilidade vacilante ao pré-consciente” (p. 270).
Chegamos ao momento de entender porque é tão significativa a perda
da “tela” para o espectador (Foster, 1996; Gagnebin, 1994). As imagens
regredientes sugeridas pelo historiador americano e trabalhadas pelo teórico
francês seriam, quanto a isso, exemplos críticos tout court: contém em si o
gérmen para provocar cortes no jogo de interferências que vai da psicanálise à
reflexão estética. Foster e Didi-Huberman arquitetaram uma abertura que torna
possível pensar o trabalho de recepção em suas conexões com “o alucinatório,
o perceptivo, o figurável e o inscrito” (Botella, 2007b, p. 238).
Nessa medida, tais posições se revelam como antípodas da psicanálise
selvagem. Cada autor acessa a teoria psicanalítica a seu modo, dela
recolhendo o que parece mais apropriado diante do objeto (de arte) a ser
investigado. Noutro sentido, César e Sára Botella indicam, em termos
5
César Botella lembra a ocasião em que Stern estudou o compartilhamento de estados
afetivos que se instalam na troca de olhares entre o bebê e sua mãe. Evocando a experiência
do “precipício visual” que consiste em colocar a criança sobre uma mesa onde se figura, sob
o vidro, um precipício visual verifica um dado significativo: se a mãe revela medo em sua
face, a criança se distancia do precipício; mas, do contrário, se a mãe se mostra favorável à
imagem do precipício, o bebê o atravessa. A criança percebe um acordo entre seu próprio
estado afetivo e a expressão de um afeto no rosto de alguém. “Esta dimensão do visual é
fundamental nos primeiros anos de vida, pois permite o nascimento das imagens e, pelo jogo
de vai-e-vem, presença/ausência, a criação do símbolo” (2007, s/p.).
312
psicanalíticos, a existência de uma “confrontação simultânea” entre os
diferentes processos psíquicos, tensão diante da qual a psicanálise recente se
vê compelida a dizer algo: se as relações de causalidade conseguem se abster
da temporalidade linear, então a simultaneidade “entre sonho e pensamento
diurno; entre desdobramento alucinatório e memória; entre o negativo do
trauma infantil e o trabalho de figurabilidade” poderá se instalar numa realidade
psíquica singular, isto é, entre aquelas de “predominância representacional” e
de predominância “processual” (2007b, ps. 235-238, grifos meus). Entre o
representativo e o alucinatório, portanto.
Todo este trabalho do negativo concorre à questão crucial: como
“encontrar uma saída ao desejo de viver e de amar, pergunta-se André Green
(1993, p. 249), “face à destruição que ameaça qualquer coisa”? Satisfação
absoluta da onipotência ou renúncia sublimatória? Em linguagem metacrítica, é
como se Foster e Didi-Huberman estivessem lidando com restos de imagens
usadas na qualidade de objetos, conforme o sentido empregado por Mitchell
via Winnicott. Anteriores à prova de verdade, são marcas pré-
representacionais, “onomatopeicas” em certa medida. E elas resistem, com
efeito, porque permanecem muito próximas da face destrutiva de Thânatos,
mas isso apenas sob a condição do amorfo enquanto avesso da forma, tal
como pretendo sustentá-lo, cuja operações não se inscrevem no inverso da
imagem, mas num processo vivo que opera segundo inúmeras torções.
“Poiética da execução” ou “da negação”, “estética do desejo” ou “da
recusa” são outras designações que também procuram legitimar esta
modalidade de recepção: “Ligada à repetição e à rememoração”, elas liberam
“um potencial criador próprio para fazer da ‘quimera’ ou do ‘monstruoso’ um
instrumento hermenêutico”. Ampliando a psicanálise da pintura de Lacan,
Murielle Gagnebin sugere por fim que à crítica se deve a transformação das
“potências inebriantes do trompe-l’œil em uma orgânica real do dompte-regard
(1994, p. 261; 1984, p. 22). Para ela, as imagens assustadoras do
contemporâneo são o conduto que os artistas encontraram para conseguir
dizer não.
313
De minha parte, não posso compartilhar, por inteiro, dessa opinião. Feito
o percurso, não se pode concluir que das relações entre psicanálise e reflexão
estética se infere a potencialidade latente de uma resistência à destruição? Se
ambos permanecem, é porque o objeto tem força própria de sobrevivência a
despeito das urgências destrutivas. Parece que a confrontação em jogo não
representa apenas a negatividade; trata-se de uma dinâmica de criação
conjunta que se dispõe à aventura de se perder no olhar do outro, fechar os
olhos para ver.
Tais procedimentos não se endereçam apenas à psicanálise é o que
este trabalho procurou, afinal, demonstrar –, mas também à reflexão crítica
que, por certo, também o faz concomitantemente aos psicanalistas, assim
como Freud previa ou havia desejado.
314
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