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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Mestrado em Multimeios
SALLES DO REAL: relações entre sujeitos e contextos nos
documentários de Walter Salles
CAMPINAS - 2008
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iv
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Título em inglês: “Salles of real: relationships between subjects and
contexts in Walter Salles's documentaries.”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Walter Salles; Cinema;
Documentary.
Titulação: Mestre em Multimeios.
Banca examinadora:
Prof. Dr. Marcius César Soares Freire.
Profª. Drª. Rosana de Lima Soares.
Prof. Dr. Fernão Vítor Pessoa de Almeida Ramos.
Prof. Dr. Nuno César Pereira de Abreu. (suplente)
Prof. Dr. Eusebio Lobo da Silva. (suplente)
Data da Defesa: 21-08-2008.
Programa de Pós-Graduação: Multimeios.
Modenese, Luciane.
M72s Salles do real: relações entre sujeitos e contextos nos
documentários de Walter Salles. / Luciane Modenese –
Campinas, SP: [s.n.], 2008.
Orientador: Prof. Dr. Marcius César Soares Freire.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Artes.
1. Walter Salles. 2. Cinema. 3. Documentário. I.
Freire, Marcius César Soares. II. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Artes. III. Título.
(em/ia)
v
vii
Esse trabalho é dedicado a todos que,
de alguma forma, o viabilizaram por meio
de incentivo diante das dificuldades,
que não foram poucas; compreensão
pela ausência que se fez necessária; e
ajuda, por menor que tenha sido, que
não deixou de ser essencial.
Em especial, a Carlos e Maria Dirce,
a quem devo o que sou e
a possibilidade de lutar
pelas minhas conquistas.
ix
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, professor Marcius César Soares Freire, pela
compreensão, dedicação e encorajamento;
À VideoFilmes, pela cessão dos documentários objetos de estudo deste
trabalho, e a Walter Salles, pela atenção e gentileza dispensadas;
À Edilene por estar presente em momentos cruciais, inclusive em
palavras sempre oportunas;
Ao Eduardo pelo companheirismo, por mostrar o lado otimista dos fatos
e pela incessante contribuição;
E minha gratidão ao estímulo e ao auxílio da família Modenese, por
meio de Carlinhos, Bete e Giovanna.
xi
“A mente que se abre a uma
nova idéia jamais voltará ao
seu tamanho original”.
Albert Einstein
xiii
RESUMO
Este trabalho propõe a análise da obra documental do diretor Walter
Salles, através de quatro documentários produzidos entre 1987 e 2002. Para
tanto, discute cada um desses filmes de maneira a encontrar traços que
caracterizem o modo com que o diretor realiza as narrativas no gênero.
(PALAVRAS-CHAVE: cinema, documentário, Walter Salles)
xv
ABSTRACT
This dissertation proposes the analysis of the documentary work of
director Walter Salles, through four documentaries produced between 1987 and
2002. It discusses each of these films in order to find aspects that characterize the
way in which the director performs the narratives in the type concerned.
(KEY WORDS: cinema, documentary, Walter Salles)
xvii
SUMÁRIO
1 - INTRODUÇÃO............................................................................... 21
2 - WALTER SALLES EM CONTEXTO............................................. 25
2.1 - Walter Salles e o cinema documental..................................... 28
3 - KRAJCBERG – O POETA DOS VESTÍGIOS............................... 31
3.1 - Natureza, combustível de vida................................................. 34
3.2 - Natureza e arte de manifesto................................................... 37
3.3 - Concreto e abstrato.................................................................. 42
3.4 - Krajcberg e a construção documental.................................... 45
4 - SOCORRO NOBRE....................................................................... 57
4.1 - Caminhos e destinos................................................................ 59
4.2 - Renascimentos.......................................................................... 65
4.3 - Socorro e a construção documental....................................... 67
4.3.1 - Câmera que respira................................................................ 70
4.3.2 - Mistério em quadro................................................................ 72
4.3.3 - Final feliz................................................................................. 74
xix
5 - ADÃO ou SOMOS TODOS FILHOS DA TERRA.......................... 77
5.1 - Adão e a construção documental............................................ 80
5.1.1 - Núcleo narrativo...................................................................... 82
5.1.2 - Vítima ou herói? .................................................................... 84
5.1.3 - Arte insólita............................................................................. 85
6 - UMA PEQUENA MENSAGEM DO BRASIL ou A SAGA DE
CASTANHA E CAJU CONTRA O ENCOURAÇADO TITANIC......... 87
6.1 - Castanha e Caju e a construção documental......................... 91
6.1.1 - Conexão com o real............................................................... 95
7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................... 97
ANEXOS ........................................................................................... 103
Breve entrevista com Walter Salles................................................ 105
Decupagem I..................................................................................... 109
Decupagem II.................................................................................... 119
FILMOGRAFIA.................................................................................. 129
CINEBIOGRAFIA.............................................................................. 131
BIBLIOGRAFIA................................................................................. 135
21
1 - INTRODUÇÃO
A dissertação Salles do real: relações entre sujeitos e contextos nos
documentários de Walter Salles, que propõe a análise da obra documental dirigida
pelo cineasta Walter Salles e a identificação de seus traços distintivos enquanto
modo de produção do gênero, abrange quatro filmes: Krajcberg - o poeta dos
vestígios (1987), Socorro Nobre (1995), Adão ou Somos todos filhos da terra
(1999) e Uma pequena mensagem do Brasil ou A saga de Castanha e Caju contra
o encouraçado Titanic (2002). Porém, esses trabalhos não representam,
necessariamente, a obra documentária completa do diretor
1
.
No currículo do cineasta, presente no site oficial do filme Central do
Brasil
2
, por exemplo, constam também como produções documentais: o trabalho
de cinco horas sobre o conflito entre tradição e modernidade no Japão, realizado
em 1986; a série sobre os artistas plásticos brasileiros Tomie Ohtake e Rubens
Gerchman, dirigida em 1987; o documentário musical sobre o Rio de Janeiro e o
compositor Chico Buarque de Holanda, co-produzido pela rede francesa de
televisão FR3, em 1990; e o documentário sobre a Bossa Nova, com Tom Jobim e
1
Embora esses sejam os únicos documentários, com direção atribuída ao cineasta, na lista de filmes que
consta no depoimento dado por Walter Salles in NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada. São Paulo: Editora
34, 2002.
2
Cf. site disponível em <http://www.centraldobrasil.com.br>. Acesso em: 18 mai. 2006.
22
João Gilberto, feito em 1992.
Embora pouco difundidos e disponíveis, os documentários de Salles
exercem importante influência no modo de produção de suas obras ficcionais que,
entre os trabalhos realizados pelo diretor, são as mais conhecidas pelo grande
público. Essa relação pode ser notada em seus filmes de viagem, onde a
congruência entre os gêneros documentário e ficção está mais presente. Os
longas-metragens Central do Brasil (1998) e Diários de Motocicleta (2004), por
exemplo, são filmes que incorporaram o real, à medida que ele se apresentava no
processo de realização das filmagens
3
.
As relações entre os gêneros também ocorrem de maneira particular,
quando é observada a influência temática que uma obra exerceu, particularmente,
na produção de outros dois filmes. A temática da obra de ficção Central do Brasil
que, entre outros prêmios, rendeu a indicação ao Oscar na categoria de melhor
filme estrangeiro e atriz (1999) e o Urso de Ouro e de Prata no Festival de Berlim
(1998), e se tornou uma importante referência na carreira de Walter Salles, surgiu
de seu trabalho anterior, o documentário Socorro Nobre. A obra, por sua vez, foi
feita através da descoberta das cartas apresentadas ao diretor pelo personagem
do documentário anterior. Durante a produção de Krajcberg - o poeta dos
vestígios, o cineasta conheceu as cartas que Maria do Socorro Nobre escrevia ao
artista polonês Franz Krajcberg, depois de publicada uma reportagem sobre o
escultor em uma revista semanal de circulação nacional. O encontro entre ambos
foi registrado na obra que leva o nome da presidiária baiana Socorro Nobre. E
pensando na possibilidade de que as cartas podem não cumprir os seus destinos,
esse documentário contribuiu de forma embrionária para a temática do longa-
metragem de ficção Central do Brasil.
3
Em Central do Brasil, no trecho em que aparecem pessoas ditando cartas para que a personagem Dora
escreva, com exceção de Socorro Nobre, a primeira pessoa da seqüência, as demais são cartas verdadeiras
como forma de “injetar uma porção documental ao filme”, conforme declaração do próprio diretor.
23
Duas produções documentais, as mais recentes abordadas neste
trabalho, também possuem relações entre si. As mais evidentes são as de que
ambas possuem dois nomes e utilizam a música como veículo de difusão da
mensagem da obra. O primeiro desses documentários, Adão ou Somos todos
filhos da terra, é uma produção resultante dos filmes Notícias de uma Guerra
Particular (1999), dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund, e O primeiro dia
(1999), com direção de Walter Salles e Daniela Thomas. O segundo, Uma
pequena mensagem do Brasil ou A saga de Castanha e Caju contra o
encouraçado Titanic, é uma obra feita especialmente em parceria com Daniela
para a quinzena de realizadores do Festival de Cannes de 2002, a pedido da
revista Cahiers du Cinema, para integrar a série 10 olhares de cineastas sobre a
globalização.
A partir desses objetos de estudo, a pesquisa propõe identificar as
transformações que o contexto exerce sobre os personagens, relação pertinente
também nas obras de ficção do diretor e particulares da fase do cinema
denominada de Retomada
4
. Essa dissertação objetiva também analisar a obra do
diretor considerando que, no cinema documental, suas abordagens estão
baseadas preponderantemente em sujeitos e contextos, enquanto temática. Para
essa idéia de contexto, o trabalho utilizará como conceito a referência funcionalista
que focaliza o contexto enquanto ambiente social, determinado por fatores
culturais, econômicos e políticos, que podem explicar o comportamento social.
Motivado pela possibilidade que a obra de Walter Salles oferece, esse
trabalho discute tais questões considerando que o diretor, mesmo com
reconhecimento da crítica e do público, rendeu trabalhos acadêmicos que estão
ligados, na maioria das vezes, às suas narrativas ficcionais, principalmente ao
4
Cf. NAGIB, Lúcia. Three studies on Brazilian films of the 90’s. Oxford: Universidade de Oxford, 2000.
24
filme Central do Brasil.
Com capítulos divididos em função dos filmes, por uma opção de
destacar a singularidade de cada obra, essa dissertação situa, na primeira parte, o
diretor e suas referências. Os capítulos subseqüentes destinam-se às análises:
daquele que pode ser considerado o primeiro documentário de Walter Salles,
Krajcberg – o poeta dos vestígios; da narrativa que aborda a história da presidiária
Socorro Nobre, que nomeia o segundo trabalho documental; e às produções Adão
ou Somos todos filhos da terra; e Uma pequena mensagem do Brasil ou A saga de
Castanha e Caju contra o encouraçado Titanic, que acima de qualquer outra
intenção, mostram, respectivamente, a expressão artística de Adão Xalebaradã,
um compositor de mais de 500 músicas que nunca foi gravado no Brasil, e da
dupla de emboladores Castanha e Caju.
Por fim, são apresentadas as considerações finais em torno da
dissertação. Os anexos incluem uma breve entrevista realizada por e-mail com
Walter Salles, no período compreendido entre a defesa da dissertação e a sua
homologação, permitido pela agenda do diretor ao coincidir com o intervalo de
festivais para os quais o filme Linha de Passe foi inscrito; além das decupagens
sonoras dos curtas-metragens sobre Adão e com Castanha e Caju, realizadas
para a melhor compreensão da mensagem dos documentários, principalmente, o
que traz a dupla de artistas pernambucanos que desenvolve a embolada de forma
extremamente ágil, com dicção, às vezes, de complicado entendimento. Esta
pesquisa buscou ainda compilar, por meio de uma cinebiografia, os trabalhos
realizados pelo diretor no cinema e no audiovisual, que as informações relativas
a essas obras encontram-se dispersas em variadas fontes, nem sempre de fácil
acesso.
25
2 - WALTER SALLES EM CONTEXTO
O segundo dos quatro filhos do banqueiro e embaixador Walter Moreira
Salles ganhou o nome do pai no dia 12 de abril de 1956. Nascido na capital
carioca, o cineasta e produtor de cinema foi educado no eixo Washington - Paris -
Rio de Janeiro. Herdeiro de um dos maiores bancos privados do Brasil, estudou
Economia na PUC - Rio de Janeiro, mas abandonou a área de exatas em
detrimento ao Cinema
5
. Foi através do mestrado em Comunicação Audiovisual,
particularmente em documentário, realizado nos Estados Unidos, que sua
trajetória na carreira audiovisual teve início. Começou a trabalhar com televisão
quando associou-se a Fernando Barbosa Lima, na produtora independente
Intervídeo
6
, responsável pela produção dos programas de entrevista do jornalista
Roberto D’Ávila.
Em 1987, no ano em que dirigiu Krajcberg - o poeta dos vestígios, o
cineasta fundou com o irmão João Moreira Salles, diretor de Notícias de uma
Guerra Particular (1999), Nelson Freire (2002), Entreatos (2004) e Santiago
(2007), a VideoFilmes, a sua própria produtora que realizou, entre outros
5
Além de dirigir filmes de ficção e documentários, produziu Onde a Terra Acaba, Madame Satã, Cidade de
Deus e Cidade baixa.
6
Cf. RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe. Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Senac,
2000.
26
trabalhos, os documentários de Eduardo Coutinho, Babilônia 2000 (2001) e
Edifício Máster (2002) e de Nelson Pereira dos Santos, Casa Grande e Senzala
(2000) e Meu Compadre Zé Ketti (2001).
Em sua trajetória no audiovisual, dirigiu dezenas de entrevistas com
personalidades como Federico Fellini, Gabriel Garcia Marques, Jorge Luís Borges
e Niki Lauda, feitas para o programa Conexão Internacional – atualmente na grade
de programação da TV Brasil como Conexão Roberto D’Ávila - e mais de 250
comerciais.
Descobriu o cinema na época em que morava na França com a família,
onde o pai era embaixador brasileiro. Debaixo do apartamento onde moravam,
havia uma sala de projeção. Foi ainda com 10 ou 11 anos, que teve seus
primeiros contatos com obras do Neo-Realismo Italiano, interpretadas mais tarde
como uma redefinição cinematográfica.
Walter Salles: (sobre o Neo-Realismo) “Um alargamento das
possibilidades do discurso cinematográfico. No momento em
que Rossellini tira a câmera do estúdio e mostra a vida na
rua, ele redefine não somente uma estética cinematográfica,
mas também uma ética cinematográfica
7
”.
Logo depois, aos 12, 13 anos, conheceu a Nouvelle Vague. Além do
fascínio com O demônio das onze horas (1965), de Jean-Luc Godard, a questão
do afeto presente nos filmes de François Truffaut também lhe era muito próxima.
De volta ao Brasil, conheceu o Cinema Novo e também Limite (1931), de Mário
7
Cf. depoimento dado pelo diretor no livro Cinema da Retomada.
27
Peixoto, filme pelo qual tem afeição especial e que a sua produtora digitalizou
recentemente.
Embora admita que tenha ficado muito influenciado pelo cinema
soviético e fascinado pelo humanismo do cinema iraniano, Salles confessa que o
Cinema Novo é o objeto de sua maior admiração.
Walter Salles: (sobre o Cinema Novo) “(...) pelo fato de que
pela primeira vez tive a oportunidade e possibilidade
espetaculares de ver o rosto do Brasil na tela
8
”.
Bastante conhecido por realizar road movies, como Central do Brasil,
Terra Estrangeira e Diários de Motocicleta, o diretor afirma que essa é a forma de
cinema que mais lhe atrai, que ela possibilita uma maneira de saber mais sobre
o mundo. Parte desse interesse é atribuída à infância fechada e a classe a qual
pertence, que ele denomina como asfixiante
9
.
Walter Salles: (sobre os road-movies) “(...) é o tipo de cinema
que mais me atrai, talvez porque é também uma maneira de
saber mais sobre o mundo. Eu tive uma infância fechada,
meio claustrofóbica até uma certa idade. A classe social de
onde venho é asfixiante. O filme de estrada traz o inverso
disso, permite entender o que é diferente de você (...) Passei
uma parte da infância, dos 7 aos 12 anos, na França.
Detestava aquilo, o mau humor das pessoas, aquela luz, o
frio. O único lugar que eu gostava de ir era o cinema. (...)
Que tipo de criança eu fui? Travada. Primeiro, pela
impressão de estar entre culturas. A busca da identidade que
alimenta tanto Terra Estrangeira quanto Central do Brasil
8
Ibid.
9
Conforme reportagem do site Trip disponível em:
<http://revistatrip.uol.com.br/redirect.php?link=/122/negras/home.htm > Acesso em: 09 abr. 2007.
28
vem daí, imagino
10
”.
2.1 - Walter Salles e o cinema documental
Os documentários de Walter Salles traçam relações essenciais entre os
personagens que os protagonizam e o contexto em que eles estão inseridos. As
relações de Krajcberg e o meio ambiente, de Socorro e o Complexo Penitenciário
Feminino, de Adão e a favela e de Castanha e Caju e a cultura popular nordestina
mostram como o contexto exerce influência sobre os personagens dos filmes do
diretor, conforme será abordado posteriormente. Tais relações ocorrem, inclusive,
em alguns trabalhos mais recentes do cineasta no campo da ficção,
principalmente nos filmes Diários de Motocicleta e Central do Brasil.
No livro Cineastas e Imagens do Povo, Jean-Claude Bernardet propõe
um modelo chamado de sociológico que estabelece, em particular, a influência
exercida do contexto dos anos 60 sobre o cinema, possível de ser identificada
pelas tendências ideológicas e estéticas que pretendiam fazer com que as artes
não expressassem a problemática social, como também contribuíssem para a
transformação da sociedade. Nesse período e na década seguinte, foi detectado
que a produção documentária, em sua grande parte, evoluiu para o registro de
tradições populares, arquitetura, artes plásticas e música. Também é creditada à
evolução política s-golpe o surgimento de várias tendências ideológicas e
estéticas.
Através de um seleto grupo de 25 filmes, realizados entre 1960 e 1980,
Bernardet concluiu que neles não havia somente um interesse social por aqueles
10
Ibid.
29
que são praticamente excluídos da sociedade e vivem na miséria, mas que existia
também ternura, sentimento de dignidade e a compaixão sincera e comovente,
traços possíveis de serem identificados nos trabalhos de Salles, como um sinal de
reflexo do cinema feito durante essas duas décadas.
Embora seja da Sociologia o papel de compreender a sociedade, foi
possibilitada pelo Cinema Novo a procura por uma visão abrangente dos
problemas básicos da sociedade brasileira, e por conseqüência, uma visão da
própria sociedade brasileira. Aos cineastas, mais do que o enredo, o que interessa
é aprofundar o comportamento dos personagens e os significados e as
implicações das situações em que se encontram
11
.
Na teoria de Bernardet, as imagens do povo manifestam a relação
presente nos filmes entre o cineasta e seus personagens. Na relação que é
constituída entre os sujeitos das narrativas documentais de Walter Salles e o
próprio diretor, é possível concluir que o cineasta prioriza enfocar personagens
que pertencem a universos distintos ao seu, não apenas como forma de oferecer
uma oportunidade de expressão, mas também como forma de oferecer uma
espécie de segunda chance, principalmente como prova da dignidade que
possuem, e que dificilmente será dada de outra maneira pela sociedade. Nesse
processo, essa segunda chance não é proporcionada somente aos personagens -
que de uma maneira geral sofrem algum tipo de exclusão, seja social, econômica
ou até mesmo artística - mas também ao próprio cineasta, para que ele conheça
de perto uma realidade aentão distante da sua, uma classe dominante que ele
reluta em apropriar-se como sua. Através da escolha por sujeitos praticamente
excluídos da sociedade, identifica-se um interesse social do autor, cujo trabalho
demonstra um respeito, movido até por um sentimento de compaixão. É assim que
11
Cf. BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2006.
30
Walter Salles revela esse mundo em seu cinema documental, e ao mesmo tempo,
vai descobrindo a si mesmo. E tal como coloca Bernardet
12
, um autor não se
constrói, ele se descobre.
