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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Da perversão à sublimação: algumas estratégias das artes visuais para
a criação de lugares de subjetivação e presença de obra nas bordas do
corpo e do feminino.
Alessandra Monachesi Ribeiro
2010
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U
FR
J
Biopolítica e Psicanálise: uma análise histórico-genealógica das formas
de subjetivação na contemporaneidade
Diane Almeida Viana
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Orientador: Joel Birman
Rio de Janeiro
Fevereiro / 2008
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Da perversão à sublimação: algumas estratégias das artes visuais para a criação de
lugares de subjetivação e presença de obra nas bordas do corpo e do feminino.
Alessandra Monachesi Ribeiro
Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
doutor em Teoria Psicanalítica
Orientador: Joel Birman
Rio de Janeiro
Julho / 2010
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Da perversão à sublimação: algumas estratégias das artes visuais para a criação de
lugares de subjetivação e presença de obra nas bordas do corpo e do feminino.
Alessandra Monachesi Ribeiro
Orientador: Joel Birman
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica
do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de doutor em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por :
___________________________ Joel Birman
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______________________________"""""Regina Herzog de Oliveira
"
______________________________"""""Margarida Maria Tavares Cavalcanti
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______________________________"""""Marisa Flórido Cesar
"
______________________________"""""Roberto Corrêa dos Santos
Rio de Janeiro
Julho / 2010
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Ficha Catalográfica
Ribeiro, Alessandra Monachesi.
Da perversão à sublimação : algumas estratégias das artes visuais para a criação de
lugares de subjetivação e presença de obra nas bordas do corpo e do feminino. /
Alessandra Monachesi Ribeiro. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2010.
x, 243f; 29,7cm.
Orientador: Joel Birman Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Psicologia/ Programa
de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 202-212. Anexo : f.213-243.
1.Psicanálise. 2.Artes Visuais. 3.Corpo. 4.Feminino. 5.Perversão. 6.Sublimação.
7.Subjetivação
I.Birman, Joel. II.Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia,
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Da perversão à sublimação :
algumas estratégias das artes visuais para a criação de lugares de subjetivação e
presença de obra nas bordas do corpo e do feminino.
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Resumo
Da perversão à sublimação: algumas estratégias das artes visuais para a criação de
lugares de subjetivação e presença de obra nas bordas do corpo e do feminino.
Alessandra Monachesi Ribeiro
Orientador: Joel Birman
(Resumo da tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutor em Teoria Psicanalítica.)
A presente tese busca perscrutar as possibilidades de subjetivação para o homem
contemporâneo a partir de sua localização no lugar de ausência de obra inaugurado, no
século XVII, pela loucura oposta como desrazão e expandida para o campo das
subjetividades, através de sua patologização e consequente medicalização, ao longo
desse tempo e até nossos dias. Do lugar da ausência de obra, em que a subjetivação mal
tem condições de se fazer, submetidos que estamos ao saber / poder disciplinar que
recai sobre nossos corpos, buscando dominá-los e torná-los servis, a possibilidade que
surge é de que o sujeito advenha ali mesmo, dessa condição de ausência de obra, nas
bordas, no mesmo campo antes consagrado à loucura. Recorrendo às artes visuais, e
especialmente às artes visuais contemporâneas a partir das obras de Nazareth Pacheco,
Cindy Sherman e Marina Abramovic, temos que o domínio das artes quase um lugar
clichê para a existência de obra sustenta também essa tensão entre obra e sua
desaparição nos mostrando que, se há subjetivação possível, ela não pode se fazer senão
nas bordas. Por meio dos trabalhos de tais artistas, temos que tais bordas são aquelas do
corpo e do feminino, lugares de fronteira tanto para o campo da arte quanto para o
campo psicanalítico, de onde o sujeito pode partir em um processo de subjetivação que,
novamente com o auxílio das artistas e daquilo que elas nos indicam através de seus
temas e das formas de composição de suas obras, traça um percurso de um lugar
cristalizado, aprisionado em uma condição perversa, rumo ao restabelecimento da
possibilidade de movimento, trazido pela idéia de sublimação enquanto transgressão e
profanação.
Palavras-chave: psicanálise, artes visuais, corpo, feminino, perversão, sublimação,
subjetivação.
Rio de Janeiro
Julho / 2010
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Résumé
De la perversion à la sublimation: quelques stratégies des arts visuels concernant la
création des lieux de subjectivation et de présence d’œuvre aux bords du corps et du
féminin
Alessandra Monachesi Ribeiro
Directeur de recherche: Joel Birman
(Résumé de la thèse de doctorat présentée au Programme de master et doctorat en
Théorie Psychanalytique de l’Institut de Psychologie de l’Université Fédérale du Rio de
Janeiro en tant qu’une des exigences à fin de recevoir le grade de docteur en théorie
psychanalytique).
Dans la thèse suivante, il s’agit de chercher les possibilités de subjectivation pour
l’homme contemporain à partir son placement au lieu de l’absence d’œuvre inauguré, au
siècle XVII, par la folie opposée en tant que déraison et étendue aux domaines de la
subjectivité, pendant ces temps et jusqu’à nos jours. Du lieu de l’absence d’œuvre, où la
subjectivation n’a presque aucune condition de se faire, une fois que nous sommes
soumis au savoir / pouvoir disciplinaire lequel se donne sur nos corps, cherchant à leurs
dominer et à leurs rendre assujettis, la possibilité est que le sujet y arrive, de cette
condition d’absence d’œuvre, aux bords, au même champ avant consacré à la folie.
Cherchant aux arts visuels et, surtout aux arts visuels contemporains à partir les œuvres
de Nazareth Pacheco, Cindy Sherman et Marina Abramovic, nous arrivons qu’au
domaine des arts presque un lieu cliché pour l’existence d’œuvre soutien lui aussi
cette tension entre l’œuvre et sa disparition, nous montrant que, si une subjectivité est
possible, elle ne peut se faire qu’aux bords. A travers les travaux de ces artistes, nous
arrivons à que ces bords soient ceux du corps et du féminin, lieux de frontière et pour le
domaine artistique et pour le domaine psychanalytique, d’où le sujet peut partir en un
procès de subjectivation lequel, aussi par rapport à ce que nous indiquent les artistes à
partir leurs thèmes et leurs formes de composition de leurs œuvres, trace un parcours
d’une place cristallisée, emprisonnée dans une condition perverse vers le rétablissement
de la possibilité de mouvement, mené par l’idée de sublimation en tant que
transgression et profanation.
Mots-clés : psychanalyse, arts visuels, corps, féminin, perversion, sublimation,
subjectivation.
Rio de Janeiro
Juillet / 2010
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A Juliana Monachesi Ribeiro, quem me
apresentou às artes contemporâneas com
seu olhar sempre generoso e seu coração
sempre disponível...
... e a João Augusto Frayze-Pereira, quem
delicadamente me acompanhou ao longo
de todas as minhas buscas de me fazer
enquanto obra de arte...
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Agradecimentos
A Joel Birman, por sua acolhida generosa e cuidadosa, pela interlocução sempre viva e
pela sustentação de uma aposta, em todos os momentos.
A Christian Hoffmann, por sua recepção calorosa no Centre de Recherches en
Psychanalyse et Médecine da Universidade de Paris VII durante o período de meu
estágio doutoral, por sua disponibilidade constante e seu entusiasmo por um trabalho
conjunto.
A CAPES, por ter me concedido uma bolsa de estudos durante esse doutoramento e
também uma bolsa PDEE durante meu estágio doutoral.
A meus colegas e aos docentes do Programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica
do IP/UFRJ, também pela acolhida e pelas possibilidades de diálogo. E especialmente
aos colegas do grupo de orientação do professor Joel Birman, com os quais partilhei
todo este percurso.
A Isabel Fortes e Marisa Flórido César, que tanto me ajudaram com seus comentários e
sugestões durante o exame de qualificação desta tese. E a Caterina Koltai que também o
fez, informalmente.
A todos aqueles que, delicadamente, me receberam estrangeira na cidade do Rio de
Janeiro, meus colegas de Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, especialmente
Leila Ripoll, Margarida Cavalcanti, Zelia Villar, Nelma Cabral, Isabel Fortes, Sílvia
Alexim Nunes, Cesar Kiraly, Suzana Neves e Vilma Rangel.
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Aos que me propiciaram sentir-me em casa em Paris: Conrad Stein, Sophie de Mijolla-
Mellor, Paul-Laurent Assoun e Georges Didi-Huberman pela acolhida em seus cursos e
seminários e, principalmente, Tereza Pinto, Viviana Senra Venosa e Gael Henrique
Cardoso, pelos sempre bons encontros.
A meus queridos colegas, que sustentaram minhas idas e vindas, assim como
mantiveram as portas abertas de uma interlocução sempre preciosa: os amigos do grupo
de estudos e os colegas e amigos do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos de São
Paulo.
A minhas colegas do grupo de trabalho em Arte e Psicanálise, Sílvia Nogueira e Andrea
Masagão, com quem compartilhei muito do que deu início a esta reflexão. E aos colegas
do b_arco e do Eden, pelas boas parcerias.
Aos artistas que me permitiram acompanhar suas trajetórias e suas obras, especialmente
a Nazareth Pacheco, com sua sempre generosa disposição em se colocar e em nos
colocar em risco.
Aos amigos, aos amigos e aos amigos, por estarem aí, aqui e acolá, nos encontros, nos
diários, no skype, na França, em Lisboa, em Firenze, no Rio, em São Paulo, na
memória, no cotidiano e no fundo do meu peito: Edson, Hudinha, Paulette, Rachel, Joo
Lenore, Adri, Leila, Margarida, Pedrito, Biazinha, Edu, Antônio, Carlos, Jana,
Fabinho...
Ao André, por tudo o que foi possível e por ter me ensinado a rir...
Ao pequeno Marcos, por me fazer descobrir o mais profundo amor...
A meus pais, por sustentarem a cada dia uma confiança e uma aposta em cada um de
meus projetos...
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Sumário
Introdução...................................................................................................................p.12
PARTE I – Ausência de obra....................................................................................p.20
Capítulo 1 - A loucura como ausência de obra............................................................p.24
Capítulo 2 - Medicalização das subjetividades............................................................p.35
Capítulo 3 - A ausência de obra e o biopoder..............................................................p.41
Capítulo 4 - O homo sacer e o estado de exceção........................................................p.47
Capítulo 5 - A obra possível na loucura.......................................................................p.56
PARTE II - A obra de arte na borda........................................................................p.65
Capítulo 6 – Arte e não-arte.........................................................................................p.67
Capítulo 7 – A subjetividade possível quando se perde a possibilidade da autoria.....p.73
PARTE III – Os artistas, os lugares e as obras possíveis........................................p.91
Capítulo 8 – A arte e a psicanálise...............................................................................p.92
Capítulo 9 – O corpo feminino asséptico: Nazareth Pacheco....................................p.100
Capítulo 10 – O feminino como desvelamento: Cindy Sherman...............................p.116
Capítulo 11 – O corpo enquanto feminino: Marina Abramovic.................................p.132
Parte IV – Uma tentativa de dar forma..................................................................p.149
Capítulo 12 – Os temas de borda: o corpo e o feminino............................................p.153
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12.1 – O corpo freudiano enquanto corpo indócil.........................................p.154
12.2 – O feminino psicanalítico....................................................................p.162
12.3 – Corpo e feminino no âmbito das artes visuais...................................p.172
Capítulo 13 – As estratégias de borda: da perversão à sublimação..........................p.180
Capítulo 14 - Sublimação, transgressão, profanação................................................p.192
Referências bibliográficas......................................................................................p.202
Anexo........................................................................................................................p.213
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Introdução
Minha primeira hipótese: o homem contemporâneo se aproxima do lugar que
Foucault atribui à loucura em seu História da loucura na Idade Clássica. Ou seja, a
loucura como ausência de obra seria o paradigma do modo de existência na
contemporaneidade. Todos vivemos no lugar da ausência de obra, no lugar da loucura.
Como isso que seria o contorno dado a um modo específico de existência subjetiva se
tornou, com o tempo, algo tão abrangente a ponto de se ampliar para a constituição da
subjetividade em nossos dias?
Para falar da expansão da loucura como ausência de obra, de contorno específico
para um paradigma relativo à subjetividade de maneira mais ampla, é necessário fazer
um trajeto que, de início, retome a loucura como ausência de obra tal qual proposta por
Michel Foucault e, a partir daí, procure entender como esse modo de apreensão do
humano se amplia para outras manifestações de sua subjetividade, através de dois
movimentos que confluem um na direção do outro, quais sejam:
O primeiro: em sendo o artifício que transforma a loucura em ausência de obra
um movimento que implica uma mudança de mentalidade em relação à loucura, bem
como a criação de dispositivos decorrentes e promotores dessa mudança, podemos
pensar que a loucura como ausência de obra se dissemina por outros campos da
subjetividade na medida em que os dispositivos que sustentam tal posição também o
fazem. Com isso, quero dizer que a loucura como ausência de obra está diretamente
vinculada à sua abordagem por um discurso médico que a postula como doença e,
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assim, na medida em que as idéias de doença e de doença mental se expandem para os
mais diversos aspectos das vidas subjetivas dos homens, é a idéia de loucura como
ausência de obra que as acompanha. Por isso, a expansão dos domínios da doença
mental para além do campo da loucura carrega consigo a idéia de ausência de obra que
se vinculará, também, aos mesmos domínios, tornando doenças mentais ausência de
obra e vice-versa.
Esse movimento é claro naquilo que a psiquiatria, desde seu surgimento, entende
como doença, e que tem visto uma ampliação crescente de termos, aspectos,
sintomatologias e posologias, como o atestam os CIDs e DSMs constantemente
atualizados, na medida em que parece surgir uma nova patologia a cada dia. Aspectos
da subjetividade e da experiência humanas que até então encontrar-se-iam no campo da
‘normalidade’ surgem, ao som de uma pesquisa, um estudo, uma investigação, como as
mais novas epidemias, passíveis de tratamento e de se não erradicação, que um dos
principais ‘problemas’ do campo psiquiátrico jaz em sua impossibilidade de,
obedecendo aos cânones da medicina orgânica, realizar procedimentos que promovam a
cura da doença –, ao menos, controle. E aqui a doença mental como ausência de obra
sustentada pelo saber médico se encontra com a lógica do saber que a promove e
ratifica: o saber disciplinar que busca, com a intervenção sobre as subjetividades
tornadas doenças, controlar mentes e corpos dos indivíduos, em função dos jogos de
poder a que tal saber se submete.
Com a expansão, portanto, do saber médico sobre a doença como ausência de
obra para os mais recônditos aspectos das experiências humanas
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, e com sua
legitimação por um saber jurídico feito em saber moral e disciplinar que ratifica o saber
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Vide, por exemplo, o luto tratado como depressão e, com isso, intolerado enquanto experiência relativa
à perda e à morte, que demanda tempo e lugar para ser vivida, em uma época em que o indivíduo tem
cada vez menos oportunidade para encarar e se entristecer por suas perdas.
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médico como o único possível sobre a doença que acomete o sujeito que esse, ao
ser doente, sai do campo de quem pode saber algo sobre alguma coisa, mais
especificamente, o campo da razão ao qual a loucura foi oposta desde Descartes –, o que
temos é a criação de indivíduos que sabem cada vez menos de si, ou cada vez menos
coisas de si, permanecendo do lado de fora desse saber sobre sua experiência.
É o que acontece com o fortalecimento da psiquiatria organicista, das
neurociências e da psicofarmacologia materializações desse movimento de subtração
do sujeito de sua própria subjetividade : a ausência de obra à qual apenas a loucura
ficara relegada a princípio se expande para outros lugares, agora patologias do existir
humano. Os dispositivos médicos carregam, em sua disseminação, a lógica da loucura
como ausência de obra para tudo aquilo que encontram e os mapeiam como novos
sintomas, síndromes, doenças e afins.
O segundo movimento pelo qual a loucura como ausência de obra se amplia:
noutro sentido, e de encontro ao primeiro, mudanças têm lugar na cultura que empurram
o humano a ser entendido como doente e sem obra para que, antes mesmo que
chegue às circunstâncias de ser tratado como doença, se encontre despersonalizado,
dessubjetivado, vazio de sentido e das condições de construção de singularidade.
Refiro-me, aqui, para além do movimento ocorrido em que tudo se tornou doença, a
outros movimentos que entendo como o “caldo cultural” decorrente e facilitador
justamente de que essa lógica da ausência de obra possa se instaurar. Ou seja, para que o
homem como ausência de obra se insira como paradigma de existência subjetiva em
nossos tempos, não apenas é necessário traçar o percurso pelo qual essa idéia se faz
possível e disseminável mas, também, o solo fértil que ela encontra, nos dias de hoje,
para se colocar com tamanha pregnância. Farei essa trajetória a partir dos textos de
Michel Foucault.
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Temos, então, que a idéia de loucura como ausência de obra se permite ser
tomada como paradigma na medida em que se expande o dispositivo a que a mesma deu
origem e de onde foi originada, qual seja, a lógica da loucura como doença mental. Ao
mesmo tempo, essa loucura / doença mental / ausência de obra pode ser entendida como
paradigma na medida em que a subjetividade humana vem ao seu encontro, não só ao se
tornar doença como, também, ao se deparar com um entorno que a destitui igualmente
da possibilidade de ser subjetividade: aquele da existência de um mecanismo de
controle sobretudo moral e disciplinar que tem por objetivo gerir os seres humanos
desprovidos de sua singularidade.
Se tal panorama das condições de subjetivação na contemporaneidade marcadas
pela ausência de obra faz algum sentido, o que cabe interrogar, a menos que se queira
permanecer apenas no viés de catástrofe que tal hipótese se nos afigura, é: haveria
alguma obra possível alguma subjetivação possível, conseqüentemente nesse estado
de ausência de obra? E, em caso afirmativo, o que diria essa obra existente acerca das
condições para nossas subjetividades e até a respeito dessas subjetividades mesmas?
Qual a subjetividade que se constitui apostando que ela não tenha sido varrida das
possibilidades do homem por ter-lhe sido, de alguma maneira que já abordei logo acima
neste texto, negada? Qual a subjetividade que se constitui no caldo da ausência de obra?
Novamente, aqui, bifurco meu trajeto em duas vertentes:
Uma vertente: ao seguir a linha mesma da loucura como ausência de obra e
perscrutar onde ela recobra seu aspecto trágico, encontro-me com a psicanálise e sua
aposta nas produções da loucura como produções de verdade. No delírio como tentativa
de cura, em Freud (1911), temos a radicalidade de uma reflexão que encontra na obra da
loucura quer seja o delírio psicótico ou o sintoma conversivo das histéricas a obra
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possível, plena de verdade e de sentido, no lugar em que a mesma havia sido
desconsiderada.
Retomo, para esse breve passeio pela loucura como presença de obra no campo
psicanalítico tema que desenvolvi em dissertação de mestrado justamente alguns
trechos dessa mesma dissertação em que o delírio aparece como uma obra possível para
o sujeito marcado por sua ausência. Mas, se a obra possível é o delírio ou o sintoma,
isso quereria dizer que a subjetividade possível em nossos tempos é uma subjetividade
psicótica? Histérica? Se a loucura como ausência de obra é paradigma para as condições
de subjetivação do homem contemporâneo, isso nos levaria a dizer que como prega o
clichê – somos todos loucos?
Estar no lugar da ausência de obra não significa estar atravessado pela loucura
mas, tão somente, estar no seu território. Ocupar o mesmo campo da loucura, no que ela
diz respeito à obra, é transitar pelo lugar em que subjetividade se torna sinônimo de
nada, de fora, de margem. Se a loucura foi colocada nas margens das possibilidades de
ser sujeito, o que temos em nossa aproximação de seu lugar e na medida em que se
constata que obra nesse campo da loucura, como o delírio nos vem apresentar ao ser
ouvido pela psicanálise é que, talvez, a subjetividade possível na atualidade seja
justamente essa que o delírio da loucura provê. Uma subjetividade sem sujeito como
afirma Hoffmann (2007). A constituição de condições para a subjetivação residiria,
nesse contexto, não em construirmos delírios mas em supormos que, se o delírio é obra
possível da loucura, então a obra possível talvez se construa nas margens, no fora, às
margens, no lugar da loucura, no lugar preciso da ausência de obra.
Minha segunda hipótese, então: a obra possível em tempos de ausência de
obra e que aponta para a subjetividade possível seria aquela que se faz às
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margens, de fora, na borda, como o delírio para a loucura. Essa é minha
interrogação e, a bem dizer, meu ponto de chegada. Ponto de chegada porque toda essa
construção acerca da obra possível a partir de sua aproximação da loucura como
ausência de obra foi ressignificada – a posteriori pelo lugar além do delírio, da
loucura e da psicanálise no qual fui procurar obra e subjetividade possíveis em nossos
tempos: na literalidade da idéia de obra presente nas obras de arte da arte
contemporânea, onde está, portanto, o segundo ponto da bifurcação à qual me referi
anteriormente.
Tal deslizamento da obra na loucura para a obra de arte se faz possível na
medida em que, também na arte, o que institui algo como obra é aquilo mesmo que
destituiu de obra a loucura: o biopoder. Assim, olhar para a obra de arte para se
perguntar sobre a obra possível na contemporaneidade é olhar para o outro lado da
moeda da loucura, para aquilo que, instituído, destitui o louco de obra e que se posto
em questão quando a obra da loucura se afirma, a ponto de ser possível, hoje em dia, se
indagar acerca de que hajam obras de arte.
A inversão de lugares entre o instituído e o destituído não é uma inversão de
fato, mas um deslocamento que coloca para a arte a mesma possibilidade que para a
loucura: a de que a obra possa acontecer na borda. Nas discussões atuais acerca da
arte contemporânea, do fim ou do começo da história da arte, com Danto (2006),
Belting (1994) ou De Duve (2005), parece-me que o que está em jogo é esse lugar de
borda no qual a arte contemporânea pode acontecer, lugar limite entre arte e não-arte,
lugar que borra os limites. E, com isso, a obra de arte poderá nos informar sobre esse
lugar de borda para a subjetividade contemporânea, desbravado pela loucura no
momento em que ela foi concebida como fora da razão.
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Assim, a outra vertente pela qual perscrutar a subjetividade possível em tempos
de ausência de obra: é através das obras de arte. Pois que na arte contemporânea se
produzem objetos reconhecidos como obras de arte. está um lugar em que ainda
existem obras e, se é assim, o que elas revelariam ser possível enquanto obra em nossos
tempos? Seria a obra apenas um lugar legitimado pelo biopoder? Ou seria ela aquilo que
ocorre às margens dele? E essas obras expressas nas obras de arte diriam o que sobre a
subjetividade possível a elas? É importante ressaltar: quando digo subjetividade
possível às obras de arte, não me refiro à subjetividade daquele que as criou mas, ao
contrário, às subjetividades que essas obras encontram, interrogam, despertam por sua
própria formulação. A que subjetividades as obras de arte contemporâneas se referem ao
serem o que são enquanto obras? O que elas os ensinam sobre essas possibilidades de
subjetivação?
