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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
CULTURA E MEMÓRIA
REPRESENTAÇÃO DO SERTANEJO E A IDÉIA DE BRASIL
MODERNO EM NESTOR DUARTE
ROGÉRIO DOS SANTOS FRANÇA
RECIFE, 2010.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
CULTURA E MEMÓRIA
REPRESENTAÇÃO DO SERTANEJO E A IDÉIA DE BRASIL
MODERNO EM NESTOR DUARTE
ROGÉRIO DOS SANTOS FRANÇA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Pernambuco em cumprimento às exigências
para a obtenção do grau de Mestre em História.
Área de Concentração: História do Norte e Nordeste do Brasil.
Linha de Pesquisa: Cultura e Memória.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Regina Beatriz Guimarães Neto.
RECIFE, 2010.
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França, Rogério
Representação do sertanejo e a idéia de Brasil moderno em
Nestor Duarte / Rogério França. -- Recife: O Autor, 2010.
149 folhas, il., fotos.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco.
CFCH. História, 2010.
Inclui: bibliografia.
1. História. 2. Intelectuais. 3. Duarte, Nestor, 1902-1970. 4.
Sertanejo Representação. 5. Modernidade. I. Título.
981.34
981
CDU (2. ed.)
CDD (22. ed.)
UFPE
BCFCH2010/90
4
5
para Mille
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AGRADECIMENTOS
Tenho que agradecer antes de tudo a meus pais, Maria Cleuza e Luiz Augusto,
que me ajudaram de todas as formas possíveis e estiveram cotidianamente preocupados
com meu bem estar tendo em contrapartida quase sempre o meu habitual desleixo,
levando anos” sem ao menos dar um telefonema para “dizer que estava vivo”. A eles
devo muito.
Tenho também muitas dívidas com os professores que participaram de minha
banca. À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Regina Beatriz Guimarães Neto, tenho que
agradecer pela atenção e pela generosidade nos diálogos, onde acredito ter aprendido
bastante sobre o fazer historiográfico. Ao Prof. Dr. Antônio Paulo Resende agradeço
por ter aceitado o convite para participar de minha defesa, além, obviamente, da
contribuição por ele dada na qualificação seria preciso ressaltar também suas aulas,
sempre verdadeiros acontecimentos. Ao Prof. Dr. Paulo Marcondes Ferreira Soares
tenho que agradece por ter aceitado participar de minha defesa, assim como por suas
contribuições de grande importância para a finalização do trabalho. Ao Prof. Dr. Paulo
Santos Silva que por um conjunto de motivos não pode participar da banca de defesa,
mas que ainda assim contribuiu enormemente na qualificação - tenho um grande
agradecimento a fazer. Seria preciso mencionar aqui que foi com ele que tive contato
com meu objeto de pesquisa ainda na Iniciação Científica; seria preciso mencionar
também que ele deu uma enorme contribuição ainda na preparação do projeto de
mestrado; e, por fim, tenho que agradecer a ele por ter aceitado participar de minha
banca, bem como pela leitura precisa que fez do texto, apontando para questões
fundamentais, as quais talvez eu não tenha tido capacidade de suprir a Paulo meus
sinceros agradecimentos e meu reconhecimento pela capacidade e pelo
profissionalismo.
Tenho também muitas dívidas com dois professores muito importantes para
minha formação: Osmar Moreira e Jailma Pedreira. A eles meus agradecimentos.
A Erahsto Felício devo muito também. Foi a partir do diálogo com ele que
conseguir definir de forma mais precisa meu problema. Sua leitura do esboço de meu
primeiro capítulo foi fundamental. Ele reconhecerá suas contribuições grande abraço a
uma das pessoas mais inteligentes que conheço.
Devo muito também a várias figuras que, se não aparecem diretamente no texto,
o permeiam de alguma forma: Jorge Luz; Christopher Moura; Wilton Oliveira; André
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Oliveira; Vagner Oliveira; Ricardo Sizílio; Écristio Raislan; Moisés Morais; Gissele
Raline; Márcio Cruz; José Augusto; Maurício de Jesus; Rafael Almeida; Anne
Rodrigues estes são nomes que estiveram mais próximo de mim nestes últimos anos,
peço desculpas se esqueço de alguém.
Abro um parêntesis para mencionar alguns nomes com os quais aprendi muito
durante o mestrado; Irisnete Mello; Lydiane Vasconcelos; Dimas Veras; Patrícia
Alcântara; João; Ana Cristina; Maria Aparecida imagino não ter esquecido ninguém.
Devo lembrar também de algumas figuras importantes que fizeram a estadia em
Recife suportável: Arleide Monteiro; Thallita Ventura; Kywza Fidelis; Leda Correia e,
especialmente, Wéllita Aragão; além destes, devo lembrar-me dos que se seguem:
Renata; Kiko; Michael; Jadilson; Teo; Jata; Fravo; Cacá; Élio espero não ter
esquecido ninguém.
Não poderia deixar de agradecer ao CNPq pela bolsa concedida, incentivo
decisivo para a produção deste trabalho.
A todos meus agradecimentos.
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo estudar a obra de Nestor Duarte produzida entre
os anos 1930 e 1940, fundamentalmente em dois aspectos: sua representação da figura
do sertanejo e sua proposta de modernização nacional. Partindo da análise de sua
produção intelectual e de sua atuação política no referido período, tentamos demonstrar
o vínculo entre estes dois aspectos de sua obra e qual o sentido que tal nculo assumia
no referido contexto. Neste sentido, nos parece que a representação que Duarte opera
dos sertanejos” adquire uma dupla intenção: produzi-los tanto como signo de uma
pretendida nacionalidade quanto como sujeitos situados às margens da história,
“atrasados”, numa palavra. sua proposta de modernização visava justamente resolver
tal questão: o devir moderno da nação se passa pela colocação destes sertanejos na linha
da história. O que tentamos demonstrar é como o discurso “sertanista” de Nestor Duarte
trabalha numa ambivalência que tanto afirma quanto nega os “sertanejos”. Da mesma
forma, tentamos por em relevo como sua proposta de modernização nacional atualiza
e/ou reforça o discurso da necessidade de ser moderno. O que pretendemos mostrar é,
em dada medida, a ligação entre saber e poder, o problema do discurso identitário e a
questionável pretensão universal dos postulados modernos (especialmente em sua
dimensão política).
Palavras-chave: Nestor Duarte; Intelectual; Representação; Sertanejo; Moderno;
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RESUMEN
Este texto tiene como objetivo estudiar el trabajo de Nestor Duarte producida
entre los años 1930 y 1940, principalmente en dos aspectos: su representación del
sertanejo y su propuesta de modernización nacional. Basado en el análisis de su
producción intelectual y de su rendimiento político en lo referido periodo, intentamos
demostrar el vínculo entre estos dos aspectos de su trabajo y cual lo sentido que el
vinculo asume en lo contexto. En este sentido, parece que la representación que Duarte
opera de sertanejos adquiere una doble intención: producirlos tanto como un bastión de
la nacionalidad desean como personas que se hallan en los márgenes de la historia,
“hacia atrás” en una palabra. Ya su propuesta de la modernización seria sólo como
ahorro de la cuestión: el convertirse en el moderno de la nación va pela colocación de
estos sertanejos en la línea de la historia. Lo que intentamos de demostrar es como el
discurso “sertanista” de Nestor Duarte trabaja en una ambivalencia que afirma e niega
los “sertanejos”. De manera similar, intentamos destacar como su propuesta de
modernización nacional actualiza y/o fortalece el discurso de la necesidad de ser
moderno. Lo que queremos mostrar es, en cierta medida, la ligación entre saber y poder,
el problema del discurso sobre la identidad y la cuestionable pretensión universal de los
postulados modernos (especialmente en su dimensión política).
Palabras-llave: Nestor Duarte; Intelectual; Representación; Sertanejo; Moderno.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ______________________________________________________ 12
CAPÍTULO I - Geografia de uma prática: a função intelectual de Nestor Duarte____ 21
Preâmbulo____________________________________________________________24
Seção I Por um deslocamento dentro da função autor ________________________28
Seção II Política de intelectuais na Bahia __________________________________38
Seção III O intelectual reformador _______________________________________52
Seção IV A terra nulla e a inscrição do moderno____________________________57
CAPÍTULO II - A construção do não-lugar: o sertão e o sertanejo como signos da
ausência_____________________________________________________________63
Preâmbulo ___________________________________________________________66
Seção I Os marcos da representação do sertanejo subalterno__________________ 70
Seção II A Condição Sertaneja em Gado Humano__________________________ 82
Seção III De “massa informe” a “massa populacional” – sob o signo da ausência__ 93
Seção IV- Os marcos da inscrição do sertanejo na ordem do moderno____________100
CAPÍTULO III - A inscrição do moderno__________________________________106
Preâmbulo___________________________________________________________108
Seção I Os antecedentes da ordem privada________________________________113
Seção II Os desdobramentos políticos da ordem privada_____________________118
Seção III A ordem privada em 1930-1940________________________________122
Seção IV A Reforma Agrária e a superação da Ordem Privada________________128
CONSIDERAÇÕE FINAIS ____________________________________________137
FONTES E BIBLIOGRAFIA___________________________________________141
Lista de Figuras
1 Nestor Duarte em Discurso na Câmara Federal nos anos 1950. 21
2- Carteira de Jornalista do Diário da Bahia de 1924. 41
3 Capa de seu romance Gado Humano em 1936. 63
4 Capa de seu livro A Reforma Agrária em 1953. 105
Introdução
Este trabalho tem como objetivo estudar a obra de Nestor Duarte produzida entre
os anos 1930 e 1940, fundamentalmente em dois aspectos: sua representação da figura
do sertanejo e sua proposta de modernização nacional.
Antes de explicarmos o porquê dos temas e sua vinculação, assim como o
recorte temporal estabelecido, façamos uma breve apresentação do autor.
Nestor Duarte Guimarães foi uma figura eminente na cena política e intelectual
da Bahia nos anos 1930 e 1940. Advogado, jornalista e professor da Faculdade de
Direito, foi deputado estadual entre 1928 e 1930, e também em 1935. Escreveu além de
livros e textos jurídicos, um ensaio sociológico e um projeto de reforma agrária, três
romances e alguns textos de crítica literária, economia, etc. Nascido em 1902, Duarte
foi também deputado federal por três vezes, bem como secretário da agricultura da
Bahia entre os anos de 1947 e 1950, durante o governo de Otávio Mangabeira. Antes de
sua morte em 1970 assumiu a cadeira número trinta na Academia de Letras da Bahia no
ano de 1966. Sua última obra foi o romance Cavalo de Deus, publicado em 1968.
Poderíamos distinguir na produção intelectual duarteana ao menos três
dimensões: a jurídica; a histórico-sociológica e a literária. Para nosso propósito
interessam especialmente estas duas últimas.
De saída, creio ser necessário perguntar por que estudar Nestor Duarte em
outras palavras, por que este autor? Por que este passado? De forma mais precisa, seria
preciso perguntar pela validade de recensear neste autor um tanto desconhecido estes
temas da figuração do sertanejo e da modernização nacional afinal, estes são temas
par excelence de um significativo número de obras tanto literárias quanto histórico-
sociológicas produzidas entre 1930 e 1940, e que alcançaram maior projeção que os
escritos de Duarte. No entanto, sem querer ser utilitarista, a questão nos incomoda: por
que um recuo até este autor? Tal questão, a nosso ver, traz explícita uma preocupação
com o próprio fazer historiográfico. Estudar este autor - ou qualquer tema que seja -
como um fim em si mesmo ou pensar em desdobramentos?
Com efeito, ainda que rejeitando a vazia definição de que a história enquanto
disciplina tenha por objeto o passado, não é outra sensação que nos fica ao tomarmos
em mãos algumas obras: a sensação de que o estudo de dados temas se esgotam em si
mesmo.
Duarte é um autor para o qual a “política” assume grande importância no
conjunto de sua obra. É também um autor também vez por outra visitado por
historiadores políticos e cientistas sociais, e, na maioria das vezes, estas visitas não se
preocupam em, de um lado, ir para além de um estudo interno dos textos e, de outro,
problematizar a relação com o “de fora”: ou seja, não problematizam nem a figuração
do sertanejo que tem como desdobramento a conformação de uma identidade em
detrimento da diferença, nem põem em questão este anseio pelo moderno, presente no
autor. Nesta leitura a literatura assume o papel de um espelho da realidade e a
modernidade emerge como condição insuspeita para citar exemplos de análises
levadas a efeito do romance Gado Humano e do ensaio A ordem privada e a
organização política nacional respectivamente.
É justamente neste ponto que a questão volta a se insinuar: por que voltar a
Duarte? Tal questão me acompanhou durante toda a feitura do trabalho e também fora
interposta em algumas conversas e debates. Devo confessar que a perspectiva inicial de
composição do trabalho esteve um tanto deitada nestes dois pontos: representação do
sertanejo e aspiração modernizante mas sob uma ótica completamente diversa.
Pensava a literatura de Duarte como o monumento de uma denúncia: os tipos que
perambulavam pelas páginas de seu Gado Humano refletiam uma condição “real”. No
mesmo sentido, seu discurso nacional modernizador era o monumento de uma revolta:
contra aquilo que ele mesmo nomeou como ordem privada, os valores da política
moderna reluziam como a salvação.
Ora, levar em consideração esta duas perspectivas é sem dúvida importante,
que nos põe em contato com um determinado estado de espírito que animava nosso
autor. Tal estado de espírito é precisamente esta ânsia modernizante, e as imagens que
constroem o “atraso” do sertão e do sertanejo não atuam em outro sentido senão o de
demonstrar a necessidade inadiável do moderno.
Com efeito, Duarte não é uma voz solitária ou original. Longe disso, sua
produção se insere no complexo discursivo nacional-popular que postulava a
necessidade da conformação de uma “identidade brasileira” e de uma “nação moderna”.
Isto fica claro tanto nos temas os quais trata quanto na forma como os trata:
fundamentalmente lançando mão do romance realista e do ensaio sociológico. Sua
predileção por estas formas o coloca de um lado sob a sombra de um José Américo de
Almeida; de outro num incessante debate com Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira
Vianna, entre outros.
No entanto, e se ao invés de tomarmos literalmente puséssemos em questão isto
que outrora se afigurou seja como monumento da denúncia seja como monumento da
revolta? Aqui emerge, em certa medida, uma justificativa para um retorno a nosso autor.
A nosso ver as questões da atuação intelectual (seu papel na sociedade); da
figuração do outro e a ânsia modernizadora segue, naturalmente, com sua
especificidade, na ordem do dia. São precisamente estes três aspectos que estão em cena
neste trabalho. De um lado a produção de um intelectual que, em nossa perspectiva,
opera fundamentalmente no sentido de um reordenamento do poder político; de outro
lado uma “representação” dos grupos subalternos que sumariamente os elide enquanto
indivíduos ou sujeitos coletivos; e, finalmente, a crença de que a condição moderna
traduzia o grau maior de elevação do espírito humano era preciso ser moderno.
Neste sentido, cremos ser necessário colocar uma questão decisiva a estes
monumentos da denúncia e da revolta: o que efetivamente ele fazem funcionar?
Em nossa perspectiva importa menos os princípios sobre os quais se erigem tais
monumentos do que aquilo que eles efetivamente põem em ação. Em outros termos, se
partimos do pressuposto que a literatura denuncista opera como espelho de determinada
“realidade”, uma vez que imbuída de um ideário bem intencionado que se propõe a dar
a ver uma condição de “atraso”, então não conseguiremos ir além daquilo que esta
própria literatura aqui convertida em material para a feitura do trabalho historiográfico
estabelece como grade de leitura. Em outras palavras, não conseguiremos ir além do
que verificar que aquilo que está expresso em tal ou qual romance (por exemplo) de fato
traduz uma “realidade” (correspondência entre palavra e coisa) e que seu princípio
denuncista por si só explica e justifica sua condição em nosso caso, o romance
sociológico de trinta.
Em sentido parecido, quando lemos o ensaio duarteano como monumento da
revolta (da revolta contra o “atraso”), do “moderno” como condição inexorável a ser
atingida, também não vamos além do que proceder uma leitura literal, onde os
princípios são o ponto de partida e o critério validador de sua composição.
Nos dois casos, o que se observa é um silêncio acerca do que estes princípios
denuncistas e salvacionistas fazem funcionar ou, falando em uma linguagem hodierna,
quais as contribuições das narrativas duarteana para conformar o imaginário em torno
dos temas da representação do sertanejo e da modernização em 1930 e 1940? Em uma
palavra, o que estas narrativas criam, para além de sua suposta pretensão primeira?
Do nosso lado, acreditamos que é preciso ler estas narrativas como produtoras de
espaços, identidades, consensos. É a construção de um espaço vazio e de sujeitos fora
do tempo da modernidade que Duarte opera em seu Gado Humano. Da mesma forma, é
a construção do moderno como condição sine qua non para o desenvolvimento humano
na periferia do mundo.
Ora, são precisamente estes dois aspectos que figuram de saída na obra de
Duarte que não podem ser negligenciados. E, neste sentido, o princípio denuncista que
orienta a feitura de Gado Humano e o princípio redentor que adquire o moderno em
outras obras do autor desdobra-se justamente na proliferação de imagens e enunciados
do sertanejo enquanto sujeitos pré-modernos (atrasados) e do devir moderno como
urgência salvadora. O que tais princípios fazem funcionar, para além de sua expressa
boa intenção, é a construção de um famigerado estereótipo do sertanejo que balança na
ambivalência entre signo tanto do atraso da nação quanto de reduto de uma
originalidade nacional, da genuína brasilidade. De forma parecida, o repertório da
política moderna emerge como única possibilidade de construção de uma sociedade
“desenvolvida”. Assim, conceitos elaborados no âmbito das elites políticas como, por
exemplo, “cidadania”, figura como o ideal, aquilo a ser alcançado, ainda que o sentido
da democracia outro conceito caro à política moderna permaneça eminentemente
formal, representacionista.
Desta forma, tentando ser mais claro, a representação do sertanejo, para além de
seu princípio denuncista, faz funcionar a conformação tanto de um espaço vazio, às
margens da moderna civilização, quanto uma categoria de sujeitos que balançam no
pêndulo da ambivalência estereotípica: o sertanejo é tanto rejeitado como signo do
atraso quanto celebrado como signo de uma genuína identidade nacional. Em paralelo, a
elevação da condição moderna (no caso de Duarte a proeminência recai na dimensão
política) a fator determinante para a conformação de uma sociedade desenvolvida faz
funcionar a crença no estatuto universal da modernidade (européia), sua necessidade e
mesmo sua inevitabilidade.
É neste ponto que poderíamos reforçar nossa justificativa para um retorno a
Nestor Duarte, bem como explicar melhor porque destes dois temas: representação do
sertanejo e inscrição do moderno. Isto porque aquilo que Duarte põe em cena em sua
produção discursiva dos anos trinta e quarenta é justamente uma discussão em termos
de identidade regional e nacional e de filiação a um determinado modelo de
sociabilidade. Sua literatura e seu ensaismo político-sociológico estão
fundamentalmente ocupados com estes dois aspectos. Com efeito, ele se insere em todo
aquele complexo discursivo que gastou muita tinta pintando uma suposta (ou desejada)
brasilidade e evocando a necessidade do vir a ser moderno do Brasil.
Não é preciso muito esforço para observar que tais questões permanecem nos
rodeando. A primeira parece um tanto mais resolvida, afinal o samba, o carnaval e o
futebol parecem ter forjado aquilo que poderíamos tomar por brasilidade hoje. No
entanto, o fantasma do atraso persegue a nação. A lógica parece funcionar no binarismo
centro-periferia. Os modernos países são justamente o centro. Aquilo que com todas as
ressalvas poderíamos chamar de “nós” permanece na condição de periferia. De forma
radical, seria preciso uma dupla negação destas duas formulações. Seria preciso um
duplo não: tanto à identidade que busca se impor em detrimento da diferença, quanto a
um acrítico desejo pelo moderno. No entanto, esta dupla negação não pode vir de
qualquer forma sob o risco de uma grassa injustiça para não dizer um grave erro que
seria o anacronismo. É preciso, antes de tudo, observarmos as motivações de Duarte em
suas elaborações.
Como veremos, Duarte foi um sujeito que integrava a oligarquia baiana que
ditava os rumos da política institucional no Estado até 1930. O advento do novo regime
(o golpe de 1930) desdobrou-se no seu afastamento do cargo de Deputado Estadual. O
período que vai de 1930 até seu retorno ao poder legislativo em 1935 é marcado pela
oposição que irá levar a cabo frente ao interventor Juracy Magalhães em conjunto
com todo o grupo oligárquico que, tal como Duarte fora alijado de seu postos-, assim
como uma significativa produção e dedicação ao campo jurídico é de 1933 sua tese
com a qual ingressa como catedrático na Faculdade Livre de Direito da Bahia. Seu
romance Gado Humano é de 1936, enquanto ainda exercia o mandato estadual na
meteórica Segunda República. No entanto, o acontecimento Estado Novo parece ter um
peso decisivo em relação à produção duarteana. Se no romance de 1936 ele pinta em
linhas “precisas” um “retrato” do atraso, o golpe de 1937 parece ter sugerido a nosso
autor que não se chegaria a uma solução satisfatória para tal quadro de atraso senão com
a “modernização” do país afinal, o regime Vargas se afigurava como um retrocesso
para Duarte, como veremos. De 1937 a 1939 foi o tempo de gestação daquela que é
apontada como sua obra maior: seu ensaio A ordem privada e a organização política
nacional. Não obstante seu recuo na história do país, seu escopo é explicitamente
apontar a necessidade do devir moderno do Brasil.
Como tentarei sustentar, a perspectiva duarteana é mais ou menos aquela
sugerida por Marshal Berman em seu ensaio sobre a modernidade: o modernismo de
Duarte é um esforço para construir a casa segura. Confiante que era nos postulados da
política moderna, nosso autor mobiliza seus esforços no sentido de demonstrar como é
preciso atingir tal estágio de “desenvolvimento” – que encontra, naturalmente, seu
arquétipo nos “modernos Estado-Nação europeus”, como sugere o autor.
É neste ponto que podemos reforçar nossa justificativa em relação aos temas e
ao recorte temporal proposto. É justamente entre 1930 e 1940 que se a mais profícua
produção duarteana. Ou seja, como apontamos antes, Duarte participa do complexo
discursivo nacional-popular de forma relevante no cenário intelectual baiano. Como vai
sugerir Daniel Pécaut, é entre o povo e a nação que se situam a maioria dos intelectuais
que escrevem no período que compreende 1920 e 1940. Com efeito, não de se negar
que estes dois pontos atravessam de um lado a outro os escritos de Duarte: formar um
“povo”; formar uma “nação”.
É toda esta preocupação que consta nas páginas de Gado Humano, de A ordem
privada e a organização política nacional ou de Reforma Agrária preocupação de
ordem política, no sentido macro. Esta dimensão, aliás, parece ser o que norteia a
prática discursiva de Nestor Duarte. É sempre como eloquência e consciência do “povo”
e da “nação” que fala nosso autor. Entretanto, sua produção intelectual não está de todo
distanciada das lutas políticas locais aproximação esta que em momento algum se
sob uma ótica saudosista. Se é verdade que Nestor Duarte teve por duas vezes seus
mandatos no legislativo baiano cassados pelo advento do regime Vargas, também é
verdade que sua oposição a tal regime se dá não na perspectiva de um retorno à
configuração política pré-1930, mas precisamente no sentido de propor uma
racionalização do “político” no sentido de construir um complexo social onde
hipoteticamente não haveria o quadro de “atraso” representado pelo cenário “sertanejo”;
e onde também não fosse possível a emergência de fenômenos políticos tal qual o
representado pelo próprio regime Vargas. Em resumo, uma “nação moderna” pautada
nos ditames da democracia e da cidadania. Pois se por um lado a luta política
(institucional) levada a efeito por Duarte e seus aliados contra Vargas tinha como
horizonte a retomada dos postos decisórios perdidos tanto em 1930 quanto em 1937 o
Autonomismo, como veremos -, por outro lado sua obra não é propriamente
“autonomista”. É modernista, numa palavra.
Assim, se sua atuação política institucional ao lado dos autonomistas é mais
elementar, traduzindo uma disputa pela velha máquina estatal que lhes havia sido
retirada pelo regime varguista, poderíamos também dizer que sua produção intelectual é
eminentemente utópica, e parecia caminhar um passo atrás das ações do próprio regime
Vargas. Pois enquanto Duarte se esbate em 1939 em torno quase que totalmente da
lógica da cidadania, o governo Vargas parece por em movimento toda uma estratégia da
ordem da governamentalidade.
Daí que não é sem razão que Luiz Guilherme Piva veja no ensaio de Duarte
publicado em 1939 muito de desatualização do autor face ao contexto sócio-político que
se delineava.
No entanto, o que nos interessa pensar aqui é de que maneira Duarte figura
enquanto um autor que colaborou para a conformação da representação do sertanejo e
da necessidade do devir moderno. Ou seja, de que forma ele é mais um que enuncia o
sertanejo enquanto núcleo da brasilidade e objeto de uma pedagogia política, bem como
ele contribui para a crença na inevitabilidade da modernidade. Pois se é verdade que
1930 marca um momento importante para o país, seja no que diz respeito à
consolidação de uma “identidade nacional”, seja como uma “marco” de sua
modernização, retornar a Duarte é observar como estes dois aspectos se manifestaram
neste autor mas é também lê-los a contrapelo, em sua especificidade, e quem sabe
tomá-los como ponto de partida de uma problematização ao redor destas duas
problemáticas questões: a produção de uma identidade sertaneja e a validade universal
dos valores modernos. Em termos bastante em voga, Duarte poderia funcionar como via
de acesso a uma dada sensibilidade, como meio de sentirmos o clima de uma época,
indagarmos que anseios habitavam alguns intelectuais nos anos 1930 e 1940.
Desta forma, seguindo um pouco esta linha, compusemos este trabalho
fundamentalmente a partir das obras de Duarte na verdade, ainda que não utilizada em
sua totalidade, recorremos a tudo aquilo que Duarte escreveu e que estava disponível.
Neste sentido, desde sua mais importante obra (sue ensaio A ordem privada e a
organização política nacional) até alguns artigos publicados ainda na década de 1920
figuram como fonte para a feitura de nosso texto além de suas intervenções no
legislativo estadual e federal, etc.
Tentamos não estabelecer uma hierarquia entre este material utilizado, e o
privilégio dado à produção localizada entre 1930 e 1940 atende a uma tentativa de
explicitar a ligação entre os temas que expomos e que avultam com mais força neste
período.
Também lançamos mão de uma bibliografia geral bastante diversificada, já que a
cada capítulo nos propusemos a colocar uma questão específica.
Assim, no primeiro capítulo, quando tentamos fazer um mapeamento da
produção intelectual duarteana, bem como de sua atuação política, foi importante
recorrer a autores que pensaram o papel dos intelectuais em diferentes sociedades ao
longo do século XX. A idéia neste capítulo foi tanto traçar um panorama da atuação
intelectual e político-institucional de Nestor Duarte durante o período estudado, quanto
estabelecer uma grade de leitura diversa daquela que até então tínhamos visto a obra de
Duarte ser submetida. Ou seja, foi preciso rejeitar tanto a imagem do intelectual
“autonomista” quanto do intelectual “democrático”, assim como ler o modernista sem
condescendência: a hipótese que Duarte estivesse preocupado com a “modernização”
não se esgota em si mesma. É preciso pensar como essa produção discursiva se
sedimentava no imaginário coletivo e reforçava (ou atualizava) a divisão entre centro e
periferia, divisão esta que colocava (e coloca) a Europa ou os Estados Unidos como
modelos.
Desta forma, a geografia de uma prática é uma tentativa de produzir outra
imagem do modernista Nestor Duarte; uma imagem na qual seja visível a relação entre
saber e poder e onde os limites da idéia de “reforma” sejam explícitos. Buscamos então,
em dada medida, rasurar a imagem fixada de nosso autor. Ao invés do intelectual
extremamente coerente que vez por outra acabamos por encontrar, tentamos situá-lo no
interior de um complexo discursivo que tem por horizonte o “povo” e a “nação”
modernos, e então tentamos rejeitar por completo qualquer espécie de condescendência:
uma racionalidade política como a pretendida por Nestor Duarte não pode ser lida como
uma “revolução”, mas sim como um trabalho que visa um reordenamento do poder nos
limites mesmos que podem ser sugeridos pela noção de “reforma”.
Nesta perspectiva, observamos que o núcleo da produção de Duarte comporta
estas duas dimensões: de um lado, a figuração do sertão e do sertanejo como espaço e
sujeitos às margens do moderno; de outro, a atualização do discurso da condição
moderna enquanto arquétipo, enquanto modelo a ser seguido. Em outros termos, como
tentaremos sustentar, trata-se da produção da terra nulla (uma apropriação de Hommi
Bhabha), do não-lugar cuja história precisa ser começada, cujos arquivos precisam ser
preenchidos sob o signo do moderno.
No segundo capítulo tentamos explorar justamente a produção desta terra nulla,
das estratégias lançadas por Duarte para a composição de imagens e enunciados do
sertão e do sertanejo. Ora, antes de pensarmos a literatura no caso aqui o complexo
literário de 1930, o qual Duarte integra como reflexo de tal ou qual “realidade”, seria
preciso pensar como esta literatura opera construção de espaços e identidades.
É justamente deste ponto que partimos para pensar como Duarte constrói em seu
Gado Humano um sertão que é só deserto e sertanejos que são quase nada: porque ainda
são alguma coisa as “reservas Moraes da raça”, como diz Duarte. É essa ambivalência
sobre a qual repousa a construção de seu romance que tentamos demonstrar: por um
lado uma massa de sujeitos sendo explorada, inconsciente até mesmo da exploração; por
outro lado, num só lance, sujeitos que guardam algo de mágico, uma força e uma pureza
que os garante como núcleo de uma identidade nacional pretendida os sertanejos
como objeto de repulsa e também de desejo. Em linhas gerais, a idéia é demonstrar
como Nestor Duarte constrói o sertão e sertanejo como algo homogêneo e pré-moderno,
cuja redenção se daria justamente com o devir moderno da nação, com a conversão
desta “massa informe” em “povo político”, em cidadãos.
Finalmente, no terceiro capítulo, tentamos discutir os componentes da
perspectiva modernizante de Nestor Duarte observando como ao propor um percurso de
acesso à condição moderna, nosso autor, em certa medida, postula (ou atualiza) uma
suposta validade universal do estatuto da modernidade especialmente em sua esfera
política, que pululam em suas obras tomadas para análise as noções de cidadania e
democracia especialmente.
Assim, buscamos ler tanto A ordem privada e a organização política nacional
quanto Reforma Agrária pensando de que forma tais obras contribuíram para
sedimentar o imaginário de que a condição moderna é universalmente válida ou em
outros termos, necessária. É a partir desta concepção historicista que imagina os Estados
modernos europeus como ápice de um “desenvolvimento” que fala nosso autor. Dai que
ele advogue a conformação de uma nação nos moldes das “agremiações políticas
superiores”.
Com efeito, como tentaremos sustentar, a questão é menos de mímesis do que de
uma perspectiva que imagina o tempo social como sendo vazio e homogêneo - dai que a
modernidade passe a ser pensada como inevitável e que se possa postular “atrasados” e
“modelos”, “centro” e “periferia”, que tudo que contraria o livre desenvolvimento do
moderno é, de saída, localizado numa dimensão pré-moderna.
É fundamentalmente questionar esta caracterização do sertão e do sertanejo
enquanto pré-modernos e a validade universal do repertório da política moderna que nos
propomos também. A proposta foi conduzir nossa leitura sempre a contrapelo das “boas
intenções” representacionistas e modernistas. Pois não muito sentido em voltar a
Duarte e aos temas da figuração do sertanejo e da urgência do devir moderno senão para
por estes dois horizontes e como eles foram delineados nos anos 1930 e 1940 à beira da
falésia. Pois se é verdade que tudo que é sólido desmancha no ar, então devemos sempre
lembrar esta sugestiva intuição quando pensarmos a fixidez do estereótipo sertanejo e a
própria solidez da modernidade.
Capítulo I
Geografia de uma prática: a função intelectual de Nestor Duarte
Figura 1: O político em ação na Câmara Federal nos anos 1950. Acervo do Arquivo Nacional.
Preâmbulo
Em um texto de 1988 Otávio Ianni argumenta que “o Brasil ainda não é
propriamente uma nação. Pode ser um Estado nacional... [mas] Não parece uma nação o
país em que a população ainda não se tornou povo”.
1
De forma semelhante, com cinqüenta anos de antecedência, Nestor Duarte havia
dito que “bem raros países, como o Brasil, podem oferecer exemplo mais frisante da
distinção, que é mais viva na realidade do que no conceito dos publicistas, entre massa
populacional e povo no sentido político”.
2
A semelhança nos diagnósticos da falta do “povo” se completam também na
necessidade ou na vontade de conformar este “povo” que é condição precípua para o
devir “nação” do Brasil.
Duarte escreve em 1939, ou seja, em um momento que o próprio Ianni assim
definiu:
alguns livros publicados nos anos 30 dão uma idéia da fecundidade
intelectual dos desafios que a sociedade brasileira estava
enfrentando, de como se revelam „alguns homens dotados de uma
formação nova e de uma técnica intelectual mais adequada à
compreensão dos problemas da cultura‟, da sociedade e da história
(...). Simbolizam pontos de inflexão da história do pensamento:
Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre,
Roberto Simonsen, Nestor Duarte....
3
Ianni está tentando demonstrar como este período marca mais uma vez um
momento de pensar o Brasil e de buscar um lugar no hall da modernidade. Por isso,
coloca o autor, “o Brasil ainda não faz parte do Primeiro Mundo”.
4
Mas, antes de
acompanharmos Ianni em seu diagnóstico, cumpre colocar algumas questões.
Como apontou Eric Hobsbawm ou Benedict Anderson, a condição nacional é
o valor de maior legitimidade da vida política moderna. Vir-a-ser “nação” com um
“povo político” (cidadãos) traduz, em conjunto com outros elementos, a própria
1
Octávio Ianni. O Brasil Nação. In. A idéia de Brasil moderno. 3ª. Reimpr. São Paulo: Brasiliense,
2004. pp. 177 180. A primeira edição do livro é de 1992, mas o texto aparece primeiro em São Paulo
em Perspectiva, vol. 2, nº. 4, São Paulo, 1988.
2
Nestor Duarte. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. Contribuição à Sociologia
Política Brasileira. 2ª. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. Coleção Brasiliana. Vol. 172.
pp. 90. Utilizo a segunda edição da obra que não comporta alteração alguma em relação à primeira edição
de 1939. Manterei as citações conforme na fonte, não atualizando a linguagem, etc.
3
Octávio Ianni. O Brasil Moderno. In. Op. cit. pp. 29-30.
4
Octávio Ianni. A idéia de Brasil moderno. Op. Cit.
condição moderna.
5
Desta forma, “Brasil”, apesar de ser, ter sido, ou presumivelmente
permanecer ad infinitum um termo hiper-real (no sentido que este termo adquire no pós-
modernismo, ou seja, mais que real, que diz de um dado do imaginário que não pode
encontrar um referente definitivo) é tratado tanto por Ianni quanto por Duarte como uma
categoria materializada se não o é ainda (existência em potência) é preciso que se
torne (que se atualize). Em outros termos, se alguns traços do caráter “brasileiro”
sugerem uma comunidade de sentimentos, esta não está plenamente desenvolvida, e
encontra a possibilidade desta efetivação superando determinados problemas e
adentrando num tipo de experiência vital propriamente moderna (em Duarte, uma
experiência exemplificada pelos modelos anglo-saxão em 1930 e, para Ianni, o Primeiro
Mundo em 1988).
A dimensão ideal e totalizante de “Brasil” se encontra no verso de outro
diagnóstico de Ianni, já que, para ele, “os estados e as regiões, por um lado, e os grupos
e as classes, por outro, vistos em conjunto e em suas relações mútuas reais, apresentam-
se como um conglomerado heterogêneo, contraditório, disparatado”.
6
Não é preciso
dizer que o oposto deste diagnóstico deve ser encontrado no primeiro termo do binômio
Primeiro - Terceiro Mundos. Assim, Duarte já havia apontado que
[uma] comunidade de homens, de um povo, enfim, uma nação,
estará tanto mais formada quanto maior fôr a unidade de seu
espírito e a solidariedade orgânica de seu todo. A unidade
territorial como o Poder Político único, centralizado ou não, devem
refletir essa unidade orgânica.
7
O disparate ou a ausência desta unidade orgânica colocam em cena o signo da carência,
o fracasso do encontro da “nação” consigo mesma. Aquela “formação nova” da qual
5
Com efeito, esta é uma discussão ampla, com vasta bibliografia. De maneiras diferentes os autores
citados tratam a relação entre nação e modernidade. No primeiro, um enfoque no papel daqueles
encarregados da tarefa de elaborar uma tradição (nacional), de inventá-la, ou seja, naqueles encarregados
de enquadrar uma memória, como diria Pollack. no segundo, o eixo é deslocado para aqueles que
compartilham (em um sentido mais amplo, o populacho) destas imagens. Assim, para Anderson uma
nação é uma comunidade imaginada, ou seja, é uma comunidade, pois independente das desigualdades e
da exploração existentes no interior dela, a nação é concebida como uma fraternidade, como uma
“camaradagem horizontal”; e ela é também imaginada, pois mesmo as pessoas de uma nação não se
conhecendo elas tem em mente a imagem de uma comunhão, garantida por diferentes vetores. Cf. Eric
Hobsbawm. A produção em Massa de Tradições. In. Eric Hobsbawm e Terence Ranger. (orgs) A
invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 271-316. Benedict Anderson.
Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise
Bottman. - São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
6
Octavio Ianni. O Brasil Nação. In. Op. cit. p. 177.
7
Nestor Duarte. Op. cit. p.114.
eram portadores os intelectuais em 1930 foi mobilizada no sentido de sanar tal questão.
Modernizar o país, diga-se.
O percurso até Ianni aqui é mais do que o intento em mostrar semelhanças entre ele e
Duarte o que não faria muito sentido. O recurso é para salientar que Ianni é um dos
primeiros a apontar ainda que de forma muito rápida a ocupação de Duarte com esta
idéia de país moderno. Esta perspectiva é desenvolvida em um estudo comparativo
levado a efeito por Luiz Guilherme Piva. O autor analisa em conjunto a contribuição de
Duarte, Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral. Piva acredita
serem insuficientes as explicações usuais acerca da produção intelectual no período
1920-1940 que, ao analisarem estes autores sob o prisma de suas concepções políticas
relativas à organização do poder (da relação entre Estado e sociedade), deságuam na
classificação que os coloca como democráticos ou autoritários; ou as que os consideram
em bloco apontando suas preocupações com a história e a condição nacional
(nacionalidade). Para Piva
é certo que a questão da organização nacional e a questão da
nacionalidade/caráter são marcantes nos nossos autores [Duarte,
Vianna, Amaral e Holanda]. Igualmente é certo que a isso se
associam concepções autoritárias e democráticas e arrazoados
histórico-culturalistas que justificam determinadas necessidades
políticas. Mas nada disso é suficiente para responder à seguinte
pergunta: a quê eles tentavam responder? Para quê elaboravam
seus estudos e propostas?
8
A pergunta é fundamental. Não dúvidas. A resposta que Piva também é resoluta
para seus propósitos: “respondem, em suma, sempre à questão de como superar o
atraso, que tem configurações históricas e ideológicas distintas, mas é a obsessão
diuturna e compartilhada. Visavam chegar a um ponto qualitativamente superior de
civilização, riqueza, organização, cultura, poder”.
9
O que a resposta de Piva não satisfaz a meu ver é o que significa
“qualitativamente superior‟? Chegar a este “ponto” traduz que natureza de interesses?