12
Cf. BERNARDET, Jean-Claude. O autor no cinema. São Paulo: Brasiliense, 1994
31
3 - KRAJCBERG – O POETA DOS VESTÍGIOS (1987)
Trecho da vinheta de abertura do programa
1987. A Comissão Mundial da Organização das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED) apresenta um documento chamado
Our Common Future, mais conhecido por relatório Brundtland. O trabalho destaca
em suas páginas que "desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que
satisfaz as necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das futuras
gerações satisfazerem suas próprias necessidades
13
". No mesmo ano, Walter
13
Trecho extraído da publicação.
32
Salles, que na época ainda utilizava em suas obras a assinatura Walter Salles Jr.,
finaliza Krajcberg - o poeta dos vestígios. Embora aparentem distinção em um
primeiro momento, estas produções apresentam um ponto em comum: apontam
para a devastação do meio ambiente.
É em caráter de denúncia que essa narrativa documental começa a ser
desenvolvida, com o fogo consumindo as árvores em Juruena (MT), fronteira com
a Floresta Amazônica. Classificada como um espetáculo que ocorre
aproximadamente 20 anos, a ação tem o objetivo apenas de demarcar
propriedades, como ocorreu nos Estados do Paraná e Espírito Santo, e no sul da
Bahia, onde o que restou foram apenas imensos desertos. Até o documentário
inserir a figura do artista plástico polonês Franz Krajcberg, que nomeia a obra, a
queimada ocupa cerca dos dois minutos iniciais do filme, o que causa a impressão
ao espectador de que o contexto - neste caso, o meio ambiente - é o protagonista
deste trabalho. E de certa forma, é. Não apenas neste, mas também nos demais
documentários de Walter Salles que são objetos de estudo dessa dissertação e
que serão discutidos posteriormente, o contexto tem um papel singular.
Construído a partir de uma linha hierárquica e amesmo psicológica,
que ordena e insere primeiramente os elementos considerados mais importantes
para a narrativa - tal como a lógica do Jornalismo informativo - o documentário
utiliza uma estrutura que maximiza o contexto da natureza e seu cenário de
destruição e, sobretudo, no início. Dessa forma, Walter Salles confere a força que
o ambiente exerce sobre esse trabalho e seu poder transformador na vida do
personagem, tido como supostamente central. Krajcberg é introduzido na narrativa
por meio da sua relação de luta em prol do meio ambiente, como o homem que
acompanhou passo a passo o roteiro do fogo e que mais de 30 anos faz de
sua arte, um manifesto solitário da destruição
14
”. Exilado da guerra, veio ao Brasil
14
Definição feita por meio da voz de Deus .
33
onde encontrou o mesmo cenário, desta vez o da degradação ambiental que, para
ele, é quase tão desolador quanto o que deixou para trás quando saiu da Polônia,
onde também deixou parte de sua história e de suas raízes.
Voz de Deus: “Franz Krajcberg é um eterno nômade. A
natureza sempre foi sua maior inspiração. E para inspirar-se,
ele vai cada vez mais longe, atrás de imagens que o levam
por todo o Brasil. É o que acontecerá neste programa: do sul
da Bahia à Minas Gerais, do Pantanal mato-grossense à
Floresta Amazônica. De todos esses lugares, surge a obra
de Krajcberg, suas esculturas, a transformação da natureza e
de sua destruição em arte, e sua casa em cima da árvore, a
grande escultura em que decidiu morar”.
É dessa forma, com a voz de Deus
15
incorporada pelo ator, diretor e,
neste caso, narrador Paulo José, para dar vida ao texto do roteirista João Moreira
Salles - irmão do diretor e também o co-responsável pela renovação da produção
documental para a TV nos anos 80 - que o documentário Krajcberg - o poeta dos
vestígios e o personagem são apresentados ao espectador. Co-realizado pela
extinta TV Manchete, o trabalho é tratado como um programa televisivo
16
,
conforme consta no próprio texto-sinopse acima transcrito, apresentado na
narrativa posteriormente ao registro do fogo, que consome as árvores do Estado
mato-grossense e à inserção da figura de Krajcberg, que acabam por introduzir,
de forma mais contundente, a destruição que é transformada em arte com o
trabalho do artista.
Essa sinopse de apresentação também é precedida por uma espécie
15
De acordo com Nichols, até a Segunda Guerra Mundial, o estilo griersoniano empregava nos documentários
uma narração em off supostamente autorizada, a voz de Deus, que em muitos casos chegava a dominar de
maneira arrogante os elementos visuais, embora pudesse ser poética e evocativa, como nos filmes Night mail
e Listen to Britain. Nessa dissertação, a voz de Deus também receberá o tratamento de narração e voz over.
16
Dividido em cinco blocos, todos apresentados previamente em relação a sua exibição no programa.
34
de vinheta de abertura, onde são inseridos os créditos da equipe de produção do
trabalho. A forma como isso é feito contribui como argumento dessa tese de que
Krajcberg divide com a paisagem o papel de protagonista da obra; esses créditos
foram introduzidos sobre imagens de uma paisagem natural destruída e do artista.
O cenário de destruição chega, inclusive, a ocupar a cena, com exclusividade, por
alguns instantes dessa vinheta.
3.1 - Natureza, combustível de vida
Maior inspiração do artista, a natureza - assim como ele, vítima da
destruição do homem - também representa o papel de ‘devolvedora’ do sentido da
vida a Franz Krajcberg. Por mais assertiva que possa parecer essa afirmação, é
isso o que mostra a narrativa, ou melhor, é disso que ela também é feita. Embora
perceptível, essa relação não está inserida de maneira tão explícita no
documentário, a não ser em passagens bem pontuais e que merecem ser
destacadas. A que possivelmente mais chame a atenção, ocorre quando
Krajcberg expressa o sentimento de alegria ao encontrar as cores e as formas de
Itabirito (MG), lugar aonde chega em 1965, ao seguir um exílio voluntário. A
intensidade, a maneira e o tom como o artista refere-se à paisagem dessa
localidade mineira conseguem sobressair ao discurso melancólico que impera na
narrativa, possibilitando que as palavras ditas pelo personagem, nessa
circunstância, adquiram novos sentidos
17
. A paisagem de Itabirito o faz despertar
para a vida, ao menos nesse documentário, e lhe proporciona a maior sensação
de felicidade, conforme o próprio personagem revela.
17
Segundo Mikhail Bakhtin, a entonação marca a dimensão autoral do diálogo que o homem tem com o
mundo.
35
Krajcberg: “A primeira vez que cheguei aqui, quando vi essa
paisagem linda, toda essa riqueza, eu fiquei impressionado.
Fiquei tão feliz, que eu acho que a primeira vez na minha
vida que me senti tão feliz, tão alegre. Dava vontade de
dançar, de tanta alegria, tanta riqueza que tinha aqui. Eu me
senti que... vou começar tudo de novo”.
Essa é a primeira declaração de Krajcberg a respeito desse papel da
natureza, enquanto a responsável por lhe devolver o sentido da vida. A forma
como esse discurso, essencial para a narrativa, é inserido no trabalho, também é
passível de uma outra observação. Diferentemente de outros momentos em que a
câmera costumeiramente capta a fisionomia do artista, muitas vezes como se
estivesse à espera de expressões conclusivas que pudessem arrematar o teor
declaratório de seu discurso, nesse, em particular, é usado um registro da
interação entre Krajcberg e a paisagem de Itabirito, inserido sobre o áudio do
depoimento do personagem.
Interação de Krajcberg e a paisagem de Itabirito (MG)
Porém, antes mesmo de mostrar o artista neste ambiente de felicidade
encontrado na cidade mineira, o narrador revela, de maneira ainda um tanto que
implícita - por se tratar de um discurso indireto formulado em uma linguagem
menos objetiva - a importância que o meio ambiente tem para o escultor exilado.
36
O texto é acompanhado por imagens de Krajcberg, em meio ao calor e às cinzas
causados pelo fogo da destruição que consome a vegetação, que podem ser
identificadas posteriormente pelo espectador da narrativa como as do Pantanal
mato-grossense.
Voz de Deus: “Se ele hoje é o maior mbolo da denúncia da
destruição sistemática, isso se deve a experiência de um
homem que conheceu a guerra, a miséria e que foi resgatado
do horror pela descoberta da natureza. Mais do que em
qualquer outro artista contemporâneo, a obra de Franz
Krajcberg é idêntica a sua vida”.
O artista conheceu a destruição nas trincheiras da Segunda Guerra
Mundial. O confronto chegou ao seu país junto com o exército alemão. A mãe,
judia e uma apaixonada pelos ideais da Revolução Russa, foi presa e morta. O
primeiro exílio de Krajcberg foi na extinta União Soviética, de onde combateu o
resto da guerra. Após o final do conflito, o artista teve que enfrentar o regime
stalinista. A França, além de ser a sua segunda escala, antes de chegar ao Brasil,
foi o lugar onde ele conheceu a fome, aos 27 anos. Nove anos depois, em 1957,
se naturalizou brasileiro e ganhou o prêmio de melhor pintor nacional na IV Bienal
de São Paulo. A omissão do documentário sobre a naturalização e a formação do
artista causa a impressão, talvez proposital, de que Krajcberg tenha descoberto
sua vocação no Brasil, ao encontrar na natureza uma motivação de proporção
essencialmente vital. Mas, antes mesmo de chegar ao país, ingressou, em 1940,
nos estudos de Engenharia na Academia de Arte em Leningrado, Rússia. E de
1945 a 1947, estudou na Academia de Belas Artes de Stuttgart, na Alemanha
18
.
18
Cf. matéria disponível em <http://jorculturalcaerj.blogspot.com/2005/09/natureza-morta-que-krajcberg-
revive-em.html>. Acesso em: 22 dez. 2007.
37
A destruição que a guerra, e amesmo os exílios, causou na trajetória
de Krajcberg explica o motivo que faz de sua obra a identidade de sua vida. Tanto
a obra quanto a vida do artista resultam dos vestígios da destruição provocados
pelo homem. Krajcberg não faz poesia apenas com restos vegetais, e é talvez por
isso que o documentário não especifica quais os vestígios a que se refere o título.
Sua poesia, traduzida em esculturas, também é produto das dramáticas e
traumáticas experiências de vida de quem esculpiu sua sensibilidade com o que
vivenciou ativamente na guerra. O trabalho do artista busca um desejo maior que
o manifesto, que a arte. A obra de Krajcberg é movida por um desejo incessante,
assim como ele, de paz.
Grande motivadora do artista, a natureza é, no documentário, o centro
das atenções e ações de Krajcberg e que canaliza a única forma de interação
desenvolvida pelo personagem ao longo da narrativa. Quando está preservada, é
alvo de contemplação e combustível que o motiva a seguir em frente. Quando está
destruída, se torna motivo e inspiração para a sua arte, um manifesto sensível e
original a favor da vida em estado de plenitude.
3.2 - Natureza e arte de manifesto
Polonês naturalizado brasileiro - considerado um dos maiores
escultores contemporâneos na época em que o documentário foi produzido - e
expoente mundial do expressionismo abstrato, Krajcberg é definido como um
artista ecologista, antes mesmo que o termo ecologia se tornasse comum.
mais de duas décadas ou, considerando como parâmetro o período da produção
documentária, a criação do primeiro manifesto pela Floresta Amazônica, nos anos
60, conferia ao artista uma notoriedade não apenas em relação ao assunto, mas
também enquanto fonte absoluta de informação da narrativa, conforme a própria
equipe pôde constatar nas filmagens e o público conferir enquanto assiste à obra.
38
A narração que precede a explicação sobre como a fotografia - uma das práticas
desempenhadas pelo personagem, definido como um fotógrafo do caos
19
pelo
narrador - auxilia o trabalho do artista, confere o grau de autoridade a essa fonte.
Cabe ressaltar que o discurso de Franz Krajcberg não demonstra contradições em
momento algum do documentário.
Narração: “O local (Pantanal) é reserva ecológica mas,
segundo Krajcberg, o controle sobre os caçadores é quase
inexistente”.
A história e a trajetória de Krajcberg e o modo como a narrativa é
conduzida construindo e reproduzindo no personagem a imagem da referência
que Franz Krajcberg tornou-se sobre o assunto - conferem confiabilidade às
informações e credibilidade à figura desse artista ecologista, pioneiro na forma de
abordagem, no acompanhamento e na luta em prol da questão de preservação do
meio ambiente. As experiências de vida do personagem reveladas por esse
documentário o colocam em uma posição respeitosa em relação ao assunto.
Krajcberg: Eu aqui por várias razões. Eu participei das
queimadas do Paraná, participei de todas queimadas do sul
da Bahia e do Espírito Santo. vendo e participei também
da Amazônia, daqui do Mato Grosso. Em todo lugar, a
mesma coisa. Acaba com uma rapidez impressionante. Vira
deserto. Ultimamente com essa consciência de tudo que
acontecendo perto de mim, eu não vejo razão para fazer
retrato ou paisagem. Eu preciso pintar isso, fazer isso. Então
o único meio que eu posso fazer é tirar pedaço desta árvore
19
De acordo com a voz de Deus, “ele não se considera um fotógrafo, mas a fotografia é essencial para o seu
trabalho. Com sua máquina, ele registra os momentos precisos em que as formas e cores se juntam numa
combinação absolutamente singular. A essência da natureza é sua eterna mudança. A fotografia é a forma de
guardar na memória o movimento”.
39
e botar na exposição e dizer “olha, isso é o Brasil”. É isso
que quero chegar com o meu trabalho. Por isso estou nessa
região. Porque as outras regiões foram todas destruídas.
(...) Ninguém salva nada. Você madeira cortada aqui, não
é aproveitada nem 10%”.
Essas informações obtidas através de uma fonte que sempre esteve
testemunhando esse cenário de devastação e com essa postura de manifestação
de cunho não simplesmente artístico, mas também ideológico, conferem uma
força incontestável ao discurso de Franz Krajcberg. Sem utilizar a expressão
‘desenvolvimento sustentável’, Krajcberg produz uma idéia que remete a esse
princípio e a essa necessidade em se estabelecer um progresso com
desenvolvimento ordenado, que garanta a sobrevivência de futuras gerações, tal
como estabelece o relatório apresentado pela ONU no mesmo ano da produção, o
que acaba por conferir ao documentário uma conexão com o presente.
Krajcberg: “O progresso só com ganhos imediatos não é
progresso, isso é regresso. Isso se chama crime o que tão
fazendo contra o Brasil e o brasileiro de amanhã. Isso não é
progresso”.
Além desse pioneirismo e do estilo nômade, que o faz ir cada vez mais
longe movido por um desejo de fugir e evitar - da forma artística como lhe é
possível - a destruição, o escultor revela-se um apaixonado pelo Brasil, embora
admita isso de modo bastante discreto, mais nitidamente em suas ações, do que
propriamente em seu discurso. Quando resgata a descoberta das cores de
Itabirito, demonstra um orgulho - e até de uma forma um tanto esnobe - tal como
um pai quando conta sobre as boas notas do filho observadas no boletim escolar.
O olhar e teor do depoimento de Krajcberg conseguem convencer o espectador de
que o artista sente esse orgulho de viver e de poder partilhar da geografia
40
brasileira, inclusive em seu trabalho.
Krajcberg: “Você vai em Minas, você fica impressionado com
as cores. Tem momentos que você uma tonalidade que
começa de branco e chega até preto, né? Todos esses
cortes que você em Minas, impressionante. Isso não
existe em país nenhum. Eu fui agora em um lugar no sul da
França. Então eles m lá, lugar esqueci o nome... no
Ocre Province... Lugar que tem o sei quantas tonalidades
de ocre, chama lugar... nome da ocre. Puxa, perto de Minas
é nada! Eles ficaram assim espantados. Eu disse, é... é muito
pobre aqui perto das coisas que eu conheço!”.
Lugar de caráter imprescindível para a trajetória de Franz Krajcberg e
para o documentário, é em Itabirito onde o personagem revela a redescoberta do
sentido da vida. Consciente disso, a narrativa pontua essa relação o através
desse sentimento de orgulho dispensado à paisagem mineira que devolveu a paz
ao artista, mas também por dedicar-lhe um bloco inteiro do trabalho documental.
Além de adquirir uma função subjetiva para o personagem, essa cidade
mineira também é fonte de matéria-prima para o trabalho do artista. Com as cores
de Minas Gerais, os vestígios de queimadas das regiões Sul, Nordeste, Sudeste e
Centro-Oeste do país e as formas do mangue encontradas da Bahia, o escultor
realiza seu manifesto através da arte. Essa geografia, essencialmente brasileira,
consegue influenciar e, ao mesmo tempo, viabiliza a produção do artista. Foi
através da descoberta do mangue que o escultor passou a trabalhar com madeira,
o que se tornaria a essência de toda a sua obra. De forma tímida, Krajcberg
transmite a sensação de que esse material lhe abriu novas, recompensadoras e
reconhecidas possibilidades artísticas. Em uma espécie de confissão, ele denota
uma impressão de que quando passou a utilizar a madeira, além de poder sentir o
calor da matéria, condição que considera vital para a realização de seu trabalho,
41
se tornou um sujeito de sorte, revelando mais uma influência do contexto sobre
sua trajetória de vida, conforme mostra a narrativa.
Krajcberg: “Você sabe que quando eu toco uma escultura em
mármore, ela me transmite um frio. A madeira o. Você tem
vontade de tocar ela. E você sabe, tocando a madeira
sorte. Talvez seja isso. Mas ela te transmite um calor. Parece
que ela te transmitindo esse calor que existia quando foi
viva. Isso tem uma importância enorme pra mim, eu gosto de
sentir esse calor da matéria. Por isso eu gosto de tocar,
gosto do que me transmite. Gosto mesmo de pegar a flor ou
quase falar com uma árvore”.
O documentário aponta para um sentido de naturalismo latente. Para o
artista, o homem é apenas parte da natureza, e o um ser superior, o que o leva
a defender racionalmente, e aprecocemente, que ela está acima de qualquer
coisa. A relação do escultor com a vida vegetal consegue ser tão intensa a ponto
dele quase falar com uma árvore, tal como fosse possível estabelecer uma
convivência em ambiente social. O tom de hipótese lançado sobre essa questão
da convivência é empregado no documentário por não haver registro de interação
social, até porque Krajcberg escolhe o isolamento quando chega ao país, a ponto
de não querer mais viver em sociedade. As pessoas que estão na narrativa são os
funcionários do escultor, que desempenham o papel similar aos de contra-regras,
além dos dois rapazes que, no contexto narrativo, são flagrados
20
tocando fogo
em árvores da região do Pantanal. Por lhe representar essa única forma de
interação, a destruição do meio ambiente é tão inconseqüente e devastadora para
Franz Krajcberg - e mesmo ao homem, por mais que ainda não houvesse
consciência para isso - quanto à guerra. Uma discussão talvez ainda precoce para
a época é a que atenta para essa consciência e importância dedicada ao assunto,
20
A circunstância da tomada revela uma provável representação para o registro fílmico.
42
tanto que as áreas são devastadas pelo fogo apenas para delimitar propriedades,
e o para o consumo ou o comércio de madeira, como ocorre atualmente, 20
anos depois do documentário ter sido realizado. E embora haja um tom de
denúncia para essa discussão, o IBDF
21
(Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal) é a única instituição que, de certa forma, personifica, enquanto alvo, as
críticas realizadas pelo artista.
Krajcberg: “O Mato Grosso está em fogo (...). O IBDF não
liga, não quer saber. A castanheira não pode derrubar, mas
pode queimar. Não é hipocrisia?”.
3.3 - Concreto e abstrato
Produto da destruição ambiental e um dos três elementos utilizados no
trabalho do artista, a matéria calcinada representa mais do que uma opção
estética para Franz Krajcberg. Conforme o próprio narrador revela em uma de
suas intervenções, trata-se de uma opção ética. Além de matéria-prima que ainda
apresenta uma finalidade depois de destruída, os vestígios de queimada são
empregados na composição da manifestação da indignação de Krajcberg, não
apenas enquanto um artista, mas também como um ser humano. O tom do
discurso do protagonista da narrativa sugere que ele na degradação ambiental
a perda de um amigo, de um familiar, de um ente querido, tamanho é o seu
envolvimento com essa forma de vida, que o acolheu quando não acreditava mais
no homem, depois de fugir da guerra, da fome e de uma eterna sensação de
perda.
