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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR
Vice-Reitoria de Pós-Graduação – VRPPG
Centro de Ciências Humanas – CCH
Mestrado em Psicologia
PSICANÁLISE E FOLCLORE AMAZÔNICO: UMA LEITURA FREUDIANA
DAS LENDAS DO MAPINGUARI, DO BOTO E DA COBRA NORATO
PSYCHOANALYSIS AND THE AMAZONIAN FOLKLORE: A FREUDIAN READING
OF THE LEGENDS OF MAPINGUARI, BOTO AND COBRA NORATO
Lorena Lima da Silva
Fortaleza – CE
2009
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LORENA LIMA DA SILVA
PSICANÁLISE E FOLCLORE AMAZÔNICO: UMA LEITURA FREUDIANA
DAS LENDAS DO MAPINGUARI, DO BOTO E DA COBRA NORATO
PSYCHOANALYSIS AND THE AMAZONIAN FOLKLORE: A FREUDIAN READING
OF THE LEGENDS OF MAPINGUARI, BOTO AND COBRA NORATO
Universidade de Fortaleza - UNIFOR
Fortaleza – CE
2009
Dissertação apresentada à Coordenação do Curso de
Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza
UNIFOR, como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
Área de concentração: Estudos Psicanalíticos
Orientadora: Profa. Dra. Clara Virgínia de Queiroz
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________________________________________________________________________
S586p Silva, Lorena Lima da.
Psicanálise e folclore amazônico : uma leitura freudiana das lendas do
mapinguari, do boto e da cobra norato / Lorena Lima da Silva. - 2009.
168 f.
Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2009.
“Orientação: Profa. Dra. Clara Virgínia de Queiroz Pinheiro.”
1. Psicanálise. 2. Lendas. 3. Fantasia (Psicologia). 4. Folclore. I. Título.
CDU 159.964.2
_______________________________________________________________________
Ao meu avô, Francisco Chagas de Lima, que muito me contou
sobre lendas da Amazônia.
AGRADECIMENTOS
À Deus que iluminou o meu caminho.
Aos meus pais, Valmir Costa da Silva e Maria Auxiliadora Lima da Silva, que me
deram a vida e a força necessária para vivê-la com garra e determinação.
Ao casal, Luiz Augusto Folha do Vale e Maria Lúcia Lima do Vale, que me
hospedou durante dois anos e possibilitou a realização deste mestrado.
Ao meu amor, Paulo Ricardo Oliveira da Silva, que esteve sempre presente.
À minha orientadora, Dra. Clara Virgínia de Queiroz Pinheiro, pela condução
exemplar da pesquisa.
À banca examinadora, Dr. Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, Dra. Júlia Sursis
Nobre Ferro Bucher e Dra. Maria Celina de Peixoto Lima, pelas contribuições ao
trabalho.
Aos meus irmãos, Valmir Costa da Silva Filho e Renato Lima da Silva, pelo
companheirismo.
Às amigas, Renata Lúcia do Vale Leite, Dannielle Lima do Vale Almeida, Luciana
Lima do Vale Freitas e Maria Bruna Lima do Vale, pelos momentos
compartilhados.
À Lisieux D'Jesus Luzia de Araújo Rocha pelas orações.
À Natália Soares Rios pelo apoio.
À Marjorie Gesimila de Oliveira Vieira pelo incentivo.
À Andréa Leite da Costa pela torcida.
Aos professores e funcionários do mestrado pela atenção.
Aos amigos e familiares por tudo.
6
“As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia
é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória”
(Freud, 1908/1996, p. 137).
7
RESUMO
A Amazônia é conhecida por sua diversidade de lendas que cercam de encantos
sua exuberante floresta e imensa bacia hidrográfica. As lendas são manifestações
folclóricas que interessam à psicanálise desde os estudos de Freud. Nesse
sentido, o folclore insere-se no contexto de investigação psicanalítico e viabiliza a
pesquisa sobre os significados inconscientes das lendas amazônicas. Dessa
forma, nosso estudo, situado na interface da psicanálise com o folclore, recorta as
lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato para atingir o objetivo de
compreender essas lendas à luz da teoria freudiana. Para tanto, utilizamos o
procedimento metodológico qualitativo e a partir de uma pesquisa bibliográfica
analisamos os dados coletados através da análise de conteúdo que seguiu três
passos: descrição, investigação e comparação. A descrição foi embasada nos
pesquisadores do folclore brasileiro, a investigação esteve atrelada à obra de
Freud e a comparação tomou como parâmetro as análises de narrativas
folclóricas desenvolvidas por outros estudiosos da psicanálise. Os resultados
encontrados evocaram temas psicanalíticos relacionados aos aspectos de
destaque das lendas como a fantasia de ser devorado, a sedução e a dualidade
pulsional. Portanto, as lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato
entrelaçaram-se, respectivamente, a temas como o complexo de castração, o
narcisismo e as pulsões de vida e de morte. Consequentemente, esta pesquisa
traz uma importante contribuição para os estudos psicanalíticos das
manifestações folclóricas.
Palavras-Chave: psicanálise, lendas amazônicas, complexo de castração,
narcisismo, dualismo pulsional.
8
ABSTRACT
The Amazon is known for its diversity of legends that surround its exuberant forest
and vast basin with allure. The legends are folkloric manifestations that
psychoanalysis takes an interest in since Freud's studies. Thus, the folklore is
within the context of psychoanalytic investigation and it enables researches on the
unconscious meanings of the Amazonian legends. This way, our study, which is at
the interface between psychoanalysis and folklore, uses the legends of
Mapinguari, Boto and Cobra Norato to achieve the goal of understanding these
legends under the light of Freudian theory. The qualitative procedure was used.
From a bibliographic research, we analyzed the collected data through content
analysis which followed three steps: description, investigation and comparison.
The description was based on researchers of Brazilian folklore, the investigation
was linked to Freud’s work and the comparison had as a parameter the analyses
of folk tales developed by other scholars of psychoanalysis. The results raised
psychoanalytic issues related to the outstanding aspects of the legends, such as
the fantasy of being devoured, the seduction and the duality of the drive.
Therefore, the legends of Mapinguari, Boto and Cobra Norato are intertwined,
respectively, with issues such as castration complex, narcissism and the drives of
life and death. Consequently, this research provides an important contribution to
the psychoanalytic study of folklore.
Keywords: psychoanalysis, Amazonian legends, the castration complex,
narcissism, drive dualism.
9
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO..................................................................................................11
2. CULTURA E PSICANÁLISE: A INTERFACE DAS LENDAS...........................29
O conceito de fantasia e a investigação das lendas.........................................34
O caráter onírico das lendas............................................................................42
3. LENDA DO MAPINGUARI: DA FANTASIA DE SER DEVORADO AO
COMPLEXO DE CASTRAÇÃO.............................................................................56
4. LENDA DO BOTO: O NARCISISMO NAS NUANCES DA
SEDUÇÃO........................................................................................................89
5. LENDA DA COBRA NORATO: ENTRE A DUALIDADE E AS PULSÕES DE
VIDA E MORTE..............................................................................................124
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................154
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................164
10
INTRODUÇÃO
Amazonas moreno,
tuas águas sagradas
são lindas estradas
são contos de fadas
ó meu doce rio
Osmar Gomes e Celdo Braga
Os rios da Amazônia, assim como suas matas, escondem mistérios que a
tradição oral transmite e conserva sob a forma de lenda: “episódio heróico ou
sentimental com elemento maravilhoso ou sobrehumano” (Cascudo, 2001a, p.
328). Na música Amazonas Moreno citada acima, as águas do rio Amazonas são
abordadas como contos de fadas e dessa analogia partimos para o estudo
psicanalítico das lendas amazônicas.
A psicanálise encara toda produção mental como portadora de significado,
segundo essa teoria, nenhuma manifestação do psiquismo é desprovida de
sentido (Laplanche & Pontalis, 1992). Então, as lendas enquanto produções
psíquicas carregam sentidos que podem ser revelados através do método
psicanalítico. Evidenciar os significados ocultos das lendas amazônicas constitui o
objetivo da nossa pesquisa, por isso, seguimos o modelo deixado por Freud na
investigação dos fenômenos mentais.
Freud investigou obras artísticas como a de Michelangelo O Moisés de
Michelangelo (1914) e obras literárias como a de Dostoievski Dostoievski e o
Parricídio (1928) fazendo uma análise sobre a biografia dos autores. Freud
também analisou criações literárias como a de Jensen Delírios e Sonhos na
Gradiva de Jensen (1907) e a de Hoffman O Estranho (1919) articulando as
narrativas com a sua teoria psicanalítica. A proposta da nossa pesquisa é fazer
11
uma análise do conteúdo das lendas, articulando também esse conteúdo com a
teoria freudiana.
O conteúdo seja de uma criação literária ou de uma lenda passa a ser
propriedade coletiva. Os contos de fadas, por exemplo, deixam de ser do domínio
exclusivo de Andersen (1978), Perrault (2004) ou Grimm (2005), para pertencer à
coletividade. Nesse sentido, não estamos em busca dos inventores das lendas, e
sim dos significados das mesmas para cada indivíduo que compartilha deste
mesmo saber, então, o nosso estudo não se refere ao saber individual, mas ao
popular. O folclore é exatamente o conjunto das tradições, crenças e saberes
populares (Cascudo, 2001a), por isso, situamos nossa pesquisa na interface da
psicanálise com o folclore.
Outros trabalhos foram desenvolvidos na interface da psicanálise com o
folclore. Bruno Bettelheim realizou uma pesquisa sobre as narrativas folclóricas
tradicionais e suas relações com o desenvolvimento infantil e demonstrou em seu
livro A psicanálise dos contos de fadas (1976/2007) como tais narrativas
funcionam na elaboração de conflitos psíquicos. Diana Corso e Mário Corso em
seu livro Fadas no Divã (2006) deram continuidade ao trabalho pioneiro de
Bettelheim e além da interpretação dos contos de fadas tradicionais, fizeram uma
análise das histórias infantis do século XX e do início do século XXI.
Nesses dois estudos, que serviram de parâmetro para o nosso trabalho, os
autores não analisaram os criadores dos contos, e sim o conteúdo das histórias
infantis. Do mesmo modo, nos atemos ao conteúdo das narrativas lendárias.
Nossos dados foram obtidos através de registros escritos e nossa análise de
dados foi feita pela análise de conteúdo de Bardin (1977). Mas para introduzir o
12
tema da análise das narrativas folclóricas, vamos acompanhar a seguir como
Freud articulou o assunto à sua teoria psicanalítica.
Em 1913, Freud investiga a influência dos contos de fadas nas produções
oníricas e retrata dois sonhos para demonstrar como situações e elementos
derivados de histórias infantis podem fazer parte da constituição psíquica dos
indivíduos. Destacaremos, agora, um comentário de Freud sobre o segundo
sonho retratado neste artigo, A ocorrência em sonhos de material oriundo de
contos de fadas, de 1913. Freud refere-se ao sonho de seu paciente, conhecido
como Homem dos Lobos, cuja análise do caso foi publicada em 1918. Sobretudo,
em 1913, Freud escrevia sobre a importância dos contos de fadas; vejamos o
que ele dizia, naquele momento, sobre o efeito dessas histórias:
O efeito produzido por estas histórias foi demonstrado no pequeno que
as sonhou mediante uma fobia animal comum. Esta fobia se
distinguia de outros casos semelhantes pelo fato de o animal causador
da ansiedade não ser um objeto facilmente acessível à observação (tal
como um cavalo ou um cão), mas conhecido dele somente de histórias
e livros de figuras. (1913a/1996, p. 310).
As histórias referidas por Freud, nessa passagem, são Chapeuzinho
vermelho e O lobo e os sete cabritinhos. O paciente de Freud conseguiu
estabelecer relações entre o seu sonho e as duas histórias contadas na sua
infância. Por isso, Freud afirma a contribuição dos contos de fadas na constituição
psíquica dos indivíduos. Seu paciente tinha fobia de lobos, estes não podiam ser
observados com facilidade, e em tenra idade aquele era assombrado por sua irmã
mais velha ao ler um conto em que aparecia a figura de um lobo. Concluímos que
13
as histórias infantis contadas ou lidas às crianças inscrevem-se em suas mentes e
passam a compor o conjunto de suas lembranças (Freud, 1913a/1996).
Motivados pelo interesse de estudar as lendas amazônicas, assim como os
contos de fadas foram estudados, partimos para a pesquisa com a seguinte
problemática:
Quais os significados inconscientes das lendas do Mapinguari, do Boto e
da Cobra Norato?
Uma problemática clara e simples baseada no todo psicanalítico de
investigação. Segundo Laplanche & Pontalis (1992), psicanálise pode ser definida
como “um método de investigação que consiste essencialmente em evidenciar o
significado inconsciente das palavras, das ações e das produções imaginárias” (p.
384). As lendas entendidas como produções psíquicas estão inseridas no
contexto de investigação psicanalítica que objetiva elucidar significados
inconscientes. Então, a nossa pesquisa iniciou-se com base em um problema
gerado para produzir respostas sobre a significação das lendas. Primeiro, é
preciso explicar a escolha das três lendas e segundo é necessário introduzir o
conceito de inconsciente para familiarizar o leitor com a problemática da pesquisa.
O recorte das lendas para compor o estudo obedeceu ao critério de
representatividade da Amazônia. Em outros termos, através das lendas
selecionadas Mapinguari, Boto e Cobra Norato representamos o cenário
amazônico de mata densa e largos rios. Mas, além da representatividade da
Amazônia através da referência à sua exuberante floresta e imensa bacia
hidrográfica, as lendas foram selecionadas pela sua difusão, estando as três
escolhidas entre as mais conhecidas da região, segundo o estudo de Luís da
Câmara Cascudo (2002).
14
Agora, faremos um breve estudo sobre o conceito de inconsciente baseado
no artigo O inconsciente de Freud. Esse artigo, publicado em 1915, faz parte de
umarie de cinco artigos sobre metapsicologia, em que o criador da psicanálise
faz uma exposição completa e sistemática de suas teorias psicológicas. O
objetivo de Freud (1915/1996) era proporcionar um fundamento teórico estável à
psicanálise.
Para nos aproximarmos do conceito de inconsciente, devemos entender o
que Freud denominou de metapsicologia. Ele nos ajuda a compreender dizendo:
“proponho que, quando tivermos conseguido descrever um processo psíquico em
seus aspectos dinâmico, topográfico e econômico, passemos a nos referir a isso
como uma apresentação metapsicológica” (1915/1996, p.186). Logo, o psiquismo
deve ser entendido em relação a três aspectos: 1) topográfico referente à
localização do ato mental; 2) dinâmico relativo ao conflito de forças atuantes no
psiquismo e; 3) econômico relacionado à quantidade de energia envolvida no
processo psíquico. No que diz respeito ao aspecto topográfico, vale ressaltar que
nada tem a ver com localidades anatômicas, mas com a questão de descobrir
dentro de que sistema ou entre que sistemas o ato mental se operou. Nesse
sentido, Freud cita:
Passando agora para um relato das descobertas positivas da
psicanálise, podemos dizer que, em geral, um ato psíquico passa por
duas fases quanto a seu estado, entre as quais se interpõe uma
espécie de teste (censura). Na primeira fase, o ato psíquico é
inconsciente e pertence ao sistema Ics; se, no teste, for rejeitado pela
censura, não terá permissão para passar à segunda fase; diz-se então
que foi ‘reprimido’, devendo permanecer inconsciente. Se, porém,
15
passar por esse teste, entrará na segunda fase e, subseqüentemente,
pertencerá ao segundo sistema, que chamaremos de sistema Cs. Mas
o fato de pertencer a esse sistema ainda não determina de modo
inequívoco sua relação com a consciência. Ainda não é consciente,
embora, certamente, seja capaz de se tornar consciente. . . . Em vista
dessa capacidade de se tornar consciente, também denominamos o
sistema Cs. de ‘pré-consciente’. Se ocorrer que uma certa censura
também desempenhe um papel em determinar se o pré-consciente se
torna consciente, procederemos a uma discriminação mais acentuada
entre os sistemas Pcs. e Cs.. Por ora contentemo-nos em ter em mente
que o sistema Pcs. participa das características do sistema Cs., e que a
censura rigorosa exerce sua função no ponto de transição do Ics. para
o Pcs. (1915/1996, p. 177).
O primeiro tópico apresentado no capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos
(1900b) diz respeito à divisão do aparelho psíquico em três sistemas: Consciente,
Pré-consciente e Inconsciente. Nessa citação de 1915, Freud fundamenta o
psiquismo e deixa claro que inconsciente é o estado de um ato psíquico, que pela
ação da censura não pode tornar-se consciente.
A investigação psicanalítica consiste em desvendar os significados
inconscientes, por isso, faz parte do nosso trabalho investigar as lendas, ler o que
está nas entrelinhas e revelar o oculto. As lendas amazônicas são populares entre
os habitantes da região, elas têm um enredo bastante divulgado, mas procuramos
descobrir nesta pesquisa o que essas histórias têm de inconsciente, ou seja, o
que escapa da narrativa consciente. Por esse motivo, apresentamos, agora, a
justificativa do nosso estudo.
16
A relevância da pesquisa ganha peso quando falamos das motivações que
nos levaram a reunir as histórias fantásticas da Amazônia e a teoria psicanalítica.
Freud estudou manifestações folclóricas e nunca desprezou as histórias de
fantasia. Em 1910, ele escreveu sobre uma lembrança infantil de Leonardo da
Vinci e afirmou:
No entanto, menosprezando essa história cometeríamos uma injustiça
tão grande como faríamos se desprezássemos o conjunto de lendas,
tradições e interpretações encontradas na história primitiva de uma
nação. A despeito de todas as distorções e mal-entendidos elas ainda
representam a realidade do passado: representam aquilo que um povo
constrói com a experiência de seus tempos primitivos e sob a influência
de motivos que, poderosos em épocas passadas, ainda se fazem sentir
na atualidade. (1910/1996, p. 92).
A lembrança primitiva de Da Vinci tinha importância na história de vida
dele, assim como as lendas têm sua importância na vida de seu povo. As lendas
narram o passado, mas o seu sucesso na atualidade demonstra como elas
continuam sendo interessantes. Através das lendas conhecemos a história do
nosso passado e ficamos mais próximos de saber como elas influenciaram na
formação de nossa personalidade. Bettelheim (1976/2007) utiliza o modelo
psicanalítico da personalidade humana e afirma:
Ao longo dos séculos durante os quais os contos de fadas, ao serem
recontados, foram se tornando cada vez mais refinados, eles passaram
a transmitir ao mesmo tempo significados manifestos e latentes
passaram a falar simultaneamente a todos os níveis da personalidade
humana, comunicando de uma maneira que atinge a mente ineducada
17
da criança tanto quanto a do adulto sofisticado. Aplicando o modelo
psicanalítico da personalidade humana, os contos de fadas transmitem
importantes mensagens à mente consciente, à pré-consciente e à
inconsciente, seja em que nível for que cada uma esteja funcionando no
momento. (p. 12).
As lendas, assim como os contos de fadas, transmitem significados
manifestos e latentes. Elucidar o que está latente ou o que está por trás das
narrativas folclóricas constitui o objetivo do nosso trabalho. O empenho em
descobrir o que está encoberto pela fachada das lendas amazônicas justifica-se
pela tentativa de compreender as motivações inconscientes que fazem as lendas
se perpetuarem. O estudo é relevante porque as histórias ainda são interessantes
para as pessoas que continuam a transmitir seu conteúdo ou seu núcleo como
chamaram Corso & Corso (2006):
Em geral, quando contamos um conto nos apropriamos dele, o
subjulgamos aos nossos interesses. Para tanto, uma parte se conserva
(uma espécie de núcleo da história), mas outra é acrescentada, por
isso, as histórias não permanecem exatamente iguais com o passar dos
anos. É isso que torna tão instigante o porquê de determinados contos
terem se celebrizado, durado, permanecido com um núcleo comum tão
preservado, sendo que não são necessariamente muito melhores do
que outros. Entre a variada oferta de combinatórias de fadas, bruxas,
amores e aventuras, alguns contos tiveram a sorte de oferecer uma
mistura adequada ao uso dos narradores de outros tempos. (p. 23).
Retornando ao que Freud (1910/1996) falou a respeito de todos os mal-
entendidos e concordando agora com Corso & Corso (2006), as histórias
18
permanecem com um núcleo preservado e atravessam os anos transmitindo suas
mensagens a várias gerações. Cada lenda carrega seu significado consciente e
também inconsciente. Portanto, compreender os significados inconscientes de
cada lenda é importante, pois nos deixa em contato com conteúdos que
determinaram sua invenção e determinam, até hoje, sua permanência.
A pesquisa, norteada pela pergunta, (Quais os significados inconscientes
das lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato?) visa atingir o seguinte
objetivo geral:
Compreender os significados inconscientes das lendas do Mapinguari, do
Boto e da Cobra Norato.
Seguido pelos objetivos específicos:
Descrever as lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato;
Analisar as três lendas selecionadas conforme a teoria freudiana e;
Comparar o resultado da análise com o resultado de outros estudos que
relacionaram psicanálise e folclore.
A análise das lendas de acordo com a teoria freudiana constitui o ponto
chave do nosso estudo, pois revela os significados psicanalíticos das lendas,
objetivo geral da pesquisa. Mas para atingir a investigação mais congruente com
a obra de Freud, a análise foi alicerçada em uma descrição detalhada das lendas
e em uma comparação com estudos realizados nessa mesma interface da
psicanálise com o folclore. Então, ao anunciar um estudo comparativo, devemos
primeiro estabelecer quais pesquisas foram tomadas como parâmetro de
comparação e o que exatamente foi comparado.
Os estudos psicanalíticos dos contos de fadas, mais especificamente os de
Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006), nos serviram como base. Esses
19
trabalhos funcionaram como um modelo a ser seguido e nos mostraram que seria
possível realizar nossa pesquisa, pois partimos para um estudo psicanalítico das
lendas amazônicas sabendo que estudos similares já tinham sido feitos.
Tanto os contos de fadas quanto as lendas amazônicas são narrativas
folclóricas. Por isso, é possível o estudo comparativo entre elas. Megale (2003)
afirma:
O folclore é encontrado na literatura sob a forma de poemas, lendas,
contos, provérbios e canções, assim como nos costumes tradicionais
como danças, jogos, crendices e supertições. Verifica-se também sua
existência nas artes e nas mais diversas manifestações da atividade
humana. (p. 12).
Portanto, contos e lendas são manifestações folclóricas que ocorrem no
contexto do maravilhoso e do sobrenatural (Cascudo, 2001a; Megale, 2003).
Todorov (2007) define maravilhoso como o gênero cujos elementos sobrenaturais
não provocam qualquer reação particular nem nos personagens da história, nem
no leitor implícito. Diz Todorov (2007):
Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso ao do conto de fadas;
de fato, o conto de fadas não é senão uma das variedades do
maravilhoso e os acontecimentos sobrenaturais não provocam
qualquer surpresa: nem o sono de cem anos, nem o lobo que fala, nem
os dons mágicos das fadas. (p. 60).
Assim como os contos de fadas, as lendas amazônicas estão cheias de
elementos sobrenaturais: um animal ciclópico, uma índia mãe de duas cobras, um
boto metamorfoseado em homem, etc.
20
Agora, para saber o que será comparado, devemos através de uma
descrição breve destacar os aspectos das lendas que serão analisados sob o
enfoque da teoria freudiana. Então, começamos com a descrição do Mapinguari:
O Mapinguari é representado como um enorme animal, semelhante a
um primata de grande porte, que muito se aproxima de um grande
macaco, inteiramente coberto de pêlos, exceto no umbigo, única área
em que é vulnerável a ataques. Muitos acreditam, porém, que a lenda
do Mapinguari tenha origem na extinta preguiça-gigante, animal pré-
histórico que povoou a Amazônia, considerado ancestral do atual bicho-
preguiça. Para alguns, ele possui aparência ciclópica (com um olho no
meio da testa) e uma grande boca que se estende até a barriga, tendo
o homem como seu inimigo principal, do qual devora em primeiro lugar
a cabeça para depois ingerir o corpo inteiro. (Britto, 2007, p. 73).
Destaca-se, nessa lenda, o caráter devorador do Mapinguari. Como Freud
investiga em sua obra a fantasia de ser devorado? Analisamos a lenda do
Mapinguari de acordo com a investigação freudiana da fantasia de ser devorado.
Depois, o resultado dessa análise foi comparado ao encontrado por Bettelheim
(1976/2007) e Corso & Corso (2006), na análise dos contos de fadas que
apresentaram esse aspecto devorador em seus personagens.
Da mesma forma, analisamos a lenda do Boto: mediante um aspecto de
destaque, investigamos psicanaliticamente o significado desse aspecto e em
seguida comparamos ao resultado da investigação de Bettelheim (1976/2007) e
Corso & Corso (2006), no que se refere ao mesmo aspecto presente nos contos
de fadas. Na lenda do Boto, destaca-se o aspecto da sedução:
21
Nenhuma lenda é tão erótica e enraizada na cultura amazônica quanto
a do Boto. Nenhum outro animal da região está sujeito a tantas fábulas
quanto este cetáceo. O golfinho do Amazonas é indispensável ao
folclore regional e se destaca por ter fama de seduzir moças ribeirinhas
e ser responsável pela paternidade desconhecida na região.
Transforma-se, ao cair da noite, num belo rapaz, garanhão, alto,
branco, forte, grande dançarino e bebedor, que aparece para seduzir as
mulheres, solteiras ou não. . . . Porém, antes da madrugada chegar, ele
pula na água e volta a ser boto novamente. (Britto, 2007, p. 18).
O aspecto sedutor do Boto nos chama atenção e nos mostra a direção que
devemos seguir na análise dessa lenda. O significado da sedução na teoria
freudiana nos indica o caminho para a investigação da lenda do Boto.
Agora, vejamos o aspecto de destaque da lenda da Cobra Norato:
No paranã do Cachoeiri, entre o Amazonas e o Trombetas, nasceram
Honorato e sua irmã Maria, Maria Caninana. A mãe sentiu-se grávida
quando se banhava no rio Claro. Os filhos eram gêmeos e vieram ao
mundo na forma de duas serpentes escuras. A tapuia batizou-os com os
nomes cristãos de Honorato e Maria. E sacudiu-os nas águas do paranã
porque não podiam viver em terra. Criaram-se livremente, revirando ao
sol os dorsos negros, mergulhando nas marolas e bufando de alegria
selvagem. O povo chama-os: Cobra Norato e Maria Caninana. Cobra
Norato era forte e bom. Nunca fez mal a ninguém. . . . Salvou muita
gente de morrer afogada. Direitou montarias e venceu peixes grandes e
ferozes. . . . Maria Caninana era violenta e má. Alagava as
22
embarcações, matava os náufragos, atacava os mariscadores que
pescavam, feria os peixes pequenos. (Cascudo, 2001b, p. 25).
A dualidade presente na lenda da Cobra Norato é o aspecto de destaque,
então, o significado da dualidade na psicanálise de Freud lançou luz sobre a
investigação dessa lenda. Comparamos, também, ao resultado da análise de
Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006), ressaltando o aspecto dual dos
contos de fadas. Portanto, no estudo das três lendas amazônicas sobressaíram-
se o aspecto devorador, o aspecto sedutor e o aspecto dual.
A partir de agora, podemos apresentar quais os procedimentos
metodológicos utilizados na pesquisa, pois investigar os significados
inconscientes das lendas amazônicas requer uma conduta que possibilite a
interpretação dos dados pesquisados. Segundo Creswell (2007), “a pesquisa
qualitativa é fundamentalmente interpretativa” (p. 186). Por essa razão, elegemos
o método qualitativo como o mais apropriado para a realização do estudo
proposto.
Na pesquisa qualitativa os significados vão surgindo durante o processo de
investigação, por isso, uma de suas características é ser emergente e não pré-
configurada (Creswell, 2007). A outra é exigir do pesquisador um pensamento
interativo que vincule, a todo momento, a questão da pesquisa, à coleta e à
análise dos dados (Creswell, 2007).
Apresentamos as propriedades gerais da pesquisa qualitativa para que o
nosso leitor possa entender a escolha do procedimento metodológico que
sustentou nosso estudo. O método qualitativo viabiliza a compreensão de um
fenômeno específico em profundidade e trabalha com questões de ordem
subjetiva. Por não ser um procedimento interessado em dados quantitativos ou
23
estatísticos, a pesquisa qualitativa nos permite estudar a subjetividade presente
nas lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato.
Utilizando o método qualitativo estamos privilegiando o conhecimento mais
aprofundado em detrimento do superficial, por isso, estabelecemos o recorte
preciso de três lendas. Apesar da região amazônica possuir grande quantidade de
lendas, optamos por fazer uma abordagem específica e zelar pela qualidade da
pesquisa.
Os dados da pesquisa foram coletados nos livros de autores que
retrataram as lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato. As obras mais
recentes foram o alvo da pesquisa, pois resguardaram a contemporaneidade do
estudo. Mas quando uma publicação recente faz referência a uma publicação
antiga, resgatamos o antigo como forma de identificar as equivalências com o
presente. Os autores regionais, como Mário Ypiranga Monteiro (2006), também
foram objeto de pesquisa por representarem o folclore amazônico com capricho e
entusiasmo. Autores nacionais, como Luís da Câmara Cascudo (2001a; 2001b),
não ficaram de fora do levantamento de dados por estudarem com afinco a
cultura brasileira.
Os dados para compor o estudo foram extraídos de referências
bibliográficas e consequentemente foram todos de ordem escrita, o que nos levou
a definir nossa pesquisa como bibliográfica no que diz respeito ao seu método de
coleta de dados. Vejamos o que Gil (2007) nos fala sobre esse tipo de pesquisa:
A pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material
elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos.
Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo de trabalho
24
dessa natureza, pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de
fontes bibliográficas. (p.44).
Os dados da pesquisa foram provenientes de registros escritos em livros,
então, o material coletado foi exclusivamente bibliográfico, por isso, nossa
pesquisa qualitativa definiu-se também como bibliográfica.
Os dados da pesquisa foram analisados conforme a análise de conteúdo
de Bardin (1977). O método foi escolhido por estar de acordo com o nosso
objetivo de analisar o conteúdo das mensagens lendárias do folclore amazônico.
Vejamos o que Bardin (1977) entende por análise de conteúdo:
Designa-se sob o termo de análise de conteúdo um conjunto de
técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores
que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção destas mensagens. (p. 44).
A tradição oral envolve mensagem, emissor e receptor. Segundo Bardin
(1977), através da mensagem podemos adquirir conhecimento sobre o emissor, o
receptor e o contexto em que eles estão inseridos. Então, quando Bardin (1977)
refere-se aos “conhecimentos relativos às condições de produção/recepção”, ela
está querendo dizer que por intermédio das mensagens podemos conhecer o
meio no qual a mensagem foi produzida e também o efeito que ela pode causar
nesse meio. Assim, podemos pensar no efeito que as lendas causam no contexto
amazônico e conhecer mais o emissor/receptor dessas mensagens.
A tradição oral é responsável pelo conhecimento que temos hoje das
lendas e se elas sobreviveram até os nossos dias é porque despertaram o
interesse tanto de quem contou quanto de quem escutou essas histórias (Corso &
25
Corso, 2006). A lenda é interessante para quem transmite e também para quem
recebe, pois o receptor pode mais tarde ser o emissor dessas mesmas histórias.
Enfim, queremos destacar o processo de transmissão das lendas, pois esse faz
com que o conhecimento seja partilhado na esfera coletiva.
Ainda no que diz respeito à citação acima devemos destacar os
procedimentos relacionados por Bardin (1977): descrição e inferência. A
descrição consiste em transcrever as mensagens tal como foram faladas ou
escritas. Como na nossa pesquisa utilizaremos somente a mensagem escrita, a
descrição das lendas será feita conforme os registros coletados. Por sua vez, a
inferência define-se como uma “operação lógica, pela qual se admite uma
proposição em virtude da sua ligação com outras proposições aceites como
verdadeiras” (Bardin, 1977, p. 41). O trabalho de aproximação do folclore
amazônico com a teoria freudiana visou justamente deduzir os significados
psicanalíticos das lendas. Ou seja, as proposições de Freud foram utilizadas
como fundamentação teórica na investigação das lendas amazônicas.
