Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Marcelo Rodrigues Dias
Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na
segunda metade do oitocentos
São João del-Rei
2010
Programa de Pós-Graduação em História
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
MARCELO RODRIGUES DIAS
Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na segunda metade do oitocentos
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de
São João del-Rei como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Ivan de Andrade Vellasco
São João del-Rei
2010
ads:
Este exemplar da dissertação intitulada “Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na
segunda metade do oitocentos”, de Marcelo Rodrigues Dias, corresponde à redação final
aprovada pela Banca Examinadora em 25 de junho de 2010, constituída pelos seguintes
membros:
_______________________________________________
Prof. Dr. Ivan de Andrade Vellasco - Universidade Federal de São João del-Rei
Orientador
_______________________________________________
Prof.ª Dra. Betânia Gonçalves Figueiredo – Universidade Federal de Minas Gerais
Membro Titular
________________________________________________
Prof. Dr. Danilo José Zioni Ferretti – Universidade Federal de São João del-Rei
Membro Titular
Programa de Pós-Graduação em História
Aos meus pais e irmãos! Aos que ainda compartilham radiantes suas
vidas e aos que um dia partiram pra fora do combinado.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço minhas duas queridas irmãs, Isabela e Denise,
que sempre estiveram ao meu lado e que sempre foram exemplos de pessoas
maravilhosas que só me trazem orgulho.
À querida Lurdinha pelas infalíveis orações a Nossa Senhora de
Schoenstatt que sempre me garantiu nas provas.
Aos queridos e saudosos avôs Simeão (jogador de bocha e tomador de
vinho) e Edgar (vidrado em passarinho) que partiram há meses para o lado de
lá.
Agradeço a FAPEMIG pelo fomento durante o curso, indispensável
incentivo para os pesquisadores mineiros.
Agradeço imensamente ao Professor Ivan de Andrade Vellasco pela
confiança e entusiasmo demonstrados em sua proveitosa orientação, além das
interessantes e descontraídas conversas nos intervalos da pesquisa sobre
Cortázar, Quinteto armorial, João Saldanha, etc...
À Professora Betânia Gonçalves Figueiredo pela pronta gentileza e
disposição de repartir os seus ricos conhecimentos sobre o tema da cura
abrilhantando demais esta banca. Ao Professor Danilo Zioni Ferretti, por sua
sabedoria insaciável que nos deu o prazer de compor esta banca sempre com
intervenções valiosas.
Na UFSJ agradeço também aos professores Wlamir Silva, Sílvia Maria
Brügger, Letícia Martins de Andrade, Afonso de Alencastro, Maria Leônia
Chaves, Éder Carneiro... Ah, o Professor Ignácio da filosofia pelas intensas
trocas culturais.
No departamento agradeço o carinho da Carmem, no Museu Regional a
atenção da Fátima, na secretaria a generosidade da Luciana e Ailton, no
Labdoc a receptividade da Renata, Eduardo e todo pessoal.
Agradeço de coração ao John e Ártemis pela terna acolhida e pela
admirável surpresa de ter conhecido duas pessoas que desde o primeiro
momento cultivaram comigo uma profunda amizade.
Agradeço demais à Gabriela de Lambari, que juntamente com seus
familiares, sempre me ajudaram mostrando uma simpatia e solidariedade
formidáveis.
Ao amigo poeta Curu, plantador de livros, que em um remoto dia
pescou um urubu com um papagaio e à querida e irrequieta Mary, pelos livros
e coleções doados com carinho.
Ao camarada Alex Lombelo, pelas prosas eternas regadas a cerveja e
história. Aos companheiros Claudinei “Mister”, Gabriel “Personagem”
(incluídos aí, seus familiares; Pilar, Ana, Paulinha, e João Carlos), Guto e
Flávio Ventus pelas pessoas humanas que são. À Claudinha, Samuel, Pablo,
Richard, Marcito, Baiana, Carla, Henrique, Paulista, Núbia...
“Militão, pardavasco de muito anel no dedo, vivia de sanar picada de
jararaca e caninana, do que era bem sortida a pastaria. O povo botava de
quarentena o ofício dele e a criançada corria de urina na ponta do birro ao
sentir o cheiro da mulinha do curador”
,
JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO. O Coronel e o Lobisomem
RESUMO
Os artifícios das curas mágicas e das feitiçarias ocorreram intensamente nas Minas
Gerais da segunda metade dos oitocentos. É o que atesta a documentação criminal
pertencente às fontes do Arquivo do IPHAN ET de São João del-Rei e dos Acervos do
Fórum de Oliveira e Itapecerica. O trabalho revela aspectos da repressão às práticas
consideradas ilegais de cura disseminadas na sociedade da época e da construção dos
discursos moralizantes das classes dominantes e sua tentativa de imposição das normas e
valores referendados pela medicina científica da época e sustentados pela legislação
vigente. O trabalho analisa detidamente as práticas de feitiçaria, mostrando quais eram seus
métodos, seus saberes e sua inserção nos diversos grupos sociais. Os processos inéditos
foram fontes para o esclarecimento do tema. Além dos processos-crimes, o trabalho se
valeu da análise de periódicos de São João del-Rei, Oliveira, Campanha e Pitangui do final
do século XIX., demonstrando as variadas formas de cura disseminadas na sociedade
mineira da época.
Palavras-chave: Repressão, feitiçaria, cura.
ABSTRACT
The artifices of magic healings and of the witchcrafts happened intensely in Minas
Gerais in the second half of the XIX century. The criminal documentation found in the
sources of the archives of IPHAN-ET of São João del-Rei and archives of courts of
Oliveira and Itapecerica confirms this. This dissertation reveal aspects of the repression to
those practices of healing considered illegal which were disseminated in the society of the
time, and of the construction of moralizing discourse of the ruling classes and their attempt
to impose the norms and values countersigned by scientific medicine of that time and
sustained by legislation. The dissertation examines closely the practices of sorcery
revealing their methods, knowledge and their insertion in the different social groups. The
processes unpublished were sources for the elucidation of the theme. Beyond the criminal
processes, the work has benefited from the analysis of newspapers of São João del-Rei,
Oliveira, Campanha and Pitangui of the XIX century, demonstrating a variety of forms of
cure disseminated in the Minas Gerais of that time.
Key-words: Repression, sorcery, healing.
SUMÁRIO
Introdução ..........................................................................................................................10
Capítulo I – A cura anunciada – Métodos e práticas de cura nos jornais...................25
Credulidade e cientificismo da sociedade mineira do século XIX......................................26
Mordeduras de cobras: receitas recomendadas nos oitocentos............................................38
O processo de ocupação do campo da cura..........................................................................50
Capítulo II – A repressão dos curandeiros e feiticeiros nos processos criminais.........58
Capítulo III Desconstruindo os processos criminais sobre repressão ao
curandeirismo.....................................................................................................................90
A moral dominante: conteúdo e argumentações das denúncias movidas contra os
curandeiros ..........................................................................................................................91
“Vadios” e “inadaptados”: questões relativas às ocupações dos curandeiros....................117
O preço da cura: reflexões sobre a cobrança dos serviços dos curandeiros.......................126
Curandeiros que passam a competir com a classe médica.................................................134
Capítulo IV O feitiço que se teme, o feitiço que se crê: os curandeiros como vítimas
nos processos criminais....................................................................................................146
Conclusão...........................................................................................................................171
Referências de fontes..........................................................................................................181
Bibliografia.........................................................................................................................182
“O povo brasileiro, de norte a sul, é muito supersticioso e dado a práticas feiticeiras [...]”
MÁRIO DE ANDRADE. Música de feitiçaria no Brasil
10
INTRODUÇÃO
Nas Minas Gerais da segunda metade dos oitocentos, os artifícios das práticas de
curandeirismo, das curas mágicas e das feitiçarias ocorriam intensamente, cuja amostra não
mensurável dessas práticas chegou até os dias de hoje por resultarem em instaurações de
processos judiciais visando a incriminação e punição de curandeiros e feiticeiros. É o que
atesta a documentação criminal pertencente aos acervos do Arquivo do IPHAN ET
1
oriundos do Fórum de São João del-Rei e dos Acervos dos Fóruns de Oliveira e de
Itapecerica.
2
Investigações de processos-crimes da segunda metade do século XIX,
envolvendo “curandeiros” e “feiticeiros” nos acervos judiciais das cidades de São João del
Rei, Oliveira e Itapecerica relataram os métodos, os saberes e a inserção social destes
agentes populares de curas e feitiços na sociedade mineira da época. Os processos tratavam
direta ou indiretamente de curandeirismo, nos quais os “curandeiros” e “feiticeiros” ora
eram réus, ora eram vítimas de agressões e desmandos.
No primeiro caso tais agentes populares da cura foram alvos da repressão exercida
institucionalmente pelas autoridades constituídas objetivando suas condenações amparadas
em legislações criminalizadoras das práticas ilegais de cura e da feitiçaria tanto no período
imperial, quanto na república. Já na segunda série de processos os denunciados tratavam-se
de agressores de pessoas que potencialmente teriam realizado feitiços contra seus parentes
ou indivíduos de seu círculo de relações.
A temática do feitiço permeia ambos os casos, embora a natureza destes distintos
processos se diferencie quanto ao direcionamento da criminalização dos réus. No primeiro
conjunto de processos os curandeiros e feiticeiros eram réus, enquanto numa segunda
relação potenciais feiticeiros tratavam-se de vítimas. O universo do feitiço está envolvido
nas questões relativas à doença e a cura na medida em que, como veremos, era amplamente
disseminada a crença de que o poder dos feitiços e malefícios afetariam o estado emocional
e físico das pessoas ditas enfeitiçadas. Portanto as práticas e métodos de feitiçaria eram
fartamente utilizadas em rituais de cura e proteção, fechamentos de corpo e procedimentos
1
Arquivo do IPHAN – Escritório Técnico de São João del-Rei – MG. Tais documentações pertenciam
anteriormente ao Acervo do Museu Regional de São João Del-Rei/IPHAN, mas agora estão disponibilizadas
no IPHAN-ET de São João Del-Rei.
2
Estes dois últimos acervos encontram-se em tratamento no Labdoc - Laboratório de Conservação e Pesquisa
Documental da UFSJ. (Universidade Federal de São João del-Rei) e estão disponíveis para consulta na
página “Arquivos Históricos da Comarca do Rio das Mortes Minas Gerais”,
Fonte:http://www.documenta.ufsj.edu.br
11
rituais de desencantamento como o próprio conteúdo dos processos criminais puderam
confirmar amplamente.
Outras fontes empregadas na investigação deste trabalho foram jornais mineiros da
segunda metade dos oitocentos. Periódicos das cidades de Oliveira, Itapecerica, Pitangui,
Campanha e principalmente de São João del-Rei foram utilizados como documentos que
repercutiam notícias relacionadas à temática do universo da cura, além de veicularem
novidades farmacêuticas e tendências científicas em voga na época. Tais fontes são
provenientes do departamento de microfilmes da Biblioteca da UFSJ, com publicações
originárias do Arquivo Público Mineiro e da Biblioteca Nacional, além do acervo de
jornais do IPHAN-ET de São João del-Rei.
3
Embora algumas edições tenham apresentado uma amostra da coexistência de
diferentes tipos de práticas ocupando a esfera da cura, estes informativos geralmente
incorporavam uma posição cientificista em relação ao universo da cura. Este papel
predominante de arauto do esclarecimento e de desmistificador do mundo demonstrava-se
na preocupação dos jornais de difundir novos experimentos e remédios ditos científicos
apresentados como soluções incontestáveis, muitas vezes ridicularizando aspectos da
cultura tradicional como rudimentares e retrógrados.
A função de formadores de opinião e de propagadores de idéias e comportamentos,
característica dos veículos de imprensa, não significa que tais informações difundidas
necessariamente passassem a ser adotadas pela população. Da mesma forma, os relatos e
notas jornalísticas não se tratavam de espelhos fidedignos do modus vivendis da sociedade
mineira da época. Mas de qualquer modo, vislumbram-se nestes periódicos algumas
alternativas lançadas oficialmente pela “ciência” dita ortodoxa e formal para ocupar e
conquistar o campo da cura. Portanto as propagandas e anúncios publicitários nos dão
conta do que de mais sofisticado as farmácias dispunham para sanar as enfermidades que
assolavam a sociedade mineira da época.
A discussão desenvolvida por este trabalho tem como pano de fundo o contexto de
tentativa de consolidação da medicina “científica” na época e seus esforços de
monopolização do diagnóstico e da cura no país. Nestas circunstâncias, a normatização
progressiva dos métodos e práticas de cura e a criminalização das práticas curativas
populares se tornaram um imperativo nas ações das autoridades constituídas.
3
Arquivo do IPHAN – Escritório Técnico de São João del-Rei – MG.
12
A partir dos processos criminais, mas principalmente através das denúncias
movidas pelas autoridades, é possível ver as formas de associação das práticas culturais das
classes populares relacionadas à busca da cura (curandeirismo e feitiçaria) como a
expressão de uma mentalidade negativa, retrógrada e condenável; isso como uma instância
de construção dos discursos moralizantes das classes dominantes e sua tentativa de
imposição das normas e valores referendados pela medicina científica da época e
sustentados pela própria legislação vigente.
A repressão legal ao curandeirismo não tinha uma preocupação apenas no sentido
de auxiliar na afirmação da medicina científica devidamente normatizada, mas também
tinha a intenção de eliminar as práticas que se relacionavam com feitiçaria, magia e
quaisquer rituais que eram discriminados pelo pensamento religioso, moral e científico
característico de determinados setores da sociedade. Tais segmentos visavam confrontar
uma forte visão de mundo impregnada de crendices, superstições e formas tradicionais de
lidar com os infortúnios e mazelas da vida que predominava na sociedade mineira da
segunda metade do século XIX. Tal mentalidade devotada às crenças e aos costumes
arraigados privilegiava a ação de agentes populares e alternativos da cura como os
curandeiros.
Apesar do florescimento de uma ciência médica e farmacêutica que buscava se
consolidar e estabelecer terreno na vida social havia uma predisposição da população a
recorrer a variados recursos que não necessariamente estavam concatenados com os
preceitos da medicina científica praticada na época. Nas circunstâncias da doença os
mineiros dos oitocentos não hesitavam em recorrer a uma diversidade de procedimentos de
cura, fossem eles de natureza tradicional, mística, religiosa e até mesmo de caráter dito
“científico”.
Diante de tal contexto as legislações ditadas pelos estatutos jurídicos tencionando
indiscriminadamente condenar o curandeirismo, a feitiçaria e as práticas ilegais de cura
pareciam estar em gritante desacordo com as recorrentes procuras dos procedimentos
tradicionais de cura pela sociedade. O discurso repressivo procurava tutelar a sociedade,
que por sua vez, parecia disposta a recorrer a recursos diversos que geralmente não se
harmonizavam com as determinações e regulamentações da lei.
O sistema judiciário vigente almejava proibir tais atividades justamente porque os
serviços prestados pelos curandeiros e feiticeiros tinham uma aceitação ampla da sociedade
13
da época, além de uma necessidade de se controlar e normatizar as práticas de cura através
do estabelecimento de modelos acadêmicos julgados como superiores.
Quanto à repressão judicial dos curandeiros alguns processos investigados
demonstraram um redobrado empenho das autoridades em desqualificar e
consequentemente incriminar determinados curandeiros no intuito de impedir sua
destacada atuação junto a considerável parcela da sociedade.
Estes agentes populares da cura pareciam estabelecer realmente um significativo e
duradouro diálogo com seu público. No entanto casos de instauração de processos
criminais contra estes curadores populares também ocorreram em função de um
estremecimento neste diálogo. O rompimento deste fluxo amistoso na relação curandeiro-
enfermo acabava gerando a busca de se condenar o curandeiro na Justiça. Este
estranhamento e interrupção numa relação até um certo momento fluente e estável
redundava justamente na interceptação das atividades dos curandeiros através de denúncias
que as autoridades policiais acatavam prontamente.
Muitos dos processos criminais que buscavam reprimir curandeiros tratam de
situações-limite em que a insatisfação dos pacientes somada à sanha acusatória e
persecutória das autoridades buscavam incriminar estes agentes populares da cura e
eliminar suas atividades.
Houve também casos em que os depoentes tiveram papéis importantes nas
discussões dos processos ora acusando o curandeiro, muitas vezes interessadamente em
razão de intrigas e animosidades com o réu, ora mostrando-se neutros ou até plenamente
favoráveis aos questionados serviços prestados pelos denunciados.
Parece notório que estes curandeiros e feiticeiros exerciam um grande fascínio e
despertavam um grande interesse na sociedade mineira do século XIX. A procura pelos
rituais mágicos se tornava uma recorrente alternativa para as pessoas se livrarem das
agruras e adversidades. Dentre estes infortúnios incluíam-se as doenças que aterrorizavam
suas vidas. O poder de sugestionamento das práticas mágicas e místicas atraía uma intensa
atenção de significativa clientela que se dispunha a consultar os curandeiros. Pressupõe-se
que um imaginário ainda povoado de crenças seculares fortemente enraizadas contribuía
para a adoção de métodos fundamentados a partir de feitiços, rezas, benzeções e orações
cabalísticas para atingir a cura.
14
A quase totalidade dos curandeiros denunciados nos processos averiguados lidava
com feitiços. A grande maioria destes curadores conciliava o uso de preparados à base de
ervas e raízes com os artifícios típicos do repertório da feitiçaria.
A inserção destes curadores na sociedade brasileira remete a tempos bem mais
pretéritos. A demanda por praticantes da cura foi uma constante no processo de
colonização no Brasil. No período colonial havia uma significativa carência de médicos,
sempre reclamados pela população na colônia
4
. Convêm enfatizar o impedimento por parte
da metrópole de se criar escolas de ensino superior no Brasil na época colonial. Será
somente no Século XIX, mais precisamente em 1832, que se fundarão oficialmente as
Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e de Salvador. No período colonial os
procedimentos de cura estavam em sua maioria nas mãos dos jesuítas, dos sangradores
(também chamados de barbeiros e em sua maioria negros), dos boticários e, é claro, dos
curandeiros.
Ao estudar as manifestações e comportamentos culturais que se opunham às
normas e dogmas estabelecidos no período da colonização, Luiz Mott
5
atenta para a
difusão dos praticantes marginais da cura no Brasil colonial, afirmando que
“Malgrado a preocupação da Inquisição e da própria legislação real, proibindo a
prática das feitiçarias e superstições, no Brasil Antigo, em toda a rua, povoado,
bairro rural ou freguesia estavam as rezadeiras, benzedeiras e adivinhos
prestando tão valorizados serviços à vizinhança. No nordeste, nas Minas e no
resto da Colônia, são freqüentes as denúncias contra homens e mulheres que
recorriam aos feiticeiros e feiticeiras, em especial, quando os exorcismos da
Igreja e os remédios de botica não surtiam efeito na cura de variegada gama de
doenças
6
”.
Segundo o autor, a e a devoção privada no Brasil colonial, decorrentes de uma
carência estrutural urbana e da multiplicidade dos estoques culturais presentes, quando
centenas de etnias indígenas e africanas prestavam culto a panteões os mais diversos, abria
espaço para desvios e heterodoxias, dentre estes as crenças e rituais condenados pelos
donos do poder.
Naquele período se mostrava significativo e ilustrativo um amalgamamento de
culturas e mentalidades intercambiáveis no qual chamam a atenção as sobrevivências e
4
MACHADO, Roberto. Danação da norma-Medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1978. p. 22.
5
MOTT, Luiz. Cotidiano e convivência religiosa: entre a capela e o calundu. in SOUZA, Laura de Mello e.
(org.). História da vida privada no Brasil- Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Vol.1 São
Paulo: Companhia das letras, 1997. p. 193.
6
Idem, p. 192.
15
permanências do velho mundo remodeladas e transformadas no novo mundo. Laura de
Mello e Souza ao refletir sobre o universo das crenças e práticas populares nesta época,
entende que “os africanos, índios e mestiços foram os grandes curandeiros do Brasil
colonial. O conhecimento que tinham das ervas e de procedimentos rituais específicos a
seu universo cultural atrelou-se ao acervo europeu da medicina popular”
7
. A autora
enfatiza a predominância do conhecimento prático e empírico na época, e cita como
exemplo significativo que “na Inglaterra, um homem como Francis Bacon achava que
empíricos e mulheres velhas eram mais felizes nas suas curas do que os médicos cultos”
8
.
Nas Minas Gerais do século XVIII também havia grande incidência dos agentes
empíricos da cura. Os estudos de Júnia Ferreira Furtado também indicam a larga presença
de cirurgiões barbeiros (homens práticos) na Minas colonial setecentista. Um destes
cirurgiões, Luís Gomes Ferreira, comentava a situação da carência de profissionais da cura
na região: “em tão remotas partes, que hoje estão povoadas nestas Minas, aonde não
chegam médicos, nem ainda cirurgiões que professem a cirurgia, por cuja causa padecem
os povos grandes necessidades”
9
. Alguns destes homens chegaram a redigir livros e
tratados sobre medicina popular. Atreveram-se a receitar em seus livros a ingestão de
vários medicamentos, apesar de saberem que isso era prerrogativa dos médicos, além de
descreverem suas fórmulas e métodos de fabricação, conscientes de que tal era privilégio
dos boticários. Segundo eles:
“há lugares tão limitados e pobres que neles não médicos, nem ainda
cirurgiões, sim um simples barbeiro, que intrépida e atrevidamente se mete a
curar [...]. Estas as justas razões que me obrigam a fazer esta tosca obra [...] para
que possam os curiosos da dispersa América , mais livres de susto, remediar os
seus escravos e domésticos de suas casas”
10
.
Tais agentes da cura serviam-se tanto de medicamentos tradicionais importados
como também das ervas locais, cujos usos aprendiam com os índios e os mestiços. Júnia
Ferreira Furtado também confirma em suas pesquisas a incidência de curandeiros na região
7
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1986. p. 166.
8
Idem, p. 167.
9
FERREIRA, Luís Gomes. Erário mineral, 1735, apud Júnia Ferreira Furtado, “Barbeiros, cirurgiões e
médicos na Minas colonial” in Revista do Arquivo Público mineiro. Ano XLI Julho-Dezembro de 2006. Belo
Horizonte, MG: Rona Editora. p. 90.
10
FURTADO, Júnia Ferreira. “Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial” in Revista do Arquivo
Público mineiro. Ano XLI Julho-Dezembro de 2006. Belo Horizonte, MG: Rona Editora p. 92.
16
aurífera das Minas Gerais setecentista, em sua maioria, escravos acusados de feitiçaria
pelas autoridades eclesiásticas.
11
Os rituais envolvendo feitiços e curas mágicas estavam inseridos amplamente na
sociedade dos pólos mineradores da província de Minas Gerais do século XVIII. Tais
agentes de cura eram procurados por todas as camadas sociais. A inserção do curandeiro,
assim como de seu universo mágico, na sociedade parece incontestável. Segundo a autora
citada,
“a crença nas práticas mágicas como elemento e importante condutor da cura
aproximava o mundo português do africano e, muitas vezes, despertava a
intolerância das autoridades. Mas a perseguição aos curandeiros revela que, a
despeito dessa intolerância, a população recorria sistematicamente aos seus
métodos de cura”
12
.
Na documentação da Inquisição de Lisboa que abarca os processos mineiros dos
setecentos, disponibilizada no Arquivo da Torre do Tombo, grande número de casos de
feitiçaria, adivinhações, além de curas físicas e espirituais. Os processos eclesiásticos da
época, abordados nas pesquisas de Donald Ramos
13
, confirmam a difusão da crença em
feitiços, assim como rituais e cerimônias de feitiçaria. Em um processo localizado nas
cercanias de Mariana contra a curandeira Rita Mina, por exemplo, uma testemunha disse,
“que muitos enfermos deixavam de curar-se com remédios da Arte Médica por entenderem
que eram males de feitiços, segundo a curandeira dizia”
14
.
No século XVIII a repressão às práticas alternativas de cura partia das autoridades
eclesiásticas, através das visitas episcopais e das devassas, na segunda metade do século
XIX tal poder coercitivo passaria a partir do aparato judicial que viria a se constituir no
Brasil da época.
No decorrer do século XIX, principalmente após a criação das Faculdades de
Medicina no Rio de Janeiro e na Bahia em 1832, começa a desenvolver-se a construção de
um discurso médico oficial que passa a defender o monopólio das práticas de cura na
sociedade brasileira. Os estudos de Roberto Machado
15
, sob uma perspectiva foulcautiana,
11
Idem, p.99.
12
Idem, ibidem.
13
RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: Um comentário sobre a
interpretação da escravidão in Da SILVA, Maria Beatriz Nizza. Brasil: Colonização e Escravidão.(Org.)
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 150.
14
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, proc. 4853, testemunha Joaquim Luís
de Santa Rita, pardo forro, 6 de julho de 1798.
15
MACHADO, Roberto. Danação da norma-Medicina social e constituição da Psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1978.
17
enfatizam uma disciplinarização e medicalização da sociedade na época. Cabe, entretanto,
assinalar que a abordagem adotada pelo autor, embora realmente expresse um mistificado
ideário da medicina oficial, isenta-se de apreender a importância de diversos atores sociais
que exerciam a prática da cura na sociedade oitocentista, limitando-se apenas a reproduzir
um audacioso projeto defendido por segmentos da corporação médica. Tal enfoque é
carente de base empírica e de dados reais acerca do universo da cura, na medida em que
privilegia a análise discursiva dos médicos.
A partir da perspectiva deste pretensioso projeto de controle social encabeçado pela
Academia Imperial de Medicina, “as manifestações culturais e os métodos tradicionais que
divergiam dos referenciais científicos eram taxados de caóticos”
16
. Os variados agentes
concorrentes dos médicos nas práticas da cura vão ser prontamente classificados de
charlatões. Para a corporação médica os curandeiros eram taxados de “cultores da não
ciência e dos sistemas imaginários”
17
.
De fato, a medicina surgia como uma novidade das mais inusitadas nos costumes
das gentes. A assimilação do costume de ir ao médico tratava-se de um processo lento,
gradativo e cheio de resistências. A crença alimentada pelas pessoas nas curas tradicionais
e empíricas tornavam a incorporação da medicina oficial no seio da sociedade muito
difícil. Estas prestigiadas terapêuticas tradicionais e ancestrais na sociedade oitocentista
mineira ajudavam a constituir um amplo universo sobre o qual a busca da cura transitava
na sociedade. Ao pesquisar profundamente as artes de curar nas Minas Gerais do século
XIX, Betânia Gonçalves Figueiredo afirma que,
“o discurso médico da época é extremamente enfático nas suas informações e
conclusões, porém faz-se necessário contrapor a estas falas informações
referentes ao “modus vivendis” da população, assim como também avaliar a
eficácia mesma desse discurso e em que medida ele se concretiza na prática
cotidiana das cidades e lugarejos do interior de Minas Gerais”
18
.
Causa espanto que uma área do saber num estado ainda incipiente, necessitando de
legitimar-se frente às multidões, tenha reivindicado a posse exclusiva do diagnóstico e da
cura. O estado primário em que a medicina se encontrava era um fato clamoroso na época,
como demonstrou Edmundo Campos Coelho ao ironizar a soberba de uma classe médica
pouco convicta de seus procedimentos. Ao examinar os Annaes de Medicina Brasiliense,
16
Idem, p. 197.
17
Idem, Ibidem.
18
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar Cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no
século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura Editora, 2002. p. 19.
18
órgão oficial da Academia Imperial de Medicina, o autor tivera “a desconfortável
impressão de que os médicos – os de maior cultura e prestígio - não tinham a mais
longínqua noção do que faziam, procedendo com uma absurda dose de arrogância e
irresponsabilidade”.
19
Os terapeutas populares, por sua vez, adquiriram uma forte confiança da população
e mesmo com o fim da Fisicatura em 1826, órgão responsável pelas autorizações do ofício
de curar no Brasil, continuaram oferecendo seus serviços para um vasto público. Mesmo
antes disso, curandeiros, sangradores e parteiras praticavam suas curas a despeito das
tentativas de regulamentações oficiais. As pesquisas de Tânia Salgado Pimenta destacam
que mesmo depois do acirramento da fiscalização imposta pelo monopólio dos médicos, os
próprios “fiscais de freguesias mais afastadas faziam a ressalva de que não havendo
médico nem farmacêutico, as pessoas que sabiam curar eram necessárias para o povo
indigente”
20
, isso somado à “dificuldade de se punir os delinqüentes nos campos e
sertões”
21
. Essa a razão da contrariada Academia Imperial de Medicina criticar o
curandeirismo ao afirmar que “a impostura não afrontará a ciência e o charlatanismo irá
vegetar nos mais obscuros recônditos da mais obscura aldeia”
22
.
Na verdade esta tão aclamada ciência não obtinha na prática resultados satisfatórios
no que tange aos processos de cura. Como afirma Gabriela dos Reis Sampaio, ao estudar as
diferentes medicinas do Rio de Janeiro imperial, “a população tinha medo e descrédito em
relação aos médicos”, além do “pavor dos hospitais, considerados depósitos de doentes”
23
.
Sendo verificada no Rio de Janeiro imperial, capital do país, onde se encontrava até uma
faculdade de Medicina, uma resistência das gentes pelo uso da medicina oficial, o quanto
maior não deveria ser esta relutância nos rincões do sertão mineiro. No Rio de Janeiro as
polêmicas envolvendo potenciais charlatões e a classe médica eram acompanhadas pela
Imprensa da época. Segundo Gabriela Reis Sampaio, nos jornais empreendia-se uma
verdadeira “cruzada anti-curandeirismo”
24
e os casos dos principais feiticeiros eram
redigidos em textos imaginosos e sensacionalistas. Apesar das críticas aos curandeiros e às
19
COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de
Janeiro 1822-1930. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 109.
20
PIMENTA, Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século XIX
in CHALHOUB, Sidney (org.). “Artes e ofícios de curar no Brasil". Campinas:Editora da Unicamp,Cecult,
2002. p. 321.
21
Idem, p. 325.
22
MACHADO, Roberto. Danação da norma... op. cit. p. 199.
23
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura - As diferentes medicinas no Rio de Janeiro
Imperial. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2002. p. 90.
24
Idem, p. 80.
19
práticas marginais de cura, a imprensa nem sempre era aliada incondicional dos senhores
médicos. Muitas vezes os profissionais da medicina oficial eram motivo de chacotas e de
piadas constrangedoras, além dos jornais desnudarem recorrentes rixas no interior da
própria corporação médica.
A antropóloga Paula Montero entende que na virada do século XIX para o XX
que a medicina começará a conquistar credibilidade junto á população
25
. Antes desse
momento, com a medicina ainda ineficiente a procura por curandeiros e benzedores era
intensa.
No caso de Minas Gerais, não podemos perder de vista que a população do século
XIX além de desconfiada em relação à eficácia das técnicas médicas nem sempre dispunha
de dinheiro para arcar com os honorários do profissional da medicina. Sobre a
sobrevivência das culturas tradicionais diante das novidades técnicas e científicas, Betânia
Gonçalves Figueiredo ressalta que
“há uma série de persistências, de readaptações, de reintegrações que convivem
com o sistema de técnicas mais rentáveis do ponto de vista do lucro. Os
sapateiros de fundo de quintal que se dedicam a consertar sapatos ou as bancas
nas ruas onde encontramos raízes, folhas secas e/ou frescas, caules, todos com
aplicações medicinais, são exemplos de que as atividades tradicionais passam
por adaptações e sobrevivem apesar de estarem aparentemente defasadas da
lógica do tempo capitalista”
26
.
É ao mesmo tempo curioso e revelador uma das histórias narradas por Auguste de
Saint-Hilaire ao percorrer a região da comarca do Rio das Mortes na década de 20, em suas
investidas botânicas no interior de um território inusitado e semi-virgem, relata que,
“um cura de São João Del Rei tinha um escravo que fora de seu pai, que agarrava
impunemente as serpentes venenosas. Um dia ele amarrou o escravo a fim de se
apossar de seu segredo e este confessou que se tornara invulnerável às picadas de
cobra, esfregando o corpo com a erva de urubu. Porém, qual é essa erva? ”.
27
No decorrer dos oitocentos a fama dos curandeiros e dos benzedores de pastos
contra mordeduras e picadas de animais peçonhentos era intensa em Minas Gerais. Os
curadores de cobra, por exemplo, que tradicionalmente curavam com fumo, toucinho e
25
“com o aperfeiçoamento da tecnologia médico-sanitarista desenvolvida pelos Institutos Butantã e de
Bacteriologia, dos resultados obtidos pelos estudos de patologia tropical e do desenvolvimento das vacinas
contra pestes, lepra, tifo, varíola, febre amarela e outras”. MONTERO, Paula. Da doença à desordem-A
magia na umbanda.Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 42.
26
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar - Cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no
século XIX em Minas Gerais. Op. cit. p. 64.
27
SAINT-HILAIRE. Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia;
São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. p. 98.
20
benzimentos aqueles que tinham sido mordidos por serpentes vão passar a ser
suplantados com a descoberta do soro anti-ofídico no limiar do século XX. Segundo Paula
Montero, “o prestígio dos diversos curandeiros espalhados pelo Brasil virá a
desaparecer com a dissolução progressiva do conhecimento tradicional sobre as
propriedades químicas das plantas, o que aconteceu, por exemplo, com os catimbozeiros
do interior da Paraíba”.
28
Somente no fim do século XIX, em sua última década, é que as elites médicas após
um processo incessante de busca de legitimação conseguiram se firmar como instituição
homogênea e influente nas determinações das autoridades públicas. Nos últimos anos do
Império, após importantes reformas no ensino médico ocorridas em 1884, a medicina
acadêmica passa a ter um maior prestígio e poder no encaminhamento dos problemas da
área da saúde. Talvez este plausível aprimoramento resultando numa maior afirmação e
consolidação da medicina oficial esteja na origem do endurecimento das leis relativas ás
práticas ilegais de cura no código penal republicano.
Nas legislações do Império, os crimes de curandeirismo eram caracterizados como
contravenção e ato fraudulento no artigo 264 na falta de artigos específicos, ou ainda
podiam ser punidos como infrações dos Códigos de Posturas Municipais disseminados
pelas localidades do país. O Código de posturas e Regimento interno da Câmara de São
João del-Rei de 1887, por exemplo, rezava em seu Título IV art. 28 que
“é proibido fingir-
se inspirado por potências invisíveis ou predizer casos tristes ou alegres, do que resulta
prejuízo a alguém. É proibido inculcar-se curador de enfermidades ou moléstias por via do
que vulgarmente se chama feitiços”
29
.
Embora já vigorassem nas legislações da época do Império normatizações que
reprimissem as práticas populares de cura, como o curandeirismo e a feitiçaria, a partir da
República, com o campo da ciência mais fortalecido e a corporação médica mais
organizada, as fronteiras entre o lícito e o ilícito, entre o verdadeiro e o falso, entre o
“certo” e o “errado” ficavam mais definidas para as autoridades. O decreto 847, de 11 de
outubro de 1890, que estabelece o novo código penal é identificado pela antropóloga
28
MONTERO, Paula. Da doença à desordem - A magia na umbanda. op. cit. p. 43.
29
Código de Posturas municipais e Regimento interno da Câmara de São João del-Rei de 1887 in
VENÂNCIO, Renato Pinto (org.) Tesouros do Arquivo – São João del-Rei, uma cidade no Império”.
Associação cultural Arquivo Público Mineiro. p. 108.
21
Yvonne Maggie como “marco zero da repressão mais institucionalizada" contra práticas
ilegais de cura e feitiçaria
30
.
Tais normas inseriam-se nos ditos crimes contra a saúde pública. O artigo 156
proibia “a prática ilegal da medicina, arte dentária e farmácia”. o artigo 157 proibia
“praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancias, para
despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar curas de moléstias curáveis ou incuráveis,
enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”. O artigo 158 do código penal exigia
a proibição de “ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo interno ou
externo, e sob qualquer forma preparada, substâncias de qualquer dos reinos da natureza,
fazendo ou exercendo assim o ofício denominado de curandeiro".
Como podemos perceber o código penal republicano atinge tanto o curandeirismo
que se utiliza de plantas e ervas para obter a cura, quanto as práticas mágicas, espíritas e
supersticiosas. As fontes e os estudos bibliográficos sobre o assunto confirmaram que
geralmente a conjugação destes tipos de procedimentos foram bastante recorrentes.
Portanto, a partir das codificações estabelecidas na República, o cerco legal contra
tais agentes populares da cura se fecharia municiado por leis bem mais específicas e
precisas direcionadas ao curandeirismo, à feitiçaria e ao exercício ilegal da medicina.
Com relação à repressão ao curandeirismo impressiona o poder de sugestionamento
que o feitiço exerce no imaginário das sociedades. Yvonne Maggie entende que “a
repressão às religiões mediúnicas inscreve-se na lógica da crença”
31
. As autoridades
reprimiam o feitiço porque acreditavam nele, segundo a autora. Havia todo um esforço por
parte dessas em distinguir as magias benéficas das feitiçarias perigosas sendo que apenas
estas últimas eram criminalizadas. Segunda a autora, nas colônias inglesas era diferente:
combatia-se a própria crença na feitiçaria. Na Rodésia (atual Zimbábue), por exemplo, era
considerado culpado de ofensa quem apontasse outra pessoa como feiticeiro. A
antropóloga ressalta que no Brasil,
“é desde o código penal de 1890 que são perseguidos e processados somente os
acusados de prática ilegal da medicina, magia e curandeirismo, e nunca os
acusadores, os que procuram esses acusados. Viveiros de Castro, um dos
magistrados que se opunha às formas de criminalidade previstas nos artigos 156,
157 e 158, referia-se a essa incongruência”.
32
30
MAGGIE, Yvonne. O medo do feitiço Verdades e mentiras sobre a repressão às religiões mediúnicas in
Revista Religião e Sociedade. Vol. 13/1 – março. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 1986. p. 74.
31
Idem, ibidem.
32
Idem, p. 78.
22
Já no ocaso do século XIX o cientista Nina Rodrigues posicionou-se de forma severa
e taxativa ao abordar a discussão em torno de uma possível culpabilidade e
responsabilidade relativas aos rituais de feitiçarias, concordando bem a seu modo, com o
enunciado por Viveiros de Castro acima citado,
“A clientela, que frequenta os feiticeiros, não é constituída de menores e
mentecaptos, nem os feiticeiros vão arrancá-las às suas casas: é uma inépcia da
lei pretender proteger quem cientemente se deixa explorar; mais do que isso, a
feitiçaria assim organizada pressupõe a mesma participação, na responsabilidade
social, dos feiticeiros e da sua clientela
33
”.
O debate sobre as práticas de curandeirismo e as medidas repressivas instituídas no
sentido de impedi-las e puni-las se aprofundará no decorrer do trabalho na proporção em
que os casos empíricos investigados nos forneçam elementos interessantes para o
afloramento da discussão.
As questões que buscamos ressaltar nesta breve introdução apontam a fundamental
importância da recorrência às práticas tradicionais de cura desde os tempos mais remotos
da nossa colonização. A vivacidade do curandeirismo, da feitiçaria e das demais práticas
populares de cura perpetuou-se até fins do século XIX, e provavelmente ultrapassou o
século XX mantendo resquícios até os dias de hoje. Nas Minas Gerais na segunda metade
do Oitocentos, período enfocado neste trabalho, o vigor destas práticas tradicionais
manifestou-se intensamente mesmo diante de um cenário de normatização e
regulamentação progressiva dos métodos e práticas de cura, impulsionado pelos esforços
de monopolização do diagnóstico e das práticas curativas empreendidos pela medicina
científica da época.
No decorrer dos capítulos deste trabalho serão explorados aspectos relacionados às
práticas de cura disseminadas na sociedade oitocentista mineira, assim como uma
abordagem relativa à repressão ao curandeirismo seja esta de caráter oficial e institucional
ou de caráter espontâneo, protagonizada por pessoas que tomavam a justiça em suas mãos
e que passavam por cima das leis.
No primeiro capítulo deste trabalho analisarei os jornais mineiros do século XIX,
buscando através dos anúncios publicados e notícias veiculadas, as concepções circulantes
acerca da problemática da cura e dos tratamentos de saúde característicos da época. Os
periódicos se encarregavam de noticiar dezenas de procedimentos e experimentos
33
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. p. 251-252.
23
disponíveis que poderiam ser adotados para sanar as doenças que atormentavam a
sociedade.
Num período em que o cientificismo se propagava amplamente uma emergente
intelectualidade adepta da racionalidade e dos ditames da ciência passava a propugnar
incessantemente as novidades científicas. Nos espaços dos jornais esta tentativa de
divulgar remédios embasados numa fundamentação científica, ainda que precária e
contestável, também se refletiu. Em decorrência disso, medicamentos que se aproximavam
de modelos referendados pela ciência formal e ortodoxa predominaram na imprensa, ainda
que os limites entre o conhecimento popular e empírico e o saber científico e acadêmico
não fossem muito nítidos.
Portanto, os jornais se mostraram fontes inquestionavelmente reveladoras de
novidades no âmbito da cura que passavam a ser expostas e divulgadas para a população,
ainda que a recepção e aceitação destes produtos e procedimentos veiculados não possa ser
auferida.
O segundo capítulo deste trabalho discorrerá sobre os processos criminais que
visavam reprimir curandeiros, feiticeiros e agentes ilegais da cura. Através de análises de
casos detalhadas e minuciosas buscar-se-á compreender como se deu a repressão das
autoridades constituídas contra estes praticantes populares da cura e do feitiço.
Um olhar abrangente sobre o conjunto de processos abordados aponta os métodos,
os saberes e a inserção social destes agentes populares de curas e feitiços na sociedade das
Minas Gerais oitocentista. A partir dos processos-crimes dos fóruns de Oliveira, São João
del-Rei e Itapecerica pretende-se analisar um rico material no que diz respeito à
reconstituição da mentalidade das pessoas comuns e das autoridades relativamente ao
curandeirismo e a feitiçaria característicos da época. É bem verdade que alguns
destes casos mostraram peculiaridades que possibilitaram uma compreensão mais apurada
das práticas que foram alvo da repressão e dos mecanismos do aparelho judiciário que as
exerceram. Tais processos-crimes destacaram-se dos outros justamente por que escapavam
das limitações impostas pelos padrões formais a que estão submetidos a grande maioria da
documentação criminal, filtrada pelos agentes da justiça.
o terceiro capítulo do trabalho representa uma tentativa de penetrar na essência
dos discursos e argumentações expostos nos processos pelos promotores, juizes e
testemunhas relativos à prática de curandeirismo denunciada. Através desta investigação
aprofundada foi possível identificar a natureza de suas fundamentações ideológicas, os
estereótipos utilizados, as influências do pensamento moral e religioso, além de uma
24
considerável margem de autonomia dos magistrados em relação à própria legislação. Esse
capítulo é centrado no debate e comparação de elementos constituintes dos autos que
foram decisivos na construção e definição dos processos tais como eles se apresentaram
para a investigação. É nesta parte que se investigará o olhar sobre possíveis interesses
envolvidos, estratégias adotadas pela acusação e defesa, tentativas de intimidação do
aparelho burocrático jurídico sobre os depoentes, dentre outros aspectos significativos para
se entender como se conduziam os trâmites dos processos.
Algumas questões destacadas nesse capítulo foram recorrentemente discutidas no
universo dos processos abordados, tais como as representações sobre as ocupações
exercidas pelos curandeiros denunciados, para além de suas práticas de cura, o debate em
torno das cobranças dos curandeiros pelos serviços prestados e as evidências da
competição destes agentes com os profissionais formais da cura, como os médicos e os
farmacêuticos.
O quarto e último capítulo deste trabalho é dirigido à análise de uma outra categoria
de processos envolvendo curandeiros e feiticeiros. Estes por sua vez cuidam de
criminalizar uma repressão espontânea, à margem da lei, exercida contra supostos
feiticeiros. Portanto nestes casos os “feiticeiros” são vítimas e os agentes das represálias é
que são os réus.
O fator motivador destas formas de justiçamentos, ou quem sabe até, destas
tentativas de se fazer “justiça” com as próprias mãos seria a crença de que o potencial
feiticeiro teria enfeitiçado pessoas próximas aos agressores, réus dos processos, os quais
relatam crimes cometidos com violência por parte dos ofensores, chegando alguns
inclusive a acarretar a morte das vítimas. Tais crimes, como buscarei analisar, decorreram
de uma inquestionável crença no poder e sugestionamento dos supostos feitiços e
demonstram o quão as noções de feitiçaria e poderes mágicos estavam presentes no
imaginário da sociedade da época.
25
CAPÍTULO I
A CURA ANUNCIADA – MÉTODOS E PRÁTICAS DE CURA NOS JORNAIS
A imprensa sempre foi propagadora de idéias e de comportamentos. Além disso,
conhecimentos das mais diversas áreas do saber também foram amplamente propalados
nas páginas dos jornais. No que diz respeito às artes e técnicas no campo da cura o papel
difusor dos veículos jornalísticos também deve ser considerado.
A partir de abordagem de jornais mineiros oitocentistas foi possível investigar
alguns agentes e métodos de cura que ocupavam a vasta esfera de ação das práticas
curativas cultivadas na sociedade da época.
Os informativos ofereciam dezenas de sugestões para auxiliar nos processos de cura
da população. Detalhes curiosos das notícias reportavam dicas e soluções de curas, além
das propagandas de profissionais da cura, de tônicos, emplastros, elixires, xaropes e
preparados farmacêuticos diversos. Principalmente na última página das edições dos
jornais abundavam anúncios de remédios entremeados por reclames comerciais diversos.
Procedimentos e métodos de cura os mais variados eram largamente veiculados nos
periódicos da época. Tais práticas podiam pertencer a um universo popular e tradicional
altamente requisitado pela população ou ainda podiam ser inseridos numa gama de
experimentos recorrentes na época que reivindicavam para si um caráter racional e
cientificista. Estes últimos predominavam em relação aos primeiros nos noticiários e
propagandas dos jornais consultados. Provavelmente o arsenal de receitas e costumes
populares de cura estivesse de tal forma entranhado na vida cultural daquela sociedade que
prescindia da utilização de publicações em periódicos para se fazer conhecer. Tais práticas
seculares deveriam se valer da força da transmissão oral da sabedoria popular para angariar
uma grande aceitação e perpetuação junto ao grosso da população.
Os jornais mineiros da época, embora ansiosos por veicular notícias e relatos que
representassem a vanguarda dos procedimentos e técnicas científicas no campo da cura de
então, também davam conta de demonstrar o pensamento tradicional que dominava a
sociedade da época e que seria defrontado com as tentativas de explicação científica do
mundo divulgadas pelos próprios jornais.
26
Credulidade e cientificismo da sociedade mineira do século XIX
A sociedade mineira oitocentista apresenta uma visão de mundo profundamente
assentada em recursos tradicionalistas arraigados. Diante dos reveses, mazelas e temores
enfrentados na lida da vida, a recorrência às formas costumeiras e tradicionais de cura e
proteção era intensa. Uma ampla aceitação do universo mágico da feitiçaria, assim como
das práticas populares e tradicionais de cura, era marca presente e assídua do cotidiano das
Minas Gerais na sua segunda metade do século XIX.
Sobre este universo de credulidade e misticismo popular concomitante a uma visão
desmistificadora do mundo propagada pelo emergente cientificismo da época, um caso
curioso e paradigmático relata o noticiário do periódico de São João del-Rei Gazeta
Mineira datado de 30 de setembro de 1884;
“Comunica-nos o Sr. Dr. Ernesto Godinho, distincto clínico de S. Vicente Ferrer,
um caso teratológico extremamente curioso, por elle observado nesta freguesia.
Assim se exprime o illustrado médico: poucos dias sendo eu chamado para
ver um filho do Sr. Domingos Antônio Vilela, na Fazenda da Boa Vista, distante
quatro léguas desta freguesia, contou-me este que Antônio Pedro de Moraes
havia criado um chifre nas costas, e que um belo dia, indo puxar uma besta, esta,
no passar uma porteira, deu-lhe um encontrão, d’onde resultou o arrancamento
dessa produção córnea. Como se achasse o dito Antônio Pedro trabalhando na
fazenda, pedi-lhe que me mostrasse o chifre e o lugar d’onde havia sido
arrancado. Com effeito, notava-se ao nível da primeira vértebra dorsal um
pequeno tumor de cujo centro emergiam novas produções córneas semelhantes à
unha de gato. O chifre, que desse ponto havia sido arrancado, mede 25
centímetros de comprimento. É cylindrico em toda sua extensão, sendo retorcido
na ponta e tendo um diâmetro de mais de um centímetro em toda a sua extensão.
Procedi a extracção do pequeno tumor d’onde mais tarde nasceria um novo
chifre. O indivíduo em questão é natural dos arredores desta cidade (Sobe-
desce), antigo soldado da expedição contra o ditador Rosas e é hoje sapateiro.
Atribuía ele a procedência do chifre a um pretendido mestre de feitiçaria. Este
facto teratológico é perfeitamente explicável e não tem outra importância a não
ser a da curiosidade ”.
O caso acima narrado é emblemático no sentido de ilustrar o confronto de
mentalidades da época. Diante de um quadro misterioso e surpreendente a explicação
mágica e supersticiosa da vítima do infortúnio se defrontara com a justificação cética e
racional do clínico, arauto da ciência. O clínico fizera questão de enfatizar reiteradamente
que tal anomalia tratava-se de patologia explicável à luz da ciência e, portanto, apesar de
seu aspecto aberrante e incomum não havia motivos para especulações de ordem mística
ou mágica. O narrador do fato, ao considerá-lo imperturbavelmente mera “curiosidade”, na
27
verdade, apresentara um limitado e insatisfatório diagnóstico do infortúnio, se abstendo de
aventar qualquer possibilidade de providência de cura ou qualquer prognóstico animador
ou desesperançoso para o enfermo. Em se tratando a produção córnea nas costas do
infortunado realmente de um tumor, não causava espanto que diante de algo de “natureza”
tão extraordinária e impenetrável, o doente se amparasse em explicações sobrenaturais e
mágicas para sua enfermidade. Afinal de contas a apreciação científica do clínico depois de
uma fatídica tentativa de extirpar o incômodo se limitara a classificar a moléstia: uma
espécie de tumor.
Ocorre naturalmente uma confrontação de explicações para o impressionante caso.
O discurso científico se arvorava de inapelável esclarecedor do inusitado padecimento. Ao
taxar o caso como “teratológico” fazia questão de considerar a anomalia como uma
deformidade monstruosa, mas acrescentava posteriormente tratar-se de uma
monstruosidade “perfeitamente explicável” cientificamente. Diante do insondável, ou seja,
de um tumor talvez até maligno, o discurso amparado na ciência enaltecia o seu próprio
diagnóstico apresentado como infalível e desacreditava a alegada ingenuidade das
explicações sobrenaturais que associavam a anomalia fora do comum a um possível feitiço
realizado contra o infeliz sapateiro.
A posição do clínico mostrava preocupação em desmitificar qualquer possibilidade
de argumentação sustentada na feitiçaria ou em especulações que não se enquadrassem no
âmbito científico, talvez justamente porque tais fundamentações sobrenaturais e fabulosas
constituíssem elementos significativos no modo de pensar e entender o mundo dos
mineiros do Oitocentos.
Outro caso semelhante de curioso fenômeno foi narrado no Jornal da cidade de
Campanha “O Monarquista” de 13 de janeiro de 1887. O informativo campanhense
transcrevera uma notícia proveniente do periódico “Provinciano” que também repercutia o
espanto gerado pela espetaculosa descoberta de um chifre em um negro idoso. No relato
divulgado houve também preocupação de buscar esclarecer que o fenômeno assombroso e
descomunal divulgado não passava de mais uma patologia rara registrada pela ciência.
Conforme relata a nota do jornal,
“Na fazenda do Sr. Joaquim Pereira de Lima existe um preto idoso e que tinha
por ornamento um pouco incômodo, na região occipital, um perfeito chifre à
semelhança dos de um carneiro; este chifre tinha a ponta virada para dentro e o
seu comprimento regula de 20 a 30 centímetros, de sorte que o preto costumava
mandá-lo serrar, para que o não ferisse introduzindo-se na carne. Parece que em
uma dessas operações o chifre ficou abalado, e o certo é que conseguiu afinal o
28
pobre preto ver-se livre, por algum tempo, daquela dádiva importuna que lhe
fizera a natureza. Pelo exame a que procedemos, probabilidade de que ficou
ainda a raiz que tornará, no correr dos tempos, afligir o paciente com o seu
crescimento. Devemos o seu apresentamento a esta redação a um cavalheiro a
quem prezamos e ao Sr. Jesuíno José dos Santos, proprietário da Pharmácia
Normal desta cidade, onde o fenômeno acha-se exposto. Convidamos o público
para ir ver este chifre, que classificamos de humano, e que é uma anomalia, um
fenômeno estupendo e inacreditável.”
Apesar da narrativa veiculada admitir o aspecto fantástico do tormento do velho
negro, prevalecera a interpretação de que a produção córnea tratava-se de uma
deformidade natural, uma aberração absolutamente possível na natureza, enfim, uma
“anomalia”. Desta forma pretendia-se descartar qualquer especulação baseada em
explicações sobrenaturais ou místicas que poderiam aflorar para elucidar o misterioso caso.
O narrador do fato parece ter constatado que as medidas tomadas para sanar o mal
foram apresentadas como provisórias, que se presumira que o chifre que fora serrado
voltaria a crescer. Novamente houve um contentamento em apenas descrever e classificar
de uma maneira insuficiente o insólito chifre como uma anomalia. Não houve detalhes
maiores sobre a origem e causa do mal e providências científicas não são apontadas para
remediar a situação incômoda do negro assolado pela protuberância em forma de chifre de
carneiro. A conclusão que se pode chegar quanto ao débil diagnóstico apresentado é a de
que existia uma anormalidade, não se sabia exatamente do que se tratava, não havia razão
ou explicação para o seu surgimento, não foram sugeridos métodos e procedimentos de
cura para o mal, mas tal patologia fazia parte da natureza e, portanto, pertencia apenas às
investigações de um território científico que no momento se limitava apenas a identificar
tal infortúnio como uma anomalia.
Da mesma forma que no caso demonstrado anteriormente os comentários sobre este
inusitado chifre ganharam ares de mera curiosidade a ponto do chifre tornar-se um objeto
de exposição pública em farmácia da localidade.
No convite ao público para presenciar o chifre extirpado que encontrava-se exposto
na Pharmacia Normal a reportagem atingira aspectos circenses. Chama atenção na nota a
necessidade de reiterar que o corno tratava-se mesmo de oriundo de espécie humana ao
convidar “[...]o público para ir ver este chifre, que classificamos de humano[...]”. Tal
lembrança reforçada ocorreu com a intenção de impedir que pairassem dúvidas sobre uma
possível armação realizada com um chifre de animal.
O estabelecimento farmacêutico naturalmente fazia uma auto-propaganda ao exibir
algo de natureza tão incomum e sensacional aos potenciais futuros fregueses que atraídos
29
pela curiosidade visitariam o comércio podendo assim conseqüentemente consumir artigos
e remédios de suas necessidades.
Outra notícia extraordinária foi encontrada no jornal Minas do Sul também da
cidade de Campanha. Em sua edição de 17 de novembro de 1876 reportara-se o
aparecimento na distante Córsega de uma “mulher pássaro”. Segundo a nota do periódico
“nasceu uma menina que tem na nuca uma verruga donde nasce uma pena, a qual se
renova de seis em seis dias. Entre as deformidades teratológicas é esta uma das mais
curiosas”. Houve uma exploração sensacionalista do tema no próprio título da nota
denominada de “Mulher pássaro”. Apesar deste tom apelativo inicial, típico da Imprensa,
após a descrição de mais um caso incomum onde o narrador relatara o surgimento de penas
brotadas de uma verruga na nuca de uma mulher corsa, houve finalmente a interpretação
de que tal caso tratava-se mais uma vez de uma anomalia das mais notáveis e pitorescas. O
redator ainda encerrara a nota com irônico comentário do jornal francês de onde ele
transcrevera o relato: “depois do homem cão e do homem peixe, vai Paris apreciar a
mulher pássaro”.