Que estratégias de (re) apresentação deste “atraso” são mobilizadas e qual lugar elas
reservam para aqueles “outros” em nome de quem fala? Dizer que é com o futuro que
estes autores estão preocupados e mostrar os componentes específicos de cada programa
8
Luis Guilherme Piva. Ladrilhadores e Semeadores: a modernização brasileira no pensamento
político de Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Azevedo Amaral e Nestor Duarte (1920-
1940) São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 32.
9
Idem. p. 33.
“modernizador” parecer ser apenas repetir em prosa o que autores como o próprio
Duarte já disseram em verso.
A nosso ver no caso de Duarte este “qualitativamente superior” indica o desejo
de construção de uma sociedade moderna nos moldes dos países centrais da Europa
(exclui-se os ibéricos) ou dos Estados Unidos; chegar a este “ponto” quer dizer erigir a
“casa segura” para aqueles “homens dotados de uma formação nova e de uma técnica
intelectual mais adequada”, ou seja, a “nação” moderna para o melhor exercício do
poder; e, finalmente, este processo passa pelas representações do atraso. Se por um lado
há a crítica às elites políticas anacrônicas, por outro os grupos subalternos aparecem sob
o mais radical signo da negatividade. Os homens dotados de uma formação nova como
apontou Ianni falam de um país e de um “povo” atrasado, pois apenas eles fizeram o
percurso semelhante àquele de Dante. O “povo” (para o intelectual) permanece tal como
o próprio Dante na selva ao encontrar-se com Virgílio: “Oh! Tu, tu és Virgílio, cuja
eloqüência... qual fonte... jorra versos fartamente? Vês a fera que me impede de andar
notável sábio; acode então, livra-me do perigo!”
10
Assim, mais do que observar a natureza da empresa intelectual de Duarte e os
componentes de seu projeto cumpre ver o que ele estabelece como desejável; como ele
pretende funcionar no nível da organização do poder; sob quais termos e a que preço ele
se constrõe?
Não se trata de uma recusa pura e simples do “moderno” (ou da modernidade)
nem mesmo a busca por uma contra-modernidade (nos termos da crítica pós-colonial).
O que está em jogo aqui é, precisamente, pensar o impulso modernizante experimentado
nas décadas de 1930 e 1940 por um intelectual integrante dos grupos hegemônicos
baianos sob uma óptica da fissura promover uma leitura a contrapelo. Daí que talvez
nas baste dizer que em Duarte temos um intelectual preocupado com o futuro e que nos
esforcemos por mostrar suas propostas o que de resto ele mesmo já o fez. Cremos que
o que também deve estar em cena é como o trabalho deste autor opera no sentido de
criar um consenso em torno de uma pretensa inevitabilidade das formas de sociabilidade
modernas daí que por vezes falamos que a modernidade (européia) figura em Duarte
como enteléquia, que, no mais, não quer dizer outra coisa senão que ela se apresenta
ao autor e este a apresenta como uma realidade plenamente realizada.
10
Dante Alighieri. A Divina Comédia. Nova Cultural. São Paulo, 2003. p. 10-11.
Estas dimensões que apontamos ou as questões que interpusemos como
indagações às colocações de Ianni ou Piva fazem parte da geografia da prática
intelectual de Nestor Duarte que pretendemos traçar neste capítulo. Sigamos o
intelectual...
Seção I Por um deslocamento dentro da função autor...
O trabalho que propomos aqui, direcionado à construção de um comentário em
torno da obra de um autor deveria, em todo caso, partir precisamente da
problematização destas noções no caso, comentário, obra e autor.
A questão antes de ser retórica ou mesmo parecer desnecessária, sendo vista
como o risco de um eventual desvio dos “verdadeiros” propósitos do trabalho traduz um
conjunto de preocupações que pretende potencializar nossa interpretação. Alguns
trabalhos sobre Nestor Duarte demonstram, para além de seus méritos, como estas
noções algumas vezes são naturalizadas e comandam em seus desdobramentos a
produção dos discursos sobre o autor. A ritualística de algumas destas produções
começa pela construção de um painel inicial onde desfilam dados da trajetória
biográfica do nosso autor. Seguem-se algumas considerações acerca da unidade sob a
qual paira soberana e inabalável a obra do intelectual baiano. E, finalmente,
desenvolvem-se sob o signo inquestionável da relação (às vezes em termos de
determinação) entre obra e o mundo social.
De uma maneira ou de outra, são trabalhos que remontam ao nascimento de
Duarte no sertão baiano, seus estudos secundários em Salvador, seu curso superior na
Faculdade de Direito da Bahia, suas atividade de jornalista, advogado, literato, teórico
da formação nacional, político profissional... (e a esta altura nós entramos na ordem
do discurso).
Com efeito, talvez a condição de pouco conhecido para um público mais amplo
constitua mesmo o imperativo de que se trace este plano biográfico no escopo de
fornecer algumas informações elementares. No mesmo sentido, a identificação de um
leitmotiv no conjunto da plural produção do autor não se constitui uma operação
impossível de ser levada a efeito, pelo contrário, o estranho seria não haver (ou não ser
postulado pelos comentaristas) tal motivo condutor na obra de quem quer que seja. Por
fim, a relação entre a produção do autor e ocontexto”, o mundo social no qual ele está
inserido, talvez seja condição precípua para que não se incorra nos velhos equívocos da
história das idéias.
11
No entanto, isto não implica dizer que estas operações são naturais
e, partindo delas, seja possível estabelecer relações e desdobrar nossa análise sem que
não exista um questionamento de tais noções e de suas implicações.
Como apontou Michel Foucault, são estas noções que governam em nossa
sociedade a relação com o texto
12
. Submeter a obra de Nestor Duarte (ou de qualquer
autor) ao comentário implica considerar um conjunto de textos (livros, artigos
publicados em jornais e revistas, suas conferências, entrevistas, etc.) como que
compondo esta “obra”; implica também que esta “obra” seja atribuída a um “autor”, ou
seja, aquele indivíduo filho de um desembargador, nascido nos sertões da Bahia em
1902, que logo se mudaria para o Recôncavo baiano, que fizera seus estudos
secundários no colégio Ipiranga em Salvador, que se bacharelou em Direito em 1921,
que ingressou no jornalismo, foi indicado para o cargo de delegado regional em 1928,
que se tornou Deputado Estadual em 1929... Enfim, que atribuamos àquela produção
um nome próprio, que remete a um individuo particular, portador de uma biografia
singular; e, finalmente, a partir da leitura deste primeiro texto (a “obra de Nestor
Duarte”) seja possível construir o nosso comentário. O questionamento principal que
Michel Foucault coloca e que visa fissurar a evidência e a naturalidade com que estas
operações são encaradas é o seguinte: quais as razões e os efeitos da “função autor”?
13
Como adiantamos, os efeitos de tal função seriam o de garantir a unidade de uma
obra remetendo-a a um único núcleo de expressão (que, no caso de nosso autor poderia
ser suas convicções “democráticas”, ou sua formulação teórica visando à conformação
da “nação” e do “povo brasileiro”, ou ainda a ideologia “autonomista”); paralelamente,
a função autor teria por missão resolver eventuais contradições entre os diferentes textos
do autor, explicados então pelo desenrolar de sua trajetória biográfica; e por fim,
estabelecer, a partir da mediação do individuo inscrito em seu tempo, uma relação entre
a obra e o mundo social (aqui, por exemplo, o ensaio A ordem privada e a organização
política nacional teria uma dívida muito maior em relação à configuração política na
Bahia posterior aos golpes de 1930 e 1937).
11
Em outros termos, uma exposição monográfica das idéias do autor sem atentar para as conexões que
elas estabelecem com o mundo social, sem perceber a articulação entre saber e poder que ela tanto
conforma quanto expressa. Para uma crítica deste procedimento ver: Roger Chartier. História intelectual
e história das idéias: uma dupla avaliação. In. A História Cultural Entre Práticas e
representações. Rio de Janeiro: Editora Bertrand. 1990.
12
Cf. Michel Foucault. O que é um Autor? In. Ditos e Escritos III. Estética: Literatura e Pintura,
Música e Cinema. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; Trad. Inês Autran Dourado
Barbosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 264-298.
13
Idem.
Para Foucault, como lembra Roger Chartier, “essas diferentes operações
delimitar uma obra, atribuí-la a um autor, produzir um comentário sobre ela não são
neutras. Elas são sustentadas por uma mesma função, definida como uma “função
restritiva” que visa a controlar os discursos, classificando-os, ordenando-os e
distribuindo-os”
14
. O que está em jogo aqui é a possibilidade de pôr em risco, de fazer
balançar aquilo que é o fundamento, em nossa configuração de saber, da inteligibilidade
e da hermenêutica de uma obra.
15
Tentando aproximar ainda mais estas reflexões do caso específico de nosso
autor, ainda que a circulação dos discursos em nossa sociedade obedeça a tais restrições,
talvez não possamos nos subtrair a elas de todo. Afinal, Nestor Duarte participa e s
também da ordem do discurso, ou seja, produziu obras, assinou, debateu, relacionou
umas com outras. Em linhas gerais, produziu uma obra que se prestou e presta-se mais
uma vez ao comentário.
16
Desta forma, a questão que se impõe aqui é apontar as implicações da
naturalização destas noções, uma vez que delas se poderia extrair conclusões
simplificadoras da elaboração do autor.
Assim, ao pronunciar a Saudação a Nestor Duarte quando do seu ingresso na
Academia de Letras da Bahia em 1966, Godofredo Filho estabeleceu, no tom poético
que a ocasião pedia, a relação entre nosso autor e o seu berço geográfico, pois para ele
interessava
o menino de Caetité
17
. Erraria quem o desvinculasse da terra de seu
nascimento, a pretexto de que dali se apartou nos primeiros anos da
vida. O que de límpido e seco em vossa inteligência [de Duarte], o
que se nos revela de hermético em vosso temperamento, os
enigmáticos silêncios que precedem às vezes o fagulhar de vossas
invenctivas, o próprio estilo conciso com que disciplinais o mundo das
palavras, talvez sejam a marca do sertão em vossa alma, talvez, por
circunstancias que a ciência ecológica de todo não explica,
14
CHARTIER, Roger. A quimera da origem. Foucault, o Iluminismo e a Revolução Francesa. In. À
beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. p. 124.
15
Idem. p. 123-150.
16
É preciso evitar mal entendidos. Não se trata de colocar que o autor não exista, o que não é verdade. O
central é flagrar as implicações a que levam a “função autor”. No debate que se seguiu à conferência
Foucault tentou esclarecer tais questões: “Não disse que o autor não existia esclarece (...) eu não o
disse e estou surpreso que meu discurso tenha sido usado para tal contra-senso (...) não se trata de afirmar
que o homem está morto, mas (...) ver de que maneira, segundo que regras se formou e funcionou o
conceito de homem. Fiz a mesma coisa em relação à noção de autor. Contenhamos então nossas
lágrimas.” Cf. .Michel Foucault. O que é um autor? In. Ditos e Escritos III. Op. cit. p. 294.
17
Fundada em 1810 e distante quase 800 km da capital, Caetité situa-se no centro sul do Estado da Bahia,
em uma região denominada de alto sertão.
permaneçam em vossa personalidade como presença inviolável do
chão natal.
18
Ficamos mais tranqüilos sabendo que a “ciência ecológica” não explica tais
mistérios que fixam na alma caracteres do “chão natal”.
No caso de Duarte esse mistério fica ainda maior ao passo que sabemos que sua
família chegou a Caetité por volta de 1899, tendo ele nascido em 1902 e em 1904 ido
morar em Areia, no Recôncavo da Bahia. Assim, ou cremos na misteriosa força do
“chão natal” em fixar seus caracteres na personalidade de Nestor Duarte ou cremos no
esforço por construir uma biografia que respalde seus escritos, que ao relacionar sua
produção com aquilo que teria sido vivido pelo autor inspire-lhe autoridade. É que a
temática do sertão e do sertanejo foi mesmo um dos pontos de ancoragem de seus
escritos, especialmente de seu romance Gado Humano. Assim, que falava do que
viveu, não era então exagero ver em seu primeiro romance “um depoimento”
19
, “um
documentário”
20
.
Na verdade, Godofredo Filho não estava fazendo nada além do que reafirmar a
identificação do autor com aquilo que ele considerou algumas vezes como sendo o
núcleo da identidade nacional que é o sertanejo apesar da negatividade com que
frequentemente o apresenta. Exemplo disso, é que em um debate na Câmara Estadual
em 1935 com o deputado Carlos Monteiro da região de Ilhéus, Duarte se disse “um
tabaréu dum sertão bem mais alto”, marcando sua posição em relação à “vida brilhante”
do litoral de seu opositor.
21
Brilho este que é posterior, posto que para Duarte, “ainda
que custe acreditar, a vida política do Brasil, como a sua força econômica, veio do
interior para o litoral”,
22
o que não quer dizer que seja algo de positivo, uma vez que
esta vida política e esta força econômica são as bases da organização privada que ele
diagnosticou e contra a qual mobilizou seus argumentos, como veremos.
No entanto, ainda que Duarte mantivesse uma relação de proximidade com sua
terra natal, afinal este era seu reduto eleitoral e possuía sua propriedade rural, não
cremos válido evocar esta relação para legitimar sua obra ou pensá-la como fator
18
Godofredo Filho. Saudação. In. Discurso de Posse de Nestor Duarte e Saudação de Godofredo
Filho. Academias de Letras da Bahia. Bahia. 1966.
19
Afrânio Peixoto. Citado por Godofredo Filho. Op. cit. p. 40.
20
Adonias Filho. Ciclo Baiano. In. A Literatura no Brasil. Direção: Afrânio Coutinho. 7ª ed. rev. e
atual. - São Paulo: Global, 2004.
21
Diário da Assemblea Cosntituinte/ Diário Official do Estado da Bahia, Salvador, 2 de agosto de 1935. p.
804.
22
Nestor Duarte. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. Contribuição à sociologia
política brasileira. ed. o Paulo. Companhia Editora Nacional, 1966. Coleção Brasiliana. Vol. 172.
p. 104.
explicativo desta produção. Isto seria tomar por literais as auto-representações ou ainda
representações que não primam por uma crítica.
O próprio Godofredo Filho na seqüência de sua recepção reconheceu a hipérbole
ao colocar “que aqueles breves anos não dariam para afeiçoar integralmente o menino,
cujos primeiros olhares e impressões tiveram como cenário o vale e os suaves morros
daquela encosta da serra do Espinhaço por onde se estende Caetité”.
23
Mas esta
sugestão última, quase imperceptível, retirada daquela poética noite de 30 de março de
1966 parece ser ignorada, não suficientemente levada em conta ou, ainda, o que seria
mais produtivo, radicalizada em suas implicações.
O caso das leituras do romance Gado Humano de 1936 é emblemático. Tendo
como cenário um sertão duplamente rude, ou seja, tanto por sua paisagem castigada pela
falta de chuvas quanto pelas “massas informes” que o habita, uma gente ignorante,
subserviente e sem qualquer perspectiva de modificação em suas condições de
existência desta forma que o autor os apresenta), a narrativa se passa ao redor dos
dilemas do bacharel recém formado que retorna para gerir a fazenda que herdara.
Transborda de suas linhas os quadros de miséria dos trabalhadores da grande
propriedade que, longe da opulência de outrora, traduz agora um quadro de completa
decadência.
Essas referências sertão, bacharel, etc. não deixa dúvidas para alguns leitores
de Duarte dos traços biográficos que a produção literária do autor comporta. Para Rafael
Gomes,
por exemplo, ao observar no romance o conflito no qual se encontra a
personagem Ângelo que, ao retornar ao latifúndio com algumas “idéias avançadas” e se
deparar com a resistência do meio na efetivação das mudanças que aquelas idéias
poderiam insuflar, afirma que “a contundência com que aponta esse conflito evidencia
como o autor remonta as próprias experiências que deve ter observado em seu trajeto
pessoal” e, continua, “fundindo na mesma pessoa o intelectual e o político (...) o jovem
advogado e jornalista acabaria integrando as frentes políticas voltadas para modernizar
primeiro a Bahia, tentando superar no estado o domínio latifundiário para depois tentar
modernizar o país.”
24
A este etapismo modernizar a Bahia para depois modernizar o país ou a sua
inadequação poderíamos agregar outros questionamentos. Um destes questionamentos
23
Godofredo Filho. Op. cit. p. 25.
24
Rafael Gomes. O Privatismo e a Ordem Privada: a leitura do Brasil na sociologia política de
Nestor Duarte. Dissertação de Mestrado, apresentada ao programa de Mestrado em Ciência Política da
FFLCH-USP, em 2007. p. 23. O grifo é nosso.
diz da concepção e do papel que a literatura joga na elaboração do discurso
historiográfico. Antecipando um pouco das problematizações que emergiram quando
evocarmos a intervenção literária de Nestor Duarte, o que fica patente é a idéia de que a
literatura funciona como um documento, como a representação de uma realidade. Ainda
que prescrevendo todos os cuidados metodológicos (que por si garantem a feitura de
um tratado dos cuidados que a história deve ter com a literatura)
25
permanece a
sensação de uma dupla e ingênua crença: de que existiria “uma” realidade a ser
representada e de que a linguagem é um veículo transparente, apenas cumprindo a tarefa
de espelhar determinados objetos. Não seria novidade colocar que tal concepção encerra
os inconvenientes de negar a dimensão constitutiva do real que a linguagem teria, tal
como foi apontada nas formulações pós-estruturalistas.
26
Decerto que o romance regionalista de Duarte apresenta uma sociedade arcaica,
escondida nos ermos do país, que joga uma lógica diferente daquilo que o autor
pretende como sendo uma sociedade moderna. Mas antes de imaginar que ele espelha
essa realidade é necessário pensar como essa imagem emerge de batalhas que
configuraram estes espaços o sertão em ruínas como o objeto de novas formas de
saber a sociologia, por exemplo que vão reivindicar uma nova configuração nas
relações de poder é ao intelectual que caberá levar a nação ao encontro dela mesma.
De resto, ler a literatura do chamado Ciclo Regionalista como “documento” trás
outros problemas. Ainda que se afigure como uma convenção, é comum em algumas
obras do período o apelo ao “usar o mínimo de imaginação para o máximo de
honestidade” que aparece em Cacau de Jorge Amado
27
. O próprio Duarte disse em sua
nota preliminar de apresentação do romance que seu propósito é “mostrar, objetivar
como vivem certos punhados de homens”.
28
Tomar a literatura nestes termos traduz o
equívoco de pensá-la a partir da forma como ela mesma se imaginou ou como dizia se
imaginar. Em outras palavras, é -la com ferramentas que ela mesma impõe. Assumir
isto implica a recusa de qualquer possibilidade de deslocamento e a impossibilidade de
25
Ver por exemplo Sandra Jatahy Pesavento. História e História Cultural. ed. 1ª. reimpr. - Belo
Horizonte: Autêntica, 2005. Apesar de falar em aproximações e distanciamentos entre a história e a
literatura não resta dúvidas quanto aos lugares que tanto uma quanto outra devem ocupar. Assim, dirá
Pesavento “são ambas (...) refigurações de um tempo, configurando o que se passou, no caso da História,
ou o que se teria passado para a voz narrativa, no caso da Literatura”. p. 81. Grifos nossos.
26
Uma boa demonstração de como a literatura funciona na construção de imagens, espaços, enfim de
identidades, está em Durval Muniz de Albuquerque. A invenção do Nordeste e outras artes. 3. ed.-
Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2006.
27
Cf. Jorge Amado. Cacau. 51ª. ed.
Rio de Janeiro: Record, 1998.
28
Nestor Duarte. Gado Humano. Op. cit. p. 7.
inserir nesta literatura uma diferença não seria demais reiterar que os discursos mais
constroem do que refletem aquilo que tomam por referente.
Ainda neste ponto seria preciso ir até Gisele Laguardia que é quem analisa o
conjunto da produção literária de Duarte que comporta, além do citado Gado
Humano, mais dois romances: Tempos Temerários
29
e Cavalo de Deus
30
. Para a autora,
os textos de Duarte “são representações do real, traduzindo uma sensibilidade do vivido
e trazem em seu bojo uma versão fictícia e uma documental”.
31
Ora, os deslocamentos
ao qual nos referimos quer sugerir um esforço por pensar a literatura para além desta
dimensão
32
que é uma verdadeira tradição documental.
Este breve percurso serve para lembrar como até aqui os escritos de Duarte
apareceram comandados pelo espírito de sua biografia. Aqueles mistérios, os quais
Godofredo Filho não identificara, aqueles que marcam na personalidade uma geografia
sertaneja, são encarnados em uma leitura científica da produção de Duarte. Nenhuma
contradição entre o sertão representado e o sertão “chão natal” do autor.
Talvez outro exemplo dessa relação um tanto determinante ao invés de
relacional - entre mundo social e textos do autor apareça em algumas leituras do livro A
ordem privada e a organização política nacional. Este ensaio foi lançado, como
dissemos, em 1939, ou seja, em um momento de aguda centralização administrativa do
Estado Novo. Duarte, desde os primeiros anos do regime instalado em 1930, já se
colocara nas fileiras de oposição. Perdera seus mandatos tanto em 30 quanto em 37.
Sua atuação ao lado das figuras que até o golpe de 1930 comandavam a política no
Estado sempre se deu no sentido de, no plano nacional, combater o governo Vargas, ao
passo que fazia feroz oposição ao interventor Juraci Magalhães no cenário político da
Bahia. O chamado Autonomismo” baiano, que se constituiu neste momento,
congregou antigos desafetos da política local com o intuito de mostrar a força que a
Bahia tinha. A idéia era devolver a Bahia aos baianos alusão a Juraci Magalhães que
29
Nestor Duarte. Tempos Temerários. Rio de Janeiro. Ed. José Olympo. 1958
30
Nestor Duarte. Cavalo de Deus. Rio de Janeiro. Ed. José Olympo. 1968.
31
Gisele Laguardia. Nestor Duarte: Liberalismo e Reformas Sociais na Construção da Nação
Republicana. Dissertação de Mestrado, apresentada ao programa de Mestrado em História Política da
UFMG, em 2004. p. 158.
32
Ver Monica Velloso. A literatura como espelho da Nação. In. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 1, nº. 2, 1988. p. 239-263. Seria preciso objetar a esta tradição outra noção de literatura. Ao contrário
da busca por uma realidade representada, seria o caso de tomar a literatura como tendo uma
funcionalidade. Seria preciso então trabalhá-la enquanto construtora de sensibilidades, produtora de
formas de ver e de dizer determinados espaços, determinadas identidades. Assim, veríamos a literatura
também como possibilidade de fazer ruir estas visibilidades e dizibilidades, como aquela que e as
identidades fixadas à beira da falésia.
era cearense como deixou entrever o nome da chapa que concorreu às eleições
federais de 1933: A Bahia Ainda é a Bahia.
33
O fracasso na empreitada de 1933 onde conseguiram eleger apenas dois dos
trinta e dois candidatos para a Assembléia Constituinte Nacional não desanimou os
“Autonomistas”.
34
Em 1934 levaram à Assembléia Constituinte do Estado dez nomes,
entre eles Nestor Duarte que, em discurso no dia 10 de outubro de 1935, o tom dos
ânimos na luta política local:
a Concentração Autonomista tem um compromisso a desempenhar
nesta casa. Partido da oposição gerado ao calor das campanhas
partidárias mais violentas que tem abalado o Estado, vivendo dias de
paixão e de tumulto, porque entende de combater um governo, digno,
a todas as luzes, do seu combate, era claro que ao entrar nas lutas do
parlamento, desse a esta campanha o sentido que a vida parlamentar
exige a critica, o exame detalhado dos atos desse governo, dessa
administração que combate.
35
Entretanto deste clima autonomista” ou deste contexto político não creio ser
possível extrair o significado maior do ensaio de Duarte. É certo que nos capítulos finais
de seu escrito o autor irá sinalizar de forma clara que sua crítica contra a apropriação da
esfera pública pela privada e seus problemas correlatos é direcionada para a
administração varguista, a qual ele crê perpetuar esta verdadeira tradição na política
brasileira. Entretanto, talvez este ponto da argumentação não seja suficiente para dizer
que em A Ordem Privada e a Organização Política Nacional Nestor Duarte estivesse
“buscando meios para edificar uma memória que satisfizesse às necessidades de
idealização do passado. De um passado no qual 'a Bahia era a Bahia'”, como afirma
Paulo Silva.
36
Essa relação um tanto evidente entre o lugar político do autor e sua produção
intelectual poderia ser questionada em mais de um ângulo. De acordo com Paulo Silva,
a construção duarteana consiste tanto numa crítica ao governo Vargas quanto numa
33
Sobre luta política na Bahia no período estudado o livro de Paulo S. Silva permanece um clássico. Ver
Paulo S. Silva. Âncoras de Tradição. Op. cit. Consultar também Consuelo Novais Sampaio. Poder e
Representação: O Legislativo da Bahia na Segunda República - 1930-1937. Salvador: Assembléia
Legislativa. Assessoria de Comunicação Social, 1992.
34
Esse dado é interessante por mostrar como em pouco tempo o Partido Social Democrático conseguiu
assumir o controle político do Estado. Ainda que desalojando grande parcela da elite política do seu lugar
nas esferas de poder, Juraci Magalhães tratou rapidamente de buscar o apoio dos “coronéis”. Um deles, o
coronel Franklin Albuquerque “comandava” uma região que abrangia 20 municípios, quase o dobro do
que comandava o lendário Horácio de Matos, preso pelo regime instalado em 1930. Cf. Consuelo Novais
Sampaio. Poder e Representação: O Legislativo da Bahia na Segunda República - 1930-1937. Op.
cit. p. 91.
35
Nestor Duarte. Discurso. In. Diário da Assemblea/ Diário Official do Estado da Bahia, Salvador, 3 de
janeiro de 1936.
36
Cf. Âncoras de Tradição. Op. cit. p. 145.
busca pelas origens do Autonomismo que, no período entre 1930 e 1940, consistia no
contraponto a tal regime e evocava a nobre missão de recuperar a Bahia para os seus.
De acordo com Paulo Silva, quando
os “autonomistas” lançaram-se à luta contra o governo Vargas, o
passado foi invocado para apoiar a resistência ao projeto nacionalista
centralizador. Dois aspectos foram tomados como cruciais; primeiro,
desde suas origens mais remotas, o Brasil teria se caracterizado pela
ausência de um Estado forte; segundo, na Bahia, contava-se com
exemplos de resistência aos projetos centralizadores ocorridos na fase
de formação do Estado Nacional. A partir dessas referências
históricas, Nestor Duarte e Luiz Vianna Filho empenharam-se em
mostrar os fundamentos da vocação autonomista presente na Bahia.
37
Cumpre ressaltar que minhas reflexões dizem respeito apenas à abordagem que
Paulo Silva reserva para o trabalho de Nestor Duarte. Sobre os outros dois intelectuais
Luis Viana Filho e Wanderlei Pinho em torno dos quais se desenrola a análise segue
minha ignorância. A nosso ver tanto a exploração das categorias e dos problemas que o
ensaio de Duarte coloca no que se refere ao desenvolvimento histórico do Brasil, como
o contexto em que a obra emerge são invejáveis no trabalho de Paulo Silva - mas são
também o limite até onde podemos acompanhar o autor.
No nosso entendimento em A ordem privada e a organização política
Nacional um esforço por pensar as determinações de diferentes cores política,
econômica, cultural que tornam possível um regime personalista como o de Vargas,
na mesma medida em que busca demonstrar a partir destas mesmas determinações, a
inadequação de regimes ditos de “Estado Forte” ao “espírito” brasileiro.
Daí flagre o autor uma ordem privada que ditara os rumos da política no país e
que se atualizava no governo Vargas. Uma ordem que é tanto produto do atraso que
herdada da colonização portuguesa, ou seja, de uma sociedade ela mesma arcaica e não
propensa ao espírito público , quanto produtora deste atraso, posto que da ausência do
espírito da coisa pública retira sua razão de ser. Neste ponto a crítica tem um endereço
certo: Azevedo Amaral. Para Duarte, “um dos preconceitos mais sutis e influentes de
nossas concepções políticas consiste em identificar o processo de formação de nossa
nacionalidade com a política de centralização do poder”.
38
Nada em maior desacordo
com as formulações contidas em O Estado Autoritário e a Realidade Nacional, onde
Azevedo Amaral diz que “o novo Estado Brasileiro (...) não é (...) uma criação arbitrária
37
Paulo Silva. Op. cit. p. 165.
38
Nestor Duarte. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. Op. cit. p.113.
violentamente imposta à nação. Pelo contrário, a sua estrutura decorre de antecedentes
registrados na história (...) do país.”
39
Estes pontos emergiram novamente em um ou outro momento da argumentação.
O que estou querendo ressaltar aqui é que esta intervenção político-sociológica de
Duarte pode ser lida para além das conexões mais imediatas que ela sugere. Ou seja, as
associações com o mundo social, ou, de outra forma, da relação entre a prática
discursiva e a prática político-institucional. Não estamos sugerindo que não exista tal
relação, como fica claro no debate de Duarte com Amaral. No entanto, o ensaio de
Duarte revela mais que uma defesa do federalismo. Ele comporta um discurso
nacionalista que desde o final do século XVIII vinha colocando a necessidade dos
indivíduos participarem de uma “Nação” e que teve, no Brasil, seu tempo forte entre as
décadas de 1920 e 1940. Este discurso, que tem como correlato a idéia de civilizar o
povo, ou no caso de Duarte, educá-lo para o sentido da coisa pública, traduz a busca por
colocar o país nos trilhos da história, ou, em outros termos, torná-lo moderno. Daí que
tomá-lo apenas como fundamento ideológico das elites políticas baianas em busca da
reconquista de seu lugar ao sol faria perder essa dimensão mais ampla que o escrito
comporta.
É neste sentido que importa colocar os questionamentos em torno daquilo que
Foucault chamou de “função autor”. Fissurada em seus fundamentos, seria então
possível pensar essa prática discursiva em sua relação com outras séries de práticas
como as políticas sempre em termos de conexões, aproximações e afastamentos,
nunca estabelecendo relações de determinação.
A esta altura não mais mistérios. Aquele que respondia pela relação entre o
autor e sua terra natal, que garantia a coerência entre real vivido e sua representação,
poderia ser explicado por uma concepção literária que tem como agenda a conformação
da nacionalidade. Daí ter que, seguindo essa trilha, espelhar a realidade da nação,
atualizá-la. Por isso, menos literatura para mais honestidade. Da mesma forma, se não
determinação, vejamos como se passa, no caso de Duarte, a relação entre o
intelectual e o político.
39
Azevedo Amaral. O Estado autoritário e a realidade nacional. Brasília: Ed. UnB/Câmara dos
Deputados, 1981. A primeira edição da obra é de 1938.
Seção II Política de intelectuais na Bahia.
Ao final do seu livro O século dos Intelectuais, Michel Winock afirma que “o
contrapoder espiritual de que nossa sociedade carece pode ser um poder difuso, que
ninguém, nenhuma consciência individual superior, ou grupo privilegiado podem
encarnar”.
40
Essa é uma sugestão relativamente recente para o estatuto do trabalho
intelectual. Talvez não fosse possível precisar o momento de sua emergência, mas, em
contrapartida, talvez seja correto dizer que em 1968 ele encontra um ponto de não-
retorno.
41
A questão é que, como sugere Foucault, a politização do intelectual se dava a
partir de duas condições: primeiro, seu posicionamento enquanto intelectual na
sociedade de classe; segundo, seu discurso revelador de verdades e desvelador de
relações políticas onde elas no geral não eram percebidas. Para Foucault, “o intelectual
dizia a verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-
la: consciência e eloqüência.”
42
Desta maneira, a partir da metade do século passado
tanto este processo de politização quanto o lugar do intelectual nos embates políticos
são deslocados para um nível menor, da política mais molecular. Desde então esta
percepção daquilo que vem a ser o intelectual, de seu lugar e do papel que ele venha a
jogar em uma determinada sociedade, permanece em cheque.
43
Entretanto, houve
momentos em que ela, a imagem daquele que falava aos que não sabiam e em nome dos
que não podiam, grassou quase que inconteste.
No Brasil, períodos em que é possível observar a atuação destes indivíduos
que encarnavam a consciência e a eloqüência da nação ou a favor da nação. Neste
caso, alguns recortes temporais podem ajudar a compreender as diferentes maneiras dos
intelectuais colocarem os problemas da nação. Assim, a geração dos anos 1920-1940
teria em vista a questão da identidade nacional e a organização das instituições políticas
que, devidamente adequadas à realidade nacional, tornariam possível o surgimento de
40
Michel Winock. O século dos Intelectuais. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2000. p. 800-801. Logicamente Winock está referindo-se à sua sociedade francesa. Mas talvez possamos
estabelecer pontos de contato entre suas inferências e nossos propósitos.
41
Foucault dirá que o momento da emergência dointelectual específico” se daria em algum ponto
imediatamente posterior à segunda guerra, marcando uma diferença fundamental em relação ao
“intelectual universal”, portador da consciência e da eloqüência. Cf. Michel Foucault. Verdade e Poder.
In. Microfisica do Poder. 20ª. ed. Org. e Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.
42
Michel Foucault. Os intelectuais e o Poder. In. Microfisica do Poder. Op. cit. p.70-71.
43
Isto porque, ainda com Foucault, “os intelectuais descobriram (...) que as massas não necessitam deles
para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem”.
Idem. p. 71.
uma sociedade política.
44
a geração que iria de 1954 até o golpe de 1964 consideraria
efetuada a fusão entre povo e nação, ou seja, não cumpria mais assegurar a coesão
interna, “mas sim defender a nação dos interesses imperialistas”.
45
Com efeito, se observarmos as questões que Duarte aborda em seu ensaio,
poderíamos ver certa confluência entre as colocações de Daniel Pécaut e aquilo que o
intelectual está ocupado em efetivar. Entretanto esta não é a questão, que Pécaut
acaba justamente perdendo algumas especificidades em sua análise geral da atuação
intelectual entre as décadas de 1920 e 1940
46
. O que importa aqui é observar quais
temas (definição de um caráter nacional, construção de instituições adequadas à
realidade brasileira, desejo de vir-a-ser moderno etc.) e com quem Duarte debatia em
sua elaboração (Sérgio Buarque, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral). Neste sentido a
sugestão de Pécaut nos parece bastante profícua no que tange às formulações de Nestor
Duarte em A Ordem Privada e a Organização Política Nacional.
No entanto, esta não foi a primeira intervenção intelectual do autor. Antes do
ensaio de 1939, Duarte já havia lançado sua “Tese” O Direito: Noção e Norma
47
com a
qual se tornou professor da Faculdade de Direito da Bahia e o já referido romance Gado
Humano. na década de 1940 publicará na revista da Ordem dos Advogados da Bahia
um pequeno texto de natureza jurídica.
48
Apareceria ainda, entre outubro e novembro de
1940, com uma série de quatro artigos intitulados Inquérito sobre a economia baiana e,
finalmente em 1947, apresentaria na Câmara Federal seu projeto de reforma agrária que
mais tarde será convertido em livro.
49
44
De acordo com Jo Murilo de Carvalho entre a independência e 1945, passando pelo regime de
Vargas, foram construídas pelo menos três imagens da nação brasileira. A primeira, forjada no Império,
teria sido marcada por uma ausência, que é a do povo; a segunda, já na República, seria marcada por uma
visão negativa do povo; e, por fim, aquela forjada no Estado Novo seria marcada por uma visão paternal
do povo. Cf. Brasil: Nações Imaginadas. In: Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 233-268.
45
Sobre esta periodização ver Daniel Pécaut. Os Intelectuais e a Política no Brasil entre o povo e a
nação. Trad. Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Ed. Ática, 1990. p. 14-15.
46
Por exemplo, Pécaut dirá que a corrida rumo à “realidade brasileira” desembocava na rejeição aos
modelos democráticos. O que não é totalmente verdadeiro como deixa entrever o próprio trabalho de
Duarte e a obra de Sérgio Buarque de Holanda.
47
Nestor Duarte. O Direito: Noção e Norma. Salvador: Oficina Dois Mundos, 1933.
48
Importante notar que se trata de apenas um texto. Ou seja, um equívoco em certas referências ao se
reportarem a dois textos inexistentes de Duarte: Os fundamentos do direito natural de 1941 e As
direções do positivismo jurídico de 1942. Cf. Nestor Duarte. Os fundamentos do direito natural e as
direções do positivismo jurídico. In. FORUM: Revista do Instituto da Ordem dos Advogados da Bahia.
Vol. XIV. Ano VI, Fasc. 9, maio/junho de 1941. pp. 277-288.
49
Nestor Duarte. A Reforma Agrária. Ministério da Educação e Saúde Serviço de Documentação. Rio
de Janeiro. 1953.
Essa breve sinopse de sua atividade intelectual nos auxilia a demonstrar como a
produção de Duarte é relativamente profícua entre as décadas de 30 e 40 e, também,
como essa produção apresenta certo nível de diversificação. Assim, soma-se a textos
jurídicos, romance, ensaio histórico, textos sobre economia, projeto de reforma agrária
etc., os seus discursos e intervenções na breve experiência legislativa do Estado entre
abril de 1935 e novembro de 1937. Desta forma, ainda que restem poucas dúvidas sobre
as relações que existam entre as diferentes obras do autor, não deixa de soar como certo
exagero a idéia de Laguardia, segundo a qual “a trajetória política, as obras de filosofia
do direito, de sociologia, de direito agrário e os romances de Nestor Duarte revelam-se
complementar”.
50
Antes de incorrermos nessa ilusão biográfica
51
podemos analisar sob quais
termos estabelece-se a relação entre sua prática discursiva e sua prática política, entre as
dimensões intelectual e política de nosso autor.
52
Para que o problema da relação entre os intelectuais e a política faça sentido,
como propõe Bobbio,
53
seria necessário que os intelectuais formassem, ou acreditassem
formar, em determinado país, uma categoria à parte e, por conseguinte, que tal categoria
possuísse, ou imaginasse possuir, uma função política própria, que pudesse marcar uma
diferença em relação a todas as outras categorias ou classes que compõem aquela
determinada sociedade.
Em linhas gerais, Bobbio parece estar pondo em cena elementos de duas
clássicas definições do intelectual moderno. Uma de Gramsci
54
, para quem todos os
homens seriam intelectuais, ainda que nem todos os homens desempenhassem na
sociedade a função de intelectual - daí que Bobbio fale em “função política própria”; a
50
Gisele Laguardia. Op.cit. p. 168.
51
Cf. Pierre Bourdier. A ilusão biográfica. In: Usos e abusos da história oral. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2000. pp. 183-191.
52
Não se trata de postular uma separação nítida entre as duas esferas, menos ainda de desprezar a
dimensão política que o trabalho intelectual pode assumir. Sobre isso seria interessante ver o colorido que
próprio Duarte atribui a seu ensaio quando de sua segunda edição. Diz ele que ao surgir “em época [1965]
de perigos e vicissitudes semelhantes [a 1937]” seu texto “por mais isento que seja, é uma forma de
participação inevitável na luta e nos compromissos do desenvolvimento da grandeza política do país.” Cf.
A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. Op. cit. p. xii.
53
Cf. Norberto Bobbio. Intelectuais e classe política. In. Os intelectuais e o poder: dúvidas e desafios
dos homens de cultura na sociedade contemporânea. Trad. Marcos Aurélio Nogueira. São Paulo:
EDUNESP, 1997.
54
Os indivíduos que exercem esta função intelectual na sociedade são para Gramsci de dois tipos, os
intelectuais tradicionais e os intelectuais orgânicos. Os primeiros, administradores, professores, clérigos
etc., continuariam geração após geração encarregados de fazer a mesma coisa. Já os segundos, criados
organicamente junto com classes ou empresas, estariam imbuídos de organizar interesses, conquistar o
poder. Cf. Antonio Gramsci. A formação dos Intelectuais. In. Os Intelectuais e a Organização da
Cultura. Trad. Nelson Coutinho. 5ª. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 1985. pp. 3-23.
outra definição é de Julien Benda
55
, para quem os intelectuais seriam um grupo restrito,
indivíduos completos e que constituiriam a consciência da humanidade (por isso Bobbio
fala em formar ou acreditar formar uma categoria a parte).
