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direção
aos cimos
lígia tho
a longa
rua
em
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iii
direção
aos cimos
a longa
rua
em
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes,
da Universidade Estadual de Campinas,
para obtenção do Título de Mestre em
Multimeios.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Fernando da
Conceição Passos
Lígia Maria Thomé Sanchez
Campinas
2007
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iv
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Título em inglês:“The long street in direction to the Treetops”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Cinema. Literature. Guimarães
Rosa; Winnicott; Analytical Psychology
Titulação: Mestre em Multimeios
Banca examinadora:
Prof. Dr. Fernando Passos
Prof. Dr. Nuno César de Abreu
Profa. Dra. Verônica Fabrini M. de Almeida
Prof. Dra. Elizabeth Bauch Zimmermann
Profa. Dra. Julia Ziviani Vitiello
Data da Defesa: 28-08-2007
Programa de Pós-Graduação: Multimeios
Sanchez, Lígia Maria Thomé.
Sa55L A longa rua em direção aos Cimos / Lígia Maria Thomé
Sanchez – Campinas, SP: [s.n.], 2007.
Orientador: Fernando Passos
Dissertação(mestrado) - Universidade Estadual de
Campinas,
Instituto de Artes.
1. Cinema. 2. Literatura. 3. Guimarães Rosa. 4.Winnicott.
5. Psicologia Analítica. I. Passos, Fernando II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.
(em/ia)
v
vii
Este trabalho é dedicado à minha avó,
Elídia Thomé, mãe de minha mãe.
À beleza de sua fala e de suas estórias.
ix
Agradecimentos
A Fernando Passos, pelo acompanhamento cuidadoso que fez de meu trabalho.
Só posso mesmo agradecer muito por ter me encorajado e me ajudado a superar
dificuldades tanto na pesquisa quanto pessoais. Por isso minha gratidão, meu
respeito e minha amizade sempre.
Aos professores Nuno de Abreu e Verônica Fabrini, que ouviram minhas idéias
durante a qualificação e defesa e contribuíram com seus comentários bastante
proveitosos. Às professoras Inaicyra Falcão e Júlia Vitielo, grata por sua
participação e leitura.
À professora Elizabeth Zimmermann pela participação na qualificação e na
defesa e também pelas atividades do IPAC, os grupos de estudo, simpósios,
encontros de tanta gente boa. A Paulo Baeta, com quem tanto tenho aprendido
nos últimos anos, nas aulas de dança, nas supervisões.
x
A todos os professores e colegas que fizeram do mestrado um espaço gostoso
de criação e desenvolvimento mútuo.
À Universidade Estadual de Campinas, sobretudo ao Instituto de Artes, que
contribuiu com parte importante de minha formação.
À Capes/CNPq, que me proporcionou maiores recursos para realizar a
pesquisa.
Aos meus queridos pais, Antonio e Maria, pelo amor e apoio constantes e
também pelo estímulo pra que eu busque seguir sempre meus próprios
caminhos. Aos meus irmãos Bel, Christian e Ton, pela infância compartilhada e
por serem, mais que irmãos, grandes amigos. À Manuela, querida sobrinha, que
tanto nos ensina sobre o amor e a alegria. Também sou muito grata à Januária,
que foi com meu irmão uma referência importante pra mim em Campinas
durante muitos anos. Aos muitos queridos familiares... Tanto carinho e gratidão!
A todos os meus amigos e amigas muito queridos e tão importantes na minha
vida, aqueles com quem morei, aqueles com quem estudei e estudo, aqueles com
quem trabalhei, amigos de longe e de perto... Muito obrigada a todos! Agradeço
também à família do Marcelo, que tem me recebido com tanta consideração.
À Sonia Carvalho, minha analista, por estar ao meu lado e testemunhar uma
parte incomunicável de meu crescimento.
Agradeço, finalmente, a meu querido Marcelo, por sua presença diária em
minha vida, pela paciência e o carinho, por me trazer sempre de volta à música e
ao amor.
xi
“Não-entender, não-entender, até se virar menino.”
Guimarães Rosa
xiii
Resumo
A presente dissertação dedica-se à criação de um roteiro cinematográfico a partir do
conto de Guimarães Rosa, Os Cimos, bem como à investigação dos processos criativos
da autora/leitora. Na primeira parte são apresentados os esboços do percurso,
movimentos desencadeadores da aventura poética de aproximação-afastamento com o
texto de Rosa. Na segunda parte, de “Campo Geral” e seus aspectos imponderáveis da
infância, ao Menino de “Os Cimos” e sua distância da Mãe. Na jornada do Menino,
situações de vida e morte enfrentadas com angústia e auxílio de um objeto amado e
mutilado. Aí está a apresentação do conto, permeada de impressões da leitora e alguns
elementos da teoria winnicotiana dos fenômenos transicionais. Leitura e releitura do
conto conduzem a autora às suas próprias recordações da infância, e a memória passa a
conduzir a criação. Daí a escrita de um conto descoberto atrás do conto de Rosa: a
história da Menina, que encontra delicada e inesperadamente com a do Menino, em
convivência. Na terceira parte, a apresentação do roteiro cinematográfico, escrito a
partir dos dois contos, as duas histórias, em ambientes separados pelo tempo e a
distância, porém encontrados em sua vivência de criação e conquista de autonomia.
Palavras-chave: Cinema; Literatura; Guimarães Rosa; Winnicott; Psicologia Analítica.
xv
Abstract
This dissertation is devoted to the creation of a movie script based on Guimarães
Rosa’s short story, “Os Cimos” (in English: “Treetops”), as well as to the investigation
of the author/writer’s creative processes. In the first part, there is the outline of the
path, movements that arouse the poetic adventure of approaching-distancing with
Rosa’s text.
In the second part, of “Campo Geral” and its immeasurable childhood aspects, to the
Boy from “Os Cimos” and the distance from his Mother. In the Boy’s journey, life and
death situations faced in anguish and the help from a beloved and mutilated object.
Here is the presentation of the story, interpolated by the reader’s impressions and some
elements of the Winnicottian theory of transitional phenomena. The reading and
rereading of the story lead the author to her own childhood memories, and the memory
takes over, leading creation. Hence the writing of a short story unveiled after Rosa’s
short story: the story of the Girl, which delicately encounters the one of the Boy,
happening alongside each other. In the third part, the presentation of the movie script,
written from the two short stories, the two stories, in environments that were separated
by time and distance, although assembled in their creation experience and their
autonomy achievement.
Key Words: Cinema; Literature; Guimarães Rosa; Winnicott; Analytical psychology
xvii
Sumário
________________________________________________________________________________
01
Introdução ou como se fosse antes...
Primeira Parte
07
A bolha e o brinquedo: primeiros apontamentos sobre criação
09
O início
13
Trechos do percurso: o Mutúm é dentro da gente?
Segunda Parte
19
Depois do Mutúm
21
“Os Cimos” (Guimarães Rosa) - Anexo
31
Longe e perto da mãe: Os Cimos
33
O menino e o macaquinho
39
Mínima memória
49
Fidelidade
51
O real
55
Conto, por trás do conto
61
Do texto para o cinema
65
As cidades encontradas
Terceira Parte
69
O roteiro
95
Conclusão
99
Referências
1
Introdução ou
como se fosse antes...
ste silêncio que ora me acompanha é palavra carecendo de boca. E descubro
agora: apenas num lugar precário entre o que só desconfio e o que muito ainda
não sei é que poderá existir essa voz que se anuncia. De modo que meu texto, na
hora mesma de ser tecido vai ganhando corpo delicado, membrana muito sutil de
recém-nascida. Era de se prever que fosse assim?
É a primeira vez que tudo acontece, sempre que a palavra nasce. O corpo que
não era e foi preciso fazer nascer para que se pudesse falar... Corpo de palavra e
corpo de engendrar palavra, de dizer ou escrever, ouvido que não conhecia o
som, mão que não supunha o desenho, olho que...
Ainda não vejo os caminhos porvindouros e de tanto a vista querer os longes,
falha a clarividência para o que se apresenta agora, no real da vida. Encontro-me
E
2
a um mesmo tempo de querer dar corpo a algo criado, em vida nova, e também
compreender essa mesma coisa. Ou muito me engano ou a tarefa é impossível. Se
não me engano, me enganarei. Enfim, o fracasso é fado certo e um chão pra eu
cair sossegada. No que sossego e sigo.
É o tempo de dizer que este trabalho tem como objetivo central a criação de
um roteiro cinematográfico a partir de uma obra literária, um conto de
Guimarães Rosa. A pergunta inicial: é possível fazer essa passagem de um texto
para o cinema ou, posso traduzir em imagem-som um pedaço sequer do universo
que é o de Rosa?
Meu percurso, como um todo, é uma busca afirmativa. “Sim, é possível
transitar entre esses dois mundos”, digo pra mim mesma, ainda morrendo de
medo. É claro que se trata de um desafio. Mas posso perceber, com o passar do
tempo, que há várias possibilidades de se fazer aquilo que uns chamariam de
adaptação e eu prefiro chamar de transcriação.
Já adianto, por ora, que a forma que encontro de percorrer esse caminho é a do
afeto. Eu, leitora, sou um mundo inteiro de ressonâncias e repercussões
1
. E se
encontro as notas mais singulares desse movimento posso criar. Não mais
Guimarães Rosa, nem eu, ou qualquer arremedo de outra coisa. Uma viagem que
tem certo começo, mas nunca se sabe onde vai dar.
Sobre isso, penso ser importante logo de saída recordar que não é nova a
situação em que me encontro. Quero me remeter a uma tarefa muito mais antiga,
talvez mais complicada e de enorme responsabilidade que é a do tradutor. A
comparação tem pé quebrado: traduzir uma obra poética como a de Guimarães
Rosa para outra língua não é o mesmo que traduzi-la para som-imagem, é
evidente. No entanto, ambas as tarefas têm algumas coisas em comum. A mais
1
Bachelard, G. A Poética do Espaço. Martins Fontes: São Paulo, 2003.
3
importante delas, na minha opinião, é o fato de serem impossíveis, caso o
“tradutor” trabalhe com qualquer sombra de olhar convencional.
Meyer-Clason, tradutor de Guimarães Rosa para o alemão, discute amplamente
este tema em suas correspondências com Rosa. Ele estava preocupado com essa
impossibilidade de se reproduzir todos os detalhes do texto original. E percebe
que precisa abrir mão de muitas coisas pra alcançar seu objetivo.
“Em meu trabalho de traduzir procedi de maneira funcional. A
tradução funcional dispensa conceitos tais como ´literal´ ou ´livre´,
pois são conceitos vagos, equívocos que nada sabem daquela
fidelidade ao espírito da obra oriunda de uma afinidade interior ou
de uma identificação artística – casual ou elaborada. Fiel, em meu
sentido funcional, pode significar muita coisa; homogêneo em
variação negativa; traduzir para o idiomático, mas ser mais fiel que
uma versão ao pé da letra, e muitas coisas mais. Desta vez, não dei a
mínima consideração ao comprimento das frases, nem ao número
de verbos ou adjetivos. Acima de tudo estava a exigência: como
devo me expressar para alcançar o mesmo efeito?[...]”
2
E então, a descoberta da liberdade de criar um novo texto:
“Onde o Senhor não reconhecer mais o seu texto, foi onde eu
provavelmente me saí melhor, pisando sobre o próprio chão.”
3
“Minha versão também é poesia, ou melhor, pretende ser
poesia.”
4
2
Rosa, J. G. & Meyer-Clason, C. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-
Clason: (1958-1967): Nova Fronteira: Academia Brasileira de Letras; Belo Horizonte, MG: Ed. da UFMG; 2003.
p. 152
3
Id. Ibid. p. 159
4
Id. Ibid. p. 154
4
A liberdade, nesse caso, não tem outro ponto de apoio senão o amor pelas
imagens encontradas em Rosa. Aparentemente arbitrário, parece ser este o
instrumento mais preciso e de maior alcance. Fora dele, tudo é ilusão.
Peço então licença de Rosa pra empreender travessia encostada em sua palavra,
abraçada em sua ternura.
5
Primeira Parte
7
A bolha e o brinquedo:
primeiros apontamentos sobre criação
“É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser
criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo
descobre o eu (self).”
Winnicott
5
o resumo do projeto que me permitiu ingressar no mestrado, constava: A
metodologia escolhida é a atenção absoluta aos movimentos internos de reação ao texto de Rosa,
num espaço protegido de permissão ao brincar. Agora sou capaz de reconhecer nisso algo
que denomino fantasia. O espaço protegido. A bolha. Quando, amparada por
uma primeira compreensão dos estudos de Winnicott, deparei com os
fenômenos transicionais, imaginava que algo de externo à criança é que permitia
o criativo, protegendo-o. E, de fato, há na atitude dos pais, sobretudo da mãe,
5
Winnicott, D. W. O Brincar e a realidade, Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 80.
N
8
um quê dessa permissão quando a criança se põe a brincar livremente, numa
interação tão intensa com o objeto que manipula ou constrói. Mas é da natureza
do próprio brincar, ou seja, é no interior dessa interação que tudo borbulha. O
que protege a criança que brinca, senão o próprio brinquedo? Insisto na idéia de
proteção, pois há riscos todo o tempo e a criança sabe disso, num saber ainda
sem nome, povoado de sustos e calafrios e, creio que, o impulso de criar,
manifesto desde os primeiros jogos, imagina uma proteção, num tempo de
vivência extrema e não de alheamento, um tempo que se deseja ou se imagina
eterno.
Também o adulto pode fazer parte do brinquedo da criança e, quando o faz de
fato, é envolvido por essa aura de encanto. E isso é muito importante, pois da
interação surge a interlocução, a possibilidade de não se estar sozinho na hora em
que se quer nomear o mundo. Quer dizer que a palavra nasce de um ato de
solidariedade. Mesmo os gestos, em suas vastas possibilidades, delineiam, pouco
a pouco, aquilo que pra criança pequena não tem borda, quase que não existe de
tão grande: o mundo.
Embora os fenômenos de criação se apresentem de formas diferentes em cada
ser que cria, quero aqui propor, em concordância com Winnicott, que o espaço
criativo só é possível, mesmo em vida adulta, nesse lugar que não é exatamente
interno nem externo. E que a criação é em si mesma, uma busca de nexo e
interação, o ser se desdobrando em outras vidas, ganhando outros formatos, se
diferenciando das coisas e do mundo, justo na hora em que o amor havia
aproximado tudo.
9
O início
magino que, já a esta altura, seja possível prever que a criança de que falo sou
eu mesma. Eu, que re-inauguro uma possibilidade de novidade e de infância que
é de todo mundo. Portanto, o que é mais sincero de ser dito agora, sobre os reais
motivos do trabalho, ou aqueles de que tenho consciência, é que eles têm ligação
estreita com minha própria vida.