Em todos estes casos apresentados percebe-se a opinião de redatores de periódicos
da época atentos e alinhados à perspectiva científica e que buscavam esclarecer os
fenômenos citados à luz da ciência e da racionalidade. Mesmo que a debilidade do
diagnóstico científico se mostrasse evidente a posição destes divulgadores e entusiastas da
explicação científica do mundo ficava declarada. Pode-se afinal presumir que tais
interpretações cientificistas insistentemente apregoadas por estes jornais tratavam-se de
novidades para o pensamento e visão de mundo da população mineira da época. Por trás
destas notícias parece haver uma espécie de caráter pedagógico visando instruir as pessoas
a descartar o uso de perspectivas místicas e fabulosas para compreender os fenômenos
que a mentalidade e imaginário da sociedade da época ainda era amplamente povoada de
crenças e mitos.
Outra informação preciosa sobre o imaginário da época consta da página de
variedades do jornal de São João del-Rei O Arauto de Minas de 9 de julho de 1879. Tal
seção do periódico apresenta um texto com uma série de numerosas superstições da época
intitulado de Superstições dos nossos povos rudes”. Dentre as superstições destacam-se,
como exemplo: Não consintas que em sua casa entre pessoa alguma com o chapéu de sol
armado, porque é sinal de breve adoeceres gravemente (...), “Não comas bananas partidas
com faca, porque morres sem fala (...), Não durmas com os pés para a rua ou para a parte
onde existem igrejas, porque chamas a morte sobre ti. Após um vasto elenco destas
30
proibições-tabus do imaginário popular, o texto termina com as irônicas considerações: “E
outras muitas superstições são tidas como ‘infalíveis’! E quem diga que este é o ‘século
das luzes’!”
Tal nota jornalística não veio assinada, o que faz supor que o autor tratava-se de um
colaborador do próprio jornal ou de outro periódico contemporâneo. Tal achado ilustra um
pitoresco quadro de uma sociedade dividida em duas concepções de ver o mundo: a do
cidadão ilustrado, racionalista, emancipado de misticismos e crendices e a do povo
comum, taxado de “rude” no próprio título do artigo. Novamente nos deparamos com uma
confrontação de perspectivas através de uma amostra de formas discordantes de explicar a
natureza e as coisas do mundo. O responsável pelo texto listara tais crenças supersticiosas
exatamente como se fossem sandices que deveriam pertencer ao passado, embora
reconhecesse que tais crenças ainda estariam presentes no imaginário de pessoas taxadas
como “incultas” da sociedade da época.
Há razões para se desconfiar que os pensamentos de um redator de um periódico da
época, não correspondessem de fato às formas de pensar de grande parte da sociedade
oitocentista. O colaborador devia estar se aproveitando de seu status de formador de
opinião para promover um discurso que se propunha como implacável, legando a um
futuro desaparecimento crendices que ele considerava como atrasadas e bárbaras. Vem ao
caso lembrar que em Minas Gerais a porcentagem de pessoas instruídas e alfabetizadas era
bem modesta. Em censo de 1872, data bem aproximada das fontes documentais utilizadas
nesse trabalho, consta que apenas 13,5% da população de Minas Gerais sabia ler e
escrever.
34
Tal dado parece indicar que a emissão de tais opiniões na imprensa não deveria
ser um fator de influência significativo em relação ao alcance a estes ditos “povos rudes”
mencionados pelo autor.
Enfim, apesar das tentativas crescentes de se ordenar as formas de cura à luz da
ciência e dos ideais civilizatórios, viceja intensamente na vida cotidiana dos mineiros do
século XIX uma mentalidade imersa na superstição e credulidade. O ilustre viajante
naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, provido de uma formação iluminista e
racionalista, espanta-se com o imaginário místico das Minas, relatando em suas viagens
que,
“Nos países civilizados a ausência de ensinamentos religiosos e morais conduz a
um rude materialismo, ao passo que naqueles que ainda não se civilizaram
inteiramente esta falta geralmente leva à superstição. Assim é que os habitantes
34
NOVAIS, Fernando A. (org.) Apêndice História da vida privada no Brasil Império : A corte e a
modernidade nacional Vol.2 São Paulo: Companhia das letras, 1997. p. 475.
31
da região que descrevo agora acreditam em feiticeiros e lobisomens, e muitos
chegam ao cúmulo de considerar heréticos os que se recusam a acreditar
nisso
35
”.
No decorrer do século XIX, principalmente após a criação das Faculdades de
Medicina no Rio de Janeiro e na Bahia em 1832, começa a desenvolver-se a construção de
um discurso médico oficial que passa a defender o monopólio das práticas de cura na
sociedade brasileira. Os médicos da Academia Imperial de Medicina no Rio de Janeiro
passam a se auto-intitular como detentores do saber e a taxar indiscriminadamente as
formas marginais e tradicionais de cura como charlatanismo. Edmundo Campos Coelho,
em seus estudos sobre as profissões imperiais, aponta uma “alienação espiritual” dos
médicos, que ao mesmo tempo em que criticavam o provincianismo dos costumes e a
ignorância do povo, chegavam a submeter “um indigente morfético de um Lazareto do Rio
de Janeiro a uma picada de cascavel para tentar obter sua cura”, sendo que “o paciente
morreu 24 horas após a mordedura”
36
.
Tal recurso inusitado para o tratamento da lepra também foi verificado por Saint-
Hilaire, décadas antes, em suas viagens numa passagem contada em Caeté. Neste relato,
houve confirmação de cura num fato sucedido ainda mais complexo. O enfermo que se
submetera a uma picada de cascavel encontrava-se acometido de lepra e hidrofobia ao
mesmo tempo. Segundo o autor,
“Um homem atacado de morféia foi mordido por um cão raivoso. Quando se
manifestaram os primeiros e terríveis sintomas da doença prenderam-no dentro
de um quartinho. Sua mulher, ao lhe levar comida, horrorizou-se com o seu
estado e saiu correndo, deixando aberta a porta do quarto. O doente fugiu e se
pôs a correr pelos campos. Algumas horas mais tarde ele reapareceu,
inteiramente calmo, dizendo que tinha sido mordido por uma cascavel e pedindo
a presença de um padre. Confessou-se com ele, completamente lúcido. A ferida
causada pela mordida da cobra foi medicada com amoníaco. A partir desse
momento cessaram todos os sintomas da hidrofobia, e passado algum tempo a
lepra desapareceu completamente.
37
Enfim, apesar do assombro que a idéia possa causar, foi muito difundida em muitas
partes da América a noção de que a mordedura da cascavel curava a lepra e não matava o
doente. Segundo conclusões do Dr. Sigaud, citado por Saint-Hilaire, a partir dos sintomas
manifestados nos doentes, “a ação do veneno modifica a pele de uma forma peculiar, e que
35
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. op. cit. p. 76.
36
COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de
Janeiro 1822-1930. Op. cit. p. 109.
37
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. Op. cit. p. 88
32
talvez possam ser alcançados excelentes resultados através de uma inoculação feita
cientificamente.”
38
Estes acontecimentos são exemplos significativos de que mesmo a dita medicina
científica oficial se valia em casos extremos de métodos empíricos da cultura popular, até
mesmo aparentemente “bárbaros” e rudimentares para se obter a cura. Apesar de um
discurso médico impregnado de prepotência e auto-suficiência, na realidade, em sua fase
de formação, a medicina oficial, ainda insatisfatória e pouco convicta de seus
procedimentos, se fartou de usar artifícios recorrentes nas terapêuticas populares e
empíricas. Essa inequívoca interpenetração de saberes demonstra uma circularidade
cultural característica do século XIX. O pedantismo característico da Academia Imperial
de Medicina não se justifica, por exemplo, quando sabemos que a sangria, usada pelos
barbeiros, era recurso freqüentemente usado por seus médicos, permanecendo ainda por
muito tempo sendo utilizada pela medicina oficial.
A cura anunciada: o universo multifacetado da cura nos jornais
Nos Jornais de São João del-Rei e de outras cidades mineiras da época, pude
verificar que as divulgações de novidades e experimentos ditos científicos refletiam uma
insistente busca por soluções que sempre reivindicavam para si um status superior e
infalível. Apesar das páginas propagandísticas dos periódicos estarem dominadas por
remédios e tratamentos que se auto-intitulavam como a quinta-essência do conhecimento
científico receitas populares e alternativas de cura também foram registradas e discutidas
nos jornais, mesmo que numa intensidade menor. De qualquer modo pode-se presumir que
à revelia dos predominantes métodos de cura veiculados nos jornais, na prática, uma gama
variada de tratamentos e métodos ocupavam o campo da cura para combater os flagelos
das enfermidades que afligiam a sociedade mineira da segunda metade do século XIX.
Através do século XIX uma incessante busca de aperfeiçoamento das práticas de
cura passou a multiplicar e diversificar os caminhos para tratar de males que assombravam
a população oitocentista. No final do século, em propaganda encontrada no periódico
Gazeta de Oliveira de 4 de agosto de 1895, anuncia-se um composto preparado por um
farmacêutico do município de Bom Sucesso prometendo progressos fantásticos no
38
SIGAUD apud SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. Op. cit. Idem,
Ibidem.
33
tratamento da morféia (lepra): a Vegetalina. A partir das experiências com um casal de
morféticos, Vicente e Cândida, conforme relata o informativo,
“as excrescências tuberculosas foram caindo uma a uma, as úlceras foram
cicatrizando, e hoje com quanto a pele se mostre toda rendilhada de tecido
cicatricial, o estado dos referidos enfermos, se não é o de uma cura definitiva
sancionada pelo correr do tempo, é incontestavelmente o de uma cura relativa,
como pode ser testemunhado por todos que quiserem se dar a esse trabalho, e
como é anunciado pelos próprios doentes que se dizem completamente
restabelecidos, porque não sentem hoje mais nada.”
Aos poucos, muitos procedimentos de cura objetivavam ter uma fundamentação de
natureza mais científica. É bem verdade que esta busca muitas vezes resultava em
imprecisões que puderam ser corrigidas com o tempo. Em relação a busca da cura da
hidrofobia, por exemplo, no jornal de São João del-Rei O Arauto de Minas de 23 de
dezembro de 1878 encontrei uma proposta de método de cura extraída do Jornal de
Pharmacia e sciencias acceosrias (sic);
“transcreveremos como remédio para a raiva a profunda cauterização das
feridas feitas pelas mordeduras de animais hidrófobos e dando conjuntamente
uma poção phênica, a base de ácido fênico. Se acontecer que estas doses por
excessivas produzam efeitos tóxicos, remedeiam-se estes administrando
imediatamente leite de amêndoas e uma poção oleosa e laxante. Se a
propriedade virulenta da saliva rábica é devido a um parasita, como hoje se
pretende, o ácido phênico está racionalmente indicado. ”
Esta informação proveniente de publicação de um órgão científico buscava
transmitir um estágio de conhecimento sobre a raiva ainda insuficiente naquele momento.
Convém lembrar que tal indicação “racional” do ácido fênico para o tratamento da
hidrofobia apresentada no jornal ocorrera em década anterior aos estudos desenvolvidos
pelo cientista Louis Pasteur que acarretariam na descoberta da vacina anti-rábica.
O periódico sanjoanense O Arauto de Minas, na edição de 9 de dezembro de 1877,
apresenta uma curiosa notícia da descoberta das águas virtuosas de Tamanduá;
“Há quatro para cinco anos estando uma pobre mulher a apanhar vassouras nas
abas do serrote do Urubu, a 2 léguas da cidade de Tamanduá, e tendo uma
filhinha toda coberta de úlceras, para aliviar-lhe as dores banhou-a em uma
pequena veia de água que desce do mesmo serrote. E na noite imediata a menina,
contra o costume, dormiu sossegada; no dia seguinte a pobre mulher renovou a
experiência e no fim de pouco tempo estava a menina inteiramente livre das
úlceras. Espalhou-se logo a notícia: começaram a afluir doentes de diversos
pontos, tendo as águas operado curas admiráveis”.
34
As terapias através das propriedades vitais das águas, inclusive defendidas
cientificamente, causaram grande sensação na sociedade brasileira da segunda metade do
século XIX. Portanto, também nos sertões mineiros de Itapecerica, antiga vila de
Tamanduá, conta-se narrativa acerca de poderosas águas que teriam atraído enfermos em
busca de providenciais curas.
Outra característica da época verificada nos periódicos abordados é o fato dos
preparados farmacêuticos prestarem-se para as mais variadas finalidades. Muitos remédios
eram indicados para a cura de uma infinidade de doenças. O rob anti-rheumático de
Cardozo ilustra bem esse tipo de caso. A propaganda do remédio encontra-se no periódico
de São João del-Rei O Arauto de Minas de 23 de dezembro de 1882. A solução era vendida
em casa de G. Jopput & Cia a rua General Câmara, 63, na Corte. O preparado era indicado
para a cura de reumatismo, sífilis, morféia e tuberculose. Segundo o informe, o remédio
era;
“infalível nestas moléstias curando-as por uma maneira admirável, tem havido
doentes que tendo dores no peito e costas, já se supunham tízicos e com este rob,
acham-se completamente curados, e alguns supunham sofrerem pontadas no
coração e com o uso deste santo remédio acham-se curados. Pessoas todas
chagadas e com escróphulas ficarão em pouco tempo curadas com este rob:
experimentai e vereis vossa saúde e vosso sangue perfeito ”.
Na chamada “folha popular” Renascença da cidade de São João del-Rei em sua
edição de 15 de fevereiro de 1890 há um anúncio publicitário do afamado “óleo puro de
fígado de bacalhau” Emulsão Scott, produto até hoje encontrado nas prateleiras das
farmácias do Brasil. Na propaganda do jornal da época o preparado a base de óleo de
fígado de bacalhau, hipofosfito de sódio e cálcio era indicado como um “grande remédio
para a cura radical da tísica, bronquites, escrófulas, raquitismo, anemia, debilidade em
geral, defluxos, tosse crônica, afecções do peito e da garganta e todas enfermidades
consumptivas, tanto nas crianças, como nos adultos”. O anúncio prometia realmente um
remédio de poder implacável contra diversos males. Entretanto, atualmente a bula do
duradouro medicamento indica o seu tratamento apenas como “medicação tônica nos
estados de desnutrição ou carência das vitaminas A e D”.
Tais soluções indicadas para uma ampla diversidade de doenças mostraram-se
recorrentes nos jornais pesquisados. Segundo os estudos de Betânia Gonçalves Figueiredo
sobre as formas de curas nas Minas oitocentista,
35
“parece, pela extensa lista de indicações, que remédio bom era aquele capaz de
atacar e combater o leque mais variado das doenças e perturbações no equilíbrio
da saúde. O remédio específico para um determinado problema acaba tornando-
se uma raridade.
39
O fundamento que sustenta tais anúncios parece reproduzir uma lógica muito
parecida com aquela utilizada nas propagandas dos curandeiros e raizeiros de barracas de
feiras, por exemplo, que prometem entusiasticamente com suas panacéias e garrafadas a
cura para dezenas de males através de suas soluções. Pesa a favor de muitos destes
curandeiros o fato de que as garrafadas tratam-se de remédios fitoterápicos que geralmente
são compostos por diferentes plantas com diferentes propriedades terapêuticas, o que desta
forma, justificaria a multifuncionalidade de suas preparações caseiras. Mas também na
medicina “rústica’ popular acima comentada a indicação de algumas substâncias
naturais que isoladas são receitadas com o propósito de curar as mais diversas mazelas
possíveis, muitas delas com suas tradicionais e curiosas designações populares como
“espinhela caída”, “nó nas tripas”, “água no pulmão”, “pontada”, dentre outras.
No caso de muitos destes preparados farmacêuticos veiculados nos jornais percebe-
se que suas composições baseavam-se em uma única ou em poucas substâncias utilizadas,
tratando-se, portanto, de substâncias com poderes quase milagrosos, já que eram indicadas
para uma ampla gama de doenças. Não há elementos à disposição que possam corroborar a
eficácia ou inutilidade destes medicamentos, mas indubitavelmente podemos supor que o
sucesso impecável destes produtos farmacêuticos em todas as enfermidades indicadas seja
pouco provável. A própria natureza das doenças que estes potenciais remédios prometiam
curar pareciam ter uma gravidade acentuada para a época como no caso do citado Rob
anti-rheumático Cardoso, por exemplo, indicado para reumatismo, lepra, tuberculose e
sífilis.
Dentre os informes que divulgam remédios farmacêuticos, inclusive aqueles de
características polivalentes e multi-funcionais, nota-se que só nos anúncios da última
década do século XIX existe uma preocupação por parte dos fabricantes de se salientar
uma aprovação dos órgãos fiscalizadores acerca de uma indispensável qualificação da
procedência e idoneidade dos remédios, por mais que algumas destas avalizações
pudessem parecer bastante questionáveis. No caso do citado e renomado medicamento
Emulsão Scott que é referido na propaganda como “tão agradável ao paladar como o leite”,
menção na propaganda de aprovação pela “Exma. Junta Central de Hygiene pública” e
39
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar Cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no
século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Editora Vício de Leitura, 2002. p. 114.
36
autorização pelo Governo. Por mais inverossímeis que possam parecer as prometidas
atribuições do medicamento houve anuência dos órgãos responsáveis pela fiscalização da
saúde pública na liberação do tradicional remédio e de sua megalomaníaca propaganda.
Gabriela dos Reis Sampaio, ao investigar as propagandas de remédios na imprensa
da corte no final do Império, enquadra muitos destes remédios da mesma natureza desses
aqui discutidos como “tratamentos alternativos à medicina oficial” e como “não
científicos”.
40
Diante destas colocações mais uma vez aflora o pertinente debate em torno
da dificuldade de se evidenciar o caráter estritamente científico das diversas soluções
apresentadas nos jornais, mesmo que por vezes fossem administradas por farmacêuticos e
até regulamentadas pelos órgãos competentes. Gabriela salientou, por exemplo, casos de
remédios indicados para a tuberculose como o “Xarope do bosque”
41
, dentre outros
receitados para as mais diferentes enfermidades.
Em edição do periódico sanjoanense Astro do Século de 17 de agosto de 1893
encontra-se em sua página de propaganda dois anúncios de diferentes produtos indicados
contra a morféia (lepra). As publicidades dos dois remédios concorrentes acham-se
dispostas uma ao lado da outra e ambas ocupam uma dimensão considerável da página do
jornal. Os informes destes produtos além de incensar as virtudes dos respectivos
medicamentos fazem questão de enfatizar o reconhecimento oficial pelos órgãos
fiscalizadores responsáveis pela Saúde pública, em particular a Junta Central de Higiene
pública.
Na propaganda do Elixir Morato, que além de ser indicado para a morféia, promete
curar também a sífilis e o reumatismo, uma menção de que “a aprovação da junta de
higiene do Rio de Janeiro e a autorização do governo são uma garantia aos benefícios deste
remédio”. O entusiasmado texto publicitário ainda acrescenta que, “a felicidade da
humanidade é a descoberta do Elixir M. Morato”.
no reclame do produto rival, a Vegetalina, citada neste trabalho, também a
alegação de que o medicamento era “aprovado e licenciado pela exma. Inspetoria de
Higiene da Capital Federal”. O informativo acrescenta ainda que,
“Esta nova preparação é a mais poderosa descoberta que se tem alcançado até
hoje na terapêutica para a cura radical da syphilis, reumatismo, afecções
boubáticas, darthros rebeldes, empigens, eczema, feridas, úlceras, prurigo, e em
todas as moléstias da pele e originadas da impureza do sangue, como atestam
40
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura As diferentes medicinas no Rio de Janeiro
Imperial. Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT, IFCH, 2001. p. 78.
41
Idem, Ibidem.
37
distinctos médicos e pessoas acima de toda suspeita cujos atestados estão
publicados nos prospectos que acompanham os vidros”.
Pode-se especular que, diante de tantas denominações técnicas características da
época, tal infinidade de indicações provocaria uma grande confusão na cabeça dos
contemporâneos. Depois de enunciar todas estas doenças para as quais a solução é
recomendada o anúncio ainda destaca que “fatos bem recentes provam que a Vegetalina é
sem contestação o mais poderoso medicamento no tratamento da morféia”.
Em uma das referências da literatura naturalista brasileira da época, a obra A
carne
42
de Júlio Ribeiro, há comentários que demonstram a fama e a repercussão do
medicamento Vegetalina junto à sociedade brasileira do final dos oitocentos. Em certa
altura deste romance a personagem Lenita fora acometida de uma picada de cobra cascavel
e tratada diligentemente pelo seu enamorado Manuel Barbosa. Posteriormente, o Coronel
Barbosa, pai de Manuel, preocupado com a terapêutica adotada e o restabelecimento da
moça, indagara aflitíssimo a Barbosa, “Vegetalina, por que não lhe deu Vegetalina? Um
grande remédio”. Ao que o interlocutor respondera, “Grande remédio é o álcool. A
Vegetalina e outros quejandos específicos devem o efeito, que se lhes atribui, ao álcool em
que são administrados”. O coronel imediatamente ponderara, “Olhe que a Vegetalina tem
arrancado muita gente da sepultura”. Manuel cheio de curiosidade perguntara, “E como se
a Vegetalina, não me dirá?” Ao que o Coronel emendara, “Em cachaça forte, de vinte e
quatro graus.”
43
Baseado nos relatos destes fragmentos da literatura contemporânea percebe-se que
não a Vegetalina era muito estimada entre os viventes mas também o usufruto de
bebidas alcoólicas em casos de primeiros socorros. Cabe ressaltar que no acidente ofídico
do romance um dos procedimentos utilizados por Manuel Barbosa para inibir a ação do
veneno da cobra no corpo de Lenita foi a ingestão de seguidos cálices de rum.
44
Na prática, a convivência e interpenetração dos mais diversos tipos de tratamento
sugerem um amplo universo de possibilidades de cura, seja ela amparada na “ciência” ou
nas práticas populares tradicionais e empíricas de cura. E a despeito dos embates e
confrontações de métodos que começavam a surgir parece que um olhar minucioso e
descomprometido sobre as produções e experimentos da época interpretaria que tais
tentativas de dissociações e antagonismos se demonstrariam prematuras e esnobes, que
42
RIBEIRO, Júlio. A carne. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
43
Idem, p. 108.
44
Idem, p. 106-107.
38
as fronteiras entre os procedimentos racionais, médicos e científicos e as práticas empíricas
e populares mostravam-se escorregadias e fluidas.
Mordeduras de cobras: receitas recomendadas nos oitocentos
Em casos delicados e perigosos como nas ocorrências de picada de animais
peçonhentos, a utilização de práticas tradicionais era recurso recorrente nas Minas. A
sabedoria popular, muitas vezes fundamentada nos conhecimentos sobre ervas e plantas,
era de fundamental importância para a sociedade oitocentista remediar os males e doenças
que a afligiam. Na edição do jornal O Arauto de Minas de 2 de junho de 1877 destaca-se
no noticiário uma nota extraída do periódico Comércio de Iguape que oferece uma receita
indicada para mordedura de cobra, que foi enviada pelo senhor Antônio Constantino de
Oliveira;
“Saindo de passeio minha mulher, levando consigo um meu filho, que conta 10
anos de idade, na volta para casa foi aquela criança mordida por uma Jararacuçu,
em um dos dedos do pé: lembrando-me eu de ter lido no ‘Comércio de Iguape’
11, uma receita aplicada contra veneno de cobras, imediatamente lancei mão
da erva chamada vassourinha, que abunda pelos campos da nossa situação;
machuquei algumas folhas e misturando-as com aguardente, dei esse líquido a
beber meu filho, deitando o resíduo sobre a ferida seriam sete horas da manhã, e
quando foi pela volta do meio dia a criança não sentia incômodo algum
mostrando desejos de sair de quarto, para aplicar-se as suas brincadeiras.
Fazendo-lhe esta comunicação, autorizo-o a asseverar que o remédio, a que me
refiro, é bastante eficaz contra o veneno das cobras.”
Como podemos verificar nos relatos acima os conhecimentos empíricos eram
aplicados diante de situações preocupantes que ameaçavam a vida das pessoas como, por
exemplo, nos casos de mordedura de animais peçonhentos. Nota-se que o cidadão que
indica o remédio fitoterápico para picada de cobra aprendera a receita no próprio jornal
para o qual enviara a boa notícia. Tal fato sinaliza que um procedimento tipicamente
popular fora veiculado pelo jornal Comercio de Iguape para que seus leitores procedessem
de acordo com os métodos recomendados por um receituário baseado em repertório
tradicional e costumeiro de curas populares para sanar possíveis males decorrentes de
picadas de cobras.
Os acontecimentos passados e relatados pelo leitor Sr. Antônio Constantino de
Oliveira parecem confirmar a credibilidade e segurança da receita da erva vassourinha
divulgada anteriormente no jornal. Uma indicação de natureza genuinamente popular
39
restabelecera totalmente o filho do emissor da notícia dos infortúnios de uma mordida de
jararacuçu, cobra sabidamente venenosa.
Neste interessante caso parece estabelecer-se um diálogo, uma comunicação
proveitosa entre um órgão noticioso e um cidadão que aprendera um procedimento de cura
publicado no mencionado jornal e que, fazendo uso deste método, fez questão
posteriormente de relatar e assegurar a eficácia de tal remédio no próprio veículo.
Formas de tratamentos para mordeduras de cobras também foram buscados por
professores e cientistas daquela época em variadas partes do mundo, inclusive com notícias
dos mais longínquos lugares repercutindo nos jornais de São João del-Rei. A edição de 23
de dezembro de 1878 do jornal Arauto de Minas relata informações a cerca de receita
indicada para mordedura de cobras, mais precisamente sobre a utilização na Austrália da
prática de injeção de amoníaco em pessoas picadas de cobra. Tal notícia adveio
originalmente do periódico O Liberal de Santo Amaro e relata o seguinte,
“Na Austrália tem-se ultimamente verificado a eficácia do remédio do professor
Halford (injeção subcutânea de amoníaco) em mais de um caso de picadas de
cobras. A 14 de dezembro, em Seymour, um moço de 26 anos, Wyer, foi
mordido por uma cobra entre o polegar e o index da mão direita. Deu-se o caso
às nove horas da noite e o primeiro curativo foi feito as 11 e meia horas, quando
o paciente se achava paralítico e quase sem sentidos. Praticou-se uma injeção
de amoníacos em seu braço direito, e ele voltou a si. Foi aplicada uma segunda
injeção e o paciente ficou de todo bom.”
Parece bastante curioso que o remédio recomendado nesta notícia originária da
Austrália seja atribuído ao professor Halford como se este fosse uma grande autoridade
descobridora do experimento. Este procedimento relatado com tons tão solenes não deveria
ser uma novidade absoluta para o público leitor do jornal. Tal especulação provém de
passagem de Saint-Hilaire citada neste trabalho dando notícia do uso deste experimento
na vila mineira de Caeté há mais de 50 anos antes da informação australiana. Em tal caso o
amoníaco teria sido usado para a cura de uma ferida provocada por mordida de cascavel
em um desgraçado homem assolado pela morféia e pela raiva. Neste caso, o desamparado
homem morfético e raivoso propositadamente deixara-se picar por uma cascavel buscando
sanar do mal da morféia e o remédio a que ele recorreu para tratar da ferida provocada pela
picada da serpente teria sido o amoníaco.
Portanto, um procedimento enaltecido no jornal como uma novidade científica
australiana provavelmente fazia parte do arsenal de recursos que populares mineiros
oitocentistas recorriam nas preocupantes ocorrências de picadas de cobra.
40
Em meio às várias alternativas lançadas pela ciência para solucionar os problemas
referentes às mazelas decorrentes dos acidentes com cobras venenosas um embate com as
formas culturais tradicionais de cura passava a se manifestar. Como antes dos
experimentos científicos havia um forte domínio dos curandeiros no tratamento de picadas
de serpentes, a nascente crença nos procedimentos científicos passa a desqualificar o
empirismo destes agentes da cura como algo retrógrado e grosseiro.
Um editorial do jornal de Pitangui O Iniciador datado de 4 de junho de 1882
comenta sobre uma descoberta científica proveniente da Corte que era considerada como
“um poderoso antídoto do veneno das cobras, o permanganato de potássio”. Segundo as
entusiasmadas palavras do editorial “com as repetidas curas que se tem feito é sabido que
ninguém mais morrerá picado de cobra tendo à mão o precioso e estimável antídoto”.
O jornal ainda trata de exaltar o mérito do ilustre descobridor do propalado
antídoto, o médico e cientista João Baptista de Lacerda, que anos mais tarde viria a se
tornar diretor do Museu Nacional. A novidade científica é descrita pelo periódico da
seguinte maneira,
“Consiste a sua aplicação em fazer-se uma incisão no lugar da dentada, entre a
pele e a carne, e com uma pequena seringa fazer-se a injeção na incisão com o
remédio dissolvido em água: pratica-se mais vezes conforme a gravidade dos
sintomas do doente. Tem havido exemplos de salvar-se pessoas mordidas de
cobras, as de veneno mais forte, como a jararaca, a urutu, a cascavel, etc...”
em edição do mesmo jornal O Iniciador de 24 de junho de 1882, precisamente
20 dias depois da publicação do editorial, um texto assinado pelo cidadão José dos
Santos de Carvalho enaltecendo os prodígios do novo experimento científico do
permanganato de potássio citado no editorial. O preocupado indivíduo tendo tido
experiência no emprego do permanganato de potássio expõe aos leitores as medidas exatas
para se preparar as soluções das injeções. O cidadão diz possuir “desde há muito a fórmula
primitiva do seu ilustre descobridor, e os meios empregados por ele para aplicação deste
heróico medicamento, e como julgamos de alguma utilidade dá-la a publicidade, fazemos”.
Como não especificação no jornal sobre a profissão do prestimoso cidadão, a suposição
dele se tratar de um farmacêutico parece descartada. Possivelmente tal indivíduo se tratasse
mesmo de um fazendeiro das redondezas atento às informações mais atualizadas sobre os
métodos de cura formais lançados pela ciência da época.
Mesmo com um evidente entusiasmo com o inovador método o cidadão numa
passagem de seu escrito atenta para o fato de que “é bom usar-se desta fórmula enquanto a
41
experiência não nos fornece outros meios mais adiantados”. Parece haver nestas palavras
específicas um tom bem mais precavido em relação à empolgação geral que reinou no
decorrer da integralidade de seu texto. Tal afirmação, ainda que tenha a preocupação de
recomendar a receita, destoa de todo o resto do discurso entusiasta tanto do jornal como
dele próprio. O interlocutor do jornal chamou o medicamento de “heróico”, de “precioso”
e de “maravilhoso” no decorrer do texto, mas apesar disso ainda espera que a ciência
avance ainda mais para que alcance um método mais satisfatório.
O recurso do permanganato não seria tão eficaz assim? Tal trecho tratava-se de uma
brecha que possibilitaria conjeturar existir uma dúvida sobre a real capacidade e eficácia de
tal procedimento ao mesmo tempo tão estimado e elogiado pelo leitor correspondente e
pelo periódico? Talvez tenha se constatado, senão uma contradição, pelo menos uma
variação da intensidade de sua opinião a respeito das efetivas benesses da nova descoberta,
o que deflagraria uma sutil incoerência.
Mas apesar deste curioso detalhe é importante ressaltar que a intenção do texto do
leitor era mesmo de fazer uma fervorosa apologia da novidade científica debatida, a
utilização do permanganato de potássio em mordeduras de cobras. O leitor inclusive chega
a transmitir notícias repercutidas de casos em que a aplicação do medicamento ocorrera,
“Em agosto do ano passado foi este medicamento também empregado
internamente pelo capitão L. R. de Souza Rezende, do Bananal de Itaguaí, na
dose de meia colher de chá em um cálice d’água açucarada, conjuntamente
aplicando as injeções; esta aplicação foi coroada de feliz resultado. O Sr. J. C. de
Almeida Gomes fez aplicação idêntica em uma escrava que se achava
amamentando, e notou que em pouco seu restabelecimento era completo, sem
que a secreção láctea sofresse a menor alteração”.
Após citar estes dois casos em que o procedimento científico do permanganato
mostrou-se bastante eficaz e exitoso o leitor passa a manifestar em sua inflamada retórica
um discurso de confrontação com os agentes de cura que geralmente eram requisitados
pelas pessoas em situações de picadas de cobras, os curandeiros e os benzedores. Segundo
as palavras do leitor,
“Por todas as partes tem sido maravilhoso o emprego do permanganato de
potássio. Infelizmente, porém, entre nós, não se conta um destes casos. Será
devido a não haver por acaso entre nós o réptil venenoso? A razão é outra: é que
entre nós são os meios que a sciência aconselham quase sempre preteridos pela
intervenção, e muitas vezes, desastrosa, dos curandeiros, que sempre querem à
palma em tudo e em tudo se intrometem”.
42
Através destas colocações podemos supor que os casos de cura com permanganato
de potássio narrados pelo leitor anteriormente são resultantes de fontes de alguma literatura
científica que ele tratou de retransmitir ao jornal. Apesar de uma impressão inicial de que o
leitor estivesse mencionando acontecimentos próximos ao seu cotidiano, os dois casos
citados deveriam ter sido recolhidos de alguma publicação oficial ou talvez até mesmo de
narrativas de pessoas distantes que lhe teriam comunicado. O citado logradouro de Bananal
do Itaguaí, por exemplo, referido em um dos casos tratava-se de fazenda nas redondezas da
capital Rio de Janeiro bastante distante de Buriti da estrada, arraial mineiro próximo à
cidade de Pitangui, de onde o correspondente declarava viver. Portanto, o interlocutor se
valera de conhecimentos teóricos e experiências indiretas para atestar a confiabilidade do
louvado tratamento.
O leitor fizera questão de alardear que na região de Pitangui tais métodos
científicos apontados como infalíveis são rejeitados em prol das questionadas
interferências do curador popular, o curandeiro. Nesta posição do interlocutor do jornal
fica demonstrado um claro sinal de repúdio às formas costumeiras de cura. O ajuizamento
recriminador do leitor não se atém apenas ao universo das possibilidades de métodos de
curas referentes às picadas de cobras, mas relativos a toda e qualquer enfermidade que
assolasse as pessoas. Portanto, no seu entendimento, os meios científicos são de uma forma
geral dispensados em troca da atuação maciça dos curandeiros que se “intrometem
desgraçadamente” em largo campo de ação das práticas de cura.
Ao mesmo tempo em que há uma crítica aguda das atividades de curandeiros e
benzedores de pastos, uma admissão de que tais agentes são predominantemente
procurados pela sociedade nos casos de acidentes com cobras e em outros casos de
adversidades. É interessante que este propósito de reação e embate contra estas práticas
seculares de cura tenha partido de um leitor e o jornal encarregara-se de divulgar este
discurso cientificista. Neste caso foi comprovada uma troca de informações e um diálogo
entre os redatores de um jornal, através de seu editorial, e um leitor ávido por emitir suas
informações e opiniões. A discussão e esclarecimento sobre as benfeitorias de um novo
experimento científico, o permanganato de potássio, acabou por resultar em conseqüente
desqualificação dos artifícios de cura empírico-populares que preferencialmente eram
usados em casos de mordeduras de cobras e que, além disso, eram compreendidos pela
população como o que havia de mais efetivo contra estes acidentes.
É importante lembrar que o antídoto amplamente divulgado tratava-se de
descoberta bastante recente. Como relatara o próprio editorial do jornal “as pessoas que
43
não lêem os jornais da Corte, não terão ainda conhecimento da importantíssima descoberta
de um poderoso antídoto do veneno das cobras, o permanganato de potássio”. A notícia da
descoberta de João Baptista de Lacerda foi publicada pelo Jornal do Comércio em 13 de
julho de 1881, quando inclusive fizera a experiência na presença do próprio imperador.
45
Portanto, o experimento científico não tinha completado nem um ano de existência na data
em que o leitor tecera suas considerações sobre a ínfima adesão ao seu uso nas entranhas
das Minas Gerais. O acentuado caráter novo do invento dificultaria sobremaneira uma
propagação imediata nos confins de Minas, mais precisamente no sertão mineiro de
Pitangui. Mas independente deste aspecto salientado e das próprias condições de recepção
de tais novidades pelo público em geral, função do reduzido número de leitores, é de se
supor, pelas razões expostas, uma resistência natural da população a estes métodos
científicos, mesmo depois de um esclarecimento e divulgação maior sobre o recente
experimento científico, haja vista que a recorrência aos curandeiros nos tratamentos de
cura em geral era algo inquestionável, como o próprio interlocutor do jornal tratou de
esclarecer.
Para finalizar esta minuciosa investigação do texto informativo do cidadão José dos
Santos de Carvalho enviado ao jornal O iniciador vale a pena refletir sobre sua mensagem
de alerta no final do seu escrito, com direito à uma instigante sugestão de substituição de
artifícios de proteção contra mordidas de cobras. Enfim, sobre o antídoto a base de
permanganato de potássio apregoado como incontestável solução para as picadas de
serpentes, o leitor escreve: “Ninguém mais deve prescindir de um vidro deste maravilhoso
medicamento, legado precioso do Dr. Lacerda; deve ser ele agora o - vade-mecum - de
todos que tem receios de cobras. Devemos conduzi-lo como conduziam a medalha de São
bento.”
Além de propor a previdente medida de manter a população sempre munida da
substância fartamente indicada, ele incita as pessoas a possuí-la a tira-colo, assim como
estas pessoas costumavam carregar suas medalhas de São Bento, tradicionais amuletos
religiosos de proteção contra picadas de cobra dentre outros infortúnios como as tentações
demoníacas, por exemplo.
Note-se que, de acordo com a visão do interlocutor do jornal, um achado de
natureza científica deveria sobrepor-se às simpatias e superstições típicas da época, o que
45
Fonte: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/P/verbetes/labfisexp.htm, visitado a 10/04/2010.
Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930) Verbete: Laboratório de
fisiologia experimental. Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
44
de certa forma atesta o reconhecimento da relevância destas crenças populares no
imaginário das pessoas. E por isso mesmo, por causa desta forte visão de mundo e desta
mentalidade da sociedade imersa nas crenças e nos costumes arraigados, o determinado
leitor preocupava-se em divulgar combativamente os conhecimentos científicos que ele
julgava como imprescindíveis para sanar as mazelas as quais os recursos tradicionais dos
curandeiros interferiam de uma forma desastrosa, de acordo com o seu entendimento.
Parece haver neste discurso do interlocutor uma ânsia, uma expectativa, uma crença
em torno de uma ciência que viria para explicar e resolver todas as mazelas do mundo. Se
não se defendia a idéia de uma solução final, pelo menos se defendia a idéia de uma
solução superior a qualquer outra possibilidade de cura marginal à ciência. O problema é
quando constatamos que as formas alternativas e marginais de cura (populares, empíricas,
tradicionais, costumeiras, mágicas) não destoavam muito em resultados daqueles obtidos
pelos recursos científicos disponíveis até então. Em muitos casos de enfermidades diversas
as práticas populares mostravam-se até mais eficientes. Embora neste caso não esteja
apenas em questão a eficácia, mas o próprio discurso, a própria linguagem, a própria
relação curador-paciente que tratavam-se de elementos influenciadores tanto na escolha do
método de cura como na potencialização das possibilidades da almejada cura.
Alguns tipos de agentes populares de cura como os curandeiros, feiticeiros e
benzedores, principalmente, dispunham de um poder de influência provenientes de uma
verve carismática e de uma retórica persuasiva administrada em suas práticas de cura que
superava as expressões frias e ininteligíveis dos precários diagnósticos da medicina oficial
da época. Portanto, as práticas ritualísticas mágicas de cura se valiam de uma linguagem
simbólica que evocava o mito sendo desta forma “muito mais eficiente que a linguagem
médico-científica. Saber, por exemplo, que a causa da doença que temos é um vírus não
interfere na nossa possibilidade de cura”
46
. As abordagens sociológicas de Gilberto Freyre
sobre a natureza da medicina brasileira atentam para um prejudicial afastamento dos
médicos das realidades culturais da clientela tratada. Segundo o pensador, um preocupante
e comum problema para o bom exercício da profissão médica tratava-se da “deficiência no
modo psicossocial de comunicar-se com doentes de origens e de situações sociais
diferentes das suas”.
47
46
MONTERO, Paula. Magia e Pensamento mágico. São Paulo: Editora Ática, 1990. p. 63.
47
FREYRE, Gilberto. Médico, doentes e contextos sociais: Uma abordagem sociológica. Rio de Janeiro:
Editora Globo, 1983. p. 173.
45
Para além da mera questão da linguagem, os conhecimentos médico-científicos
muitas vezes parecem desprezar uma abordagem completa sobre a pessoa do doente, se
limitando a tratar da doença específica em questão, ignorando desta forma, outros aspectos
que contribuem para constituir a plenitude do estado de saúde do indivíduo. No caso dos
tratamentos com curandeiros e feiticeiros, “ao atribuir um sentido mítico às tensões
cotidianas a que o indivíduo vive submetido, a ação mágica deixa de ser uma intervenção
puramente técnica sobre um corpo fragmentado em partes doentes (que é a maneira como a
medicina concebe o paciente).”
48
Mas a despeito destas ponderações as notícias sobre o novo tratamento científico
contra mordeduras de cobras peçonhentas repercutiram em outros jornais de Minas Gerais.
Também no periódico sanjoanense Gazeta Mineira é apresentado o método do
permanganato de potássio para remediar-se os danos de picadas de cobra. Tal comunicado
parte de médico de uma freguesia de São João del-Rei recomendando a dita receita
experimentada em laboratório pelo Dr. João Batista Lacerda. A informação se encontra no
noticiário da Gazeta Mineira de 14 de fevereiro de 1884;
“O distinto médico Sr. Dr. Domingos Alves Moreira, teve em sua clínica, na
Freguesia da Lage, dois brilhantes casos de cura de mordedura de cobra, por
meio do permanganato de potássio, segundo o sistema do Dr. Lacerda. Tratava-
se de dois pretos: um de 60 anos de idade e outro de 28, ambos mordidos por
urutus, o primeiro na perna e o segundo no pé. O nosso amigo acaba de
comunicar esses fatos ao Dr. Lacerda, a quem enviou as observações completas
dos dois casos”.
A Gazeta Mineira três meses mais tarde, em sua edição de 19 de maio de 1884,
noticia outra cura de picada de cobra bem sucedida aludindo ao uso de permanganato de
potássio. Desta vez, tratava-se de “um escravo do Sr. Capitão José Francisco de Mendonça,
de 30 anos de idade, mordido, a 28 do mês passado, por uma jararacuçu”. Segundo o
relato, “o emprego do permanganato de potássio se deu quatro horas depois do incidente”.
Pesquisas contemporâneas do experimento que testavam sua capacidade real
verificaram que, assim como foi constatada na época a ineficácia da amônia em inibir o
veneno de cobras, o permanganato de potássio “destruía in vitro a atividade letal do veneno
de Bothrops”
49
(serpente da família das jararacas e urutus), mas não protegia
completamente o organismo quando submetido a altas doses de veneno. Apesar disso “o
48
MONTERO, Paula. Magia e Pensamento mágico. Op. cit. p. 63.
49
VILAR, Jeane Carvaho. Ofidismo e plantas utilizadas como antiofídicas. Universidade Federal do Sergipe.
p. 7. Fonte: http://www.biologiageralexperimental.bio.br/temas/ofidismo/2.pdf, visitado em 11/04/2010.
46
permanganato de potássio passou a ser comumente utilizado nos casos de envenenamentos
ofídicos”
50
a partir de então.
Como através das experiências de João Baptista Lacerda o uso de permanganato de
potássio era indicado contra o veneno botrópico, que se tratava da peçonha das serpentes
jararaca, jararacuçu e urutu dentre outras subespécies, não parece coincidência que as
cobras referidas nos depoimentos de acidentes dos jornais mineiros se tratassem
exatamente destas cobras (no caso, jararacuçu e urutu). Tal constatação leva a crer que
efeitos bem sucedidos realmente poderiam ocorrer como atestam os relatos dos leitores que
se correspondiam com os jornais mineiros. Mas não podemos identificar através dos
relatos fornecidos em Minas a intensidade das melhorias constatadas, haja vista que a
eficiência do propalado remédio era limitada. Tal procedimento a base de permanganato de
potássio tratava-se de um dos estudos científicos pioneiros sobre as ações dos venenos,
mas não havia no Brasil até o final do século XIX um método científico realmente eficaz e
totalmente satisfatório para neutralizar os efeitos dos envenenamentos.
A própria magnitude do sucesso aludido nos casos citados pelo periódico Gazeta
Mineira pode ser questionada através da natureza superficial das notas jornalísticas que
não dão conta de detalhes sobre o restabelecimento das vítimas, negros em sua maioria.
Parece significativa a porcentagem de negros dentre as pessoas medicadas com o renovado
experimento. Das cinco pessoas acidentadas citadas nos casos mencionados anteriormente
quatro eram negras e da outra não fica especificada característica qualquer. Destas quatro
pessoas negras duas delas têm suas condições reveladas como de escravas. Parecem se
tratar de pessoas que não falavam por si mesmas, que não tinham voz própria. Outras
pessoas apropriavam-se de seus casos para relatá-los da maneira que quisessem. a
possibilidade de que a preocupação de rigor na apreciação do quadro de saúde destas
pessoas não fosse tão acentuada como deveria.
As notas publicadas no jornal mineiro aclamam as curas como bem sucedidas e
“brilhantes” através do usufruto do experimento do permanganato de potássio, mas não
detalham informações sobre a gravidade da picada, sobre um posterior acompanhamento
do estado das vítimas acidentadas e sobre a possibilidade de seqüelas. No caso mais
otimista e entusiasmado o médico responsável pela cura afirma que esclarecimentos
adicionais foram enviados ao Dr. Lacerda na Corte. Tais informações que poderiam atestar
50
BRAZIL, Vital. Coletânea de trabalhos (1901-1917). São Paulo: Typographia do Diario Official
Instituto Butantã. p. 30.
47
a existência de uma cura completa ou de possíveis complicações ou dúvidas relativas ao
tratamento não foram publicadas no jornal.
Atualmente podemos certificar que o método mais seguro e eficiente para os
acidentes ofídicos trata-se do soro anti-ofídico, que passou a ser elaborado na virada do
século XIX para o XX. No Brasil, a soroterapia anti-ofídica passou a se desenvolver em
1897 pelo cientista Vital Brazil influenciada pelos estudos promissores do médico francês
Albert Charles Calmette com os venenos da serpente do sudeste asiático naja tripudians
51
.
A adequação e pertinência deste inovador e reconhecido tratamento científico não significa
que em situações de emergência, isolamento ou apego às formas tradicionais e populares
outros procedimentos fitoterápicos ou rituais deixassem de ser usados pelo povo.
Dentre os processos criminais envolvendo curandeirismo que também serviram de
base empírica para o trabalho citarei brevemente um caso que ilustra bem a perpetuação da
ação de curandeiros em acidentes com cobras venenosas adentrando o século XX. Em
processo-crime instaurado em 1925 na localidade de Fradique, distrito da cidade de
Oliveira, o réu João Eugênio é acusado de praticar exercício ilegal de medicina ao tentar
curar João Rodrigues de uma mordida de urutu
52
.
A família da vítima teria recorrido aos serviços de cura de João Eugênio, que
ministrou vários remédios a base de folhas de “embaúba” e “cabelo negro”, com os quais o
dito curandeiro preparava banhos para lavar a ferida na perna de João Rodrigues. Além
deste procedimento, o réu também preparara medicamentos a base de cachaça com outras
folhas não especificadas no processo para o acidentado tomar. O tratamento administrado
por João Eugênio não surtira efeito e João Rodrigues falecera dias depois. Testemunhas do
processo afirmaram ser João Eugênio um lavrador e que havia curado enfermidades de
outras pessoas do local. O réu acabou sendo absolvido da acusação de prática ilegal de
medicina, que o juiz de direito julgou improcedente a denúncia contra ele. Um dado
importante que consta no documento é a informação de que havia na cidade de Oliveira
a injeção anti-ofídica.
Não podemos assegurar convictamente quais fatores levaram os familiares a tratar o
envenenado com os métodos de cura do lavrador João Eugênio. Talvez o curador tivesse
realmente uma larga experiência em casos de mordeduras de cobra como alegam algumas
testemunhas e houvesse uma credibilidade e confiança nos tradicionais e empíricos
51
VILAR, Jeane Carvaho. Ofidismo e plantas utilizadas como antiofídicas. Universidade Federal do Sergipe.
p. 9. Fonte: http://www.biologiageralexperimental.bio.br/temas/ofidismo/2.pdf
, visitado em 11/04/2010.
52
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 1782; cx. 101.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=1143&op=1
48
métodos de João Eugênio. Mas possibilidade de que o próprio aspecto de urgência e
gravidade do acidente tenha acarretado na escolha da terapêutica adotada, já que o acidente
teria se passado na zona rural de Oliveira e se gastaria um tempo precioso até conseguir
alcançar o soro anti-ofídico disponível apenas na cidade.
Portanto, pelo menos a partir deste processo podemos constatar que o agente de
cura João Eugênio parecia se limitar a administrar substâncias fitoterápicas que através de
suas potenciais propriedades terapêuticas obteriam resultados satisfatórios em tratamentos
de enfermidades diversas, conforme depoentes puderam ratificar. Neste caso específico de
acidente com uma cobra urutu, entretanto, a terapêutica receitada pelo curador demonstrou
trágico malogro.
É conveniente lembrar que não houve referências a rezas e quaisquer
procedimentos sobrenaturais e mágicos na prática de cura de João Eugênio, que tais
artifícios ritualísticos eram muito presentes no universo dos curadores.
Ainda discorrendo sobre a questão da perpetuação de métodos empíricos e
alternativos para sanar os efeitos nocivos das mordeduras de cobras após a descoberta
científica do soro anti-ofídico, me deparei com anúncio bastante inusitado em periódico de
São João del-Rei. No jornal A Opinião de 25 de março de 1908 encontra-se curiosamente
em propaganda de uma loja de roupas e artigos femininos a propaganda de um famoso
remédio anti-ofídico, a Surucuína. Após a publicidade propalar o gosto, o capricho e a
qualidade do comércio de moda Olímpio Reis e Pimentel (especialidade em artigos de
modas), insolitamente o informe passa a relatar que o estabelecimento era “depositário,
nesta cidade, do afamado, conhecido e maravilhoso remédio Surucuína, poderoso
preparado e eficaz contra mordeduras de cobras venenosas.”
Também foi anunciada a venda da Surucuína três anos mais tarde no jornal O
Reporter de 27 de dezembro de 1911 pela mesma loja de confecções que neste momento
teria o nome do herdeiro do antigo proprietário Afonso Pimentel & Cia. A surucuína
parece tratar-se de remédio derivado de uma planta também chamada de agrião do brejo
(eclipta Alba) que tem componentes que são agentes antagonistas da ação do veneno de
cobra. De acordo com estudo publicado em 1989 pelo Núcleo de Pesquisas de Produtos
Naturais do Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
substâncias existentes nesta planta como a mandelolactona, sistosterol e estigmasterol são
inibidoras da ação dos enzimas presentes nos venenos de cobras da família da jararaca
49
(bothrops) e cascavel (crotalus).
53
No entanto, a literatura aponta outras espécies de planta
nativa com o nome de surucuína, como por exemplo, a batata-de-teiú. Este nome popular é
ainda utilizado para identificar as espécies anti-ofídicas apondanthera villosa e Jatropha
elíptica.
54
Portanto, apenas a partir da designação surucuína, pôde-se descobrir uma ampla
variedade de plantas utilizadas como anti-ofídicas.
Através destes anúncios publicitários pode-se até especular se a distribuição do soro
anti-ofídico ainda não teria alcançado a região da Comarca do Rio das Mortes, que as
descobertas de Vital Brazil ainda eram recentes. De qualquer forma, a incidência de
medicamentos naturais fitoterápicos que inclusive chegaram a tornar-se remédios vendidos
em estabelecimentos comerciais foi marcante como recurso e alternativa de cura nos
preocupantes casos de mordeduras de cobras.
Enfim, parece que as atividades dos agentes populares e tradicionais de cura, assim
como a oferta de soluções vegetais divulgadas na imprensa para os tratamentos de picadas
de cobras permaneceram mesmo no século XX, quando uma solução científica
incontestável já existia para sanar a população dos graves efeitos decorrentes dos acidentes
ofídicos, o soro anti-ofídico.
Nos jornais da época coexistem diferentes métodos e práticas de cura, mas também
se anuncia um embate e uma disputa pela hegemonia no campo da cura. A expressão do
conhecimento popular, empírico é notada na indicação de ervas, por exemplo, como a
vassourinha, eficaz contra picadas de jararacuçu. A comercialização da Surucuína,
preparado a base de plantas, em estabelecimentos comerciais no início do século XX
também é fato bastante significativo. Já a tentativa de tratamentos amparados por uma base
“científica” e “racional” também é confirmada nos noticiários, como é o caso da indicação
do amoníaco e do permanganato de potássio nos casos de mordeduras de cobras. Supõe-se
que antes da descoberta oportuna da cura proporcionada pelo soro anti-ofídico estas
alternativas foram lançadas no intuito de tentar salvar as vidas infortunadas pelos danosos
venenos das cobras.
53
Fonte: http://www.hma.goias.gov.br/index.php?idMateria=29913, visitado a 13/04/2010. Hospital de
medicina alternativa. Secretaria de estado da Saúde. Governo do Estado de Goiás.
54
VILAR, Jeane Carvaho. Ofidismo e plantas utilizadas como antiofídicas. Universidade Federal do Sergipe.
p. 25. Fonte: http://www.biologiageralexperimental.bio.br/temas/ofidismo/2.pdf, visitado em 11/04/2010.
50
O processo de ocupação do campo da cura
A esfera de ação das práticas curativas na sociedade mineira do século XIX era
tomada por diversos agentes e métodos. A força das tradições, do imaginário, das crenças e
das superstições da sociedade influenciava bastante nas escolhas de cura das pessoas.
Os estudos de Nikelen Acosta Witter destacam a importância de se perceber a
medicina “como uma entre diversas outras propostas terapêuticas que se apresentavam aos
enfermos no século XIX”
55
. E ainda acrescenta,
“a medicina acadêmica de tradição européia que passa a se estabelecer a partir
de meados do século XVIII, e que irá basear-se no racionalismo e na observação,
era algo bastante inusitado em relação a outras práticas de cura que se
baseavam nas tradições culturais e na experiência empírica existentes no seio
das populações”
56
.
Talvez esta variedade de tratamentos e receitas provavelmente se deva à
insuficiência da presença da medicina científica num cotidiano marcado pelas temíveis
doenças e mazelas que afligiam a sociedade da época. Diante deste complexo panorama
tomado por diversos agentes da cura, cirurgiões, boticários, médicos e farmacêuticos,
muitos destes sequer habilitados, passavam a disputar espaço no âmbito da cura com os
curadores populares tradicionais.
Os boticários nas Minas Gerais oitocentista, por exemplo, eram auxiliados pelos
manuais do Dr. Chernoviz, polonês que observou com perspicácia que havia nas cidades
interioranas do Brasil uma população necessitada de assistência. Segundo os estudos de
Betânia Gonçalves Figueiredo, o “Formulário e guia médico do Brasil” do Dr. Chernoviz
“era exigido pela Legislação mineira nas farmácias”.