Creswell (2007) aconselha “descrever como o resultado narrativo será
comparado com teorias e literatura geral sobre o tópico” (p. 201). Por isso,
acrescentamos o procedimento da comparação para garantir a validade do
estudo. Como destacamos, comparamos o resultado da nossa análise com o
resultado que Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006) obtiveram na
análise dos contos de fadas. A similaridade entre lendas e contos de fadas é dada
pela definição dos dois conceitos como modalidades de manifestações folclóricas
(Megale, 2003).
Todavia, a narrativa de uma lenda é diferente da narrativa de um conto,
mas apesar de diferentes, as narrativas folclóricas possuem alguns aspectos
26
semelhantes entre si, como destacamos anteriormente. A comparação foi feita em
relação aos seguintes aspectos: devorador, sedutor e dual. Assim, foi possível o
estudo comparativo entre contos de fadas e lendas amazônicas. Nesse sentido, a
comparação somou-se aos procedimentos de descrição e de inferência propostos
por Bardin (1977) e completou a nossa análise de dados.
Segundo Creswell (2007), “quem desenvolve uma proposta precisa
informar os passos que vai dar no estudo para verificar a precisão e credibilidade
de seus resultados” (p. 199). Portanto, informamos, agora, os passos do nosso
estudo:
Passo 1: descrição;
Passo 2: investigação;
Passo 3: comparação.
A descrição foi feita através do fornecimento de informações detalhadas
sobre as lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato. Cada lenda foi
descrita de forma minuciosa e foram ressaltadas todas as particularidades nelas
encontradas. Relatar todas as características das lendas nos ajudou na
investigação das mesmas, por isso, a descrição serviu de base para a análise dos
dados pesquisados.
A investigação consiste na análise psicanalítica das lendas, ou seja, no
estudo das lendas amazônicas à luz do referencial da psicanálise. A abordagem
psicanalítica foi feita de acordo com a teoria freudiana e, nesse sentido, o folclore
amazônico foi aproximado da psicanálise de Freud.
Todavia, uma pesquisa científica não pode desenvolver-se com base
apenas em um olhar, pois transformar-se-ia numa análise unívoca. Em função
disso, mantivemos nossa opção de investigar as lendas através da obra de Freud,
27
mas, além disso, acrescentamos a comparação do nosso trabalho com os
trabalhos de Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006) que investigaram
narrativas folclóricas.
A comparação serve para inserir outros olhares que enriqueçam o estudo
de forma a mostrar mais de um ponto de vista sobre a questão estudada.
Chamando outras vozes para o estudo, pudemos comparar o resultado da nossa
análise com o resultado de outras análises feitas na interface da psicanálise com
o folclore.
Reservamos um capítulo para cada lenda estudada e utilizamos o
procedimento metodológico da análise de conteúdo com os passos da descrição,
investigação e comparação. Logo, no próximo capítulo tratamos a lenda como
objeto de estudo psicanalítico e nos capítulos seguintes abordamos as lendas do
Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato, conforme o referencial da psicanálise.
28
CULTURA E PSICANÁLISE: A INTERFACE DAS LENDAS
As lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato são os objetos de
estudo da nossa empreitada rumo ao encontro da obra freudiana com a cultura
amazônica. Freud manifesta em sua obra muito interesse por lendas e por outras
produções culturais, chegando a analisar obras literárias, obras de arte e mitos.
Dessa forma, a cultura é inserida no contexto psicanalítico e passa a fazer parte,
de maneira decisiva, na construção teórica da disciplina. Definimos nossa
pesquisa como um estudo psicanalítico da cultura, por isso vemos como
primordial a necessidade de delimitar o que é cultura para a psicanálise, que
outras disciplinas, como a antropologia, a sociologia ou a filosofia, fazem estudos
de cultura conforme suas próprias teorias. Não será de grande espanto se os
nossos resultados forem diferentes dos alcançados por disciplinas distintas da
psicanálise, portanto, o entendimento de cultura da teoria psicanalítica é
fundamental para estabelecer o lugar de onde estamos falando.
O interesse de Freud por lendas e outras produções culturais é estudado
por Renato Mezan em sua tese de doutorado intitulada: Freud, o pensador da
cultura (2006). Para Mezan (2006), a cultura é “a dimensão que garante a
universalidade, longe de ser um espaço de aplicação’ das doutrinas
‘psicológicas’” (p. 161). Em outras palavras, Freud não usou a cultura para aplicar
a psicanálise, e sim a utilizou para alimentar suas descobertas psicanalíticas, ou
seja, a cultura fornece a Freud os ingredientes de universalidade para os
conceitos desenvolvidos por ele em uma clínica individual.
29
Duas grandes criações da literatura, Édipo-Rei, de Sófocles e Hamlet, de
Shakespeare, foram analisadas por Freud no capítulo 5 da Interpretação dos
Sonhos (1900a). A tragédia de Sófocles tem como conteúdo a aflitiva relação de
um filho com seus pais e o drama de Shakespeare tem como base as hesitações
de um filho em vingar-se do homem que eliminou seu pai e tomou o lugar deste
junto à sua mãe. A interpretação de Freud (1900a) é que Hamlet não foi capaz de
matar o homem, pois este tinha realizado seus próprios desejos infantis. Hamlet
foi escrito em 1601, aproximadamente 300 anos antes de Freud escrever a
Interpretação dos Sonhos, em 1900, e o Édipo-Rei data do século V a.C.. Através
desses dados cronológicos, torna-se compreensível o objetivo de Freud: analisar
o mesmo fenômeno cultural presente em duas épocas da civilização bastante
separadas. Nessa perspectiva, Freud serve-se da cultura como matéria-prima
para a construção de sua descoberta. Mezan (2006) afirma:
O complexo de Édipo não é “ilustrado” pela peça de Sófocles; sua
elaboração por Sófocles é um momento decisivo da invenção do
conceito por Freud, fornecendo-lhe não apenas um nome para designá-
lo, mas um componente absolutamente fundamental de todo conceito, a
saber, a universalidade. (p.161).
A universalidade dos conceitos freudianos é uma temática pertinente ao
estudo das lendas amazônicas, porque nos possibilita pensar na psicanálise
dentro de um contexto totalmente diverso do contexto de sua origem. É possível
pensar nos conceitos psicanalíticos fora da cultura em que foram criados? Desde
seus primeiros escritos sobre a histeria, Freud reconhece a influência da cultura
na vida psíquica de seus pacientes. Os sintomas histéricos eram, naquela época,
30
produtos de uma cultura repressora dos desejos sexuais. Ao analisar Édipo-Rei,
Freud descobre em uma cultura antiga características semelhantes às percebidas
nos indivíduos de seu tempo. Dirigir o primeiro desejo sexual à mãe e o primeiro
desejo assassino ao pai, não era um fenômeno somente da Grécia clássica, mas
também de Viena no início do séc. XX. Freud descobre, então, o complexo de
Édipo a partir da análise de seus pacientes, da sua auto-análise e da análise do
aspecto cultural. Mas, afinal, de que dimensão do cultural estamos falando?
Cultura (Kultur) designa a dimensão espiritual da vida social, enquanto
civilização (Zivilisation) designa a dimensão material (Fuks, 2003). O termo cultura
pode ser entendido como o sistema de relações entre os indivíduos e o termo
civilização como o sistema de produção dos bens essenciais à sobrevivência do
grupo. Para Freud (1927/1996), no entanto, a divisão entre os dois conceitos é
desprezível e no artigo O futuro de uma ilusão ele declara:
A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo
em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere
da vida dos animais e desprezo ter que distinguir entre cultura e
civilização –, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador.
Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem
adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza
desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui
todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos
homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza
disponível. (p. 15).
31
Portanto, não faz sentido para psicanálise distinguir os conceitos de cultura
e civilização, pois eles estão articulados entre si. Tanto a organização dos
indivíduos para controlar as forças da natureza quanto a distribuição entre eles
das riquezas extraídas dessa natureza fazem parte do mesmo processo cultural
ou civilizador que o homem deve passar para garantir sua subsistência. Assim, a
dimensão espiritual das relações sociais e a dimensão material da vida em
sociedade são complementares para a evolução do homem em relação aos
animais. Utilizando as palavras de Freud (1927/1996): cultura é “tudo aquilo em
que a vida humana se elevou acima de sua condição animal” (p. 15). Ou seja, a
vida humana tem sua condição animal, mas evolui para além dessa condição, o
homem permanece sendo um ser animal do ponto de vista biológico, mas
diferencia-se dos outros animais por adquirir uma condição psíquica além da sua
condição biológica.
Nesse sentido, entram em antagonismo dois termos: Natureza e cultura.
Por Natureza será definido tudo que diz respeito ao nível biológico e,
consequentemente, tudo que se refere ao nível psíquico será abordado como
cultura. Essa afirmação não se aleatoriamente, ela parte do estudo sobre a
gênese da cultura desenvolvido por Freud em Totem e tabu (1913b/1996). Nesse
artigo, a passagem de Natureza à cultura é explicada através do mito da horda
primitiva, uma ficção gerada para dar conta da nossa humanidade. Na horda
primeva de Darwin existia um pai violento e ciumento que guardava todas as
fêmeas para si próprio e expulsava todos os filhos na medida em que cresciam.
Freud (1913b/1996), então, parte desse pressuposto darwiniano para construir
sua hipótese:
32
Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos,
mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal.
Unidos tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que
lhes teria sido impossível fazer individualmente. . . . Selvagens canibais
como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas
também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida o
temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato
de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles
adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o
mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição, e uma
comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de
tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da
religião. (p. 145).
O parricídio é o ato que propicia a transformação do primata em ser
humano, pois o sentimento de culpa dos filhos marca a instituição do psiquismo. A
nossa animalidade é interrompida pela realização de um ato conjunto que nos
retira da Natureza. Após a realização do assassinato do pai primitivo, a figura
mais temida e invejada da horda, os selvagens criam os dois tabus do totemismo:
homicídio e incesto. Segundo Freud (1913b/1996), os filhos sentiram remorso e
“criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do
totemismo que, por essa razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos
reprimidos do complexo de Édipo” (p.147).
O ser humano é caracterizado pela existência de vida psíquica, por isso, a
Natureza enquanto morada exclusiva do biológico, após o advento do psiquismo,
33
não pode mais oferecer abrigo ao homem. Portanto, em psicanálise, a cultura é o
arcabouço da nossa humanidade.
O conceito de fantasia e a investigação das lendas
Na conferência XXIII Os caminhos da formação dos sintomas de 1917,
Freud faz algumas observações sobre o conceito de fantasia. Pegamos esse
momento da teoria freudiana para traçar um paralelo com a nossa temática de
lendas amazônicas, pois, na ocasião, o criador da psicanálise deixa a fantasia em
posição de destaque. Ele diz: “as coisas que acabei de descrever, senhores,
compelem-me a examinar mais de perto a origem e a significação da atividade
mental que se classifica como ‘fantasia’ [ou ‘imaginação’]” (Freud, 1917/1996, p.
373). Freud falava da formação de sintomas e sentiu necessidade de buscar a
origem e a significação da fantasia; nessa frase, ele deixa claro que fantasia é
sinônimo de imaginação. Mais uma vez, lembramos que o objetivo da nossa
pesquisa é encontrar os significados psicanalíticos das lendas amazônicas e,
nesse sentido, consideramos importante saber qual o papel desempenhado pela
fantasia no psiquismo humano. Freud utiliza o termo fantasia diversas vezes em
toda sua obra, mas escolhemos apenas a conferência XXIII, por conter a
explicação mais didática sobre a questão.
A explicação de fantasia aproxima-se de outro conceito muito caro à
psicanálise: o desejo; e prossegue Freud (1917/1996):
Todo desejo tende, dentro de pouco tempo, a afigurar-se em sua
própria realização; não dúvida de que ficar devaneando sobre
34
imaginárias realizações de desejos traz satisfação, embora não interfira
com o conhecimento de que se trata de algo não-real. (p. 374).
Fantasia e realidade também logo se distinguem. O que Freud tinha
postulado em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental
(1911) aparece novamente sob o viés da disputa: princípio de prazer versus
princípio de realidade. A fantasia é atribuída ao princípio de prazer e, de certa
forma, funciona como válvula de escape para as frustrações da vida real.
Segundo Freud (1917/1996), os seres humanos inventaram uma forma de
alternar entre permanecer um animal que busca o prazer e ser uma criatura
dotada de razão. Eles inventaram uma atividade de pensamento liberada do teste
de realidade: o fantasiar. Ser racional implica em estar atrelado ao princípio de
realidade, mas “os homens não podem subsistir com a escassa satisfação que
podem obter da realidade” (Freud, 1917/1996, p. 374), por isso, eles produzem as
fantasias.
Ao avaliar a realidade, o homem deve abandonar objetos e tendências que
lhe proporcionavam prazer, porém, Freud (1917/1996) pontua: “Todos os objetos
e tendências que a libido abandonou, ainda não foram abandonados em todos os
sentidos. Tais objetos e tendências, ou seus derivados, ainda são mantidos, com
alguma intensidade, nas fantasias” (p. 375). Nesse sentido, as fantasias
funcionam como um meio de manter as fontes de prazer, apesar da realidade
externa. Portanto, o mundo da imaginação obedece a uma dinâmica interna
voltada para a obtenção de prazer e, assim, o contraponto entre fantasia e
realidade vai sendo estabelecido através da diferença entre imaginação e
percepção do mundo externo.
35
A obstrução no fluxo das satisfações dos desejos é causada pela realidade
que imprime progressivamente sua condição de renúncia ao prazer. Porém, os
homens não conseguem renunciar totalmente ao prazer e tentam através das
fantasias continuar gozando com a realização de seus desejos. As lendas são
tentativas dessa natureza. Por isso, a aproximação de fantasias, sonhos e
sintomas promete nos ajudar na investigação das lendas amazônicas.
Em relação ao sonho, Freud (1917/1996) nos diz:
O sonho propriamente dito, que foi completado no inconsciente e que é
a realização de uma fantasia inconsciente constituída de um desejo,
enfrenta uma parcela de atividade (pré-)consciente que exerce o papel
de censura e que, quando foi preservada, permite a formação do sonho
manifesto em forma de um acordo. (p. 362).
Ou seja, a atividade pré-consciente responsável pela censura permite
que o sonho se manifeste através de uma formação de compromisso. Ora, o
material do sonho proveniente do inconsciente diz respeito a conteúdos que foram
recalcados e o recalque opera quando uma ideia o pode ser aceita pela
consciência. Então, o acordo firmado pelas duas instâncias (inconsciente e pré-
consciente) consiste, exatamente, em não deixar que a ideia surja na consciência
de forma inteligível. Por isso, os processos de deslocamento e condensação são
encontrados tanto na formação dos sonhos quanto na formação dos sintomas.
Nos dois casos, o desejo não pode ser reconhecido.
Freud (1917/1996) continua sua explicação falando sobre a oposição
formada contra a libido:
36
A oposição formada contra ela no ego persegue-a como se fora uma
anticatexia e compele-a a escolher uma forma de expressão da própria
oposição. Assim, o sintoma emerge como um derivado múltiplas-vezes-
distorcido da realização de desejo libidinal inconsciente. (p. 362).
O entendimento da citação freudiana depende de um esboço sobre a
dinâmica psíquica. De um lado, a libido procurando escoamento, do outro, o ego
em contato com a realidade impedindo sua passagem. Solução para o conflito:
libido fazendo o caminho de volta. Mas o retorno da libido para suas antigas
posições causa um aumento das catexias nos seus pontos de fixação. Catexia
quer dizer investimento e, nesse caso, a libido investe nos acontecimentos do
passado que são seus pontos de fixação e alcança, assim, sua descarga.
Portanto, as primeiras experiências prazerosas servem de modelo para futuras
descargas de libido. Quando Freud (1917/1996) diz que a libido deve retirar-se
do ego e afastar-se de suas leis, ele indica que ela deve retornar ao inconsciente
para buscar satisfação nas experiências infantis que foram recalcadas. Durante o
processo de desenvolvimento o indivíduo vai abandonando certas atividades e
objetos que permanecem catexizados no inconsciente, então, quando a libido
volta para suas antigas posições, acontece um aumento na catexia do recalcado
que começa a fazer pressão no sentido de passar para consciência.
Consequentemente, o ego será mais uma vez um obstáculo na realização do
desejo inconsciente e a oposição formada como anticatexia forçará a descarga da
libido através de sua “própria oposição”. Então, a conclusão de o sintoma ser “um
derivado múltiplas-vezes-distorcido da realização de desejo libidinal inconsciente”
(Freud, 1917/1996, p. 362).
37
O aumento de catexia determina a formação de sintomas, será também
isso que determina a formação de lendas? Segundo Freud (1917/1996), “é uma
questão de saber que quota de libido não-utilizada uma pessoa é capaz de
manter em suspensão” (p. 376). Utilizamos essas palavras de Freud para
destacar a questão quantitativa envolvida nas produções psíquicas. A
compreensão dinâmica do funcionamento mental não é suficiente para entender o
surgimento de um sintoma, pois o fator econômico é decisivo na formação do
mesmo. Estamos falando de quantidade, intensidade, grandezas que, quando
contidas, exigem alguma forma de descarga. Lendas, sonhos, sintomas o
formas de alívio para o aparelho psíquico carregado de tensão. Sem dúvida, cada
produção possui sua especificidade, mas é importante observar a presença da
libido em todas elas.
Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud formula a
teoria da libido e diferencia a energia libidinal de outras energias psíquicas,
discordando da definição junguiana de libido como força pulsional psíquica em
geral. Jung não reconhecia o caráter sexual da libido e isso causava um embate
com Freud que especificava libido justamente como a energia da pulsão sexual.
No caso Homem dos Lobos (1918), a sexualidade é mais uma vez assunto de
discordância entre os dois autores, pois Freud atribuía realidade à cena primária,
enquanto Jung dizia que a mesma era apenas um produto da imaginação. Neste
ponto, o desenvolvimento da teoria freudiana nos ajuda a entender o papel
desempenhado pela fantasia no psiquismo humano.
A realidade atribuída por Freud à cena primária cena de relação sexual
entre os pais refere-se a uma realidade psíquica. Na conferência XXIII, Freud
38
(1917/1996) adverte que as fantasias também possuem determinada realidade:
“as fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material,
e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a
realidade psíquica é a realidade decisiva (p. 370). Nessa frase, bastante
conhecida, compreendemos que não importa se o indivíduo está contando um
fato da realidade ou da imaginação, mas sim como esse fato afeta a sua vida
psíquica. Freud (1917/1996) parte dos sintomas, chega às cenas da infância e
depois verifica que essas cenas nem sempre são verdadeiras. De certa forma, ele
concorda com Jung ao reconhecer o caráter fantasístico da cena primária, mas
entra em total desacordo quando assegura o fator infantil na produção da
fantasia. Freud, até o final da sua obra, não desiste da sexualidade infantil e a
proposta junguiana, da cena primária ser uma produção fantasística da vida
adulta projetada na infância, nunca é aceita. Afinal, as crianças produzem
fantasias, sonhos e até mesmo sintomas. O sintoma fóbico do Homem dos Lobos,
por exemplo, foi desenvolvido quando ele tinha 4 anos de idade. A libido, energia
da pulsão sexual, está presente também nas crianças e Freud não abre mão
disso. Em nossa pesquisa, não vamos investigar se as lendas amazônicas são
criações das crianças ou dos adultos, mas a presença da libido em todas as
criações imaginárias. Vamos abordar a questão de acordo com a teoria freudiana,
considerando sempre o caráter sexual e o fator infantil.
A cena primária, a sedução por um adulto e a ameaça de castração são
denominadas por Freud de fantasias primitivas. O criador da psicanálise admite
que a cena primária é uma fantasia, porém, uma fantasia de origem filogenética,
39
ou seja, que diz respeito à história da humanidade. Sobre essas fantasias Freud
(1917/1996) diz o seguinte:
Acredito que essas fantasias primitivas, como prefiro denominá-las, e,
sem dúvida, também algumas outras, constituem um acervo
filogenético. Nelas, o indivíduo se contacta, além de sua própria
experiência, com a experiência primeva naqueles pontos nos quais sua
própria experiência foi demasiado rudimentar. Parece-me bem possível
que todas as coisas que nos são relatadas hoje em dia, na análise,
como fantasia sedução de crianças, surgimento da excitação sexual
por observar o coito dos pais, ameaça de castração (ou, então, a
própria castração) foram, em determinada época, ocorrências reais
dos tempos primitivos da família humana, e que as crianças, em suas
fantasias, simplesmente preenchem os claros da verdade individual
com a verdade pré-histórica. (p. 373).
As crianças, através das fantasias primitivas, encontram uma maneira de
aliviar a tensão do seu aparelho psíquico. Por exemplo, a vergonha de se
masturbar na infância é aliviada pela fantasia de ser seduzido por um adulto
(Freud, 1917/1996). Novamente, voltamos ao aspecto purgador das fantasias e
também ao aspecto quantitativo da libido, pois se o quantum de energia pulsional
for aumentado e a sua purga no mundo externo for impedida, a libido vai ser
satisfeita no mundo das fantasias, onde os objetos não precisam ser reais.
Nossa pesquisa conta com o método de investigação psicanalítico.
Conforme esse referencial, a interpretação de uma fantasia individual é validada
pela prática clínica. O tratamento de uma neurose, por exemplo, passa pelo
40
resgate das fantasias inconscientes do indivíduo que deve lembrá-las para tornar-
se são. A cura da neurose está, nessa perspectiva, atrelada ao resgate de
fantasias inconscientes interpretadas pelo analista na clínica. Então, como fazer a
investigação de uma fantasia conhecida coletivamente? O método freudiano nos
ensina a buscar o que é universal. O próprio conceito de filogênese é uma forma
de encontrar na história da humanidade aspectos gerais do funcionamento
psíquico. Porém, não podemos tratar o problema com simplicidade e devemos
sempre lembrar que Freud parte para as hipóteses filogenéticas depois de
esgotar todas as possibilidades ontogenéticas, ou seja, da história do indivíduo.
No caso Homem dos Lobos, Freud (1918/1996) comenta:
Tudo o que encontramos na pré-história das neuroses é que a criança
lança mão dessa experiência filogenética quando sua própria
experiência lhe falha. Ela preenche as lacunas da verdade individual
com a verdade pré-histórica; substitui as ocorrências da sua própria
vida por ocorrências na vida dos seus ancestrais. Concordo plenamente
com Jung ao reconhecer a existência dessa herança filogenética; mas
considero um erro metodológico agarrar-se a uma explicação
filogenética antes de esgotar as possibilidades ontogenéticas. (p. 104).
Portanto, para estarmos em conformidade com a teoria freudiana, devemos
reconhecer que as lendas amazônicas pertencem à coletividade, mas cada
indivíduo apropria-se delas de maneira singular. O efeito causado por uma lenda
num determinado sujeito pode ser desvendado por ele através das suas
associações. Do mesmo modo, um sonho pode ter um significado genérico, mas
o sentido dele pode ser revelado pela via associativa do sonhador. Por isso,
41
não vamos fazer uma interpretação das lendas amazônicas, apenas iremos
estabelecer pontos de contato entre o enredo lendário e a obra de Freud, pois a
interpretação psicanalítica reserva-se a uma determinada clínica.
A singularidade ressaltada por Freud, lembra-nos, a todo momento, do
cuidado que devemos ter ao investigar uma narrativa fantástica, pois a lenda,
apesar de ser uma fantasia de domínio coletivo, revela-se de maneira singular
para cada indivíduo que dela se utiliza. Então, a universalidade de uma
investigação nos atinge até o limite representado por nossos desejos íntimos e
experiências pessoais. Os significados procurados neste estudo são universais,
porque vamos ler as lendas amazônicas através do enfoque freudiano, sem
contar com sujeitos na pesquisa. A nossa análise parte do enredo das lendas
amazônicas tal qual é encontrado em livros de divulgação, assim como fizeram
Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006) com os contos de fadas. Desta
forma, o nosso estudo das lendas busca significados universais, sabendo que o
sentido pessoal de cada lenda pode ser dado pelo próprio indivíduo em seu
íntimo. As manifestações psíquicas, sejam elas coletivas ou individuais, carregam
múltiplos significados. Por isso, o resultado da investigação que faremos das
lendas será um entre tantos possíveis. Essa conclusão reflete a riqueza do
material presente nas lendas e nas demais narrativas fantásticas.
O caráter onírico das lendas
As lendas, contadas como fatos reais, retratam situações do cotidiano da
Amazônia e servem de justificativa para acontecimentos como o desaparecimento
42
na floresta, a gravidez indesejada e o naufrágio das embarcações. Com a
intenção de verificar como os fatos reais se misturam com a fantasia, recortamos
para este estudo as seguintes lendas: Mapinguari, Boto e Cobra Norato. Tais
lendas trazem como personagens principais animais da fauna amazônica que
podem ser observados nas matas ou nos rios da região. Com exceção do
Mapinguari, botos e cobras grandes são encontrados com frequência na
Amazônia, porém, as características atribuídas a eles nas histórias fantásticas
nunca foram comprovadas. Alguns pesquisadores alegam que o Mapinguari pode
ser um descendente do extinto bicho-preguiça gigante (Britto, 2007), outros
afirmam que a lenda pode ter sido gerada pelo Ucumari, o urso amazônico
(Monteiro, 2006), sobretudo, o importante no nosso estudo é saber como os
dados da realidade influenciaram na criação das lendas, pois as produções
imaginárias do povo amazônico têm características próprias do lugar.
Nesse sentido, nos voltamos à teoria freudiana para investigar a formação
das fantasias. Como são formadas as fantasias? Como são formadas as lendas?
Encontramos, na nona parte do capítulo 6 da Interpretação dos Sonhos (1900b),
uma pista para responder a essas questões. Diz Freud (1900b/1996) sobre as
fantasias diurnas: “uma investigação mais detida das características dessas
fantasias diurnas revela-nos como é acertado que essas formações recebam a
mesma designação que damos aos produtos de nosso pensamento durante a
noite — ou seja, a designação de ‘sonhos’” (p. 524).
Nos desperta interesse, a aproximação que Freud (1900b/1996) faz das
fantasias diurnas com os sonhos noturnos, e ele acrescenta: “elas partilham com
os sonhos noturnos um grande número de suas propriedades e, de fato, sua
43
investigação poderia ter servido como a melhor e mais curta abordagem à
compreensão dos sonhos noturnos” (p. 524).
A fantasia diurna é aquela que temos quando estamos acordados, ela
escapa da censura por ser “apenas uma fantasia” e consegue ser aceita por
nossa mente consciente. Os sonhos noturnos também escapam da censura por
serem “apenas sonhos”, mas, quando acordamos, muitas vezes, esquecemos
deles, pois seus conteúdos não podem ser aceitos pela nossa consciência. Nesse
sentido, os sonhos noturnos tornam-se mais arredios do que as fantasias diurnas,
por isso, Freud reconhece que abordar as fantasias seria o caminho mais curto
para compreender os sonhos. Ele diz que as fantasias partilham com os sonhos
noturnos um grande número de suas propriedades: “como os sonhos, elas são
realizações de desejos; como os sonhos, baseiam-se, em grande medida, nas
impressões de experiências infantis; como os sonhos, beneficiam-se de certo
grau de relaxamento da censura” (Freud, 1900b/1996, p.525).
A equiparação das fantasias com os sonhos lança luz sobre o nosso
estudo das lendas, mas ainda precisamos ressaltar o motivo pelo qual Freud
aproximou essas duas formações: a elaboração secundária. O quarto fator da
formação dos sonhos tem a função de preencher as lacunas da estrutura dos
sonhos com trapos e remendos (Freud, 1900b/1996).
Através da elaboração secundária, “o sonho perde sua aparência de
absurdo e incoerência e se aproxima do modelo de uma experiência inteligível”
(Freud, 1900b/1996, p. 523). Sobre os sonhos lógicos e racionais, diz Freud
(1900b/1996): “os sonhos dessa natureza foram submetidos a uma extensa
elaboração por essa função psíquica aparentada ao pensamento de vigília;
44
parecem ter um sentido, mas esse sentido é o mais afastado possível de sua
verdadeira significação” (p. 523).
A verdadeira significação dos sonhos encontra-se nos pensamentos
oníricos, mas esses pensamentos aparecem no sonho de forma desconexa e
confusa. Então, a elaboração secundária passa a fazer novas criações, chamadas
por Freud (1900b/1996) de pensamentos agregadores que “podem servir de elo
entre dois fragmentos do conteúdo onírico ou preencher uma lacuna entre duas
partes do sonho” (p. 522). Quando a elaboração secundária falha, o sonho parece
um amontoado de material fragmentário e sem nenhum sentido, mas quando a
elaboração secundária exerce seu papel, os sonhos apresentam-se de forma
coerente. Sobre os sonhos coerentes Freud (1900b/1996) nos diz: “são sonhos
dos quais se poderia dizer que foram interpretados uma vez, antes de serem
submetidos à interpretação de vigília” (p. 523).
O trabalho da elaboração secundária consiste em estruturar uma fachada
para o sonho. Neste ponto, estabelecemos a ligação entre as fantasias diurnas e
os sonhos noturnos, pois a fachada do sonho pode ser justamente uma fantasia
diurna aproveitada para esse fim. As lendas amazônicas são como fantasias
diurnas, conhecidas pela mente consciente e presentes nos pensamentos de
vigília e, nesse sentido, também são fachadas. A atividade de investigar as lendas
visa descobrir o que estrutura essas fantasias. Segundo Freud (1900b/1996), as
fantasias são estruturadas pelo desejo e os desejos derivam de lembranças
infantis, assim como, os palácios barrocos de Roma derivam de estruturas mais
antigas. Os desejos, nas palavras do autor, “estão, para as lembranças infantis de
que derivam, exatamente na mesma relação em que estão alguns palácios
45
barrocos de Roma para as antigas ruínas cujos pisos e colunas forneceram o
material para as estruturas mais recentes” (p. 525).
As fantasias também mencionadas por Freud como sonhos diurnos ou
devaneios estabelecem uma relação de igualdade com os sonhos noturnos
porque elas podem compor “a trama dos pensamentos oníricos”. A elaboração
secundária procura configurar os pensamentos oníricos em algo semelhante a um
sonho diurno. Porém, Freud (1900b/1996) ressalva:
Se um desses sonhos diurnos tiver sido formado na trama dos
pensamentos oníricos, esse quarto fator do trabalho do sonho preferirá
apossar-se do sonho diurno pronto e procurará introduzi-lo no
conteúdo do sonho. alguns sonhos que consistem meramente na
repetição de uma fantasia diurna que talvez tenha permanecido
inconsciente. (p. 525).
O sonho, segundo a descrição freudiana, conta com quatro fatores na sua
elaboração: condensação, deslocamento, representação pictórica e elaboração
secundária. Escolhemos, então, o artigo Sobre os sonhos de 1900 para definir
esses quatro fatores e poder entender o processo de formação dos sonhos.
Antes, porém, vamos esclarecer o que significa trabalho do sonho. Freud (1900c/
1996) afirma: “descreverei o processo que transforma o conteúdo latente dos
sonhos no conteúdo manifesto como ‘trabalho do sonho’” (p. 662). O conteúdo
manifesto é o sonho tal qual preservamos na nossa memória e o conteúdo latente
é o material que deu origem ao sonho, mas pode ser descoberto através da
análise. Nas palavras de Freud (1900c/1996):
46
Para contrastar o sonho, tal como retido em minha memória, com o
material pertinente descoberto por sua análise, chamarei ao primeiro
“conteúdo manifesto do sonho”, e ao segundo sem fazer, a princípio,
nenhuma outra distinção —, “conteúdo latente do sonho”. (p. 662).
O sonho manifesto é derivado de pensamentos oníricos latentes, Freud
(1900c/1996) também designa conteúdo latente de pensamentos oníricos e
conteúdo manifesto de conteúdo do sonho. Então, toda vez que nos referirmos ao
conteúdo do sonho estaremos nos referindo ao conteúdo manifesto e toda vez
que nos referirmos aos pensamentos oníricos estaremos nos referindo ao
conteúdo latente. Agora, podemos estudar os quatro fatores envolvidos na
formação dos sonhos.