A fim de circunscrever um pouco esse campo ‘arte contemporânea’ pelo qual
transitar em busca de obras que digam das subjetividades, apresento três artistas que me
levaram umas às outras em uma espécie de livre associação sem, inicialmente, nenhum
fio condutor senão a possibilidade de perscrutar suas obras em busca de alguma notícia
sobre as condições para a subjetividade atual, além do fato evidente de serem três
artistas cujos trabalhos me despertam enorme interesse.
Nazareth Pacheco, Cindy Sherman e Marina Abramovic colocam em discussão,
por meio de suas obras, o corpo e o feminino, sendo que as três produções trazem
notícias de três campos de borda, três margens possíveis para a subjetividade
contemporânea: o corpo, o feminino e o corpo feminino. Está no modo como elas os
trazem como tema de discussão uma indicação preciosa das possibilidades desses
campos enquanto lugares de subjetivação a serem repensados e recolocados em causa
pelo saber psicanalítico. Mais ainda, suas estratégias para tratar desses temas criam uma
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forma que faz referência também aos movimentos de borda: a perversão e a sublimação
como movimentos transgressivos através dos quais os campos de borda o corpo e o
feminino – podem funcionar como possibilidade de subjetivação.
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PARTE I – Ausência de obra: ausência de lugar de existência e de possibilidade de
constituição subjetiva.
Por que, então, ainda falar em loucura?
algum tempo, tenho a impressão de que a loucura deixou de ser uma
questão atual. Não que não incomode mais ao menos àqueles obrigados a tê-la como
companhia – mas parece que saiu de cena frente ao surgimento das novas patologias e já
quase não encontramos quem se interesse em pensá-la. Dedicar-se a estudar a loucura,
atualmente, não apenas tornou-se antigo e fora de moda como, também, sinal de certa
ignorância quanto às problemáticas verdadeiramente dignas de nota e de urgência em
serem compreendidas: as psicopatologias contemporâneas, as depressões, os transtornos
alimentares, a síndrome do pânico, o uso de drogas... Para que se ocupar ou se
preocupar com os loucos, quando o que se apresenta hoje para nós psicanalistas ou
não é um contingente tão imenso de dor e sofrimento que parece que, finalmente, ele
tomou conta da humanidade como um todo?
E o louco? Se não deixou de existir e nem ao menos de incomodar aqueles que
lhes são próximos mesmo com o incontestável avanço da farmacologia na produção
de medicamentos que possam silenciá-lo, cada vez mais efetivos em seu intento o que
sobrou para ele? Desaparecido do campo da produção de conhecimento que ora se
dedicava a pensar a loucura, e também do âmbito do interesse social ou político que
ganha os espaços midiáticos, que lugar ocupa em nossos tempos? E para que nos
dedicarmos, ainda, a pensar sobre ele?
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Tenho como hipótese a idéia de que o louco não aparece mais no campo das
reflexões produzidas pelas ciências humanas acerca de nossos tempos devido a um
duplo movimento. Por um lado, o lugar antes destinado à loucura tornou-se o lugar
de exceção e de ausência de obra inerente e possível para qualquer ente humano na
contemporaneidade, ou seja, nunca o mote “de médico e louco, todo mundo tem um
pouco” foi tão preciso, naquilo que comporta de mais trágico. O louco saiu de cena a
partir do momento em que o tipo de questão, de tensão e de oposição que ele colocava
se dissolveu por estarmos, todos, no mesmo lugar que antes lhe pertencia com quase
exclusividade. O que quer dizer que, talvez, tenhamos nos aproximado da loucura e,
para fazer esta afirmação, considero o lugar da loucura como um certo paradigma da
maneira como pensamos a alteridade.
Por outro lado, e em conseqüência dessa insuspeita aproximação com o lugar da
loucura, parece-me que ocorre um esvaziamento daquilo que esse lugar signifique e
produza. O louco – e todos aqueles que em nossos tempos ocupam o lugar da loucura, o
que talvez possa querer dizer todos nós é esvaziado de sentido não apenas por não lhe
haver mais a oposição que torna necessário falá-lo, mas também porque é justamente
essa a conduta que se construiu, tempos, em relação à loucura. A fala do louco não
tem valor e pode ser desconsiderada. Se agora estamos no lugar da loucura, e nos
dedicamos a falar sobre ela, por que essa fala teria qualquer legitimidade? Nós nos
encontramos submetidos àquilo que criamos para lidar com os loucos e a loucura, e que
posso chamar de dessubjetivação.
Quando o projeto se espalha, tal qual o que aconteceu com a patologização cada
vez mais abrangente do sofrimento e da dor, proposta e executada pelo saber
psiquiátrico, tornamo-nos todos muito próximos do lugar da loucura e,
conseqüentemente, sem voz e sem sentido, assujeitados. Então, para que falar da
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loucura se esse lugar se expandiu a todos na contemporaneidade e se, do lugar de
loucos, não temos qualquer legitimidade ou sentido no que dizemos? Talvez exatamente
por isso. Colocar a loucura em pauta parece-me necessário, urgente e rico para pensar os
nossos tempos.
Para falar sobre aquilo que as produções artísticas contemporâneas nos indicam
acerca de nossas possibilidades de constituição subjetiva como se dando eminentemente
nas áreas de borda e / ou de fronteira, tanto quanto das estratégias para que a mesma se
dê, tentarei retraçar aqui o extenso e tortuoso movimento que fez meu pensamento ao
partir da idéia da loucura como ausência de obra para chegar nas produções de obra – de
arte contemporâneas e naquilo a que elas nos apontam em termos de condições de
subjetivação. Assim, farei uso da idéia de loucura como ausência de obra, presente em
Foucault (1972), não apenas como uma fala que sustenta um lugar para a loucura mas,
ainda, como a proposição paradigmática de um lugar no qual tenderá a se situar a
subjetividade em nossos tempos. Esse esparramamento da condição de ausência de
obra, que a princípio coube apenas aos loucos, se estende pelas mais diversas
manifestações e possibilidades de subjetividade em nossos tempos, tornando-nos, todos,
prisioneiros dessa impossibilidade de obra, lugar por excelência destinado à loucura no
final da Idade Clássica.
É desse lugar, que tentarei mostrar que se esparramou e se tornou paradigma das
condições de subjetivação em nossa contemporaneidade, que se fala e se produz obra
atualmente. Sim, porque, ainda que estejamos colocados na posição de não ter voz, isso
não nos impede que falemos. E, a partir daí, interesso-me em buscar as brechas onde
essa voz aparece, os momentos e lugares em que uma obra se torna possível. E, para
além de indagar acerca das condições que criam tal possibilidade ali, naquele lugar,
naquele momento, interesso-me ainda mais pela subjetividade passível de ser produzida
23"
"
em tais condições de brecha, nesse caldo de ausência de obra, além das estratégias para
que a mesma possa advir.
Não apenas a loucura parece ter muito a nos ensinar, então, com suas errâncias e
formações delirantes, sobre a obra possível desse lugar de exclusão, mas também as
artes parecem ter algo a nos dizer sobre o que se viabiliza em nossos tempos enquanto
obra. E olhando para as artes plásticas especificamente e, ainda mais circunscritamente,
para alguns artistas contemporâneos e suas produções, começamos a vislumbrar que
essa condição de obra ou de constituição subjetiva se eminentemente nas
margens e é com essa marginalidade que ela dialoga. Iniciemos então pela ausência de
obra como condição de impossibilidade subjetiva para o homem contemporâneo.
24"
"
Capítulo 1 - A loucura como ausência de obra, tal qual proposta por Foucault,
como paradigma para o homem contemporâneo.
Para entendermos a loucura como ausência de obra, temos que retomar Foucault
(1972) e o percurso que ele faz a esse respeito na sua História da loucura na idade
clássica, que é que essa proposição aparece pela primeira vez. Por outro lado, e
como essa idéia de ausência de obra foi tomada por Foucault de Maurice Blanchot, é
necessário antes retomar o que o segundo nos informou acerca de tal conceito.
Quando escreve sobre a literatura em seu A conversa infinita, Maurice Blanchot
(1969) nos apresenta a idéia de que a obra é sua ausência, a espera de seu
acontecimento. Como a fala, que é feita a partir da diferença entre o que é dito e o que
se deseja dizer, ou seja, algo não de um ideal de fala perfeita, mas da ordem de uma
ausência de fala aparece como centro mesmo da fala, sua essência sendo sua ausência.
O que é dito está mais próximo de sê-lo a partir do que não chega a ser dito, essa não-
fala dentro da fala.
Da mesma maneira, a obra tem como centro um “desobramento” fundamental,
uma ausência de obra como centro descentrado e que descentra. Ou, como afirma
Blanchot:
“A ausência de obra que é o outro nome da loucura.
A ausência de obra onde cessa o discurso para que venha, fora da palavra, fora
da linguagem, o movimento de escrita sob a atração do fora.” (1969, p.45).
25"
"
A obra se apresenta como tendo uma ligação com o seu contrário: a ausência de
obra é seu centro e o que lhe origem. A ausência de obra, ou a loucura, poderá ser
tomada como o fora da obra, da linguagem, da razão, como nos mostrará Foucault em
seguida necessário e interior à obra propriamente dita, mostrando-nos que uma obra
não poderá ser concebida que não a partir de sua ausência.
O lugar de ausência aparece como lugar de origem da obra e da fala: a obra não
será possível que não nesse lugar de sua ausência. Esse paradoxo que faz da obra quase
uma conseqüência da ausência de obra nos será rico por aquilo que ele indica a respeito
das condições de subjetivação contemporâneas. Mas sigamos ainda um pouco esse
caminho da obra e de sua ausência.
Se retornamos a Foucault (1972), nos apercebemos que sua aproximação da
idéia de obra e de sua ausência torna a discussão arqueológica, à medida que ele fala de
um movimento que rompe essa fluidez descrita por Blanchot entre a obra e sua
ausência, tornando-as oposição entre lugares fixos, a partir do momento em que a
loucura como ausência de obra se cristaliza como oposição à razão. Trata-se
precisamente dessa ruptura, dessa perda de contato entre a obra e sua origem
“desobrante” o que o interessa, além do contexto e dos jogos de poder e saber
incluídos.
Foucault tem, por projeto filosófico, a crítica às categorias de sujeito e de
verdade.
2
Opondo-se a essa tradição filosófica da modernidade, ele promove um
descentramento em direção aos jogos de verdade encenados a partir das relações de
saber / poder que permeiam tanto as condições de subjetivação quanto o campo dos
acontecimentos sociais e históricos. Isso quer dizer que Foucault buscará se focalizar,
"""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""
2
Para tratar desse tema do projeto filosófico foucaultiano baseio-me, principalmente, nas leituras feitas a
esse respeito por Birman (2000), Machado (2006) e Viana (2008).
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"
no seu percurso da fluidez entre obra e ausência de obra para a oposição entre as
mesmas, naquilo que tal trajetória ilustrada, inicialmente, pela problemática da
loucura – desvela das relações de saber e poder aí implicadas.
O poder produz relações de dominação por meio de táticas e operadores de
sujeição que Foucault busca enunciar e que são o que produz sujeitos. O saber, sem o
qual não poder, e que cria os discursos para que o mesmo se efetive em dominação,
eis os três pilares de produção de subjetividades e que implicam que, para o autor, o
sujeito é muito mais assujeitado e atravessado do que sua nomeação nos permite supor.
Como acontece, também, na psicanálise, ao que retornarei posteriormente. Birman
(2000) afirma:
“Seria apenas nessa articulação tensa entre saber e poder que se enunciaria
finalmente a noção de verdade, perdendo esta então qualquer marca de absoluto e de
inatingível, como fora estabelecido numa certa tradição filosófica. A leitura
transcendental da verdade presente na tradição metafísica do Ocidente foi, enfim, não
apenas colocada em questão, mas também ferida de morte na aventura trágica de
Foucault.” (p.25).
O saber, articulado com as estratégias e táticas de poder, passa a ter um alcance
ético e uma implicação política. E é acerca desse saber / poder que institui a oposição
obra / ausência de obra que Foucault trabalhará no seu texto acerca da loucura.
Assim, em seu História da loucura na Idade Clássica (Foucault, 1972), onde se
trata de esclarecer a situação da loucura na modernidade e a maneira como essa situação
se articula com o nascimento e o desenvolvimento do saber psiquiátrico, temos que a
idéia de loucura como ausência de obra está ligada a uma construção que culmina no
saber psiquiátrico entendendo a loucura como doença mental.
27"
"
Temos o louco, na Idade Média, como o prisioneiro da passagem, aquele que
está fadado ao movimento e à errância, o passageiro por excelência, confinado em um
espaço entre lugares aos quais não pertence. O louco ligado à água da nau dos loucos
substitui o tema da morte, conservando a mesma inquietude ao remeter ao vazio da
existência. Mas esse vazio, na loucura, é como uma morte em vida, uma denúncia da
condição do homem enquanto morto-vivo. Há, nas manifestações artísticas que tratam
do tema da loucura nesse período, uma oscilação entre tomá-la como uma experiência
cósmica na proximidade das formas fascinantes ou, seu oposto, como uma experiência
crítica, na distância intransponível da ironia. Figura da visão cósmica e movimento da
reflexão moral, a loucura guarda em si um elemento trágico, bem como um aspecto
crítico.
A experiência trágica da loucura diz respeito a seu saber, um saber secreto e
inacessível, fundado na realidade, que traz notícias da verdade por meio do delírio do
louco. a consciência crítica da loucura diz dela que ali não saber algum, mas
ignorância. Trata-se de uma ordem equivocada e própria que se impõe ao homem, em
que o louco toma o erro como verdade e a mentira como realidade.
Em cem anos, esse confronto desaparece com a inserção da loucura no embate
da verdade e da razão como sua oponente. A Renascença atribui maior privilégio à
consciência crítica da loucura, enquanto a experiência trágica fica obscurecida,
ocultada. Loucura e razão passam a se relacionar, no Renascimento, uma como medida
da outra, como recusa e fundamento da outra. É o pensamento cristão que conjura a
loucura como poder abafado e revelação. Ela é vinculada à razão e perde sua existência
absoluta tornando-se uma das suas formas, que tem sentido e valor no campo da
mesma. Ou seja, com o Renascimento, portanto, inicia-se um processo de dominação da
loucura pela razão.
28"
"
semelhança entre loucura e razão. A primeira sanciona o esforço da segunda,
porque dele faz parte. Seus traços são também os instrumentos mais aguçados da razão.
A razão tem que se arriscar na loucura para realizar sua obra. Essa loucura figura da
razão é, assim, uma maneira de novamente conjurar o que poderia ser exterior, hostil,
transcendente. Ela é posta no âmago da obra da razão, como um momento essencial de
sua própria natureza.
Na Idade Média, a loucura vai da nau ao hospital, inserida no campo da razão,
domesticada. O internamento é a seqüência do embarque. A loucura controlada é a
medida da razão e da verdade. Representa a superfície das coisas, o equívoco e a ilusão,
tudo o que articula a verdade e a aparência. A Renascença liberta a loucura na medida
em que domina sua violência. Ao longo da era Clássica, ela será reduzida ao silêncio, na
medida em que será equivalente ao sonho e, também, ao erro. Ou seja, a loucura
vinculada à razão se movimentará no sentido de uma inclusão em direção à sua
exclusão, ganhando fixidez enquanto campo de oposição à segunda. História da loucura
conta acerca desse movimento que ela fez em relação à razão até situá-la como ausência
de obra.
Descartes é o primeiro a afirmar a loucura como condição de impossibilidade do
pensamento, ou seja, é o primeiro a excluí-la da ordem da razão. Com isso, a
problemática da loucura se colocada numa região de exclusão, na medida em que
está fora do domínio no qual o sujeito detém seu direito à verdade, fora do domínio da
razão. Se na Renascença era possível pensar em uma razão não razoável, Descartes o
torna impossível.
A partir da segunda metade do século XVII, a loucura será vinculada aos
internamentos, tornando-se esse seu local natural. A loucura é percebida,
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"
institucionalizada, designada e excluída não a partir de uma ciência médica, mas de uma
percepção social dispersa por várias instituições da sociedade, tais como a igreja, a
justiça e a família. E os critérios para designá-la referem-se à transgressão das leis da
razão e da moralidade, não à medicina. A loucura participa dos obscuros poderes da
miséria e aparece dessacralizada na medida em que a própria miséria sofreu essa
degradação que a fez ser encarada apenas no horizonte da moral. Sobre a loucura, nasce
uma nova sensibilidade não mais religiosa, mas moral.
Com a “Grande Internação” do século XVII, o que se tem é a mudança de
percepção em relação à pobreza na qual a loucura fora incluída tornada negativa,
desordem moral, obstáculo à ordem social. Ou seja, o que coloca o louco no campo da
reclusão não é um pensamento de ordem médica, mas de ordem moral.
Na leitura feita por Roberto Machado (2006) dessa obra, ele salienta que o “(...)
ato de internar não é algo negativo, no sentido de unicamente separar, isolar, excluir. É
muito mais do que isso: ele é positivo, não no sentido, é evidente, de um juízo de valor,
mas no de criador de realidade e de saber. Institui um outro da sociedade, um
estrangeiro aos olhos da razão e da moral, ao mesmo tempo que organiza um domínio
novo da experiência que tem unidade e coerência (...)” (p.58).
O que é isolado no internamento clássico, o que é objeto de reclusão não tem a
ver com uma doença e nem é do âmbito da medicina. Trata-se, sobretudo, daquilo que
está marcado pela desrazão o que é excluído. A razão é o critério de classificação dos
sujeitos, bem como de seu isolamento, e se é por meio desse critério moral que se faz a
distinção do louco no lugar da desrazão, não é apenas porque a razão contorna e
constitui o que lhe escapa mas, ao contrário, porque esse “de fora” é o que lhe permite
30"
"
garantir sua origem. A razão se contorna no exato momento e na exata medida em que
cerca o seu “de fora”.
Foucault (1972) afirma que o século XVIII percebe o louco, mas deduz a
loucura. Enquanto o louco enclausurado se articula à razão em forma de desrazão, a
loucura objeto do conhecimento médico prescinde do louco para se dizer. Ela o faz, pela
medicina, a partir da doença em geral, enquanto o louco é dito através de sua relação
com a razão.
A medicina clássica é classificatória e se interessa pelo sintoma enquanto
fenômeno aparente que produz um conhecimento superficial. É essa medicina que tenta
integrar um conhecimento da loucura, não sem enfrentar dificuldades.
Mas mesmo com a distância entre o louco enclausurado e a loucura objeto do
conhecimento médico, um ponto de convergência entre ambos que é a razão. Isso
porque o saber sobre a loucura está fundado na razão tanto quanto o louco é exterior à
mesma enquanto dessarazoado. A loucura como doença mental submetida ao poder e ao
saber médico psiquiátrico não é ponto de partida, mas ponto de chegada da História da
loucura. Foucault se interessa em esclarecer a situação da loucura na modernidade, que
diz respeito eminentemente à psiquiatria mas, para isso, vai se estender naquilo que a
antecede e daí seu percurso pela loucura na época clássica. Ele quer entender “(...) as
condições históricas de possibilidades dos discursos e das práticas que dizem respeito
ao louco considerado como doente mental.” (Machado, 2006, p.52). Para isso, a loucura
como desrazão não é o bastante, mas será necessário também mapear o movimento que
transforma tal oposição em fixidez de lugares e separação definitiva.
O ponto decisivo é a aparição de uma consciência histórica da loucura. O meio
social afasta o homem da natureza e possibilita a loucura, que passa a ser perda da
31"
"
natureza e da natureza do homem. Antes de ser doença, então, a loucura relaciona-se à
sociedade e torna-se alienação.
“A loucura não é mais fundamentalmente erro, como na época clássica, é um
produto da relação entre o homem e o mundo que afasta, distancia o homem de si
mesmo, aliena sua natureza na medida em que ‘o homem, na loucura, não perde a
verdade, mas sua verdade, não são mais as leis do mundo que lhe escapam, mas ele
mesmo que escapa às leis de sua própria essência.’ (Foucault, 1972, p.400). O
fenômeno da loucura se passa nos íntimos do próprio sujeito. Dizendo respeito à
verdade do homem, a loucura se interioriza, se psicologiza, torna-se antropológica.”
(Machado, 2006, p.66).
Assim, no século XVIII, a loucura como alienação, por meio de um processo
que a medicaliza, objetiva e inocenta. A medicalização, nesse momento, diz respeito ao
aparecimento da reclusão como tendo em si significação curativa, em que o
internamento é possibilidade de eclosão da loucura em sua verdade. A objetivação da
loucura, na medida em que se torna objeto de conhecimento no espaço de reclusão, faz
com que ela se aliene de si mesma ao se tornar objeto. E, por fim, seu inocentamento
ocorre na medida em que a consciência pública torna-se instância de julgamento,
psicologizando e interiorizando o crime. A loucura como verdade das motivações
subjetivas do crime apela para a inocência e a irresponsabilidade do sujeito alienado.
Ao se deslocar de desrazão a alienação, a loucura prepara o caminho do
surgimento da psiquiatria. O conhecimento do homem, que se inaugura no século XIX,
passa pelo louco do mesmo modo que o conhecimento de sua verdade passa pelo
alienado. Assim, Foucault “(...) mostra sucessivamente como a doença, isto é, a falta e a
culpabilidade, se inscreve no corpo, que encontra o castigo no próprio organismo; como
32"
"
a loucura expressa, pela conduta – sem mesmo afetar a razão - , a subjetividade,
exterioriza a interioridade; enfim, como a loucura, ao se manifestar unicamente em um
tipo de comportamento, dá ao indivíduo a possibilidade de aparecer como outro que não
ele mesmo.” (Machado, 2006, p.71).
Ou seja, o conhecimento objetivo da verdade do homem passa pela consideração
do louco, pois é como loucura, no sentido de patologia, que essa verdade se objetiva
pela primeira vez. Eis o lugar da psiquiatria como objetivadora dessa verdade científica.
No século XIX, é a terapêutica daquilo que se institui como hospício que
encontra sua justificativa na nosografia psiquiátrica. Foucault (1972) se interessa por
sua organização e funcionamento, pelo modo asilar, por seus métodos terapêuticos e
pela nova percepção da loucura que instaura.