57
Além dos boticários, pessoas em
geral recorriam às dicas proveitosas destes manuais para a cura de variadas doenças.
Chernoviz publicara também um Dicionário de Medicina Popular de fácil formulação e
grande utilidade para os leigos na arte da cura. É interessante notar que mesmo nos
manuais do Dr. Chernoviz a demanda pela cura das enfermidades não excluía o uso de
ervas e raízes no cotidiano das pessoas.
55
WITTER, Nikelen Acosta. Curandeirismo: Um outro olhar sobre as práticas de cura no Brasil do Século
XIX. In Revista Vidya,Vol 19 nº34 Julho 2000. Santa Maria .p. 186.
56
Idem. p. 187.
57
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. O doutor de capa preta: Chernoviz e a medicina no Brasil do século
XIX in Revista Uni-BH, Belo Horizonte. Vol. 1. Nº 1. Maio 2001. p. 95-109.
51
No jornal O arauto de Minas, na edição de 16 de outubro de 1878, havia
informações extraídas do formulário do Dr. Chernoviz sobre uma receita indicada no
tratamento de bexigas;
“A sarracena purpúrea é preconizada na América do Norte como antivariólica.
O Dr. Morris assegura que é o remédio por excelência para combater as bexigas;
que a sua ação é tal que raras vezes ficam cicatrizes, que qualquer pessoa que
traga consigo a raiz da sarracenia pode impunemente habitar entre bexiguentos;
que a sua ação consiste em neutralizar o vírus no sangue tornando-o inerte, o que
é confirmado pelo facto de que se a vacina ou o vírus variólico foi inoculado
com a infusão de sarracenia, fica privado de suas propriedades contagiosas. [...]
Os médicos de todos os países não devem, pois, deixar de recorrer a este
medicamento no tratamento das bexigas. A sarracenia purpúrea pode ser
empregada sob a forma de pó, cozimento, infusão, xarope ou tintura. Cozimento
de sarracenia ( Morris ). Folhas ou rizomas de sarracenia 4 gram. Água 600
gram. Reduza a 300 gramas por meio de moderada ebulição, coe, e adoce com
açúcar. um cálix de 3 em 3 horas. Continua-se o uso do cozimento durante 5
ou 6 dias. Seu efeito é aumentar a secreção da urina, que de vermelha e
carregada que era no primeiro dia, torna-se límpida e mui abundante”.
Tal receita veiculada mostra-se peculiar da região da América do Norte. A
sarracenia purpúrea é uma espécie de planta carnívora de coloração avermelhada
característica do hemisfério setentrional das Américas. Neste caso particular citado acima,
suponho que seja improvável que se pudesse conseguir o manuseio da raiz de tal espécie
em Minas Gerais, mas não desprezo a possibilidade de se encontrar a sarracenia purpúrea
em pó, xarope ou tintura comercializável no Brasil.
Chama a atenção o fato de que a receita recomendada pelo Dr. Chernoviz ampara-
se em tratamento fitoterápico, ou seja, na propriedade terapêutica obtida das plantas. Nota-
se desta maneira, que mesmo nos manuais do Dr. Chernoviz a demanda pela cura das
enfermidades não excluía o uso de plantas e raízes no cotidiano das pessoas.
Na seção “A pedidos” da edição do O Arauto de Minas de maio de 1879 uma carta
de denúncia inflamada é dirigida ao “Sr. Chernoviz”. Um cidadão indignado com a
abertura de uma farmácia no arraial de São Tiago, onde tanto o proprietário como o
empregado não eram farmacêuticos, não tinham licença e, além disso, ignoravam os
conhecimentos ditos necessários para exercer a prática de se receitar remédios. A pergunta
direcionada ao Dr. Chernoviz mostra a revolta do cidadão que assina como O. Langgaard;
“Sr. Chernoviz Vossa Senhoria em certo tempo mostrou-se tão interessado pela
saúde pública; pergunto-lhe agora se isto não será abuso, e se não causará
detrimento à saúde pública? Primeiro: ter botica aberta sem ser pharmacêutico ou
licenciado, ou sem ao menos ter prática? Segundo: o mesmo empregado
interessado da pharmacia receitar e manipular? V. S. como meu colega deve
concordar comigo que isso é abuso demais!...”.
52
O autor da carta tratava-se do farmacêutico dinamarquês Otto Langgaard que foi
proprietário da Pharmacia Imperial em Campinas, vendia remédios importados, alopáticos
e homeopáticos em terceira dinamização e tinturas Màis.
58
A preocupação em tornar
pública a atividade de profissionais da saúde inabilitados ao exercício da medicina e
farmácia passa a grassar em setores da sociedade oitocentista. Neste caso, o farmacêutico
Langgaard, mostra um diligente interesse em apontar farmacêuticos não licenciados para
exercer a cura, mesmo em uma região distante daquela que ele atuava comercializando
seus remédios.
No que tange a regularização do exercício das atividades de cura, a partir de 1850
instituiu-se a Junta Central de Higiene Pública, órgão responsável para gerenciar questões
de saúde pública, dentre estas, licenciamentos e exames de suficiência para profissionais da
área da saúde, tanto médicos como farmacêuticos. Muitas vezes boticários e médicos não
habilitados na forma do regulamento da Junta acabavam autorizados a exercer seus
serviços motivados por forças políticas, como através da influência de presidentes de
província, ou ainda por exigência de circunstâncias locais, onde a população necessitada
demonstrasse carência de assistência de saúde. Os estudos de Gabriela dos Reis Sampaio
atentam para um caso desta natureza ocorrido no município de Oliveira em 1867. O
boticário Carlos Cahé tinha uma botica dez anos no lugar sem tê-la regularizado e
mesmo sem apresentar seu diploma dirigiu-se ao governo pedindo a regularização do seu
estabelecimento. Dentre suas alegações, a mais persuasiva a de que no populoso lugar não
havia qualquer outro boticário para atender as pessoas. Diante dos apelos do boticário a
Junta de higiene pública provida de um atestado favorável da Câmara Municipal de
Oliveira declara: “[...] A Junta de higiene acha essa pretensão no caso de ser deferida,
como o já tem sido outras em iguais circunstâncias.”
59
No jornal O Itapecerica de 5 de setembro de 1895 uma interessante notícia foi
motivo de alegria para o farmacêutico Virgílio José da Silveira de Carmo da Mata, distrito
da cidade de Oliveira. A boa nova gira em torno da aquisição do título de farmacêutico
prático conferido pelos poderes competentes do Estado de Minas Gerais. A novidade foi
saudada com entusiasmo pela sociedade local plena de gratidão pelos serviços prestados
pelo solícito boticário. Discursos de cidadãos ilustres saudaram e parabenizaram o
58
Ver em “Notabilidades profissionais, comerciais e industriais de Campinas” in FERREIRA, Carlos & DA
SILVA, Hipólito (orgs.), Almanach Popular de Campinas para o ano de 1789. p. 13.
59
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura...Op. cit. p. 137.
53
farmacêutico. As bandas de sica Lyra Carmelitana e Euterpe Carmelitana, que
cultivavam tradicional rivalidade na localidade, apaziguaram-se em manifestação de
aclamação popular e executaram acalorada marcha festiva. Tal congraçamento teve como
motivação adicional a comemoração da pacificação política do Rio Grande do Sul com o
sufocamento da Revolução Federalista. A comemoração da conquista do título de
farmacêutico prático no final das contas ganhou fervorosos tons cívico-patrióticos.
A respeito do poder que o Presidente de província poderia atingir através de
concessão de licenças para profissionais da saúde, no noticiário do O Arauto de Minas de
18 de janeiro de 1883 encontrei a seguinte nota intitulada Título de pharmacêutico onde
está escrito: “Pela lei 3055 ficou o presidente da província autorizado a conceder carta
de pharmacêutico ao Sr. Bernardino Duque Máximo da Rocha, nosso estimável e digno
amigo, depois de mostrar-se habilitado em exame”.
Entre as muitas farmácias da região destacadas nos informativos revelou-se
interessante relatar sobre a Pharmacia Alliança situada na Freguezia da Lage de
propriedade do farmacêutico João Cândido da Silva, formado pela escola de Ouro Preto.
Nas informações da página de propaganda da edição de 18 de janeiro de 1883 do O Arauto
de Minas relata-se que o estabelecimento é “provido de todos os medicamentos quer
nacionais quer estrangeiros. [...] O proprietário sempre escrupuloso como lhe cumpre não
admite e jamais admitirá drogas falsificadas: para o que tem correspondentes na corte de
toda fidelidade”. No final do informe uma observação em letras grandes: “Para os
reconhecidamente pobres fornece-se qualquer medicamento ou preparação gratuitamente”.
Tal detalhe mostra que alguns profissionais da área de saúde inevitavelmente mostram-se
solidários no caso de tratamento de pessoas desfavorecidas.
Em relação à ocorrência de profissionais da medicina na região, pude constatar que
a presença de médicos era significativa em São João del-Rei no período estudado.
Na Gazeta Mineira de 28 de janeiro de 1884, em suas páginas comerciais, abundam
anúncios de médicos de São João del-Rei. O Dr. Balbino da Cunha, por exemplo, anuncia-
se como “médico, cirurgião e parteiro, que atende à Rua de São Francisco”. O Dr.
Cornélio Milward apresenta-se desta forma: “Médico, cirurgião e parteiro, consultas e
recebe chamadas em sua residência à rua da Misericórdia”. o médico e cirurgião Dr.
Carvalho Mourão tem seu escritório á Praça de São Francisco, onde dá consultas e recebe
chamados.
Através destas propagandas percebe-se que alguns destes médicos que exerciam
suas curas na praça comercial de São João del-Rei propõe uma amplitude e versatilidade de
54
funções que nem sempre os facultativos da época se incumbiam de realizar. O parto, por
exemplo, era conduzido de preferência por parteiras. Embora, os médicos executassem
trabalhos no campo da obstetrícia, eles geralmente eram preteridos em prol da confiança
tradicionalmente depositada nas parteiras. A resistência aos médicos na atividade do parto
se dava pela existência de pudor e constrangimento da parturiente e seus familiares diante
de uma circunstância de intimidade que não devia ser “invadida” ou “devassada” por um
homem, isto, de acordo com os conceitos morais e culturais da época.
60
Em minhas consultas aos periódicos mineiros, dentre as raras aparições
mencionando curadores que se valiam de artifícios sobrenaturais para alcançar curas, uma
curiosa notícia de fenômeno ocorrido na capital federal e repercutida em São João del-Rei
revelou-se digna de atenção. Em significativa nota na primeira página do jornal mineiro O
resistente de 1 de outubro de 1899 destaca-se uma transcrição comentada de noticiário do
Jornal do Brasil, relativa a prodígios no universo da cura. Com o sugestivo título de
“Assombroso” a nota relata sobre as curas extraordinárias de Faustino Ribeiro Júnior
através de poderosos passes. “Professor Faustino”, como era chamado, teria entre seus
pertences uma cruz doada por um capitão do exército da Campanha de Canudos e que teria
sido propriedade de Antônio Conselheiro.
Segundo o jornal, o afamado taumaturgo “pergunta ao paciente qual o ponto
dolorido ou afetado e com o dedo indicador toca ou comprime o local designado,
demorando-se mais ou menos tempo, conforme lhe parece conveniente”. De acordo com o
que foi revelado por representantes do Jornal do Brasil que presenciaram tais feitos, o
“médico milagroso” [...] “não aconselha nem indica remédio algum, e declara que ignora
quais moléstias possam ter os pacientes, limita-se à imposição dos dedos”.
Os redatores do jornal carioca responsáveis pela cobertura do fato ficaram bastante
encantados com as práticas curativas do influente curador, inclusive sinalizando que a
“sciência” também estava presente acompanhando este inusitado fenômeno através, por
exemplo, do Dr. Ulysses Paiva, que se preocupou “em conhecer estes fatos, investigando o
modo e as circunstâncias da aplicação da força extraordinária que parece dispor o Sr.
Faustino”. Apesar de um representante da ciência procurar se inteirar dos famigerados
fenômenos não consta no jornal um veredicto deste médico apoiando ou desabonando os
métodos de Sr. Faustino. De qualquer forma fica provado o interesse de um membro da
ciência ortodoxa na fabulosa terapêutica divulgada.
60
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar Cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no
século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002. p. 153.
55
A reportagem do Jornal do Brasil dirige-se ao carismático milagreiro com mesura e
simpatia, quando noticia que o “nosso patrício prontifica-se a todo e qualquer exame, e é
de extrema habilidade para quem o procura”. Houve preocupação inclusive de adentrar até
em território íntimo de sua vida, mas enfatizando aspectos valorizados como qualidades e
bons comportamentos. Segundo o noticiário, o curador “come bem, dorme pouco e nada
bebe, nem leite, nem bebidas alcoólicas”.
Quanto ao público, não causa admiração o fato de que uma horda de enfermos
recorria incessantemente aos seus iluminados passes. De acordo com o jornal carioca,
“cerca de oitocentas a mil pessoas fazem espera ali, para serem atendidas. Uma verdadeira
romaria”. Dentre as curas relatadas destacam-se o restabelecimento de infortunado que
“soltava osso da garganta”, outra em quem o “fluído” de seus passes produzira o efeito de
expelidor de lombrigas e ainda mazelas “curadas n’um átomo, até de dentada de cachorro”.
Enfim, percebe-se que o tratamento da notícia amostras de completa fascinação
pelos trabalhos de Sr. Faustino. E o seu caráter messiânico é enfatizado no final da nota ao
apontar que “Não que ver: trata-se com certeza de um outro Bom Jesus de Canudos, ou
então apóstolo dele, de parceria com Dr. Eduardo Silva e... muito conselheiro.”
Apesar de um possível teor irônico do derradeiro comentário percebe-se através de
todos os detalhes apresentados uma leveza e condescendência referentes ao curandeiro no
periódico do Rio de Janeiro, que acaba transmitindo sua impressão sobre o episódio sem
restrições ou censuras por parte do jornal O resistente de São João del-Rei, que limita-se a
repercutir o fato. Tal acontecimento ecoou na cidade mineira sem maiores críticas e
discriminações por parte dos editores do periódico O resistente.
É imperioso asseverar que os curandeiros em questão, tanto o professor Sr.
Faustino Ribeiro Júnior, de que trata prioritariamente a notícia, quanto o engenheiro
Eduardo da Silva, que é mencionado ligeiramente na notícia, foram compreendidos como
dois importantes “médicos sobrenaturais do Brasil”
61
da virada do século. Estes
taumaturgos contemporâneos mobilizaram a sociedade da capital federal daquela época,
não sem se submeterem a questionamentos das corporações médicas e das autoridades
fiscalizadoras.
O Sr. Faustino particularmente após se instalar em Salvador em 1903 começou a
enfrentar sérios problemas com os seus concorrentes profissionais da cura legalmente
habilitados. Segundo os estudos sobre o pensamento social da medicina no período entre
61
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no
Brasil (1870-1930) São Paulo: Editora Unesp, 1999. pg. 58.
56
1870 e 1930 empreendidos pelo historiador da medicina José Leopoldo Ferreira Antunes, o
curador “teria recebido uma manifestação da vontade divina, incitando-o a se dirigir para
aquela cidade.”
62
Em Salvador, quando intimado a prestar esclarecimentos “afirmava
desconhecer os rudimentos básicos da ciência médica, os nomes e as causas das moléstias,
até noções de terapêutica sugestiva
63
conforme o noticiário do jornal de São João del-Rei
também informara. Entre os argumentos de que lançava mão quando acusado de exercer
ilegalmente a medicina “defendia-se de modo quase pueril, reivindicando nunca ter
prescrito ou administrado medicamentos.”
64
De acordo com esta alegação Faustino procura
esquivar-se da acusação de passar-se por médico. Conforme a reportagem Faustino era
correntemente chamado de “Professor Faustino” ou de “Sr. Faustino”. Tais formas como
era chamado também parecem buscar afastar a possibilidade de inculcar-se por doutor.
Torna-se interessante discorrer sobre esta figura ímpar da medicina alternativa pois
mesmo atuando em região distante do interior de Minas Gerais teve suas façanhas
repercutidas em importante periódico da cidade de São João del-Rei. Tal abordagem é de
capital importância, pois casos semelhantes de curandeiros em ação na região de Minas
não foram reportados e refletidos na Imprensa local.
Numa análise mais geral dos periódicos pesquisados nas regiões das Minas, não
pude perceber um tipo de cruzada anti-curandeirismo, como a que ocorreu no Rio de
Janeiro imperial. Os anúncios de médicos e farmácias eram relativamente numerosos,
assim como de novidades científicas, mas quase não referência a formas populares e
marginais de cura. O que talvez exista é uma preponderância de notícias relativas às
novidades científicas, geralmente através de anúncios de produtos farmacêuticos. Essa
emergente predominância do cientificismo nos jornais, por vezes se fazia acompanhar de
um discurso exaltando o método e a perspectiva científica de explicação do mundo.
Os curandeiros e feiticeiros eram agentes populares de cura que prescindiam de
propagandas ou notas em jornais para disseminar suas curas. Suas práticas eram
transmitidas e difundidas através da força dos costumes e da oralidade. Embora houvesse
uma receptividade e aceitação de seus serviços na sociedade da época, a repercussão da
fama de seus praticantes não pôde ser evidenciada de uma forma clara e direta nos jornais.
O que fica esclarecido a partir da investigação nos jornais são algumas recorrências
a práticas populares e tradicionais de cura, só que dissociadas de possíveis protagonistas. A
62
Idem. p. 62.
63
Idem, Ibidem.
64
Idem, Ibidem.
57
nota sobre a utilização da erva vassourinha indicada para mordedura de cobras foi exemplo
de cura de uma natureza tradicional, empírica e popular, mas nenhuma menção é feita aos
poderes de um determinado curandeiro, feiticeiro ou qualquer agente popular de cura
especificamente.
A palavra “curandeiro” apenas é mencionada de forma crítica uma única vez em
um inflamado discurso de um leitor que correspondera ao jornal O iniciador da cidade de
Pitangui, caso este citado anteriormente neste trabalho. O assunto debatido girava em torno
do conteúdo de um editorial deste jornal que revelava a descoberta na corte de uma
novidade científica apregoada como fulminante no tratamento de mordedura de cobras
venenosas: o permanganato de potássio. Entusiasmado com o novo experimento, o cidadão
José dos Santos de Carvalho faz duras críticas ao uso das práticas dos curandeiros,
taxando-as de intrometidas, atrasadas e desastrosas. Mas tal manifestação de repúdio e
desprezo às atividades dos curandeiros mostrou-se um caso isolado dentre as temáticas
abordadas nos jornais investigados.
Na medida em que os relatos sobre os curandeiros e feiticeiros são quase
inexistentes nos periódicos investigados, as buscas de cura mágica e as recorrências aos
feitiços presentes nos processos-crimes investigados neste trabalho preencheriam esta
lacuna, este silêncio nos jornais.
As fontes apontam que os mineiros do século XIX experimentavam de tudo um
pouco para dar conta de sanar as mazelas características da época usufruindo de um
universo amplo, multifacetado e variado de tipos de cura. Diante deste quadro não se
vislumbra uma medicina científica legitimada para solucionar as demandas da população
relativas à saúde, muito menos autorizada a exercer com exclusivismo as atividades de
cura junto a uma sociedade necessitada.
Se nos jornais mineiros pesquisados não é identificada uma enfática defesa da
bandeira da monopolização das práticas de cura pela medicina, nem em seus editoriais nem
em suas notícias, tal discurso monopolizador, entretanto, refletiu-se nas legislações
vigentes tanto no período imperial, quanto no republicano. Os processos criminais
oitocentistas que passaremos a abordar, envolvendo supostos curandeiros e feiticeiros,
resultaram desse afã legislativo por uma normatização e monopolização das práticas de
cura.
58
CAPÍTULO II
A REPRESSÃO DOS CURANDEIROS E FEITICEIROS NOS PROCESSOS
CRIMINAIS
A partir deste ponto do trabalho passarei a me deter na análise dos processos-crimes
oitocentistas que buscavam incriminar a ação de supostos curandeiros e feiticeiros. As
documentações criminais investigadas envolviam a repressão institucional ao
curandeirismo e pertencem ao acervo de fontes criminais do arquivo do IPHAN-ET
65
oriundos do Fórum de São João del-Rei e aos acervos dos Fóruns de Oliveira e de
Itapecerica, sob a guarda temporária do Labdoc
66
.
Desde o Império as atividades destes agentes populares e informais da cura eram
criminalizadas. A partir da república a repressão oficial às atividades dos curandeiros,
feiticeiros e dos praticantes ilegais da medicina, farmácia e arte dentária se intensificou
ainda mais.
Os estudos de Laura de Mello e Souza sobre crenças populares no Brasil colonial
apontam a presença de “curandeiros que curavam doenças, curandeiros que curavam
feitiços e promotores de feitiços (feiticeiros propriamente ditos)”
67
. É importante ressaltar
também que apesar destas diferenciações nada podia impedir que os curandeiros pudessem
exercer estas várias funções ao mesmo tempo: curar males e moléstias, praticar feitiçarias a
fim de se causar males e por fim anular os feitiços lançados por outros. Todos estes tipos
de funções foram comentadas nos processos que fazem parte da base empírica dessa
investigação, embora não tenha havido acusações oficiais sobre supostas feitiçarias
maléficas cometidas pelos réus. Os malefícios foram comentados de forma indireta e
superficial em alguns destes autos e não foram atribuídos aos denunciados. Em tais casos
os réus se dispunham a curar feitiços maléficos provocados por outras pessoas.
65
Arquivo do IPHAN – Escritório técnico de São joão del-Rei.
66
Laboratório de Conservação e Pesquisa Documental da UFSJ. (Universidade Federal de São João del-Rei)
Fonte:http://www.documenta.ufsj.edu.br
67
“Procurar obter curas por meios sobrenaturais aproximava, pois, esta terapêutica popular da
feitiçaria. Curavam-se doenças, insolações, incômodos como dores de dentes; mas também se
curavam feitiços. [...] o curandeiro tinha função paradoxal: identificado ao feiticeiro, era
freqüentemente chamado para desfazer feitiços. Como conseqüência, sua ação podia ser
ambivalente: em Minas, um negro feiticeiro era capaz de curar e, ao mesmo tempo, rezar umas
palavras que deixavam a pessoa tolhida e inapta ao trabalho”.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a
terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras ,
1986. p. 167-168.
59
processos em que, em decorrência de uma sobreposição de denúncias sobre um
mesmo acusado, é cogitada a possibilidade de se enquadrar o réu pela prática de feitiçaria,
pelo exercício do curandeirismo e ainda pelo exercício ilegal da medicina, delitos
referentes aos agentes ilegais da cura especificados no código penal republicano. Mas a
despeito da caracterização de três crimes simultâneos os réus geralmente eram
pronunciados e condenados em apenas um crime.
Os curandeiros que emergem no universo da documentação pesquisada da segunda
metade do século XIX predominantemente lançavam mão de magia e feitiço para praticar
suas curas. Mas, além disso, acrescentavam aos rituais mágicos e benzeções o uso de
plantas e raízes tradicionais com as quais faziam suas garrafadas e preparados.
Posteriormente, no terceiro capítulo, haverá uma discussão mais aprofundada da
natureza destas denúncias que constituíram matéria para a instauração dos processos.
Começarei a análise das fontes por um processo que data de março de 1894 sobre o
curandeiro Manoel Lagoa, que exercia suas práticas de cura nas redondezas de Oliveira,
num povoado denominado Vieiras Bravos
68
. O réu é classificado pelas testemunhas do
processo como indivíduo vagabundo e sem domicilio certo. Consta que o denunciado
também estava sendo processado na comarca de Campo Belo, pelo mesmo crime de
curandeirismo.
A primeira testemunha do processo, um doente tratado por Manoel Lagoa o chama
de charlatão, pois não obteve cura. Segundo ele, Manoel "tem prejudicado a saúde pública
com o fim de ganhar dinheiro”. A segunda testemunha afirmou que o réu "traz sempre
consigo muitos santos".
A denúncia da promotoria é consistente com o artigo 158 do código penal, que
exigia a proibição de “ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo interno
ou externo, e sob qualquer forma preparada, substâncias de qualquer dos reinos da
natureza, fazendo ou exercendo assim o ofício denominado de curandeiro". Tal fato se
verifica por que o processo, de 1894, é contemporâneo do decreto 847, de 11 de outubro de
1890, que estabelece o código penal republicano. Além do artigo 158 mencionado acima, o
artigo 156 proibia “a prática ilegal da medicina, arte dentária e farmácia”. o artigo 157
proibia “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancias,
68
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº743, cx. 34.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=43430
60
para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar curas de moléstias curáveis ou
incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”.
69
Para os infratores destes artigos era prevista “uma pena de um a seis meses de
prisão celular, majorada se resultasse alteração temporária ou permanente das faculdades
psíquicas do paciente”. Como podemos perceber o código penal republicano atinge tanto o
curandeirismo que se utiliza de plantas e ervas para obter a cura, quanto as práticas
mágicas, espíritas e supersticiosas. Geralmente os curandeiros serviam-se de raízes e
plantas somadas aos feitiços e benzeções.
Nesse processo comentado, a terceira testemunha dos autos faz insinuações sobre o
ímpeto conquistador e mulherengo do acusado. A testemunha "disse ter ouvido de Isaías de
tal, que o denunciado tem seduzido mulheres".
Quanto ao caráter conquistador de Manoel Lagoa lembrado por uma das
testemunhas e sobre o poder de sedução que os curandeiros e feiticeiros exerceriam entre
as mulheres, cabe lembrar os estudos de Gabriela dos Reis Sampaio acerca do curandeiro
Juca Rosa, famoso no Rio de Janeiro imperial por seu envolvimento com diversas
mulheres.
Segundo a autora, “um dos pontos que mais se falava quando o assunto era Juca
Rosa era seu curioso envolvimento com as mulheres, não só espiritual como também
sexual.”
70
Tal influência e poder do curandeiro sobre as mulheres talvez se justifique pelo
carisma, persuasão e confiança que estes personagens tinham diante da dedicação de suas
fiéis seguidoras espirituais.
O desfecho do processo resultou na punição do réu Manoel Lagoa por unanimidade
de votos. Ele foi condenado a cumprir pena de um mês e cinco dias, além de pagar uma
multa de cem mil réis. O processo de Manoel Lagoa durou de março a junho de 1894.
Um segundo processo trata do curandeiro José Sapato e foi instaurado em março de
1872
71
. O local em que o processo se deu foi o Arraial de Cláudio, termo da cidade de
Oliveira, onde o curandeiro utilizava de suas práticas de cura. No texto inicial do processo,
na denúncia da promotoria, temos informações de que
69
Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890 – Código Penal dos Estados Unidos do Brazil.
Fonte: htpp://www.ciespi.org.br/base_legis/legislação/DEC20a.html
70
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos mistérios – Juca Rosa e as relações entre crença e cura no Rio
de Janeiro Imperial in CHALHOUB, Sidney (org.). “Artes e ofícios de curar no Brasil”. Campinas: Editora
da Unicamp,Cecult, 2002. p. 391.
71
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, regist
ro 412, cx.17.
Fonte eletrônica: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=17006
61
"o denunciado se acha indomiciliado; [h]á anos que aparece no distrito, ora no
arraial, ora nas fazendas, pouco se emprega no trabalho da lavoura, antes a maior
parte do tempo se emprega no artifício fraudulento inculcando-se curador de
feitiços, adivinhações e outras superstições, o que tem ensinado a negros cativos
e a pessoas mal intencionadas, causando com isto grande mal a moral pública e a
religião do Estado e prejuízo da saúde de alguns que tomando as bebidas
administradas pelo denunciado em vez de sararem da enfermidade que sofriam
aumentam mais o seu sofrimento."
A partir daí podemos supor que o réu José Sapato também se tratava de um
‘indomiciliado’, um curandeiro ambulante que errava pelos sertões a procura de enfermos
que se dispusessem a tomar de suas bebidas ou que se submetiam às curas de feitiços
realizadas por ele. Vagava tanto pelos meios urbanos quanto nas fazendas. Podemos
identificar na denúncia uma observação sobre o caráter do curandeiro, pouco afeito ao
trabalho costumeiro e a lavoura.
Sobre a condição itinerante de alguns curandeiros, chamam a atenção aspectos
recolhidos por Carlo Ginzburg em suas investigações nos processos inquisitoriais que
tratavam dos benandanti
72
. Merece destaque uma passagem relatada pelo autor, acerca do
caráter ambulante dos inquiridos. Tal extrato é proveniente das declarações de um
camponês a um inquisidor sobre um benandanti acusado de feitiçaria: “circula
continuamente pelas aldeias, benzendo os enfermos, dando-lhes remédios para curá-los e,
além disso, revelando quem foi enfeitiçado, de que maneira e quem foi o autor do
malefício.”
73
Retornando ao processo de José Sapato, segundo uma testemunha, o réu "recebeu
quantia em dinheiro de Francisco José de Souza Primo para enfeitiçar uma moça de nome
Bernardina", de quem Francisco estava apaixonado. Além disso, "dera remédios de feitiços
a Alexandre e a Jerônimo Nogueira e estes pioraram do incômodo que sofriam, e que
recebera dinheiro pelos remédios. Os tais enfermos depois tiveram que deslocar-se para
São João del-Rei para buscar socorro".
Outra testemunha disse ter visto o acusado “tirar da capanga um crucifixo e uma
imagem dizendo ser São Benedito, além de arrancar a salsa no capim, o que causou o
aparecimento de aranhas, sinal que ele disse ser de feitiçaria”. A incidência na feitiçaria
tanto de santos negros como de elementos cristãos, como este ponto do processo
72
Os benandanti eram camponeses das proximidades da região do Friuli na Itália, que participavam de cultos
agrários nos séculos XVI e XVII. Os benandanti travavam combates noturnos com as bruxas para chamar
boas colheitas e fartura, no decorrer de 5 decênios, passariam a ser identificados como feiticeiros.
73
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 144.
62
demonstra, parece ratificar como em Minas Gerais se deu a criação de “uma cultura
popular baseada em valores tanto africanos como portugueses”
74
, conforme entende
Donald Ramos, para quem os pontos de semelhança e aglutinação entre estas culturas é
evidente. O autor refere-se às descrições de feitiços apresentadas nas “Ordenações
Filipinas” que tratavam de um universo europeu e compara-as com a realidade nova e
sincrética do “novo mundo”, das quais “os aspectos específicos talvez sejam diferentes,
mas o sabor é o mesmo.”
75
“[...] E por quanto entre a gente rústica se usam muitas abusões, assim como
passarem doentes por silvão ou machieiro ou lameira virgem, e assim usam
benzer com espada que matou homem ou que passe o Douro e Minho três vezes;
[...] outros levam as imagens de santos junto da água e ali fingem que os querem
lançar com ela, e tomam fiadores que se até certo tempo o dito santo lhes não der
água ou outra coisa que pedem, lançarão a dita imagem na água;".
76
No processo em pauta, outra testemunha alega que, “tanto Jerônimo quanto
Alexandre acharam-se atacados de feitiço posto por três mulheres pardas deste arraial, das
quais tinha morrido duas e que se os dois pagassem a ele, José Sapato, este faria remédios
para desfazer feitiços daqueles doentes”. Acrescentam as testemunhas que os enfermos
Alexandre e Jerônimo, “lhe deram quantia em dinheiro e várias garrafas de cachaça, nas
quais o dito Sapato punha alguns temperos".
É curioso o fato de que muitos que usaram dos serviços do curandeiro reclamaram
do seu insucesso. Será que tal discurso não se apresenta apenas diante das autoridades?
Será que elas se arrependeram realmente de recorrer a estes serviços? Consideravam-se
vítimas de um embusteiro? Os efeitos prometidos não teriam se confirmado? Tais
testemunhas e vítimas teriam sido influenciadas ou intimidadas a tomar suas posições no
andamento do processo? Se levarmos em conta as afirmações das testemunhas em seus
depoimentos, geralmente elas apoiavam a denúncia. No caso das potenciais vítimas dos
curandeiros, muitas vezes parece haver um sentimento de frustração diante dos resultados
dos serviços prestados pelos feiticeiros, nos quais elas depositavam um quinhão de
quando os solicitaram.
74
RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: Um comentário sobre a
interpretação da escravidão in Da SILVA, Maria Beatriz Nizza. Brasil: Colonização e Escravidão.(Org.)
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 143.
75
Ibidem. p. 146.
76
LARA, Sílvia Hunold.(Org.) Ordenações Filipinas Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.
65.
63
Donald Ramos enfatiza nas suas pesquisas a partir de processos do século XVIII a
seguinte consideração sobre a condição das testemunhas: “Podemos ver esses conflitos nas
palavras dos denunciantes, muitos deles presentes nas mesmas cerimônias que depois
denunciavam, muitas vezes cumprindo ordens dos padres confessores”.
77
No desenlace do processo, que durou de março de 1872 até maio de 1872, José
Sapato é condenado como incurso nas penas do artigo 264 do código criminal do Império,
não tendo sido especificada sua pena.
Em outro processo analisado, o acusado é o curandeiro Gervásio Ferreira de Mello
que residia no povoado Félix dos Santos, mais precisamente num lugar chamado Preguiça,
nas redondezas da cidade de Oliveira
78
. O processo foi instaurado em abril de 1896.
Segundo a acusação da promotoria o denunciado Gervásio “exercia a profissão de curador,
sem ter a necessária autorização, nem diploma algum, empregando diferentes artifícios e
bruxarias”. No ato de sua prisão, “foi encontrado em poder do denunciado diversos
objetos, raízes, próprios para exercer a profissão de curandeiro”.
Nos interrogatórios Gervásio confessou que exercia a profissão de curandeirismo.
Repare-se que a palavra “profissão” consta no processo, o que me parece significativo e até
contraditório, no sentido em que representa um reconhecimento da sua atividade. É
interessante que apesar da posição oficial da Justiça que considera a atividade do
curandeiro ilegal, o escrivão acaba reconhecendo o lugar social do curandeiro e na própria
denúncia a promotoria admite que o réu exerce a “profissão de curador”.
Foram encontrados em poder do acusado de curandeirismo, “pedaços de chifres de
veado e cabeças de macuco, que são empregados contra mordeduras de cobras, pedacinhos
de pau que se assemelham a canudos de cachimbo, e pedaços de resina indicados contra
cólicas”. Gervásio respondera no processo que “tem empregado esses objetos e que não
tem recebido paga, a não ser quantia que recebeu de uma garrafa de salsa em cachaça que
deu a um sujeito”. Ao contrário dos réus dos processos anteriores, Gervásio “tinha
empreita de café com Vicente Bernardes”. Tal trecho sugere que o acusado tinha um
trabalho reconhecido, plantava café.
77
RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: Um comentário sobre a
interpretação da escravidão in Da SILVA, Maria Beatriz Nizza. Brasil: Colonização e Escravidão.(Org.)
op. cit. p. 150.
78
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 782, cx. 36.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=46063
64
A primeira testemunha do processo é o inspetor de quarteirão Sebastião José
Teixeira. Segundo ele, “o réu resistiu à prisão, tomando de uma faca, ao que houve uma
pequena luta e a posterior prisão”. O inspetor de quarteirão afirmara que o réu “exercia o
emprego de curador, dando remédios a diversas pessoas e recebendo pagas por isso”.
Acrescentara que o curandeiro “fechava indivíduos num quarto e com uma agulha e
cobras, dizendo depois palavras sem sentido e, logo depois ainda, que o corpo estava
fechado”. Uma terceira testemunha alegou que Gervásio “munido de um facão tentou
assassinar o inspetor de quarteirão.” Outra testemunha ainda admitiu que procurou os
serviços de Gervásio, pois acreditava estar enfeitiçado. Afirmara que, crédulo de estar
enfeitiçado, foi em busca de remediar o problema e “o curandeiro, de fato, preparou uma
garrafa de raízes, que o respondente não tomou e que pagou Gervásio por isso”.
Acrescentara que “este indivíduo (Gervásio, no caso) já há tempos apareceu aí com o nome
de Luís, e que tem preparado remédios de raiz para mais de 20 pessoas naquele lugar e
fechando o corpo com agulha”. Ao aventar a possibilidade de ter sido enfeitiçada, a
testemunha não hesitou em procurar os serviços do curandeiro. Neste sentido, os processos
que envolvem feitiços tratam também da problemática da cura, na medida em que o bem
estar e a tranqüilidade das pessoas estariam condicionadas ao feitiço. O que é um
fechamento de corpo, um breve, uma bolsa de mandinga senão um recurso mágico que
objetiva proteção contra reveses e infortúnios? Nesta cadeia de fatalidades incluem-se as
moléstias também. E, portanto, em circunstâncias de doenças muitas pessoas lançavam
mão do recurso da feitiçaria.
Com relação à inserção do curandeiro na região, parece incontestável que tais
agentes eram procurados por todas as camadas sociais. Os processos atestam que tanto
pequenos lavradores quanto fazendeiros mais abastados recorriam às suas curas e feitiços.
Como demonstra este caso o curandeiro Gervásio “teria preparado remédios de raiz para
mais de 20 pessoas” em Félix dos Santos, ou seja, uma fração significativa de um pequeno
povoado. Enfim, numa época em que "nas intervenções médicas o remédio era pior do que
a doença"
79
, a procura dos curandeiros era recorrente e, apesar das recriminações legais, a
população não hesitava em fazê-lo. Uma outra testemunha do processo alegou que,
“em setembro passado o denunciado apareceu no lugar denominado Félix dos
Santos e começou a fazer curas por meio da feitiçaria, depois pedira a um
morador deste lugar um selim (arreio), desaparecendo com ele. A testemunha,
79
CARNEIRO, Henrique. Filtros, Mezinhas e triacas. São Paulo: Xamã, 1994, p. 75.
65
em companhia de outras pessoas, inclusive o tal crioulo (proprietário do selim),
dirigiu-se ao lugar denominado Preguiça e intimou ao dito denunciado a fazer
entrega do selim. Gervásio acabou resistindo, e acabou preso”.
O curioso neste processo é que parece que o que possibilitou a denúncia do réu por
práticas de curandeirismo foi o desaparecimento dos arreios, que este delito foi o que
diretamente levou Gervásio a ser preso. Não há nenhuma menção no documento que
precise se os arreios foram dados a Gervásio no intuito dele enfeitiçá-los ou se Gervásio
apenas teria pedido emprestado os arreios ao dono e se apropriado deles. O fato é que este
incidente é que levou o inspetor de quarteirão a procurar Gervásio em sua casa e prendê-lo.
O réu acabou incriminado por alegar que as pessoas estavam enfeitiçadas, e com isso
oferecer seu trabalho, cobrando para isso.
O processo de Gervásio Ferreira de Mello teve duração de abril de 1896 até março
de 1897, e não teve uma sentença definitiva, já que o réu foi apenas pronunciado. Gervásio
encontrava-se foragido. O julgamento foi adiado, mas foi encaminhado o seu
prosseguimento. Não foi possível saber o seu desfecho.
O próximo processo crime investigado envolvendo o crime de curandeirismo foi o
de Felipe Marcelino
80
. O caso ocorreu no arraial de São Francisco de Paula, termo da
cidade de Oliveira. O curandeiro foi preso em flagrante em dezembro de 1897 na Fazenda
de Dona Constança de tal “com uma toalha aberta em cima de uma caixa, contendo ossos
de animais, cascas de bichos e raízes. Estava em atitude de quem estava fazendo curas
milagrosas mediante quantias de dinheiro”. Dona Constança se achava enferma e
encomendou os serviços de Felipe Marcelino no intento de conseguir cura.
Segundo a promotoria, “o denunciado por meio de mágicas e seus sortilégios, ou
usando de talismãs inculcava-se curando moléstias, e desta arte fascinava e subjugava a
credulidade pública”, conforme rezava o artigo 157 do Código republicano.
Este discurso oficial, regulamentado em leis, se utiliza da noção de charlatanismo e
do abuso da dos incautos para condenar os curandeiros, feiticeiros e agentes populares
de cura. Mas talvez as autoridades realmente tivessem conhecimento do fato de que as
pessoas optavam por buscar os serviços destes curadores movidas por crenças e
expectativas que iam além do que quer que pudesse ser classificado como ingenuidade,
ignorância e obscurantismo, já que tais procedimentos rituais e tradicionais faziam parte do
80
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 812, cx. 38.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=48674
66
universo mental destes povos. Daí a necessidade por parte destas autoridades de uma
repressão criminal ostensiva, justamente para conter um fluxo espontâneo e constante de
pessoas que persistiam a recorrer a estas alternativas costumeiras e ancestrais de cura.
Neste caso específico, por exemplo, os préstimos do curandeiro Felipe Marcelino
foram encomendados por Dona Constança e várias outras pessoas foram fazer consultas
com ele na Fazenda da solicitante. Tais procedimentos rituais encontravam-se enraizados
nos costumes e na cultura da sociedade e faziam parte significativa do leque de
possibilidades ao qual as pessoas recorriam em momentos de necessidade.
Há subsídios tanto no conteúdo das documentações, como também na vasta literatura
sobre o assunto para demonstrar o grau de interesse e sugestionamento que o feitiço
exercia na sociedade da época. Constata-se através da grande procura pelas práticas
mágicas que uma visão de mundo, uma mentalidade que faz as pessoas acreditarem
realmente no poder do feitiço e recorrerem espontaneamente aos serviços dos curandeiros.
Desde o século XVIII, conforme afirma Donald Ramos “as autoridades encaravam
estes rituais e crenças como uma forma de corrupção que prejudicava as almas de uma
população inocente ou rústica”.
81
Em um processo pesquisado por Donald, um curandeiro
foi acusado “abusando assim da inocência dos povos e tormentando neles uma cega
credulidade, fazendo dar crédito às suas fingidas embustices e adivinhanças que tanto
arruínam a fé cristã e prejudicam o sossego espiritual e temporal das almas.”
82
Os estudos sobre o pensamento mágico de Paula Montero afirmam que as pessoas
“tendem a considerar a magia como uma simples manifestação da malícia pessoal do
mágico, que se aproveita, em benefício próprio, da credulidade dos membros do grupo a
que pertence.”
83
Atenuando esta visão, a autora afirma
“que é a sociedade que avaliza o papel do feiticeiro no conjunto social. O
curandeiro atende a uma demanda que parte da própria sociedade. [...] A magia,
mesmo quando praticada por indivíduos isolados, nunca é a criação de um
homem só; ela está sempre fundada em crenças coletivas”
84
.
81
RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: Um comentário sobre a
interpretação da escravidão in Da SILVA, Maria Beatriz Nizza. Brasil: Colonização e Escravidão.(Org.)
op. cit. p. 150.
82
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa . Carta de denúncia de Ignácio
Ferreira Cunha, 31 de janeiro de 1793.
83
MONTERO, Paula. Magia e pensamento mágico. São Paulo, Editora Ática, 1986. p. 12.
84
Idem, Ibidem.
67
Voltando ao processo mencionado, o réu, o curador Felipe Marcelino, tinha
naturalidade africana e a idade avançada de 68 anos. Era casado, lavrador e residente em
Lavras. No ato da prisão foram apreendidos objetos e quantia em dinheiro pertencentes a
Felipe Marcelino. Em um interrogatório com o réu, ele “respondeu ter vindo aqui (São
Francisco de Paula) para fazer algumas curas e que não as fazia por mal."
Esta última afirmação do curador somada a algumas peculiaridades de sua atividade
parecem dar margem para algumas suposições sobre os fundamentos da sua tentativa de se
defender. Primeiramente, Felipe Marcelino é o único agente de cura dentre os processos
arrolados que pratica seus serviços através apenas de recursos de feitiçaria. Não é sequer
mencionada nos detalhes dos autos alguma indicação de garrafadas e preparados a base de
ervas ou plantas. De acordo com o depoimento das testemunhas nota-se a predominância
de recursos de magia e ignora-se a presença de alguma receita tópica. Apenas na descrição
da prisão em flagrante se narra que dentre os artefatos apreendidos continha dentre outras
coisas “cascas de bichos e raízes”, mas não comentários de que tais objetos pudessem
ser usados para a preparação de mezinhas. Provavelmente se tratassem mesmo de objetos
rituais da própria feitiçaria. É pertinente lembrar que a própria denúncia atribui ao réu o
delito do artigo 157 correspondente a práticas de “magias e sortilégios”. Diante destas
considerações, ao alegar que não fazia as curas por mal, Felipe Marcelino talvez estivesse
querendo admitir que fazia feitiços apenas no intuito de cura, descartando a possibilidade
de realizar malefícios, ou seja, feitiços maléficos. O acusado pensou que desta forma
poderia sensibilizar as autoridades, o que resultou inútil.
Outra possibilidade a partir desta tentativa de justificativa das curas por Felipe
Marcelino é a de que o curador procedendo daquela maneira não tinha intenção somente de
ludibriar e enganar os enfermos. Desta forma, o acusado afastaria a hipótese de que haveria
um deliberado e estrito propósito de apenas se locupletar através de seus rituais de cura. Ou
seja, o feiticeiro acreditaria mesmo que estava fazendo aquilo para o bem.
O fato é que apesar do esforço de procurar se defender diante das autoridades
argumentado que fazia feitiços por uma boa causa, Felipe Marcelino não teve atenuantes
no decorrer do processo.
Rediscutindo os depoimentos dos autos, uma testemunha disse “ter ouvido de
diversas pessoas que achavam-se nesta freguesia de um africano que havia extraído do
corpo de diversas pessoas, cabeças de cobras, ossos e insetos mediante quantias de
68
dinheiro previamente ajustadas”. Outra testemunha, Cândido Gonçalves Rosa, era filho da
viúva enferma Dona Constança. Ele admitiu ter chamado o curador e de ter consentido na
prisão realizada em sua casa. Segundo ele, “Felipe Marcelino aconselhou sua mãe a jogar
fora todos os remédios receitados por médicos, dizendo que os remédios de botica não a
curavam, exigiu que ela não continuasse mais com os ditos remédios, pois ele a curaria de
todos os incômodos”. O filho da enferma em seu testemunho ainda acrescentou que depois
de desacreditar os medicamentos empregados por sua mãe, Felipe Marcelino passou a
empreender sua cura ritual,
“Marcelino abriu um lenço branco contendo uma porção de polvilho, um cordão
de aço que colocou em seu pescoço, tirando nesta hora em sua mão dois ossos,
um com as mãos no estômago, e outro com a boca no peito esquerdo, e depois
pegando os dois ossos mandou por uma pedra de sal e jogá-los pelo córrego
abaixo, o que cumpriram”.
Outra testemunha dos autos que também buscou tratar de suas dores com as
feitiçarias de Felipe Marcelino alegou que,
“estando doente com uma dor nas pernas se dirigiu até à casa de Dona
Constança, onde se encontrava Felipe Marcelino, dando consultas a muitas
pessoas. O curandeiro lhe disse que o seu incômodo provinha de uns cacos de
pratos que estavam dentro de suas pernas e que ele os tirava com facilidade, não
tendo porém realizado seu desejo porque naquela hora foi preso (...) não viu
Marcelino extrair ossos em ninguém”.
Felipe Marcelino foi condenado no grau médio do artigo 157 do código criminal à
pena de dois meses e 21 dias de prisão.
Outro caso interessante consta no processo de infração de posturas contra o réu
Jerônimo Honório Machado. O processo foi instaurado em 24 de maio de 1872 no distrito
de São Francisco de Paula.
85
Estes autos parecem ilustrar um típico caso esclarecedor de
como a tutela sobre as práticas ilegais de cura se mostrava rigorosa e implacável mesmo
num contexto em que no código criminal a repressão do curandeirismo não se encontrava
explicitamente definida. A condução e o direcionamento do processo pela promotoria se
defrontaram com uma resistência e desembaraço arrojados dos depoentes diante das
inquirições dirigidas e interessadas da acusação.
85
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 415, cx. 18.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=17485
69
Este processo apresenta um enfrentamento de posições, manifestado nos
depoimentos das testemunhas, que o diferencia da maioria dos rotineiros processos
caracterizados por uma intimidação oficial das autoridades.
A promotoria mencionara que o réu “tem se inculcado curador de moléstias. E por
meio de feitiços e orações, manipulando e receitando remédios a muitas pessoas deste
município sem ter título das Escolas de Medicina do Império”. A denúncia foi baseada no
artigo 74 das Posturas municipais.
As palavras da 1ª testemunha do processo ratificaram os propósitos da denúncia.
Segundo a testemunha,
“o acusado tem se intitulado curador de moléstias por meio de feitiço, aplicando
remédios compostos de raízes e que tem fechado corpos de pessoas por meio de
orações; disse mais que sabe de ciência própria que o mesmo acusado em uma
ocasião aprontou uma garrafa de remédio misturando com vinho para o uso dele
testemunha e esta dando-se mal com as primeiras dores desistiu da continuação
do uso do dito remédio. Perguntado pela promotoria se o acusado é médico
formado pelas escolas de medicina do Império? Respondeu que não sabe, mas
que de certo não é médico por ser um homem analfabeto. Perguntado se os
remédios são manipulados pelo acusado? Respondeu que sim.”
As testemunhas que seguem interrogadas no processo passam a tomar posições bem
diferentes. A segunda testemunha afirma que,
“Sabe de ciência própria por ter tomado alguns remédios manipulados pelo
acusado na ocasião que estava doente e que ficou perfeitamente são, tendo
tomado remédios dos melhores médicos formados, e que sabe que o acusado não
é formado em Medicina, mas que o julga muito útil a humanidade. Perguntado se
sabe que o acusado tinha fechado corpos por meio de feitiços? Respondeu
negativamente.”
A próxima testemunha relata que,
“o acusado tem aplicado remédios por ele manipulados e tem fechado corpos de
pessoas com orações, e disto sabe por que o corpo dele testemunha foi fechado
pelo acusado e estando a mulher dele testemunha bastante enferma tomou
remédios feitos pelo dito acusado e sarou, tendo sido antes desenganada pelos
médicos. Perguntado se o acusado é formado em Medicina? Respondeu que
não”.
A quarta testemunha do processo reitera o posicionamento das outras testemunhas,
“o acusado manipula remédios e os aplica ás pessoas que o consultam, não
remédios caseiros como da botica, e disto sabe por que estando em uma ocasião
70
a mulher dele testemunha bastante doente, o acusado aprontou uns remédios dos
quais fazendo-se uso deles, a mulher dele testemunha ficou perfeitamente sã”.
Uma última testemunha interrogada no processo confessa que “ela testemunha
tem tomado de seus remédios e que os remédios são raízes e outros adjuntos feitos com
cozimento, mas que esses remédios não lhe fizeram mal nem bem”.
Tal processo demonstrou-se instigante no sentido que as testemunhas discordam
entre si sobre as qualificações atribuídas ás práticas do curandeiro Jerônimo. Os efeitos dos
tratamentos diferem. Este aspecto parece evidenciar um caso em que não ocorre um
discurso uníssono na condução dos processos. As posições das testemunhas se
desencontram, se contradizem, impedindo uma seqüência unívoca e geral em relação às
interpretações e juízos sobre o acusado.
Depois de um primeiro testemunho alinhado com a linha normativa e condenatória
da denúncia movida pela Promotoria, uma seqüência de testemunhas mostra-se favorável e
até admiradora dos serviços do curandeiro. A discussão em torno do exercício ilegal da
cura é manifestada tanto nas respostas às perguntas sobre uma possível formação
profissional do curador como nos consecutivos elogios aos seus procedimentos e as
comparações com os métodos médico-científicos mal sucedidos.
Apesar de uma predominância de depoentes simpáticos e favoráveis ao trabalho do
curandeiro, a Promotoria requereu sua condenação nas penas do artigo 74 das Posturas
municipais e artigo 46 do Regulamento da Junta Central de higiene pública de 29 de
setembro de 1851, por ter este infringido as referidas disposições. A despeito da decisão da
sentença final este processo apresenta um aspecto dialógico e participativo significativo, no
qual as testemunhas mostraram-se perspicazes ao manifestar suas opiniões, alheias aos
propósitos normativos e acusatórios da promotoria.
Posteriormente a sentença proferida pelo Juiz Cândido de Faria Lobato acaba por
acatar a condenação do curandeiro;
“Vistos estes autos de infração de posturas entende-se perfeitamente que o
infrator Jerônimo Honório Machado é conhecido nesta cidade e em todo o
município como curandeiro e que emprega no exercício de tal profissão remédios
desconhecidos na medicina, tais como raízes que outros desconhecem, além do
emprego de drogas medicinais, prova-se mais que o infrator na aplicação que faz
de seus medicamentos especiais se auxilia de poder sobrenatural, chegando a
fechar corpos, prova-se mais, que o infrator sendo analfabeto, e por conseguinte
ignorante, não se podendo dizer no sentido seguro de direito, que por exercício
da medicina que podendo ser exercida por homem inteligente, de bom senso,
ilustrado, que não sendo profissional, infringe por isso o regulamento sanitário
71
de 29 de setembro de 1851, mas o infrator não está nesse caso, é conhecido
geralmente como feiticeiro, expressão vulgar, menos do que charlatão, são estes
prejudiciais à parte menos ilustrada da população que se deixa arrastar pela
predição de tais homens. Em vista pois destas razões condeno o infrator no
máximo das penas do art. 74 das Posturas municipais, em oito dias de prisão e na
multa de trinta mil réis, e nas custas do processo.”
Na sentença do juiz fica evidente a perspectiva das autoridades diante da prática do
curandeiro, entendida como uma “profissão” nociva e condenável. Neste julgamento a
autoridade enquadra o curandeiro como infrator por julgá-lo um feiticeiro ludibriador e não
por considerá-lo um praticante ilegal da medicina, que tratava-se de um analfabeto e,
segundo ele, um homem não “ilustrado”. A partir desta interpretação do juiz deduz-se que
a idéia de charlatão podia ser usada para pessoas com um certo grau de instrução e
ilustração, hierarquizando até mesmo diferentes agentes de cura. O reconhecimento como
feiticeiro acarretou em severa desqualificação na reputação de Jerônimo. Suas atividades
de cura foram taxadas de grosseiras e inferiores às também condenadas atividades dos
charlatões, estes entendidos apenas como médicos falsários. Deste modo supõe-se que o
charlatanismo se limitava à atuação de pessoa que reivindicava para si o uso do arsenal
metodológico e da linguagem corrente da medicina oficial para passar-se por médico.
A passagem discriminatória mais gritante nas palavras do discurso emitido na
sentença parece ter se manifestado no uso da expressão “ignorante” associada
incondicionalmente a condição de analfabeto do réu. Esta compreensão parece ignorar que
conhecimentos populares empíricos transmitidos oralmente eram avalizados por
considerável parte da sociedade. Diante desta mentalidade oficial tal repertório tradicional
e costumeiro no campo da cura deveria ser descartado em prol de recursos e métodos
exclusivos de uma medicina formal e acadêmica. Esta tentativa de proibição de pessoas
iletradas e ditas “ignorantes” de exercerem práticas de cura, atribuindo a elas incapacitação
intelectual, parece tratar-se de uma perspectiva bastante concatenada com os preceitos
monopolizadores da corporação médica, além de estar incutida de um ranço aristocrático
que inevitavelmente gera distinções e hierarquizações.