A vida de que falo, aquela que posso relatar agora, começou numa cidade do
Paraná, que se chama Maringá. Ela própria, a cidade, também uma criança, um
povoado que ainda não chegara aos trinta anos...
Ali minha história começa e se desenrola até o início da vida adulta. Como a
substância dessa terra vermelha impregnou o meu ser? Não sou capaz de
compreender. Tenho pouco mais de trinta anos – metade do tempo de vida de
I
10
Maringá – de modo que tudo ainda é muito verde em matéria de compreensão
dessas duas naturezas (a minha e a dela).
Minha família se constituiu de duas heranças bastante freqüentes por aquelas
bandas e também em outros estados do país. Do lado paterno, espanhóis
recentemente chegados ao Brasil e que trabalhando no estado de São Paulo
foram atraídos pela promessa de fartura das terras paranaenses e ali se instalaram
pouco antes do nascimento de minha cidade. Do lado materno, a mesma atração,
na mesma época, mas dessa vez numa família do sul de Minas Gerais, com
ascendência européia distante, cabocla distante, negra distante, isto é, brasileiros
de longa data.
Como, nessa parte da história, fazer entroncar o começo?... Reservo. E digo
que era um casal jovem, um homem loiro e uma mulher morena. Eu, a segunda
filha, também segunda menina. Depois viriam dois meninos.
Há muitos pedaços da história sobre os quais não tenho informações pra dizer,
outros que sei e não digo, mas deságuam misteriosamente na minha existência,
algo de muita importância e que me faz feliz.
Mas, em criança, nem sempre me sentia assim. Era difícil viver com a tarefa de
saber do mundo e de mim mesma, tudo junto, apertado no mesmo sonho de
conhecimento. O desconhecido prevalecia e, com ele, a angústia. Lembro-me
bem disso. Recordo também os primeiros sentimentos de quando aprendi a ler.
Um desespero de alegria, que parecia não caber dentro de mim. Minha irmã, três
anos mais velha que eu, já era leitora assídua quando comecei a entender as
letrinhas, e isso me ajudou bastante, porque sabia: algo de muito prazeroso havia
naquilo pra que ela vivesse pendurada de livros, campeã de biblioteca.
11
Mas junto com esse prazer, sempre uma desconfiança de proibição: devia ser
errado conhecer tudo assim tão detalhado, separadinho por vírgula e ponto.
Limite.
A força desse limite se fez pesar sobre minha vida com as letras. Continuei
medrosa e desconfiada. É assim que venho sendo, por enquanto.
13
Trechos do percurso:
o Mutúm é dentro da gente?
lgumas mudanças aconteceram desde que iniciei a pesquisa. A primeira
intenção era a de criar o roteiro pra Campo Geral, a história de “um certo
Miguilim”
6
. Como um mal-estar pode persistir por tanto tempo? Não sei. A
abrangência da novela, o jeito dela viver nas minhas entranhas sem estabelecer
qualquer possibilidade de recorte, sem nenhum contato com o mundo externo...
Eu sonhava o Mutúm
7
em sua pré-história, as desmedidas imagens de pré-coisas,
6
Rosa, J. G. Manuelzão e Miguilim, Nova Fronteira, 2001. p. 27
7
Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito tempo depois da Vereda-do-Frango-
d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm.” (Rosa, J. G. Manuelzão e Miguilim,
Nova Fronteira, 2001. p. 27)
A
14
as insignificâncias, tudo anterior à palavra. E padeci de um incurado estado de
bolha por meses a fio.
Nesse meio tempo, as tentativas de estabelecer contato com o Mutúm foram
proveitosas para eu perceber que não conseguiria tão cedo capturar naquele texto
o pedaço de enredo que pudesse caber num longa-metragem, muito menos num
curta. E a experiência de não-saber prevaleceu. Em 2005, muito envolvida por
esta atmosfera, houve a tentativa de contribuir para a realização de um
documentário sobre uma ocupação de agricultores sem-terra em Mogi-Mirim–SP
– o assentamento Vergel. Minha intenção era realizar uma aproximação com o
tema da infância, criando um pequeno relato de história em vídeo sobre uma
família que vivia ali no Vergel-Mutúm. Eram oito crianças, seus gatos, cachorros,
seus brinquedos e esconderijos. Durante a experiência, percebi aspectos
dolorosos projetados nessa infância de roça. Escrevi poemas, chorei, mas fiquei
bastante aquém de produzir algum vídeo. O corpo ainda não era capaz de gerar
algo que se tornasse compreensível, um fiapo sequer de comunicação. Era eu e
minha solidão.
Aos poucos, relendo o Campo Geral e investigando qual o centro gravitacional
da história pra mim, os motivos de eu querer fotografar o Mutúm, fui me dando
conta da não-imagem, o que não se captura no visível ou comunicável de outras
formas. E não encontrei o centro, porque a história toda é o próprio centro. Já o
anteviam as palavras de Plotino, na epígrafe do conto.
“Num círculo, o centro é naturalmente imóvel, mas se a
circunferência também o fosse, não seria ela senão um centro
imenso.”
8
8
Plotino, in: Rosa, J. G. Manuelzão e Miguilim, Nova Fronteira, 2001. p. 6.
15
A escuridão do Mutúm que existe em mim, o mundo sem contorno de
imensidões, é impalpável, insondável, absurdo. E, ao modo da profetiza Ísis
9
, em
seu encontro com o anjo, aquilo que vi não posso contar, ao que acrescento a
segunda epígrafe do Campo Geral.
“Vede, eis a pedra brilhante dada ao contemplativo; ela traz um
nome novo, que ninguém conhece, a não ser aquele que a recebe.”
10
Enquanto a experiência aconteceu, pouco li do que outros leitores tinham a
dizer sobre o Mutúm. Uma provável estratégia pra não me contaminar com
outras compreensões, mas também a própria bolha atuando em meu contato
com o mundo. O medo de perder a parte mais delicada de uma pele minha que
ainda não ganhara proteção de se expor ao sol.
Hoje, agüento um pouco mais, ganho fome de compreensão. E posso começar
a ampliar os horizontes sem tanto medo. E aí deparo, por exemplo, com Susi
Sperber
11
recolhendo trechos, pequenos e grandes, beliscando os fios de
entendimento e trazendo-os à luz com carinho de quem se debruça sobre o
assunto, sem abafar o real. Não deveria ser assim, um jeito de se estudar árvore,
passarinho, montanha e Rosa, um fenômeno também eclodido de vida, no
mundo?
Para Sperber, as indefinições dos signos rosianos, a imprecisão dos elementos
constituintes da estrutura sintagmática de Rosa, seja pela inversão dos seus
elementos, o retardamento ou a enfatização do sentido, nos afastam da
9
Me refiro aqui ao muito antigo texto da alquimia grega, chamado “A profetisa Ísis para seu Filho”. É uma
espécie de carta de Ísis ao seu filho Hórus, que relata o seu encontro com o anjo Amnael. Ele desejava possuí-la,
ao que ela resistiu, pedindo que contasse o seu segredo: “(...) Resisti a ele e dominei o seu desejo até que ele me mostrou o
sinal em sua cabeça e me deu a tradição dos mistérios sem esconder coisa alguma e contando toda a verdade.” Depois de repetir as
palavras do anjo, ela finaliza a carta: “(...) Depois que pronunciou esse juramento, fez-me com esse juramento prometer que nunca
contaria os mistérios que ia agora ouvir, exceto a meu filho, minha criança, e ao meu amigo mais íntimo, de modo que tu és eu e eu
sou tu.” In: Von Franz, Alquimia, São Paulo: Cultrix, 1980. p.33.
10
Ruysbroek o Admirável, in: Rosa, J. G. Manuelzão e Miguilim, Nova Fronteira, 2001. p. 6.
11
Sperber, Susi Frankl, Guimarães Rosa : Signo e Sentimento, São Paulo, Ática, 1982.
16
possibilidade de uma apreensão imediata do texto. A memória do que se lê vai
ficando anuviada, indefinida, e é nessa matéria que se funda a leitura como um
todo, ao alcançar fluidez. Isso exige mais participação do leitor, porque abre as
possibilidades de compreensão e atribuição de sentido. Essa indefinição
provocadora daquilo que a autora chama de “abertura do sintagma”, poderia ser
considerada, no caso específico de Campo Geral, como a própria visão da
criança, por ainda não delineada, sem contornos de compreensão, indiferenciada.
Com o agravante de se tratar de uma criança míope, o que nos é revelado ao final
da estória. Mas Sperber faz ressaltar a própria indeterminação do foco narrativo
como acréscimo a esse efeito. Não se trata exatamente ou apenas da visão míope
de Miguilim a descrever as coisas e a distanciar as memórias. A indefinição faz
parte do mundo, da realidade das coisas vividas, não é o olho da criança que as
distorce.
Posso, dessa forma, compreender melhor minha leitura do Campo Geral, em
seus tropeços e limites. Mas acontece que esbarrei na pedra, naquilo que não sou
capaz de fazer. A imensidão e a existência do Mutúm dentro de mim, lugar ao
mesmo tempo tão pequeno e distante, não tem começo nem fim, é um
desenredo. E acometo essa palavra agora de um outro sentido, como se pudesse
haver algo que se opõe ao enredo, antes e além de seu fim. Quase como se a
história não existisse, no incriado, voltando a fazer parte das coisas antes dos
sonhos, no silêncio que se acomoda inteiro, poderoso, muito, dentro da gente.
Usando de minha liberdade criativa de leitora, nessa abertura extrema de
possibilidades de sentido, fecho o texto ao meu modo, temporariamente, agora.
Desisto do Mutúm.
17
Segunda Parte
19
Depois do Mutúm
conteceu que eu saí do Mutúm. E fora dele, tudo mais arriscado e vivo. Tudo
grande em si, com cor correspondente. Tudo com começo e fim, um pouco mais
contornáveis.
Da estória de Miguilim se manteve apenas uma aura, o que talvez tenha me
feito recuperar outro conto muito amado de Rosa: “Os Cimos”, presente no livro
Primeiras Estórias, de 1962.
Relendo o conto, percebi com alegria algo que dele havia permanecido em mim
desde a sua primeira leitura, quando eu ainda era adolescente. Uma ressonância
que pedia e pede expressão. Passei então a considerá-lo como ponto de apoio,
pronto a despertar afeto e memória.
A
20
Pra que eu possa prosseguir falando sobre esses desdobramentos, penso ser
importante nos debruçarmos sobre esse texto de Rosa, fazendo uma pausa pra
ler a transcrição que ora apresento.
21
“Os Cimos”
(João Guimarães Rosa)
12
O inverso afastamento
utra era a vez. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar onde as
muitas pessoas faziam a grande cidade. Vinha, porém, só com o Tio, e era uma
íngreme partida. Entrara aturdido no avião, a esmo tropeçante, enrolava-o de por
dentro um estufo como cansaço; fingia apenas que sorria, quando lhe falavam.
Sabia que a Mãe estava doente. Por isso o mandavam para fora, decerto por
demorados dias, decerto porque era preciso. Por isso tinham querido que
trouxesse os brinquedos, a Tia entregando-lhe ainda em mão o preferido, que era
12
In: Rosa, J. Guimarães. Primeiras Estórias.
31ª Reimpressão, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 152-160.
O
22
o de dar sorte: um bonequinho macaquinho, de calças pardas e chapéu vermelho,
alta pluma. O qual, o prévio lugar dele sendo a mesinha em seu quarto. Pudesse
se mexer e viver de gente, e havia de ser o mais impagável e arteiro deste mundo.
O Menino cobrava maior medo, à medida que os outros mais bondosos para
com ele se mostravam. Se o Tio, gracejando, animava-o a espiar na janelinha ou
escolher as revistas, sabia que o Tio não estava de todo sincero. Outros sustos
levava. Se encarasse pensamento na lembrança da Mãe, iria chorar. A Mãe e o
sofrimento não cabiam de uma vez no espaço de instante, formavam avesso – do
horrível do impossível. Nem ele isso entendia, tudo se transtornando então em
sua cabecinha. Era assim: alguma coisa, maior que todas, podia, ia acontecer?
Nem valia espiar, correndo em direções contrárias, as nuvens superpostas, de
longe ir. Também, todos, até o piloto, não eram tristes, em seus modos, só de
mentira no normal alegrados? O Tio, com uma gravata verde, nela estava
limpando os óculos, decerto não havia de ter posto a gravata tão bonita, se à Mãe
o perigo ameaçasse. Mas o Menino concebia um remorso, de ter no bolso o
bonequinho macaquinho, engraçado e sem mudar, só de brinquedo, e com a alta
pluma no chapeuzinho encarnado. Devia jogar fora? Não, o macaquinho de
calças pardas se dava de também miúdo companheiro, de não merecer maltratos.
Desprendeu somente o chapeuzinho com a pluma, este, sim, jogou, agora não
havia mais. E o Menino estava muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de
si. Estava muito para trás. Ele, o pobrezinho sentado.
O quanto queria dormir. A gente devia poder parar de estar tão acordado,
quando precisasse, e adormecer seguro, salvo. Mas não dava conta. Tinha de
tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que ensaiam esculturas efêmeras. O Tio
olhava no relógio. Então, quando chegavam? Tudo era, todo-o-tempo, mais ou
menos igual, as coisas ou outras. A gente, não. A vida não parava nunca, para a
23
gente poder viver direito, concertado? Até o macaquinho sem chapéu iria
conhecer do mesmo jeito o tamanho daquelas árvores, da mata, pegadas ao
terreiro da casa. O pobre do macaquinho, tão pequeno, sozinho, tão sem mãe;
pegava nele, no bolso, parecia que o macaquinho agradecia, e, lá dentro, no
escuro, chorava.
Mas, a Mãe, sendo só alegria de momentos. Soubesse que um dia a Mãe tinha
de adoecer, então teria ficado sempre junto dela, espiando para ela, com força,
sabendo muito que estava e que espiava com tanta força, ah. Nem teria brincado,
nunca, nem outra coisa nenhuma, senão ficar perto, de não se separar nem para
um fôlego, sem carecer de que acontecesse o nada. Do jeito feito agora, no
coração do pensamento. Como sentia: com ela, mais do que se estivessem juntos,
mesmo, de verdade.
O avião não cessava de atravessar a claridade enorme, ele voava o vôo – que
parecia estar parado. Mas no ar passavam peixes negros, decerto para lá daquelas
nuvens: lombos e garras. O Menino sofria sofreado. O avião então estivesse
parado voando – e voltando para trás, mais, e ele junto com a Mãe, do modo que
nem soubera, antes, que o assim era possível.
Aparecimento do pássaro
Na casa, que não mudara, entre e adiante das árvores todos começaram a tratá-
lo com qualidade de cuidado. Diziam que era pena não haver ali outros meninos.
Sim, daria a eles os brinquedos; não queria brincar, mais nunca. Enquanto a
gente brincava, descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assanhação de
acontecer: elas esperavam a gente atrás das portas.