O primeiro fator, a condensação, tem a finalidade de adaptar o material dos
pensamentos oníricos para formar a situação do sonho. Freud (1900c/1996)
afirma que o conteúdo do sonho é muito mais curto do que os pensamentos dos
quais são substitutos (p. 662). Por isso, uma das funções do trabalho do sonho é
ser responsável por condensar os diversos componentes dos pensamentos
oníricos, fazendo-os coincidir um com o outro. Cada sonho não decorre de um
único elemento dos pensamentos oníricos, sua origem pode remontar a toda uma
série deles (Freud, 1900c/1996). Então, concluímos nossa exposição sobre o
primeiro fator do trabalho do sonho com a seguinte citação:
Quanto mais fundo mergulharmos na análise do sonho, mais
impressionante ele se afigura. De cada elemento do conteúdo do sonho
ramificam-se fios associativos em duas ou mais direções; cada situação
47
do sonho parece compor-se de duas ou mais impressões ou
experiências. (Freud, 1900c/1996, p. 668).
O trabalho do sonho conta com outro fator responsável pela transposição
dos valores psíquicos: o deslocamento. No decorrer desse processo a intensidade
psíquica, a importância ou a potencialidade afetiva dos pensamentos se
transforma no seu oposto. Ou seja, os pensamentos aparecem no sonho
desprovidos de intensidade, importância ou valor. Enquanto o conteúdo do sonho
trata de um material de representações insignificante e desinteressante, a análise
desvenda as numerosas vias associativas que ligam essas trivialidades com
coisas da mais alta importância psíquica na estimativa do sonhador (Freud,
1900c/1996). Freud (1900c/1996) nos diz que “existem sonhos em que nem um
fragmento sequer dos pensamentos oníricos preservou seu próprio valor psíquico,
ou nos quais tudo o que era essencial nos pensamentos oníricos foi substituído
por algo trivial” (p. 674).
A representação pictórica, o terceiro fator do trabalho do sonho, consiste
em expressar os pensamentos oníricos numa série de imagens. O conteúdo
visual do sonho adquiri sua forma através da representação em imagens. O
conteúdo manifesto dos sonhos consiste, em sua maior parte, em situações
pictóricas, e os pensamentos oníricos, por conseguinte, devem ser submetidos,
em primeiro lugar, a um tratamento que os torne adequados a esse tipo de
representação (Freud, 1900c/1996).
Como explicamos, o quarto fator, a elaboração secundária, consiste em
uma primeira interpretação ao conteúdo do sonho. Portanto, os quatro fatores
envolvidos na formação do sonho condensação, deslocamento, representação
48
pictórica e elaboração secundária estão presentes em todas as formações
psíquicas em maior ou menor grau. Nessa perspectiva, podemos encontrar, nas
lendas amazônicas, características da ordem desses fatores.
Antes de nos debruçarmos sobre o desejo envolvido na produção de
sonhos e fantasias, vamos investigar o material e as fontes dessas formações
psíquicas. Ao escrever sobre a Interpretação dos Sonhos (1900a), Roudinesco &
Plon (1998), em seu dicionário de psicanálise, fazem as perguntas “Quais são
as fontes do sonho e de onde provém seu material?” e logo em seguida as
respondem: “essas perguntas são objeto do capítulo V, por sua vez dividido em
quatro seções, respectivamente consagradas à antiguidade do material onírico, às
fontes de origem infantil, às fontes somáticas e, por fim, ao que Freud denomina
de ‘sonhos típicos’” (p. 394).
Então, vamos regressar à leitura da Interpretação dos Sonhos (1900a) e
atentar para o capítulo 5 que aponta as três fontes do sonho: material recente,
material infantil e material somático.
O material recente ou resto diurno está presente em todos os sonhos;
Freud (1900a/1996) afirma que “em todo sonho, é possível encontrar um ponto de
contato com as experiências do dia anterior” (p. 196). As lendas, da mesma
forma, nos remetem às experiências do povo amazônico. Iniciamos este capítulo
motivados pela descoberta da explicação freudiana sobre os aspectos próprios da
região amazônica estarem refletidos em suas lendas. Neste ponto, encontramos a
explicação: a produção psíquica seja ela em forma de fantasias, sonhos ou lendas
acontece sempre atrelada às experiências diurnas da vida do inventor ou
sonhador.
49
No caso específico dos sonhos, o material formador remonta
invariavelmente aos acontecimentos do dia imediatamente anterior. Freud (1900a/
1996) discute no capítulo 5 se impressões oriundas de um período bem mais
extenso do passado podem também constituir o material dos sonhos e, para este
problema, ele a seguinte solução: “os sonhos podem selecionar seu material
de qualquer parte da vida do sonhador, contanto que haja uma linha de
pensamento ligando a experiência do dia do sonho (as impressões ‘recentes’)
com as mais antigas” (p. 200).
Outro problema levantado por Freud (1900a/1996) no capítulo 5 é se
experiências irrelevantes podem tomar o lugar de experiências psiquicamente
significativas na constituição dos sonhos. A conclusão freudiana é que “o
instigador do sonho deve permanecer como um processo psiquicamente
significativo” (p. 211). Porém, é frequente o aparecimento de experiências triviais
no conteúdo do sonho e para isso, Freud (1900a/1996) dá a seguinte explicação:
O fato de o conteúdo dos sonhos incluir restos de experiências triviais
deve ser explicado como uma manifestação da distorção onírica (por
deslocamento); . . . É de se esperar que a análise de um sonho revele
regularmente sua fonte de verdadeira e psiquicamente significativa na
vida de vigília, embora a ênfase se tenha deslocado da lembrança
dessa fonte para a de uma fonte irrelevante. (p. 208).
O fato de aparecerem nas lendas amazônicas animais regionais e no seu
enredo constarem assuntos relacionados com o seu próprio contexto, demonstra
como os restos diurnos estão presentes também na construção das fantasias.
Mesmo quando as fantasias dizem respeito a restos de experiências irrelevantes,
50
sua análise deve desvendar o material psiquicamente significativo que serviu
como fonte para a formação das mesmas.
Além do material recente, a constituição dos sonhos conta ainda com o
material infantil e o material somático. O conteúdo infantil refere-se às
“impressões que remontam à primeira infância e que não parecem ser acessíveis
à memória de vigília” (Freud, 1900a/1996, p. 219). Ou seja, essas lembranças
estão guardadas no Inconsciente. o material somático diz respeito aos
estímulos provenientes do interior do corpo e aos estímulos externos que
provocam também alguma sensação no corpo do sonhador. Freud (1900a/1996)
pontua:
Embora seja impossível provar que as imagens e representações que
ocorrem em nossos sonhos são atribuíveis aos estímulos somáticos
internos no grau em que se afirmou que isso se dá, essa origem, ainda
assim, encontra apoio na influência universalmente reconhecida que
exercem em nossos sonhos os estados de excitação de nossos órgãos
digestivos, urinários e sexuais. (p. 249).
Freud (1900a/1996) diz que ou a mente não presta a mínima atenção às
oportunidades de sensações durante o sono ou se vale de um sonho para negar
os estímulos, ou, em terceiro lugar, se for obrigada a reconhecê-los, busca uma
interpretação deles que transforme a sensação correntemente ativa em parte
integrante de uma situação que seja desejada e compatível com o dormir. Assim,
os estímulos externos são incorporados na situação do dormir e os sonhos
utilizam-se desses estímulos para preservar o sono. Podemos entender esse
processo através da assertiva de Freud (1900a/1996): “Todos os sonhos são,
51
num certo sentido, sonhos de conveniência; servem à finalidade de prolongar o
sono, em vez de acordar. Os sonhos são guardiães do sono, e não perturbadores
dele” (p. 261).
Freud (1900a/1996) conclui que os estímulos internos e externos servem
como um ponto fixo para a formação dos sonhos quando eles são suficientemente
intensos para forçar a atenção psíquica e desde que seu resultado seja sonhar e
não acordar. Então, para finalizar a abordagem das fontes somáticas, vamos
transmitir a opinião de Freud (1900a/1996) sobre as mesmas:
Portanto, em minha opinião, as fontes somáticas de estimulação
durante o sono (isto é, as sensações durante o sono), a menos que
sejam de intensidade incomum, desempenham na formação dos
sonhos papel semelhante ao desempenhado pelas impressões
recentes, mas irrelevantes, deixadas pelo dia anterior. Ou seja, creio
que elas são introduzidas para ajudar na formação de um sonho caso
se ajustem apropriadamente ao conteúdo de representações derivado
das fontes psíquicas do sonho, mas não de outra forma. São tratadas
como um material barato e sempre à mão, que é empregado sempre
que necessário, em contraste com um material precioso que determina,
ele próprio, o modo como deverá ser empregado. (p. 265).
No decorrer do nosso estudo sobre as fontes do sonho vimos Freud
(1900a/1996) citar “fonte significativa” e agora ele fala em “material precioso”. Em
suma, entre as 3 fontes do sonho, uma é a preciosa: aquela que tem origem no
material infantil. O material recente e o material somático são tratados como
52
“material barato”. O que determina o sonho é o desejo. Freud faz essa afirmação
desde a análise de seu sonho nomeado de injeção de Irma:
Freud conclui sua análise do sonho da injeção de Irma com a afirmação
de que, após o trabalho de interpretação, todo sonho se revela como
uma realização de desejo. Feita desta forma, a afirmação não chega a
se constituir como grande novidade; o que vai lhe conferir um valor
decisivo dentro da teoria psicanalítica é a afirmação complementar de
que esse desejo é um desejo inconsciente. (Garcia-Roza, 2004, p.80).
Garcia-Roza (2004) ressalva que nem todos os desejos realizados no
sonho são desejos inconscientes, contudo ele diz: “quando discutirmos o capítulo
7, veremos que um desejo consciente somente se torna excitador de um sonho se
ele se ligar a um desejo inconsciente que o reforça” (p. 81).
Então, vamos adiantar nossa leitura da Interpretação dos Sonhos (1900b) e
ver o que Freud (1900b/1996) tem a nos dizer sobre o desejo no capítulo 7:
Encontro-me agora em condições de dar uma explicação precisa do
papel desempenhado nos sonhos pelo desejo inconsciente. Estou
pronto a admitir que toda uma classe de sonhos cuja instigação
provém principalmente, ou até de maneira exclusiva, dos restos da
vida diurna; . . . Mas a preocupação, por si só, não teria formado um
sonho. A força impulsora requerida pelo sonho tinha de ser suprida
por um desejo; cabia à preocupação apoderar-se de um desejo que
atuasse como força propulsora do sonho. (p. 590).
53
A fim de demonstrar que o desejo sempre é a força propulsora do sonho,
Freud (1900b/1996) utiliza-se da metáfora do empresário e do capitalista:
A situação pode ser explicada por uma analogia. O pensamento
diurno pode perfeitamente desempenhar o papel de empresário do
sonho; mas o empresário, que, como se costuma dizer, tem a idéia e
a iniciativa para executá-la, não pode fazer nada sem o capital; ele
precisa de um capitalista que possa arcar com o gasto, e o capitalista
que fornece o desembolso psíquico para o sonho é, invariável e
indiscutivelmente, sejam quais forem os pensamentos do dia anterior,
um desejo oriundo do inconsciente. (p. 590).
O pensamento diurno é como um empresário e o desejo inconsciente é
como o capitalista que viabiliza o processo do sonhar. Para Freud (1900b/1996), o
pensamento diurno estimula o desejo inconsciente que passa a formar o sonho e
segundo ele “as outras variações possíveis na situação econômica que tomei
como analogia também encontram paralelo nos processos oníricos” (p. 590). As
lendas encontram paralelo nos processos oníricos: são compostas por restos de
experiências diurnas e, nessa perspectiva, também são instigadas por desejos
inconscientes.
Mas do que se constitui o psiquismo? Essa pergunta foi lançada na
introdução do nosso trabalho, tornando-se oportuna, agora, sua resposta. Com
base na constituição dos sonhos, podemos entender a composição de outras
formações psíquicas, como as fantasias e as lendas. Os sonhos constituem-se de
pensamentos oníricos. Por sua vez, os pensamentos oníricos o feitos de
conteúdos recalcados que datam da primeira infância. Os resíduos de
54
experiências infantis ou traços mnêmicos constituem, grosso modo, o
inconsciente e seus desejos. Portanto, o psiquismo humano é constituído por
pensamentos oníricos, pensamentos de vigília, experiências recentes,
experiências recalcadas, desejos atuais, desejos inconscientes, enfim, o
importante é não esquecer o papel desempenhado por estruturas que não temos
acesso em nossa vida de vigília, pois para além da consciência, ainda operam,
em nossa vida anímica, conteúdos inconscientes.
Partimos para o estudo do sonho com o objetivo de saber a origem das
formações psíquicas e sabendo que o sonho deriva do conteúdo latente.
Laplanche & Pontalis (1992) definem conteúdo latente como o “conjunto de
significações a que chega a análise de uma produção do inconsciente” (p. 99) e,
por oposição ao conteúdo latente, ele designa o conteúdo manifesto como “o
sonho antes de ser submetido à investigação analítica, tal como aparece ao
sonhante que o relata” (p. 100). Laplanche & Pontalis (1992) acrescentam
dizendo que “por extensão, fala-se do conteúdo manifesto de qualquer produção
verbalizada desde a fantasia à obra literária que se pretende interpretar
segundo o método analítico” (p. 100).
Nesse sentido, conhecemos o conteúdo manifesto das lendas através dos
livros escritos por autores da região, entre outros. Mas o interessante da nossa
pesquisa é descobrir, por trás do conteúdo manifesto da lenda, o seu conteúdo
latente.
55
LENDA DO MAPINGUARI:
DA FANTASIA DE SER DEVORADO AO COMPLEXO DE CASTRAÇÃO
Surgiu das cavernas um monstro maldito
Um bicho enviado por Jurupari
Guerreiros armados pintados pra guerra
Declaram combate a Mapinguari
Tony Medeiros, Inaldo Medeiros, Edval Machado
A música Mapinguari embalou Parintins
1
na apresentação do Garantido de
1997. Fonte de transmissão do folclore amazônico, as músicas de Boi-Bumbá
2
contam, todos os anos, um pouco da história e das lendas regionais. O Festival
Folclórico de Parintis
3
é um importante meio de preservação das tradições e dos
costumes da Amazônia.
Nessa música, o Mapinguari é retratado como um monstro maldito com o
qual os índios guerreiros declaram combate. Segundo Almeida (2004), o
Mapinguari era um castigo para as tribos que praticavam a antropofagia. Tupã,
Deus na concepção indígena, mandou esse castigo através de Jurupari, o Deus
do trovão, como diz a letra da música: “Um raio de luz caiu sobre a terra/ Aviso do
Deus do Trovão/ Estrondo terrível que abala a floresta/ Prenúncio de destruição”
(Farias, 2005, p. 178). Os pajés alertavam os chefes das tribos, avisando que
aquele seria o último recado de Jurupari. O raio de luz que caiu sobre a terra
1
“Parintins é uma ilha situada à margem direita do Rio Amazonas, a 420 km de Manaus por via
fluvial, na divisa dos Estados do Amazonas e do Pará” (Farias, 2005, p. 17).
2
O folguedo junino do Boi-Bumbá de Parintins vem a ser uma adaptação regional do auto
folclórico originário do Maranhão conhecido como Bumba-Meu-Boi” (Farias, 2005, p. 23).
3
“A rixa dos dois Bois de fama virou Festival Folclórico e transformou-se, com o tempo, em um
monumental espetáculo de massa que atrai cada vez mais torcedores apaixonados, configurando-
se em um rito sazonal, que assinala o início do verão amazônico” (Farias, 2005, p. 29). Os dois
Bois de fama referidos por Farias (2005) são os Bois Caprichoso e Garantido.
56
prenunciava a destruição que viria através da punição aos índios antropófagos.
Mas as tribos recusavam-se a abandonar o milenar hábito e segundo Almeida
(2004):
Mesmo temerosos os guerreiros continuavam a comer carne humana,
pois era um hábito difícil de se deixar, enraizado por demais em seus
costumes diários e mesmo era sempre motivo de orgulho a exibição da
cabeça da vítima durante os festejos semanais nas aldeias. Era como
uma presa rara, superior às grandes onças pintadas e panteras negras
da floresta amazônica. (p. 91).
Então, os guerreiros e caçadores de cabeça foram castigados e, certo dia
quando procuravam caça na floresta, “depararam-se com um terrível monstro
todo peludo, 3 metros e meio de altura, um só olho no meio da testa, enormes pés
e braços e com uma terrível particularidade, sua boca ficava no meio da barriga e
era enorme” (Almeida, 2004, p.91). O monstro foi enviado como punição aos
índios que comiam carne humana e segundo esta descrição ele era assustador:
“Urro de dinossauro, capaz de gelar o sangue de qualquer um, os índios o
batizaram de Mapinguari” (Almeida, 2004, p. 91).
Quando avistaram o Mapinguari, os índios tentaram fugir, mas o monstro
os alcançava e os devorava. Almeida (2004) afirma que “os sobreviventes
exaustos e apavorados chegaram à aldeia e se encarregaram de espalhar a
apavorante notícia. Eles não conseguiam tirar da cabeça a imagem do monstro
devorando seus companheiros” (p. 91).
A música Mapinguari afirma que o combate entre o monstro e os índios
guerreiros terminou com a vitória dos índios e a paz na floresta: “E o monstro
57
estranho termina afogado/ Nas trevas do lago mal-assombrado/ Houve festa ao
luar/ Sairé pra dançar/E a paz na floresta voltou a reinar” (Farias, 2005, p. 178).
Mas, ainda segundo Almeida(2004), o Mapinguari é visto até os dias de hoje:
Mesmo tendo sido caçado e dado como morto em um lago de águas
negras (igarapé banhado de petróleo) como os guerreiros gabando-se
de terem lhe acertado mais de 100 flechas abençoadas por Tupã, o
Mapinguari é visto até os dias de hoje com freqüência devorando
sempre os maus guerreiros, maus seringueiros e maus caçadores
brancos, enfim os que tinham pensamentos maus como ele próprio. (p.
92).
De acordo com Almeida (2004), os pajés notaram que somente retornavam
à tribo os guerreiros bons, uma vez que os maus eram sempre mortos e
devorados pelo Mapinguari. Ou seja, o Mapinguari atacava somente os maus
guerreiros, maus como ele próprio, mas a maldade do monstro demanda
esclarecimentos, pois do ponto de vista da floresta amazônica, o Mapinguari era
bom e representava a preservação da natureza.
Thiago de Mello em seu livro Amazonas: no coração encantado da floresta
(2003) aborda o Mapinguari como uma lenda de preservação da floresta. O livro,
destinado à literatura infanto-juvenil, é narrado pelo autor e as histórias são
transcritas da forma como lhes chegaram aos ouvidos, pela voz dos amigos. Por
exemplo, seu amigo Euclides, personagem que encontrou com o Mapinguari,
conta:
Então estava eu junto do pau de cedro. Eu sozinho, mais Deus. De
primeiro me sentei na sombra dele e comi um pedaço de jaraqui
58
salmourado que eu trazia. . . . Mas levantei, chamei as forças, peguei
do machado e me disse, “esse pau de cedro eu vou dar com ele no
chão”. (Mello, 2003, p. 46).
O companheiro do narrador queria derrubar uma árvore de cedro, mas foi
impedido pelo Mapinguari. Prossegue Euclides:
Quando dei a primeira machadada no lombo do tronco, primeiro senti
um bafo fedorento e depois um esturro a modo de onça. Me virei e
olhei: nunca vi figura mais horrível. Era como se fosse um homem,
que não era homem. Nem macaco grande. De pé, me olhando, era da
minha altura, que todo ele coberto de cabelo preto e espinhoso, a
cabeça enorme emendava com os ombros, no lugar do pescoço se
abria uma boca enorme, aberta e atravessada e os dentes eram
disconformes. (Mello, 2003, p. 46).
Euclides lembra da história que seu pai contava sobre o Mapinguari: “Pois
foi no meio da correria do medo que me lembrei da história que meu pai contava
do Mapinguari, o bicho encantado que defende a floresta” (Mello, 2003, p. 49). E o
autor termina a história fazendo um apelo:
Anos depois da história do Euclides, a floresta amazônica é devastada
cada dia mais. Acho que os Mapinguaris estão é se acabando,
assustados pelo furor das motos serras, quem sabe morrendo
queimados nos incêndios criminosos. Faz a tua parte, meu jovem leitor.
Defende a nossa floresta, ela é tua e de todas as crianças que ainda
vão nascer. (Mello, 2003, p. 49).
59
Antoni (1976) alega que existem unanimidades e divergências acerca do
Mapinguari, mas confirma que todos estão de acordo com seu caráter de
proteção da fauna e da flora amazônica:
Todos são acordes em que o Mapinguari emite gritos apavorantes; em
que é mortalmente vulnerável quando lhe vazam o olho; em que
ataca o homem em geral por julgá-lo destruidor da fauna e da flora,
embora alguns afirmem que ele somente ataca o homem se este estiver
portando alguma arma. (p. 27).
Antoni (1976) atribui a vulnerabilidade do Mapinguari ao olho, Monteiro
(2006) afirma que o monstro é “vulnerável apenas na parte do umbigo” (p. 141).
Monteiro (2006) também afirma que o monstro “aparece geralmente à noite, mas
dão-no como viajando de dia pelas florestas” (p. 141). Em relação à sua morada,
Monteiro (2006) diz que:
Sua casa é no chão, mas ninguém sabe como nela desaparece. Conta-
se que se encontrando um local descampado, espécie de capoeira com
um largo círculo traçado com precisão, deve-se evitá-lo, pois é a
entrada do seu covil. (p. 141).
O hábitat florestal do Mapinguari é atestado por Cascudo (2002), que diz
ser o Mapinguari um mito das matas, conhecido especialmente pelos que nela
vivem. Ainda segundo o autor, “o Mapinguari é o mais popular dos monstros da
Amazônia. Seu domínio estende-se pelo Pará, Amazonas, Acre, vivificado pelo
medo duma população infixa que mora nas matas, subindo os rios, acampando
nas margens ignotas das grandes águas sem nome” (p.222). Vejamos, agora,
como o folclorista descreve o monstro da floresta:
60
Descrevem-no como um homem agigantado, negro pelos cabelos
longos que o recobrem como um manto, de mãos compridas, unhas em
garra, fome inextinguível. é vulnerável no umbigo. Esse lugar é
clássico para a morte dos monstros. É o sinal do seu nascimento, de
sua triste e melancólica condição mortal. se articula aos viventes
pela cicatriz umbilical que o unifica à imensa família dos que vivem na
Terra. (Cascudo, 2002, p. 222).
De acordo com uma descrição mais antiga, o Mapinguari “é um animal
fabuloso, semelhando-se ao homem, mas todo cabeludo. Os seus grandes pêlos
o tornam invulnerável à bala, exceção da parte correspondente ao umbigo”
(Guedes, 1920, p. 221). Em Os seringais, Guedes (1920) registra ter ouvido de
um velho tuixaua (chefe indígena) que no Mapinguari estava o antigo rei da
região. Lima (1938), em Folclore Acreano, também considera o Mapinguari como
derivado dos índios em idade avançada: “De acordo com as lendas da região,
este animal deriva-se dos índios que alcançam uma idade avançada,
transformando-se em um monstro das imensas e opulentas florestas amazônicas
ao qual dão o nome de ‘Mapinguari’” (p. 103). Ele faz a seguinte descrição do
animal lendário:
O seu tamanho é de 1,80m aproximadamente, a sua pele é igual ao
casco de jacaré, os seus pés idênticos aos de uma mão de pilão ou de
um ouriço de castanha, conforme narração feita por um seringueiro, que
num dia de domingo, saindo ao mato à procura de caça, encontrou-se
com o pavoroso animal, com ele travando luta de morte. (Lima, 1938, p.
103).
61
Lima (1938) conta que o seringueiro saiu ao clarear do dia, levando
consigo um rifle e munição bastante “para o que der e vier” (p. 103). E começou a
ouvir gritos, em plena mata virgem, como se alguém estivesse perdido por ali.
Então, ele respondeu, pensando ser outro homem com as mesmas finalidades
que foi parar naquele lugar longínquo das moradas. Mas o seringueiro não sabia
o perigo que dele se aproximava, até ver um vulto e ouvir um novo grito:
De uma coragem extraordinária, pôs bala na agulha do rifle, fez
pontaria certeira e atirou contra o vulto, que uma hora lhe parecia um
jacaré tendo pernas e braços e outra hora lhe parecia um índio velho,
cheio de tatuagens, deixando de atirar quando não havia mais
balas. (Lima, 1938, p. 103).
Lima (1938) diz que o Mapinguari não ligava para o ruído dos tiros e nem
para os efeitos deles, uma vez que nem sequer ofendiam a cobertura do seu
corpo. Mas, finalmente, o seringueiro consegue cravar a arma pontiaguda em
uma parte mais fraca do casco duro do seu inimigo, “que sentindo-se ferido, saiu
a correr pela restinga afora, soltando gritos de causar pavor” (p.103).
Segundo Lima (1938), o seringueiro sobreviveu ao encontro com o
Mapinguari e contou o acontecimento aos seus companheiros, que voltaram ao
local e constataram quão tamanha tinha sido a luta. Campos (1939) registra outro
conto de seringueiros: “Dous seringueiros moravam na mesma barraca, em um
centro muito afastado, naqueles fins do mundo. Um deles tinha por costume
sair todos os domingos para ir caçar” (p. 321). De acordo com Campos (1939),
certo domingo, o outro seringueiro resolveu acompanhar seu amigo, mas
perderam-se um do outro e “o que não estava habituado a tais empresas andou
62
muito tempo à toa, sem acertar com o caminho” (p. 321). Foi quando começou a
ouvir berros medonhos e subiu em uma árvore bem alta para ver o que estava
acontecendo, então, pôde testemunhar um espetáculo horrendo que quase o põe
louco de terror:
Um Mapinguari, aquele macacão enorme, peludo que nem um coatá,
de pés de burro, virados para trás, trazia debaixo do braço o seu pobre
companheiro de barraca, morto, esfrangalhado, gotejando sangue. O
monstro com as unhas que pareciam de uma onça, começou a arrancar
pedaços do desgraçado e metia-os na boca, grande como uma solapa,
rasgada à altura do estômago. (Campos, 1939, p. 322).
Guedes diz a respeito do Mapinguari: “Segundo a lenda é ele um terrível
inimigo do homem, a quem devora. Mas devora somente a cabeça” (p. 221).
Todavia, nesta descrição de Campos (1939), vemos o Mapinguari devorar a
vítima inteira. Diz Campos (1939): “Assim, o seringueiro viu a estranha fera
engolir a cabeça, os braços, as pernas, as vísceras e o tronco do infeliz caçador”
(p. 322).
Segundo Cascudo (2002), a finalidade do conto registrado por Campos
(1939) é resumir um mito selvagem para mostrar a obediência a uma das leis da
igreja: “Um traço visível da catequese católica é a intercorrência do resguardo aos
dias santos e domingos. O Mapinguari escolhe quase sempre esses dias para
suas proezas venatórias” (p. 223).
Antonaccio (2006) também conta que, num dia de domingo, um seringueiro
saiu para caçar e não voltou. No dia seguinte, ele não regressou e seu
companheiro partiu à sua procura:
63
De repente ouviu um grito sinistro, correu para ver, quando o grito foi
repetido. Ao se aproximar do local de onde vinham os apavorantes
gritos, escondido entre algumas árvores, viu o monstro passar
triunfante, com o seringueiro debaixo dos braços, sem a cabeça,
sangrando muito e sem vida. (Antonaccio, 2006, p. 128).
Antonaccio (2006) descreve o Mapinguari da seguinte forma: “um homem
gigantesco e peludo, muito semelhante a um gorila, com quase dois metros de
altura, apenas um olho localizado na testa, uma boca enorme no sentido vertical,
que vai até a altura do umbigo” (p. 127). Britto (2007) faz uma descrição parecida:
O Mapinguari é representado como um enorme animal, semelhante a
um primata de grande porte, que muito se aproxima de um grande
macaco, inteiramente coberto de pêlos, exceto no umbigo, única área
em que é vulnerável a ataques. . . . Para alguns, ele possui aparência
ciclópica (com um olho no meio da testa) e uma grande boca que se
estende até a barriga, tendo o homem como seu inimigo principal, do
qual devora em primeiro lugar a cabeça para depois ingerir o corpo
inteiro. (p. 73).
Britto (2007) acredita que a lenda tenha origem na extinta preguiça gigante
e cita a pesquisa do biólogo Paulo Aníbal Mesquita, que considera o Mapinguari
“um possível animal mamífero pré-histórico, descendente de antigo bicho-
preguiça gigante do final do Pleistoceno (cerca de 12 mil anos), o último
representante da megafauna da Amazônia Brasileira” (p. 76). Britto também
afirma que o urso Ucumari pode ter chegado ao norte do Amazonas e dado
origem à lenda do Mapinguari:
64
Acredita-se, também, que a lenda tenha surgido por causa da presença
de um urso que vive na América do Sul, chamado urso-de-óculos ou
Ucumari, espécie muito rara da Cordilheira dos Andes, cujo habitat
original situa-se entre a Venezuela e o Chile. (p. 73).
Britto (2007) ainda diz que o Mapinguari é muito feroz e não teme nenhum
caçador, “porque é capaz de dilatar o aço quando sopra no cano da espinguarda”
(p. 74). Mas adverte que o monstro foge quando um bicho-preguiça, por causa
do “seu parentesco longínquo com este animal” (p. 74).
Outra característica do monstro lendário é o seu mal cheiro: “Segundo
contam, ao andar pelas selvas, o Mapinguari deixa um cheiro tão ruim que aquele
que se atreve a chegar perto pode ficar tonto e se tornar uma presa fácil” (Britto,
2007, p. 74). E, assim, concluímos a descrição da figura mitológica e partimos
para a análise do seu aspecto de maior destaque: o aspecto devorador. Nas
palavras de Britto (2007), o Mapinguari “imita o grito dado pelos caçadores para
confundi-los e, se um deles estiver por perto pensa que é outro caçador e acaba
perdendo a vida, sendo devorado a partir da cabeça” (p. 74).
Vimos, na descrição de Lima (1938), que os pés do Mapinguari adquirirem
forma de uma mão de pilão ou de um ouriço de castanha e, na descrição de
Campos (1939), os pés aparecerem iguais a pés de burro, virados para trás. As
duas descrições nos remetem a um formato arredondado dos pés, o que fez
Cascudo (2002) chegar à seguinte explicação sobre o significado de Mapinguari:
“Possivelmente se trata de uma contração de mbaé-pi-guari, a cousa que tem o
torto, retorcido, ao avesso. O início do espanto seria o rastro de forma
65
estranha, circular, indicando justamente a direção oposta ao verdadeiro rumo” (p.
223).
As características do Mapinguari possuem discordâncias entre os autores:
Para uns, ele é realmente coberto de pêlos ou possui armadura feita de
casco de tartaruga; para outros, a sua pele é igual ao couro do jacaré e
acredita-se que seus pés tenham formato de uma mão de pilão. Em
síntese, a descrição desse ente fantástico varia de acordo com a
imaginação dos caboclos, mantendo apenas os traços apavorantes
comuns, temidos pelos interioranos que habitam a Amazônia. (Britto,
2007, p. 74).
Então, conforme Britto (2007), a lenda mantém traços uniformes, por isso,
a nossa análise estará voltada para os aspectos comuns da descrição do
Mapinguari e através destes aspectos traçaremos paralelos com a teoria
freudiana. Ou seja, vamos estabelecer pontos de contato entre a lenda e a obra
de Freud.
A questão do olho único do Mapinguari é a primeira relação que podemos
fazer com a obra freudiana, pois, na Interpretação dos Sonhos, Freud
(1900a/1996) relata um sonho seu, em que um conhecido da Universidade lhe
dizia: Meu filho, o Míope. Ao que Freud (1900a/1996) interpreta “No que dizia
respeito ao conteúdo latente do sonho, o Professor M. e seu filho eram testas-de-
ferro um mero anteparo para encobrir a mim e a meu filho mais velho” (p. 295).