Ora, afirmar que os intelectuais constituíam e, talvez mais ainda, acreditassem
constituir uma categoria à parte na sociedade baiana (e mesmo brasileira) das décadas
inicias do século passado parece fazer certo sentido. Poder-se-ia atribuir esta condição
do intelectual na Bahia no período de 1930-1940 à pouca disposição de
estabelecimentos de ensino no Estado? Esta não nos parece uma via de explicação
satisfatória.
56
Com efeito, a posse de um saber é fundamental para o exercício do poder,
mas aqui seria possível introduzir uma indeterminação nessa relação de saber-poder.
A nosso ver a questão não é tanto de quem pode ou não pode interpretar o mundo (se o
Duarte intelectual ou os sertanejos ignorantes que ele quer “educar”), mas sim de quem
tem poder para tornar sua interpretação a mais adequada, hegemônica, por assim dizer.
Daí que a ênfase recaia sobre a posse de um saber socialmente legitimado.
Nesse sentido, a idéia de uma “função específica” no caso de Nestor Duarte se
apresenta sob um duplo aspecto: de um lado, trata-se da produção e do preenchimento
de um “espaço em branco” (construção e legitimação da própria função), ou seja, uma
vez que não povo político, que não forças sociais próprias de uma sociedade
moderna (produção do espaço em branco), é ao intelectual que cabe a função mediadora
entre o social e o político (preenchimento do espaço em branco); do outro lado, a
interpretação do social é operada para que outros não a façam, ou para que outras
interpretações sejam silenciadas (por isso Duarte nega qualquer dimensão política na
relação do sertanejo com o fazendeiro assim como simplesmente ignora a existência de
uma agencia significativa do movimento operário na Bahia da década de 1930)
57
.
É nestes termos que falamos na crença de Duarte em sua função específica,
pois, como sugeriu Pécaut para um conjunto mais amplo de intelectuais no período de
55
Sobre o livro de Julien Benda La Trahison des Clercs (sem tradução no Brasil) ver Norberto Bobbio.
Julien Benda. In. Op. cit. pp. 37-65.
56
Tanto Consuelo Novais (Op. cit. p. 188.) quanto Paulo Silva (Op. cit. p.79.) sinalizam a pouca difusão
dos estabelecimentos de ensino pelo interior do Estado, ainda que não estabeleçam isto como condição
para a conformação dos intelectuais como um grupo à parte. Seria importante notar que a grande
quantidade de periódicos que circulavam nos municípios entre 1930 e 1940 sugere que a formação escolar
seja relativizada no que tange ao desempenho da “função intelectual”, como é o caso de intelectuais que
operavam na formação do consenso em torno da idéia de modernização da cidade de Itabuna e que, tendo
estudado pouco, formaram-se eminentemente nos jornais. Cf. Erahsto Felício. Os feirantes são
autônomos”: tensões na modernidade subalterna da feira-livre de Itabuna (BA) na década de 1950.
Inédito.
57
Cf. Consuelo Novais. Movimentos Sociais na Bahia de 1930: condições de vida do operariado. In.
Universitas. nº. 29. Salvador, jan/abr 1982. pp. 95-108.
1920-1940, eles se colocaram a serviço do conhecimento da realidade nacional e da
formação da sociedade.
Entretanto, a fim de evitar conclusões rápidas, essa crença na posse da
consciência e da eloqüência da nação não poderia ser identificada de forma simplista na
remissão de seu trabalho ao interesse individual. Também não explicaria muita coisa
pensar que estavam atendendo a ditames dos valores de justiça ou moralidade. O que
é a crença de que possuem uma missão a desempenhar junto à sociedade. Puseram-se a
serviço do conhecimento da “realidade nacional” e da conformação da sociedade a
partir daquilo que julgavam ser adequado a tal realidade. Como coloca Pécaut, “o
intelectual tinha de estar à altura da construção da nação, portador que era da identidade
nacional e, além disso, detentor do saber relativo às leis da evolução histórica.”
58
A consciência e a eloqüência da nação colocavam-se a serviço de “salvá-la” de
sue “atraso”. Para Duarte, a realidade brasileira era a da ausência do Estado, que fora
sufocado por uma ordem privada. A necessidade que se impõe é mesmo a da
conformação de um Estado que eduque o povo para a vida pública que transforme o
sertanejo ignorante em cidadão. Uma missão que viria a preencher o espaço não
ocupado por outras forças sociais, como o próprio Duarte sinalizou, ao detectar na
precariedade da urbanização a ausência de personagens que apenas no espaço urbano
poderiam emergir, como no caso classe média, que ele julga inexistente. De resto, “o
saber relativo às leis da evolução histórica” estava garantido pela sociologia
59
que,
como ironizava Mario de Andrade, era a arte de salvar o Brasil rapidamente.
Desta maneira, ficamos inclinados a ver que se trata de mais do que uma
justificativa ideológica que motiva a empresa de Duarte. Mas, façamos um breve recuo,
para que possamos explorar mais o percurso do autor nas duas dimensões que
sugerimos aqui.
Quando ocorreu o golpe de outubro de 1930, Duarte exercia o mandato de
Deputado Estadual pelo Partido Republicano da Bahia. A “revolução de 30 [o]
encontraria nas barricadas da ordem política e social vigente, a defender as
prerrogativas arcaicas de um mundo que se desmoronava”.
60
58
Daniel Pécaut. Op.cit. p. 6.
59
Nunca é demais lembrar que umas das designações que posteriormente fora atribuída a boa parte da
literatura produzida nos anos trinta é a de “romance sociológico” que, no mais, oferece a sensação de um
oximoro mal elaborado.
60
Godofredo Filho. Op. cit. p. 31.
A identificação com o antigo regime republicano feita em plena cerimônia de
ingresso na Academia de Letras da Bahia em 1966 por Godofredo Filho soa-nos como
um “presente de grego”. Principalmente por tratar-se do confrade que àquela noite era
recebido, alguém que ostentava no currículo da vida política a imagem de ferrenho
opositor a praticamente todos os governos que se instalara no país após trinta e, no caso
específico da Bahia, um dos mais obstinados opositores da interventoria de Juraci
Magalhães entre 1931 e 1937.
Até chegar ao Legislativo, Duarte percorreu um caminho muito parecido com o
de alguns contemporâneos seus. Como lembra Paulo Silva, o ingresso em um curso
superior (notadamente os de Direito e Medicina que eram os de maior prestígio) “abria
as portas da ascensão. A primeira destas portas era a que dava acesso ao jornalismo. Em
seguida, vinham as nomeações e a carreira político-partidária”.
61
Figura 2: Academia de Letras da Bahia- Pasta nº 30. Seção de Documentos.
A imagem acima mostra a carteira de redator de Duarte no Diário da Bahia em
1925, jornal que após o golpe de 1930 se tornará veículo do PSD
62
. Os jornais, além de
61
Paulo Silva. Op. cit. p. 81.
62
Sobre a Imprensa na Bahia Cf. Luis Guilherme Tavares Pontes (org.) Apontamentos para a história
da imprensa na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembléia Legislativa do Estado da
Bahia, 2005.
serem o palco privilegiado das disputas políticas na primeira metade do século
passado
63
eram também o espaço onde a intelectualidade desfila suas habilidades.
Intelectualidade esta que na Bahia dos anos 1930 e 1940 era composta
fundamentalmente por médicos e advogados e que ditavam o tom do ambiente
intelectual do Estado com seus escritos que iam da economia à crítica literária. Mas eles
não ocupavam apenas os jornais. As revistas, apesar de escassas, constituíam também
redes de sociabilidade intelectual onde estes autores se encontravam. As revistas que
tiveram uma existência mais sólida eram aquelas ligadas a instituições como o Instituto
Histórico e Geográfico da Bahia a da Faculdade de Direito e a da Academia de Letras
da Bahia.
64
Esta última, apesar de ter sido fundada em 1917, apenas em 1930 passou a
publicar sua revista. Na comissão de direção do periódico o nome de um verdadeiro
“mito” da cena intelectual baiana: Carlos Chiacchio.
Formado em medicina, Chiacchio estará ligado a praticamente todos os
empreendimentos literários levado a efeito na Bahia entre 1920 e 1947, ano de sua
morte. É Chiacchio e o grupo que se articula em torno de sua figura que irá publicar
entre 1928 e 1929 a revista Arco & Flexa, experiência de um “modernismo
tradicionalista”, como dizia Chiacchio. Após um evento pitoresco – por ocasião da
indicação do nome de Edith Mendes e sua eleição para ingressar na Academia em 1938,
alguns acadêmicos, contrários à participação de uma mulher, acabaram por se afastar da
entidade -, Chiacchio deixa a Academia e funda Ala de Letras e Artes, uma espécie de
grupo de homens de letras, que promovia eventos artísticos além de dispor de O
Imparcial para circular sua Página de Ala, seção do periódico dedicada às letras. A
partir de 1939, o grupo passa a publicar a revista Jornal de Ala. Além destas
participações Chiacchio assinará entre 1928 e 1946 artigos semanais em A Tarde, onde
será um verdadeiro oráculo da literatura baiana.
65
Neste período aparecerá também a revista Seiva (1938), publicação do PCB. É
nesta revista que Duarte publicará, naquele que seria o segundo número, de janeiro de
63
Cf. Tânia Regina de Luca. A grande imprensa na primeira metade do século xx. In. História da
imprensa no Brasil. Ana Luzia Martins e Tânia Regina de Luca (orgs). São Paulo: Contexto, 2008. pp.
149-175.
64
Cf. Paulo Silva. A comunidade intelectual baiana. In. Op. cit. pp.77-142
65
Trata-se da mais que afamada coluna “Homens e Obras” que aparecia todas as quartas-feiras. Foi nesta
coluna que em dezembro de 1936 Chiacchio analisou Gado Humano. Entusiasmado com um romance
“absolutamente original”, o crítico fecha seu comentário de forma a reafirmar os temas e as estratégias de
maior valia na composição romanesca de então: “aqui devo concluir pelo êxito completo de uma obra,
que reúne, a um tempo, a paisagem e o homem, o drama e o cenário, a alma e o corpo de um Brasil
inexplorado em sua sensibilidade cabocla e rude”. Carlos Chiacchio. Nestor Duarte. In. Homens e
Obras”. A Tarde, 9 de dezembro de 1936.
1939, Disciplina por coordenação e Disciplina por Subordinação, que na verdade é um
fragmento de uma “Oração de Paraninfo” que ele pronunciara em 1938.
Muitos destes empreendimentos que não estiveram ligados a instituições
acabaram sendo bastante efêmeros, como é o caso de Arco & Flexa que não passou de
cinco números, e Jornal de Ala durou entre 1939 e 1942. Seiva durará até 1943 com
certa regularidade publicando no período 18 meros. Ressurgiu em 1950, mas não
passou de mais cinco números e acabou definitivamente. Encontraremos Duarte ligado
mais diretamente apenas à revista Fórum, publicação da Ordem dos Advogados da
Bahia, que apesar de ser fundamentalmente jurídica, como se pode imaginar, publicava
textos de outra natureza, como uma crítica de Nelson de Souza Sampaio sobre A ordem
privada e a organização política nacional em 1941. Duarte esteve na comissão de
direção desta revista entre novembro de 1942 e dezembro de 1944.
Em linhas gerais, estas eram as redes de sociabilidade intelectual articuladas
entre 1930 e 1940. Nelas imperavam os médicos e os advogados que, como dissemos,
escreviam sobre domínios variados.
Jorge Amado
66
satirizou esse clima “enciclopédico” ao apresentar em seu
romance de estréia uma imagem da Bahia onde todo mundo era intelectual, “o bacharel
é por força escritor, o médico que escreve um trabalho sobre sífilis passa a ser chamado
de poeta e os juízes dão valiosas opiniões literárias das quais ninguém tem coragem de
discordar”.
67
A diversidade da produção de Duarte demonstra um pouco de como o autor
participou deste clima. Em 1928 ele assinou um artigo em O Imparcial onde fez a
crítica do romance A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Além do impacto muito
positivo que a obra lhe causou, a impressão que ficou é de uma crítica que, de tão
ornamentada, quase esquece a sua razão ser, que era o próprio romance. Neste mesmo
66
À época de Arco & Flexa Jorge Amado encontrava-se em outras fileiras, na chamada Academia dos
Rebeldes que publicou os também efêmeros O Meridiano (apenas um numero em 1929) e O Momento
(nove números entre 1931 e 1932). Sobre estes tempos de modernização cultural Jorge Amado dirá que
naquele tempo, as idéias viajavam em navio de carga e levavam anos pra chegar. O Modernismo,
que explodiu em o Paulo em 22, levou cinco, seis anos pra chegar aqui... chegou por volta de 26,
27, com o primeiro livro de Eugênio Gomes, o poema
Moema,
com o primeiro livro de Godofredo
Filho,
A Balada de Ouro Preto.
Por volta de 27, formaram-se aqui três grupos de jovens: o grupo
Arco e Flecha, que publicava a revista
Arco &
Flecha,
o Samba, que tinha a revista
Samba,
e a
Academia dos Rebeldes, que editava a revista
Meridiano.
O Arco e Flecha tinha como guru o Carlos
Chiacchio, crítico literário do jornal
A Tarde, e
reuniu pessoas como (...) o próprio Godofredo Filho
(...). O nosso grupo era a Academia dos Rebeldes, de uma rebeldia arretada. Na Academia estavam
pessoas que depois foram literariamente muito importantes(..) Cf. Jorge Amado.
Entrevista
. In.
www.colmagno.com.br/plus/Valeria/ENTREVISTAJORGEAMADO.doc.
67
Jorge Amado. O país do carnaval. 30ª. ed. Rio de Janeiro, Record, 1976. p. 35. Aqui nos apropriamos
de uma referência já feita por Paulo Silva em Âncoras de Tradição. Op. cit.
ano Nestor Duarte ocupou, por indicação de Bernardino Madureira Pinho
68
, então chefe
de polícia do Estado, o cargo de delegado do Convênio Interestadual de Combate ao
Banditismo.
69
Neste ponto, podemos ver como o percurso para adentrar o mundo da
política partidária, tal como sugeriu Paulo Silva, estava quase completo. Ele conclui
esse percurso em 1929 com sua eleição pelo Partido Republicano da Bahia, como
referimos.
O central nesta construção é ver como Duarte se localiza naquela “ordem
política e social vigente”, que “desmoronava”. Ela serve para tornar visíveis as redes de
sociabilidade e de solidariedade (proprietários de jornais, chefes de polícia) das quais o
autor participa e os mecanismos que fazem funcionar as relações de poder ou a ordem
política e social vigente, na qual Duarte se encontrava, como apontou seu confrade na
recepção à Academia de Letras da Bahia.
No entanto, Godofredo Filho não tardou por tentar dissipar qualquer eventual
mal entendido em relação à inserção de Duarte na antiga ordem. Assim, ainda que se
encontrasse naquelas “barricadas” a “defender prerrogativas arcaicas de um mundo que
desmoronava”, isto não implicava uma crença do então deputado de que as coisas
deveriam permanecer inalteradas. Dai que tratou logo de restituir a integridade da
“rebeldia” ao autor, ao esclarecer a Duarte e aos demais presentes na cerimônia de
posse:
não que estivésseis nele integrado pelo espírito, ou que vossa adesão
às normas consuetudinárias significasse convicção de que nada
deveria mudar no cenário brasileiro, ou de que nossos velhos políticos,
remanescente de uma belle époque que teimava em prolongar-se nos
ridículos de seu anacronismos, continuassem a governar um país cuja
realidade lhe escapava. Não que vivêsseis apegado ao formalismo de
soluções jurídicas inoperantes, dos que o grande Ruy [Barbosa]
68
Preso pelo regime instalado em 1930, Bernardino foi inocentado dos crimes os quais fora acusado. É
que a comissão de sindicância responsável por levar a efeito a “justiça revolucionária” na Bahia acabava
se deparando com o inconveniente de ter que condenar antigos correligionários ou amigos. É ainda a
Bernardino e não a seu filho, Péricles, como encontramos em algumas referências que Nestor Duarte
dedicou seu romance Gado Humano. Sobre a justiça revolucionária ver Cf. Consuelo Novais. Justiça
Revolucionária na Bahia. In. Revista da Academia de Letras da Bahia. nº. 39, 1993.
69
Tratou-se de um convênio formalizado em 1926 entre os Estados da Bahia, Sergipe e Alagoas. Não
muitas referências no que diz respeito a esta atuação, mas uma nota que não deixa de ser curiosa.
Quando da passagem de Coluna Prestes pela Bahia, Duarte teria recebido ordens para enterrar as armas e
munições de sua tropa que estavam na cidade de Jeremoabo, sob o risco desta ser assaltada pelos homens
da Coluna. Tarefa feita, ela se mostrou desnecessária. Anos mais tarde, quando Prestes era já senador
teria dito ao filho de Duarte, na promulgação da constituição de 1946, que não entrara em Jeremoabo por
ter sido informado que a tropa a qual Duarte comandava estaria disposta a combater a coluna. Duarte,
participando da conversa, teria dito a Prestes que um havia fugido do outro. Cf. Marcelo Duarte. Discurso
de homenagem em 21 de fevereiro de 2002. (inédito) citado In. Waldir Freitas Oliveira. Nestor Duarte.
Inquietação e Rebeldia. Uma biografia Crítica. Instituto do Advogado Gonçalo do Porto de Souza.
Bahia. 2004. p. 41.
preconizava (...) mas (...) não mais encontrava ressonância nos anseios
e novos rumos da mocidade. Não que a salvação do regime se vos
afigurasse garantida porque (... Júlio Prestes devesse (...) suceder (...)
Washington Luiz. Não (...) esta injustiça não vos faço.
70
Imagem de rebelde recomposta, a cerimônia seguiu seu curso. Mas, fazendo uma
provocação: o que teria acontecido se os eventos de 1930 não tivessem, de certa forma,
alterado a correlação de forças na cena política da Bahia? Enquanto soltamos nossa
imaginação, vejamos uma versão para aquele fatídico outubro ao menos para uma
parcela daqueles que comandava a política no Estado.
O Partido Republicano da Bahia, o qual Duarte integrava, dominava a política
partidária estadual desde a sua fundação em 1927. Era composto tanto por novatos
como o próprio Duarte quanto pelos velhos nomes como J. J. Seabra (que havia sido
governador nos mandatos de 1912-1916 e 1920-1924), Otávio Mangabeira (Ministro
do governo Whasington Luiz) e Góes Calmon (governador entre 1924 e 1928). Em
outras palavras, o PRB congregava em suas fileiras até mesmo grupos rivais (no caso
dos seabristas e calmonistas) com vistas a “assegurar a paz no Estado”.
71
A “paz” entre os grupos tinha por horizonte a indicação do calmonista Vital
Soares que sucedeu Góes Calmon no governo do Estado para compor, na condição
de vice-presidente a chapa com Júlio Prestes nas eleições para presidente em 1930.
Para assumir o lugar de Vital Soares no governo do Estado seria então viabilizado o
nome Pedro Lago, então senador federal. O nome do senador não era consenso e
seguiu-se uma disputa a favor de outros nomes como o do próprio Otávio Mangabeira
(que mais tarde seria então governador do Estado entre 1947 e 1951), de Simões Filho
(fundador e proprietário do jornal A Tarde), e de Miguel Calmon (irmão de Góes
Calmon). Ao fim e ao cabo fechou-se em torno do nome do próprio Pedro Lago.
Entre mortos e feridos salvaram-se todos. O PRB permanecia acomodando os
mandatários da política local e, em muito breve, a Bahia teria um representante na vice-
presidência. Mas, eis que a ordem desmoronou...
Com a emergência do regime Vargas em 1930, praticamente todas estas figuras
foram afastadas de seus postos. Destes, apenas Seabra colaborou com o novo governo.
O ex-governador da Bahia foi quem primeiro presidiu o Tribunal Especial, encarregado
de julgar os crimes de corrupção apurados nos Estados pelas Comissões de Sindicância.
70
Godofredo Filho. Op. cit. p. 31.
71
Consuelo Novais Sampaio. Partidos Políticos da Bahia na Primeira República: uma política da
acomodação. Salvador, EDUFBA, 1988. p. 206.
Fundado em novembro de 1930, em março de 1931 o Tribunal Especial viu seus
membros se demitirem. Julgar velhos colegas não era uma tarefa muito agradável, como
falamos anteriormente.
Ainda que para alguns chefes principalmente alguns lendários “coronéis”
72
as coisas tivessem mudado para que tudo permanecesse como antes, como escrevera
certa vez Lampedusa, os acontecimentos de 1930 instauraram mesmo uma ruptura, uma
quebra com a rotina para os calmonistas, mangabeiristas e seabristas
73
, estes últimos
de volta à oposição. Longe das prerrogativas que julgavam suas, esses grupos vão
colocar a necessidade de um novo acordo.
Desta forma, embora alguns dos antigos nomes da política local tivessem
morrido neste meio tempo - como foi o caso de Góes Calmon e Vital Soares -, o retorno
de alguns outros do exílio - como Otávio Mangabeira e Simões Filho- e sua reunião sob
a sigla da Concentração Autonomista não deixa de sugerir que, ainda que longe de seus
velhos postos, os remanescentes da velha política anterior a trinta não haviam esquecido
as estratégias que fizeram suas fortunas antes dos eventos de 1930. A nova velha união
terá em vistas as eleições de 1933 e 1934 como antecipamos, e foi nesta última que
Duarte retornou, desta vez como “autonomista” ao jogo político.
É na órbita destes eventos que se conforma a configuração da política
governamental e partidária da Bahia imediatamente posterior a trinta. Por que traçá-la?
Ora, tivemos a oportunidade de sugerir que não vemos na produção de Duarte a
dimensão de uma apologia do federalismo e nem o esforço de inventar uma tradição
autonomista. A crítica à apropriação do público pelo privado e a contestação da
adequação do modelo de Estado forte à realidade brasileira” são temas centrais do
ensaio A ordem privada e a organização política nacional, que não nega seu endereço
ao governo Vargas. Só que antes de ser a tentativa por fundamentar, a partir de
experiências históricas, a “vocação autonomista da Bahia”, tais críticas traduzem os
elementos que estruturam um programa político e intelectual mais amplo: criar um
Estado adequado à “realidade brasileira”, promover a educação do “povo” para o
72
Sem contar com o apoio político de parcela significativa destes ex-dirigentes, que tinham em verdade
sua força política nos redutos políticos dos chefes rurais, o interventor tratou de forjar sua base de apoio
precisamente junto a alguns destes chefes, conforme colocamos na nota 25. Como dirá em suas
memórias, Juraci Magalhães foi “criar base política no interior (...) procurando o médico do lugar, o
advogado, enfim, a pessoa que liderava a política municipal para em torno dela arregimentar um
maioria.” Cf. Juraci Magalhães. Minhas memórias provisórias. Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 1981. p. 80.
73
Como eram designadas as forças que compunham e comandavam a cena política partidária no período,
em referência aos nomes de Góes Calmon, Otávio Mangabeira e José Joaquim Seabra.
sentido da coisa pública (tornar o sertanejo cidadão), ou seja, torná-lo político; enfim,
modernizar a “nação”.
A crítica aos governos ditos fortes, aliás, havia sido feita pelo autor em uma
Oração de Paraninfo que pronunciou em 1938. Na ocasião Nestor Duarte distinguiu
duas naturezas de disciplina. Uma que seria fundada na autoridade que se expressa pela
violência e suprime a liberdade e outra, que seria humana, que diz de uma ordem
fundada na liberdade.
Para o autor,
quando se estende o princípio da disciplina por subordinação e este é
o sentido essencial dos totalitarismos contemporâneos começa-se
também por crear uma subversão na linha de equilíbrio da
solidariedade humana, ainda que se o faça em nome de uma ordem,
porque se ordem é silencio e conformidade, nenhuma é mais perfeita
do que a ordem gerada pela violência.
74
Nenhuma incompatibilidade com as acusações que desde 1935 Nestor Duarte vinha
desferindo contra o interventor Juraci Magalhães e Getúlio Vargas.
75
O contraponto a
tal regime totalizante e que suprime a liberdade seria um disciplina fundada em outros
termos, uma vez que
para o homem, para uma sociedade, que o creou como valor, e que se
affirma, affirmando-o, a disciplina normal, extensiva, é a disciplina
por coordenação. Ela se contrasta com a outra. Tanto mais legítima é
uma ordem quanto menor for a relação de violência em que se estriba.
E é menor a violência, si maior a extensão do princípio de
coordenação.
76
A Oração de Duarte adquiriu uma dimensão absolutamente estratégica se
pensarmos no pouco tempo que se passara desde o golpe de 1937. Além disso, ela
carrega mesmo uma fala contra o arbitrário, que o autor havia sido preso, sob a pecha
de “perigoso comunista”, a mando do novo interventor, coronel Antonio Dantas, que
substituíra Juraci Magalhães no governo do Estado. Daí ela mais do que saudar os
74
Nestor Duarte. Oração de Paraninfo aos Bacharéis de 1938. In. Josaphat Marinho. Nestor Duarte,
mestre e reformador social. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Salvador 1994. p.
20.
75
Na edição de 14 de dezembro de 1934 o jornal A Tarde que era o porta voz dos “autonomistas”
publicava uma matéria que ocupava praticamente toda a sua primeira página. A matéria trazia fotos de um
estudante de medicina que havia sido espancado a mando do interventor. O anedótico fica por conta da
suposta motivação: o azar do estudante que entre um passo e outro de jazz, um balanço e outro do navio
no qual se comemorava o dia do marinheiro, acabou por esbarrar no capitão Juraci Magalhães. Na época
Duarte e outro “autonomista”, Luiz Viana Filho, fizeram a defesa do estudante, que não fora “apenas”
espancado, mas preso também. Outro caso que também ganhou as manchetes e fora atribuído ao “agente
do Sr. Getúlio Vargas”, como dizia o jornal, foi o espancamento de Simões Filho, dono de A Tarde.
76
Nestor Duarte. Oração de paraninfo aos bacharéis de 1938. Op. cit. p. 21.
bacharéis torna-se a possibilidade do autor reafirmar ditames “democráticos” e a
necessidade de governos orientados pelo princípio de “liberdade”. Por tanto, dirá Nestor
Duarte,
a liberdade é, assim, um princípio cômodo. A ordem que a toma por
tese, porque exiga um mínimo de força, dispende também um
mínimo de energia e de vigilância. E a prova está em que os regimes
que a suprimem instituem um Estado-Polícia, que resume toda a
atenção e toda energia do Poder Público (...) um Estado de
desesperada vigilância. Porque di si mesmo é fraco, sente a
necessidade de ser violento. O problema, pois, do Estado forte é um
problema de conciliação com a liberdade, porque começa a
experimentar a desnecessidade da violência.
77
Mas ler estas colocações do autor apenas como a convicção em valores
“democráticos” e na defesa da “liberdade” faria perder de vistas um sentido maior que
elas comportam. Se a “realidade” brasileira é a da desnecessidade do Estado, ou seja, se
há uma resistência na sociedade brasileira a uma organização política, fundada na
impessoalidade, não será a imposição de um estado-polícia que resolverá esta questão.
Inadequado de todo à “realidade brasileira”, tal Estado continuaria perpetuando o
império da ordem privada e ditando as regras da organização política nacional. A
criação de um Estado adequado a tal “realidade” emerge como única possibilidade de
insuflar no povo o espírito político necessário para tornar o país moderno. É esta tarefa
conciliatória entre uma identidade nacional e as instituições adequadas para promover
seu desenvolvimento que cumpre ao intelectual na ótica de Nestor Duarte.
Assim, no caso do autor, mencionar uma interferência entre campo político e
campo intelectual ou apontar uma politização de sua produção intelectual seria talvez
simplista. A marcha para a “realidade brasileira” comanda a definição do que vem a ser
o “político” e define a politização da produção intelectual.
A esta altura, poderíamos retornar a nossa questão, aquela do que teria se
passado se o acontecimento 1930 não tivesse feito ruir a rotina daqueles que
compunham a ordem na qual Duarte fora encontrado nas barricadas como sugeriu seu
confrade.
Ora, quando assinalo uma discordância em relação à leitura de Paulo Silva que
coloca A ordem privada e a organização política nacional como fundamento ideológico
do “autonomismo” baiano não quero dizer que tal escrito ou o conjunto da produção do
autor que analisamos aqui não atenda a uma perspectiva que o coloque como agente de
77
Idem. p. 21.
um grupo e que trabalha para a construção de uma coerência programática do poder. O
que estou apontando é a existência de um programa mais ambicioso e a ausência de
certa nostalgia que o texto de Paulo Silva sugere à leitura que Duarte faz. Explico.
Quando digo ausência de nostalgia quero sugerir que Duarte não estava
indisposto com os governos postos em movimento em 1930 e 1937 pelo fato destes
governos terem feito ruir a ordem oligárquica na qual ele se encontrava (como disse
Godofredo Filho). Mas, justamente pelo fato destes governos terem dado continuidade,
na sua perspectiva, àquela política oligárquica da chamada República Velha.
Com efeito, o discurso de reconquista do prestígio que a Bahia teve no Império
que é mobilizado pelos autonomistas a partir de 1930 e que então serviu também para as
reivindicações mais imediatas (reconquista do controle do aparelho estatal por parte da
elite desalojada) foi mesmo aquilo que sustentou o programa deste grupo político. No
entanto, ele coloca alguns inconvenientes para a análise. Primeiro, ele diz respeito
apenas a uma parcela da chamada elite política baiana, que outros componentes desta
elite estavam em plena sintonia com a interventoria de Juracy Magalhães, como no caso
do coronel Franklin de Albuquerque, como dissemos; segundo, pensar que mesmo esta
parcela da elite que foi afastada do aparelho burocrático foi também sumariamente
afastada do poder não traduz uma realidade. Como colocamos, apesar de Juracy
Magalhães ter conseguido de forma rápida uma penetração nos redutos de alguns chefes
locais espalhados no interior do Estado como mostrou o resultado das eleições de 1933,
é de se imaginar que os rincões de mangaberistas, seabristas e calmonistas não
desapareceram do dia para a noite, como o ficou patente nas eleições de 1934
78
. O
poder político não pode ser reduzido ao aparelho de estado ou a sua disputa.
Desta forma, o programa esboçado por Duarte adquiriu uma dimensão mais
ambiciosa e não menos prática, que não pretende um retorno nostálgico ao estado de
coisas da antiga república. Em nossa leitura o programa esboçado por Duarte implica
que a partir de uma autoridade conferida por um saber (o sociológico) se estabeleça um
espaço e os sujeitos a serem reformados (o sertão e os sertanejos) e então o inscreva na
modernidade, fechando o regime civilizatório com a coerência do progresso. Em termos
mais claros, modernizar a “nação” é um esforço para se sentir em casa nela, é não estar
mais sujeito, por exemplo, a intempéries como as de 1930 e 1937.
78
Sobre estas disputas eleitorais em 1933 e 1934 na Bahia ver as páginas 31 e 32 deste texto.
Esta é uma dimensão visível na própria maneira como Duarte conduz seu ensaio.
Ao invés de investir em um ataque puro e simples ao regime Vargas, onde poderíamos
mesmo visualizar certo ressentimento pela perda de dois mandatos e uma prisão, o autor
coloca sua argumentação no nível da formação histórica do país e da necessidade de
torná-lo moderno. A agudeza do diagnóstico formulado em A ordem privada e a
organização política nacional demonstra a insuficiência do discurso autonomista como
via de compreensão e intervenção na “realidade brasileira” como Duarte a produziu em
suas formulações discursivas.
Somente um “povo” educado para o sentido da coisa pública poderia efetuar um
corte na tradição privada do exercício do poder. Isto encerra sob outros termos a
conjugação de saber-poder a qual vimos nos referindo, ou seja, que a função intelectual
do autor se funda no domínio do saber relativo aquelas “massas informes”, da formação
da cultura preciso forjar almas de uma natureza diversa) e da organização do político
ao Estado “democrático” tal como ele é concebido nos países “desenvolvidos” e não
o autoritário Estado Novo nem as propostas como a comunista ou integralista o
encarregado de tal tarefa).
Assim, estes são a meu ver os termos da relação entre a prática discursiva de Duarte e
sua prática política institucional. Certamente não poderíamos responder à nossa questão
contrafactual, mas observar a indeterminação a qual apontamos acima sugere a política
de um intelectual mais ambiciosa e uma imagem de um intelectual-político sem
nostalgia e não menos prático em sua tarefa organizativa do poder. É este programa
explícito que não podemos perder de vista e ao qual a imagem do “reformador social”
tem algumas coisas a dizer...
Seção III O intelectual reformador.
pudemos observar em diversas passagens algumas imagens de Nestor Duarte.
O “rebelde” de Godofredo Filho; o “perigoso comunista” do coronel Antonio Dantas.
A elas poderíamos somar mais algumas, elaboradas, por exemplo, por Josaphat
Marinho, que foi seu aluno (naquela turma de 1938 e da qual Duarte fora o Paraninfo
como vimos) e o sucedeu na cadeira número trinta na Academia de Letras da Bahia
após sua morte.
79
Embora algumas vezes traduzam um palavrório apologético, essas elaborações
funcionam no sentido de tornar visível de que maneira diversas camadas discursivas vão
se sedimentando e trabalhando no sentido de construir “uma” imagem do autor. Em
outros termos, estas construções imagéticas seriam responsáveis pelo estabelecimento
daquilo que Bourdier chamou de “ilusão biográfica” ou, a busca por forjar uma crença
na existência de um eu coerente e contínuo.
80
Antes de seguirmos por estas apresentações olhemos outro tipo de produção que
joga um papel tão importante quanto na construção da imagem de um autor: o discurso
auto-referencial.
A escrita auto-referencial ou, em termos mais elegantes, a escrita de si
81
, pode,
como sugerimos, funcionar como poderosa ferramenta na elaboração de uma imagem
coesa de um indivíduo. Entretanto, esta categoria de escritos que comporta memórias,
cartas, diários, e que é cada vez mais requisitada para a produção do discurso
historiográfico, pode também fazer com que se alcance um efeito diverso daquela ilusão
biográfica, flagrando na tagalerice destes discursos os silêncios que eles produzem.
82
Não dispomos de alguns destes materiais no caso de Duarte. Seja por
impossibilidade de acesso (no caso de correspondências) ou por inexistência (no caso de
memórias), ficamos limitados a flagrar as auto-imagens do autor em algumas
intervenções suas no legislativo baiano e em uns poucos textos, como é o caso de seu
discurso de posse na Academia de Letras da Bahia. É por eles que iremos por umas
poucas linhas.
No texto que pronunciou naquela noite de 30 de março de 1966, Duarte tentou
oferecer uma imagem de quem foi ao longo de sua vida atravessada por atividades tão
diversas. Um pouco como uma tentativa de conciliação entre o “revolucionário” que,
segundo Godofredo Filho, Duarte afirmou ter sido durante toda a sua vida e o “rebelde”,
que o próprio Godofredo Filho o considerava. Assim, disse o autor de Gado Humano,
79
Josaphat Marinho disse que foi o próprio Nestor Duarte que lhe pediu que se candidatasse para ocupar
sua cadeira quando de sua morte. Cf. Josaphat Marinho. Discurso de posse. In. Discurso de posse de
Josaphat Marinho. Academia de Letras da Bahia. Bahia, 1972.
80
Cf. Pierre Bourdier. Op.cit.
81
Cf. Ângela de Castro Gomes. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In. Ângela de
Castro Gomes (org.) Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. pp. 7-24.
82
Um trabalho que acaba utilizando forma bastante positiva esta categoria de textos é o trabalho de Maria
Lucia Pallares-Burke sobre Gilberto Freyre. Cf. Maria Lúcia Pallares-Burke. Gilberto Freyre: um
vitoriano dos trópicos. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
“de mim confesso, com o perdão da má palavra, que não passo de um reformador
social. Equivale a dizer do sentido de minha participação e do meu compromisso numa
obra e numa luta que excede a mim mesmo e em que excedo a mim próprio”.
83
As belas palavras reforçam a imagem de hábil orador
84
e lançam sobre sua
trajetória política e sua criação intelectual um bem comportado epíteto que recobriria
todo seu percurso. É importante notar que o Discurso de Posse de Duarte, ainda que
seguindo o ritual
85
que selava o acesso à Academia de Letras, cabendo-lhe discorrer
sobre a obra de seu antecessor (o poeta Alfredo Pimentel) dispensa bem pouco espaço a
obra deste. Duarte gastara onze das treze páginas de seu discurso falando do século
turbulento que fora até então o século XX, do papel da Bahia e dos baianos nestes
“tempos temerários” e, da responsabilidade que lhe acorre, com o ingresso em uma
instituição que, para o autor, não tem outra missão senão a de ser “a colina consagradora
e promocional da cultura bahiana. Afinal, ela é a Academia da Bahia! Isso é tudo.”
86
Se a Academia tem tão importante missão, menor não é a da Bahia e dos
baianos. Por isso, diz Duarte, “são, maiores as tarefas dos que nascem numa grande
terra”.
87
E não seria de outras geografias que emergiria a potência desta “grande terra”
senão do sertão. Para o autor, “o sertão é um dos elementos do caráter bahiano (...) força
e magma de sua natureza, heterogêneo que se soma à terra para fazer da Bahia sempre
um total, nunca a simplicidade (...) [ um sertão que assegurará] a continuidade de seu
progresso.”
88
sugerimos como o sertanejo figurou na construção intelectual de Nestor
Duarte como o representante do “caráter nacional” e a isto retornaremos.
Por ora cumpre expor que não seria exagero supor nesta destinação que o autor
diz ser da Bahia e dos baianos aquilo que seria o seu próprio “destino” nos tempos
acelerados do século XX. “Pertenço a meu século, disse Duarte, sei que não mereço,
83
Nestor Duarte. Discurso de Posse. p. 10.
84
Esta é uma imagem que transborda nas referências ao autor. Assim, afirmou Rubem Braga, “quase
nunca escrevo sobre coisas da Constituinte [Federal de 1946] (...) quero abrir hoje uma exceção para
saudar um novo orador que vem honrar a incrível tradição das bancadas baianas falo de Nestor Duarte”.
Cf. Rubem Braga. Um Orador. In: Diretrizes. Rio de Janeiro, 14 de junho de 1946. Documento anexo
em Waldir Freitas Oliveira. Op.cit.
85
Como coloca Paulo Silva, “o processo de ingresso na Academia assumia naturalmente feições
ritualísticas. Os membros da entidade seriam escolhidos mediante eleições secretas nas quais o candidato
seria eleito se obtivesse a maioria absoluta dos votos. Uma vez eleito, preparava-se para a tomada de
posse, momento vital na rotina da academia. Um veterano receberia o recém eleito, apresentando-o aos
pares, enaltecendo seus méritos ou serviços prestados às belas-letras. Por sua vez, o novo confrade teria
que pronunciar um 'Discurso de Posse' que deveria ocupar-se da obra do antecessor. Assim a memória da
Academia seria construída”. Op. cit. p.137.
86
Nestor Duarte. Discurso de Posse. Op. cit. p. 17.
87
Idem. p. 12.
88
Idem. p. 12.
nem posso preenchê-la, sua escala de grandeza. Se lhe tomo a altura é para dizer que
estou sujeito, como todos nós, à sua atração, ao trabalho de seus dias, a suas crenças,
seus valores, às paixões de seus projetos”.
89
Ainda que evoque a “Bahia” e os “baianos”,
é a consciência e a eloqüência do intelectual que transborda das linhas do texto. Parece
ser menos de “Bahia” e dos “baianos” que sobre os conflitos que o acompanhara que
fala Duarte. Conflitos que vão colocar o problema da visão do intelectual do que seria a
“realidade” e os meios de intervenção, entre as determinações negativas e a razão
criadora.