24
Também não dava vontade de sair de jipe, com o Tio, se para a poeira, gente, e
terra. Segurava-se forte, fechados os olhos: o Tio disse que ele não devia se
agarrar com tão tesa força, mas deixar o corpo no ir e vir dos solavancos do
carro. Se adoecesse, grave, também, que fosse – como ia ficar, mais longe da
Mãe, ou mais perto? Ele mordeu seu coração. Nem quis falar com o macaquinho
bonequinho. O dia, inteiro, servia era para se fazer o espalhamento no cansaço.
Mesmo assim, à noite, não começava a dormir. O ar daquele lugar era friinho,
mais fino. Deitado, o Menino se sentia sustoso, o coração dando muita pancada.
A Mãe, isto é... E não podia logo dormir, e pela dita causa. O calado, o escuro, a
casa, a noite – tudo caminhava devagar, para o outro dia. Ainda que a gente
quisesse, nada podia parar, nem voltar para trás, para o que a gente já sabia, e de
que gostava. Ele estava sozinho no quarto. Mas o bonequinho macaquinho não
era mais o para a mesa de cabeceira: era o camarada, no travesseiro, de
barriguinha para cima, pernas estendidas. O quarto do Tio ficava ao lado, a
parede estreita, de madeira. O Tio ressonava. O macaquinho, quase também,
feito um muito velho menino. Alguma coisa da noite a gente estivesse furtando?
E, vindo o outro dia, no não-estar-mais-dormindo e não-estar-ainda-acordado,
o Menino recebia uma claridade de juízo – feito um assopro – doce, solta. Quase
como assistir às certezas lembradas por um outro; era que nem uma espécie de
cinema de desconhecidos pensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no
espírito idéias de gente muito grande. Tanto, que, por aí, desapareciam,
esfiapadas.
Mas, naquele raiar, ele sabia e achava: que a gente nunca podia apreciar, direito,
mesmo as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Às vezes, porque
sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou
esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram só um arremedado
25
grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de lado e
do outro, não deixando limpo lugar. Ou porque faltavam ainda outras coisas,
acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com
aquelas, para o completo. Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a
gente sabia que elas já estavam caminhando, para se acabar roídas pelas horas,
desmanchadas... O Menino não podia ficar mais na cama. Estava já levantado e
vestido, pegava o macaquinho e o enfiava no bolso, estava com fome.
O alpendre era um passadiço, entre o terreirinho mais a mata e o extenso
outro-lado – aquele escuro campo, sob rasgos, neblinas, feito um gelo, e os
perolins do orvalho: a ir até o fim de vista, à linha do céu de este, na extrema do
horizonte. O sol ainda não viera. Mas a claridade. Os cimos das árvores se
douravam. As altas árvores depois do terreiro, ainda mais verdes, do que o
orvalho lavara. Entremanhã – e de tudo um perfume, e passarinhos piando. Da
cozinha, traziam café.
E: - “Pst!” – apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em brando
batido horizontal. Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em
volta e os tantos meigos vermelhos do pássaro – depois de seu vôo. Seria de ver-
se: grande, de enfeites, o bico semelhando flor de parasita. Saltava de ramo em
ramo, comia da árvore carregada. Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus
coloridos, em momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso
esplendentemente. No topo da árvore, nas frutinhas, tuco, tuco... daí limpava o
bico no galho. E, de olhos arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si
o embevecido instante, só nos silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até o
Tio. O Tio, também, estava de fazer gosto por aquilo: limpava os óculos. O
tucano parava, ouvindo outros pássaros – quem sabe, seus filhotes – da banda da
mata. O grande bico para cima, desferia, por sua vez, às uma ou duas, aquele
26
grito meio ferrugento dos tucanos: – “Crrée!”... O Menino estando nos começos
do chorar. Enquanto isso, cantavam os galos. O Menino se lembrava sem
lembrança nenhuma. Molhou todas as pestanas.
E o tucano, o vôo, reto, lento – como se voou embora, xô, xô! – mirável, cores
pairantes, no garridir; fez sonho. Mas a gente nem podendo esfriar de ver. Já para
o outro imenso lado apontavam. De lá, o sol queria sair, na região da estrela-
d’alva. A beira do campo, escura, como um muro baixo, quebrava-se, num
ponto, dourado rombo, de bordas estilhaçadas. Por ali, se balançou para cima,
suave, aos ligeiros vagarinhos, o meio-sol, o disco, o liso, o sol, a luz por tudo.
Agora, era a bola de ouro a se equilibrar no azul de um fio. O Tio olhava no
relógio. Tanto tempo que isso, o Menino nem exclamava. Apanhava com o olhar
cada sílaba do horizonte.
Mas não pudera combinar com o vertiginoso instante a presença de lembrança
da Mãe – sã, ah, sem nenhuma doença, conforme só em alegria ela ali teria de
estar. E nem a ligeireza de idéias de tirar do bolso o companheiro bonequinho
macaquinho, para que ele visse também: o tucano – o senhorzinho vermelho,
batendo mãos, à frente o bico empinado. Mas feito se, a cada parte e pedacinho
de seu vôo, ele ficasse parado, no trecho e impossivelzinho do ponto, nem no ar
– por agora, sem fim e sempre.
O trabalho do pássaro
Assim, o Menino, entre dia, no acabrunho, pelejava com o que não queria
querer em si. Não suportava atentar, a cru, nas coisas, como são, e como sempre
vão ficando: mais pesadas, mais-coisas – quando olhadas sem precauções. Temia
pedir notícias; temia a Mãe na má miragem da doença? Ainda que relutasse, não
27
podia pensar para trás. Se queria atinar com a Mãe doente, mal, não conseguia
ligar o pensamento, tudo na cabeça da gente dava num borrão. A Mãe da gente
era a Mãe da gente, só; mais nada.
Mas, esperava; pelo belo. Havia o tucano – sem jaça – em vôo e pouso e vôo.
De novo, de manhã, se endereçando só àquela árvore de copa alta, de espécie
chamada mesmo tucaneira. E dando-se o raiar do dia, seu fôlego dourado. Cada
madrugada, à horinha, o tucano, gentil, rumoroso:... chégochégochégo... – em vôo
direto, jazido, rente, traçado macio no ar, que nem um naviozinho vermelho
sacudindo devagar as velas, puxado; tão certo na plana como se fosse um
marrequinho deslizando para a frente, por sobre a luz de dourada água.
Depois do encanto, a gente entrava no vulgar inteiro do dia. O dos outros, não
da gente. As sacudidelas do jipe formavam o acontecer mais seguido. A Mãe
sempre recomendara zelo com as roupinhas; mas a terra aqui era à desafiada. Ah,
o bonequinho macaquinho, mesmo sempre no bolso, se sujava mais de suor e
poeira. Os mil e mil homens muitamente trabalhavam fazendo a grande cidade.
Mas o tucano, sem falta, tinha sua soência de sobrevir, todos ali o conheciam
no pintar da aurora. Fazia mais de mês que isso principiara. Primeiro, aparecera
por lá uma bandada de uns trinta deles, voezantes, mas sendo de-dia, entre dez e
onze horas. Só aquele ficara, porém, para cada amanhecer. Com os olhos tardos
tontos de sono, o bonequinho macaquinho em bolso, o Menino
apressuradamente se levantava e descia ao alpendre, animoso de amar.
O Tio lhe falava, com excessivos de agrado, sem o jeito nenhum. Saíam – sobre
o se-fazer das coisas. Tudo a poeira tapava. O bonequinho macaquinho, um dia,
devia de poder ganhar algum outro chapeuzinho, de alta pluma; mas verde, da
cor da gravata, tão sobressaída, com que o Tio, de camisa, agora não estava. O
Menino, em cada instante, era como se fosse só uma certa parte dele mesmo,
28
empurrado para diante, sem querer. O jipe corria por estradas de não parar,
sempre novas. Mas o Menino, em seu mais forte coração declarava, só: que a
Mãe tinha de ficar boa, tinha de ficar salva!
Esperava o tucano, que chegava, a-justo, a-tempo, a-ponto, às seis-e-vinte da
manhã; ficava, de arvoragem, na copa da tucaneira, futricando as frutas, só os dez
minutos, comidos e estrepulados. Daí, partia, sempre naquele outro-rumo, no
antes do pingado meio-instante em que o sol arrebolava redondo do chão;
porque o sol era às seis-e-meia. O Tio media tudo no relógio.
De dia, não voltava lá. Se donde vinha e morava – das sombras do mato, os
impenetráveis? Ninguém soubesse seus usos verdadeiros, nem os certos horários:
os demais lugares, aonde iria achar comer e beber, sobre os pontos isolados. Mas
o Menino pensava que devia acontecer mesmo assim – que ninguém soubesse.
Ele vinha do diferente; só donde. O dia: o pássaro.
Entremeio, o Tio, recebido um telegrama, não podia deixar de mostrar a cara
apreensiva – o envelhecimento da esperança. Mas, então, fosse o que fosse, o
Menino, calado consigo, teimoso de só amor, precisava de se repetir: que a Mãe
estava sã e boa, a Mãe estava salva!
De repente, ouviu que, para consolá-lo, combinavam maneira de pegar o
tucano: com alçapão, pedrada no bico, tiro de espingardinha na asa. Não e não! –
zangou-se, aflito. O que cuidava, que queria, não podendo ser aquele tucano,
preso. Mas a fina primeira luz da manhã, com dentro dela, o vôo exato.
O hiato – o que ele já era capaz de entender com o coração. Ao outro dia
seguinte. Aí, quando o pássaro, seu raiar, cada vez, era um brinquedo de graça.
Assim como o sol: daquela partezinha escura no horizonte, logo fraturada em
fulgor e feito a casca de um ovo – ao termo da achãada e obscura imensidão do
campo, por onde o olhar da gente avançava como no estender um braço.
29
O Tio, entanto, diante dele, parou sem a qualquer palavra. O Menino não quis
entender nenhum perigo. Dentro do que era, disse, redisse: que a Mãe nem
nunca tinha estado doente, nascera sempre sã e salva! O vôo do pássaro
habitava-o mais. O bonequinho macaquinho quase caíra e se perdera: já estando
com a carinha bicuda e meio corpo saídos do bolso, bisbilhotados! O Menino
não lhe passara pito. A tornada do pássaro era emoção enviada, impressão
sensível, um transbordamento do coração. O Menino o guardava, no fugidir, de
memória, em feliz vôo, no ar sonoro, até à tarde. O de que podia se servir para
consolar-se com e desdolorir-se, por escapar do aperto de rigor – daqueles dias
quadriculados.
Ao quarto dia, chegou um telegrama. O Tio sorriu, fortíssimo. A Mãe estava
bem, sarada! No seguinte – depois do derradeiro sol do tucano – voltariam para
casa.
O desmedido momento
E, com pouco, o Menino espiava, da janelinha, as nuvens de branco
esgarçamento, o veloz nada. Entretempo, se atrasava numa saudade, fiel às coisas
de lá. Do tucano e do amanhecer, mas também de tudo, naqueles dias tão piores:
a casa, a gente, a mata, o jipe, a poeira, as ofegantes noites – o que se afinava,
agora, no quase-azul de seu imaginar. A vida, mesmo, nunca parava. O Tio, com
outra gravata, que não era a tão bonita, com pressa de chegar olhava no relógio.
Entrepensava o Menino, já quase na fronteira soporosa. Súbita seriedade fazia-
lhe a carinha mais comprida.
30
E, quase num pulo, agoniou-se: o bonequinho macaquinho não estava mais em
seu bolso! Não é que perdera o macaquinho companheiro!... Como fora aquilo
possível? Logo as lágrimas lhe saltavam.
Mas, então, o moço ajudante do piloto veio trazer-lhe, de consolo, uma coisa:
“Espia, o que foi que eu achei, para Você” – e era, desamarrotado, o chapeuzinho
vermelho, de alta pluma, que ele, outro dia, tanto tinha jogado fora!
O Menino não pôde mais atormentar-se de chorar. Só o rumor e o estar no
avião o atontavam. Segurou o chapeuzinho sozinho, alisou-o, o pôs no bolso.
Não, o companheirinho Macaquinho não estava perdido, no sem-fundo escuro
no mundo, nem nunca. Decerto, ele só passeava lá, porventuro e porvindouro,
na outra-parte, aonde as pessoas e as coisas sempre iam e voltavam. O Menino
sorriu do que sorriu, conforme de repente se sentia: para fora do caos pré-inicial,
feito o desenglobar-se de uma nebulosa.
E era o inesquecível de-repente, de que podia traspassar-se, e a calma, inclusa.
Durou um nem-nada, como a palha se desfaz e, no comum, na gente não cabe:
paisagem, e tudo, fora das molduras. Como se ele estivesse com a Mãe, sã, salva,
sorridente, e todos, e o Macaquinho com uma bonita gravata verde – no alpendre
do terreirinho das altas árvores... e no jipe aos bons solavancos... e em toda-a-
parte... no mesmo instante só... o primeiro ponto do dia... donde assistiam, em
tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôo, ainda muito mais vivo,
entoante e existente – parado que não se acabava – do tucano, que vem comer
frutinhas na dourada copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa. Só aquilo.
Só tudo.
– “Chegamos, afinal!” – o Tio falou.
– “Ah, não. Ainda não...” – respondeu o Menino.
Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida.
31
Longe e perto da mãe:
Os Cimos
personagem ainda um menino. Podia ser a menina, mas permanece o
menino que talvez se ligue à mãe com mais desespero de estar nela ainda. Pra
mim, que sou mulher, um homem, “o Menino”, só poderia ser conhecido pela
imaginação ou por meu corpo, se nele tivesse vivido um menino. E então sonho
o amor de uma criança, seu anseio pela mãe, por meio de um fio de imaginação
que conhece o que seria ser mãe, que conhece a dependência de filho, pela
perspectiva da mãe que sou em potência.
E também o conheço pela criança que fui, ainda sou. E aí tanto faz que seja
menino ou menina, porque descobrir o mundo, ir visitar as coisas e ir com medo
mesmo é trabalhoso (mas possível) pra ambos.
O
32
O Menino dessa estória faz uma viagem com o Tio, enquanto a Mãe está
doente. Eles vão para “o lugar onde as muitas pessoas faziam a grande cidade.”
13
O medo é apaziguado pelo companheirinho macaquinho. O bonequinho de
calças pardas, cujo chapeuzinho de alta pluma é descartado pelo Menino no
começo da viagem. Macaquinho que ele carrega no bolso e diversas vezes segura
com força de querer que exista muito mais dentro de si, em companhia. O risco
da perda é uma lembrança indesejada. Mas sendo a Mãe a boa memória, todo o
próprio bem, em fonte doce e mansa, como poderia Ela conviver com a Morte
numa mesma recordação? Então do mesmo jeito que procura escapar de ser
tomado por esses pensamentos, também não quer fugir deles. Parece que se
deixar de pensar, se desprender os fios do imaginado, algo de pior pode suceder.