Partindo do pressuposto de que Jerônimo lançava mão tanto de feitiços quanto de
“remédios de raízes” provenientes de uma sabedoria popular arraigada e tradicional, parece
pertinente especular que tal curandeiro teria adquirido uma relativa experiência com o
universo das práticas de cura. Tal convivência prática na lida do tratamento de
enfermidades não dotaria o curandeiro de um status de agente alternativo da cura,
72
reivindicado e muitas vezes imprescindível em casos de necessidade? E este arcabouço
cultural empírico-popular não poderia dialogar e intercambiar com outros níveis mais
“científicos” de conhecimento? Afinal de contas, não seriam os empíricos, os práticos,
pontas-de-lança convergindo progressivamente em direção à consolidação da propalada
ciência? Por mais que estes agentes populares de cura estivessem em um território
fronteiriço entre os domínios da ciência e da tradição parece descabida a tentativa de se
menosprezar e impedir seus serviços em nome de uma medicina formal e acadêmica ainda
desacreditada e incipiente.
A grande maioria das testemunhas, ao serem perguntadas sobre as atividades de
cura de Jerônimo, enfatizaram a utilidade e serventia de seus remédios caseiros e até a
superioridade da eficácia destes quando comparados com os recursos médicos utilizados. É
bastante provável que, em 1872, estes curadores que se valiam tradicionalmente de
procedimentos empíricos e populares conhecessem mais da prática e da experiência da
cura do que o médico de formação acadêmica de então.
A partir do veredito da sentença final podemos concluir que a despeito das
considerações altamente positivas tecidas pela maioria das testemunhas a respeito do
curandeiro Jerônimo este acabou condenado por suas práticas de cura. O término do
processo se deu em 3 de junho de 1872.
O processo criminal que passo a tratar é movido contra a pessoa de José de Paula
Freitas, conhecido popularmente como “Dr. José”. Foi instaurado em 28 de dezembro de
1898 na cidade de São João del-Rei
86
.
A denúncia movida pela promotoria diz que “há tempos o denunciado vem
abusando da dos incautos, começou a exercer a medicina, ministrando raízes e
aproveitando-se da boa fé e simplicidade de seus clientes, passa-se por feiticeiro”. Segundo
as acusações, o réu “declarou-se capaz de inspirar ódio ou simpatia de amor em quem
quisessem”. O réu foi denunciado nos artigos 157 e 158 do código penal por “há muito
achar-se exercendo indevidamente a medicina aplicando remédios e tisanas com prejuízo
da saúde pública, e mais, extorquindo dinheiro aos incautos, e ainda exercendo
sortilégios”.
86
Processo criminal do Arquivo IPHAN/ET, registro nº 966, cx. 69-11.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2765&op=1
73
Segundo testemunha “o réu levava objetos de ouro em troca de remédios”. Disse
mais, “que o réu curava feitiços e isto sabe, por que Cassiano de Freitas contara a ele,
testemunha, que o réu havia tirado de sua mulher alfinetes, ossos, pregos e passarinhos”.
No processo do curandeiro Felipe Marcelino anteriormente descrito também foi
relatado o recurso da extração dos mais variados objetos e animais do corpo das pessoas.
Tal recorrente procedimento mágico tem como função apresentar uma satisfação material
ao crédulo de algo que o estaria incomodando, assim como Lévi-Strauss pôde constatar em
seus estudos a partir de um fragmento de autobiografia indígena em língua Kwakiutl
recolhido por Franz Boas na região de Vancouver, Canadá. Segundo Lévi-Strauss, para o
feiticeiro era necessário se produzir “sob forma de objeto material a doença, à qual tinham
sempre atribuído uma natureza espiritual, e que não haviam, pois, jamais sonhado em
tornar visível”
87
.
No decorrer do processo uma testemunha alega que o réu disse que “mesmo
havendo perseguição das autoridades contra ele para que ele saísse dali, que ele não saía,
pois que tinha muitas pessoas que o protegiam, e não tinha medo das autoridades”.
Tamanha confiança do réu talvez se devesse ao fato de que pessoas influentes pudessem ter
algum tipo de relação de proximidade com o curandeiro, ou quem sabe mesmo utilizar dos
seus serviços.
Outra testemunha disse que “conhece o presente réu pela alcunha de Doutor José,
curador de feitiços”. O réu disse à testemunha que “curava toda e qualquer moléstia com os
remédios que possuía, e que também era capaz de fazer qualquer pessoa dormir durante o
tempo que quisesse”. Sendo dada a palavra ao réu, sobre este depoimento, ele disse que
“dava alguns chás que lhe pedissem e que tendo o médico Dantas José Bastos lhe proibido,
nunca mais deu remédios, isto há oito, nove meses”.
Uma terceira testemunha declarou sobre o réu que “desde que o conhece nunca o
viu empregado ou cuidando de outros afazeres”. Disse saber que “o réu exerce a profissão
de curandeiro, dando remédio de raízes, e isto, porque em sua própria casa o réu esteve por
diversas vezes tratando com garrafadas de remédios de raízes”. Consta em seu auto de
qualificação, como resposta a respeito de sua profissão, que o réu era oficial de carpinteiro.
87
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1985. p. 204.
74
Numa outra audiência a mesma primeira testemunha do processo acrescenta que
“Cassiano quando soube do procedimento que o curandeiro usou com a sua mulher -
retirou dela alfinetes, pregos e passarinhos - ficou indignado e pretendia lhe dar uma
surra”. Disse ainda que o réu “não exerce a profissão de carpinteiro”. A segunda
testemunha declarou que o réu “não exerce profissão de forma lícita, apesar de ter
recentemente se empregado no Hotel Central”.
A testemunha Sabina Balduína, inimiga do réu, disse que “o denunciado se negou a
atender uma segunda vez a perna de Dona Cândida, alegando que não lhe pagariam”.
Admitiu ter pedido ao denunciado “algum remédio para curá-la, pois também se achava
doente, dando-lhe o denunciado alguns frascos que continham raízes amargas”. Segundo a
testemunha, o réu “pediu casamento por meio de uma carta a uma mocinha que a
testemunha criou, casamento que foi rejeitado pela moça e por ela testemunha, tendo
ouvido dos filhos de Cassiano de Freitas, que o denunciado dissera que havia de casar com
a moça por meio de feitiçaria”.
Dada a palavra ao defensor do réu, este disse “não saber se o denunciado se oferece
para tratar dos doentes ou se é por eles chamado”.
Torna-se imperioso ressaltar a existência de uma demanda da sociedade que exige o
serviço do curandeiro a despeito da intolerância das autoridades vigentes. Uma vasta
bibliografia reflete sobre a questão da procura dos serviços do feiticeiro, aspecto
mencionado acima pelo defensor do curandeiro.
Recorro mais uma vez aos processos dos benandanti ocorridos na Itália no século
XVII, rigorosamente investigados por Carlo Ginzburg. O benandanti acusado de feitiçaria
Michele Soppe ao ser proibido de prosseguir com suas atividades de benzeções, curas,
revelações de feitiços e delação de feiticeiros responde atrevidamente que continuaria “se
fosse chamado, de outra forma, não.
88
Ainda sobre a necessidade e exigência pela sociedade da prática mágica, como
artifício de busca de solução de mazelas e conflitos, a antropóloga Paula Montero
acrescenta,
“Qualquer rito ou cerimônia tem sentido e eficácia porque quem está agindo
através do mágico é a própria sociedade. [...] A própria sociedade o empurra a
88
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. op. cit.
p. 145.
75
preencher seu personagem. [...] O mágico não inventa ritos ou representações,
ele age armado pelos poderes que a sociedade lhe empresta”
89
.
Retomando o processo, mesmo Dona Balduína, inimiga do acusado, confessa que
já teria usado os remédios do “Dr. José” para curá-la de doenças. Diante deste quadro o réu
considera que “as testemunhas são suspeitas”:
“Balduína porque tornou-se sua inimiga, por ter pedido ele denunciado
casamento a uma moça filha adotiva da mesma testemunha, que se opunha ao
casamento a ponto de ir a Conceição da Barra de Minas procurar um feiticeiro
para tirar da moça a idéia de casar-se com ele denunciado estando ela pondo em
prática atos que lhe foram mandados praticar pelo feiticeiro; que a mesma
testemunha pediu ao subdelegado de polícia, Bento José Gomes que perseguisse
a ele denunciado até fazer retirar-se desta cidade; que a mesma testemunha disse
a várias pessoas que o denunciado usou de feitiços para fazer com que a moça se
casasse com ele, o que é falso...”
O réu admite que “deu remédios de fato, à testemunha sem resistência dela, tendo
ela tomado o remédio todo”. Acrescenta que “ele denunciado já retirou o pedido de
casamento e que Sabina maltrata sua filha adotiva por causa dele denunciado”.
Nota-se neste processo, um desacordo quanto à ocupação do acusado, que embora
se apresente como oficial de carpinteiro, não é reconhecido como tal, pela maioria das
testemunhas que nunca o viram empregado ou cuidando de outros afazeres que não o de
curandeirismo. Uma única testemunha aponta que o réu “empregara-se no Hotel Central”.
O réu José de Paula Freitas foi pronunciado chegando até a pagar uma fiança
arbitrada pela Justiça. Mas a despeito disso, o Tribunal Correcional verificou não estarem
provados os crimes que lhe são atribuídos, julgando improcedente a acusação e
consequentemente absolvendo o réu. O processo teve duração de 27 de outubro de 1898 a
26 de janeiro de 1899.
Outra documentação com que me deparei foi um habeas corpus que data de agosto
de 1886 visando libertar os escravos Adão e Juvêncio, presos pela prática de curandeirismo
em São João del-Rei
90
.
Um interventor, Joaquim José de Oliveira, resguardado de sólidos conhecimentos e
argumentos jurídicos, vem pedir uma ordem de hábeas corpus em favor dos escravos do
89
MONTERO, Paula. Magia e pensamento mágico. São Paulo: Editora Ática, 1986. p. 13.
90
Processo criminal do IPHAN/ET, registro nº 1119, cx. 51-05.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2171&op=1
76
proprietário José Domingues de Carvalho, residente no termo de Lavras. Os escravos Adão
e Juvêncio foram presos na cidade de São João del-Rei “aplicando curativos de raízes e
simpatias”. Segundo o interventor Joaquim José de Oliveira,
“os escravos com o consentimento de seu senhor foram trazidos poucos dias,
pelo suplicante, para esta cidade donde deviam ingressar ontem: estavam em
preparativos de partida quando foram presos pelo oficial de justiça Januário de
Azevedo Ramos acompanhado de três praças, que todos, sem apresentarem
mandado algum de qualquer autoridade, invadiram a casa do suplicante e ali
efetuaram a prisão, sem nem ao menos designarem o motivo da prisão”.
O interventor por várias razões entende ser ilegal a aludida prisão, e passa a
argumentar no sentido de deslegitimá-la. Alega insistentemente que tal prisão foi realizada
“com o domicílio do suplicante invadido sem formalidade alguma, contra todos os
preceitos constitucionais e legais que lhe garantem a inviolabilidade”.
Sobre o motivo defendido para a execução da prisão, o curandeirismo em si, o
interventor entende que “se é certo ter sido a razão da prisão o fato de darem-se os presos a
arte de curar, o que não consta por forma alguma, na ilegabilidade (sic)”. E acrescenta,
“Aplicam um ou outro medicamento, como não é certamente o que a lei
considera medicina ou arte de curar, pois então rara seria a pessoa que não fosse
criminosa para dar-se o crime é preciso que a pessoa inculpada faça disso
profissão e basta a condição dos presos = escravos = para excluir a suposição
de que faça da medicina profissão.”
O juiz municipal José Martins Bastos, por sua vez, entende que é “público e notório
que os escravos Adão e Juvêncio acham-se nesta cidade exercendo a arte de curar e
recebendo disso grandes honrarias. Foram encontrados em seu poder bugigangas como
fava de Santo Ignácio, assim como outros objetos empregados para os autos de feitiçaria”.
Quanto à prisão dos escravos, o juiz julgou “medida acertada realizada, haja visto (sic) que
eles se acham sem ordem alguma legal de seus senhores e com certeza foragidos”. O juiz
reagiu de forma taxativa com relação ao pedido de habeas corpus do interventor: “Admira
que Joaquim José de Oliveira, pai de família, cidadão que quer gozar de paz nesta cidade
se anime apresentar-se em juízo defendendo negros fugidos e feiticeiros e admitindo
semelhante imoralidade podendo qualquer pessoa de sua família ser vítima”. O habeas
corpus requerido a favor dos escravos Adão e Juvêncio foi negado. A soltura dos presos foi
impedida em função da ausência de seus senhores que não requereram causa alguma,
apenas houve o requerimento de um terceiro, no caso, o interventor Joaquim José de
77
Oliveira. O processo dos escravos Adão e Juvêncio durou de agosto de 1886 a setembro de
1886.
Neste processo não fica precisa a causa do paradeiro dos escravos, afastados de seu
patrão a uma distância considerável, de Lavras até São João del-Rei. O motivo da viagem
dos escravos não fica especificado, nem comentado por seu defensor. Tal mistério talvez se
deva pela possibilidade dos escravos estarem exercendo suas práticas de curas a serviço de
seu patrão ou até mesmo do interventor no processo. É uma hipótese pertinente a ser
levantada. A historiadora Júnia Ferreira Furtado, ao estudar as práticas de cura das Minas
setecentista, relata que “muitos destes negros que praticavam a arte da cura eram bem
valorizados no mercado, com alguns deles inclusive, recebendo pagamentos (jornais) de
seus senhores para rodar os arraiais e vilas realizando suas curas e adivinhações
91
”.
Ao estudar o contexto da feitiçaria na Bahia do século XIX, João José Reis aponta
que “alguns sacerdotes libertos haviam provavelmente obtido a liberdade com dinheiro
ganho de práticas divinatórias, curas e outros trabalhos, ou essas práticas complementavam
formas mais convencionais de ganhar a vida
92
”.
O próximo caso envolvendo curandeirismo refere-se ao acusado por crime de
curandeirismo Honório da Silva Rosa, vulgo “Honório Félix”.
93
Os fatos se passaram no
povoado de Barro Preto, distrito de Itapecerica, e a instauração do processo se deu a cinco
de abril de 1902.
A denúncia relatara que João Venâncio de Souza atormentado por uma úlcera num
dedo dos pés recorrera aos serviços do curandeiro Honório Félix a fim de curar o
incômodo. O curandeiro prometera curar tal úlcera mediante pagamento de quarenta mil
réis. Estando ambos acordados o enfermo se dispôs a fazer o tratamento na casa de
Honório onde foi atendido por cinco dias. Ali a ferida foi cuidada com tisanas e
beberagens, além de substâncias aplicadas externamente sobre a úlcera. Passados os cinco
dias o enfermo desistiu do tratamento, pois não vinha surtindo resultado algum. Desta
forma, abandonou a casa do curandeiro e foi procurar socorro “na medicina por pessoa
competente”. Segundo palavras da Promotoria, “era tarde: o mal tinha criado raízes;
91
FURTADO, Júnia Ferreira. “Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial” in Revista do Arquivo
Público mineiro. Ano XLI Julho-Dezembro de 2006. Belo Horizonte, MG: Rona Editora p.99.
92
REIS, João José. Sacerdotes, devotos e clientes no candomblé da Bahia oitocentista. in ISAIA, Artur César
(Org.) Orixás e espíritos – O debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea. Uberlândia: EDUFU,
2006. p. 71.
93
Processo criminal do Acervo do Fórum de Itapecerica, Registro n° 304; Cx. 17-05.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=3289&op=1
78
improfícuos foram os recursos da sciência e o infeliz vem a falecer a 17 de janeiro findo,
devido talvez às drogas que lhe ministrou o referido curandeiro, o que não podemos
afirmar por falta de um exame seguro, que, infelizmente não conseguimos obter”.
Parece clara a intenção dos acusadores de atribuir a morte do doente apenas à uma
equivocada e indevida intervenção do curandeiro no tratamento do doente. A terapêutica
adotada pelo curandeiro teria causado mal ao enfermo, provocando inclusive a
impossibilidade da ciência obter resultados satisfatórios na cura. Segundo tal argumentação
o tratamento de Honório só teria retardado possíveis progressos provenientes de um correto
e adequado procedimento proporcionado por um médico competente. Mas, como o próprio
promotor admite, tais insinuações são desprovidas de uma prova segura. A hipótese da
causa da morte estar associada às drogas ministradas pelo curandeiro vem acompanhada,
nas palavras do próprio promotor, do precavido termo “talvez”.
Fica despertada a curiosidade de saber algo mais sobre a natureza da doença que
afligia o enfermo, apenas descrita nos autos como uma úlcera, mas que afinal de contas
acabou levando o enfermo a falecer. Não meios de se comprovar que um tratamento
exclusivamente através da medicina formal da época, solucionaria os infortúnios do
enfermo, da maneira como a denúncia deu a entender. A própria responsabilidade do
médico que teria cuidado do doente após o período de tratamento com o curandeiro
também deveria ser cogitada. No entanto foram descartadas quaisquer críticas ou objeções
ao tratamento do Doutor Leopoldo Correa. Afinal de contas, a interpretação priorizada foi
aquela que considerava que as medidas que deveriam ser tomadas por um tratamento dito
apropriado representado pela medicina formal foram prejudicadas pela desastrosa
interferência do curandeiro.
Por outro lado, talvez realmente os métodos de cura empregados por Honório Félix
tenham sido decisivos para o desfecho mortal. Mas de acordo com os dados apresentados
na acusação, não há especificações que relatem o tipo de tratamento usado pelo curandeiro,
além da menção às “tisanas, beberagens e substâncias aplicadas em uso externo”. Não
subsídios que possam nos certificar que tais drogas teriam ocasionado a posterior morte. É
natural a utilização de mezinhas e remédios caseiros na tradição dos curandeiros. De
qualquer forma, em sua tentativa de cura inicial, chama a atenção o fato do enfermo
espontaneamente ter prescindido dos recursos da medicina oficial para buscar auxílio junto
ao curandeiro. Este costume de se recorrer a agentes alternativos e tradicionais de cura tão
desaprovados pelas autoridades era fato corriqueiro na sociedade mineira da época.
79
Em razão da falta de provas seguras que garantisse que as drogas de Honório teriam
sido responsáveis pelo falecimento do enfermo, a Promotoria sugere a punição do acusado
no crime definido no artigo 158, relativo à prática de curandeirismo. Os relatos das
testemunhas no processo são unânimes em ratificar que Honório Félix teria tratado de
ferida no de João Venâncio de Souza mediante quantia de quarenta mil réis. A
testemunha Francisco Antônio de Souza, tio da vítima, assegurou ainda que,
“João Venâncio de Souza em dias de janeiro deste ano, faleceu em sua casa
devido a uma ferida em um dedo do direito e que à última hora foi tratado
pelo Doutor Leopoldo Correa, mas soube por José Ferreira Gomes Júnior que o
mesmo João Venâncio antes de ir para a casa da testemunha esteve em casa de
Honório da Silva Rosa sendo tratado por este que lhe garantiu a cura recebendo a
quantia de quarenta mil réis.
Foi confirmado pelo Promotor Jeferson Ribeiro o pronunciamento do réu no artigo
158 do código penal, correspondente à prática do curandeirismo, atestando desta forma que
a Promotoria apenas se comprometeu a julgar o acusado baseado em fatos sustentados por
provas, não em especulações e suposições acerca da responsabilidade direta do denunciado
na morte do enfermo. E indícios irrefutáveis de que o réu realmente realizava práticas
de curas através de beberagens, além de preparados para uso externo, os quais a Legislação
da época condenava.
Os procedimentos terapêuticos de “Honório Félix” não eram acompanhados por
possíveis rezas, benzeções ou ainda quaisquer rituais de natureza mágica e mística. Talvez
por isso o réu não tenha sido pronunciado no delito de utilização de magia e sortilégios,
previsto no código penal através do artigo 157, correspondente à feitiçaria.
No julgamento realizado no Tribunal Correcional, o Juiz Antônio Ribeiro Penna
Nunes propôs responsabilizar o acusado por danos mortais ocasionados no enfermo João
Venâncio de Souza. Ocorrera um desencaminhamento da pronúncia que estava voltada
apenas para a condenação do réu no crime de curandeirismo, correspondente ao artigo 157
do código penal. Entretanto, o denunciado foi absolvido porque a sentença decidiu pelo
não reconhecimento da responsabilidade do réu na morte do enfermo João Venâncio de
Souza. Parece que esta alteração do foco do crime na fase final do processo acabou
beneficiando o acusado, que não respondeu pelo crime de exercício de curandeirismo, bem
mais suscetível de condenação. O processo termina em 10 de setembro de 1902.
80
O próximo processo crime envolvendo curandeirismo é contra José Rodrigues de
Moura “Caroba” e foi instaurado em 16 de março de 1903 na cidade de Oliveira.
94
O indivíduo conhecido popularmente como Caroba foi denunciado pela Promotoria
que alegara que através de notoriedade pública veio a conhecer que o réu vinha
apregoando-se curandeiro, percorrendo vários distritos da comarca, “[...] incutindo no
espírito dos ignorantes, que é capaz de curar toda e qualquer moléstia e para conseguir esse
fim, prescreve e ministra, por ele próprio preparado, remédios para uso interno, de
substâncias do reino vegetal [...]” predominantemente a caroba. O Promotor alertara que
uma horda maravilhada de desocupados acompanhava o curandeiro em suas andanças. E
advertira que o dito Caroba recebia pelos remédios preparados quantia em dinheiro dos
infelizes que a ele recorriam.
Para reforçar o coro incisivo e contundente da denúncia da Promotoria, o Padre
Correa, autoridade do plano religioso na cidade, enviou uma carta ao Promotor Leopoldo
Ferreira Monteiro demonstrando uma aguda preocupação com as atividades de cura de
Caroba. O Padre busca usufruir de seus status de autoridade eclesiástica para intervir no
caso e evitar que o réu seja liberto através de um habeas corpus que seria providenciado
pelo advogado José Ferreira Carvalho, contratado por um de seus protetores. Nesta carta o
Padre externara seu extremo pânico diante de um personagem satanizado, que seria capaz
de provocar o caos e a discórdia geral na cidade. Seu tom exagerado parecia atribuir uma
importância bem maior do que efetivamente o curandeiro Caroba tinha. Tal situação da
prisão do curandeiro mobilizando alguns setores da sociedade em favor de sua soltura
causara no reverendo “horror e confusão”.
Bem no início da carta o Padre mesmo revelara que traçara aquelas linhas “sob
pressão de verdadeiro terror” admitindo assim as fortes impressões que o avanço e
repercussão dos trabalhos de Caroba passavam a ter numa sociedade que ele não julgava
ser tão “fanática”. Segundo suas palavras, “os fanáticos estão de tal forma crentes nas
falsas façanhas desse homem, que se for mister matar um dos contrários eles matarão
facilmente”. O teor alarmante e irritadiço de suas recomendações era caracterizado por
advertências e ameaças de que a liberdade de Caroba provocaria inevitavelmente desgraças
e mortes geradas pelo furor e exaltação de seus seguidores e simpatizantes. O clérigo
chegou a ousadamente comparar Caroba a um “segundo Antônio Conselheiro”.
94
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 992; cx. 49.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=1154&op=1
81
A rejeição a um tipo de personagem carismático e místico, que é interpretado pelas
autoridades como uma ameaça à moral, à ordem e à religião, ganhara mesmo tons
dramáticos nesta inflamada carta do Padre de Oliveira ao Promotor de Justiça, chegando
mesmo a relacionar a influência e poder do curandeiro indiciado com a liderança
messiânica da Revolta de Canudos, que ocorrera alguns anos antes do processo.
Parece mesmo que as palavras indignadas do Padre Corrêa de fato apenas
reiteraram e recrudesceram o tom áspero da denúncia do próprio Promotor Leopoldo
Ferreira Monteiro. Dentre alguns termos utilizados pela Promotoria dirigidos ao caso
“Caroba” constavam “dúzia de desocupados” e “espírito dos ignorantes”, o que bem
precisa que as posições críticas das autoridades judiciais e religiosas coincidiam no que se
refere à denúncia do curandeiro.
O Promotor sugeriu o pronunciamento do denunciado Caroba no artigo 158 do
código penal correspondente ao delito de curandeirismo.
Tal processo apresentou duas rodadas de inquirições de testemunhas. Tais séries de
depoimentos parecem ter sido manipuladas e conduzidas no sentido de retirar determinadas
posições e opiniões das palavras das testemunhas. Nas duas rodadas as mesmas pessoas
prestaram depoimentos e nesta repetição dos testemunhos várias contradições vieram à
tona, haja vista que a natureza das perguntas se modificou.
A impressão que se tem, comparando os depoimentos, é que na primeira inquirição
predominaram questões levantadas pela denúncia resultando em um alinhamento aos
argumentos da acusação naturalmente desfavoráveis ao réu. na segunda rodada dos
depoimentos as testemunhas viram-se confrontadas com a presença e as perguntas do
advogado de defesa, o que modificou significativamente as narrativas dos depoentes.
Diante do defensor do réu os relatos dos depoentes amenizaram bastante a posição crítica
contra o acusado que prevalecera inicialmente. Esta diferenciação de pareceres e relatos
das testemunhas, diante dos poderes de influência opostos representados pela promotoria e
defesa, parece confirmar o poder de intimidação e pressão exercida sobre estas pessoas,
que pareciam responder aquilo que eram conduzidas a responder.
Dentre os relatos resultantes da inquirição inicial, a testemunha italiana Olinto
Mechetti afirmara que o denunciado “prepara um remédio com caroba e cachaça e aos
seus doentes. Sabe que são muitos e numerosos os seus doentes e que José Rodrigues [o
Caroba] não tem autorização da Junta de higiene para praticar tal preparado”. Em seu
82
segundo depoimento não preocupação em acusar a ausência de uma permissão oficial
da Junta de higiene pública para praticar suas curas. Em nenhum depoimento da segunda
rodada menção de se questionar possíveis autorizações ou títulos, diplomas e
habilitações pertencentes ao acusado. Ainda na primeira rodada de depoimentos o depoente
João José Rabelo Costa dissera que Caroba “não tem título algum de habilitação por
qualquer faculdade”.
Parece que tal verificação confirma que as perguntas da primeira inquirição não
seriam as mesmas da última rodada de depoimentos. Os questionamentos sobre uma
possível autorização ou habilitação do curandeiro para exercer suas curas ocorreram no
inquérito inicial, em que se priorizou uma linha mais implacável contra o acusado
mantendo inclusive o tom agudo e agressivo da denúncia. Portanto, neste caso específico
os depoentes não caíram em contradição, apenas se limitaram a responder o que era de
pronto interesse das autoridades nos respectivos e diferenciados momentos do inquérito.
Com relação à acusação de cobrança pelas receitas preparadas por Caroba as
testemunhas em sua maioria mostraram-se contraditórias. Em seu primeiro depoimento,
por exemplo, a testemunha Olinto Mechetti alegara que “o referido denunciado cobra por
suas receitas a quantia de cinco mil réis”. Posteriormente num segundo inquérito, acareado
com o defensor do réu, o depoente mudou consideravelmente o teor de suas palavras ao
afirmar que “sabe que o denunciado não exige dinheiro por seus serviços, mas que recebe
toda e qualquer quantia que lhe dão espontaneamente”.
Uma outra testemunha, Gervásio Raphael da Silva, em seu primeiro testemunho
dissera “que José Caroba receitou para sua mulher caroba com cachaça sendo certo que sua
mulher em vez de melhorar tem piorado apesar de ter de pagar por isso dez mil réis”. O
mesmo réu acrescentara ainda que “sabe que ele receita este preparado composto por ele
próprio à diversas pessoas recebendo por isso dinheiro”. Já numa segunda rodada de
depoimentos Gervásio fora indagado sobre o preço das receitas ao que respondera que “lhe
foi dito por José da Costa que o preço da receita e do remédio era dez mil réis e que ele
[Gervásio] fosse dizer a sua mulher que quando ela melhorasse viesse pagar e como a
doente não melhorasse a testemunha não pagou”.
Nos dois casos demonstrados acima os depoentes alegaram inicialmente a
existência de uma cobrança obrigatória pelas receitas. Posteriormente as testemunhas
83
disseram que ou o curandeiro receberia doações espontâneas ou a cobrança existiria apenas
com a condição de uma melhora efetiva dos incômodos do enfermo.
Mesmo antes das interrogações do advogado de defesa, a tendência de abrandar a
natureza dos depoimentos era percebida. Talvez a própria presença e participação de um
defensor no ato da inquirição tenham influenciado nestas modificações dos relatos das
testemunhas. Parece inquestionável uma pressão e manipulação deliberada na condução
das inquirições e uma conseqüente suscetibilidade das testemunhas ao se deparar com estes
procedimentos tendenciosos. Neste caso, quando ocorreu uma segunda rodada de
depoimentos, parece ter havido uma concessão de espaço para a defesa onde o advogado
representante do réu pôde questionar elementos da acusação e ainda realizar perguntas
direcionadas para os depoentes maquinadas habilidosamente. Tais oportunidades
conferidas à defesa mostraram-se raras dentre os processos consultados envolvendo a
criminalização de curandeiros.
Nos depoimentos das testemunhas foram recorrentes opiniões negativas sobre os
efeitos causados pelo tratamento feito com José Caroba. A natureza destas declarações
também se tornou mais branda na segunda etapa de inquirições. A testemunha Olinto
Mechetti afirmara inicialmente que “tem ouvido dizer que diversas pessoas mais se
agravaram as enfermidades depois que tomaram os remédios do referido curandeiro”. Em
seu outro depoimento Olinto nada citara em relação ao resultado do tratamento. Já o
depoente Gervásio Rafael da Silva afirmara estar “certo que sua mulher em vez de
melhorar tem piorado” com o tratamento de caroba. Em segundo depoimento retirara a
menção à piora do estado da enferma e relatara apenas que “sua mulher continuou a
queixar de seus incômodos”. Se num primeiro momento ele queixara-se de que a receita do
curandeiro teria agravado os incômodos de sua mulher, depois ele apenas argumenta que o
quadro negativo que padecia sua esposa permanecera estável.
Dentre outros testemunhos que se modificaram no decorrer do processo estava a
alegação do depoente Olinto Mechetti que dissera que “o denunciado prepara um
medicamento com caroba e cachaça e manda que seus doentes tomem como meio
curativo”. O italiano ainda acrescentara que vira “o referido denunciado preparar e
ministrar a referida substância e que na ocasião que administra ao passo que o doente toma
o remédio, ele faz uns passes e pronuncia umas palavras de reza e termos cabalísticos”.
Entretanto, no mesmo depoimento, a testemunha paradoxalmente afirmara que vira “o
denunciado apenas benzer a caroba não presenciando o denunciado ministrar esta
84
substância”. Talvez palavras como “prescrever” e “ministrar”, fartamente utilizadas nos
códigos relativos ao combate dos agentes ilegais da cura, não fizessem parte do universo
vocabular destas testemunhas. Discussões semânticas à parte, de qualquer forma os relatos
mostraram-se contraditórios e a testemunha demonstra uma indefinição quanto à
administração e fornecimento da droga pelo acusado.
Esta segunda declaração do depoente italiano contradizendo totalmente seu
depoimento anterior ocorreu logo depois das intervenções e perguntas do advogado de
defesa, que certamente influenciaram nas volúveis palavras da testemunha. Numa primeira
circunstância parece que as testemunhas foram embaladas por um direcionamento mais
crítico do processo e acabaram por se alinhar às pretensões da denúncia. Num segundo
momento suas posições são expressivamente flexibilizadas atenuando o rigor dirigido
contra o réu. Parece que tal comportamento confuso e contraditório dos depoentes é
resultante do caráter intimidador e inibidor dos manipuladores das inquirições, tanto das
autoridades responsáveis pela denúncia quanto do advogado incumbido de defender o réu.
Sobre a interferência dos agentes judiciais do processo na construção dos autos e da
própria intimidação oficial intrínseca a este tipo de interferência as conclusões de Yves
Castan, sobre investigações em processos criminais no Languedoc francês de fins do
século XVIII, parecem também se aplicar ao contexto apreendido em meus estudos,
“As condições em que se produz a fala das testemunhas dificultam a emissão; o
objetivo dos que aparentemente a liberam conduzem, pelo contrário, à sua
captura. Para uma pessoa das classes populares sobretudo o aparelho policial e
judiciário representa uma perigosa máquina, movimentada segundo regras que
lhe são estranhas. É bastante inibidor falar diante dela; falar o mínimo possível
pode parecer a tática mais adequada para fugir às suas garras. Condicionada por
estes elementos, a fala da testemunha é também dirigida pelos manipuladores
técnicos.”
95
Ao lidar com fontes criminais não se pode perder de vista o caráter parcial e falível
destas documentações, marcado pela ação de inevitáveis “filtros e intermediários
deformadores”
96
. No entanto para uma investigação ideal é imprescindível buscar brechas
95
CASTAN, Yves. “Mentalités rurale et urbaine à La fin de l’Ancien Régime dans Le ressort Du Parlement
de Toulose d”après les sac à procès criminels (1730-1790)”. p. 116, in Crimes et criminalité em France dans
l’Ancien Régime – 17º-18º siècles, 1971 apud FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano – A criminalidade em São
Paulo (1880-1924) São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. p. 25.
96
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das letras, 2005. p. 20.
85
para devassar as coações, acobertamentos e deturpações típicas destes documentos. Como
pondera o historiador Carlo Ginzburg “o fato de uma fonte não ser objetiva não significa
que ela seja inutilizável”.
97
Rediscutindo o processo, depois de longa e conturbada série de inquirições a
Promotoria decidiu por pronunciar o réu no artigo 158 do código penal, que caracterizava o
crime de curandeirismo. Foi marcado um julgamento para o acusado Caroba e de acordo
com a sentença o réu foi considerado culpado. O tribunal julgou “procedente a acusação
contra o réu intentada, incurso no artigo 158 do código penal, no grau médio o condenando
à pena de quatro meses, dois dias e doze horas e a multa correspondente de trezentos mil
réis”. Entretanto, houve uma apelação da sentença e decidiu-se finalmente que os prazos
legais estipulados não foram cumpridos. Desta maneira a ação penal dirigida contra Caroba
acabou prescrita, tendo o processo terminado em setembro de 1904.
Neste processo de José Caroba parece ter se verificado que o auxílio jurídico que o
curandeiro teve no decorrer dos autos foi mesmo fundamental para sua absolvição. A
presença de um defensor inclusive interferindo e participando ativamente nos inquéritos,
por exemplo, não era muito comum em outros processos que visavam condenar
curandeiros. Talvez este tenha sido um fator decisivo para livrar Caroba das grades,
confirmando a preocupação e o desespero das advertências do padre Correa acerca de um
temido apoio jurídico que o réu poderia ter. Para o descontentamento da autoridade
religiosa e das próprias autoridades judiciais responsáveis pela denúncia o curandeiro
Caroba conseguiu se safar de qualquer condenação.
Refletindo sobre o caráter místico-religioso associado ao carisma e fascínio do
acusado de curandeirismo José Caroba, chama a atenção uma notícia de primeira página do
jornal de São João del-Rei O Resistente, datado de 1 de outubro de 1899, na qual se relata
os poderes de um taumaturgo operando curas milagrosas através de seus passes no Rio de
Janeiro. O curador também foi comentado como proprietário de uma cruz pertencente ao
próprio Antônio Conselheiro além de ter sido comparado ao líder messiânico de Canudos.
Ressalta-se que tal reportagem, originária do Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, interprete
com bons olhos as atividades do “médico milagroso”.
Um curioso caso criminal envolvendo prática de curandeirismo ocorreu no mês de
junho de 1889 na freguesia de Nazaré nas redondezas de São João del-Rei
98
. Tal processo
97
Idem, Ibidem.
86
trata na realidade de um possível furto de um cavalo, mas a motivação de se investigar este
caso foi justamente o fato da acusação alegar que o “roubo” se deu sob o “pretexto til e
criminoso” de compensar uma cobrança por serviços de curandeirismo.
A denúncia foi movida pelo ofendido no processo Honório Fidélis Siqueira.
Segundo a versão de Honório, estando ele com infortúnios de doença apareceu-lhe Manoel
Joaquim Pereira, conhecido popularmente como “charuteiro”, apresentando-se como
curandeiro disposto a tratar dos seus males. Manoel teria lhe dito que estava enfeitiçado e,
portanto, providenciou-lhe preparados de raízes. Honório admitiu ter feito uso destas
bebidas sem ter havido qualquer alteração no seu desalentado quadro de saúde.
Posteriormente, o acusado Manoel começou a cobrar de Honório uma quantia de quinze
mil réis pelas suas garrafadas, classificadas na denúncia como “bugigangas”. Como
Honório negou-se a pagar pelas beberagens que não tinham surtido efeito algum, o
denunciado Manoel apropriou-se de um cavalo retirado do pasto de sua propriedade como
pagamento dos serviços prestados como curandeiro.
A qualificação do crime de furto “sob pretexto fútil e criminoso” estende-se por
quase todo o processo. A recriminação de uma compensação em troca de serviços de
feitiçaria não pagos também foi reiterada por testemunhas que disseram que a atitude do
suposto roubo ocorrera sob o “frívolo pretexto” de compensar uma cura não sucedida. A
interpretação de que não havia cabimento um dado curandeiro cobrar por receitas que se
revelaram insatisfatórias demonstrou-se generalizada nos autos.
Todas as testemunhas no processo concordaram com o direcionamento da
denúncia. Algumas acusaram até ter visto o filho do réu Manoel, Silvestre, transportar o
animal após o dito roubo, alegando que o que estava fazendo era a pedido de seu pai.
Duas testemunhas referiram-se ao denunciado como um costumeiro e habitual
ladrão. José Silvério de Siqueira alegou que Manoel “gosta do alheio, e não é a primeira
vez que ele pratica destes atos, pois que o clamor é geral”. José Francisco de Siqueira
dissera “que o réu é useiro em gostar do que é dos outros, tanto que não é a primeira vez
que vem à Justiça”. É importante notar a respeito destas duas testemunhas que
provavelmente deveriam ser parentes do denunciante, haja vista a incidência dos mesmos
sobrenomes do ofendido. Estando mesmo confirmada esta hipótese, não causa admiração a
convergência de opiniões negativas dos depoentes relativas à índole do réu.
98
Processo criminal do Arquivo do IPHAN-ET, registro nº 1096, cx. 56-04.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2167&op=1
87
O réu Manoel Joaquim Pereira parecia estar mesmo encurralado. A própria natureza
da denúncia da promotoria demonstrou-se confusa ao definir o tipo de delito que o réu teria
cometido. Segundo a Promotoria, “tem lugar a acusação pública não pelo uso indevido
que o acusado faz da medicina, como por que o furto de gado e animais também está neste
caso”.
A Promotoria requereu um pedido direcionado ao delegado de higiene para
fiscalizar as aludidas atividades ilícitas de cura praticadas pelo denunciado. Apesar de
duras acusações concernentes à prática ilegal de medicina atribuída ao acusado a
Promotoria de fato pronuncia o réu como incurso nas penas do artigo 257 do código
criminal do Império referente ao crime de furto.
Por incrível que pareça a partir deste pronunciamento o processo tomaria rumos
totalmente diversos daqueles para o qual naturalmente ele parecia desembocar. Foi
justamente quando o denunciado apresentou a sua versão do acontecido, bem distinta dos
relatos enfatizados pela acusação, que o esclarecimento veio à tona. Segundo o réu Manoel
Joaquim Pereira, Honório tinha dívidas de negócios a acertar na praça, das quais o
denunciado era credor. Portanto, o cavalo em questão teria sido negociado com o
denunciante para compensar tais obrigações. O denunciante tendo desistido do negócio
inventara a história do furto e teria aliciado diversas testemunhas para depor contra o
caráter e as possíveis atividades de curandeiro atribuídas a Manoel.
Tal caso narrado parece se enquadrar dentro de situação em que querelas não
resolvidas entre as pessoas motivariam a delação de possíveis envolvimentos de uma das
partes em práticas de cura reconhecidamente criminalizáveis. Ou seja, parece que tais
conflitos interpessoais seriam fatores fundamentais para a decisão de se acusar um desafeto
por crimes ligados à feitiçaria e ao curandeirismo. Mesmo que as motivações da disputa
entre elas não fossem exatamente questões relacionadas à cura ou à feitiçaria supõe-se que
a discriminação do inimigo como feiticeiro dificultaria muito mais as possibilidades de
defesa do conflitante. Neste caso específico, o denunciante Honório pareceu inventar uma
situação envolvendo serviços prestados de feitiçaria que ele sabia ilícitos para acobertar a
perda de seu cavalo através de negócio. Os autos nos ofereceram poucos subsídios a
respeito da fama do acusado Manoel como curandeiro, mas talvez ele realmente fosse um
curandeiro e, aproveitando-se disso, Honório teria inventado a estória da cobrança por um
tratamento de feitiçaria mal sucedido no intento de dissimular a real causa da perda de seu
cavalo.
88
A mentira motivadora da instauração deste processo parece atestar até as últimas
conseqüências o quanto um processo criminal pode ter de invenção, de fábula, enfim, de
uma obra de ficção social, como confirmaram os estudos de Mariza Corrêa sobre
criminalidade em família.
99
que neste caso a farsa foi desmascarada no decorrer do
processo, fato que nem sempre sucede.
Retornando ao encadeamento do processo, após os esclarecimentos do acusado o
júri, por maioria absoluta de votos, respondeu que “o réu Manoel Joaquim Pereira não tirou
para si, e contra a vontade de seu dono, dos pastos pertencentes a Honório, um cavalo
pertencente ao mesmo, a título de pagar-se do que lhe devia Honório”. Deste modo o réu
foi absolvido da acusação que lhe foi intentada e foi solto. O processo teve duração de
junho de 1889 a agosto de 1890.
A partir de uma análise geral das documentações averiguadas pôde-se perceber que
houve notável presteza e aplicação da Justiça no intuito de reprimir e punir os curandeiros
denunciados. Parte significativa dos processos criminais abordados redundou em
condenação dos réus. Dez processos instaurados contra acusados de curandeirismo e
feitiçaria acarretaram em cinco condenações, quatro absolvições e um processo que
encontrou-se inacabado tendo o réu Gervásio
100
fugido após pronunciamento e
encaminhamento de seu julgamento.
Nos quatro casos que resultaram em soltura dos réus as autoridades mostraram-se
bastante diligentes e enérgicas, tanto nas denúncias como no andamento dos trâmites dos
processos. Nestes autos a disposição acusatória da promotoria demonstrou-se recorrente e
intensa, dando a entender que os casos fatalmente culminariam em condenações, o que
surpreendentemente não aconteceu. Consta no processo do réu absolvido José de Paula
Freitas
101
, o “Dr. José”, por exemplo, que este chegara a pagar fiança arbitrada pela Justiça
antes da resolução favorável a ele na sentença do processo. O réu “José Caroba”
102
, por sua
vez, fora condenado pelo Tribunal Correcional, mas conseguira safar-se através de
apelação que sustentava que os prazos legais não foram cumpridos e a ação penal teria
prescrito. É importante ressaltar que ambos os casos acima ilustrados se valeram da
99
CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1983. p. 40.
100
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 782, cx. 36.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=46063
101
Processo criminal do Arquivo IPHAN/ET, registro nº 966, cx. 69-11.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2765&op=1
102
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 992; cx. 49.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=1154&op=1
89
presença de advogados de defesa. O auxílio destes defensores pode ter sido, senão um fator
determinante, pelo menos um elemento altamente relevante para as decorrentes
absolvições. A grande maioria dos processados por curandeirismo e feitiçaria não tiveram
o socorro e proteção de advogados, o que pode ter influenciado na predominância das
condenações.
Em outro processo que resultara em absolvição movido contra o réu Manoel
Joaquim Pereira
103
evidenciou-se um impetuoso fervor acusatório das autoridades que se
mostrara precipitado e infundado, principalmente depois que as denúncias foram
desmascaradas e julgadas como improcedentes. A ausência de uma rigorosa apuração
inicial do caso resultou em discurso inflamado contra o acusado que revelou-se gratuito e
descabido diante do esclarecimento dos fatos. Portanto, os ataques incisivos e taxativos da
denúncia prevaleceram em todos os processos, mesmo neste caso citado, em que sequer
fora confirmado qualquer envolvimento do réu com furto e feitiçaria, crimes a ele
imputados.
Os processos-crimes movidos contra curandeiros incidiram tanto no período
imperial como no republicano. É bem verdade que a partir de um avizinhamento da
república tais ações penais se intensificaram. Provavelmente tenha contribuído para isto o
maior recrudescimento e especificação característicos das leis republicanas referentes à
criminalização dos agentes ilegais da cura.
Através das documentações consultadas, provenientes de uma amostra considerável
de acervos de diferentes municípios de Minas Gerais da segunda metade do século XIX,
percebe-se que foram instaurados poucos processos criminais que envolviam repressão aos
agentes ilegais da cura. Mas, no entanto, pode-se apreender que estas escassas ações
judiciais refletiram um ardoroso empenho das autoridades para condenar os curandeiros e
feiticeiros denunciados.
O capítulo que se seguirá buscará avançar na análise desses processos e deter-se nas
construções discursivas que sustentaram as acusações.
103
Processo criminal do Arquivo do IPHAN-ET, registro nº 1096, cx. 56-04.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2167&op=1
90
CAPÍTULO III
DESCONTRUINDO OS PROCESSOS CRIMINAIS SOBRE
REPRESSÃO AO CURANDEIRISMO
Este capítulo do trabalho foi reservado para a discussão e comparação de elementos
fundamentais na constituição e construção dos processos. O debate em torno da natureza
jurídica das denúncias, do teor das argumentações que sustentam as acusações, da
perspectiva e condução das autoridades responsáveis pelo encaminhamento dos processos,
do posicionamento e comportamento das testemunhas diante do aparelho burocrático
judiciário, das recriminações presentes nos discursos acusatórios que transcendiam os
próprios códigos estabelecidos, enfim, todos estes aspectos serão aqui explorados e
analisados em detalhe.
A partir desta abordagem busca-se “apreender regularidades que permitam perceber
valores, representações e comportamentos sociais”
104
característicos do conjunto dos
processos criminais, sem, no entanto, descartar os processos que demonstraram-se
singulares e não conformados pela forma estereotipada dos autos. Talvez nestes últimos
processos os depoimentos das testemunhas não se limitassem a fazer eco aos discursos
acusatórios e aos propósitos condenatórios da denúncia e, por isso, nos tenham bastante a
dizer tanto sobre o teor dos fatos em questão como sobre o próprio caráter e funcionamento
do aparelho de justiça.
Ao analisar os pensamentos e perspectivas de mundo, inerentes aos discursos
apresentados nas denúncias e sentenças dos promotores e juízes acerca dos acusados,
manifestam-se elementos imprescindíveis que parecem atestar a influência de valores
religiosos e morais nas decisões decorrentes dos pronunciamentos e condenações.
necessidade de se expor, pelo menos nos processos-crimes em que isto foi
suscetível de realização, as versões conflitantes e defrontações que podem esclarecer
melhor alguns aspectos que estavam em jogo na prática repressiva oficial contra
curandeiros e feiticeiros.
104
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano A criminalidade em São Paulo (1880-1924) São Paulo: Editora
Brasiliense, 1984. p. 17.
91
O processo criminal entendido como uma construção, como algo que perde o
contato com o fato acontecido e passa a ser uma disputa no vago e impalpável universo do
discurso, deve ser minuciosamente investigado. Nos processos-crimes “os atos se
transformam em autos, os fatos em versões”.
105
Sondar os possíveis interesses acobertados,
especular prováveis proteções, identificar o posicionamento ideológico das autoridades,
todos estes procedimentos são subsídios que podem nos trazer pistas para se devassar a
verdade dos autos. Segundo a historiadora Celeste Zenha,
“A fábula é a verdade final produzida no processo. Nada mais é do que uma
historieta tida como coerente e verdadeira, resultante do conjunto de versões
apresentadas por todos aqueles que falaram durante o processo: queixoso,
autoridade, ofensor, ofendido, peritos e testemunhas. Ela se distingue da ação,
perdida no tempo, que serve de pretexto para o denunciante.[...] As práticas
jurídicas produzem, portanto, uma verdade dos autos e jamais a repetição
(repetida ação) do fato acontecido no passado”.
106
Um olhar aprofundado sobre alguns pontos que foram insistentemente referidos nos
processos pelas autoridades deve ser explorado convenientemente. As especulações acerca
de possíveis ocupações dos acusados, as insinuações de cobranças pelos serviços prestados
pelos curandeiros e a referência a respeito de aspectos alusivos a uma competição com os
profissionais formais da cura permeiam quase todos os processos. A partir deste capítulo
tais questões passam a ser investigadas a começar pelas fundamentações e sustentações das
acusações e denúncias movidas pelas promotorias.
A moral dominante: conteúdo e argumentações das denúncias movidas contra os
curandeiros
Muitas das denúncias contra os curandeiros e feiticeiros obedeciam rigorosamente
às determinações descritas nos Códigos estabelecidos pela Legislação. Tais acusações
geralmente podiam seguir tanto os Códigos de Posturas Municipais como os artigos do
código penal Republicano, além de casos no período imperial em que havia o
enquadramento no delito de contravenção. Mas o teor de muitas das denúncias também não
se limitava a automaticamente repetir o conteúdo ditado pelas normatizações oficiais. Uma
margem de autonomia por parte dos magistrados e juízes possibilitava uma variedade de
105
CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1983. p. 40.
106
ZENHA, Celeste. As práticas da Justiça no cotidiano da pobreza: Um estudo sobre o amor, o trabalho e
riqueza através dos processos criminais. Tese de dissertação de doutorado - Niterói, UFF, 1984. p. 14.
92
argumentações que visavam condenar as temidas atividades dos curandeiros e feiticeiros,
transcendendo e ultrapassando as recriminações estabelecidas na legislação. Logo na parte
inicial do processo, principalmente nas denúncias, quando se passa a conhecer a natureza
dos delitos ocorridos, manifestava-se um espontâneo prejulgamento das autoridades
relativas a estes agentes da cura. O caráter reprovador e discriminatório destes agentes da
lei não se restringia apenas a ecoar os preceitos do aparato positivo e normativo das leis.
Baseado no conteúdo das denúncias e pareceres dos promotores e juízes refletia-se a
influente carga de valores morais e religiosos que ajudavam a construir um discurso
repressivo que não necessariamente se detinha nas censuras redigidas nos códigos. Este
discurso moralizante associava as práticas culturais das classes populares, incluindo o
curandeirismo e a feitiçaria, com a expressão de uma moralidade negativa e condenável,
perturbadora da ordem e da religião vigente. Tais argumentações de ordem moral e
religiosa somavam-se ao discurso repressivo oficial onde a tentativa de imposição das
normas e valores referendados pela medicina científica da época era sustentada pela
própria legislação.
Muitas vezes tais classificações reprovadoras e críticas dos curandeiros eram
verificadas também nos depoimentos das testemunhas. Tais depoentes alinhavam-se com o
direcionamento normativo e condenatório da denúncia movida pela Promotoria reiterando
as qualificações recriminadoras e depreciativas iniciadas na denúncia.
No processo de 1872 movido no arraial de Cláudio contra o acusado de feitiçaria
José Sapato
107
, por exemplo, a denúncia da promotoria além de ressaltar o exercício de ato
fraudulento previsto em lei cometido pelo acusado tece uma série de juízos e censuras
adicionais buscando agravar as atividades do denunciado. Questionamentos relativos a
uma possível perturbação da ordem social e a um atentado à religião dominante parecem
confirmar o valor do peso moral no tom da denúncia da promotoria sobre as atividades do
curandeiro José Sapato.
Vale lembrar que contemporaneamente a este processo os subsídios legais
utilizados contra os curandeiros, na ausência de uma lei específica, se encontravam no
artigo 264 do código criminal do Império, em seu inciso 4º, que condenava “todo e
qualquer artifício fraudulento pelo qual se obtenha de outrem toda a sua fortuna ou parte
107
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira,
registro 412, cx.17.
Fonte eletrônica: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=17006
93
dela, ou quaisquer títulos”
108
e no qual a prática de curandeirismo era enquadrada. Além
deste artifício legal utilizado, os Códigos de Posturas das Câmaras municipais também
condenavam tais atividades.
No processo em pauta, inicialmente a acusação do promotor especula sobre o
endereço de morada do curandeiro quando afirma que “o denunciado se acha
indomiciliado”. A denúncia divulga o caráter ambulante de José Sapato quando diz que “há
anos que aparece no distrito, ora no arraial, ora nas fazendas”. A alusão à ausência de um
endereço e modo de vida fixos visavam demonstrar a inadaptação às formas entendidas
como mais serenas e equilibradas de levar a vida, significando por si só que desprendido de
um padrão tido como costumeiro e aceitável de comportamento, a pessoa inevitavelmente
tenderia para uma natureza desordeira e prejudicial à sociedade.
A promotoria também questiona a disposição de José Sapato para o trabalho ao
alardear que “pouco se emprega no trabalho da lavoura”. Tal afirmativa não despreza que o
réu também trabalhava na lavoura não podendo ser taxado deste modo de vagabundo ou
vadio. Mas o comentário também reforça que boa parte de seu tempo não era tomado pelo
cumprimento de uma prática produtiva considerada como digna, fosse o trabalho da
lavoura ou qualquer outra forma “reconhecida” de trabalho. De acordo com a denúncia, as
atividades que realmente ele priorizava e que tomavam importante parte de seu tempo
seriam as práticas de feitiçaria.
Apenas numa quarta observação da denúncia é que há comentários sobre o crime de
contravenção praticado pelo acusado ao empregar a maior parte de seu tempo “no artifício
fraudulento inculcando-se curador de feitiços, adivinhações e outras superstições, o que
tem ensinado a negros cativos e a pessoas mal intencionadas.” Justamente por este crime
que o réu será pronunciado e condenado no processo, mais especificamente no inciso 4º do
artigo 264 do código criminal do Império. Mas, após esta menção a um ato criminoso
previsto em lei, a promotoria segue apregoando que o curandeiro ainda vem disseminando
as artes da feitiçaria e superstições entre os escravos e as pessoas tidas por pérfidas e de má
fé. A denúncia acrescenta ainda que a atividade do curandeiro seria muito danosa para a
sociedade causando “grande mal à moral pública e à religião do Estado”. Aspectos
relacionados ao estabelecimento da ordem e a moral pública, além da preocupação com o
respeito à religião do Estado parecem sinalizar que as curas de feitiços de José Sapato
108
Código Criminal do Império do Brasil. Editado por Eduardo & Henrique Laemmert, Rio de Janeiro, 1876,
p. 279. Também disponibilizado em endereço eletrônico:
Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm, visitado em 23/05/2010.
94
ameaçavam todo um modus vivendis baseado nos valores dominantes da sociedade e da
família, alicerçados no catolicismo hegemônico e na defesa dos “bons costumes”. A
afronta e o desagravo à moral e à religião alardeados na denúncia parecem se somar e
sobrepor às recriminações de natureza jurídica questionadas no processo.
Diante desta enumeração de ameaças, transtornos e inconvenientes creditados aos
curandeiros e citados pela Promotoria pública pude apreender que as preocupações que
atormentavam as autoridades neste processo não se limitavam a executar as meras
disposições penais que buscavam reprimir atos fraudulentos, mas nos esclarecem sobre as
discriminações, os preconceitos e a própria mentalidade destas autoridades diante das
formas populares e alternativas de cura. Diante desta sucessão de infortúnios atribuídos aos
curandeiros a preocupação com a saúde dos pacientes que procuravam seus serviços parece
ser mero detalhe. Parece ilustrativo o fato de que apenas na última parte da denúncia, em
sua última consideração, é que a questão da saúde seja debatida e problematizada. Em tal
passagem o promotor diz temer pelo “prejuízo de alguns que tomando as bebidas
administradas pelo denunciado em vez de sararem da enfermidade que sofriam aumentam
mais o seu sofrimento.” Neste exato ponto o discurso contra o acusado se volta para a
gravidade dos potenciais riscos e ameaças que os tratamentos com estes curandeiros
poderiam causar para a saúde e bem estar daqueles que se prontificavam a procurar seus
serviços. Tal afirmação da promotoria talvez se baseie nos fatos relatados a cerca do
agravamento dos infortúnios sofridos pelos enfermos Alexandre e Jerônimo Nogueira.