Não seria exagero colocar que em seu Discurso de Posse Duarte pretendeu forjar
um “testemunho” de sua atuação e de suas convicções. Por tanto dirá que “crê na ação
da vontade interventora e dirigente (...) que escapam (...) a determinismos primários”.
90
E, a esta altura, o “reformador social” já está consolidado.
Seria necessário ver nesta construção sua intencionalidade, a maneira como ela
tenta recobrir todo o percurso político e intelectual daquele que fala com uma
sobriedade que, ao colocar sua trajetória sob o signo da coerência do “reformador
social” , apaga atrás de si os cortes que eventualmente tinha e invisibilizava as
estratégias de acesso a manutenção do poder ao contrário da inabalável coesão que
supostamente sua atividade política comportaria poderíamos perguntar por estas
estratégias em sua migração pelos partidos políticos.
Mas esta não é nossa questão mais importante. Se por um lado a imagem de
“reformador social” tenta colocar este efeito, de outro ela revela os limites mesmos do
próprio empreendimento intelectual. Pois a “reforma” na medida em que é forjada por
aqueles que se pretendem representativos, que se colocam à tarefa de falar pelos outros,
não pode ir além de uma reorganização do poder, de uma distribuição de poder. E estes
são os limites mesmos daqueles que encarnavam a voz e a eloqüência da “nação”, os
limites da missão modernizadora. Pois se a “reforma” é colocada por aqueles a que ela
dirá respeito, ai já deixa de sê-la, uma vez que colocará em questão o poder, sua
totalidade e de sua hierarquia.
91
89
Ibdem. p. 10.
90
Ibidem. p. 13.
91
Para uma crítica à noção de “reforma” Cf. Os Intelectuais e o Poder. Conversa entre Michel
Foucault e Gilles Deleuze. In. Michel Foucault. Microfísica do Poder. Op. cit. pp. 69-78.
É justamente esta estratégica imagem do “reformador social” que retomada é e
atualizada por Josaphat Marinho em diferentes oportunidades.
92
Estratégica porque ela
trabalha no sentido de dar uma coerência insuspeita e um caráter benevolente da
produção de Duarte.
Benevolente, pois é freqüente em Marinho a afirmação de que em Duarte existia
a “preponderância do pensamento político ou da análise social, sem subordinação à
dogmas e escolas”.
93
Para o discípulo a obra do mestre prezava única e tão somente
pelos valores elevados da justiça social e não como a tentativa de um reordenamento do
poder. Já a coerência insuspeita se mostra já que
deslocando-se do direito, da sociologia, da política e da
administração à literatura, o romancista foi igualmente fiel à
vocação do reformador social. De Gado Humano a Tempos
Temerários e a Cavalo de Deus (...) o núcleo do pensamento é um
só, repousado no destino do homem à luz do seu meio, de suas
lutas, de suas infelicidades, na tentativa invencível de mais justiça
social.
94
Nenhuma sugestão de que sua intervenção intelectual atende a uma ação de
ordenamento programático do poder. Nenhum questionamento pelo fato de sua
apresentação dos sertanejos operadas em Gado Humano os anule enquanto sujeitos e os
coloque em posição de espera pela “educação” que os elevará da condição de “massa
informe” a “povo político”. O que Marinho faz é, sem muita hesitação, seguir Duarte
em sua auto-representação do reformador social. Daí que some à afirmação feita por
Duarte de que não passava de um reformador, a convicção de que esta era a melhor
expressão para designá-lo: “o pensador vigoroso, revestido de sentimento jurídico e
político, havia de ser, um reformador social (...) na verdade, pensou e agiu, enquanto
pôde pensar e agir, como um reformador social.”
95
Não obstante a dimensão conciliadora e asséptica que a expressão adquire tanto
em Duarte quanto em Marinho ou Godofredo Filho, ela, como dissemos, expressa os
limites da abrangência do projeto modernizador do autor. Pois se é verdade que as
representações do mundo social estão sempre a serviço dos grupos que as forjam, então
92
Marinho escreve sobre Duarte em: Josaphat Marinho. Discurso de Posse. Academia de Letras da
Bahia. 1972; Josaphat Marinho. Nestor Duarte, mestre e reformador social. In. Nestor Duarte: mestre
e reformador social. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1994; Josaphat
Marinho. O pensamento político no romance de Nestor Duarte. In. Revista da Academia de Letras.
nº. 35, 1988.
93
Josaphat Marinho. Discurso de Posse. In. Discurso de Posse na Academia de Letras da Bahia.
Academia de Letras da Bahia, 1972. p. 13.
94
Idem. p. 11-12.
95
Idem. p. 10-11.
é preciso notar no programa de Duarte e do grupo social ao qual ele está ligado que esta
própria dimensão voluntária senão voluntarista dum processo modernizador que
chega à sociedade por meio de um grupo que o conduz (ou se propõe a conduzir)
encontra seus lindes naquele reordenamento do poder que, ao privilegiar tal grupo
condutor, não faz mais que privilegiar os próprios setores hegemônicos.
Este é o sentido que “reformador social” adquire para nós e é para dentro deste
programa que devemos olhar...
Seção IV A terra nulla e a inscrição do moderno...
No percurso até aqui realizado, acredito que formulei, em uma ou outra linha,
uma ou outra “definição” do “intelectual” Nestor Duarte. Em um momento apareceu o
“intelectual universal”; em outro o “reformador social” foi assumido ainda que em um
sentido diverso do pretendido pelo próprio Duarte. No entanto, sem descartar estas
imagens, creio que o fundamental é observar a função” (como sugere Gramsci), como
ela é desempenhada. O importante é ver como se operou o uso do saber, o uso da
competência, da relação do autor com a “verdade” em suas lutas políticas.
É deste ponto incerto a função intelectual mais do que buscar uma definição
precisa para o conceito de intelectual - que podemos olhar o programa “reformador” de
Duarte que se expressa fundamentalmente na sua idéia de modernização política tal
como aparece em seu ensaio e que tem como correlato a produção daquilo que Homi
Bhabha chamou “não-lugar”, ou seja, “a terra icognita ou terra nulla, a terra vazia ou
deserta cuja história tem de ser começada, cujos arquivos devem ser preenchidos, cujo
progresso futuro deve ser assegurado”
96
, conformada na articulação de enunciados e
imagens ligadas ao tema do “sertão” e do “sertanejo” presente proeminentemente em
seu romance de estréia.
As próprias formas como emergem estas duas temáticas no autor já apontam sua
participação numa nova forma de dizer e fazer ver a “realidade nacional”: o ensaio
97
e o
romance sociológico.
96
Homi K. Bhabha. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia
Renate Gonçalves. - Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 339.
97
Como se pode ver na produção intelectual das décadas de 1930 e 1940 uma verdadeira proliferação
da forma ensaio, que é a mais utilizada nas abordagens histórico-sociológicas. Como coloca Adorno, “o
método do ensaio expressa sua intenção utópica (...) no ensaio, elementos discretamente separados entre
si são reunidos em um todo legível; ele não constrói nenhum andaime ou estrutura. Mas, enquanto
configuração, os elementos se cristalizam por seu movimento. Essa configuração é um campo de forças,
assim como cada formação do espírito deve se transformar em um campo de forças”. Cf. Theodor
Adorno. O ensaio como forma. In Notas de Literatura I. Trad. Jorge Almeida. São Paulo: Ed. Duas
A “realidade nacional”, como antecipamos, foi o material que a leitura tanto
político-sociológica quanto romanesca de Nestor Duarte se propôs a dar conta. Foi ela
que Duarte pretendeu representar em seu Gado Humano. Sobre essa “missão” da
literatura em espelhar uma suposta identidade nacional Duarte tinha manifestado seu
entusiasmo ainda nos tempos de “aprendiz de intelectual” nos jornais de Salvador. Na
crítica que fez de A Bagaceira, Duarte entende que a grande qualidade do livro de José
Américo de Almeida era espelhar a identidade nacional. O impacto daquele que é tido
como o precursor do chamado “romance de 30" em nosso autor parece decisivo. Duarte
se diz um autor expatriado, e deixa ver seu estado de espírito com a literatura do país:
“não leio literatura nacional. E não leio porque não gosto de comprar por alto preço a
mercadoria barata de nossas livrarias. Prefiro viver com os de fora, com os livros
imigrantes a andar com os de casa, cuja escolha é sempre um erro e a preferencia uma
decepção de sempre”.
98
Não teríamos como dizer que mercadoria barata era essa que nosso autor andava
a folhear em suas horas de leitura. Mas, daquilo que julgou serem os pontos fortes de A
Bagaceira, e vendo sua construção em Gado Humano podemos ter uma mostra do que
importa em literatura para Duarte. Entre uma linha e outra, onde flui a própria imagem
que Duarte faz dos temas do “sertão” e do “sertanejo”, flagramos as estratégias de José
Américo que fazem fortuna com Duarte, pois são “aquelles typos que o escritor
magnífico traçou com o vigor do músculo sertanejo, na expressão da viva realidade do
meio, da cor local, da verdade nativa”,
99
que irão garantir a reconciliação do autor com
“um livro nacional”, que é o próprio título de seu artigo. Realidade do meio, cor local,
verdade nativa: antes de pensar essas noções ao nível da transparência da linguagem,
como se estivessem “representando” uma “realidade” é por sua funcionalidade que
devemos perguntar. Seria completamente vão perguntar por estes temas que se
apresentam sob o signo do realismo e do verismo se não nos colocamos a questão de
como eles funcionam, do que este discurso literário busca criar em sua exterioridade.
Para Duarte, em A Bagaceira fala-se de um espaço que “guarda as reservas
moraes da raça”. Para ele, “se ainda não morreu o orgulho nacional podermos nos gabar
Cidades; Ed. 34, 2003. p.31. No caso dos intelectuais brasileiros, as predileções por esta forma pode ser
vista de mais de um ângulo. Revelaria diálogo com a estética modernista em uns (Sérgio Buarque de
Holanda), e com os ensaístas ingleses em outros (Gilberto Freyre). Ver. Respectivamente: Antonio
Candido. Literatura e Sociedade. Companhia Editora Nacional. São Paulo: 1967; e Maria Lúcia Pallares
Burke. Op. cit. pp. 149-231.
98
Nestor Duarte. Um Livro Nacional. In. O Imparcial. Anno X nº. 2906 18-04-1928.
99
Idem.
da moeda sertaneja”.
100
Convertidos em uma essência, os temas do sertão e do sertanejo
ganharam no realismo romanesco de Duarte tal como em uma parcela significativa do
chamado “Ciclo Nordestino” uma linguagem e uma imagem que pretenderam colocá-
los como representantes de uma cultura nacional. Ainda que colocados sob o signo de
um radical atraso, espaço que comporta de forma mais emblemática aquilo que Duarte
chamou de “feudalismo atípico”, o sertão é o repositório da moralidade nacional,
aguardando a agência modernizadora a qual o intelectual se propõe.
Foi neste sentido que o autor se manifestou em uma análise do cangaço. Em um
artigo publicado também em O Imparcial o autor irá até um tema que lhe era em dada
medida familiar, que fora delegado regional de combate ao fenômeno do cangaço.
Para Duarte, mais dia menos dia, Lampião seria “pegado”. Se não o havia sido ainda,
não teria sido por falta de empenho das forças policiais. O problema situa-se em outro
plano, pois, diz o autor, “falamos muito em pegar Lampião, sem pensarmos em vencer a
caatinga. De nada vale luta de peito a peito nem encontros mais belos nesse esporte
galante de matar”.
101
A questão não é tanto do emprego da força militar, mas das
condições a que seria submetido tal empreendimento já que ali, no ermo, tudo é
anônimo na vastidão de um silêncio de terra maldita. Nem uma estrada. Uns
trilhosinhos tortuosos levam a gente para a cilada, para um brinquedo trágico de
'esconde-esconde' que está mais adiante. Lampião, ali, ainda não morreu, porque está de
braços dados com a caatinga”.
102
Lampião é para o autor um problema do meio. Para
ele, se fosse empreendido um estudo sobre tal meio, sobre a mentalidade e os hábitos
que lhes seriam correlatos, seria possível desvelar causas sociais que deixariam à mostra
a figura do “celerado” Lampião, e, revelaria “no sertão determinantes históricas que
outras causas, também sociais, farão desaparecer.”
103
Vencer o cangaço é uma tarefa que se confunde com a promoção de novas
técnicas, seria antes de tudo uma vitória sobre o atraso no qual se encontrava o sertão.
Portanto, “sem estradas e sem telégrafos a caatinga é invencível, e Lampião, um caso
além da alçada da polícia”.
104
A visão negativa da geografia rural do país será uma
constante em Duarte. Ela advém do problema que o autor detecta e que remonta à
colonização, que teria se processado aqui de maneira irregular gerando o fenômeno da
100
Idem.
101
Nestor Duarte. Leia quem quiser. In. O Imparcial. 05-01-1930.
102
Idem.
103
Idem.
104
Idem.
grande e isolada propriedade, que são componentes daquilo que denominou de “ordem
privada”; mas sempre será acompanhada da visão idealista do sertanejo como portador
do caráter nacional, ainda que ignorante e sempre necessitado da consciência e da fala
do intelectual.
Desta maneira, afirma Duarte ainda sobre Lampião que “quem quiser julgar [tal]
assunto [deverá ter] em mente a situação de uma terra ou zona em que alguma coisa de
recuado e primitivo palpita e anima sua vida e seu destino”, e que, continua, “com
telégrafos e estradas, morta assim a caatinga, qualquer tenente com um bocadinho de
vergonha, liquida esse rebento desviado”.
105
Lampião aqui é signo da barbárie, de um
lugar primitivo. Contra a tirania do atraso, que cria rebentos desviados, o socorro de
telégrafos e estrada a modernização.
“Ignorante”, “primitivo”, “bárbaro”, é todo um conjunto de imagens do sertão e
do sertanejo que se articula com outras imagens, reduto da moral nacional, força que
vem do interior do país, e revela a tarefa do intelectual modernizador, portador que é do
conhecimento da “realidade” tal como revela a ambivalência do autor em relação ao
“sertão e o “sertanejo”.
A mesma marcha que comanda esta ida até a “realidade nacional” na literatura
irá se expressar no empreendimento de “história sócio-política” de Duarte. Colocando-
se a tarefa de vasculhar o passado em busca das raízes e das razões do “atraso” do país o
autor irá compor aquilo que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “a versão
mais abstrata que a abordagem dicotômica deu origem”
106
.
Ainda que cause medo o termo abstrato, o que este autor nos permite pensar é
que Duarte funda sua construção em uma gica que postula duas naturezas de
sociedade como vimos também em sua dicotomia em relação à disciplina , dois
modelos dos quais derivam características específicas expressas em seus sistemas
político, econômico, social etc. O primeiro modelo seria a sociedade feudal que Duarte
observou presente ainda quando da publicação em 1953 de seu projeto de reforma
agrária e, o outro modelo, seria o de sociedade moderna que, em outros termos, marca
uma maneira de diferenciar a própria colonização, entre uma levada a efeito pelos
105
Idem.
106
Wanderlei Guilherme dos Santos. Paradigma e História: a ordem burguesa na imaginação social
brasileira. In. Roteiro Bibliográfico do Pensamento Político-Social Brasileiro. Belo Horizonte e Rio
de Janeiro. Ed. UFMG e Casa Osvaldo Cruz, 2002. p. 55.
ibéricos e outra pelos anglo-saxões.
107
Desta maneira, na sociedade feudal não haveria
poder público, a capacidade de penetração da ação governamental seria nima e as
relações sociais se dariam sob o signo do personalismo, enquanto que na sociedade
pretendida como moderna o que se passaria seria justamente um conjunto de atributos
diversos destes enumerados no primeiro modelo.
Com efeito, é mesmo nesta oposição que o autor vai montar todo seu ensaio
ainda que dizê-lo abstrato não signifique dizer muita coisa. O que ocorre com Duarte a
nosso ver é uma radicalização das determinações negativas aquilo que Piva chamou
de pessimismo , da antiguidade, amplitude e da persistência com que o autor pinta sua
noção de ordem privada. É importante notar que em muitos autores das décadas de 1930
e 1940 a idéia da necessidade de forjar uma identidade nacional é bastante presente,
como no próprio Duarte, no entanto este autor vai além em seu diagnóstico, não
Estado, ou se o é inadequado à “realidade brasileira”, insuficiente. Inexistência de
um Estado que fora tornado desnecessário por uma ordem privada; inexistência de um
“povo” que por sua ignorância não vai além do que se configurar enquanto uma “massa
informe”. O diagnóstico é cruel. Mas a ação voluntária encontra seu fundamento no
domínio da razão que possibilita o acesso ao “real”
108
.
Assim, a nosso ver, Nestor Duarte desempenha sua função intelectual neste
duplo movimento de instauração de uma terra nulla e da necessidade da segurança do
moderno para garantir seu progresso. Esse plano de ação guarda consigo a própria
elaboração/atualização de um espaço em branco onde a figura do intelectual em sua
função emerge como necessária. Se a configuração da sociedade exclui a existência de
um “povo político”, e o domínio do saber concorre como um dos fundamentos da
legitimação do papel intelectual é, a este, quem cabe a condução do processo de
inscrição da modernidade no “não- lugar”, ou, como colocamos antes, o papel de fazer
este espaço (o sertão) e esta “massa informe” (os sertanejos) participar da linha da
107
Sobre esta questão da oposição dos modelos ibérico e anglo-saxão ver: Luiz Werneck Vianna.
Americanistas e Iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos. In. Dados: Revista de
Ciências Sociais. Rio de Janeiro, 1991. Vol. 34, nº. 2. pp. 145-189.
108
Daniel Pécaut sugeriu que este pressuposto “realista” acabou por implicar, no que diz respeito aos
intelectuais da geração 1920/1940 numa percepção ambivalente do que seria a política. De um lado o
“real” não permitiria de um espaço verdadeiramente político, e por outro, a conivência entre ação e
conhecimento sugeriria que a “realidade” era, de início, totalmente política. Em outros termos, de um lado
não há política, ou esta não é senão superficial, desvirtuada, cabendo ao intelectual afastar os dirigentes e
os modelos que deformam a realidade” e, desta maneira, proceder à elisão da defasagem entre o social e
o político; do outro lado, tudo é política, a intervenção sempre se opera no sentido de corrigir os desvios,
e sendo justificada pelo próprio conhecimento do que deveria vir a ser a “realidade”. Cf. Daniel Pécaut.
Op. cit. pp. 7-8.
história. O “espaço em branco” da agência intelectual (ou da função) é então inscrito
acima do social.
Não se trata de pintar um quadro superdimensionado em termos de interesses em
torno da agencia intelectual nos anos 1930 e 1940. O que gostaria de demarcar é uma
distância em relação a diagnósticos como o de uma sociologia do subdesenvolvimento,
tal como aparece em Antonio Candido
109
quando diz que a literatura no pós-1930 se
processou sob o signo de uma radical tomada de consciência do subdesenvolvimento
que impulsionou então o movimento representação realista dos problemas do país.
Não estou certo até onde esta consciência do subdesenvolvimento incluía (nesta
mesma condição de subdesenvolvido) alguns destes mesmos intelectuais/literatos.
Menos ainda de que a estratégia discursiva e política institucional posta em movimento
para tentar sanar tal “subdesenvolvimento” contemplavam os sujeitos em nome dos
quais elas se arrogavam o direito de falar.
Em todo caso, esta leitura preliminar da função intelectual tal como Duarte a
desempenhou se completa de significação com o seguimento da análise que deságua
em um estudo mais detido das obras que dão corpo a tal função. Este é o caminho à
frente.
109
Cf. Antonio Candido. Literatura e Subdesenvolvimento. In. A Educação pela Noite e outros
Ensaios. Ed. Ática. 3ª. ed. São Paulo, 2000. pp. 140- 162.
Capítulo II
A construção do não-lugar: o sertão e o sertanejo como signos da
ausência.
Capa da primeira edição de Gado Humano, de 1936. (A gravura do artista Paulo Werneck é
muito sugestiva quanto ao lugar do sertanejo na narrativa duarteana, não obstante seu esforço
“denuncista”).
Preâmbulo
Desde que a chamada História Cultural se estabeleceu enquanto um campo de
estudo importante da historiografia brasileira
110
, o discurso que advogava uma
ampliação de objetos, abordagens e problemas se impôs com mais força. Não que isto
tenha sido desnecessário, pelo contrário. No entanto, alguns trabalhos que tentam
contribuir com tal ampliação das possibilidades da historiografia acabam descuidando
com o procedimento teórico-metodológico do fazer historiográfico.
Pois se é verdade que a amplitude que alcançou a História Cultural permitiu que
em seu nome um variado leque de objetos e fontes fossem convocados para a feitura do
trabalho historiográfico, muitas vezes tais objetos e especialmente algumas fontes
permanecem carecendo de uma interrogação mais aguda, de uma problematização mais
incisiva, enfim, de uma leitura a contrapelo.
Com efeito, se por um lado observamos o pulular de novos objetos e a utilização
de fontes que até então eram simplesmente descartadas como demasiado “subjetivas”,
por outro a renovação ou talvez o compromisso com a teoria não siga o mesmo ímpeto,
derivando em leituras simplistas dos objetos e do material utilizado. Em outras palavras,
esquece-se da dimensão “problema” que a história deve assumir.
No que diz respeito a nosso “objeto” Nestor Duarte e às fontes que são ou
foram - utilizadas para escrever sobre ele, podemos por vezes verificar tais questões.
Aqui ou ali observamos dois procedimentos corriqueiros: por um lado o esforço
descritivo da atuação político-intelectual do autor; por outro, a leitura em termos literais
das fontes (a obra duarteana) elas são ou expressam o que dizem ou pretendem ser, e
nada mais que isso. Ora, muito que se advoga a necessidade de se fazer uma história
problema e, a nosso ver, isto implica ir além do que apenas identificar determinada
linha de pensamento ou projeto de Nestor Duarte e descrevê-lo. É preciso ao menos
tentar revirá-lo do avesso, pensar suas implicações e limitações em determinado
contexto. No mesmo sentido, convocar as fontes para um trabalho desta natureza
pressupõe um radical questionamento de seu estatuto. E é justamente aqui que
110
De acordo com Sandra Jatahy Pesavento, por volta de 2003 a História Cultural respondia por cerca de
80 % da produção historiográfica no Brasil. Certamente estes são dados hipertrofiados, ou no mínimo
estabelecidos a partir de critério questionáveis, que a autora apenas menciona que se trata de livros
publicados, dissertações e teses defendidas, mas não demonstra como chegou a tais números, quais
programas de s-graduação pesquisou, etc. Cf. Sandra Jatahy Pesavento. História e História Cultural.
Op. cit.
chegamos ao ponto nodal da questão da ampliação das possibilidades dos materiais a
serem utilizados.
Talvez nenhum outro material foi tão festejado como contribuição pela História
Cultural quanto a literatura. Certamente, com isso não estou querendo dizer que a
literatura foi descoberta enquanto fonte por esta historiografia, ou que a literatura seja
de uso exclusivo deste campo historiográfico, mas justamente que é com o boom da
História Cultural que se amplia a utilização da literatura pela historiografia. Se por um
lado, Sandra Pesavento exagera ao postular o império da História Cultural, por outro
parece acertar ao colocar a importância da literatura para esta forma de fazer história.
111
Assim, tão familiar quanto ouvir falar em historiadores da cultura, será ouvir que tal ou
qual historiador “trabalha com literatura”.
Ora, que tal aproximação entre a história e a literatura se radicalize é algo
certamente positivo, que as duas são formas distintas de dizer sobre o mundo e
qualquer tentativa de anular suas diferenças ou postular uma incompatibilidade de
diálogo redunda em fundamentalismo teórico. O ponto central é questionar a maneira
pela qual se tal aproximação. Sendo mais específico, sob quais termos se deu a
utilização da produção literária duarteana enquanto fonte para a fabricação de trabalhos
sobre o autor ou sobre um período?
Nestor Duarte, como dissemos, escreveu três romances que quase sempre são
convocados a falar nos trabalhos sobre o autor. No entanto, a abordagem desta produção
literária se processa frequentemente sob o signo do par “representação/realidade”, onde
o primeiro termo refere-se ao texto literário e o segundo a uma determinada realidade
sobre a qual o texto versa. Em resumo, os romances de Nestor Duarte “representam”
uma “realidade”.
Ora, de saída, a sensação que este par “representação/realidade” deixa é a da
existência de uma equivalência entre palavra e coisa; a sensação de uma relação
necessária entre ambas ou ainda a sensação de que a linguagem é absolutamente
transparente. Isto porque o par “representação/realidade”, em alguns trabalhos que
utilizam a literatura duarteana, sugere, sem maiores preocupações, que o papel
cumprido pelo autor ao escrever seus romances foi o de retratar fielmente os
acontecimentos que se processaram em dado recorte espaço-temporal. A literatura
111
Idem. pp. 82-83.
aparece então enquanto espelho de uma realidade; veículo neutro de eventos, situações,
etc., concepção esta que nega a própria literatura, que nega a própria linguagem.
Com efeito, talvez fosse necessária uma extensa discussão em torno tanto do
conceito de “representação” quanto até mesmo do conceito de “realidade”. Mas este
não é nosso propósito.
Talvez fosse até mesmo mais prudente substituir o termo representação de nosso
texto, mas a proposta aqui é fazer ruir a forma como na maioria das vezes vem sendo
utilizado o conceito de representação neste movimento de aproximação da história com
a literatura. Isto porque, falando de forma simples, “representar” é, em certa medida,
“por em cena”. É justamente contra essa gica teatral que tento pensar a relação entre
literatura e história. Pois aqui, como já pontuamos, a “representação literária” teria
como escopo unicamente presentificar uma ausência. Ou seja, o romance Gado
Humano, por exemplo, figuraria apenas como retrato de certa configuração social (no
caso, o universo dos sertanejos), ao passo que seria necessário pensar outros aspectos
deste mesmo romance. Em compasso com a presentificação desta ausência, e mesmo
para além dela, importa pensar de que maneira essa figuração do outro busca instituí-lo,
busca conformar uma identidade deste. Em outras palavras, seria necessário lembrar-se
de uma suposição de Pierre Bourdieu acerca do papel da representação, pois para este
tal noção assume um caráter produtivo, maquínico, em contraste com a dimensão
teatral.
112
Desta forma, vai colocar Bourdieu, “a sociedade, através da família e depois
através de outros canais (escola, religião, meio de comunicação), introjeta nos
indivíduos as representações geradoras de atitudes e comportamentos que se mantêm ao
longo de suas vidas”.
113
Creio se possível e mesmo necessário pensar a literatura neste
nível de eminente produtividade, e não de mero espelho da realidade.
112
Em Chartier, por exemplo, tal noção também assume uma dimensão muito mais complexa que a
proposição de um mero “reflexo”, apontando para uma relação produtiva entre representações e práticas
cias, tal como sugerido Bourdieu. Na verdade o próprio Bourdieu vai ser um teórico importante para
Chartier formular o seu conceito de representação. No entanto, assim como tal conceito de representação
apresenta outro grau de complexidade em Chartier, muitas vezes ele assume uma dimensão simplista no
uso que alguns historiadores fazem dele e o fazem muitas vezes imaginando erroneamente estarem
respaldados em autores como o próprio Chartier. Para uma breve problematização do uso do conceito de
representação na historiografia brasileira Cf. Jorge Emanuel Luz de Souza. Jogos de espelho no salão da
história: os usos do conceito de representação na Nova História Cultural brasileira. Projeto de
Mestrado apresentado para seleção no PPGH-UFPE em 2007.
113
Pierre Bourdieu. Esquise d’une Theorie de la Pratique. Citado em Áurea Petersen
Tomatis. Trabalhando no Banco: Trajetória de Mulheres Gaúchas desde 1920. Tese de Doutorado
em História apresentada no Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. pp. 8-9.
Assim, se é verdade que podemos pensar numa relação entre o texto literário
duarteano (Gado Humano, por exemplo) e o “de fora”, ou seja, um complexo social
com existência efetiva (os sertanejos, no caso), também é verdade que podemos pensar
esta relação sob o signo de uma produção, de uma conformação. Esta produção, ao que
nos parece, assume dois aspectos fundamentais: de um lado, a tentativa de forjar uma
identidade nacional fundada em uma suposta genuinidade guardada pelos sertanejos:
seriam eles o núcleo da brasilidade; de outro lado, a construção destes mesmos
sertanejos enquanto sujeitos pré-modernos, fora da linha da história e necessitados de
sua conversão em cidadãos: é preciso levá-lo da condição de “massa informe” à de
“povo político”. É também esta lógica ambivalente de um discurso que se propõe a
“representar” o sertanejo que discutiremos neste capítulo.
Neste sentido, pensar as imagens e enunciados do sertanejo forjados na obra de
Nestor Duarte (especialmente em seu Gado Humano) apenas sob a ótica teatral da
representação que e em cena uma ausência é desprezar outro aspecto fundamental da
literatura, que é o seu potencial construtivista. Isto porque, não obstante o intuito
denuncista do romance de Duarte se anunciar logo na apresentação de seu Gado
Humano, é todo um repertório de imagens e enunciados que vão construir os sertanejos
enquanto sujeitos apolíticos e inconscientes dos problemas que os aflige que vai emanar
de seu romance. Duarte não escapa à atualização de um discurso estereotipado em
torno dos sertanejos. E é justamente a esta atualização que tentamos ficar atento, assim
como tentamos capturar em outros momentos e escritos do autor, tantos estas imagens
do sertanejo em um “estado de natureza” quanto as imagens do sertanejo “reserva moral
da raça”, como afirmou certa vez o próprio Duarte. Isto porque, como situamos no
capítulo anterior, esta ambivalência do discurso literário de Duarte nos ajuda a
compreender melhor os dois aspectos de sua obra os quais elegemos para problematizar
aqui: sua “representação” do sertanejo e seu projeto de “Brasil moderno”. Pois sua
representação do sertanejo tem uma dupla missão: construir o sertanejo tanto como
representante de uma genuína identidade nacional quanto como indivíduos e/ou sujeitos
coletivos pré-modernos; ao passo que seu projeto modernizador visa precisamente
colocar estes indivíduos e/ou sujeitos coletivos na linha da história. Enquanto
modernista, não agradava a Duarte uma condição que ele julgava ser resquício de um
regime feudal.
Neste sentido, este capítulo vai justamente tentar demonstrar como Duarte
constrói o sertanejo sob o signo da ausência. O que figura aqui é mais que a forma como
o autor “representou” esta ou aquela “realidade”, mas como ele contribuiu para informar
certo modo de ver os “sertanejos”. Pois se é verdade que o discurso identitário se
estabelece em detrimento da diferença, então urge tentar fissurar este discurso, bem
como esta identidade estereotípica que coloca os sertanejos em um estado de radical
inconsciência de sua própria existência. E é pondo em relevo as estratégias de
composição deste discurso (ambivalência) e seu escopo (produzir os sertanejos tanto
como tipo nacional ideal, quanto renegados sujeitos pré-modernos) que conseguiremos
rachá-lo, demonstrando que entre realidade e representação, palavra e coisa, não
relação necessária, mas sim uma relação atravessada por múltiplos fatores que remetem
a uma relação de forças e a um ordenamento do poder.
Seção I Os marcos da representação do sertanejo subalterno.
O ano é 1936. A esta altura o chamado ciclo do romance sociológico está a todo
vapor em suas diferentes manifestações. É neste ano, como nos referimos mais de
uma vez, que Nestor Duarte publica pela editora Irmãos Pongetti
114
seu primeiro
romance, Gado Humano.
sobre a produção literária do período uma infinidade de estudos que torna
desnecessária (e mesmo insuficiente dada nossas limitações no campo da crítica e da
teoria literária) uma exposição mais prolongada sobre alguns aspectos desta produção,
especialmente em seu plano estético. No entanto, ainda que não desprezemos que a obra
de Duarte seja fruto da imaginação criativa, nosso enfoque recai fundamentalmente no
imbricamento entre cultura e política. A primeira em uma de suas acepções, ou seja,
uma prática específica que existe sob forma estética (no caso um romance); e a segunda
buscando funcionar na e pela peça artística. Ressalte-se que não se busca aqui
determinações (o político ou ideológico se impondo à criação artística), mas
precisamente a busca por ler o romance de Duarte sob o prisma de sua pretensa
114
Sobre aqueles que seriam proprietários de uma das mais importantes editoras do país na década de
1930, Sérgio Miceli coloca que, “o caso dos irmãos Pongetti revela as disposições sociais necessárias
àqueles agentes que nos anos 30, no início do processo de „substituição de importações‟ no setor editorial,
se lançaram como empresários nesse ramo do mercado de bens culturais”. Cf. Sérgio Miceli. Intelectuais
e Classe Dirigente no Brasil. 1920-1945. DIFEL, São Paulo, 1979. p. 72.
funcionalidade, que para nós a literatura, antes de um teatro onde seriam
representados temas, se afigura como uma maquinaria produtora de sentidos.
115
Com efeito, entre o escopo de um autor expresso em sua obra e as formas tal
qual as imagens e enunciados que ela veicula foram ou serão apropriados pelo público
situa-se um espaço fundamental, avesso tanto à tirania do significante quanto do
significado, espaço prenhe de indeterminação, onde justamente se processa a produção
dos sentidos e significações que uma obra pode adquirir em diferentes épocas.Nesta
perspectiva, é sempre muito complexo buscar determinar o sentido que uma produção
literária assumiu sem passar pela recepção que esta obra teve, as formas como, no caso
de Gado Humano, ele foi lido, relido, translido, como diria Manoel de Barros.
No caso de nossa obra em questão, a busca por esta recepção fica restrita aos
pares de seu autor, aqueles intelectuais, críticos literários, etc., que recepcionaram Gado
Humano quando de seu aparecimento.
Embora os registros desta recepção não sejam abundantes, eles marcam um
entusiasmo com a obra de Duarte pelo seu esforço quase jornalístico em “denunciar”,
além de terem sido forjados por dois nomes da mais elevada importância para a
literatura na Bahia no período: Carlos Chiacchio e Jorge Amado.
A dimensão denuncista do romance de Duarte (assim como a de um amplo
repertório de obras literárias que integram os ciclos regionalistas do modernismo de
1930) é celebrada em momentos bem posteriores, como quando de seu ingresso na
Academia de Letras da Bahia em 1966
116
, ou em textos que vieram a lume após sua
morte em 1970
117
, e mesmo em estudos acadêmicos como nos referimos de maneira
rápida no capítulo anterior. A fórmula em suas bases é a mesma, não obstante algumas
variações ao considerar o romance “proletário” ou não; em remeter suas referências a
eventos da história da Bahia pré ou pós 1930, etc.
No entanto, em um ou outro caso, nas referências à narrativa literária duarteana
emerge imponente a imagem da literatura documentário ou documento. Em um ou
outro caso, estes enunciados celebrando a dimensão “jornalística” da literatura seguem,
de forma mais ou menos crítica, uma grade de leitura estabelecida por esta própria
115
Sobre a relação entre cultura e política na literatura cf. Edward Said. Cultura e Imperialismo. Trad.
Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
116
Como na já citada recepção feita por Godofredo Filho.
117
Dentre estes textos poderíamos destacar: David Salles. Gado Humano ou a estréia nos anos trinta.
In. Tribuna da Bahia, Salvador, 24 de janeiro de 1971; Anísio Teixeira. O Homem de Idéias. In. Tribuna
da Bahia, 2 de janeiro de 1971; Nelson de Souza Sampaio. O Político e o Escritor. In. Tribuna da Bahia,
2 de janeiro de 1971; Ariovaldo Matos. O Homem na Varada de Alba Longa”. In. Tribuna da Bahia,
2 de janeiro de 1971.
literatura, ou da crítica que tomava por valor maior o esforço e a realização desta
representação da “realidade”. Realidade esta que no que tange ao romance de 1930, ao
menos em sua faceta sociológica
118
dizia respeito a pelo menos duas imagens muito
presentes e bastante fortes: de um lado o sertanejo vivendo em estado natural, uma
“massa informe”, como diz Duarte; do outro a do trabalhador (tanto rural quanto
urbano) como potencial soldado da revolução (bolchevique), como figuram nos
primeiros romances de Jorge Amado por exemplo especialmente Suor e Cacau.
Se estas imagens do sertanejo desprovido de consciência e do trabalhador em
vias de uma politização revolucionária transbordam na literatura de trinta (e a primeira
imagem é o tema do romance de Duarte) isto atende a fatores e perspectivas muito
específicas e que confluem para a questão da representação do outro.
119
No caso da representação do potencial soldado da revolução levada a efeito por
Jorge Amado poderíamos colocar como fator relevante sua afinidade com o programa
comunista e seu posterior engajamento no próprio partido comunista ainda que isto
não determine suas composições. no caso dos trabalhadores rurais, daqueles que
habitam os ermos do país (os sertanejos do “Norte” principalmente) as explicações
também não tardam a esclarecer: uma massa vivendo em condições precárias,
alienados por completo de seus destinos. Em ambos os casos os ignorados e ao mesmo
tempo incapacitados de forjarem representações de si próprios precisam de que falem
por eles, de que retratem suas agruras. Seria este, de forma simplória, o procedimento
do romance social.
A este programa Antonio Candido sugeriu uma interpretação muito famosa. De
acordo com este autor, retomando um argumento de Mario Vieira de Mello, até mais ou
menos a década de 1930 grassava uma visão de que o Brasil era um país novo, ou seja,
havia uma grandiosidade potencial que estaria por se realizar. O que se vai observar
após trinta no país é precisamente a noção de o Brasil é subdesenvolvido. Como coloca
Antonio Candido, conforme a primeira perspectiva salientava-se a pujança virtual, e,
portanto, a grandeza ainda não realizada. Conforme a segunda, destaca-se a pobreza
118
Como veremos mais adiante, a divisão entre romance “sociológico” e romance “psicológico” é uma
verdadeira tradição na literatura brasileira. Ainda que o romance sociológico seja predominante nos anos
trinta, não implica que o psicológico tenha sumariamente desaparecido, como aponta Luis Bueno. Cf.
Dois Problemas Gerais. In. Uma História do Romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo; Editora da Unicamp. 2006. pp. 30-74.
119
Como havia apontado Marx, a respeito dos sujeitos subalternos, “eles não podem representar a si
mesmos; devem ser representados”. In. MARX, Karl. 18 de Brumário de Luis Napoleão. Edição virtual
em www.vermelho.org.br/img/obras/brumario.rtf. p. 53.
atual, a atrofia, o que falta, não o que sobra
120
. Passamos da consciência amena do
atraso para uma consciência catastrófica do atraso. Abandonam-se as aspirações
utópicas que projetavam o futuro do país a partir do seu presente e mergulha-se neste
mesmo presente esmiuçando-o, documentando-o, denunciando-o. Como dissemos
anteriormente, o que nos interessa aqui na leitura que faremos do romance de Duarte e
de outros textos seus é colocar a questão de como e com que intuito se forja estas
figurações do “outro” (do sertanejo).
Como aludimos no capítulo anterior, o que sugerimos é ler este romance não na
perspectiva denuncista, nem na perspectiva apenas de uma tomada de consciência do
subdesenvolvimento, que juntas formam a grade de leitura condescendente com as
proposições colocadas por esta própria formação discursiva do complexo literário de
1930. O que estamos querendo dizer é que não obstante outras formas que
eventualmente possam ter emergido das imagens e enunciados presentes no romance de
Duarte, para nós, esta obra funcionará como uma máquina que pretendeu instituir uma
imagem, uma forma de dizer, enfim, um sentido para temas do sertão e do sertanejo.