“O que tudo isso nos ensina senão que a psiquiatria é uma terapêutica sem
medicina, que os procedimentos utilizados como curativos são efetivamente técnicas de
controle, relação de forças unilaterais formuladas em termos de autoridade e
dominação? A ação da psiquiatria é moral e social, não depende necessariamente, para
sua eficácia, de competência científica: desalienar é instaurar uma ordem moral. A
medicina mental é uma terapêutica, uma educação moral, característica que, até nossos
dias, ainda a acompanha. O que, de um ponto de vista teórico ou conceitual, só é
possível porque o louco não é mais, como na época clássica, um desarrazoado, isto é, o
outro do pensamento e da moral, mas um alienado, ou seja, alguém teoricamente
passível de recuperação, de transformação ou de cura, pois sob a alienação existe, no
mais íntimo do homem, algo inalienável que é explicitado pela psiquiatria em termos de
natureza, verdade, razão, moral social etc. Se a loucura é alienação, sua cura é retorno
33"
"
ao inalienável pela ação exercida pelo hospício. Chegou para o louco, e cada vez mais
para todos nós, a era do patológico.” (Machado, 2006, pp.72-73).
Se me detenho nessa citação de Machado acerca do movimento construído por
Foucault em seu História da loucura é por pensar que ele sintetiza bem o ponto a que o
mesmo chega com sua arqueologia que permite mapear o surgimento do saber e do
poder psiquiátricos. Com o advento da psiquiatria, o que se tem é o deslocamento de
uma condição de existência tal qual a loucura para o campo da doença mental, ou seja, a
patologização do louco. Movimento paradigmático que permitirá que tal deslocamento
do campo da existência para o da doença possa se desdobrar da loucura a diversos
outros domínios da existência subjetiva, patologizando a subjetividade propriamente
dita, encerrando-a na condição de doença. O que começa com a loucura se estende para
os demais universos do acontecer humano e daí é possível afirmar, como propus no
início deste trabalho, que aquilo que Foucault mapeia em relação à loucura é o lugar que
ocuparemos todos na contemporaneidade: o lugar da ausência de obra.
A tradição psiquiátrica fundou-se na transformação da loucura em alienação
mental, correlato de sua medicalização e da constituição do asilo enquanto espaço
terapêutico para sua cura. A loucura deixou de dizer a verdade na medida em que
deslizou e foi aprisionada no campo da desrazão na Idade Clássica, opondo-se à razão
como lugar do dizer verdadeiro. Nas palavras de Birman (2000):
“Seria a constituição de uma cultura fundada na razão que teria conduzido a
loucura para sua exterioridade e para ser inscrita além das suas fronteiras, sendo aquela
enunciada definitivamente como sendo o Outro da razão e inscrita no território da
desrazão.” (p.36).
34"
"
A experiência trágica da loucura ficou relegada a se dar em sua periferia, em
suas bordas, prevalecendo sua consciência crítica exacerbada por meio da “(...)
instrumentação terapêutica da psiquiatria contemporânea, realizada através da
psicofarmacologia, que silencia a produtividade delirante da loucura e retira desta
qualquer dimensão de produção enunciativa.” (Birman, 2000, p.39). A loucura como
ausência de obra se realiza no movimento que conduz ao surgimento do saber
psiquiátrico, que vai se expandir a seguir por todos os campos da subjetividade. É sobre
o que me deterei a seguir.
35"
"
Capítulo 2 - Como esse lugar da loucura se espalha para os vários campos da
subjetividade. Loucura como doença outros modos de existência como doença
traços subjetivos como doença. Medicalização das subjetividades.
O movimento que torna a loucura ausência de obra, tão bem mapeado por
Foucault, conforme acabo de retomar, se espalha para muitos outros campos da
subjetividade. Ou seja, o que ocorreu com a loucura se dará com outras formas de
existência psíquica, confinando-as no mesmo lugar de não-obra que a loucura passou a
ocupar desde a idade clássica. Isso se dará, principalmente, pela disseminação da idéia
de doença mental para muitos âmbitos da subjetividade humana bem como, e em
conseqüência disso, pela medicalização dessas subjetividades.
O discurso médico, aliado ao discurso jurídico como discursos disciplinares,
foram os responsáveis tanto pela instauração da loucura no lugar da ausência de obra
quanto pela circunscrição de vários campos da subjetividade a esse mesmo estatuto de
despossessão de si. Isso foi conseguido através das formas cada vez mais eficazes de
controle dos sintomas desenvolvidas pela psicofarmacologia, bem como pelas
explicações cada vez mais precisas das neurociências, dispensando desse saber sobre a
loucura e sobre o sofrimento psíquico tudo o que diga respeito à subjetividade, à
história, ao contexto e, enfim, à fala do doente.
Acompanhemos a maneira como Joel Birman (2001, 2003b) descreve essa
disseminação da lógica da ausência de obra para todo sofrimento psíquico, a partir da
reflexão que faz sobre o movimento de trânsito da psiquiatria próxima à psicanálise a
36"
"
uma psiquiatria organicista, sustentada pela psicofarmacologia e pelas neurociências.
Segundo ele, é nos anos 50 e 60 que a psicofarmacologia começa a oferecer à
psiquiatria um fundamento biológico, tanto quanto um instrumento terapêutico. Desde
seu surgimento, ela tentara aplicar nas perturbações do espírito a mesma lógica de
funcionamento e de intervenção das perturbações somáticas sem sucesso. A psiquiatria
nunca conseguiu se fundamentar com os saberes advindos da racionalidade médica. O
discurso da anatomoclínica não funcionava para o campo psiquiátrico e o tratamento
moral, base de sua terapêutica, afastava-a ainda mais dos cânones médicos. Com a
psicofarmacologia e o desenvolvimento das neurociências, ela pode se aproximar,
finalmente, da medicina somática, transformando-se em ciência e em especialidade
médica.
A psicofarmacologia, que incide inicialmente sobre as psicoses, não se
restringirá a elas. Com a descoberta dos ansiolíticos e dos antidepressivos, ela se torna o
suporte da prática psiquiátrica que se afasta da psicanálise, seu ponto de apoio até então.
Seguindo os passos da medicina somática, a psiquiatria passa a valorizar a
funcionalidade da doença, a disfunção que deve ser regulada pela medicação. A história
da enfermidade e a do enfermo não interessam, bem como qualquer construção
temporal a seu respeito. A doença psíquica deixa de ser produto de uma história para se
tornar algo avesso à historicização. Nas palavras de Birman (2001):
“A moderna psiquiatria biológica eliminou completamente a presença da
experiência subjetiva do doente no acontecimento da enfermidade. Para a psiquiatria
biológica, o sujeito é mero suporte de algo bem mais vasto que lhe acontece e que dele
se apossa, advindo de uma disfunção produzida em seu organismo (...). A história da
existência do sujeito nas suas complexas relações com o espaço social em que ele se
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"
inscreve deixa de ter qualquer relevância para a leitura do que ocorre na profundidade
do organismo, em particular, no funcionamento do sistema nervoso (...).” (p.24)
Com isso, o sofrimento psíquico e as queixas do doente deixam de ser
considerados signos de uma história, perdendo sua positividade e reduzindo-se a uma
negatividade absoluta em que se tornam apenas signos de transtornos neuro-hormonais.
O silenciamento do doente esvazia sua história, o que faz com que a doença perca sua
inscrição no registro da linguagem. Não existe qualquer saber sobre a doença da parte
do doente, mas apenas da parte do médico e do seu discurso científico. Com essa perda
de saber, gera-se uma ausência da subjetividade nas perturbações psíquicas.
A subjetividade, afirma Birman, nem ao menos existe mais nessa psiquiatria
biológica. Com sua concepção sobre as perturbações do espírito, não resta lugar para a
subjetividade, uma vez que o doente está despossuído da mesma pelo simples fato de
seu adoecimento. Temos, então, uma forma de conhecimento que, para além de
classificar e suprimir, pouco nos permite compreender acerca da loucura. Ela realiza
uma pulverização do sujeito em uma diversidade de comportamentos e, com isso, perde
a perspectiva de que está tratando de uma pessoa, de um sujeito global que, acima de
tudo, tem algo a dizer sobre si mesmo e sobre sua doença. O que se perde
gradativamente, portanto, quando o saber psiquiátrico passa a versar sobre a loucura, é
sua dimensão subjetiva e a possibilidade de que ela faça algum sentido para quem está
acometido dela.
Dos tempos de Kraepelin até os dias de hoje quando foi atingida a
predominância do saber psiquiátrico sobre todos os outros acerca da loucura e quando a
psicofarmacologia sedimentou-se como o viés mais adotado para entender e tratar em
psiquiatria –, tal proposição do louco como um não-sujeito, com um não-saber sobre si
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"
mesmo fez acentuar-se, intensificando mais e mais sua condição de alienação. Para
os psiquiatras organicistas da atualidade, a causa do sofrimento psicótico provém de
uma “(...) ‘alteração funcional do cérebro’, no nível dos neurotransmissores. Daí o
recurso medicamentoso a ser prescrito para quem quer que seja o transtornado
(Violante, 2002, p.23). A subjetividade fica excluída da possibilidade de indagar, saber
e tratar do próprio mal-estar que a acomete, o sujeito está de fora do saber sobre sua
loucura.
“Com efeito, o investimento maciço no medicamento não é ingênuo, como se
sabe, mas provoca conseqüências evidentes. Assim, quando se investe nos sintomas e
nas síndromes mentais como se fossem comparáveis ao que se encontra no campo da
medicina somática, o que se realiza ativamente é a rasura e o silenciamento da história
de uma existência. Elimina-se, com isso, conseqüentemente, a singularidade do sujeito.”
(Birman, 2002, p.50)
Com o advento da psicofarmacologia, a loucura não é compreendida em sua
positividade, ela não tem mais nada a dizer. De forma ainda mais abrangente, nenhuma
subjetividade tem algo a dizer, posto que tal supressão não é característica apenas da
forma como se maneja a loucura na atualidade. O sujeito e seus sentidos são
inconvenientes a serem eliminados juntamente com seus sintomas e o que resta é
alguém esmagado, extirpado de si mesmo e daquilo que lhe seria próprio, dada a sua
condição humana: o sofrimento, o conflito, a morte. Resta um deprimido, em uma
sociedade que faz do não-saber sobre si e do não sofrer ideais a serem alcançados. Nas
palavras de Roudinesco:
“O medicamento sempre atende, seja qual for a duração da receita, a uma
situação de crise, a um estado sintomático. Quer se trate de angústia, agitação,
39"
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melancolia ou simples ansiedade, é preciso, inicialmente, tratar o traço visível da
doença, depois suprimi-lo e, por fim, evitar a investigação de sua causa de maneira a
orientar o paciente para uma posição cada vez menos conflituosa e, portanto, cada vez
mais depressiva. Em lugar das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência de
desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da história.” (2000,
p.41)
O mesmo pode ser pensado a respeito do louco, agora disseminado como
psicótico, bipolar, melancólico e outras tantas categorias: na medida em que a
medicação é, muitas vezes, usada como “camisa-de-força” química para um conflito, o
que esse sujeito perde é sua possibilidade de confronto com o fora de si a partir de uma
produção própria. A realidade externa não o toca nem o perturba mais, uma vez que
suas produções psíquicas (seus delírios, por exemplo) são apagados e não o que faça
frente às demandas do mundo. Ele se dispersa no nada, na ausência de criação, na
impossibilidade de construir história e significação para sua existência. Ou seja, perde
sua subjetividade e, com isso, a condição de se relacionar com o mundo e vice-versa.
A individualidade do sujeito não interessa mais para a especificidade da doença.
A psicopatologia atual pretende ter um fundamento biológico, encontrando nas
neurociências os instrumentos teóricos que orientam a construção das explicações
psiquiátricas. É delas que advêm as causas das perturbações do espírito, reduzindo
funcionamento psíquico a funcionamento cerebral e, com isso, explicando suas
particularidades a partir da bioquímica.
Essa transformação epistemológica produz mudanças terapêuticas, colocando a
psicofarmacologia como seu referencial fundamental e a medicação como modalidade
principal de intervenção. A clínica e a psicoterapia transformam-se em elementos
40"
"
secundários, se não dispensáveis. A história que fica relegada ao esquecimento no que
tange à constituição subjetiva articula-se com a idéia de obra e de ausência de obra, uma
vez que a segunda diz respeito a um indivíduo sem história, sem tempo, sem memória,
sem saber sobre si. Há, conseqüentemente, uma relação entre a obra, o tempo e a
história, parecendo serem os dois últimos requisitos básicos para a produção da
primeira. Isso nos instiga a abordar o outro movimento que torna a loucura como
ausência de obra paradigma para a subjetividade contemporânea: além da medicalização
das subjetividades, os (não-) lugares e (im)possibilidades garantidos ao ser humano por
outros movimentos e discursos de nossos tempos. Transitaremos, então, pelo campo
daquilo que Foucault chama de biopoder.
41"
"
Capítulo 3 – Outras aproximações entre as subjetividades contemporâneas e o
lugar da loucura: a ausência de obra e o biopoder.
Apontei, anteriormente, para um duplo movimento que faz com que o louco e a
loucura não sejam mais objeto de nossa atenção ou reflexão:
- o lugar antes destinado à loucura, um lugar de exceção, tornou-se lugar comum onde
todos habitamos e, em conseqüência disso,
- a maneira silenciadora e desqualificadora com que outrora tratávamos o louco se abate
sobre toda a extensão desse lugar, o que gera um silenciamento e um esvaziamento de
sentido.
O homem moderno, segundo Foucault, é aquele da vida biológica da qual se
ocupa o poder soberano a fim de garantir a saúde da nação. É através do controle
disciplinar, estabelecido pelo biopoder por meio da criação de várias tecnologias, que o
Estado cria os corpos dóceis dos quais ele necessita para se manter enquanto tal.
Foucault analisa a maneira pela qual o poder penetra nos corpos dos sujeitos e nas suas
formas de vida, através das técnicas políticas e o que nos interessa ainda mais das
tecnologias do eu de onde o processo de subjetivação é feito de forma a vincular o
indivíduo a um poder de controle externo.
Foucault (1976
a
) mostra que na Idade Clássica vigora o poder soberano,
centralizado na unidade do Estado e regido pela lei, e que o percurso que cria as
subjetividades modernas partirá de práticas discursivas pautadas pelas mudanças nas
relações de saber e de poder que darão lugar a uma sociedade disciplinar, pautada pela
42"
"
norma, em que o controle da vida aliado ao poder soberano sobre a morte são as linhas
de forças segundo as quais os sujeitos e as sociedades terão que se conformar.
3
Temos, então, que um discurso histórico-político sucede ao discurso filosófico-
jurídico que sustentava o soberano no século XVII, esclarecendo as relações entre lei,
soberano e poder em termos de dominação. Essa discursividade que operou a crítica do
Estado foi desmantelada, no entanto, no século XVIII, pela assunção de um
disciplinamento dos saberes no campo que então emergiu como científico. Os saberes
foram organizados e hierarquizados em disciplinas, dando origem a um novo tipo de
poder.
“Trata-se do poder disciplinar, que introduziu nas sociedades ocidentais
modernas uma nova mecânica do poder, voltada para a extração e produção eficaz de
força e de trabalho, tendo, por esse motivo, os corpos dos indivíduos como meio de
incidência e de coerção. Essa nova configuração é claramente oposta a do poder
soberano que visava à exploração de bens e riquezas da terra, exercendo-se através da
figura física do soberano via tributos e obrigações.” (Viana, 2008, p.42).
No campo do dispositivo disciplinar, desliza-se do direito à norma, cuja diretriz
não é mais jurídica, mas biológica. Por isso que, no escopo da disciplina, a dominação
recairá sobre os corpos dos indivíduos, tornados organismos. A medicina terá um papel
preponderante nessa constituição de procedimentos de normalização e regulação social.
Na modernidade, a vida torna-se fonte da riqueza das nações. Os mecanismos de
poder recaem sobre a vida, quando anteriormente o poder soberano se abatia apenas
"""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""
3
Seguirei, para esse percurso pela constituição das possibilidades de subjetivação na modernidade, além
dos textos do próprio Foucault mencionados diretamente ao longo deste capítulo, outros de sua autoria
tais quais Foucault 1973-74, 1974-75, 1975-76, 1976b e1978-79, a sistematização que deles fez Viana
(2008), além das contribuições para essa discussão propostas por Birman em diversos momentos de sua
obra, especialmente em 2000, 2003b e 2006.
43"
"
sobre a decisão acerca da morte. A questão da vida, que se torna então um capital a ser
controlado pelos procedimentos de poder e saber sobre os corpos faz com que ela, “(...)
e não mais a morte passa a ser o objeto de poder. Eis então o surgimento do que
Foucault chama de bio-poder, um poder sobre a vida, cujo lema se enuncia como fazer
viver e deixar morrer, contrapondo-se ao lema soberano fundado sobre a morte.”
(Viana, 2008, p.43).
O poder que assume a função de gerir a vida o faz a partir de duas estratégias: a
anatomo-política do corpo humano que o supõe como máquina de produção e a
biopolítica da população, que se centra sobre o corpo espécie.
A disciplina nasce do confinamento, que substitui a exclusão que visava à
segregação do grande enclausuramento pela prisão como meio de correção, vigilância e
punição trazidos também pela criação do asilo. Ela recai sobre o indivíduo em situação
de vigilância constante, propondo-se como ortopedia que busca criar indivíduos dóceis
através precisamente da correção, da vigilância e da punição. Indivíduos dóceis com
corpos dóceis, que podem ser submetidos, utilizados, transformados e aperfeiçoados.
Segundo Foucault (1975):
“O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do
corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o
torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de
seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia
política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela define
44"
"
como se poder ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam
o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e
a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma
palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por uma lado uma ‘aptidão’, uma
‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência
que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita.” (p.127).
Em O nascimento da clínica (1963a), Foucault mostra como o projeto de
medicalização que produziu a modernização do social faz parte desse biopoder, do
poder que se abate sobre a vida e os corpos dos indivíduos. Ele se exerce voltado para a
manutenção da existência biológica. A biopolítica designa exatamente a entrada da vida
no âmbito da política, nos cálculos de poder e na produção de dispositivos que
regulamentam o controle e as transformações da vida humana.
A medicina tem lugar de destaque nessa biopolítica, na medida em que é por
meio da medicalização das subjetividades que a gestão sobre os corpos e sobre os seres
se dá. Ao voltar-se da morte para a vida, o poder disciplinar tem acesso ao corpo, o qual
busca governar através das estratégias de medicalização.
“Essa segunda tomada de poder, que se sobrepõe à tecnologia disciplinar, se
dirige não ao homem-corpo, mas ao homem ser-vivo, homem-espécie, configurando-se
como mortificante, orientando-se para uma biopolítica da espécie humana. Nesse
momento, a atenção se volta para os fenômenos da população (...). A partir disso, a
biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder. Tanto o
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"
mecanismo disciplinar de poder (do corpo) quanto o mecanismo regulamentador (da
população) são articulados entre si.” (Viana, 2008, p.51).
Essas duas tecnologias o corpo e a população são articuladas através do eixo
da sexualidade. Ou seja, o poder sobre o corpo se também por meio da
regulamentação da sexualidade, buscando torná-la normalizada, economicamente útil e
politicamente conservadora. O poder toma a seu encargo a sexualidade e o corpo,
inscrevendo-os do registro da culpa e do pecado para o do normal e do patológico. O
corpo e a sexualidade passam a ser do âmbito da doença e, com isso, a carne se torna
organismo.
Sobre o corpo e o sexo operam uma intensificação e uma incitação ao discurso,
que por sua vez se insere nas redes dos dispositivos de saber e de poder. Com isso,
busco salientar que o mesmo movimento que se com a loucura enquanto
possibilidade de existência relegada à sua oposição como desrazão ao campo da razão
como verdade, e que a constitui enquanto ausência de obra, impossibilidade de verdade
e de subjetivação, é o que se abate sobre os corpos e sobre o sexo dos indivíduos,
trazendo-os, por sua vez, também para o campo da normalidade que os dessubjetiva
agora não com o argumento da desrazão, mas com o da doença convertendo-os em
organismo reprodutivo. Retornarei a esse corpo dessubjetivado posteriormente, ao
pensar de onde partem as produções contemporâneas no campo das artes visuais (da
ausência de obra, notadamente posta no âmbito do corpo e do feminino, como veremos
então).
Retornando ainda uma vez à medicina como instrumento fundamental da
biopolítica, que esparrama para o campo da subjetividade humana aquilo que se
inaugura com a loucura enquanto ausência de obra, qual seja, a exclusão e instauração
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"
de uma zona de fronteira para uma positividade da existência por meio da negação de
tudo aquilo que lhe é mais singular, servindo a um biopoder que promove o controle
sobre a vida dos seres viventes, temos então que a medicalização da vida e do social
contribuem para o esparramamento dessa biopolítica. A sociedade capitalista investe,
antes de tudo, no corpo biológico, somático, a fim de controlá-lo. Ele se torna realidade
biopolítica e a medicina, sua estratégia. Resta-nos, então, aproximar ainda mais da
contemporaneidade essa idéia do biopoder proposta por Foucault, que chega até nós por
meio da medicalização das subjetividades, acerca da qual escrevi em capítulo anterior, e
a conseqüente impossibilitação de lugares para o acontecimento subjetivo, que aparece
novamente no campo discursivo a partir do que Agamben vai nomear como homo sacer
e estado de exceção.
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Capítulo 4 Outras aproximações entre as subjetividades contemporâneas
e o lugar da loucura: o homo sacer e o estado de exceção.
O paradoxo apontado por Foucault (1975-76) a respeito do biopoder que se
concentra no fazer viver e exerce a função da morte se atualiza na contemporaneidade,
segundo Agamben (2002), como tanatopolítica. Do nascimento da biopolítica na
modernidade até os dias de hoje, o biopoder não atua da mesma forma e, guardadas as
diferenças entre a leitura que Foucault faz a esse respeito a partir dos discursos e o
enfoque pautado no viés do direito trazido por Agamben, é possível aproveitar aquilo
que o segundo tem a dizer para situar a problemática do biopoder no tempo atual,
trazendo um segundo viés o primeiro sendo a loucura como ausência de obra que se
esparrama através da medicalização das subjetividades também para um
esparramamento que coloca o indivíduo, além do campo da ausência de obra, também
no lugar do homo sacer, o que dá praticamente no mesmo, como veremos a seguir.
Para Agamben, o poder é sempre soberano na sua origem e a biopolítica, pelo
viés do estado de exceção, é regra e não ruptura da modernidade como quer Foucault.
A estrutura da soberania e do poder soberano é a estrutura da exceção, que inaugura
uma zona de indiscernibilidade entre violência e direito.
O estado de exceção, no mundo contemporâneo, torna-se a regra e medidas
excepcionais tornam-se técnicas usuais de governo. A característica principal da
operação biopolítica na contemporaneidade consiste na integração entre medicina e
política, e na conseqüente indiscernibilidade entre vida nua e vida qualificada, entre
corpo biológico e corpo político.