21
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. Uma fusão entre o IBDF, a SEMA- Secretaria do Meio
Ambiente; a SUDHEVEA- Superintendência da Borracha e a SUDEPE- Superintendência da Pesca, resultou
no IBAMA, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, criado
posteriormente ao documentário, em 22 de fevereiro de 1989.
43
Krajcberg: “Olha, eu jurei várias vezes que não voltava à
Amazônia. Eu jurei que não volto mais pra Amazônia, pra
não ver essa destruição, pra não ver esse massacre. Mas a
gente quer captar tudo isso. por isso... pra captar. Sou
revoltado. Eu não posso fazer nada contra isso. Só posso ser
revoltado. Mas dá pra chorar. Tem dias que dava pra chorar”.
Além de conferir um caráter subjetivo e emotivo na trajetória do
personagem, a natureza também possui uma função concreta e objetiva para
Krajcberg. Como o narrador sintetiza ainda na sinopse do documentário, uma
grande escultura também lhe serve de moradia. Em 1980, sete anos antes da
finalização da narrativa, o escultor construía sua casa em cima de uma árvore.
Com uma visão panorâmica e privilegiada, que possibilita apreciar o mar e a parte
superior das copas das árvores, a edificação seguiu princípios de uma arquitetura
conceitualmente brasileira, em razão do clima e do ambiente diferenciado do país,
segundo a própria definição do artista. Krajcberg mostra-se contrário a adoção de
um estilo arquitetônico que padroniza as construções, independentemente se elas
estão situadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Alemanha, Suíça, França, Estados
Unidos ou mesmo qualquer outra região do Brasil. Por mais comum que possa
parecer a expressão de que a ‘casa é a extensão do homem’, no documentário ela
é ratificada, e de uma maneira muito particular. Através do modo como quer viver,
Krajcberg também se define.
Krajcberg: “Eu vivo no mato. Eu gosto da mata e eu sei quem
é a mata. Então eu sempre pensava que o ar que passa
perto de você, perto da moradia, de você. Viver é alto, viver é
espaço mais. Não fica muito fechado. Quero ver o mar, quero
ver as árvores de cima. Tudo isso sou eu. Eu preciso disso,
por isso construí essa casa”.
44
A casa, maior escultura do artista, construída entre
o céu e a terra, em Nova Viçosa (BA)
A originalidade em morar em uma grande escultura, praticamente
suspensa entre o céu e a terra, endossa a possibilidade da descoberta e da
identificação de outras particularidades destacáveis no trabalho do artista polonês,
e que por isso conferem um grau de ineditismo ao objeto abordado no
documentário. Nos anos 60, um período em que a tendência da arte era assumir
um caráter de reprodução, e que inspirava até a vanguarda mundial, Krajcberg
definia os rumos diferenciados de sua obra.
Voz de Deus: “A Revolução Industrial havia ensinado a lógica
das linhas de montagem. A idéia agora era outra, não mais
produção, mas reprodução. Cada vez mais intensa, cada vez
mais veloz. Uma única certeza: tudo é cópia. (...) A cópia se
tornou a grande aventura da arte. Krajcberg optou pela
diferença”.
Tão peculiar e diferenciado quanto utilizar a arte como forma de
manifesto é fazer de elementos naturais os componentes principais de um
trabalho artístico original, estabelecendo assim uma espécie de parceria e co-
autoria entre Krajcberg e a natureza, não apenas enquanto forma de expressão,
mas também enquanto aspecto que modifica a trajetória de vida do personagem,
45
perceptível através desse documentário.
3.4 - Krajcberg e a construção documental
A perda e seu poder transformador. Por mais que não seja uma relação
essencialmente direta, e sim, feita de escalas e de pontes, essa é uma das
sínteses possíveis de serem vinculadas ao documentário Krajcberg - o poeta dos
vestígios. O sentimento de perda da família e das raízes pátrias, das experiências
de vida interrompidas - em razão da guerra - provoca uma transformação
incontestável na vida do artista plástico polonês Franz Krajcberg. Mas essa
transformação ou, em algumas ocasiões, influências do contexto sobre um
personagem que podem ser observadas também nos demais trabalhos do diretor
que serão abordados nesta dissertação, assim como em algumas de suas obras
de ficção, resultam de fatores externos à narrativa, e que estão inseridos de
maneira implícita na construção fílmica documental. Esses elementos estão
presentes nas histórias de vida dos personagens centrais, e conseqüentemente
nas narrativas, até porque ajudam a justificar e pontuar seus discursos. E como
traço recorrente, essas obras apresentam a questão do sujeito e a força do poder
transformador que o contexto em que vive exerce sobre ele ou sobre o seu
discurso e, por conseqüência, no resultado do filme.
Por conta da força do contexto nessa narrativa documental, Krajcberg -
o poeta dos vestígios pode ser considerado um filme extremamente orgânico que
explora com habilidade os sentidos humanos. O som e o calor, por conta dos
estalos e da perda de foco, típica de uma combustão, estão sempre presentes
quando a câmera registra uma queimada, e que neste documentário, são
inúmeras, que elas dividem uma proporção representativa de espaço fílmico
com o artista polonês. A visão e a audição, enquanto produtos resultantes da
incineração das árvores, chegam a ser exploradas de forma tão acentuada e
46
contundente, que não é difícil o espectador associar a imagem ao odor
proveniente da fumaça. E tão orgânico quanto à narrativa é o trabalho de
Krajcberg. O manuseio criativo do artista chega a dialogar com a matéria-prima.
Um exemplo disso é quando o escultor e um de seus auxiliares procuram envolver
um cipó prestes a ser queimado em uma árvore, com o objetivo de criar um anel.
A seqüência, usada praticamente inteira, revela todo esse caráter orgânico –
perceptível através de movimentos e ruídos - do trabalho do artista, por meio do
documentário e sua opção por buscar a integridade da imagem.
Krajcberg e um de seus ajudantes envolvem um cipó
em uma árvore queimada, para criar um anel
que será usado em suas esculturas
Além dessa espécie de diálogo que é estabelecido entre o artista e a
matéria-prima de suas esculturas, uma outra forma de interação na narrativa,
porém com um elemento extradiegético; o de Franz Krajcberg e Paulo José, o
narrador e voz de Deus.
“Por voz eu entendo algo mais restrito que estilo: aquilo que
nos transmite uma percepção do ponto de vista social de um
texto, a maneira como nos fala ou como organiza o material
que nos apresenta. Nesse sentido, vozo se restringe a um
código ou característica, como um diálogo ou um comentário
falado. Voz talvez seja semelhante àquele padrão intangível
47
formado pela interação de todos os códigos de um filme e se
aplica a todos os tipos de documentário”. Nichols (1988,
p.50)
Muitas vezes a imagem que cobre as conclusões dos fragmentos da
voz de Deus é a de Krajcberg aguardando o momento para falar, como se fosse
estabelecer uma conversa, um bate-papo. E o corte da sonora
22
, seguindo essa
linha interativa, sempre aguarda uma expressão que completa o discurso do
artista. A câmera capta sua expressão ao não interromper a seqüência
imediatamente após o término do depoimento do escultor. As reações que
acompanham o discurso o aguardadas de maneira especial porque a captação
delas complementa informativamente as imagens das queimadas, proporcionando
toda a idéia de caos, incômodo e dor causada ao escultor, e que permeia a obra.
A estrutura da narrativa, que entremeia o discurso de Franz Krajcberg e a voz de
Deus, é construída sob um encadeamento resultante da combinação entre
introduções - geralmente criadas pelo narrador e depoimentos do artista que
completam o conteúdo introdutório e que, em alguns momentos, introduzem
também as abordagens subseqüentes da obra feitas pelo narrador, algo
semelhante ao dialogismo definido por Bakhtin
23
. E a narração feita por Paulo
José atribui uma carga de parcialidade ao resultado fílmico; já que não pode ser
considerada nem afastada, nem neutra porque, de certa maneira, se inclui naquilo
que é contado através de inúmeras definições que o dispensadas ao artista que
auxiliam na composição de sua personalidade ao espectador, ao longo dessa
obra.
22
Trecho da entrevista de Krajcberg.
23
Compreendido não apenas como diálogo entre pessoas que estão próximas, mas como uma forma de
comunicação verbal e não-verbal.
48
As expressões conclusivas de um dos depoimentos do artista
captadas pela câmera, antes da retomada da narração
Os enquadramentos, além de revelarem essas expressões que
agregam informações imprescindíveis para a compreensão do papel da natureza
na vida do artista, colaboram também no sentido de mostrar a liberdade
geográfica do personagem, acompanhada em pelo menos três Estados
brasileiros, de três diferentes regiões do país. Krajcberg - o poeta dos vestígios
pode ser considerado uma iniciação de Walter Salles em filmes de viagem, uma
característica estilística do autor e um traço da influência dos road-movies do
cineasta alemão Wim Wenders nas obras documentais e de ficção do diretor
brasileiro, a exemplo do que ocorreu nos longas-metragens Central do Brasil,
Terra Estrangeira e Diários de Motocicleta.
As paisagens das variadas locações ganham uma fluidez na imagem
que tornam-se um outro ponto marcante desse trabalho. Tanto as imagens
melancólicas das queimadas quanto da natureza em seu esplendor, em um sinal
de perfeita harmonia entre fauna e flora, recebem um tratamento e um espaço na
montagem que as fazem se tornar grandes fragmentos de um vídeo-clipe. Mais do
que ilustrar e compor visualmente o trabalho, essas imagens também constroem e
resultam em sentidos metafóricos, se aliadas ao texto, possibilitando um
complemento dessa forma de interpretação. Um exemplo ocorre quando o
narrador fala de tempos difíceis, em razão do cenário de destruição, e uma
49
árvore queimando nas imagens em uma possível analogia ao inferno. Em outro
momento, a imagem feita sob a chuva, a única existente em todo o filme, parece
remeter ao choro. Quando o personagem afirma que a imagem do país, sob o
ponto de vista ambiental, é a de um cenário de destruição e que, à exceção da
região onde ele está, todas as outras foram destruídas, surge esse registro de
uma escultura, produto do trabalho de Krajcberg e da destruição do homem, feito
durante a chuva.
Os elementos naturais, além de ilustrarem o trabalho do artista e sua
relação com o meio ambiente, servem para ligar as cenas, principalmente quando
elas se referem a um assunto diferente daquele que havia sido abordado até que
fosse feita a inserção de um novo tópico no documentário. Utilizadas em planos
longos, combinadas com trilha sonora ora melancólicas, ora motivadoras
conforme o estado de espírito de Krajcberg as paisagens naturais, além de
serem uma ferramenta de ligação entre as cenas ou seqüências, provocam um
questionamento se vistas isoladamente; o de que avalia se elas são protagonistas
ou figurantes no filme. Se levada em conta a questão da relação do contexto com
o personagem e o espaço que ocupa na narrativa, não dúvidas de que a
paisagem ganha um papel fundamental e ‘protagonizador’ em Krajcberg - o poeta
dos vestígios.
Considerando a existência de vários planos seqüência musicados, a
trilha sonora - não diferente do que ocorre em outras obras cinematográficas -
consegue integrar a montagem de forma modificadora, acentuando o estado de
espírito do protagonista da obra. Considerando que Walter Salles não apenas
dirige, mas também é responsável pela edição do documentário, trata-se de uma
informação relevante. E como o contexto ganha um destaque capaz de
protagonizar a obra, as músicas acabam por desempenhar um papel co-narrador
do documentário que alcança um grau didático, não apenas por conta de sua
estrutura, mas também por possuir narração, ou a voz de Deus - elemento que
50
geralmente compõe as narrativas clássicas
24
. Esse é um aspecto que diferencia
Krajcberg o poeta dos vestígios dos demais trabalhos documentais analisados
nesta dissertação. Os documentários que seguem esse modelo estão estruturados
a partir de uma idéia desenvolvida ou narrada em off, ilustrada por imagens e
concluída ou exemplificada através de entrevistas ou depoimentos dos
personagens. Como pode ser observado, essa narração, conhecida como a voz
de Deus, interpreta o que mostram as imagens, fornecendo muitas vezes um
significado unívoco ao filme. O teor do depoimento do personagem está integrado
e subordinado a essa voz, de forma a completar ou a comprovar as informações
da idéia central, sem criar ambigüidades.
Também única obra desse conjunto objeto de estudos que foi realizada
em parceria com uma emissora de televisão, a extinta TV Manchete, Krajcberg – o
poeta dos vestígios agrega outros princípios didáticos, por ser considerado o fato
de que o público das tevês abertas é geralmente menos segmentado e recebe
uma mensagem mais formatada
25
. O documentário se utiliza da lógica jornalística,
onde o texto determina a edição das imagens. Visando a compreensão da
narrativa, a voz de Deus assume nesse trabalho um papel explicativo que propicia
o entendimento do que a imagem pretende informar, conferindo uma dimensão
pedagógica ao resultado audiovisual. Como exemplo, em uma passagem em que
a câmera mostra o trabalho realizado a partir de um processo criado por
Krajcberg, o narrador o explica detalhadamente para o espectador
26
.
24
Têm em John Grierson e Robert Flaherty seus grandes expoentes. Inventores do que é conhecido hoje
como documentário clássico, esses filmes trabalham com grandes acontecimentos e grandes personagens,
como Nanook, o Esquimó (Flaherty), e podem representar grandes modelos como o do pescador inglês, em
Drifters (Grierson).
25
Se tomada como parâmetro a segmentação do público televisivo, a partir da última década do século XX,
com o início das operações das emissoras de televisão por assinatura.
26
Em outros quatro momentos, esse caráter expositivo também é perceptível: quando o personagem mostra
para a câmera, em duas passagens, as cores e os pigmentos de Itabirito e ainda quando explica o corte que é
dado em troncos de madeira, para que sejam criados novos contornos na matéria.
51
Narração: “A cor é a própria terra de Itabirito, jogada sob a
cola. O que colar será cor. O que cair, formará o relevo. Esse
processo é uma invenção de Krajcberg. (...) Depois que a
cola seca, Krajcberg aplica água para retirar o excesso de
terra. A escultura está pronta”.
Não é a presença da voz de Deus que atribui um didatismo ao
documentário. As imagens utilizadas na montagem e edição também conferem
esse caráter e, muitas vezes, são captadas como se fossem feitas especialmente
para a circunstância explicativa da tomada, assim como no trecho acima que
revela uma das invenções artísticas de Krajcberg.
Em outro momento, quando o artista declara que a paisagem de
Itabirito é como uma pintura, a fotografia de Walter Carvalho captura verdadeiros
quadros abstratos, em uma intenção de comprovar que a natureza, tal como
afirma o escultor - também é capaz de produzir arte.
Quadros abstratos identificados pelo personagem e pelo
documentário na paisagem de Itabirito (MG)
52
Considerando que o protagonista dessa produção é um imigrante ou
exilado polonês que, mesmo com o português fluente, apresenta algumas
dificuldades de articulação de discurso, em uma particular passagem do
documentário um novo indício didático que remete a uma co-autoria no
depoimento do personagem, no sentido de auxiliá-lo em sua emissão e na
compreensão da mensagem pelo espectador. Quando Krajcberg revela os
conceitos considerados para a construção de sua casa sobre o tronco de uma
árvore e seu discurso não obtém clareza suficientemente, as imagens utilizadas
na edição acabam por esclarecer a mensagem sonora: ele construiu uma moradia
adequada para a realidade climática do local onde está situada. No depoimento
em que discorre sobre a arquitetura colonial, o personagem migra de assunto,
sem concluí-lo. É nesse momento que as imagens da construção possibilitam a
compressão do discurso. Segundo Krajcberg, a arquitetura, de uma maneira geral,
recebe uma padronização que não leva em conta as particularidades climáticas de
países de continentes distintos, e que para construir sua casa, em Nova Viçosa
(BA), considerou essencialmente as características da região. A menção a essa
localidade do Estado baiano é oportuna também para destacar que é através dela
que o documentário se conecta efetivamente com o presente. Por meio da
narração que localiza também cronologicamente o trabalho, o espectador é
informado - didaticamente - de que onde, na época da produção, havia somente
mangue, uma importante floresta tropical chegou a ocupar aquela área, antes de
ser totalmente extinta.
Narração: “Nova Viçosa, 1987. De uma floresta tropical
sobrou apenas esse mangue. As queimadas destruíram o
resto”.
53
O ritmo da narrativa, de uma maneira geral, também auxilia nesse
aspecto didático do documentário. A obra possui planos longos que, conduzidos
por uma trilha musical instrumental, possibilitam ao telespectador, pensar ou, até
mesmo, reter
27
o conteúdo da mensagem. A fotografia do trabalho contribui para
esse resultado e serve como ferramenta que ordena e agrupa as idéias contidas
na mensagem sonora. A fluidez da imagem de paisagens naturais é tão constante
a ponto de exercer uma função de sub-blocos do documentário, no sentido de
funcionar como um descanso, ou mesmo desvio, em relação à seqüência anterior
a essa opção, tal como fosse um intervalo comercial
28
. E por ser tratado como um
programa televisivo, o documentário possui blocos bem demarcados, e até mesmo
indexados
29
. As imagens em planos longos, quando reproduzem movimentos
sutis, como a de uma vegetação enevoada pela fumaça que oscila levemente com
o vento, tende a se fixar com mais facilidade no consciente e no inconsciente do
telespectador, adquirindo uma função similar a de um comercial de TV. Esse
recurso também é usado pelo cineasta no trabalho Uma pequena mensagem do
Brasil ou A Saga de Castanha e Caju contra o encouraçado Titanic presente no
conjunto de obras analisadas nessa dissertação.
Ainda sobre as imagens, existe um outro aspecto a ser abordado. É em
Krajcberg – o poeta dos vestígios que o diretor utiliza imagens de arquivo e
imagens que estão fora do contexto do objeto, ou do sujeito, que está sendo
documentado. Com a intenção de provocar demarcações, reforçada pelo uso de
imagens contrastantes entre a paisagem urbana de uma megalópole e a paisagem
natural de Itabirito, que o artista expressa de maneira mais explícita a sua relação
com a natureza.
27
Baseando-se na tendência de documentário proposta por Michael Renov de que o espectador grave o
conteúdo da obra, considerando que as representações são equivalentes a históricos reais.
28
Cf. MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão, a vida pelo vídeo. São Paulo: Editora Moderna, 1988.
29
Além do bloco de apresentação do trabalho documental, ou programa televisivo, outros quatro são
indexados na narrativa: Krajcberg descobre a vida nas forma de Itabirito; As esculturas, a influência do
mangue, a casa em cima da árvore; O Pantanal, a destruição; e A destruição e a arte.
54
O contraste entre o trabalho do artista e a arte de reprodução,
influenciada pela industrialização, também é indicada não apenas na construção
do texto, mas na estética das imagens e na montagem da obra. Enquanto o
documentário é basicamente constituído por imagens que permeiam as paisagens
naturais, sejam preservadas ou mesmo em estado de destruição, as imagens
externas - como as de uma megalópole e as que ilustram a idéia de reprodução -
exercem a função de ressaltar os contextos ambientais colocados em questão,
provocando o surgimento de contra-pontos na narrativa fílmica.
Imagens extra-contexto (esq.) que remetem à Revolução Industrial, usadas para
formar contra-pontos, e as que reforçam a originalidade do trabalho do artista (dir.)
As imagens de arquivo que estão em Krajcberg - o poeta dos vestígios,
embora também demarcadas, são utilizadas com sutileza na obra. Nas passagens
que adotam esse recurso, aparecem em branco e preto ao ilustrar a referência
que o narrador faz, por exemplo, à Segunda Guerra Mundial e estão precedidas
pela imagem de Franz Krajcberg também em branco e preto embora o
documentário seja colorido. As imagens em preto e branco do artista - que se dilui
às de soldados armados no front, também não coloridas, de arquivo e de outro
contexto - auxiliam na construção de uma metáfora imagética. Em um dos
momentos em que Krajcberg enfrenta a destruição usando como ‘arma’ sua
máquina fotográfica, a montagem remete a essa metáfora. Com o texto fazendo
55
referência à participação que o artista teve na guerra, recria-se, na passagem
entre as imagens captadas para o documentário e as imagens de arquivo, o
estereótipo de um combatente com funções distintas. Enquanto na Polônia e na
União Soviética o escultor era obrigado a lutar na guerra, em uma atitude
involuntária, no Brasil denuncia voluntariamente a destruição através de seu
trabalho.