E são as vindas do pássaro, o tucano que vem voar nos cimos das altas árvores,
que o fazem por maior tempo suspender a tensão que é o conhecimento de sua
orfandade potencial, sua orfandade original. Essas visitas, chamadas “o trabalho do
pássaro”, constituem parte máxima da experiência, o Menino que encontra com a
vida e descobre as distâncias, as alturas, o efeito do tempo.
Ao quarto dia, o Tio recebe boas notícias da Mãe e eles podem voltar. No
mesmo avião, as lembranças se confundem ainda mais. É então que o Menino se
dá conta de que perdera o macaquinho. Ele chora em desespero e o piloto do
avião lhe mostra o chapeuzinho desprezado no início da viagem. O Menino
acaricia o chapéu e o coloca no bolso, imaginando um lugar pra onde vão as
coisas, as pessoas, seu companheirinho. Eles não desaparecem, vão e voltam
desse lugar-esconderijo, no “sem-fundo escuro do mundo”
14
. Agora, no coração dele, a
vida de antes, durante e depois da viagem, em brilhos de recordação.
13
Id., Ibidem. p. 152
14
Id., Ibidem. p. 159.
33
O menino e o macaquinho
Quando as crianças vão para a escola, elas acabam tendo de ficar muito tempo
longe da mãe. Às vezes é tempo demais. Embora a idade do Menino de “Os
Cimos” não seja indicada com clareza, penso que ele tem menos de seis anos.
Imagino que esta seja a primeira vez que ele fica tanto tempo longe da Mãe, ou
seja, ele ainda não freqüentou a escola.
Esse Menino pequeno tem, por sorte, um brinquedo preferido, que a própria
Tia faz questão de lhe entregar antes da viagem. Esse companheiro macaquinho
talvez seja aquilo que Winnicott chamou de objeto transicional, mas não se pode
dizer ao certo. O fato é que se não era antes, acaba se tornando cada vez mais
companheiro no decorrer da jornada.
34
“Mas o bonequinho macaquinho não era mais o para a mesa de
cabeceira: era o camarada, no travesseiro, de barriguinha para cima,
pernas estendidas.”
15
Para Winnicott, pode-se resumir algumas das qualidades da relação do bebê
com o objeto transicional:
“1. O bebê assume direitos sobre o objeto e concordamos com esse
assumir. Não obstante, uma certa ab-rogação
16
da onipotência
desde o início constitui uma das características.
2. O objeto é afetuosamente acariciado, bem como excitadamente
amado e mutilado.
3. Ele nunca deve mudar, a menos que seja mudado pelo bebê.
4. Deve sobreviver ao amar instintual, ao odiar também e à
agressividade pura, se esta for uma característica.
5. Contudo, deve parecer ao bebê que lhe dá calor, ou que se move,
ou que possui textura, ou que faz algo que pareça mostrar que tem
vitalidade ou realidade próprias.
6. Ele é oriundo do exterior, segundo nosso ponto de vista, mas
não o é, segundo o ponto de vista do bebê. Tampouco provém de
dentro; não é uma alucinação.
7. Seu destino é permitir que seja gradativamente descatexizado
17
,
de maneira que, com o curso dos anos, se torne não tanto
esquecido, mas relegado ao limbo. Com isso quero dizer que, na
saúde, o objeto transicional não ‘vai pra dentro’; tampouco o
sentimento a seu respeito necessariamente sofre repressão. Não é
15
Id., Ibidem. p. 154.
16
Revogação, anulação de uma lei por lei posterior.
17
Originalmente no alemão, Besetzung, a palavra Catexia é um conceito psicanalítico que fala do processo pelo qual
a energia psíquica disponível no indivíduo é investida em determinados objetos. Ou seja, a energia se liga e se fixa
em determinadas representações mentais e fica ali enraizada, indisponível para outros usos. Quanto Winnicott fala
de gradativa descatexização, portanto, está se referindo a um desligamento que se dá aos poucos e ocorre dentro
dos moldes da economia psíquica, reorientando a libido para outros aspectos da vida do bebê.
35
esquecido e não é pranteado. Perde o significado, e isso se deve ao
fato de que os fenômenos transicionais se tornaram difusos, se
espalharam por todo o território intermediário entre a ‘realidade
psíquica interna’ e o ‘mundo externo, tal como percebido por duas
pessoas em comum’, isto é, por todo o campo cultural.”
18
Não tenho a intenção de transformar o Menino de Rosa num caso clínico.
Quero me aproximar dele pra poder imaginar como ele é, o que se passa por esse
pequeno ser desamparado, como de resto todos nos encontramos, mais cedo ou
mais tarde na vida.
Os estudos de Winnicott me parecem proveitosos, por que se apóiam em
trabalho cuidadoso com crianças, partindo da teoria de Freud, mas
aprofundando-a em sua acurada observação da díade mãe-bebê. Não é necessário
que o macaquinho de nosso Menino preencha todos os requisitos do resumo
citado para que saibamos, nós que fomos crianças, psicanalistas ou não, o quanto
essa companhia é valiosa para ele.
Muitas crianças, mesmo em idade mais avançada, e com plena capacidade de
distinguir realidade e fantasia, fazem pequenas “concessões” para essa separação
quando se relacionam com determinados objetos. No caso do nosso Menino, em
vários momentos, fica claro que o boneco está carregado de subjetividade, é um
ser animado, que vive dramas de um menininho.
“O pobre do macaquinho, tão pequeno, sozinho, tão sem mãe;
pegava nele, no bolso, parecia que o macaquinho agradecia, e, lá
dentro, no escuro, chorava.”
19
18
Winnicott, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 18.
19
Rosa, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 153.
36
O brinquedo também se parece um pouco com o Tio, decerto como o próprio
Menino deverá um dia também ser, o homenzinho:
“O Tio ressonava. O macaquinho, quase também, feito um muito
velho menino.”
20
“O bonequinho macaquinho, um dia, devia de poder ganhar algum
outro chapeuzinho, de alta pluma; mas verde, da cor da gravata, tão
sobressaída, com que o Tio, de camisa, agora não estava.”
21
A relação dos dois, Menino e macaquinho, é de harmonia e pequenas
desobediências. Por vezes o menino ocupa um lugar materno, de proteger ou
vigiar os movimentos do boneco, que é muito travesso.
“O bonequinho macaquinho quase caíra e se perdera: já estando
com a carinha bicuda e meio corpo saídos do bolso, bisbilhotados!
O Menino não lhe passara pito.”
22
O boneco é então um pouco da mãe, como as mantinhas de tantos de nós, com
seu cheiro e a maciez de uma lã que lembra um carinho de dedos no nariz, ou os
cabelos dela que enrolamos nos dedos enquanto mamamos. É também um irmão
de emergência, que fica junto e sofre junto e tem medo junto. É um futuro
homenzinho, um pedaço de Pai (palavra que não aparece na estória). Mas
parecido mesmo ele é com o Tio, que o leva a passear e que tem uma linda
gravata verde. Esse boneco tem pluma na cabeça, que poderia ser verde e ter
tantas outras cores, como as plumas do tucano.
20
Id., Ibidem. p. 154
21
Id., Ibidem. p. 157
22
Id., Ibidem. p. 158
37
Importa lembrar, dessa forma, que a transição realçada na figura do boneco
permeia toda a estória. E o fantasiar, num primeiro momento apagado pela dor
do Menino, torna-se cada vez mais elemento poderoso, o que possibilita a
travessia, antes e depois dos sustos causados pela realidade absurda do pássaro
das altas árvores.
Por isso viajo com o menino, nessa ilusão que é a sua própria sustentação, o
grande instrumento que tem de permanecer inteiro, mesmo numa situação tão
adversa para sua tenra idade.
Essa ilusão está na raiz da capacidade de simbolização, isto é, na capacidade
que, em outras palavras, temos de fazer conviver fantasia e realidade de modo
criativo, transitando sem tanta rigidez pelos dois mundos.
“Quando o simbolismo é empregado, o bebê já está claramente
distinguindo entre fantasia e fato, entre objetos internos e objetos
externos, entre criatividade primária e percepção. Mas o termo
transicional, segundo minha sugestão, abre campo ao processo de
tornar-se capaz de aceitar diferença e similaridade”
23
Winnicott lembra ainda que há um longo e complexo percurso desde o mundo
puramente subjetivo até a objetividade, sendo o objeto transicional aquilo que
podemos perceber nessa passagem.
E é possível afirmar que, para todos nós, a primeira dessas jornadas é sempre
uma viagem que fazemos pra longe da mãe, seja do colo ao berço, do colo ao
chão, do colo ao quarto ao lado, do colo à escola. Nunca temos a certeza de que
Ela estará lá, na volta. Mas como a vida nos exige distâncias cada vez maiores,
Ela precisa sobreviver dentro da gente.
23
Winnicott, D. W. O Brincar e a realidade, Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 19.
38
O Menino da nossa estória tem um grande problema a resolver. Nada menos
do que salvar sua Mãe, o que corresponde a salvar-se a si próprio.
39
Mínima memória
“Primeira – Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que
fomos? É belo e é sempre falso...
Segunda – Não, não falemos disso. De resto, fomos nós alguma cousa?”
Fernando Pessoa
24
empre imaginei que as pessoas tivessem mais recordações da infância do que
eu. Poucas situações vividas naquela época se sustentam na minha lembrança e o
que fica é uma vaga idéia, um borrão embebido da nítida certeza de que não fui
feliz. Convicção decerto inventada por meus retratos de infância, nos álbuns de
família. Quando, no entanto, por breves lampejos, recupero as primeiras
memórias, percebo que as mais vigorosas são as de epifania. As maravilhas do
mundo eram reveladas de rompante, mas imediatamente sobrevinha o medo,
medo da morte. Sei da minha infância esta verdade: era quando eu descobria a
24
Pessoa, Fernando, in: “O marinheiro”, O eu profundo e os outros eus (seleção poética), Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
p. 113.
S
40
vida que o fim das coisas se revelava, imperioso. E era penosa a descoberta. Eu
me lembro de um cansaço, uma velhice arrastada em meu corpo, que era um
corpo de menina. Velhice adiantada na percepção de que viver era passageiro.
Então o medo. Medo de perder as pessoas, medo de perder o que se anunciava
como felicidade, medo de perder a própria vida. A gravidade desse risco em
revelação. Penso que a escolha de “Os Cimos” está intimamente ligada a esse
sentimento mais remoto. Gosto que o Menino se apaixone pelo que vai vendo,
que devagar recupere a capacidade de brincar, como deve ser. Gosto que na vida
dele o medo seja esquecido com a aparição do tucano, aquelas cores borrifadas
no céu. Que ele seja livre naquela hora, esqueça o medo de perder a mãe, o
perigo todo que há na vida. E viva.
E recupero meu corpo de infância, justo no ponto em que a dor fazia sombras
de existir. O medo-velhice se dissolve num caminho comprido. Cada passo é um
avanço. Mas o caminho de volta que agora percorro derruba pouco a pouco o
medo de estar lá, tranqüiliza o que parecia ferida perene. Sem que me dê conta,
vou e volto tantas vezes que a memória se expande e faz caber mais existência,
mais sinais dessa coisa tão delicada que é minha própria vida dentro e fora do
medo. Narro o que já nem sei mais e o narrar, de pranto que me transborda, não
me enaltece, nem me diminui, mas me recupera. Eu já nem mais aquela menina,
nem ela uma personagem que me espera. Devo ainda trazê-la pela mão?
41
Aos seis anos de idade, me vi entre mulheres, dentro de
uma casa velha. Eram mais ou menos cinco, todas iguais,
loiras, maquiadas. Todas eram cópias idênticas da Marilyn
Monroe, espremidas do meu lado. A casinha era pobre e
ficava ao lado de uma ribanceira, um buraco que fora
outrora o caminho de um rio. Então o cenário era esse: casa
velha despencando num rio seco. Esperávamos a explosão
da bomba. Sobreviveríamos se permanecêssemos ali,
protegidas do clarão que se anunciava, esse era o perigo.
Morreríamos pelos olhos, morreríamos se víssemos a
grande luz, por isso todas as Marilyn se apertavam,
amedrontadas. Depois de ouvir o barulho da bomba,
esperei alguns segundos antes de sair da casa. Tinha de ser
rápida, porque uma outra bomba fora armada debaixo da
ponte que atravessava o rio seco, bem perto da casa. Eu
deveria correr até lá para desarmá-la. Não havia muito
tempo. Ao sair da casa tropecei em algo e olhei pro chão:
era uma Marilyn que, carbonizada pela visão da luz, tornara-
se bruxa morta.
42
Eu tinha uma boneca. Corpo duro, sem articulação. A
calcinha branca era desenhada em alto relevo no próprio
plástico. Era uma boneca ruiva e só sua cabeça era mole,
de borracha. Ela foi por muitos anos uma companheira
minha. Eu tive outras bonecas, mas aquela era minha filha,
tinha os olhos azuis e o corpo dela não podia me abraçar,
mesmo nas noites escuras, eu querendo que ela me
protegesse das visões da madrugada, naquela hora em que
a luz tênue da lua, penetrando o quarto, fazia das roupas
penduradas nas camas os monstros assustadores que me
impediam de seguir dormindo. Só quando o sol revelava
os objetos do quarto de novo é que eu podia voltar a
dormir. Um dia, durante uma briga, meu irmão tentou
ficar com ela. Consegui tomá-la de volta, mas ele segurou
firme e o braço esquerdo dela partiu no ombro. Tentei
colar com superbonder, mas não sabia que o efeito da cola
era corrosivo em alguns materiais. Então o braço caiu
mesmo e a borda da ferida ficou preta. Continuei abraçada
àquela filha que a cada dia podia abraçar menos.
43
Meus pais quiseram me colocar na escola mais cedo do que
era o costume. Completei seis anos em novembro de 1981 e
no início de 82 comecei a freqüentar a escola. Entrei direto,
sem pré-escolas ou precauções. No primeiro dia de aula, fui
acompanhada de uma vizinha que já cursava a quarta-série.
A escola era perto de casa. Fomos a pé, por mais ou menos
um quilômetro e a minha amiga mais velha ficou
encarregada de cuidar de mim. Levei um caderno e um lápis
dentro de uma sacola. Assisti à primeira parte da aula,
assustada. Na hora do recreio, continuei abraçada ao meu
material e procurei minha vizinha entre as crianças do pátio.
Ela riu muito de me ver agarrada às minhas coisas, disse que
não precisava ficar carregando aquilo, devia deixar dentro da
sala. Fiquei envergonhada de não saber de antemão das
coisas. Decidi que tentaria adivinhar tudo antes, aprender a
fazer o que era certo, pra não me envergonhar mais.