Estas pessoas buscaram tratamento com o curandeiro e alegavam não ter surtido efeito
algum que não fosse negativo. No entanto, nunca é demais lembrar que os reveses nos
procedimentos de cura eram suscetíveis de ocorrer em todas as áreas de tratamento da
saúde e não se reduziam às práticas de curandeirismo.
Outro instigante processo instaurado em 1872, mesma data do processo de José
Sapato, foi movido contra o acusado de feitiçaria Jerônimo Honório Machado no distrito
de São Francisco de Paula.
109
Um aspecto relevante da denúncia distingue este processo do
discutido anteriormente. Neste caso, o réu Jerônimo teve contra si um processo de infração
de posturas, portanto sua denúncia é baseada nas Posturas municipais, o que a difere da
denúncia do processo anterior, que buscou enquadrar José Sapato no crime de exercício
fraudulento e contravenção presente no código criminal do Império. É importante lembrar
109
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 415, cx. 18.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=17485
95
que neste período não existiam na legislação penal do império artigos correspondentes aos
específicos crimes de feitiçaria, curandeirismo e de exercício ilegal da cura. O
estabelecimento de disposições penais direcionadas especificamente a estes crimes só viria
a se dar no código penal republicano em 1890.
Diante deste fato a Promotoria se valeu do código de posturas municipais para
incriminar as ações de Jerônimo. De acordo com os autos, a acusação contra o réu assegura
que,
“Jerônimo Honório Machado residente no distrito de São Francisco de Paula tem
se inculcado curador de moléstias. E por meio de feitiços e orações,
manipulando-se e receitando remédios a muitas pessoas deste município sem ter
título das Escolas de Medicina do Império, por isso baseado no artigo 74 das
Posturas municipais, o escrivão passa mandado de notificação ao réu”.
O Código de posturas e Regimento interno da Câmara de São João del-Rei de 1887
em seu Título IV, artigo 28 também estabelece algo bastante próximo ao artigo 74 das
Posturas municipais aplicadas ao réu. Segundo o Código de São João del-Rei, “É proibido
inculcar-se curador de enfermidades ou moléstias por via do que vulgarmente se chama
feitiços”
110
. Somente a partir dos detalhes oferecidos nestes autos, torna-se difícil
identificar a proveniência das posturas municipais utilizadas no processo, embora tudo leve
a crer tratar-se das posturas da cidade de Oliveira. Talvez pelo fato de que a localidade em
que se passa o crime seja um distrito de Oliveira, para onde o prosseguimento dos
processos era encaminhado. De qualquer forma, se comparados, nota-se que o teor dos
artigos dos Códigos de Posturas das cidades mencionadas assemelham-se, talvez porque
tais Códigos buscassem uma identidade e unidade de propósitos de conduta para os
cidadãos, que invariavelmente levariam a uma definição comum das normas estabelecidas.
Portanto, a citação que se refere a “inculcar-se curador de moléstias e enfermidades” e a
alusão a utilização de “feitiços” repetem-se em ambos os Códigos de Posturas, atestando
uma uniformidade e unicidade que aproximariam o conteúdo destes códigos. Sobre este
aspecto, o Conselho Geral da Província “adotou a estratégia de uniformizar as posturas das
câmaras municipais da Província [...],criando desta forma normas gerais e mais uniformes
para a administração das municipalidades em Minas Gerais”
111
, o que naturalmente não
impedia pequenas diferenciações entre estes códigos.
110
Código de Posturas municipais e Regimento interno da Câmara de São João del-Rei de 1887 in
VENÂNCIO, Renato Pinto (org.) “Tesouros do Arquivo – São João del-Rei, uma cidade no Império”. Belo
Horizonte : Associação cultural Arquivo Público Mineiro. p. 108.
111
ARAÚJO, Maria Marta. A Assembléia Provincial, a Câmara e o povo de São João del-Rei: notas em
torno das posturas municipais e do regimento interno de 1887 in VENÂNCIO, Renato Pinto (org.)
96
No prosseguimento do processo, depois dos depoimentos das testemunhas, no ato
do pronunciamento, o promotor adjunto ad-hoc afirma que o réu deve além de ser
condenado “nas penas do artigo 74 das Posturas municipais”, mencionadas, também
deve ser pronunciado “no artigo 46 do Regimento da Junta Central de Higiene Pública de
29 de setembro de 1851”. Com relação a este último, o juiz responsável pela sentença do
processo, Cândido de Faria Lobato, descarta condenar o réu pela infração qualificada no
referido artigo. De acordo com interpretação da sentença de Lobato, Jerônimo tratava-se de
um “analfabeto e ignorante”, e portanto, pela perspectiva do juiz, o exercício da medicina
poderia ser praticado por homem “inteligente, ilustrado e de bom senso”. Mesmo que
este exercício fosse de natureza ilegal, realizado por não profissionais, segundo a
interpretação do juiz, apenas tais pessoas esclarecidas é que poderiam ser enquadradas por
infringirem o regulamento sanitário da Junta Central de Higiene Pública, que exigia
diplomas ou pelo menos licenças e autorizações dos praticantes de atividade médica.
Mas as considerações discriminatórias da sentença do juiz não ficam por aí. Ao
categorizar o infrator como feiticeiro, a sentença trata de enfatizar que tal expressão
“vulgar” está muito abaixo do charlatão e que tais feiticeiros são “prejudiciais à parte
menos ilustrada da população que se deixa arrastar pela predição de tais homens”. Mais
uma vez uma manifesta hierarquização em que predomina o raciocínio de que aqueles
charlatões que se passam por médicos são superiores aos curandeiros e feiticeiros do tipo
de um Jerônimo, por exemplo.
A partir desta sentença proferida pelo juiz, que ilustra tão bem as formas de
distinção e hierarquização dos variados tipos de pessoas que trabalhavam como agentes da
cura na sociedade da época, verifica-se que a condenação de Jerônimo baseou-se somente
nas penas do artigo 74 das Posturas municipais. O juiz parece que procurou adequar as
atividades de Jerônimo mais às práticas de feitiçaria e de curandeirismo, puníveis no artigo
citado, que o crime de exercício ilegal de medicina deveria ser imputado a pessoas
com um mínimo de esclarecimento e instrução. Na realidade, tal pensamento
preconceituoso radicado nos pareceres do juiz do processo livrou o réu de ser condenado
por mais uma infração. Segundo o juiz,
“o infrator Jerônimo Honório Machado é conhecido nesta cidade e em todo o
município como curandeiro e que emprega no exercício de tal profissão remédios
desconhecidos na medicina, tais como raízes que outros desconhecem, além do
Tesouros do Arquivo São João del-Rei, uma cidade no Império”. Belo Horizonte : Associação cultural
Arquivo Público Mineiro. p. 89.
97
emprego de drogas medicinais; prova-se mais que o infrator na aplicação que faz
de seus medicamentos especiais se auxilia de poder sobrenatural, chegando a
fechar corpos”.
A perspectiva das autoridades de que a atividade de Jerônimo era danosa e
reprovável baseava-se efetivamente em leis, mas menosprezava as opiniões e testemunhos
dos depoentes que inclusive foram atendidos pelo curador. As testemunhas em sua grande
maioria mostraram-se incontestavelmente elogiosas e gratas aos serviços prestados por
Jerônimo, inclusive comparando tais préstimos com os receituários médicos, os quais se
mostraram inúteis e vãos quando comparados com as bem sucedidas intervenções do
curandeiro. De acordo com estes clientes os métodos de Jerônimo demonstraram-se muito
mais seguros e confiáveis do que o infrutífero atendimento de profissionais formados pela
medicina que teriam diagnosticado estas pessoas anteriormente.
As testemunhas deste processo demonstraram um forte grau de independência e
autonomia nos interrogatórios, não se deixando levar facilmente por perguntas dirigidas e
propositadas que geralmente resultavam numa desqualificação do réu.
De qualquer forma parece que os depoimentos não tiveram peso suficiente para
influenciar os pareceres das autoridades, mais interessadas em aplicar as disposições penais
sem levar em conta a opinião das próprias pessoas que se consultaram com Jerônimo e que
atribuíram suas melhoras à terapêutica do curador.
Em alguns processos-crimes, como o processo de 1894 contra o curandeiro Manoel
Lagoa
112
, a denúncia da promotoria era consistente com o artigo 158 do código penal
republicano, que exigia a proibição de “ministrar ou simplesmente prescrever, como meio
curativo interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substâncias de qualquer dos
reinos da natureza, fazendo ou exercendo assim o ofício denominado de curandeiro"
113
. A
denúncia da Justiça contra este curandeiro se atém apenas a ecoar a aplicação das
especificações descritas no artigo 158 da Legislação Penal sem elencar críticas de caráter
moral ou religioso, recurso característico de denúncias de outros processos. O acusado é
denunciado de acordo com o texto estabelecido no Código, sem qualquer tipo de
acréscimos de juízos ou taxações por parte da promotoria ou do Juiz.
112
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº743, cx. 34.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=43430
113
Decreto 847 de 11 de outubro de 1890 Código Penal dos Estados Unidos do Brazil.
Fonte: htpp://www.ciespi.org.br/base_legis/legislação/DEC20a.html
98
Tal fato ocorreu por que tal processo de 1894 é contemporâneo do decreto 847, de
11 de outubro de 1890, que estabelece o código penal republicano. A partir deste decreto a
repressão contra práticas ilegais de cura e feitiçaria torna-se mais institucionalizada e o
crime de curandeirismo do qual Manoel Lagoa foi acusado fica com uma caracterização
mais precisa na Legislação. Isso não significa que todas as queixas e denúncias contra
curandeiros apenas repitam os preceitos apregoados pelo código republicano. Como
veremos mais adiante nas abordagens de outros processos envolvendo curandeiros, mesmo
acusações e denúncias deste período republicano pós- 1890 não excluíam julgamentos
morais e religiosos resultantes de denúncias ou pareceres dos promotores, juízes e outras
autoridades.
Além do artigo 158 mencionado acima como o tipo de crime aplicado para
denunciar e condenar o réu Manoel Lagoa, o código republicano ainda apresentava o artigo
156 que proibia “a prática ilegal da medicina, arte dentária e farmácia”. O Código dispunha
também do artigo 157 que estava mais direcionado para o uso de artifícios sobrenaturais e
práticas de feitiçarias proibindo assim “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios,
usar talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar curas de
moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”.
Para os infratores destes artigos era prevista “uma pena de um a seis meses de prisão
celular, majorada se resultasse alteração temporária ou permanente das faculdades
psíquicas do paciente”.
Rediscutindo o processo de Manoel Lagoa, as motivações que levaram a denúncia
da Promotoria a enquadrá-lo no artigo 158 do código penal republicano, que caracteriza o
réu como praticante do curandeirismo e não da feitiçaria, não ficam suficientemente
explícitas nos autos. depoimentos de testemunhas que afirmaram que o denunciado
muito “tem prejudicado a saúde pública com o fim de ganhar dinheiro” e que “ele sempre
traz consigo muitos santos”, além da fama propagada de Manoel Lagoa tratar-se de um
“sedutor de mulheres”. Tais comentários impedem uma apreensão satisfatória da
interpretação utilizada na caracterização da denúncia precisamente no artigo 158. Mas o
fato é que as autoridades foram rigorosamente acordes no indiciamento do réu pelo crime
de curandeirismo.
No processo do feiticeiro Felipe Marcelino
114
a denúncia da promotoria também se
limita a enquadrar o réu de acordo com as determinações do código penal republicano.
114
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 812, cx. 38.
99
que desta feita o crime imputado ao réu corresponde ao artigo 157 que se referia
especificamente às atividades de cura relacionadas à feitiçaria. Segundo a promotoria, “o
denunciado por meio de mágicas e seus sortilégios, ou usando de talismãs inculcava-se
curando moléstias, e desta arte fascinava e subjugava a credulidade pública”
115
, conforme
rezava rigorosamente o referido artigo.
A denúncia parece caracterizar o crime de Felipe Marcelino como feitiçaria pelo
fato de se manifestar no decorrer do processo várias menções e citações relativas a
procedimentos mágicos e sobrenaturais, como por exemplo, a extração do corpo das
pessoas de cabeças de cobras, ossos e insetos. O próprio artifício que o feiticeiro utilizou
para buscar a cura da enfermidade de Dona Constança, através de um ritual constituído de
cordão de aço, polvilho, ossos e pedra de sal, evocaria uma prática de feitiçaria. No próprio
ato da prisão em flagrante, os autos descrevem que o feiticeiro foi apanhado com artefatos
característicos de rituais de magia como ossos de animais, cascas de bichos e raízes. As
raízes nestas circunstâncias parecem se tratar mesmo de elementos rituais de feitiçaria, que
não estariam sendo utilizadas pelas propriedades terapêuticas e fitoterápicas que elas
poderiam ter. Como cita o processo, no momento da prisão o feiticeiro Felipe Marcelino
“estava em atitude de quem estava fazendo curas milagrosas mediante quantias de
dinheiro”. Neste caso específico o usufruto do poder sobrenatural e mágico é enfatizado e
largamente considerado para se especificar a caracterização da denúncia do crime como
inserido no artigo 157 referente às práticas de feitiçaria.
Algumas considerações importantes presentes nos autos relacionam-se à prisão em
flagrante do feiticeiro na Fazenda de Dona Constança de tal. Felipe Marcelino é
surpreendido no recinto “com uma toalha aberta em cima de uma caixa, contendo ossos de
animais, cascas de bichos e raízes. Estava em atitude de quem estava fazendo curas
milagrosas mediante quantias de dinheiro”. No ato da prisão foram apreendidos objetos e
quantia em dinheiro pertencentes a Felipe Marcelino. Naturalmente tais artefatos
pertenciam ao arsenal de objetos rituais que o feiticeiro usava em seus procedimentos
mágicos de cura. Presume-se também que a apreensão do dinheiro tenha ocorrido pela
suposição de que tal quantia teria sido adquirida através das pagas pelos serviços de
feitiçaria prestados por Felipe Marcelino, por isso as autoridades não hesitaram em
apreender os artefatos e o dinheiro.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=48674
115
Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890 – Código Penal dos Estados Unidos do Brazil.
Fonte: htpp://www.ciespi.org.br/base_legis/legislação/DEC20a.html
100
Em algumas denúncias dos processos criminais percebe-se que as definições quanto
à especificação do crime do curador denunciado tornam-se bastante nebulosas e
problemáticas. É o caso dos processos de Gervásio Ferreira de Melo e de José de Paula
Freitas. Nestes dois próximos processos a denúncia da promotoria sustenta espontânea e
autonomamente aspectos que poderiam incriminar o réu de acordo com os três crimes
especificados nos artigos do código penal republicano (Artigos 156, 157 e 158) destinados
a repreender o exercício ilegal da cura, a feitiçaria e o curandeirismo. De acordo com o teor
destas denúncias os
acusados poderiam ser indiciados nos três respectivos crimes de uma
vez. Mas o que ocorreu no decorrer destes processos foi uma escolha por determinado
artigo específico para enquadrar o denunciado.
Na denúncia do processo de curandeirismo envolvendo Gervásio Ferreira de Melo
datada de 1896,
116
em suas considerações iniciais, a promotoria alegou que o denunciado
Gervásio “exercia a profissão de curador, sem ter a necessária autorização, nem diploma
algum, empregando diferentes artifícios e bruxarias”.
Nestes argumentos iniciais da denúncia percebe-se o posicionamento taxativo da
promotoria ao ajuizar sobre as atividades do acusado. O promotor exerceu naturalmente
um caráter crítico e reprovador. A denúncia mostrou-se bastante alinhada com o viés
recriminatório e repressor da própria legislação penal, sendo empregada nas linhas deste
primeiro discurso um texto que pretendia sintetizar o conteúdo descrito nos três artigos
codificados que tratam do assunto, onde se pretendeu repreender simultaneamente o
exercício ilegal da cura, a prática da feitiçaria e a atividade do curandeirismo. O fato é que
neste breve fragmento introdutório estão improvisadamente inseridos os crimes previstos
nos artigos 156, 157 e 158 do código penal republicano respectivamente.
Mais adiante no prosseguimento da denúncia fica relatado que foram encontrados
em poder do denunciado diversos objetos e raízes próprios para exercer a profissão de
curandeiro. Tendo a promotoria entendido que o réu exercia a profissão de curandeiro “e
como ela seja punida pelo artigo 158 do código penal, por isso vem o promotor oferecer
contra o mesmo denunciado a presente denúncia”. O réu foi pronunciado desta forma como
incurso nas penas do artigo 158 do código penal. A partir deste trecho da denúncia a
Promotoria identifica um crime específico para acusar o réu e foi pelo crime de
curandeirismo que ele foi pronunciado. Parece realmente que houve uma escolha, uma
opção
das autoridades, na decisão de determinar em qual tipo de crime seria imputado o
116
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 782, cx. 36.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=46063
101
réu, que no princípio da denúncia a impressão era de que o réu poderia ser condenado
em qualquer um dos três artigos acima citados. As fronteiras e limites que poderiam
distinguir a precisa caracterização dos crimes destes artigos eram muito tênues, pois os
curandeiros geralmente utilizavam de rituais de feitiços e benzeções, além das garrafadas e
cozimentos típicos do curandeirismo, dificultando assim um enquadramento no artigo 158
(curandeirismo) ou no artigo 157 (feitiçaria). Com relação ao artigo 156 (exercício ilegal
da medicina, farmácia e arte dentária) tanto os tratamentos a base de receita de ervas como
as curas através de feitiço constituíam exercício ilegal da cura.
Em um dado momento do processo, mais precisamente quando a Promotoria
requereu o pronunciamento do denunciado, de acordo com o entendimento da acusação, o
réu foi acusado de declarar “as pessoas como enfeitiçadas para poder fazer seu trabalho,
cobrando para isso”. Uma testemunha do processo admitiu que “procurou os serviços de
Gervásio, pois acreditava estar enfeitiçado”. Afirmara que “crédulo de estar enfeitiçado foi
em busca de remediar o problema”.
Tal acusação objetiva caracterizar o próprio curandeiro Gervásio como único
agente de influência na crença do feitiço. Segundo tal raciocínio a credulidade no feitiço
como causador do mal partiria apenas das declarações e advertências do réu. De acordo
com a afirmação da denúncia o propósito de Gervásio ao apontar as pessoas como
enfeitiçadas era de trabalhar o contra-feitiço em troca de pagamentos das pessoas ditas
enfeitiçadas. Portanto tal julgamento desmerece qualquer iniciativa ou espontaneidade dos
clientes na busca dos serviços de um feiticeiro. De qualquer forma parece ter sido
caracterizado o fato de que nenhum destes enfermos ou pessoas consideradas enfeitiçadas
tivesse sido obrigada ou pressionada a procurar os préstimos de feitiçaria oferecidos por
Gervásio.
Esta alegação de que o curandeiro Gervásio insinuava que seus futuros clientes
estavam enfeitiçados parecia se adequar muito mais ao enunciado no artigo 157, que
criminalizava a prática de feitiçaria. Mas, como já vimos, o presente réu veio a ser
pronunciado no artigo 158 correspondente ao crime de curandeirismo. Na verdade o réu
realmente também não deixou de ter praticado tal crime ao preparar garrafadas de raízes
para seus clientes. Tais constatações vêm reforçar ainda mais a idéia de que a tentativa de
se limitar as atividades de alguns curandeiros a crimes específicos é muito confusa e
penosa. Nestes casos a fronteira entre as determinações especificadas nos crimes contra a
saúde pública presentes no código criminal republicano referentes à repressão dos agentes
populares de cura é muito escorregadia.
102
No processo movido em 1898
117
contra José de Paula Freitas, o Dr. José, em São
João del-Rei, também ocorreu um posicionamento da denúncia bem semelhante ao do
processo de Gervásio, com apenas algumas variações. Segundo os autos do processo, a
denúncia movida pela promotoria diz que “há tempos o denunciado vem abusando da
dos incautos, começou a exercer a medicina, ministrando raízes e aproveitando-se da boa
fé e simplicidade de seus clientes, passa-se por feiticeiro”.
Assim como o processo de Gervásio, a denúncia confere ao réu atividades que
podem ser caracterizadas como incluídas em qualquer um dos três crimes dos artigos 156,
157 e 158 do código penal republicano. Numa primeira afirmativa citada na denúncia, por
exemplo, as acusações de exercício da medicina, de fornecimento de raízes, assim como a
acusação de passar-se “por feiticeiro”, cada uma delas dirigem-se respectivamente aos
crimes especificados nos artigos referidos.
No prosseguimento da acusação novos argumentos da promotoria reiteraram que o
réu deveria ser denunciado por “há muito achar-se exercendo indevidamente a medicina,
aplicando remédios e tisanas com prejuízo da saúde pública, e mais, extorquindo dinheiro
aos incautos, e ainda exercendo sortilégios”. Tal discurso sinalizava que o réu estaria
exercendo ilegalmente a medicina, receitando cozimentos e garrafadas (as chamadas
tisanas) e ainda realizando feitiçarias (sortilégios). Novamente o conteúdo da denúncia
reafirma que o denunciado cometia práticas delituosas que poderiam ser enquadradas em
qualquer um dos três artigos já mencionados. O fato é que invariavelmente todos os
acusados de curandeirismo ou de feitiçaria dentro da gama de processos pesquisados não
se limitavam a infligir apenas um artigo específico do código. Se tais agentes da cura
estavam praticando curas através do poder terapêutico de plantas, ervas e raízes ou se eles
se valiam de feitiços e poderes sobrenaturais, estes dois tipos de práticas constituíam para a
legislação vigente da época prática ilegal de medicina.
Finalmente, verifica-se que o réu José de Paula Freitas foi pronunciado nos artigos
157 e 158 do código penal republicano, ou seja, supõe-se que as autoridades responsáveis
pela acusação entenderam que deviam enquadrar “Dr. José” em conseqüência da prática de
feitiçarias e também por “exercer o ofício denominado de curandeiro”. Os depoimentos do
processo relataram que o denunciado tinha fama de retirar alfinetes, pregos e passarinhos
dos corpos das pessoas, assim como, de prometer ser capaz “de inspirar ódio ou simpatia
de amor em quem quisessem”. Tais aspectos auxiliariam a indiciá-lo no artigo 157
117
Processo criminal do Arquivo IPHAN/ET, registro nº 966, cx. 69-11.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2765&op=1
103
referente à magia e sortilégios, enfim feitiçaria. Informações de depoentes também
confirmam que o réu preparava “garrafadas de remédios de raízes”, “frascos que
continham raízes amargas”, o que certamente orientou os denunciantes a enquadrá-lo
também no artigo 158 referente ao “ofício” de curandeiro, que administra como remédios
“substâncias de qualquer dos reinos da natureza”. Assim, o réu foi pronunciado como
praticante de magias e sortilégios, ou seja, feitiçaria (artigo 157) além de ser enquadrado
também no crime de curandeirismo, atuando como uma espécie de raizeiro, ou seja,
receitando aos enfermos substâncias do reino animal, vegetal ou mineral, contrariando
deste modo a legislação. Neste processo a parte que diz respeito à denúncia mostrou-se
bastante rica, ainda mais que este caso oferece uma situação em que o denunciado é
enquadrado em dois tipos de crime, ainda que, como é sabido, o grau de proximidade e
indistinção entre estes dois delitos se mostre na prática bastante acentuado.
Nos autos deste processo podemos verificar que as acusações da denúncia não
repetem os preceitos determinados pelos artigos em que o réu foi denunciado, no entanto,
suas argumentações harmonizam-se com estas mesmas determinações recomendadas pelo
Código, onde o caráter condenatório e taxativo parece predominar. O diferencial do
enunciado da denúncia apenas muda as palavras das determinações estabelecidas nos
códigos, mas não altera seus sentidos. Manifesta-se claramente uma concordância flagrante
com o conteúdo da legislação repressiva. Mas o que ocorreu, além disso, foi uma
espontânea síntese e reunião dos três mencionados crimes relativos à repressão aos
agentes ilegais de cura num único texto de denúncia. Tal ocorrência na parte introdutória
do processo não impediu que em seu prosseguimento o réu fosse pronunciado em apenas
dois destes artigos. Convém lembrar que José de Paula Freitas, o “Dr. José”, mesmo tendo
sido apontado como causador de tantos delitos e infrações, conforme exaustivo exame da
denúncia comprovara, foi absolvido dos crimes que lhe foram imputados.
Acerca do processo-crime envolvendo José Rodrigues de Moura, vulgo Caroba
118
, a
denúncia de prática de curandeirismo presente na parte inicial dos autos mostrou-se
bastante singular. Tal processo foi instaurado em março de 1903 no município de Oliveira.
Segundo a acusação do Promotor de Justiça, “tendo tido conhecimento pela notoriedade
pública, que em diversos distritos da comarca, vaga um indivíduo de nome José Rodrigues,
vulgarmente conhecido por Caroba, intitulando-se curandeiro, vem contra o mesmo
oferecer a presente denúncia.” O promotor indicou que o réu deveria responder pelo artigo
118
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 992; cx. 49.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=1154&op=1
104
158 do código penal correspondente ao crime de curandeirismo. Além disso, destacou o
caráter carismático e itinerante do indiciado, ao alegar que o réu “acompanhado de uma
dúzia de desocupados anda percorrendo os distritos, apregoando-se curandeiro, incutindo
no espírito dos ignorantes que é capaz de curar toda e qualquer moléstia”. Acrescentou que
o acusado administrava “remédios para uso interno, de substâncias do reino vegetal,
fazendo ou exercendo assim o ofício denominado curandeiro”. O promotor ainda apontou a
natureza remunerada dos serviços de Caroba ao relatar que o denunciado “recebe pelos
remédios que prescreve, ministra e prepara, certa quantia dos infelizes que a ele se
aproximam”.
Tal discurso taxativo da denúncia condiz com o enunciado em outras acusações
dirigidas aos réus de outros processos abordados. A promotoria identifica aspectos nas
atividades dos réus que se enquadram nas recriminações penais determinadas nos códigos
em vigor. Ou seja, o réu José Caroba, praticava o curandeirismo e receitava remédios
ilegalmente. A legislação vigente oferecia medidas repressivas contra as atividades destes
curadores. Tais denúncias mostraram-se freqüentes e comuns dentre os processos
analisados e comparados. o mérito e pertinência das recriminações contra curandeiros,
entendidos aqui como curadores que se utilizam de substâncias do reino animal, mineral e
principalmente vegetal, para obter as suas curas, será debatido posteriormente.
Mas o que mais chama a atenção na parte deste processo referente à denúncia é
precisamente uma carta enviada ao Promotor Leopoldo Ferreira Monteiro pelo Padre
Corrêa. A manifestação de uma autoridade católica da cidade evidencia que a presença dos
rituais de cura de Caroba afligiam uma certa parcela da sociedade e torna-se necessário
transcrever na íntegra as linhas redigidas por um espantado e incomodado Padre Corrêa,
“É sob a pressão de verdadeiro terror – que traço estas linhas – Dou-lhe parte que
o gênio do mal parece ter penetrado no ânimo de grande parte deste povo. Nunca
pensei Doutor, que um fanatismo tão cego e tão estúpido pudesse se dar no seio
de um povo, que afinal, não julgava tão atrasado, como está se dando aqui.
Causa-me horror e confusão. Estamos em plena Canudos e temos aqui um
segundo Antônio Conselheiro – os fanáticos estão de tal crentes nas falsas
façanhas desse homem, que se for mister matar um dos contrários eles matarão
facilmente. O Sr. João da Costa Pessoa o maior fanático de todos aqui
contratou a José Ferreira Carvalho para tratar o habeas corpus. Mas eu estou
convencido que se o Dr. Juiz de direito conceder semelhante pedido, virá esse
fato trazer a este povo a maior desgraça porque os sectários de tal homem hão de
fazer aqui os maiores insultos e até morte pode haver porquê os ânimos dessa
plebe se acham exaltadíssimos, por fim tendo nos presságios conseqüências
funestíssimas”.
105
A partir destas duras advertências tecidas pelo Padre Corrêa parece notar-se que as
preocupações voltadas para as atividades destes curadores extrapolam os limites das
autoridades jurídicas responsáveis. A influência e força carismática características do
curador Caroba motivou reações críticas também de outros setores sociais. Podemos supor
que a repercussão da fama de suas atividades de curas se alastrou consideravelmente, a
ponto de despertar um estado de temor entre diferentes e prestigiados domínios de poder na
sociedade. Tal discurso de alerta apresentado pelo sacerdote chega às raias do apocalíptico.
Alguns termos utilizados como “terror”, “gênio do mal”, “fanatismo” e “horror” beiram
mesmo à histeria.
O padre parece querer se beneficiar de uma argumentação baseada num projeto
civilizatório para condenar agentes que na verdade estariam de alguma forma competindo
ou tomando um espaço que pertencia à Igreja e seu ordeiro rebanho espiritual. De qualquer
forma o vigário mostrou-se informado da afamada
revolta messiânica de Canudos ocorrida
no sertão baiano anos antes e através disso cometera uma arrojada e atrevida comparação.
Em momento algum dos depoimentos dos autos as ações de José Caroba parecem dotadas
de algum aspecto ideológico ou político, como tal associação com o evento sertanejo
baiano parece insinuar. O fanatismo advertido pelo Padre parece exagerado se confrontado
com o teor dos relatos dos depoentes no decorrer do processo. Tais depoimentos
confirmam apenas que o curador Caroba andava acompanhado de algumas pessoas, dentre
seus camaradas e curiosos ávidos por presenciar suas curas maravilhosas. Tais afirmações
não podem garantir que o acusado liderava um séquito de fanáticos iludidos e aliciados por
seu poder carismático. Uma testemunha chega a contabilizar três pessoas ao lado de
Caroba, não podendo garantir se aqueles indivíduos estariam acompanhando-o numa
espécie de comitiva exaltada.
Em mais de um momento em sua manifestação o padre cogita a possibilidade de
mortes resultantes dos ânimos alterados e inflamados dos ditos fanáticos. Os autos não nos
oferecem subsídios para prever a possibilidade de ameaças deste tipo. Tais especulações
partem apenas da narrativa do Padre Corrêa.
A contratação do advogado José Ferreira Carvalho para tratar do habeas corpus de
Caroba demonstrou ser fato de extrema relevância. Ainda mais que um simpatizante, ou
quem sabe, protetor do curandeiro, o Sr. João da Costa Pessoa, é que teria recorrido aos
serviços do advogado em questão. Tal cidadão é classificado pelo Padre de “o maior
106
fanático de todos”, certamente por ter tomado a frente da situação e buscado amparo
jurídico para soltar o réu.
Um dado interessante nos depoimentos das testemunhas que talvez pudessem
realçar uma visão mais estereotipada e tendenciosa, no sentido de classificar Caroba como
um líder iluminado e messiânico, refere-se às particularidades dos procedimentos rituais de
cura. No caso de José Caroba, as testemunhas relatam que o curador no ato da entrega do
remédio ministrado aos seus diversos clientes, que consiste predominantemente de cachaça
com caroba, o “denunciado recita uma oração em voz alta na qual se encontram palavras
cabalísticas”. Tais frases ocultas e misteriosas parecem constituir repertório típico de
curadores e benzedores das mais diversas tradições. Mesmo rezadeiras adeptas da religião
católica vigente se valem de ladainhas e sonoridades características utilizadas em rituais de
curas e proteção.
O tom apreensivo do religioso prevendo fartas tragédias futuras parece ter sido
mesmo uma estratégia de pressão e atemorização das autoridades objetivando o
impedimento de um possível habeas corpus do curador Caroba, interpretado pelo clérigo
como ameaçador e perigoso.
O réu José Caroba foi pronunciado no artigo 158 do código penal. O Tribunal
Correcional julgou procedente a acusação intentada contra o denunciado, incurso no
referido artigo em seu grau médio. Numa primeira circunstância José Caroba foi
condenado à pena de quatro meses, dois dias e doze horas e a multa correspondente de
trezentos mil réis. Mas houve apelação da sentença e o réu foi absolvido, pois os prazos
legais estipulados não foram cumpridos.
Restam naturais dúvidas quanto ao real poder de influência que a tal interessada
carta do religioso poderia ter diante das decisões jurídicas tomadas pelas autoridades
competentes, mas inquestionavelmente sua existência destaca o processo-crime de José
Caroba com uma importância inédita dentre os processos criminais pesquisados. Afinal de
contas, as queixas contra o curador Caroba tiveram uma ampla repercussão no município, a
ponto de motivar uma carta redigida pelo padre da cidade alertando a gravidade da situação
caso o réu fosse libertado através de um habeas corpus.
Independente da decisão final da sentença absolvendo o acusado, tal intromissão
religiosa no processo ilustra bem que as preocupações com as atividades dos curadores na
sociedade não se reduziam à esfera do Poder Judiciário.
107
Dentre as disputas e confrontos de argumentações na gama de documentos
criminais abordados ressalta um habeas corpus que data de 1886 e que tinha a intenção de
libertar os escravos Adão e Juvêncio na cidade de São João del-Rei.
119
Pela própria
natureza da documentação, um habeas corpus, este processo apresenta distinções em
relação aos processos-crimes que predominam na massa documental desta pesquisa.
Os cativos foram presos por aplicar “curativos de raízes e simpatias”. Nesta
documentação o interventor dos presos
Joaquim José de Oliveira lançou-se numa truncada
peleja jurídica contra as autoridades locais visando inocentar os escravos e garantir suas
liberdades. Neste embate retórico o juiz não deixou de tecer suas considerações e pareceres
defendendo com firmeza a prisão dos aludidos escravos curandeiros.
O interventor buscou deslegitimar a prisão dos tais escravos classificando-a como
um ato arbitrário e afrontador das leis. Segundo ele, a invasão do domicílio onde se
encontravam os escravos feriu “todos os preceitos constitucionais e legais que lhe
garantem a inviolabilidade.” Acrescentou ainda que tal prisão ocorrera sem apresentação
de qualquer mandado de autoridade e sem sequer especificar o motivo da mesma. Portanto,
inicialmente o interventor põe em xeque as formalidades legais transgredidas na execução
da prisão.
Posteriormente o interventor passou a questionar a natureza dos delitos pelos quais
os negros aprisionados foram acusados, ou seja, as práticas de curandeirismo e feitiçaria.
Embora tenha ficado claro que as queixas contra os escravos referiam-se a práticas de cura
“condenáveis”, neste habeas corpus não ficam especificados detalhes sobre os artigos
empregados para a punição dos escravos. De qualquer forma o interventor construiu uma
argumentação que buscava compreender que a prática do curandeirismo é profundamente
disseminada na sociedade e não deveria ser comparada à profissão da medicina, nem muito
menos considerada ilegal. De acordo com a opinião do defensor dos réus, os escravos
Adão e Juvêncio “aplicam um ou outro medicamento, como não é certamente o que a lei
considera medicina ou arte de curar, pois então rara seria a pessoa que não fosse
criminosa.” O interventor se apóia na generalização da prática de se receitar e recomendar
remédios e plantas para livrar os curadores escravos das garras da Justiça. Parece
convincente a alegação de que as práticas de cura, sobretudo a indicação de ervas, raízes e
119
Processo criminal do IPHAN/ET, registro nº 1119, cx. 51-05.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2171&op=1
108
diversas substâncias da natureza, estariam de tal forma presente no cotidiano da sociedade
que seria absurdo julgar tais atos como proibidos por lei. O fato de tais artifícios de cura
acompanharem-se sempre de benzeções e feitiços, conforme alguns dados contidos nos
autos parecem comprovar, talvez determinasse que tais associações fossem agravantes na
perspectiva das autoridades responsáveis pela repressão.
Ainda segundo o interventor “para dar-se o crime é preciso que a pessoa inculpada
faça disso profissão e basta a condição dos presos = escravos = para excluir a suposição
de que faça da medicina profissão”. O que ocorre é que a discussão semântica em torno das
expressões profissão, arte de curar, ofício, enfim, são largamente utilizadas pelo
interventor para transmitir a idéia de que os escravos não faziam de suas curas uma prática
profissional constante. A condição de cativo dos presos não estabelece um impedimento
para o exercício de um ganho de vida através de jornais, ou seja, de jornadas de trabalho
fora dos domínios de seu senhor, mesmo que ainda a serviço de seu dono. Portanto a
alegação apresentando a condição de escravo como um anulador da possibilidade de se
configurar a atividade dos escravos como um ofício de cura, parece muito mais um
casuísmo retórico de difícil sustentação na prática.
Diante dos ardorosos e diligentes esforços do interventor Joaquim José de Oliveira
para obter o habeas corpus dos escravos aprisionados a posição do Juiz municipal José
Martins Bastos mostrou-se inflexível. E através das críticas palavras emitidas pelo juiz
pode-se identificar conceituações de um discurso repressivo que efetivamente foi aplicado
e que se manifestou na decisão convicta do magistrado. Segundo o entendimento do juiz “é
público e notório que os escravos Adão e Juvêncio acham-se nesta cidade exercendo a arte
de curar e recebendo disso grandes honrarias”. O juiz é categórico ao afirmar que os
escravos presos de fato estariam em São João del-Rei exercendo práticas de cura e sendo
remunerados por isso. No sentido de refutar qualquer dúvida que possa pairar quanto a
isso, o juiz acrescenta ainda que “foram encontrados em seu poder bugigangas como fava
de Santo Ignácio, assim como outros objetos empregados para os autos de feitiçaria”. Tais
artefatos apreendidos são considerados pelo juiz como instrumentos típicos de rituais de
feitiçaria, provas relevantes de que os negros tratavam-se mesmo de curadores feiticeiros.
O juiz também deu pleno respaldo à providência tomada pela Justiça de se prender
os escravos, julgando uma “medida acertada realizada, haja visto (sic) que eles se acham
sem ordem alguma legal de seus senhores e com certeza foragidos”. Nota-se uma
preocupação do juiz com a possibilidade dos cativos serem fugitivos. Tal insinuação talvez
109
se deva pelo mistério em torno da estadia dos escravos em São João del-Rei. O próprio
interventor admite que Adão e Juvêncio praticavam pequenas curas e não apresenta outra
motivação maior que justifique a permanência deles na cidade. Os escravos estavam a uma
considerável distância de seu senhor, morador de Lavras, e o motivo da viagem dos
escravos não é sequer levantado pelo seu defensor. A causa do paradeiro deles em São
João del-Rei não é explicada, o que dá margens para se levantar a hipótese de que
realmente eles estivessem na cidade exclusivamente para exercer práticas de curandeirismo
como um meio de vida.
Bastante surpreendente numa certa passagem dos autos foi a reprimenda moral que
o juiz dirigiu ao interventor dos escravos repreendendo suas “danosas” intenções. O
Magistrado reagiu de forma taxativa à disposição de Joaquim José de Oliveira de defender
um habeas corpus de escravos feiticeiros. Segundo suas palavras, “admira que Joaquim
José de Oliveira, pai de família, cidadão que quer gozar de paz nesta cidade se anime
apresentar-se em juízo defendendo negros fugidos e feiticeiros e admitindo semelhante
imoralidade podendo qualquer pessoa de sua família ser vítima”.
O uso do termo “vítima” pelo Juiz indica naturalmente que segundo a sua
interpretação todas as pessoas que recorreriam aos serviços de cura dos escravos Adão e
Juvêncio necessariamente seriam ludibriadas e não resolveriam seus males. Tal julgamento
é largamente generalizador, uma vez que o juiz não teria elementos para tal afirmação.
Com relação ao posicionamento aguerrido do interventor neste caso, poderíamos especular
que tal defensor tratar-se-ia ou de um entusiasta dos métodos de cura dos escravos que
teria se compadecido com a prisão destes ou, quem sabe, estaria associado com os negros,
lucrando inclusive com suas atividades.
As conjecturas se avolumam principalmente
porque os senhores dos tais escravos foram mencionados nos autos em uma informação
de que estes teriam consentido na condução dos escravos para São João del-Rei justamente
pelas mãos do suplicante, o interventor Joaquim José de Oliveira. Também torna-se
imperioso lembrar que o domicílio invadido em que os escravos encontravam-se alojados
era a residência do próprio interventor. ainda que acrescentar que a soltura dos presos
através do pedido de habeas corpus foi negada em função da ausência de seus senhores
que não requereram causa alguma, havendo apenas o requerimento de um terceiro, no caso,
o interventor Joaquim José de Oliveira. A partir destes dados fica evidenciado nos autos
um envolvimento bastante próximo e presente do interventor no caso. Mas apesar do seu
110
desprendimento não existe qualquer argumento que pretenda refutar o fato de que os
escravos estariam realmente realizando curas na cidade de São João del-Rei.
O processo contra o curandeiro “Honório Félix”
120
oferece um tipo de denúncia
bastante curiosa. O caso se deu no povoado de Barro Preto, distrito de Itapecerica e se
passou no ano de 1902. Neste infeliz caso o enfermo João Venâncio de Souza acometido
de úlcera em um dos dedos dos pés termina por falecer e a culpa por sua morte é creditada
à mal sucedida tentativa de cura do curandeiro Honório Félix, que teria, segundo a
denúncia, atrasado um tratamento adequado e pertinente da enfermidade através da
medicina formal. De acordo com o promotor de Justiça, “o mal tinha criado raízes e
improfícuos foram os recursos da sciência”. O Promotor parece assim afirmar que
inexoravelmente o tratamento científico da medicina oficial daria conta de sanar a mazela
sofrida pelo enfermo e conseqüentemente impedir a morte do doente, não fosse a
intromissão desastrosa do curandeiro. Mas tais argumentações não passam de especulações
e o próprio tom da denúncia não esconde insegurança e inconsistência, quando, por
exemplo, sustenta que o falecimento ocorreu devido “talvez às drogas que lhe ministrou o
referido curandeiro, o que não podemos afirmar por falta de um exame seguro, que
infelizmente não conseguimos obter”. Não resta dúvida que o próprio promotor admitiu ter
incertezas quanto a real causa da morte.
De qualquer forma o exercício do curandeirismo tendo sido comprovado acarretou
em processo contra o réu Honório Félix, tendo praticado crime definido no artigo 158 do
código penal. Apesar de o processo ter sido direcionado contra a prática de curandeirismo,
a questão levantada no julgamento pelo Juiz foi relativa à responsabilidade do réu pela
morte do enfermo João Venâncio de Souza. Parece ter havido neste processo um desvio,
uma mudança de rota em relação à acusação dirigida pela Promotoria. O Promotor mostrou
grande empenho em tentar responsabilizar o réu pela morte do enfermo, mas se limitou a
pronunciar o acusado no crime de curandeirismo apenas, que não tinha provas
suficientes para assegurar que o crime deveria ser creditado ao réu. E mais adiante, no
desenrolar do processo o juiz altera o foco sobre a natureza do crime discutido no processo
ao indagar no julgamento ao Tribunal Correcional sobre a responsabilidade do réu pela
morte do doente. A partir daí é desviada a atenção do Tribunal para o julgamento do crime
de curandeirismo pelo qual o réu foi realmente acusado. Teria o juiz evitado buscar a
120
Processo criminal do Acervo do Fórum de Itapecerica, Registro n° 304; Cx. 17-05.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=3289&op=1
111
condenação do réu pelo crime de curandeirismo? Tencionava o juiz livrar o acusado de
qualquer condenação? Tal decisão teria visado um acirramento ou afrouxamento da
condenação do acusado? E se o Tribunal Correcional decidisse por responsabilizar o réu
pela morte? Neste último caso a situação se complicaria bastante para o acusado que teria
que responder por um delito muito mais grave. Mas o fato é que isto não aconteceu e o réu
acabou se livrando de qualquer tipo de condenação.
É flagrante no processo uma falta de diálogo e entendimento entre os propósitos do
Promotor de Justiça e o juiz do processo. Seus procedimentos nos processos sugerem que
os dois tiveram interpretações e posições diferenciadas em relação à condução do processo.
O promotor Jefferson Ribeiro inicialmente pretendia associar a morte do adoentado João
Venâncio de Souza ao tratamento desastroso do curandeiro Honório Félix, inclusive
responsabilizando o curandeiro pela tragédia. No entanto, desprovido de provas seguras, se
limita a acusar o réu por prática de curandeirismo. o Juiz Antônio Ribeiro Penna Nunes
mostra uma liberdade e autonomia consideráveis em relação à própria direção que o
processo vinha tomando, direção esta, diga-se de passagem, amplamente amparada na
precisa aplicação dos códigos. Talvez persuadido e ludibriado pelo próprio defensor do réu
que desenvolveu prioritariamente em seus argumentos a falta de responsabilidade do
acusado na morte ocorrida com o enfermo, o juiz permitiu um deslocamento da questão a
ser debatida e julgada no processo: o exercício da prática de curandeirismo. Enquanto o
promotor requereu o pronunciamento do réu neste crime previsto em lei, o juiz decidiu por
julgar se a morte do enfermo deveria ser atribuída às intervenções do curandeiro, sendo
este último responsável pelo trágico desfecho. Não nos detalhes dos processos dados
que venham apontar quais as verdadeiras intenções do juiz. hipóteses de que ele ou
pretendia apertar o cerco contra o réu, visando incriminá-lo por uma morte ocorrida em
função da intromissão de seu “condenável” tratamento, ignorando deste modo a acusação
menos grave de curandeirismo, ou tentava ainda, mudando deliberadamente o foco da
acusação no julgamento do processo, buscar criminalizar o réu por um crime de morte que
dificilmente seria aprovado pelo Tribunal Correcional, aliviando deste modo a situação
delicada do acusado eximindo-o de qualquer culpa que lhe pudessem imputar.
A confusão gerada neste processo por um desencaminhamento da denúncia inicial
parece demonstrar que as autoridades mantinham uma certa liberdade quanto às
determinações enunciadas nos códigos. O rigor que o Promotor procurou cultivar ao
limitar-se a pronunciar o réu no artigo 158 da legislação foi absolutamente ignorado pelo
Juiz do processo que levantou a questão da responsabilidade pela morte do doente, que
112
apesar de levantada na denúncia da promotoria não constou na denúncia e pronunciamento
oficiais.
A despeito do rumo que o processo tomou, inclusive culminando na absolvição do
réu, parece ter havido desde sua instauração uma convergência no sentido de se associar a
morte do enfermo automaticamente ao tratamento de cura adotado por Honório Félix. A
tentativa de se culpar o curador pela morte do enfermo João Venâncio de Souza ocorreu
desde o início do processo, que rodeada de vaivens no decorrer de seu andamento. Para
sorte do acusado tal intenção, dissimulada ou não, acabou mal sucedida.
Um caso de denúncia bastante singular e interessante ocorrera em processo de 1889
na freguesia de Nazaré nas cercanias de São João del-Rei.
121
Tal denúncia foi movida pelo
próprio ofendido Honório Fidélis de Siqueira e tratava de um suposto furto que estaria
relacionado com feitiçaria. Para um melhor entendimento da queixa e das intenções
intrínsecas no discurso estruturado na denúncia torna-se mais prudente reproduzir
fielmente todo o seu conteúdo evitando desta forma qualquer confusão que a natureza
complicada deste instigante caso possa trazer;
“Honório Fidélis de Siqueira, morador no distrito desta freguesia de Nazaré, que
sentindo-se incomodado da saúde, seu vizinho Manoel Joaquim Pereira, mais
conhecido pela alcunha de charuteiro, e que se inculcou de curandeiro, disse que
o suplicante estava sofrendo de feitiços, e para curá-lo preparou suas
‘custumadas’ raízes, que o suplicante, homem simples e crédulo, chegou a fazer
uso delas, mas que infelizmente não sarou e continua a padecer dos mesmos
incômodos. o suplicado passou a cobrar de Honório a quantia de quinze mil
réis pelas suas bugigangas, e por que ele recusasse pagar-lhe, visto não lhe ter
curado, o suplicado foi ao pasto em que o suplicante tinha um cavalo de sela,
russo queimado claro ainda novo, e conduziu com ele dizendo que se apropriava
para seu pagamento”.
Percebe-se neste discurso que Honório pretende divulgar que o réu Manoel era
reconhecidamente um curandeiro, inclusive mais popularmente chamado pelo apelido de
“charuteiro”. Tal intenção parece ser proposital no sentido em que não pretende deixar
pairar dúvidas quanto às atividades de cura de feitiçaria empreendidas pelo acusado,
sabidamente reprovadas e condenadas pelas autoridades legais.
A queixa parece alinhar-se aos próprios códigos de Posturas vigentes da época, que
proíbem inculcar-se curador de moléstias através de feitiços. De acordo com a
argumentação do denunciante parece que foi Manoel que apresentara-se a ele como
curandeiro para acusar o feitiço causador dos males e prometer a cura através de suas
121
Processo criminal do Arquivo do IPHAN-ET, registro nº 1096, cx. 56-04.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2167&op=1
113
“custumadas raízes”. Portanto a impressão que passa esta queixa inicial é a de que Manoel
antecipara-se ao enfermo para oferecer seu serviço. Não ficou manifestada a procura dos
préstimos de curandeirismo pelo doente e ofendido no processo. Sobre a utilização do
termo “custumadas raízes” parece ter sido usada interessadamente, pois desta forma
novamente enfatizara-se a condição habitual e cotidiana de curandeiro do réu,
indispensável para uma mais exata caracterização de sua condenável atividade.
Após o queixoso manifestar o resultado nulo das intervenções de cura do dito
feiticeiro, relatara que o denunciado passara a cobrar pagamento por suas “bugigangas”.
Tal expressão é usada intencionalmente para demonstrar um tom de menosprezo e
desqualificação das receitas empregadas. Nota-se até uma progressão negativa referente à
qualificação dos recursos do curandeiro quando ele primeiramente os trata como
“custumadas raízes” para posteriormente ao relatar a dita ineficácia dos preparados tratá-
los como “bugigangas”.
A partir da queixa prestada á Justiça pelo denunciante a promotoria pública
considerou a aludida apropriação do cavalo como forma de compensação por pagamentos
por serviços de curandeirismo, totalmente injustificada. Segundo a Justiça, tal incidente
deveria ser classificado como furto “sob pretexto fútil e criminoso”. As testemunhas do
processo também concordaram que o roubo ocorrera sob “o frívolo pretexto” de cobrar por
uma cura não sucedida.
A perspectiva predominante dos depoentes nos autos endossava o entendimento de
que uma mera cobrança por um tratamento a base de raízes e feitiços que teria se mostrado
ineficaz tratava-se de um despropósito. A partir deste raciocínio, uma arbitrária
apropriação de um bem alheio para compensar por “remédios contra feitiço” não pagos
deveria ser motivo muito mais grave de reprovação. E na medida em que não houve um
aval das testemunhas na possibilidade de uma cobrança pelas raízes a tomada do cavalo
pelo réu Manoel ficou compreendida de forma generalizada como um furto.
para as autoridades judiciais prevalece a interpretação mais radical de que o
simples fato do réu Manoel estar se inculcando curandeiro e prestando-se como “médico
de raiz e bugigangas” comprovaria o exercício ilegal de medicina ficando caracterizado um
ato criminoso que por si invalidaria qualquer tipo de cobrança ou compensação
financeira discutida no processo. Segundo a Promotoria, Manoel apoderou-se de um cavalo
de sela pertencente a Honório Fidélis de Siqueira “para pagar-se do seu uso indevido de
medicina”. O comprometimento das autoridades judiciais em recriminar o acusado
114
Manoel foi imediato. A queixa do denunciante foi prontamente respaldada pelo promotor e
de acordo com suas conclusões iniciais ficou fartamente configurado no caso tanto o
exercício ilegítimo da medicina como também o furto do cavalo.
Sobre as providências tomadas em relação à prática imprópria da medicina
atribuída ao réu, a promotoria requereu uma autuação ao delegado de higiene no sentido de
aplicar as medidas corretivas da Legislação sanitária de 1886 da Inspetoria Geral de
Higiene do Império. Segundo o promotor público, “esta promotoria deve assim proceder
para por cobro ao cinismo com que o acusado exerce ilegalmente a medicina, continuando
neste mister e desprezando as intimações da Justiça para se ver processar pelas
locupletações a custa da boa fé de quem se deixa enganar”.
Apesar de apontar dois crimes diferenciados embora interligados, a promotoria
delegou aos órgãos sanitários a incumbência de fiscalizar os abusos conferidos ao
denunciado referentes ao exercício ilegal da medicina. com relação ao crime de furto, a
promotoria alegou que os depoimentos das testemunhas produziram prova suficiente para a
condenação do denunciado. Em decorrência disso, houve o pronunciamento do réu Manoel
como incurso nas penas do artigo 257 do código criminal, correspondente ao crime de
furto que se baseava em “tirar a coisa alheia contra a vontade de seu dono, para si ou para
outro”.
Há que se ressaltar que boa parte das testemunhas que depuseram nos autos tratava-
se de parentes do queixoso. Portanto, tais depoimentos mostraram-se bastante
tendenciosos. Tais testemunhos além de confirmar o aludido furto do cavalo chegavam ao
ponto até de classificar o réu como ladrão costumeiro e de longa data.
Tal constatação de um esforço acusatório pareceu se confirmar principalmente
depois que a versão do réu Manoel é apresentada no processo causando uma total
reviravolta em seu encaminhamento. A partir dos depoimentos do denunciado a
unanimidade em torno da culpa e de uma iminente criminalização do acusado acabou
caindo por terra. As autoridades que se dobraram tão facilmente às engenhosas e
persuasivas palavras constantes na denúncia do queixoso Honório devem ter se espantado
um bocado com os esclarecimentos do réu.
Segundo o depoimento do réu Manoel Joaquim Pereira, as acusações de Honório
não passavam de histórias buscando acobertar o que realmente tinha acontecido. De acordo
com as argumentações da defesa, o queixoso Honório inventara o caso do furto do cavalo
115
visando dissimular um negócio feito com o acusado do qual o cavalo foi peça de barganha.
O queixoso estava endividado na praça e o denunciado era credor, portanto os envolvidos
teriam negociado o cavalo para abater a dívida. Depois do negócio feito Honório
maquinara a história do furto cooptando testemunhas para depor contra Manoel.
Tais depoimentos não pouparam o caráter e as possíveis atividades de cura
atribuídas ao acusado. Talvez a denúncia de Honório buscasse se aproveitar de um possível
envolvimento do acusado com feitiçaria no sentido de arquitetar uma situação embaraçosa
que o confrontasse com a justiça desqualificando ainda mais sua possibilidade de defesa.
Inicialmente parece que tal estratégia surtiu efeito, pois as autoridades admitiram uma
presumida comprovação tanto do furto do cavalo como de seu “pretexto fútil e criminoso”
de compensar o não pagamento por remédios de raízes receitados pelo “charuteiro”
Manoel. Tamanha era a convicção da promotoria que o pronunciamento do réu por furto
foi enfaticamente defendido.
Até esta etapa avançada do processo chama a atenção que o réu não tivesse tido voz
para contar sua explicação do ocorrido. A partir daí cessam as reprovações ao acusado por
parte do discurso das autoridades e revela-se friamente nos autos o resultado do júri que de
forma unânime, “por maioria absoluta de votos”, inocenta o réu.
Teria sido a denúncia do queixoso Honório atribuindo simultaneamente dois crimes
ao réu Manoel (furto e prática de curandeirismo) mera invenção? Certamente foi isto que a
Justiça entendeu. Todo o andamento do processo que parecia irremediavelmente
desembocar na condenação de Manoel sucumbiu diante do depoimento esclarecedor do
denunciado que serviu de contraponto fulminante à inventiva trama arquitetada pelo
queixoso.