Assim, Freud (1900a/1996) revela, na parte dedicada aos sonhos típicos do
capítulo 5 da Interpretação dos Sonhos, que os sonhos são egoístas: “Os desejos
que neles se realizam são invariavelmente desejos do ego, e, quando um sonho
66
parece ter sido provocado por um interesse altruísta, estamos apenas sendo
enganados pelas aparências” (p. 294).
Este mesmo sonho aparece novamente no capítulo 6 da Interpretação dos
Sonhos, na parte referente aos sonhos absurdos, na qual Freud (1900b/1996)
afirma que Meu filho, o Míope era apenas um sonho introdutório, preliminar a
outro principal que introduzia uma forma verbal absurda e ininteligível. No sonho,
o filho mais velho de Freud aparece despedindo-se com a frase Auf Geseres,
porém seria esperado Auf Wiedersehen. Geseres, uma palavra hebraica, significa
pranto e lamentação. Na análise, Freud lembra-se de como, na Páscoa anterior,
ele e seu amigo de Berlim passearam pelas ruas de Breslau, cidade onde eram
forasteiros; e num certo ponto Freud (1900b/1996) faz a seguinte associação:
Entrementes, meu amigo ia me expondo suas idéias sobre a
significação biológica da simetria bilateral e iniciara uma frase com as
palavras “Se tivéssemos um olho no meio da testa, como um Ciclope...”
Isso levou ao comentário do Professor no sonho introdutório, “Meu filho,
o Míope...”, e fui então levado à fonte principal de “Geseres”. (p. 476).
A fonte do sonho era a doença nos olhos do filho do Professor M., que
enquanto “permanecesse de um lado , não teria importância, mas, se passasse
para o outro olho, seria um caso grave” (Freud, 1900b/1996, p. 476). Segundo
Freud (1900b/1996), a afecção desapareceu completamente no primeiro olho,
mas depois apareceram sinais de que o outro olho estava sendo afetado, a mãe
do menino ficou aterrorizada e mandou chamar o médico que indagou “por que a
senhora está fazendo esse Geseres’?” (p. 476) e exclamou: se um dos lados
ficou bom, o outro também ficará” (p. 476).
67
Então, o desejo de Freud (1900b/1996) presente no sonho era de que seu
filho não fosse míope ou sofresse de um distúrbio unilateral como o filho do
Professor M., pois seu filho sentava-se no mesmo banco que o filho do Professor
M. sentou durante sua idade escolar. Nas palavras de Freud (1900b/1996), “É que
a construção do banco da escola visava também a poupar a criança da miopia e
de um distúrbio unilateral. Daí o aparecimento, no sonho, de “Míope” (e, por trás
disso, “Ciclope”) e da referência à bilateralidade” (p. 476). A preocupação de
Freud (1900b/1996) que gerou o sonho dizia respeito à simetria bilateral de seu
filho: “Minha preocupação com a unilateralidade tinha mais de um sentido: podia
referir-se não apenas á unilateralidade física, mas também à unilateralidade do
desenvolvimento intelectual” (p. 476).
Na mitologia grega, os ciclopes eram “selvagens, gigantescos, dotados de
uma força descomunal e antropófagos” (Brandão, 2001, p. 204). A associação
que Freud (1900b/1996) faz de Míope com Ciclope nos chama atenção, por isso
nos voltamos ao estudo da mitologia grega no intuito de encontrar pistas para a
análise da lenda do Mapinguari.
De acordo com Brandão (2001), o Ciclope da tradição grega seria uma
força de natureza vulcânica que somente poderia ser vencida por um Deus solar.
E, assim, aconteceu: os Ciclopes foram eliminados por Apolo, Deus da luz e da
sabedoria (Brandão, 2001). Brandão (2001) afirma que “como o médico Asclépio,
filho de Apolo, fizesse tais progressos em sua arte, que chegou mesmo a
ressuscitar vários mortos, Zeus, temendo que a ordem do mundo fosse
transtornada, fulminou-o. Apolo, não podendo vingar-se de Zeus, matou os
68
Ciclopes” (p. 204). Os Ciclopes eram símbolos da força Brutal a serviço de Zeus,
por isso Apolo vingou-se de Zeus através deles (Brandão, 2001).
Ciclope significa “olho redondo” (Brandão, 2001, p. 204). Os Ciclopes
tinham um olho no meio da fronte, eram senhores do relâmpago, do raio e do
trovão, semelhantes por sua violência súbita às erupções vulcânicas (Brandão,
2001). Brandão (2001) faz a seguinte análise sobre o olho único dos Ciclopes:
“Dois olhos correspondem para o homem a um estado normal, três a uma
clarividência extraordinária, um revela um estado primitivo e sumário de
capacidade intelectual” (p. 206). Vemos que, não obstante, um olho
representava para Freud (1900b/1996) uma unilateralidade do desenvolvimento
intelectual. Brandão (2001) ainda acrescenta “O olho único no meio da fronte trai
uma recessão da inteligência e a carência de certas dimensões” (p. 206).
Mais um ponto interessante na análise dos Ciclopes é quando Brandão
(2001) os chama de “demônios das tempestades” (p. 204), pois constatamos mais
uma vez uma figura ciclópica sendo comparada a uma representação do mal.
Brandão (2001) afirma:
O demônio, na tradição cristã, é muitas vezes representado com um
olho só, o que traduz o domínio das forças obscuras, instintivas e
passionais, que, entregues a si mesmas e não assimiladas pelo
espírito, exercem um papel destruidor no universo e no homem. (p.
206).
No entanto, a destruição não é atributo do Mapinguari, ao contrário, sua
figura está relacionada com atividade de preservação. O monstro teria sido
enviado por Jurupari, o Deus legislador dos indígenas, e teria uma função
69
civilizadora: interditar a prática da antropofagia. Assim, o Mapinguari estaria a
serviço da humanidade, controlando o poder destrutivo dos homens. Britto (2007)
relata a história de Dona Francisca ao chegar de uma caçada, o marido de
Edna noticia a morte do Mapinguari em uma fazenda distante dali – e adverte: “Na
história de Dona Francisca, o Mapinguari, diferente da maioria das narrativas,
sucumbiu ao avanço do poder destrutivo do homem, talvez, ironicamente,
preconizando o fim dos sonhos e da identidade amazônicos” (p. 76).
Sem dúvida, o Mapinguari é uma figura ameaçadora, mas ele está a favor
das normas sociais e é um guardião das regras e das leis. Segundo Antonaccio
(2006), “seu nome, pronunciado entre os índios, causa terror, calafrio e dizem os
mais velhos que sua presença impõe castigo aos que desobedecem as leis de
Jurupari e ao deus Tupã” (p. 127).
A desobediência é assunto presente no texto O estranho (1919) de Freud,
em que ele analisa um conto de Hoffmann chamado O Homem da Areia. A
estranheza desse conto fantástico, segundo Freud (1919/1996), está na “idéia de
ter os olhos roubados” (p. 248). O Homem da Areia arrancaria os olhos das
crianças desobedientes, ou melhor, jogaria punhados de areia nos olhos delas até
estes saltarem sangrando da cabeça. Por sua vez, a estranheza da lenda do
Mapinguari está na idéia de perder a vida sendo devorado a partir da cabeça.
Portanto, percebe-se nas duas histórias, um temor relacionado à perda de uma
parte do corpo muito valorizada: os olhos no conto de Hoffman e a cabeça na
lenda amazônica.
Freud (1919/1996) em O estranho conclui que o horror de perder os olhos
é, na verdade, o medo de ser castrado, ele adverte: “o estudo dos sonhos, das
70
fantasias e dos mitos ensinou-nos que a ansiedade em relação aos próprios
olhos, o medo de ficar cego, é muitas vezes um substituto do temor de ser
castrado” (p. 249). Segundo Mezan (2006), o objeto de castração pode ser, em
virtude do deslocamento, representado com os olhos, como no conto de Hoffman,
“ou por outra parte narcisicamente valorizada do corpo” (p. 513). Logo,
concluímos que, na lenda do Mapinguari, o objeto de castração está sendo
substituído pela cabeça. Então, vamos, a partir de agora, nos dedicar ao estudo
do complexo de castração na teoria psicanalítica com o objetivo de fazer uma
leitura freudiana da lenda do Mapinguari.
Ter um pedaço cortado ou separado do corpo nos remete à castração, em
que a parte do corpo ameaçada é o pênis. O complexo de castração na
psicanálise é a “representação de que o pênis pode ser arrancado do corpo por
um agente exterior” (Mezan, 2006, p. 513). Ao analisar os elementos do conto de
Hoffmann, Freud (1919/1996) nos diz que “elementos como estes e muitos outros
parecem arbitrários e sem sentido . . . mas tornam-se inteligíveis tão logo
substituímos o Homem de Areia pelo pai temido, de cujas mãos é esperada a
castração” (p. 249). Compreende-se, através das palavras de Freud, que o agente
exterior a quem se atribui a intenção castradora é um representante da figura
paterna. Portanto, assim como O Homem da Areia é um substituto do agente
paterno, o Mapinguari também pode ser entendido como um símbolo do pai.
A figura paterna na psicanálise assume o papel do agente castrador, mas
para esclarecer esse lugar do pai é necessário ligar o complexo de castração ao
complexo de Édipo. A fantasia de castração é primeiramente instaurada na
criança em resposta ao enigma da diferença anatômica entre os sexos. Conforme
71
Laplanche & Pontalis (1992), “essa diferença é atribuída à amputação do pênis na
menina” (p. 73). Em outras palavras, a primeira teoria sexual infantil é de que
todos os seres humanos possuem um falo, então, quando vem a constatação de
que algumas pessoas não possuem esse falo, o grande enigma é estabelecido:
cadê o falo? A solução para o dilema encontra-se no Édipo: quem perdeu o seu
pênis, realizou um ato proibido, a saber, o incesto.
A relação incestuosa do filho com a e é o que deixa o pai no papel de
castrador, pois nele deposita-se toda uma carga de ciúme e hostilidade. Assim, o
pai é transposto para o lugar do agente castrador em virtude da rivalidade com o
filho na disputa pelo amor materno. Conforme a teoria psicanalítica, a estrutura
triangular do complexo de Édipo – pai, mãe e filho – está presente na constituição
psíquica dos seres humanos, independentemente da existência efetiva do pai e
da mãe, pois o nome atribuído a eles, em psicanálise, faz referência ao cuidador e
ao interditor. O desejo de possuir a mãe ou a pessoa que cuida estabelece o
conflito com a outra pessoa que interdita e impede a posse do objeto desejado.
Nesse sentido, o ódio direcionado ao pai surge da obstrução por ele imposta no
fluxo da satisfação dos desejos infantis. Consequentemente, o pai passa a ser na
fantasia da criança o agente castrador, uma vez que somente ele teria motivo
para aplicar tal punição.
Birman (2001) afirma que “a construção do conceito de complexo de Édipo
realizou-se inicialmente tendo na sexualidade masculina o seu paradigma e a sua
referência exemplares” (p. 176). Vejamos como o autor explica o discurso
freudiano do complexo de Édipo:
72
A epopéia erótica constitutiva do humano era delineada de maneira
bem simples e esquemática, que havia no início amor e atração
erótica pela figura da mãe, aliados a repulsa e ódio pela figura do pai no
percurso do menino. A identificação do menino com a figura paterna se
daria pelo terror de perder o pênis, órgão corporal altamente valorizado,
de forma que em nome de não perdê-lo o mesmo abriria mão do desejo
dirigido à figura materna. (Birman, 2001, p. 177).
Porém, o autor adverte que este discurso inicial realizava sempre a
narrativa masculina do complexo de Édipo em detrimento da narrativa feminina
(Birman, 2001). Então, vamos às duas narrativas para não excluir ou impedir a
compreensão geral do conceito.
O discurso freudiano posterior, conforme Birman (2001), incorporou “a
dimensão de ambivalência presente nas relações do sujeito com os objetos e com
os outros no cerne de sua narrativa sobre o complexo de Édipo” (p. 177). Assim,
com a polaridade do amor e do ódio voltada para ambas as figuras da cena, na
qual a ambivalência tomou corpo no cenário edipiano, o leitor pode interpretar
melhor a dinâmica do complexo de Édipo também na figura da mulher (Birman,
2001).
Mas ainda permaneciam algumas obscuridades em relação à figura da
mãe, pois esta seria a figura originária de referência tanto para o menino quanto
para a menina. Segundo Birman (2001), “pode-se acompanhar o percurso de
Freud sobre isso entre 1924 e 1932, nos ensaios em que procurou fundamentar
sua leitura do feminino e da sexualidade da mulher” (p. 179).
73
As especificidades do complexo de Édipo na menina seriam determinadas
pelo complexo de castração. Birman (2001) diz que:
Com efeito, o complexo edipiano na menina começaria então onde o do
menino terminaria, que o complexo e a angústia de castração seriam
os determinantes disso. Assim, se a ameaça de castração no menino
seria aquilo que o arrancaria definitivamente do regaço e da volúpia
dirigida à figura materna e lhe conduziria ao mundo paterno, no caso da
mulher, em contrapartida, onde supostamente a castração existiria, no
real do corpo, a constatação desta lhe conduziria a uma busca do órgão
faltante. (p. 180).
Ou seja, o fim do complexo de Édipo no menino acontece quando o
complexo de castração se instaura, pois o menino, para preservar o seu falo,
abandona a mãe enquanto objeto de desejo e identifica-se com o pai. Na menina,
com a instauração do complexo de castração é que o complexo de Édipo vai ter
início, pois a menina percebe-se como ser castrado, elege o pai como objeto de
desejo já que ele tem o falo e identifica-se com a mãe que também é castrada.
Mas o primeiro objeto de amor da menina foi a mãe e a passagem deste
objeto para a figura paterna se deu por meio de uma frustração: “a mãe não lhe
ter ofertado o pênis” (Birman, 2001, p. 197). Segundo Birman (2001), a mulher
“passaria então a acusar ativamente, no seu cenário fantasmático, a figura
materna por não a ter dotado desse signo corporal de distinção” (p. 197). Então, a
mulher passaria “a perseguir aquilo que lhe falta, buscando ser restituída por
intermédio das figuras do pai e do homem” (Birman, 2001, p. 198). Feito este
74
esclarecimento sobre o complexo de castração, podemos retornar à figura do
Mapinguari como representante paterno.
Segundo a lenda, o Mapinguari aparece somente quando a floresta
amazônica está sendo devastada e, segundo a teoria freudiana, a ameaça de
castração pode ser sentida quando existe o desejo pelo incesto. Portanto, com
base nessas duas assertivas, acrescentaremos algumas analogias encontradas
na leitura psicanalítica da lenda em questão. vimos que o Mapinguari,
igualmente ao pai, aplica o castigo correspondente à infração de uma lei, mas é
importante ressaltar que a punição, seja ela a castração ou outra, acontece em
decorrência da prática de algo proibido ou do desrespeito às regras. Na
psicanálise, o incesto é um ato devastador que pode desorganizar o psiquismo
humano, por isso, comparamos a devastação psíquica provocada pelo incesto ao
dano ambiental causado pelo desmatamento da floresta. Os dois atos proibidos
(incesto e desmatamento) são culturalmente instituídos e os castigos a eles
relacionados são respectivamente: a castração e a aparição do Mapinguari.
Assim, o pai tem a função de regular as normas instituídas pela cultura e, no caso
do Mapinguari, a função paterna é executada na regulação das leis ambientais.
O meio ambiente deve ser preservado para garantir o equilíbrio da floresta
e a expressão e Natureza é muito difundida na região amazônica, pois a
natureza fornece ao homem todos os bens necessários à sua subsistência. A
mãe, da mesma forma, garante a sobrevivência do filho fornecendo-lhe
alimentação, cuidado, proteção e amor. Nessa perspectiva, a construção Mãe
Natureza faz muito sentido na medida em que serve como aproximação entre dois
conceitos distintos (mãe e natureza). A mãe objeto de desejo da criança, na teoria
75
psicanalítica, aparece, na lenda do Mapinguari, disfarçada de natureza, ou seja, o
registro materno de fonte das satisfações e dos prazeres infantis encontra-se
camuflado na natureza exuberante da Amazônia. Ao saber que não é permitido
desmatar a floresta, o homem revive a frustração da infância de não poder
usufruir sexualmente de sua e e sente o perigo de ser devorado, assim como
sentiu nos tempos primevos a ameaça da castração.
O homem retira a catexia ou o investimento da mãe em função do seu
medo de ser castrado e revive na lenda a mesma frustração ao ter que abandonar
suas intenções relativas à floresta. Nessa lógica, a frustração é companheira do
homem desde quando ele desenvestiu do seu primeiro objeto de desejo e
começou a experimentar o desamparo constitutivo da subjetividade. Nesse
sentido, a lenda do Mapinguari nos remete às experiências constitutivas do
homem. Em outras palavras, a frustração dos desejos presente na lenda nos
alude à condição de ser sujeito na psicanálise, marcado pela falta e pelo
desamparo. De acordo com Freud (1919/1996), o estranho não é nada novo ou
alheio, porém algo que é familiar e muito estabelecido na mente. Portanto, a
estranheza da lenda do Mapinguari refere-se a experiências de frustrações
familiares ao psiquismo humano.
Freud (1919/1996) faz a seguinte declaração na análise do conto Homem
de Areia: “arriscar-nos-emos, portanto, a referir o estranho efeito do Homem da
Areia à ansiedade pertencente ao complexo de castração da infância” (p. 250).
Em virtude dessa declaração, deixamos a castração em lugar de destaque na
análise da lenda do Mapinguari e encontramos os sentimentos de medo e de
estranheza como seus derivados. Assim, os elementos da lenda (Mapinguari,
76
floresta e homem) correspondem aos vértices do triângulo edípico (pai, mãe e
filho) e revelam a proximidade entre o conto analisado por Freud (1919/1996) e a
lenda da Amazônia.
Vejamos, agora, o que Mezan (2006) nos diz sobre o ato da castração: “o
ato pode ser substituído por outras operações que ameacem a integridade
corporal (como arrancar os dentes ou amputar um membro)” (p. 513). E o autor
ainda acrescenta explicações sobre a figura paterna: “o pai, a quem se atribui a
intenção castradora, se transposto para registros muito afastados (como o
cavalo ou o lobo das zoofobias infantis)” (Mezan, 2006, p. 513).
Mezan (2006) referia-se aos casos Pequeno Hans (1909) e Homem dos
Lobos (1918) de Freud. Estes casos retrataram fobias de animais sentidas pelos
pacientes de Freud. No caso Pequeno Hans, um menino de cinco anos
desenvolveu uma fobia de cavalos: “Ocorreu quando o menino viu cair um cavalo
grande e pesado. . . . Hans naquele momento percebeu um desejo de que seu pai
caísse daquele mesmo modo... e morresse” (Freud, 1909/1996, p. 53).
Freud (1909/1996) afirma: “Hans era realmente um pequeno Édipo que
queria ter seu pai ‘fora do caminho’, queria livrar-se dele, para que pudesse ficar
sozinho com sua linda mãe e dormir com ela” (p. 103). O desejo de eliminar o pai
causou a fobia do pequeno porque a figura paterna foi transposta para o cavalo.
Freud (1909/1996), então, diz a Hans que “ele tinha medo de seu pai porque ele
mesmo nutria desejos ciumentos e hostis contra este” (p. 112). Para Freud
(1909/1996) era essencial informar ao menino sobre seus impulsos inconscientes,
ele comenta:
77
Ao lhe dizer isso, eu tinha interpretado parcialmente o seu medo de
cavalos para ele: o cavalo tem que ser seu pai a quem ele tinha boas
razões internas para temer. Certos detalhes dos quais Hans mostrou
que tinha medo, o preto nas bocas dos cavalos e as coisas na frente
dos seus olhos (os bigodes e os óculos que são o privilégio de um
homem crescido), me pareciam ter sido diretamente transpostos do seu
pai para os cavalos. (p. 112).
Portanto, o animal fóbico representa o pai que é a figura temida na cena
edipiana. vimos que o medo e a estranheza do Mapinguari referem-se a esta
mesma cena. Com efeito, a zoofobia é o medo do pai, figura castradora. Mas
Freud (1909/1996) chama atenção para a ambivalência presente no complexo
edipiano e consideramos importante ressaltar esta parte do seu discurso em que
ele fala sobre a ambivalência de Hans em relação ao seu pai:
Mas seu pai, a quem ele não podia deixar de odiar como um rival, era o
mesmo pai que ele sempre tinha amado, e estava inclinado a continuar
amando, que tinha sido seu modelo, tinha sido seu primeiro
companheiro, e tinha cuidado dele desde a mais tenra infância: e foi
isso que deu origem ao primeiro conflito. Esse conflito também não
podia encontrar uma solução imediata. Pois a natureza de Hans se
tinha desenvolvido tanto que, no momento, seu amor podia levar
vantagem e suprimir seu ódio apesar de não poder matar esse ódio,
pois este era mantido permanentemente vivo por seu amor a sua mãe.
(p. 120).
78
Então, o conflito entre o amor e o ódio direcionados à mesma figura seria
solucionado quando o ódio fosse transferido para outro registro, no caso, o
cavalo. Assim, não teria sentido sentir medo do pai, pois os sentimentos hostis
não seriam mais depositados nele. Hans poderia amar seu pai e a cada novo
desejo por sua mãe não seria mais o pai que aplicaria a punição e sim o cavalo: o
pai não iria castrá-lo, mas o cavalo iria mordê-lo.
Nesse sentido, o medo de ser devorado pelo Mapinguari é análogo ao
medo de ser mordido pelo cavalo. A lógica freudiana nos conduz a pensar da
seguinte forma: o cavalo deve tirar uma parte importante do meu corpo, o
Mapinguari deve me deixar sem um órgão precioso do meu corpo e eu tenho
medo de ser punido porque desejei a morte dele. Na verdade, o desejo de morte
foi dirigido ao pai, figura de castração, de punição, de impedimento.
No caso Homem dos Lobos (1918) podemos, mais uma vez, observar a
figura paterna como representante da castração. O paciente de Freud
desenvolveu uma fobia de lobos e o analista acreditava que as causas daquela
fobia ocultavam-se por trás do sonho ocorrido quando o paciente tinha apenas
quatro anos. O paciente sonhou que era noite e ele estava deitado na cama,
quando de repente, a janela se abriu e ele viu seis ou sete lobos sentados na
nogueira em frente a janela (Freud, 1918/1996).
O paciente vinculou esse sonho à recordação do lobo que lhe causava
medo, o lobo estava em um livro de contos de fadas e achava-se ereto, dando um
passo com uma das patas, com as garras estendidas e as orelhas empinadas. O
paciente ainda acreditava que a figura deveria ter sido uma ilustração da história
de Chapeuzinho Vermelho, e quando questionado sobre a razão de serem seis ou
79
sete lobos o paciente respondeu que poderia ser da história de O Lobo e os
Sete Cabritinhos (Freud, 1918/1996).
Então, Freud (1918/1996) faz a relação do sonho com os dois contos de
fadas e atribui a ansiedade causada pelos lobos ao medo infantil do pai. Diz
Freud (1918/1996):
Dos desejos envolvidos na formação do sonho, o mais poderoso deve
ter sido o desejo de satisfação sexual, que ele, na época, aspirava obter
do pai. A força desse desejo tornou possível reviver um vestígio a muito
esquecido na sua memória, de uma cena capaz de mostrar-lhe como
era a satisfação sexual obtida do pai; e o resultado foi o terror, o horror
da realização do desejo . . . (p. 47).
A cena da qual Freud falava dizia respeito ao coito dos pais observado pelo
paciente em tenra idade. A observação desta cena, chamada por Freud
(1918/1996) de cena primária, determinou o conteúdo do sonho que tinha relação
com uma história contada pelo avô do paciente, na qual um alfaiate estava
sentado trabalhando em seu quarto, quando a janela se abriu e um lobo pulou
para dentro. O alfaiate apanhou-o pela cauda e arrancou-a fora, de modo que o
lobo fugiu correndo, aterrorizado. Algum tempo mais tarde, o alfaiate foi até a
floresta e subitamente viu uma alcatéia de lobos vindo em sua direção, então,
subiu em uma árvore e os lobos ficaram perplexos, mas o aleijado, que estava
entre eles e queria vingar-se do alfaiate, propôs que subissem uns sobre os
outros, até que o último pudesse apanhá-lo (Freud, 1918/1996).
Freud (1918/1996) afirma:
80
Na história do avô, o lobo sem rabo pediu aos outros que subissem em
cima dele. Foi esse detalhe que evocou a lembrança do quadro da cena
primária, e foi dessa forma que se tornou possível que o material da
cena primária fosse representado pelo da história do lobo e, ao mesmo
tempo, que os dois pais fossem substituídos, como era desejável, por
diversos lobos. (p. 53).
Ou seja, na história do avô o lobo sem rabo representava a mãe, ser
castrado, e os lobos que sobem representavam o pai, pois, como vimos, a
ansiedade do menino foi gerada por uma figura de lobo em posição vertical. Freud
(1918/1996) supõe que a cena primária observada pela criança tenha sido um
coito a tergo (por trás), more ferarum maneira dos animais), posição
privilegiada para a observação dos genitais masculinos e femininos. O quadro de
satisfação sexual propiciado através da ação do pai do menino ficou como “um
modelo da satisfação que ele próprio aspirava obter do pai” (Freud, 1918/1996, p.
53). Segundo Freud (1918/1996), as etapas na transformação do material
refletiram o progresso dos pensamentos do sonhador durante a construção do
sonho: “desejo de obter do pai satisfação sexual a compreensão de que a
castração era uma condição necessária para isso – medo do pai” (p. 53).
A transformação do afeto em ansiedade foi motivada pela “convicção da
realidade da existência da castração” (Freud, 1918/1996, p. 48). Obter satisfação
do pai significaria perder o órgão masculino, mas isso o menino não queria, “um
claro protesto da parte da sua masculinidade!” (Freud, 1918/1996, p. 58).
Em Inibições, sintomas e ansiedade, Freud (1926/1996) volta-se
novamente ao estudo dos dois casos de fobia animal para falar da formação de
81
sintomas, mas confessa as complicações de considerar os dois casos como
iguais: “Talvez tenhamos aumentado a confusão tratando os dois casos de fobia
animal a nossa disposição ‘Little Hans’ e o ‘Wolf Man’ como se fossem
fundidos no mesmo molde” (p. 109). Freud (1926/1996) acrescenta: “Somente no
tocante a ‘Little Hans’ é que podemos dizer com certeza que aquilo que sua fobia
eliminou foram os dois principais impulsos do complexo edipiano sua
agressividade para com o pai e seu excesso de afeição pela mãe” (p. 109).
Porém, Freud (1926/1996) reconhece que um terno sentimento pelo pai
também estava presente no caso Pequeno Hans e desempenhou certo papel na
repressão do sentimento oposto, mas ele não poderia comprovar tal fato, nem
que este sentimento era bastante forte para atrair a repressão sobre si mesmo e
nem que desapareceu depois. Em contrapartida, o caso Homem dos Lobos,
“apresentou prova inegável de que aquilo de que a repressão se apoderou foi sua
terna atitude passiva para com o pai” (Freud, 1926/1996, p. 109). Dessa forma,
Freud (1926/1996) ressalta as diferenças entre os dois casos de fobia animal.
O sentimento despertado pelo Mapinguari também é o medo, por isso
relacionamos o medo do Mapinguari a um deslocamento operado no complexo de
castração, no qual o conflito ambivalente, entre o amor e o ódio direcionado para
a figura interditora, tem solução: o ódio direcionado a figura paterna resulta em
medo, mas se a figura castradora for transposta para outro registro, no caso o
Mapinguari, o conflito se desfaz e o amor será direcionado ao pai. Assim,
atribui-se a intenção castradora a uma figura afastada da cena edipiana.
O complexo de Édipo nos dois casos, do Pequeno Hans e do Homem dos
Lobos, tem o seu término no complexo de castração. Então, apesar dos dois
82
casos de fobia animal serem diferentes, ambos possuem a mesma força motriz: o
temor da castração. Nas palavras de Freud (1926/1996) “em ambos os pacientes
a força motriz da repressão era o medo da castração” (p. 110). Freud (1926/1996)
conclui que “as idéias contidas na ansiedade deles a de ser mordido por um
cavalo e a de ser devorado por um lobo – eram substitutos, por distorção, da idéia
de serem castrados pelo pai” (p. 110).
Portanto, o medo do Mapinguari é um medo do pai deslocado da figura
castradora para o animal amazônico. Assim, a lenda da Amazônia está em
conformidade com as zoofobias estudadas por Freud. Mas além do medo de ser
devorado pelo Mapinguari, observamos o efeito estranho causado pelas
características do monstro da floresta (somente um olho no meio da testa e a
boca na barriga). Essa estranheza do monstro foi relacionada ao fator infantil da
castração e concordou com a ideia freudiana de que o estranho é algo familiar
(Freud, 1919/1996).
Em suma, as especificidades do complexo de castração foram levantadas
com o intuito de esclarecer a dinâmica dos elementos da lenda do Mapinguari e
foram centrais na compreensão do significado inconsciente da mesma. O pavor
de ser devorado pelo Mapinguari é, na realidade psíquica, um substituto do temor
de ser castrado.
O mesmo aspecto devorador observado no Mapinguari aparece no conto
de fadas Chapeuzinho Vermelho na figura de um lobo. Então, vamos, agora,
verificar a análise dos estudiosos dos contos de fadas, Bettelheim (1976/2007) e
Corso & Corso (2006), com a intenção de comparar com o resultado da nossa
análise e, assim, garantir a validade do nosso estudo.
83
Segundo Bettelheim (1976/2007), Chapeuzinho Vermelho é uma criança
que luta com problemas pubertários, para os quais ainda não está preparada
emocionalmente por não ter dominado seus conflitos edipianos: “Chapeuzinho
Vermelho projeta de forma simbólica a menina nos perigos de seus conflitos
edipianos durante a puberdade” (p. 239).
Bettelheim (1976/2007) destaca que ao responder à pergunta do lobo,
Chapeuzinho Vermelho a este orientações específicas de como chegar à casa
de sua avó e conclui que o inconsciente de Chapeuzinho Vermelho está
trabalhando o tempo todo para se desfazer da avó. Ele diz:
Ao ceder às sugestões do lobo, ela também lhe deu a oportunidade de
devorar sua avó. Aqui a história fala a alguns das dificuldades edipianas
que permaneceram irresolvidas na menina, e o fato de o lobo engolir
Chapeuzinho Vermelho é o castigo por ela ter arranjado as coisas de
modo a permitir que o lobo eliminasse uma figura materna. (Bettelheim,
1976/2007, p. 240).
De acordo com o complexo edipiano, o desejo da filha de ser seduzida pelo
pai poderia ser realizado quando a mãe estivesse fora do caminho. Assim,
enquanto a mãe (avó) estivesse por perto a filha (Chapeuzinho Vermelho) não
poderia ser do pai (lobo). Bettelheim (1976/2007) afirma:
Com a reativação na puberdade de antigos anseios edipianos, o desejo
da menina por seu pai, sua inclinação a seduzi-lo e seu desejo de ser
seduzida por ele também são reativados. A menina sente então que
merece ser terrivelmente punida pela mãe, quando não também pelo
pai, por seu desejo de tirá-lo dela. (p. 243).
84
Além de desejos sexuais pubertários, Bettelheim (1976/2007) diz que o
conto de fadas Chapeuzinho Vermelho fala de voracidade oral: “opõe a oralidade
refinada da criança em maturação (a boa comida levada para avó) à sua forma
canibalística anterior (o lobo engolindo a avó e a menina)”. Dessa maneira,
completamos nossa análise dizendo que a lenda do Mapinguari , assim como o
conto da Chapeuzinho Vermelho, nos remete a uma experiência regressiva,
despertando tudo aquilo que ainda é primitivo em nós. Neste ponto, nos referimos
à origem da lenda na qual o Mapinguari aparece como uma punição aos índios
antropófagos.