Mas nunca, pela vida afora, perdi tantas coisas como
naquele primeiro ano de escola. Tudo que minha mãe
mandava, objetos de maior ou menor serventia, guarda-
chuva, pano de prato embrulhando sanduíche, gorro de lã,
tudo acabava sendo esquecido num passeio, ou na sala de
aula, debaixo da carteira. E eu chorava. Tinha de me
esforçar um pouco mais pra gostar da escola.
44
É difícil de explicar, como é que uma menina, sem
corpo, ia olhar pra um espelho que não existia, mas
olhar muito e ao mesmo tempo não olhar, olhar pra
nada, não se vendo nesse espelho, olhar praquele
buraco que tinha e que era ela mesma, sem corpo,
ouvindo a voz de trovão e nem se mexendo, tentando
voltar pra raiz, mas não tinha caminho de volta, então
ficava na cabeça, no olho, no espelho...
45
Havia uma fazenda margeando o bairro em que
morávamos. De tempos em tempos, brotava algodão
naquelas terras. Todas as crianças da rua gostavam quando
aquele branco começava a pipocar por todo o campo.
46
Não reconhecia minha mãe direito. Era estranho ser filha.
Diziam que eu era a mais parecida com ela, os olhos escuros,
os cabelos... Mas naquele tempo eu não podia vê-la.
47
Quando eu visitava o ortopedista ele me dizia que quanto
mais tempo do dia eu ficasse com as botinas, mais rápido eu
poderia usar sandálias, como as outras meninas. Então, de
tardezinha, depois de estudar e brincar, eu tomava banho e
punha as botas de novo, às vezes até dormia com elas. Eu
tinha de fazer as coisas da melhor forma.
48
Vejo um homem de rosto moreno. Ele usa uma fita para
medir a rua que liga minha casa à escola e me pede ajuda.
Cada um segura uma ponta da fita. Depois disso, ando
pela rua e encontro com uma menina-boneca. Quero
abraçá-la, mas só sua cabeça é humana. Quando toco em
seu corpo ela me agride com os braços pontiagudos.
Tento acariciar seu rosto para acalmá-la. Sua face
humana aceita o carinho e então nos aproximamos.
49
Fidelidade
Se lançarmos um olhar, mesmo que superficial, para o passado, para a vida que
ficou pra trás, sem nem mesmo recordar seus momentos mais significativos, iremos
nos surpreender continuamente com a singularidade dos acontecimentos de que
participamos, com a individualidade absoluta dos personagens com os quais nos
relacionamos. Esta singularidade é como a nota dominante de cada momento da
existência; em cada momento da vida, o princípio vital é único em si. O artista,
portanto, tenta apreender esse princípio e torná-lo concreto, renovando-o a cada
vez; a cada nova tentativa, mesmo que em vão, ele tenta obter uma imagem
completa da Verdade da existência humana. A qualidade da beleza encontra-se na
verdade da vida, que o artista assimila e dá a conhecer de acordo com sua visão
pessoal.
Andrei Tarkovski
25
o que devo fidelidade? Se algum princípio há de reger meu caminho, ele deve
ser ditado pelas imagens que me invadem. A invenção de uma memória, a
necessidade de capturar um fio de existência da menina que não era ainda, o
reencontro com as fotografias amareladas e tristes.
25
Tarkovski, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 122.
A
50
Preciso tocar o rosto dessa menina que aparece em meus sonhos, desmanchar
sua carranca sem cócegas, porque ela não sabe que existe, está procurando saber
o que deve fazer pra merecer um corpo.
Eu não sabia por que tamanha insistência nas crianças de Guimarães Rosa. Mas
agora que cheguei até aqui, vejo que elas me apresentam as faces que não posso
ver de mim mesma. E são meninos, talvez porque Rosa foi um menino.
Eu fui uma menina. Sou. E agora acho até bonito que minha grande viagem
não tenha sido a viagem de avião para a grande cidade, que minha mãe não
tivesse quase morrido, embora desconfio que tenha sofrido tristezas profundas,
sem nome nem remédio. Mas minha tarefa é apenas medir a distância que separa
minha casa da escola, um lugar absoluto e amedrontador. Se já era difícil ter
corpo e braços em casa, quase impossível será ter de me ver e ser vista entre
tantos outros rostos assustados, ávidos por reconhecimento.
E, de brusca, a viagem que fiz me trouxe até aqui, este exato instante em que
desejo contar algo.
Então penso no que é a captura da imagem, a captura da verdade de que fala
Tarkovski. Quero ser fiel às minhas imagens, dar materialidade à sua
movimentação interna, mas tenho as mãos vazias.
Eu e o menino. Eu, o menino e essa escrita que, por ora, povoa o tempo de
som, pulveriza imagens em lugares secretos, entre minhas mãos que escrevem,
meus lábios que dizem e algum Outro com olhos e ouvidos de ler e ouvir.
Eu, menino e menina.
51
O real
“Rápidas manos frías
retiran una a una
las vendas de la sombra
Abro los ojos
todavía
estoy vivo
en el centro
de uma herida todavía fresca.”
Octávio Paz
26
ico pensando uns pensamentos de fantasia: será que me aventuro nessa
narrativa de mim mesma para encontrar com o Menino, ou encontro-o para me
alcançar em algum ponto da vida, descobrir se posso ou não narrar? Então me
vejo ainda constrangida a não abandonar minha primeira pessoa, fazendo deste
texto documento e testemunho. Vazo os pontos do inventado e do vivido,
movida pela necessidade de me aproximar do real.
26
Madrugada, In: Savary, Olga. 23 Poemas de Octávio Paz. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1983.
F
52
Vejo algo de semelhante a essa busca permeando o cinema neo-realista e,
sobretudo, as realizações de Visconti. Ele estava profundamente incomodado
com a insistência dos roteiristas e cineastas em usar os poderosos recursos do
cinema de modo a anestesiar o espectador, proteger muito mais do que revelar.
“[...] no artigo Traduzione e Invenzione, de 1941, quando
trabalhava no roteiro de Obsessão, tendo a intenção de iniciar uma
atividade cinematográfica, uma das maiores dificuldades que
pareceram se opor a este desejo e à ambição de compreender o
filme como obra poética foi - confessa então - a constatação da
vulgaridade, e se me permitem o termo, da miséria que se encontra
então na base comum dos roteiros. Muitas vezes Visconti
perguntou a si mesmo a razão pela qual, enquanto existe uma sólida
tradição literária que por muitas e muitas formas de romance e
novela transportou para o domínio da fantasia tanta verdade pura e
sincera sobre a vida humana, o cinema, que em sua acepção mais
exterior pretenderia ser o encarregado direto da documentação
desta vida, está ao contrário satisfeito em habituar o público ao
gosto da pequena intriga, do melodrama retórico em que uma
coerência mecânica garante de saída o espectador contra os riscos
da inspiração e da invenção."
27
A força de ruptura do cinema de Visconti estava em sua forma documental,
seus enredos servindo apenas de base para a exposição de imagens cruas. Como
agravante a toda essa insatisfação, ele perde o pai um pouco antes do início das
filmagens de Obsessão e também um de seus irmãos, já nos últimos meses de
trabalho. O luto, a ameaça da censura, a precariedade de condições de filmagem
contribuíram para a crueldade que se revela no filme.
27
Aristarco, Guido. In prefácio a Visconti, Luchino. Rocco e seus Irmãos, Rio: Ed. Civ. Bras., 1967.
p. 27.
53
“Certas mulheres, envolvidas em suas peles, estremeciam de horror
– confiará Visconti. – Se elas soubessem que, para fazer aquele
filme, eu vendera as jóias de minha mãe! Ao fim da projeção,
entretanto, os aplausos, a princípio tímidos, transformaram-se em
ovação. Mas quando acendeu a luz, o filho do Duce se levantou,
dirigindo-se para a porta, que bateu atrás de si, enquanto exclamava,
numa voz indignada e sonora: ‘Isso não é a Itália’!”
28
Com Obsessão, Visconti inaugura o neo-realismo marca sua própria maneira de
conceber a criação. Uma declaração sua, feita já em 1968, mostra um pouco
dessas idéias.
"Há quinze anos mergulhamos em um caminho que se chamou
neo-realismo. Alguns preferiram o caminho mais curto, outros
julgaram conveniente firmar-se para aproveitar as boas
oportunidades. Quanto a mim depois de chegar à documentação
crua, à linguagem direta das coisas, tenho necessidade de narrar.
Mas não se pode narrar seriamente antes de se chegar aos contatos
diretos com a realidade".
29
Há na trajetória de Visconti algo que me ajuda a refletir sobre a fronteira em
que ora vivo, cujo centro pulsante é o que se revela, o real: seja ele reencontrado
em personagens literários, imaginado, criado ou recordado.
28
Schifano, Laurence, Luchino Visconti: O fogo da paixão, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 188.
29
Aristarco, Guido. In prefácio a Visconti, Luchino. Rocco e seus Irmãos, Rio: Ed. Civ. Bras., 1967.
p. 28.
55
Conto, por trás do conto
m modo de poder contar o que desejo, oscilo nos tempos, nas formas do
verbo, nas distâncias que me afastam do que vejo no que fui e no que sou. E
tanto faz agora.
Fico em frente ao espelho e vejo a menina sentada na cama, as costas um
pouco arcadas, cara de desânimo. No colo dela, uma boneca de plástico com o
braço esquerdo pendurado por um pequeno fio. Quase nada faz o braço
continuar ali.
Pensava em pensamentos de menina que não ia durar muito tempo, a
superbonder não adiantou.
Pensava: “não cola, não vai mais colar e vai acabar caindo.”
Olha pro braço da boneca enquanto a mãe escova seus cabelos com certa força
e prende a franja com uma presilha colocada de lado – uma coisa muito bonita
E
56
de se fazer no cabelo, mas ela não gosta, faz cara entristecida – “porque a mãe
tem sempre que prender tão de lado, tão sem fazer voltinha, tão apertado?”
“Tá feio, eu sei que tá feio. Eu não gosto assim.” Mas nem sempre dá pra dizer
pra mãe que não gosta das coisas. Justo na hora que ela diz “olha, minha filha,
você não vai poder levar sua boneca pra escola não, tá bom?”
Um clarão forte no espelho faz desaparecer tudo. O branco e o amarelo da luz
anunciam: é de manhã. Ela vem de baixo e cresce. É de manhã. É de manhã tão
cedo que nem eu sei porque estou aqui plantada olhando pra luz que cega. Onde
nasceu o dia que veio e me arrancou as cores que eu ainda via de madrugada? O
que vêm trazer esses fios de luz que me roubam a vida que eu tinha? Ah! A
menina.
Um pouco antes da menina levantar da cama, uma chuva fina lhe dava um
desconsolo, não sabia porque precisava ir pra escola.
De madrugada chovia, os olhos dela pregados nas paredes, nos panos
pendurados pelos móveis do quarto. A noite era úmida pra que nenhum
fantasma pudesse desaparecer. Monstros grudados nas portas, nos lençóis,
debaixo da cama. Não podia levantar sem pisar em algum corpo gosmento e
horroroso.
De novo no espelho, esfrego o rosto muitas vezes. O cansaço me impede de
olhar por muito tempo sem que solte eventuais suspiros nem ameace um choro
manso, coisa que muito anuvia essa visão que resiste e ao mesmo tempo teima,
insiste.
A menina deveria estar lá, caminhando em direção à escola, mas hesita. Fica um
tempo sentada na cama e não gosta que a mãe tenha colocado nela uma camiseta
vermelha, com um buraco bem na barriga, um pouco pra baixo do umbigo.
57
A camiseta nem é velha, mas tem esse furo, uma falha no pano. Nem dá pra ver
buraco, mas passa a mão nele o tempo todo, tem medo de que alguém repare
numa coisa dessas.
E resiste.
Não quer levantar dali.
Olha para a parede.
Segura a camiseta bem em cima do buraquinho. A outra mão segurando a
boneca.
O tempo continua passando e não adianta não querer, porque daqui a pouco lá
está, na rua, o sol agora meio escondido, aquele mormaço! A amiga caminha com
ela pra escola, a que já está na quarta série. Andam sem conversar... No peito está
um cansaço, o fôlego... Não há o que falar, nada começou ainda.
“Quilômetro”, ela pensa. E vai andando. Com saia azul-marinho de pregas,
camiseta vermelha com furinho. E as botinas que o médico mandou usar fazem
um barulho enjoado no asfalto. A amiga pergunta, “você falou alguma coisa?”
Balança a cabeça dizendo que não. E pensa, “o pai falou um quilômetro de casa
na escola.” Olha pra frente e não sabe quando acaba um quilômetro. Subida leve,
mas parece que não tem fim. Deve ser muito longe! Pensa isso tudo e segura
apertado a sacolinha tira-colo.
Caminhar e pensar na força que a mãe tem de pentear o cabelo dela. Por que
tudo que a mãe faz é tão certo, tão sem discussão? Não entende as mãos da mãe
e fica pensando nelas fazendo tudo. É cuidar dela, fazer comida, pôr roupa. A
mãe não tem ninguém pra obedecer...
Volto a olhar. Se era espelho, agora nem é mais, é um buraco no tempo, na
parede, vazado em nuvens. Vazios e brancos e espaços ocos do sem fim. O suor
do rosto vai secando porque o vento agora não pára de soprar. Faz esquecer.
58
A estrada parece que ficou mais comprida. E o mormaço aperta a cabeça e o
peito. Tem uma lavoura branca margeando o caminho. É o sol aparecer melhor e
a brancura fica limpa, do jeito que gosta de ver. Tem horas que dá vontade de
parar, só ficar olhando. Ela tenta fazer, mas depois tem que correr pra alcançar a
colega. Continua caminhando e olhando pro algodão, agora um pouco de
esperança.
Portão da escola.
Crianças de toda parte.
Ela demora a saber onde vai entrar, quem deve seguir. A amiga que
desapareceu no meio dos outros. Fica agarrada com a sacola, olha pessoas e
portas.
De algum lugar vem certa mão que acaba deixando-a na porta da sua sala. A
mulher de óculos e lenço no cabelo fala pra ela entrar e sentar. Escolhe a mesa
bem no fundo, encostada na parede. Segura com força a sacola.
É nessa hora que vê um menino a seu lado. Ele está ali não estando. Olha pra
algum lugar que não existe. Sua mão é dentro do bolso.
O tempo passa mais um pouco e a voz da mulher quase some de distante. O
menino agora olha pra baixo e conversa com um boneco que tirou do bolso,
macaquinho de calças pardas, bonito e alegre de brincar.
Ela se anima. Ah! A boneca na bolsa, escondida! Quem sabe não fosse
invenção da mãe, proibir? Quem sabe a criança na escola pode levar os
brinquedos e a mãe vai ver nem sabe e falou pra dizer alguma coisa. Tira a
boneca só um pouco pra fora da sacola e toca seu rosto, olhinhos azuis, olhos de
dizer sim. Permanece num sorriso feito a baixo, conversado com a boneca. E
esquece de vez as paredes de madeira, o quilômetro comprido daquela manhã, só
59
sabe ver azul e branco, algodão com olhos de ternura e o céu, o céu querendo
não desaparecer.