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"
Onde Foucault (1975) situa o panóptico como paradigma da sociedade
disciplinar, Agamben (2004) traz o campo de concentração. Assim, a vida que está em
jogo nessa configuração política do estado de exceção como regra, delimitada pelo
modelo do campo, é aquela do homo sacer.
“O termo sacer indica justamente essa vida absolutamente matável, objeto de
uma violência que excede tanto a esfera do direito quanto a do sacrifício. A sacralidade
da vida que se poderia pensar como direito humano fundamental contra o poder
soberano exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um
poder de morte.” (Viana, 2008, p.177).
A vida nua, então, é essa que está exposta ao poder de morte, é a esfera da
sobrevivência, da vida biológica, em que a ciência médica atua. É no corpo biológico
que incidem as práticas do poder.
A idéia de homo sacer, presente na obra de Agamben (2002), pode fornecer
ainda alguns subsídios para se pensar nesse lugar de exclusão da loucura. Ele está na sua
origem, aquele de quem a morte não será punida e que não pode ser sacrificado. E
Agamben coloca a questão: “Então, o que é a vida do homo sacer na medida em que ele
se situa na intersecção entre poder ser morto e não poder ser sacrificado, fora assim do
direito humano tanto quanto do direito divino?” (2002, p.81).
O sagrado e o tabu se juntam em sua figura, fazendo-o objeto de uma dupla
exclusão, pois sua morte não é um assassinato e nem um sacrilégio. Matar o homo sacer
não é uma transgressão da norma seguida de uma sanção, mas sobretudo uma exceção
originária pela qual a vida humana, exposta a ser morta de modo incondicional, é
incluída na ordem política. Sua vida sagrada é o modo como uma vida nua aparece no
mundo ocidental, uma vida passível de ser morta sem nenhuma implicação jurídica ou
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"
religiosa. A vida nua não é uma vida natural nem tampouco social, mas uma vida
sagrada, fora dos dois mundos e, assim, na fronteira em que nenhuma lei lhe é aplicável
ou pode lhe proteger.
O sagrado é, segundo o autor, a forma originária da implicação da vida nua na
ordem jurídica e política em que o homo sacer nomeia a relação política originária, não
uma questão religiosa ou de transcendência. É com essa noção do sagrado que
trabalharei ao longo do desenvolvimento dessa tese. Retornemos, por enquanto, à
aproximação entre o louco e o homo sacer.
O louco é contornado pela lei ao mesmo tempo em que ela o coloca em um lugar
de exceção. Uma vez considerado louco, inimputado e tutelado, a lei garante ao louco a
suspensão de todos os seus direitos, que ele “goza” dessa espécie de imunidade que a
inimputabilidade lhe confere. Então, qual o seu direito? É ser tutelado por um outro que
gerir seus bens, sua vida, suas decisões e, além disso, um outro que deveria lhe
garantir tratamento para liberá-lo de sua condição. O poder de legislar sobre o louco é
passado – após essa decisão – ao âmbito médico e, a partir daí, caberá ao médico decidir
o que será feito dele.
Enquanto que ao criminoso sempre cabe o recurso à lei para contestar as
condições em que vive e aquilo que lhe é imputado, e enquanto ao estrangeiro sempre é
possível recorrer aos pedidos de asilo e à proteção das leis internacionais, que recurso
tem o louco? A quem ele pode pedir? E que legitimidade tem o seu pedido?
Uma vez louco, e assim delimitado, qualquer reivindicação sua poderá ser
remetida ao campo da loucura, esse vazio de sentido ao qual o direito não se aplica. O
que pleiteia o louco senão o absurdo? Que legitimidade existe na sua apelação a seus
direitos, se ele não os possui desde que foi colocado no lugar de exceção que é a
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loucura? O louco enquanto doente torna-se, assim, o homo sacer que traça o caminho
para que os outros possam ser colocados nesse mesmo lugar.
O que Birman (1992) procurou enfatizar ao retomar a história da loucura e a
elucidação do lugar do louco como o de ausência de obra remete, justamente, a esse
dispositivo o qual, uma vez tendo-se a ele recorrido e tendo se instaurado, desconstruirá
tudo o que lhe suceda pela submissão de tais eventos ao filtro que o dispositivo coloca.
Em outras palavras, a produção do louco será marcada por sua loucura não apenas
pela loucura que é condição da obra louca, mas pelo olhar do outro que se dirige a essa
obra como obra louca, o que lhe restringe o alcance e o sentido. Não mais uma fala, mas
a fala louca. Não mais uma reivindicação, mas a reivindicação sem sentido. A loucura
marca as produções do indivíduo no exato momento em que é nomeada, e essa marca
constitui no desfazimento dessas produções, na desconstrução delas como obra e na
ausência de sentido.
Giorgio Agamben (2004) entende que vivemos em um estado de exceção
permanente na atualidade e se propõe a examinar, do ponto de vista do direito, a que
esse dispositivo remete e o que se depreende dele. Em suas palavras:
“Diante do incessante avanço do que foi definido como uma ‘guerra civil
mundial’, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de
governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida
provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente
e, de fato, transformou de modo muito perceptível a estrutura e o sentido da
distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção
apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia
e absolutismo”.(op.cit., p.13).
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"
Aqui, o exemplo de Guantánamo serve para mostrar como, dentro do
ordenamento jurídico, se cria uma brecha para que o estatuto jurídico do indivíduo seja
anulado. O prisioneiro que está fora do território americano não está submetido às leis
dos EUA e nem à sua proteção. Ao ser-lhe recusado, também, o estatuto de prisioneiro
de guerra, ele escapará ao alcance e ao resguardo das leis supranacionais, sujeitando-o a
uma dominação de fato, fora da lei e do controle judiciário, sendo exposto à máxima
indeterminação que a “vida nua” pode gerar. Trata-se, a partir daí, de um homo sacer.
Sua idéia principal, ao escrever sobre o estado de exceção, é que tal conceito é
fruto de uma tentativa de abarcar uma zona de fronteira, aquilo que escapa ao direito e a
qualquer nomeação legal mas que, por isso mesmo, serve como contraponto necessário
ao estado de direito, pois permite concebê-lo e contorná-lo. O estado de exceção não é,
portanto, um direito especial, mas a suspensão de toda ordem jurídica, o que o torna um
conceito limite.
O estado de exceção é uma figura jurídica criada pelo direito romano para
circunscrever aquelas situações nas quais uma ameaça à cidade permite que se abra mão
da legalidade com o intuito de garanti-la, ou seja, cria uma situação na qual, para
preservar o direito, atua-se fora dele. O que acontece, com o passar do tempo e que o
autor procurará demonstrar pelo acompanhamento atento do conceito ao longo de suas
diversas formulações jurídicas é que o estado de suspensão do direito associado ao
estado de sítio, e justificado pela circunstância da guerra, se descolará dessa
contingência para tornar-se um recurso utilizável em outras ocasiões, nas quais se julga
necessário e quem julga terá uma enorme importância o recurso ao extraordinário.
Com isso, a tradição democrática passará a fazer uso do estado de exceção como
dispositivo de proteção contra qualquer ameaça iminente subjetiva (ou de um conjunto
de subjetividades legitimadas, de alguma maneira, a se colocarem no lugar dos fatos),
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"
fictícia ou política, dotando-se de plenos poderes, os quais exercerá para além do que
seria legalmente previsto, até que essa condição extraordinária se torne ordinária,
submergindo em um estado totalitário.
Aquele que julga necessária a recorrência ao estado de exceção é o poder
executivo, o que tira a salvaguarda das leis daqueles que deveriam exercê-la, retirando o
direito de seus legisladores e de seus aplicadores. Mergulha-se em um estado de
indistinção e de plenitude do poder atribuído à figura fora do direito, aquele que encarna
a possibilidade de suspendê-lo: o rei, o imperador, o governante.
O poder executivo se expandiu, principalmente após as duas guerras mundiais, e
o estado de exceção tornou-se a regra, apresentando-se como uma técnica de governo,
mais do que como uma medida excepcional, revelando-se como “paradigma
constitutivo da ordem jurídica”. Governa-se através de decretos com força de lei e
medidas provisórias, as quais os poderes legisladores apenas ratificam.
O vazio de direito, que seria a condição de criá-lo, torna-se afirmação máxima
de sua existência, bem como a evidência do que lhe escapa. A justificativa da defesa da
democracia a qualquer custo, mesmo pela suspensão temporária ou permanente daquilo
que constitui o poder democrático, revela o paradoxo presente na idéia de estado de
exceção, que pode ser usado como conceito legitimador daquilo que se faz fora da lei.
Agamben sustentará que “(...) uma ‘democracia protegida’ não é uma democracia e que
o paradigma da ditadura constitucional funciona sobretudo como uma fase de transição
que leva fatalmente à instauração de um regime totalitário”.(2004, p.29).
O que parece estar em jogo, com a tentativa de circunscrição de certas
circunstâncias excepcionais sob a rubrica do estado de direito é garantir que nenhuma
esfera da ação humana escape ao domínio da lei, o que o próprio apelo ao conceito de
estado de exceção e a maneira como ele é aplicado mostram não ser algo possível. O
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"
que escapa ao campo do direito tem a ver com a vida. Ela faz com que o direito seja
necessário, mas ele nunca a abarca totalmente.
O estado de exceção instaura o não-lugar jurídico e mostra como esse se
expande para todos os indivíduos, na medida em que se torna a regra de funcionamento
das sociedades contemporâneas. Qual o paralelo possível entre esse estado de coisas
atual e a loucura como ausência de obra enquanto inauguradora das condições para a
subjetividade na contemporaineidade?
Primeiramente, ao tomarmos a idéia de estado de exceção como conceito limite,
que tenta contornar o que escapa ao direito e que funciona, assim, como elemento
imprescindível para sua fundação, bem como para sua configuração, veremos que é
possível pensar uma certa analogia com a condição da loucura.
O louco constituiu-se há tempos – e especialmente desde sua alocação no âmbito
da doença mental em uma das exceções mais significativas do estado de direito. Na
medida em que é tornado inimputável, o direito lhe garante a proteção de ser um
tutelado por um poder exterior, bem como o direito de ver-se privado de toda e qualquer
condição de exercer suas funções de cidadania.
O louco tutelado inimputável é decidido por um outro, formado pelo
compromisso entre o poder médico de determiná-lo louco e o poder judiciário de
ratificar sua loucura como impossibilidade, ao defini-lo como inimputável.
Inimputável é alguém a quem nada pode ser imputado, atribuído: nenhum crime,
nenhuma responsabilidade, nenhum direito. Aquele que é desresponsabilizado paga, por
isso, com sua exclusão do âmbito social naquilo, desse campo, que seria regulamentado
por lei. Desde que lhe é imputada a condição de inimputável, ele poderá circular a
partir do motivo de sua inimputabilidade no caso da loucura, o ser doente e sua
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"
circulação e suas ações terão as atribuições que o ser doente lhe confere: irresponsável,
não-cidadão.
Assim, o louco mostra-se, também, como alguém a quem é reservado um estado
de exceção. Ele habita na fronteira entre aquilo que o direito garante e o que lhe escapa.
O direito garante ao louco que, dado seu lugar, tudo o mais lhe escapa. É o direito de
não ter direito, o direito de viver em um estado de exceção.
Podemos pensar que o estado de exceção em que se vive atualmente tem, como
seu ponto de origem, não apenas esse instituto jurídico da forma como foi construído e
utilizado ao longo do desenvolvimento do direito, de Roma aos dias de hoje, mas,
também, a maneira como foram pensados e os lugares que foram concedidos aos
excluídos na formulação desse mesmo direito, dentre os quais podemos destacar o
estrangeiro e o louco.
Agamben enfatiza que o homo sacer – conseqüência lógica do estado de exceção
– é alguém a quem o direito não se aplica, uma vez que seja retirado de qualquer âmbito
no qual a lei poderia nomeá-lo e protegê-lo. Nesse sentido, o louco como, em certas
circunstâncias, o criminoso e o estrangeiro escaparia de ser homo sacer ao ter sua
localização garantida pela lei. Mas, nesse ponto, uma diferença importante se faz entre o
crime, o exílio e a loucura, que consiste no lugar de onde se pode circular a partir de ser
nomeado como louco, estrangeiro ou criminoso, e que situei anteriormente enquanto um
lugar fixo na condição de fora de um discurso sobre si mesmo, no que diz respeito à
loucura.
Podemos começar a nos indagar, nesse ponto, como a psicanálise se insere nessa
teia discursiva sobre a loucura e as subjetividades e quais as contribuições que teria a
nos oferecer sobre as possibilidades de subjetivação em nossos dias, marcada por esse
movimento que fiz até o momento, apoiada em Foucault, de propor a ausência de obra
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"
como condição do homem contemporâneo. Assim, para início de conversa, parace-me
que a psicanálise tem duas contribuições a fazer: a primeira para se pensar a psicose
como lugar de exceção, a partir da idéia de forclusão, e a segunda para se tomar a sério
a idéia de lugar na psicose, o que consiste em uma aposta em uma existência subjetiva,
presente até mesmo no conceito de psicose através do qual o campo psicanalítico aborda
a loucura. Abordarei ambos a seguir.
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"
Capítulo 5 - A obra possível na loucura.
A psicanálise não escapa das atenções de Foucault, quer para situá-la no bojo de
um saber / poder que submete o sujeito, especialmente na medida em que se consagra
enquanto discurso acerca da sexualidade, quer como teia discursiva que promove o
descentramento do sujeito – a partir da noção de inconsciente (Birman, 2000 e Foucault,
1976b). Ela vincula-se ao projeto de fazer uma ciência do sujeito na medida em que se
propõe a falar e fazer falar a verdade sobre o sexo. Por outro lado, quando ela anuncia
que o eu não é o senhor na própria casa, Foucault (1979) reconhece o descentramento
do sujeito e a força disruptiva do discurso psicanalítico. Transitaremos entre essas duas
tendências a fim de perscrutar, para esse discurso, como ele se posiciona em relação à
loucura e à ausência de obra.
É importante salientar, a princípio, que o campo da loucura, para a psicanálise,
não ficará circunscrito ao que a psiquiatria e a própria psicanálise, posteriormente, virão
denominar como psicoses, campo sobre o qual me deterei mais longamente. No início
da elaboração freudiana, a loucura diz respeito tanto às neuroses quanto às psicoses ou,
mais especificamente, à histeria tanto quanto à esquizofrenia e / ou à paranóia, na
medida que o que interessa a Freud (1894, 1896) localiza-se em um movimento
psíquico que traz à tona uma defesa contra algo inaceitável para o indivíduo. Ou seja, os
sintomas da histérica, os rituais obsessivos, as alucinações esquizofrênicas ou os delírios
paranóicos dizem todos, em sua essência, da existência de um psiquismo que escapa
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"
daquilo que sabe de si e que se organiza contra si mesmo, ou contra aspectos seus que
se lhe oponham.
A loucura, para Freud, é portanto o que traz a descoberta do inconsciente, ou
seja, de que haja um psiquismo organizado do qual o eu / ou a consciência, nesses
primórdios, não consiste em nada além da mínima parte. Ela está tanto no sintoma
histérico quanto no delírio psicótico e, ainda que Freud diferenciá-los ali adiante, a
base de seu pensamento ou de sua aposta é que todas essas “loucuras” consistem em
condições subjetivas singulares que fazem sentido, podendo não apenas ser
compreendidas como, principalmente, dar notícias sobre aquilo de que são feitas, qual
seja, de uma matéria psíquica inconsciente, que escapa e transborda as possibilidades de
inscrição, que se inscreve como marca / representação e circula como afeto e desejo,
transbordando como pulsão e tornando esse psiquismo eternamente tributário de sua
ligação com o corpo. (Freud, 1900, 1905a, 1915a, 1915b).
Assim, podemos dizer que a primeira forma da loucura que interessa Freud, e a
partir da qual ele depreende um psiquismo, é a histeria, o que não é de pouca
importância, se considerarmos que o discurso sobre a mulher histérica encontra-se na
saturação daquilo que Foucault (1976b) designa como o corpo de mulher pleno de
discurso sobre o sexo, o que mostra como Freud está imerso nessa teia, único lugar de
onde pode partir para constituir algo que se proponha ao menos enquanto
questionamento de tal posição de assujeitamento da mulher ao discurso sobre a histeria
que recai sobre seu corpo. Retornarei a isso adiante, quando for discutir precisamente
esse corpo feminino como um dos restos, um dos lugares de borda em que a
subjetividade pode se dar em nossos tempos.
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"
Mas além dos movimentos que Freud faz a partir da histeria em direção à
sexualidade e também ao psiquismo inconsciente, ou a partir dos mesmos, temos que
ele propõe algo de extremo interesse, na medida em que aposta justamente nesses
lugares de assujeitamento enquanto lugares de sentido e de verdade. É o sintoma da
histérica que traz a verdade sobre o psiquismo inconsciente, e assim temos novamente
que é justamente de um lugar de ausência de obra que alguma obra pode ser inscrita. E a
obra que Freud ordena, a partir desse lugar de ausência, é o campo psicanalítico.
Conseqüentemente, o que o move pelos meandros da loucura histérica como
aposta de sentido e de verdade no sintoma (Freud, 1893-95, 1905b), resgatando sua
experiência trágica, é também o que permite a ele apostar para a loucura psicótica da
paranóia de Schreber a produção de uma verdade sobre o sujeito (Freud, 1911).
Ou seja, se a loucura é paradigma da subjetividade contemporânea, na medida
em que a ausência de obra nos diz respeito a todos, homo sacer habitantes viventes em
um estado de exceção, qual a obra possível de ser construída em tais condições?
Ao seguir a linha mesma da loucura como ausência de obra e perscrutar onde ela
recobra seu aspecto trágico, encontro-me com a psicanálise e sua aposta nas produções
da loucura como produções de verdade. No delírio como tentativa de cura, em Freud
(1911), temos a radicalidade de uma reflexão que encontra na obra da loucura quer
seja o delírio psicótico ou o sintoma conversivo das histéricas a obra possível, plena
de verdade e de sentido, no lugar em que a mesma havia sido desconsiderada. Retomo,
para esse breve passeio pela loucura como presença de obra no campo psicanalítico
tema que desenvolvi em dissertação de mestrado justamente alguns trechos dessa
mesma dissertação em que o delírio aparece como uma obra possível para o sujeito
marcado por sua ausência. (Ribeiro, 2004, 2007).
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"
A loucura fica inscrita para nós, cada vez mais, como ausência de obra, uma vez
que, ao nos defrontarmos com ela, a retiramos do campo da verdade e destituímos o
louco de sua possibilidade de ser sujeito. A experiência da loucura é uma não-
experiência, um erro frente ao que seria o caminho a ser percorrido, e a produção
delirante não enuncia verdade alguma a não ser essa de ser uma fala sem significação.
A partir da disponibilidade freudiana de escutar o que as histéricas têm a dizer, a
psicanálise pôde apostar que, também em relação aos psicóticos, suas produções, falas,
expressões trariam algo mais do que um conjunto de sinais e sintomas a ser identificado,
catalogado e tratado com vistas a ser suprimido. A psicose também poderia fazer
sentido.
Freud subverte a concepção psiquiátrica de loucura novamente – a primeira
tendo sido ao apostar no sintoma histérico como portador de uma fala verdadeira
quando diz que o delírio é uma tentativa de cura, uma maneira de construir uma história
e dar sentido a uma experiência. Não o que ser corrigido ou abolido. o que ser
escutado e construído. Nas palavras de Birman:
“A psicanálise nos seus primórdios, com o discurso freudiano, reconheceu a
especificidade da experiência da loucura. Para isso, teve que reconhecer a verdade nessa
experiência e a presença fundamental da função de sujeito. Com efeito, o discurso
freudiano destacou a verdade presente nas produções delirantes e alucinatórias,
sublinhando a “tentativa de cura” realizada pelo delírio na busca do sujeito para
restaurar as suas relações rompidas com o mundo. (...) Enfim, no discurso freudiano
existiu o reconhecimento da loucura como “presença de obra”, na medida em que
sublinhou a verdade daquela experiência fundada no sujeito.” (1992, p.87).
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"
Enquanto a psiquiatria nada quer saber a respeito do sujeito, a psicanálise
focaliza nele toda a sua atenção. A partir de Freud e de seu trabalho com as histéricas, o
que faz diferença e cria a psicanálise é o interesse pela fala do paciente. Este tem algo a
dizer sobre si mesmo e seu sofrimento, e é a partir desse “dito” que os não-ditos se
fazem presentes e que o inconsciente pode se revelar. Ao sujeito fica atribuída a
responsabilidade pelo que conhece e pelo que não conhece, por aquilo que é, com todas
as idiossincrasias que isso comporta. A psicanálise traz a possibilidade de que uma
pessoa se responsabilize por si mesma e que, com isso, possa dizer de si. A alienação
não se desfaz totalmente, mas o sujeito se percebe alienado.
O sentido passível de ser construído pelo método psicanalítico depende do
sujeito, posto que é pessoal e intransferível, inexoravelmente imbricado com aquele que
o constrói. Não se pode prescindir da subjetividade para compreender o sofrimento e,
portanto, se apostamos nos sentidos das produções psicóticas da mesma maneira como
Freud apostou no das histéricas, não se pode descartar o louco ao buscar saber sobre sua
loucura.
O que é descoberto com a neurótica torna-se posição ética do psicanalista. É
também Freud (1911) quem primeiramente propõe o delírio produção psicótica por
excelência como tentativa de cura, entendendo-o, em sua positividade, como
construção em direção à realidade, como reinvestimento nas relações e não como
aberração proveniente da perda da realidade, algo a ser descartado. Ele “ouve” (na
verdade, lê) o delírio de Schreber e nele supõe um sentido.
Com a leitura que faz do livro escrito por Schreber (1903), Freud (1911) poderá
propor que o acontecimento da psicose inicia-se por uma retração, um enclausuramento
em si mesmo quando da emergência de algum desejo que seria inaceitável para o
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"
sujeito. O trabalho de defesa consistirá, então, em uma modificação do eu e do mundo
para que os mesmos se adaptem a tal conteúdo recalcado, de tão premente e imponente
que o mesmo é.
O primeiro movimento, então, frente à premência dos conteúdos inconscientes,
nesses casos, é o isolamento do sujeito e seu encerramento em si mesmo. Com o
desenrolar do processo psíquico, segue-se a essa primeira reação outro momento, que se
poderia chamar de acomodação. A defesa em curso começa a intervir no sentido de que
o contato com o mundo seja restabelecido mas, para isso, terão que ser feitos alguns
novos ajustes. O delírio, ou a construção delirante, aparece justamente nesse momento
como o remendo necessário para acomodar tal retomada das relações com aquilo que foi
vivido no mundo próprio. A acomodação instiga a uma reformulação da maneira como
são vistos os outros, do sentido que é atribuído às relações e, enfim, da versão da
história de si mesmo e do mundo que é considerada. Paradoxalmente, o delírio realizará
aquilo que, de tão insuportável, deu origem à psicose.