Até aqui não haveria mudança fundamental com relação à perspectiva
denuncista da literatura documentário, já que ela pretende também conformar uma
imagem e uma forma de dizer destes temas, mas o que interessa para nós é como esta
produção em sua exterioridade, na figuração que faz do outro, pretende quase que uma
elisão deste. Como dissemos, pretende produzir a terra nula, escrita sempre em termos
de carência (e não apenas em termos materiais) e necessitada de ter seus arquivos
preenchidos, ter sua história começada, mas começada de uma maneira muito específica
(a modernidade ocidental européia).
Entretanto, a produção deste não-lugar reativo não pode em outros termos, não
é isto que estamos tentando dizer ser identificado apenas como um esforço
maquiavélico de dominação. Se por um lado estas narrativas sugerem mesmo um
esforço de organização do poder, ou seja, a agência intelectual tenta corresponder a
expectativas que são colocadas pelas demandas do poder e dos grupos hegemônicos, por
outro a produção deste não-lugar não está dissociada da própria conformação do espaço
onde se efetiva a atuação intelectual, ou, como colocou Daniel Pécaut, daquela busca
120
Antonio Candido. Literatura e Subdesenvolvimento. Argumento I. In. A Educação pela noite e
outros ensaios. São Paulo, Atica, 1989. p. 140-162.
que orientou os intelectuais nos anos 1920 e 1940 pela legitimação de seus papéis frente
à sociedade.
121
Neste sentido, ainda que integrando um momento em que a literatura no país
busca radicalizar em seus propósitos (seria preciso lembrar Barthes, quando diz que a
literatura se constitui enquanto tal na medida em que problematiza o real na
linguagem), seja nos termos de uma tomada de consciência do atraso
122
seja em termos
da constituição de “territórios da revolta”
123
, o romance de Duarte não escapa da
“representação” do “sertanejo” enquanto uma massa despolitizada, vivendo em um
estado de natureza, desinteressada por compreender os conflitos de ordem diversas que
envolvem sua existência.
Em todo caso, como pontuamos de forma rápida no capítulo anterior, esta
imagem negativa não é a única faceta que assume o sertanejo, aquela “massa informe”
que habita os ermos tanto da Bahia em Gado Humano quanto do país em A ordem
privada e a organização política nacional. Como pontuamos, Duarte compõe seu
discurso modernizante sobre as balizas da ambivalência no que tange aos temas do
sertão e do sertanejo. Se o sertão é o espaço privilegiado de uma ordem privada que
“saindo de sua base (o interior mesmo) para alcançar o resto do país pelo litoral mais
político e independente dela [...] prolonga o seu espírito institucional na comunidade
política”
124
, espírito este que é o avesso da dimensão pública e por conseguinte política,
não deixa de ser também um espaço idílico e exótico, como rememora o autor ao
escrever sobre os sentimentos que A Bagaceira lhe despertara :
a leitura deixou-me idêntica sensação áquella quando, em viagem
pelo interior, á proporção que o mar ficou atraz e que a zona da
matta vae se distanciando, vou sentindo, ao contacto da capoeira
rala, do cheiro á flor dos alecrims picantes, (o sertão cheira á flor),
em meio a esse grande ar lavado, inconfundível das paragens largas
que se aspira com o coração, acordarem-se velhos sentimentos mal
dormidos, como se uma outra personalidade escondida na cidade
viesse receber a visita desses ambientes irmãos pela origem.
125
Seria preciso desculpar-se pela citação um pouco longa, mas ela vale pela outra
imagem do sertão que veicula. No mesmo sentido, se os sertanejos de Gado Humano
121
Cf. Daniel Pécaut. Op. cit. pp. 19-42.
122
Antonio Candido. Literatura e Subdesenvolvimento. In. Op. cit. pp. 140-162.
123
Durval Muniz de Albuquerque. Op. cit. pp. 183- 303.
124
Nestor Duarte. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. Op. cit. p. 112.
125
Nestor Duarte. Um Livro Nacional. Op. cit.
são uma “massa informe” que levam uma existência desprovida de sentido
(insignificância) e se sua condição é a de um “quadro de servidão [que] não era visto
por ninguém. E os que sentiam o seu peso, não sabiam compreender melhor”
126
(inconsciência), por outro lado eles, os sertanejos, são as reservas morais, a moeda que
garante a sobrevida do orgulho nacional.
127
Esta ambivalência, guardada as devidas proporções, pode prestar-se a uma
analogia com a ambivalência presente no discurso colonial e tão explorado nos estudos
pós-coloniais.
128
A questão é que a projeção do outro (que não deixa de ser uma
idealização) se faz a partir de um pretenso conhecimento relativo a este outro. Assim,
neste plano de idealização emergem os estereótipos que vão compor o imaginário em
torno deste outro, fixando-o em um lugar e justificando os diferentes projetos de
intervenção. Este aspecto é importante ter em consideração na medida em que estamos
falando da hegemonia de um grupo em relação a outro, pois a hegemonia requer sempre
alteridade e iteração para ser efetiva. Daí que Homi Bhabha diga que
a fixidez, como signo da diferença cultural/histórica/racial no
discurso [...] é um modo de representação paradoxal: conota rigidez
e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição
demoníaca. Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal
estratégia discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação
que vacila entre o que está sempre „no lugar‟, conhecido, e algo
que deve ser ansiosamente repetido.
129
Em outros termos, a ambivalência do estereótipo deste discurso “sertanista” na
representação da alteridade tanto afirma quanto nega o outro, a partir de um processo de
fetichização no qual a diferença é ao mesmo tempo objeto de desejo e de repúdio. O
sertão é tanto o espaço reativo da ordem privada quanto um lugar idílico, o “ambiente
irmão pela origem”. Da mesma forma o sertanejo é tanto a “massa informe” quanto a
“reserva moral da raça”. É esta a ambivalência em relação ao sertão e ao sertanejo que
vimos apontando desde o capítulo anterior.
Desta maneira, sendo esta a chave de leitura a qual lançaremos mão no que diz
respeito ao romance duarteano cumpre um retorno aos ecos que Gado Humano
provocou quando de sua publicação, à recepção que teve a obra junto à sociabilidade
letrada do período antes que adentremos na análise mais detida do texto.
126
Nestor Duarte. Gado Humano. Op. Cit. p. 43.
127
Nestor Duarte. Um Livro Nacional. Op. Cit.
128
Em autores como Homi Bhabha e Edward Said, por exemplo. Pra um balanço breve ver: Freddy
Quezada. El Postcolonialism. In. http://www.geocities.com/Athens/Pantheon/4255/postco.html.
129
Homi Bhabha. A outra questão. In. Op. cit. p. 105.
O manuscrito do romance de Duarte que está depositado nos arquivos da
Academia de Letras da Bahia registra sua conclusão em 23-06-1936. O texto que tinha o
título Santo Afonso romance do eito e do ermo rasurado se converterá logo depois em
mais um dos inúmeros romances “sociais” que apareceriam naqueles anos trinta.
A primeira crítica que encontramos de Gado Humano é a referida resenha
feita por Carlos Chiacchio, publicada em sua coluna Homens & Obras no dia 9 de
dezembro de 1936.
Chiacchio, como dissemos, era o guru da crítica literária na Bahia dos anos
1930. Defensor de um “modernismo tradicionista”
130
, o crítico depois ficaria conhecido
por fazer uma “crítica da simpatia”.
131
É este nome mais que conhecido no cenário da
crítica literária de então que logo recepcionou o romance de Duarte. Como ressalta
Chiacchio, o autor de Gado Humano não era um desconhecido das letras da Bahia.
Além de alguns artigos em periódicos da capital baiana, havia lançado três anos antes O
Direito: Noção e Norma, sua tese para ingresso como catedrático de Introdução à
Ciência do Direito na Faculdade de Direito da Bahia
132
. Com efeito, à altura da
publicação Duarte era figura conhecida nos círculos intelectuais e políticos, uma vez
que estava em pleno desenrolar-se a curta experiência do Legislativo baiano iniciada em
abril de 1935 - e que seria encerrada em novembro de 1937- e na qual Duarte foi uma
das figuras mais atuantes. No entanto, de acordo com Chiacchio, a atuação política
(institucional) não pesaria de forma negativa na composição literária de nosso autor. De
acordo com o crítico literário, “a político, em geral, infla, engorda, hipertrofia o estilo
dos homens. Em Nestor Duarte o fenômeno não se observa com a mesma
130
Modernismo Tradicionista, aliás, era como se chamava os rodapés que Chiacchio escrevia todas as
quartas-feiras no jornal A Tarde. Depois dos oito primeiros números em 1928 ele passou a chamar-se
“Homens & Obras”, mas não perdeu seu caráter cauteloso quanto às mudanças que vinham se
processando na cena literária. Esta “cautela” pode ser vista na nota que aparece no primeiro número da
Revista da Academia de Letras da Bahia em 1930. Na nota, diz Chiacchio, “A nossa revista chega
justamente num período de lutas magníficas no scenario das letras. Atravessamos uma época de
renovação. O insticto do novo, que é o característico de todos os movimentos literários, lavra, intenso,
largo e fundo, no campo das competições entre o passado e o presente. Não podemos participar, a gritos
de escândalo, dessa trepidação confusa de idéias ainda mal definidas. A nossa atitude é espectante, sem
ser indifferente. É totalmente, sem ser passiva. Queremos o novo, o melhor, o mais de possibilidade
efficazes. O typo de conservantismo, em função de melhoria, é o que nos convem... A nossa Revista está
cheia de propósitos tolerantes que alimentam os seus responsáveis acadêmicos. Queremos que a
Academia de Letras da Bahia seja uma verdade palpitante, dentro dos moldes conservadores, mas activos,
da nossa mentalidade contemporânea. In. Revista da Academia de Letras da Bahia. Anno I, agosto de
1930. nº. I, Vol. I. Grifos nossos.
131
Cf. Dulce Mascarenhas. Carlos Chiacchio: Homens & Obras” - itinerário de dezoito anos de
rodapés semanais em A Tarde. Salvador: Academia de Letras da Bahia, 1979.
132
Interessante notar como Chiacchio ao dizer que Duarte não é um desconhecido nas letras locais está
mais uma vez demonstrando aquela identificação apontada no capítulo anterior entre os bacharéis, o
jornalismo e o mundo das letras.
freqüência”.
133
Para Chiacchio esta era a “verdadeira estréia” de Duarte. No choque
entre o político e o homem das letras, o intelectual, este último não se deixará sujeitar,
“o literato não se deixou vencer pelo político. Eis a razão de, em plena vida política,
aparecer com um romance absolutamente original. Original, primeiro, pela forma,
segundo, pela substância.”
134
Sem querer incorrer em um possível equívoco, seria preciso um parêntesis em
torno desta última afirmação. Isto por que o “absolutamente original” tanto pela forma
quanto pela circunstância não deixa de chamar a atenção. O que haveria na forma e na
substância de Gado Humano que levou Chiacchio a postular um status “absolutamente
original” para a narrativa literária de Duarte?
Como dissemos, Duarte ficou bastante empolgado com o aparecimento de A
Bagaceira. O livro de José Américo de Almeida sempre fora felicitado como aquele que
deu “início” ao chamado regionalismo modernista. Diferente do que afirmou Jorge de
Souza Araújo que,
por seu início e desenvolvimento Gado Humano não faz rumo ou
proximidade com A Bagaceira [...] como geralmente se supõe, mas
com Calunga de Jorge de Lima, retratando um herdeiro de
propriedade rural que volta aos seus pagos, acreditando poder
reformar certos costumes arcaicos
135
,
é notório tanto o rumo quanto a proximidade do romance de Duarte com o livro de José
Américo de Almeida
136
. Dizemos isto tanto pela “forma” como Duarte compõe (os
capítulos mais ou menos breves e seu escopo jornalístico), quanto pela “substância” (a
vida dos trabalhadores no “ermo” e no “eito”). E foram justamente estes dois aspectos
que Chiacchio viu como os garantidores da dimensão original de do livro de Duarte.
Para o crítico que assinava todas as quartas-feiras no jornal A Tarde o que havia
em Gado Humano [era] a originalidade da forma esquemática que,
ao invés de lhe restringir o campo da imaginação criadora, lhe
aumenta as possibilidades de sugerir para cada capítulo um novo
capítulo, para cada fragmento de romance, um novo romance, que
133
Carlos Chiacchio. Nestor Duarte. In. A Tarde. 9 de dezembro de 1936.
134
Idem.
135
Jorge de Souza Araújo. Floração de Imaginários: o romance baiano no século xx. Itabuna/Ilhéus:
Via Literatum, 2008. p 114.
136
Com efeito, não estamos querendo dizer que A Bagaceira foi uma influência determinante em Duarte.
O que estamos apontando é que esta é uma das “influências” mais imediatamente perceptíveis, tendo por
horizonte tanto a leitura dos dois romances quanto a crítica que Duarte fez do livro de José Américo de
Almeida.
nessa lógica da associação dos sentimentos se funda a técnica
individualíssima de Nestor Duarte.
137
Não possuímos um instrumental teórico para considerar a “técnica
individualíssima” esposada por Duarte em sua composição, mas tendo por horizonte
tanto A Bagaceira quantos outros romances que fizeram sucesso nos anos trinta como
O Quinze, por exemplo -, a idéia de que Gado Humano seria “absolutamente original”
não deixa de reforçar a idéia de que Chiacchio produzia um crítica da simpatia.
No entanto, para além desta dimensão original o crítico de A Tarde não deixou
de flagrar a quase injunção que se apresentava aos romancistas sociológicos de
comporem a denúncia, de registrarem, nas cores mais vivas, o drama dos sertanejos.
Assim, nosso romance em questão aqui “representava o martírio da gleba sertaneja em
luta com o esplendor da civilização litorânea [...] Gado Humano é o clamor do sertão
contra o mar”.
138
Seria interessante notar como na própria crítica de Chiacchio figura aquela
ambivalência presente neste discurso “sertanista”. Para o crítico,
Duarte pinta em cores magistrais de estilo esses contrastes de nossa
sociologia indígena (sic), traçando em tópicos da mais empolgante
unidade interior os quadros da vida rural, em fluxos e refluxos de
primaveras floridas e soalheiras desolantes (...) fixa o panorama
deserto dessas terras e dessas gentes que se equiparam, nas mesmas
alternativas de grandeza e miséria, de heroísmo e inferioridade, de
intrepidez e abandono, resistência e desfalecimento.
139
Não entre-lugar na lógica do discurso de representação do subalterno, ele
parece sempre oscilar, em sua fetichização, na ambivalência que tanto afirma (sempre
em termos exóticos, folclóricos) quanto nega, constrõe o outro sempre como uma
presença vigiada (controle social), ignorada (recusa psíquica) e sobredeterminada
(tornada estereotípica).
140
A recusa pode assumir estratégias diversificadas de manifestação. Uma bastante
sutil aparece, ainda em Chiacchio, quando o par romântico da narrativa entra em cena.
Para o crítico, “figuras centrais, bem as tem Gado Humano. Ângelo e Maria Cândida
(...) dentre os múltiplos tipos, que passam e repassam, em cosmorama, pela narrativa
137
Carlos Chiacchio. Nestor Duarte. In. A Tarde. Op.cit.
138
Idem.
139
Idem.
140
Cf. Homi Bhabha. Conclusão. In. Op. cit. pp. 326-352.
vibrátil de Nestor, são este os mais simpáticos”.
141
Em que pese esta famigerada
simpatia encontrada em Ângelo e na quase imperceptível Maria cândida (filha do
Coronel Março, o patriarca mais poderoso da região onde se situa Santo Afonso, a
fazenda de Ângelo e cenário da narrativa) por Chiacchio, o que fica patente é o lugar
reservado para os outros (os sertanejos do eito): não muito simpáticos. Por fim,
Chiacchio conclui que o êxito de Gado Humano é completo, que “reúne, a um
tempo, a paisagem e o homem, o drama e o cenário, a alma e o corpo de um Brasil
inexplorado em sua sensibilidade cabloca e rude”.
142
E o intuito denuncista se casa na
visibilidade de uma sensibilidade do Brasil, sensibilidade cabloca e... rude!
Em junho de 1937 apareceu outra resenha do livro de Duarte, desta vez no
Boletim de Ariel e assinada por Jorge Amado. Peço licença para uma quilométrica
citação, mas faz jus que a transcrevamos aqui:
Quero de início dizer que tive uma grande alegria quando soube da
publicação de um romance de Nestor Duarte. Há cinco anos que,
sobre a Bahia, venho fazendo romances e sei bem quantos temas
para ficção possui o grande estado do Brasil. E saber que um
homem de comprovado talento ia tentar um romance sobre o
dramático sertão baiano podia me encher da mais viva
satisfação. Porque ao lado disso eu conhecia de muito a inteligência
de Nestor Duarte. A sua característica principal é a agudeza.
Demais ele é um homem do sertão, acostumado com as almas, os
sentimentos, os problemas do sertão. Não poderia deixar de fazer
um romance de grandes qualidades. Gado Humano é o título do seu
livro e este é um título muito feliz para tal livro. Não vou dizer que
se trata de um romance único, coisa nunca vista. Mas quero dizer
que poucas vezes um romancista estreou com tanta força e tantas
qualidades. É preciso lembrar também para se poder perfeitamente
medir o sucesso do romance de Nestor Duarte que ele veio após
uma fornada de ótimos romances que começaram a surgir de 30
para . O drama do sertão baiano! muito de reportagem no
livro, disseram. muito de documentário (esse documentário
que está tão entranhado na obra de arte moderna, apesar da dor de
barriga que causa nos metafísicos do romance...). Mas essa
reportagem e esse documentário não chegam em momento algum a
atrapalhar o „humano do livro‟. Suas criaturas (gostaria que o
romancista tivesse se demorado mais nelas) estão misturadas no
drama da terra, se confundem muitas vezes com ela, mas são
criaturas humanas que sofrem e nos comovem. Nestor Duarte não
traiu seu sertão. Não fez homens rudes a matutar na existência de
Deus em bom português de Lisboa, como querem certos críticos
sem público, que conseguiram enganar o sr. Lúcio Cardoso que
assim o fez no Salgueiro e em A Luz no Sub-solo. Sei bem que
certos cavalheiros que possuem a receita do bom romance (o
141
Carlos Chiacchio. Nestor Duarte. In. A Tarde. Op.cit.
142
Idem.
psicológico, a arte pela arte, o fora dos problemas sociais, o
misterioso...) torcerão o nariz diante desse romance corajoso e
verdadeiro. Dirão que não há psicologia, profundidade e outras
besteiras iguais. Enquanto isso Nestor Duarte de seguir a sua
estrada de romancista. Para quem abriu uma clareira tão forte com
o Gado Humano será fácil construir uma larga estrada. Nestor
Duarte ainda será um romancista amado pelo público.
143
Esperamos que o leitor tenha fôlego para nos acompanhar por mais algumas
linhas. O texto de Jorge Amado apresenta alguns aspectos muito importantes para
pensarmos a concepção literária (ou ao menos parte dela) em voga no período 1930-
1940.
Mais lúcido do que Chiacchio em considerar a originalidade do romance de
Duarte, Jorge Amado, em compensação, tal como o crítico de A Tarde não poupa
elogios à estréia de seu conterrâneo. No entanto, o que mais chama atenção é a explicita
animosidade do autor de Cacau com aquilo que seria o romance psicológico.
Como colocou Luis Bueno em seu livro Uma História do Romance de 30,
desde, pelo mesmo o século XIX, uma tradição da divisão na literatura brasileira que
postula duas naturezas de narrativas romanescas. Uma seria a do romance social,
vinculado a uma problemática do país e a outra a do romance psicológico, ocupada em
tratar dos dilemas da vida interior do homem.
144
Desta forma, ainda que não atrapalhe o “humano do livro”, Jorge Amado
ressalta o “muito” de documentário e de reportagem que a feição da obra assume, mas é
precisamente este estatuto documentário que irá ser mobilizado em oposição à
“psicologia”, à “profundidade” ou a outras “besteiras iguais”. Sendo Duarte um homem
do sertão, e estando acostumado com as “almas” os “sentimentos” e os “problemas do
sertão” ele poderia criar um romance verdadeiro (não trair o sertão é representar os
sertanejos de forma fiel, especialmente em sua linguagem que não pode ser “um bom
português de Lisboa”), onde o documentário (que de acordo com Jorge Amado está
entranhado na arte moderna e aterroriza os “metafísicos do romance”) cumpra sua tarefa
de por às vistas a existência no interior da Bahia (ou do Brasil).
Esta divisão na literatura entre o sociológico e o psicológico encerra, sob outros
termos, a fratura entre litoral e sertão. A chamada “realidade brasileira” estaria então no
seio da disputa entre de um lado uma leitura mais “científica”, onde a adesão aos
valores do interior, do sertão, se manifestariam na medida em que são eleitos como
143
Jorge Amado. Um Romance Corajoso. In. Boletim de Ariel. Ano VI, junho de 1937. p. 267.
144
Cf. Luis Bueno. Três Tempos de 30. pp. 159- 399.
problemática verdadeiramente válida; do outro lado estaria uma leitura psicologizante,
cosmopolita, que não dispensa maiores preocupações com o social e com o reduto da
brasilidade, que seria o sertão.
145
Esta divisão seria retomada e colocada em termos
ainda mais claros por Jorge Amado em seu Discurso de Posse na Academia Brasileira
de Letras na década de 1960. Segundo o autor,
(...) são os dois caminhos do nosso romance, nascendo um de
Alencar, nascendo outro de Machado, indo um na direção do
romance popular e social, outro com uma problemática ligada à
vida interior, aos sentimentos e problemas individuais, a angústia e
a solidão do homem (...).
146
Ainda que os termos da oposição sejam menos ácidos em relação aos utilizados
na resenha do livro de Duarte, Jorge Amado reitera sua preocupação no contexto da
produção literária dos anos 1930 e 1940 com os aspectos da realidade brasileira”.
Como coloca ainda em seu Discurso de Posse, queríamos ir além do modernismo,
queríamos uma literatura de raízes e características mais populares, a realidade do nosso
Estado, a captação dos anseios do povo”.
147
Mais claro o autor de Suor não poderia ser
no que tange à proposta literária na qual se empenhara, assim como absolutamente claro
foi Duarte ao colocar na já citada nota introdutória de seu romance seu intuito de
“denunciar” os modos de existência do sertanejo.
Desta maneira, sendo esta a expectativa dominante no cenário literário baiano (e
talvez mesmo em um nível nacional) não é estranho que, ao menos na Bahia Gado
Humano tenha recebido uma entusiasmada acolhida. A agenda literária de Duarte
naquele momento se cruzava, ainda que por caminhos diversos, com as de Jorge Amado
e Carlos Chiacchio. Colocando-se nos marcos da representação das “massas informes”,
Duarte compôs o seu Gado Humano e marcou um espaço no cenário da literatura
baiana. No entanto, para nosso propósito, o que importa é ir para além da
“representação” ler o romance de Duarte para além desta perspectiva
representacionista.
145
Como coloca Monica Velloso, esta separação seria radicalizada pela política cultural do Estado Novo,
especialmente pelo trabalho levado a efeito pelos intelectuais que escreviam na revista Cultura Política.
De maneira mais específica, Monica Velloso coloca que “O exemplo que melhor ilustra essa divisão
geográfica de saberes, se é que assim podemos chamá-la, é o de Machado de Assis e Euclides da Cunha.
Machado corporifica o literato, cidadão litorâneo, cuja obra se caracteriza pelo "cosmopolitismo
dissolvente". Euclides da Cunha representa o sociólogo que adentrou o sertão; seu pensamento é a
“força original da terra”. Cf. Monica Velloso. Op. cit.
146
Jorge Amado. Discurso de Posse na Academia Brasileira de Letras. In.
http://www.academia.org.br/.
147
Idem.
Seção II A Condição Sertaneja em Gado Humano
No primeiro romance de Duarte além do referido “depoimento”, da
“denúncia” das condições de existência das “massas informes”, alguns temas que (assim
como este) retornarão em outros trabalhos do autor, principalmente em sua mais
reconhecida produção, o ensaio A ordem privada e a organização política nacional.
Em paralelo com a apresentação daquilo que seria a existência das massas
informes” que habitam os sertões (e que no ensaio sofrerá um deslizamento conceitual
para a noção de “massa populacional”), as questões da grande propriedade e seu
isolamento, assim como a questão do poder local do fazendeiro (dos “coronéis”
especialmente) figuram e compõem a narrativa.
Gado Humano está dividido em duas partes, compostas de doze e treze capítulos
respectivamente, os quais dispostos ao longo de suas duzentas páginas justificam, em
dada medida, a “precisão” e a “síntese” com as quais a linguagem de sua composição
freqüentemente é identificada.
148
Não obstante a presença de alguns personagens que sintetizam o escopo da
narrativa (dar conta de tipos degradados em um ambiente hostil), assim como a
presença de Ângelo, dono de Santo Afonso, o grande nome do romance é o seu
narrador. A hermenêutica das personagens é uma constante na voz narrativa de Gado
Humano. em 1936 Chiacchio havia chamado a atenção para esta estratégia narrativa
de Duarte, que para ele era mais uma “particularidade” de seu autor: “o interessante é
que [...] os tipos aparecem de preferência interpretados, antes que descritos”.
149
Como
também apontou Jorge de Souza Araújo,
Nestor Duarte zoomorfiza, ou antes, mais apropriadamente,
boviniza as relações da vida humana dos alugados no eito das
fazendas. Por meio do discurso indireto, o narrador de Gado
Humano, antes de descrever, invoca-se da autognose, espécie de
exegese atributiva dos caracteres de cada personagem.
150
Este dado da voz narrativa é importante posto que coloca em cena a questão, na
escrita literária, da relação entre a voz narrativa e seu autor, em nosso caso, do narrador
de Gado Humano e Nestor Duarte. A questão é que, ainda que o narrador de um
148
Como disse Godofredo Filho na recepção de Duarte na Academia de Letras da Bahia, em Gado
Humano teríamos uma linguagem “fluindo com precisão, sem moleza, sem requebros, sem compromissos
com os adjetivos que adormecem”. Cf. Godofredo Filho. Op. cit. p. 40.
149
Carlos Chiacchio. Nestor Duarte. Op. cit.
150
Jorge de Souza Araujo. Op. cit. p. 114.
romance seja um preposto do autor isto não implica que as imagens, enunciados etc.,
externados pela voz narrativa possam ser identificados imediatamente com as posições
do autor da obra. Tentemos explicar melhor.
Em um de seus estudos da obra de Machado de Assis, Sidney Chalhoub
colocou-se esta questão em termos muito precisos. Para ele “a questão é decisiva, pois
indica em que medida, ou de que maneira, tais textos [Chalhoub fala das crônicas
machadianas] devem ser interrogados para buscar as intenções e os modos de pensar do
bruxo do Cosme Velho”.
151
Com efeito, este questionamento não coloca uma interdição
para a busca de nexos entre as idéias expressas pela voz narrativa e as perspectivas do
autor da obra, como em nosso caso. O procedimento neste caso deve ser o de buscar
aproximações entre os enunciados e as imagens veiculados pela voz narrativa e as
crenças e postulados de Duarte colocados em outros momentos. Como sugere Chalhoub
sobre as crônicas do autor de Dom Casmurro, “não é possível decidir, de antemão, [...]
se podemos ler esses textos como a expressão das idéias de Machado [...], ou, ao
contrário, se devemos -los na clave d‟algum narrador ficcional [...] e por isso muito
distante da perspectiva do próprio Machado.”
152
Assim, no nosso caso, a resolução desta
argumentação se justamente no cruzamento entre o romance e outros escritos do
autor, no estabelecimento de liames entre temas que emergem na escrita múltipla de
Duarte no período que estamos analisando.
Deixemos que fale o exegético narrador de Gado Humano :
(...) corria ele os olhos, com um velho binóculo que viera da
Europa ha vinte anos atraz, pelos escampados cheios de mato da
fazenda. Aqui e ali detinha-se numa particularidade do terreno,
seguia a trilha torta de um caminho a subir a ladeira, ou volta-se
para baixo, acompanhando o rio nos caprichos de suas curvas em
remanso.
153
O olhar que percorre os caminhos, trilhas e o rio que corta a fazenda Santo
Afonso é de seu dono, Ângelo, que recém regressara da capital para administrar a
herança familiar. Afastado de seus domínios por oitos anos, “o patrão, vindo da cidade,
era um estranho que voltava acolhido com respeito e desconfiança”.
154
Ângelo havia
voltado e encontrado um quadro distinto daquele que figurava em suas reminiscências
151
Sidney Chalhoub. A arte de alinhavar histórias: a série “A + B” de Machado de Assis. In. História
em Cousas Miúdas. Campinas. Editora da Unicamp, 2005. p. 68.
152
Idem. p. 70.
153
Nestor Duarte. Gado Humano. Op. cit. p. 11.
154
Idem. p. 12.
enquanto percorria com o binóculo os domínios de sua propriedade. O quadro visto por
Ângelo agora era de abandono. Se outrora a propriedade fora “considerada um grande
patrimônio de familia, que deveria justificar os melhore planos”
155
, agora em seu
retorno, Santo Afonso não passava de um “patrimonio inútil que seu pai tentara criar e
aumentar, mas que não teria a sorte diversa das demais [fazendas] da visinhança”
156
.
Ainda que de forma menos proeminente como, por exemplo, em José Lins do
Rego, o tem da decadência não deixa de figurar em Gado Humano.
157
De acordo com
Antonio Candido, uma parcela significativa da literatura no Brasil se desenvolveu
explorando o tema da decadência.
158
Assim, ainda que a narrativa se desdobre também
em torno da tentativa de soerguimento econômico e moral de Santo Afonso, Ângelo
parece estar entre o que fora e o que não será mais, como aponta Antonio Candido com
relação aos personagens de José Lins do Rego. É que Santo Afonso passará de uma
condição de abandono a uma relativa prosperidade com a “reforma” empreendida sob
os comandos de Ângelo. A recuperação econômica encontraria mais sorte que a
“moral”, fundada na força “militar” dos jagunços e frustrada pelas forças do governo,
como veremos.
O caminho do regresso de Ângelo até a fazenda fora, com efeito, longo, que
“Santo Afonso era bem uma ilha, abria-se no mato, entre divisas incertas que se
perdiam distantes. Dali á vila eram seis leguas. Vivia por isso de si para si, cercado do
ermo. Uma vida á parte. Era bem uma ilha.
159
O que está em cena nesta passagem é não
apenas um tema caro a Duarte na composição de A ordem privada e a organização
política nacional, mas também a outros autores como Sérgio Buarque de Holanda e
Vitor Nunes Leal. Para Duarte o isolamento e as dimensões da grande propriedade são
elementos que concorrem e corroboram ( em conjunto a extensão da família patriarcal)
para a conformação do poder privado (a ordem privada para Duarte) e é fruto direto do
processo de colonização levado a efeito pelos portugueses ( aquilo que Holanda chamou
de colonização semeadora, em oposição à ladrilhadora dos espanhóis).
155
Idem. p. 17.
156
Idem. p.13.
157
Cf. Antonio Candido. Um romancista da decadência. In. Brigada Ligeira. ed. Editora: Ouro
sobre Azul. Rio de Janeiro, 2004. pp. 57-62.
158
Ver o prefácio que o autor faz para o livro Intelectuais e Classe Dirigentes, de Sergio Miceli, onde
diz que sempre o intrigou “o fato de um país novo como o Brasil, e num século como o nosso [século xx],
a ficção, a poesia, o teatro produzirem a maioria das obras de valor no tema da decadência, - social,
familiar, pessoal. Cf. Antonio Candido. Prefácio. In.Sérgio Miceli. Op. cit. p. xii xiii.
159
Nestor Duarte. Gado Humano. Op. cit. p. 15.
É nesta imensa e isolada Santo Afonso com suas “pequenas casas que iam se
espalhando [...] muitas distavam quilometros” onde “o seu gado humano vive - o mundo
dos agregados rendeiros e meeiros de suas terras”.
160
Seria um delírio permitido ver na composição de Gado Humano o
embaralhamento das três dimensões ou elementos estruturantes que orientam os
Sertões de Euclides da Cunha. É que o romance de Duarte equilibra-se na linha que liga
o “ermo” (que seria a terra), o “eito” (onde figura o homem) e a “invasão” (onde se
desenrola a luta). Ainda que Afrânio Peixoto tenha dito que Euclides da Cunha fez o
sertão “geográfico”, e que “êste de Nestor Duarte, sem pretensões, é sociológico”, o
paralelo pode fazer sentido tendo por horizonte aquela referida fusão entre
sociologia-sertão-brasilidade.
Traçadas as linhas do ermo onde Santo Afonso vive seu isolamento, o momento
do encontro do “senhor” com os agregados da fazenda é emblemático. Em uma mistura
de curiosidade e respeito”, a “vassalagem matuta” calada diante de Ângelo (ainda que
esposando uma “dignidade bisonha” pela honra de estarem na “sala grande” do
sobrado) demonstrava “saber seu lugar naquela hierarquia social”.
161
As apresentações
são feitas pelo administrador, Pereira, que “contou o gado humano da fazenda”.
162
Já o
recém chegado Ângelo “não podia esconder um pequeno orgulho intimo, instintivo de
senhor”.
163
Essa “vassalagem” viveria então em um mundo à parte, ou melhor, em um
mundo muito próprio, que Santo Afonso era uma ilha cercada do ermo. Esta ilha por
conta disto tinha um regimento específico, “um código de proibição que mantinha o
poderio do patrão, a economia da fazenda, a segurança do regimem senhorial. As leis de
fora não tinham valor nas fazendas”.
164
Em seu código próprio Santo Afonso buscava
uma dupla efetividade. Por um lado, a moral, na fazenda “não havia defloramentos e
proibia-se a mancebia (...) bebias-se, mas havia sanção para a cachaça”;
165
por outro
lado, ainda no que diz da administração do “gado humano”, “proibia-se a prosperidade,
depois de um certo limite”.
166
160
Idem. p. 15.
161
Idem .p. 21.
162
Idem . p. 21.
163
Idem. p. 22.
164
Idem p. 29.
165
Idem. p. 29.
166
Idem. p. 29.
A rusticidade do quadro narrado em Gado Humano ganha cores mais fortes
quando trata-se de dar visibilidade ao dia-a-dia dos trabalhadores no “eito”. Era, como
diz o narrador,
uma labuta dos diabos, como dizia, falando grosso e alto, o
administrador. O dorso nu dos homens brilhava no reverbero da
luz, que lhes bebia, avida e esacaldante, o suor corrido (...) E
dobravam-se sobre a terra agreste, dura, selvagem (...) O vegetal,
porém, se defendia e investia. Revesso como inimigo, feria aqui e
ali, quando não chicoteava com o arco dos ramos retesados. Lombo
de escravo sempre apanhou...
167
Desta maneira, de imagem em imagem dos trabalhadores no eito, sob o sol
escaldante e no trato de uma terra ingrata (a Ângelo ela se afiguraria “plena de perfumes
dispersos”), Gado Humano vai sendo composto em sua sinfonia denuncista.
A questão é que, neste procedimento denuncista, na representação do outro, não
deixa de prevalecer, como apontamos, uma daquelas linhas políticas dominantes que
foi posta em movimento pelo regionalismo modernista: aquela em que o “povo” figura
de maneira despolitizada, em estado de natureza
168
, desinteressada ou sem consciência
plenamente desenvolvida acerca dos conflitos que envolvem sua existência. Ainda que
este regionalismo modernista (ao menos parte dele) proponha diferenças fundamentais
em relação tanto ao romantismo quanto ao naturalismo, em seu percurso de
“conhecimento” e esforço por estabelecimento de um núcleo da identidade nacional é
notório (ao menos em Gado Humano) uma estratégia narrativa que cria/reforça os
estereótipos ligados ao imaginário do sertão/sertanejo. A iteração, a repetição
demoníaca de três imagens dos sertanejos se fazem presentes: a) o flagelado da seca,
convertido em eterna vítima; b) o cangaceiro/jagunço situado entre a enxada e o rifle; c)
o signo de uma pureza cultural, reduto da brasilidade.
Em Gado Humano figuram em maior ou menor grau ao menos as duas primeiras
destas imagens a terceira fulgura de forma sutil em diferentes intervenções de Duarte,
como apontamos. O romance até ensaia por em cena situações onde alguns
personagens são conscientes de sua condição subalterna (no sentido de que o subalterno
é aquele que sabe jogar com as alternâncias de poder), como quando os agregados são
chamados a dar um dia a fazenda. Como nos fala o narrador, “o pessoal encostava-se,
167
Idem. p. 42.
168
Como colocou Godofredo Filho, o romance de Duarte oferece “a textura de um mural onde o desenho
e o colorido com que foi tratado o homem vez por outra confundem-no com o chão hostil”. Godofredo
Filho. Op. cit. p. 40.
andava sempre se arrastando, vingando-se numa pirraça teimosa”.
169
Cientes da
exacerbação das estratégias de exploração as quais eram submetidos com o mecanismo
que os obriga a dar um dia para o patrão e deixar de trabalhar em suas terras arrendadas
eles dissimulam o trabalho. Mas mesmo esta possível forma de resistência não é
encarada enquanto tal. Como prossegue o narrador, em Santo Afonso “o quadro de
servidão não era visto por ninguem. E os que sentiam o seu peso não sabiam
compreender melhor”.
170
Esta inconsciência dos trabalhadores que não conseguiriam
compreender sequer o peso da exploração a que estavam submetidos contrasta com a
consciência plena dos senhores das fazendas: “os senhores de Santo Afonso e das outras
fazendas viviam em bôa vizinhança (...) Entre si trocavam gentilezas. Presentes de
festas. Fidalgos obséquios. Mutuo auxilio de classe consciente”.
171
O contraste não
poderia ser mais explícito.
Entretanto, entre uma linha e outra (propositalmente ou não), emerge na
narrativa manifestações que como aquela de se “arrastar”, de “pirraçar”, indicam que
aqueles “matutos” não são tão inconscientes assim. Por ocasião de uma briga entre os
personagens Severo e Tiburcio, dois agregados de Santo Afonso, o administrador
Pereira vai em busca de saber o que se passara, a fim de comunicar ao patrão:
- Como foi isso, Tiburcio?
- Sei não. Os companheiros viram...
Mas ninguem sabia direito.
- Foi por bobagem, seu Pereira.
- Eu não vi ao certo, não. Estava lá pra dentro.
- E você, Félix, que é que di? Perguntou Pereira, já tendo corrido a roda.
- Homem, eu mesmo não sei, Snr. Acredite (...) Severo é que arribou feito besta.
- Eu já soube. Foi melhor do que esperar o castigo.
Pereira bateu em retirada e foi ao sobrado.
- Castigar ... ora castigar... riu João Pequeno pelas costas do feitor.
- Por boca nossa patrão não saber é de nada.
- Deve haver uma liga dos “pequenos” nestas horas.
- E para um tudo, meu irmão, que a gente é sosinho no mundo...
172
169
Nestor Duarte. Gado Humano. p. 39-40.
170
Idem. p. 43.
171
Idem. p. 45.
172
Idem. p. 93-94.
Aqui os homens do eito aparecem cientes de que constituem o grupo dos
“pequenos” e que precisam estar juntos, o que não deixa de apontar para uma
consciência, que se oporia àquele completo alheamento das questões que lhes afligem.
São raras passagens que se chocam com a brutal inconsciência apresentada em outros
trechos como o que se segue: “a fome vivia, porém, escondida, envergonhada. Quem
é que vae dizer que não comeu? Faltava ainda esta coragem, porque se pensava que a
fome era por culpa própria”.
173
O narrador de Gado Humano recorre a uma imagem muito sugestiva para aquilo
que seria a existência em uma fazenda nos ermos: “Santo Afonso, ás vezes, não
precisava de folhinhas nas paredes. Os dias corriam iguais até o domingo, que era
apenas uma para mais monótona em meio a tarefa costumeira” era como um “diário em
branco”.
174
Se vive-se de uma maneira ou de outra em Santo Afonso isto não se devia
apenas ao recém chegado patrão, “Ângelo não inventara nada, não criara aquelas leis.