A tentativa mesmo que indireta de culpabilizar o acusado no delito de
curandeirismo ou exercício ilegal da medicina, atribuindo o suposto furto a uma suposta
consulta não paga com o curandeiro, revelou-se infrutífera. As autoridades carregaram
sobremaneira as acusações quanto às práticas ilegais de cura atribuídas ao réu, mas se
restringiram a passar a responsabilidade de autuação à Inspetoria Geral de Higiene do
Império na figura do delegado de higiene. Diante disso, a promotoria se limitou a
pronunciar o réu apenas no crime de furto.
De qualquer modo o ardil engenhoso criado pelo denunciante Honório procurou de
todas as formas construir um histórico de seu conflitante Manoel caracterizando-o como
116
um gatuno e um charlatão. Não bastava apenas tramar uma armação plausível, era
necessário imprimir à natureza do réu o traço distintivo de indivíduo dado e acostumado a
cometer os delitos de que fora acusado.
A denúncia de Honório parece ter superestimado o poder deste tipo de jogo que
buscava puramente execrar a figura do réu Manoel garantindo desta forma uma decorrente
condenação do mesmo. Baseada nesta compreensão o queixoso criou uma expectativa de
que um atento e rigoroso olhar sobre o fato ocorrido em questão seria desprezado. Este tipo
de artimanha desconsidera aquilo que deveria ser o tema central da discussão no processo:
uma apurada análise do crime em si.
Entretanto é bem verdade que nos processos criminais as pessoas também eram
julgadas por possíveis marcas distintivas que elas poderiam vir a apresentar junto à
sociedade. Cidadãos tidos como ordeiros e de comportamento exemplar atendiam a um
tipo de papel esperado pela sociedade, o que indubitavelmente em casos judiciais os
favoreceriam no sentido da absolvição. pessoas tidas como “intrigantes”, “desordeiras”
ou que não se encaixavam nos padrões morais dominantes e aceitos no meio social, os
denominados “bêbados”, “libertinos”, “adúlteros”, “feiticeiros” etc., tinham mais
possibilidade de serem condenados.
A conduta e o histórico de vida, ou pelo menos a forma como a sociedade apreende
o modus vivendi do cidadão, são elementos importantes que se apresentam no julgamento
de um processo-crime. Tais características e comportamentos das pessoas que acabam
ganhando notoriedade pública estão em negociação e exposição na resolução de um
processo-crime.
Ao abordar processos criminais no intuito de refletir sobre a criminalidade
paulistana no período de 1880 a 1924, o historiador Boris Fausto enfatiza a importância de
um atestado de probidade e idoneidade para auxiliar a defesa dos réus nos autos. O
estudioso cita em suas pesquisas como uma peculiaridade nos processos que “talvez o
texto mais carregado de significações seja o documento de antecedentes, juntado em regra
pelo réu, valendo-se de sua rede de relações vizinhos, patrões, colegas, compatriotas,
conterrâneos, fregueses
122
”. O autor acrescenta ainda que esta espécie de documento “serve
122
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Editora
Brasiliense, 1984. p. 21.
117
para demonstrar a conformidade do acusado com o modelo sócio-familiar, sua origem
respeitável etc. etc.”
123
Particularmente no caso do processo do furto de cavalo discutido não foi o acusado
Manoel que se preocupou em preparar um dossiê que atestasse uma vida regrada e digna
para salvaguardar sua reputação. Talvez ele realmente nem tivesse um passado muito
“correto” a zelar. O que de fato ocorreu neste processo foi a tentativa do denunciante
Honório buscar macular a imagem do denunciado. Primeiramente o queixoso fez questão
de caracterizar o réu Manoel como um curandeiro charlatão habituado a exercer suas
costumeiras práticas de curas através de feitiçaria. Fica patente nesta constatação a ciência
que Honório tinha de que tais atividades de cura eram alvo de repressão das autoridades.
Posteriormente, através de depoimentos de parentes do suposto ofendido tenta-se reputar o
acusado como um inveterado ladrão. Reitera-se nos autos a afirmativa de que o denunciado
gostava do bem alheio e que cometera dos seus furtos outras vezes. A queixa de Honório
pareceu ter se tratado realmente de mera fábula, buscando através de uma bem costurada
história incriminar Manoel com quem o denunciante teve uma negociação mal resolvida. A
partir de um conflito interpessoal entre os envolvidos, uma negociação na qual um dos
conflitantes ficara arrependido, gera-se uma farsa com a intenção de delatar o acusado
Manoel por roubo e também por prática de feitiçaria. E apesar de conseguir convencer as
autoridades no princípio dos autos, o queixoso Honório não alcançou êxito com sua
engenhosa estratégia.
“Vadios” e “inadaptados”: questões relativas às ocupações dos curandeiros
Os réus acusados nos processos de curandeirismo e feitiçaria são investigados no
decorrer dos autos a respeito de suas possíveis profissões exercidas para além dos serviços
de curandeirismo de que são acusados. A necessidade de uma averiguação do tipo de
trabalho no qual o “curandeiro” se empregava quando não estivesse exercendo suas
práticas de cura foi bastante freqüente no decorrer dos processos-crimes. Partindo do
pressuposto de que as atividades rituais que estes agentes da cura praticavam eram
suscetíveis de uma condenação legal, talvez as outras prováveis atividades que estes
denunciados exercessem junto á sociedade amenizassem a situação embaraçosa na qual
eles se encontravam diante da Justiça. O emprego em uma atividade considerada como
123
Idem, Ibidem.
118
honrada e respeitada pela sociedade talvez ofuscasse a gravidade das denúncias de
curandeirismo que pesavam sobre suas pessoas. Já que havia por parte das autoridades uma
veemente desqualificação e reprovação das atividades de cura realizadas pelos curandeiros,
o exercício de uma atividade produtiva reconhecida como de caráter íntegro e probo
poderia contrabalançar um quadro iminentemente desfavorável em benefício do réu.
Porém que se destacar que o acusado é muitas vezes apresentado como uma
pessoa que não se enquadra nos padrões de comportamento exigidos pela ordem, com
posturas inadequadas a um cidadão reconhecido como trabalhador e ordeiro pelas
autoridades. Apesar da possibilidade de que tais julgamentos morais fossem decorrentes de
estereótipos e preconceitos, a reputação destes curandeiros se devia muito à possibilidade
de comprovação da pertinência e aceitação destas avaliações negativas. Nos casos em que
não se constatasse uma profissão entendida como digna ou nos casos em que sequer era
mencionado algum tipo de profissão a apreciação da índole e do caráter do denunciado
certamente deveria ser mais rigorosa. A ociosidade em relação a uma atividade em
conformidade com os padrões considerados éticos aceitos e recomendados pela ordem e
moral pregada pelas autoridades da época poderia levar a um entendimento por parte
destas de que o acusado apenas tinha como meio de vida a “condenável” prática de
curandeirismo pela qual ele estava sendo denunciado, o que deveria agravar
consideravelmente sua possibilidade de defesa.
As situações em que se caracterizasse uma ocupação e dedicação intensiva das
práticas rituais de cura deveriam oferecer mais ameaças às autoridades e (por que não?) aos
profissionais da cura que se utilizavam de recursos da medicina formal e oficial. Tais
agentes formais da cura certamente deveriam se sentir como competidores prejudicados
por estes agentes populares da cura, os curandeiros, que estariam invadindo seu espaço e se
apropriando de seu quinhão. De qualquer modo, mesmo potenciais curandeiros que
exerceriam suas curas apenas nas horas vagas de sua faina diária, dedicada prioritariamente
por trabalho dito reconhecido, não deixavam de ser denunciados e até condenados.
Nos processos-crimes que buscavam reprimir o curandeiro em que a ociosidade é
citada, a denúncia muitas vezes qualificava o acusado como um “vagabundo” e a condição
de “vadio” era largamente afirmada em alguns processos. A classificação de indomiciliado
e de errante atribuída ao curandeiro também foi apresentada em alguns processos-crimes.
A ênfase em se taxar severamente estes denunciados como “desclassificados” e
“desocupados” fazia parte de discurso em voga na época que buscava extinguir a vadiagem
do espaço público. As posturas de São João del-Rei de 1887, no título XI, artigo 124,
119
definia como “ofensa aos bons costumes”, respectivamente: “negar-se absolutamente ao
trabalho”, “vagar pelas ruas e estradas” e “viver vida desenvolta”
124
. Embora nenhum
acusado tenha sido pronunciado nestes artigos, que as acusações recaíam diretamente
sobre as práticas de curandeirismo, as denúncias se valiam destes aspectos adicionais para
reforçar ainda mais a desqualificação dos réus. Sobre esta questão os estudos de Liana
Maria Reis, sobre a vadiagem e a marginalização social em Minas Gerais na fase final do
Império, ressaltam que existia uma preocupação das autoridades em “disciplinar a malta
urbana, criando mecanismos capazes de integrar os vadios ao ‘mundo do trabalho’, tais
como a educação, a religião e o respeito e obediência às leis”
125
. As discussões críticas em
torno desta marginalidade que tenderia a crescer em função de uma iminente abolição
da escravatura tomaram conta dos centros decisórios, administrativos e legislativos do país
e repercutiram por todo o território. Um projeto interpretado como de “salvação pública”
126
que visava reprimir a ociosidade começou a ser apreciado na Câmara dos deputados em
1888. Nas entrelinhas deste discurso dominante o mundo da ociosidade “está à margem da
sociedade civil, trata-se de um mundo que é concebido como a imagem invertida do
mundo virtuoso da moral, do trabalho e da ordem”
127
.
O teor taxativo relativo à vadiagem encontrado nos processos criminais abordados
parece refletir este espírito da época. Para além das críticas à ociosidade, somam-se as
qualificações de um caráter pervertido, amoral e perturbador da ordem que são atestadas no
tom inflamado das acusações e denúncias.
No processo do acusado de curandeirismo Manoel Lagoa
128
, por exemplo, o réu é
classificado pelas testemunhas do processo como indivíduo vagabundo e sem domicilio
certo. Consta que o denunciado também estava sendo processado na comarca de Campo
Belo, pelo mesmo crime de curandeirismo. A alusão a uma instauração de processo contra
Manoel Lagoa em outra localidade mineira gera uma suposição de que o referido réu
errasse através dos sertões mineiros praticando atividades de cura em diversas povoações,
tratando-se deste modo de um curandeiro ambulante.
124
Código de Posturas municipais e Regimento interno da Câmara de São João del-Rei de 1887 in
VENÂNCIO, Renato Pinto (org.) Tesouros do Arquivo – São João del-Rei, uma cidade no Império”.
Associação cultural Arquivo Público Mineiro. p. 142.
125
REIS, Liana Maria. Poder, Vadiagem e Marginalização social em Minas Gerais. p. 11.
126
CHALHOUB, Sidney. Vadios e barões no ocaso do império: O debate sobre a repressão à ociosidade na
câmara dos deputados em 1888. Estudos Ibero-americanos, V. IX, 12, Julho/dezembro de 1983.
Departamento de História/PUC-RGS. p. 55.
127
Idem, p. 64.
128
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº743, cx. 34.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=43430
120
Também na denúncia do processo de José Sapato
129
queixa de que o réu se
tratava de um indomiciliado, além da observação de que o denunciado não se prestava para
o trabalho da lavoura. Esta falta de dedicação ao trabalho da lavoura indica que o acusado
não se prestava ao trabalho costumeiro. Além disso, a denúncia acrescenta que “há anos
que o denunciado aparece no distrito, ora no arraial, ora nas fazendas e que emprega a
maior parte do seu tempo no artifício fraudulento da cura de feitiços, de adivinhações e
outros feitiços”. uma evidente preocupação de estabelecer que o réu José Sapato não
ocupava considerável parte de seu tempo exercendo qualquer atividade produtiva
considerada digna, mas que preponderantemente se ocupava da “condenável” atividade de
curandeiro. Tais colocações não eximem o curandeiro do exercício de um trabalho
reconhecido, mas pondera que não demonstra disposição e empenho para tê-lo como
prioritário, já que se dedica com mais afinco e presteza ás curas através de feitiços.
A discussão acerca da qualificação da atividade do curandeiro como uma profissão,
ou até um papel social desempenhado e reconhecido, fica manifestada claramente nas
palavras do escrivão do processo referente ao acusado de curandeirismo Gervásio.
130
Na
denúncia não fica oculto que o réu “exercia a profissão de curador, sem ter a necessária
autorização, nem diploma algum, empregando diferentes artifícios e bruxarias”. Ainda
neste processo, no ato de sua prisão é dito que “foi encontrado em poder do denunciado
diversos objetos, raízes, próprios para exercer a profissão de curandeiro”. É significativo
reiterar que apesar da posição oficial da Justiça que considerava a atividade do curandeiro
ilegal, o escrivão acabou por reconhecer o lugar social do curandeiro. Admite-se que o réu
exercia a “profissão de curador”. Por mais que a Justiça condenasse implacavelmente o
curandeirismo e a feitiçaria, tal atividade estava de tal forma tradicionalmente inserida na
sociedade que não como desmentir sua participação e inserção no cotidiano da
sociedade da época.
Ao contrário dos réus dos processos anteriores, além de exercer a “profissão de
curandeiro”, Gervásio “tinha empreita de café com Vicente Bernardes”. Ao mesmo tempo
em que o denunciado era acusado de exercer a “profissão” de curandeiro é apontado que
ele também tinha um trabalho reconhecido, trabalhava com plantação de café. A
constatação de que ele dividia seu tempo entre uma atividade produtiva “digna” e a
129
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira,
registro 412, cx.17.
Fonte eletrônica: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=17006
130
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 782, cx. 36.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=46063
121
atividade de curandeirismo como complementar não impediu que esta atividade adicional
fosse reconhecida como um emprego ou profissão como estava atestado no processo.
No caso do curandeiro Felipe Marcelino
131
alega-se no processo que o réu com
idade de 68 anos trabalhava como lavrador. O denunciado, dado como residente em
Lavras, no ato da prisão em flagrante encontrava-se em São Francisco de Paula, que ficava
a uma considerável distância para a época. Tal deslocamento sugere que o acusado
estivesse mesmo incontestavelmente se empregando como curandeiro e feiticeiro,
encomendado que foi pela enferma Dona Constança. Na fazenda desta senhora grande
número de pessoas se dirigiram para buscar os serviços de cura do acusado. A avançada
idade do acusado parece dar motivo para a especulação de que o referido réu não se
encontrasse em uma forma física muito adequada para uma dedicação plena à lavoura,
desta forma, parece plausível que o denunciado atribuísse considerável parte de seu tempo
no oferecimento de seus serviços de feitiçaria. Talvez Felipe Marcelino também
perambulasse pelas redondezas de Lavras no intuito de praticar suas atividades de cura nas
cidades e povoações.
No processo de José de Paula Freitas
132
, o “Dr. José”, o réu alegara trabalhar como
carpinteiro. Mas houve testemunhas que alegassem que “o réu não exercia a profissão de
carpinteiro”. Nota-se neste processo, um desacordo quanto à ocupação do acusado, que
embora se apresente como oficial de carpinteiro não é reconhecido como tal pela maioria
das testemunhas que nunca o viram empregado ou cuidando de outros afazeres que não o
de curandeirismo. Uma única testemunha aponta que “o réu empregara-se no Hotel
Central”. uma insistente preocupação neste processo em desvendar se o réu teria uma
profissão reconhecida como lícita ou se sua única ocupação eram as práticas de
curandeirismo e feitiçaria, pelas quais ele é denunciado. A idéia de que a existência de uma
profissão reconhecida como “digna” aliviaria o peso das acusações lançadas contra José de
Paula Freitas é reforçada pelo fato de que uma inquirição relativa à existência de uma
ocupação “lícita” do réu provocara destacada celeuma no decorrer do processo.
Diante das inquirições quanto ás possíveis atividades de José de Paula Freitas, um
fator negativo que pesava contra o réu tratava-se da própria alcunha com a qual ele era
popularmente conhecido: “Dr. José”. Esta forma como o acusado era chamado conferiria
131
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 812, cx. 38.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=48674
132
Processo criminal do Arquivo IPHAN/ET, registro nº 966, cx. 69-11.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2765&op=1
122
ao denunciado um status de profissional da cura formado e titulado como um médico ou
um farmacêutico, por exemplo, o que estabeleceria que predominantemente ele estaria
cumprindo funções concernentes ao universo da cura. Afinal de contas a fama de tal
titulação indevida parece caracterizá-lo como uma pessoa que estava exercendo como
atividade prioritária o exercício da cura, independentemente de outros trabalhos que ele
pudesse ocupar.
No processo de habeas corpus dos escravos Adão e Juvêncio,
133
o debate levantado
pelo defensor dos réus é relativo ao fato das práticas de cura realizadas pelos detidos
poderem ser entendidas como profissão ou não. Neste caso, o interventor entende que a
cura através das ervas é prática generalizada na sociedade, portanto não deve ser
criminalizada, desde que as pessoas não façam dessas artes de cura profissão.
Em nenhum detalhe deste processo fica esclarecido satisfatoriamente que outras
atividades estariam os escravos exercendo em um paradeiro tão distante da localidade do
seu senhor. O interventor que passa a defender ferrenhamente os presos sequer menciona
quaisquer outras ocupações que poderiam os réus estar exercendo na cidade de São João
del-Rei. Portanto parece haver uma admissão das práticas de cura realizadas pelos escravos
Adão e Juvêncio na cidade, sem consentir, entretanto, que tais atividades sejam
sistematizadas como aquilo que poderia ser chamado de profissão, uma vez que, como
vimos, o interventor alega que o escravo, pela sua própria condição de cativo, não poderia
fazer de suas artes de cura uma profissão. Os autos não apresentam passagens que possam
elucidar a freqüência das práticas ocorridas, assim como não oferece dados que possam
mensurar a quantidade de público que recorria a estas atividades. De qualquer forma, não
necessidade destas informações para se configurar tais atividades como uma profissão,
lícita ou não, reconhecida oficialmente ou não, praticada por escravo ou não. A celeuma
semântica em torno das expressões profissão, arte de curar, ofício, enfim, foi uma
constante neste processo, talvez para propugnar o entendimento de que os escravos presos
não faziam de suas práticas rituais de cura uma atividade contínua e incessante, o que no
entendimento do defensor descaracterizaria o exercício de uma profissão. Acerca da
condição de cativo dos presos não parece que tal estado obstruísse a possibilidade de um
ganho de vida através de jornadas de trabalho a serviço de seu dono, mesmo que
espacialmente distantes da presença senhorial. Deste modo a fundamentação levantada
133
Processo criminal do IPHAN/ET, registro nº 1119, cx. 51-05.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2171&op=1
123
pelo interventor de que o status de cativo dos presos seria um empecilho para se qualificar
os procedimentos rituais dos escravos como uma profissão desempenhada e inclusive
remunerada parece mostrar-se insustentável.
Também no processo de José Rodrigues de Moura, o “Caroba”
134
, o advogado do
réu procura levantar a questão em torno do exercício de uma ocupação reconhecida
socialmente pelo réu: fazendeiro negociante de animais. As próprias testemunhas,
respondendo às perguntas do advogado de defesa, admitem que “o acusado tem uma
fazendinha no povoado denominado Paciência e que exerce também a profissão de
negociante de animais sendo inexato, que exerça o ofício denominado curandeiro”. A
mesma testemunha acrescenta que “o denunciado é homem de bons costumes e que se
entrega exclusivamente aos seus negócios, não lhe constando que ele tivesse jamais
promovido qualquer desordem ou desacatado a qualquer autoridade constituída”. O
advogado de defesa procurou indagar as testemunhas sobre a natureza do caráter e índole
do acusado no sentido de demonstrar que se tratava de homem ordeiro e correto.
Outra testemunha do processo respondendo a perguntas do advogado de Caroba
disse que “sabe de ciência própria que o denunciado é fazendeiro, negociante de animais
em cujo caráter ele ás vezes percorre algumas povoações, não sendo, portanto, exata a
versão que corre de exercer ali o ofício de curandeiro”. A testemunha acrescenta ainda que
“sabe e pode afirmar que o denunciado é homem de bons costumes, acatador da lei e
respeitador das autoridades constituídas”.
Tais afirmações avalizando que o réu era homem que exercia ocupação reconhecida
como digna, além dos elogios ao seu caráter idôneo e probo, talvez tivessem a intenção de
mascarar e acobertar um possível envolvimento do réu com as práticas de curandeirismo
de que é tão agudamente acusado inicialmente. Uma constatação relevante é o fato de que
o exercício de um trabalho interpretado como “lícito” não impedia o exercício da prática de
curandeirismo como uma atividade complementar, assim como ocorre com outros
curandeiros que também exerciam outros empregos que não apenas o das práticas de cura.
A preocupação em distinguir José “Caroba” como um fazendeiro comerciante, neste caso
peculiar, foi uma estratégia do advogado de defesa do réu e passou a ser levantada no
processo a partir de uma segunda inquirição das testemunhas que contou com a
participação e questionamentos do defensor do réu.
134
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 992; cx. 49.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=1154&op=1
124
Esta estratégia de que o advogado de “Caroba” lançara mão seria uma
contraposição à primeira rodada de acusações e depoimentos que ressaltavam o fato de que
o potencial curandeiro perambulava pelos povoados vizinhos conduzindo um séquito de
crentes fanáticos maravilhados com suas proezas curativas. Segundo a promotoria o
“denunciado acompanhado de uma dúzia de desocupados anda percorrendo os distritos,
apregoando-se curandeiro”. Dentre estes “desocupados” mencionados nas denúncias e
depoimentos estariam camaradas de “Caroba”, além de curiosos atraídos por suas curas
maravilhosas.
Conforme versão difundida pelo defensor de Caroba e confirmada pelas
contraditórias testemunhas do processo “o denunciado é fazendeiro, negociante de animais
em cujo caráter ele ás vezes percorre algumas povoações, não sendo, portanto, exata a
versão que corre de exercer ali o ofício de curandeiro”. Através destas argumentações nota-
se o quanto o exercício de uma ocupação reconhecida pôde ser providencial para justificar
o motivo das viagens do acusado. De acordo com respostas dos depoentes resultantes de
perguntas do advogado do réu, “o denunciado nunca aliciou qualquer que seja para
acompanhar em suas viagens, nem tão pouco jamais se aproveitou da influência que
porventura pudesse ter sobre as pessoas de seu conhecimento para promover qualquer
desordem”. Dentre outras alegações sustentadas pela defesa encontraram-se afirmações
sobre o caráter conciliador e pacífico do réu, além de tratar-se de cidadão “acatador da lei e
respeitador das autoridades constituídas”. Parece claro neste processo a intenção do
defensor do acusado de desconstruir uma imagem desqualificadora e desabonadora do réu
construída na denúncia e confirmada pelas testemunhas numa primeira instância.
O denunciado por curandeirismo Honório da Silva Rosa, vulgo “Honório Félix”
135
,
não foi tratado em momento algum do processo como curandeiro, curador, raizeiro ou
qualquer designação aproximada pelos depoentes. As testemunhas admitiram que o réu
realmente teria tratado de uma úlcera no de João Venâncio de Souza. O tratamento teria
se dado na casa do denunciado a base de remédios para beber e para banhar na ferida. Mas
em nenhuma passagem dos autos há relatos sobre o costume de Honório de realizar
práticas de cura, além do tratamento do enfermo João Venâncio, que teria resultado em
morte trágica. Parece que as investidas de “Honório Félix” no universo da cura não teriam
tido uma repercussão e fama comparáveis aos dos outros curandeiros abordados em outros
135
Processo criminal do Acervo do Fórum de Itapecerica, Registro n° 304; Cx. 17-05.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=3289&op=1
125
processos. De qualquer forma o conjunto dos processos criminais que buscavam reprimir
potenciais curandeiros e feiticeiros pareciam não exigir uma imprescindível notabilidade e
fama dos acusados, embora estes curadores populares geralmente granjeassem uma
significativa popularidade entre a população.
Retornando ao caso de “Honório Félix”, em interrogatório feito ao denunciado este
respondeu trabalhar como lavrador. Tal resposta sugere que o réu talvez utilizasse de suas
práticas de cura como um serviço complementar ao do trabalho da roça. Para estes agentes
populares da cura, como Honório, por exemplo, a palavra profissão talvez tivesse uma
carga elevada demais para designar seus serviços de curandeirismo prestados. De qualquer
modo, as autoridades não estabeleciam níveis de intensidade mínimos ou máximos das
práticas rituais de cura para se definir uma acusação por exercício ilegal de medicina, de
curandeirismo ou feitiçaria.
Convém lembrar que as alusões aos tipos de trabalhos exercidos pelos acusados de
curandeirismo geralmente encontraram-se intrínsecas às argumentações e discussões que
proliferaram no decorrer dos processos. Os propósitos acusatórios da denúncia é que
geralmente especulavam sobre uma possível profissão que o acusado poderia exercer ou
não. Parecia haver uma deliberada intenção da acusação de constatar que o réu ou não se
enquadrava satisfatoriamente em trabalho dito reconhecido ou simplesmente não se
adaptava a trabalho algum que não fosse o exercício das condenadas práticas de feitiçaria.
Foram raros os processos que constaram auto de qualificação do réu, parte dos
autos na qual são apresentadas informações e dados sobre a vida do denunciado, inclusive
a especificação de sua profissão, que poderíamos entender como aquela oficialmente
reconhecida, para além de suas práticas rituais de cura.
Tal constatação parece indicar que a preocupação de se discutir a existência de uma
profissão “reconhecida” dos acusados partiria dos próprios interesses da denúncia e não
apenas de um mero procedimento burocrático que se encarregaria de oferecer dados sobre
o acusado como, por exemplo, naturalidade, idade, estado civil, grau de alfabetização
(informação se o réu sabe ler e escrever) e inclusive profissão.
A idéia tão repetida e reiterada na discussão destes processos acerca de uma
profissão reconhecida, de uma atividade considerada digna, exercida por potenciais
curandeiros para além de suas “condenáveis” práticas de cura, na verdade, passava pelo
crivo de uma avaliação moral que partiria muito mais das autoridades do que da própria
126
população que mostrava estabelecer um diálogo com estes agentes da cura, que recorria
aos seus serviços rituais de cura e conseqüentemente reconhecia e considerava suas
atividades, independentemente das recriminações legais relativas à sua possível ilicitude,
“indignidade” e outras restrições afins.
O preço da cura: reflexões sobre a cobrança dos serviços dos curandeiros
As recriminações relativas às cobranças dos acusados de curandeirismo pelos
pagamentos de suas práticas de cura foram constantes nos processos criminais averiguados.
Tanto o conteúdo acusatório das denúncias como os depoimentos de várias testemunhas
confirmaram o procedimento habitual dos curandeiros denunciados de cobrar por seus
serviços prestados.
O pagamento seria um aspecto diferencial que dotaria o ofício de cura destes
agentes populares de um caráter condenável e inaceitável pelas autoridades? Talvez seja
precipitado afirmar prontamente que sim, que outros procedimentos considerados
reprováveis também são enfatizados nas queixas, como uma potencial enganação por parte
dos curandeiros, as referências a promessas exageradas e ilimitadas de cura e até os
possíveis efeitos desastrosos resultantes dos tratamentos aplicados por estes curandeiros.
As próprias recriminações descritas nas penas dos artigos estabelecidos nos códigos
penais e posturas referentes ao assunto destacam elementos que também poderiam ser
decisivos para se buscar a criminalização destes curadores: o exercício ilícito de profissões
relacionadas à cura, a proibição de artifícios mágicos, a atribuição de doenças de seus
pacientes a feitiços, a divulgação de poderes extraordinários de cura, o exercício de
curandeiro através da administração e prescrição de elementos da natureza, seja do reino
animal, vegetal ou mineral. Todos estes pontos salientados nos processos deveriam
constituir matéria fundamental para a sustentação da acusação e de uma intentada
condenação. Tais questionamentos tratavam de aspectos previstos nas legislações além de
algumas variações e acréscimos resultantes de ajuizamentos autônomos dos responsáveis
pela denúncia, predominantemente a Promotoria. Na maioria das vezes estas
caracterizações se acumulavam no interior dos processos, somadas, é claro, às referências
às cobranças dos curandeiros.
127
A frase mais emblemática dentre dezenas que constaram na gama de processos a
respeito das tão discutidas pagas cobradas pelos curandeiros partiu de um promotor
público. Ao tratar das acusações que pesavam contra a pessoa de Manoel Joaquim
Pereira
136
, acusado de furto de cavalo e curandeirismo, a promotoria considerou que o
processo deveria ser encaminhado dentre outras razões pelo fato do réu beneficiar-se de
“locupletações a custa da boa de quem se deixa enganar”. Dentre as demais razões o
promotor também pontuou “o cinismo com que o acusado exerce ilegalmente a medicina”.
Ao que parece as duas questões tratadas e levantadas pelo promotor entrelaçam-se,
mostrando-se indissociáveis. De acordo com o ponto de vista das autoridades o potencial
curandeiro além de ser acusado de cobrar, o que deveria ser entendido como algo
reprovável e oportunista, cobraria, ainda por cima, por um serviço tido como ilícito e ilegal
que deveria ser exercido por profissionais dito competentes, qualificados e habilitados.
O entendimento da promotoria parece pressupor que a tentativa de obtenção de ganhos e
enriquecimento a partir de atividades incondicionalmente “ludibriadoras” fosse algo
natural e rotineiro entre os curandeiros. Este raciocínio parece disseminar a idéia de que
todos os curandeiros ganhavam a vida de uma forma fácil. O fato é que neste próprio
processo referido pelo promotor tanto os crimes de furto e de curandeirismo foram
inventados, como o réu fora absolvido e o acusador desmascarado, sucumbindo desta
forma toda a argumentação precipitada da denúncia. Portanto, parece que tais acusações
generalizadoras obedeciam a uma costumeira cartilha oficial aplicada continuamente nos
processos, independentemente da gravidade, natureza e de uma embasada apuração dos
casos.
Torna-se imperioso lembrar que a totalidade dos curandeiros processados é
também acusada de cobrar remuneração ou bens variados por seus serviços. Seria tal
elemento condição impreterível para se mobilizar forças para instaurar os processos? Paira
uma lacuna quanto a possíveis curandeiros denunciados que não exigiriam pagas por seus
serviços. Não há um caso sequer de tentativa de incriminação de curandeiro que não
envolvesse a tão aludida remuneração dos seus serviços. Em algumas vezes as queixas
parecem ter sido movidas como se fossem reclamações contra possíveis resultados mal-
sucedidos dos tratamentos prestados pelos curandeiros, tendo estes pacientes perdido o
dinheiro investido na prometida cura. Podemos até supor que os casos em que não
houvesse cobranças nem sequer se tornariam processos, ou seja, situações em que os
136
Processo criminal do Arquivo do IPHAN-ET, registro nº 1096, cx. 56-04.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2167&op=1
128
curandeiros não exigiam pagamentos não eram alvos de incriminação na Justiça. Portanto,
parece pertinente a suposição de que, na prática, a existência de pagas seria um fator
decisivo para a tentativa de criminalização dos curandeiros. Isto não significa que os
preceitos legais que apregoavam a repressão dos curandeiros, feiticeiros e agentes
populares da cura exigiam a comprovação de uma remuneração pelos serviços prestados.
As legislações da época não atentavam para este aspecto das cobranças
particularmente. Nas determinações legais nada se referia aos prováveis pagamentos que as
práticas de curandeirismo e feitiçaria poderiam envolver. Cabe reiterar que a
criminalização das práticas rituais e tradicionais de cura transcendia esta questão
meramente financeira, pois o que os códigos determinavam era a proibição da profissão e
do exercício do curandeirismo, da feitiçaria e das práticas populares de cura fossem estes
ofícios pagos ou não. Mas na realidade só houve criminalização de casos em que as
cobranças estavam implicadas. O mais provável era que esta constante atitude de
recriminação sobre as pagas estivesse intrinsecamente incorporada nos procedimentos
habituais adotados pelo próprio aparato repressivo e jurídico concernente às práticas rituais
de cura.
Como já foi fartamente apontado todos os processos que visavam criminalizar
curandeiros mencionavam alusões às “locupletações” destes agentes populares a fim de
obter proveitos financeiros através de suas práticas de curas. Muitas vezes os resultados
dos tratamentos dos curandeiros eram contestados pelas próprias testemunhas, algumas
delas, inclusive, pacientes insatisfeitos com o curandeiro. Deste modo muitos depoimentos
recriminatórios eram resultantes de tratamentos que não surtiram efeito, fossem eles
através de feitiços ou de preparados de raízes e ervas. E talvez o que deveria ser
determinante e decisivo para a criminalização destes curadores fosse realmente o
descontentamento de uma clientela que pagou por curas que não ocorreram.
No processo crime contra o curandeiro Manoel Lagoa
137
menções a cobranças
pelos serviços de curandeirismo e feitiçaria prestados por ele. A primeira testemunha do
processo, um doente tratado por Manoel Lagoa o chamou de charlatão, pois não obteve
cura. Segundo ele, Manoel "tem prejudicado a saúde blica com o fim de ganhar
dinheiro”. Neste caso, a testemunha desqualificara os efeitos dos procedimentos de cura de
Manoel Lagoa, acrescentando que o réu apenas se prestava aos trabalhos de cura para
137
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº743, cx. 34.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=43430
129
locupletar-se. A expressão “charlatão” utilizada pelo depoente pretende caracterizar
Manoel Lagoa como um trapaceiro mistificador, dono de um discurso falacioso e
enganador.
Também no processo movido contra o acusado de curandeirismo José Sapato
138
as
referências às pagas são significativas nos depoimentos. Segundo uma testemunha, o réu
"recebeu quantia em dinheiro de Francisco José de Souza Primo para enfeitiçar uma moça
de nome Bernardina", por quem Francisco estava apaixonado. Além disso, "dera remédios
de feitiços a Alexandre e a Jerônimo Nogueira e estes pioraram do incômodo que sofriam,
e que recebera dinheiro pelos remédios”. Posteriormente, os irmãos enfermos tiveram que
deslocar-se para São João del-Rei para buscar socorro.
Outra testemunha do processo alega que, “tanto Jerônimo quanto Alexandre
acharam-se atacados de feitiço posto por três mulheres pardas deste arraial, das quais
tinham morrido duas e que se os dois pagassem a ele, José Sapato, este faria remédios para
desfazer feitiços daqueles doentes”. Acrescentam as testemunhas que os enfermos
Alexandre e Jerônimo, “lhe deram quantia em dinheiro e várias garrafas de cachaça, nas
quais o dito Sapato punha alguns temperos". De acordo com as testemunhas parece mesmo
que José Sapato recebia pagamentos por suas práticas rituais de cura. Os depoimentos das
testemunhas insistentemente destacam a questão das pagas.
Em processo contra Gervásio Ferreira de Melo
139
também debate em torno das
pagas pelos serviços de curandeirismo prestados. Ao ser flagrado portando objetos típicos
de feitiçaria, Gervásio respondera no processo que “tem empregado esses objetos e que não
tem recebido paga, a não ser quantia que recebeu de uma garrafa de salsa em cachaça que
deu a um sujeito”. Já os depoimentos do inspetor de quarteirão, com quem o réu tivera uma
dura refrega, relataram que “o réu exercia o emprego de curador, dando remédios a
diversas pessoas e recebendo pagas por isso”.
No fim dos autos o réu Gervásio acabou pronunciado por alegar que as pessoas
estavam enfeitiçadas, oferecendo seus trabalhos remunerados para curar os feitiços. O
denunciado não fora julgado porque se encontrava foragido. Neste caso, Gervásio
consentiu que praticava rituais de feitiçaria mas se negou a admitir abertamente que
cobrava pagamentos por seus serviços. No entanto testemunhas declararam que o
curandeiro recebia dinheiro pelas suas garrafas, feitiços e fechamentos de corpo.
138
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 412, cx.17.
Fonte eletrônica: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=17006
139
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 782, cx. 36.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=46063
130
Outro processo crime investigado que menciona pagamentos pelos serviços de
feitiçaria é o de Felipe Marcelino.
140
Logo na denúncia, o comentário sobre as cobranças é
feito, quando menciona que o curandeiro foi preso em flagrante em dezembro de 1897 na
Fazenda de Dona Constança de tal e “estava em atitude de quem estava fazendo curas
milagrosas mediante quantias de dinheiro”. No ato da prisão foram apreendidos objetos e
quantia em dinheiro pertencentes a Felipe Marcelino.
Ainda sobre as aludidas cobranças uma testemunha dissera “ter ouvido de diversas
pessoas que se achavam nesta freguesia de um africano que havia extraído do corpo de
diversas pessoas, cabeças de cobras, ossos e insetos mediante quantias de dinheiro
previamente ajustadas”.
Sobre este caso parece pertinente lembrar que o acusado Felipe Marcelino estaria na
Fazenda de Dona Constança encomendado que foi pela enferma. Deslocara-se da cidade de
Lavras para aplicar suas curas em São Francisco de Paula, localidade consideravelmente
distante. Várias pessoas das redondezas para lá se dirigiram no intuito de buscar os
serviços de cura do dito feiticeiro. referências à apreensão de dinheiro pertencente ao
acusado no ato da prisão em flagrante. Parece improvável que Felipe Marcelino oferecesse
seus serviços voluntariamente sem cobrar remunerações. Além do mais, tanto a promotoria
quanto as testemunhas asseveraram que Felipe Marcelino cobrava por seus procedimentos
rituais de cura.
Quanto ao processo envolvendo José de Paula Freitas
141
, “o Dr. José”, a questão
financeira também é enfatizada. O réu foi denunciado por “há muito achar-se exercendo
indevidamente a medicina aplicando remédios e tisanas com prejuízo da saúde pública, e
mais, extorquindo dinheiro aos incautos, e ainda exercendo sortilégios”. Nesta acusação da
Promotoria a idéia que parece ser transmitida é a de golpe fraudulento perpetrado pelo
acusado “Dr. José” em busca de vantagens e lucros sobre pessoas ingênuas.
O parecer de uma testemunha dos autos sobre o tema relata que “o réu levava
objetos de ouro em troca de remédios”. Tal afirmação parece demonstrar que “Dr. José”
recebia outros tipos valiosos de remuneração, além de dinheiro.
140
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 812, cx. 38.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=48674
141
Processo criminal do Arquivo IPHAN/ET, registro nº 966, cx. 69-11.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2765&op=1
131
A testemunha Sabina Balduína, desafeto de “Dr. José”, disse que “o denunciado se
negou a atender uma segunda vez a perna de Dona Cândida, alegando que não lhe
pagariam”. Tal depoimento parece reforçar a preocupação extrema do curandeiro em ser
compensado por suas curas, a ponto do pagamento ser condição imprescindível para “Dr.
José” dispor-se a efetuar suas práticas de cura. que se levar em consideração que tal
informação foi fornecida por uma reconhecida inimiga do réu. De qualquer forma outros
testemunhos também reiteraram o caráter ambicioso do acusado.
No habeas corpus visando libertar os escravos Adão e Juvêncio
142
, presos pela
prática de curandeirismo em São João del-Rei, também há referências a pagas por serviços
de curandeirismo. O Juiz municipal José Martins Bastos, por exemplo, entende que é
“público e notório que os escravos Adão e Juvêncio achavam-se nesta cidade exercendo a
arte de curar e recebendo disso grandes honrarias”. Especula-se que as “honrarias” as quais
o Juiz se referiu não se tratavam de condecorações e solenidades. A expressão utilizada
ironicamente parece ter se referido muito mais a formas de agradecimentos materiais com
as quais os escravos viram-se gratificados. Discussões semânticas à parte, tais formas de
compensação também poderiam ser entendidas como pagamentos. Não há especificação no
processo se estas tais “grandes honrarias” consistiam em quantia em dinheiro, objetos de
valor, mantimentos ou o quer que seja.
No processo crime contra José Rodrigues de Moura “Caroba”
143
, em sua denúncia,
adverte-se que o acusado de curandeirismo “recebe pelos remédios que prescreve, ministra
e prepara certa quantia dos infelizes que a ele se aproximam”. Portanto, logo na denúncia
do processo, foi acusado de forma enfática e crítica o caráter remunerado dos serviços
do curador.
Em tal processo ocorrera verdadeira celeuma em torno desta questão. Como
mostrado acima, a acusação na denúncia aponta o recebimento de dinheiro por “Caroba”.
as testemunhas em interrogatórios diferentes se contradizem em relação a este assunto.
Num primeiro inquérito elas avalizam a posição da denúncia e acusam “Caroba” de cobrar
por suas garrafas. Porém, numa segunda rodada de depoimentos, as mesmas testemunhas
enfatizam o caráter opcional do pagamento. Nesse caso, José “Caroba” apenas receberia
quantias dadas espontaneamente pelas pessoas que se prontificassem a pagar por seus
preparados geralmente feitos com caroba e cachaça.
142
Processo criminal do IPHAN/ET, registro nº 1119, cx. 51-05.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2171&op=1
143
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 992; cx. 49.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=1154&op=1
132
Dada a palavra ao réu para contestar o depoimento das testemunhas e o próprio teor
da denúncia, foi dito que ele “não tem por costumes cobrar de pessoa alguma o seu
trabalho”. De todo modo, verifica-se nestes autos primeiramente a preocupação da
denúncia em se alardear o caráter remunerado da atividade do acusado, e posteriormente, a
preocupação do denunciado em rebater a fundamentação e procedência de tal acusação.
No processo contra Honório da Silva Rosa, vulgo “Honório Félix”
144
, também a
preocupação em se debater os honorários recebidos pelo curandeiro. Neste caso o paciente
atendido pelo acusado morrera pouco tempo depois do tratamento.
Segundo a denúncia da Promotoria, “Honório Félix” “atende ao chamado de João
Venâncio de Souza, examina o enfermo, garante-lhe a cura, recebendo por isso quantia em
dinheiro de quarenta mil réis”. O curador efetivamente fez curativos no enfermo,
banhando-lhe os dedos do ulcerado e dando-lhe internamente beberagens. As
testemunhas do processo também confirmaram a versão acusatória da denúncia referente a
um pagamento de quarenta mil réis exigido por Honório diante de uma promessa de cura
das enfermidades sofridas por João Venâncio de Souza. Como se sabe, esta alegada
promessa não se concretizou satisfatoriamente a despeito do dito pagamento efetivado pelo
falecido.
Ao debater a questão dos dividendos obtidos através de práticas rituais de cura no
século XVIII, o historiador Donald Ramos atenta para o fato de que “algumas pessoas
criticavam o fato de os feiticeiros ganharem sua vida com as suas atividades religiosas ou
mágicas”.
145
E acrescenta, “Não dúvida de que os feiticeiros, curandeiros e
adivinhadores lucravam pessoalmente com as suas atividades em termos de dinheiro, fama
e poder”.
146
Ramos comenta que uns escravos de uma sociedade de padres em Curitiba
foram acusados (conforme os processos inquisitoriais) de “fingimento industrioso de que
usam para extorquir patacas da gente rústica”
147
. E comenta que “a possibilidade de eles
144
Processo criminal do Acervo do Fórum de Itapecerica, Registro n° 304; Cx. 17-05.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=3289&op=1
145
RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: Um comentário sobre a
interpretação da escravidão in Da SILVA, Maria Beatriz Nizza. Brasil: Colonização e Escravidão.(Org.)
op. cit. p. 152.
146
Idem, Ibidem.
147
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, proc. 4374. Denúncia de Lourenço
Ribeiro de Andrade, 31 de março de 1780.
133
fingirem e ganharem suas vidas existia apenas porque muitas pessoas acreditavam nessa
‘embustices’.”
148
Como bem sinaliza o trecho acima citado, tais “embustices”, devidamente
colocadas entre aspas, não devem ser entendidas de forma generalizada como meros
truques e ardis enganosos. Embora alguns casos particulares descritos nos processos
abordados possam nos passar a impressão de que se tratariam de procedimentos dotados da
mais pura velhacaria, devemos entender que tais práticas rituais mágicas eram passadas de
geração em geração, e estavam fundadas em tradições que persistiam no imaginário das
pessoas da época. Parece-me precipitada a compreensão de que tais agentes populares da
cura buscassem com o usufruto de tais práticas apenas se locupletar utilizando-se de uma
espécie de oportunismo calculista. Uma confirmação de que os serviços prestados pelos
curandeiros ocorriam mediante pagamentos e gratificações não deveria sustentar
argumentação suficiente para taxar estes agentes populares da cura de ludibriadores e
trapaceiros.
A partir de uma investigação sobre os curandeiros envolvidos nos processos
investigados neste trabalho, supõe-se, que em sua grande maioria, tais curandeiros
processados realmente cobravam dinheiro ou bens em troca de seus procedimentos rituais
de cura. A própria natureza informal de seu ofício deveria proporcionar a estes acertos uma
flexibilidade de negociação maior que em profissões de caráter mais oficialmente
reconhecido. Portanto, em alguns processos, pairaram dúvidas quanto à obrigatoriedade do
pagamento ou até mesmo quanto a possíveis remunerações voluntárias das pessoas
atendidas.
A hipótese de que vários agentes populares de cura prestavam serviços gratuitos
não deve ficar descartada. No entanto, como foi apontado anteriormente, estes possíveis
casos de curandeirismo não remunerado não se transformaram em processos criminais,
talvez em função justamente desta ausência de uma implicação financeira. Este mesmo
raciocínio hipotético poderia ser aplicado também a inúmeros casos de curas bem
sucedidas cobradas financeiramente pelos curandeiros que não foram parar na Justiça. O
reduzido número de processos encontrados envolvendo repressão ao curandeirismo, num
volume significativo de documentos e de diferentes localidades, nos faz imaginar que uma
148
RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: Um comentário sobre a
interpretação da escravidão in Da SILVA, Maria Beatriz Nizza. Brasil: Colonização e Escravidão.(Org.)
op. cit. p. 152.
134
quantidade bem mais elevada de resultados bem sucedidos de cura através dos curandeiros
foi alcançada em relação aos casos insatisfatórios reclamados na justiça.
Curandeiros que passam a competir com a classe médica
A discussão sobre a repressão aos curandeiros e feiticeiros nos oitocentos passa
necessariamente pelo embate no campo da cura envolvendo os diferentes agentes que se
propunham a sanar os males e moléstias que afligiam a sociedade da época. Os
profissionais formais da cura mostravam-se preocupados com o disputado mercado em que
deveriam concorrer. Neste contexto, a classe médica e farmacêutica tinha claros interesses
em erradicar os curandeiros e feiticeiros da sociedade, pois tais praticantes populares da
cura exerciam forte influência na sociedade e certamente abocanhavam uma significativa
fatia da demanda de serviços de cura fortemente desejada pelos profissionais diplomados
ou habilitados.
Embora em todos os processos criminais que visassem criminalizar o curandeiro tal
objetivo estivesse implícito, que as próprias legislações refletiam os anseios da Junta
Central de Higiene Pública e da própria corporação médica, em alguns processos estes
conflitos no campo da cura demonstraram-se bem mais evidentes. Questões ligadas a uma
cogitada formação acadêmica do réu, a uma possível habilitação concedida pelos órgãos
públicos competentes, a uma classificação das autoridades referente ao status do
curandeiro, tratado como ignorante pelo fato de ser analfabeto e não ter uma instrução nos
moldes convencionais, são discutidas em variados processos.
Processos como o de José de Paula Freitas
149
, o “Dr. José”, demonstram que estes
agentes populares de cura, através de suas ervas e feitiços, ocupavam uma posição
privilegiada no campo de disputa pela cura. Afinal, não foi à toa que o dito curandeiro
recebeu a alcunha de “Dr. José”. Tal curandeiro, por exemplo, parecia mesmo dispor de
prestígio junto à parcela da sociedade, que uma testemunha chega a alegar que ele
dissera que “mesmo havendo perseguição das autoridades contra ele para que ele saísse
dali, que ele não saía, pois que tinha muitas pessoas que o protegiam, e não tinha medo das
autoridades”.
Tal depoimento parece indicar uma possível existência de um círculo de relações
com pessoas importantes da cidade. E tais laços de proximidade justificariam toda esta
149
Processo criminal do Arquivo IPHAN/ET, registro nº 966, cx. 69-11.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2765&op=1
135
confiança extrema do réu. Tais personalidades que garantiriam os serviços de Dr. José e
protegeriam a sua pessoa possivelmente também utilizassem de seus serviços de
curandeiro. É bem verdade que, posteriormente no processo, nas palavras do próprio réu
ele admitiu ter interrompido com suas atividades, mas tal afirmação ocorreu diante da
justiça, ou seja, numa circunstância de pressão e coação, diferentemente do tom
espontâneo da declaração anterior endereçada a uma testemunha que se tratava apenas de
um cidadão comum.
Tentando atenuar a elevada dimensão a que chegara a fama de suas atividades, o
réu afirmara posteriormente nos autos que apenas “dava alguns chás que lhe pedissem e
que tendo o médico Dantas José Bastos lhe proibido, nunca mais deu remédios, isto
oito, nove meses”. Tais palavras denunciam que o próprio réu confessara que receitava
remédios, e tais remédios eram cozimentos a base de raízes e plantas. A interrupção de
suas atividades teria sido motivada pelas advertências de um representante da corporação
médica, o Dr. Dantas José Bastos. Não se conta detalhes das circunstâncias em que esta
situação se deu, mas é bem significativo que tal proibição tivesse partido de um médico,
potencial competidor e interessado na paralisação das atividades do curandeiro em
evidência.
Conforme o depoimento das testemunhas pode-se interpretar que o réu exercia um
grande poder sobre as pessoas, por exemplo, quando um depoente afirmara que o acusado
“curava toda e qualquer moléstia com os remédios que possuía, e que também era capaz de
fazer qualquer pessoa dormir durante o tempo que quisesse”. Tais feitos prometidos pelo
curandeiro deveriam causar grande impressão na sociedade da época e diante disto
assustariam a classe médica preocupada em legitimar suas práticas oficiais de cura e
conquistar uma boa freguesia na cidade de São João del-rei. A presença do “Dr. José”
deveria ser bastante inconveniente para os seguidores da medicina oficial. Apesar da
denúncia movida pela promotoria ter sido julgada improcedente e o réu ter escapado da
condenação, fica demonstrado neste processo que a relutância contra o exercício das
práticas de cura de “Dr. José” foi muito intensa, o que fica evidente nas entrelinhas do
processo. Mas ainda assim, talvez a influência que Dr. José garantiu exercer sobre alguns
poderosos da cidade tenha possibilitado sua proteção e liberdade.
136
No processo envolvendo o acusado de feitiçaria Felipe Marcelino
150
destaca-se uma
breve e significativa passagem relativa a um possível conflito e disputa pelo campo da cura
envolvendo os propósitos deste feiticeiro e o tratamento vigente na medicina oficial
concorrente da época. Como foi descrito anteriormente Felipe Marcelino foi preso em
flagrante em dezembro de 1897 na Fazenda de Dona Constança de tal. Descrições no
decorrer deste processo relatam que Dona Constança se encontrava enferma e em função
de seu estado delicado encomendou os serviços do feiticeiro no intento de conseguir cura.
Vem ao caso destacar que o curandeiro deslocou-se do lugar onde morava, a cidade de
Lavras do Funil, para assistir à Dona Constança além de vários doentes que se dirigiram
para a Fazenda da enferma.
A precisa parte do processo que diz respeito ao tema da discussão em torno da
competição entre diferentes agentes do campo da cura se deu nos depoimentos da
testemunha Cândido Gonçalves Rosa, filho da viúva enferma que encomendara os serviços
de Felipe Marcelino. Em seu testemunho, o depoente depois de ter admitido chamar o
curador e também de posteriormente ter consentido na prisão realizada em sua casa
afirmou que “Felipe Marcelino aconselhou sua mãe a jogar fora todos os remédios
receitados por médicos, dizendo que os remédios de botica não a curavam, exigiu que ela
não continuasse mais com os ditos remédios, pois ele a curaria de todos os incômodos”.
Segundo o relato da testemunha, as palavras do “feiticeiro” Felipe Marcelino
mostraram-se enfáticas e bastante diretas. O curador buscou desacreditar totalmente os
remédios receitados pelos médicos e boticários com os quais a enferma teria buscado
tratamento anteriormente. Além disso, Marcelino prometeu convictamente a cura das
moléstias que tanto afligiam Dona Constança. Os artifícios utilizados pelo denunciado para
atingir esta esperada cura é que diferiam bastante dos métodos indicados pelos médicos,
que Felipe Marcelino buscava a cura através de feitiçarias.
A partir deste depoimento podemos supor naturalmente que Dona Constança
certamente teria buscado anteriormente o amparo de medicamentos característicos da
medicina oficial, os quais conseqüentemente não teriam surtido resultado satisfatório na
cura almejada. O tratamento com os chamados “remédios de botica” mostrou-se ineficaz.
Em função desta situação insolúvel para os seus incômodos a própria enferma teria
150
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 812, cx. 38.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=48674
137
procurado os serviços do “feiticeiro”, conforme o testemunho de seu próprio filho pôde
confirmar. O “feiticeiro” Felipe Marcelino diante de tal circunstância não perdeu a
oportunidade de desdenhar a qualidade dos medicamentos formais empregados
anteriormente, reputados como inúteis, que até atrevidamente recomendou que fossem
descartados.
Após as recomendações do feiticeiro este passou a desenvolver seu ritual de cura
através de feitiçaria para buscar sanar os males que atormentavam Dona Constança,
conforme o próprio filho da enferma pode descrever,
“Marcelino abriu um lenço branco contendo uma porção de polvilho, um cordão
de aço que colocou em seu pescoço, tirando nesta hora em sua mão dois ossos,
um com as mãos no estômago, e outro com a boca no peito esquerdo, e depois
pegando os dois ossos mandou por uma pedra de sal e jogá-los pelo córrego
abaixo, o que cumpriram”.
Neste curioso e instigante detalhe do processo do feiticeiro Felipe Marcelino parece
confirmar-se mesmo um enfrentamento de propostas de tratamentos diante das implacáveis
adversidades das doenças. Não há detalhes nos autos que possam revelar que tipo de
remédio específico ou qual médico precisamente a enferma teria procurado anteriormente à
utilização dos serviços do feiticeiro. Mas percebe-se que também, por parte de Felipe
Marcelino, um discurso de descrédito e desprezo pelas terapêuticas formais difundidas pela
medicina oficial vigente na época. Certamente tais afirmações críticas do feiticeiro
agravaram bastante sua situação como réu no processo. Além de exercer a feitiçaria, crime
previsto em lei pelo qual ele foi pronunciado e condenado, Felipe Marcelino faz claras
advertências divulgando a ineficiência e inutilidade dos remédios dos médicos, o que deve
ter causado profunda recriminação das autoridades judiciais comprometidas com os
interesses da corporação médica que lutava por uma monopolização e normatização das
práticas de cura na sociedade.