A mulher de lenço na cabeça vem dizer que agora não era pra brincar de
boneca, diz que é pra ela deixar lá no cantinho da sala, enquanto a aula não
acaba. Pega na mão da menina e mostra onde deve levar sua companheira...
Os passos cansados, a bota batendo no chão, ela vai. Põe a boneca lá no canto,
em cima da mesa, encostada na parede. É na hora mesma que está fazendo isso
que o braço da boneca acaba de cair, desprendendo seu último fio. Volta pra sua
mesa, segurando uma lágrima dentro de si e apertando forte aquele braço. Segura
mais forte o buraco da camiseta, agora grande de tanto ela mexer, as botas fazem
um barulho no chão.
Meus cabelos agora estão soltos, o rosto seco, os olhos fechados. É poeira e
vento, mas nem tem jeito de a poeira entrar em mim. Meus olhos estão bem
apertados e a respiração está presa. Nem espirros, nem soluços, nem suspiros. É
secura e vento.
O menino, vendo a menina seguir de volta, com aquele pedaço de boneca nas
mãos, levanta devagar, sem querer que ninguém perceba. E leva seu macaquinho
até o canto da sala, deixa do lado da boneca dela.
Começa o tempo de escola.
61
Do texto para o cinema
viagem da menina até a escola se dá num tempo interno de dimensões
absurdamente grandes, o que gera um desconforto logo de saída: a câmera não
consegue ir além da superfície das coisas. Quais os recursos de que disponho,
portanto, se desejo o olhar dela mais de dentro, de perto?
Se fecho os olhos agora e mergulho nas sensações despertadas, vejo distâncias,
sinto a terra, algo de poeira e vento que talvez peça em som uma melodia sem
letra, entoada por voz materna. E, em imagem, uma seqüência de planos que não
são meus, são dela.
Para o menino, o rosto da mãe viria em imagens irrefutáveis, o peito dele
apertado de dor na lembrança do colo macio e branco, o espaço inequívoco do
seio à nuca, o cheiro em olhar que se desvanece. O branco de olhar não sabendo,
a mãe distante, o medo.
A
62
Já a menina, quando lembra da mãe, é o afago que permanece, em carinho
intenso. As mãos da mãe são mãos de cuidar dela. E também são as únicas
imagens que me vêm em close, além da boneca e do macaquinho.
A transição. A passagem. O movimento é o de se afastar da mãe em direção ao
mundo. Escola, edifícios, trabalho. O sol vai tocar a pele das crianças que ainda
não se viram distantes de uma proteção primeira. Mas ver isso ainda é olhar de
fora pra dentro, a luz em suas oscilações entre a noite escuríssima que apavora e
acolhe e o branco limpo do algodoal que é a própria manhã.
Mesmo com tantas tonalidades à minha disposição no mundo, as cores não se
definem. Imprecisa, ainda sem nome, nesse lugar fugidio da memória, a luz chega
de modo oblíquo, não se revela em expressões naturalistas, o olho não suportaria.
Então são cores reforçadas, mas escapadas dos tons primários. Marrons
avermelhados, verdes amarelados e vermelho.
Por outro lado, o branco atormenta. Estoura os véus da retina. Ele e a angústia
permanecem. O que não se deseja ver mas está lá, olhos abertos ou fechados,
branco visão que insiste, branco tormento, branco imagens desfocadas,
desaparição, branco-oculto, branco-revelação. Ou branco, apenas.
O vermelho da camiseta foge aos tons mais presentes e só encontra
similaridade na terra vermelho-arroxeada, que deverá aparecer em alguma
tomada. No mais, digo que não pode haver estridência nas cores, tudo está um
pouco apagado e com vida latente, escondida debaixo da poeira.
O enredo se dá num curto espaço de tempo, as poucas horas que antecedem o
primeiro dia de escola até o momento em que a aula de fato começa. Os quatro
dias de viagem do menino à espera de notícias boas da mãe. No entanto, a
gravidade desse tempo vivido pede tempo, planos seqüência em dilatações
máximas da fadiga, a respiração da menina como marca sonora desde a
63
madrugada. O ruído da botina ortopédica também. Tudo simples, quase evidente,
nenhum artifício deve haver em se ver o tempo passando na vida de uma menina
que desanima de ir pela primeira vez à escola.
Já o menino, a memória e as longas distâncias. Os quatro dias entrecortados de
poeira e o som do tucano, a cor da ave que não existia antes interfere no olhar
dele. A voz da mãe ressurge, em intervalos de angústia branca. E é o alto, a
nuvem, o pássaro a incerto vôo que o tornarão suspenso em espera. Quatro dias
são muito.
Uma narração em off com voz de criança, talvez pudesse ajudar a contar a
história, torná-la leve. Mas ainda não estou certa disso. A pequena jornada da
menina é um percurso necessário, mas é ainda de solidão. Já a outra viagem, a de
quatro dias, acontece em silêncio, a conversa são os gestos dos adultos de agrado
ao menino, os seus olhos muito atentos de interpretar sinais de vida da mãe,
boneco no bolso sempre. A lágrima escondida da menina é o choro que há de
gerar poesia. A dor de perder o braço, mas agüentar, confiante em quê?
Agüentar. Não há alegria evidente, embora haja tanta esperança. E o choro que o
menino não segura, o pranto que explode com a desaparição do macaquinho. Pra
onde irão braço, chapéu, boneco? Planos-sombra, quase que só contornos, tons
negativados, fosforecentes. O sem-fundo escuro é o que fica quando o olho
fecha.
Os adultos quase não aparecem inteiros. Em câmera baixa, só entram aqueles
que se abaixam pra falar com as crianças. Os outros não têm rosto. E deve haver
uma janela na sala de aula com vista para o algodoal. Decerto o azul do céu ficou
mais reforçado, quanto mais dentro da sala de aula ela está. Só isso.
64
O céu azul, o calor e a poeira não dão descanso para o menino. Ele trabalha de
ficar esperando enquanto o Tio trabalha. Sua pele branca vai sofrer ao sol,
tornar-se avermelhada.
Os sons da viagem do menino são a voz feminina quase sussurro, o canto do
tucano, antes e depois de sua aparição.
Já a menina, peito ofegante, botina batendo no chão, talvez também o som de
voz materna quase vento. Fora isso, só posso imaginar algum violão ou viola,
mas não muita música. Qualquer acorde em excesso pode transbordar o
sentimento que não transborda, não deve haver comiseração pela menina. Há
apenas um ritmo lento de quem vai descobrir as coisas mas não gostaria de
começar agora.
65
As cidades encontradas
“Lá (em Minas) eles falavam que aqui era muito bom, que plantava o milho e via o pé de
milho crescer, que plantava o arroz e via o arroz crescer, e o arroz tinha três palmo o
cacho de arroz. Mas não era não, né? era menos um pouco. Era conversa deles. Mas era
muito animado pra falar daqui, nossa!, eles falavam demais. Pra derrubar uma árvore aí,
uma peroba, ocupava três machadeiro, três, quatro homem de trabalhar com machado
pra derrubar aquela peroba. Aquilo era enorme assim![...]
Maringá só tinha o nome. A estrada de ferro que vem de Londrina pra Maringá, de
Marialva para cá ela só tinha a picada no meio do mato. Em 44.[...]
Mas o povo sempre animado, né? Esse Maringá era animado que só vendo uma coisa. E
o povo falava assim: ‘Gente pobre não pode morar no Maringá não, que Maringá vai ser
só casa boa, vai ser prédio, vai ser casa de tijolo’, essas coisas, né? Mas saiu muita casa
de tábua também...
Mas foi muito animado, Maringá, do começo, né? Era pra ser uma cidade boa e
sendo. Tá sendo como eles falaram, mesmo.”
Dona Elídia Thomé, minha vó
30
ica evidente que o lugar retratado é quase roça ainda. E não se revela pra mim
a melhor maneira de dizer em vídeo que lugar é exatamente esse, tão conhecido
de tantos de nós brasileiros que cresceram junto com seu povoado. O edifício
30
In: SANCHEZ, Edney Christian Thomé. Travessias: Histórias de família no norte do Paraná. Trabalho de
conclusão de curso História Social da Família, Unicamp, 1997.
F
66
escola, ainda tímido, em poucos anos ganhará outro corpo. Tudo é tão
provisório!
Não sei o que é nascer em lugar em que as coisas já existem com mais solidez.
E embora não se saiba exatamente onde mora o Menino de “Os Cimos”
podemos imaginar, por meio de uma leitura atenta e também de estudos já
realizados sobre o conto, que sua experiência de amadurecimento, a viagem para
longe da mãe, vai acontecer em Brasília, a cidade ainda em construção.
Brasília foi inaugurada em 1960. Maringá nasceu em 1947. São apenas treze
anos de diferença. E misteriosamente esses lugares aqui se encontram através dos
dois personagens, sua autonomia em construção também.
Lugares inventados, idealizados. As ruas e praças ainda têm a marca do
rascunho que as originou. Nem sempre a vida vai caber ali do jeito que fora
previsto, mas isso não importa.
Quando macaquinho e boneca se encontram, na história da menina, a mesinha
será o lugar encantado. Um mapa na parede, logo atrás dos bonecos, vai
aproximar Brasília e Maringá num itinerário pontilhado: a viagem entre lugares
irmãos.
67
Terceira Parte
69
O roteiro
Seqüência 1
Desenhos
1. Haveria uma voz de mulher cantando à capela, e seria só melodia, quase
murmúrio que, em calma, faria de imagens breves uma seqüência.
2. Mapas, desenhos, projetos de cidades, diversos. Cortes secos.
3. Enfim, o desenho das cidades sobrepostas. Ele está ali e ali fica. Segundos que
hão de parecer bem mais tempo.
70
Seqüência 2:
O Sonho da Menina
1. A tela escurece e uma imagem vai sendo desenhada aos poucos, em preto e
branco. Plano médio de uma menina de seis anos, com cara de pavor, o rosto
um pouco sujo e os cabelos bagunçados. Ao lado dela, vê-se uma mulher de
vestido sexy do colo para baixo. O plano se move um pouco e podemos ver
outro corpo de mulher vestido da mesma forma.
2. Plano geral do mesmo cômodo e estão ali ao lado da menina cinco mulheres
idênticas, loiras e sensuais. Quatro estão à sua direita e uma à sua esquerda,
espiando por uma fresta da porta. Todas são cópias de Marilyn Monroe.
3. Plano lateral das quatro mulheres vistas de perfil (subjetiva da menina). De
repente, ouve-se uma grande explosão. Por uma janela ao fundo pode-se ver
um clarão. Todas as mulheres levam as mãos aos olhos.
4. Close dos olhos da menina tapados por suas mãos. Depois de passado o
barulho, ela tira as mãos e abre os olhos lentamente. Olha para os lados e,
devagar, caminha até a porta entreaberta. A loira não está mais ali.
5. Aberta a porta, plano geral de uma paisagem seca e esfumaçada, um mundo
destruído pela guerra.
6. Plano americano da menina saindo da casinha. Ela caminha com dificuldade,
como se o chão estivesse coberto de destroços. De repente pára e olha para o
chão.
7. Em ângulo alto, uma mulher morta, deitada no chão, com roupa de Marilyn.
Plongé que se detém no close de seu rosto carbonizado, traços deformados,
feito uma bruxa.
71
8. Novamente a imagem dela de corpo todo, só que agora em fusão com um
corpo de boneca descabelada e esfolada.
Seqüência 3:
No quarto
1. Close dos olhos da Menina se abrindo bruscamente na penumbra de um
quarto. Entra também o barulho de chuva forte. A respiração da Menina fica
ofegante.
2. Plano Médio - Na escuridão, um vulto branco indefinido, que poderia parecer
um fantasma. A luz oscila um pouco, porque há raios lá fora.
3. De novo o close dos olhos da Menina arregalados na penumbra.
4. O vulto branco por alguns instantes.
5. Agora os olhos em plano um pouco mais aberto. Ao seu lado a cabeça de uma
boneca, olhos tapados pela mão da Menina.
6. A imagem branca persiste por um bom tempo...
Fade out
Fade in
72
7. O que era o vulto branco, agora é o vestido pendurado no beliche, iluminado
de sol. Ouvem-se passarinhos e cachorros lá fora, som de dia que começa numa
cidadezinha, num bairro.
8. A câmera fixa agora gira para a esquerda e podemos ver outras roupas
penduradas pelo quarto, alguns poucos brinquedos, a parede, a janela com
cortina entreaberta e a cama da Menina, que está dormindo com a cabeça meio
coberta pelo lençol. Boneca caída no chão, acompanhada por um par de
botinhas ortopédicas.
9. Entram em quadro as costas da mãe que se abaixa, recolhe a boneca caída no
chão, coloca-a de novo ao lado da Menina, que agora mal pode ser vista, só
vemos as costas da Mãe, que decerto passa a mão em sua cabeça e diz bem
baixinho:
Mãe:
Acorda, filha, hoje é um dia importante, querida. Lembra? Você
começa na escola e agora precisa levantar e se arrumar.
10. A mãe sai de quadro e vemos a Menina de olhos fechados, com a boneca do
lado. A câmera gira agora para a direita e vemos as mãos da mãe retirando as
roupas jogadas... O cenário de horrores da madrugada se desfaz.
11. Corta para um travelling em plano aproximado. Mão de criança desliza sobre
um tecido azul-marinho. As roupas estão passadas sobre a cama e a mão
percorre toda a saia azul e depois a camiseta vermelha tão demoradamente.
Encontra uma falha no pano. Fica um pouco nela, o dedo dando voltas ao seu
73
redor. Depois continua acariciando a camiseta. O gesto é delicado. Não é leve.
Tem hesitação, medo, curiosidade e um certo pesar, como a mão de alguém que
pela primeira vez descobrisse uma cicatriz no rosto do outro.
O plano se abre lentamente e temos o plano médio da Menina só de calcinha
ajoelhada no chão, de costas para a câmera e debruçada na cama, passando a
mão sobre a roupa estendida. Ela está mais à direita do quadro e a roupa à sua
esquerda. O rosto deitado sobre o colchão quer uma lágrima.
A câmera se afasta lentamente e vai passando por pequenos objetos do quarto,
todos vistos devagar e bem de perto. Depois de apresentar esses detalhes,
retorna até a cama, onde a Menina está sentada, sem camiseta, de saia, botinas,
segurando a boneca de um jeito apertado, mas olhando para o nada. Som direto
de um rádio que toca ali perto, música sertaneja.