Então, o delírio seria ponto de chegada e também de partida. As construções que
visam a defesa culminam com a formação de um delírio, uma versão da própria história,
de si mesmo e do mundo. No entanto, e como o mundo não é estanque e não deixou de
existir de fato, o sujeito se vê confrontado constantemente com a ameaça de esse mundo
se fazer presente, e o delírio estruturado passa a ser ponto de partida. Para não ser posto
em questão, o que comprometeria o frágil equilíbrio alcançado, ele tem que se enquistar,
cristalizar-se, transformar-se em certeza absoluta contra tudo o que possa criar dúvida.
Portanto, ao deter-se sobre o delírio, Freud o apresenta como tentativa de cura,
reconstrutor da realidade, restabelecedor das relações com o fora, como se fosse uma
defesa contra a defesa primeira – ou um segundo tempo da mesma. Mas, também, como
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cristalizador e enrijecedor das verdades construídas por um sujeito, o delírio cria uma
realidade própria, singular, e com ela o sujeito se põe em relação. Parece uma armadilha
pois, mesmo com a criação delirante, o psicótico ainda transita entre si mesmo e um
outro que é também si mesmo e o que está fora de si parece ter poucas chances de
encontrar alguma brecha nesse mundo de espelhos sem fim. O delírio seria, assim, a
obra psicótica ou a presença de obra na psicose.
Calligaris (1989) apresenta uma imagem com o intuito de elucidar a condição de
existência do psicótico: para ele o psicótico é um errante. Não um errado, mas um ser
errante, alguém que caminha sem destino pelo mundo afora. Isso porque seus caminhos
existem em si mesmos e não como percursos que levam a algum lugar que, para o
psicótico, não há algo como um destino, uma meta, um ponto aonde se possa chegar.
Podemos extrapolar a imagem oferecida por Calligaris e entender o psicótico
como alguém que não pode fazer uso de um mapa, pois este supõe referências que lhe
dão sentido. que se apostar em que, no mínimo, o mapa retrate o local que mapeia e
que o situe em relação a outros locais de forma que, mesmo não os conhecendo
inteiramente, podemos encontrá-los através de tais referências. Para um psicótico, não
suposição possível. Não como apostar que o mapa retrate um lugar e, portanto,
para conhecê-lo, é necessário percorrê-lo totalmente, sem deixar nada de fora. Para que
ele possa conhecer, deve conhecer tudo. Dessa maneira, o psicótico traz consigo a tarefa
infindável de ter que caminhar por todo o mundo para conseguir mapeá-lo e, mesmo
errando por todos os cantos, não poderá criar um ponto de referência que o localize.
A idéia de forclusão se conecta com essa imagem da errância psicótica à medida
que ela diz dessa condição de estar encerrado do lado de fora, fora da significação, fora
da possibilidade de estabelecer uma referência, de onde a necessidade de errar. Ela
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guarda também uma relação com a idéia de loucura como um lugar limite que o
estabelece e encerra o sujeito fora. A idéia de forclusão traz uma diferença para a
psicose em relação à neurose e à perversão: nela, o material indesejado é descartado,
arremessado para longe e o sujeito se livra do mesmo, diferentemente do que o recalque
neurótico ou a negação perversa possibilitariam. Tal mecanismo leva à formação de um
rombo, de um buraco psíquico muito diferente do que poderíamos conceber enquanto
falta.
O que não acontece e que faz com que a forclusão exista é a organização do
sujeito em torno de uma significação central que sirva como marco zero a partir do qual
um mapa de direções e sentidos pode se construir. Não um universal, que Lacan
considera como a função paterna, uma significação central que organize o psiquismo
tendo-a por referência e que organize os sujeitos uns em relação aos outros a partir do
que lhes é comum. A falta de um eixo de referenciação margem à errância. E eis
então o psicótico preso no lado de fora, forcluído nesse lugar de exceção em que
justamente uma exceção que possa incluí-lo não se faz.
A psicose aparece como defesa contra o ser uma mera coisa, objeto da demanda
do outro. Defesa que tem como ápice a construção de uma metáfora delirante, a
montagem de uma significação, algo que tire o indivíduo do lugar de coisa e permita-lhe
ser um sujeito que significa.
Partimos do lugar do lado de fora que o psicótico habita e pudemos entender que
tal proposição é válida na exata medida em que apresenta o paradoxo da condição
psicótica: trata-se de alguém que habita e que, simultaneamente, é um sem lugar ou, se
preferirmos, alguém que, de fora, constrói uma possibilidade singular de lugar, marcada
pelas peculiaridades do ser psicótico. A psicose é a construção possível, o lugar desde o
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não-lugar no sentido atribuído por Augé ao termo (1994), aquilo que se viabiliza com os
recursos de que o sujeito dispõe dada a sua constituição. Lugar da ausência de obra, da
impossibilidade de existência subjetiva de onde surge precisamente algo dessa
subjetividade, trazida pelo delírio. O psicótico delirante da psicanálise é o desmentido
do louco como ausência de obra objeto da medicalização de sua subjetividade ou, em
outras palavras, é sua potência nesse lugar de ausência.
A possibilidade do delírio como obra na psicose, apostada pela psicanálise,
resgata a presença de obra e, com isso, a perspectiva trágica da loucura. Assim, uma
primeira possibilidade de resposta à minha indagação sobre qual a obra e a
subjetividade possíveis em tempos de ausência de obra passa por isso que a loucura
viabiliza com o delírio: uma construção nas bordas. Em outras palavras: a obra possível
em tempos de ausência de obra – e que aponta para a subjetividade possível – seria
aquela que se faz às margens, de fora, na borda, como o delírio para a loucura.
Essa obra, entretanto, não se restringe à produção de uma metáfora delirante e
pode se focalizar noutras produções. E eis que os loucos produzem, entre outras, obras
de arte. Isso recoloca a partição loucura / verdade e a problemática da obra e da
subjetividade possíveis na ausência de obra como uma questão passível de ser
apresentada noutro campo em que a obra se mostra em todo seu valor, o campo das
artes plásticas.
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PARTE II - A obra de arte como inverso da loucura como ausência de obra e a
obra de arte na borda, como a loucura.
Existem obras na contemporaneidade, tais quais as obras de arte. O que elas
dizem, então, da possibilidade de fazer obra em nossos tempos? E o que essas obras
feitas em tempos de ausência de obra dizem sobre as possibilidades de constituição
subjetiva?
Tal deslizamento da obra na loucura para a obra de arte se faz possível na
medida em que, também na arte, o que institui algo como obra é aquilo mesmo que
destituiu de obra a loucura: o biopoder. Assim, olhar para a obra de arte para se
perguntar sobre a obra possível na contemporaneidade é olhar para o outro lado da
moeda da loucura, para aquilo que, instituído, destitui o louco de obra e que se posto
em questão quando a obra da loucura se afirma.
A inversão de lugares entre o instituído e o destituído é um deslocamento que
coloca para a arte a mesma possibilidade que para a loucura: a de que a obra possa
acontecer na borda. Nas discussões atuais acerca da arte contemporânea, do fim ou do
começo da história da arte, com Danto (2006), Belting (1994) ou De Duve (2005),
parece-me que o que está em jogo é esse lugar de borda no qual a arte contemporânea
pode acontecer, lugar limite entre arte e não-arte, lugar que borra os limites, a partir do
momento em que a obra de arte é posta em questão com o modernismo. Assim, a obra
de arte poderá nos informar sobre esse lugar de borda para a subjetividade
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contemporânea, desbravado pela loucura no momento em que ela foi concebida como
fora da razão.
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Capítulo 6 A loucura como ausência de obra e o sujeito da razão transferem-se
para o campo da arte: arte e não-arte.
Em curso apresentado a respeito de uma teoria da arte hoje, o crítico Thierry de
Duve (2005) realizou o seguinte deslizamento de pensamento:
Século XIX, Paris, França. Até o ano de 1863, e o nascimento das vanguardas
modernistas, ser artista pintor ou escultor dependia da pertinência à Academia Real
de Pintura e Escultura. A Academia, a serviço do Rei e subordinada ao Estado,
organizava o Salão para que seus membros pudessem compartilhar seus trabalhos uns
com os outros. As pessoas passaram então a visitar o Salão, tornando-o um
acontecimento público. No início, os nobres, mas com o tempo pessoas de todas as
classes e origens vão ao Salão, fazendo com que não seja mais possível saber a quem se
endereça a obra. Quem é seu espectador? O modernismo as vanguardas nasce nesse
momento em que não se sabe mais a quem a obra se dirige, que o público é diverso,
variado e desconhecido.
O Salão torna-se um fenômeno de massa no século XIX. As vanguardas surgem,
desse contexto, como única tradição (transmissão) viável quando não se sabe mais com
quem se está falando. Ao não se saber quem é o público, não se sabe também quem é o
artista. Por quê?
O Salão é organizado pelo júri, que representa o estado na medida em que é uma
emanação da Academia Real de Pintura e Escultura, instituição a cujo pertencimento é
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necessário pleitear quando alguém queira se considerar / formar como artista. O júri
trabalha para mediar aquilo a que o público terá acesso, realizando um julgamento
estético das obras, com o intuito de garantir o bom gosto. A existência do júri no Salão
provoca constantes insatisfações e protestos, por parte dos artistas e de outras pessoas,
que acreditam que o júri deveria ser abolido e as pessoas deveriam poder julgar por elas
mesmas as obras, sem uma pré-seleção que as antecipe. Ou seja, o que as vanguardas
propõem é que o público tenha acesso às obras e possa se responsabilizar por julgar as
convenções existentes acerca da arte e do bom gosto. Para isso, que se abolir a
mediação do júri e o julgamento estético deve ficar a cargo do público.
Se as convenções sobre a arte dependem de um pacto social entre a corporação
de artistas e o público e não se sabe mais quem é o público, ao artista agora cabe se
endereçar a este desconhecido e negociar com ele para que aquilo que é apresentado
possa ser tornado convenção, considerado como arte.
1863 é o ano do Salon des Refusés em Paris, criado por Napoleão, que propõe
que também os trabalhos recusados pelo júri possam ser exibidos. Le déjeuner sur
l’herbe, de Édouard Manet, é um dos quadros recusados pelo Salão e exposto no Salon
des Refusés. O júri se pergunta, acerca desse quadro, se é pintura. E se não for pintura,
desenho ou escultura, então não é arte. A recusa desse quadro para o Salão se
exatamente sob o argumento de que ele não seria uma pintura.
Com esse julgamento, ainda segundo De Duve, cria-se o campo da não-arte: o
que não é pintura, escultura ou desenho, é não-arte, que a arte se definirá a partir
dessas modalidades técnicas até o século XX. Estamos frente a um novo paradigma do
julgamento estético: se não é pintura, é não-arte. Não se trata mais do júri que define o
bom gosto, mas o que é da ordem do gosto: não se diz mais se algo é uma boa pintura
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ou não, mas se é ou não pintura. Se for uma pintura, é arte simplesmente porque pintura
é uma forma de arte reconhecida pelo sistema das Belas Artes. Se não é uma pintura, o
que é? Não é arte? Ou é não-arte? O quadro de Manet que não é uma pintura, o que é?
De Duve recorre a Freud (1925) e à psicanálise para pensar que dizer que um
quadro de Manet não é arte é efeito de uma negação. O júri sabe que Le déjeuner sur
l’herbe é uma pintura, mas nega-o enquanto tal. Ou seja, a não-arte surge como arte
através de uma negação, da mesma maneira que a loucura surge como desrazão através
de uma negação de sua experiência relativa à verdade. Em suma, a arte moderna
surge pelo mesmo movimento e no mesmo lugar que a loucura como ausência de
obra, ou seja, através da negação e da exclusão de um campo da subjetividade e /
ou da obra de arte para fora do âmbito da verdade acerca das mesmas. Ela é criada
quando se diz frente ao quadro de Manet: isso não é uma pintura. Estamos no campo
híbrido da arte borderline e do que não é arte, exemplificado pela arte minimalista dos
anos 60. O que não é pintura, escultura ou desenho é arte borderline ou não é arte,
ambas as possibilidades. Manet não é pintura, não é arte e é não-arte, na medida em que
é pintura e arte negadas. Com isso, o campo que define a arte e o campo do que não é
arte ficam borrados e sobrepostos.
Ou seja, a não-arte não é invenção de Duchamp ou do dadaísmo, mas das
vanguardas. A partir do momento em que uma tela de Manet é colocada como não
sendo pintura e, portanto, como não sendo arte, cria-se o campo da não-arte – que é arte
negada – inserido no campo do que não é arte. Isso quer dizer que a arte que é não-arte e
o que não é arte ficam fadadas a coabitar um mesmo espaço que, a partir de então,
tensionará e problematizará as delimitações do campo artístico.
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Marcel Duchamp tem o mérito de apontar a questão gerada com o nascimento
das vanguardas em meados do século XIX. Quando mergulha nesse campo do que não é
arte somado à não-arte e retira dele um objeto cotidiano, um urinol, assina-o e intitula-o
Fountain, qual a pergunta que ali subjaz? Ele bem poderia ter retirado desse campo uma
obra recusada de Manet, mas sagazmente ele radicaliza e aponta o urinol e pergunta: e
quanto a isso? O que é? Duchamp aponta para a diluição dos limites da arte, estipulados
pelos cânones da pintura, desenho e escultura e demonstra que, quando uma pintura
pode ser considerada como não-arte, arte passa a não ser mais apenas pintura, desenho e
escultura, mas também essa tal não-arte e, conseqüentemente, tudo o que não é arte.
Agora, tudo pode ser arte: Manet e um urinol inclusive.
Esse deslizamento me parece interessante por ser algo que acontece no campo
das artes plásticas como um reflexo de um movimento semelhante que se opera em
outros campos estéticos ou não e que diz respeito à delimitação de um contorno no
qual algo existe pintura, arte, música, literatura, obra, sujeito e a exclusão de um
campo no qual nenhuma dessas positividades se faz presente os objetos cotidianos, o
ruído, a ausência de obra, o não sujeito. Novamente a problemática da obra delimitada
por sua ausência, deslocando sua existência justamente para o campo de sua exclusão. A
obra que começa a existir a partir das vanguardas é aquela que surge no campo da
ausência de obra, de fora do âmbito da arte.
Esse movimento de afirmação do contorno desse campo, que teve início no
século XVII com a construção da idéia de indivíduo e, conseqüentemente, de seus
correlatos autor e obra, traz consigo a criação de um limbo originado daquilo mesmo
que exclui: é esse campo de exclusão que colocará em tensão e questão o próprio
contorno das afirmações. Então, o que é pintura? O que é arte? Obra? Autor? Sujeito?
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Da mesma maneira que a rejeição do quadro de Manet e a sagaz proposta de
Duchamp denunciam esse movimento no âmbito das artes plásticas, processos análogos
em outras áreas dão margem à mesma questão. Penso que a essa turbulência em meio às
produções culturais emergentes nos séculos XVII a XIX antecede uma primeira
desconstrução, ponto de origem a ser incorporado por todas as discussões posteriores e
das quais a que se faz nas artes plásticas é a que tomo neste momento precisamente para
repetir a que instituiu um paradigma: trata-se do momento em que se contorna e, com
isso, se problematiza – a idéia de indivíduo. Um dos lugares, se não o principal, em que
tal mudança se e onde se gera seu primeiro ponto de oposição é no âmbito da
loucura.
A loucura ilustra o campo de exclusão demarcado tão logo a idéia de indivíduo
ganha contorno enquanto ser da razão e da consciência. É seu oposto, seu inverso, sua
sombra, o que ameaça o indivíduo em suas fronteiras, aquilo de que ele se julga isento e
em contraposição ao que pode se afirmar positivamente. A loucura torna-se sinônimo de
desrazão nos séculos XVII e XVIII, enquanto o indivíduo recém-gestado terá na razão
sua essência última.
Se operarmos em relação ao indivíduo o mesmo deslizamento que De Duve
percebeu na proposta de Duchamp, de um urinol como obra de arte, o que pode
suceder? Se o homem é razão e existem desarrazoados que são humanos, como fica esse
contorno? O que é ser humano? Há humanos no campo do não-humano entendido como
irracional: os loucos. Então, o que essa idéia de indivíduo que caracteriza o humano
racional contorna? Se humanos no seu campo de inclusão e também no que dela se
exclui, então todos são seres humanos e a idéia de indivíduo racional perde sua potência
definidora. Há subjetividade no campo da desrazão na medida em que ali há indivíduos,
humanos. Há obra no território de sua ausência.
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Do mesmo modo que a delimitação da arte como pintura que exclui algumas
pinturas como não-arte, a delimitação do indivíduo como razão traz em seu bojo o ponto
de falência dessa proposta, que bem pode ser caracterizado pela loucura. Se obra na
loucura, faz sentido ainda colocá-la como oposição à possibilidade de produção de
obra? E se obra onde se supõe sua ausência, o que ela tem a dizer sobre o lugar em
que a obra é possível de se fazer? E se o lugar que faculta a presença de obra na
contemporaneidade for, justamente, o campo em que se delimitou sua ausência? E se
aquilo a que a obra remete a possibilidade de que a constituição de uma subjetividade
seja feita enquanto obra acontecer também nesse lugar da loucura e da ausência de
obra?
O que proponho é que a loucura ocupa um papel inaugurador dessa
mentalidade moderna na qual existe um indivíduo oposto e contornado por uma
não-individualidade que lhe garante a existência e que, ao nos questionarmos
atualmente sobre a pertinência dessa delimitação, o que fazemos é desconstruir-
nos até o nível da loucura. Ou seja, chegamos ao ponto no qual a afirmação do sujeito
culmina em sua negação e, com isso, nos aproximamos imensamente do campo da
loucura, primeiro lugar em que esse sujeito foi negado para que pudesse existir.
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Capítulo 7 A obra pressupõe um autor e a morte desse autor: a subjetividade
possível quando se perde a possibilidade da autoria.
Trata-se de um mesmo momento histórico e de uma mesma rede discursiva nos
quais a idéia de razão se configura como norteadora do que seja a condição desde a qual
os homens se posicionam, deixando para fora do campo do humano tudo aquilo que lhe
escape como desarrazoado loucura incluída, ou forcluída, se for possível aqui um
jogo de palavras e englobando tudo aquilo que lhe seja apropriável pelos movimentos
do pensamento.
Na arte, a razão aparece como possibilidade de autoria e como criação da
perspectiva, segundo a qual a organização do espaço pelo planejamento do olhar ou
seja, um movimento do pensamento antecede a execução da obra. Ou seja, as artes
plásticas são um dos campos possíveis para a legitimação de um percurso subjetivo
enquanto obra. Talvez seja possível traçar um paralelo entre a história da arte, desde que
a subjetividade entra em jogo do renascimento às vanguardas com a história da
loucura, que só pode ser pensada como doença mental nesse momento do surgimento do
sujeito e da subjetividade. E ao chegarmos nas vanguardas modernistas, o que se
anunciava com Giotto se sedimenta e radicaliza: o artista pode falar desde seu lugar
subjetivo. É sua única possibilidade e o que legitima seu discurso.
Acontece que, nesse movimento feliz da razão pelos campos do pensamento ou
da arte, temos um segundo momento consequência direta do primeiro em que tudo
aquilo que fora afirmado como delimitador do humano é colocado em questão. A
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própria idéia do homem racional entra em crise e, com ela, carrega as idéias de autoria,
de ser da consciência, de arte como representação do mundo e muitos etcs. Para a arte, é
um momento de dobra sobre si mesma, em que ela se toma como objeto de
investigação: não mais a perspectiva, nem a representação do real, mas a arte que
desvenda a si mesma como pincelada, cor, forma, superfície, suporte, proposição,
conceito... O modernismo sucede e é crítica da modernidade.
Se tomarmos novamente Duchamp, ele faz um jogo curioso com a arte. O que
até as vanguardas dizia respeito a uma certa expressão da subjetividade, Duchamp pega
como algo de que ele tem que se livrar. A obra não expressa, a obra não remete a nada
fora dela mesma. Ele se livra do traço, apelando para um desenho cada vez mais
esquemático. Depois, do desenho ao readymade, a obra totalmente desprovida da marca
de seu autor. Interroga quem é o autor, qual é a obra, o que é arte?
O paradoxo está em que Duchamp se destitui e se institui como autor, que é
ele quem traz a idéia, ele quem propõe um readymade como obra de arte. A
subjetividade é inescapável, mas uma certa ironia em Duchamp querer se afastar
daquilo que o singulariza. Com isso, o autor está ali onde ele não se apresenta, ali onde
ele escapa, onde falta. O autor é um engodo, algo digno de riso, que ele irrompe na
brecha do indivíduo que se coloca enquanto um eu. Na brecha da subjetividade auto-
referida e auto-referente, surge a possibilidade de um autor.
uma aproximação com Lacan aqui, com o sujeito do inconsciente, o sujeito
que surge, o autor que se apresenta ali onde o eu não está. Duchamp denuncia esse
engodo na arte. Tudo o que favorece o imaginário, a subjetivação, a expressão dessa
singularidade é por ele repelida e ali ele afirma o sujeito da maneira mais radical:
através da idéia que origem à obra. não se pode mais saber da obra prescindindo
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de seu autor, prescindindo do pensamento, da idéia, do conceito. E o autor, que autoria
tem sobre sua obra? O autor se desloca.
A idéia de que a arte pode ser feita de qualquer coisa não existia até o século
XVIII. Para Thierry de Duve (1996), Marcel Duchamp é o responsável pela abolição
dos limites para o que pode ser arte a partir do momento em que ele cria o readymade.
Ou seja, quando um urinol passa a ser arte, qualquer coisa parece também poder -lo.
Isso não quer dizer, como propunha Joseph Beuys, que se qualquer coisa é arte,
qualquer um é um artista. A idéia de Duchamp é bem diversa: quando se é um artista,
pode-se fazer arte de qualquer coisa. A proposta de Duchamp, de retorno a uma “arte de
idéias”, traz para o conceitual um peso reacionário, na medida em que apenas aqueles a
quem a revelação se deu têm acesso ao essencial na arte que reside em sua
projetualidade.
Marcel Duchamp produz em uma época o início do século XX marcada, ao
menos na Europa, por uma profunda desilusão com as conseqüências advindas do
melhor que o ser humano poderia criar em termos de cultura. Frente à decepção com os
desaguadouros do Iluminismo e do racionalismo, que antes entusiasmavam uma geração
com a promessa da criação do melhor dos mundos pelo submetimento da natureza à
medida humana, a opção tomada por alguns artistas foi apostar no irracional e no sem
sentido como possibilidade de expressão.