Seguias por tradição”.
175
Santo Afonso vive um imobilismo.
Tanto em Gado Humano quanto em A ordem privada e a organização política
nacional ou mesmo em A Reforma Agrária o tempo é imóvel. Se no romance é uma
tradição de tempos imemoriais que segue comandando a vida em Santo Afonso, no
ensaio e mesmo no projeto a chamada ordem privada transplantada para o Brasil com a
chegada do conquistador português permaneceria (sem mudanças fundamentais)
regendo a organização política nacional ainda em 1950. Da colônia aos anos cinqüenta
do século passado o tempo é imóvel. O diário permanece em branco.
O diário em branco de Santo Afonso tem suas páginas fustigadas apenas quando
o “outro país” (o litoral) começa a ameaçar a impenetrabilidade do regimento da
fazenda. Se “os códigos da cidade tinham vigencia condicional”
176
nas terras de Santo
Afonso, não é de estranhar a sensação de perda de autoridade sentida por seu
proprietário seja pela cobrança de impostos, seja pelo alistamento militar de seu
agregados. Dque Ângelo, diante de um soldado que fora intimá-lo a “entregar as
armas que possuísse e a mandar também os criminosos debaixo de sua proteção”, tenha
“recebido” e “engolido”, as palavras da autoridade legal, daquele governo estranho e
longínquo que ali se representava pela farda ofensiva do tenente”.
177
173
Idem. p. 137-138.
174
Idem. p. 97.
175
Idem. p. 97.
176
Idem. p. 31.
177
Idem. p. 99.
A cena da afronta feita pelo governo longínquo do litoral é apenas o prelúdio de
uma verdadeira guerra que se daria entre os “dois países” o do litoral e o do sertão.
Em Gado Humano esta oposição entre campo e cidade é bastante explorada. A oposição
se de forma mais estrita entre a Santo Afonso e a “Vila”. A vila é a cidade de
Gameleira que “com seu casario irregular e sujo não podia fazer melhor figura. E sua
gente composta de lojistas de freguesia, vendeiros que tiravam no peso e
funcionários do município e do estado que faziam a sesta nas repartições não tinha
vibração”.
178
Marcada por desconfianças a relação entre fazenda e vila reedita a visão dual
sobre a qual se desenvolve a leitura que Duarte faz da sociedade brasileira. Se aqui no
romance a cidade aparece sem brilho é porque, como o autor deixará claro em outros
momentos, seu desenvolvimento foi precário até então e, é este parco desenvolvimento
urbano que alimenta a força do poder privado, uma vez que a urbe é o espaço par
excellence do político, da coisa pública.
É em torno da radicalização desta oposição litoral x sertão e da profusão das
imagens do sertanejo jagunço que se desenrolará toda a segunda parte do romance. É
que os treze capítulos finais de Gado Humano narram uma campanha (paramilitar) das
forças (jagunços) do sertão face as cidade.
Ângelo andava a encontrar-se com seus vizinhos com mais freqüência. É “que
começavam a correr os rumores da grande luta. Da capital chegavam noticias, do país
inteiro a vibração da campanha que os jornais velhos arrastavam até os ermos das
fazendas”.
179
Estas noticias chegavam principalmente através de Março, dono da
vizinha fazenda Rio Preto. Arquétipo da figura mitológica do “coronel” onipotente,
Março usava longas barbas de adorno patriarcal, era alto, tinha
fama. „Rio Preto‟ possuía criminosos da cidade, a valer. Tinha
também rifles (...) o que os agregados sabiam era que o regimem
em „Rio Preto‟ era mais apertado do que nas outras fazendas da
redondeza. No entanto, Março tinha uma voz mansa e compassiva
de pastor de crianças. E uma dignidade austera, que vinha de velhos
patriarcas.
180
É esta figura dura, mas “protetora” que arregimenta o apoio de Ângelo para uma
eventual campanha dos sertões contra as cidades. E este último justifica a disposição de
178
Idem. p. 74.
179
Idem. p.120.
180
Idem. p. 46.
ir ás armas “– o Rui, é um gênio. Na Europa Assombrou. Com ele é diferente. Nós
precisamos de uma reação”
181
, explica-se para um de seus tios o dono de Santo Afonso.
Diferente do que sugere Gisele Laguardia, quando diz que “Nestor Duarte
mantém em suspense o leitor desavisado, mas é possível reconhecer semelhanças com o
contexto da Revolução de 1930 (...) É possível inferir a referência a Getúlio Vargas”,
182
a campanha nada tem a ver com os eventos de 1930 e a referência ao “homem
poderoso” que “fala como nunca se viu” não é a Getúlio Vargas. O golpe de trinta
atingiu a Bahia com menos estardalhaço
183
e a “campanha” narrada em Gado Humano
guarda referências com a chamada Revolta Sertaneja
184
ocorrida na Bahia em fins de
1919 e a Ruy Barbosa, quando esteve na Bahia duas vezes neste mesmo ano, primeiro
como candidato à presidência e depois para apoiar a oposição a Seabra.
Em todo caso, retornado ao romance, o que o narrador de Gado Humano ressalta
é o quanto o sertão queria falar na questão. Ângelo falava aos seus comandados “ Todo
o povo do sertão está em armas. Vamos tomar as cidades. E se é preciso brigar,
brigaremos para „eles‟ verem. As fazendas, também, guardam seu ódio. Nós sabemos
nos revoltar”.
185
A fala de Ângelo é a expressão de uma consciência ausente nos
homens do eito, agora jagunços em vias de atualização. A consciência do “ódio” que as
fazendas guardavam face às cidades chega aos trabalhadores pela voz do patrão, pois
“até então ninguém sabia dessa revolta. Ela andava em recônditos humilhados, ou
181
Idem. p. 121.
182
Gisele Laguardia. Op. cit. p 174.
183
A produção historiográfica acerca dos desdobramentos do golpe de 1930 na Bahia aponta
reiteradamente para o pouco entusiasmo com que tal evento chegou ao Estado. Como coloca Consuelo
Novais, “Conservadora em toda a sua essência, a Bahia era legalista em 1930. O movimento
revolucionário conduzido por Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba não encontrou guarida em terras
baianas. (...) Além de Seabra, radicado na Capital Federal, de Leopoldo do Amaral, Joel Presídio
(secretário de O Jornal), dos Moniz (Moniz Sodré era diretor do Diário da Bahia) e de outros poucos
elementos seabristas, a revolução era pregada, na Bahia, por um grupo restrito de jovens acadêmicos, que
se encarregavam de romper o ritmo monótono e rígido do conservadorismo baiano.” In. Partidos Político
da Bahia na Primeira República. Op. cit. p. 222.
184
A contenda se deu em torno da eleição de Seabra, que a oposição declarou fraudulenta e então
associou-se aos “coronéis” para tentar assegurar a posse de seu candidato, Paulo Fontes. Sobre este
evento, diz Boris Fausto: Na Bahia, o governo do Estado constituído principalmente de políticos
profissionais, de representantes do comércio e dos produtores para a exportação tinha de se harmonizar
com os coronéis do sertão. De outra forma, não seria possível governar. Um desacerto entre os dois
setores provocou, em 1920, uma insurreição dos coronéis”. Eles derrotaram, em vários combates, as
forças estaduais e ameaçaram entrar em Salvador. Afinal, o presidente da República Epitácio Pessoa viu-
se obrigado a arbitrar a disputa através do comandante militar da Bahia. A arbitragem revelou o poder dos
coronéis baianos.” In. História do Brasil. 11ª ed. São Paulo: Edusp, 2003. p. 264.
185
Nestor Duarte. Gado Humano. Op. cit. p. 143.
enfezada, sem sentido, nas imprecações que vinham do eito para o sobrado”.
186
Os
homens trocavam apenas a enxada pelo rifle.
A campanha dos homens de Santo Afonso encerra-se com o acordo que sela a
paz entre litoral e sertão: “a campanha para os seus autores da capital estava perdida e
para os homens do sertão terminada”.
187
O retorno das cidades para a fazenda após
alguns percalços a fazenda fora ocupada por forças do governo mas logo
reconquistada pelos jagunços traduz o eterno retorno do mesmo. Se a passagem pelas
cidades despertara alguma vontade de mudança, até mesmo de deixar o ermo em favor
da urbe, logo tanto a revolta inicial quanto esse entusiasmo pelas coisas do “outro país”
retornarão a um “fatalismo opiáceo que cria resignação estúpida” ou alguma conclusão
conformada, “há de ser o que Deus quiser”.
188
Não seria preciso repetir que ainda que
Gado Humano situe-se no plano daquele “território da revolta”, ou daquela “tomada de
consciência do sub-desenvolvimento”, suas imagens e enunciados não cessam de repetir
os estereótipos da vítima conformada; do jagunço, etc.
Com efeito, como sugeriu Osmar Moreira, é “na obra de Glauber Rocha, dos
anos 60, e no tropicalismo, que temos o primeiro embaralhamento capaz de fazer do
realismo naturalista uma revisão do inconsciente coletivo e a desmontagem das
falsificações estéticas e políticas do realismo socialista”.
189
Em outros termos, seria a
partir do agenciamento das imagens e dos enunciados do sertão e do sertanejo que o
maquinismo cinematográfico de Glauber Rocha perlabora em seu movimento, e da
estética tropicalista, que poderíamos observar, então, a emergência de uma fissura
naquelas duas linhas que o modernismo regionalista colocou em cena e que reserva dois
lugares muito específicos para o sertanejo ou um objeto da natureza ou um potencial
soldado da revolução.
Ainda com Osmar Moreira,
a legião de sertanejos que aparece em filmes como Deus e o diabo
na terra do sol, Terra em transe, O Dragão da maldade contra o
santo guerreiro, além de cabeças para pensar e matar, ainda é capaz
de encenar a ressignificação dos sistemas simbólicos que
constituem a subjetividade naturalizada ou petrificada.
190
186
Idem. p. 143-144. Grifo nosso.
187
Idem. p. 164.
188
Idem. p. 186-187.
189
Osmar Moreira. Subalternos agrestes e seus cordéis encantados. In. XI Congresso Internacional
da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências.
190
Idem.
o tropicalismo, para o autor, “desnordestiniza a cultura brasileira e propõe
além do trânsito de tempos e lugares, uma politização do cotidiano e uma cotidianização
da política”.
191
É justamente com o sinal invertido em relação a esta problemática apontada por
Moreira que se passa a representação” da condição sertaneja em Gado Humano. Como
sinalizamos, este procedimento orientou a feitura de tantas outras obras literárias, além
do romance de Duarte. A imagem trazida pelo narrador de Gado Humano de um diário
em branco casa-se com nossa proposição da apresentação, da produção da terra deserta,
como proposto por Bhabha. Em outros termos, das imagens e dos enunciados do sertão
e do sertanejo necessitados de uma conversão que os ponham na ordem do moderno. É
a isto que atende a idéia duarteana de criação do estado, responsável pela educação das
“massas informes” para o sentido da coisa pública. É por isto que em Gado Humano e
em outros textos de Duarte o sertanejo é fundamentalmente um sujeito inconsciente
(ausência de consciência em oposição à consciência dos sujeitos hegemônicos).
Construídos nestes termos, o sertanejo não deixa de figurar como estando em um
estágio pré-moderno (a insistência de Duarte na tese do feudalismo é sugestiva quanto a
isto também), necessitado do devir-moderno que se processa precisamente com a
contribuição decisiva da agência intelectual/estatal. Assim, o vínculo entre
intelectualidade e grupos dirigentes se manifesta na medida em que lemos estas
construções duarteana sob a ótica de um projeto de reordenamento do poder. Por isso
colocamos a insuficiência de ler Gado Humano sob a ótica denuncista e teatral da
representação, e chamamos a atenção para a necessidade de observar este discurso
literário em sua produtividade, naquilo que busca produzir, no sentido que pretende para
aquilo que nomeia e dar a ver.
Em todo caso, como deixamos entrever nesta breve leitura de Gado Humano, a
construção desta imagem negativa do “povo”, como flagrou José Murilo de Carvalho,
esteve presente também em outros escritos de Duarte. Em seu ensaio sócio-político o
deslizamento conceitual de “massa informe” para “massa populacional” atende ao
esforço de uma leitura mais “científica” da chamada realidade brasileira. Assim, o signo
da ausência marca sua presença e a busca pelo povo”, em seu sentido “político”, será
um dos temas fortes de A ordem privada e a organização política nacional.
191
Idem.
Seção III De “massa informe” a “massa populacional” – sob o signo da ausência.
Como tentamos mostrar, Duarte a partir de sua estratégia narrativa põe em
movimento em seu primeiro romance algumas questões que, como apontamos, seriam
exploradas em outros trabalhos seus. As questões da grande propriedade (a fazenda
Santo Afonso “perdia-se em divisas incertas”); do isolamento (Santo Afonso era “bem
uma ilha cercada do ermo”); da consciência do senhoriato rural em oposição à
inconsciência dos trabalhadores etc. Este último aspecto, que encena a relação entre os
setores hegemônicos e os grupos subalternos as imagens do conflito ou são eufemísticas
ou simplesmente deslocadas para uma auto-recriminação, uma culpa e uma
consciência dos segundos: achava-se que a fome era por culpa própria. Não há, para
repetir Osmar Moreira, uma politização do cotidiano, menos ainda um cotidianização da
política. Na verdade, como coloca Duarte, a “massa informe” desconhece a dimensão
“propriamente política”.
É esta forma um tanto problemática de representação do subalterno que recebe
um tratamento mais refinado no quinto capítulo de A ordem privada e a organização
política nacional. Ainda que retomando muitos pontos que foram abordados em
passagens anteriores de sua composição, a centralidade deste capítulo é dada pelo
prescrutamento daquilo que seria o “povo” brasileiro, sua construção histórica e seu
caráter não político.
Em sua primeira assertiva Duarte marca uma diferenciação entre o real e o ideal,
entre o que existe e aquilo que precisa ser alcançado no seu entender tarefa na qual o
intelectual tem um papel a desempenhar. Para o autor, “bem raros países, como o Brasil,
podem oferecer exemplo mais frisante da distinção que é mais viva na realidade do que
no conceito dos publicistas, entre massa populacional e povo no sentido político”.
192
A diferenciação traduz uma oposição clássica e muito cara à composição
duarteana. Para o autor, público é sinônimo de político, ou seja, é no espaço público (do
Estado) que se engendra e se desenvolve a dimensão política, em oposição ao
privatismo, representado pelo familismo das relações sociais muito próprias ao meio
rural. Por isso, reforça o autor,
um povo político é, antes de tudo, um produto histórico. Terá
vivido certos acontecimentos e precisará, além disso, atingir certa
idade social e estado de organização que o predisponha à forma
192
Nestor Duarte. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. Op. cit. p. 90.
política ou que exijam como condição de sua coexistência e
sobrevivência. A inexistência ou não de um povo político no
Brasil terá que ser deduzida desses vários fatores, mas sobretudo
da forma de organização social que a sua população viveu ontem
e continua a viver hoje.
193
A organização social à qual Duarte se refere é a representada pela ordem privada
em seus componentes elementares, qual sejam a família patriarcal extensa, a grande
propriedade e o municipalismo. Como se pode entrever, estes aspectos remetem a
ordem privada para o seu reduto (o interior do país) de onde ela emana em sua força e
modus operandi para o litoral. Não é por acaso que o cenário predominante tanto do
romance quanto do ensaio seja o rural. Duarte ignora os processos de urbanização que
vinham ocorrendo e a emergência de novos grupos sociais e carrega nas tintas do país
rural.
194
Para o autor, a população do país apresentava um “notável” índice de
crescimento que, não obstante os números da mortalidade demonstravam o “esforço
procriador” que buscava preencher a vasta extensão territorial. Em outras palavras,
trata-se, como coloca Duarte, “um movimento de ampliação populacional de conquista
da terra por outra forma a do crescimento. O seu ponto de irradiação foi a costa
marinha inicialmente, mas é no campo que essa irradiação buscou o seu apoio para
tomar nôvo curso”.
195
Segundo Duarte, ainda que a população rural que ocupa a faixa
territorial mais próxima ao litoral adquira um caráter de permanência, por conta da
fertilidade desta faixa litorânea, a população dos sertões seria de duas naturezas
distintas: “ a que se fixa na propriedade imóvel, a população fazendeira, que assegura os
quadros da tradição, e a que continua a mover-se”.
196
Desta forma, este espaço rural seria uma região que contaria com intensas
migrações que se processariam sempre com ignorância da costa ou das cidades. Como
coloca Duarte, tanto a via marítima quanto o litoral seriam, respectivamente, caminhos e
portos da imigração, com um restrito poder de penetração para o interior do país. Daí
que o autor seja enfático ao dizer que era
puro engano [...] o de certas vozes que começam a clamar entre
nós, contra o êxodo dos campos em beneficio das cidades
litorâneas. O fenômeno, ao contrario, não tem nenhum caráter de
generalidade, nem encontra a sua razão única de ser e de causação
na produção industrial, que é incipiente, ou ainda inexistente entre
193
Idem. p. 93.
194
Como já fizemos referência às lutas operárias em Salvador na década de 1930, por exemplo.
195
Nestor Duarte. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. Op. cit. p. 90-91.
196
Idem. p. 91.
nós. Se é considerável a densidade do litoral citadino ou não, isso
resulta da própria densidade inicial do período colonial e do afluxo
constante da imigração, mas nunca de um refluxo normal da
população campesina do centro.
197
Duarte reitera a condição “essencialmente agrícola” do país, que continuaria,
para ele, radicado” e “indeslocável” no meio rural, “a não ser pela grande máquina de
amanhã”.
198
Neste ponto aqui importa menos a constatação ou a reafirmação de dado da
ordem do empírico (que a população rural nos idos de 1930 e 1940 superasse a
população urbana) que observar como estes dados são trabalhados pelo autor tanto para
fundamentar seu argumento do complexo social do latifúndio e sua persistência, quanto
para negar mudanças seja em termos de urbanização, seja em termos da emergência de
outros agentes sociais. Por isso Duarte insiste na dimensão incipiente ou inexistente da
produção industrial (em 1939) e as cidades apareçam como uma radicalização da
imagem do semeador de Sérgio Buarque de Holanda. Assim, o complexo social do
latifúndio pôde continuar prescindindo do jugo estatal, como sintetiza o autor, ao
colocar que “o Brasil é um Estado com um passado contra, dentro de uma organização
econômica hostil aos próprios requisitos e fundamentos do exercício do poder
político”.
199
Esta passagem torna visível a perspectiva imóvel que a leitura de Duarte assume.
Trata-se de uma continua atualização de uma estrutura colonial, antes mesmo, herdada
de Portugal. Para o autor de Gado Humano, nem a transferência da corte portuguesa
para o Brasil, nem a Independência acarretaram mudanças fundamentais nesta estrutura.
Em outros termos, “tais, acontecimentos e deslocamentos de superfície e de periferia
iriam mostrar apenas, que a historia política propriamente brasileira, por todo o sempre
não teria força de penetração e poder de submergência na estrutura do país”, e,
concluindo de forma bastante lúcida, Duarte coloca que “pouco importa [...] considerar
a Independência como o começo de um período da vida do Estado no Brasil. Uma data
não é um acontecimento, se não assinala um fato de profunda revolução ou
modificação”.
200
Duarte está apontando o prolongamento do poder privado no novo Império, de
que forma a organização política brasileira começa sua história sob o comando de tal
ordem privada. Ainda que fosse possível enxergar certa “diferenciação política” na
197
Idem. p. 91-92.
198
Idem. p. 92.
199
Idem. p. 93.
200
Idem. p .94.
sociedade imperial, com a emergência de uma consciência política vinculada a valores
distintos daqueles do latifúndio, o autor não exita em dizer que, “apesar de todo brilho
de que por vezes se reveste a instituição política parlamentar, a porção dos homens
ilustres e grandes que ela consegue formar, o Império, até a penúltima década do século
XIX, assistiria ao prolongamento da influencia da organização social que herdara da
colônia.”
201
É justamente este complexo privado que impossibilita a conformação do
“povo político”.
Seria interessante notar um argumento lançado por Duarte e o qual ele toma
emprestado de Gilberto Amado. Este último tomando por base o recenseamento de 1872
estabeleceria a população total do país em dez milhões de habitantes. De acordo com
Duarte, depois dos descontos pertinentes Amado teria chegado ao “coeficiente de
pessoas verdadeiramente capazes sobre os quais [...] haviam de exercer-se as
instituições constitucionais”.
202
Segundo Gilberto Amado, citado por Duarte,
O povo brasileiro não poderia ser o milhão e meio de escravos, o
milhão de índios inúteis que a contagem do governo reduziu [...] a
quatrocentos mil apenas; não poderia ser os cinco milhões de
agregados das fazendas e dos engenhos, caipiras, matutos,
cablocos, vaqueiros do sertão, capangas, capoeiras, pequenos
artífices, operários rurais primitivos, pequenos lavadores
dependentes; não podia ser os dois milhões ou o milhão e meio de
negociantes, empregados públicos ou particulares, criados e
servidores de todas as profissões. O povo brasileiro existente como
realidade viva, não podia deixar de ser apenas as trezentas ou
quatrocentas mil pessoas pertencentes às famílias proprietárias de
escravos, os fazendeiros, os senhores de engenho...
203
O argumento de Gilberto Amado serve para Duarte fundamentar uma proposição
muito cara aos seus estudos, e que não tem sua aplicabilidade restrita apenas ao período
imperial, pelo contrário, as formulações duarteana vêem sempre com a reiteração do
continuísmo dos fenômenos que aponta. Assim, o autor de Gado Humano vai usar a
virulenta análise que Amado faz dos números do censo de 1872 para investir na
existência, no Brasil, de apenas duas classes, que seriam a do escravo e a do senhor de
escravo. Desta constatação aparece, como correlata, a identificação da ausência de uma
classe média, ou no máximo a sua existência inexpressiva. Ela oscilaria entra a classe
do senhor e a classe do escravo, impossibilitada de construir bases para seu apoio. Seria
201
Idem. p. 99.
202
Idem. p .100.
203
Idem. p. 100-101.
esta classe média inexistente ou inexpressiva que, se pudesse cresce e adquirir certo
peso econômico no cenário desenhado pelo autor, poderia vir a forjar o contingente de
um “povo político”, a partir do qual o Estado poderia então desenvolver-se.
Para o autor,
essa classe média estaria mais apta para formar o povo político,
menos por via de sua alfabetização e da instrução literária que
viesse a ter para exercer o voto e compreender as instituições
políticas, do que pela propensão, que lhe é própria, de desfeudalizar
as castas, a família rural e a propriedade territorial, não pela
divisão desta na pequena propriedade, como pelo sentido mais
acentuadamente urbano de sua atividade e de sua índole, abrindo-
se, assim, com outro espírito à recepção do fenômeno político
estatal...
204
Seria esta parcela da população, essa classe média que se viesse a cresce,
tornado-se então uma categoria mais numerosa, viria a cumprir aquilo que ela
historicamente fizera em outros “sistemas feudais”, que seria permitir ao poder
“propriamente político” liberar-se da organização privada e estabelecer sua hegemonia.
De forma mais clara, de acordo com Duarte, “é [...] dessa classe que saem o artífice, o
comerciante o letrado, o advogado, o operário ainda sem classe própria, o pequeno
burguês, como o pequeno proprietário, o citadino [...] um homem, enfim [...] que
oferece outra superfície à extensão normal do poder público.”
205
Esta passagem faz reluzir ao menos dois pontos muito importantes. Primeiro, o
lugar mesmo no qual o autor se situaria no complexo que ele analisa (um homem que
pode oferecer outra superfície ao poder blico); segundo, a sentença “operário ainda
sem classe” não deixa de ser sugestiva. Ela denota, já que parece extensível à década de
1930, um deliberado silenciamento das lutas operárias que vinham se processando no
cenário urbano. A urbe, espaço por excelência da manifestação do “político” vinha
dando mostras do surgimento ou da radicalização de um espírito político, mas para
Duarte, poderíamos dizer, o operário permanece sem “classe própria”.
O quadro que Duarte pinta da organização política nacional seria então o de
“uma tradição de 400 anos”
206
, que veio mesmo a compor uma “cultura” do privatismo
que até então não possibilitou a conversão da “massa populacional” em “povo político”,
ou seja, esta “massa populacional não chegou a atingir a idade política, nem pôde,
204
Idem. p. 101.
205
Idem. p. 102.
206
Idem. p. 109.
assim, constituir-se em povo político”.
207
A apropriação do Estado e o exercício do
poder pela classe senhorial desde a colônia até os dias em que o autor escreve seu
ensaio demonstraria como esta classe constitui-se em fator de deformação do Estado,
impedindo deste penetrar na sociedade rural e, por fim, pela sua natureza privatista
mesmo, incapaz de exercer a “educação política e de diferenciação do espírito
público”.
208
Duarte põe em cena uma equação um tanto simples, resultado do complexo
social que tenta demonstrar. Seja na Colônia, no Império ou na República, “a parcela da
população brasileira, no seu conceito político, é [...] a do senhoriato”.
209
Isto somado a
uma população que “se formou nos seus três elementos humanos, de tipos sociais os
mais distanciados de uma sociedade e de um passado político”
210
, só poderia resultar no
domínio do espírito privado e a completa ausência da dimensão pública.
A solução ou o “grande esforço” que se teria que fazer seria então no sentido de
construir um modelo de Estado que se ocupe com a tarefa pedagógica de criação da
dimensão pública. A proposta de Duarte é a criação tanto da dimensão pública (Estado)
quanto de sua necessidade (educar o povo para o sentido da coisa pública), tendo em
vistas as determinações negativas dos três tipos que compõem a população brasileira.
Exploraremos melhor esta tarefa criadora que é ela mesma a busca pelo advento
do moderno nas formulações de Duarte. Por hora gostaria de chamar a atenção para
alguns derradeiros pontos.
Como tentamos demonstrar até aqui, a composição das obras de Duarte
(especialmente em A ordem privada e a organização política nacional) segue uma
estratégia muito em voga nos anos 1930 e 1940, que era a busca pelas “raízes” do
Brasil, um olhar retrospectivo tentando ver no passado os fundamentos do estado de
coisas que então se afigurava. Neste sentido, sua constatação da formação da
organização política no país sob o jugo de uma ordem privada figura como o
antecedente da apropriação que vinha se processando no regime varguista. Da mesma
forma, a precariedade da urbanização na década de 1930 refletiria a tarefa semeadora da
207
Idem. p. 106.
208
Idem. p. 106.
209
Idem. p. 102.
210
Idem. p. 106. Duarte esclarece melhor o porquê das determinações negativas dos três tipos que
compõem a sociedade brasileira: “o português, de si desafeiçoado ao espírito público e que perdendo o
seu passado político não pôde, nessa conjuntura, formar outro; o negro, a quem a escravidão e a
domesticidade destruíram o seu tipo social anterior, além de formar um individuo absolutamente estranho
e indiferente à comunidade política da qual estava expulso por lei e pelo preconceito racial; e o índio, cuja
idade social não passara do clã indiferenciado, ou da organização tribal familiar”.
colonização e urbanização portuguesas. Emergindo do mesmo tronco, a condição de
“massa” daquilo que deveria ser o “povo brasileiro” é a atualização da divisão que
Duarte evoca entre classe de senhores e classe de escravos. Este diagnóstico conduz à
clássica oposição entre litoral e sertão.
O sertão e o sertanejo são os sujeitos e o espaço medieval, necessitados de entrar
na ordem do moderno, da política moderna, que teria seu lugar privilegiado de
encenação nos domínios da paisagem urbana ainda que este sertão e este sertanejo
figurem vez por outra na escrita duarteana como lugar e sujeitos idílicos, redutos de
uma suposta “brasilidade”; a hegemonia, como vimos sugerindo, requer iteração e
alteridade.
Em uma derradeira imagem do capítulo de seu ensaio dedicado ao “povo
brasileiro” o autor coloca em linhas muito claras esta oposição, uma verdadeira luta dos
sertões “contra as cidades”. Isto porque a classe “política” (ou a classe que
desempenhou até então a função política deformando-a) agregou à distancia geográfica
existente entre a massa sertaneja e o estado um outro distanciamento, “uma distancia
social de separação”.
211
Para Duarte, os dois aspectos desta contraposição ao estado
seriam “o guerreiro caudilhescco, violento e sangrento e o pacífico, resistente”, estes
tipos denunciariam “a velha e grande crise do fenômeno político no Brasil, com uma
atualidade que se disfarça aos olhos dos que acreditam que ela se debela com a
simples pacificação dos sertões”.
212
Importante notar que a sentença faz reluzir tanto os estereótipos do sertanejo
quanto a atualidade (em 1930) do fenômeno do apolitismo que Duarte aponta.
Assim, dentro desta perspectiva bem delimitada entre duas classes (senhores e
escravos ou suas atualizações na década de 1930) a obra de Duarte marca um lugar
muito específico para a própria agencia intelectual. Pois se uma distancia social de
separação entre as “massas” e o Estado, o papel mediador, a ocupação do espaço em
branco cabe ao intelectual. E isto não é um delírio nosso. A crença no papel a
desempenhar (a condição de rebanho pressupõe alguém capaz de guiar) e na capacidade
para conduzir o processo modernizante justifica, pois, o status de vanguarda, como
deixa ver Duarte ao colocar que o homem público
terá que fazer um grande esforço de abstração para conceber e criar
uma nação brasileira à moderna, seguindo as fórmulas e os
211
Idem. p. 111.
212
Idem. p. 111.
100
princípios das agremiações superiores e, e voltar-se imediatamente
e violentamente para a massa informe e inorganizada de uma
realidade que lhe oferece estádios sociais inatuais para o seu tempo
e para o espírito logicamente contemporâneo de suas idéias e
concepções políticas.
213
A citação não fala por si, mas diz bastante daquilo que vimos tentando
demonstrar acerca das aspirações duarteanas.
É fora de questão a preocupação do autor com o estabelecimento de uma
racionalidade política que, por conseguinte, atenderá a uma forma diferenciada de
relação entre aqueles que governam e aqueles que são governados.
214
Em outros termos,
o projeto modernizante de Duarte atende, com efeito, a um esforço de reordenamento do
poder, que busca colocar esta relação entre governantes e governados em outro patamar.
O que está em cena é mais um lance no tabuleiro das relações de poder.
Seção IV- Os marcos da inscrição do sertanejo na ordem do moderno.
As representações do sertanejo em particular e do “povo brasileiro” em termos
gerais (em que pese a predominância dos primeiros nos números gerais do segundo),
forjadas por Nestor Duarte não eram nem originais (elas traduzem mais um ponto de
emergência destas representações), nem as elaborações efetuadas pelo intelectual baiano
estão em demasia deslocadas de uma rie de produções com o mesmo escopo
perscrutador da formação histórica do país, definidor da identidade nacional e ansiosa
pela fusão muito moderna entre Povo, Nação e Estado.
Poderíamos dizer, acompanhando Durval Muniz de Albuquerque, que elas
integram a chamada “formação discursiva nacional-popular”, ou seja, “um conjunto de
213
Idem. p. 120.
214
Para Chatterjee, “a democracia (...) não é o governo do povo, pelo povo e para o povo. Antes, deveria
ser vista como a política dos governados”. É que para o autor, a governamentalização do Estado abre a
perspectiva da emergência da sociedade política face à noção de sociedade civil. Esta sociedade política
seria um espaço de negociação e contestação aberto pelas atividades das agências governamentais
dirigidas a grupos populacionais e que freqüentemente apontariam para processos administrativos extra-
legais. Como diz o autor, “a sociedade política trará para os salões do poder algo da baixeza, da feiúra e
da violência da vida popular”. A perspectiva de Chatterjee é que a noção de sociedade civil é
fundamentalmente elitista em seus fundamentos utópicos da soberania popular. Por isso, conclui o autor,
“o que tentei demonstrar foi que, ao lado da promessa abstrata da soberania popular, as pessoas na maior
parte do mundo estão vislumbrando maneiras pelas quais elas querem ser governadas”. A grande questão
em cena é a agência subalterna e não sua passividade. Cf. Partha Chatterjee. Colonialismo, modernidade
e política. Trad. Fábio Baqueiro Figueiredo. Salvador: EDUFBA, CEAO, 2004. p. 97- 160.
101
regras de enunciação [...] em torno [do qual] se desenvolveu grande parte da história
brasileira, entre as décadas de vinte e sessenta”.
215
Ora, como colocamos, compreendemos a produção duarteana como que
formando um complexo entre função intelectual (ocupação de um espaço flutuante entre
Estado e Sociedade); “produção” de um não-lugar (espaço e sujeitos nas bordas da
história, do moderno); e, finalmente, arquiteto deste devir moderno, aquele que é
responsável por “criar uma nação brasileira à moderna”.
Com matizes diferentes esta tarefa modernizadora estava na ordem do dia nos
anos 1930 e 1940 desde então talvez não tenha mais saído da agenda da intelligentsia
nacional.
Neste sentido, não é estranho também que Duarte integre um complexo
discursivo que, como aponta José Murilo de Carvalho, se colocando a tarefa de
representar o “povo” e produzido por uma elite que possuía os meios de produção e
divulgação destes discursos, colocaram em movimento uma imagética negativa do
“povo”. Pois se é verdade que as representações utópicas da grandiosidade ancorada na
beleza natural do país e veiculadas pelo romantismo haviam sido relegadas para um
plano secundário, também é verdade que começam a circular uma profusão de imagens
que reserva para a população um lugar bem definido nas categorias do pré-moderno.
Como diz Carvalho, “a população podia ser no máximo objeto de campanhas
civilizatórias dirigidas pelas elites”.
216
Em Nestor Duarte esta prática se traduz em suas reiteradas afirmações da
necessidade de educar o povo para o sentido da coisa pública, ou seja, para o devir
político da massa populacional.
Como é possível observar, o que está em cena neste domínio da preocupação de
um intelectual integrante dos grupos dirigentes em relação aos grupos subalternos é, no
caso de Duarte, a conversão destes últimos em cidadãos nacionais. É flagrante em
Duarte, como em outros intelectuais que produzem suas obras no período de 1930 e
1940, a crença, entre outras coisas, na nacionalidade e no Estado moderno como lugares
para a realização do sentido da vida humana. Daí que esta campanha civilizatória que
promete uma modernidade esclarecida politicamente, em associação com as aspirações
universais da cidadania no interior do contexto da nação proceda, como coloca Homi
Bhabha, colocando o “povo” como objeto de uma pedagogia nacional (sempre em
215
Durval Muniz de Albuquerque. Op. cit. p. 27.
216
José Murilo de Carvalho. Op. cit. p. 255.
102
construção, em um progresso histórico, em um estado de potência quanto à realização
do destino nacional), e tendo também sua identificação com a Nação sempre
significada, iterada e posta em cena.
217
Tentarei abordar a questão do postulado de uma temporalidade vazia e
homogênea sobre o qual se funda tanto o discurso da nação quanto o da modernidade no
capítulo seguinte, quando tratarei da inscrição do moderno neste não-lugar do sertão e
dos sertanejos. Por hora gostaria de seguir aqui a trilha da noção de cidadania, tão cara à
democracia e que juntas, traduzem os pontos fundamentais do projeto duarteano que,
como dissemos, integra a chamada formação discursiva nacional-popular, tal como
sugerida por Durval Muniz de Albuquerque.
Como é possível observar, o que fulgura nas formulações duarteanas é a reforma
tanto das instituições quanto daquilo que chamaríamos de sociedade civil. Se a proposta
é compor uma sociedade política moderna, é preciso, pois, um “povo”, composto de
“cidadãos”, e não de uma massa populacional. Esta definição duarteana massa
populacional –, assim como a proposta de seu cambiamento em “povo político” nos
permite introduzir uma discussão em ao redor da noção de governamentalidade ainda
que a noção de população em Duarte seja negativa, sentido diverso daquele que a noção
de populações assume nas técnicas de governamentalização do Estado.
A noção de governamentalidade foi colocada por Foucault
218
e aponta para uma
característica dos regimes de poder contemporâneo que seria a governamentalização do
Estado. Estes regimes assegurariam sua legitimidade não por meio da participação dos
cidadãos nas questões do Estado, mas por se propor a promover o bem estar da
população. Como bem definiu Partha Chatterjee,
sua racionalidade não é uma honestidade deliberativa, mas uma
noção instrumental de custo e benefício. Seu aparato não é a
assembléia republicana mas uma elaborada rede de vigilância ao
longo da qual são coletados informações sobre cada aspecto da vida
da população visada
219
.
É no plano do primeiro conjunto de elementos, que diz respeito aos fatos
políticos da cidadania igualitária, que Duarte compõe sua produção intelectual. Sua
representação negativa da população opera menos no sentido de estabelecer
217
Cf. Homi Bhabha. DissemiNação. In. Op. cit. pp. 198-238. Cf. Homi Bhabha. Narrando la nación.
In. www.cholonautas.edu.pe / Biblioteca Virtual de Ciencias Sociales.
218
Cf. Michel Foucault. A governamentalidade. In. Microfísica do Poder. Op. cit. pp. 277-293.
219
Partha Chatterjee. Populações e Sociedades Políticas. In. Op. cit. p.107.
103
classificações múltiplas, entrecruzadas e variáveis da população na perspectiva de
colocá-la como alvo de políticas também múltiplas, do que nas malhas do discurso
homogeneizador da Nação e ancorado nos termos da cidadania, como situamos.
Como coloca Chatterjee, “aqui, então, temos a antinomia entre o imponente
imaginário político da soberania popular e a realidade administrativa mundana do
governamental: é a antinomia entre o nacional homogêneo e o social heterogêneo”.
220
Chatterjee se apropria da noção foucaultiana de governamentalidade para tentar
explicar algumas mudanças fundamentais que ocorreram na relação entre governantes e
governados naquilo que poderíamos chamar de “terceiro mundo”. O que o autor indiano
está tentando estabelecer é uma grade de leitura que tem por base uma distinção muito
própria entre “sociedade civil” e “sociedade política”. O primeiro termo da distinção
remete à lógica do conceito de cidadão que, como diz o autor, “carrega uma conotação
ética de participação na soberania do Estado”
221
, enquanto que o segundo, ainda com
Chatterjee, “torna acessível aos funcionários governamentais um conjunto de
instrumentos racionalmente manipuláveis para alcançar largos setores dos habitantes de
um país enquanto alvos de suas „políticas‟”.
222
Em outras palavras, de um lado temos
um conjunto de articulações conceituais dispostas numa linha que liga a sociedade civil
ao Estado-Nação moderno e que se funda nas idéias de cidadania e da soberania
popular; do outro lado, um outro conjunto de articulações que conecta populações às
agencias governamentais, através de suas “políticas” como, por exemplo, segurança e
bem estar.
O que está em cena na formulação do historiador indiano são duas maneiras
diferentes de relação entre os grupos hegemônicos e os grupos subalternos. A primeira
no plano da utopia igualitarista e homogeneizadora; a segunda no domínio mundano da
política cotidiana ainda que elas sejam complementares, em todo caso.
Esta distinção de Chatterjee entre o governamental mundano e a política utópica
da cidadania pode servir, guardadas as proporções, para pensarmos a distinção
duarteana entre “massa populacional” e “povo político”.
A lógica que joga a “massa populacional” em Nestor Duarte é, como
assinalamos, a de um estado algo anterior aos modernos meios de racionalização
política. Tanto a “massa informe” de Gado Humano quanto a “massa populacional” de
220
Idem. p. 109.
221
Idem. p. 107.
222
Idem. p. 107.
104
A ordem privada e a organização política nacional estão sob o signo da ausência e
figuram na condição de “pré”: político, moderno, etc. A racionalidade política
pretendida e expressa nas formulações de Duarte operam no sentido de alcançar de
forma efetiva tais estágios: político, moderno, etc. Uma vez que a dupla distância
espacial e cultural entre a grande parcela da população que habita os sertões e o
Estado conforma e aprofunda reiteradamente a ausência da esfera na qual se
circunscreve os domínios da cidadania, cumpre, na ótica do intelectual, promover a
elisão desta lacuna e proceder à conversão destes sujeitos em cidadão.
Assim, Duarte não pode operar ao nível daquilo que Chatterjee apontou como
sendo o da política mundana. Isto pelo fato de que para nosso autor, como
observamos, o Estado ou é demasiado débil ou ele simplesmente inexiste.
Sua preocupação se no nível anterior, baseado nas premissas de um
esclarecimento propriamente moderno, nas aspirações universais da cidadania alcançada
no interior de uma “Nação” consolidada. Como dissemos, a identidade entre “povo” e
“Nação” e entre esta e o Estado. E é justamente esta identidade que não existe para
nosso autor. Isto por conta de uma constatação tão radical que Luiz Guilherme Piva
chamou de pessimista. Para Duarte, não nem “povo” em seu sentido político; nem
“nação”, enquanto comunidade de sentimentos consolidada; nem Estado, enquanto
signo maior da racionalidade política moderna. Avulta, desta maneira, o “grande
esforço” que, como disse o próprio autor, o homem público teria que fazer para forjar
uma “nação brasileira à moderna”.
Como podemos observar, a “massa populacional” figura como alvo
fundamentalmente da utopia da cidadania e não das políticas mundanas do
governamental. Mas esta dimensão pública, que seria o cenário do desenvolvimento
desta utopia, nem ela mesmo existe na formulação de Duarte. D que tenhamos
colocado antes, que Duarte pretende tanto a construção desta dimensão quanto de sua
necessidade, do Estado e da cidadania com sua dimensão ética de participação.
Os marcos dessa composição “pessimista” levada a efeito por Nestor Duarte
tendo por horizonte a lógica da cidadania não poderia, com efeito, ter em consideração
os dados da política mais elementar. Colocar a questão da política mundana, dos
mecanismos que o Estado estabelece para acessar de diferentes maneiras a população
põe em cena o protagonismo desta mesma população nesta relação entre governantes e
governado. Em outros termos, poderíamos imaginar que é no plano desta política mais
mundana que os subalternos exercitam a cotidianização da política, ou seja, poderíamos
105
pensar como, no próprio desdobramento do projeto de conversão destes sujeitos em
“cidadãos” nacionais o modernizador encontre toda natureza de resistência.
223
Em outros termos, isto põe em relevo não apenas táticas que ensaiam outra
modernidade, mas a própria política dos governados.
224
Com efeito, visualizar esta duas dimensões que apontamos por último
demandaria outro esforço de pesquisa, que fosse contemplado com outros materias, etc.
Para nosso propósito, cumpre assinalar que esta duas dimensões a política dos
governados e uma outra modernidade não faziam parte da agenda Duarteana.
A primeira dimensão, a da agência dos subalternos, é completamente ignorada
pelo nosso autor, mesmo em eventos onde esta agência dá mostras bastante explícitas de
sua existência; a segunda não pode ser levada em conta, que o que se pretende é
justamente uma modernidade associada aos ditames da cidadania e expressos no plano
da nação consolidada.
A fusão entre Povo, Nação e Estado é tarefa pedagógica deste último, e este
último deve sua conformação, nos termos da racionalidade moderna, ao “homem
público”, ao intelectual em sua função. Passemos aos termos da inscrição do moderno
na construção de nosso autor.
223
Ver nota 102.
224
Cf. Partha Chatterjee. A Política dos Governados. In. Op. cit. pp.129-160.
106
Capítulo III
A inscrição do moderno
107
Capa de Reforma Agrária publicado em 1953: para o autor o Brasil ainda era feudal.
108
Preâmbulo
Talvez tenhamos dado a indicação do sentido principal que assume a busca
pela dimensão “moderna” empreendida por Duarte em boa parte de sua obra. Da mesma
maneira que nossa interposição às estratégias mobilizadas para a representação do
sertanejo (no que diz respeito à relação entre aqueles que representam e aquele que são
representados) não podem ser tomadas em termos diretos, descritivos, que espelham a
chamada realidade, as reservas a um projeto nacional-modernizador também não o
podem. Se, no primeiro caso estudado no capítulo anterior, trata-se da definição de
espaços e sujeitos que estariam situados em uma dimensão pré-moderna, neste segundo
caso é a própria condição “moderna” que é buscada como uma dimensão que designa
uma realidade plenamente realizada, em oposição, certamente, a uma virtualidade
(potencialidade).
O que o imbricamento destes dois pontos demonstra (ou é o que estamos
tentando demonstrar) é que Duarte no exercício de seu trabalho intelectual tem seus
olhos e anseios bem localizados em uma modernidade universal (dos Estados europeus).
Com efeito, ainda que evocando a “realidade” brasileira e a necessidade de
conformar instituições adequadas a tal realidade (e aqui seria necessário outro texto
para discutir estes aspectos), o que parece figurar no autor é que seu esforço por
construir uma “modernidade nacional” não é muito mais do que um esforço por inseri-
se na linha do tempo da modernidade universal européia evidentemente portadora de
todo um repertório da política utópica que tanto agrada nosso autor.
Poderíamos dizer, em termos mais simples, que o nacionalismo modernizador de
Duarte parece estar disposto a escolher seu formato na galeria dos “modelos” oferecidos
pelos Estados-nação europeus e norte-americanos (as agremiações políticas superiores,
como coloca). No entanto, o problema parece ser menos de mímesis dos modelos
culturais ou políticos europeus ou estadunidense do que de inserção neste tempo vazio
da modernidade universal e autolegitimadora que postula que esta modernidade (ou o
capitalismo) não encontra dentro de sua dominação qualquer tipo de
resistência.
225
.Vejamos de forma mais precisa alguns traços da proposta de
modernização de Duarte.
225
Sobre a dimensão autolegitimadora da modernidade européia Habermas oferece uma leitura filosófica
muito contundente. Cf. Jürgen Habermas. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad.
Luiz Sérgio Repa, Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
109
Com efeito, a proposta nacional-modernizadora de Nestor Duarte é
fundamentalmente política política institucional, o que não implica dizer que não seja
também cultural. Este projeto ganha contornos mais explícitos na proposição duarteana
presente no ensaio A ordem privada e a organização política nacional de que é
necessário criar o Estado, entendido como a dimensão pública e política por excelência,
e que viria justamente a opor-se e tentar disciplinar para o sentido da coisa pública uma
sociedade dominada pela esfera das relações privadas a ordem privada, como designa.
Em resumo, a este Estado caberia a tarefa pedagógica de educar o povo para o senso da
coisa pública, esfera esta que é para o autor sinônimo de política não política fora
da esfera pública, e o Estado sintetiza esta dimensão e é o espaço mesmo da política. A
idéia é criar a dimensão pública, mas também sua necessidade, posto que a sociedade
sob os auspícios da ordem privada sempre vivera à sombra de uma desnecessidade do
Estado. Daí que seja tão repetida em nosso autor a urgência da educação do povo para a
dimensão público-política criar, como antecipamos, a dimensão pública, mas também
a sua necessidade.
Para Duarte apenas desta maneira seria possível compor o enredo de uma
modernidade nacional, ou seja, deixando de lado o primitivismo do domínio da
dimensão privada que não logra conformar tal organização nacional poder-se-ia
então pensar em uma “nação à moderna”, uma comunidade de sentimentos e propósitos
posta em movimento em função do bem público, distante dos interesses privados e das
relações de pessoalidade.
No mesmo sentido, a proposta de reforma agrária apresentada por Duarte em
1947 e publicada como livro em 1953 também se apresenta e neste caso o projeto
figura como uma obra que retoma os temas expressos no ensaio de 1939 enquanto
esforço no sentido de inscrição do Brasil na ordem do moderno, como mais um passo
no sentido de criar condições para a emergência da comunidade política e para a
consolidação daquilo que Duarte chama de instituições características das agremiações
superiores”.
Isto porque, como coloca o autor, é precisamente a forma de apropriação e
exploração da terra fundada na grande propriedade rural que conforma, em seu ponto de
vista, a realidade política, social e econômica. Poderíamos dizer que as proposições
presentes em Reforma Agrária tentam justamente desmontar o complexo social do
latifúndio, tal como ele foi delineado nas páginas de A ordem privada e a organização
política nacional.
110
Como coloca Osmir Dombrowiski,
O projeto de Nestor Duarte pretendia, exatamente, liquidar a grande
propriedade com a implementação compulsória da policultura em
pequenas unidade de subsistência. A reforma agrária preconizada
por Duarte é, assim, um meio de superar o feudalismo (definido
basicamente pelo poderio da ordem privada diante de um Estado
fraco e incapaz) e fazer do país uma nação „moderna‟”.
226
Como dissemos, o alvo é a grande propriedade que, ao reunir toda atividade econômica
e social (além de exercer um poder político desviado de seus verdadeiros propósitos que
seria o bem público) desde a Colônia, não permitiu a constituição de um poder
efetivamente político, criando, além disto, uma moral e um sentimento apolíticos e
indispostos à dimensão pública. Seria este formato fundado na grande propriedade
(neste complexo social do latifúndio) que continuaria, na leitura do autor,
impossibilitando a emergência de cidades e de uma população mais urbana, assim como
a emergência de uma classe média que viria a ameaçar e mesmo extinguir tal complexo
social fundado no latifúndio. Em face desta situação reluz então o papel do homem
público, a quem cabe a intervenção nesta realidade no sentido de lançar mãos de
mecanismos (seja ele a construção do Estado em um primeiro momento ou levar a
efeito uma reforma agrária em um segundo) que possibilite a inscrição do país na ordem
do moderno.
No entanto, este caminho para o “moderno” não pode lançar mão de recursos
autoritários, como o do modelo de Estado de Vargas, que ao não exercer o que seria seu
papel fundamental (a educação do povo para o sentido da coisa pública) permanece sem
uma base social e acaba submetido pela classe senhorial que o perverte. Dque para o
autor o advento do moderno refere-se à emergência do estado entendido enquanto o
“fenômeno político diferenciado”, encarregado de insuflar aspirações de ordem pública
nos membros da comunidade que se dispõe a controlar.
Em uma passagem de sua leitura sobre esta questão central da obra do autor,
Luiz Guilherme Piva registra uma impressão a qual acaba não explorando- que é
justamente aquilo que estamos tentando colocar em cena.
De acordo com Piva, ao passo que avança em seu texto de 1939, Nestor Duarte
faz assomar timidamente (...) sem jamais se mostrar inteira e deixando a impressão de
que é mera impressão de leitura, a idéia de que há um Estado puro, que seria como que
226
Osmir Dombrowiski. Ordem privada e reforma agrária em Nestor Duarte. In. Lua Nova Revista
de Cultura e Política. nº. 49, 2000. p. 230.
111
uma entidade com existência própria numa faixa virtual, que se realiza em determinadas
organizações, países e momentos históricos e em outros, não.”
227
Piva intui um problema fundamental. Isto porque se pensarmos na tríade
modernismo, modernização e modernidade de uma forma mais orgânica, veremos o
modernista Duarte propondo uma modernização (política e social) em busca da inserção
do país na ordem do moderno (na modernidade). A intuição de Piva de um “Estado
puro” com uma “existência natural” que ficaria “à espreita de um impulso detonador
para inflar, crescer e se inteirar”
228
no caso de Duarte seria melhor inteligível se
pensássemos que se trata da inevitabilidade mesma da modernidade, da crença de que o
espaço social contemporâneo está distribuído em um tempo vazio e homogêneo da
modernidade, onde quem ainda não está, precisa urgentemente se colocar.
Como coloca Chaterjee a respeito do postulado deste tempo vazio e homogêneo,
dentro de seu domínio este não contempla nenhuma resistência à
sua livre mobilidade. Quando encontra um impedimento, o
interpreta como um resíduo pré-capitalista ou pré-moderno. Tais
resistências ao capitalismo (ou à modernidade) são interpretadas
como remanescentes de um passado superado que, contudo, por
algum motivo, persiste. Ao imaginar o capitalismo (ou a
modernidade) como um atributo próprio da contemporaneidade,
esta perspectiva não só consegue desafiar as que lhe enfrentam
como arcaicas e atrasadas: também garantem ao capitalismo e à
modernidade seu triunfo final, à margem das crenças e esperanças
contrárias que algumas pessoas puderam ter, porque no fim das
contas, como todos sabem, o tempo não pára.
229
Trata-se, como é possível observar, de uma perspectiva historicista e progressista contra
a qual Chatterjee está se insurgindo. E é também ela que Duarte em certa medida
enverga e a qual muitos de seus leitores simplesmente ignoram, contentando-se em
celebrar suas inclinações democráticas fundada nos ditames da cidadania e de uma
política que é ela mesma inscrita no tempo vazio e homogêneo, posto que requer de
antemão uma universalidade (o mundo único da experiência moderna) para tornar
possível que uma atividade chamada política possa ser reconhecida em todas as partes
(a política utópica da cidadania). Neste ponto, como continua Chatterjee, é que “o
espaço tempo homogêneo e vazio é o tempo utópico [que] conecta linearmente o
passado, o presente e o futuro, e cria as condições para todas aquelas imaginações
227
Luiz Guilherme Piva. Op. cit. p. 237.
228
Idem. p. 237.
229
Partha Chatterjee. Populações e Sociedades políticas. In. Op. cit. p. 114.
112
historicistas da identidade, da nacionalidade, do progresso, etc.”
230
As resistências a este
programa são justamente aquilo que nosso autor define enquanto pré-moderno, feudal
mesmo.
Com efeito, não escapam de nossa leitura os aspectos da obra de Duarte que
constituem uma crítica aos regimes autoritários bem como ao fenômeno do privatismo
ou da apropriação do público pelo privado. No entanto, cremos que apenas apontar estas
duas dimensões presentes na obra de Duarte é pouco. Somente sublinhar estes aspectos
é não só ser incapaz de ler estes textos de uma maneira que não seja a leitura literal, mas
é também ser “incapaz de perguntar as estes escritos algo distinto do que eles disseram
ou pretenderam dizer de maneira explícita”.
231
Neste sentido, é justamente na articulação entre a representação do sertão e do
sertanejo enquanto espaço e sujeitos pré-modernos - que se colocam como entraves ao
moderno - e a construção do moderno enquanto realidade plenamente realizada -
desejável e necessária na leitura de nosso autor que podemos observar a agência do
intelectual Nestor Duarte.
Desta forma, o fundamental neste capítulo é explorar de forma mais detida a
noção de modernização proposta por Duarte, o que nos leva inevitavelmente à discussão
de sua noção de “ordem privada” bem como os desdobramentos desta na “organização
política nacional”. Além destes, outros dois aspectos são fundamentais para seguirmos
Duarte em sua análise: a atualidade dos problemas colocados pela ordem privada ao
tempo em que o autor escreve e a proposição de um modelo de reforma agrária como
passo possível no sentido de desmontar o complexo social representado por tal ordem
privada
Neste sentido, Duarte está fundamentalmente preocupado com as implicações do
problema do privatismo em sua contemporaneidade. Seu recuo na história do país serve
para demonstrar quais os antecedentes da problemática que estuda; como ela se instala
no Brasil; como se desdobra ditando o ritmo da organização política nacional; como
este protagonismo do privado impossibilita a constituição de um modelo de Estado-
nação moderno e, em que sentido uma reforma agrária poderia emergir como passo
importante neste processo um passo inicial e até mesmo indispensável. Sigamos o
intelectual mais uma vez.
230
Idem. p. 116.
231
Carlos Antonio Aguirre Rojas. Antimanual do Mau Historiador. Trad. Jurandir Malerba. Londrina:
EDUEL, 2007. p. 28.
113
Seção I Os antecedentes da ordem privada
Como adiantamos, um dos pontos centrais da obra duarteana é a idéia de
inscrição do Brasil na ordem do moderno, o que implica superar aquilo que ele
denominou de “ordem privada” conceito elaborado em seu ensaio de 1939 e retomado
em seu projeto de reforma agrária.
Essa noção é sem vida a pedra fundamental de seus trabalhos mais
significativos. Ela é considerada pelo próprio autor como sendo o diferencial de sua
obra em relação a outros intelectuais que se dedicaram à tarefa de estudar o país e
propor caminhos para sua modernização. Isto porque Duarte acredita que embora os
problemas decorrentes do privatismo tenham sido apontados outras vezes como em
Sérgio Buarque de Holanda-, isto não foi feito com a necessária atenção, pois o que
importava fundamentalmente, segundo Duarte, era demonstrar que o privatismo alcança
desdobramentos de ordem política muito mais profundos que uma mera
“desorganização da sociedade”. Para ele o privatismo gera uma organização social
apolítica, que ao largo da história do país prescindiu da dimensão público-política (do
Estado) tornando-a desnecessária à população e criando uma cultura de espírito
eminentemente privado, que não obstante tenha suas raízes ainda no processo de
colonização, persistia nos anos 1930-1940. É contra isto que o autor escreve.
Assim Duarte imagina que é esse o diferencial de sua obra: o privatismo não
como índice de uma desorganização, mas de uma profunda organização social
apolítica, em todo caso. Isto fica bem demonstrado quando o autor refere-se ao passado
colonial, já que para ele
se à primeira vista podemos dizer que essa sociedade é
desorganizada e a expressão não tem nem procura ter valo exato -
se tamanha dispersão, aliada ao individualismo infrene de seu
componente, pode dar a impressão genérica, grosso modo, de que a
Colônia não obedece a uma organização, como se possível fosse a
qualquer aglomerado considerável, como o seu, viver como horda
sem lei nem regras, uma reflexão mais demorada nos levará a
retificar o conceito, para concluirmos que essa sociedade, colonial
dispersa, arquipelágica, móvel, inafixável, irrequieta, é
desorganizada, ou melhor, inorganizada, no sentido político. Sua
indisciplina é propriamente política. É uma sociedade apenas
anárquica por ser apolítica ou antipolitica.
232
A desorganização é “política” no sentido como o autor entende a política, mas
não deixa de se tratar de uma organização social que justamente impede a organização
232
Nestor Duarte. A ordem privada e a organização política nacional. p. 59-60.
114
“propriamente política”. Daí que para Duarte apenas apontar na sociedade Colonial a
preponderância do privatismo é “muito pouco”. Para o autor os intelectuais que o
fizeram “não o tomam como fato a sistematizar na interpretação e na explicação dessa
organização social”.
233
Segundo Duarte o importante é precisamente “sistematizar” o
privatismo na interpretação e explicá-lo como fator que enceta uma organização social
avessa aos ditames da política moderna.
A ênfase do estudo na organização da sociedade colonial não implica que este
privatismo seja uma manifestação distante, mas justamente que o autor pretende
observar as “raízes” e as formas como tal fenômeno se solidificou. Isto porque, segundo
o autor, é com a chegada mesma do colonizador que se instala aqui tal ordem privada.
Aliás, como coloca Duarte, é fora de dúvida que a história do Brasil, com a
interpretação conseqüente de sua organização social deve começar antes do
descobrimento”.
234
Em outros termos, os elementos que explicariam as determinantes
negativas que impossibilitam a conformação de uma sociedade moderna deveriam ser
buscadas no próprio colonizador, no passado político e social de Portugal e dos
portugueses enquanto povo. Para Duarte, se o português pôde preservar tanto a língua
quanto outros elementos étnicos, o mesmo ocorreu no que diz respeito tanto à
organização política quanto social. Estas duas últimas dimensões teriam sido inclusive,
de acordo com o autor, aquelas que melhor teriam sido preservadas pelo português que
veio para a Colônia.
Neste sentido, seguindo Capistrano de Abreu, Nestor Duarte diz que o Brasil
tem que ser visto como uma continuação da sociedade portuguesa, antes e depois da
conquista. Assim, assegura o autor,
quem pretenda, pois, analisar tal ou qual aspecto da sociedade
brasileira, a forma por que se organizou, as tendências mais vivas
que lhe denunciam a natureza e os rumos deverá empreender o
exame da sociedade portuguesa não como simples antecedente, mas
como essa própria sociedade que só depois seria a brasileira.
235
O que está na mira de Duarte é antes de tudo o processo político de Portugal (de
conformação do Estado nacional português) e sua significação (a natureza deste
processo).
Ao ler a história de Portugal o autor vai se convencer de que o português é um
povo fundamentalmente “particularista”. Se se apresenta coeso no que tange a uma
233
Idem. p. 61.
234
Idem. p.1.
235
Idem. p. 2-3.
115
política voltada para o exterior
236
, “internamente o português, cuja organização política
nunca atinge processos normais, é melhor definido como tipo social dentro da
organização privada”.
237
É esta a tese defendida à exaustão no primeiro capítulo de seu ensaio de 1939,
ou seja, um esforço do autor em demonstrar como Portugal faz parte do “outro
ocidente”, completamente distinto da tradição anglo-saxônica.
238
Como define Duarte,
o português é, comparativamente, menos político, como povo e
como indivíduo, do que muitos outros povos nacionalizados da
Europa. Frente à organização política o português de sempre
revelar-se mais ou menos irredutível a esta totalização a que o
Estado submete o indivíduo, cortando ou reduzindo antes todos
os laços que o prendem aqui a ali aos grupos intermediários(...)
de uma sociedade.
239
Para o autor, ainda que Portugal tenha protagonizado episódios relevantes como a
precoce unidade nacional além da própria conquista da América isso não significou a
ascensão a um estágio elevado de organização social e política. O português permanece
um homem mais privado do que público e Portugal um país comprometido com e por
este espírito privado.
De acordo com Duarte o que explicaria esta peculiaridade do português frente a
outros povos seria a força de três “instituições”: a comuna (ou o município); a Igreja e a
família. Para o autor, o processo de “diferenciação política” (emergência do Estado
nacional moderno) se passa pela luta contra poderes concorrentes a exemplo do poder
feudal. Portugal passara por este processo com o apoio da comuna que, se por um lado
ajuda o poder real a se unificar e se consolidar, por outro cobra um preço, na medida em
que disputa a hegemonia com este poder real, reduzindo-o politicamente. Como analisa
o autor, o poder real luta vigorosamente contra a nobreza feudal, mas tem à sua frente,
a concorrer-lhe em jurisdição e primazia, a comuna como poder sôbre territórios e
indivíduos”.
240
236
Como coloca Duarte, a unidade política de Portugal “se dá para a defesa do território, para lutar contra
monarquias vizinhas, para resistir à Espanha (...) para extremar-se moral e religiosamente do mouro, mas
no íntimo o português permanece infeso ao Estado, porque está mais que tudo organizado em grupos
anteriores ou que se desviam do sentido do Estado, como o familiar e o religioso, para assim acastelar e
esconder talvez o seu individualismo de natureza anárquica.” Idem. p. 4.
237
Idem. p. 3.
238
Como colocamos antes, sua inserção naquilo que José Murilo de Carvalho chamou de “iberismo”.
239
Nestor Duarte. A ordem privada e a organização política nacional. Op. cit. p. 4.
240
Idem. p. 6.
116
Para Duarte este é um ponto de suma importância, que em sua perspectiva
político-sociológica a idéia de Estado supõe um poder “incontrastável” e
“inconcorrente” que não pode fraquejar diante de organizações ou grupos de interesses
diverso daquilo que seja público, ou que possam de alguma maneira vir a limitar o
exercício deste poder incontrastável e que necessariamente, coloca Duarte, traduz ele
mesmo aquilo que seria o público e a própria política.
Assim, um dos elementos que serve para Duarte demonstrar essa propensão do
português ao domínio do privado e sua alergia aos ditames da política moderna é a
forma como se estruturou historicamente a sociedade portuguesa, onde teria sido o
“espírito do fragmentário, da divisão, da adesão à entidade local e regional”
241
que
orientou e que dominou historicamente a organização municipal. É esta índole da
divisão e da fragmentação que se coloca como contrária à “formação política nacional”.
Isto pelo fato de que nesta organização municipal haveria quando não uma sujeição da
esfera pública pela privada, ao menos uma indistinção, fazendo chegar até a dimensão
pública o conjunto de “interesses e sentimentos” tanto da vida quanto da organização
privada. A conseqüência disto é que “a comuna (...) nem prepara o espírito nacional de
um povo nem forma o homem político na acepção do cidadão, porque dos grupos e
associações territoriais é o menos político por ser o mais privado, pois não há confundi-
la com a cidade, tipo de associação urbana de originário sentido político”.
242
Outra instituição a concorrer para a formação deste espírito privatista em
Portugal teria sido a Igreja. De acordo com o autor “a Igreja foi sempre em Portugal,
nos limites territoriais de sua soberania nacional, um poder concorrente e, por vezês,
durante séculos, em épocas e tempos alternados, um poder superposto ao político”.
243
No mesmo sentido que a comuna, o poder exercido pela Igreja coloca-se como um
poder concorrente ao do Estado.
Fechando a tríade dos fundamentos que explicariam o “espírito privado” do
português estaria a família. Esta, também de apelo completamente diverso daquilo que
representa o Estado, aparece com um papel bastante significativo. Tanto quanto o poder
comunal/municipal ou do poder eclesiástico, a família se constitui como entrave ao
processo de diferenciação política que leva à conformação do Estado moderno (e suas
correlatas características). Para Duarte, “a família é antes um grupo hostil ao grupo
241
Idem. p. 6.
242
Idem. p. 11.
243
Idem. p. 8.
117
político, refratário, enfim, ao espírito que domina a organização estatal”.
244
A família,
saliente o autor, por sua condição restrita (por se tratar de um grupo fechado) traduz
uma idéia oposta à do Estado. Por seu caráter exclusivista ela é a síntese da coisa
privada, a própria negação do Estado. Assim, ainda que um grupo familiar venha a
exercer o poder político (em “sociedade simples e sem densidade”, explica o autor) não
o faria senão pervertendo este poder político em prol de seus interesses particularistas. E
concluindo, coloca Duarte, “em face ao Estado, quando êste a absorve ou limita a
potestade doméstica, a família começa a desencadear uma força de resistência e de
oposição. Porque seu espírito é mais vivo e intenso do que o do Estado, com um
fundamento sentimental que aquele desconhece”.
245
A mais importante implicação que Duarte extrai deste complexo privado que
cria uma cultura avessa ao espírito público é de ordem política. É a impossibilidade do
pleno desenvolvimento do repertório da política moderna que mais incomoda nosso
autor. Deste repertório a idéia do Estado moderno, democrático e fundado nos ditames
da cidadania é, como já dissemos, a aspiração utópica de nosso autor.
Sua definição do que seria o Estado é sem maiores preocupações com extensas
exemplificações históricas ou etimológicas. Estado para Duarte é o “fenômeno político
diferenciado”, ou seja, é um poder distinto do familiar ou do religioso, que exerceria a
função de governar os membros que compõem uma comunidade nacional. O estado é a
dimensão pública, propriamente política que deve exercer o poder político sem a
sombra de outras instituições ou grupos como a Igreja ou a família.
O Estado, neta acepção de “fenômeno político diferenciado” como define Duarte
tem por horizonte então
ser, no âmbito interno, mesmo que condescendendo aqui e ali,
um poder incontrastável, inconcorrente, único, como se teorizou
enfaticamente, segundo o conceito tradicional, a sua soberania. E é
do espírito político (...) com tido sentido extragrupal, ser infenso
a tudo que restrinja, particularize e divida a fôrça social de que
precisa dispor. Dirije-se, por assim dizer, ao geral, à generalidade,
cuja expressão mais própria e justa é o termo res publica, a coisa
publica, que ele traduz e expressa.
246
É justamente esta natureza de fenômeno que Duarte diz nunca ter completado seu
processo de “diferenciação” em Portugal.
244
Idem. p. 13.
245
Idem. p. 15-16.
246
Idem. p .15.
118
Assim, fecha-se o raciocínio de nosso autor. Já que isto não se passou na
Metrópole, e como a história do Brasil começa antes e continua com a colonização,
todas estas especificidades da organização política e social portuguesa são
transplantadas com a chegada do colonizador. Daí que pensar o Brasil e os problemas
de sua formação social implica um recuo até o longínquo passado português.
Ainda neste sentido, Duarte vai sustentar que estes caracteres da organização
social e política que foram trazidos com o colonizador encontraram na Colônia um
terreno ainda mais fértil para seu enraizamento e radicalização. Desta forma, a ordem
social fundada na família, na grande propriedade e no poder municipal começa a
escrever sua história no Brasil. História esta que é a própria história do que Duarte
chamou de organização política nacional.
Seção II Os desdobramentos políticos da ordem privada.
Se Portugal na leitura de Duarte não logrou efetivar sua diferenciação política,
ou seja, não conseguiu construir a instituição Estado em uma acepção propriamente
moderna, e se os portugueses permanecem um povo fundamentalmente particularista e
avessos aos ditames da política moderna, é com estas características que se início a
organização social e política no Brasil. Para Duarte, “o Estado, como idéia,
representação e poder, viria a enfraquecer-se e padecer de inelutáveis vicissitudes no
Brasil, ao passar para o território colonial a organização social portuguesa”.
247
Segundo o autor, todos os elementos negativos que informam a cultura apolítica
portuguesa se radicalizam no novo território, isto por conta de alguns fatores pontuais,
aos quais ele atribui a responsabilidade pelo caráter mais agudo que vai assumir este
espírito privado. De acordo com o autor de Gado Humano “dois fatores transmigrados
com essa organização [portuguesa] e de logo exaltados pelas novas condições do meio,
iam agravar de óbices e tropeços o curso normal da atividade funcional do Estado o
feudalismo (...) e a família...”
248
O primeiro destes fatores, o feudalismo, Duarte sustenta, com fizemos
referência, sinalizando que a forma de ocupação do território colonial com o sistema das
Capitanias é tipicamente feudal. Segundo o autor, “as capitanias são, por tendência e
247
Idem. p. 18.
248
Idem. p. 18.
119
desdobramentos de seus fins, uma organização feudal.”
249
Ainda que tal tese da
existência de um período feudal no Brasil seja contestada em 1939
250
, o que importa
para Duarte são dois pontos que ele considera cruciais e que o autorizam a sustentar seu
ponto de vista. Primeiro, aquilo que seria a “transmissão da propriedade plena e
hereditária”; e, em segundo lugar, a “fusão da soberania e da propriedade”.
Recorrendo mais uma vez a Capistrano de Abreu, o autor diz que na Colônia
cabia ao donatário tanto a posse da terra quanto sua “governança”. Desta forma, conclui
Duarte, “está demonstrada a existência daqueles requisitos que caracterizam
teoricamente a organização feudal na propriedade plena e hereditária da capitania em
face do Rei e na fusão da soberania na propriedade mesma”.
251
Se o sistema das capitanias no período colonial é, como coloca Duarte, a
primeira forma pela qual se estabelece uma sociedade constante e demorada” no
Brasil, é a ele que todo e qualquer estudo deve voltar-se, no sentido de apreender as
“determinações históricas” que explicariam a problemática do privatismo e do “atraso”
brasileiros nos anos 1930-1940. Isto porque, seria preciso lembrar mais uma vez, que tal
regime que funde “propriedade e soberania” ou seja, posse da terra e exercício do
poder “político”- não é propenso ao desenvolvimento daquilo que o autor chama de
“espírito político” ou seja, de uma cultura “verdadeiramente” política e de instituições
que representam o político, como o Estado.
Neste sentido, é esta organização social com raízes na Colônia, mas que também
se prolonga na história do país chegando à atualidade do autor, que explicaria as
“irredutibilidades” da organização política do Brasil, seu “atraso” e sua inscrição no
pré-moderno. Como coloca Duarte, “o sistema de donatarias nos transmitiu o estilo e a
forma de uma ocupação do solo que é uma das constantes de nossa sociedade e a
própria condição de suas lindes territoriais que ainda hoje perduram na configuração de
muitos dos nossos estados federados”.
252
É esta perspectiva de uma longa continuidade
que autoriza Duarte a falar em feudalismo mesmo após 1930. E a persistência deste
249
Idem. p. 18.
250
Como pontuamos no primeiro capítulo, tanto Caio Prado Júnior quanto Roberto Simonsen, que é com
quem Duarte trava o debate, investe na negação da existência de tal período e na inadequação de tal
categoria para explicar questões relativas à história política e econômica do país. Para Caio Prado se
poderia falar em feudalismo enquanto uma figura de retórica. Duarte ainda dirá que se trata de um
“feudalismo atípico”, mas o “atípico” de Duarte é que é mera figura de retórica. Para ele não dúvidas
que o Brasil não viveu como vive, ainda em 1930, um regime tipicamente feudal. Neste aspecto vale
observar a constatação de Luiz Guilherme Piva com relação a uma sensível desatualização de Duarte em
relação a diversos aspectos sustentado em seu texto de 1939.
251
Nestor Duarte. A ordem privada e a organização política nacional. Op. cit. p. 19.
252
Idem. p. 22-23.
120
regime privado é que também permite que Duarte fale tanto da ausência de
protagonismo dos sujeitos subalternos quanto da necessidade inadiável do moderno.
O outro fator que Duarte diz obstruir a atividade do Estado e que o enfraquece
como “idéia, representação e poder” é a família, a grande família patriarcal que, de
acordo com o autor, “é no ocidente, na idade Moderna e contemporânea, a maior
reminiscência, talvez, da antiga família dos rudes tempos romanos”.
253
O que está em
jogo é justamente a agência de um grupo intermediário que se opõe ao pleno
desenvolvimento da ordem pública. Como insiste Duarte, dizer que a sociedade
Colonial é desorganizada por conta da ação de grupos intermediários e concorrentes ao
poder do Estado como a família não traduz a realidade mais palpável e nem desvela por
completo o problema, que a agência privatista gera uma forma de organização social
que não pode ser confundida com mera desorganização.
Neste sentido, o papel da família patriarcal assume grande importância na leitura
que Duarte faz do Brasil. Para o autor, a família representa “a única ordem perfeita e
integra” que a sociedade portuguesa conheceu. Transplantada para as novas possessões
coloniais encontraria no Brasil um terreno propício para a “revivência dos tempos
heróicos ou, se quiserem, dos tempos feudais”.
254
Para o autor, três fatores explicam a centralidade da organização familiar na
sociedade colonial: a própria “índole” privatista do português; a economia feudal e o
extenso território, que acaba influindo tanto na forma de ocupação do solo (as grandes e
isoladas propriedades) quanto na forma de produção (o latifúndio monocultor). Assim,
as características do novo território colonial são mais propício ao fortalecimento do
poder familiar trazido pelos colonizadores. Essa força do familialismo aponta para a
preocupação fundamenta do autor que é com o poder “propriamente político”, definição
oposta daquilo que representa a família e que, de acordo com o autor, além de ser aquilo
que mais nega o Estado é a organização que está na base da organização feudal.
Segundo Duarte, família, propriedade e feudalismo componentes de um mesmo
processo e
é precisamente na fase feudal que a família revela a sua índole
institucional contrária ao espírito institucional político diferenciado.
-se força de governo e mando à instituição familiar e ela não
desdobrará até a fase posterior do Estado puro, desvia-se antes,
253
Idem. p. 18.
254
Idem. p. 64.
121
desviando também o processo político, para uma forma de
deformação...
255
Negação mesmo do Estado e por conseguinte da dimensão pública e do poder político, a
família quando logra exercer este último não o faz senão desviando-o. É toda a história
deste fenômeno de apropriação do público pelo privado que Duarte constrõe em sua
obra fenômeno que impede justamente a emergência da modernidade política
pretendida pelo autor.
Para o autor, se na Colônia a família patriarcal tem um papel central, seus
resquícios e os desdobramentos a-políticos que disso decorrem não se extinguem com a
emergência do Império ou da República. Se na Colônia Duarte a família patriarcal
com uma tripla atribuição
256
, não será um quadro muito diferente que ele pinta no que
diz respeito à configuração política e social dos anos 1930-1940. As questões da
extensão territorial, da ausência de cidades e do isolamento dão as cores da
continuidade de uma “tradição de 400 anos”. Pois se a família patriarcal exercia as
funções procriadora, econômica e política na Colônia, devido ao extenso território não
ocupado e livre de presença do poder propriamente político, serão estas mesmas
questões que Duarte coloca como sendo as principais a serem sanadas.
A questão central que se depreende do diagnóstico é a de que forma a ordem
privada se institui aqui no Brasil; como ela se perpetua e de que maneira ainda persiste
na configuração política e social das décadas de 1930 e 1940 impedindo o país de
adentrar na ordem do moderno. Como bem colocou Paulo Silva, a preocupação de
Duarte é com o presente. É o problema da apropriação da esfera pública pela ordem
privada que se constitui como o principal impedimento para a modernização do país,
que por “moderno” nosso autor entende fundamentalmente o repertório da política
moderna o “Estado puro”, “fenômeno político diferenciado” atuando no sentido de
inspirar o espírito público na população.
Nesta perspectiva Nestor Duarte mobiliza toda sua intervenção para demonstrar
de que maneira grupos intermediários e concorrentes atuaram e continuavam a atuar no
sentido de impossibilitar a plena expansão e o pleno exercício da dimensão pública e do
poder político. Assim, coloca o autor,
255
Idem. p. 66-67.
256
Segundo Duarte, “o território extenso, inocupado, determinando intensa atividade rural e a exigir
povoamento e mando, dera ensejo a que a instituição familiar no Brasil pudesse desempenhar plenamente
a tríplice função necessária ao seu prestígio e à sua fôrça no organismo social a função procriadora, a
função econômica e a função política”. Idem. p. 67.
122
se o senhoriato, ao encontrar-se com influências do litoral,
participa, no terreno abstrato, do jogo das idéias deste, quando
reflui à sua base, ao seu habitat, continua a manter os elos
tradicionais e orgânicos de sua índole e natureza, para impedir já
agora, que o Estado penetre essa população e lhe dê outro sentido
social. Ao exercer o papel de classe política, deformando,
conforme lhe é próprio, o fenômeno político, o senhor de
engenho, o fazendeiro, barão do Império, coronel da República,
ao substituir o Estado nesse país rural e agrícola, impediu até
agora a aproximação do mesmo dessa população.
257
Em outros termos, o senhor ou o chefe rural é o maior responsável pela deformação do
Estado e pelo impedimento para sua penetração no meio rural, acarretando uma dupla
distância das “massas” em relação a este seu repertório da política utópica da cidadania:
uma distância física (o isolamento por conta do vasto território ocupado de forma
irregular) e moral (uma cultura privatista, avessa aos ditames do verdadeiramente
político).
É essa, de acordo com nosso autor, a dinâmica da organização política nacional
ancorada na ordem privada. Com raízes na organização da sociedade colonial, tal
dinâmica permanecia viva em 1930 e a emergência do regime Vargas põe em cena mais
um capítulo desta história, que mais uma vez o que avulta é a força não da
impessoalidade estatal, mas do governante. A isso se soma, assegura Duarte, a
inadequação do modelo de governo proposto, pois o importante seria a criação tanto de
um poder verdadeiramente público quanto da necessidade deste no imaginário coletivo
das massas. Criar, como dissemos, a dimensão publica, mas também a sua necessidade.
É contra a persistência da ordem privada e do que julga o equívoco do regime
instalado em 1930 que Duarte está se insurgindo. É constatando a atualidade” do
problema em 1930-1940 que escreve nosso autor.
Seção III A ordem privada em 1930-1940
Nesta perspectiva continuista de Duarte, pode-se dizer que tão claro quanto a
existência de uma organização social fundada no privatismo é sua atualidade e sua força
no contexto pós-1930.
Como sinalizamos no primeiro capítulo, esta dimensão política dos escritos de
Duarte parece ter menos a ver com uma perspectiva saudosista de reconquista do
257
Idem. p. 106.
123
prestígio perdido (da Bahia e dos baianos no cenário político nacional) do que com a
necessidade, de acordo com o autor, de superar os traços pré-modernos e de inscrever o
país na ordem do moderno. É o próprio Duarte quem aponta a insuficiência do debate
em torno dos temas da centralização ou da descentralização. Como explica ao discordar
de Sérgio Buarque de Holanda com relação às conseqüências do familialismo, um
problema de tanta profundidade e com tal poder de repercussão não pode se restringir a
tão pouco conseqüências uma “difícil adaptação ao princípio do Estado democrático”,
no diagnóstico de Holanda. Para Duarte o familialismo “atinge à questão mesma do
Estado e não essa ou aquela forma de organização estatal”.
258
Colocar a discussão em
termos de uma ou outra perspectiva estatal é reduzir o problema e, como coloca Duarte,
reduzir também a solução.
Com efeito, a recusa de um formato autoritário é parte importante das
formulações de Duarte, mas as questões da centralização ou da descentralização
encontram um alcance notadamente menor do que a perspectiva modernizante”.
Assim, sugere Duarte, colocar a questão da ordem privada e seu desdobramento na
organização política nacional distante da questão mesma do Estado de sua existência
ou não; de sua debilidade ou da ausência de receptibilidade seria “simplificar o
problema para resolvê-lo dentro, apenas, do conceito de centralização e de
descentralização”.
259
A questão da atualidade da ordem privada e de suas implicações no período
posterior a 1930 é o tema do derradeiro capítulo de A ordem privada e a organização
política nacional. Embora se proponha a observar a “atualidade deste problema
político” e coloque reservas bastante direcionadas ao regime Vargas, não se trata de
uma minuciosa análise deste mesmo regime. É antes a reafirmação do peso do passado
se fazendo sentir no presente. É mais um momento naquela tradição de 400 anos
apontada por Duarte.
De acordo com o autor de Gado Humano, “um dos preconceitos mais sutis e
influentes de nossas concepções políticas consiste em identificar o processo de
formação de nossa nacionalidade com a política de centralização do poder.”.
260
A crítica é bem dirigida para o governo de Getúlio Vargas, mas o problema
encontra suas raízes ainda na política Imperial. Como assinala o autor,
258
Idem. p. 121.
259
Idem. p. 113.
260
Idem. p. 113.
124
aos olhos dos apologistas do Império, a emprêsa maior da
monarquia em prol da nacionalidade foi a sua política
centralizadora. O problema assim posto, ainda revive hoje na
opinião do país, dividindo-a em partido e correntes de idéias. Na
carta de 10 de novembro de 1937, a questão ressurge, dentro dos
mesmos temas e do mesmo espírito dialético...
Segundo o autor, tanto a integridade territorial quanto a centralização do poder político
que teriam sido os grandes feitos do Império deveriam ser antes resultados ou não de
um processo mais orgânico de conformação da comunidade nacional. Isto porque esta
integridade territorial e esta centralização política não logrou nem um alcance mais
amplo do poder político no vasto território do país nem muito menos a criação de uma
solidariedade anônima mais extensa (sentimento nacional).
261
É neste sentido que Duarte questiona a validade deste que teria sido o grande
feito da política imperial bem como o leitmotiv da política varguista, pois segundo o
autor, “uma das principais conseqüências deste julgamento é insinuarmos a convicção
de que o nosso processo nacional se faz pela integridade territorial com a centralização
do poder. E sem querer, porque reduzimos o problema, reduzimos também a
solução”.
262
O problema é que, coloca o autor, a ausência de uma organicidade nacional bem
como uma crônica indisposição para a dimensão política acarretou que com a
Independência a única “política” possível fosse a da centralização e a da busca por
manter a integridade territorial. Isto porque, explica Duarte, se é que havia a integridade
de diferentes grupos étnicos,
uma vez independente, essa unidade, porém, se torna mais
precária, desde que desaparecia uma das mais fortes razões que a
explicavam (a dominação metropolitana) ... haveria por isso
mesmo alicerçá-la sobre nôvo eixo e outra bases. Essa política se
resume de logo num meio a centralização, e num fim a
integridade territorial.
263
Essa política, no entanto, não alcançou resultados para além desta centralização mesma
e da manutenção da indivisibilidade territorial. O Estado permaneceu ausente e não
encontrava um “espírito” favorável à sua adesão. O processo de centralização não
261
Com relação a esta fragilidade do sentimento nacional Duarte coloca: “... porque na realidade sabemos
compreender o Brasil, antes de tudo, como a conseqüência da reunião, por subordinação violenta ou fusão
pacífica, de vários grupos étnicos sobre um território cuja ocupação são êles os primeiros a realizar. Tais
grupos formariam, mais que tudo uma comunidade econômica sob uma mesma língua, sujeitos, mais ou
menos, a idênticas reações e acomodações. Esta comunidade, entretanto, não tinha espírito político e
nacional”. Idem. p. 115.
262
Idem. p. 114.
263
Idem. p.115.
125
chegava a alcançar toda a extensão do território mantido indiviso assim como
continuava a acontecer no regime Vargas, aponta Duarte. Para o autor, à centralização
escapava a irredutibilidade da grande massa populacional que formava círculo mais
vasto, sem idéia política nem consciência nacional e que mal acudia a raras e vagas
representações que traduzem a idéia e o sentimento de uma nação”.
264
E neste ponto
Duarte mais uma vez estabelece o paralelo entre a política imperial e a política de seu
tempo. Pois para ele a emergência do regime republicano não marcou nenhuma natureza
de ruptura, assim como não marcou 1930 ou 1937, no que diz respeito ao equívoco de
uma política deformada, de uma política verdadeiramente política (pública) e atuando
no sentido de cria sua no “povo” sua necessidade (uma cultura política).
Este cenário imutável é o fundamento de uma afirmação categórica que, se não
resume toda a empresa duarteana, aponta para uma síntese das conclusões do autor.
Segundo ele, “o brasileiro político é... o resultado de um produto histórico irregular,
deformado e incompleto, como irregular e deformado é o curso de vida do Estado
brasileiro”.
265
Em outros termos, um Estado que não conseguiu atingir a extensão
territorial e superar a indisponibilidade dos sujeitos para com tal instituição e tudo o que
ela viria a representar o que indicava, segundo o autor, que se tratava de um grupo de
sujeitos que ainda não tinham atingindo um nível de organização e uma idade social
própria para receber ta instituição.
Para Duarte, os esforços políticos na história do país pecaram ou por
artificialismo ou por insuficiência, e isto resumiria todo o “sentido da nossa vida
política no Império e na República. Um trabalho de construção ora desproporcionado,
ora artificial, sempre com maior ou menor contraste, sôbre o terreno vazio”.
266
Não
seria preciso repetir que este terreno vazio diz da população “atrasada” que ainda não
teria alcançado a maturidade social para receber a organização política propriamente
pública, representada pela salvação que seria o Estado moderno. Dque a crença de
nosso autor repouse precisamente na conformação de uma cultura “verdadeiramente
política” a política utópica da cidadania.
Neste cenário de equívocos institucionais e apolitismo das massas sobra espaço
apenas para a agência do governo (onde reluz a pessoalidade do governante), já que não
Estado ou este sofre de uma debilidade crônica. Como coloca Duarte, é o governo
264
Idem. p. 116.
265
Idem. p. 116.
266
Idem. p. 118.
126
que resume toda a atividade que se poderia chamar de política, assim como é ao
governo que coube até então a tarefa de construir a dimensão pública. No entanto,
ressalta Duarte, “é precisamente porque lhe cabe realizar esta construção, em que se
confunde, que nele se refletem o erro, o artificialismo, como os choques dessa
construção diante do meio e do terreno em que se eleva”.
267
Seria justamente a
impossibilidade dos diversos governos em tal tarefa conformadora (dada a
indisponibilidade das “massas” para o fenômeno da política “puro” como anseia Duarte)
que levaria tais governos ao processo de centralização e também autoritarismo, que
estariam tentando “alcançar por golpes o que será antes resultado de lentos processos do
tempo e da ação ininterrupta sob programas demorados”.
268
Neste ponto além da lucidez do autor quanto ao tempo que seria necessário para
forjar uma cultura política (a educação do povo para o sentido da coisa pública, como
coloca) fica patente a crítica ao que seria à prática posta em movimento pelo regime
instalado em 1930.
Daí que para Duarte o fato de no Brasil o Estado não ter uma existência efetiva
que possibilitasse a ele um desenvolvimento “por si mesmo”, tal instituição acaba por
confundir-se com a ação mesma do “governante ocasional”. Desta forma, critica Duarte,
a nossa concepção de governo forte é, assim, sem nenhuma
transição nem disfarce, a própria noção do governo de fôrça, do
governo pessoal. Pessoal tem sido todo ele, como pessoalmente
poderosa a figura do governante, porque à falta de uma abstração
impessoal do que seja governo, acabamos por admitir como
regular a anormalidade de um Estado que é o governante, de
uma ação governamental que é o poder pessoal do chefe do
governo. Mas, é que o chefe do Estado, como pessoa e pelos seus
caracteres pessoais, é a única concretização do Poder Político
numa organização política sem conteúdo histórico nem espírito
institucional para viver a nutrir-se de princípios e de fórmulas
objetivas, como a nossa.
269
Desta maneira, o “homem público” brasileiro seria produto desta organização política
sem conteúdo. Por isto, insiste o autor,
todas as vezes que quisermos fazer a crítica desse homem
público, como a análise da vida política, é forçoso prolongar no
passado a explicação do seu caráter, de suas qualidades e defeitos
(...) porque este homem em si, com sua mentalidade
contemporânea e intenções atuais, pouco vale ou significa sem
267
Idem. p.118.
268
Idem. p. 118.
269
Idem. p. 118-119. Grifos meus.
127
esse passado de forte pêso tradicional, que o define e que o
formou, esculpindo-lhe sentimentos e hábitos sociais, como
costumes mentais e morais.
270
È a força deste passado que se mostra irredutível a todo princípio abstrato e que em
1930-1940 se reflete tanto na sociedade em geral quanto no homem público síntese
desta sociedade e a referência a Vargas é sutil mas perceptível.
A questão primordial em seu debate velado com o regime instaurado em 1930 é, como
adiantamos, menos em torno das noções de centralização e descentralização que no
sentido mais amplo de seu projeto: criar um Estado moderno; criar uma cultura
efetivamente “política”. Com efeito, as noções de centralização e descentralização não
são desprezadas, como pudemos observar, mas esta discussão não pode ser
superdimensionada. Isto porque de acordo com o autor, não faria muito sentido debater
a forma organizacional de algo débil ou que sequer existiria: o Estado. Como coloca
Duarte,
a ausência do Estado ou sua imperfeita acomodação no dorso de
uma sociedade que pôde subsistir prescindindo de sua presença,
tirou ao indivíduo os ensejos de atingir aquela condição de
cidadania, de categoria política, ou não lhe deu tempo ainda de
alcançá-la pela forma compreensiva e total que marca o
nascimento social do homem público.
271
É neste sentido que Duarte constrõe sua obra. A esta altura de seu diagnóstico e de suas
proposições o autor já está um tanto repetitivo como deve ter deixado impressão nossa
leitura. Finaliza seu ensaio dizendo que este não pretende ser conclusivo, mas que se
insere no conjunto dos “estudos brasileiros” e busca trazer para o debate “certas formas
e constantes brasileiras na tentativa de explicar certas “irredutibilidades do meio
brasileiro”.
Duarte não oferece um diagnóstico original, mas imagina estar assinalando um
ponto que foi subestimado em autores que o precedeu: que o privatismo gera uma
ordem, uma organização social, que assumiu ao longo da história brasileira o papel que
deveria ser do Estado. E que tal ordem ao exercer o poder político deformando-o,
impossibilitou tanto o desenvolvimento do Estado quanto a conformação de uma cultura
“verdadeiramente” política, desdobrando-se, por fim, na impossibilidade de construção
de nação moderna.
270
Idem. p. 119.
271
Idem. p. 122.
128
Este debate terá seguimento em 1947, com a apresentação do projeto de reforma
agrária na Câmara Federal. Tal projeto pode ser lido como um momento onde Duarte
vai propor soluções mais efetivas para os problemas apontados em A ordem privada e a
organização política nacional. Se o complexo social do latifúndio - o feudalismo
mesmo - é ainda algo persistente no Brasil das décadas de 1930-1940 era necessário
então ir ao centro da questão, ou seja, desmontar tal complexo social fundado na grande
propriedade. É isto o que propõe Duarte naquele que foi o primeiro projeto de reforma
agrária proposto no país. O caminho para o moderno continua.
Seção IV A Reforma Agrária e a superação da Ordem Privada
Se em A ordem privada e a organização política nacional Nestor Duarte está
demasiado preso aos postulados da política utópica da cidadania e, neste sentido, sua
composição poderia ser encaixada naquilo que Luiz Werneck Vianna chamou de
“estratégia de estadista”, que “visava ao futuro do país, inscrevendo-o no movimento
civilizatório, impelidos por imperativos racionais e não pela representação de interesses
concretos”
272
, em Reforma Agrária o foco é mais elementar.
Com efeito, o horizonte de seu projeto não está fora de sua preocupação mais
geral como a perspectiva nacional-modernizante, seja no que tange à constituição de
solidariedades mais amplas como a busca estabelecer a brasilidade sertaneja, seja no
que diz respeito à validade da política moderna para todos os sujeitos. No entanto a
leitura de Reforma Agrária não deixa de sugerir um deslocamento do autor para
recantos mais modestos, para recantos onde sem abrir mão desta perspectiva nacional-
modernizadora pudesse apresentar propostas mais efetivas com o intuito de superar
muito daquilo que ele aponta em seu ensaio de 1939.
Assim, seu projeto apresentado em 1947 figura basicamente como o
desdobramento de diversos temas de A ordem privada e a organização política
nacional, como por exemplo, a idéia da persistência de um modelo econômico e político
feudal que se desdobra em uma moral e um sentimento privado; a importância das
cidades como espaços mais propensos à dimensão pública; a importância do “homem
público” nesta tarefa transformadora e , finalmente, as conseqüências políticas que tal
transformação acarretaria, ou seja, a modernização do país.
272
Luiz Werneck Vianna. Op. cit. p. 186.
129
Este percurso do autor para propostas mais palatáveis segue uma lógica um tanto
simples. Se os fundamentos da chamada ordem privada estão fortemente enraizados na
grande propriedade, no complexo social do latifúndio, a forma de supera tal estado de
coisas seria, nas proposições apresentadas no ensaio, a criação da dimensão pública,
entendido como a emergência do Estado, de sua ação pedagógica junto às massas e a
criação de uma cultura política. Enfim, todo o repertório da política moderna: Estado,
Nação, Democracia, Cidadania etc. A questão é que esta proposição da mudança de
uma “moral” e um “sentimento” privado demanda, como aponta o autor, um “lento
processo”, que se está a falar de uma prolongada tradição. Desta forma nosso autor
vai fazer um caminho do sótão para o porão, vai propor uma intervenção no material,
ainda que não abandone em momento algum sua preocupação com a “superestrutura”
da ordem privada.
Neste sentido, se a proposta de “educar para o sentido da coisa pública” lançada
em 1939 não colheu seus frutos em quase dez anos, em 1947 nosso autor vai propor que
se intervenha num dos pilares da ordem privada: a propriedade. Atingida a propriedade
o autor pretende fazer ruir também a família extensa (o familialismo) e o município
feudal (dominado pelo poder local dos “coronéis”). Eis o caminho para modificar
aquela cultura, aquela moral e aquele sentimento privados.
Como atingir então este importante fundamento da ordem privada? Reforma
agrária. O ponto de partida de Duarte é modificando os termos da posse da terra.
Mudanças tanto na posse quanto na dinâmica econômica da grande propriedade. Assim,
sua primeira preocupação é justamente definir em termos mais precisos o que entende
por grande propriedade, os problemas que ela acarreta e, por fim, ressaltar a necessidade
de tal reforma.
Duarte mesmo depois dos debates ainda insiste, em 1947, na tese do
feudalismo.
273
Desta maneira, afirma categoricamente em seu texto que “a propriedade
agrícola no Brasil nasceu sob o regime feudal e vive nessa tradição. Um país de
estrutura feudal não transpõe a nossa época sem exigir uma reforma agrária, mas
nenhum lhe opõe barreiras como um país feudal”.
274
Para o autor, não obstante as
interposições de Simonsen, não havia “fato que deva ser mais indiscutido, quer se
encare o feudalismo sob o aspecto político, jurídico ou econômico”.
275
Segundo Duarte
273
Na verdade até mesmo em 1953, que é quando o projeto é convertido em ensaio e publicado.
274
Nestor Duarte. A reforma Agrária. Op. cit. p. 12.
275
Idem. p. 13.
130
o declínio do feudalismo europeu não implica que este não possa ter sido transplantado
para o Brasil. Daí que assegure que o regime das capitanias com o qual se processou a
ocupação do solo tenha sido um regime feudal:
a organização portuguesa de ocupação das terras brasileiras era
feudal. Um feudalismo de sentido político e de sentido
econômico, sem a menor dúvida ... Nas terras da Capitania, o
donatário exercia funções de agente político e proprietário
privado de terras. A coroa portuguesa fez somar em mãos desse
donatário as prerrogativas do poder coativo e as prerrogativas do
proprietário.
276
Em resumo, o donatário se convertia tanto em senhor das terras quanto em senhor
daqueles que nestas terras habitavam. O que definia, segundo Duarte a questão do
feudalismo era justamente o exercício da política pelo proprietário privado. Como
coloca, “o feudalismo é sempre uma associação do mando político ao do senhor
privado, cuja força reside na própria condição de proprietário de terras”.
277
Se esta era a
dinâmica da sociedade colonial, não o era diferente com relação à sociedade das
décadas de 1930-1940.
A grande questão para Duarte é que a grande propriedade não traduz apenas um
regime econômico. Como adiantamos, ela cria uma cultura apolítica, privatista. Como
coloca o autor,
a grande propriedade gera um regime típico, um sistema
econômico e, com êle, mais genericamente, uma organização
social de que é causa e resultante. Onde se mantém, vive ou
manifesta como revivência, um determinado regime feudal ou as
conseqüências desse regime.
278
Como sustenta, qualquer natureza de regime econômico cria consigo, para além do
meramente econômico, a referida cultura privatista, que é ela mesmo uma das formas
pela qual determinado estado de coisas assegura seu predomínio e sua longa existência.
Por isso por em risco tal regime econômico implica por em risco também “um centro
vital de interesses e sentimentos”.
279
De acordo com Duarte a definição da noção de grande propriedade não pode
depender da extensão territorial de dado país. Ela seria um fenômeno que ocorreria
tanto em países de grande extensão como o Brasil quanto em países de menor extensão
territorial, como o próprio Portugal. Para o autor esta seria uma das primeiras objeções
276
Idem. p. 13.
277
Idem. p. 14.
278
Idem. p. 15.
279
Idem. p. 15.
131
que seu projeto iria encontrar, que como o Brasil teria uma enorme quantidade de
terra desocupada não haveria porque uma proposta de redistribuição da terra. que
para o autor baiano tal argumento é sofístico, que se trata em seu projeto de “alterar
as relações de direito da propriedade agrícola e do sistema econômico em que se baseia
ou vem a desenvolver-se”.
280
Neste sentido, a definição daquilo que seria a grande propriedade deve
necessariamente atender a outros parâmetros. Assim, a definição de grande propriedade
dependeria da área agrícola ocupada e da população que detém a posse da terra. O
cálculo é dos mais simples, pois “quanto maior é a área ocupada e menor o número de
proprietários que ocupam essa área, mais manifesta é a presença da grande
propriedade”.
281
Em outras palavras, quanto maior o número da população e menor o
dos proprietários, ai se verifica um sistema de distribuição onde prepondera a grande
propriedade. Haveria ainda outros parâmetros a serem observados para a definição da
“grande propriedade”. Para o autor a propriedade deve ser definida como grande por
uma condição social. Segundo ele,
tôdas as vêzes que a ocupação do solo permite que alguns
possuam a terra agrícola enquanto outros ficam sem poder
possuí-la; tôdas as vêzes que os detentores da terra agrícola
conseguem mantê-la além da exploração e da produtividade que
o seu trabalho e o dos que com eles convivem possam assegurar
na comunidade da família; tôdas as vêzes que a propriedade
agrícola se mantém à do número sempre crescente de uma
população agrária em condições de não-proprietários, de
escravos, de servos e de assalariados, estamos diante de um
regime de desigualdade na distribuição da terra agrícola e nesse
regime existe e domina a grande propriedade.
282
O ponto central para Duarte é que a grande propriedade concorre diretamente para a
conformação do quadro de miséria e atraso político que ele aponta em outros
momentos. Para Duarte o latifúndio terá que empregar um grande número de
trabalhadores sem-terra para atingir sua capacidade plena de produção trabalhadores
esses que terão que sujeitar-se aos ditames exploratórios do regime. Assim, o que
definirá o sentido social negativo da grande propriedade é justamente sua crescente
expansão e o aumento do número destes trabalhadores que por não possuírem a terra
são obrigados a trabalhar nos domínios do grande proprietário. É neste sentido que,
coloca Duarte,
280
Idem. p. 11-12.
281
Idem. p. 16.
282
Idem. p. 20-21.
132
a primeira conseqüência desse tipo de propriedade agrícola é criar
uma massa camponesa sem terra e manter-se do seu trabalho.
Impedirá que essa massa camponesa venha a prosperar e ter, assim,
terras, porque precisa assegurar o esteio de sua homogeneidade e de
sua conservação. Reduz o homem a instrumento de trabalho e o
considera como fonte de tração humana.
283
O Problema gerado pelo complexo social do latifúndio espaira-se para além do
meramente econômico, desdobrando-se em conseqüências principalmente políticas. A
solução, ou ao menos um primeiro passo nesta direção é justamente a reforma do setor
agrário.
Mas, qual seria o sentido, o nível de intervenção da reforma agrária proposta por
nosso autor? Duarte constrõe seu projeto num equilíbrio entre o que chama de posições
demasiado moderadas e de posições perigosamente radicais o temor da “violência”,
que permeia seu texto. No primeiro caso refere-se a dispositivos legais que na história
do país buscaram promover “benefícios para o trabalhador rural” que, mesmo se auto-
intitulando de reforma agrária “não podem ter esse nome”.
284
No segundo caso trata-se
de “evitar revoluções”... fazendo-as, segundo o autor. Neste meio termo Duarte vai
definir a reforma agrária como sendo uma “reforma social”. Para o autor,
reforma agrária é a revisão, por diversos processos de execução,
das relações jurídicas e econômicas dos que detém e trabalham a
propriedade rural, como o objetivo de modificar determinada
situação do domínio e posse da terra e a distribuição da renda
agrícola.
285
Para Duarte o importante é situar a proposta de reforma agrária nas “formas
intermediárias”. Colocada nos termos de uma “revisão” das relações de diversas
naturezas entre os que detêm e os que trabalham a terra, a reforma agrária deveria
atender às “peculiaridades históricas” do país. A atenção as estas peculiaridades deveria
deixar claro que tal reforma não poderia ser concretizada a passos demasiados largos. É
preciso comedimento.
Duarte reserva o mais extenso dos capítulos de seu livro (projeto) para colocar
os termos da “reforma agrária para o Brasil”. Para o autor a agricultura no país sempre
foi organizada na base da grande propriedade. Este quadro de todo problemático se
283
Idem. p. 26-27.
284
Idem. p. 47.
285
Idem. p. 50.
133
agrava ainda mais por conta da natureza desta grande propriedade, tal como delineou
Duarte. Assim, coloca o autor,
o Brasil sempre viveu sob a pior das formas da grande
propriedade a da grande propriedade do sistema pré-capitalista,
que gera o latifúndio improdutivo ou parcialmente explorado, a
que se estiola nos limites da primária economia de consumo ... a
que não conhece maiores relações de intercambio, isolada no
campo entre um proprietário rico em terras e pobre em rendas, e
um trabalhador agregado que, sem as terras do “rico”, associa a
sua miséria ao regime de poupança do patrão.
286
Desta maneira, a reforma agrária deveria ter por horizonte o estabelecimento de uma
nova divisão da terra agrícola, a fim de distribuí-la de uma melhor forma entre a
população rural,
287
além de concorrer para uma maior produção de alimentos. Isto
porque para Duarte a questão da monocultura é outro grave problema. Para o autor, “a
grande propriedade deve ser combatida não apenas porque é grande, mas porque, além
de grande, é monocultora, quando não seja improdutiva”.
288
Em nosso autor a
monocultura é sinônimo de latifúndio, enquanto que a policultura acaba implicando na
divisão da terra, gerando a pequena propriedade como conseqüência da diversidade das
culturas.
Outro ponto que Duarte vai estabelecer como fundamental na tarefa de levar a
efeito uma reforma agrária e por conseguinte a desmontagem da maquinaria da ordem
privada é o papel das cidades. Para o autor este reordenamento da distribuição da terra
bem como as mudanças nas relações sociais no campo encontrariam seu impulso nas
cidades e não no campo. Estas forças não seriam outra coisa senão elementos da ordem
do moderno: industrialização; economia comercial; expansão do crédito bancário, etc.
289
Esta importância das cidades é mais um tema que Duarte retoma em seu projeto
e que havia sido trabalhado em A ordem privada e a organização política nacional.
286
Idem. p. 59-60.
287
Esta premissa básica de um reforma agrária é repetida à exaustão por Duarte. Assim, coloca o autor, “o
objetivo fundamental da reforma agrária no Brasil é permitir a propriedade da terra aos que não a têm ... é
imperioso sujeitar tôda a terra agrícola necessária a esse desiderato, ou seja a grande propriedade a um
sistema de redivisão”. Ou ainda logo na seqüência da afirmação acima quando diz que “o plano de
redistribuição da terra agrícola deve atingir todas as grandes propriedades, em maior ou menor extensão
... a grande propriedade não pode ser excluída de um plano de redistribuição sob pena de faltar condição
para essa redistribuição”. Cf. idem. p. 79-80.
288
Idem. p. 81.
289
Em 1940 Duarte defende estas mesmas providencias para incrementar a economia baiana numa série
de quatro artigos publicados no jornal A Tarde intitulados Inquérito sobre a economia baiana. Op. cit.
134
Para o autor, “a reforma de nossa vida agrícola não pode ser atingida ou não pode ser
completada sem participar do movimento em prol da vida municipal”.
290
Como colocamos, Duarte vê nas cidades o espaço por excelência da
manifestação do político. É neste sentido que Duarte vai dizer que a cidade do interior
se constituía na “única ponta de contato mais próxima para o mundo confinado do
campo e, por isso, o centro até onde possa chegar, para atingir a distância da vida rural,
a ação das fôrças de reforma e de mudança”.
291
A questão que se coloca é justamente a da decadência dos municípios. Daqueles
municípios que poderiam atuar como ponte entre os centros urbanos maiores e o
isolamento das grandes propriedades. Isto porque, como explica o autor, a autonomia
econômica das grandes fazendas, desde os tempos da Colônia teria dificultado a vida
urbana no país, impedindo a concentração populacional necessária à formação das
cidades. Era em favor da revitalização dos municípios do interior para que fosse
possível uma maior proximidade do aparelho estatal nos domínios rurais mais
longínquos que Duarte escrevia. Isto porque estas cidades, diz Duarte,
quando represente o mercado de compra e o mercado de venda, o
centro cultural, de educação, de saúde, de informação, a
comunidade de vizinhança, de atividade social e política, é, sem a
menor dúvida, o instrumento de atração e de irradiação das relações
de contacto e de integração indispensáveis à vida rural e àquelas
necessidades humanas que podem satisfazer-se no contraste da
vida urbana.
292
Assim, tanto pelo papel econômico que viriam a desempenhar, também reluz a
importância política e cultural que o município deveria ter para contribuir com o projeto
de reforma e conseqüentemente fazer ruir a ordem privada.
Não obstante a proposta de modificação das bases sobre a qual se ergueu a
ocupação e distribuição das terras e concomitante a tentativa de com isso tentar criar
uma cultura política, diversa daquilo que o autor diz existir até então, não escapa o tom
moderado com que constrõe seu projeto. Se por um lado avulta ao longo do texto o
imperativo de uma “revisão” dos parâmetros que orientam tanto a posse quanto o
trabalho da terra, por outro lado permeia seu escrito a moderação, quase um temor.
Para Duarte, a grande propriedade seria mesmo um “mal” que pedia remédios
verdadeiramente heróicos. E tratando-se de remédios para sanar uma questão social, tais
290
Nestor Duarte. A Reforma Agrária. Op. cit. p. 98.
291
Idem. p. 99.
292
Idem. p. 99.
135
remédios poderiam até mesmo significar “revolução”. No entanto, se apressa Duarte,
“antes de chegar-se até as revoluções, porém, processos que as evitam porque as
substituem”.
293
Duarte está preocupado com o que chama de “reforma social”, mas está atento
no que diz respeito à salvaguarda da propriedade privada ou à sua “adequada”
compensação. Tanto que se ao longo do texto é possível ver a recorrência ao termo
“redistribuição”, o autor vai tratar de não deixar dúvidas quanto à extensão que seu
emprego pode vir a ter. Assim, coloca que a “desapropriação” seria apenas um dos
componentes da reforma. Para o autor, “uma lei de reforma agrária é um plano de que a
desapropriação é, apenas, um meio de execução que não lhe é específico nem
exclusivo”.
294
De acordo com Duarte, seu projeto de lei pretendia de início preparar o espírito
do proprietário agrícola para a intervenção do Estado, além de começar “a realizar um
processo de mudanças de conseqüências tão profundas, sem abalo de prévias
desapropriações indiscriminadas”.
295
Neste aspecto Duarte inclusive preserva a questão
da previa indenização em dinheiro, dispositivo já presente na Constituição.
296
Na verdade um fantasma se insinua, mas não se mostra totalmente no projeto
Duarte. Como coloca, “não se evitam as revoluções senão fazendo-as. O que parece a
tática de antecipá-las, para prevenir o seu deflagrar, não é mais do que o emprego do
tempo próprio para realizá-las subtraindo-lhes a violência”.
297
Levar a efeito a reforma
equivale, para o nosso autor, fazer uma revolução no tempo certo, eximindo-a da
violência, que não seria outra coisa senão “o acréscimo do desespero”. O medo da
“violência” parece ser o medo mesmo de que as coisas se processem sem o
comedimento necessário para preservar a propriedade privada. Daí que seja necessário
antecipar-se, fazer a reforma e fazer com que essa reforma adquira uma face de
293
Idem. p. 24.
294
Idem. p. 86.
295
Idem. p. 86.
296
Como coloca Aspásia Camargo, “apesar da orientação privatista que domina a proposta, e do firme
intuito de estimular, em abril de 1947, a proposição de Nestor Duarte ao Congresso que embora moderada
nos tempos em que posteriormente se definiu a controvérsia pois aceitava o pagamento prévio em
dinheiro sob outros aspectos era extremamente severa: descartava o princípio prezado pelas classes
produtoras de que a Reforma deveria começar pelas terras devolutas e, defendendo a necessidade
premente de incrementar a produção de alimentos pelo estímulo à lavoura de subsistência, recomendava a
desapropriação de terras improdutivas e produtivas para diminuir a incidência da grande propriedade
monocultora...” Cf. A Questão Agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964). In. Boris
Fausto (org). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano. Tomo III: Sociedade e
Política. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997. p. 144-145.
297
Nestor Duarte. A Reforma Agrária. Op. cit. p. 112.
136
mudança radical, de revolução. É o reformador social mesmo que está em cena. Que
não saiu de cena, na verdade.
Como tentamos demonstrar, Duarte pretende com seu projeto uma intervenção
num dos pilares daquilo que definiu como ordem privada. Atingir a grande propriedade
para a partir deste ponto o reordenamento da posse da terra e, em conjunto com
outras providências, encetar mudanças de outra natureza forjar uma cultura
“verdadeiramente política”, um sentimento de participação na política utópica da
cidadania.
Seu projeto de reforma agrária parece apontar para objetivos mais palatáveis no
sentido de contribuir para a desmontagem da ordem privada - se comparados com os
postulados do seu ensaio de 1939. Entretanto, tal projeto não deixa de inscrever-se nas
projeções mais gerais de seu autor, que superar o feudalismo é adentrar no moderno.
Esta passagem não se faria sem a ação política institucional, ação reformista à qual
nosso autor tanto se empenhou. Instalar-se na modernidade é o imperativo, o moderno
figura como uma realidade plenamente realizada e, fora dela, o que sobra são meras
resistência do pré-moderno. É toda a luta por acelerar este processo de inserção que
move Nestor Duarte.
137
Considerações finais
Ao longo deste trabalho tentamos forjar mais uma contribuição para o estudo
desta importante figura do cenário político e intelectual da Bahia nos anos 1930 e 1940
que foi Nestor Duarte.
Em certa medida, creio que nossas conclusões foram sugeridas em cada capítulo,
onde tentei explicitar minhas hipóteses e sustentá-las a partir da leitura do material
utilizado. Assim, no primeiro capítulo é delineada uma imagem de Nestor Duarte, bem
como definida minha perspectiva de leitura de sua obra: figuração do sertanejo e
inscrição do moderno.
Com efeito, este texto deve muito a todos os trabalhos acerca do autor os quais
consultamos, e se por vezes a crítica assume um tom demasiado duro, é no sentido
mesmo de propor uma polêmica, pois penso que o debate é fundamental para
avançarmos no campo historiográfico, e o confronto entre perspectivas distintas deve, a
nosso ver, ser uma constante daí que tento construir um trabalho que se desenvolva
nesta perspectiva de debate teórico-metodológico.
Outra questão fundamental foi a preocupação com as fontes. Talvez também
aqui soe um pouco áspera a forma como conduzo a leitura de alguns textos de Duarte.
No entanto, tomando cuidado para não incorrer em anacronismos, tento estabelecer uma
grade de leitura diversa daquela que observei sendo utilizada principalmente na
utilização da obra literária do autor. Pois a nosso ver, encarar a literatura como
“testemunho” implica sérios problemas teóricos no caminho até uma análise razoável do
texto literário análise por si só já tão complexa, dado o instrumental teórico que requer
e que não é tão familiar a nós historiadores.
Neste sentido, entendendo que o papel da linguagem vai além que meramente
refletir o mundo, postulo, a partir de um leque de autores, a necessidade de ler a
produção literária duarteana fundamentalmente seu romance Gado Humano numa
perspectiva construtivista - numa palavra, tento perguntar por aquilo que Duarte põe em
movimento. Pois se é verdade que o princípio denuncista orientou a feitura do romance
de Duarte assim como de uma leva de obras literárias dos chamados Ciclos
Regionalistas -, também é verdade que importa menos os princípios do que aquilo que
eles fazem funcionar. Em outros termos, não obstante o propósito de “denunciar” a
condição dos sertanejos, o que Duarte também fez foi reeditar todo um complexo
discursivo que fez aqueles sertanejos em nome dos quais falava figurarem enquanto
138
sujeitos inconscientes dos problemas que os afetavam mais diretamente. Ato contínuo,
Duarte também postulou um estatuto ideal para estes mesmos sertanejos, na medida em
que atualizou o discurso que os colocava enquanto núcleo de uma pretendida identidade
nacional.
Desta forma, a proposta de ler a literatura duarteana apenas na perspectiva
denuncista faz perder de vista, acredito, esta ambivalência presente neste discurso
“sertanista”, que tanto afirma quanto nega os “sertanejos”. No mesmo sentido, também
o projeto modernizador de Duarte foi lido a contrapelo. Mais que descrever seus
componentes, tentamos pensar seu significado no contexto 1930/1940, que tipo de
aspirações ele envergava e no que isto implicava. Afinal, como aponta larga
historiografia, este período marca um ponto de inflexão na preocupação com a
conformação de um “país moderno”. E é dentro deste complexo discursivo que Duarte
pode ser situado. Entretanto, seria preciso perguntar pela natureza destes projetos que
visavam fazer o Brasil adentrar a ordem do moderno. Na verdade, seria até mesmo
necessário recuar um pouco e perguntar pela validade dos próprios postulados modernos
no caso de Duarte, principalmente os valores da política moderna -, pois não nos
parece intocáveis valores ou programas como “cidadania” ou “democracia”. Alías seria
preciso sinalizar que estes não vão além do que apontar para uma utopia, traduzindo
aspirações elitistas que pouco ou nada dizem acerca daquilo que se processa no nível
mais elementar da política nível este que é justamente onde se situam e agem os
sujeitos os quais este discurso pretende dar conta.
Assim, em linhas gerais tentei demonstrar em que medida as formulações de
Duarte estavam atravessadas de um lado a outro por estes postulados da política
moderna, e de que forma isto apontava para uma crença na validade universal da
condição moderna.
Com efeito, esta preocupação com a inscrição do Brasil na ordem do moderno
permeava boa parte da produção intelectual dos anos 1930 e 1940. Tentei sinalizar que é
com ela que Duarte está fundamentalmente ocupado. Certamente, esta preocupação
mais macro não resume de todo a sua obra. As lutas políticas locais tiveram sua
importância na produção do autor. Como apontei, os eventos de 1937 (Estado Novo)
parece terem sidos decisivos na formulação de um dos mais importantes textos do autor,
seu ensaio A ordem privada e a organização política nacional. A emergência do Estado
Novo parece ser decisiva. Modernista como era, Duarte não podia aceitar as práticas
que julgava feudal e as quais ele identificava no regime Vargas somando-se a isto,
139
certamente, o fato de que é com este regime que Duarte é afastado da vida política
institucional.
Neste sentido, tentei produzir um texto que estivesse atento àquilo que os
princípios denuncista (que orientava a figuração do sertanejo) e salvacionista (que
sustentava a proposta modernizante) punham em movimento. Ou seja, tentei demonstrar
como as formulações duarteanas acabavam construindo uma imagem do sertanejo que
não ia além do estereótipo, oscilando unicamente entre o signo do atraso e a
representação de uma identidade nacional; assim como seu projeto modernizador
traduzia um esforço pelo reordenamento do poder político institucional, já que os
postulados sobre os quais ele se erguia dizia mais de uma utopia do que de uma política
mundana, além de sugerir, como apontamos, uma crença na validade universal dos
valores da política moderna.
Em resumo, o estudo destes dois temas no interior da obra de Nestor Duarte nos
leva a um conjunto de aspirações do autor que, em dada medida, funcionam como via
de acesso às aspirações de determinado grupo social na Bahia dos anos 1930 e 1940. Na
verdade, pode funcionar até mesmo como índice para pensarmos os anseios da
intelgentsia nacional, que Duarte traduz em seus escritos um largo debate que vinha
sendo colocado em cena por autores como Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre,
Oliveira Vianna, Jorge Amado, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, etc.
No entanto, seria necessário suplementar, este imaginário em torno da
modernização ou do sertanejo forjado e/ou atualizado nos anos 1930 não se esgota em
seus desdobramentos neste período. E é neste ponto que reluz a necessidade de
reafirmar que o trabalho histórico de forma alguma pode pretender estudar qualquer
objeto como um fim em si mesmo. Ou seja, é sempre necessário pensar os
desdobramentos destes temas. Pois estão em cena em Duarte duas preocupações que,
guardadas as devidas especificidades, permanecem na ordem do dia: a preocupação por
atualizar o discurso da identidade nacional e a preocupação em reafirmar a necessidade
de ser moderno. E se no primeiro caso este discurso se estabelece em detrimento da
diferença, cumpre perscrutar suas fissuras e demonstrar sua fragilidade; da mesma
forma que a necessidade de desmontar o consenso em torno da validade universal dos
postulados da condição moderna se mostra hoje ainda mais pertinente. Foi este esforço
que tentei empreender em dada medida.
Com efeito, este trabalho não se pretende conclusivo. Busca antes apontar para
outra leitura possível da obra de Duarte. Pois se é verdade que Duarte pretendeu
140
denunciar uma condição (a dos sertanejos) e instituir um programa salvacionista (o
moderno), também é verdade que ele contribuiu para conformar e/ou reforçar o
imaginário em torno de uma “identidade sertaneja” e em torno da necessidade
inquestionável de ser “moderno”.
141
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