A mãe coloca nela a camiseta. Os cabelos bagunçados, a mãe se apressa em
escová-los com força. Ela está emburrada, a cabeça balança com as escovadas
da mãe, que em seguida prende a franja de lado com uma presilha.
12. Close do braço da boneca, meio partido no ombro, acariciado pela Menina.
Mãe:
Esse braço ainda não caiu?
13. Close do rosto da Menina balançando para os lados, diz que não.
Mãe, com alguma doçura:
Me dá ela aqui um pouco, eu já expliquei
que na escola você não vai poder levar boneca.
74
14. Close da boneca nas mãos da mãe. Ela examina o buraco, seus gestos são
rápidos e vigorosos, nada têm a ver com aqueles da menina.
Mãe:
Filha, você passou cola aqui, eu te falei pra você não mexer com
cola, viu só? Nem adiantou. E você pode acabar se machucando...
15. Plano médio da Menina parada, cara de desânimo ainda maior, como uma
pequena morta que involuntariamente visse seu corpo preparado para seu
próprio funeral.
O plano se abre lentamente, e aos poucos vemos sua camiseta vermelha, a saia
azul de pregas, as botinas ortopédicas e as mãos vazias sobre a barriga. Ela
abaixa devagar a cabeça e começa a procurar o furo, próximo à altura do
umbigo. Enquanto isso os sons da casa (vozes de mãe e irmãos, música
sertaneja, passarinhos, cachorro que late) ficam gradativamente abafados e a
Menina fecha os olhos.
Mãe: Olha, a gente tem que andar mais depressa porque a Silvinha já deve
estar aí fora te esperando. Ela já conhece bem o caminho. Eu falei com a
mãe dela e pedi pra vocês duas irem juntas.
16. O plano se abre devagar, e aos poucos vemos sua camiseta vermelha, a saia azul
de pregas, as botinas ortopédicas e as mãos vazias sobre a barriga. Ela abaixa
devagar a cabeça e começa a procurar o furo, próximo à altura do umbigo.
Enquanto isso os sons da casa (vozes de mãe e irmãos, música sertaneja,
passarinhos, cachorro que late) ficam gradativamente abafados e a Menina
fecha os olhos.
75
17. Close da mão segurando firme a camiseta.
18. Close de seu rosto. Olhos fechados.
Seqüência 4:
Na rua
1. Close do rosto da Menina iluminado pela luz do dia. Os olhos dela se abrindo.
2. Contracampo de uma rua meio ladeira. Mais à direita, sentada no meio-fio, uma
menina mais velha (dez anos) de cabelos loiros, muito impaciente.
Silvinha:
Você não vem?
3. Plano médio da Menina que segura a sacola e faz que sim com a cabeça. Ela se
movimenta e ouve-se o barulho de sua botina ortopédica batendo no chão.
4. Aqui se inicia um plano-seqüência com câmera de mão. Plano americano das
costas das duas meninas andando. A Menina à esquerda, agarrada à sua sacola, e
a Colega à direita.
Fica um silêncio entre as duas e permanece a respiração da Menina e o ruído
das botas. A Menina caminha com mais lentidão. A outra parece ter um pouco
de pressa e de vez em quando elas se distanciam um pouco uma da outra. A
câmera vem para o lado da Menina, de forma que ela se coloque em primeiro
plano e a colega menos focada. Ela olha para o chão. Respiração. Botinas...
76
Menina (off): Quilômetro! ... quilômetro...
Silvinha: Você falou alguma coisa?
A Menina faz que não com a cabeça. Ela olha pra frente.
Menina (off):
O pai falou quilômetro. Quilômetro acaba quando?
Permanece a mesma seqüência por mais alguns passos, as duas em silêncio. A
câmera volta para as costas das duas meninas caminhando. O plano se abre
devagar e elas saem de foco. A respiração está mais evidente e o ruído das botas
continua.
A colega à direita segue e a Menina pára, um pouco voltada para sua esquerda.
Cessa o ruído das botas e a respiração se mantém ofegante. Então o foco se
define numa lavoura de algodão que branqueia o horizonte, a cabeça da Menina
permanece em quadro. O peito ofegante?
5. Close do rosto dela, que olha o algodão e sorri. Então surge um vento forte e
ela fecha os olhos. O som fica abafado em suspensão. A câmera gira ao redor
dela, os cabelos mexidos pelo vento e o sorriso. A câmera pára.
6. Em contracampo, a lavoura linda, florida de algodão, plano geral. De repente,
surge um avião pequeno, à direita da tela. Enquanto ele segue, o barulho
aumenta gradativamente. A câmera então faz um movimento para a esquerda,
acompanhando o movimento do avião.
7. Close da menina movendo o rosto.
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8. Novamente o algodoal e o avião cortando o horizonte, acompanhado pelo
movimento da câmera. O ruído chega ao máximo.
Seqüência 5:
Dentro do Avião
1. O mesmo ruído agora ouvido de dentro do avião. Close do rosto de Menino,
encostado na janelinha, tentando enxergar algo nas nuvens...
2. Em contracampo, as nuvens, que se fundem a várias imagens.
Memória
3. Plano aproximado e esfumaçado de uma mulher muito bonita que sorri e
conversa e não se pode ouvir o que ela fala, embora se possam ouvir sons
desconexos de conversa e risada em rotação desencontrada com as imagens,
que estão em slow motion. Seus cabelos lisos e castanhos são levemente
balançados pelo vento. A impressão que dá é de alguém que, muito envolvido
com uma situação de festa, estivesse sendo observado atentamente por alguém.
4. Corta para os rostos de outra mulher e um homem olhando bem de perto para
a câmera subjetiva da criança, eles têm que se abaixar para isso. Seus rostos são
de pesar e as roupas muito formais, de época (década de 50), a mulher veste um
tipo de tailler.
5. Novo plano da mulher bonita, agora sem toda a alegria da primeira tomada,
ainda em câmera lenta, seus cabelos estão parados, seu rosto está pálido. O
78
plano se abre bruscamente e a vemos se encostar em travesseiros altos, está
usando um camisolão.
6. Volta para o rosto da mulher que olha para ele bem de perto, meio abaixada.
Ela oferece um bonequinho e uma mala para a câmera, (o Menino). O boneco
tem cabecinha feita de material duro, machê ou louça, e tem roupas de pano.
Tem mais ou menos quinze centímetros de comprimento. É um macaquinho
de calças pardas e chapéu vermelho alto, com longa pluma verde.
7. A imagem se funde com nuvens. Vê-se então a janelinha de novo e as nuvens lá
fora.
8. Plano do Menino sentado na poltrona, visto de baixo pra cima. Ele olha para os
lados, desabotoa o cinto de segurança e vai para o chão.
9. Em câmera baixa, pode-se ver o menino engatinhando, tentando olhar debaixo
da poltrona. Estica sua mão e alcança o bonequinho. Ele passa a mão na cabeça
do boneco e se abaixa novamente, continua procurando.
Tio:
Vem cá, você não quer passar a viagem debaixo das poltronas,
quer?
10. Ele então volta para seu lugar e fica segurando o boneco com as duas mãos,
olha bem pra ele (de novo a subjetiva do Menino). Então guarda-o no bolso e
volta a olhar pra janela Seus olhos vão se fechando, ele dorme.
79
Sonho
11. Vento numa pluma verde, verde, verde, pluma verde voa, voa pluma... Voz de
mulher longe, longe, voz sonora falando coisas já faladas, mas que não se sabe
quais são.
12. Um rosto bem desfocado de Menino atrás da pluma verde. A pluma voa. A voz
pouco nítida de mulher vai ficando chorosa, desesperada, incômoda. E o vôo
da pluma se agita.
13. Corta pra o Menino acordando e há barulho e turbulência e não há ninguém ao
seu lado. O barulho aumenta, até ficar quase insuportável. Nessa hora a imagem
é toda verde e fica mais verde conforme o barulho aumenta.
14. Agora sim o Menino acorda. Não há turbulência nem muito barulho. Olha para
os lados e confere no bolso, ali está o macaquinho. Ele suspira aliviado. Mas
continua triste.
15. O tio agora está sem o paletó, com os cabelos meio desgrenhados e é possível
ver com mais destaque a gravata verde sobre a camisa branca. Ele termina de
limpar os óculos com sua gravata, percebendo que o Menino acordou. Oferece
a ele um chocolate, uma água, qualquer coisa que ele quiser.
16. O Menino aceita, mas come sem apetite. Aperta o macaquinho no bolso, como
se fosse um segredo.
80
Seqüência 6:
Na Casa (Acampamento de Trabalho)
1. Interior de uma casa de madeira, estilo pré-fabricada. O Menino está sentado
sobre sua mala e encostado na parede. À sua direita um corredor se estende ao
fundo da cena e dá numa porta em que alguns homens passam de um lado pra
outro. Vozes de homens podem ser ouvidas. Falam de prédios, ruas e jardins.
Falam também sobre o Menino. O Menino não se move. A câmera está
posicionada aos pés dele, de modo a que os homens fiquem pequenos e bem ao
fundo.
2. Depois de algum tempo, o tio vem caminhando pelo corredor, a camisa meio
aberta e o nó na gravata verde bem desfeito. Quando chega perto do Menino
talvez sua cabeça saia de quadro e só se possa ouvir sua voz.
Tio:
Aqui não tem nenhum menino pra brincar com você, mas dá pra
passear no meu trabalho. Vamos andar de jipe?
3. O Menino faz uma expressão de desânimo ainda maior. Como que dizendo,
sem falar, “você sabe que eu não gosto de andar de jipe”.
81
Seqüência 7:
No meio do cerrado, a construção
1. Plano geral, jipe cortando o cerrado.
2. Plano médio do Menino que se segura onde pode por causa dos solavancos do
carro. Olhos fechados na poeira, bem apertados, muito contrariado, meio
amedrontado.
3. Novo plano geral, vê-se ao longe uma grande construção, muitos homens
trabalhando.
4. Corta pro Menino sentado à sombra de uma árvore, enquanto os homens
trabalham ao fundo. Ele tem a roupa empoeirada e o rosto sujo. Olha pro nada.
Seus olhos se fecham, ele dorme.
Sonho
5. Em câmera baixa (subjetiva), pernas de vários homens, sapatos brancos, calças
brancas, cenário branco, se aproximam do Menino. Um deles agacha e olha
para ele balançando a cabeça com ar pesaroso. A roupa é toda branca, mas a
gravata é verde.
6. Ele acorda. Põe a mão no bolso e não encontra nada. Olha pra frente. Sorri.
7. Close do macaquinho sentado numa fruta-de-lobo caída.
82
8. Ele pega o boneco e limpa bem sua carinha. O plano se abre e o Menino fica
cada vez mais distante. Barulho de tratores e jipes e serras elétricas.
Seqüência 8:
Na Casa-Acampamento
1. Plano Médio, câmera baixa e movimento plano, pouca luz. Som de ronco alto.
Vemos os pés do Tio deitado numa cama, depois vemos que está de calção e
camiseta. O movimento de câmera é da esquerda pra direita e não pára quando
alcança sua cabeça e a cabeceira da cama encostada na parede. Como se
passássemos pela parede, vemos outra cama, posicionada num sentido oposto
em outro quarto. Ali está o macaquinho deitado na mesma posição do Tio.
Ainda se ouve o ronco do Tio. A Câmera se aproxima um pouco pra que
possamos ver o boneco em maiores detalhes. Ao lado dele está o Menino,
vestido apenas com um calção e uma regata. Ele vira de um lado pra outro.
Pára voltado pro boneco e, portanto, também pra câmera.
2. Subjetiva do Menino, o macaquinho deitado de barriga pra cima. Essa mesma
câmera se volta para o teto, de modo que saibamos que ele está olhando pra
cima.
3. Ângulo alto mostrando macaquinho e Menino deitados de barriga pra cima.
Plongé que fecha e pára nos olhos do Menino fechados com força, o rosto
todo tenso.
83
Memória
4. Ressurgem flashes, trechos já vistos por ele, a tia chorando, entregando a ele o
boneco, os homens do sonho abaixados, o macaquinho... E a mãe.
5. Ele abre os olhos.
Menino (com voz angustiada):
Mãe!
6. Câmera lateral novamente. Ele se volta pro macaquinho. Fecha os olhos de
novo, passa a mão na cabeça do boneco, suspira de leve e sorri.
Menino (sorrindo):
Mãe...
7. A câmera se move devagar e pára na vidraça fechada, sombra de árvores e luz
de lua.
8. Corta e abre na mesma janela, a luz da manhã quase já nascida entra pela janela.
9. A câmera faz o movimento inverso e vemos o Menino encostado na cabeceira
da cama, meio já sentado. Usa calças curtas, uma camisa de passeio e sapatos,
os cabelos penteados. Segura o boneco com as duas mãos, olha um pouco pra
ele e o coloca no bolso.
10. Plano geral: a casa no meio da mata é bonita de se ver antes do raiar do dia.
84
11. Plano médio num alpendre que é também um passadiço. O Menino caminha
por ele e olha pros lados, um pouco mais interessado que até então. Enquanto
isso, pode-se ver uma das janelas da casa ainda iluminada por lampião e
movimento de pessoas lá de dentro. Os ruídos e vozes de dentro da casa vão
ficando mais distantes, enquanto que o som da mata aumenta, passarinhos,
insetos e mato pisado, árvore balançando.
12. E então um
Créee... O Menino, que já está andando animado de alvorecer, pára
um segundo e sua cabeça se move na horizontal. Ele corre. Pára. A câmera se
aproxima dele bruscamente. Ele pára de novo. Olha pro céu fixamente e tem a
boca meio aberta, os braços estendidos. A grande surpresa.
13. Close do tucano que surge entre as árvores.
14. Close do rosto do Menino de frente, ainda de boca aberta e olhos arregalados.
15. Plano geral da casa, o tio vem vindo pelo passadiço segurando uma xícara e
mais alguém sai na janela pra ver se alcança a vista do pássaro.
16. Plano médio do tio. Ele deixa a xícara no parapeito da janela, limpa os óculos
na gravata e apressa o passo pra olhar pra árvore.
17. Plano geral das árvores, e o pássaro, onde quer que queira estar nesse
momento. O céu está um pouco mais claro nessa hora.
85
18. Close do Menino, os olhos úmidos, só então a luz do sol aparece, e ilumina seu
rosto.
Seqüência 9:
O Telegrama
1. Plano aéreo da casa do alpendre, terreiro de altas árvores.
2. Plano mais aproximado, o Menino deitado sobre o passadiço, a roupa suja, o
bonequinho deitado sobre sua barriga. A câmera se aproxima até que possamos
ver o rosto dele mais de perto, quase em close.
Memória
3. Plano médio em slow motion da mãe sorrindo muito, o colo à mostra, roupas
claras e leves.
4. A câmera rente ao chão, vê-se o Menino ainda deitado, sorrindo.
5. O plano se abre um pouco mais e ele se levanta, põe o boneco no bolso e
podemos vê-lo de costas, caminhando até a casa. A câmera se mantém na
mesma posição até que ele se aproxime da porta da casa.