Mas Corso & Corso (2006) não consideram o pai somente como o guardião
das leis, para eles o pai deve ser temível, como o Lobo, todavia, Chapeuzinho
Vermelho deve fantasiar que ele a deseja e a corteja. Corso & Corso (2006)
advertem:
Seria pouco pensar que do pai só se espera o papel do Lobo no sentido
de colocar as coisas no seu lugar e impor as leis. Sabemos que ele
também tem seus atrativos, principalmente para as Chapeuzinhos
Vermelhos que ele tem em casa. (p. 54).
Ou seja, o lobo tanto é o objeto fóbico como o objeto de amor e vice e
versa: “uma prova de que o papai bonzinho que se tem em casa pode tornar-se
uma figura ameaçadora e temível” (Corso & Corso, 2006, p. 59). Ainda sobre o
objeto fóbico, Corso & Corso (2006) alegam que sua forma varia bastante, mas a
certeza é que o mundo ficará geograficamente mapeado conforme sua presença
ou ausência: “Os objetos fóbicos mais comuns o aqueles fáceis de ser
encontrados no dia-a-dia e nos lugares freqüentados pelas crianças” (p. 58). O
85
Mapinguari só é conhecido pelas crianças através histórias que os adultos contam
sobre o ser lendário, mesmo assim, ele causa fobia e faz parte do cotidiano
amazônico.
Corso & Corso (2006) apresentam a definição de objeto fóbico e revelam
que: “O terror mais primitivo é o de ser enterrado vivo nas entranhas da mãe. Por
isso, a maior parte das crianças elegerá alguma figura apavorante para seu uso
pessoal, conhecida pelos psicanalistas como objeto fóbico” (p. 58). Para os
autores, “algumas formas de angústia são relativas a sentir-se dissolvido nesse
outro maior que pode nos conter, nos engolir” (p. 58). Nesse sentido, o Lobo e o
Mapinguari podem representar a figura materna que contêm seus filhos em sua
barriga. Ser devorado também significa voltar à barriga da mãe, situação temida
por representar “o risco da incorporação ao corpo materno” (Corso & Corso, 2006,
p. 58).
Logo, o Mapinguari, como objeto fóbico, pode representar tanto a figura
paterna quanto a materna. Então, a escolha do objeto fóbico está relacionada à
escolha objetal. Ou seja, o objeto de amor no complexo edipiano vai determinar a
escolha objetal, enquanto a figura interditora vai ser o objeto fóbico, mais tarde,
transposto para outro registro afastado do conflito edípico. Portanto, o Mapinguari
ou outro objeto fóbico representa o pai ou a mãe, dependendo de quem a criança
escolhe como seu objeto de amor.
Mais uma vez aparece o complexo de Édipo no centro da análise da lenda
do Mapinguari, por isso concluímos que o significado inconsciente dessa lenda
está relacionado a este complexo e mais especificamente ao complexo de
castração, pois o que está em jogo é a integridade física do homem.
86
A ameaça de destruição do homem é, de acordo com a teoria psicanalítica
de Freud, uma ameaça mais primitiva que tem a ver com a ameaça de castração
sentida pela criança edípica. Dessa forma, estabelecemos pares de igualdade
entre: mãe e floresta; pai e Mapinguari e; filho e homem. O enredo da lenda
homem desejando usufruir da floresta e temendo a punição do Mapinguari seria
uma repetição do enredo edipiano filho desejando usufruir da mãe e temendo a
punição do pai.
É importante ressaltar que o nome da mãe e o do pai, em psicanálise,
referem-se ao cuidador e ao interditor respectivamente. Por isso, é possível
verificar a psicanálise em diferentes sociedades. A cultura amazônica é marcada
pela herança indígena que é distinta da cultura européia de Freud, mas nem por
isso ela está fora de uma análise psicanalítica, pois uma criança quando nasce
vai sempre precisar de um cuidador e ao estabelecer um vínculo de amor, aquilo
ou o que fizer a interdição será triangulado num complexo de desejo e
impedimento de satisfação desse desejo.
Em outras palavras, o Mapinguari representa a figura de interdição e deve
ser analisado também em conformidade com a questão fálica, afinal de contas, o
medo primitivo que o monstro faz despertar é o medo de perder o falo. O
complexo de Édipo, nesse sentido, tem solução no desinvestimento do objeto de
desejo e na identificação com o objeto castrador. No menino, a identificação
acontece com o pai e a mãe aparece como objeto de desejo, já na menina é o pai
que aparece como objeto de desejo, enquanto a identificação acontece com a
mãe. Isso quando a escolha objetal ocorre de forma normal, pois a escolha pode
ocorrer também de forma invertida, mas o importante é saber que a relação com a
87
figura castradora vai deixar de ser conflituosa quando esta figura for deslocada
para outra, por exemplo, para o Mapinguari ou para outro animal fóbico, afastado
do complexo edipiano.
Em todo caso, o Mapinguari, de acordo com a teoria freudiana, está
relacionado com a figura que estabelece as regras e vigia as leis da sociedade.
Por isso, terminamos este capítulo com o apelo de que os Mapinguaris continuem
existindo no imaginário amazônico para que nossa floresta seja sempre
preservada. No próximo capítulo vamos estudar a lenda do Boto sob o viés
psicanalítico.
88
LENDA DO BOTO:
O NARCISISMO NAS NUANCES DA SEDUÇÃO
Olha o boto faceiro
Seu andar de banzeiro
É o desejo de amar
Hugo Levy, Neil Armstrong, Silvio Camaleão
O Boto
1
é o ente fantástico mais popular da Amazônia. De acordo com
Britto (2007) nenhuma lenda é tão erótica e enraizada na cultura amazônica
quanto a do Boto. O autor afirma que nenhum outro animal da região está sujeito
a tantas fábulas quanto este cetáceo. Britto (2007) acrescenta que “o golfinho do
Amazonas é indispensável ao folclore regional e se destaca por ter fama de
seduzir moças ribeirinhas e ser responsável pela paternidade desconhecida da
região” (p. 18). Segundo ele, o Boto:
Transforma-se, ao cair da noite, num belo rapaz, garanhão, alto,
branco, forte, grande dançarino e bebedor, que aparece para seduzir as
mulheres, solteiras ou não. . . . Porém, antes da madrugada chegar, ele
pula na água e volta a ser boto novamente. (Britto, 2007, p.18).
No livro O Matuto Cearense e o Cabloco do Pará de 1930, José de
Carvalho nos conta o seguinte:
É o que lhes conto. Os botos costumam seduzir as moças que moram
nas povoações ribeirinhas dos principais afluentes do Rio Amazonas.
Por isso é considerado o pai de todos os filhos cuja paternidade é
1
O nome Boto foi utilizado durante todo este capítulo para designar o rapaz sedutor, figura mitológica, que
aparece todo vestido de branco para conquistar as moças da região amazônica.
89
desconhecida. Desconhecida totalmente não é: são filhos de boto.
(Carvalho, 1930, p. 22).
Conforme Carvalho (1930), os botos frequentam bailes, bebem, dançam,
namoram, conversam e não deixam nunca de comparecer aos encontros
femininos. Para este autor, os botos transformam-se, nas primeiras horas da
noite, em rapazes altos, claros, fortes e bonitos, porém, “antes da alvorada, pulam
para a água e voltam à sua condição primitiva, isto é, tornam-se botos” (p. 22).
Carvalho (1930) relata um caso “acontecido no Igarapé dos Currais” (p.
22). Vale a pena retratarmos tal caso, pois é o mais antigo que encontramos em
nossa pesquisa bibliográfica sobre a lenda do Boto:
Apareceram lá, numa festa, dois moços alvos e bonitos, completamente
desconhecidos do lugar. Se dançaram muito, beberam mais ainda. E
como bebeiam! Antes do amanhecer, sem que pessoa alguma
soubesse para onde tinham ido, não mais foram encontrados.
Sumiram... Acontece, porém, que a casa onde estavam ficava longe do
rio. De água, por perto, um poço raso, localizado no meio do
caminho. Com o nascer do dia, as pessoas que saíram da festa
verificaram a existência de dois botos naquele poço. Ora, ali nunca se
tinha visto boto! Alvoroço. Os convidados e os moradores do lugar
foram buscar arpões, arpoaram os botos e, trazendo-os para a terra, os
mataram, partindo-lhes as cabeças. Imediatamente, exalou forte um
cheiro de pura cachaça! (Carvalho, 1930, p. 22).
90
Esse mesmo relato aparece no Dicionário do folclore brasileiro, de Luís da
Câmara Cascudo, nele o autor relata, além deste caso, outro ocorrido no
Cachoeiri:
No Cachoeiri moravam duas moças órfãs, visitadas durante a noite por
desconhecidos vestidos de branco. Desconfiados de que os namorados
eram botos, dois homens armaram-se de arpões de inajá e esperaram
a noite. Apareceu apenas um dos rapazes misteriosos. Atiraram-no com
três arpões e o moço conseguiu alcançar o rio, mergulhando na água.
No dia seguinte apareceu boiando, morto, um grande boto, com três
arpões de inajá fincados no dorso. (Cascudo, 2001a, p. 78).
Nesses dois casos, observamos a principal característica do Boto: a de
seduzir as mulheres. O Boto tem uma relação especial com as mulheres da
região amazônica. Britto (2007) informa que se dessa relação nascer uma
criança, a moral que regula o costume local se altera em relação ao fato: “a mãe,
ao invés de ser condenada por conceber um filho fora do casamento, passa a ser
aceita como vítima de algo sobrenatural, tido então como moralmente aceito” (p.
18).
Cascudo (2001a) afirma que existem mesmo depoimentos sinceros de
mães que acreditam ser o boto, o legítimo responsável pela paternidade de seus
filhos. Cascudo (2001a) faz referência a um caso relatado por Gete Jansen:
Gete Jansen se refere ao caso de uma mulher que, levando o filho a um
serviço médico, quando lhe perguntaram o nome do pai, para o
competente registro, respondeu com absoluta convicção: “Não tem, não
senhor, é filho de boto”. A mulher era casada, tinha outros filhos, cuja
91
paternidade atribuía pacificamente ao marido, mas aquele teimava em
dar como filho de boto. “Este é filho de boto, eu sei”. Não houve quem a
demovesse, o registro foi feito à sua revelia. (p. 78).
Segundo Almeida (2004), quando um garoto quer ofender o outro, diz-lhe:
“O fio de boto! E está feito o pior ultraje” (p. 74). Percebemos, então, que a lenda
do boto remete à sexualidade adulta e também infantil. Almeida (2004) ressalta
que “Meninos e meninas, quando sentem os primeiros impulsos do sexo, reúnem-
se em grupos, nas noites de luar e, cochichando e rindo baixinho, contam as
estórias de boto que tanto lhes aguçam a curiosidade” (p. 74). Para ajudar na
nossa análise, veremos a descrição que Almeida (2004) faz do Boto: “É um
golfinho popular em toda bacia amazônica. Quer o lendário que ele seja um
especialista em assuntos de paternidade encantada. É um Dom Juan, jactando-se
de ser o pai de todos os curumins de descendência duvidosa” (p. 74).
Outra descrição que constitui importante material de análise é a descrição
de Cascudo (2002):
O Boto é o conquistador feliz de milhares de moças, o progenitor
natural de várias centenas de piás. Esse delfim levanta, nas lonjuras do
rio-mar, o renome clássico de sua estirpe. O delfim é um símbolo
lúbrico. Desde a antiguidade clássica ele é dedicado a Vênus e
aparece, roncando de cio, junto a deusa resplendente. (p. 163).
Vênus é a deusa da mitologia romana que equivale a Afrodite na mitologia
grega, deusa do amor e da beleza, ela representa a sensualidade e o erotismo. A
figura do delfim aliada à Vênus nos mostra mais uma proximidade da lenda com a
sexualidade. Cascudo (2002) diz ainda que a conformação da cabeça do Boto
92
lembrou aos gregos a glande humana e que “seu nado embicado, corcoveando,
subindo e descendo à flor d’água, dava a imagem dos movimentos sexuais” (p.
163).
Britto (2007) também faz referência à antiguidade clássica dizendo:
Na antiguidade clássica, o delfim (família a qual o boto pertence) era
dedicado a Vênus, compondo a mística afrodisíaca, aparecendo ao lado
da deusa do amor. O boto é um símbolo fálico e os gregos registraram
a sua sensualidade no fato de costumarem seguir as embarcações
nadando em movimentos ondulares que lembram a cópula humana e
também por terem a forma carregada de erotização na conformidade de
sua cabeça, cuja figura está associada à forma do pênis humano. (p.
20).
Na Amazônia, destacam-se duas espécies de boto: o tucuxi e o vermelho.
Britto (2007) aborda a especificidade do golfinho da Amazônia da seguinte forma:
“O boto é um mamífero cetáceo da família dos delfinídeos, marinho e de água
doce, que pode alcançar mais de dois metros de comprimento e cerca de 70
centímetros de diâmetro” (p. 18). O autor diz que “das seis espécies conhecidas,
três pertencem à Bacia Amazônica, das quais se destacam o boto preto (tucuxi) e
o vermelho, que o oceanógrafo francês Jacques Cousteau denominou
erroneamente de boto cor-de-rosa” (Britto, 2007, p. 18).
Segundo Antonaccio (2006), o boto vermelho se transforma em um jovem
belo, encantador, que seduz qualquer moça que se aproxima e com ela se
relaciona, em suas palavras: “O boto de cor avermelhada é uma espécie de
golfinho que aparece com freqüência nos rios da Amazônia, e não existe apenas
93
uma lenda sobre sua existência” (p. 44). O autor afirma que o boto vermelho é
considerado um conquistador das índias e caboclas da região e que todas as
vezes que alguma delas tem um filho, sem conhecer o verdadeiro pai, essa
paternidade é atribuída ao boto (Antonaccio, 2006). Em relação ao boto tucuxi ele
diz que, ao contrário do vermelho, é considerado “o protetor dos habitantes da
região” (Antonaccio, 2006, p. 44).
Da mesma forma, Britto (2007) trata o boto tucuxi como o “protetor das
águas e dos pescadores” (p. 18). Em contrapartida, ele afirma: “Já o boto-
vermelho é tido como o dom juan das águas, sedutor de moças donzelas e
mulheres casadas” (Britto, 2007, p. 18). Cascudo (2002) concorda com a
afirmação de Britto e diz:
O Boto vermelho é o don-juan de todas as moças que ignoram o pai de
seu primeiro filho. Arrebata-as das margens e leva-as para o noivado
efêmero no fundo triste do rio. Não mata sua vítima amorosa, mas se
desinteressa pela prole resultante do estranho conúbio. (p. 165).
Segundo a lenda, o Boto vermelho é o ser encantado que pode
transformar-se em belo rapaz vestido de branco (Britto, 2007). Para Cascudo
(2002) nada resta de sua aparência de peixe, na maioria absoluta dos casos. O
Boto torna-se um caboclo alegre, forte, atirado, afoito, dançando bem e com uma
sede incontentável. Cascudo (2002) afirma: “Não melhor par nem mais
simpático cavalheiro num baile” (p. 165). Mas o Boto tem sempre um chapéu na
cabeça para guardar o orifício que revelaria sua condição de animal com
aparência humana (Britto, 2007). Nas palavras de Cascudo (2002): “Apenas não
tira o chapéu para que não vejam o orifício por onde respira” (p. 165). Conforme
94
Britto (2007), “o orifício respiratório é o seu sinal identificador e único ponto
vulnerável” (p. 18).
O furo na cabeça do rapaz de branco, o sinal identificador do Boto, é
retratado por Flávia Savary em Lendas da Amazônia... E é assim até hoje (2006),
o Boto aparece em uma Festa de São João e seduz a personagem Luzia:
A menina, naquela semana, tinha ficado moça. E moça incomodada
nem por sonho deve se pôr em canoa sobre o rio, porque o boto sente
o cheiro de longe. Boto e moça donzela são coisas que não podem se
esbarrar. (Savary, 2006, p. 44).
Savary (2006) designa o Boto, em seu livro de literatura folclórica, de
Uauiará que significa boto em Tupi e segundo ela, “o encanto do Uauiará é
fulminante!” (p. 46). Luzia tinha tomado por bom partido um soldado de Cametá
e tinha par na dança, mas “à meia-noite, soltaram-se os fogos. Naquela
confusão de brilho e pólvora, Luzia se perdeu de seu par. Foi quando o moço de
branco, que não tirou o chapéu nem pra cumprimentá-la, surgiu à sua frente”
(Savary, 2006, p. 45). O inseparável chapéu servia para esconder o furo por onde
os botos respiram, mesmo quando se transformam em homens, mas Luzia
estava encantada e aceitou o convite do Uauiará para um passeio à beira do
igarapé. Conta Savary (2006): “À medida que se aproximavam do rio, os barulhos
da mata sumiam. as palavras molhadas do boto fluíam nos ouvidos de Luzia.
É assim mesmo: quanto mais perto das águas, mais forte o encantamento do
Uauiará!” (p. 46).
Iaci, a lua de acordo com Savary (2006), “prevendo a desgraça, tapou os
olhos” (p. 46). Luzia tinha ido à festa com seu irmão caçula que a viu sumindo no
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mato com o estranho e avisou o soldado que juntou um grupo de busca para
resgatar a moça. Prossegue Savary: “Na hora em que a lua se cobriu de nuvens,
as bocas dos dois jovens se aproximaram pro primeiro beijo. Tiros de caçador
furaram a noite, então, espantando bichos e gente” (p. 46). A lua voltou a abrir os
olhos e segundo Savary (2006) tudo aconteceu muito rápido, o susto, os gritos, o
tiro e o terno branco se tingindo de sangue. Foi assim que aconteceu:
O soldado, aproveitando a surpresa do boto, puxou a moça para si. O
irmão grudou-se em sua cintura, sentindo-se responsável pela honra da
família. Uauiará mergulhou de volta no rio. Pelo caminho, sua
elegância, desencantada, revelou a verdadeira identidade de cada item:
o chapéu virou uma arraia; os sapatos, dois cascudos; o cinto, um
aruaná, e assim por diante. Sem boto para vestir, voltavam à forma
original de peixes. (Savary, 2006, p. 47).
Portanto, nesta descrição de Savary (2006), não o rapaz voltava à sua
forma de boto como seus adereços também se transformavam em peixes:
aruaná, cascudo, etc. Outra curiosidade da lenda do Boto descrita por Britto
(2007) é a sua atração por mulheres menstruadas. O autor afirma que o Boto vira
canoas em que viajam mulheres, principalmente quando estão menstruadas, pois
consegue sentir o odor feminino a grandes distâncias (Britto, 2007). O Boto é um
conquistador irremediável e jamais alguma mulher resistiu à sua sedução,
Antonaccio (2006) diz: “Curioso nessas conquistas, é que ele preferência
àquelas moças que estão no período menstrual” (p. 44). Britto (2007) adverte que
a lenda estabelece a violação dos tabus “na cópula entre homens e animais
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(homem e fêmea-do-boto; e boto-macho e mulher), no sexo durante a
menstruação, no adultério e nos filhos fora do casamento” (p. 21).
Porém, as lendas mais antigas não aludem ao Boto amoroso, numa lenda
baré de Poronominare, o boto vira gente para curar o herói indígena (Britto, 2007).
Nas palavras de Cascudo (2002): “o Boto que se torna gente (mira) para curar o
herói Poronominare” (p. 167). O Boto era considerado o Mira dos Barés que os
caboclos chegaram a venerar como um deus milagroso. (Almeida, 2004, p. 74).
Ainda sobre a origem da lenda do Boto, encontramos em Antonaccio
(2006), uma lenda em que uma índia casada com um velho tuxaua o enganava
com o macho de uma anta: “Todas as vezes que o marido saía para caçar, ela
corria para beira do rio e praticava sexo com macho de anta” (p. 43). A respeito
desta lenda Britto (2007) diz o seguinte:
Conta uma lenda amazônica que o Boto teria sido gerado pela união de
uma mulher com uma anta (tapir), razão pela qual a genitália da fêmea
dos tapirídeos se assemelha à da mulher e a do boto macho com o
pênis da anta. (p. 21).
Britto (2007) diz ainda que, segundo relatos orais, os caboclos costumam
copular com botos fêmeas nas beiras dos rios: “A preferência do caboclo pelos
botos fêmeas se pelo fato de terem uma configuração muscular interna da
genitália que se contrai repetidas vezes durante o coito, provocando o
prolongamento do prazer sexual” (p. 21). Mais uma vez, a sexualidade aparece na
lenda do Boto, agora com destaque ao prestígio do sexo da fêmea do Boto.
Portanto, os botos são símbolos de prazer sexual.
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Mas, antes de partirmos para a análise da lenda de acordo com a teoria
freudiana, vamos retornar à história de Savary (2006) que termina com a morte do
Boto: Luzia “chorou feito chuva ao ver o boto morto, flutuando no rio. Mas chorar
mesmo, de arrancar os cabelos, foi o que fizeram várias moças, ao longo das
margens” (p. 47). As moças têm suas vidas marcadas pela sedução do Boto.
Então, vamos começar a estabelecer os pontos de contato da lenda com a
psicanálise de Freud. O aspecto da sedução destaca-se na lenda do Boto e falar
deste aspecto na obra freudiana nos faz mencionar a teria da sedução, que foi
elaborada por Freud entre 1895 e 1897. Roudinesco & Plon (1998) dizem que a
palavra sedução remete “à idéia de uma cena sexual em que um sujeito
geralmente adulto, vale-se de seu poder real ou imaginário para abusar de outro
sujeito, reduzido a uma posição passiva: uma criança ou uma mulher, de modo
geral” (p. 696). No mesmo sentido, Laplanche & Pontalis (1992) afirmam que
essas cenas de sedução “podem ir de simples propostas por palavras ou por
gestos até o atentado sexual mais ou menos caracterizado, que o sujeito sofre
passivamente e com pavor” (p. 469).
Portanto, sedução em psicanálise nos alude à: “Cena real ou fantasística
em que o sujeito (geralmente uma criança) sofre passivamente da parte de outro
(a maioria das vezes um adulto) propostas ou manobras sexuais” (Laplanche &
Pontalis, 1992, p. 469). Esta sedução está sempre atrelada a uma relação de
domínio. Segundo Roudinesco & Plon (1998), a palavra sedução é “carregada de
todo peso de um ato baseado na violência moral e física que se acha no cerne da
relação entre a vítima e o carrasco, o senhor e o escravo, o dominador e o
dominado” (p. 696).
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A teoria da sedução foi criada por Freud para explicar a origem da neurose,
de acordo com esta teoria “a neurose teria como origem um abuso sexual real”
(Roudinesco & Plon, 1998, p. 696). Ao discutir a sedução na teoria psicanalítica,
Mezan (2005) disse: “Sabe-se que os esforços iniciais de Freud para descobrir a
etiologia das neuroses o conduziram a formular uma teoria que escandalizou os
médicos da época: os pais das histéricas as teriam seduzido quando pequenas”
(p. 33). Ou seja, toda neurose teria como causa a sedução por um adulto que se
inscreveria no psiquismo dos neuróticos como um trauma. Além disso, segundo
Laplanche & Pontalis (1992), esta teoria seria, para Freud, uma tentativa de dar
conta do mecanismo do recalque.
Freud deparou-se em sua clínica com histórias relatadas por pacientes
sobre cenas sexuais “envolvendo adultos e elas próprias, quando crianças”
(Mezan, 2005, p. 33). Em relação a isso, Roudinesco & Plon (1998) afirmam:
Escutando as histéricas do fim doculo que lhe confidenciavam essas
histórias, Freud deu-se por satisfeito com a prova do discurso delas e
construiu sua primeira hipótese do recalque e da causalidade sexual da
histeria com base na teoria da sedução. (p. 696).
Mas o discurso das histéricas não foi suficiente para embasar uma teoria,
na medida em que deixou Freud diante de duas verdades contraditórias: as
histéricas não estavam mentindo quando se diziam vítimas de uma sedução e, no
entanto, nem todos os pais eram violadores de crianças (Roudinesco & Plon,
1998). Então, “para dar coerência a tudo isso, Freud substituiu a teoria da
sedução pela da fantasia, o que pressupôs a elaboração de uma doutrina da
realidade psíquica baseada no inconsciente” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 697).
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Foi em 21 de setembro de 1897 que Freud anunciou seu abandono da
teoria da sedução, em uma carta endereçada a Fliess, na qual ele diz: “Confiar-
lhe-ei de imediato o grande segredo que lentamente comecei a compreender nos
últimos meses. Não acredito mais em minha neurotica (Freud, 1897/1996, p.
309). Assim, Freud desiste da teoria da sedução e começa a considerar outra
etiologia para as neuroses. Na carta a Fliess, ele demonstra seus motivos de
descrença, o primeiro relacionado ao êxito da análise: Freud (1897/1996) constata
a ausência de êxitos completos e a possibilidade de explicar os êxitos parciais de
outras formas. Segundo, Freud (1897/1996) percebe que não seria muito provável
uma dimensão tão difundida da perversão em relação às crianças: “a perversão
teria de ser incomensuravelmente mais freqüente do que a histeria, de vez que a
doença aparece quando uma acumulação de eventos e quando sobrevém
um fator que enfraquece a defesa” (p. 310). O terceiro motivo seria a descoberta
de que no inconsciente não indicações de realidade: “não se consegue
distinguir entre a verdade e a ficção investida de afeto” (Freud, 1897/1996, p.
310). Como quarto motivo, Freud (1897/1996) apresenta o seguinte
esclarecimento: “na psicose mais profunda, a lembrança inconsciente não vem à
tona, não sendo, pois, revelado o segredo das experiências da infância nem
mesmo no delírio mais confuso” (p. 310).
Os quatro motivos levantados por Freud (1897/1996) para justificar sua
dúvida no que diz respeito à teoria da sedução, levam-no a fazer o seguinte
questionamento ao seu amigo Fliess: “será que essa dúvida simplesmente
representa um episódio prenunciador de um novo conhecimento?” (p. 311). Para
Roudinesco & Plon (1998) esse novo conhecimento foi a descoberta da etiologia
100
das neuroses nas causas sexuais: “elas eram fantasísticas, mesmo quando havia
um trauma real, uma vez que o real da fantasia não é da mesma natureza que a
realidade material” (p. 697). Assim, a fantasia assume um lugar de destaque na
teoria freudiana.
Mas “se a teoria da sedução naufraga em 1897, o tema da sedução
permanece vivo, e Freud o retoma, por exemplo, nos Três Ensaios, ao falar da
sexualidade infantil” (Mezan, 2005, p. 34). Neste texto, Freud (1905/1996) afirma:
O trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte
incessante de excitação e satisfação sexuais vindas das zonas
erógenas, ainda mais que essa pessoa usualmente, a mãe
contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria vida
sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a
trata como o substituto de um objeto sexual plenamente legítimo. (p.
210).
Ou seja, a relação mãe e bebê é marcada pela sedução. Segundo Freud
(1905/1996), o filho é o substituto de um objeto sexual. Claro que Freud sabia o
impacto de sua afirmativa, pois ainda neste texto ele declara: “a mãe
provavelmente se horrorizaria se lhe fosse esclarecido que, com todas as suas
expressões de ternura, ela está despertando a pulsão sexual de seu filho e
preparando a intensidade posterior desta” (p. 211). Todavia, Freud (1905/1996)
destaca a importância da ternura materna: “se a mãe compreendesse melhor a
suma importância das pulsões para a vida anímica como um todo, para todas as
realizações éticas e psíquicas, ela se pouparia das auto-recriminações mesmo
depois desse esclarecimento” (p. 211). Portanto, se a mãe ensina ao seu filho a
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amar, ela está cumprindo sua tarefa de transformar o filho num ser humano capaz
de “realizar em sua vida tudo aquilo a que os seres humanos são impelidos pela
pulsão” (Freud, 1905/1996, p. 211).
Então, o estudo das zonas erógenas, nos Três ensaios (1905), leva Freud
novamente ao tema da sedução, mas, diferente da primeira teoria, nesta não
existe a ideia de um atentado sexual maciço, direto e brutal. A sedução aparece,
apenas, através do contato suave e difuso da mãe com o bebê e apesar da
palavra não figurar no texto dos Três ensaios (1905), ela continua presente,
sendo o veículo pelo qual transita a sexualidade (Mezan, 2005). Nesse sentido, o
pai deixa de ser o agente sedutor para ser substituído pela mãe e um elemento
essencial da sedução continua presente na teoria freudiana, “a saber, que a
sexualidade advém ao ser humano de fora para dentro, pelo contato com um
adulto, o qual inocula na criança sensações intensas” (Mezan, 2005, p.34). Assim,
o tema da sedução continua presente em toda a obra de Freud, mas não de
forma explícita, como afirma Mezan (2005): “o tema da sedução vai permanecer
de certo modo na sombra” (p. 35).
Talvez por essa dificuldade, Mezan (2005) tenha sentido necessidade de
recorrer ao dicionário Aurélio para saber qual significado de sedução aproxima-se
mais da definição psicanalítica. As seis acepções do termo sedução, enumeradas
pelo dicionário Aurélio, são: “1) inclinar artificiosamente para o mal ou para o erro,
desencaminhar; 2) enganar ardilosamente; 3) desonrar, recorrendo a promessas ,
amavios ou encantos; 4) atrair, encantar, deslumbrar; 5) levar à rebeldia, revoltar,
sublevar; 6) subornar para fins sediciosos” (Mezan, 2005, p. 21). Vamos seguir o
102
autor na sua investigação sobre a sedução para lançar luz sobre o nosso estudo
da lenda do Boto.
Mezan (2005) examina de perto cada acepção do termo sedução e destaca
as palavras artificiosamente e ardilosamente dos significados 1 e 2. Para ele,
artifício e ardil remetem à caça, “concebida como vitória da astúcia sobre a força”
(p. 21). Ou seja, o desencaminhar que pressupõe o termo sedução não acontece
pela força, e sim pela astúcia. Segundo Mezan (2005), “o sedutor/caçador se
servirá da dissimulação, recobrindo a armadilha com um aspecto inocente” (p.
22).
O terceiro sentido também está ligado à ideia de engodo, a promessa vem
seguida de desonra: “desonra que se estende no tempo, pois é mancha que não
se apaga, ferrete que jamais cicatriza, marcando indelevelmente a superfície do
corpo seduzido” (Mezan, 2005, p. 22). O sedutor recorre às promessas para iludir
a caça que mesmo que consiga escapar da armadilha, deixará uma parte de si
com o caçador. Mezan (2005) esclarece: “o seduzido aqui é alguém que se torna
portador de um ‘a menos’, qualquer que seja a modalidade em que o imaginemos,
física, moral, social, etc” (p. 22).
Mezan (2005) afirma que estas três primeiras acepções configuram a
dimensão ética da sedução: “sedutor aqui quer dizer trapaceiro e egoísta” (p. 22).
O Boto, assim como Don Juan, por esta visão, não seria admirável, pois usaria de
deslealdade para obter o que quer. No entanto, o quarto sentido da palavra
sedução, segundo Mezan (2005), remete ao aspecto estético: “atrair, encantar,
fascinar, deslumbrar são termos que sugerem prazer extremo, deleite, algo que
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não vai retirar nada do seduzido, mas ao contrário lhe acrescentar alguma coisa”
(p. 23).
as significações 5 e 6 referem-se à dimensão política, pois leva à
rebeldia, revolta, sublevar ou subornar para fins sediciosos implicam uma
oposição ao poder vigente. Estas significações também remetem ao universo das
regras sociais, pois incitar a revolta assume uma conotação nefasta se o juízo de
valor for proferido pelo partido da ordem. Mezan (2005) diz que: “o sedutor aqui é
aquele que recusa a boa ordem, a ordem natural, e pretende implantar outra,
antinatural” (p. 24). Então, as significações políticas da sedução se aparentam à
dimensão ética:
É precisamente a idéia de mentira que define o aspecto ético da
sedução, pois para ela refluem todas as demais representações
vinculadas a esta esfera: enganar, prometer e não cumprir, inclinar para
o erro sob as vestes da inocência, etc. (Mezan, 2005, p. 24).
Na visão de Mezan (2005), o sinônimo mais adequado de seduzir é
fascinar que converge para a noção de atrair irresistivelmente, mas ele adverte
que “fascinar contém fasces, o feixe latino que também origina fascismo” (p. 23) e
quer dizer atar, prender ou assujeitar. Mezan (2005) ressalta a ambiguidade
presente no termo sedução:
Tanto é forte esta ambigüidade constitutiva da sedução, que sua
dimensão estética a aparenta por um lado à sexualidade e por outro à
morte, por um lado ao prazer e ao deleite, por outro ao risco da
indiferenciação inerente a todo prazer forte demais. (p. 23).