A montagem do documentário também merece uma outra observação
especial. A narrativa é baseada em uma estrutura que remete a um caráter cíclico.
Ela começa com a imagem da destruição através da queimada e termina com o
personagem explicando que o seu trabalho é feito para chamar a atenção para
essa destruição. Embora empregada por meio de duas formas distintas, a
destruição abre e encerra o trabalho, constituindo um ciclo, ao ser inserida mesmo
que através da composição de diferentes elementos audiovisuais. A primeira
forma é apresentada pelo próprio narrador quando localiza a queimada em
Juruena (MT) que, segundo ele, havia começado instantes antes do momento da
tomada da imagem em questão. A última, que encerra o documentário, ocorre por
meio do próprio artista cujo trabalho, apresentado em tom de manifesto artístico
contra esse cenário, tem como principal objetivo indignar e mobilizar o público com
a oportunidade de apreciá-lo. Tal como um ‘olho’, um recurso gráfico do
Jornalismo impresso que ressalta o conteúdo mais pertinente apresentado por um
entrevistado, o documentário é concluído com um depoimento isolado do artista,
sugerindo a repetição e a síntese do que foi dito a respeito da essência de seu
trabalho, tal como a pequena sinopse no início da narrativa que resume o teor dos
51 minutos que compõem Krajcberg - o poeta dos vestígios.
Krajcberg: “Pegar isso, um pedaço desse pau, mas criar a
minha obra, pra mostrar pra você que foi destruído, pra você
também se revoltar”.
56
Assim como na vinheta de abertura da obra, o encerramento remete
aos protagonistas do documentário por meio do uso de uma seqüência de duas
imagens frisadas. A primeira é a do artista, logo após a conclusão desse último
depoimento. Uma fusão insere a segunda imagem, a de uma paisagem natural,
que confere a importância que é atribuída ao contexto dessa narrativa.
57
4 - SOCORRO NOBRE (1995)
Título do documentário
1995. A Organização das Nações Unidas comemora 50 anos. Criada
para manter a paz e a segurança no mundo, fomentar relações cordiais entre as
nações, promover progresso social, melhores padrões de vida e direitos
humanos
30
”, a ONU foi fundada após o fim da Segunda Guerra Mundial. Neste
30
Cf. site disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/conheca_onu.php>. Acesso em: 24 mai. 2008.
58
mesmo ano do cinqüentenário, Walter Salles finaliza o seu documentário,
provavelmente aquele de maior repercussão internacional. Socorro Nobre
desconstrói o estereótipo desumanizante que geralmente caracteriza um infrator,
ao apresentar a sensibilidade, o arrependimento e o desejo agudo de uma
presidiária em recomeçar a vida. Ao mesmo tempo, auxilia essa personagem
redimida dos erros e excluída do convívio em sociedade a pleitear o direito à
felicidade.
Se o produto resultante da devastação ambiental criado por Krajcberg
pode ter sido o grande responsável pelo encontro entre o diretor e o artista
polonês e, conseqüentemente, pelo registro fílmico Krajcberg - o poeta dos
vestígios, foi o próprio escultor que possibilitou a Walter Salles conhecer a figura
de Maria do Socorro Nobre, protagonista do documentário Socorro Nobre que, por
sua vez, inspirou o filme de ficção Central do Brasil. Socorro é apenas uma das
personagens reais do longa-metragem, que mistura em determinados momentos,
a ficção com a realidade, a tal ponto de não se saber quem interpreta e quem leva
as experiências de si ao filme. Traço característico da obra do diretor, que trabalha
de maneira constante com a congruência dos gêneros, a exemplo do que ocorreu
também no filme de ficção Diários de Motocicleta.
Em 1993, aos 45 anos e ainda cumprindo pena de 21 anos e quatro
meses de reclusão no Complexo Penitenciário Feminino, em Salvador, Socorro
Nobre escreveu uma carta ao escultor depois de ler uma reportagem a seu
respeito em uma revista de circulação nacional. A baiana foi acusada e condenada
por latrocínio, enquanto cúmplice no assassinato do próprio irmão, morto a tiros
pelo amante dela, em 1986. Franz Krajcberg, que se tornou um grande amigo de
Walter Salles desde que o documentário Krajcberg - o poeta dos vestígios foi
realizado, mostrou a carta da presidiária ao cineasta.
59
Socorro passou sete anos na cadeia, onde ajudava as detentas
analfabetas a escreverem cartas. Com o artista, trocou intensa correspondência.
Quatro meses depois de Walter Salles tomar ciência do contato entre a presidiária
baiana e o escultor polonês, Socorro foi procurada no presídio por uma emissária
do diretor, enviada para confirmar se a autora da carta realmente existia. Após
conseguir uma autorização judicial, durante quatro dias, o diretor registrou parte
das trajetórias, os contextos e o encontro dos dois personagens que resultou no
documentário Socorro Nobre, lançado no ano de 1995
31
.
As informações contidas nos dois últimos parágrafos acima foram
obtidas em reportagens de periódicos e na breve entrevista realizada com o
diretor, que consta nos anexos dessa dissertação. No documentário, não consta,
por exemplo, o delito cometido pela personagem Socorro Nobre. A narrativa
apenas situa as informações que se referem aos períodos de reclusão que a
personagem cumpriu e o que ainda será cumprido, o que ajuda a justificar sua
condição no documentário, e a troca da correspondência entre Krajcberg e
Socorro, o fato provocador do registro documental.
4.1 - Caminhos e destinos
Até o encontro presencial, a narrativa desenha linhas sinuosas, que se
cruzam quando estabelecem semelhanças e se separam em razão das distinções
entre os personagens - ambos considerados protagonistas - e de seus contextos,
capazes de modificar seus discursos. Porém, é Socorro Nobre que se destaca por
ser autora das declarações mais densas da narrativa. Até por conta disso, o seu
nome intitula a obra e é inserido, através de caracteres, em dois momentos: no
31
Cf. ALTMAN, Fábio. Brasil de Central do Brasil. Época, Rio de Janeiro, 1º. fev. 1999.
60
início do documentário e no início do depoimento da presidiária no filme. A relação
entre sujeito e contexto torna-se incontestável se considerada, no caso de
Socorro, por exemplo, uma dissociação entre discurso e ambiente da
personagem. O depoimento de Socorro Nobre deixa de ter o mesmo valor se
desconsiderada sua condição de detenta.
Introduzido no documentário por meio do ambiente em que vive,
Krajcberg abre a narrativa se apresentando, de modo que chega a ser bastante
subjetivo, porque aponta aspectos extremamente pessoais de sua história. Essa
apresentação do documentário e do primeiro contexto da narrativa, cuja
perspectiva é a experiência de vida de Franz Krajcberg, ocupam mais de cinco
minutos do espaço fílmico, até que Socorro Nobre seja efetivamente inserida na
obra; inicialmente apenas a partir de sua voz e, posteriormente, também através
de seu ambiente, a exemplo do artista. Uma seqüência de imagens, que tende a
uma atmosfera poética, introduz o presídio na narrativa documental.
Nesse tempo dedicado exclusivamente a Krajcberg, o escultor conta
que nasceu na Polônia, em uma cidade pequena, que viveu no gueto e quando ia
à escola, tinha que, obrigatoriamente, se sentar do lado direito. Mesmo adorando
futebol e é esse mesmo o verbo que o personagem sensível, porém introvertido,
emprega em discurso direto –, não ia aos estádios porque corria o rio risco de
morrer. O artista também revela que não conhecia o outro lado da cidade, porque
podia viver em apenas um deles. E criança sensível confessa, se questionava
sobre o motivo que fazia com que outras crianças tivessem mais direito que ele,
mesmo todos sendo aparentemente iguais. Essa limitação o marcou para sempre.
Porém, Krajcberg, novamente, e desta vez neste documentário que aborda a
história da detenta baiana, repete, com coerência, o discurso que ressalta o papel
fundamental da natureza em sua trajetória de vida, a exemplo do que foi revelado
em Krajcberg - o poeta dos vestígios.
61
Posteriormente a esse resgate de seu histórico, ele faz a revelação que
mudaria de vez o curso da narrativa documental: a de que recebe cartas,
principalmente de jovens do mundo inteiro, interessados na questão ecológica. No
entanto, de todas as cartas recebidas, a que mais o marcou, até aquele momento,
foi uma remetida de Salvador e que diz respeito a própria história de vida de quem
a escreveu.
Socorro: “Senhor Franz. É muito difícil começar escrevendo
para você. Mas mesmo assim, eu vou tentar. Ao ler a
reportagem da revista Veja, sobre você, fiquei fascinada
sobre sua maneira de viver. Sei que você não vai me
responder quando lhe disser onde estou. Eu fecho os olhos e
vivo de recordação e sempre me vejo passeando em uma
praia tão bonita quanto esta que é sua. Meu paraíso é
imaginário, mas tem me ajudado muito a ficar calma e
esperar o tempo passar. As pessoas, às vezes, dão valor
às coisas quando perdem. Eu hoje me encontro no Presídio
Feminino, em Salvador. Mas muito em breve, vou poder
novamente andar descalça pela praia, ver a lua, ver as
estrelas, poder criar novamente minhas galinhas. Talvez até
ter uma cadela como Peroba. Agora vou me apresentar, meu
nome é Maria do Socorro Nobre, estou presa quatro anos
e nove meses. Estou aqui no Presídio Feminino, em
Salvador. Fui condenada a 21 anos e quatro meses de
reclusão. Se chegar a ler esta carta. Obrigada. Com
admiração e carinho, Socorro Nobre”.
Tão notável quanto a dignidade da detenta e o desmerecimento que
dispensa a si mesma, em razão da consciência que tem de sua condição de
presidiária, é observar a postura de isenção e imparcialidade do artista quanto ao
fato de que ele estava se correspondendo com uma infratora, excluída do convívio
social por ter cometido um grave e irreparável erro de conduta. Cabe observar que
o escultor, diferentemente de Socorro Nobre, não faz nenhuma referência direta à
presidiária no filme. No entanto, o teor da correspondência é capaz de despertar a
62
atenção de Krajcberg para a sensibilidade de Socorro. E outros pontos-chave
estabelecem esse contato e certa identidade entre eles; o reconhecimento de si,
que um tem e no outro, como a questão da igualdade entre ambos em relação
a sentimentos específicos. Trata-se de pessoas angustiadas pelas perdas
indissolúveis causadas por motivos diferentes e particulares, mas com o mesmo
poder transformador. O documentário leva a crer que a maior distância entre as
duas trajetórias de vida esteja associada à condição de liberdade.
Socorro Nobre e Franz Krajcberg tiraram da destruição suas lições de
vida e, por conta do próprio destino, tiraram também experiências do exílio. O da
primeira personagem, obrigatório, e o do segundo, relativamente voluntário.
Mesmo sob argumentos diferenciados, eles estão motivados pela mesma
angústia: a de buscar um caminho indolor e não errante, porque carregam
grandes cicatrizes. O artista demonstra não ter se recuperado plenamente, como é
compreensível, do trauma de ter perdido toda a família quando as tropas de Hitler
invadiram seu país de origem, em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. a
guerra de Socorro é interna. Ela tenta se desvencilhar do arrependimento de ter
cometido o ato que a levou, direta ou indiretamente, para atrás das grades, e que
a fez perder a família e seus três filhos, embora não em caráter definitivo, como
ocorreu com Franz, o que não deixa de ser uma ausência sentida e causadora de
sofrimento, como mostra o documentário.
Cabe também notar que a ausência e o seu poder transformador
despertam uma reação e uma conduta relativamente inversa entre os
personagens da narrativa. Por conta do momento em que a perda acometeu as
duas trajetórias, Krajcberg, por exemplo, que teve sua vida, sua família e sua
história arrasadas pela guerra, passa a dar valor para aquilo que tem e
conquistou, em solo brasileiro, a partir do exílio. Socorro, mãe de três filhos,
depois da perda causada por ter sido condenada à detenção, passa a dar valor
àquilo que não possui mais, enquanto uma presidiária. Viver nessa condição lhe
63
impõe privações que passam, inclusive, pela impossibilidade de realizar pequenos
e singelos hábitos cotidianos.
Socorro: “Em Ilhéus era cimento, como aqui. Tem aquele
jardim ali, mas votem pouco acesso ao jardim. A verdade
é que o nosso acesso é daquele portão pra cá. Então quando
cheguei em Itabuna, eu tinha, eu tinha visto grama, tinha
assim um século. Então eu pedi a um rapaz pra pegar.
Porque é uma coisa, que é uma coisa besta, né? Você
naturalmente, você não importância. Mas na hora que eu
vi, eu disse: você deixa eu pegar um pouquinho na grama?
Você deixa eu pisar? Ele disse: deixo, pode pisar, pode ficar
à vontade. E eu fiquei. Foi a maior sensação que eu senti
na minha vida”. (choro)
Embora carregada de singelezas, essa é a declaração mais emotiva do
documentário de Socorro Nobre. Mesmo com um discurso, ao longo da narrativa,
predominantemente carregado de emoção e de impressões densamente pessoais,
é quando fala da possibilidade de voltar a tocar a grama que a personagem não
consegue conter as lágrimas e é levada ao choro. Tamanha é a sensação de
privação da presidiária, que o fato de poder pisar na grama ganha uma
importância e uma magnitude inimagináveis para uma pessoa que usufrui da
condição de ser livre, como Krajcberg, que explora sua liberdade geográfica de
maneira bem contrastante, se comparada a Socorro Nobre na narrativa
documental.
64
Liberdade geográfica de Krajcberg (esq.) e cena da vida em cárcere (dir.)
Sobre essa condição almejada de liberdade, Socorro lança, em
determinado momento da narrativa, a suspeita de que foi presa injustamente, ou
de que a pena que cumpre é maior do que realmente o seu delito merece.
Categoricamente, ela afirma no documentário que se sente injustiçada e, estando
na condição de ré. E Krajcberg também manifesta explicitamente sua indignação,
ao se definir como um homem revoltado e expressar esse sentimento através de
seu trabalho, feito para sensibilizar e levar as pessoas a compreenderem que a
vida é um conjunto, e que tudo que existe no planeta tem direito de viver e existir.
Assim como Socorro rompe o estereótipo de que o sujeito infrator não é sensível,
Krajcberg, em um traçado que une as linhas sinuosas das duas trajetórias, mostra
que a revolta que sente não induz o seu comportamento a uma postura
individualista, embora tenha optado, aparentemente, por uma vida solitária. Em
uma provável intenção de eliminar os elementos que não acrescentam e também
não fazem falta à narrativa, Walter Salles não revela, nas imagens que mostram o
trabalho de Franz Krajcberg, a participação dos ajudantes do escultor, que pode
ser associada para a realização de determinadas ações, a exemplo do que foi
registrado em Krajcberg – o poeta dos vestígios.
Mesmo em papéis opostos, uma enquanto ré e o outro enquanto vítima,
nas trajetórias dos dois personagens, a condenação é um traço comum e
perceptível. Embora a presidiária e o artista sejam pessoas condenadas pela
65
angústia e pela amargura, em razão de seus passados, existe uma condenação
mais objetiva que pode ser destacada. Enquanto Krajcberg luta contra a
condenação da natureza, Socorro tenta se desvencilhar da eterna condenação
intrínseca a um presidiário, tanto dentro como fora da cadeia, conforme pressente
na carta remetida ao escultor.
4.2 - Renascimentos
Franz Krajcberg nasceu pela segunda vez no Brasil. Ainda presa,
Socorro aposta e se apega a um segundo nascimento quando deixar a cadeia.
Com essas possibilidades de recomeço que a vida apresenta e que estão
presentes no documentário, surge um novo traço recorrente nos filmes de Walter
Salles: suas obras registram, ou até mesmo viabilizam, o rebatizado de seus
personagens. Além de mostrar que a prisão e a privação modificaram Socorro a
tal ponto de levá-la a se arrepender de tudo o que fez e confessar uma dívida
social, também, antes de tudo, uma dívida da personagem consigo mesma.
Entre os filmes realizados pelo diretor no campo da ficção, essa relação se aplica,
por exemplo, em Central do Brasil. Dora, papel interpretado por Fernanda
Montenegro, atinge um grau de ressensibilização
32
, possível, neste caso, graças
ao curso da narrativa ficcional, capaz de provocar modificações, tal como a
humanização da personagem.
Nessa relação dos personagens com a vida e suas tentativas de
superação, mais uma semelhança entre os caminhos de Krajcberg e Socorro deve
ser destacado: a confissão de ambos do desejo de morrer. Mais um sinal de que a
32
Cf. expressão usada por Walter Salles para as transformações da personagem, descrita por AVELLAR, José
Carlos. ImagiNation. In NAGIB, Lúcia (Org.), The new brazilian cinema. Londres/ Nova York: I.B. Tauris,
2003.
66
igualdade é apenas uma questão de perspectiva. Mesmo com histórias o
diferentes, a presidiária e o artista demonstram a busca incessante pelo mesmo
sentido da vida, como qualquer outro ser humano.
Krajcberg: “Depois da guerra, sem dúvida, eu fiz de tudo pra
fugir do homem. Procurar um lugar onde não tem homem. Eu
não imaginava que no Brasil não tem homem. Eu vou fugir
longe dessa Europa, dessa guerra, dessa gente que gosta de
se mostrar superior do outro. Porque ele acredita em uma
outra religião, outra raça. Também tem o outro lado da minha
vida, nascer a segunda vez. Descobrir a vida de novo. Foi o
Brasil. (...) o acreditava mais na vida, que quis até me
suicidar. Quando descobri essa natureza, puxa, dava
vontade de dançar da alegria que descobri a vida que nunca
pensei”.
Socorro: “Eu pedi a Deus pra morrer. Hoje eu não peço. Hoje
eu quero que Deus me dê, que eu fique veinha, de cacetinho,
certo? Pra tirar isso daqui, de minha cabeça, pra começar a
viver quando sair daqui. Como minha filha caçula me diz,
‘começar a viver depois de velha’, não é? Então eu quero
começar a viver depois de velha. que agora, eu digo todo
o dia, quando eu sair da minha condicional, é como se eu
tivesse saindo da barriga de minha mãe, com juízo”.
A expressão ‘o inferno são os outros’ não é necessariamente uma
recorrência nesse documentário, a porque cada personagem revela o seu
inferno interior. Enquanto padecem de uma forma particular, a ponto de manifestar
um desejo de abreviar a vida, ambos também têm seus paraísos, ora concretos,
ora imaginários, conforme revela Socorro. O de Krajcberg seria externo e real. O
paraíso da presidiária, interno e imaginário, seria uma ‘válvula de escape’ para
conseguir sair, psicologicamente, ilesa da prisão. Essa relação entre os
personagens e a idéia de paraíso também é explorada de outra forma na narrativa
fílmica, que vai além do discurso, como será abordado posteriormente.
67
4.3 - Socorro e a construção documental
1995, além de ser o ano em que Socorro Nobre foi finalizado, foi o ano
em que Maria do Socorro Nobre obteve a liberdade condicional. Denominado
também como um programa de televisão, ainda no inicio da narrativa, quando são
listados alguns dos prêmios que recebeu, o documentário, por não ter uma voz
over como Krajcberg o poeta dos vestígios, é montado por Walter Salles de
forma que sejam estabelecidas conexões simbólicas entre os elementos que
compõem o filme.
O trabalho é estruturado com o propósito de preparar a inserção de
novos elementos na narrativa. O contexto de Krajcberg anuncia a apresentação do
personagem. Os intertítulos ‘Recomeço’ e ‘Cartas’, por exemplo, estabelecem as
ligações entre as trajetórias do artista e da presidiária. A primeira expressão
anuncia a identidade entre eles, ainda de forma subjetiva, e a segunda, o encontro
deles, de maneira concreta.