6. Plano mais aproximado do Menino caminhando. Ouve-se a voz de alguns
homens conversando lá dentro.
86
7. Plano médio do Menino parado ao lado da porta, espiando o que acontece lá
dentro.
Tio:
Notícia?
Voz de outro homem:
É, um telegrama. Vai abrir pra ele?
Tio: Meu Deus, me dá logo isso, vamos ver...
8. Plano médio do Menino parado ao lado da porta, espiando o que acontece lá
dentro.
9. Subjetiva dele: plano médio do tio com telegrama na mão e com ar de tristeza
balança a cabeça para os lados, suspira. Levanta a cabeça e descobre o Menino
espiando. Tenta sem sucesso desfazer a expressão de tristeza e abandona o
envelope sobre a mesa. Sem conseguir encarar o Menino, acaba saindo da sala.
10. A câmera acompanha o movimento do Menino encostado na porta se
abaixando, até ficar completamente agachado. A câmera se abaixa mais e vemos
o bonequinho meio caído, encostado na parede a seus pés. Zoom out lento, o
menino vai ficando pequeno e vemos a casa, o terreiro das altas árvores, o mato
ao redor, a casa pequenina, o verde, o cerrado...
Seqüência 10:
A última noite
1. Plano geral do céu estrelado.
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2. Corta para um plano transparência: o mesmo céu visto de dentro de uma janela.
A câmera faz o percurso até a cama e o menino está dormindo de barriga pra
cima. Um tique-taque de relógio, mais os bichos da noite na mata...
3. A mesma janela, o céu agora é de um azul mais claro, quase manhã.
4. Close do rosto do Menino, abrindo os olhos e levantando num pulo.
5. Plano aproximado dos pés dele correndo pelo assoalho da casa.
6. Close do macaquinho caindo lentamente.
7. Plano lateral de um homem próximo da cama acordando o Tio com um
envelope na mão.
8. Plano médio do Menino correndo.
9. Close do envelope sendo aberto.
10. Plano geral do passadiço, o Menino com roupa de dormir correndo até o
terreiro. Logo atrás dele, surge o tio, alegre, chacoalhando o telegrama na mão.
11. Plano médio do Menino de perfil, correndo.
Ouve-se
créeeee...
Ele pára.
88
12. Close de seu rosto, olhos bem abertos, sorrindo e a luz do sol começando a
surgir no seu rosto. Cabelos despenteados...
Seqüência 11:
No avião
1. Close de seus olhos fechados, outra luminosidade, o mesmo sorriso. O plano se
abre e vemos seus cabelos arrumados, ele novamente no avião, fechando o
cinto de segurança. O menino apalpa os bolsos, olha dos lados e cai num choro
desesperado.
2. Aos soluços, mal pode ouvir a voz do piloto do avião que se aproxima. Plano
aproximado do piloto se abaixando pra falar com ele. A imagem é embaçada e
o rapaz está sorrindo e falando algo inaudível. Os sons são o soluço e o choro.
Então soluços, soluços...
Piloto:
Adivinha o que encontrei pra você...
3. Close do rosto do menino, ainda se recuperando do choro, respiração
descompassada.
4. Plano aproximado do piloto, agora oferecendo ao menino o chapéu do
bonequinho, perdido logo no início da viagem. O chapéu vem para o primeiro
plano e o rosto do piloto fica escondido atrás da pluma.
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5. O Menino pega o chapéu, olha para o tio, sorri entre os soluços, aperta-o bem
entre as duas mãos.
6. Close da longa pluma verde escapando entre as duas mãos do menino.
Permanece por um bom tempo. A câmera se move até a janelinha, o céu, as
nuvens vistas de dentro do avião...
Seqüência 12:
A caminho da escola
1. Plano geral de um céu cheio de nuvens.
Vizinha (grita, bem de longe):
Ei! Você não vem?
2. A Menina abre os olhos e olha pra outra direção (onde está a colega). Volta a
olhar pro algodão e depois pra Menina. Desfaz o sorriso e volta a andar.
3. Ela agora segura a sacola mais agarrada com as duas mãos e canta uma canção
só com ela, bem baixinho. (é a mesma canção das primeiras cenas).
4. Plano geral da lavoura de algodão. A voz da Menina, respiração ofegante,
botina batendo no chão. Vemos o algodão em primeiro plano e lá adiante um
povoado. Algumas casas, e se possível, lá longe, a rua em que as duas
caminham, uma bem longe da outra.
90
5. Plano médio da Menina vista de frente, caminhando sozinha.
Seqüência 13:
Na escola
1. Plano geral: A menina de costas para a câmera, diante de um portão de escola.
O portão não é muito grande, mas é maior que ela. Fica ali parada um tempão.
Close de seus braços abraçados à sacola. E a canção em off
.
2. Corta para um plano fechado. As duas mãos da Menina seguram a camiseta
vermelha. Ela está sentada de perfil e voltada pra direita. As mãos se mexem e
um dos dedos está num buraco do pano, fazendo movimentos pra um lado e
pra outro, alargando mais e mais a malha. A gente pode ouvir um som de vozes
de crianças, muitas crianças, mesas e cadeira sendo arrastadas, uma leve
agitação. A câmera sobe devagar e ao mesmo tempo o plano vai se abrindo, de
modo a que possamos ver os braços e o rosto da Menina, menos que um perfil,
pois ela olha pro outro lado. Pela janela dá pra ver o céu azul e ela parece estar
distraída, um olhar que se estende pra longe, lá fora. Suas mãos não param.
Depois ela olha dos lados e volta a cabeça pra baixo, olhando pra própria
barriga.
3. Subjetiva dela: suas mãos esticam o pano da camiseta e ela vê um enorme
buraco.
91
4. Plano médio de seu perfil novamente. Ela volta a sua cabeça para o lado da
câmera, parece ver alguma coisa que não estamos vendo.
5. Plano geral da sala de aula, as crianças todas vistas de costas. Todas estão de
camiseta branca e calças, saias azul-marinho. Apenas a camiseta da Menina é
vermelha. As crianças estão todas olhando pra professora, que fala coisas
incompreensíveis e não pode ser vista de corpo todo. Ao lado da menina, as
costas de um menino de camiseta verde, também destoando do restante dos
alunos.
6. De novo, o plano médio da Menina voltada pro lado e com o olhar curioso.
7. Em contraplano, o Menino, agora com roupas contemporâneas à Menina,
camiseta verde e calção azul-marinho, com o macaquinho na mão, sorrindo pra
ele.
8. Plano médio dela, as mãos retiram a sacola debaixo da carteira. Ela abre a
sacola com cuidado e retira de lá sua boneca.
9. Subjetiva dela, o rosto feliz da boneca, olhos azuis de dizer sim... Acaricia
aquele rostinho demoradamente...
Professora (tentando ser doce):
Você!
92
10. No mesmo plano em que víamos a Menina sentada, estão agora as costas da
professora, mais especificamente suas pernas e parte de suas costas tapando
quase toda a visão que se possa ter da Menina.
Professora:
Agora não podemos mais brincar de boneca, certo? Vou
pedir então pra que você coloque ela ali naquela estante, bem ali na
frente. Tá bom?
11. A Menina e a professora, vistas do fundo da sala. Como a professora está de pé,
podemos ver apenas uma parte de seu corpo, sem a cabeça e a Menina olhando
pra cima, com cara de medo e dizendo que sim com a cabeça.
12. Plano baixo aproximado das botinas no chão dando alguns passos. O som da
bota (off) é absurdamente alto, mais forte do que se poderia soar na realidade.
E todos os outros ruídos desaparecem.
13. Continua esse som e agora a visão das costas da Menina. Ao chegar em frente à
prateleira, que é um pouco alta demais, ela levanta a boneca até lá, meio na
ponta dos pés, tenta deixar a boneca com a mão direita, segurando-a pelo
braço.
14. Close da boneca que desprega do braço.
15. A boneca cai em câmera lenta.
93
16. A Menina olha pro braço que ficou em sua mão e olha pra boneca caída no
chão. Rapidamente, pega a boneca de volta e a coloca sobre a estante,
encostada na parede.
17. Plano médio da Menina vista de frente, voltando pra sua carteira. Os passos
lentos, barulho normal de sala de aula e ela segurando o braço contra o peito.
18. Plano geral da sala de aula vista do fundo. Tudo parece tranqüilo, a Menina já
está sentada.
19. Plano das costas da Menina, sua fileira à frente e as costas do Menino à sua
direita.
20. Plano médio do Menino visto de lado. Ele está olhando pra Menina e depois
olha pro seu boneco.
21. Close do Menino tentando alcançar a prateleira. Em sua mão está o
macaquinho.
22. Plano médio pra Menina vista de frente, pega o braço da boneca sobre a
carteira e guarda-o na sacola.
23. Em close, vemos boneca e macaquinho encostados na parede, com mapas
enormes ao fundo.
Fim
95
Conclusão
“Em sua simplicidade, a imagem não tem necessidade de um saber. Ela é a dádiva
de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem criança.”
Gaston Bachelard
31
“Despedir dá febre.”
Guimarães Rosa
32
o começo era um sonho. Será que eu teria a sorte de ver um caminho se
abrir? A gente nunca sabe dessas coisas de antemão. Mas uma certa inclinação de
corpo, uma linha invisível fisgando o peito pra frente e o amor a um autor, a um
personagem, diziam que sim. Os primeiros guias eram Guimarães Rosa,
Tarkovski, Bachelard, Jung, Bergman, Visconti.
31
Bachelard, Gaston. A poética do espaço. 6ª reimpressão, São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 4.
32
Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 81.
N
96
Aos poucos, todos passaram a dizer coisas feitas pra mim. O guia estava aqui
dentro, em algum lugar. Afinal, de onde vem essa linha que me puxa pra tão
longe no tempo, sem me fazer sair de mim? Ou, melhor dizendo, que caminho
estreito é este, onde cabem tantas coisas, que é para tantos lugares, mas acaba
dentro do meu próprio coração? Lugar onde passam todos, mas você olha pra ele
e é só um atalho, uma estrada nem ainda pavimentada...
Por maior que seja o gosto pela coisa, o trabalho que se faça ou a curiosidade,
não se pode entender a mecânica dessa linha. Então, melhor é desistir de buscar
o entendimento. E como fazer uma coisa que se deseja muito, sem cair na
tentação de querer entendê-la? Confesso que não sei a resposta. Teorizar nessa
hora, ou mesmo interpretar, é armadilha muito triste, na qual caí tantas vezes,
mas aqui estou, pronta pra dizer que vale a pena correr esse risco. Afinal, ele é o
risco da vida. A gente pode viver ou inventar caminhos paralelos, desvios,
suspensões por tempo indeterminado. A gente pode ver ou desviar os olhos,
pedir tempo, cair num sono profundo. E tudo isso acontece mesmo, na vida.
O que tenho pra contar agora, já disse de outras formas nas primeiras partes do
texto, mas é bom falar com olhos de depois...
O desafio maior do trabalho, em minha opinião, foi aceitar o fardo do
impossível. Jamais, por exemplo, alcançaria uma fidelidade a Rosa. E ainda assim,
a idéia de que isso era necessário não me abandonou em nenhum momento. Essa
e tantas outras eram idéias preconcebidas, que existiam comigo aos montes.
Então, alguns inimigos rabugentos se instalaram na minha cabeça. Eles brigavam
a maior parte do tempo e só o que pude fazer foi procurar um lugar mais ou
menos silencioso, onde conseguisse me lembrar de minhas próprias visões em
meio a tanto tumulto. Não foi fácil encontrar fluência nesse modo de operar com
meu amor e minha escrita. Mas, no fim, as coisas se assentaram.
97
Acho que não pude permanecer muito tempo ligada a teorias e preconceitos,
justamente porque segui pelo caminho mais pedregoso: contar minha própria
estória, ou a ficção que pude fazer a partir de seus rastros em minha memória.
Nenhum terreno poderia ser tão cheio de armadilhas e dar margem a tantas
interpretações indesejáveis. E, paradoxalmente, nenhum lugar poderia ser tão
desconhecido e ameaçador. Mas fiquei nele e estou feliz por ter ficado. Alguns
dos fantasmas que vieram com a escrita ficaram menos terríveis à luz do dia. Não
creio que essa seja uma regra em criação, mas nesse meu caso específico, criar foi
também um ato de cura.
Quanto ao encontro das duas crianças, vejo que há uma misteriosa convivência
entre elas. E o bonito disso tudo é que a Menina já existia, estava comigo desde
sempre, assim como o Menino de Rosa estava na cultura, fazendo parte do
acervo rico de personagens que existem tanto, tão maravilhosamente pra quem
tem a oportunidade de ler contos e romances, ou ouvir estórias daqueles que as
sabem contar. Ela (a Menina) existia, mas só ganhou concretude no mundo
porque existiu Miguilim, e o Menino dos Cimos. Há algo de precioso nisso, que
tem a ver com aquilo que Bachelard chama de repercussão. É esse fenômeno de
se saber, se reconhecer a si próprio com mais existência porque há o outro e sua
palavra. E a palavra do outro, por um mistério poético, também é minha,
também me diz respeito.
Vejo, então, meu roteiro como uma espécie de emblema dessa relação. Ele é
um manifesto, uma forma de tornar presente a minha emoção de leitora. Se
como texto ele disser algo, muito bom. Se, servindo de base pra realização de um
vídeo, puder emocionar alguém, melhor ainda. Mas isso já está além da minha
capacidade de “projeção”.
98
Sinto que o núcleo do que precisava vir ao mundo existe e está expresso no
roteiro. Mas pressinto também seus potenciais, seus desdobramentos. As cidades
encontradas são ainda paisagens incertas, mapas inexplorados que aí estão, à
procura de personagem ou narrador que pontilhe um itinerário de sonho:
Maringá – Brasília? Há rastros dessa viagem, sinais de semelhança e quem sabe
projetos de outras duas cidades ainda inexistentes, mas que surgirão com o
advento do pássaro, o vôo da pluma, o som das botinhas no asfalto, a canção que
virá...
Curioso o que acontece: A gente começa uma viagem dessas e pensa, “olha, é
assim e assado, será de um jeito ou de outro, vou por aqui e por ali”. Depois de
metade do caminho percorrido vamos ver que a coisa já debandou pra outro lado
bem diferente do que o previsto. Parece até que no fim a gente vê as coisas com
mais forma se comparadas com o antes, em que tudo era longe. Em
compensação, não tem o entusiasmo do princípio, porque lá tudo era possível e
aqui, tudo é o que é, meio como uma desilusão. Muito ficou pela estrada e agora
é difícil concluir porque é quase só isso o que eu tenho pra dizer. E se eu disser,
falo com ares de despedida. É sempre solene reconhecer o fim.
99
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