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Os sentidos da sedução que mais se aproximam da psicanálise são os
relacionados com a dimensão estética, pois vinculam a sedução à sexualidade,
sem descartar suas significações mortíferas (Mezan, 2005).
O estudo das acepções de sedução, no Aurélio, leva Mezan (2005) ao
conhecimento da dupla face da sedução, com um aspecto ético e um estético.
Porém, a definição que chega mais perto do território da psicanálise é aquela que
se encontra fora do contexto moral. Portanto, concluímos que a psicanálise está
interessada na dimensão estética da sedução e voltamos à obra freudiana para
contemplar esta dimensão.
Em Observações sobre o amor transferencial, Freud (1915b/1996) diz que
“existe um fascínio incomparável numa mulher de elevados princípios que
confessa sua paixão” (p. 187). O fascínio da sedução aparece, então, como
ingrediente da relação transferencial entre o analista e o paciente. Neste artigo,
que constitui novas recomendações sobre a técnica da psicanálise, Freud discute
o caso de uma paciente enamorar-se de seu analista; e pontua que o analista não
tem nenhum motivo para orgulhar-se de tal conquista, pois “ele deve reconhecer
que o enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica e não deve
ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa” (p. 178). Porém, o amor
transferencial é uma consequência inevitável da situação analítica e Freud
(1915b/1996) afirma que o analista deve saber manejá-lo:
Ele tem de tomar cuidado para não se afastar do amor transferencial,
repeli-lo ou torna-lo desagradável para a paciente; mas deve, de modo
igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição. Deve manter um
firme domínio do amor transferencial, mas tratá-lo como algo irreal,
105
como uma situação que se deve atravessar no tratamento e remontar
às suas origens inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se
acha muito profundamente oculto na vida erótica da paciente. (p. 183).
Então, o analista não pode repelir o amor transferencial, ao contrário, ele
deve atraí-lo para si e manejá-lo adequadamente em função do restabelecimento
do paciente. Seduzir significa atrair e apartar e, segundo Mezan (2005), o analista
deve atrair o paciente para depois apartá-lo de si: “na terapia analítica, é preciso
ceder à sedução para poder dela se afastar: atração e separação, ilusão e
promessa, refinamento da sensibilidade de cada um dos dois parceiros” (p. 53).
Assim, a dimensão estética da sedução irrompe na teoria freudiana, destacando a
sensibilidade dos dois parceiros da análise: paciente e analista.
Em sua análise da sedução, Mezan (2005) estuda a ópera de Mozart
Don Giovanni e o texto de Kierkegaard El Erotismo Musical. Os dois autores
apresentam concepções diferentes de Don Juan: o primeiro, considera-o como o
sedutor, enquanto, o segundo observa a ausência de controle em suas ações.
Don Juan, na concepção de Kierkegaard, não tem intenção de domínio e por isso
não seduz, pois a sedução pressupõe “ganhar um poder sobre o objeto da
sedução” (Mezan, 2005, p. 25). Por sua vez, Mozart sublinha o Don Juan sedutor
e autoritário que possui uma lista mantida atualizada por seu criado: “uma vez
seduzida e ‘alistada’, a mulher perde completamente o interesse para ele”
(Mezan, 2005, p. 27).
Kierkegaard citado por Mezan (2005) diz que:
Para ser um sedutor, sempre é preciso um certo grau de consciência e
de reflexão, e então se pode falar com todo direito de astúcias, ardis e
106
modos falaciosos... Mas Don Juan não possui esta consciência. Por
isso, não seduz. Don Juan deseja, e este desejo tem efeitos sedutores.
Ele goza com a satisfação de seus desejos, mas logo que satisfez seus
desejos, se põe a buscar um novo objeto, e assim sucessivamente. (p.
26).
Nesse sentido, a ópera de Mozart revela um Don Juan dominador das
mulheres e não contempla a dimensão do seu desejo, apesar de sua velocidade
no tomar e no abandonar:
Mais do que a velocidade do seu desejo, portanto, é a ausência de uma
intenção de domínio que põe em questão o caráter sedutor do Don
Juan mozartiano; é o que Kierkegaard exprime com extrema elegância,
ao dizer que Don Juan “não seduz, deseja, e este desejo tem efeitos
sedutores”. (Mezan, 2005, p. 27).
Mezan (2005) conclui que Don Juan não precisa e não quer deleitar-se
com a lembrança de suas conquistas, ele afirma: “Don Juan não tem memória,
porque a memória supõe um respeito pelo outro, uma possibilidade de ser afetado
por ele, que em nada condiz com a dimensão narcísica que nele predomina
avassaladoramente” (p. 29). Então, nosso percurso junto a Mezan (2005), na
análise da sedução, nos leva ao caráter narcísico de Don Juan, e como estamos
estabelecendo relação entre o Don Juan e o Boto enquanto símbolos da sedução,
vamos abordar a partir de agora o narcisismo para avançarmos na compreensão
da lenda do Boto conforme a teoria freudiana.
Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução, Freud (1914b/1996) define
narcisismo como “o complemento libidinal do egoísmo do instinto de
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autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a
toda criatura viva” (p. 81). Ou seja, o ego investe libido nele mesmo conforme o
sua pulsão de autopreservação ou amor próprio. O indivíduo ama a si mesmo
como objeto de satisfação sexual: primeiro ele investe libido em si para depois
investir nos objetos externos. Essa libido é original do ego e parte dela é
transmitida posteriormente a objetos, mas fundamentalmente persiste no ego
(Freud, 1914b/1996).
O termo narcisismo foi inspirado no mito de Narciso da tradição grega:
Filho do deus Céfiso, Narciso era de uma beleza ímpar, atraiu o desejo de mais
de uma ninfa, mas repeliu Eco que ficou desesperada e implorou à deusa
Nêmesis por vingança. Assim, durante uma caçada, quando o rapaz fez uma
pausa junto a uma fonte de águas claras, ficou fascinado por seu reflexo.
Apaixonado por si mesmo, Narciso mergulhou os braços na água para abraçar
aquela imagem que não parava de se esquivar e torturado por esse desejo
impossível, chorou e acabou por perceber que ele mesmo era objeto de seu amor
(Roudinesco & Plon, 1998).
O narcisismo, amor de um indivíduo por si mesmo, pode ser atribuído a
todos os humanos como diz Freud (1914b/1996). Mas o pensador esclarece que
é possível discriminar o narcisismo da libido objetal quando uma catexia
objetal, ou seja, sem o investimento nos objetos externos, a libido objetal
permanece como libido do ego e confunde-se com o narcisismo. Esse conceito é
fundamental para psicanálise, pois com ele Freud acaba com a separação entre
pulsões do ego e pulsões sexuais, ao compreender, através do narcisismo, que
as pulsões do ego também são sexuais.
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Neste momento da teoria, Freud (1914b/1996) percebe também uma
oposição entre libido do ego e libido do objeto, ele diz: “também vemos em linhas
gerais, uma antítese entre a libido do ego e a libido objetal. Quanto mais uma é
empregada, mais a outra se esvazia” (p. 83). Mais tarde, esta oposição vai ser
substituída pela dualidade entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, fazendo
parte da pulsão de vida tanto a libido do ego quanto a libido objetal. Em outras
palavras, Freud, em Além do princípio do prazer (1920), mantém a relação de
equilíbrio entre as duas formas de investimento (no ego e nos objetos) e lhes dá a
mesma designação de pulsão de vida. Assim, a dinâmica psíquica vai responder
ao conflito entre as pulsões de vida e morte.
Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução, outro tema importante abordado
por Freud (1914b/1996) é o da escolha objetal que pode ser de dois tipos:
anaclítica ou narcisista. Na escolha anaclítica, o indivíduo elege seu objeto de
amor a partir do modelo de sua relação com as figuras parentais e; na escolha
narcisista, o indivíduo elege seu objeto de amor com base no modelo de sua
relação com ele mesmo (Laplanche & Pontalis, 1992). Para Freud (1914b/1996),
ambos os tipos de escolha objetal estão abertos a todos, embora cada indivíduo
possa mostrar preferência por um ou por outro:
Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais
ele próprio e a mulher que cuida dele – e ao fazê-lo estamos postulando
a existência de um narcisismo primário em todos, o qual, em alguns
casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua escolha objetal.
(p. 94).
109
Ressaltamos que a escolha de si mesmo como objeto sexual é originária
do ser humano e que o narcisismo primário nada mais é do que o primeiro
investimento libidinal que o sujeito faz em direção à sua própria pessoa. O estudo
da lenda do Boto através da aproximação do seu aspecto mais marcante, a
sedução, com a teoria psicanalítica, nos levou ao narcisismo. Logo, podemos
afirmar que o Boto é uma figura narcisista. O boto seduz e através de sua
sedução, ele ama a si mesmo. Esta assertiva está presente também no estudo de
Don Juan realizado por Mezan (2005): “ora, não é o que ocorre com Don Juan,
que acredita amar as mulheres, quando na verdade ama apenas a si mesmo?” (p.
42).
Don Juan possui uma significação narcísica inconsciente que transita com
suas promessas feitas para não serem cumpridas, e o sedutor idealiza e elogia de
tal forma as mulheres das quais se aproxima que sua própria paixão é um
gesto de narcisização (Mezan, 2005). O momento da sedução é um momento de
enorme concentração pulsional, “em que o objeto narcísico é projetado sobre o
objeto externo, e no qual este objeto externo se identifica com o objeto narcísico
que cintila à sua frente” (p. 43).
Mezan (2005) analisa a personagem Donna Elvira da ópera de Mozart e
ressalta que:
O desejo de Don Juan, em sua visada narcísica, a imantou; ele lhe
disse certamente que era a mais bela, a única, etc. No discurso de Don
Juan, ela aparecia como aquilo que o preencheria totalmente, e seu
engano foi acreditar nisso. (p. 43).
110
Donna Elvira acredita na promessa e assume o papel de deusa que lhe foi
destinado por Don Juan, ela passa a se ver sem falhas e capaz de corrigir a falha
do outro, nas palavras de Mezan (2005): “Donna Elvira passa a se ver como
preenchedora/preenchida, sem falhas e capaz de obturar a falha desejante do
outro a dupla que forma com Don Juan . . . reproduz a díade narcísica
mãe/filho” (p. 43).
Não podemos deixar de lembrar que quando falamos em narcisismo
estamos nos referindo tanto ao narcisismo primário primeiro investimento
libidinal em si mesmo quanto ao narcisismo secundário posterior investimento
libidinal retirado de objetos e depositado em si mesmo. Neste sentido, a díade
narcísica mãe/filho diz respeito ao narcisismo primário, pois nesta fase o bebê
ainda não se diferencia de sua mãe, ao contrário, ele identifica-se com ela.
Portanto, toda a satisfação pulsional obtida na relação mãe/bebê remete a um
estado de completude e perfeição. Entretanto, Mezan (2005) alerta que “a
imagem da completude narcísica . . . mascara uma angústia muito arcaica e
extremamente dilaceradora: a do abandono” (p. 43).
Quando a criança percebe que a mãe não faz parte de si, ela sente que
alguma coisa lhe falta e passa a investir sua libido na mãe enquanto objeto
externo. Todavia, a criança perde a sensação de completude e perfeição e sente-
se frustrada na falta do seu objeto. O narcisismo secundário acontece quando o
indivíduo tenta buscar em si mesmo a satisfação pulsional, que era antes obtida
na sua indiferenciação com a sua cuidadora. Então, o indivíduo retira o
investimento dos objetos externos e deposita em si mesmo como se estivesse
dizendo: eu estou completo e nada me falta.
111
Ora, a falta é a condição de ser sujeito em psicanálise e Mezan (2005)
adverte que a completude mascara o abandono. Ou seja, o sujeito psicanalítico é
aquele que deseja livrar-se do abandono, que deseja preencher a sua falta, que
deseja... Segundo Mezan (2005), a angústia do abandono é o que move tanto
Donna Elvira quanto Don Juan: “Donna Elvira perdeu uma parte de si mesma em
Don Juan, e quer recuperá-la a todo custo, mesmo que o preço seja muito alto”
(p. 44). Esta persistência na busca de algo sugere que alguma falta muito
profunda está sendo ou será obturada pela posse definitiva do objeto amado
(Mezan, 2005). Por sua vez, Don Juan também é movido pela angústia, diz
Mezan (2005): “a angústia, em Freud e na versão que mais parece a mais
sugestiva, é o resultado subjetivo da presença de um excesso não-controlado de
energia libidinal, o que é precisamente o traço dominante em Don Juan” (p. 45).
O desdobramento do narcisismo secundário, em que o sujeito nega a sua
falta e se acha num estado de perfeição, é o ego ideal. “Esse ego ideal é agora o
alvo do amor de si mesmo (self-love) desfrutado na infância pelo ego real” (Freud,
1914b/1996, p. 100). Freud (1914b/1996) afirma que o ego ideal, assim como o
ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor e que o homem se
mostra incapaz de abrir mão da satisfação desfrutada anteriormente:
Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância;
e quando, ao crescer, se perturbado pelas admoestações de
terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a
não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova
forma de um ego ideal. (p. 100).
112
Assim, o narcisismo opera sempre com uma dose de idealização. Don
Juan idealizava suas mulheres e seu desejo as enobrecia, as tornavam diferentes
do que eram, até um momento atrás, a seus próprios olhos (Mezan, 2005). O
sedutor não se altera quando seduz, mas o seduzido inscreve a cena em sua
memória e a partir desta lembrança modifica sua relação consigo mesmo. De
acordo com Mezan (2005), o desejo do sedutor “vem carregado de uma paixão de
tal forma abrasadora que transfigura o próprio alvo dela” (p. 29).
As mulheres seduzidas pelo Boto também se modificam, seja pela gravidez
ou pelo simples fato de serem alvo da sedução de um ser tão carregado de
perfeição. Nesta perspectiva, verificamos a idealização nos dois parceiros da
sedução, cada um obtendo desta relação um ganho narcísico. Mezan (2005)
explica: “o narcisismo tem a propriedade de idealizar seus objetos, de neles
projetar uma luz que os faz aparecer como perfeitos, à própria imagem do ideal
de perfeição que sustenta a vibração narcísica” (p. 29). Don Juan embelezava
todas as mulheres que lhe passavam pela frente e via em cada uma delas algo
que as tornavam desejáveis em grau supremo (Mezan, 2005). Da mesma forma,
entendemos que o Boto idealiza suas mulheres para alcançar seu ganho
narcísico, pois assim como Don Juan, o Boto busca a si mesmo em suas
conquistas.
Mas, no jogo da sedução cada um procura a si, o sedutor e o seduzido
estão em busca do objeto perdido, revestido de perfeição que traduz o narcisismo
primário: o si mesmo repleto de satisfação e completude. Contudo, o narcisismo
primário termina com o entendimento de que não possuímos o objeto, não somos
completos, algo nos falta e essa ferida narcísica nos acompanha ao longo da
113
vida. As mulheres seduzidas também estão à procura de si, por isso elas se
modificam no momento da sedução:
O momento passageiro em que cada uma delas foi para Don Juan a
mulher absoluta, a encarnação do eterno feminino, parece bastar para
que nela algo de muito profundo seja modificado, algo que o
psicanalista situaria na esfera das identificações. (Mezan, 2005, p. 29).
As mulheres seduzidas identificam-se com a imagem de perfeição que o
sedutor faz delas e resgatam seu narcisismo: “o jogo da sedução enraíza-se
assim numa reduplicação do narcisismo, tanto do agente quanto do objeto
seduzido” (Mezan, 2005, p. 29). Em relação aos agentes sedutores, Don Juan e
Boto, concluímos que eles também se identificam com a imagem de perfeição que
as mulheres fazem deles e também são seduzidos por elas. Mezan (2005) diz
que:
Em outros termos, a identificação narcísica funcionaria em ambos os
sentidos, e a “pilha de desejo” que é Don Juan se recarrega o tempo
todo no desejo daquelas a quem ele imanta. Pois assim como na física,
também em psicanálise o moto-perpétuo é impossível. Don Juan quer
realizar o desejo das mulheres que cobiça, e realizar-se na realização
deste desejo, a fim de cumprir seus fins inconscientes e poder manter
um mínimo de equilíbrio narcísico. (p. 45).
Portanto, conforme Mezan (2005), a identificação funciona em ambos os
sentidos, tanto do sedutor para o seduzido, quanto do seduzido para o sedutor.
Em outras palavras, a identificação acontece em cada um dos dois parceiros que
espera encontrar no outro o preenchimento do seu vazio. falamos
114
anteriormente que somos seres da falta, estamos sempre procurando algo que
nos complete e é importante pontuar que nunca completa, pois a falta nos é
constitutiva. O vazio, presente na dupla sedutor e seduzido, remete ao estado de
completude desfrutado nos primórdios da infância. Então, a perfeição dos tempos
primevos é desejada pela mulher e pelo Boto na lenda amazônica, de acordo com
o que Mezan (2005) disse a respeito do seu personagem: “Don Juan quer realizar
o desejo das mulheres que cobiça, e realizar-se na realização deste desejo” (p.
45).
Em suma, a figura do Boto faz referência ao narcisismo da psicanálise,
pois, na lenda, a identificação está carregada de desejo de completude e
perfeição. A busca por um ser encantado revela uma busca por si mesmo: o eu
perfeito da infância. O Boto não está apaixonado pelas mulheres, ele está
apaixonado por si mesmo, correspondendo ao amor pela sua imagem, tal qual
Narciso à beira da fonte de águas claras.
É importante ressaltar que quando falamos em Boto, não estamos nos
referindo ao animal cetáceo, mas sim ao rapaz encantado que seduz as mulheres
da região amazônica. Essa figura de rapaz bonito e sedutor tem relação com o
personagem de Don Juan, embora cada lenda tenha sua própria especificidade.
Logo, a análise de Don Juan nos aproxima da análise do Boto no que diz respeito
ao aspecto de maior destaque das duas histórias: a sedução.
Nos contos de fadas analisados por Bettelheim (1976/2007) e Corso &
Corso (2006), a sedução aparece em A Bela Adormeciada de maneira curiosa: a
princesa seduz o príncipe enquanto dorme. A sedução durante o período de
adormecimento acontece em outros contos de fadas como o da Branca de Neve,
115
mas escolhemos o conto da Bela Adormecida, pois este estado de sono nome
à personagem e nos intriga por esconder aspectos da sedução. Por exemplo, o
aspecto ativo da sedução é escondido pela passividade do sono.
Corso & Corso (2006) ressaltam um detalhe que liga as princesas Branca
de Neve e Bela Adormecida: “ambas, bem como suas antepassadas, passam por
um período de adormecimento fato que nome a uma delas e é o estado em
que seduzem os seus amados” (p. 76). Estranho fenômeno: os príncipes
apaixonam-se pelas princesas quando elas estão dormindo!
No conto A Bela Adormecida, Bettelheim (1976/2007) sublinha o
ensimesmamento que significa a atividade de envolver-se consigo mesmo:
O ensimesmamento, que, pela aparência externa, se assemelha à
passividade (ou a passar a vida dormindo), ocorre quando se dão no
interior da pessoa processos mentais íntimos tais que ela não tem
energia para uma ação voltada para o exterior. (p. 312).
Sabemos que o processo de dormir exige um desligamento do mundo
externo, ou seja, exige um narcisismo, exige que a catexia seja retirada dos
objetos e seja reinvestida no ego. Daí o ensimesmamento de Bela Adormecida
está relacionado ao narcisismo, pois como diz Bettelheim (1976/2007) “ela não
tem energia para uma ação voltada para o exterior” (p. 312). Então, o processo
mental em que Bela está envolvida é o narcisismo e, mais uma vez, encontramos
o narcisismo nas nuances da sedução.
Ainda sobre o estado do sono presente neste conto de fadas, recortamos o
que Freud (1916/1996) diz no artigo Suplemento Metapsicológico à Teoria dos
Sonhos: “o estado psíquico de uma pessoa adormecida se caracteriza por uma
116
retirada quase completa do mundo circundante e de uma cessação de todo
interesse por ele” (p. 229). Neste mesmo artigo, Freud (1916/1996) refere-se ao
narcisismo do estado de sono como uma condição do dormir. Agora,
retornaremos ao conto A Bela Adormecida, com a intenção de investigar como
Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006) analisaram a sedução sob o viés
psicanalítico.
No conto, um casal real espera ansiosamente por um herdeiro até o dia em
que uma aparece durante o banho da rainha e lhe anuncia que ela terá uma
filha. Quando a criança nasce, os reis dão uma grande festa de batizado e
convidam também as fadas, mas havia treze fadas em seu reino e eles tinham
doze pratos de ouro para servi-las, por isso foram obrigados a deixar uma das
fadas sem convite. Essa fada chega à festa mesmo sem ser convidada e
amaldiçoa a menina para que se fira num fuso e morra ao completar quinze anos,
mas uma das fadas ainda não havia dado o seu dom e converteu a morte em um
sono de cem anos. Quando completa quinze anos, a princesa se fere em um fuso
e toda a corte adormece com ela, e começa a crescer uma cerca de espinheiros
ao redor do castelo que o cobre inteiramente. Ao final do prazo do feitiço, surge
um príncipe que ao chegar perto do espinheiro, este se abre em flores e o deixa
facilmente passar e ao encontrar a princesa, ele fica subitamente apaixonado e a
beija quebrando, assim, o encanto. Após o beijo todo o reino desperta, e eles se
casam e vivem felizes para sempre (Grimm, 2005; Corso & Corso, 2006).
Corso & Corso (2006) chamam atenção para a passividade de Bela
Adormecida: “nenhuma princesa oferece tanta passividade a um homem como
ela” (p. 86). No momento em que o príncipe a beija, ela abre os olhos e desperta,
117
sorrindo para ele; e eles se entreolham cheios de admiração (Grimm, 2005). A
entrega de Bela é completa, assim como, a entrega das mulheres aos encantos
do Boto: sem questionamentos e sem hesitações. Corso & Corso (2006) dizem
ainda que:
Das princesas dos contos de fadas, a Bela Adormecida é a mais
passiva, a começar por seu nome. Sua característica principal é a
beleza inerte, objeto de cuidado e de contemplação por parte da Corte
e do seu príncipe, que vem a conhecê-la no sono enfeitiçado. (p. 86).
Segundo Corso & Corso (2006), “é extremamente sedutora a visão dos
rostos corados, os lábios entreabertos, a respiração tranqüila dos seres entregues
ao sono” (p. 86). Para os autores, apreciamos os amados dormindo e as mães
sentem ternura ao ver seus filhos adormecidos, porque o sono é um estado
extremamente sedutor e, nesta condição, o outro está à mercê de nossa
idealização.
O Boto, rapaz encantado da Amazônia, não se apaixona por mulheres
dormindo, mas, com certeza, por mulheres passivas que se entregam a ele sem
reservas ou dúvidas, simplesmente encantam-se e pronto. Todavia, Corso &
Corso (2006) alertam que a passividade não se define pela ausência de ação:
“uma atitude silenciosa pode ser extremamente ativa, basta, por exemplo,
silenciar sobre algo em que o interlocutor deseja muito uma resposta, para
perceber quanta atividade pode haver numa ausência de palavras ou atos” (p.
87).
Na versão dos irmãos Grimm, o espinheiro que cresceu em volta do castelo
impedia a passagem de muitos interessados por Bela Adormecida, porém,
118
quando chegou o escolhido, ele se abriu com facilidade. Corso & Corso (2006)
destacam que aquilo que espinhara tantos e que impedia o acesso à princesa,
depois ficou aberto como um corredor:
É difícil não pensar tais espinhos como uma proteção da princesa que
se escondia ao toque e ao olhar, as descrições enfatizam que a cerca
cobria todo o castelo. Ou seja, quando ela quiser, o caminho estará
franqueado para que o outro o faça ativamente. Portanto, é ativa na
decisão de abrir o flanco, deixar-se penetrar. (p. 87).
Em outras palavras, a passividade de Bela Adormecida e das mulheres
seduzidas pelo Boto revela um papel ativo exercido no inconsciente dessas
damas: o papel da fantasia de ser desejada, arrebatada e possuída sem ter de
fazer nada para provocar a cena (Corso & Corso, 2006). Porque a atividade, no
caso da sedução, tem suas consequências e exige da mulher um
amadurecimento. Bettelheim (1976/2007) afirma que “o beijo do príncipe rompe o
encanto do narcisismo e desperta uma feminilidade que até então não se
desenvolvera” (p. 322). Na perspectiva deste autor, o conto de fadas A Bela
Adormecida está relacionado com o desenvolvimento da feminilidade. Bettelheim
(1976/2007) diz o seguinte sobre o despertar sexual da personagem:
Muitos príncipes tentam chegar a Bela Adormecida antes que seu
tempo de maturação tenha acabado; todos esses pretendentes
prematuros perecem nos espinheiros. . . . Mas quando Bela
Adormecida finalmente adquire maturidade física e emocional e está
pronta para o amor, assim como para o sexo e o casamento, então
aquilo que antes parecera impenetrável cede. (p. 321).
119
Não é preciso muita imaginação para ver as conotações sexuais do conto,
a começar pelo fuso que desperta o interessa de Bela Adormecida: ao vê-lo ela
acha engraçado seu modo de funcionamento que se assemelha ao da cópula
(Bettelheim, 1976/2007). O sangramento também tem a ver com a menstruação e
a primeira cópula, pois, segundo Corso & Corso (2006), o sangue derramado pela
princesa ao manipular o fuso estabelece relação com os sangramentos
incontornáveis da condição de ser mulher: “o primeiro é a menarca, seguida das
regras mensais; e o segundo, para as que começam a ter vida sexual, é o
decorrente do rompimento do hímen” (p. 88).
Na lenda, a menstruação também é destacada: a mulher neste período
torna-se irresistível aos desejos do Boto. Portanto, a lenda do Boto também faz
referência à feminilidade. De acordo com Bettelheim (1976/2007), desde a história
de Vênus que “promove o despertar da moça ao fazer com que seu bebê sugue a
farpa de seu dedo” (p. 323), o assunto é o universo feminino: menstruar,
engravidar, parir e amamentar. Para Bettelheim (1976/2007), “essas histórias
enumeram experiências que pertencem apenas à mulher; ela deve passar por
todas antes de alcançar o auge da feminilidade” (p. 323).
Ainda acerca do conto de fadas A Bela Adormecida é importante ressaltar
que o sono é o isolamento narcísico da princesa. Nas palavras de Bettelheim
(1976/2007):
O longo sono da bela donzela também tem outras conotações. Quer se
trate de Branca de Neve em seu caixão de vidro ou de Bela Adormecida
em sua cama, o sonho adolescente de juventude e perfeição eternas é
apenas isso: um sonho. A troca da maldição original, que ameaçava
120
com a morte, por outra de um sono prolongado sugere que ambas não
são de todo diferentes. Se não queremos nos modificar e desenvolver,
podemos perfeitamente permanecer num sono semelhante à morte.
Durante o seu sono, a beleza das heroínas é uma beleza frígida; o seu
é o isolamento do narcisismo. (p. 321).
Em outras versões mais antigas do conto de fadas da Bela Adormecida, a
história continua mesmo depois do despertar da princesa, ao contrário da versão
dos irmãos Grimm, que terminam a narrativa tão logo a princesa desperta,
apaixonada pelo príncipe. Contudo, “mesmo na forma reduzida em que o conto
nos chegou, na qual Bela Adormecida é despertada pelo beijo do príncipe,
sentimos – sem que isso seja explicitado como ocorre nas versões mais antigas –
que ela é a encarnação da feminilidade perfeita” (Bettelheim, 1976/2007, p. 324).
A perfeição de Bela Adormecida remete ao ideal envolvido na dinâmica da
sedução. Os amantes idealizam-se reciprocamente como objetos perfeitos, ou
melhor, cada parceiro idealiza o outro como objeto capaz de preencher todo o
vazio ou obturar toda falta existente na condição humana. Mas esse ideal de
completude é viável apenas nos contos de fadas, pois, na vida real, esta prática é
impossível.
Na realidade material, o Boto não é um rapaz encantado que após o coito
volta ao rio e retoma sua forma animal, ele é, na verdade, um rapaz da cidade
que seduz as moças do interior; e ele pode até voltar ao rio depois do coito, mas é
para pegar um barco e retornar aos seus afazeres da capital. Contudo, nosso
objetivo não foi desvendar a realidade material da lenda, mas sim sua realidade
psíquica.
121
Além da concretude da lenda de servir como desculpa para o adultério de
mulheres casadas e para os filhos de paternidade desconhecida, o nosso estudo
procurou abordar a fantasia como realidade psíquica em contraste com a
realidade material, conforme Freud (1917/1996). Ou seja, o real da lenda, que
consiste no conteúdo de seu texto, denota uma realidade material, inclusive os
dados dessa realidade compõem as mensagens lendárias. Porém, o texto da
lenda também carrega aspectos fantasiosos e é desses aspectos que podemos
retirar os significados inconscientes, pois a fantasia se constitui enquanto fachada
e, por isso, esconde conteúdos latentes.
Então, a mensagem que não está explícita na lenda do Boto é a
mensagem do narcisismo, subjacente numa narrativa de sedução que engloba os
conceitos psicanalíticos de idealização e identificação. Por exemplo, no conto de
fadas A Bela Adormecida, a princesa representa todo o ideal de perfeição e o
príncipe ao se apaixonar por ela identifica-se com este ideal, da mesma forma
que se identificam, as mulheres de Don Juan, com o ideal de perfeição exprimido
por ele, o homem absoluto.
O Boto também representa o homem perfeito, ao qual nenhuma mulher
consegue resistir; mas o sedutor, seja ele Boto, Don Juan ou Bela Adormecida,
idealiza seu parceiro de modo que ele apareça como objeto de perfeição,
recordando o objeto para sempre perdido da infância. Este objeto foi o eu
(mãe/bebê) da criança, repleto de satisfação e completude, gerado no narcisismo
primário. Dessa forma, a sedução remete a este primeiro narcisismo, uma vez
que imagina seu objeto como perfeito.
122
Portanto, não as mulheres idealizam o Boto, como ele também as
idealiza, formando duas vias de identificações. Segundo Mezan (2005), a
assimilação do narcisismo funciona em ambos os sentidos e o sedutor recarrega-
se o tempo todo no desejo daquelas a quem ele imanta. Assim, sedutor e
seduzido recarregam-se da mesma energia pulsional: a libido narcísica. As
mulheres seduzidas identificam-se com o ideal de perfeição projetado nelas pelo
Boto sedutor e, por sua vez, o Boto identifica-se com o ideal de perfeição
projetado nele pelas mulheres que desejam realizar os seus desejos narcísicos,
através do desejo narcísico do Boto de amar a si mesmo. Logo, nessa dupla,
cada um procura a si como objeto perfeito, e a lenda do Boto transmite uma
mensagem inconsciente, latente ou oculta de narcisismo escondido num enredo
de sedução. No próximo capítulo vamos estudar a lenda da Cobra Norato sob o
enfoque da teoria freudiana.
123
LENDA DA COBRA NORATO:
ENTRE A DUALIDADE E AS PULSÕES DE VIDA E MORTE
Não tem ouvido falar numa cobra
enorme, que derruba barrancos,
afunda canoas, encalha navios e
tem feito muitos valentes agonizar
de fraqueza? Pois é a Cobra-Maria.
Quintino Cunha
Existe na Amazônia uma lenda sobre duas cobras: Norato e Maria. Mas a
lenda ficou conhecida na região somente por Cobra Norato, talvez por ser o nome
do herói da estória, pois, segundo contam, Norato é uma cobra boa enquanto
Maria é malvada e perversa. O curioso da lenda é que as duas cobras são irmãs
gêmeas, nascidas de uma índia que engravidou de um bicho encantado.
Conforme Carvalho (1930) no interior “a crendice de que as mulheres
concebem, às vezes, de um bicho encantado” (p. 19). Este autor diz que “estão
elas, às vezes, na roça, ou na beira do rio, sentem, de súbito, uma pancada no
ventre e... pronto! Estão grávidas! E quando nasce o filho é, quase sempre, uma
cobra!” (p. 19).