Antes mesmo do documentário efetivamente ter início, um cadeado do
portão da prisão sendo aberto abre, também metaforicamente, o filme. O
movimento de um portão do presídio representa também um simbolismo de
imediata associação. Quando abre, a câmera entra no microcosmo do
personagem de Socorro Nobre a cela do Complexo Penitenciário - e quando
fecha, entra no universo subjetivo da própria presidiária. Pelo fato de não ter voz
de Deus, a montagem de Socorro Nobre causa a impressão de que uma ordem
psicológica é utilizada para aglutinar os elementos da estrutura do documentário.
Uma metáfora com o objetivo de acentuar as conseqüências de um
68
importante fato na vida do artista é apresentada quando, através de caracteres, é
revelado que Krajcberg perdeu toda a família na guerra. Antes dessa informação,
a imagem inserida na narrativa é a de uma ‘família’ de troncos esculpidos,
resultantes do trabalho do escultor. Imediatamente após essa informação sobre a
perda, um tronco aparece solitário, tal como Krajcberg.
Metáfora que remete à perda da família e
a conseqüente solidão de Krajcberg
A palavra ‘realidade’, destacada no discurso de Socorro, é, por
exemplo, uma espécie de elo com as imagens que mostram o contexto em que a
personagem vive, desta vez sob uma atmosfera mais densa, inclusive com
algumas das detentas evitando, visivelmente, serem identificadas, ao esconderem
seus rostos. Em um primeiro momento, as imagens do presídio estão inseridas de
forma um tanto quanto poética no documentário. No entanto, a personagem
Socorro Nobre é relevada inteiramente quando é inserido um segundo registro
do presídio, em tom mais realístico se comparado ao primeiro momento. As
presidiárias, além de estarem inseridas nas imagens que mostram o presídio,
também ganham voz no documentário, mas suas identidades não são reveladas,
o que denota uma intenção ética por parte do cineasta. A forma como essas
imagens são construídas revelam, também, uma intenção estética quando, por
exemplo, um enquadramento utiliza as grades da cela como uma espécie de filtro.
69
Mesmo com essa opção estética, a narrativa atribui um toque de humanidade às
detentas, seja através de seus discursos, seja através de suas expressões que
são captadas pela câmera.
Há outros elementos simbólicos que estão presentes no documentário e
que ajudam a compor e a demarcar o contexto de Socorro no espaço fílmico,
como os que caracterizam o ambiente de reclusão feminina, utilizados de uma
forma peculiar; através de efeitos como a câmera lenta. A câmera passeia no
presídio por diversos objetos, alguns deles, inclusive, clichês quando analisada a
relação de sua inserção na obra e a temática do filme. O relógio sem ponteiro,
reforça a idéia de que o tempo não passa na prisão? O cartaz com a frase ‘você
era feliz e não sabia?’ revela um tom de moralismo para o contexto da narrativa?
E uma folhinha-calendário, com o dia 16 de um dos meses do ano demarcado e
anotado junto com a intenção de grafia do nome de Franz Krajcberg, anuncia que
o encontro entre os personagens centrais do documentário é aguardado
ansiosamente pela presidiária?
De maneira muito sutil, a frase escrita na parede ‘jamais vou esquecer
que amei o homem errado’ aparece na obra também a fim de contextualizar esse
universo feminino. A maternidade, o ícone mais expressivo que pode ser
associado à mulher, está inserido na narrativa através do registro de mães
detentas que amamentam seus filhos, que também vivem na penitenciária. A
câmera registra e revela, de maneira singular, o universo microcósmico do
presídio, assim como o interior de uma cela ou de um portão, proporcionando ao
espectador o olhar de quem vive recluso neste ambiente.
70
Elementos que caracterizam o ambiente
onde Socorro Nobre vive
4.3.1 - Câmera que respira
A personagem que nomeia a obra tem seu discurso bastante recortado
no documentário. Porém, esses recortes aparentam estar diluídos ao longo da
narrativa pelo fato do filme ser branco e preto e utilizar os recursos de fade in e
fade out na edição, mantendo em cena os tons de cinza das imagens do
documentário. Essa composição ajuda a tornar a montagem, que também recebe
a assinatura de Walter Salles, mais sutil. Dentre todos os documentários
analisados nessa dissertação, Socorro Nobre pode ser considerado o mais
subjetivo. A obra conta com um enquadramento
33
, feito em grande plano para o
registro do depoimento da personagem, que reforça essa característica. E os
cortes sutis realizados no depoimento de Socorro dão a impressão que a câmera
33
“Quanto menor a capacidade do olho humano de distinguir com clareza a forma real dos objetos, maior o
papel desempenhado pela imaginação, que faz um registro extremamente subjetivo do que ainda resta de
realidade visível”. in XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições
Graal/Embrafilme, 1983.
71
respira junto com a personagem, tamanha é a proximidade da presidiária em
relação à narrativa nessa particular circunstância.
Desse conjunto de documentários Krajcberg - o poeta dos vestígios;
Socorro Nobre; Adão ou Somos todos filhos da terra; e Uma pequena mensagem
do Brasil ou A saga de Castanha e Caju sobre o encouraçado Titanic - as
declarações mais pessoais e que exprimem maior grau de sensibilidade estão
contidas nesse segundo trabalho documental do diretor. O enquadramento da
câmera contribui para esse resultado fílmico. Além de possibilitar a expressão da
sensibilidade da personagem, desconstruindo o estereótipo desumanizante do
infrator, o documentário possibilita à detenta a confissão de seu arrependimento
para a sociedade, feito através da câmera. Morin, um dos pioneiros a fazer uma
relação entre documentário e psicanálise, identifica na comunicação uma idéia
terapêutica que pode significar liberação de um personagem
34
.
Através do discurso emocionado e intimista, a presidiária exprime o que
sente através de três distintos estágios emocionais: arrependimento do que fez,
com exceção de ter gerado seus três filhos, explicitada no documentário de forma
enfática; regeneração propiciada com a reclusão; e o desejo de redescoberta e
início de um novo ciclo de vida, a partir do momento em que readquirir a liberdade.
Socorro (Arrependimento): “Vixi Maria... eu nascia de novo,
menina, na barriga de minha mãe. A única coisa de meu
passado que eu queria era meus três filhos e o resto eu
modificava tudo. Você entendeu? Tudo! Você pode acreditar.
Se eu pudesse... se eu tivesse um botãozinho mágico, ah
criatura de Deus, eu tava sendo graxeira dos outros, mas eu
não tava aqui. Sabe? Sinceramente!”.
34
As revelações de Socorro Nobre podem ser entendidas como uma liberação, em razão da possibilidade que
a narrativa representa a ela de expressar o que não lhe foi possível nesse período de reclusão.
72
Socorro (Regeneração): “Eu quando vim presa, tinha 36
anos, 35. Não aprendi nada lá fora. Em 6 anos quase: 5 anos
e 4 meses que eu aqui, eu acho que se eu viver 100 anos
lá fora, sem passar por isso, eu não aprendi”.
Socorro (Recomeço): “Ter a certeza de um recomeço, a
certeza da minha vitória ao sair daqui. É como eu tenho
essas duas mãos, certo? É como o sol nascer todas as
manhãs luminoso, né? E na maior beleza do sol nós estamos
dormindo, a maioria das pessoas estão dormindo, né? A
certeza de um recomeço brilhante, pela força que eu tenho
dentro de mim. É a maior certeza da minha vida. É o meu
maior sonho. É eu me reerguer por mim mesma. certo?
Eu acho que devo isso a mim mesma”.
4.3.2 - Mistério em quadro
A aparição de Socorro Nobre na narrativa ocorre sob uma atmosfera,
no mínimo, misteriosa. Com apenas metade da face relevada no enquadramento
de close, a imagem ainda consegue demonstrar a presença da grade da cela de
forma bastante difusa. o é possível saber se o elemento mais simbólico da
prisão está entre a câmera e a personagem, ou impresso na cena apenas por uma
sombra, criada por uma opção estética empregada no documentário. Esse
enquadramento extremamente fechado, que registra a personagem Socorro
Nobre, margem a uma interpretação de que essa é a única possibilidade da
personagem estar no mundo, diante da privação de sua liberdade.
73
Inserção inicial da personagem Socorro Nobre no documentário
Inseridas através do intertítulo ‘Outras vidas’, cinco detentas não
identificadas no momento em que depõem para a câmera, também participam da
narrativa, inclusive na ficha técnica no final do trabalho. E se em algumas das
participações de Socorro persiste a dúvida em relação à posição das grades da
cela no contexto filmado, nas entrevistas com as detentas não dúvidas de que
a grade separa a câmera e, consequentemente, quem está registrando do objeto
que é registrado. O recurso estético reforça as marcas que carregam essas
personagens sob os pontos de vista psicológico e também social. No entanto, os
depoimentos das outras presidiárias também reforçam a humanização presente na
obra e, ao mesmo tempo, ressaltam a veracidade do ambiente da narrativa fílmica.
O sentimento de perda e angústia permeia, implicitamente ou explicitamente, de
forma quase que padrão, os depoimentos dessas presidiárias ouvidas no
documentário. Suas inserções dão a impressão - como realmente ocorreu - de que
as seqüências das quais participam foram gravadas após o contato da equipe do
documentário com o presídio. Socorro Nobre foi o primeiro trabalho de Walter
Salles feito sem roteiro
35
.
35
Cf. declaração feita pelo diretor em uma conversa com Ivana Bentes, Carlos Alberto Mattos e José Carlos
Avellar, publicada na revista Cinemais, número 9 (janeiro/fevereiro) de 1998, através do texto Walter Salles:
o documental como socorro nobre da ficção.
74
Duas das cinco detentas que ganham voz na narrativa
4.3.3 - Final feliz
Composta por elementos que denotam um caráter ficcional, como o
momento em que Krajcberg simula a leitura da carta que recebeu de Socorro
Nobre para o registro documental, a narrativa apresenta um final que pode ser
considerado feliz. Além do encontro entre os personagens, a informação de que a
presidiária obteve a liberdade condicional integra o final do trabalho, encerrado
com uma declaração de Krajcberg, cuja voz também abre a narrativa.
O encontro dos personagens, que no documentário está desprovido de
qualquer som, também confirma a força que as imagens possuem nessa narrativa
que utiliza contexto e simbolismos como recursos de abordagem da subjetividade
sensível de Socorro. É nesse momento que os rostos das presidiárias aparecem
de forma integral. Influenciada pelo clima de afeto e pela distância que a câmera
adota em relação aos personagens principais, em um ângulo mais aberto, a
comoção do ambiente do encontro contribui para esse estado de humanização
das detentas, possível através do registro de emoções distintas, tais como o riso e
o choro, produtos de seres sensíveis diante de uma atmosfera emotiva.
75
Se por um lado explora clichês que ajudam a caracterizar o ambiente e
o contexto da ação, registrada em grande parte em uma prisão, o filme também
revela uma igualdade, por menor que seja, no modo de vida entre quem vive em
cárcere e quem vive com a liberdade geográfica, como é o caso do artista. Nas
cenas que antecedem o encontro entre Socorro e Krajcberg, o escultor e uma
detenta são inseridos na montagem realizando a mesma ação, como que
afirmando que, apesar das privações, ainda é possível desenvolver dentro da
prisão hábitos de quem possui o direito de viver em liberdade. Cabe destacar que,
quando as demais detentas aparecem de forma identificável nas imagens,
geralmente realizam ações consideradas neutras, que não reafirmam a condição
de presidiárias. Em uma atmosfera de leveza, em grande parte viabilizada pela
trilha sonora, uma presidiária rega as plantas do Complexo Penitenciário, tal como
Krajcberg, que irriga alguns arvoredos. Assim se torna possível estabelecer uma
relação que rompe com o paradigma preconceituoso, que fica implícito que,
guardadas as devidas proporções, os modos de vida podem apresentar
semelhanças, e que a maior de todas as privações do cárcere é a do convívio
social. Socorro possibilita a abertura para um mundo não conhecido e composto
por pessoas que vivem com dignidade, angústias e alegrias. Uma moça
cantarolando a música diegética que serve de trilha para os instantes que
antecedem o encontro, conferem mais uma situação corriqueira, que prepara, com
leveza, o ambiente para esse momento importante para os personagens e para o
filme.
Ainda nesse contexto de leveza que antecipa o encontro, é utilizada
uma declaração de Socorro que se refere ao paraíso dos personagens, e que
aponta para a estrutura psicológica do filme. Enquanto Socorro diz que o paraíso
do escultor é externo e o dela é interno, a música ajuda a compor essa atmosfera
positiva, ilustrada pelos costumes bucólicos de regar as plantas e cantarolar. As
imagens objetivam atestar o paraíso colocado em questão. Nesse contexto, a
personagem confessa as expectativas otimistas quanto ao recomeço de sua vida,
76
quando sair do presídio e ganhar a liberdade. Esse ambiente introduz o tão
aguardado encontro entre os personagens centrais da narrativa: Franz Krajcberg e
Maria do Socorro Nobre.
Por mais invasivo que o trabalho possa parecer, tendo a perspectiva de
que uma equipe realiza um filme dentro do presídio - que capta não apenas o
modo como vivem as detentas do Complexo Penitenciário de Salvador, mas suas
angústias, arrependimentos, e que consegue registrar, de modo particular, as mais
sinceras e surpreendentes declarações da personagem central da narrativa - o
encontro no final imprime uma idéia de privacidade, até então não observada no
filme.
Encontro de Krajcberg e Socorro Nobre
Logo após esse encontro emocionado, o documentário é concluído com
uma mensagem de otimismo, expressa por Krajcberg, o único dos personagens
centrais a ganhar voz nesse momento. O artista, em off, como na maioria de suas
participações, no instante final do filme, declara que fez de tudo para esquecer seu
passado, em um sinal de confissão de que não possibilidades de lutar contra o
que passou, e que apesar de tudo, a vida continua”. Essa frase representa a
essência da lição de vida, presente em Socorro Nobre.
77
5 - ADÃO ou SOMOS TODOS FILHOS DA TERRA (1999)
Titulo do documentário
1999. João Moreira Salles e Kátia Lund dirigem Notícias de uma guerra
particular, trabalho documental sobre a violência urbana que tem como cenário o
Rio de Janeiro e como personagens policiais, traficantes e moradores de favelas.
O trabalho conta com a colaboração de Walter Salles, um dos realizadores de O
78
primeiro dia (1999) e Adão ou Somos todos filhos da terra, lançado também em
1999. Embora resultado de uma produção coletiva das equipes de Notícias de
uma guerra particular e de O Primeiro Dia (com direção de Walter Salles e Daniela
Thomas), esse curta-metragem sobre o compositor Adão Xalebaradã está,
geralmente, vinculado à filmografia desses dois últimos diretores.
Em Notícias de uma guerra particular, o núcleo familiar de Adão, com
ênfase na figura da provável mãe e esposa Janete, é inserido no documentário
como testemunha e vítima da violência, que consegue ressaltar, em determinados
momentos, o lado positivo do tráfico de drogas para quem mora na favela. No
entanto, em Adão ou Somos todos filhos da terra a voz que é dada ao músico, não
enfoca necessariamente o morro. Ao adquirir o papel de uma espécie de porta-voz
e filósofo desse ambiente, Adão expressa aquilo que um cidadão pensa além do
contexto em que vive e dos limites geográficos da favela.
Semiparaplégico, alvejado por um tiro nas costas em 1973, Adão,
mesmo com um passado de autoria em crimes relacionados ao tráfico de drogas e
assalto a bancos, se distancia completamente dessa sua fase marginal, enquanto
sujeito documental do filme co-dirigido por Walter Salles. Compositor de mais de
500 canções, conforme informa a obra quando está prestes a ser encerrada, Adão
começou a fazer músicas aos cinco anos. Aos oito, fugiu de casa. Encaminhado
às unidades da Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), em Santa
Rita do Passa Quatro (SP) e Viçosa (MG), foi interno dos nove aos 17 anos. Após
uma breve passagem pelo Exército, se deixou levar pelo universo do crime e
também pela dependência química
36
.
36
Cf. reportagem do site IstoÉ Gente disponível em:
<http://www.terra.com.br/istoegente/208/reportagens/adao_daxalebarada.htm>. Acesso em: 30 mai. 2007.
79
O filme representa para o personagem, enquanto artista, a possibilidade
de sair do isolamento, ou até mesmo do anonimato, se considerado o aspecto de
que levou a obra do compositor para além dos limites do morro. Além disso,
singulariza o trabalho de Adão ao registrá-lo, feito que a música não possibilitou
até o momento em que o documentário foi produzido, que suas composições
jamais tinham sido gravadas.
Através desse documentário, o morador do Morro do Cantagalo
também revela sua postura de cidadão consciente da realidade que o cerca, até
porque o trabalho do artista, que é mostrado, tem como matéria-prima a questão
social. E a realidade, em mais uma narrativa documental dirigida por Walter
Salles, age de maneira modificadora em relação ao discurso do personagem. Se
desconsiderado o contexto em que vive Adão, suas palavras deixam de ter força.
E a voz do artista constitui o aspecto que é, essencialmente, a tônica maior deste
trabalho.
Adão Xalebaradã, compositor de mais de 500 composições
Incisivo enquanto fala, o personagem esbanja carisma e musicalidade,
quando faz do documentário uma janela para sua expressão artística. A
precariedade, enquanto tema que permeia o discurso de Adão, consegue estar tão
ou até mais viva na narrativa do que a própria precariedade das condições de vida
80
do personagem, que não possui, por exemplo, significativa porção de sua
dentição.
Adão: “Todos nós temos a consciência da nossa precária
inteligência, da nossa precária sabedoria, né? Então, eu
acho que tá faltando mais na gente essa compreensão,
assim, mais humanidade, né? Por exemplo, as pessoa tem o
costume de separar e eu acho que essa separação ela é
inexistente porque o princípio, nós somos todos de uma fonte
só. Quer dizer, então, nós africanos costumamos falar assim
é... banabatiari, quer dizer, todos nós somos filhos da terra.”
Adão ou Somos todos filhos da terra também é estruturado sob uma
ordem psicológica. O discurso do artista sobre a precariedade, cujo teor também
revela sua consciência para o caráter inesgotável do conhecimento, é precedido
pelas imagens do interior da favela, que dispensam descrição quanto às suas
características.
5.1 - Adão e a construção documental
Dotado de uma carga ideológica, assim como Franz Krajcberg em
Krajcberg – o poeta dos vestígios, Adão apresenta uma questão pontual que
estabelece uma característica diferenciada neste trabalho, se considerado o seu
teor. Se no filme produzido em 1987, a história de vida e o contexto
acompanhavam e, até certo ponto, justificavam a trajetória do personagem e do
documentário, nessa obra, que possibilita a expressão da voz que vem do morro,
o contexto adquire um papel fundamental enquanto modificador do discurso de
Adão, que as histórias pessoais estão à margem do registro sobre Adão
Xalebaradã. Fator que não leva o personagem ao julgamento, a porque o
objetivo maior é mostrar sua leitura de mundo, e não as suas experiências
81
transgressoras de vida. A trajetória de Adão, exceto sua arte, não se torna um
objeto do documentário, o é objetivada. A construção não leva o espectador a
julgar, mas a tentar entender o personagem enquanto um filósofo do morro,
considerado um Bob Marley da favela.
A figura de Adão e seu discurso vigoroso possibilitam que a narrativa
ofereça ao espectador uma nova perspectiva de mundo, uma recorrência, até
pontual, no trabalho documental de Walter Salles se constatado o caráter de
ineditismo das temáticas dessas produções, diante do resultado esperado em
relação ao sujeito documental. Com Krajcberg o poeta dos vestígios, o diretor
mostra um estrangeiro, pioneiro enquanto conhecedor da questão ambiental,
lutador pelo patrimônio natural do Brasil, responsável por lhe devolver o sentido da
vida. Em Socorro Nobre é descoberta e identificada toda a sensibilidade contida
em um infrator. Em Adão ou Somos todos filhos da terra, o foco, mesmo em um
período em que as produções documentárias são seduzidas pela temática da
violência urbana que assola o país, Walter Salles prefere apostar novamente na
questão do sujeito e sua leitura social e, neste caso em particular, sob uma forma
peculiar de enxergar o mundo. Esse é o caso de Adão, que embora morador do
morro, não pode ser considerado explicitamente um modelo psicossocial
37
. O
personagem não fala do morro, mas do mundo. O filme permite mostrar que no
morro existe mais do que samba e violência, e que é possível não apenas
encontrar, mas dar voz a um discurso articulado, original da favela.
Adão:
38
Eu sou doce como o mel. Pôncio Pilatos lavou a
mão. Eu sou muito antes de Tutankamon. Ara oro quin quin.
Eu sou de oxo quibô, ara oro quin quin. Oia gogo jubá
37
A teoria do desenvolvimento psicossocial de Erik Erikson prediz que o crescimento psicológico ocorre
através de estágios e fases, não ao acaso, e depende da interação da pessoa com o meio que a rodeia.
38
O símbolo será utilizado neste trabalho para referenciar as mensagens expressas musicalmente nos
documentários.
82
olodum maré. Xangô, rei de ioió. Segura a brasa com a mão.
Olha a Grécia não era a Grécia. Nem China, nem Japão era
Japão. Namíbia, Nigéria, Moçambique. Ê, não tem nana, em
Nova Guiné. Eu sou de oxo quibô. Ara oro quin quin. Oia
gogo jubá olodum maré”.
Parte das composições presentes no documentário não está imune ao
humor e ao sarcasmo, o que pode ajudar a atenuar a intenção áspera do discurso
do personagem e a conceder-lhe uma aura carismática. O que se destaca na
expressão artística de Adão, além das temáticas, é sua fisionomia enquanto canta,
que consegue ser bastante distinta e atenuada em relação ao personagem que é
portador de um discurso compromissado com a problemática social.
5.1.1 - Núcleo narrativo
Adão ou Somos todos filhos da terra, com exceção da forma como é
iniciado e encerrado, segue uma estrutura básica que entremeia música, através
de trechos de composições do artista, e suas declarações, que mostram que a
expressão de um representante da sabedoria popular consegue ser densamente
articulada.
Essa narrativa é desenvolvida a partir de ganchos encontrados entre os
depoimentos e as canções do artista. Com exceção de duas pequenas
intervenções, uma da suposta esposa e outra de uma voz off que remete a de
Walter Salles, o trabalho é totalmente centrado na voz de Adão. A companheira
Janete Alves e a enteada Luanda - identificadas com caracteres no início da
narrativa, de modo que não remetem à idéia de família pela ausência de um
sobrenome comum representam o público do artista, que prestigia o seu
trabalho ao cantar e mostrar conhecimento sobre suas composições. A mínima
intervenção de Janete ocorre no momento em que Adão discorre sobre a
83
impunidade da classe política brasileira. Ao lado do artista, demonstra tensão a
ponto que tentar interrompê-lo, porque o teor de seu discurso é de denúncia e
indignação. Por não possuir voz over, as declarações do personagem
estabelecem com a música uma espécie de diálogo, constituído por assuntos
relacionados entre si.
Adão: Quer dizer, então, acho que essa paz é tudo uma...
sabe, enrolação. O homem não quer paz, ele quer guerra.
Porque se ele quisesse paz ele destruía as armas, ?
concorda com isso?
Adão: “Hoje ninguém prende quem trafica. Salário mínimo
é droga que intoxica. Nem Freud exprica. Vida, espelho,
refrexo, miséria, violência, irmão. no núcleo da semente
violenta. lá, lá, ye ye. O núcleo da semente violenta, ye
ye. lá, lá, ye ye. O núcleo da semente violenta.
Incendiários de vegetais. Sonegadores de impostos têm
demais. Corruptos... são inimigos número um. Eu não os vejo
na Bangu 1”.
Adão: “Maior ladrão é quem tá lá em Brasília...”
Janete: “Pera aí”.
Adão: “... que administrando a riqueza do país, que
deveria distribuir sastifatoriamente para todos, não. Ganha
mais uma ma... uma menoria e a maioria fica como uso de
objeto. Quer dizer, então, acho que a polícia, se tem que ter
polícia e se alguém tem que ser preso, é o presidente do
país, é o... é o senador, é o deputado... entendendo?
Aí vamos mais além, Fundo Monetário...”
Off: “Internacional”
Adão: “Internacional”
84
5.1.2 - Vítima ou herói?
Além da condição de morador do morro, outra exclusão relacionada
ao personagem, porém desconexa da figura de Adão, ao menos no início da
narrativa, que é a sua deficiência. Ainda no começo do documentário, o
personagem dificilmente pode ser identificado como o deficiente que é empurrado
por um rapaz em sua cadeira de rodas nas tortuosas e inacessíveis vias pelo
menos para quem está nesta condição do lugar onde vive. A inserção dos
caracteres no final do filme morador da favela do Cantagalo, no Rio de Janeiro,
Adão Xalebaradã é compositor de mais de 500 músicas. Nunca foi gravado no
Brasil”, sobre as imagens do personagem se locomovendo com a mesma
dificuldade inicial, atribuem, implicitamente, a Adão essa condição diante do
espectador. Parecem dois personagens: um frágil diante da condição de sua
deficiência, que esconde essa identidade tal como os super-heróis, e outro forte e
dono de um discurso seguro daquilo que aborda e que representa a coletividade
microcósmica do morro, não necessariamente em discurso, mas enquanto um
indivíduo destacável da favela.
Os enquadramentos utilizados no desenvolvimento do documentário
não revelam a deficiência do personagem
E a precariedade abre e encerra o documentário. Primeiramente
85
através das imagens de Adão transitando pela favela, ao ser empurrado em sua
cadeira de rodas. Depois no discurso que aborda a precária inteligência e a
precária sabedoria, que insere a participação efetiva do personagem no trabalho.
E a imagem de característica precária do deficiente e de seu contexto, presente no
começo, é retomada no final da narrativa fílmica.
5.1.3 - Arte insólita
O trabalho musical do personagem resulta em algo distante do que
poderia ser considerado um produto estereotipado. E o que pode parecer insólito
em uma primeira impressão, é a realidade palpável. Pouco provável de se
encontrar algo semelhante no morro, uma questão filosófica pode servir, por
exemplo, como fonte de inspiração para o artista. Além da temática diversificada,
as composições aparentam se utilizar de várias vertentes musicais e rítmicas que
vão do reggae ao samba, passando pela batida afro e pelo rap.
Adão: “Vamos parar, vamos parar, lê, lê. Vamos parar de
brincadeira. A escolástica já fez muita besteira. Sócrates,
Platão, foram os primeiros pensadores. Participaram dessa
brincadeira. A teoria, a filosofia. não são pratos feito do
dia. tomaram seus devidos lugares. A ciência e a magia.
(...) François Chapollion foi enganado pela pedra roseta. O
papa tudo para pra pensar. Que não para tudo papar.
Houve um milagre na biologia. No metabólico sensorial. Esse
povo não quer aceitar. A fé, fantasia. O povo, barriga vazia.
Na porta das igreja. Os moribundo espera o pão de cada dia.
Salário mínimo que nunca cresce. Cadê o Salvador que
nunca aparece?”
Diferentemente do documentário analisado anteriormente, em que
Socorro Nobre usa como consolo a máxima de que Deus a cruz pra você
86
carregar, aquela cruz que Ele acha que você agüenta carregar”, essa composição
reflete um pensamento pessimista, acenando para a hipótese de que o contexto
da favela não favorece melhores possibilidades. Seja pela justiça dos homens ou
pela justiça de Deus, Adão sugere a estagnação, a idéia de que o contexto irá
perdurar, sem um prelúdio de esperança para a questão da exclusão social.
A deficiência de Adão o remete a um segundo personagem
Neste documentário, não esperança ou otimismo no final. A câmera
registra a situação e o pensamento do personagem, e a montagem não modifica
essa atmosfera positivamente no final. As cenas e seqüências bastam para o
curso da narrativa. A edição não sugere esperança, apenas a revolta manifestada
por Adão.
87
6 - UMA PEQUENA MENSAGEM DO BRASIL ou A SAGA DE
CASTANHA E CAJU CONTRA O ENCOURAÇADO TITANIC (2002)
Título do documentário
2002. Walter Salles e Daniela Thomas realizam, a convite da Sociedade
Francesa de Realizadores e da revista Cahiers du Cinema
39
, o curta-metragem
Uma pequena mensagem do Brasil ou A Saga de Castanha e Caju contra o
encouraçado Titanic. O trabalho integra um ciclo cinematográfico sobre a
globalização, apresentado na Quinzena dos Realizadores da 55ª. edição do
39
Publicação francesa, referência no gênero cinematográfico.
88
Festival de Cannes.
O filme, que selou mais um reencontro entre o diretor e Daniela
Thomas, ainda contou com a participação do jornalista e roteirista pernambucano
George Moura, radicado no Rio de Janeiro, lugar onde o filme foi rodado, através
da utilização de duas locações. Co-diretor do trabalho, o jornalista foi quem
sugeriu a dupla conterrânea de emboladores para a narrativa documental, gravada
em espaços externos e internos de uma antiga sala de projeção na cidade de
Miguel Pereira (RJ) e de um multiplex, no bairro Barra da Tijuca, na cidade
carioca
40
.
Como as filmagens foram realizadas em apenas um dia, boa parte em
uma única tomada a fim de preservar a espontaneidade dos emboladores, mais do
que em qualquer outra produção documental do diretor, a dupla pode ser
considerada co-autora da obra. A embolada representa no documentário a
bandeira de um discurso cinematográfico dos diretores e o modo de
representatividade de um país, que ganha corpo e expressão através da voz de
artistas nordestinos. Por não haver cortes em período predominante da música,
Castanha e Caju definem já na filmagem o conteúdo da maior parte da mensagem
que difundem no documentário, não restando possibilidades de co-autoria, nesse
aspecto, para o diretor, que além da escolha dos personagens e abordagem da
obra, interfere de forma efetiva somente quando a embolada está próxima de ser
encerrada.
“O sujeito da observação é, em principio, o único criador de
sua própria ação. Ainda, é ele quem, em princípio, organiza a
grande maioria dos elementos audiovisuais registráveis pela
câmera. (...) A organização dos elementos que se encontram
40
Cf. site do Correio Braziliense disponível em:
<http://www2.correioweb.com.br/cw/EDICAO_20020514/pri_cul_140502_149.htm>. Acesso: em 14 abr.
2008
89
diante da mera, o desenrolar destes no espaço e no
tempo, diferentemente do filme de ficção, escapam ao
controle do chefe de orquestra que deveria dominá-los”.
Freire (2005, p.54).
Gênero musical original do Nordeste brasileiro, a embolada é difundida
com maior freqüência na zona litorânea e mais raramente na zona rural. Suas
características principais incluem uma melodia declamatória, em valores rápidos e
intervalos curtos. A letra possui geralmente tom cômico, satírico ou descritivo. O
texto, com freqüência, é composto de aliterações e onomatopéias. A dicção, por
vezes complicada, torna-se mais difícil devido a rapidez com que os versos,
muitas vezes improvisados, são declamados. Nas feiras nordestinas, uma das
principais atrações é o encontro-duelo de emboladores, que empunham um
pandeiro ou um ganzá - um instrumento de flandre, cheio de caroços de chumbo.
No cenário recente desse gênero, destacam-se “as duplas Castanha e Caju e
Terezinha e Lindalva, esta última apresentando-se no Rio de Janeiro,
principalmente no Largo da Carioca”
41
.
Produto da cultura popular do país, a embolada é composta por
Castanha e Caju em meio à ginga, ao humor e ao peculiar jeitinho de improvisar
do brasileiro, com a finalidade de representar o Brasil, por meio desse trabalho, na
mostra cinematográfica anteriormente citada. Antes de surgirem em cena, ainda
início da narrativa documental, Castanha, em off, define para o espectador o que é
a embolada. Por mais genuíno e original que o gênero seja, e cercada de
elementos que traduzem brasilidade, a embolada não reflete a identidade cultural
do país, a ponto de ser tão conhecida internacionalmente como o samba, por
exemplo. Por isso, talvez, ganhe a definição ao ser relacionada com o rap, um
41
Cf. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira disponível em:
<http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?nome=Embolada&tabela=T_FORM_C>. Acesso em: 23 abr.
2007.
90
estilo musical mais universal.
Caju: "A embolada vem da literatura de cordel, né. E a
embolada é um trocadilho de palavras de improvisação. E é
por isso que o pessoal do rap considera a embolada o pai e a
mãe do rap".
Assim como a definição de Cravo Albim, Castanha e Caju utilizam o
pandeiro neste trabalho artístico - tocado por um embolador enquanto o outro
canta - e as aliterações e as onomatopéias, recursos lingüísticos que preconizam
a repetição de fonemas, consoantes e palavras. Para reafirmar a identidade da
cultura popular e a multiplicidade do artista brasileiro dentro da série que aborda
como tema a globalização, a dupla faz uma brincadeira com os fonemas das
palavras, procedimento característico utilizado como forma de expressão desse
gênero musical.
Castanha: “E já vou lhe avisar, vira o dedo, vira a unha, vira a
unha, vira o dedo, vira a carta, um segredo, vira o réu, a
testemunha, vira o ancho, vira a cunha, vira a Mará, vira o
mar... Barababá, berebere, biribiri, botei aqui, tirei daqui, tirei
pra ali, joguei pra lá...”
O refrão da embolada confere à sica uma idéia de ciclo, pois é ele
quem abre e fecha a seqüência musical do documentário, e explicita uma intenção
de enfrentamento ao Titanic, o que pode justificar uma das denominações do filme
como A saga de Castanha e Caju contra o encouraçado Titanic que representa
Uma pequena mensagem do Brasil na mostra internacional de cinema.
91
Refrão: “Vamos minha gente afundar o Titanic. Que bicho
ganhou dinheiro de tanto fazer trambique”.
A partir do momento em que soa o refrão, a dupla é inserida na
narrativa dando início ao plano seqüência do filme realizado em frente a um
pequeno espaço de projeção no Estado do Rio de Janeiro, possível de ser
identificado e associado pelo espectador como se fosse de qualquer cinema do
interior do país, sobretudo do Nordeste, e de Pernambuco, o Estado natal dos
artistas.
Durante esse registro feito em plano seqüência, o discurso dos
emboladores adquire um tom muito mais humorístico do que em qualquer outro
momento. Na embolada, dotada de teor também crítico enquanto aborda a
maneira como os filmes estrangeiros vêm “roubar o dinheiro” do nosso povo
joviá”, os artistas citam três astros hollywoodianos, talvez porque representem
referências universais de um repertório comum a qualquer espectador de cinema.
A inserção de Leonardo di Caprio, Silvester Stallone e Arnold Schwazenegger
segue, como o próprio refrão, a tendência satírica que permeia a mensagem do
documentário.
6.1 - Castanha e Caju e a construção documental
Terminada a seqüência que ocupa cerca de dois terços da narrativa, ao
registrar a feitura da embolada pela dupla, calcada no improviso a ponto de
adquirir um caráter essencialmente original e exclusivo, o documentário passa a
ter uma estrutura que aponta para a ação efetiva dos diretores, para a co-autoria
da mensagem juntamente com os artistas.
Depois de desenvolverem a embolada em um enquadramento fixo, a
92
narrativa insere um jogo de cenários que desafiam o espectador quanto à
identificação de suas localidades. Tal como se estivessem à espera de serem
fotografados, os artistas passeiam por uma seqüência de ambientes,
propositadamente não passíveis de serem identificados com precisão.
Inicialmente, Castanha e Caju se posicionam em frente ao mesmo Cine Studio 33
que era avistado ao fundo do plano que os insere no documentário. Cabe destacar
que no restante da obra, exceto em um pequeno intervalo, a mensagem sonora
desenvolvida pelos personagens continua em ação, embora a figura deles esteja
nela através de imagens que foram essencialmente produzidas.
Elementos que remetem ao interior ‘intocado’
Nessa seqüência final, enquanto os cantores da embolada estão em off,
uma brincadeira é proposta na narrativa; a de que eles integrem o cenário do
interior das salas de projeções, tal como os artistas hollywoodianos Julia Roberts,
Will Smith e Tommy Lee Jones, presentes por meio de cartazes dos filmes que
protagonizam. A composição com a atriz é feita na pitoresca sala que aparenta ser
um hall do Cine Studio 33. Quando surgem em cena diante do cartaz do filme MIB
- II, em um espaço multiplex, os emboladores tentam repetir a mesma posição dos
atores, porém com um diferencial bastante emblemático; estão segurando seus
pandeiros, enquanto os personagens do filme seguram armas. Um evidente
artifício declarativo de que as armas dos emboladores são os seus instrumentos
93
musicais.
Depois de passar pelo interior dos cinemas, a dupla volta a ser vista em
ambiente externo, a exemplo do início do filme. Desta vez em um novo contexto,
que mais uma vez compõe a narrativa de forma modificadora e dialoga com o
tema da mostra para a qual a produção é feita.
Com inserções de imagens que remetem e denotam o papel da
globalização, os artistas pernambucanos estão em frente a um shopping center,
cujas características visuais levam o espectador a associá-lo a uma cidade norte-
americana, que o nome do local é ‘New York City Center’ e uma réplica da
Estátua da Liberdade, logo na fachada. São os carros que passam pelo contexto
registrado pela câmera que proporcionam a impressão de que o espaço fílmico,
não revelado, pertence ao território brasileiro.
Imagens de contextos globalizados
Nesse trecho, uma relação interessante estabelece-se entre o som e a
94
imagem: enquanto os artistas estão em off e uma ausência de som durante 18
segundos, suas imagens, de caráter essencialmente fotográfico, fazem com que a
narrativa Uma pequena mensagem do Brasil ou A saga de Castanha e Caju contra
o encouraçado Titanic, assim como Krajcberg - o poeta dos vestígios, adquira uma
função de descanso, similar a de um comercial de TV.
Se identidade cultural na imagem, enquanto som direto, ela deixa
de existir quando eles estão em locações inseridas na narrativa por meio de
edição, para remeter o cenário à globalização. O documentário deixa a impressão
de que a embolada é o que de mais pontual na narrativa e que os contextos
constituídos pela periferia praticamente intocada e o grande centro urbano,
modificado pela presença de elementos globalizados, como um caminhão que
transporta refrigerantes da marca Coca-cola, resultam em grandes contra-pontos.
A ausência de som também auxilia nesse resultado; enquanto cantam em frente
ao cinema interiorano, o som é direto, quando tem início a montagem, existe a
ausência do som e este é retomado quando o contexto efetivamente globalizado
está prestes a ser inserido. Se o regional consegue sobressair de forma absoluta
no documentário, o mesmo efeito não ocorre com os elementos modificados pela
globalização, que não chegam a ocupar a narrativa de forma plena. Tal como uma
disputa de ‘braço de ferro’, aquilo que remete nitidamente à identidade nacional
consegue resistir na narrativa, graças à pontualidade da embolada.
Coincidentemente, é quando o filme está estruturado através dessa
montagem, que os emboladores apresentam um discurso mais elaborado, que
homenageia o cinema brasileiro, sugerindo uma provável falta de improvisação,
até porque a feitura da embolada não é registrada para comprovar o contrário.
Quando estão cantando diante da câmera, o espectador sabe que eles estão
fazendo a embolada naquele momento do registro. Porém, as referências em
exaltação a personagens e clássicos do cinema nacional, independentemente se
95
são feitas sob o improviso, resultam na nacionalização de um discurso que
representará um olhar brasileiro no mundo globalizado.
Caju: "E eu Caju vou te dizer com o pandeiro na mão, eu
vou falar em Lampião, disso eu posso provar, vou lhe avisar
e eu quero fazer meu ritmo, quero falar em Corisco, meu
colega Antônio das Mortes tá botando pra quebrar.
Castanha: botando pra quebrar eu vou falar em Dona
Flôr, vou falar em Grande Otelo tá em primeiro lugar.
Caju: Eu vou falar em Glauber Rocha, falar em Mário
Peixoto, falar em Barravento, falar é no Limite, falar em
Macunaíma, meu colega nesta rima a tampa vai "avoar".
Castanha: E eu também quero falar, falar no Deus e o Diabo
e agora pra completar eu vou falar em Rio 40 graus que
botando pra quebrar. botando pra quebrar e não é
brincadeira não e segure lá o rojão que eu vou falar em Vidas
Secas que tá em primeiro lugar.
Caju: Falar em Vidas Secas eu quero lhe avisar, agora Dona
Silva eu também quero falar. Meu colega nessa rima em
dona Xica da Silva eu também quero falar.
Castanha: Sou um cara popular, eu tô falando em Vidas
Secas e também Xica da Silva tá botando pra quebrar.
Caju: Vou falar em Cafajestes, vou falar em Pindorama hoje
eu lhe lambo na rama se você souber cantar”.
6.1.1 - Conexão com o real
Assim como em Krajcberg - o poeta dos vestígios, quando a voz de
Deus revela a devastação encontrada em Nova Viçosa (BA), no ano de 1987,
Uma pequena mensagem do Brasil ou A saga de Castanha e Caju contra o
96
encouraçado Titanic também faz uma conexão entre a realidade presente e o
filme, remetendo a um aspecto de temporalidade. Produzido em 2002, o
documentário sugere dois ‘Brasis’ de uma forma bastante peculiar. Enquanto no
interiorano Cine Studio 33, o filme que aparenta estar em cartaz é Titanic (1997),
nas salas multiplex do New York City, um dos longas-metragens em exibição é
MIB II, em lançamento no país do mesmo ano da produção documental. Essa
localização cronológica, através dos filmes, se traduz em uma possível menção
aos reflexos da velocidade proporcionada pela sociedade globalizada.
Filmes em cartaz no cinema do interior e na sala multiplex
Aberto com a definição de embolada, o documentário é encerrado
também com uma idéia, de caráter conceitual, expressa através da frase contida
nos Vedas, as escrituras mais antigas do mundo.
Caju: “A realidade é uma só
Em voz off, a expressão ‘‘cortou’’, identificada como a de Walter Salles,
após o encerramento de Caju, remete para a construção fílmica, tal como é feita a
embolada de Castanha e Caju registrada no documentário.
97
7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Objetivo maior dessa dissertação, a identificação de traços distintivos
no trabalho documental do diretor Walter Salles não é uma tarefa das mais
simples. Até porque alguns fatores que provocam determinadas interferências a
tornam difícil. Considerando a cronologia dos documentários analisados nesse
trabalho, a começar por Krajcberg o poeta dos vestígios (1987), realizado
mais de duas décadas, após a experiência do cineasta com programas
jornalísticos, a co-produção com a extinta TV Manchete é um fator de extrema
relevância quando analisada sua linguagem, essencialmente televisiva. Em Adão
ou Somos todos filhos da terra (1999), é inevitável utilizar um certo cuidado na
análise, já que o trabalho, por mais que atribua costumeiramente a direção à dupla
Walter Salles e Daniela Thomas, responsável por sua montagem, resulta de uma
criação coletiva das equipes dos filmes O primeiro dia e Notícias de uma guerra
particular, este último dirigido por João Moreira Salles e tia Lund. Nesse
documentário coletivo, torna-se complicado saber onde está ‘a mão’ e ‘o olhar’ de
cada cineasta. Em Uma pequena mensagem do Brasil ou A saga de Castanha e
Caju contra o encouraçado Titanic (2002), essa questão em torno da autoria,
também é recorrente. Feito ‘sob encomenda’ para a Quinzena de Realizadores do
55º Festival de Cannes, sugere o questionamento: até onde vai a contribuição de
Walter Salles e onde termina a de Daniela Thomas e a de George Moura, co-
diretores do documentário? Talvez seja em Socorro Nobre (1995) que reside a
98
experiência mais pura dos quatro trabalhos analisados nesta dissertação. Pura no
sentido de não carregar uma interferência concreta, a exemplo das três outras
obras documentais, e as duas últimas, inclusive, com duplicidade no nome, talvez
uma conseqüência dessas realizações não individuais. É ao contar a história da
presidiária baiana que observa-se uma atmosfera que aproxima o diretor de seus
filmes de ficção e uma modificação mais perceptível, embora nem sempre
definida, no espectador em relação ao conteúdo do documentário.
Inegável é a contribuição que a escola documental ofereceu à carreira
de Walter Salles enquanto diretor de ficção, status que concedeu projeção
internacional, efetiva, ao seu trabalho. menos de 10 anos, Walter Salles
chegou inclusive a declarar "quando me registro em hotéis, ainda escrevo:
documentarista". Foi a feitura documental, enquanto modo de produção, que
forneceu ao diretor formas e possibilidades de fazer o seu cinema. Equipes
reduzidas, opções de luz, das locações, atores não profissionais - salvo algumas
exceções e principalmente, a inserção do real à medida que ele se apresentou
em cada filmagem, como ocorreu em Terra Estrangeira, Central do Brasil e Diários
de Motocicleta, conferem uma certa dívida do diretor para com o documentário.
Essa congruência de gêneros notada em seus filmes de ficção e que lhes
transfere uma porção realista, é produto da experiência de Walter Salles,
enquanto documentarista. Por mais que na família Salles quem detenha esse
título é o irmão João Moreira Salles, Walter nunca abandonou o gênero. Com
exceção de Krajcberg o poeta dos vestígios, os demais trabalhos sempre
estiveram envolvidos por suas produções de ficção. Socorro Nobre foi realizado
após A Grande Arte (1991) e próximo de Terra Estrangeira (1995). Adão ou
Somos todos filhos da terra foi feito entre Central do Brasil (1998) e Abril
despedaçado (2001). E Uma pequena mensagem do Brasil ou A saga de
Castanha e Caju contra o encouraçado Titanic é a produção antecedida pelo
trabalho de 2001 e precede Diários de Motocicleta (2004).
99
Baseadas em sujeitos, deve ser destacada a forma como estão
inseridos nas narrativas documentais analisadas nesta dissertação. Com exceção
de Franz Krajcberg, personagem sem precedentes criminais, e da dupla Castanha
e Caju, que estão presentes no documentário para contribuírem essencialmente
com sua expressão artística, os sujeitos, que cometeram alguma espécie de
delito, têm essa parte de suas histórias suavizada ou então ignorada nos filmes.
Maria do Socorro Nobre, por exemplo, possivelmente tem sua pena divulgada
pelo fato de estar em um presídio, porque o crime que cometeu não é mencionado
em momento algum na narrativa. Adão Xalebaradã - um ex-interno da Funabem,
ex-traficante e ex-assaltante de banco está inserido no documentário
enquanto artista. Tal postura, diante de sujeitos considerados errantes em razão
da dívida que têm com a sociedade, faz com que o cinema de Walter Salles, a
exemplo de suas obras ficcionais, possibilite seus rebatizados, e em âmbito social.
Uma forma de, através de um cinema de segunda chance, possibilitar que a
trajetória de quem o mereça por alguma razão, seja modificada através de uma
proposital omissão de informações relevantes na trajetória de vida desses sujeitos,
mas não imprescindíveis para os documentários do diretor que os abordam. Essa
idéia de rebatizado e de um cinema de segunda chance possibilita a esses
personagens uma construção de si no espaço fílmico tal como gostariam de ser
realmente. O próprio personagem fundamenta sua razão de ser, fazendo com que
sua visão de mundo seja o fator que realmente interessa. O cinema de Walter
Salles também remete à compreensão das razões do outro, o que atribui um
sentimento de dignidade humana a seus personagens.
Além da questão do sujeito que tem algo a dizer, ou mostrar, e
geralmente através da unicidade das vozes, o cinema de Walter Salles também
confere um caráter similar ao contexto desses personagens. Presente de forma
mais pontual em Krajcberg o poeta dos vestígios, quando abre a narrativa, o
contexto tem uma relação essencial e, às vezes, diferenciada nos demais
100
documentários. Em Socorro Nobre e Adão ou Somos todos filhos da terra, essa
co-existência pode ser observada de forma mais pragmática. Se desconsiderados
os contextos dos personagens, seus discursos deixam de ter o mesmo efeito de
realce na narrativa. A história de Socorro torna-se apenas uma lição de vida e o
produto artístico de Adão o faz apenas ser ‘mais um na multidão’. Por mais que
pareça uma questão trivial para o cinema documental, se considerada a trajetória
do cineasta, essa relação entre contexto e sujeito parece essencial. O cinema de
Walter Salles, que explora a questão dos limites entre a nossa natureza e a
natureza alheia, é feito de filmes sobre os outros para que, com os outros, o
diretor possa se descobrir. E o cinema no contexto na vida dele foi decisivo,
inclusive para o seu próprio rebatizado, ao possibilitar um contato com o mundo
que sua classe social jamais permitiria, e não apenas enquanto um espectador
com a possibilidade de ver o Brasil na tela, como se referiu em relação aos
filmes do Cinema Novo; mas enquanto a possibilidade de descobrir, através de
uma experiência única e presencial, um mundo diferente do seu, inclusive por
meio dos road-movies que realizou. O cinema propiciou a Walter Salles uma
incursão ao mundo tal como o CPC (Centro Popular de Cultura da UNE) propiciou,
nos anos 60, a jovens das classes médias que desconheciam completamente o
Brasil.
Diferentemente dos demais filmes, com Uma pequena mensagem do
Brasil ou A saga de Castanha e Caju contra o encouraçado Titanic, a relação do
contexto foi muito mais essencial para a narrativa do que propriamente para os
personagens, presentes no filme apenas como artistas e não enquanto os sujeitos
Ricardo Alves da Silva e José Roberto da Silva, conferindo ao trabalho um caráter
mais próximo ao de um videoclipe. Sem aquela espécie de brincadeira feita com
as locações, a mensagem sobre a globalização poderia ganhar rumos bem menos
contrastantes.
101
Curioso é perceber também que em Adão ou Somos todos filhos da
terra e Uma pequena mensagem do Brasil ou A saga de Castanha e Caju contra o
encouraçado Titanic um discreto traço que aproxima minimamente o diretor de
Eduardo Coutinho, presente no trabalho, talvez, como forma de homenagem, ou
simplesmente como uma alusão ou, ainda, por mero acaso. O “internacional” dito
em uma clara intenção de auxiliar o discurso de Adão e a expressão “cortou”
emitida no encerramento do documentário com os artistas pernambucanos, por
mais que não sejam representativos para a narrativa como um todo, deixam a
marca, ou o carimbo, do diretor em realizações que não são exclusivamente suas.
A errância, a busca de identidade e o exílio, recorrências da produção
ficcional de Walter Salles que o tornou reconhecido entre o público de cinema,
confirmam que essa forma de abordagem se repete em seu cinema documental.
Tanto na ficção quanto no documentário, essa tríade incorporou-se ao estilo do
diretor e o leva a cuidar de seus personagens de maneira respeitosa, quando não,
com compaixão. Walter Salles entende que os sujeitos que escolhe para
documentar são co-autores do trabalho que realiza, feito para captar o que não
nos é conhecido. Se erram, ou se, por algum motivo, caem em contradição no
registro fílmico, essa margem de desconfiança que o cinema pode levantar sobre
seus discursos, e conseqüentemente, suas identidades, não passa nem ao menos
pelo risco. A montagem, principalmente nos três primeiros filmes analisados neste
trabalho e que são sobre sujeitos e não com sujeitos, como é o caso de Castanha
e Caju - é feita no sentido de comprovar uma idéia definida pelo personagem.
Antes de qualquer criação coletiva, no que tange à direção, por exemplo, Walter
Salles estabelece um pacto com os seus personagens, ciente da relação, até de
dependência, que o seu cinema documental tem em relação a eles. Os
personagens são tratados como sujeitos, não objetos, porque possuem uma
existência fora do cinema, uma existência real. Walter Salles é sensível a essa
dimensão documental.
102
Para este trabalho havia o intuito de que fosse realizada uma entrevista
com o diretor, inviabilizada pelos compromissos de Walter Salles em razão da
produção do longa-metragem Linha de Passe, que tomaram a agenda do
cineasta, ao menos, no segundo semestre de 2007 e no primeiro período de 2008.
No entanto, uma pergunta pôde ser dirigida a ele, pessoalmente, durante a
realização do 18º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo
quando, no dia 24 de agosto de 2007, na Cinemateca, houve a projeção de A
8944 km de Cannes, trabalho que contou mais uma vez com a participação da
dupla Castanha e Caju. No espaço aberto posteriormente à exibição, público e
diretor puderam discutir rapidamente alguns pontos relativos ao filme. A intenção
era que uma pequena pauta pudesse ser desenvolvida pós-debate. Mas uma
simples pergunta acabou servindo de alento para esse propósito maior de
entrevistá-lo naquele momento; a que se refere ao nível de consciência sobre a
co-autoria de seus personagens nos trabalhos documentais que desenvolveu. A
resposta foi envolvida em contextos que, ironicamente, se perderam em meio à
circunstância dos acontecimentos. Mas o que fica é uma síntese do diretor. “Esses
personagens têm um papel imprescindível porque são realizadores dos filmes,
assim como eu”. Possível de ser realizada em outubro de 2008, por e-mail, no
período que compreendeu o intervalo entre a defesa desta dissertação e a sua
revisão, como uma última tentativa de contato tendo em vista os compromissos
que envolveram o lançamento do longa-metragem, uma breve entrevista com o
diretor pode ser conferida nos anexos deste trabalho: ela aborda o contexto de
descoberta dos sujeitos dos trabalhos documentais de Walter Salles, uma questão
muito cara a esta pesquisa intitulada Salles do real: relações entre sujeitos e
contextos nos documentários de Walter Salles.
103
ANEXOS
105
BREVE ENTREVISTA COM WALTER SALLES
Como você descobriu os personagens dos filmes que foram objeto
de estudo deste trabalho, que está calcado em sujeitos e contextos?
(Krajcberg - o poeta dos vestígios; Socorro Nobre; Adão ou Somos
todos filhos da terra; e Uma pequena mensagem do Brasil ou A saga
de Castanha e Caju contra o encouraçado Titanic).
Franz Krajcberg e Maria do Socorro Nobre:
Walter Salles: Conheci Franz Krajcberg quando fiz, junto com Nelson
Pereira dos Santos, uma série documental para a TV Manchete
intitulada Artistas brasileiros, em 1984. Os artistas que elegi foram
Tomie Ohtake, Rubens Gerchman e Krajcberg. Interessantemente, foi
Gerchman quem me levou pela primeira vez a filmar na Central do
Brasil. Cada documentário deveria ter 26 minutos. No entanto, o
encontro com Krajcberg foi de tal forma marcante que acabou virando
um documentário de uma hora, O poeta dos vestígios. Esse
documentário foi o primeiro trabalho que dirigi, premiado em festivais
internacionais.
106
Iniciaram-se ali uma colaboração e uma amizade que acabaram se
traduzindo em Socorro Nobre, o segundo documentário que fizemos
juntos. Krajcberg me mostrou a carta que havia recebido de Socorro.
Foi o estopim do documentário, filmado em apenas quatro dias, com
uma equipe de cinco pessoas. Demorei muito tempo para montar o
filme. A parte final me parecia excessivamente emotiva, como se
estivéssemos invadindo uma cena que deveríamos ver apenas à
distância. Foi quando pensei em eliminar completamente o som dos
últimos minutos do filme. Vemos o primeiro encontro entre Socorro e
Krajcberg, mas não ouvimos o que eles dizem. É um momento que
pertence a eles. A nós, cabe imaginar, completar o espaço em branco.
Vários cineastas falam de mestres que os influenciaram. Jia Zhang-ke,
que tive o prazer de entrevistar para a Mostra de São Paulo, disse que
Bresson lhe havia ensinado o que era o tempo; Antonioni, o espaço; e
Hou Hsiao-Hsien, a delicadeza. Krajcberg me ensinou que a vida pode
ser reinventada e isso acabou marcando todos ou quase todos os meus
filmes de ficção. Tive o privilégio de ter um escultor como mestre, e não
um cineasta...
Ao Xalebaradã:
Walter Salles: Eu o conheci ao tentar fazer um documentário sobre
meninas que estudavam balé clássico no Morro do Cantagalo, no Rio.
Adão era o padrasto de uma delas. Na mesma época, Daniela Thomas
e eu estávamos preparando O Primeiro dia. Apresentei Adão à Daniela
e ela também ficou impressionada com aquele vulcão de criatividade.
Um sambista com 500 músicas não gravadas, retrato de um Brasil,
onde há muito mais talento do que meios de se expressar esse talento.
Somos todos filhos dessa terra nasce aí, como uma homenagem a
107
Adão. O filme foi apresentado como um complemento de O primeiro
dia.
Estavam sendo rodados mais ou menos no mesmo período: a ficção O
Primeiro Dia, o documentário sobre Adão e o documentário sobre
bailarinas, que acabou sendo um dos pontos de partida para Notícias
de uma guerra particular e também para próprio documentário sobre
Adão. Eram temáticas próximas. Além de Daniela, João (Moreira
Salles) conheceu bem o Adão. Algumas cenas do filme sobre Adão
foram rodadas com a equipe dos dois documentários, outras com a de
ficção. A filmagem se estendeu durante várias semanas, mas não de
forma contínua.
Castanha e Caju:
Walter Salles: Uma pequena mensagem do Brasil nasce de um convite
dos Cahiers du Cinema e da Quinzena de Realizadores de Cannes
para fazer parte de um filme coletivo sobre a globalização, para ser
apresentado no Festival de Cannes de 2002. O roteirista George Moura
tinha me mostrado o documentário que Mika Kaurismaki realizou sobre
música brasileira, um filme amoroso, delicado e revelador. As imagens
que mais me marcaram foram justamente as de Castanha e Caju. Eles
encarnam como poucos a nossa capacidade de invenção, de improvisar
com a palavra. Nos encontramos, eles compraram a idéia de fazer uma
brincadeira em torno do Titanic. A idéia partiu de uma experiência
pessoal: quando Central do Brasil foi lançado em abril de 1998, existiam
apenas 700 salas de cinema no Brasil. Mais de 400 estavam ocupadas
pelo mesmo filme, Titanic, e outras 150 pelo Homem da máscara de
ferro, também com Leonardo de Caprio. Era uma tradução direta da
globalização no cinema. Castanha e Caju trouxeram a possibilidade de
108
irmos além da crítica demagógica, com o humor politicamente incorreto
e a salutar irreverência da dupla... filmamos em frente a um pequeno
cinema de rua em Miguel Pereira, que voltamos a enquadrar no
pequeno curta de três minutos, feito para outro filme coletivo, o dos 60
anos de Cannes. Pouco depois dessa segunda filmagem, o cinema
fechou.
109
I - Decupagem Sonora:
ADÃO ou SOMOS TODOS FILHOS DA TERRA
Adão, Luanda e Janete cantando
TCR 00:00:51
Eu sou doce como o mel
Pôncio Pilatos lavou a mão
Eu sou muito antes de Tutankamon
GC
TCR 00:00:53
VideoFilmes apresenta
TCR 00:00:58
Adão
TCR 00:01:02
Ou
Somos todos filhos da terra
110
Adão, Luanda e Janete cantando
TCR 00:01:05
Eu sou doce como o mel
Pôncio Pilatos lavou a mão
Eu sou muito antes de Tutankamon
TCR 00:01:16
Ara oro quin quin
Eu sou de oxo quibô, ara oro quin quin
Oia gogo jubá olodum maré
TCR 00:01:28
Xangô, rei de ioió
Segura a brasa com a mão
Olha a Grécia não era a Grécia
TCR 00:01:37
Nem China, nem Japão era Japão
Namíbia, Nigéria, Moçambique
Ê, não tem nana, em Nova Guiné
TCR 00:01:54
Ara oro quin quin
Eu sou de oxo quibô, ara oro quin quin
Oia gogo jubá olodum maré, ara oro quin quin
TCR 00:02:09
Eu sou de oxo quibô
Ara oro quin quin
Oia gogo jubá olodum maré
111
Adão falando
TCR 00:03:20
Todos nós temos a consciência da nossa precária inteligência, da
nossa precária sabedoria, né?
TCR 00:03:27
Então, eu acho que tá faltando mais na gente essa compreensão,
assim... Mais humanidade, né?
TCR 00:03:32
Por exemplo, as pessoa tem o costume de separar e eu acho que essa
separação ela é inexistente porque o princípio, nós somos todos de
uma fonte só.
TCR 00:03:42
Quer dizer, então, nós africanos costumamos falar assim é...
banabatiari, quer dizer, todos nós somos filhos da terra.
Adão, Luanda e Janete cantando
TCR 00:03:50
Que mundo é esse
Cheio de preconceito racial
Que mundo é esse
TCR 00:04:00
Animais inracionais
A África pergunta:
112
Quando serão racionais?
TCR 00:04:18
A África pergunta:
Quando serão racionais?
Adão falando
TCR 00:04:27
Hoje em dia, o homem que ele se diz racional, eu faço uma pergunta:
pra que o home fabrica arma?
TCR 00:04:35
AR-15, m... m... metralhadora, isso é... é comportamento de animais
inracional, porque a arma machuca, fere e mata.
TCR 00:04:46
Então, são... são objetos que não deveriam ser construídos pelo
homem, cê não acha não?
TCR 00:04:53
E o homem, no entanto, fala: "Eu quero paz", mas paz como se ele tá
fabricando arma pra gerar a guerra.
TCR 00:04:58
Quer dizer, então, acho que essa paz é tudo uma... sabe, enrolação. O
homem não quer paz, ele quer guerra,
TCR 00:05:03
Porque se ele quisesse paz ele destruía as armas, né? Cê concorda
113
com isso?
Adão cantando
TCR 00:05:08
Hoje ninguém prende quem trafica
Salário mínimo é droga que intoxica
Hoje ninguém prende quem trafica
TCR 00:05:18
Salário mínimo é droga que intoxica
Nem Freud exprica
Vida, espelho, refrexo, miséria, violência, irmão
TCR 00:05:35
Tá no núcleo da semente violenta
Tá lá, tá lá, ye ye
O núcleo da semente violenta, ye ye
TCR 00:05:46
Tá lá, tá lá, ye ye
O núcleo da semente violenta
Incendiários de vegetais
TCR 00:06:00
Sonegadores de impostos têm demais
Corruptos são inimigos número um
Eu não os vejo na Bangu 1
114
Adão falando
TCR 00:06:14
Adão: Maior ladrão é quem tá lá em Brasília...
Janete: Pera aí.
Adão: ...que tá administrando a riqueza do país, que deveria distribuir
sastifatoriamente para todos, não?
TCR 00:06:24
Ganha mais uma ma... uma menoria e a maioria fica como uso de
objeto. Quer dizer, então, acho que a polícia, se tem que ter polícia e se
alguém tem que ser preso, é o presidente do país, é o... é o senador, é
o deputado...
Cê tá entendendo?
TCR 00:06:39
Adão: Aí vamos mais além, Fundo Monetário...
Off: Internacional
Adão: Internacional
Adão cantando
TCR 00:06:45
Vamos parar, vamos parar, lê, lê
Vamos parar de brincadeira
A escolástica já fez muita besteira
TCR 00:06:57
Vamos parar, vamos parar, lê, lê
Vamos parar de brincadeira
115
A escolástica já fez muita besteira
TCR 00:07:10
Sócrates, Platão, foram os primeiros pensadores
Participaram dessa brincadeira
A teoria, a filosofia
TCR 00:07:23
Já não são pratos feito do dia
Já tomaram seus devidos lugares
A ciência e a magia
TCR 00:07:35
Vamos parar, vamos parar, lê, lê
Vamos parar de brincadeira
A escolástica já fez muita besteira
TCR 00:07:47
François Chapolion foi enganado pela pedra roseta
O papa tudo para pra pensar
Que já não dá para tudo papar
TCR 00:08:03
Houve um milagre na biologia
No metabólico sensorial
Esse povo não quer aceitar
TCR 00:08:15
A fé, fantasia
O povo, barriga vazia
116
Na porta das igreja
TCR 00:08:26
Os moribundo espera o pão de cada dia
Salário mínimo que nunca cresce
Cadê o Salvador que nunca aparece
TCR 00:08:38
Salário mínimo que nunca cresce
Cadê o Salvador que nunca aparece
Vamos parar, vamos parar, lê, lê
CR 00:08:50
Vamos parar de brincadeira
A escolástica já fez muita besteira
GC
TCR 00:09:05
Morador da favela do Cantagalo, no Rio de Janeiro
TCR 00:09:09
Adão Xalebaradã é compositor de mais de 500 músicas.
TCR 00:09:19
Nunca foi gravado no Brasil.
Adão, Luanda e Janete cantando (off)
TCR 00:09:19
117
Riqueza é cultura
Pobreza não é, ô ye
Vamos negro, filhos de Daomé, ô ye, ô ye
GC
TCR 00:09:26
Este documentário é uma criação coletiva das equipes de filmagem de
O Primeiro Dia e Notícias de uma Guerra Particular.
Adão cantando (off)
TCR 00:09:31
Riqueza é cultura
Pobreza não é, ô ye
Vamos negro, filhos de Daomé
119
II - Decupagem Sonora:
UMA PEQUENA MENSAGEM DO BRASIL ou
A SAGA DE CASTANHA E CAJU CONTRA O ENCOURAÇADO
TITANIC
TCR 00:00:05
Castanha em off:
A embolada vem da literatura de cordel, né. E a embolada é um
trocadilho de palavras de improvisação. E é por isso que o pessoal do
rap considera a embolada o pai e a mãe do rap.
TCR 00:00:26
Castanha e Caju cantam:
Vamos minha gente afundar o Titanic
Que bicho ganhou dinheiro de tanto fazer trambique.
Vamos minha gente afundar o Titanic
Que bicho ganhou dinheiro de tanto fazer trambique.
Caju:
E eu Caju vou lhe dizer, vou contar a sua história, vou falar na sua
120
glória e vou falar no seu final...
Castanha:
Eu vou falar no seu final, eu vou falar na sua glória, eu vou contar a sua
história e agora eu vou terminar...
Caju:
Eu assisti o Titanic e eu vi quando foi afundando e a bola já foi
murchando e acabou de se lascar.
Castanha:
E não é brincadeira não, eu fui passando no cinema, dei uma olhada
grande e deu vontade de olhar.
Caju:
E o Leonardo Di Capri com a cara de galã e hoje tá tua irmã e eu com
ele vou me casar.
Castanha:
Olhe não é brincadeira não, meu amigo fique de lado, comigo fique de
lado, deixe a minha irmã de lado, Leonardo vá se lascar!
Caju:
E você pode acreditar e a sua bola murchou e quando o navio afundou,
ele sumiu pro lado de lá.
Castanha:
Ele sumiu pro lado de lá e até o Rambo-Stallone e aquele deu no
trombone que aqui ele não vai entrar.
121
Caju:
E aquele deu no trombone, veio metido a fortão e aquilo foi um bombão
que nele fora aplicar.
Castanha:
Não é brincadeira não, meu amigo fique de lado, até o Arnold
Shazenegger veio aqui pra se lascar.
Caju:
E esse Arnold e suas negas eu quero lhe avisar, você pode acreditar,
vem lá do estrangeiro pra roubar o dinheiro desse povo joviá.
Castanha:
Não é brincadeira não, meu amigo fique de lado, todo filme ruim do
mundo o povo traz pra cá.
Caju:
E eu quero lhe avisar, eu quero vou lhe avisar, ô Caju eu vou te dizer,
esses filmes estrangeiro, são os filmes mais fuleiros, que eles botam
pro lado de cá.
Castanha:
E não é brincadeira não, meu amigo fique de lado e desses filmes
safado e vamos embora entrar no lugar.
Caju:
E vamos entrar no lugar e você pode acreditar e agora pra completar e
falar de Silvestre Stalllone e meu colega tá fome, tá dando prum aruá,
vou lhe avisar e vem metido a fortão com aquele corpão, isso eu posso
provar, vou lhe avisar, o nome dele é Stallone e o cabra tá numa fome
122
de fazer admirar.
Castanha:
Oi de fazer admirar, não é brincadeira não e ele tá fazendo filme, mas
não dá pra sustentar.
Caju:
E você pode acreditar que ele aquele Leonardo com aquele cabelão
minha parecia um frangão que mora no lado de lá.
Castanha:
E mora no lado de lá e não é brincadeira não, ele arrumou uma lourinha
somente pra disfarçar.
Caju:
E você pode acreditar e foi tanto filme fuleiro que veio do estrangeiro
somente pra passar cá.
Castanha:
Somente pra passar cá e não é brincadeira não, porque Caju aonde
canta ele sabe admirar.
Caju:
E eu quero lhe avisar eu assisti o Titanic quando ele foi afundando,
quando ele foi se arrasando e o filme foi se acabando e agora foi de
lascar.
Castanha:
Não é brincadeira não meu amigo fique de lado e o filme Titanic é o pior
desse lugar.
123
Caju:
É o pior desse lugar e você pode acreditar que ele agora acabou e o
Arnold já chegou pra acabar de lascar.
Castanha:
Pra acabar de lascar e não é brincadeira não e você sabe quando eu
canto acelerado é pra entrar nesse lugar.
Caju:
E quero lhe avisar, eu vou falar pros estrangeiros que os filmes
brasileiros tá em primeiro lugar.
Castanha:
Tá em primeiro lugar e não é brincadeira não e é Castanha e é Caju e é
Caju e é Castanha e nós tamos fazendo um filme aqui nesse lugar.
Caju:
E quero lhe avisar e é Castanha e é Caju e é Caju Castanha é Recife, é
Caruaru, é Tejipió, é Gravatá...
Castanha:
E não é brincadeira não, é São Paulo, é Nova Iorque, todo mundo é
desse mundo e você pode acreditar e também quando eu tô arretado,
eu ando em pé, corro deitado e eu me alevanto sem andar.
Caju:
E eu quero lhe avisar que é pra falar no filme, e eu vou lhe avisar, e não
tá vendo meu amigo, mandou o filme pra aqui somente para roubar.
124
Vou lhe avisar, vem tudo do estrangeiro, aquele monte de fuleiro, eu
quero lhe esculhambar...
Castanha:
Não é brincadeira não, meu amigo preste atenção, meu amigo, vamos
cantar aqui e deixa aqueles estrangeiro, deixa aqueles cornos pra lá...
Caju:
E depois de eu me abusar eu tira careta da cara, a cara da careta, tira a
maleta da mala, tira a mala da maleta, tira a vareta da vara, tira a ara da
vareta, a taleta da tala, a tala da taleta. Lá em casa tem uma velha tira
etc etc. (neste ponto existe uma brincadeira com o som das palavras...)
Castanha:
E já vou lhe avisar, vira o dedo, vira a unha, vira a unha, vira o dedo,
vira a carta, um segredo, vira o réu, a testemunha, vira o ancho, vira a
cunha, vira a Mará, vira o mar... Barababá, berebere, biribiri, botei aqui,
tirei daqui, tirei pra ali, joguei pra lá...
Caju:
E eu quero lhe avisar que com Leonardo de Capri você hoje vai casar.
Castanha:
Não é brincadeira não, meu amigo fique de lado que com Leonardo de
Capri você hoje vai beijar.
Caju:
E eu quero lhe avisar, eu Caju vou te dizer e agora pra afundar, pra
afundar o Titanic que ele só fez trambique pra fundar o pessoal.
125
Castanha:
Não é brincadeira não, meu amigo fique de lado e fez é muito trambique
pra roubar o pessoal.
Caju:
Vamos minha gente afundar o Titanic que ele ganhou dinheiro de tanto
fazer trambique.
Castanha:
Vamos minha gente afundar o Titanic que ele ganhou dinheiro de tanto
fazer trambique.
TCR 00:04:16
Música em off:
Caju:
E eu Caju vou te dizer com o pandeiro na mão, eu vou falar em
Lampião, disso eu posso provar, vou lhe avisar e eu quero fazer meu
ritmo, quero falar em Corisco, meu colega Antônio das Mortes tá
botando pra quebrar.
Castanha:
Tá botando pra quebrar. Eu vou falar em Dona Flôr, vou falar em
Grande Otelo tá em primeiro lugar.
Caju:
Eu vou falar em Glauber Rocha, falar em Mário Peixoto, falar em
Barravento, falar é no Limite, falar em Macunaíma, meu colega nesta
rima a tampa vai avoar.
126
Castanha:
E eu também quero falar, falar no Deus e o Diabo e agora pra
completar eu vou falar em Rio 40 graus que tá botando pra quebrar. Tô
botando pra quebrar e não é brincadeira não e segure lá o rojão que eu
vou falar em Vidas Secas que tá me primeiro lugar.
Caju:
Falar em Vidas Secas eu quero lhe avisar, agora Dona Silva eu também
quero falar. Meu colega nessa rima em dona Xica da Silva eu também
quero falar.
Castanha:
Sou um cara popular, eu tô falando em Vidas Secas e também Xica da
Silva tá botando pra quebrar.
Caju:
Vou falar em Cafajestes, vou falar em Pindorama hoje eu lhe lambo na
rama se você souber cantar.
Castanha:
E não é brincadeira não e Castanha venha de lado, pode vir como te
queira que eu garanto acompanhar. Beira mar, beira mar.
TCR 00:05:37
Depois dos Créditos
Off: Bateu... Ação.
Caju:
Vamos minha gente afundar o Titanic que ele ganhou dinheiro de
127
tanto fazer trambique.
Castanha:
Vamos minha gente afundar o Titanic que ele ganhou dinheiro de tanto
fazer trambique.
TCR 00:05:48
Caju:
A realidade é uma só.
129
FILMOGRAFIA
ADÃO ou Somos todos filhos da terra. Direção: Daniela Thomas; João
Moreira Salles; Katia Lund e Walter Salles. Elenco: Adão Xalebaradã;
Janete Andrade e Luanda. Fotografia: Walter Carvalho. Direção de
produção: Raquel Zangrandi. Som: Aloysio Compasso. Música: Adão
Xalebaradã. Montagem: Walter Salles e Daniela Thomas. [S.I.]:
VideoFilmes, 1999. 1 filme (8 minutos), son. color, 35 mm.
KRAJCBERG - o poeta dos vestígios. Direção: Walter Salles Jr. Texto e
roteiro: João Moreira Salles. Elenco: Franz Krajcberg. Narração: Paulo
José. Fotografia: Walter Carvalho. Produção: Carla Niemeyer.
Operação de VT e Som: Flávio Zangrandi e Joel Silva. Edição: Walter
Salles Jr. [S.I.]: Rede Manchete; VideoFilmes, 1987. 1 filme (51
minutos), son. color, 35 mm.
SOCORRO Nobre. Direção: Walter Salles. Roteiro: Walter Salles.
Elenco: Franz Krajcberg e Socorro Nobre. Fotografia: Walter Carvalho.
Produção: Mini Kerti. Trilha original: Antônio Pinto. Edição: Walter
Salles e Felipe Lacerda. [S.I.]: VideoFilmes, 1995. 1 filme (23 minutos),
son. preto e branco, 35 mm.
130
UMA PEQUENA mensagem do Brasil ou A saga de Castanha e Caju
contra o encouraçado Titanic. Direção: Daniela Thomas e Walter Salles.
Elenco: Cajuzinho e Castanha. Co-direção: George Moura. Fotografia:
Toca Seabra. Produção: Beto Bruno e Maria Carlota F. Bruno.
Produção executiva: Maurício Andrade Ramos. Trilha original: Castanha
e Caju. Montagem: Felipe Lacerda. [S.I.]: VideoFilmes, 2002. 1 filme (6
minutos), son. color, 35 mm.
131
CINEBIOGRAFIA
Walter Salles Júnior (Rio de Janeiro, 1956).
1983/ 1985 Dirige a série Conexão Internacional, composta por
entrevistas com Jorge Luis Borges, Federico Fellini, Marcello
Mastroiani e Vittorio Gassman.
1986 Dirige o documentário de cinco horas Japão uma viagem
no tempo: Kurosawa, pintor de imagens, sobre o conflito
entre tradição e modernidade.
1987 Supervisiona a série documental de cinco horas China o
império do centro, que ressalta o contraste entre tradicional e
revolucionário.
1987 Dirige série documental sobre os artistas plásticos brasileiros
Tomie Ohtake e Rubens Gerchman.
132
1987 Dirige o documentário Krajcberg - o poeta dos vestígios,
sobre o escultor polonês Franz Krajcberg. Roteiro de João
Moreira Salles.
1988 Dirige o especial Marisa Monte, exibido pela Rede Manchete.
1989 Realiza seu primeiro longa-metragem A Grande Arte,
distribuído nos EUA pela Miramax.
1990 Dirige o documentário musical Chico no país da delicadeza
perdida, sobre o Rio de Janeiro e o compositor Chico
Buarque de Holanda, co-produzido pela rede francesa de
televisão FR3, com roteiro de João Moreira Salles.
1992 Dirige o documentário João e Antônio, sobre a Bossa Nova,
com Antônio Carlos Jobim e João Gilberto. Exibido pela
Rede Globo.
1992/ 1993 Dirige com José Henrique Fonseca a série de cinco
programas Caetano, 50 anos, exibida pela Rede Manchete.
Roteiro de João Moreira Salles e Arthur Fontes.
1993 Dirige o especial Tributo a Tom Jobim.
1995 Dirige o documentário Socorro Nobre, sobre a relação entre
Franz Krajcberg e a presidiária Maria do Socorro Nobre.
133
1995 Dirige o longa-metragem Terra Estrangeira, co-realizado com
Daniela Thomas.
1998 Realiza o longa-metragem Central do Brasil.
1998 Dirige o filme O primeiro dia, a convite da rede de televisão
francesa Arte. Co-realizado com Daniela Thomas
proporciona uma visão da virada do milênio, tendo o morro
como cenário.
1999 Dirige Adão ou Somos todos filhos da terra, documentário
sobre o compositor Adão Xalebaradã. Uma criação coletiva
das equipes de filmagem de O Primeiro Dia e Notícias de
uma Guerra Particular, dirigido por João Moreira Salles e
Kátia Lund.
2001 Dirige Abril despedaçado, filme inspirado no romance
homônimo de Ismail Kadaré.
2001 Produz os filmes Madame Satã de Karim Aïnouz, Cidade de
Deus de Kátia Lund e Fernando Mereilles e Onde a Terra
Acaba de Sérgio Machado.
2002 Dirige o documentário Uma pequena mensagem do Brasil ou
A saga de Castanha e Caju contra o encouraçado Titanic, co-
realizado com Daniela Thomas, com a participação da dupla
de emboladores Castanha e Caju. Trabalho feito para a
Quinzena de Realizadores do 55º. Festival de Cannes.
134
2004 Dirige Diários de motocicleta, filme baseado nos diários de
viagem de Alberto Granado e Ernesto Guevara, que decidem
fazer uma incursão, de moto, pela América Latina, em 1952.
2005 Dirige Água negra, uma refilmagem americana do filme
homônimo do diretor japonês Hideo Nakata.
2005 Produz o filme Cidade baixa de Sérgio Machado.
2006 Dirige em co-parceria com Daniela Thomas 20ème
arrondissement, um dos 21 curtas de cinco minutos que
integram a coletânea Paris Je TAime, sobre a cidade de
Paris.
2007 Dirige o curta-metragem de três minutos A 8.944 km de
Cannes, com a participação da dupla Castanha e Caju que
faz uma embolada com o filme Os Incompreendidos, de
Truffaut. A obra integra a coletânea Cada um com seu
Cinema, composta por outros 24 trabalhos feitos para a 60º
Festival de Cannes.
2008 Dirige em co-parceria com Daniela Thomas Linha de Passe,
longa-metragem que conta a história de quatro irmãos que
tentam se reinventar na periferia de São Paulo. Filhos de
Cleuza, empregada doméstica que está grávida do quinto
filho, convivem com as dificuldades e a ausência do pai.
135
BIBLIOGRAFIA
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1º. fev. 1999.
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brazilian cinema. Londres/ Nova York: I.B. Tauris, 2003.
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Conversa com Walter Salles - O documental como socorro nobre da
ficção. Cinemais, Rio de Janeiro, n. 9, jan./fev. 1998.
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Brasiliense, 1985.
__________. O autor no cinema. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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LÓPEZ, Nayse. Príncipe Rebelde. Trip. São Paulo, mai. 2004. Páginas
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Braziliense. Brasília, 14 mai. 2002. Disponível em:
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2_1, 49.htm>. Acesso em: 14 abr. 2008.
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MONZILO, Marina. Do tráfico para a música. IstoÉ Gente. São
Paulo, 29 jul. 2003. Disponível em:
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Universidade de Oxford, 2000.
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Edições Graal/Embrafilme, 1983.
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