Ainda debatendo a condição do curandeiro e as tentativas de limitação de suas
práticas na sociedade, no caso de Jerônimo Honório Machado
151
, a questão mais enfatizada
gira em torno da denúncia do exercício ilegal de medicina. O processo de infração de
posturas ocorrera em São Francisco de Paula em 1872. Nos depoimentos das testemunhas,
151
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 415, cx. 18.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=17485
138
a pergunta recorrente feita pela Promotoria é quanto a uma possível formação médica do
denunciado, à qual as testemunhas foram unânimes em responder que o réu não tinha
formação acadêmica em medicina. Mas, independente do reconhecimento da ausência de
uma formação médica oficial e formal, a grande maioria dos depoentes fazem questão de
enfatizar que foram bem sucedidos em seus tratamentos com o curandeiro. Uma
testemunha ao reiterar a falta de formação acadêmica do curandeiro acrescenta por conta
própria que tendo “tomado remédios manipulados pelo acusado na ocasião em que estava
doente ficou perfeitamente são, já tendo tomado remédios dos melhores médicos formados,
e que sabe que o acusado não é formado em medicina, mas que o julga muito útil à
humanidade”. O reconhecimento por parte da testemunha das benfeitorias da atividade do
curandeiro parece desprezar qualquer apreciação quanto aos impedimentos jurídicos e
institucionais que poderiam vir a condenar as práticas do curandeirismo. Para estas pessoas
que usufruíam dos seus serviços tais preceitos normativos e reprovadores pareciam ser
irrelevantes, que segundo seus depoimentos o que realmente importava era a eficácia
alcançada pelo tratamento de Jerônimo.
Outro depoimento relevante no sentido de demonstrar aceitação e gratificação aos
serviços do curandeiro Jerônimo é o da testemunha Carlos Martins Pereira que, “disse que
sabe de ciência própria que o acusado tem aplicado remédios por ele manipulados e tem
fechado corpos de pessoas com orações, e disto sabe por que o corpo dele testemunha foi
fechado pelo acusado.” Tal relato mostra que o depoente trata com naturalidade o universo
das práticas de cura do acusado, além de ressaltar que o curandeiro se valia tanto de
preparados feitos com plantas quanto de artifícios de ordem sobrenatural, como
fechamentos de corpo, para realizar as suas curas. A mesma testemunha acrescentou ainda
que “estando a mulher dele testemunha bastante enferma tomou remédios feitos pelo dito
acusado e sarou, tendo sido antes desenganada pelos médicos”. Diante da cura exitosa o
marido gratificado não titubeou em fazer a comparação entre os tratamentos buscados. Ele
fizera questão de enfatizar que a esposa enferma fora desenganada pelos médicos
formados, que não conseguiram através dos recursos típicos da medicina oficial solucionar
as mazelas sofridas por ela.
Também fica citado que o acusado manipulava remédios e através das palavras de
uma testemunha “não só remédios caseiros como de botica.” As práticas de cura de
Jerônimo parecem bem assimiladas pela sociedade de São Francisco de Paula, inclusive
admitia-se que Jerônimo manipulava até remédios ditos de “botica”, convencionalmente
139
vendidos em farmácias e boticários, fato este que também deveria incomodar as
autoridades.
Percebe-se o exercício do curandeirismo à revelia das normatizações, tanto das
Posturas municipais como do regulamento da Junta Central de Higiene Pública. Toda a
condução e direcionamento dos depoimentos das testemunhas pelo aparelho de justiça
visava deslegitimar a atividade do curandeiro, mesmo que a grande maioria dos depoentes
declarasse que curas bem sucedidas haviam sido alcançadas com seus serviços. Parece
manifesto na condução dos depoimentos um interesse em denunciar uma espécie de
apropriação de um espaço reservado à medicina que estaria sendo tomado pelo curandeiro,
exercendo funções que deveriam ser restritas aos médicos formados. E a despeito deste
direcionamento e desta deliberada carga reprovadora e condenatória na condução dos
depoimentos, a grande maioria das testemunhas não se deixou dobrar por esta espécie de
cartilha oficial e teceu elogios às bem sucedidas curas praticadas pelo curandeiro.
Na sentença do juiz responsável pelo caso Cândido de Faria Lobato a visão oficial é
manifesta. O juiz acusa o curandeiro Jerônimo de analfabeto e que por esse motivo tratava-
se o acusado de um ignorante. O fato de o curador ter se demonstrado um iletrado perante
os autos não o impediria de buscar um repertório de curas amparado na sabedoria popular e
no conhecimento tradicional tão requisitado pela sociedade mineira da época. As práticas
de cura costumeiras arraigadas no seio da sociedade eram transmitidas predominantemente
através da cultura oral e o curandeiro Jerônimo assim como vários outros curadores
abordados nestes processos se valiam desta herança oral para adquirir seus conhecimentos.
Nesta mencionada sentença o juiz faz questão de identificar o acusado como um
feiticeiro “vulgar”, inferiorizado numa escala hierárquica diante do charlatão. Estes citados
charlatões, apesar mesmo de estarem infringindo as leis, foram qualificados pelo juiz como
pessoas inteligentes, ilustradas e dotadas de bom senso, ou seja, passaram por uma
educação formal básica. Toda esta diferenciação de tratamento talvez se ampliasse pelo
fato da terapêutica exercida por estes falsos médicos não habilitados para exercer a
profissão, os charlatões, aproximar-se-iam um pouco mais dos procedimentos oficiais da
medicina científica. Mas tal hipótese não pode ser confirmada e a possibilidade de
charlatões e até mesmo de médicos utilizarem de meios nada ortodoxos do ponto de vista
científico em seus tratamentos de cura não poderia ficar descartada.
140
No processo crime impetrado contra o curandeiro José “Caroba”
152
também havia
insinuações de que o réu estaria transpondo limites de uma esfera que deveria pertencer
apenas à corporação médica. Tal processo foi instaurado em março de 1903 na cidade de
Oliveira.
Nos depoimentos do italiano Olinto Mechetti a testemunha alegou saber que são
numerosos os doentes de José Rodrigues e que este não tem autorização da Junta de
Higiene para realizar suas preparações. A testemunha ainda acrescentou que sabe “de
ciência própria que viu o dito denunciado fornecer o medicamento que emprega para
diversas moléstias que diz curar, além de ter consultório em casa e receber chamadas para
fora”. Este ponto do depoimento é revelador, que ressalta que José Caroba tinha até um
tipo de sala ou cômodo em sua própria casa destinada a consultar os doentes e, além disso,
atendia a domicílio enfermos que não podiam se deslocar até ele. A palavra “consultório”
manifestada no depoimento, por exemplo, provavelmente não deveria ter soado
agradavelmente nos ouvidos das pessoas empenhadas em defender a exclusividade da cura
pela classe médica.
Os relatos das testemunhas pareciam confirmar que o remédio principal receitado
pelo curandeiro às pessoas que o procuravam tratava-se mesmo da caroba. A testemunha
Victor Agresti disse que sabe que “o denunciado prepara um remédio com caroba e
cachaça e ministra a todos os doentes que lhe consulta e que o único remédio ministrado
aos seus diversos clientes é a cachaça com caroba”. Na denúncia da Promotoria fica
observado que o acusado “prescreve e ministra, por ele próprio preparado, remédios para
uso interno de substâncias do reino vegetal”, não especificando a caroba como única
medida de cura aplicada pelo curandeiro. Embora não se possa comprovar a caroba como
tratamento específico e único de José Caroba, demonstra-se significativo nesta época o
emprego de apenas um tipo de solução para uma multiplicidade de doenças, como os
informes dos jornais oitocentistas pesquisados puderam confirmar. De qualquer forma, o
ato do curandeiro prescrever e ministrar remédios, independente de sua origem, natureza e
variedade e, através disto, obter grande penetração na sociedade deveria preocupar bastante
a classe médica e as autoridades constituídas que acatavam os anseios monopolizadores da
corporação médica.
152
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 992; cx. 49.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=1154&op=1
141
Outra testemunha alegou que levou sua mulher doente para tratar com “Caroba” em
sua própria casa, motivado pela “fama do denunciado”. Lá chegando o depoente dissera ter
encontrado diversas pessoas com o mesmo fim de curar-se com o dito curandeiro.
evidências no tom do relato de que José “Caroba” realmente exercia forte influência nas
pessoas crédulas em suas prometidas curas.
No caso deste processo de José Caroba, ocorreram duas rodadas de depoimentos
distintas. Numa primeira série de inquirições, predominaram questões alinhadas com o tom
crítico e recriminador da denúncia. Diante de perguntas interessadas em apertar ao máximo
o cerco contra o acusado as testemunhas acabaram por responder sobre questões referentes
à ausência de título ou habilitação do curandeiro, como foi demonstrado anteriormente.
Tais questionamentos naturalmente estavam concatenados aos propósitos condenadores da
acusação. As posições iniciais dos depoentes diante do tom tendencioso e direcionador dos
inquiridores foram bem mais severas e desqualificadoras em relação ao curandeiro do que
na segunda rodada de depoimentos. Na segunda série presenciada e interferida pelo
advogado do curandeiro as testemunhas atenuaram consideravelmente as críticas contra o
réu, inclusive deixando-se cair em flagrantes contradições.
Tal sobreposição de diferentes inquéritos demonstra que havia uma predisposição
das autoridades responsáveis pela denúncia, alinhadas com o discurso monopolizador e
exclusivista das práticas de cura, de exercer uma ação implacável contra os curandeiros.
No caso deste processo, pelo menos, foi dada palavra a um advogado defensor do acusado
que habilidosamente soube contrapor argumentações e questões que enfraqueceram o
direcionamento interessado da denúncia.
O processo contra o acusado de curandeirismo “Honório Félix”
153
também é
bastante emblemático. O caso se deu no povoado de Barro Preto, distrito de Itapecerica em
abril de 1902. Neste processo o curador além de ter tratado do enfermo João Venâncio de
Souza fez questão de abrigá-lo em sua própria casa para um melhor acompanhamento do
tratamento. Tal fato por si só já seria motivo de irritação daqueles que defendiam o
exclusivismo da classe médica profissionalizada no âmbito da cura. Mas tal caso
apresentou um agravante: a morte do enfermo ocorrida logo em seguida. Diante do trágico
fato a carga das críticas e acusações sobre as atividades do curandeiro passou a ser muito
mais pesada.
153
Processo criminal do Acervo do Fórum de Itapecerica, Registro n° 304; Cx. 17-05.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=3289&op=1
142
O doente João Venâncio de Souza teria procurado os serviços de Honório Félix,
que lhe garantiu a cura mediante pagamento. Diante da ineficácia da terapêutica adotada o
enfermo “abandona a casa do curandeiro e vai procurar socorro na medicina por pessoa
‘competente’.” Logo depois, como sabemos, o doente acaba falecendo e a responsabilidade
da morte, é atribuída ao curandeiro Honório Félix.
Neste processo, o curandeiro não apenas consulta e atende o enfermo como também
o acolhe em sua casa por um período de cinco dias visando um acompanhamento intensivo
da almejada recuperação da enfermidade. O doente realmente se submeteu a um tratamento
a base de remédios típicos do curandeirismo, inclusive chegando a se internar no domicílio
do curandeiro. A forma tão confiante com que o enfermo se entregou ao tratamento de
Honório Félix chama bastante atenção. Embora a recorrência aos curandeiros fosse muito
comum na sociedade oitocentista, talvez até majoritária dentre os diferentes agentes da
cura, tal caso ilustra a que ponto chegava o alcance da inserção e influência do praticante
informal da cura na sociedade, isto independente do malogro do tratamento empreendido
por Félix. Apesar do seu trágico desfecho o enfermo aceitou ficar cinco dias aos cuidados
do curandeiro em sua própria casa e depois de desacreditar totalmente do atendimento
prestado pelo curandeiro é que foi buscar amparo nos ditos profissionais “competentes” da
medicina formal.
Através dos autos não verificamos confirmações sólidas que nos dêem garantia de
que o réu “Honório Félix” deveria ser mesmo o responsável pela morte do enfermo. Afinal
de contas, após o tratamento com o curador o enfermo foi procurar socorro na medicina
dita competente. Os acusadores alegaram que depois da malograda terapêutica conduzida
pelo curador já não havia mais tempo hábil para uma cura “conveniente”. Conforme
discurso da promotoria, “o mal tinha criado raízes e improfícuos foram os recursos da
sciência”. Segundo esta opinião, a interferência fracassada do curandeiro é que
impossibilitou o adequado tratamento científico da medicina oficial, que implacavelmente
daria conta de sanar a mazela sofrida. No entanto, a partir dos subsídios oferecidos nas
informações constantes no processo tal compreensão não passava de mera especulação.
possibilidades tanto do curandeiro Honório Félix, como do próprio médico Doutor
Leopoldo Correa, que tratou posteriormente do doente, terem tido alguma responsabilidade
pelo desfecho fatal do enfermo. No entanto, a segunda hipótese sequer foi levantada pela
denúncia. A promotoria compreendia a medicina oficial e formal como procedimento
“competente” e seus recursos científicos só não teriam sanado a trágica enfermidade,
143
porque a intromissão da terapêutica alternativa do curandeiro teria prejudicado e atrasado
um tratamento adequado e satisfatório para a doença.
A partir destas discussões cogita-se pensar sobre os casos, e não deveriam ser
poucos, em que os tratamentos e terapêuticas conduzidos por médicos ou farmacêuticos da
época redundassem na piora ou mesmo na morte dos enfermos. Tais procedimentos
ineficazes e possíveis negligências ou até impertinências médicas seriam tratadas também
como casos passíveis de criminalização? Os diplomas ou habilitações de profissionais da
cura oficiais seriam elementos garantidores de responsabilidade e prudência no trato com
as enfermidades dos pacientes? Parece que de acordo com a lógica monopolista no campo
da cura adotada pelas próprias legislações do século passado as pessoas dotadas de
diploma ou habilitação poderiam cometer os piores tipos de tentativas de cura possíveis
que permaneceriam salvaguardadas pelo status do científico e oficial, por mais
questionáveis que estes conceitos pudessem ser na época.
Uma verificação nos depoimentos de algumas testemunhas e envolvidos nos casos
que pudemos abordar é quanto à avaliação de médicos chamados a prestar seus serviços
que se limitavam a desenganar os doentes, desacreditando-os sobre qualquer esperança de
cura. Tais tentativas mal sucedidas junto aos recursos da medicina oficial acarretavam
necessariamente a procura por serviços de curandeiros. Não que os fatos se sucedessem
sempre necessariamente nesta ordem. Havia também casos em que o primeiro socorro do
doente necessitado tratava-se mesmo da serventia do curandeiro. Mas esta procura por
médicos resultando em insucesso nos tratamentos prestados fora expressada
anteriormente em alguns depoimentos e também se deu em processo no qual duas
potenciais feiticeiras idosas foram vítimas de cruel assassinato.
154
Tal crime ocorreu em março de 1896 em São Francisco de Paula e tratava-se de
processo pertencente ao conjunto de processos pesquisados que não tratavam de reprimir
propriamente o curandeirismo, mas sim criminalizar agressões e desmandos contra
pretensos curandeiros. Em tal caso Manoel Fernandes de Lima, pai de uma menina
enferma, encomendara os serviços de João Curador após desastrosos esforços junto a
tratamentos médicos. De acordo com os autos Manoel Fernandes de Lima teria respondido
que “[...] estando uma de suas filhas doente e que tendo sido tratada por diversos médicos
não conhecendo resultados apareceu-lhe João Curador”. Também a testemunha Flausino
Ferreira Pedrosa dissera que Manoel Fernandes de Lima tinha lhe contado que “[...] tinha
154
Processo Criminal do Acervo do Fórum de Oliveira. Registro nº 798 , Cx. 37.
Fonte : http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=47429
144
uma filha doente e como tinham sido usados todos os recursos médicos para salvá-la, foi
aconselhado a servir-se do Curador João.”
Foi diante desta situação insolúvel para o quadro de saúde da menina que o
curandeiro João acusara a doença da filha de Manoel como enfeitiçamento jogado pelas
duas velhinhas Francelina e Teresa, o que acabou redundando no trágico desfecho de morte
destas duas pretensas feiticeiras, que no intento de quebrar o feitiço as mulheres foram
surradas com ovos chocos e fumo até a morte.
Neste peculiar caso se sobrepõem medidas bastante distintas para se buscar a cura
da menina enferma. Os procedimentos médicos, que não foram detalhados nos autos,
mostraram-se insatisfatórios a ponto do pai da menina enferma não hesitar em recorrer aos
préstimos de João Curador. os extremados recursos de contra-feitiçaria utilizados por
João Curador levaram a morte de duas senhoras acusadas de provocar a enfermidade da
menina através de feitiço. No desenrolar dos autos não se comentou sobre o estado de
saúde da menina depois da radical e implacável medida tomada pelo curandeiro. Teria tal
procedimento extremo influenciado em melhora do estado da menina talvez por um
sugestionamento ou crença no feitiço? Chama a atenção o fato de que as senhoras acusadas
de causarem os transtornos da menina através de feitiçaria tratavam-se precisamente de
antigas inimigas da família da menina adoentada.
É importante lembrar que os argumentos do pai da menina no processo tentam
responsabilizar apenas João Curador pelos espancamentos seguidos de morte. Segundo
versão do pai, Manoel Fernandes de Lima, João teria ameaçado ele e sua família de morte
se não o deixassem prosseguir em seu ato bárbaro, ou seja, houve condescendência na
brutalidade cometida em função de intimidação do agressor. Infelizmente tais
argumentações não podem ser consideradas como verdadeiras, mesmo apesar dos parentes
da menina terem convencido a justiça e se livrado de qualquer condenação. Não podemos
mensurar a real dimensão da sugestão e aceitação da proposta de contra-feitiço oferecida e
empreendida por João Curador junto aos familiares da menina enferma, pois, depois do
trágico desfecho fatal, os parentes da menina tentaram se livrar de qualquer conivência ou
participação no crime.
O fato é que no desdobramento deste processo nenhuma preocupação foi relatada
ou qualquer referência foi feita quanto à evolução do quadro de saúde da filha de Manoel
Fernandes de Lima. Nem sequer foram dadas informações sobre o tipo de doença ou
145
sintoma por que ela estaria padecendo. Parece que diante de um infortúnio irremediável
para os recursos da medicina formal da época, o pai da paciente resolveu buscar amparo
nos serviços de um curandeiro que não mediu esforços através de procedimentos extremos
da feitiçaria para obter a cura. E a despeito da natureza brutal do método usado, a realidade
é que tal prática, mesmo sendo passível de questionamento, repulsa e condenação, foi um
artifício utilizado de forma convicta e decidida pelo curandeiro com ou sem o
consentimento da família da enferma, que alegaria depois estar arrependida ao se inteirar
totalmente da represália realizada por João Curador. Caberia perguntar se, afinal, o estado
de saúde da menina foi em alguma medida beneficiado ou prejudicado pelo ocorrido.
Mas como vimos em outros processos abordados, as agressões com ovos chocos e
fumo visando a anulação de um suposto feitiço era uma prática de contra-feitiçaria
admitida pela visão de mundo e mentalidade de boa parcela da sociedade mineira da
segunda metade do século XIX. E tais atos mágicos estavam inseridos dentre os variados
recursos da época utilizados para se obter soluções de enfermidades, na medida em que se
acreditava que um estado harmonioso original fora abalado pela realização de um feitiço. E
através de procedimentos rituais às vezes violentos almejava-se a quebra do encanto e o
restabelecimento da saúde da pretensa vítima do feitiço. Casos de espancamentos
acompanhados de ovos chocos e fumo foram relatados também nos processos que
vitimaram os acusados de feitiçaria Silvério Bernardo da Costa, o preto Manoel e o idoso
octogenário José da Costa. Todos estes processos serão devidamente descritos e
comentados no capítulo a seguir.
146
CAPÍTULO IV
O FEITIÇO QUE SE TEME, O FEITIÇO QUE SE CRÊ – OS CURANDEIROS
COMO VÍTIMAS NOS PROCESSOS CRIMINAIS
A partir dos processos crimes abordados envolvendo curandeiros pôde-se verificar
não apenas uma repressão oficial das autoridades constituídas em relação ao curandeirismo
e a feitiçaria. Para além do aparato repressivo jurídico e institucional, havia também um
tipo de repressão espontânea, muitas vezes decorrentes de conflitos interpessoais, que
acarretava em duras e brutais represálias contra os potenciais feiticeiros. Nestes casos,
pessoas acusadas de praticar feitiçaria foram vítimas de agressões e desmandos e em
decorrência disso recorreram à justiça no intuito de punir os agressores e reparar seus
danos.
Os executores destas violências extremadas alegavam que os ofendidos teriam
jogado feitiço contra pessoas próximas, geralmente seus parentes. Pode-se interpretar que
os denunciados compreendiam suas atitudes brutais como justiçamentos ou castigos
aplicados aos supostos feiticeiros. Parecia haver um entendimento dos réus de que tais
espancamentos eram uma tentativa de se fazer justiça com as próprias mãos. Talvez estas
represálias significassem uma forma de repressão não oficial a potenciais práticas de
feitiçaria sabidamente reconhecidas como condenáveis pelas autoridades. O que tais
agressores talvez não devessem imaginar era a possibilidade de serem incriminados pela
Justiça por estes atos violentos.
Outro aspecto que se soma ao caráter “corretivo” mencionado acima e que mostrou-
se bastante presente no conjunto destes atos criminosos foi o uso de artifícios mágicos
visando a anulação do poder do suposto feitiço, da suposta “coisa feita”. Parece que a
partir desta constatação, fica manifestada tanto a crença na existência do feitiço, como
também a crença na possibilidade de destruir o seu poder através de contra-feitiços.
Tais crimes violentos parecem se dever incondicionalmente ao temor e crença no
feitiço. A crença no poder e sugestionamento do feitiço parecem manifestadas de forma
incontestável nestes delitos brutais. Tanto a convicção de que as vítimas realizaram o
147
feitiço, como a perspectiva de que existia a possibilidade de anular os malefícios que foram
feitos, demonstram o universo de crenças no qual os réus agressores estavam imersos.
Dentre os autos criminais investigados as decorrentes represálias a potenciais
feiticeiros são confirmadas em processos que envolvem agressão contra um homem de 80
anos, espancamento e ameaça de morte de uma mãe na presença do filho de sete anos,
açoitamento até a morte de duas senhoras acusadas de provocar enfermidade em uma
menina adoentada, surra dada por oito homens em ex-escravo acusado, assassinato de um
potencial feiticeiro africano em uma emboscada e espancamento seguido de perseguição a
um suposto feiticeiro. Estes casos que serão descritos minuciosamente apresentaram
algumas variações no grau de violência, mas mostraram-se em sua totalidade
indiscutivelmente brutais.
Como alguns detalhes dos processos contra curandeiros abordados em capítulo
anterior puderam relatar, os fechamentos de corpo, os rituais de cura mágicos, as
adivinhações, as benzeções, os feitiços de amor, enfim, as feitiçarias em geral, estavam
inseridos na sociedade mineira da segunda metade dos oitocentos. Entretanto o que
sucedeu precisamente nestes casos particulares que passo a expor foi uma suposta
ocorrência de feitiços maléficos, os chamados malefícios. A insinuação da existência
destes feitiços praticados contra pessoas queridas causava o temor de que seus efeitos
causassem transtornos mentais e físicos na vida das pessoas atingidas. Esta situação de
medo acarretava desastrosamente intimidações que exacerbavam da violência e que em
alguns casos resultaram até na morte dos ofendidos acusados de feitiçaria.
Este tipo de mentalidade que levava as pessoas a cometer crimes motivados pelo
medo do poder do feitiço encontra-se num mesmo universo de perspectiva e visão de
mundo que teria conduzido pessoas a “consultarem” feiticeiros no intuito de sanar mazelas
e doenças, que muitas vezes eram atribuídas a feitiços. que nos casos do capítulo
anterior, relativos à repressão criminal das atividades dos curandeiros, quase não houve
referências a acusações em torno dos praticantes dos feitiços, potenciais causadores das
enfermidades sofridas.
Conforme as descrições daqueles processos incriminadores de curandeiros a
ausência de delações em torno de possíveis nomes de pessoas que teriam praticado feitiço
148
contra a clientela consultada é predominante. Apenas no processo contra José Sapato
155
menção aos responsáveis por feitiçarias provocadoras de moléstias nas pessoas dos irmãos
Alexandre e Jerônimo Nogueira.
Nos autos deste processo uma testemunha alega que os enfermos, “tanto Jerônimo
quanto Alexandre acharam-se atacados de feitiço posto por três mulheres pardas deste
arraial, das quais tinham morrido duas e que se os dois pagassem a ele, José Sapato, este
faria remédios para desfazer feitiços daqueles doentes”. Nenhum detalhe foi apresentado
na documentação além desta ligeira alusão a estas “três mulheres”. Conforme foi dito,
apenas uma delas estaria viva que as outras duas faleceram. Mas nenhum outro
comentário foi tecido a respeito delas, de forma que se presume que tais informações não
tivessem levado os familiares dos enfermos a cometer represálias contra a única mulher
ainda viva acusada de praticar o malefício. também a possibilidade de que os próprios
doentes que recorreram aos recursos do curandeiro fossem descrentes a respeito da
proveniência do mal atribuída a feitiços, alegada por José Sapato. Desta forma, não teriam
motivações maiores para ameaçar ou agredir a aludida mulher tida como feiticeira.
Nos casos que passarei a apresentar um diferencial básico é justamente o fato dos
réus não medirem esforços para cometerem intimidações, ameaças, espancamentos e
assassinatos sobre ofendidos que foram delatados como “enfeitiçadores”. Portanto tais
processos criminais buscavam criminalizar agressores e assassinos de potenciais
“feiticeiros” que acusados de realizar feitiços contra outras pessoas, geralmente desafetos,
eram brutalmente espancados.
O processo-crime que exporei não tem um curandeiro como réu, mas sim como
vítima de ofensas físicas executadas pela família de Quintiliano Alves Ferreira.
156
O crime
data de fevereiro de 1875 e ocorreu na Fazenda da Cachoeira, no distrito de Carmo da
Mata, termo da Cidade de Oliveira.
A vítima é o preto Manoel, ex-escravo de Antônio Marques, acusado de feitiçaria
pelos agressores, em sua maioria filhos de Quintiliano Alves Ferreira. Manoel, depois da
surra que tomou, desaparecera por alguns dias, o que dificultou o andamento do processo,
155
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 412, cx.17.
Fonte eletrônica: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=17006
156
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 449, cx. 19.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=20156
149
pois se exigia a presença da vítima para fazer o auto do corpo de delito. Segundo
testemunha, o grupo de agressores
“tinha prendido o preto Manoel, lhe dado cachaça à força para beber, além de
amarrado sua cabeça no intuito de que ele contasse quem seria o feiticeiro que
receitara as raízes que Antônio Marques de Morais, seu ex-senhor, encomendara
para dar em feitiço à família de Quintiliano”
A testemunha acrescentara que “os filhos de Quintiliano foram até a casa do preto
Manoel a procura de uma imagem do crucificado e da mão de um anjinho, utilizados para a
feitiçaria, mas apesar de terem até cavado o quintal nada acharam”. Em outro depoimento a
testemunha diz que,
“viu os filhos de Quintiliano trazerem o preto Manoel amarrado de braços para
trás, contando eles que haviam quebrado ovos chocos e misturado com fumo.
Desde esta noite desaparecera o preto Manoel. Ouviu dizer que o preto Manoel
fora espancado pelos familiares de Quintiliano”.
As surras com ovo choco e fumo são recorrentes procedimentos de contra-feitiço.
Os agressores acreditavam que através das surras com estes elementos rituais poderiam
desfazer o feitiço.
O escravo Clemente, ao testemunhar, afirmou que viu os agressores darem
“relhadas no preto Manoel, além de atirarem ovos chocos sobre ele”. A testemunha
Ananias depõe que “negou pousada a um dos filhos de Quintiliano, demonstrando
recriminação pelas brutalidades ocorridas”. Uma testemunha relevante foi Jerônima Maria
de Jesus, companheira do preto Manoel, que disse que “foi ameaçada por um dos
agressores a lhe contar onde se encontrava o feitiço”. Segundo ela,
“com uma foice cavavam em várias partes tentando achar vestígios. Levaram no
dia seguinte, à sua casa um curador de feitiços chamado Jerônimo Côrrea. Este
pediu uma tigela, que não tinha, então foi lhe dado uma xícara e a adivinhação
foi feita nesta xícara. E conforme, a adivinhação foi constatado que Manoel é
que teria sido mesmo o feiticeiro” .
A adivinhação do curador de feitiços Jerônimo Côrrea através de uma xícara de
água também aparece no relato que Laura de Mello e Sousa faz de tempos mais remotos,
ao discutir o tema da feitiçaria:
“Muitas das adivinhações utilizavam a água como recurso ritual. Assim o fazia
um adivinhador anônimo de Recife por volta de 1728. Foi procurado por
150
Faustino de Abreu, homem pardo que morava na Freguesia da Vargem e que
acreditava estar Marciana de tal enfeitiçada. Consultado, o adivinhador mostrou
os autores do feitiço num alguidar cheio de água: apareceram nitidamente,
Faustino os reconheceu sem dificuldade.”
157
Retornando ao processo, depois de um tempo, o preto Manoel aparecera para
realizar o auto de corpo delito. O resultado considerou que não foram encontradas ofensas
físicas na vítima, o que acarretou que o processo fosse julgado improcedente. A
Promotoria, como se não bastasse, ainda questionou a miserabilidade da vítima.
Através deste processo podemos concluir que a represália empreendida pela
família de Quintiliano foi voltada para o provável feiticeiro e não para a pessoa que
encomendou o feitiço, que foi o ex-senhor do preto Manoel, Antônio Marques de Morais.
As surras dadas com ovo choco e fumo no preto Manoel pelos filhos de
Quintiliano, assim como a preocupação em achar vestígios do feitiço e o próprio recurso
mágico da adivinhação do feiticeiro através de uma xícara de água comprovam claramente
o temor e a crença no poder do feitiço por parte dos agressores, réus no processo. uma
inquestionável credulidade e temor do poder dos feitiços maléficos, os chamados
malefícios.
Este caso do preto Manoel, assim como outros processos investigados semelhantes,
parece atestar a afirmativa de Nina Rodrigues de que o móvel inicial da repressão e da
arbitrariedade “é o estúpido terror do feitiço
158
”.
Outro processo criminal que trata de brutal espancamento contra uma potencial
feiticeira
159
tem como responsáveis pelas agressões físicas os portugueses Manuel de tal e
Zeferino. A vítima foi uma mulher chamada Ana Luíza, que foi surrada na frente do filho
de 7 anos. O processo foi instaurado em fevereiro de 1886 em São João del-Rei. A queixa
foi movida por José Bento Alves que “é pobre e queixa-se de que sua mulher fora
espancada por Manuel de tal e Zeferino Português e por ser a mulher do ofendido pessoa
miserável e não convindo que semelhante fato fique sem punição” resolveu procurar a
Justiça. Foi apresentado no processo um atestado de miserabilidade da família da vítima,
condição indispensável para que o processo corresse à custa da justiça, sem necessidade
dos suplicantes arcarem com os custos.
157
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1986. p. 163.
158
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. p. 247.
159
Processo criminal do Arquivo IPHAN/ET, registro nº 1106, cx. 51-06.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2169&op=1
151
Num interrogatório com a ofendida, a vítima Ana Luíza respondeu “que Zeferino
estava armado de uma garrucha e Manuel de um cacete, dizendo Manuel que a castigara
por mando de sua própria mulher que lhe recomendara que assim procedesse por ter ela
[interrogada] feito feitiços a ela [mulher de Manuel]”. Respondeu ainda que “não procurou
as autoridades porque os seus ofensores protestaram esperá-la no caminho se ela viesse dar
parte”. Ana Luiza acrescentara que “em companhia de seu filho menor fora cercada por
seus ofensores que a espancaram e nesse acto Zeferino lhe encostou uma garrucha aos
peitos e seu filho prorrompeu em gritos o que motivou seus ofensores a abandonarem”.
As várias testemunhas que presenciaram o acontecido confirmam os fatos
esclarecidos pela ofendida Ana Luiza. A primeira testemunha do processo, Joaquim
Antônio dos Santos, dono da casa aonde teria acontecido o crime, dissera que um dos
portugueses, Zeferino, “tinha relações com a vítima”. É importante salientar que os autos
do processo não acrescentam maiores detalhes acerca desta citada relação entre a vítima e
o agressor Zeferino. Mas tudo leva a crer que os dois realmente tinham um caso e que um
dos agressores era amante da vítima. Mas não nada neste fato que ajude a elucidar a
natureza da possível feitiçaria pela qual ela fora espancada.
O dono da casa onde ocorrera a agressão asseverou ainda que depois dos
portugueses terem conduzido Ana Luíza pra fora de sua casa, “Manuel português ordenou
a ele testemunha que fechasse a sua porta e que não contasse a ninguém o que tinha ouvido
e o que ia ainda acontecer, pois que ela, Ana Luíza tinha feito à sua mulher uma coisa e
que havia de desfazer”. Acrescentara a testemunha que,
“[...] seguiu o mesmo Manuel em direção ao lugar para onde Zeferino conduzira
Ana Luíza que era acompanhada de um menino de menor idade, minutos depois
ouviu ele [testemunha] o mesmo pedir socorro pois que iam matar sua mãe,
então ele [testemunha] dirigiu-se ao interior de sua casa para a porta da rua onde
encontrou Ana Luíza que vinha perseguida por Zeferino e Manuel que trazia
dois cacetes e ao chegar a porta da casa, Zeferino impôs a Manuel que não
penetrasse no interior da casa e retiraram-se dizendo nesse ato Manuel a ele
[testemunha] que dissesse a Ana Luiza, que se ela não desfizesse o que havia
feito a sua mulher caro lhe custaria pois, que o que lhe havia acontecido era
apenas um princípio.”
Fica patente nestas advertências dos acusados uma recorrente preocupação com a
necessidade de anular o feitiço, de “desfazer o que havia sido feito”, de acordo com a
palavra da testemunha. Portanto, existia mesmo uma convicção absoluta dos réus de que a
ofendida Ana Luíza teria praticado feitiçaria contra a mulher do português Manoel. E por
152
causa desta credulidade na existência do feitiço e principalmente pelo temor de seu poder,
cometeram tais atrocidades e ainda prometeram ir além, caso não houvesse o desatamento
de tão temido feitiço.
A testemunha disse ainda que Ana Luíza logo que “fora espancada, aterrada de
medo procurou encobrir, porém depois se queixou do que lhe acontecera e disse a Carlos
Fonseca que se ela aparecesse morta ou muito ferida que eram responsáveis pelo atentado
Zeferino e Manuel português”. A segunda testemunha do processo disse que Ana Luíza
“fora para casa de Carlos Fonseca onde se conservou doente por mais de quinze dias e dali
veio remetida para o hospital conduzida em um carro por não poder caminhar de pé, e que
lhe consta que até hoje está em tratamento no hospital”.
O menino Custódio Alves, de sete anos de idade, filho da vítima e testemunha
informante do processo, disse que “estava na casa de Joaquim, quando Zeferino chamou
sua mãe para fora da casa , no que ele testemunha acompanhou-a”. Disse ainda que,
“Logo que chegou um pouco distante Zeferino começou a dar cacetadas em sua
mãe e chegando Manoel mais atrás também deu-lhe muitas cacetadas, e ele
vendo aquilo gritou por seu Joaquim e eles largaram a mãe dele. Disse mais que
eles disseram a sua mãe que aquilo era para amostra, mas se eles voltarem era
para matá-la.”
A preocupação dos agressores em desfazer o que Ana Luiza teria feito, atesta
claramente que eles temiam o poder do feitiço. As ameaças dos ofensores são repetitivas e
insistiam que se Ana Luíza não retirasse os feitiços, as represálias seriam ainda maiores,
inclusive atentando contra a própria vida da vítima. Portanto, os denunciados não
descartaram as ameaças de morte como um recurso propiciador da almejada anulação do
malefício. Quanto ao tipo de malefício potencialmente feito pela vítima Ana Luíza, o
processo não nos dá sinais, nem detalhes, que possam assegurar que tipo de dano a
atribuída feiticeira quereria causar à mulher do português Manoel, um dos acusados da
agressão.
Os réus Manuel e Zeferino foram pronunciados como incursos no artigo 201 do
código criminal, como autores das ofensas físicas feitas na pessoa de Ana Luíza, mulher de
José Bento Alves. Foi dada uma ordem de prisão aos réus e um futuro julgamento foi
marcado. A partir daí o processo é interrompido. Não foi possível saber se houve realmente
punição para os acusados, pois os autos não apresentaram esta relevante parte do processo.
O processo incompleto durou de 17 de fevereiro de 1886 a 25 de maio de 1886.
153
Outro processo-crime que analisei foi movido contra Antônio Fernandes de Sousa
por agressões em José da Costa, crioulo forro de 80 anos de idade
160
. O processo foi
iniciado em março de 1851 em São João del-Rei. O espancamento se deu em função da
crença de que o ofendido teria praticado feitiçarias.
Através da simples apresentação se pode perceber que não se trata, portanto, de
um delito comum, já que as ofensas físicas foram praticadas sobre um ancião com 80 anos
de idade. No exame de corpo de delito, foi verificado que “embora não apresente perigo de
vida, porém é provável que o ofendido fique aleijado em razão da idade avançada”. Mais
uma vez um ato de represália contra um potencial feiticeiro não mediu esforços para usar
da força de forma brutal. Diante disto, o ofendido recorreu à Justiça e declarou que,
“(...) na noite anterior ao auto de corpo de delito foi emboscado e tocaiado no
beco do Capitão do mato e ahi lhe saíram três ou quatro pessoas das quais
conheceu a Antônio Fernandes, os quais com paus principiaram a dar-lhe
pancadas, até que ele caiu e perdendo os sentidos nada mais vira”. “[...] que por
ser pobre, e não ganhar senão para comer, e que não protesta usar do direito que
lhe compete contra os agressores e que deixava à Justiça para tomar
conhecimento deste delito”.
Foi emitida uma ordem de prisão contra Antônio Fernandes por se achar indigitado
no crime de pancadas e ferimentos com sintomas de aleijamento, crime este inafiançável.
O réu se encontrava foragido e foram infrutíferos os mandados de busca.
Sobre os motivos que levaram o acusado a cometer o crime, a primeira testemunha
do processo “ouviu dizer que José da Costa sendo tido por feiticeiro, e indo rezar sobre o
cadáver de José Joaquim que se achava depositado em sua casa, retirando-se ele José da
Costa da casa do defunto nessa ocasião então o Antônio Fernandes lhe dera as pancadas.”
Respondendo ao interrogatório e se sabia de rixas entre os envolvidos, a testemunha
respondeu que,
“não sabia se tinham rixa antiga, porém que servindo de inspetor de quarteirão o
dito finado José Joaquim e havendo por ocasião de jogo desordem na vizinhança
acudira aquele finado inspetor a fim de prender os desordeiros hum dos quais era
aquele José da Costa que podendo evadir-se no retirar dissera que aquele
inspetor lhe havia de pagar, e como a morte deste pareceu prematura e
extraordinária aquele Antônio Fernandes atribuindo aquela morte a feitiço aquele
Fernandes lhe fora com fumo quebrar o encanto”.
160
Processo criminal do Arquivo do IPHAN/ET, registro nº 172, cx. 08-06.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2328&op=1
154
De acordo com os depoimentos o que motivou Antônio Fernandes a cometer as
agressões foi o fato de José da Costa ter ameaçado o inspetor de quarteirão José Joaquim,
quando este procurava prendê-lo por causa de confusões ocorridas por ocasião de jogo. Tal
incidente se deu pouco antes do inspetor ter morrido, o que acarretou a hipótese de que
José da Costa teria lhe jogado feitiço. A mesma testemunha acrescentou ainda que “ouviu
sussurros de pancadas que davam como em um couro e passado pouco tempo ouviu e
conheceu a fala do queixoso José da Costa que dizia ‘quem me mata é Antônio Fernandes
e que a Senhora mãe dos homens bem o estava vendo’". Afirmara a testemunha que
“Maria de tal, sua vizinha, lhe dissera que aquelas pancadas foram dadas no criolo José da
Costa por Antônio Fernandes, que ouvira dizer que foram as mesmas pancadas dadas com
fumo”.
Como foi dito, era utilizado como procedimento freqüente contra feiticeiros dar-
lhes surras com fumo e ovos chocos. Tais surras tinham um valor ritual de contra-feitiço
buscando impedir a eficácia do malefício, embora neste caso a virtual vítima dos feitiços
que teriam sido atribuídos a José da Costa já houvesse morrido. Ou seja, de nada adiantaria
anular um feitiço que teria suas intenções maléficas realizadas. A morte tinha se
consumado e sequer havia como “quebrar o encanto”, termo inclusive utilizado pela
testemunha. Descartando a possibilidade de o acusado, tendo julgado a morte do inspetor
“prematura e extraordinária”, esperar uma espécie de ressurreição do finado depois dos
procedimentos rituais de contra-feitiço, a surra com fumo teria apenas um valor simbólico
e representativo, no sentido de demonstrar e sinalizar que tal represália se deu por motivo
de feitiçaria. Desta forma, a crença de que José da Costa era o culpado pela morte do
inspetor de quarteirão justificaria o espancamento do idoso octogenário.
A segunda testemunha, companheiro da vítima no momento do incidente, disse que
ao se retirar do velório do finado inspetor de quarteirão José Joaquim,
“[...] viu e presenciou vir do lado um vulto que se dirigiu a eles e chegando perto
conheceu perfeitamente ser Antônio Fernandes, o carpinteiro; o qual metendo as
mãos ao peito dele testemunha o empurrara para trás, dizendo com licença, e
logo puxando por um porrete começou a dar pancadas no queixoso José da Costa
e gritando este lhe respondera o dito Antônio Fernandes – anda feiticeiro assim é
que se mata os outros e vendo ele testemunha que as pancadas eram muitas e
ele testemunha não lhe podia valer retirou-se para sua casa que é na prainha, e
até chegar em sua mesma casa ouvira os gritos tanto do que apanhava, como do
que dava.”
155
As palavras do companheiro da vítima são enfáticas no sentido de dizer que
Antônio ameaçava matar José da Costa, mas não através de feitiçaria e sim através de surra
mesmo, precisamente quando afirmou “anda feiticeiro, é assim que se mata os outros”. O
agressor parecia mesmo convicto de que José da Costa teria causado a morte de José
Joaquim através de feitiçaria.
A testemunha acrescentara que “as pancadas foram dadas com porrete: pois que
apesar de estar à noite escura o lugar do acontecimento estava claro pela luz do lampião da
Senhora mãe dos homens que estava acesa”. Neste trecho nota-se um forte apelo religioso
para explicar como a testemunha conseguiu distinguir o instrumento empregado no crime
em meio à escuridão. Não é novidade neste processo a referência a Nossa Senhora, como
foi citado acima pela primeira testemunha do processo, José da Costa no momento da
surra, evoca a “Senhora Mãe dos homens” como testemunha da brutalidade sofrida.
A devoção aos santos e o apego ao sentimento religioso recorrente no processo
parece demonstrar que a sociedade da época cultivava um imaginário repleto de referências
às imagens sagradas e míticas. Tal mentalidade religiosa estava arraigada no cotidiano
destas pessoas. Talvez a divulgação deste inflamado sentimento católico no processo
poderia ter uma boa acolhida diante das autoridades, principalmente em se tratando da
demonstração de uma postura ordeira e cumpridora da cristã. Mas também não
surpreenderia nem um pouco se tais reações dos ofendidos tenham se dado natural e
espontaneamente, sem deliberados fins de sensibilizar as autoridades.
A quinta testemunha do processo disse que “em relação de amizade de vizinhança
que tem com a mulher de Antônio Fernandes via o mesmo Antônio oculto em casa e a dita
sua mulher disse a ele testemunha que ele estava oculto em razão de lhe imputarem o crime
das pancadas que deram em José da Costa”. Chama a atenção em várias circunstâncias do
processo que o réu Antônio Fernandes demonstra grande resistência à sua prisão.
Inicialmente foragido, o denunciado, no decorrer do processo, demonstra ter uma atitude
relutante que resulta numa tentativa de extorsão, conforme veremos.
Percebe-se em certa altura do processo a ênfase no estado deplorável em que a
vítima ficou, a ponto dos testemunhos ficarem confusos sobre a própria sobrevivência de
José da Costa. O sexto depoente dos autos relatara que,
“Na noite de Domingo do entrudo do ano passado recolheu-se para o interior de
sua casa num canto do beco do Capitão do mato mas no dia seguinte ela
156
testemunha tendo ido à chácara do Padre Faustino buscar água, ouvia pessoas
dizer que José da Costa tinha apanhado muito, e que em conseqüência destas
pancadas, ela testemunha viu que se conduzia uma rede com gente que perguntara
se o que ia na rede era defunto, e que lhe disseram que era José da Costa que se ia
curar na Misericórdia em conseqüência das pancadas que lhe deram na véspera”.
Houve o pronunciamento do réu Antônio Fernandes como incurso no grau máximo
das penas do artigo 205 do código criminal. Foi realizado na pessoa do ofendido José da
Costa um auto de exame de sanidade que constatou haver na vítima “os referidos
ferimentos e contusões, porém não encontrando nem aleijão nem deformidade. E que o
paciente podia mui bem restabelecer-se em menos de trinta dias”. Esta apreciação oficial
do estado do ofendido gera uma perplexidade diante dos relatos das testemunhas que
acusam uma condição bem mais grave e problemática de José da Costa. A partir de certo
momento parece haver uma reviravolta no processo, quando a vítima passa a ter
compaixão da situação por que passa o agressor e sua família. O ofendido compadecido de
saber que o réu, a quem sustentava apreço pelo seu ofício de carpinteiro, estava cinco
meses preso, e condoído da miséria em que se achavam sua mulher Eva Pereira e também
sua mãe Thereza do Espírito Santo, e, estando o ofendido recuperado e restabelecido
para exercer seu serviço de carregador de quartos de carne de vaca para o açougue, resolve
assinar um termo de perdão.
Apesar do perdão da vítima, houve julgamento e o tribunal do júri respondeu
unanimemente que o réu Antônio Fernandes não praticou os ferimentos e contusões
constantes do auto de corpo de delito. O réu foi absolvido do crime por que foi acusado,
parecendo ter havido, na verdade, um consentimento do próprio ofendido com relação à
decisão. Cogita-se até uma possibilidade de acordo extrajudicial por parte dos envolvidos.
De qualquer forma parece que a vítima se deu por satisfeita pelo tempo de cinco meses que
o réu ficara preso, não sentindo a necessidade que toda a pena fosse cumprida.
Em sua fase final um fato extraordinário passa a tomar a atenção das autoridades
judiciais responsáveis pela condução do processo. Ocorreu um ato de extorsão que gerou a
reabertura da denúncia e um prolongamento e arrastamento do processo. Segundo as
palavras da Promotoria,
Diz o promotor público da Comarca que chegou ao seu conhecimento que o réu
Antônio Fernandes de Sousa, pronunciado pelo crime de ferimentos graves,
perpetrado na pessoa de José da Costa, ganhou por dinheiro a vontade do escrivão
157
Aureliano Marcolino de Azeredo Coutinho e conseguiu que este desse sumiço aos
autos em que são partes, ele como réu e a justiça como autora: e porque a Justiça
deve estar colocada acima da grosseira estratégia de espertalhões que por todos os
modos procuram escapar a julgamento público, e além disso não tirem eles
proveito das suas iníquas e escandalosas manobras, que aliás podem ser
perniciosamente seguidas ou imitadas por outros, convém que o processo seja de
novo instaurado, e organizado com todas as solenidades legais, e como por isso se
faz necessário que proceda a denúncia.
Como podemos verificar nos relatos dos autos o comportamento do denunciado
desde o início do processo mostrou-se resistente à justiça, ficando um tempo foragido, se
escondendo nos fundos de sua casa, o que reforça a possibilidade de que tenha maquinado
tal suborno juntamente com o escrivão. Tal fato demonstra um caso de extorsão nas
estruturas do aparelho judiciário. O término do processo se deu em janeiro de 1855 e não
houve possibilidade de saber mais sobre sua continuidade.
Outro processo-crime que foi foco de minha análise trata do assassinato do dito
curandeiro Domingos, preto, africano e forro, ocorrido em março de 1847 num lugar
denominado Serra dos Crioulos, estrada que segue para Campanha
161
. O ofendido foi
taxado de feiticeiro e desordeiro no decorrer do processo, além de ter sido preso pela
prática de feitiçaria. Os acusados pela emboscada fatal sofrida pela vítima foram João
Francisco de Castro e Domiciano Gomes. Este processo crime representa um processo
limítrofe entre aqueles que abrangem a repressão aos feiticeiros visando incriminar suas
práticas e aqueles outros destinados a averiguar os crimes pelos quais os feiticeiros são
vítimas. O africano Domingos havia sido preso por práticas de feitiçaria e um tempo
depois foi emboscado mortalmente. O processo refere-se a este último delito, mas ocorre
que pelo fato dos dois crimes estarem implicados, detalhes concernentes a repressão
imposta ao feiticeiro foram repercutidos no decorrer do processo.
Nos depoimentos das testemunhas dos autos relatos que realmente sinalizam os
denunciados como autores do atentado contra Domingos. A sexta testemunha do processo
disse que sua mulher Bárbara Maria da Silva lhe contara que “Francisca de Paula lhe tinha
dito que fora o assassinador João Francisco de Castro; e que tinha observado todos os
movimentos do agressor e agredido; disse mais que pelos gemidos da vítima que talvez
levasse duas horas a morrer”.
161
Processo criminal do Arquivo IPHAN-ET, registro nº 139, cx. 05-04.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2902&op=1
158
A primeira testemunha “ouvira de Antônio de Souza Bichinho que este escutara
umas falas altas que pareciam ser de João Francisco de Castro e seu genro Domiciano
Gomes, e que lhe parecia ter havido alguma desordem, pois que tinha ouvido disparar dois
tiros”. Acrescentara ainda que,
“sabe por ouvir dizer que o assassinado e o suposto assassino viviam intrigados,
assim como que o assassinado prometera matar João Francisco de Castro, além
de, no mesmo dia da morte, o dito preto entrara atrevidamente armado em casa
de Inácia para desfeitear a uma crioula por nome Justina”.
A segunda testemunha, Inácia Maria de Jesus, disse que “no dia 24 estando ela em
sua casa às duas horas da tarde apareceu o preto que se intitulava Major José Mina Saco
Roto, armado com um jogo de pistolas e uma faca e lhe disse que se preparasse para
morrer”. Ainda disse que,
“Saiu de sua casa e foi dizer a João Francisco de Castro que fosse dar parte ao
subdelegado para o mandar prender, por ser um perturbador da ordem pública e
sedutor de escravos, fazendo ajuntamentos noturnos dos mesmos, a pretexto de
malefícios, dando raízes supersticiosas, fechando corpos com feitiçaria, por cujo
motivo tinha sido preso, por denúncia de João Francisco de Castro, a quem
nessa mesma ocasião prometera matar ”.
Como podemos perceber através dos relatos, além das acusações de feitiçaria contra
Domingos Rebolo parece que o ofendido estaria envolvido em um bocado de intrigas nas
circunstâncias de sua morte. No caso da referida invasão da casa de Inácia, por exemplo,
Domingos é acusado de tentar desfeitear uma crioula de nome Justina. Em lugar algum do
processo é mencionado o tipo de ultraje que ele teria causado à referida Justina. Nem fica
preciso nos autos se tal tipo de ofensa teria de fato se consumado ou se não passou de
intenção. De qualquer forma, tal desavença foi comentada superficialmente nos
depoimentos do processo. Não detalhes efetivos que poderiam revelar alguma razão ou
motivação para tal contenda.
A partir das palavras da testemunha Inácia fica esclarecido também que o ofendido
teria sido preso por uma série de atos que se acumulam, mas que se relacionam de uma
forma direta à prática de feitiçaria. A série de queixas recaídas sobre Domingos como
perturbação da ordem, sedução de escravos, ajuntamentos noturnos com o propósito de se
praticar malefícios, receitas de raízes ditas “supersticiosas”, fechamento de corpos, todas
159
estas práticas remetem de alguma forma aos rituais de feitiçaria. Toda esta minuciosa
descrição de suas atividades, inclusive recriminadas pela depoente, contribui para
configurar a vítima como um feiticeiro, não devendo restar dúvidas quanto a isso. que
salientar que o principal acusado do homicídio executado contra Domingos foi exatamente
quem o denunciou na oportunidade de sua prisão, João Francisco de Castro. Ainda
segundo a testemunha Inácia, Domingos na época de sua prisão ameaçara de morte João
Francisco de Castro por tê-lo denunciado. Como havia comentado outro testemunho
inicialmente havia uma indisposição entre o réu e o ofendido. Domingos também teria
ameaçado a vida da própria Inácia armado com um jogo de pistolas e uma faca. As razões
deste comportamento destemperado e violento de Domingos frente à Inácia e Justina não
são descritas no processo. Que tipo de relações eles poderiam ter? A feitiçaria teria alguma
implicação nestas discórdias? Enfim, nestes dois casos o processo nos deixa uma lacuna.
Entretanto, a narrativa de tais desavenças naturalmente compromete ainda mais a imagem
da vítima, já estigmatizada como maligno feiticeiro.
Retornando aos testemunhos, a terceira testemunha relatara que “soube que o
ofendido era um preto desconhecido que pouco tinha aparecido e que se intitulava
cirurgião e fechador de corpos, que ora dizia chamar-se José da Silva, ora Joaquim Mina”.
No decorrer dos autos o ofendido foi chamado com vários nomes, inclusive a sua própria
origem étnica era confundida através destes nomes. Consta nos documentos nomes como
Domingos rebolo, Major José Mina saco roto, José da Silva e Joaquim Mina. É possível
que tal artifício de criar vários nomes para sua própria pessoa almejasse confundir e
ludibriar seus desafetos e as autoridades que não deveriam ver com bons olhos suas
possíveis atividades de feitiçaria.
Os réus foram pronunciados como incursos no artigo 192 do código criminal e seus
nomes lançados no rol dos culpados. Os acusados entraram com um recurso encaminhado
pelo advogado e procurador Florêncio Antônio da Fonseca. O advogado dos acusados
entende que a validade do processo é nula e que no depoimento das testemunhas nada se
presta como prova absoluta da culpa dos réus. Na defesa do habilidoso advogado há
argumentos de que o processo “desconhece o valor das provas e o preço das formalidades
legais”. Segundo ele, o processo não apresenta “testemunhas de vista e na falta delas, não
apresenta os indícios ou suspeitas veementes” de que exige a lei. O defensor também
desqualificou a forma como foi executado o auto de corpo de delito.
160
A despeito das convictas afirmações dos depoentes do processo que enfatizaram
que os acusados João Francisco de Castro e seu genro Domiciano Gomes eram os
assassinos do africano Domingos, as autoridades sucumbiram diante da extraordinária
força retórica da defesa, que desprezou a validade de testemunhos que não presenciaram
efetivamente o homicídio. Apesar de uma enfática defesa do pronunciamento dos réus pela
promotoria pública, a pronúncia foi julgada como improcedente por falta de provas. O juiz
da comarca exigiu um encaminhamento de um novo processo para que “não fiquem
impunes crimes desta ordem, com tanto escândalo público e detrimento da sociedade”.
A estratégia da defesa se baseou em questões técnicas e formais que buscaram
invalidar a forma como foi conduzido o processo. Os réus foram absolvidos em função dos
casuísmos jurídicos que não teriam sido fielmente obedecidos. Mas o próprio caráter e
comportamento conflituoso do ofendido, tão propalado no decorrer do processo, deve
também ter influenciado na decisão do Juiz. Somado a isso o fato de se tratar de um
provável feiticeiro, com todas as adjetivações negativas geralmente associadas a esta
atividade. As ameaças de morte proferidas por Domingos e as confusões em que ele teria
se metido talvez não fossem pretextos suficientes para livrar os réus totalmente da
condenação, mas certamente deveriam redundar em atenuantes para suas penas. De
qualquer forma as argumentações da defesa se ampararam mesmo nas alegações da
insuficiência das provas. Mesmo diante de uma exaustiva batalha judicial entre a
Promotoria e o advogado procurador dos réus, os acusados ficaram impunes. O processo
durou de marco de 1847 a outubro de 1852 e não foi possível saber se houve mesmo a
abertura de um novo processo como teria exigido o pomposo discurso final do juiz.