Então, foi assim que aconteceu com a mãe de Norato e Maria e é
importante ressaltar que ela batizou os filhos com nomes portugueses: Honorato e
Maria. Mas as cobras lendárias popularizaram-se como Norato e Maria Caninana.
Vejamos como Carvalho (1930) descreve a lenda:
Quando nasceram, a mãe (que era mulher como acima ficou
esclarecido) perguntou ao “curador” (Pajé) se devia matá-los ou jogá-
los no rio. O “curador”, então, respondeu que se os matasse ela
124
morreria também. E então a mãe soltou-os no rio onde se criaram. (p.
19).
Carvalho (1930) diz ainda que os irmãos andavam sempre juntos e
percorreram todos os rios da região, todavia, Honorato era bom e sempre visitava
a e, enquanto Maria Caninana era e nunca foi visitar sua mãe. Segundo
Carvalho (1930), a cobra Maria fazia sempre muitas travessuras que
desgostavam o irmão: “alagava canoas, mexia com os bichos, afogava viajantes,
cometia, enfim, toda sorte de maldades” (p. 19). Nesta descrição de Carvalho
(1930), Honorato mata Maria e fica destacada a vitória do bem sobre o mal:
“Tantos atentados fez ‘Maria’ que, um dia, ‘Honorato’ a matou e se viu livre dela”
(p. 20).
Monteiro (2006), em seu Roteiro do Folclore Amazônico, traz uma lenda,
relatada por Quintino Cunha, na qual a Cobra Maria é uma tapuia (índia)
encantada em uma cobra. Nessa lenda, a filha de um pajé
4
deixa-se levar pelo
amor de um emigrado e concebe dois filhos gêmeos, mas, nesta descrição de
Quintino Cunha, as crianças chamam-se José e Maria. Quintino Cunha citado por
Monteiro (2006) afirma: “Quando o velho pajé soube do caso, calou-se, e, quando
as crianças nasceram, matou a filha e atirou-as n’água, morrendo José; Maria foi
protegida de Iara
5
e hoje faz tudo quanto quer; é muita coisa na água” (p. 97).
Portanto, diferentemente da descrição de Carvalho (1930), esta narra a morte da
cobra macho, contudo, mais uma vez, a cobra fêmea aparece como sinônimo de
maldade:
4
“Médico, feiticeiro e conselheiro da tribo” (Mello, 1968, p. 299).
5
“Sereia dos rios” (Mello, 1968, p. 294).
125
Aparece sempre à noite. Os seus olhos são como os de Anhangá, duas
tochas de fogo. Não tem ouvido falar numa cobra enorme, que derruba
barrancos, afunda canoas, encalha navios, e tem feito muitos valentes
agonizar de fraqueza? Pois é a Cobra-Maria. (Quintino Cunha citado
por Monteiro, 2006, p. 97).
Outra descrição diferente é a de Farias Gama abordada por Monteiro
(1995) em seu livro Cobra Grande lenda-mito. Diferente, pois neste relato a cunha
(menina, moça) também engravida de um bicho encantado, mas os filhos não
nascem cobras e sim duas crianças de pernas ligadas, conforme Farias Gama
citado por Monteiro (1995) aconteceu assim:
Um pouco abaixo da boca do Tumiã, afluente do Purus, vivia em
tempos remotíssimos, um lenhador com sua família e uma filha
chamada mundica. A cunhã, mimosa demais, nada fazia, passando os
dias a banhar-se na beira do rio misterioso... De repente começou a
entristecer; andava pelos cantos, macambúzia, com os olhos pisados.
Chamaram o curandeiro e este mal botou os olhos nela, disse logo: -
Foi pegada de bicho. A casa se alvoroçou, mas não havia jeito;
cumprido o tempo da gravidez, nasceram duas crianças bonitinhas,
porém com as pernas ligadas. (p. 95).
Então, a transformação das crianças em duas cobras acontece quando
a mãe vai banhá-las no rio e de acordo com Farias Gama citado por Monteiro
(1995) ocorre da seguinte forma:
Começaram a se criar e assim que engatinharam, se rojavam pelo chão
como as cobras e um dia em que a mãe as levou ao banho,
126
escapuliram das suas mãos e desapareceram no rio. Passaram-se
muitos anos; a mãe dos fenômenos havia morrido, quando uns
viajantes viram-nas boiar, transformadas em cobras, porém com
algumas semelhanças humanas. (p. 96).
Após a transformação, Honorato e sua irmã, passaram a viver no rio, onde
desenvolveram características antagônicas: a irmã de Honorato era malvada,
enquanto ele era gentil e bondoso, Farias Gama citado por Monteiro (1995) diz:
“O macho, que se chamava Honorato, logo se revelou humanitário, ao contrário
de sua irmã que fazia mal pelo prazer de fazê-lo” (p. 96). Nesse relato, Honorato
também mata sua irmã, mas não por estar cansado de suas maldades, e sim por
ela ter fugido com outra cobra macho: “Um dia, passou pelos dois uma outra
cobra macho, com a qual a irmã de Honorato se ajuntou e fugiu, e ele,
perseguindo-os, matou-os. Ficando só, Honorato empreendeu uma vida de
aventuras, viajando por todos os afluentes do Amazonas” (p. 96).
Ou seja, além das cobras serem irmãs gêmeas e Honorato matar Maria
Caninana, conforme as demais descrições da lenda. No relato de Farias Gama
citado por Monteiro (1995), observamos uma relação incestuosa entre os irmãos,
pois Honorato mata Maria quando esta foge com outra cobra macho. Contudo, de
acordo com o que pontuamos na introdução, vamos analisar apenas o aspecto de
maior destaque da lenda: a dualidade entre o bem e o mal. Então, continuando na
descrição da lenda Cobra Norato, vamos ver como tal aspecto da dualidade
aparece na literatura infanto-juvenil de Leonardos (1993):
Honorato era o menino e Maria era a menina. Honorato cresceu, bom,
visitando sempre a mãe. Mas Maria Caninana não tinha nada de boa.
127
Andava com seu irmão por todos os muitos rios das estórias da
Amazônia sempre alagando canoas, sempre afogando viajantes. (p. 6).
Nessa narrativa, o fim da Cobra Maria também é a morte: “Fez tanta
maldade, tanta, que acabaram por matá-la num canto escuro da mata”
(Leonardos, 1993, p. 8). E, desta vez, não é Honorato que mata a irmã. As
descrições mais relevantes, como a de Cascudo (2001a, 2001b, 2002), sempre
abordam Maria sendo morta pelo irmão, significando a vitória do bem sobre o mal.
Cascudo (2001b) conta que “no paranã
6
do Cachoeiri, entre o Amazonas e o
Trombetas, nasceram Honorato e sua irmã Maria, Maria Caninana” (p. 25). Em
Geografia dos Mitos Brasileiros, Cascudo (2002) afirma ser a lenda da Cobra
Norato uma das mais populares tradições paraenses e no Dicionário do Folclore
Brasileiro (2001a), ele reforça a difusão da lenda por toda Amazônia e remete sua
origem ao estado do Pará, mais especificamente ao município de Óbidos.
Cascudo (2001b) prossegue:
A mãe sentiu-se grávida quando se banhava no rio Claro. Os filhos
eram gêmeos e vieram ao mundo na forma de duas serpentes escuras.
A tapuia batizou-os com os nomes cristãos de Honorato e Maria. E
sacudiu-os nas águas do paranã porque não podiam viver em terra.
Criaram-se livremente, revirando ao sol os dorsos negros, mergulhando
nas marolas e bufando de alegria selvagem. O povo chamava-os:
Cobra Norato e Maria Caninana. (p. 25).
Em relação aos aspectos singulares de cada cobra, Cascudo (2001b)
relata:
6
“Braço de rio caudaloso, separado deste por uma ilha” (Aurélio, 1986, p. 1267).
128
Cobra Norato era forte e bom. Nunca fez mal a ninguém. Vez por outra
vinha visitar a tapuia velha, no tejupar
7
do Cachoeiri. . . . Salvou muita
gente de morrer afogada. Direitou montarias e venceu peixes grandes e
ferozes. . . . Maria Caninana era violenta e má. Alagava as
embarcações, matava os náufragos, atacava os mariscadores que
pescavam, feria os peixes pequenos. Nunca procurou a velha tapuia
que morava no tejupar do Cachoeiri. . . . Cobra Norato matou Maria
Caninana porque ela era violenta e má. E ficou sozinho, nadando nos
igarapés, nos rios, no silêncio dos paranãs. (p. 25).
Walcyr Carrasco (2009) narra a lenda da Cobra Norato destacando uma
das maldades de Cobra Maria:
No porto da cidade de Óbidos, no Pará, havia uma igreja dedicada a
Sant’Ana, mãe de Nossa Senhora. Embaixo dela vivia uma serpente
encantada. Sua cabeça ficava sob o altar. O corpo mantinha-se
embaixo da terra. Dizia-se que, se a serpente acordasse, a terra se
moveria e a igreja cairia. (p. 19).
Cascudo (2001a) afirma que segundo a lenda, quando a Cobra de Óbidos
despertar será capaz de derrubar a cidade inteira: “Na lenda da Cobra Norato vê-
se que Maria Caninana, irmã do encantado, mordeu a Cobra de Óbidos, para que
ela destruísse a cidade. A cobra não acordou, mas estremeceu, causando uma
depressão na praça principal de Óbidos” (p. 146).
Carrasco (2009) continua narrando a maldade de Cobra Maria:
7
“Cabana de índios, menor que a oca” (Aurélio, 1986, p. 1676).
129
Não é que Maria Caninana mordeu a serpente, pelo gosto de ver a
igreja ruir? Foi um deus-nos-acuda. A igreja despencou assim que a
serpente encantada fez o primeiro movimento. A terra rachou. Toda
cidade tremeu! Cobra Norato brigou com a irmã. . . . As duas serpentes
gigantescas lutaram. Foi terrível. O rio transbordou. A população das
margens deixou suas casas com medo da movimentação das águas.
Ao final, Cobra Norato havia ferido Maria Caninana profundamente. A
malvada morreu. (p. 19).
Porém, a lenda da Cobra Norato não termina com a morte da Cobra Maria,
estamos nos concentrando nesta parte da lenda que é o convívio das duas
cobras, pois o que nos chamou mais atenção nesta narrativa foi o antagonismo
entre as irmãs gêmeas. Mas, nesta lenda, assim como na lenda do Boto, também
aparece o fenômeno sobrenatural da transformação do animal em ser humano e,
segundo Cascudo (2002), Honorato também demonstrava grande habilidade com
a dança:
Como todos os seres fabulosos das águas, Honorato era grande
dançarino e costumava aparecer inopinadamente nos bailes ribeirinhos,
encantando a todos pela sua elegância. Desaparecia para surgir,
cinqüenta léguas adiante, noutro baile, com igual sucesso. Numa
mesma noite dançara em Abaeté e meia-hora depois estava em Baião.
(p. 293).
Honorato, quando visitava sua mãe, deixava sua pele de cobra na margem
do rio, jantava e dormia no tejupar materno, depois de transformar-se num lindo
rapaz, todo vestido de branco (Cascudo, 2001a). De acordo com Cascudo (2002):
130
Na margem do rio ficava a pele enorme da cobra, esperando o regresso
de Honorato. Se alguém sacudisse um pouco de leite e desse uma
cutilada na cabeça da serpente, o bastante para que surgissem gotas
de sangue, o rapaz estaria livre do encanto para sempre. Quando
dormia em casa de sua mãe, ou durante os bailes, Honorato pedia
insistentemente que o livrassem do bruxedo. Ninguém tinha coragem
para enfrentar a cobra imensa, apavorante em sua imobilidade. Depois
de anos e anos, um soldado de Cametá, arrojou-se. Deitou leite na
boca da serpente e feriu-a com um golpe de sabre. Honorato voltou
definitivamente a ser um homem normal. (p. 293).
Assim, depois da morte da irmã, Norato “passou a viver sozinho, nadando
no silêncio das águas” (Carrasco, 2009, p. 20). Mas quando se transformava em
homem pedia para que o desencantasse, o que finalmente foi realizado por um
soldado de Cametá. Então, o desfecho da história foi a volta de Norato a sua
forma humana, vivendo sempre como um exemplo de bondade (Carrasco, 2009).
Entretanto, a lenda da Cobra Norato é derivada da lenda da Cobra Grande. Britto
(2007) afirma que “na Região Amazônica, mais precisamente entre os povos
ribeirinhos, a cobra representa uma figura lendária e fascinante, assumindo
diversas denominações: Boiúna, Mãe-d’água, Cobra Norato, Boitatá, Anaconda e
etc” (p. 36). Conforme este autor, “a Cobra Grande pode ter sido uma
transformação de uma sucuri ou mesmo de uma jibóia que, com o tempo,
abandonou a floresta, imergiu no rio e adquiriu fenomenal volume” (Britto, 2007, p.
36).
131
A lenda da Cobra Grande engloba várias outras lendas, dentre elas a lenda
da Cobra Norato, por isso precisamos saber mais sobre a lenda da Cobra Grande
para abordar a da Cobra Norato por completo. Nesta perspectiva, vamos verificar
o que Monteiro (2006) tem a nos dizer sobre a Cobra Grande:
Paranâmanha, Buiúna, Mbuiaçu, Cobra-grande, Buiaçu, Macará,
Maïua, são variantes do nome da gigantesca serpente de vida secular e
tradicional na bacia, que habita de preferência a baía de Buiuçu, no rio
Negro, acima de Manaus. É bicho de larga fama, que arrasta canoas
com tripulantes para o fundo, aparecendo geralmente à noite, de
bubúia, com os olhos de fogo varando a escuridão. (p. 95).
A Cobra Grande habita a parte mais funda dos rios, nos poções dos lagos,
ataca o gado perto dos igarapés e arrasta pessoas e animais para o fundo das
águas amazônicas. Monteiro (2006) acrescenta:
Dizem que às vezes se transforma em navio tripulado, deitando fumaça,
com comandante e imediato a gritar ordens e pedindo sondagem.
Aparece, contam-me várias pessoas, como um barco feericamente
iluminado, mas sem o panejamento e a presença de seres vivos a
bordo, continuando a tradição dos velhos navios fantasmas.
Desaparece, subitamente, com um ruído grosso de palhetas ou coisas
que o valha. (p. 95).
Von Martius registra, em 1819, relatos de índios sobre a Cobra Grande e
Cascudo (2001a) faz referência àquele trabalho:
Martius (Viagem pelo Brasil) registrou a força assombrosa do medo que
os indígenas possuíam do monstro, com as dimensões multiplicadas
132
pelo terror. Chamavam-no de Mãe-d’água e Mãe-do-rio, mas as
estórias mencionavam a voracidade da Cobra-grande, arrebatando
crianças e adultos que se banhavam. Recusavam-se a matar a cobra,
porque então era certa a própria ruína, bem como de toda a tribo. (p.
144).
Outra pesquisa que relata a lenda da Cobra Grande é o de Raimundo
Morais, assinala em seu livro Na planície amazônica de 1926. Nesse trabalho, a
Cobra Grande aparece como navio de vela e como transatlântico. Raimundo
Morais, citado por Monteiro (1995), narra que as pessoas enxergam o
transatlântico e tentam se aproximar, mas, quando chegam perto, todo o clarão
desaparece:
Fauce gigantesca tragou singularmente o majestoso transatlântico.
Asas de morcego vibram no ar, pios de coruja se entrecruzam, e um
assobio fino, sinistro, que entra pela alma, corta o espaço, deixando os
caboclos aterrados de pavor batendo o queixo de frio. Examinam aflitos
a escuridão em redor, entreolham-se sem fala, gelados de medo, e
volvem à beirada tiritando de febre, assombrados. Foi a boiúna, a cobra
grande, a mãe d’água que criou tudo aquilo, alucinando naquele terrível
pesadelo as pobres criaturas. (p. 99).
Britto (2007) admite a Cobra Grande como entidade do mal, tal a sua
voracidade e multiplicidade de transformação:
Ela toma outras formas para enganar o caboclo, como a de navio à vela
ou de um transatlântico que nas noites calmas rompe o silêncio com
estranho ruído de vapor, percebendo-se ao longe uma mancha escura
133
precedida de um nítido barulho de máquinas. Ouve-se o badalar
metálico de um sino e destacam-se as duas luzes brancas do mastro,
além da vermelha de bombordo e a verde de boreste. (p. 38).
Entretanto, Britto (2007) também ressalva que o lendário apresenta a
Cobra Grande como benéfica para a navegação dos rios amazônicos, “cujos
olhos tornam-se grandes faróis para orientar os embarcadiços nas noites escuras
e durante as tempestades” (p. 38). E considera a concepção de João de Jesus
Paes Loureiro, em sua Epifania da Cobra-Grande, de que o olho iluminado da
Boiúna é uma espécie de vitral do imaginário. Britto (2007) diz ainda que,
segundo o poeta paraense, “a luz é um símbolo ou metáfora que brilha em todas
as culturas, como reflexo da divindade, sinal do saber e manifestação da beleza”
(p. 38). O mito da Cobra Grande ou Boiúna (mboicobra, una preta) ou Boiaçu
(mboi cobra, açu – grande) faz parte do ciclo dos mitos d’água e de acordo com
Cascudo (2001a) a cobra é “um dos símbolos mais antigos e universais” (p. 144).
Compartilhando dessa ideia, Britto (2007) afirma que a cobra é um dos
símbolos mais universais e antigos da religiosidade: “entre os gregos, a cobra
pode ser uma transformação de Zeus (pai dos deuses) e, entre os cristãos, a
encarnação de Satã” (p. 36). Portanto, a cobra, ora, aparece como boa, ora, como
má. Para uns, representa Deus, para outros, representa Satanás. E assim, as
significações da cobra vão se intercalando entre o bem e o mal e nos revelam
sentidos da ordem divina e/ou satânica.
Neste ponto, podemos ressaltar que a cobra pode representar o bem e o
mal, ao mesmo tempo, ou seja, ela é uma figura capaz de suscitar significados
contraditórios, o que nos faz pensar em antinomia entre dois princípios: bem e
134
mal. Em Aurélio (1986), antinomia significa “oposição recíproca” (p. 132) e nós
sabemos que bem e mal são opostos. No entanto, a definição aureliana de
dualismo entra em maior consonância com o nosso estudo, pois o dualismo
presente na lenda da Cobra Norato nos remete ao dualismo pulsional proposto
por Sigmund Freud (1920/1996). Aurélio (1986) define dualismo como a
“coexistência de dois princípios ou posições contrárias” (p. 612), e essa ideia da
coexistência coadune com a nossa leitura da lenda da Cobra Norato, pois o
significado inconsciente que a lenda desperta no leitor tem relação com o conflito
pulsional vivido por ele em seu íntimo. Assim, um indivíduo não é somente Cobra
Norato, ou somente Cobra Maria, o indivíduo é Norato e Maria, ao mesmo tempo,
ou seja, o bem e o mal coexistem nele, conforme Freud (1920/1996).
Mas, antes de estabelecermos os pontos de contato entre a lenda em
questão e o texto freudiano de 1920, vamos destacar as características de Norato
e Maria, através de Carrasco (2009) e Antonaccio (2006). Carrasco (2009)
descreve Norato, dizendo que ele ajudava a todos: “Salvava os afogados, ajudava
cavalos quando queriam atravessar o rio a vau e não alcançavam o fundo e lutava
contra peixes ferozes. Sua presença era boa para todos os habitantes da região”
(p. 19). Da mesma forma, Antonaccio (2006) descreve: “Cobra Norato, embora
forte, era bondosa e nunca atacava ninguém. Costumava salvar quem se afogava
nos rios da região, ajudando pessoas e embarcações, além de matar ou afastar
peixes nocivos e agressivos ao ser humano” (p. 77).
Por sua vez, a Cobra Maria foi descrita por Carrasco (2009) como violenta
e malvada: “Fazia furos no casco das embarcações, pelo prazer de vê-las
afundando. Espantava os peixes pequenos para ninguém poder pescar. Se
135
alguém estava se afogando, puxava o coitado para baixo para engolir mais água”
(p. 19). E Antonaccio (2006) descreveu: “ao contrário da irmã, Maria Caninana era
cruel e assassina, perseguindo e devorando pessoas e outros bichos indefesos,
preparando armadilhas, e praticando as mais diversas maldades” (p. 77). Então, o
que esta lenda transmite ao nosso inconsciente? Que mensagem é essa que
atravessa os anos e continua sendo interessante na atualidade?
Para responder essas questões, vamos estudar o texto Além do princípio
de prazer, no qual Freud (1920/1996) introduz o conceito de pulsão de morte e
mantém o conflito pulsional no centro de suas investigações psicanalíticas. O
conflito é a marca da teoria freudiana do psiquismo humano e, neste texto, ganha
reforço, sendo estabelecido entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Para
introduzir esta nova dinâmica psíquica, Freud (1920/1996) afirma:
Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso tomado
pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de
prazer, ou seja, acreditamos que o curso desses eventos é
invariavelmente colocado em movimento por uma tensão desagradável
e que toma uma direção tal, que seu resultado final coincide com uma
redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de desprazer ou uma
produção de prazer. (p. 17).
Nesse sentido, Freud (1920/1996) relaciona o prazer e o desprazer à
quantidade de tensão presente na mente, de modo que o desprazer corresponde
a um aumento de tensão, e o prazer, a uma diminuição dessa tensão. Freud
(1920/1996) acredita na dominância do princípio de prazer na vida mental e
afirma que o aparelho psíquico “se esforça por manter a quantidade de excitação
136
nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante”
(p. 18). Mas Freud (1920/1996) também ressalta que o princípio de prazer pode
ser substituído pelo princípio de realidade:
Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio de
prazer é substituído pelo princípio de realidade. Esse último princípio
não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não
obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma
série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do
desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer.
(p. 20).
Portanto, nesta primeira parte, Freud (1920/1996) sublinha que o princípio
de realidade modifica o princípio de prazer, sob a influência das pulsões de
autopreservação do ego. Na segunda parte de Além do princípio de prazer,
Freud (1920/1996) destaca as neuroses traumáticas, porque elas produzem
sonhos que trazem o paciente de volta à situação de seu acidente, e isso chama
a atenção do teórico, pois abala a crença no teor realizador de desejos dos
sonhos. Por isso, o autor começa a refletir sobre as misteriosas tendências
masoquistas do ego e passa a examinar a brincadeira de uma criança que
consistia em arremessar o carretel para debaixo da cortina e depois puxá-lo de
volta. Porém, Freud (1920/1996) percebe que o ato de arremessar o carretel era
mais recorrente do que o ato de puxá-lo de volta, e isso também lhe chama a
atenção, que a criança repetia com maior frequência o ato desagradável do
desaparecimento do brinquedo e não o ato de retorno do mesmo. Assim, Freud
(1920/1996) demonstra sua finalidade de fornecer “provas do funcionamento de
137
tendências além do princípio de prazer, ou seja, de tendências mais primitivas do
que ele e dele independentes” (p. 28).
Na parte 3 do Além do princípio de prazer, Freud (1920/1996) observa o
comportamento dos neuróticos em suas vidas e na transferência e declara:
Se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no
comportamento, na transferência e nas histórias da vida de homens e
mulheres, não encontraremos coragem para supor que existe
realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o
princípio de prazer, como também ficaremos agora inclinados a
relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses
traumáticas e o impulso que leva as crianças a brincar. (p. 33).
Freud (1920/1996) considera a compulsão à repetição uma manifestação
do reprimido inconsciente e depara-se com um fato novo: a compulsão à
repetição rememora do passado experiências que não incluem possibilidade
alguma de prazer. Logo, a compulsão à repetição parece-lhe mais primitiva, mais
elementar e mais pulsional do que o princípio de prazer. Na parte 4, Freud
(1920/1996) volta a falar dos sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e
considera impossível classificá-los como realizações de desejos: “eles surgem
antes em obediência à compulsão à repetição” (p. 43).
A função que consiste em afastar quaisquer motivos que possam
interromper o sono, através da realização dos desejos dos impulsos
perturbadores, não é o único papel desempenhado pelos sonhos (Freud,
1920/1996). Essa afirmativa freudiana abre caminho para novas descobertas, na
medida em que a realização de desejo deixa de ser a única função dos sonhos.
138
Freud (1920/1996) pondera que todos os sonhos poderiam ser realizações de
desejos se existisse uma dominância do princípio de prazer na vida mental, mas o
que ele sugere neste texto de 1920 é que existe um além do princípio de prazer.
Ou seja, outra função para os sonhos em conformidade com esse além que,
diga-se de passagem, é mais primitivo e mais pulsional.
As neuroses traumáticas aparecem novamente na parte 5, do Além do
princípio de prazer, da seguinte forma:
O fato de a camada cortical que recebe os estímulos achar-se sem
qualquer escudo protetor contra as excitações provindas do interior
deve ter como resultado que essas últimas transmissões de estímulos
possuam uma preponderância em importância econômica e amiúde
ocasionem distúrbios econômicos comparáveis às neuroses
traumáticas. (Freud, 1920/1996, p. 45).
Em outras palavras, as neuroses traumáticas são comparadas a outros
distúrbios derivados de excitações provindas do interior do aparelho psíquico.
Agora, é importante ressaltar que Freud (1920/1996) descreve como “traumáticas”
quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas
para atravessar o escudo protetor. Então, precisamos saber como Freud
(1920/1996) concebe esse escudo protetor, para podermos continuar
acompanhando o seu estudo das neuroses traumáticas.
Freud (1920/1996) afirma que um organismo vivo em sua forma mais
simplificada possível, suspenso no meio de um mundo externo carregado com as
mais poderosas energias, seria morto se não dispusesse de um escudo protetor
contra os estímulos. E, depois, Freud (1920/1996) explica como esse pequeno
139
fragmento de organismo vivo adquire o escudo protetor: “sua superfície mais
externa deixa de ter a estrutura apropriada à matéria viva, torna-se a certo
ponto inorgânica e, daí por diante, funciona como um envoltório ou membrana
especial, resistente aos estímulos” (p. 38). Portanto, a morte da camada exterior
salva todas as camadas mais profundas de um destino semelhante e as energias
do mundo externo podem passar para estas camadas com um fragmento de
sua intensidade original (Freud, 1920/1996). Contudo, na neurose traumática os
estímulos são tão fortes que atravessam o escudo protetor.
Na parte 4, Freud (1920/1996) indica que “temos de distinguir entre dois
tipos de catexia dos sistemas psíquicos ou seus elementos: uma catexia que flui
livremente e pressiona no sentido da descarga e uma catexia quiescente” (p. 41).
Assim, ele considera a hipótese de Breuer de que as cargas de energia ocorrem
sob duas formas: livre ou vinculada. E, na parte 5, ele declara: “Não se pensará
que é precipitado demais supor que os impulsos que surgem dos instintos não
pertencem ao tipo dos processos nervosos vinculados, mas sim ao de processos
livremente móveis, que pressionam no sentido da descarga (p. 45). Ou seja, as
pulsões pertencem ao tipo dos processos livremente móveis: “É fácil ainda
identificar o processo psíquico primário com a catexia livremente móvel de Breuer,
e o processo secundário, com alterações em sua catexia vinculada ou tônica” (p.
45).
Em suma, a catexia livre obedece ao processo primário e a catexia
vinculada ao processo secundário. Desta forma, constitui tarefa do aparelho
mental sujeitar as excitações pulsionais e, segundo Freud (1920/1996), um
fracasso em efetuar essa sujeição provocaria um distúrbio análogo a uma
140
neurose traumática. Aqui, consideramos importante citar uma passagem de Além
do princípio de prazer, em que Freud (1920/1996) diz:
As manifestações de uma compulsão à repetição (que descrevemos
como ocorrendo nas primeiras atividades da vida mental infantil, bem
como entre os eventos do tratamento psicanalítico) apresentam em alto
grau um caráter instintual e, quando atuam em oposição ao princípio de
prazer, dão a aparência de alguma força ‘demoníaca’ em ação. (p. 46).
Primeiro, é importante deixar claro que a dominância do princípio de prazer
pode avançar sem obstáculo depois que ocorre a sujeição das excitações, ou
seja, quando as excitações deixam de ficar livres dentro do aparelho para
tornarem-se ligadas ou vinculadas. Por isso, Freud (1920/1996) afirma que as
manifestações de uma compulsão à repetição apresentam em alto grau um
caráter pulsional, pois os impulsos que surgem das pulsões correspondem às
excitações não vinculadas ou livres.
Segundo, as pulsões que aparentam alguma força demoníaca em ação,
nos lembram a Cobra Maria que agia de forma demoníaca, causando medo em
todos os habitantes da região amazônica. Então, esse tipo de pulsão que visa à
morte está relacionado com os atos do mal, enquanto o tipo de pulsão que propõe
a vida está ligado aos atos do bem. Nesse sentido, a Cobra Norato estabelece
relação com a pulsão de vida. Mas, antes de relacionarmos a lenda em questão
ao dualismo pulsional instituído por Freud (1920/1996) - em Além do princípio do
prazer - vamos ver como ele define as pulsões de vida e morte.
A pulsão é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado
anterior de coisas (Freud, 1920/1996, p. 47). Essa definição refere-se à pulsão
141
de morte, pois, de acordo com Freud (1920/1996), tal pulsão exprime a natureza
conservadora da substância viva: “essa visão dos instintos nos impressiona como
estranha porque nos acostumamos a ver neles um fator impelidor no sentido da
mudança e do desenvolvimento” (p. 47). Ao constatar a existência da pulsão de
morte, Freud (1920/1996) admite a estranheza da descoberta e deixa em
oposição as pulsões que restauram um estado anterior de coisas e as pulsões
que impelem no sentido da mudança e do desenvolvimento. A pulsão de vida é
exatamente a que impulsiona no sentido do progresso e da produção de novas
formas (Freud, 1920/1996).
Freud (1920/1996) defende o resultado de sua pesquisa sobre a pulsão de
morte e diz:
Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o
que vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico,
seremos então compelidos a dizer que o objetivo de toda vida é a
morte’, e, voltando o olhar para trás, que as coisas inanimadas
existiram antes das vivas’. (p. 49).
Ou seja, antes de existir a pulsão de vida, existe a pulsão de morte; a
pulsão de morte vem primeiro, é mais primitiva, mais conservadora e menos
elaborada; é uma pulsão que não possui vinculações, obedece ao processo
primário e impele à repetição (Freud, 1920/1996). Essas conclusões ajudam
Freud (1920/1996) a compreender a compulsão à repetição, que surge no
tratamento psicanalítico dos neuróticos, além de explicar a repetição presente na
brincadeira das crianças e nos sonhos das neuroses traumáticas.
142
Portanto, podemos, agora, estabelecer alguns pontos de contato da lenda
Cobra Norato com a obra freudiana, e mais especificamente, com o texto de
1920, Além do princípio de prazer. A Cobra Norato nos remete às pulsões que
levam ao progresso, ao avanço e ao novo; suas ações buscam as possibilidades
construtoras, prósperas, e estão sempre voltadas para a mudança e o
desenvolvimento. Por exemplo, a Cobra Norato protege os peixes pequenos e
luta para conservá-los em abundância, dessa forma, ela ajuda os pescadores. No
entanto, se os pescadores dependessem da Cobra Maria, não sobraria nenhum
peixe para a pesca, porque a Cobra Maria devorava todos. Então, a Cobra Maria
nos remete às pulsões que impelem ao que é antigo, ao que é primitivo, ao que
não muda, ao que se repete, enfim, ela nos remete às pulsões de
autoconservação.