A decepção, o mal-estar da cultura e, das duas, uma: ou a retomada do antigo
como modelo ideal para se conceber um porvir, ou segue-se em frente manco mesmo.
Falo das duas grandes guerras que assolaram uma Europa próspera e otimista, com
grande liberdade para experimentações e questionamentos e que colocaram, para essa
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Europa, a seguinte problemática: bem, mas tudo isso pode levar ao horror e à morte.
(Steiner, 1971).
Então para Duchamp, frente à desilusão, um retrocesso: a manutenção da
“essência” da arte em algum lugar seguro, na idéia e na concepção do próprio artista.
Ao mesmo tempo, paradoxalmente, um avanço, que é com Duchamp que se
radicaliza a questão sobre o que é a arte.
O homem de Duchamp é rebaixado ao nível da máquina. O maquinário não
reflete nem viabiliza a perfeição humana mas, ao contrário, o homem feito máquina é o
humano oco, vazio como os moldes málicos do Grande vidro ou como seu Nu descendo
a escada. Do mesmo modo, ao possibilitar a questão sobre o que é arte, rebaixa-a a uma
equiparação com um mictório mas, pensemos bem, por que persistir na crença de que
ela estivesse um degrau acima dos objetos cotidianos? Busca-se desmistificar algo que
parecia dotado de uma aura mística e transcendente até então.
Para Duchamp a obra exala graça. É o chiste, o jogo de palavras a sua maior
atração. Necessário retomar Freud (1905c) e sua obra magistral sobre esse assunto mas,
aqui, o jogo não têm nenhum sentido oculto. está a graça quase exasperante de
Duchamp: ele não leva a nada. O jogo de palavras não remete a nada, nem a
perspectiva, nem o jogo de xadrez: é algo que se extingue em si mesmo, no único prazer
da brincadeira que, ao não se desdobrar e deslizar como nas piadas em que fazemos, não
permite, com isso, o alívio da tensão que cria, mantendo indecifrável a questão e em
estado de suspensão angustiada o espectador.
Duchamp aponta para o não sentido, o que torna ainda mais estranho o
incontável número de textos e estudos aventando o verdadeiro sentido de suas palavras
e obras, como se houvesse ainda algo a ser desvendado. O que não se percebe é que ali
77"
"
reside exatamente o vazio de sentido que remete a que não haja sentido algum e que,
novamente um paradoxo, todos os sentidos sejam possíveis. A ausência que à
presença, como afirmou Blanchot (1969), da maneira como apresentei anteriormente
nesse texto, acerca da ausência de obra. O que parece estar em jogo aí, tanto quanto na
idéia de obra, de sujeito ou de origem é a assunção de uma verdade última sobre o
sujeito e suas produções, questionada a partir do momento em que o deslizamento para
o vazio de sentido ou a ausência de obra como pontos de origem se operam. Passa-se
então ao campo do simulacro, em que a remissão a um originário perde sentido. Mas
voltarei a essa discussão adiante.
Talvez não seja tão estranho, então, que se encontrem tantos sentidos em sua
obra, já que ela é tão oca quanto a vagina da mulher de Étant donnés, onde o espectador
que olha pelo buraco da parede da instalação descobre, ali, um outro buraco que o olha.
Supunha, talvez, que encontraria alguma coisa, sendo que o que vê é apenas o vazio que
o interpela, devolvendo-lhe a pergunta. O objeto de arte não é uma coisa em si, depende
agora de sua relação intrínseca com o espectador, que lhe o sentido de arte. No
entanto, ela é seu conceito.
Nas artes plásticas, com as vanguardas e a arte moderna, temos as primeiras
experiências que pintores e escultores fazem em remeter suas obras não à expressão
de alguma coisa alheia a elas, mas à própria pintura ou escultura. Assim, o quadro não é
mais uma janela para o mundo, ele não tem mais como missão tromper l’oeil mas, ao
contrário, deve conter em si o processo de sua fatura. A pincelada aparece, os esboços e
as modificações, as etapas da execução de cada quadro são visíveis no resultado final. A
arquitetura da pintura está ali exposta e, então, uma paisagem, uma cena, uma pessoa
não são mais paisagens, cenas e pessoas, mas apenas tela, pintura, tinta. A obra remete
apenas a si mesma.
78"
"
Arthur Danto (2006) mostra como acontece um paralelo entre filosofia e artes
plásticas no que diz respeito à entrada na era moderna em ambos os campos. Segundo
ele, na filosofia, o moderno chega com René Descartes e seu “eu penso”, a partir do
qual o que interessa ao pensamento não é mais perscrutar como as coisas são, mas
antes disso, buscar compreender aquele que pensa em como as coisas são, ou, indo mais
além e para não dizer que a reviravolta ateve-se apenas à inclusão da subjetividade do
observador matizando a pretensa objetividade do observado a própria arquitetura do
pensamento. Ou seja, o que importa ao pensamento é ele mesmo e a maneira como se
constrói. O pensamento dobra-se sobre si mesmo.
Na história da arte, o modernismo marca “(...) o limite antes do qual os pintores
dedicaram-se a representar o mundo como este se apresentava, pintando pessoas,
paisagens e acontecimentos históricos como eles próprios se apresentavam ao olhar.
Com o modernismo, as próprias condições de representação tornaram-se centrais, de
modo que a arte de certa forma se tornou o seu próprio assunto.” (DANTO, op.cit.,
p.09).
Na arte, portanto, também uma dobra sobre si, um tomar-se como objeto. O
que começa com Manet e sua franca revelação das superfícies planas sobre as quais sua
pintura era feita, revela-se uma atenção à monotonia, à consciência da cor e da
pincelada, à forma retangular, ou seja, às características não-miméticas da pintura, em
oposição à perspectiva, ao escorço e ao chiaroscuro como características miméticas da
pintura que antes ocupavam o lugar de alvo do pintor em sua busca de representação da
realidade. A representação do mundo, a imitação da natureza, a mimese que por tanto
tempo vigorara como o ponto de definição do que seria o campo do artístico não
fazem mais sentido, dada uma pintura que se ocupa, prioritariamente no modernismo,
apenas em discutir, refletir e revelar a si mesma.
79"
"
Para Danto, “(...) a representação mimética se tornou menos importante do que
algum tipo de reflexão sobre os meios e métodos de representação.” (2006, p.10). Com
isso, o modernismo marca uma descontinuidade em relação ao momento anterior, uma
espécie de ruptura na qual a questão da arte torna-se conhecer o que ela seja, mais do
que retratar o que quer que seja. Assim, o que teremos no modernismo será uma arte
preocupada em pensar a si mesma, em fazer filosofia da arte através do próprio fazer
artístico e, com isso, circunscrever aquilo de que se trata, o que quer que ela seja.
aqui um paralelo com a situação que descreve George Steiner (1971) como
abordado anteriormente neste texto em termos da aparição da idéia e da centralidade
do indivíduo na cultura moderna e da maneira como seu surgimento, com a Revolução
Francesa e as Guerras Napoleônicas, acarretará em sua extinção. Isso porque, para que a
arte possa se tomar como objeto de reflexão o que acarretará, como veremos, em sua
desconstrução, é necessário que ela, antes disso, tenha-se constituído como elemento
relevante de nomeação do fazer humano, o que se deu, segundo Hans Belting (1994),
aproximadamente em 1400d.C., com o início da era da arte que teria durado até a
década de 1960. Com isso, Belting não diz que não houvesse arte antes ou depois desse
período, mas que o que era feito antes da era da arte eram imagens não concebidas
como arte, não apreciadas esteticamente. O conceito de arte não desempenhava nenhum
papel em sua existência enquanto imagens, como talvez não desempenhe mais desde o
fim dessa idéia de arte como direção narrativa para o fazer “artístico”.
O que quero enfatizar, nesse momento, é que as idéias de indivíduo, autor, artista
são várias facetas de um mesmo prisma, que surgem em um dado momento histórico e
correm em paralelo na exaltação de suas capacidades até o momento em que se viram
para si mesmas e, ao se perscrutarem, colocam-se em questão. É dessa dobra sobre si
que surgirá a possibilidade de que o indivíduo, o autor e o artista percam sentido como
80"
"
conceitos essenciais para a definição de um certo campo de fenômenos. Com isso,
morrem todos.
No seu O livro por vir (1959), Maurice Blanchot escreve sobre a obra de arte,
apoiado sobretudo na literatura, para pensar sobre a idéia de obra e de seu autor.
Segundo ele, a obra de arte não vem de uma necessidade de expressão de si, mas de
uma tentativa de garantir o acesso à arte propriamente dita naquilo que ela tem de mais
inacessível. Essa idéia de que a obra exprime a intimidade do artista, o que ele tem a
dizer, suas profundezas contrasta com a constatação – à qual chegou a partir de Proust –
de que a imagem, que é a forma pela qual o interior se abre ao exterior, não tem
nenhuma intimidade, estando tudo fora e, graças a isso, inacessível.
A imagem não exprime nada além da fala sem potência, uma fala que se enuncia
como ausência de poder. Ausência de obra. A expressão não leva a uma interioridade
preenchida de conteúdos, de representações mas, acima de tudo, à essência de não-
poder, de vazio, de ausência a partir da qual a obra se constrói. Blanchot afirma essa
experiência como “(...) o poder de representar pela ausência e de manifestar pelo
distanciamento, que está no centro da arte, poder que parece distanciar as coisas a fim
de dizê-las, mantendo-as distantes a fim de que elas esclareçam, poder de
transformação, de tradução onde esse mesmo distanciamento (o espaço) transforma e
traduz, torna visíveis as coisas invisíveis, transparentes as coisas visíveis, tornando-se
assim visível e se descobrindo como o fundo luminoso de invisibilidade e de irrealidade
de onde tudo vem e onde tudo termina.” (1959, p.79).
Ou seja, segundo Blanchot, o vazio e a ausência são a essência da realidade
material, a ausência de obra sendo tanto sua condição de existência como seu ponto de
partida. Então a arte – e ainda a obra – começa nas margens e nas bordas, reencontrando
81"
"
seu começo onde não mais arte nem as condições para que ela exista. É sua única
possibilidade de se fazer e de fazer obra. Uma obra de arte sem interioridade nem
remissão a uma profundidade subjetiva de seu autor.
A arte, ao menos desde a arte moderna, é sua realização propriamente dita, não
os estados de alma de seu autor. Ela se dobra sobre a obra de arte, sobre suas origens,
sua história, sua própria experiência. É uma obra dobrada sobre si, sobre os movimentos
de sua fatura, sobre o processo que leva a ela. Blanchot afirma:
“A obra é a única coisa importante, a afirmação que ela carrega, o poema na sua
singularidade compacta, o quadro no seu espaço próprio. A obra é a única coisa
importante mas, finalmente, a obra não está a não ser para nos conduzir à busca da
obra, ela é o movimento que nos leva ao ponto puro de inspiração do qual ela vem e o
qual ela parece poder atingir ao desaparecer enquanto obra.” (1959, p.293).
A obra não é simbólica, mas real para seu autor. Seu lado simbólico é criado por
seu espectador, o único a poder compreender a partir de uma busca de simbolização.
Então a obra, é o público que a faz, que a agrupa em uma unidade chamada obra. O
autor é o público, o espectador.
O autor, como escreve Blanchot, não expressa nada com sua obra
4
. Sua
produção não é a revelação de sua mensagem enquanto “Autor-Deus”, nem possui um
significado unívoco. É puro gesto de inscrição, cuja origem reside apenas na linguagem
que coloca em questão todas as origens. É um ato sem autoria, uma fala sem voz, a
negação da expressividade de algo que estivesse além do próprio ato de produção da
obra. Consideremos o que nos apresenta Barthes (1968) sobre o ato da escrita e que
"""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""
4
Veremos que essa postura contrasta com a maneira que boa parte do campo psicanalítico se debruça
sobre as obras e as obras de arte, como se elas fossem presença de obra e condição de subjetividade no
sentido da subjetividade do seu autor que poderia ser delas depreendida.
82"
"
serve a esse pensamento sobre o ato de fazer uma obra de arte assim que aos domínios
das artes visuais, na medida em que ele escreve acerca da obra e de seu autor.
“Nós sabemos agora que um texto não é uma linha de palavras liberando um
único significado ‘teológico’ (a ‘mensagem’ do Autor Deus), mas um espaço multi-
dimensional no qual uma variedade de escritos, nenhum dos quais original, se misturam
e colidem. O texto é um tecido de citações precipitado dos inumeráveis centros de
cultura. (...) o escritor pode apenas imitar um gesto que é sempre anterior, nunca
original. Seu único poder é misturar escritos, cotejar uns com os outros, de tal maneira a
nunca se acomodar a nenhum deles. Caso quisesse se expressar, ele teria ao menos que
saber que a ‘coisa’ interior que ele pensa ‘traduzir’ é, em si mesma, apenas um
dicionário pronto, suas palavras explicáveis apenas através de outras palavras, e assim
por diante, indefinidamente (...)” (BARTHES, op.cit., p.146).
A obra é uma bricolagem de tudo o que foi feito. Não é original, ou sua
originalidade consiste exatamente dessa mistura. O autor que busca se expressar, através
da obra, o faz por meio dessa colcha de retalhos de citações, o que nos permite pensar
que aquilo que ele expressa como sua singularidade traduzida em obras nada mais é do
que uma conjugação de excertos.
Freud
5
(1921) apontava que aquilo que temos como nosso ser mais original,
singular e exclusivo – nosso eu – se compõe, na verdade, de um emaranhado de
identificações. Ou seja, somos uma coleção de trechos, excertos, partes emprestadas de
outros que se acumulam em nós ao longo de nossa existência e compõem aquilo que
entendemos como o que somos. Gostos, escolhas, traços, jeitos, tudo marcado pelo
empréstimo feito ao mundo. O eu é, em certo sentido, um plagiador. Ou uma farsa, se
"""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""
5
Naquilo que escrevo acerca do eu, tomo por base os textos de Freud (1915a, 1917, 1921, 1923).
83"
"
preferível for colocar dessa maneira. Como se expressar, como falar de si mesmo, então,
se esse eu é tantos outros?
Aqui também o autor se desfaz, não porque sua obra não o expressa, mas
porque, ainda que o fizesse, acabaria por retratar uma miríade de fragmentos e nunca
uma unidade que se pudesse chamar de eu, o autor. A obra, então, a quem remete? A
que autor? A que subjetividade? O que essa obra diz dessa subjetividade, não no sentido
da interioridade de quem a produziu, mas de como uma subjetividade seria possível
enquanto obra?
Foucault (1969) aponta para a indiferença como um princípio ético da escrita
contemporânea, na medida em que se trata de uma regra imanente dessa prática. Por
indiferença, entende a escrita como tendo se libertado do mandato da expressão de
qualquer coisa que lhe seja exterior, bastando-se a si mesma e entretendo-se em desvelar
seus próprios meandros, sua estrutura. O sujeito que desaparece na escrita, o autor que
deixa de existir no exato momento em que se exerce sobre uma obra, lhe dando origem:
tudo isso remete ao parentesco da escrita com a morte. Se antes a escrita imortalizava o
herói, agora ela é assassina de seu autor. A obra não se refere mais a um ponto de
origem. Mas tanto a idéia de obra quanto a de escritura e a de autor mantém a lógica
transcendente, na medida em que conservam a idéia de uma unidade da qual vem uma
produção. Então, como podemos pensar nas condições de subjetivação sem a referência
a seus pontos de origem? Como consideramos o vazio desse ponto de origem?
Retornemos às artes visuais.
Nas artes plásticas, como tornaremos a ver com Arthur Danto (2006), uma
ruptura entre o pensamento renascentista, o pensamento modernista e o pensamento
pós-moderno no que tange o fazer artístico, e esse último se caracteriza exatamente pelo
84"
"
fim da história, pelo fim das narrativas como norteadoras desse fazer e pelo surgimento
de alguma outra coisa. Não há continuidade ou deslizamento, mas o surgimento de outra
lógica.
As noções de inconsciente e de sujeito parecem ter proximidade com o que
propõe o modernismo na história da arte. Ambos falam a respeito de um
descentramento em relação ao indivíduo da razão renascentista, cada qual em um campo
distinto. Mas, ainda assim, tais descentramentos trazem consigo novos pontos de
referência, pontos de organização que orientam uma determinada narrativa: na arte, a
arte que se dobra sobre si mesma e passa a se tomar como assunto, na psicanálise, o
indivíduo que também se dobra sobre si, tomando aquilo em que se desconhece como
condutor de seu ser. Nessas dobras, o que se encontra: o ponto de referência, a
verdadeira arte defendida pelos diversos manifestos das vanguardas modernistas do
final do século XIX e início do século XX, o verdadeiro sujeito da psicanálise. A idéia
de essência parece se manter, apenas deslocada para outro lugar.
Podemos situar em um mesmo momento histórico, bem como em um
compartilhado caldo cultural e em uma mesma teia discursiva a psicanálise, o
modernismo e a idéia de autor, cada qual depositando em um certo lugar a verdade
sobre a arte, o psiquismo e a obra. O autor uma função circunscreve um discurso, o
inconsciente é o motor do psíquico, a obra de arte revela-se em sua fatura. Não mais
imitação, mimesis, transparência absoluta de um suporte como veículo inapreensível de
um outro algo a ser expresso, retratado. A ênfase recai sobre o ruído, a dissonância, a
rugosidade da tela que se revela em sua materialidade e, portanto, descortina o artifício.
Da mesma maneira, não mais total consonância entre o dito, o sabido, o conhecido e
o sujeito. Esse escapa de si mesmo ao encontrar-se onde não queria, não se sabia, não
suporia estar. Freud, seus sonhos, suas histéricas e seus sintomas nos falam a esse
85"
"
respeito. Por fim, o autor contorna também um campo que não desliza mais fluidamente
entre o que é dito e a forma como isso será ouvido, que a função autor se instaura
como filtro para esse discurso, como tão bem vimos em Foucault (1969).
Estamos num tempo em que a arte como narrativa não faz mais sentido, do
mesmo modo que não faz a idéia de sujeito. O estruturalismo colocou em questão a
centralidade do sujeito produzida pela filosofia até então.
6
Tomou parte de uma
dissolução do sujeito, na medida em que o mesmo se dissolve no campo da estrutura.
Na psicanálise, a teoria do inconsciente colocou o sujeito em questão. Ao mesmo
tempo, essa mesma teoria recompôs o sujeito por meio do inconsciente, da mesma
maneira que Barthes recomporá o autor por meio do leitor, e é nisso que Foucault
criticará a psicanálise no “Prefácio à transgressão” (1963b).
A modernidade se inaugura com a morte de Deus. Na medida em que Deus está
morto, a lei acabou. O mundo perde o ordenamento que o manteve desde a Antiguidade.
A modernidade começa quando ocorre a morte de Deus, a morte da lei simbólica divina.
Não há mais lei, o que toca em um ponto central para a formulação do campo simbólico
lacaniano. E, se não lei, vivemos em um campo da transgressão que não existe como
contraponto a uma norma, já que a norma não mais vigora.
Na Idade Clássica, contávamos com a relação intrínseca entre o pensamento, a
linguagem e as coisas. Palavras e coisas estavam acopladas umas às outras. Na medida
em que Deus morre, a consonância entre palavras e coisas deixa de existir. As palavras
não mais remetem às coisas, mas às próprias palavras.
"""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""
6
Este e os sete parágrafos que se seguem são baseados em discussão realizada em grupo de estudos, entre
junho e agosto do ano de 2005, a partir dos textos de Foucault mencionados e das intervenções e
esclarecimentos feitos por Joel Birman, coordenador do supra citado grupo.
86"
"
Na Modernidade, perde-se a idéia de origem, pois já não há uma regulação
divina. Deus era o operador fundamental para pensar a origem e o fundamento. Mas,
com ele morto, não mais como pensar origem e fundamento. será possível, então,
seguir a linguagem ao infinito (FOUCAULT, 1963c), a linguagem que desemboca em
linguagem e em linguagem. É assim que a linguagem ganha seu poder na modernidade,
a partir dessa não confluência entre palavras e coisas. uma crise da idéia de
referente. Os signos se relacionam entre si sem terem o referente que lhes substancia. A
perda da idéia de referente equivale à perda da idéia da coisa. Com isso, a linguagem
ganha autonomia e materialidade próprias.
A categoria de inconsciente funciona como dissolutora das ciências humanas, na
medida em que essas estão centradas na figura do homem e na filosofia do sujeito.
Desde Descartes, a certeza da existência estava dada pela certeza do pensamento. O
conhecimento e a construção do mundo encontravam-se centralizados no sujeito.
A crítica à filosofia do sujeito surge no século XIX, com a desconfiança em
relação à consciência como lugar de certeza do conhecimento e evidência do sujeito.
Freud, Marx e Nietzsche são os arautos dessa desconfiança, os autores da suspeita. Com
Freud, não se pode mais confiar nos enunciados da consciência. A autoria está posta em
questão.
Na época cartesiana, havia uma relação direta entre o conhecimento e as coisas a
serem conhecidas, uma relação especular. Era certo que, pela especulação, você
conheceria a coisa. Ver equivalia a representar. As palavras especularizam as coisas na
Idade Clássica. uma relação com a própria referência nesse conhecimento especular
da consciência. Ela é o espelho das coisas. Conhecer é representá-las e elas são
representáveis. Isso se perde com a Modernidade, onde não referência, a coisa torna-
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"
se inalcançável. Tornamo-nos prisioneiros da ordem do discurso. O signo remete aos
outros signos de forma infinita, criando um deslizamento sem fim. Sem a idéia de
origem, estamos condenados à interpretação.
Toda revolução traz em si o germe de sua destruição. Assim, a modernidade que
destituiu Deus de seu papel de significador do mundo, colocando o homem terá,
como conseqüência, a destituição do próprio homem como centro, lugar do saber e da
verdade. Se Deus morre primeiro, levará consigo o homem, pois não tardará a que
dirijamos a nós mesmos a questão com a qual interpelamos o divino. Não
transcendência, não há significação última à qual se remetam todos os sentidos.
A desconstrução de Deus como significação última levará à desconstrução da
própria idéia de significação última. Não transcendência no divino e, tampouco, no
homem e em sua razão. Nem Deus, nem o homem, nem a razão remetem à verdade.
Não há ponto de origem e, portanto, nenhum ponto de chegada para o entendimento das
coisas do mundo, da vida. O segredo é que não segredo e, com isso, se Deus morre,
morre também o homem na possibilidade de se constituir – enquanto razão – em
significação última para si.
Joel Birman (2006) mostra como o patriarcado como forma de organização
subjetiva e social, durante os últimos 2000 anos da história do Ocidente, entra em
declínio após atingir seu auge, na modernidade, com o homem da razão como ponto de
referência e de organização de todo o saber sobre o mundo. O poder do pai, o homem da
razão, fundado no poder de Deus, entra em declínio na medida em que a ascensão desse
homem racional ao seu trono colocará em questão a própria legitimidade de seu lugar de
centro.