Outro processo de agressão física motivado por pretensa feitiçaria data de sete de
fevereiro de 1866 e ocorreu no arraial de Carmo da Mata.
162
O potencial feiticeiro trata-se
de Silvério Bernardo da Costa, que teria jogado feitiço contra a esposa de José Felipe
Ribeiro, que em decorrência disso passava por constantes crises de histeria.
De acordo com o que comprovam o auto de corpo de delito e os depoimentos
constantes nos autos o ofendido ficou bastante machucado e lesionado pela surra. Os
ferimentos ocasionados por um pau acertaram-lhe inclusive a cabeça, causando uma ferida
entre a orelha e o alto da cabeça. Os ferimentos deveriam inclusive comprometer o
trabalho de Silvério Bernardo da Costa, dada a gravidade de sua condição. De acordo com
162
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 333, cx. 14.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=11810
161
o que narra a denúncia da Promotoria, a vítima foi mesmo surpreendida pelo alterado
agressor José Felipe Ribeiro que passou a xingar o ofendido e logo depois desferir golpes
contra sua pessoa, conforme relatara os autos,
No dia quatro de setembro do ano findo achando-se o queixoso neste arraial
manso e pacífico, e indo a casa de João Manoel Ribeiro com quem tinha negócios,
e tendo assentado a porta da casa do mesmo enquanto esperava, por esta ocasião,
dirigiu-se ao queixoso José Felipe Ribeiro e principiou por chamar o queixoso de
feiticeiro, e que havia enfeitiçado sua mulher, pretexto este unicamente para dar
começo aos seus maus intentos, trazendo de prevenção um pau com o que deu
uma bordoada que lhe quebrou na cabeça e continuou a dar, donde resultou mais
ofensas como se do auto de corpo de delito, sem que houvesse da parte do
queixoso a menor provocação, por onde se bem claro, que havia no acusado
intenção de praticar o delito.
O marido da mulher dita enfeitiçada, José Felipe Ribeiro, contou com a ajuda de
seu sogro Antônio Bernardo de Jesus, que aparecera armado com um pau passado no fumo
para também dar no ofendido Silvério. Segundo a primeira testemunha do processo,
Francisco José de Assumpção, “o espancado não provocou nem fez insulto algum, mas sim
José Felipe começou a dar-lhe bordoadas”. Acrescentou o depoente que os agressores
conduziram “o ofendido aos empuxos até a porta da casa do dito Antônio Bernardo onde se
achava a mulher do referido José Felipe”. Quanto à utilização de um pau passado no fumo
para cometer a surra podemos interpretar como uma tentativa de se anular o dito feitiço,
fato recorrente inclusive em outros casos de agressão contra potenciais feiticeiros. Já o
arrastamento forçado da vítima até as proximidades de onde se encontrava a mulher
histérica dita enfeitiçada talvez tenha ocorrido no sentido de se obrigar o acusado do feitiço
a desfazer o que teria feito na presença daquela que seria o alvo da feitiçaria.
Alguns depoimentos de testemunhas confirmam o acentuado estado nervoso
apresentado pela mulher de José Felipe e não no momento do espancamento. Mas
poucos detalhes relatados são capazes de esclarecer as reações que a mulher tinha quando
atacada de histerismo. Faltam também declarações das testemunhas no sentido de se
explicar de alguma forma as motivações de tal histerismo. A alusão à feitiçaria, por
exemplo, parte dos agressores. As testemunhas sequer mencionam algo deste gênero
como causa das alterações nervosas da referida mulher. A quarta testemunha do processo,
por exemplo, Silvéria Maria de Jesus disse que “viu Antônio Pereira Dutra andar pelas ruas
em procura de remédios para a mulher de José Felipe que na ocasião se achava atacada de
histerismo e que por vezes ela testemunha viu-a sofrer por morar muito vizinha”. Já
162
Antônio Pereira Dutra encarregara-se de providenciar um calmante para seu estado de
descontrole. Respondeu a testemunha “que antes de haver as pancadas foi ele testemunha
procurar azeite doce, para o que lhe deram uma xícara, a fim de se fazer remédio para a
mulher de José Felipe.” De acordo com tais depoimentos parece realmente que os ataques
nervosos da mulher dita enfeitiçada causaram tamanho estardalhaço que causou uma
preocupação e movimentação da vizinhança, inclusive com algumas pessoas aptas a acudir
em seu socorro.
As testemunhas foram unânimes em declarar que houve mesmo as agressões no
potencial feiticeiro. Acrescentaram que o destempero e descontrole partiram unicamente
do agressor. No entanto, é curiosa a constatação de que não fica especificado, nem
detalhado que tipo de envolvimento ou proximidade teriam as pessoas em conflito. Não
ficou caracterizado pelos relatos das testemunhas uma possível inimizade ou
desentendimento entre elas. Não se cogitou a motivação ou interesse de um plausível
enfeitiçamento. A causa e a natureza do histerismo da mulher de José Felipe Ribeiro não
ficam esclarecidas satisfatoriamente. Teria a vítima das agressões, o acusado de feitiçaria
Silvério Bernardo, algum tipo de relação ou envolvimento com ela? Os envolvidos em tal
incidente seriam desafetos? A despeito das especulações e suposições que podemos
empreender, o que fica manifesto é que uma violenta ofensa física foi intentada contra uma
pessoa acusada de praticar feitiçaria contra a esposa de um dos agressores e estes
agressores não mediram esforços para cometer os espancamentos publicamente.
Com relação a uma possível avaliação do caráter de um dos agressores, o pai da
mulher dita enfeitiçada, Antônio Bernardo de Jesus, a testemunha José Pereira dos Santos,
afirmou que “consta ser provocador assaz intrigante”. O significativo neste caso é a forma
natural e simples com que o estado de pânico e tensão mostrado pela aflita mulher foi
associado com a prática de feitiçaria. E a disposição de surrar o potencial feiticeiro com
fumo parece confirmar que os agressores não acreditavam no enfeitiçamento como
também aplicaram artifícios típicos do tradicional universo da feitiçaria na intenção de
anular o seu poder.
Os relatos dos autos não precisam se a vítima acusada de feitiçaria era dada a
realizar feitiços ou coisas afins. Todas as testemunhas dos autos contam sobre o incidente
sem apontar um possível costume do ofendido de praticar feitiçarias. Há também
possibilidade de que o agravamento de conflitos interpessoais entre os envolvidos possa ter
acarretado uma insustentável animosidade a ponto de provocar tais acusações e decorrentes
163
agressões. Considerada esta hipótese a força da credulidade no feitiço não ficaria
atenuada? Apenas se interpretarmos o espancamento a pretexto de vingança por feitiçaria
apenas como um calculado simulacro maquinado pelos agressores a fim de se safar de
possíveis condenações futuras. Embora esta última conjectura pareça mais improvável não
podemos deixar de considerá-la. Na denúncia da Promotoria, por exemplo, fica destacado
que o réu “[...] dirigiu-se ao queixoso e principiou por chamar o queixoso de feiticeiro, e
que havia enfeitiçado sua mulher, pretexto este unicamente para dar começo aos seus maus
intentos [...].” A partir deste ponto de vista da Promotoria, se os réus entenderam que
poderiam xingar e espancar o ofendido em razão das ditas feitiçarias estavam
redondamente enganados. Neste caso parece ter havido um empenho efetivo da Justiça
buscando recriminar a agressão e condenar seus responsáveis. Como podemos perceber em
outros crimes semelhantes abordados, a busca pela punição em atentados contra feiticeiros
parecia ser em geral bem menos efetiva do que neste presente processo. Houve
pronunciamento dos réus como incursos no artigo 201 do código criminal do Império,
correspondente à ofensa física. Os nomes dos réus foram lançados no rol dos culpados.
Depois de realizados os autos de prisão e o auto de qualificação dos réus, foi assinado um
termo de desistência do processo “como o suplicante se compusesse com o réu preso”
havendo, deste modo, uma desistência da acusação. Enfim, após a prisão do principal réu
José Felipe de Araújo, há a assinatura de um termo de desistência motivado por um
apaziguamento entre o réu e a vítima. A natureza deste acordo ou reaproximação não fica
esclarecida. O fim do processo data de 2 de outubro de 1866.
O próximo processo a ser comentado trata do assassinato perpetrado por João
Curador e Manoel Fernandes de Lima de duas senhoras acusadas de feitiçaria: Teresa e
Francelina. Tal fato ocorreu em princípios do mês de março de 1896 em São Francisco de
Paula, distrito de Oliveira.
163
Como veremos, tal crime se deu na presença de várias
pessoas que de alguma forma se envolveram na ação, acabando por serem indiciadas como
cúmplices.
De acordo com os relatos dos autos, a partir do desaparecimento das duas mulheres,
o subdelegado de Polícia, Saturnino de Paula Siqueira, descobriu que elas foram
assassinadas em casa de Manoel Fernandes de Lima, por terem sido acusadas de jogar
feitiço contra a filha adoentada do próprio Manoel, caso comentado no capítulo anterior.
163
Processo Criminal do Acervo do Fórum de Oliveira. Registro nº 798 , Cx. 37.
Fonte : http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=47429
164
Estando a referida filha de Manoel doente há tempos e desenganada pelos médicos,
apareceu-lhe João Curador, alegando que ela estava enfeitiçada. Para curá-la do encanto
exigiu a presença das duas velhas Tereza e Francelina, ao que os filhos de Manoel trataram
de buscá-las. Ainda segundo o relatado na denúncia, “aquele [João Curador] fez sentir-lhes
que eram elas que haviam enfeitiçado a filha de Lima e recriminando-as, começou de dar
nas duas infelizes, cacetadas, depois pediu que lhe trouxessem ovos chocos”.
As pessoas que presenciaram o atentado asseguraram que apenas consentiram no
crime por que foram intimidadas pelo curador se isentando de uma participação efetiva no
homicídio. Segundo o subdelegado de polícia, de acordo com o que lhe contaram Manoel e
seus filhos,
João Curador começou a dar nelas relhadas e cacetadas com o cabo do relho e que
ele [Manoel] disse ao curador que não queria que ele batesse nelas e que ele [João
curador] tirou da algibeira um revólver e disse em voz alta que tinha seis balas e
não se importava com ninguém e continuou a bater nelas e pediu ovos chocos,
dizendo que não podia curar a menina sem que quebrasse o encanto delas e
trouxeram três ovos e ele pôs dois forçosamente na boca de uma delas e fez ela os
beber e atirou o outro na outra e pediu fumo e lhe trouxeram e ele começou a dar
nelas com o fumo e elas foram desfalecendo e faleceram.
Segundo tais informações, a intenção de João Curador, portanto, era desfazer o dito
feitiço atribuído às duas velhas Teresa e Francelina. Através do artifício utilizado da surra
com fumo e ovos chocos ele pretendia anular e desfazer o feitiço que seria o fator causador
das moléstias sofridas pela filha de Manoel. Os acusados de cumplicidade no decorrente
homicídio, Manoel e seu filho, alegam que apoiaram os procedimentos de João Curador
até este ponto. De acordo com eles, quando a agressão aumentou de intensidade, eles
passaram a reprovar os abusos que acabaram levando as duas à morte. Não podemos
realmente saber sobre a real participação dos acusados Manoel e seus filhos na execução
do crime. Eles argumentaram que inicialmente obedeceram às ordens de João Curador,
mas que não concordaram com as decisões extremadas tomadas por ele no prosseguimento
dos fatos. Parece que num primeiro momento eles foram convencidos por João Curador de
que o enfeitiçamento fora realizado pelas tais senhoras. Talvez tal associação feita pelo
Curador tenha sido motivada pelo conhecimento de desavenças existentes entre as famílias
das vítimas e a família de Manoel. Há também a hipótese de que as abundantes explicações
dos acusados seriam uma simples farsa tramada buscando se livrar de participação ou até
mesmo de responsabilidade direta pelo crime. Insistentemente no decorrer dos autos os
acusados alegam que seus atos que auxiliaram no crime só foram praticados sob ameaça de
165
João Curador. Segundo queixa da Promotoria, “Querendo os denunciados furtarem-se a
ação da justiça, sorrateiramente levaram os dois cadáveres para o quintal e dentro de um
valo os enterraram em uma cova, que dez dias depois, ainda fora mostrada a
autoridade”.
O subdelegado de polícia perguntando a Manoel Fernandes de Lima porque não
dera voz de prisão ao curador quando praticava o crime, pois ele teria em seu auxílio
Joaquim e Pedro. Manoel “respondeu com certo sobressalto que os três tão intimidados
ficaram que perderam os sentidos.” Segundo ele, “João lhe chegou um revólver aos peitos
e ao nariz do respondente que caiu desacordado não dando do que se passou.” Disse
ainda “que não deu parte à autoridade por que ficou com medo de João, que ameaçou-lhe
com a morte, caso ele respondente dissesse qualquer coisa à autoridade, não tendo ele
respondente parte alguma no fato”.
Através dos relatos confirma-se a intenção declarada dos acusados Manoel
Fernandes de Lima e de seus parentes de eximir-se de qualquer responsabilidade pelo
homicídio cometido, limitando-se a delegar a autoridade do crime a João Curador. De
acordo com as alegações dos réus a participação deles na procura das vítimas em suas
respectivas casas, no pronto atendimento ao pedido dos instrumentos rituais utilizados nos
procedimentos de contra-feitiço (ovos chocos e fumo), no velado enterramento dos corpos
dos cadáveres numa vala, teriam sido realizados apenas a mando daquele que seria o
mentor e protagonista da cruel ação, João Curador.
Portanto, a grande incógnita neste processo trata-se da misteriosa ausência daquele
que teria sido o grande protagonista do crime, João Curador. Não foi especulado o seu
paradeiro, nem foi dada voz a ele em momento algum do processo. Já que ele propriamente
não estava sendo julgado, não fora apresentado seu auto de qualificação, nem foram
citados detalhes sobre sua pessoa, naturalidade, condição e cor nos autos. O mais estranho
é que o próprio julgamento, afinal de contas, foi direcionado contra Manoel Fernandes de
Lima, talvez por que este tenha se entregado à Justiça. Tudo leva a crer que João Curador
estivesse foragido, embora em momento algum do processo se confirme materialmente
esta possibilidade. Como a denúncia e os trâmites do processo não visavam a incriminar o
potencial autor principal do crime, o foragido João Curador, percebe-se que o processo
ganha um caráter de incriminador de possíveis cúmplices, que os acusados teriam uma
participação na execução do crime. Convém lembrar que Manoel, o principal réu do
processo e pai da menina, recorrera espontaneamente aos serviços do curador e teria sido
166
conivente pelo menos em relação à busca das vítimas em suas respectivas casas no intuito
de arrancar-lhes uma forma de anulação do feitiço.
Um dado relevante neste processo é a verificação de que quase a totalidade das
testemunhas se valia das informações do próprio réu Manoel Fernandes de Lima
transmitidas aos depoentes que apenas a repetiam. Desta forma a versão que interessava ao
acusado foi bastante difundida no decorrer do processo.
A testemunha Flausino Ferreira Pedrosa, por exemplo, se limitou apenas a
reproduzir a narrativa relatada pelo próprio réu. Segundo seu depoimento, Manoel
Fernandes de Lima tinha lhe contado que “João Curador ameaçou de morte a ele [Manoel
Fernandes de Lima], quando este reprovava o seu crime”. Ainda contou que “Manoel
Fernandes disse ao tenente Saturnino que não deu voz de prisão a João Curador, porque
intimidando-se bem como seu genro e filho, perdeu os sentidos”. Na narrativa de Manoel
argumenta-se que, tanto ele próprio quanto seu genro e filho perderam os sentidos diante
das ameaças de morte de João Curador; todos eles teriam se amedrontado e nada puderam
fazer, posto que tinham suas vidas ameaçadas. É importante salientar que mesmo estas
testemunhas que repercutiram as narrativas baseadas nos relatos de Manoel admitiram que
existia inimizade de muitos anos entre a família de Manoel Fernandes e as duas infelizes
Tereza e Francelina.
Dentre as testemunhas descomprometidas de vínculo ou proximidade com os
acusados ou que pelo menos não se limitaram a repetir a narrativa relatada por Manoel
Fernandes de Lima encontrara-se João Coelho dos Santos que disse que,
Pedro Luiz Vieira e Joaquim Fernandes de Lima foram a sua casa a mandado de
Manoel Fernandes de Lima, chamar a preta Tereza para ajudar uma sua filha a
socorrer. Como a muitos anos existisse estremecimento de relações entre Tereza e
a família de Manoel Fernandes de Lima, a testemunha a ela ponderou não
acudisse ao pedido, receoso de que ela fosse vítima de alguma emboscada,
posteriormente soube do seu assassinato, bem como de Francelino, por intermédio
de pessoas de seu conhecimento.
A testemunha Torquato Marciano de Barros disse que o filho e o genro de Manoel
foram chamar Francelina a mandado de Manoel para “dar um remédio à sua filha que se
achava doente. O marido de Francelina, opondo-se a sua ida a casa de Manoel Fernandes,
pois que elas não entendiam de medicina, ao que os portadores do recado disseram que era
somente para dar um chá à menina doente”.
167
Várias testemunhas no processo reiteraram que existia inimizade entre a gente de
Manoel Fernandes e as famílias das duas vítimas, Tereza e Francelina. Possivelmente as
duas deveriam ter algum conhecimento tradicional sobre tratamento através de remédios
caseiros e chás de ervas e raízes, e, apesar das relações abaladas entre as famílias, se
dispuseram a ir motivadas pelo pretexto de que podiam receitar um chá. Parece ter sido
ingenuidade das duas senhoras terem caído na armadilha e a suspeita da testemunha João
Coelho dos Santos, de que elas estivessem correndo perigo de uma emboscada, acabou se
concretizando tragicamente.
Diante das atitudes extremadas tomadas por João Curador, que chegou a levar à
morte das duas pretensas realizadoras do feitiço, o estado da enferma filha de Manoel
Fernandes de Lima teria melhorado? Teria o curador, além de ter assassinado as ditas
responsáveis pelo infortúnio da menina, tentado receitar algum tratamento ou receita para
sanar as perturbações e incômodos de que a menina sofria? O castigo e o posterior
homicídio das duas senhoras teria por si um efeito de contra-feitiço que asseguraria o
restabelecimento da saúde à menina? Ou teria sido o falecimento das duas senhoras um
acidente de percurso decorrente de uma abusiva e impulsiva surra dada por João Curador?
Não nos autos menções ou detalhes que possam nos esclarecer quanto a estes aspectos.
A partir do que foi relatado apenas podemos supor que as formas de tratamento
diferenciadas que buscaram socorrer a menina doente, sejam os recursos da medicina ou do
contra-feitiço, de nada adiantaram para a sua melhora, redundando na morte de duas idosas
que foram acusadas de cometer um feitiço.
Este processo dentre os que tratavam de condenações a agressões e desmandos
contra potenciais feiticeiros foi o que mostrou indiscutivelmente maior requinte de
crueldade contra as vítimas. É impreterível lembrar que tal espancamento brutal foi
levado adiante justamente porque se acreditava que as vítimas tinham feito um feitiço
contra a filha adoentada do acusado Manoel Fernandes de Lima.
A credulidade na realização do feitiço e em seu poder parece estar evidente nas
descrições deste processo. Embora a sugestão de um feitiço realizado pelas duas vítimas
tenha sido manifestada por João Curador, os parentes da menina não hesitaram em buscar
as duas senhoras em suas respectivas casas, sabedores inclusive da acusação de que o
feitiço teria sido jogado por elas. Foi com este pensamento que os filhos de Manoel
prepararam, de fato, uma armadilha para as velhas Teresa e Francelina ao chamar-lhes para
curar a doença de sua irmã. A família de Manoel acreditou de fato na existência do feitiço
168
e não mediu esforços para que João Curador sanasse de alguma forma seus temidos efeitos.
O caminho que este processo de desencantamento tomou é que parece ter fugido do
controle da família de Manoel. A responsabilidade e participação desta família nas
circunstâncias da morte é que foram questionadas no processo, que os acusados
alegaram que apenas consentiram na execução do assassinato por que foram ameaçados.
Talvez os réus tivessem até admitido a surra, um procedimento tradicional de
desencantamento, mas se recusavam a admitir que colaboraram no trágico desfecho que ela
ocasionou, a morte das duas senhoras.
O réu Manoel Fernandes de Lima foi pronunciado e no Tribunal de Júri foi
inocentado de auxílio e cumplicidade na execução do crime. Baseado nesta decisão o Juiz
absolve o réu Manoel da acusação intentada contra ele. Dos outros acusados, o filho de
Manoel, Joaquim Fernandes de Lima também é julgado por participação no homicídio,
mas também é absolvido. Não há informações sobre uma possível prisão ou julgamento de
João Curador, que provavelmente se encontrava foragido. O processo termina em 12 de
novembro de 1901.
De uma forma geral, nestes processos não ficaram bem esclarecidas as formas
como se dava o descobrimento dos potenciais feiticeiros, futuras vítimas dos processos. Ou
seja, as maneiras como se desmascarava os supostos realizadores de feitiço foram descritas
de modo bastante vago e impreciso nos autos. Os acusadores e agressores não explicavam
consistentemente como ficaram sabedores de tais enfeitiçamentos, que afinal de contas,
motivavam pesadas represálias.
Apenas no caso do ofendido José da Costa
164
parece ter havido uma ameaça sobre o
suposto enfeitiçado José Joaquim, posteriormente morto. Em uma confusão tida com José
Joaquim, inspetor de quarteirão, José da Costa prometera que o futuro falecido haveria de
lhe pagar. E como a morte do ameaçado pareceu extraordinariamente prematura sua causa
foi atribuída pelo ofensor Antônio Fernandes como feitiço lançado por José da Costa. Este
fora o único caso em que se apontaram as circunstâncias que geraram as especulações de
feitiço atribuído a potencial feiticeiro, sendo este depois ofendido brutalmente como
represália pela realização do suposto encanto.
164
Processo criminal do Arquivo do IPHAN/ET, registro nº 172, cx. 08-06.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2328&op=1
169
Talvez as delações e acusações fossem resultantes de desentendimentos prévios
entre os envolvidos, o que possibilitaria até a existência de atribuições infundadas ou
despropositadas de feitiços às pessoas que sequer tinham envolvimento com possíveis
práticas de feitiçaria. A tentativa de imprimir e conferir a alguém a categoria de feiticeiro
poderia ser uma estratégia interessante no sentido de indispor seus desafetos perante o
aparato repressivo como também perante às pessoas com aversão e restrições morais às
práticas de magia.
De todos os ofendidos destes processos apenas o africano “Domingos”
165
e o idoso
José da Costa
166
foram taxados por testemunhas como pessoas tidas como feiticeiras. Nos
outros casos não comentários e depoimentos que apontassem um possível
reconhecimento dos ofendidos como curandeiros ou feiticeiros. Esta ausência de uma fama
e reconhecimento popular como feiticeiro não deveria significar um impedimento destes
ofendidos de se utilizarem de procedimentos rituais de magia. Os feitiços e outras crenças
populares estavam de tal forma inseridos no cotidiano das pessoas que parece bastante
plausível que um extrato significativo da sociedade recorresse aos artifícios da magia e
feitiçaria em situações que fossem dos seus interesses. Tais rituais de encantamento e
feitiço poderiam inclusive ser realizados de uma forma privada e escondida por pessoas
que não necessariamente fossem “feiticeiros”, mas que através da força das tradições e do
poder da oralidade tivessem adquirido um repertório de conhecimento suficiente para se
lançar na prática de atos tidos como feitiçaria.
Uma certificação e constatação das efetivas práticas de feitiçaria aludidas nos
processos não puderam ser obtidas. Não informações referentes a objetos e artefatos
rituais utilizados que pudessem comprovar a existência material do ritual do feitiço. No
caso envolvendo o preto ex-escravo Manoel
167
os agressores chegaram ao ponto de cavar o
quintal da casa do acusado à procura de “uma imagem do crucificado e da mão de um
anjinho, utilizados para a feitiçaria, mas [...] nada acharam.” A causa da especulação de
que os objetos rituais utilizados neste suposto feitiço seriam necessariamente uma
“imagem do crucificado” e a “mão de um anjinho” não ficam esclarecidas nos autos. Mas,
de qualquer forma, a repercussão que causara o mero ecoar das notícias de supostos
165
Processo criminal do Arquivo IPHAN-ET, registro nº 139, cx. 05-04.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2902&op=1
166
Processo criminal do Arquivo do IPHAN/ET, registro nº 172, cx. 08-06.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=2328&op=1
167
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 449, cx. 19.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=20156
170
feitiços atribuídos a determinadas pessoas foi algo notável, resultando em represálias
brutais que inclusive se tornaram motivo para instauração de processos criminais contra
estes agressores, independentemente do encaminhamento de uma justa condenação.
Destas ações penais que trataram de represálias contra supostos feiticeiros a maior
parte ocorrera no período Imperial, apenas um processo foi instaurado mais tardiamente na
república. Este dado processo de 1896
168
, que vitimara fatalmente duas senhoras acusadas
de feitiçaria, fora talvez o mais impressionante e violento dos processos envolvendo
agressões a feiticeiros.
Rediscutindo a efetiva significação da base empírica que sustentou o trabalho, o
conjunto de processos apresentados e discutidos parece demonstrar que não houve
punições significativas para os agressores de potenciais feiticeiros. É bem verdade que
ocorreram prisões seguidas de perdões concedidos pelos ofendidos através de termos de
desistência dos processos. Mas de uma forma geral, os crimes cometidos contra estas
pessoas acusadas de feitiçaria não redundaram em condenações para os ofensores. A partir
disto, cogita-se que tal duvidoso empenho da justiça reflita a própria natureza repressiva do
aparato Judiciário, que apregoa em seus códigos a criminalização destes “feiticeiros”, e por
isto, não teria maiores motivações para condenar severamente seus agressores.
168
Processo Criminal do Acervo do Fórum de Oliveira. Registro nº 798 , Cx. 37.
Fonte : http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=47429
171
CONCLUSÃO
Há que se destacar a necessidade de compreender as documentações criminais
fartamente utilizadas no trabalho como fontes oficiais, que tem um intuito de atender e
obedecer aos trâmites jurídicos decorrentes de uma denúncia interessada em desmascarar
os potenciais curandeiros e, consequentemente, puni-los.
A análise que Carlo Ginzburg
169
faz a respeito da possibilidade de transparência da
realidade cultural a partir de textos controlados como os dos processos da Inquisição, por
exemplo, também pode servir de referência para a interpretação dos processos criminais do
século XIX, igualmente caracterizados por uma pressão e intimidação oficial exercida
sobre os réus e testemunhas, ainda que em proporções bem menores se comparados aos
processos inquisitoriais. Segundo o autor, para decifrar documentos que não são neutros,
“temos de aprender a captar, para da superfície aveludada do texto, a interação subtil de
ameaças e medos, de ataques e recuos”
170
.
Nota-se reiteradamente nos autos investigados que as testemunhas são impelidas a
falar contra o acusado, que os depoimentos seguem uma série de perguntas alinhadas
pelo interesse acusatório da denúncia. Mesmo quando o depoente tem posições favoráveis
ao réu tenta-se arrancar confissões desqualificadoras, confirmando desta forma o conteúdo
original da denúncia.
Como prova desta tendência acusatória dominante o caso singular do curandeiro
José “Caroba”
171
mostrou-se ilustrativo. Neste processo o advogado do réu alterara
totalmente o teor das perguntas em uma segunda rodada de depoimentos com as
testemunhas, resultando numa surpreendente guinada nas declarações dos depoentes. As
contradições afloraram em relação ao primeiro inquérito conduzido pela promotoria. Neste
caso a conformidade das respostas das testemunhas com as intenções dos inquiridores,
sejam estes da acusação ou da defesa, parece esclarecer bem o quanto de pressão e
intimidação fazem parte de um processo.
É imperioso observar que de uma gama infindável de documentos criminais da
segunda metade dos oitocentos em Minas Gerais poucos envolviam os crimes de
169
GINZBURG, Carlo. “O inquisidor como antropólogo: Uma analogia e as suas implicações”.. in:
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1991
170
Idem, p. 209.
171
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 992; cx. 49.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes/brtacervo.php?cid=1154&op=1
172
curandeirismo e feitiçaria. O limitado número de processos sobre curandeirismo não
impediu o prosseguimento e aprofundamento dos estudos. Segundo Carlo Ginzburg,
“mesmo uma documentação exígua, dispersa e renitente pode, portanto, ser
aproveitada
172
”, ou ainda, “uma leitura aprofundada de um pequeno número de
documentos, mesmo se ligados a um nível circunscrito de crenças, pode ser muito mais
esclarecedora do que uma enorme quantidade de documentos repetitivos”
173
.
Sobre este aspecto alguns processos mostraram-se bem mais dialógicos do que o
conjunto da maioria. Nestes processos sobressaíram as participações de advogados de
defesa, além de testemunhas que se mostraram bastante desenvoltas diante das perguntas
dirigidas e interessadas das autoridades. Nesses autos, questões interessantes foram
levantadas por testemunhas que tinham algo a dizer e não se limitavam a responder
automaticamente os questionários dirigidos pelas autoridades. Desta forma tais processos
adquiriram um caráter maior de debate e naturalmente ofereceram mais esclarecimentos
tanto sobre a matéria discutida nos autos, como sobre os próprios mecanismos de
funcionamento dos autos quando comparados aos processos que obedeciam ao padrão
formal dominante.
Ainda sobre o volume de documentações que implicavam denúncias contra
curandeiros e feiticeiros nota-se que foram encontrados somente dez processos desta
natureza, num universo considerável que englobava a cincunvizinhança de três cidades
mineiras de relativa importância para época: São João del-Rei, Oliveira e Itapecerica.
Pode-se especular, a partir de detalhes dos autos, que estes curandeiros envolviam-se com
um universo bem mais dilatado de clientes do que sinaliza a mera quantificação da
totalidade dos processos existentes. O processo do acusado de curandeirismo Gervásio
174
,
por exemplo, apontava que o réu alcançava uma inserção social bastante significativa e
ampla. Segundo testemunhas do processo, o acusado Gervásio “teria preparado remédio de
raiz para mais de 20 pessoas” no diminuto povoado de Félix dos Santos, distrito de
Oliveira. Uma parcela significativa de um lugarejo recorrera aos serviços de cura de
Gervásio. Pormenores dos casos dos réus Felipe Marcelino, José “Caroba”, José Sapato
172
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 20.
173
GINZBURG, Carlo. “O inquisidor como antropólogo” IN: Os fios e os rastros Verdadeiro, falso,
fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 293.
174
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 782, cx. 36.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=46063
173
dentre outros, também sugeriram que o público destes acusados de curandeirismo era
bastante expressivo.
A partir destas considerações pode-se supor que teria havido um número bem mais
elevado de consultas aos serviços dos curandeiros que resultaram bem sucedidas,
naturalmente não registradas em documentações oficiais quaisquer. Tais atividades cujos
resultados teriam sido satisfatórios não geravam sequer razões para instauração de
processos. A natureza do trabalho informal destes agentes populares impede uma
apreensão mais precisa e satisfatória destes casos. Também não podemos descartar a
hipótese de que nem todas as relações curandeiro-paciente, ainda que ineficazes,
converteram-se em processos criminais.
É importante destacar que as situações expostas nos processos crimes investigados
que visavam reprimir curandeiros tratam de reportar o momento em que as relações
curandeiro-cliente estremeciam. São situações-limite que nos fazem supor que, para além
deste flagrante de estranhamento e perturbação desta relação registrado nos autos,
geralmente o diálogo dos curandeiros com a sociedade se mostrava bastante intenso e
prolífico.
Com relação à repressão oficial ao curandeirismo a antropóloga Yvonne Maggie
entende que as instâncias do poder acabavam por incorporar a crença, dentro de um
raciocínio que defende que “se há feiticeiros é porque que se acredita neste tipo de
feitiçaria”
175
. A autora alega que “a prova de que a feitiçaria é crença em que todos os que
participam do processo acreditam está no fato da discussão travada entre acusados,
acusadores, juízes, promotores e advogados não desqualificar a feitiçaria
176
”. De acordo
com a perspectiva da autora, a existência da magia e de seu poder não apenas deixava de
ser contestada na condução dos processos assim como as autoridades assimilavam a crença
nesta magia.
A interpretação da autora de que as autoridades compartilhavam das crenças na
feitiçaria, compreendia inclusive um tipo de hierarquização em que diferentes rituais
recebiam tratamentos distintos na Justiça. A partir deste entendimento determinados rituais
de feitiçaria considerados maléficos deveriam ser condenados enquanto outros que teriam
adquirido um status “de ritual religioso” conquistavam até a simpatia do sistema judiciário.
Não é a toa que as qualificações “alto” e “baixo” espiritismo se disseminaram nos tribunais
175
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992. p. 86.
176
Idem, p. 81
174
e foram internalizadas pelas próprias autoridades cariocas. Segundo Maggie, “o estado
imiscuiu-se, desta forma, nos assuntos da magia e interveio no combate aos feiticeiros
regulando acusações, criando juízos especiais e pessoal especializado”.
177
Outra questão interessante levantada nos trabalhos de Yvonne Maggie trata da
interpretação que “procura demonstrar que os mecanismos criados pelo Estado a partir da
República não extirparam a crença, mas, ao contrário, foram fundamentais para sua
constituição”.
178
Através desta argumentação a autora defende que a repressão
institucionalizada foi grande incentivadora de denúncias reforçando desta forma a crença.
A partir desta perspectiva as criminalizações divulgariam e alavancariam ainda mais tais
crenças. De acordo com este raciocínio as práticas rituais de feitiçaria seriam bem mais
fragilizadas se fossem ignoradas pelo aparelho judiciário. Ainda segundo a autora, o
exemplo da colônia inglesa do Zimbábue na África, antiga Rodésia, foi diferente. Os
ingleses instituíram a Lei de Supressão à feitiçaria em 1897. Segundo esta lei quem quer
que imputasse a qualquer outra pessoa o uso de meios não-naturais para provocar males ou
quem quer que apontasse outra pessoa como mago ou feiticeiro seria culpado de ofensa e
responderia legalmente por isto.
A estratégia dos colonialistas ingleses na África tencionava suprimir a crença nos
feitiços punindo os acusadores que as acusações e delações faziam parte incondicional
dos sistemas de crença na feitiçaria. Inversamente no Brasil, Yvonne Maggie compreende
a elite brasileira de tal forma emaranhada nos ritos que só restava a ela administrar
satisfatoriamente a crença na feitiçaria, como uma espécie de regulamentadora do feitiço
permitido e do não permitido. Portanto, de acordo com a autora, não houve tentativa de
supressão da feitiçaria no Brasil.
Quanto às ações e condenações da justiça ocorridas nos processos mineiros
investigados, parece ser mais provável que os promotores que as moveram o tenham feito
mais por razões normativas, morais e religiosas do que por estarem sugestionados pela
crença em si, o que parece diferir o tratamento pela lei destinado ao curandeiro das regiões
mineiras do que se passava na realidade das cidades de Salvador e do Rio de Janeiro.
Talvez o ambiente cosmopolita e heterogêneo destas capitais favorecesse que setores do
próprio judiciário tendessem a simpatizar com um determinado ritual ou curandeiro que
conseguisse notoriedade ou um reconhecimento social mais amplo. Tal empatia e
identificação por determinadas formas de rituais não puderam ser encontradas nos
177
Idem, p. 23.
178
Idem, p. 24.
175
procedimentos dos juízes e promotores responsáveis pela condução dos processos
investigados nos acervos judiciais que me serviram de base empírica.
Constatou-se naturalmente um contato estabelecido com métodos e saberes
característicos dos rituais de feitiçaria, entretanto não parece ter havido uma assimilação da
crença neste repertório apresentado pelas autoridades jurídicas. Constam nos autos
apreensões detalhadas de artefatos destinados à magia, testemunhos alegando
procedimentos mágicos atribuídos aos réus, denúncias das autoridades alegando que os
denunciados praticavam sortilégios, ou seja, elementos que poderiam creditar à crença no
feitiço como algo disseminado e introjetado em todas as instâncias do processo. Mas, a
impressão que fica dos discursos taxativos dos promotores e juízes é de que uma
comprovação da existência dos supostos feitiços não sugere necessariamente a crença por
estes magistrados no poder destes feitiços. De modo que, por mais que as autoridades
tenham passado a tomar conhecimento do universo da feitiçaria através dos autos, seus
posicionamentos e juízos pareceram muito mais alinhados com o cumprimento do caráter
normativo das leis, ainda que influenciados por razões morais e religiosas, do que por um
possível poder de sugestionamento e influência dos rituais de feitiçaria ali discutidos e
julgados.
No caso dos envolvidos nos processos, muitas vezes as testemunhas que visavam
reprimir curandeiros manifestaram claramente a crença no poder do feitiço, através, por
exemplo, de elogios dirigidos aos fechamentos de corpo a que elas se deixaram submeter.
Também nos casos em que os feiticeiros foram vítimas os acusados de agredir supostos
feiticeiros praticaram os atos violentos em represália a um suposto feitiço por estarem
atemorizados e sugestionados pelo poder do dito feitiço.
Portanto, a crença e o temor na feitiçaria faziam parte do universo mental das
pessoas envolvidas nos processos. Mesmo nos casos em que houve uma insatisfação dos
consulentes com os resultados dos métodos rituais que os feiticeiros utilizaram para cura
de suas enfermidades, comprova-se que havia uma crença no feitiço, representada no
próprio ato de encomendar os serviços do feiticeiro.
A utilização de um critério discriminatório para a condenação dos réus “feiticeiros”
visando punir apenas aqueles que fizessem uso de feitiços malévolos não ocorrera dentre
os processos averiguados. De uma forma geral os curandeiros foram penalizados por causa
de seus alegados envolvimentos com feitiços de cura, sem qualquer referência à prática de
176
malefícios. O condenado por feitiçaria Felipe Marcelino
179
sustenta em interrogatório nos
autos que fazia “algumas curas e que não as fazia por mal”. Apesar de existir uma
preocupação em se enfatizar um caráter benéfico e benfazejo dos rituais realizados tais
argumentos não sensibilizaram as autoridades responsáveis pela condenação.
Um fato significativo verificado nas documentações foi a constatação de que os três
processos-crimes que apresentaram em seus autos apreensão de artefatos típicos dos rituais
de feitiçaria, como “pedaços de chifres de veado”, “cabeças de macuco”, “canudos de
cachimbo”, “ossos de animais”, “cascas de bichos”, “fava de santo Inácio”, resultaram em
penalização para os réus. Talvez tais flagrantes destes objetos rituais servissem como uma
evidência de feitiçaria, o que seria um motivador agravante para uma condenação. De
qualquer forma parece precipitado interpretar tais fatores como determinantes para
acarretar uma condenação, que outros três processos tiveram os réus penalizados sem
mencionar a verificação de um arsenal de feitiçaria apreendido.
As alusões a feitiços maléficos foram abundantes nos processos em que potenciais
feiticeiros foram vítimas de agressões e assassinatos. Os ofendidos destes processos foram
violentamente espancados por motivo de supostos feitiços que teriam feito contra pessoas
próximas dos réus ofensores. Tais ações judiciais, como vimos, não resultaram em
punições para os agressores acusados por diferentes motivos. Não subsídios nos
processos para se identificar uma aprovação velada da Justiça para com os crimes
praticados contra supostos feiticeiros, nem uma atitude de reprovação das autoridades
pelos supostos feitiços maléficos atribuídos às vítimas. De qualquer modo, os espancadores
e homicidas destes processos não foram devidamente penalizados.
Quanto à possibilidade de uma hierarquização dentre as práticas de cura
condenadas pela Justiça, a sentença do juiz Cândido Faria Lobato no processo do réu
Jerônimo Honório Machado
180
apresentou um claro caso de discriminação para os
condenáveis ofícios no campo da cura. Segundo a interpretação do juiz a atividade do
curandeiro era inferior àquela exercida pelo charlatão, o médico falsário. O magistrado
entendia que o curandeiro, por tratar-se de homem analfabeto e ignorante, não poderia
desta forma ser caracterizado como um charlatão, ou seja, como um homem que se passava
por profissional da medicina. Para o juiz o curandeiro julgado não passava de um feiticeiro,
179
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 812, cx. 38.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=48674
180
Processo criminal do Acervo do Fórum de Oliveira, registro nº 415, cx. 18.
Fonte: http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/pcrimes_docs/photo.php?lid=17485
177
categoria menor e mais vulgar do que charlatão. Pressupõe-se desta maneira que o termo
charlatão só deveria ser aplicado para falsos médicos que estariam exercendo ilegalmente a
medicina.
Cabe lembrar que esta distinção salientada por este juiz não absolve e
descriminaliza qualquer uma das atividades citadas. Mas de qualquer modo nota-se no teor
desta sentença um forte viés de desqualificação da cultura popular. A decisão final pela
condenação do réu Jerônimo se opôs frontalmente à opinião da grande maioria das
testemunhas que disseram utilizar e aprovar os serviços do curandeiro julgado.
A partir destes processos podemos entender na prática como se dava a repressão ao
curandeirismo, à feitiçaria e às práticas alternativas de cura. As condenações dos
curandeiros, assim como a impunidade em relação aos crimes de que potenciais feiticeiros
foram vítimas parecem atestar o rigor da justiça, para com estes agentes populares tão
presentes no dia-a-dia da sociedade da época.
Através de comparação entre processos em que curandeiros e feiticeiros foram us
e aqueles em que supostos feiticeiros foram vítimas, tanto a Justiça mostrou grande
empenho em punir os curandeiros processados como também mostrou-se, na maioria dos
casos, omissa e condescendente nos casos em que potenciais “feiticeiros” foram vítimas de
agressões e desmandos. Nestes casos de violência extremada a ação dos ofensores foi em
certa medida tolerada, não resultando em punições.
Mas a grande questão que aflora diante da massa documental pesquisada é a
verificação de um desacordo gritante existente entre o que era ditado pelas legislações e as
práticas culturais que na realidade eram adotadas pelos mineiros do século XIX. O discurso
repressivo procurava tutelar a sociedade, que por sua vez, parecia disposta a recorrer a
procedimentos de cura diversos que não necessariamente estavam concatenados com os
preceitos da medicina científica, da Junta Central de Higiene Pública e do aparato jurídico
da época.
O código penal republicano em seu artigo 158, por exemplo, pretendia impedir a
administração de elementos de quaisquer reinos da natureza seja vegetal, animal ou
mineral por curandeiros. Muitas destas substâncias adotadas nestas terapêuticas faziam
parte de um conjunto de conhecimentos tradicionais que muitas vezes eram empiricamente
testadas e aprovadas por amplos setores da população. Proibições nos moldes estabelecidos
pela legislação parecem descabidas num contexto em que os medicamentos da medicina
oficial eram contestáveis e falíveis além de, muitas vezes, absorverem amplamente da
178
sabedoria popular utilizada por estes mesmos agentes populares da cura atingidos pela
repressão oficial.
Como verificamos nos jornais mineiros da época uma impossibilidade até de se
distinguir com precisão a natureza dos remédios “científicos” e não “científicos”
veiculados nas páginas de propagandas. Alguns anúncios de remédios, por exemplo,
preparados por farmacêuticos formados que garantiam ter a aprovação e licenciamento dos
órgãos fiscalizadores responsáveis pela Saúde pública prometiam dezenas de curas,
algumas inclusive bem improváveis de serem sucedidas.
Talvez esta tentativa de regulamentação e controle das práticas e procedimentos
de cura se tenha dado num período em que os métodos científicos não oferecessem
respostas satisfatórias para as expectativas das pessoas. Os tratamentos típicos da medicina
oficial da época não condiziam com um padrão ideal tão propalado por uma legislação que
considerava que profissionais diplomados e habilitados deveriam ter o direito exclusivo de
sanar os males que afligiam a população.
Outra incoerência relativa ao estatuto jurídico vigente na época, no que concerne a
repressão aos agentes ilegais da cura, também pôde ser verificada no aspecto relativo à
insuficiente oferta de profissionais diplomados disponíveis para atender a demanda da cura
nas cidades e distritos mineiros oitocentistas. Segundo os estudos de Betânia Gonçalves
Figueiredo “nas localidades mais afastadas dos centros urbanos a presença de médicos com
formação acadêmica é rara ao longo de praticamente todo o século XIX”.
181
O Censo de
1872 atesta a província de Minas Gerais como a nona no Brasil em número de médicos,
cirurgiões, farmacêuticos e parteiros, atrás até de províncias mais afastadas como Mato
Grosso por exemplo. Os números registram 914 profissionais de saúde, incluídos os
parteiros, numa população de aproximadamente dois milhões de habitantes, numa razão de
4,5 destes profissionais da saúde por 10.000 habitantes. Essa razão estatística não nos
informa sobre a distribuição geográfica desses profissionais, o que permite supor que
vastas regiões não teriam sequer um profissional de saúde a quem recorrer.
182
A questão da falta de profissionais tidos como “competentes” parece demonstrar
um paradoxo do Código que estabelece exigências que são impossíveis de se cumprir na
prática, independentemente da ausência de uma empatia consolidada na relação médico-
paciente. Parecia realmente haver uma demanda crescente pelos serviços na área da saúde,
181
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. O doutor de capa preta: Chernoviz e a medicina no Brasil do século
XIX in Revista Uni-BH op. cit. p. 96.
182
NOVAIS, Fernando A. (org.) Apêndice História da vida privada no Brasil Império : A corte e a
modernidade nacional Vol.2 São Paulo: Companhia das letras, 1997. p. 473.
179
mas tal privação não significava necessariamente uma decidida aceitação da população
pelos serviços médicos.
Parece outra contradição curiosa o fato da corporação médica competir pela busca
de reserva de mercado no campo da cura, justamente num território em que os médicos
seriam escassos. Sendo escassos, não deveriam ter problemas de clientela diante de uma
demanda por pessoas capacitadas e confiáveis no exercício da cura, não fosse a opção da
sociedade da época pelos agentes populares da cura como curandeiros, feiticeiros dentre
outros. Tal constatação parece corroborar a idéia de que havia uma resistência e
desconfiança da população pelos profissionais formais da cura a despeito da problemática
em torno da efetiva disponibilização de médicos formados na sociedade mineira do século
XIX.
Numa fase incipiente da medicina havia uma predisposição maior das pessoas a
recorrer a procedimentos tradicionais, populares e “supersticiosos” ao invés dos recursos
de uma medicina ainda em busca de legitimação e afirmação. Tal consideração não se trata
de defesa ou simpatia com as práticas dos curandeiros ou os métodos empíricos
tradicionais, mas o reconhecimento de um quadro complexo no qual o campo da cura passa
a ser disputado pela novidade do conhecimento científico. Dentre os agentes populares da
cura que compunham este vasto e complexo universo estavam as parteiras, os barbeiros, os
curiosos, os práticos, os curandeiros e os feiticeiros. É diante deste panorama diversificado
que a medicina científica procurava galgar seus passos em busca de uma posição
privilegiada na sociedade.
Diante de um projeto de processo civilizatório em pleno andamento os avanços
científicos e técnicos no século XIX prometiam alterar os costumes culturais em direção a
um progresso iminente e inevitável. Mas a concretização desta modernidade no âmbito da
medicina não se deu de forma tão imediata assim. Tal processo ocorreu de forma muito
tímida e morosa, retardando a conquista de um significativo amadurecimento. No
desenrolar deste intricado processo, as novas técnicas médicas passaram a coexistir e
disputar espaço no campo da cura com as formas tradicionais que persistiam intensamente
no cotidiano e imaginário das pessoas. Com a emergência das “soluções” de caráter
cientificista passa a haver uma oscilação de convivência, permuta e embate entre as
práticas advindas da medicina e farmácia em formação e as práticas populares
tradicionalmente assentadas nos costumes da sociedade.
As tentativas de normatização das práticas de cura, sustentadas na própria
legislação vigente da época, ignoraram o fato de que não se muda a concepção de mundo
180
das pessoas de uma hora para outra. Agrava ainda a evidência de que os recursos médicos
e científicos, além de duvidosos, eram inusitados. De acordo com a mentalidade da época
tais descobertas pareciam despertar desconfiança e inquietação para uma população cujas
representações eram fortemente assentada nas tradições e nos costumes.
Talvez na virada do século XIX para o XX a medicina tenha conseguido um pouco
mais de credibilidade junto à população. No entanto, mesmo quando a medicina acadêmica
passa a atingir um estágio mais convincente e fundamentado na resolução das doenças e
epidemias, a resistência das pessoas a seus preceitos ainda era considerável.
Enfim, parece inquestionável que no bojo de um projeto civilizatório em que a
ciência preconizava o desencantamento do mundo, a influência do misticismo, das práticas
mágicas e tradicionais sobre a mentalidade da sociedade era mais poderosa do que se podia
imaginar. E apesar da intolerância oficial das autoridades, os curandeiros, feiticeiros e as
práticas tradicionais de cura exerceram um significativo papel social nas Minas Gerais da
segunda metade do século XIX.
181
REFERÊNCIAS
Fontes primárias manuscritas
LABDOC – LABORATÓRIO DE CONSERVAÇÃO E PESQUISA
DOCUMENTAL DA UFSJ
Processos criminais dos Acervos dos Fóruns de Oliveira e Itapecerica:
Processo criminal de Manoel Lagoa, 1894, registro nº743, cx. 34.
Processo criminal de José Sapato,1872, registro nº 412, cx.17.
Processo criminal de Gervásio Ferreira de Melo, 1896, registro nº 782, cx. 36.
Processo criminal de Felipe Marcelino, 1897, registro nº 812, cx. 38.
Infração de posturas contra Jerônimo Honório Machado,1872, registro nº 415, cx. 18.
Processo criminal de Honório da Silva Rosa “Honório Félix”, 1902
Processo criminal de José Rodrigues de Moura “Caroba”, 1903, registro nº 992; cx. 49.
Processo criminal do ex-escravo Manoel,1875, registro nº 449, cx. 19.
Processo criminal de Silvério Bernardo da Costa, 1866, registro nº 333, cx. 14.
Processo criminal das senhoras Tereza e Francelina, 1898, registro nº 798, cx. 37.
IPHAN/ET - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Escritório
Técnico – São João del-Rei
Processos criminais do Fórum de São João del-Rei:
Processo criminal de José de Paula Freitas, Dr. José,1898, registro nº 966, cx. 69-11.
Habeas corpus dos escravos Adão e Juvêncio,1886, registro nº 1119, cx. 51-05.
Processo criminal de Manoel Joaquim Pereira.1889, registro nº 1096, cx. 56-04.
Processo criminal de Ana Luíza, 1886, registro nº 1106, cx. 51-06.
Processo criminal de José da Costa, 1851, registro nº 172, cx. 08-06.
Processo criminal de Domingos Rebolo,1847, registro nº 139, cx. 05-04.
182
Fontes Primárias Digitais
Arquivos Históricos da Comarca do Rio das Mortes Minas Gerais.
Disponível em:
http://www.documenta.ufsj.edu.br
Arquivo Público Mineiro
Disponível em: www.siaapm.cultura.mg.gov.br/index.php
Fontes Primárias Impressas
Jornal O Arauto de Minas – São João del-Rei
Jornal Gazeta Mineira – São João del-Rei
Jornal O resistente - São João del-Rei
Jornal A Opinião – São João del-Rei
Jornal O repórter – São João del-Rei
Jornal O iniciador – Pitangui
Jornal Gazeta de Oliveira – Oliveira
Jornal O Itapecerica - Itapecerica
Jornal O monarquista – Campanha
Jornal Minas do Sul - Campanha
BIBLIOGRAFIA
ARAÚJO, Alceu Maynard. Medicina rústica. São Paulo: Editora Nacional, 1979.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira, 1985.
CARNEIRO, Henrique. Filtros, Mezinhas e triacas. São Paulo: Xamã, 1994.
CARNEIRO, Henrique. Amores e sonhos da flora. São Paulo: Xamã, 2002.
COELHO, Edmundo Campos Coelho. As profissões imperiais: Medicina, Engenharia e
Advocacia no Rio de Janeiro 1822-1930. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente (1300-1800). São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.
183
EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005.
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar Cirurgiões, médicos, boticários e
curandeiros no século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura Editora,
2002.
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. O doutor de capa preta: Chernoviz e a medicina no
Brasil do século XIX in Revista Uni-BH, Belo Horizonte. Vol. 1. 1. Maio 2001. p. 95-
109.
FURTADO, Júnia Ferreira Furtado. Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial in
Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XLI Julho/dezembro de 2006. Belo Horizonte,
MG: Rona Editora.
GINZBURG, Carlo. “O inquisidor como antropólogo: Uma analogia e as suas
implicações”. IN: GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL,
1991
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira Nove reflexões sobre a distância. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI
e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
KLOETZEL, Kurt. O abc do charlatão. São Paulo: Edições Mandacaru, 1988.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janerio: Editora Tempo
Brasileiro, 1985.
MACHADO, Roberto. Danação da norma-Medicina social e constituição da Psiquiatria
no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
MAGGIE, Yvonne. O medo do feitiço - verdades e mentiras sobre a repressão às religiões
mediúnicas in Revista Religião e Sociedade. Vol. 13/1 - março. Petrópolis, RJ, Editora
Vozes, 1986.
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1979.
184
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia Esboço de uma teoria geral da magia
(Primeira parte). São Paulo: Cosac Naify, 2003.
MEYER, Marlyse. Maria Padilha e toda a sua quadrilha. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1993.
MONTERO, Paula. Magia e pensamento mágico. São Paulo: Editora Ática, 1986.
MONTERO, Paula. Da doença à desordem - A magia na umbanda. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1985.
MOTT, Luiz. Cotidiano e convivência religiosa: entre a capela e o calundu. in SOUZA,
Laura de Mello e. (org.). História da vida privada no Brasil- Cotidiano e vida privada na
América portuguesa. Vol.1 São Paulo: Companhia das letras, 1997.
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e História As práticas mágicas no
Ocidente Cristão. Bauru – SP: EDUSC, 2004.
PALOU, Jean. A feitiçaria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
PIMENTA, Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira
metade do século XIX in CHALHOUB, Sidney (org.). Artes e ofícios de curar no Brasil.
Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2002.
RAMOS, Donald. A influência africana e a cultura popular em Minas Gerais: Um
comentário sobre a interpretação da escravidão in Da SILVA, Maria Beatriz Nizza.
Brasil: Colonização e Escravidão.(Org.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
REIS, João José. Domingos Sodré Um sacerdote africano. São Paulo : Companhia das
Letras, 2008.
REIS, João José. Sacerdotes, seguidores e clientes no candomblé da Bahia oitocentista in .
ISAIA, Artur César (org.) Orixás e espíritos. Uberlândia: EDUFU, 2006.
RIO, João do. As religiões no Rio. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1976.
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1976.
SAINT-HILAIRE. Auguste de. Viagem às nascentes do rio São Francisco. Belo
Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura - As diferentes medicinas no Rio de
Janeiro Imperial. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2002.
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos mistérios. in CHALHOUB, Sidney (org.). Artes
e ofícios de curar no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2002.
185
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
SOUZA, Laura de Mello e. A feitiçaria na Europa moderna. São Paulo: Editora Ática,
1987.
WITTER, Nikelen Acosta. Curandeirismo: Um outro olhar sobre as práticas de cura no
Brasil do Século XIX. In Revista Vidya,Vol 19 nº34 Julho 2000. Santa Maria.
WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar – Medicina, Religião, Magia e Positivismo na
República Rio-Grandense-1889-1928. Bauru-SP: EDUSC, 1999.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo