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Uma onça pintada, tão grande, que media quase dois metros da ponta do
focinho à extremidade da cauda, de pé no fundo da gruta, balançando o rabo,
como fazem os gatos, olhava para Freitas. Os olhos do fazendeiro fitaram os
da fera ordenando-lhe que se rendesse. O animal e o homem não perdiam um
movimento do seu contrário. Manuel de Freitas tinha a luta como travada.
Em tais condições era a vida pela vida. Teve uma idéia, cuja elaboração foi
rápida e o absorveu com todos os seus sentidos. Dessa saiu a resolução de
atacar prontamente a fera. Anima-o a convicção de que a onça não resistirá à
sua musculatura e ao seu terçado, e prepara-se para o ataque, que deve ser
súbito e terrível. Sem tirar os olhos do animal, com todo o vagar e não
menos precaução, lança no solo as borrachas, tira o pesado chapéu de couro,
e, com a mão direita arranca o terçado da bainha. Tendo em uma das mãos o
terçado e na outra o chapéu, corre sobre a fera. Esta encabrita-se, escancara a
boca mostrando as compridas e aguçadas presas. Freitas agride a onça, com
agilidade pasmosa, introduz-lhe o chapéu na boca, cravando-lhe ao mesmo
tempo o terçado no coração. Essa cena foi instantânea, passou-se em uma
fração de minuto. A fera mal teve tempo de armar o pulo. Quando ia atirar-
se aos ombros de Freitas, cambaleia, ferida de morte, cai estrebuchando e
seu derradeiro estertor foi um urro medonho e torvo que ecoou segundos
pelos outeiros próximos até acabar-se ao longe. (p. 19)
Em O Guarani temos esta descrição:
Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e
pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto
gigantesco.
Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça monstruosa, como
procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo: uma
espécie de riso sardônico e feroz contraía-lhe as negras mandíbulas, e
mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam
fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor do sangue da vítima.
O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao troco seco, não perdia um
só desses movimentos, e esperava o inimigo com a calma e serenidade do
homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar
revelava um pensamento de defesa.
Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se
mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se,
e ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na entrada da clareira.
Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue, eriçou o
pêlo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque.
O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e
apertara o forcado endireitou-se de novo; sem deixar a sua posição, nem tirar
os olhos do animal, viu a banda que parava à sua direita. (ALENCAR, 1982,
p. 21)
Percebemos que há semelhança quanto ao ilogismo, mas em A Fome é mais forte
devido o personagem ser um retirante, de certa idade – o que para a época era considerado um
velho, famélico – ter uma força descomunal que apenas com uma mão consegue matar uma
onça de quase dois metros de comprimento. Em O Guarani o ilogismo é até aceitável, visto
que o personagem é um jovem índio, bem alimentado e que tinha um instinto de caçador.