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"
A morte de Deus, na modernidade, prenuncia a morte do pai como lugar de
referência e de organização do dispositivo social. Que a isso se siga uma crise do pai
como referência de estruturação do psiquismo, é apenas um dos efeitos esperados desse
estremecimento da lógica fálica (a verdade última, o centro, a essência, a razão, o falo) e
do qual nos traz notícia Lacan e sua desesperada tentativa de reaver a função
estruturante do pai com sua ênfase no lugar central da metáfora paterna para a
organização do campo psíquico. Segundo Birman (2006), Lacan enuncia que a
emergência da psicanálise como discurso se dá a partir, e como conseqüência, da
humilhação e destruição da figura do pai no Ocidente. O discurso psicanalítico,
portanto, não apenas traria notícias dessa falência mas buscaria esse seria o intuito de
Lacan – restaurar a figura do pai em seu posto de importância no campo do psíquico.
Malograda a tentativa lacaniana, temos um esvaziamento da metáfora paterna na
contemporaneidade e o surgimento de novas modalidades de dor e sofrimento bem
como de novas formas de subjetivação impossíveis de serem totalmente circunscritas
às formas que essa lógica patriarcal propõe para seu entendimento. O mal-estar da
atualidade advém da fragilização da figura do pai e o que temos, como possibilidade
subjetiva, terá que encontrar apoio em algo além disso. Ou seja, algo que escapa à
ordem patriarcal e aparece como sofrimento, ou dor, ou possibilidade de constituição
subjetiva. E é por haver essa terceira forma de aparição, no que transborda dessa
falência, que me parece necessário, então, perscrutar essa sobra que tem, por alguns de
seus nomes, justamente o que ficou descartado no campo do pai, de Deus e do falo: o
feminino, o corpo, a loucura.
A narrativa da pintura tradicional representativa foi substituída pela narrativa
modernista que prioriza uma reflexão sobre os meios e métodos de representação e,
depois disso, a própria idéia de narrativa perdeu o sentido. A própria idéia de sentido
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"
perde especificidade, na medida em que o que marca o advento do pós-moderno é
exatamente o término dos pontos de referência para a ordenação do conhecimento e do
fazer em determinado rumo/sentido (histórico, evolutivo, ou como se queira chamar).
Nas artes plásticas, com o fim do modernismo e das narrativas, o que se encontra é uma
falta de unidade estilística aliada a uma liberdade estética sem precedentes. Dos anos 60
em diante, marca desse fim da arte enquanto narrativa para Danto (2006), tudo é
possível.
Quando a arte chega a uma concepção filosófica de si mesma, quando ela pode
ser a enunciação de uma questão por que sou uma obra de arte? e quando essa
resposta não pode mais ser dada por nenhuma indicação presente na aparência das
próprias obras, mas apenas por um exercício de pensamento; quando a reflexão sobre a
obra de arte retorna então ao campo da filosofia, depois de ter sido o próprio objeto do
fazer artístico com a arte moderna, finda-se o modernismo e os artistas libertam-se do
peso da história e podem fazer arte da maneira que quiserem. Chegamos à arte
contemporânea. E, com isso, nos reaproximamos também daquilo que De Duve (2005)
colocou em questão a partir da análise da obra de Duchamp, ou do que o próprio
Duchamp colocou em questão com sua obra e do deslizamento que fiz, no início deste
texto, da pergunta que cabe no campo das artes plásticas para o modo como ela reflete
uma mesma pergunta no âmbito do que designa um indivíduo como tal, e de que
validade essa delimitação mantém na contemporaneidade: o que é arte? O que é uma
subjetividade? Isso que não é arte, o que é? E isso que não é sujeito, o que é?
Aqui retomarei minha primeira hipótese, pois penso que a questão da loucura
como ausência de obra e paradigma das possibilidades de subjetivação contemporâneas
poderá trazer um elemento interessante para essa reflexão acerca do pós-moderno e de
suas ressonâncias na autoria, na subjetividade, na arte e na psicanálise. Do mesmo modo
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"
que situei, anteriormente neste texto, a loucura como ponto de origem dessa delimitação
que contorna um campo de pertinência e outro de exclusão, no que diz respeito ao
indivíduo, a partir da maneira como é pensada da Idade Clássica em diante, venho agora
propô-la como ponto de chegada desse mesmo movimento.
Parece-me que nos aproximamos, como modo de existência na pós-
modernidade, das condições atribuídas aos loucos e à loucura no começo de toda essa
epopéia, situado nos séculos XVII e XVIII. Ou seja, recorro àquele que ficou excluído
da possibilidade de pensamento, razão e produção porque, a meu ver, após todo esse
longo trajeto, é daquilo que foi atribuído à loucura que, afinal, nos aproximamos. E
quero dizer, com isso, que nos aproximamos de uma existência em negativo: uma
existência que é, ao mesmo tempo, negação de sua própria existência para a afirmação
de algo exterior a si. Uma palavra que apaga a si mesma ao ser enunciada, que traz em
si o seu próprio desdito. Uma obra que, ao sê-lo, concretiza sua inexistência.
O projeto da modernidade chega ao fim com a aproximação do homem pós-
moderno daquilo que outrora fora proscrito na condição da loucura. Se obra, talvez
se afigure ali, nesse lugar, nesse fora, na borda que a loucura traçou para a
subjetividade. Talvez seja sobre essa possibilidade de obra que os artistas
contemporâneos trabalhem, essa obra nas margens, assinalando a partir da loucura que
uma obra não pode mais ser construída a não ser nas bordas e, ainda, nos fornecendo
indicações sobre qual seja a subjetividade possível desde esse lugar de borda.
Examinemos essas produções contemporâneas e sigamos suas indicações acerca dessa
subjetivação nas margens.
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"
PARTE III Os artistas, os lugares e as obras possíveis, ou onde a subjetividade
ainda encontra lugar de existir.
Assim, parti da hipótese que a ausência de obra, esse conceito de Michel
Foucault (1972) para situar o lugar destinado à loucura após ter sido transformada em
doença mental, expandiu-se para todos os campos da existência na contemporaneidade
de modo que somos todos colocados nesse lugar da loucura como ausência de obra,
argumentação que desenvolvi na primeira parte dessa tese. Isso quer dizer: não temos
mais um lugar para a subjetividade em nossos tempos. Então, será que é possível e
como será possível que essa subjetividade ainda crie possibilidades de existência num
mundo tão pouco hospitaleiro?
Parti também do movimento que ocorre no campo das artes visuais ao longo
desse mesmo período em que a loucura se torna ausência de obra, desrazão, doença
mental e medicalização das subjetividades para constatar que, até mesmo em um lugar
clichê de presença de obra, o movimento de sua desaparição acontece, a partir do
momento em que de forma análoga ao sujeito louco que pode ser extraído para um
campo de não-subjetividade – também uma obra de arte pode ser excluída para o campo
da não-arte. Desde então, a arte possível passa a se dar nas bordas e provir desse campo
de sua exclusão, o que volta a nos indicar que, talvez também em relação à
subjetividade, ela passe a acontecer nas bordas daquilo que foi contornado como não-
sujeito, ausência de obra: do lugar da loucura.
Tento, nesse ponto, e a partir das hipóteses anteriores e das indicações oferecidas
pelos trabalhos das artistas que veremos em seguida, apresentar o corpo e o feminino
92"
"
como alguns desses lugares de borda nos quais ainda podemos encontrar uma
possibilidade de fazer obra, ou seja, de construir uma subjetividade em nossos tempos
tão hostis a todas as condições para que haja um sujeito.
qualquer coisa que se passa entre, não no sentido de um espaço entre dois
interiores, entre duas interioridades distanciadas por suas singularidades, mas no sentido
de um espaço de mistura, um espaço em que se encontra, na falta de poder dizê-lo de
maneira melhor, aquilo que está dentro com o que está fora, tornando dentro e fora
lugares indistintos. Podemos falar de um lugar de borda, assim como de fronteira como
esse espaço de encontro e de indistinção e é precisamente nessa borda, nessa fronteira,
nesse espaço entre que suponho que o indivíduo encontre ainda um lugar para se
construir enquanto sujeito. A essa borda, nomeio-a corpo e nomeio-a feminino.
O corpo e o feminino são dois temas de borda para a psicanálise, duas tentativas
de falar acerca tanto quanto de dar a palavra a essa borda na qual o sujeito nasce. Ao
percorrer esses dois conceitos, a psicanálise me parece ter tentado se aproximar daquilo
que, sempre e desde Freud nos escapa, aquilo que está fora da linguagem e da
representação, esse pedaço do real que desafiou Freud enquanto pulsão vinda do corpo e
enquanto mistério do desejo feminino, os dois levando ao mesmo lugar, quer o
denominemos gozo feminino, real ou pulsão de morte.
A tais lugares de borda, cheguei após ter ido buscar as possibilidades para a
subjetividade contemporânea no campo artístico, nas artes visuais e naquilo que as
produções de alguns artistas nos informam sobre as condições de subjetivação em nossa
época. Isso quer dizer que tais lugares de borda não foram os pontos de partida de
minha pesquisa, mas os pontos de chegada aos quais fui levada pelo estudo aprofundado
dos percursos artísticos de algumas artistas contemporâneas ainda vivas e ainda
93"
"
produzindo. Em suma, tendo partido da hipótese da ausência de obra e tendo buscado os
lugares em que a mesma é ainda possível, em um meio quase clichê como o da arte
contemporânea, cheguei aos lugares em que tais obras discutem o corpo e o feminino, o
que me permitiu colocá-los em relação com o corpo e o feminino apresentados pela
psicanálise, supondo-os como lugares de subjetivação.
Mas antes de me deter nesses lugares do corpo e do feminino como
possibilidades de obra e de subjetividade, são necessárias algumas considerações e um
posicionamento sobre a maneira como arte e psicanálise serão articuladas nesse
trabalho.
94"
"
Capítulo 8 – A arte e a psicanálise.
A arte foi tomada pelos psicanalistas desde o tempo de Freud enquanto tema de
reflexão. O próprio Freud fez referência seja às artes visuais, seja à literatura inúmeras
vezes ao longo de suas obras, de maneira direta ou indireta, como ilustração de seus
conceitos ou como caso clínico / sonho a ser desvendado através do método
psicanalítico. Sabemos a partir de seus biógrafos o valor que atribuía a sua coleção de
arte clássica, sem mencionar seus famosos ensaios sobre Leonardo da Vinci, o Moisés
de Michelangelo e a Gradiva de Wilhem Jensen, para citar apenas alguns.
7
E não
podemos nos esquecer do Édipo, um de seus conceitos fundamentais nomeado a partir
da literatura e da mitologia gregas. Em suma, a arte foi sempre levada em consideração
por Freud e pelos psicanalistas enquanto produção humana, expressão de uma
subjetividade, além de indicador do trabalho psíquico realizado pelos sujeitos a fim de
se haverem com suas pulsões, seus desejos e seus limites.
Podemos considerar que, no meio psicanalítico, a arte foi tomada muito mais por
seu conteúdo que por sua forma. Se alguma crítica a ser feita a essa psicanálise
aplicada aos domínios artísticos é a de que ela negligencia frequentemente o contexto
no qual o artista produz, especialmente sua relação com os materiais, com as mídias e
com as técnicas artísticas, assim como sua relação com o meio artístico de seu tempo e,
ainda, com a história da arte na qual ele se insere e com a qual dialoga. Ao negligenciar
tudo isso, a psicanálise se limita ao conteúdo das obras, tentando fazer uma
"""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""
7
Textos de Freud (1910a, 1914b e 1907, respectivamente).
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psicobiografia do artista a partir de seu trabalho, método que não foi suficientemente
criticado, tendo em vista que se trata daquilo que Freud (1910b) nomeou como uma
psicanálise dita selvagem que ele mesmo não deixou de fazer.
É interessante retomar o trabalho de alguns psicanalistas, naquilo em que eles se
propõem a falar a respeito da arte, para constatar a aproximação acima de tudo
interpretativa do artista ou de sua doença por meio de sua obra. Trata-se da abordagem
mais freqüente, por exemplo, no que diz respeito às performances no campo das artes
visuais, onde os psicanalistas falarão quase sempre das catástrofes subjetivas ligadas ao
ato, o que empobrece suas interpretações e as obras assim descritas, como se dissessem
respeito a uma pura descarga libidinal semelhante às automutilações das adolescentes
anoréticas. Esse tipo de interpretação não considera que apenas a partir de uma análise é
possível estabelecer as ligações entre a obra de arte e o psiquismo do artista e, ainda
mais, que comparar uma performance a uma automutilação não considera a primeira
como um trabalho artístico, como se entre o sintoma e a obra de arte não existisse um
mundo inteiro... de sublimações.
Nesse caso, a obra de arte é lida por meio da chave do sonho, aproximado o
artista e o sonhador, o trabalho do sonho e o trabalho artístico. É, no entanto,
interessante essa abordagem que considera a ligação do sonho e da obra de arte com o
desejo e com o trabalho psíquico que leva o desejo à sua realização ainda que, entre um
sonho e um trabalho artístico os caminhos tornem-se completamente diferentes, o que
nos obriga a considerar as diferenças entre a arte e o sonho tanto quanto suas
semelhanças. Estou totalmente de acordo com o que escreve Hanna Segal (1993) a esse
respeito:
96"
"
“Se realização de desejo na arte e deve ser assim, na medida em que há
realização de desejo em todas as atividades humanas , não se trata apenas de uma
simples realização onipotente de um desejo libidinal ou agressivo. Trata-se da
realização do desejo de perlaboração de um problema de uma maneira específica e não
daquilo que entendemos como sendo a realização do desejo, ou seja, a onipotência.”
(p.150).
Do sonho ao jogo infantil para se ter em conta a modificação sobre a realidade
externa feita pela arte e pelo jogo infantil e desse ao chiste, a fim de considerar os
desejos recalcados expressos por ambos, o que Freud deixa de lado é a experiência
estética que não é assimilável às emoções de associação que ele descreve sob a forma
do humor no seu texto de 1905. Sem considerar a sublimação, a obra de arte será, como
o chiste, um prazer preliminar que leva a um prazer primeiro ligado ao conteúdo
recalcado. Ou seja, a produção artística, para Freud, segue a cadeia de um aumento da
intensidade muito mais do que de uma modificação qualitativa profunda a qual diga
respeito à pulsão propriamente dita, na medida em que o recalque se faz somente sobre
as representações. É necessário se deter sobre a sublimação a fim de compreender tal
condição de modificação pulsional apresentada pelo trabalho artístico, o que farei ao
final deste trabalho.
Nesse momento, entretanto, gostaria de tentar uma aproximação outra das obras
de arte: tendo em conta a arte como uma das produções subjetivas que falam de seu
tempo e dos sujeitos de seu tempo, por vezes antecipando questões e impasses de sua
época, penso que seja do interesse do psicanalista poder se aproximar das produções
artísticas a partir daquilo que elas lhe ensinam sobre tal época e tais subjetividades.
Mais do que uma interpretação desde uma rede conceitual conhecida, trata-se de um
tipo de aprendizado, de estar atento ao que os artistas indicam em seus percursos
97"
"
enquanto caminhos ligados às possibilidades de um sujeito em seu tempo, de uma
antecipação que faz trabalhar os conceitos, problematizando-os ao torná-los vivos.
Assim, trata-se de buscar na arte contemporânea o novo que ainda não foi nomeado, o
qual a arte é muito mais capaz de perceber a chegada.
Não sou, certamente, a primeira pessoa a privilegiar tal aproximação. Ernst Kris
(1952), por exemplo, deixando de lado a centralidade do ego em seus escritos que
introduziram a psicanálise nos Estados Unidos, teve êxito em falar sobre arte de uma
maneira a ter em conta suas especificidades, propondo enquanto método de pesquisa
tomar a relação entre forma e conteúdo nas obras de arte. Ele afirma:
“Sabemos muito tempo que a arte não se faz em um espaço vazio, que todo
artista depende de seus predecessores ou de seus modelos e que, tanto quanto o homem
de ciências ou o filósofo, ele pertence a uma certa tradição e que trabalha em um
domínio estruturado por problemas a serem resolvidos. (...) A psicanálise, até o
momento, pouco contribuiu para a compreensão e a significação dessa situação
propriamente dita e a psicologia do estilo ainda está por ser escrita. O método de
aproximação será, certamente, complexo, a influência da psicanálise dependerá, sem
qualquer dúvida, de nossa capacidade de considerar os fenômenos de estilo na arte, ao
menos em parte, em função do processo de descarga que eles estimulam no artista e no
público.” (p.24).
No campo das artes, encontramos algumas artistas contemporâneas que
apresentam uma discussão sobre o feminino e o corpo enquanto lugares de borda e
possibilidades de subjetivação através de suas obras, trazendo à psicanálise uma série de
referências interessantes sobre as quais se apoiar ao longo dessa reflexão sobre o tema,
98"
"
tanto quanto uma série de questões e de sugestões imprevistas, que podem mesmo
guiar-nos a novos lugares, como talvez vejamos a seguir.
Desde as pioneiras que apareceram como artistas nos movimentos de vanguarda,
não restou nenhum movimento, nenhuma mídia, nenhuma tecnologia e nenhum suporte
dos quais as mulheres não tenham feito uso como recurso a ser explorado a fim de
criarem suas obras. Muito além do discurso feminista que, certamente, pode ser
encontrado em muitas das obras e das trajetórias dessas mulheres artistas, sobretudo se
considerarmos que a arte, como um veículo de expressão e até de antecipação do ‘ar do
tempo’ de cada época, não poderia estar imune aos discursos que tanto influenciaram o
século XX – os discursos sobre os corpos e os discursos sobre a mulher, dentre os quais
o feminista, incluídos o que descobrimos no trabalho dessas mulheres é que eles
incluem uma multiplicidade de temas, de modo a não poderem ser qualificados como
uma forma de arte especificamente feminista ou feminina, mas apenas como arte.
8
Da
pintura à performance, do design à arquitetura, da fotografia às interfaces de internet, da
escrita às instalações, da música ao vídeo, as artistas mulheres se consagram, desde os
anos 50 e 60 a todas as questões que dizem respeito à arte desde que ela se dobrou sobre
si mesma durante os movimentos das vanguardas.
Em meio a esse universo de artistas mulheres e de artistas que homens ou
mulheres discutem o feminino e o corpo em suas obras, escolhi três, sem me deter em
uma coerência temporal, regional nem das tendências artísticas às quais elas se afiliam
ao longo de suas carreiras. Suas diferenças, entre outras: uma é brasileira, outra é
americana e a terceira é sérvia. Uma trabalha com instalações principalmente, outra com
"""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""
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Recentemente, entre os anos de 2009 e 2010, uma exposição no Centre Georges Pompidou em Paris,
França, denominada elles@centrepompidou, foi realizada com o intuito de discutir e problematizar
precisamente essa questão, sustentando a idéia de que é possível contar uma história da arte a partir de
trabalhos feitos apenas por mulheres, o que as coloca espalhadas por todos os campos, todos os
movimentos e em meio a todas as discussões desse fazer artístico, das vanguardas até nossos dias,
mostrando ser impossível propor uma especificidade de suas produções calcada na idéia de gênero.
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"
a fotografia e a terceira com performance. Suas semelhanças: as três começaram a
trabalhar como artistas entre os anos 70 e início dos anos 80, estão vivas e ainda
produzem e, enfim, as três colocam em questão de formas diferentes o corpo e o
feminino em suas obras, trazendo sempre uma crítica, uma desconstrução e uma questão
a respeito desses temas.
Ao voltar minha atenção às artes contemporâneas, me indago a respeito daquilo
que os artistas estão a produzir e se tais produções ajudarão à psicanálise ao nos dar
quaisquer indicações dos lugares possíveis nos quais a subjetividade encontrará ainda
seu espaço. Tomando essas três artistas contemporâneas Nazareth Pacheco, Cindy
Sherman e Marina Abramovic assim como seus percursos artísticos, chego ao que
suas obras colocam em discussão: o corpo e o feminino. E, no entanto, considerando
aquilo que acabo de afirmar a partir da citação de Kris, não se trata somente de uma
aproximação ao conteúdo de tais obras, abordando apenas o corpo e o feminino
enquanto temas de borda que situam a subjetividade possível nas margens mas,
também, da maneira como tal conteúdo é apresentado. Isso quer dizer que as estratégias
utilizadas pelas artistas para colocar o corpo e o feminino em jogo nas suas obras são
tão importantes quanto seus temas propriamente ditos. E tais estratégias nos indicam,
certamente, os caminhos através dos quais a subjetivação se faz nas margens,
notoriamente um caminho de profanação, de deslocamento de um aprisionamento
perverso em direção à sublimação, ao que retornarei no final deste texto.
O corpo e o feminino. Serão eles lugares possíveis para a subjetividade
contemporânea? O corpo e o feminino enquanto lugares de fronteira, será que nos
indicam que a obra e, consequentemente, a subjetividade são ainda possíveis na medida
em que feitas nas bordas? O que os artistas nos mostram acerca de tais temas? E acerca
da possibilidade de obra ali incluída? Vamos a elas.
100"
"
Capítulo 9 – O corpo feminino asséptico: Nazareth Pacheco
O que nos afeta de cara, ao tomarmos contato com a obra de Nazareth Pacheco,
é a maneira como ela brilha. As pequenas peças de cristal transparente, por vezes negras
ou vermelhas, capturam de modo imediato o olhar do espectador. Os vestidos e colares
em cristal chamam a atenção e nos encantam, tanto quanto os ambientes feitos do
mesmo material: as cortinas que circundam um espaço, criando-o, as cortinas de um
provador, as cortinas frente a um espaço em que está uma rede... As cortinas e as
vestimentas femininas brilhantes nos dão vontade de aproximarmo-nos, de tocá-las,
experimentá-las e é então que descobrimos que todo esse brilho não existe apenas
graças aos cristais transparentes, por vezes negros ou vermelhos, mas também graças às
lâminas de barbear que fazem parte dos objetos. Lâminas de barbear, bisturis, lancetas,
agulhas, os brilhos metálicos dos materiais frequentemente destinados ao uso cirúrgico
fazem contraste com os brilhos dos cristais tão lindos que nos convidam a olhá-los e a
aproximarmo-nos. O perigo se desvela em meio a todos esses brilhos e, uma vez
notados os objetos perigosos em metal, tornamo-nos prisioneiros de uma armadilha:
atraídos e tomados pelos cristais brilhantes, repelidos e chocados pelos materiais
perigosos. Pegos em uma cilada, sem podermos nos aproximar e, no entanto, sem
podermos desviar o olhar e sair da cena.