Mesmo estando perto das conclusões de nossa análise da lenda Cobra
Norato, temos que acompanhar Freud (1920/1996) no seu percurso rumo ao
dualismo pulsional do psiquismo. No final da parte 5, ele insere em sua discussão
as pulsões sexuais e, por um momento, gera um problema que mais tarde será
solucionado. O problema ao qual nos referimos diz respeito à oposição entre
pulsões sexuais e pulsões do ego. Freud (1920/1996) insere o assunto
recorrendo, mais uma vez, aos organismos elementares e, através do estudo das
células germinais, ele chega à compreensão das pulsões sexuais. Sobre as
células germinais, Freud (1920/1996) diz:
Sob condições favoráveis, começam a desenvolver-se, isto é, a repetir
o desempenho a que devem sua existência, e, ao final, mais uma vez
uma parte de sua substância leva sua evolução a um término, ao passo
143
que outra parte reverte novamente, como um germe residual novo, ao
início do processo de desenvolvimento. Essas células germinais,
portanto, trabalham contra a morte da substância viva e têm êxito em
conseguir para ela o que podemos encarar como uma imortalidade
potencial, ainda que isso possa significar nada mais do que um
alongamento da estrada para a morte. Temos de considerar como
significante, no mais elevado grau, o fato de essa função da célula
germinal ser reforçada, ou tornada possível, se ela fundir-se com
outra célula similar a si mesma e, contudo, diferente dela. (p. 50).
Ou seja, Freud (1920/1996) está dizendo que a célula, ao atingir um
determinado desenvolvimento, divide-se em duas partes: uma parte que caminha
para o fim e outra parte que caminha para o início de uma nova jornada. E, ele
ressalta que esta célula, que vai iniciar um novo desenvolvimento, conjuga-se
com outra para preservar a própria vida por um longo período. Nesse sentido, as
células germinais têm a função de prolongar a vida (Freud, 1920/1996). Então, as
pulsões que cuidam da parte sobrevivente da célula, constituem o grupo das
pulsões sexuais. Enquanto, as pulsões que conduzem a outra parte da célula à
morte, constituem o grupo das pulsões do ego. Assim, Freud (1920/1996)
estabelece a oposição entre as pulsões sexuais e as pulsões do ego:
E ainda que seja certo que a sexualidade e a distinção entre os sexos
não existiam quando a vida começou, permanece a possibilidade de
que os instintos que posteriormente vieram a ser descritos como
sexuais, possam ter estado em funcionamento desde o início, e talvez
não seja verdade que foi apenas em época posterior que eles
144
começaram seu trabalho de oposição às atividades dos ‘instintos do
ego’. (p. 51).
Consequentemente, as pulsões de morte são pulsões do ego, pertencentes
ao grupo das pulsões que se precipitam para atingir o objetivo final da vida. E, as
pulsões de vida são pulsões sexuais, pertencentes ao grupo das pulsões que se
atiram para trás “a fim de efetuar nova saída e prolongar assim a jornada” (Freud,
1920/1996, p. 51).
No início da parte 6, Freud (1920/1996) faz um resumo de suas
descobertas:
A essência de nossa investigação até agora foi o traçado de uma
distinção nítida entre os ‘instintos do ego’ e os instintos sexuais, e a
visão de que os primeiros exercem pressão no sentido da morte e os
últimos no sentido de um prolongamento da vida. (p. 55).
Contudo, ainda na parte 6, ele declara que “a oposição original entre os
instintos do ego e os instintos sexuais mostrou-se inapropriada” (p. 62). Então,
para atravessar essa passagem da teoria freudiana, que nos parece complicada,
vamos chamar, para nossa discussão, o psicanalista André Green que faz uma
leitura primorosa da obra de Freud. Em seu livro Narcisismo de vida, narcisismo
de morte, Green (1988) diz o seguinte sobre Freud:
No decorrer de sua obra, uma certeza inabalável sustenta seu
procedimento: a sexualidade. Mas com a mesma segurança, considera
também que um fator anti-sexual funda o caráter conflitivo do aparelho
psíquico. Este papel será designado, de início, às pulsões ditas de
autoconservação. (p. 34).
145
Freud (1920/1996) mantém e até reforça o caráter conflitivo do aparelho
psíquico, e através do estudo das células, ele formula a oposição entre as pulsões
sexuais e as pulsões do ego. E, entre essas pulsões do ego, ele reserva um lugar
de destaque para as pulsões que servem à autoconservação do indivíduo.
Podemos acompanhar a lógica freudiana nesta citação:
O ego encontrou então sua posição entre os objetos sexuais e
imediatamente recebeu o lugar de proa entre eles. A libido que assim
se alojara no ego foi descrita como ‘narcisista’. Essa libido narcisista era
também, naturalmente, uma manifestação da força do instinto sexual,
no sentido analítico dessas palavras, e necessariamente tinha de ser
identificada com os instintos de autoconservação, cuja existência fora
reconhecida desde o início. Assim, a oposição original entre os instintos
do ego e os instintos sexuais mostrou-se inapropriada. (Freud,
1920/1996, p. 62).
Portanto, a oposição entre pulsões do ego e pulsões sexuais não pode
existir porque o ego também é objeto sexual. Então, Freud (1920/1996) resgata
sua teoria da libido e insiste em dizer que a libido narcisista é a libido investida no
ego, dito de outra forma, as pulsões do ego são também pulsões sexuais e, por
isso, elas não podem ser opostas. Fica subjacente, nesta perspectiva, a oposição
entre libido do ego e libido do objeto, como nos atesta Green (1988): “A libido
narcisista oposta à libido objetal ocupa uma posição intermediária entre a primeira
das oposições postuladas, que distingue pulsões de autoconservação e pulsões
sexuais, e a última, confrontando as pulsões de vida e as pulsões de morte” (p.
55).
146
Green (1988) encara a construção freudiana da dinâmica psíquica em três
tempos: primeiro tempo, oposição entre pulsões de autoconservação e pulsões
sexuais; segundo tempo, concorrência entre libido narcisista e libido objetal e;
terceiro tempo, conflito entre pulsões de vida e pulsões de morte. No entanto, de
acordo com Green (1988), a sexualidade é uma constante na teoria freudiana:
“Freud formula uma constante: a sexualidade está em toda a sua obra; dada a
posição eminentemente conflitiva desta, ele busca, tateando, o que pode opor a
ela: a pulsão anti-sexual” (p. 55).
A pulsão de morte ou pulsão anti-sexual, contrastada com a pulsão sexual,
revela sua especificidade de ser um impulso a restaurar um estado anterior de
coisas ou de ser uma pulsão que se precipita para atingir o objetivo final da vida:
a morte. E, a pulsão de vida, ao contrário, exerce pressão no sentido de um
prolongamento da vida. O exemplo, utilizado por Freud (1920/1996), das células
germinais demonstra que uma parte delas morre e a outra vive e rejuvenesce
através da conjugação com outra célula, assim, elas ganham uma aparência de
imortalidade. Green (1988) fala dessa questão da imortalidade por meio do duplo
de Rank:
O Eu pode se encontrar investido do sentimento de imortalidade, como
Rank o mostra a propósito do duplo. Dupla existência, mas também
dupla estrutura do Eu: mortal e imortal quando se identifica a essa sua
parte que é transmitida na sua descendência, mas que inclui no
presente pela constituição do gêmeo fantasmático, para quem a morte
não existe. (p. 56).
147
O duplo, mortal e imortal, faz parte dos significados da lenda da Cobra
Norato, pois se uma, a Cobra Maria, apresenta uma tendência para a morte e a
outra, a Cobra Norato, tende para a preservação da vida, podemos supor que as
duas constituem o gêmeo fantasmático de que fala Green (1988).
Freud (1920/1996) afirma que “a libido de nossos instintos sexuais
coincidiria com o Eros dos poetas e dos filósofos, o qual mantém unidas todas as
coisas vivas” (p. 61). Por sua vez, Green (1988) diz que “há, portanto, um Eu
tanatofílico ou, para ficar no universo poético de Keats, um Eu half in love with
death (metade apaixonado pela morte)” (p. 56). Nesse sentido, Eros e Tânatos
estão lutando um contra o outro, desde o início da vida (Freud, 1920/1996).
Freud (1920/1996) não desiste de sua teoria do conflito pulsional inerente
ao aparelho psíquico e pontua:
Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda
mais definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a
oposição como se dando, não entre instintos do ego e instintos sexuais,
mas entre instintos de vida e instintos de morte. (p. 63).
A dualidade presente na lenda da Cobra Norato, que foi o aspecto de maior
destaque do nosso estudo, relaciona-se com a dualidade pulsional do esquema
freudiano e transmite uma mensagem ao inconsciente de tendências que se
encontram em oposição desde os tempos mais remotos. A novidade, para qual a
pulsão de vida direciona-se, faz referência à busca incessante de Cobra Norato
pelo desenvolvimento e pela mudança. Ao passo que, o caráter retrógrado de
Cobra Maria alude ao antigo da pulsão de morte que se repete na busca por um
estado anterior de coisas.
148
Mas ainda é importante citar Green (1988) quando ele monta um mural
com a sequência de todo o desenvolvimento psíquico: cena primária, separação
dos parceiros, gravidez, parto, relação com o seio, constituição do Eu, fixações
pré-genitais em relação com o objeto, triangulação edipiana, entrada no mundo
cultural, sublimação, adolescência, escolha objetal e, novamente, a cena primária.
Então, Green (1988) conclui que “este mural poderia parecer normativo; é, de
fato, apenas o percurso da repetição. Vistas com um certo recuo, as variações
(culturais ou individuais) são negligenciáveis. De qualquer forma, a morte está no
fim do percurso . . .” (p. 58).
Por falar em fim de percurso, vejamos as considerações finais de Freud
(1920/1996), na parte 7 de Além do princípio de prazer:
Descobrimos que uma das mais antigas e importantes funções do
aparelho mental é sujeitar os impulsos instintuais que com ele se
chocam, substituir o processo primário que neles predomina pelo
processo secundário, e converter sua energia catéxica livremente móvel
numa catexia principalmente quiescente (tônica). (p. 73).
Freud (1920/1996) nos remete à função do aparelho psíquico de sujeitar as
catexias livremente móveis para diminuir as excitações, ou seja, para diminuir o
desprazer, pois o prazer é atingido quando as excitações são reduzidas a zero, ou
pelo menos, quando se mantêm constantes. Portanto, a energia catéxica livre
produz desprazer, enquanto a energia catéxica vinculada promove o prazer, no
sentido de que a sujeição estabelece um vínculo capaz de conduzir a excitação
até a sua descarga. Além deste fato, Freud (1920/1996) também destaca:
149
Outro fato notável é que os instintos de vida têm muito mais contato
com nossa percepção interna, surgindo como rompedores da paz e
constantemente produzindo tensões cujo alívio é sentido como prazer,
ao passo que os instintos de morte parecem efetuar seu trabalho
discretamente. O princípio de prazer parece, na realidade, servir aos
instintos de morte. (p. 74).
Ora, o princípio de prazer serve às pulsões de morte porque estas pulsões
estão voltadas para a redução dos estímulos, o pulsões conservadoras que
tentam retornar incessantemente a um estado de coisas antigo. As pulsões de
morte mantêm guarda contra os aumentos de estimulação provindos de dentro do
aparelho psíquico, enquanto as pulsões de vida produzem essas tensões e
surgem como rompedoras da paz. Sobretudo, Freud (1920/1996) fala da pulsão
de morte:
É verdade que mantém guarda sobre os estímulos provindos de fora,
que são encarados como perigos por ambos os tipos de instintos, mas
se acha mais especialmente em guarda contra os aumentos de
estimulação provindos de dentro, que tornariam mais difícil a tarefa de
viver. (p. 74).
Então, o princípio de prazer está a serviço das pulsões de morte, pois as
pulsões de vida geram desprazer à medida que, ao invés de impulsionarem para
trás, para um estado de coisas antigo, elas impulsionam para o novo, para a
mudança e para o progresso, e, isso gera desprazer porque aumenta a tensão no
aparelho psíquico. O princípio de prazer, nas palavras de Freud (1920/1996), “é
uma tendência que opera a serviço de uma função, cuja missão é libertar
150
inteiramente o aparelho mental de excitações, conservar a quantidade de
excitação constante nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível” (p. 73).
O resultado de uma análise nos leva, muitas vezes, a algumas surpresas.
Dizemos isto, pois não suspeitávamos, ao relacionar Cobra Norato e pulsão de
vida, encontrar um representante inconsciente do desprazer, já que a atividade de
Cobra Norato, de preservação da vida, produz tensão no aparelho psíquico.
Desconfiávamos menos ainda, ao relacionar Cobra Maria e pulsão de morte, que
encontraríamos um representante inconsciente do prazer, pois a atividade de
Cobra Maria que conduz à morte alivia o aparelho psíquico, à medida que busca
atingir o objetivo final da vida: a morte.
Nossa admiração, talvez se deva ao fato de termos feito antecipadamente
uma associação entre o bem e o prazer, e o mal e o desprazer, mas devemos
corrigir esse pensamento errôneo, apoiado no senso comum, e substituí-lo pelo
conhecimento científico da psicanálise que relaciona o prazer e o desprazer à
quantidade de excitação. Assim, o desprazer corresponde “a um aumento na
quantidade de excitação, e o prazer, a uma diminuição” (Freud, 1920/1996, p. 60).
Portanto, as boas ações de Cobra Norato relacionam-se com as pulsões de
vida e representam o desprazer, pois aumentam a quantidade de excitações, e
por sua vez, as más ações de Cobra Maria relacionam-se com as pulsões de
morte e representam o prazer, pois diminuem a quantidade de excitações. Porém,
uma ação não representa somente a pulsão de vida ou somente a pulsão de
morte, em outras palavras, não podemos dizer que uma determinada ação
simboliza a pulsão de morte e outra ação específica simboliza a pulsão de vida,
151
pois essas pulsões são complementares, elas operam em conjunto, elas não se
separam.
No conteúdo da lenda as pulsões são representadas por duas cobras que
se separam, mas a mensagem inconsciente que subjaz neste conteúdo é uma
mensagem de dualidade pulsional que se manifesta no íntimo de cada indivíduo.
Seria fácil dizer que Cobra Norato representa o bem e que Cobra Maria
representa o mal, mas para psicanálise o ponto fundamental é a questão da
dualidade pulsional. Então, vamos estudar como Bettelheim (1976/2007) analisou
essa questão nos contos de fadas.
Segundo Bettelheim (1976/2007) os contos de fadas que abordam a
dualidade, facilitam o conhecimento dos processos interiores, pois ilustram nossa
natureza dual. Esses contos, normalmente, retratam as aventuras de dois irmãos:
Tais contos de fadas começam com uma falta de diferenciação original
entre os dois irmãos: eles vivem juntos e sentem de modo semelhante;
em suma, são inseparáveis. Eis que, porém, num dado momento do
crescimento, um deles inicia uma existência animal, e o outro não. No
final do conto, o animal é devolvido a sua forma humana; os dois se
reúnem para nunca mais serem separados. (Bettelheim, 1976/2007, p.
116).
Na lenda da Cobra Norato essa falta de diferenciação é demonstrada pelas
cobras que o gêmeas, porém, os dois irmãos, Norato e Maria, iniciam uma
existência animal e passam a se diferenciar pelas atitudes, respectivamente,
prósperas e regressivas. No final da narrativa, os dois não se reúnem, ao
contrário, um mata o outro. Mas, da mesma forma do conto, desaparece o irmão
152
de tendências animalescas e destaca-se o irmão que possui tendências mais
humanas. Para Bettelheim (1976/2007), “é difícil conceber uma imagem mais
vívida, sucinta e imediatamente convincente de nossas tendências contraditórias.
Mesmo os primeiros filósofos encaravam o homem como possuindo uma natureza
ao mesmo tempo humana e animal” (p. 115).
Bettelheim (1976/2007) refere-se ao conto dos irmãos Grimm O irmão e
a irmã e diz que “durante grande parte de nossa vida, quando não conseguimos
alcançar ou manter uma integração interior, esses dois aspectos de nossa psique
lutam um contra o outro” (p. 115). Nesse sentido, a luta de Norato e Maria
simboliza o conflito interior das pulsões de vida e morte. Assim, relacionamos a
lenda da Cobra Norato com a teoria freudiana no que diz respeito ao aspecto dual
presente na narrativa folclórica. Mas ressaltamos que as pulsões de vida e morte
operam no indivíduo ao mesmo tempo, elas não se anulam, elas complementam-
se e alimentam-se mutuamente. A seguir, faremos nossas considerações finais.
153
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A lenda inventada vira vida.
E nunca mais se acaba.
Thiago de Mello
Compreender os significados inconscientes das lendas amazônicas
constituiu o objetivo geral da pesquisa desenvolvida na interface da psicanálise
com o folclore. Os objetivos específicos foram: descrever as lendas do
Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato; analisar as três lendas selecionadas
conforme a teoria freudiana e; comparar o resultado da análise com o que
Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006) obtiveram no estudo psicanalítico
dos contos de fadas.
A aproximação das lendas amazônicas com os contos de fadas deu-se em
função da definição de folclore de Megale (2003). Segundo a pesquisadora,
lendas e contos são manifestações folclóricas e de acordo com Cascudo (2001a)
essas manifestações ocorrem no contexto do maravilhoso e do sobrenatural.
Então, fizemos uso da acepção de Todorov (2007) acerca do maravilhoso e
inserimos seu pensamento no entendimento dos eventos sobrenaturais dos
contos e lendas.
A intersecção da psicanálise com o folclore não é nova, pois Freud, em
1913, falava sobre A ocorrência em sonhos de material oriundo de contos de
fadas e estabelecia relações entre os sonhos e as narrativas infantis. Nesse
artigo, Freud (1913a/1996) demonstra o efeito das histórias contadas às crianças
na constituição psíquica das mesmas. Nesse sentido, o folclore enquanto
154
manifestação do psiquismo carrega conteúdos manifestos e latentes e a lenda,
assim como o conto, pode ser analisada conforme o método de investigação
psicanalítico que objetiva elucidar significados inconscientes.
Freud também investigou obras artísticas e literárias, como pontuamos na
introdução, e articulou essas obras com sua teoria, o que nos permitiu estabelecer
pontos de contato entre as manifestações folclóricas da Amazônia e os conceitos
psicanalíticos. Seguindo o exemplo freudiano, Bettelheim (1976/2007) e Corso &
Corso (2006) estudaram os contos de fadas e desses estudos tiramos o modelo
para dar um novo passo em direção ao encontro da psicanálise com o folclore.
Nosso estudo resgatou questões amazônicas e promoveu uma discussão
psicanalítica através das lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra Norato.
Fomentando, assim, o debate sobre nossa tradição e cultura. Para Freud
(1910/1996) as tradições representam “aquilo que um povo constrói com a
experiência de seus tempos primitivos e sob a influência de motivos que,
poderosos em épocas passadas, ainda se fazem sentir na atualidade” (p. 92). Ou
seja, a realidade do nosso passado nos ajuda a entender o presente e nos faz
pensar sobre os motivos que determinam a preservação das lendas.
A pesquisa assegurou sua relevância na permanência das lendas na
atualidade. Mapinguari, Boto e Cobra Norato ainda são narrativas frequentes
entre os habitantes da região amazônica, e conforme Bettelheim (1976/2007) uma
narrativa sobrevive quando transmite importantes mensagens à mente consciente
e inconsciente. Corso & Corso (2006) também ressaltam que as histórias de
sucesso preservam um núcleo que atravessa os anos transmitindo a mesma
mensagem a várias gerações.
155
As lendas amazônicas sobreviveram ao longo dos anos e ainda hoje se
fazem presente, confirmando a importância de suas mensagens. Para investigar
tais mensagens utilizamos o método da análise de conteúdo de Bardin (1977) e
realizamos o estudo, seguindo três passos: 1) descrição; 2) investigação e; 3)
comparação. Por ser qualitativa, nossa pesquisa atingiu resultados de ordem
subjetiva e respondeu a algumas questões sobre o significado psicanalítico das
lendas estudadas.
Os dados foram coletados por meio do procedimento da pesquisa
bibliográfica que se desenvolve “com base em material elaborado, constituído
principalmente de livros e artigos científicos” (Gil, 2007, p. 44). E a análise dos
dados seguiu os passos enumerados acima, pois, segundo Creswell (2007)
“quem desenvolve uma proposta precisa informar os passos que vai dar no
estudo para verificar a precisão e credibilidade de seus resultados” (p. 199).
Assim, a validade da pesquisa foi garantida por uma rica descrição das lendas,
por uma investigação criteriosa da obra de Freud e por uma comparação com as
análises dos contos de fadas de Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006).
Então, podemos destacar, a partir de agora, os principais resultados atingidos em
cada capítulo que relacionou determinada lenda com a teoria freudiana.
No capítulo dedicado à lenda do Mapinguari nos voltamos para os aspectos
comuns da descrição do ente fantástico e através desses aspectos traçamos
paralelos com a obra de Freud. Estabelecemos o primeiro ponto de contato entre
a narrativa e a Interpretação dos Sonhos, em que Freud (1900a/1996) faz uma
análise do seu sonho Meu filho, o Míope e relaciona a palavra Míope à Ciclope,
abordando a questão do olho único como uma unilateralidade do desenvolvimento
156
intelectual. Procuramos na mitologia grega a representação dos Ciclopes para
iluminar o estudo do Mapinguari e encontramos a simbologia de “uma força brutal
a serviço de Zeus” (Brandão, 2001, p. 204), outro ponto de contato com a
narrativa folclórica, pois o Mapinguari foi enviado por Jurupari, o Deus legislador
dos indígenas. Assim, concluímos que o ser lendário possui uma função
civilizadora e está a serviço da humanidade na medida que regula o poder
destrutivo dos homens.
Além disso, relacionamos a lenda do Mapinguari com o texto freudiano O
estranho (1919) em que a desobediência às regras é o tema do conto de
Hoffmann, O Homem da Areia. E, através das analogias entre o Mapinguari e o
Homem da Areia, concluímos que o medo de ser devorado pelo monstro da
floresta é, na realidade psíquica, o medo de ser castrado. Ao analisar os
elementos do conto de Hoffmann, Freud (1919/1996) afirma que “elementos como
estes e muitos outros parecem arbitrários e sem sentido . . . mas tornam-se
inteligíveis tão logo substituímos o Homem de Areia pelo pai temido, de cujas
mãos é esperada a castração” (p. 249). Portanto, o agente exterior a quem se
atribui a intenção castradora é um representante da figura paterna. Mas para
esclarecer esse lugar do pai, ligamos o complexo de castração ao complexo de
Édipo, com a ajuda dos estudos de Birman (2001).
Outro estudioso da psicanálise que nos serviu de base foi Mezan (2006),
no entendimento da figura paterna como representante da castração. Segundo
Mezan (2006), o pai, a quem se atribui a intenção castradora, pode ser transposto
para registros muito afastados como nos casos do Pequeno Hans (1909) e do
Homem dos Lobos (1918), analisados por Freud. Então, estudamos esses dois
157
casos, entrelaçando-os com a lenda do Mapinguari, no sentido de que o animal
fóbico representa, em psicanálise, a figura temida da cena edipiana. Nessa
perspectiva, o cavalo, o lobo e o Mapinguari equivalem-se na condição de
substitutos do pai no temor da castração.
Inibições, sintomas e ansiedade (1926) foi outro texto freudiano que nos
auxiliou na compreensão da zoofobia como sintoma gerado pelo medo de ser
castrado pelo pai, medo que é transposto da figura castradora para os animais, ou
no caso do nosso estudo, para o Mapinguari. Após a descrição e investigação da
lenda nos debruçamos sob os resultados de Bettelheim (1976/2007) e Corso &
Corso (2006), na análise dos contos de fadas no que diz respeito ao aspecto
devorador. Tal aspecto destaca-se no conto Chapeuzinho Vermelho e os
estudiosos o relacionam ao complexo de Édipo, Bettelheim (1976/2007)
enfatizando ainda a voracidade oral e Corso & Corso (2006) pontuando que o
objeto fóbico pode ser representado tanto pelo pai quanto pela mãe, pois o medo
de ser devorado significa também voltar à barriga da mãe. Assim, a comparação
serviu para validar nosso estudo da lenda do Mapinguari e para completá-lo.
Em relação ao Boto, percebemos pela sua descrição que alguns autores
(Almeida, 2004; Britto, 2007; Cascudo, 2002) referem-se a ele como o Don Juan
amazônico, o conquistador de todas as moças da região. Por isso,
empreendemos uma investigação na teoria freudiana voltada ao aspecto de maior
destaque presente na lenda do Boto e no Don Juan: a sedução.
Verificamos o significado de sedução em psicanálise por meio dos
dicionários de Laplanche & Pontalis (1992) e Roudinesco & Plon (1998) que nos
levaram à teoria da sedução de Freud, por isso, inserimos no estudo a carta a
158
Fliess de 1897, em que Freud (1897/1996) passa a considerar outra etiologia para
as neuroses. Mas sublinhamos que o tema da sedução permanece vivo na obra
freudiana e é assunto do estudo da relação mãe e bebê em Três Ensaios (1905) e
da relação analista e paciente em Observações sobre o amor transferencial
(1915).
Investigamos a análise que Mezan (2005) faz em seu livro A sombra de
Don Juan e acompanhamos seu estudo sobre as obras de Mozart – Don Giovanni
e Kieerkgaard El Erotismo Musical no que se refere à sedução. Mezan
(2005) afirma que “Don Juan não tem memória, porque a memória supõe um
respeito pelo outro, uma possibilidade de ser afetado por ele, que em nada condiz
com a dimensão narcísica que nele predomina avassaladoramente” (p. 29).
Então, nosso percurso junto a Mezan (2005) nos levou ao caráter narcísico de
Don Juan e como estávamos estabelecendo relação entre Don Juan e Boto,
partimos para análise da lenda em torno do conceito de narcisismo no texto
freudiano Sobre o Narcisismo: uma Introdução (1914).
A identificação e a idealização subjacente na lenda do Boto revelaram a
relação narcísica existente entre os dois parceiros da sedução. Ou seja, de um
lado, o Boto identifica-se com o ideal de perfeição que as mulheres fazem dele e,
de outro lado, as mulheres identificam-se com o ideal de perfeição que o Boto faz
delas, pois ele deseja sentir-se completo como em seu narcisismo primário e por
nunca encontrar essa completude, ele continua a procurar incessantemente por
um ideal muito tempo perdido. Portanto, essa busca pelo ideal nada mais é do
que uma busca por si mesmo. O narcisismo, que é o amor de um indivíduo por si
mesmo, marca a sedução presente na lenda do Boto. Assim, chegamos à
159
compreensão de que o Boto não está apaixonado pelas mulheres que seduz, mas
sim pela sua imagem, tal qual Narciso à beira da fonte de águas claras.
Os estudos de Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006) sobre os
contos de fadas nos serviram de parâmetro de comparação. Em relação à lenda
do Boto o aspecto da sedução foi encontrado também no conto A Bela
Adormecida. A sedução aparece no conto de forma curiosa, pois a princesa seduz
o príncipe enquanto dorme. E esse estado de adormecimento, segundo Corso &
Corso (2006), é extremamente sedutor e favorável à idealização. Bettelheim
(1976/2007) ainda ressalta o ensimesmamento de Bela adormecida como um
desligamento do mundo exterior, o que nos faz ir ao artigo freudiano Suplemento
Metapsicológico à Teoria dos Sonhos, em que Freud (1917/1996) refere-se ao
narcisismo do estado do sono como uma condição do dormir. Ou seja, o
ensimesmamento de Bela Adormecida está relacionado ao narcisismo. Logo, o
resultado do nosso estudo foi análogo ao resultado dos estudiosos dos contos de
fadas.
Corso & Corso (2006) chamam atenção para a passividade de Bela
Adormecida, a mesma que encontramos nas mulheres seduzidas pelo Boto
quando elas se entregam sem questionamentos ou hesitações. Bettelheim
(1976/2007) assinala as conotações sexuais do conto e Corso & Corso (2006)
reforçam que o sangramento tem a ver com a menstruação e a primeira cópula. A
sexualidade também é tema da lenda do Boto e destacamos que o período
menstrual oferece maior atratividade ao ente fantástico. Por fim, pontuamos que o
ideal de perfeição da Bela Adormecida é o mesmo ideal que cerca a lenda do
Boto.
160
Por sua vez, na lenda da Cobra Norato foi destacado o aspecto da
dualidade entre o bem e o mal e na descrição de Britto (2007) ficou claro que a
cobra aparece na literatura tanto como uma representação do mal quanto como
uma representação do bem. Em função disso, buscamos explicações
psicanalíticas para a dualidade inerente à lenda em Além do princípio de prazer,
texto no qual Freud (1920/1996) estabelece definitivamente o dualismo pulsional
na dinâmica do psiquismo.
Seguimos a construção freudiana do conflito pulsão de vida e pulsão de
morte passo a passo: primeiro, a oposição entre pulsões sexuais e pulsões do
ego; depois, a contradição entre libido narcisista e libido objetal e; por último, o
antagonismo entre pulsões de vida e pulsões de morte. Green (1988) nos auxiliou
na passagem pelos três tempos da teoria pulsional, através do seu livro
Narcisismo de vida, narcisismo de morte, ao qual recorremos para melhor
acompanhar o pensamento freudiano.
Portanto, concluímos que a dualidade presente na lenda da Cobra Norato
relaciona-se com a dualidade pulsional do esquema freudiano e transmite uma
mensagem ao inconsciente de tendências que se encontram em oposição desde
os tempos mais remotos. Assim, a novidade, para qual a pulsão de vida direciona-
se, faz referência à busca incessante de Cobra Norato pelo desenvolvimento e
pela mudança. Ao passo que o caráter retrógrado de Cobra Maria alude ao antigo
da pulsão de morte, que se repete na busca por um estado anterior de coisas.
Freud (1920/1996) investiga a dominância do princípio de prazer que busca
evitar o desprazer e reduzir as excitações ao nível mais baixo possível e descobre
que as pulsões de morte estão a serviço de tal princípio, pois mantêm guarda
161
contra os aumentos de excitação, enquanto as pulsões de vida geram desprazer
por promoverem tensão no aparelho psíquico. Nesse sentido, consideramos que
as boas ações de Cobra Norato estão relacionadas com as pulsões de vida e
representam o desprazer, e as más ações de Cobra Maria estão ligadas às
pulsões de morte e representam o prazer. Porém, ressaltamos que as pulsões de
vida e de morte não podem ser observadas separadamente, pois operam no
psiquismo ao mesmo tempo. Dessa forma, o significado inconsciente que a lenda
da Cobra Norato desperta no indivíduo tem relação com o conflito pulsional vivido
por ele em seu íntimo. Aqui, repetimos nossas palavras de que um indivíduo não
é somente Cobra Norato, ou somente Cobra Maria, ele é Norato e Maria ao
mesmo tempo.
O conto de fadas O irmão e a irmã, dos irmãos Green, permitiu-nos realizar
uma comparação entre a nossa pesquisa sobre a lenda Cobra Norato e o estudo
de Bettelheim (1976/2007). Esse estudo nos diz que “durante grande parte de
nossa vida, quando não conseguimos alcançar ou manter uma integração interior,
esses dois aspectos de nossa psique lutam um contra o outro” (Bettelheim,
1976/2007, p. 115). Assim, o antagonismo entre os dois irmãos do conto
simboliza o conflito interior das pulsões de vida e morte, o mesmo representado
por Cobra Norato e Cobra Maria.
Em suma, pesquisamos as lendas do Mapinguari, do Boto e da Cobra
Norato em relação aos seus respectivos aspectos devorador, sedutor e dual, e
encontramos equivalências entre nossas análises e os estudos dos contos de
fadas desenvolvidos por Bettelheim (1976/2007) e Corso & Corso (2006). Nossa
descrição das lendas foi embasada nos pesquisadores do folclore brasileiro e
162
nossa investigação psicanalítica esteve, a todo momento, atrelada à obra de
Freud. Então, finalizamos nossa pesquisa com o desejo de que novos estudos
sejam realizados na interface da psicanálise com o folclore e novas descobertas
sejam feitas em relação às lendas amazônicas, pois a riqueza do material
presente nelas reflete a diversidade da cultura brasileira.
Por fim, ressaltamos que cada lenda Mapinguari, Boto e Cobra Norato
foi analisada sob um aspecto devorador, sedutor e dual mas isso não quer
dizer que as mesmas lendas não tenham outros pontos importantes a serem
investigados, por isso, esperamos que esta pesquisa sirva de inspiração para
outros estudos sobre as lendas amazônicas ou outras lendas, pois como diz
Thiago de Mello (2003): “A lenda inventada vira vida. E nunca mais se acaba” (p.
7).
163
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