Repulsa e atração: tal é a polaridade com que a artista parece brincar e nos
seduzir para seus objetos tão lindos, tão limpos, tão perfeitos e, ao mesmo tempo, tão
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"
inacessíveis. Não me toque, eles parecem dizer. Que perigos jazem na superfície ou na
intimidade desses objetos com os quais Nazareth nos presenteia e nos desafia?
O olhar, o único sentido que pode ainda se aproximar das obras de Nazareth de
uma maneira fora de perigo mas não realmente em toda a segurança, como veremos
adiante mostra de cara a ironia da aproximação da artista à história da arte
propriamente dita, para a qual o olhar sempre foi convocado e, algumas vezes,
desprezado, tornando as produções artísticas ligadas de maneira permanente à
problemática do olhar e do visual mas, também, aproximação à sua própria história
enquanto artista, se nos lembrarmos que Nazareth Pacheco cria, no começo de seu
percurso, aquilo que Tadeu Chiarelli denominou, em 1991, ‘objetos dependentes’. De
quê? Do toque, da manipulação do espectador, do espaço circundante, enfim, um objeto
cuja existência dependeria da relação que pudesse manter com o outro. Nessa época,
objetos de borracha, sempre com pontas e saliências, que fariam lembrar objetos de
tortura, talvez, criando uma estranha sensação de hostilidade. Objetos a serem
manipulados, mas não acolhedores, nem simpáticos, nem convidativos.
Vestidos e colares são adornos femininos e é ao corpo e ao desejo feminino que
eles apelam. Um corpo que, na obra de Nazareth, aparece enquanto ausente. O corpo
feminino impossível de se ter acesso, dando notícia de sua existência por sua ausência,
faz imaginar a mulher nua frente à impossibilidade de se vestir com tais vestimentas ou
a mulher retalhada após tê-las vestido. Em todo caso, um corpo de mulher despedaçado,
desnudado, ausente, talvez o corpo da própria artista, que dá literalmente seu sangue por
suas obras. Um corpo feminino que se desvela sem se deixar aproximar, feito de cristais
brilhantes, sedutores e de objetos de metal também sedutores, mas ameaçadores.
Desvelamento e engano. Cilada, aprisionamento. O corpo feminino enquanto sedução e
perigo. O corpo objeto do olhar e o corpo que faz o olhar cativo.
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"
A assepsia das obras de Nazareth Pacheco me parece ser a manobra que ela
utiliza para relacionar o desejo, a sedução e o aprisionamento do olhar em relação ao
feminino e ao corpo. A perfeição, a pureza, a limpeza dos materiais acrílicos e metálicos
dos quais faz uso fazem referência direta à história da arte em que o corpo feminino foi
como abordado anteriormente um dos símbolos máximos do Belo na pintura e na
escultura. Um corpo feminino tão passivo quanto flexível às necessidades da arte e às
suas técnicas de velamento do gesto do artista a fim de que a obra seja o mais
transparente possível, de maneira a dar lugar àquilo que representa ao apagar, tanto
quanto possa, tudo o que a torne opaca. A obra de arte como um espelho do mundo, tão
mais efetiva quanto mais se esconda sua fatura.
Aqui, o objetivo da obra de arte e seu tema parecem combinar-se de maneira
perfeita, uma vez que o corpo feminino objeto dessa obra, escolhido para ali representar
qualquer coisa outra ligada a um ideal, se entrega a essa forma de ser representado
velado de tudo aquilo que possa distanciá-lo desse ideal do Belo, inclusive de todos os
atributos femininos. O corpo feminino asséptico enquanto objeto das artes visuais:
eis ao que as obras de Nazareth Pacheco fazem referência de maneira a colocá-lo
em questão.
E, uma vez apresentado o campo em que as obras de Nazareth Pacheco se
desenvolvem, como é que ela as torna críticas de tal campo?
Apresento a hipótese de que a artista colocará em questão essa assepsia do corpo
feminino como objeto do olhar e, conseqüentemente, como objeto do desejo ao
recolocar, em suas obras, todos os aspectos que foram retirados desse corpo a fim de
que ele se tornasse objeto da representação artística, inclusive sua carne, seu sangue, sua
materialidade. Isso quer dizer que a artista põe em questão o corpo feminino asséptico
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"
como objeto idealizado do olhar através dos mecanismos pelos quais o olhar funciona: o
apaziguamento, o velamento, a negação. Ou seja, somos reenviados a Freud (1927) e ao
objeto-fetiche, aquele em que o olhar se fixa, seu último ponto de atração e parada antes
que ele se depare com a castração, os mecanismos do olhar em oposição à constatação
que poderia por em questão o corpo feminino enquanto ideal.
O que traz o olhar?
Lembro a vocês da obra póstuma de Marcel Duchamp a qual descrevi
anteriormente, o Étant Donnés, em que sua crítica à fetichização das obras de arte se faz
de maneira veemente, na medida em que o que é dado ao olhar voyeur do espectador,
quando não se trata de um mictório ou algo que o valha, é uma cena em que o voyeur é
posto no lugar de ser visto ao olhar, desnudado em seu ato fetichista, confrontado à
situação de ser olhado por aquele a quem olha. É a maneira usada por Duchamp para
propor uma arte não-retiniana, a fim de desconstruir a função do olhar em relação à obra
de arte. Trata-se também dessa desconstrução de tal função o que nos trouxe Jacques
Lacan (1964) quando ele constata que antes de todo o olhar está a condição de ser
olhado, na medida em que o sujeito é olhado de toda parte. Olhar a si mesmo ao olhar.
Ser olhado. O que olhamos nos faz sermos olhados. Isso tudo nos envia à falta
constitutiva da angústia de castração.
Nas obras de arte como aquelas de Duchamp ou de Nazareth Pacheco, trata-se
da inversão entre olhar e ser olhado. O buraco de mulher que Duchamp nos a ver em
sua instalação é como o buraco do olho e ele nos olha de volta. O buraco de Duchamp
nos arranca da posição espectador / voyeur. E trata-se do mesmo arrancar as instalações
de Nazareth Pacheco: um desvelamento de brilhos entre outros brilhos, um
desvelamento do que corta em meio ao que brilha. Nada está escondido para ser
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"
descoberto. Tudo se oculta pela luz, em um jogo de luz e sombra que traz os perigos
lado a lado com os brilhantes sedutores. Suas obras, contrariamente àquelas de
Duchamp, são extremamente retinianas, mas a função de desconstrução do olhar é
muito próxima em suas estratégias tão diferentes: eles nos seduzem e nos aprisionam
por meio do olhar.
O voyeur é cativo do objeto-fetiche na medida em que é o mesmo que esconde,
evita, detém o olhar um átimo antes da borda, do buraco, da constatação da castração. O
objeto é seu triunfo e sua proteção contra o buraco. O que Nazareth Pacheco parece
fazer com suas obras é, justamente, aprisionar seu espectador no objeto-fetiche não para
desviá-lo do buraco mas, ao contrário, para ali arremessá-lo irremediavelmente. Os
objetos-fetiche de Nazareth são como a cabeça da Medusa, colocando o buraco em cena
naquilo que deveria evitá-lo.
O olhar, para Lacan (1964), de maneira coerente com o que Freud anuncia com
seu texto sobre o fetichismo, é um apaziguador. É possível perder-se nele e, com isso,
perder-se da falta que o olhar disfarça. Na reciprocidade entre o olhar e o ser olhado o
sujeito encontra um álibi, passando despercebida sua queda. Ou seja, ele permanece na
ignorância do que há para além da aparência.
O objeto-fetiche de Nazareth Pacheco atrai o olhar e, antes mesmo que se
aperceba, torna-o prisioneiro de um mundo de objetos perigosos que não podem ser
tocados, mas que não deixam desviar-se. O olhar prende e só se pode olhar. São objetos
que, como a cabeça da Medusa na maneira como a ela se refere Jean-Pierre Vernant
(1991), comportam traços de insólito e estranheza, misturando o masculino das lâminas
de barbear com o feminino das vestimentas, o belo e o feio, o atraente e o repulsivo,
colocando-nos no campo terrificante do grotesco.
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Freud pode nos auxiliar novamente, com seu texto “O estranho” (1919), no qual
também o olhar possui importante papel na definição do que seja o unheimlich causa de
horror. O estranho familiar inquieta por seu paradoxo, através do qual recoloca a
questão do olhar em sua relação com a castração. Trata-se de algo que se a ver
quando deveria permanecer oculto, trazendo para a estranheza uma associação com o
olhar e com o que se a ver, gerando horror e familiaridade. Em Freud, a visão da
genitália feminina é o que acorre aos olhos, remetendo à castração e à inquietação
causada pela constatação da mesma. O fetichismo vem fazer frente a tal confrontação.
Nas obras de Nazareth Pacheco, essa ambigüidade do que se a ver e não é
visto também parece presente, de maneira a permitir-me afirmar seus objetos como
fetiches. O brilho dos cristais que ofusca os olhos desvia e está seu poder de
sedução do também brilho metálico e frio daquilo que fere e mutila. Os objetos
cortantes não passam, contudo, despercebidos em meio à trama atraente tecida pelas
mãos da artista. São notados e daí seu poder de aprisionamento. O que se dava a ver
foi visto, o olhar acolhido pelas luzes da obra, em busca de repouso, assentou-se sobre
facas, pontas, lâminas e se cortou.
Retorno, então, a Lacan (1964) naquilo que fala sobre a pacificação do olhar em
seu texto. O quadro que pacifica o olhar não faz com que a pulsão escópica seja
reduzida ao apaziguamento, uma vez que ela também leva a qualquer coisa da ordem da
satisfação. Segundo ele, olhar-se olhando é uma manobra do olhar que afirma que
aquilo que é percebido pertence ao indivíduo, retirando daí aquele que olha e tornando-
se apenas um olho. Isso significa que uma cisão vinda da consciência na medida em
que o sujeito tenta se acomodar ao olhar misturando-se a ele. Quando ele olha, cinde o
olho e, quando ele vê esse olho, é o olhar que desaparece.
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Ao discorrer sobre o quadro Os embaixadores, de Hans Holbein, Lacan afirma
que “(...) esse quadro não é nada mais do que é todo quadro, uma armadilha de olhar.
Em qualquer quadro que seja, é precisamente ao procurar o olhar em cada um de seus
pontos que vocês o verão desaparecer.” (p.88). No quadro de Holbein é o objeto
flutuando em primeiro plano que pega aquele que olha em sua armadilha. Na obra e
Nazareth Pacheco, é a conjunção entre os brilhos de cristais e os brilhos metálicos.
É o próprio Lacan quem vai afirmar que o objeto nos olha no nível do ponto
luminoso. O olhar como jogo da luz com a opacidade. É através dele que o sujeito se faz
quadro. O quadro, para ele, manifesta algo do olhar. O que o artista faz ao produzir sua
obra é a seleção de um modo de olhar. E, àquele que olha, o que apresenta reflete-se no
que segue: Queres olhar? Pois bem, veja então isso! Ele oferece algo como pastagem
para o olho, mas convida aquele a quem o quadro é apresentado a depor ali seu olhar,
como se depõem as armas. está o efeito pacificador, apolíneo, da pintura. Algo é
dado não tanto ao olhar quanto ao olho, algo que comporta abandono, deposição, do
olhar.” (1964, p.99).
O quadro pacifica o olhar, então. Mas o próprio Lacan, ao falar sobre a pintura
expressionista, aventará ainda um algo mais, uma certa satisfação como na satisfação
da pulsão que também é conferida pelo quadro ao que é pedido pelo olhar. Assim, a
função do olho não esgota o caráter do órgão, não resume a pulsão a um movimento de
apaziguamento. A idéia do olhar que se pacifica naquilo que encontra como obra, o que
coloca a pulsão escópica como engodo da castração parece deixar de lado algo que a
produção de Nazareth Pacheco vem constantemente reafirmar: que o olhar que se
apazigua é, também, perturbado e aprisionado nesse jogo de sedução com o objeto-
fetiche que, por sua vez, não se omite em revelar suas garras, facas, agulhas para
realizar seu efeito de sedução / repulsa.
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"
Desde o início, Nazareth Pacheco (2002) nos apresenta suas obras
aproximando-as de objetos de tortura e aprisionamento. Haverá uma ênfase na
qualidade de serem objetos dependentes, aprisionados, evasivos, aprisionantes,
sedutores e afins bem como em sua função de tortura e aprisionamento, o que cria
uma conversa com as idéias por mim apresentadas de objeto-fetiche e de
aprisionamento do olhar como pontos de partida para a reflexão sobre seu trabalho.
A artista toma para si a fatura de suas obras de borracha e pontas que vão se
colocar, como objetos tridimensionais, no mesmo espaço ocupado por seu corpo. Da
parede ao chão, adquirem uma mobilidade que permite a manipulação e interação com
aqueles que a observam. É dessa interação que a própria obra nasce, como se ela fosse
esse contato, essa intervenção, essa marca de uma ação em que o outro – o espectador
está implicado: por isso os ‘primeiros’ objetos de Nazareth são dependentes, tais quais
nomeados por Tadeu Chiarelli (1991). Eles dependem do espectador para existirem
enquanto objetos de arte de tal ou qual maneira, à mercê de suas explorações.
Vemos a relação de aspectos ligados à sexualidade com outros levando ao
perigo e à morte. Seus objetos dependentes remetem, por seu aspecto pontiagudo, a
objetos de tortura, ou àqueles utilizados nos jogos sado-masoquistas, misturando a dor,
a morte e a sexualidade num jogo ambíguo que, mais tarde no percurso da artista, vai se
explicitar cada vez mais como um jogo de sedução e repulsa em que o sexual, tanto
quanto o mortífero, encontram-se igualmente implicados.
Ao uso da borracha vulcanizada nesses objetos dependentes e torturantes, segue-
se o uso da borracha natural, que Nazareth torce e retorce com o auxílio de uma brida de
chumbo tornando-as verdadeiros nós, que ela diz ‘estrangulados’ em uma batalha corpo-
a-corpo entre a borracha, o metal e o próprio corpo da artista. Trata-se do
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estrangulamento de um corpo por outro corpo, com o auxílio de um terceiro.
Novamente a tortura em cena, bem como o jogo de atritos entre corpos, a força, os
toques, a resistência, a cessão, o sexual, a sedução.
Dos dependentes à pele e aos aprisionados, Nazareth Pacheco confina uma série
de objetos pessoais em caixas de madeiras fechadas, vitrines de uma trajetória
fragmentária que parece iluminar momentos relativos ao seu corpo inserido e
manipulado pelo discurso e pelas ações médicas. Um corpo alquebrado, torturado,
tornado objeto da intervenção da medicina, corpo despossuído de si, alheio a seus
sentidos. Tratamentos médicos e cirúrgicos, tratamentos de beleza, tratamentos como
tortura face à dor e à sedução. Tratamento como lugar em que dor e sedução se juntam
como seus objetivos últimos: expulsar a dor, inserir artifícios de sedução. O objeto
aprisionado de Nazareth parece retratar o exato momento em que tortura e sedução se
aliam num amálgama complexo que dotará, dali para frente, seus objetos-obras de uma
profunda ambigüidade: sedutores e repulsivos, experiências da dor e do deleite.
Dos objetos aprisionados autobiográficos para os objetos femininos, ou melhor,
objetos usados no corpo da mulher. Espéculos, saca-miomas, DIUs: uma parafernália
ainda relativa à incidência da ação médica sobre o corpo e não apenas o corpo da
artista, mas qualquer corpo de mulher faz emergir das entranhas desse corpo para os
espaços de exposição objetos de tratamento alinhados e questionados em sua condição
de tortura. Objetos comuns, cotidianos, de uso privado e íntimo, que jazem na escuridão
dos mais recônditos buracos do corpo feminino aparecem, subitamente, iluminados e
seriados na sua mais inócua e inocente aparência de objetos de composição. Mas, em
sua repetição harmoniosa, há sempre algo que destoa e retorna aquilo que parecia
pacificado ao seu aspecto de maior horror: um único espéculo de metal em meio a uma
parede inteira de espéculos de acrílico, centenas de DIUs jogados em uma bacia de
109"
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alumínio, como a grande quantidade de espermatozóides a que os mesmos confrontam
com resistência e morte, um saca-miomas entre saca-rolhas, suscitando a ação feita no
interior do corpo da mulher, uma extração. Extração, extirpação, invasão e morte:
Nazareth Pacheco parece tentar arrancar dos objetos comuns sua aparente inocência e
sua condição apaziguadora. No mesmo movimento em que cria repetições e séries
tranqüilizantes, perturba aquele que contempla sua obra com um cutucão, um porém,
uma dissonância que cria brecha para que a dor e a repulsa voltem a se instaurar.
Daí para os objetos sedutores, basta um passo: colares e vestidos com suas
contas e pontas, aprisionados em vitrines, inacessíveis ao toque, convidativos,
proibitivos, doloridos e irresistíveis. Sua assepsia herdada dos tratamentos e objetos
cirúrgicos não lembra em nada a borracha marcada pela luta com o corpo, trazendo
para o campo de uma perfeição quase perversa a tensão que a artista cria entre sedução e
repulsa. O objeto sedutor / objeto-fetiche parece conjurar precisamente essa marca do
corpo, do humano, dos traços de mulher postos nas obras anteriores que, agora, são
limpas e límpidas como se pretendem as ações médicas. Um feminino retirado de suas
excrescências como o fetiche retira os sinais da castração. Lâminas, agulhas, anzóis,
giletes, cristais, miçangas e a mão da artista envolvida pelo fazer. Uma costura, uma
renda, um bordado: a beleza ofusca de tanto brilho que quase engana dos perigos de
cortes e furos. Os cortes e furos no corpo da artista que viraram obra ameaçam o
corpo do espectador, refém do fascínio e da dor antecipada.
Nazareth entende seus objetos como ‘facas de dois gumes’, na medida em que
seduzem e oferecem riscos à integridade do corpo. Objetos de aprisionamento, a artista
os coloca em cena como provocações à nossa condição de servidão voluntária. O olhar
servil que se pacifica e pasta nas obras de arte é aquele que Nazareth Pacheco fere e
atormenta, provocando-o a ser pulsante.
110"
"
Os vestidos têm a medida do corpo da artista, um corpo sempre presente em sua
ausência, que se presentifica por não estar ali, justamente como o objeto que, para sê-lo,
tem que se constituir ao desaparecer. O vestido torna-se a marca da existência de um
corpo que ali esteve, de um combate entre o corpo e o material, entre a mão e as
miçangas, entre o sangue e as giletes. O vestido remete à ação que lhe deu origem, ao
corpo, ao atrito, à fricção, à dor e ao prazer: o que antes era pele de borracha brigada,
suada e estrangulada tornou-se pele de brilhos e cortes, não combatida porque
impossível, proibida desse embate corporal, limpa, cristalina, fria, transparente.
A artista passa a se utilizar do acrílico cristal e, com ele, não apenas ela distancia
suas mãos de sua obra que é projetada por ela e feita em uma fábrica especializada no
manejo desse material – como torna distância e aprisionamento termos ainda mais fortes
de sua produção, por meio da confecção de objetos que serviriam a acomodar tornados
objetos de repelir, tal como o balanço de acrílico com agulhas fixadas em seu assento, o
berço de acrílico e aço com gilete, ou ainda o banco de acrílico preto, também com
agulhas no assento, que a artista relaciona com um divã e com as medidas de seu corpo.
Lembranças de infância, de berços e de balanços espetadas por giletes e agulhas de
costura tornando impossível instalar-se no conforto da felicidade infantil como tempo
perdido.
A ambigüidade se mantém entre a sedução de seus objetos sado-maosquistas e a
violência de seus objetos de tortura. Eles seduzem ao mesmo tempo em que oferecem
riscos à integridade do corpo. Objetos de aprisionamento, a artista os coloca em cena
como provocações à nossa condição de servidão voluntária. Não se trata apenas da
mulher submetida aos métodos e padrões de embelezamento, às torturas cotidianas e
comezinhas de seus tratamentos de saúde ou estéticos, mas de um tempo em que o ser
humano escolhe colocar-se em uma posição servil e assujeitada, tal é a crítica da artista
111"
"
à contemporaneidade. O homem servil, mais por tédio e resignação do que por dor, é o
contrário daquilo ao que ela parece se propor com suas obras.
Vernant (1991) traz, ainda, algumas apreciações valiosas para nos interrogar
acerca dessa outra possibilidade do olhar, à qual a obra de Nazareth Pacheco remete e
que é sua relação com a repetição, com a pulsão e com a morte. A facialidade da
Górgona, ou seja, o fato dela ser uma das poucas personagens a ser representada de
frente, encarando o espectador, mostra que o monstruoso pode ser abordado de face,
num confronto direto. Olhar Medusa nos olhos é entrar no campo de seu olhar, tornar-se
morte como ela, transformar-se em pedra. Fascinado, o homem não pode desviar os
olhos, que se perdem nos olhos da Górgona que o olha, podendo olhar aquilo que ela
olha, tornando-se seu olhar.
Nessa identificação, o sujeito aparta-se de si mesmo, projetando-se em uma
alteridade radical. A Medusa, que diz dessa alteridade extrema, possui uma face que é
máscara e que, ao olhar nos olhos, torna o outro também essa máscara, uma máscara da
morte. Sua face é, nas palavras de Vernant, o Outro, o duplo, o estranho, a reciprocidade
de nosso rosto devolvido em espelho de maneira aterrorizante: ao invés de refletir
apenas a aparência desse rosto, a máscara da Górgona reflete ainda essa face
monstruosa, petrificada, do olhar que se esvai. No olhar de Medusa revela-se a verdade
de nosso próprio rosto: a máscara da morte.
O que se descortina no olhar aprisionado pela obra de Nazareth Pacheco? A meu
ver, que a assepsia é necessária à sedução e que a dor é a condição de transformar
pacificação em tormenta, desfazendo o engodo do encantamento limpo ao sujá-lo
de sangue e de ferida, recolocando o corpo – agora pulsante – no âmbito da obra.
112"
"
Psicanalistas como Joel Birman (2003, 2006) mostram que, na
contemporaneidade, vivemos sob o primado da dor, que se substituiu ao sofrimento na
geração de novos mal-estares e novas patologias. O que antes se centrava no conflito
psíquico agora se registra no corpo, na ação e no sentimento. Para Birman, a
subjetividade atual não consegue mais transformar dor em sofrimento, sendo a dor uma
experiência do indivíduo fechado sobre si, solipsista e narcísico, enquanto o sofrimento
seria uma experiência que considera a alteridade.
Se dor como decorrente da impossibilidade de mediação, e certamente isso
está presente, talvez a dor traga em si a possibilidade de construir mediações outras,
insuspeitas, presentes na sua crueza e na sua corporalidade.
Jean Pontalis (2005), em seu texto “Sobre a dor (psíquica)”, refaz o percurso
feito por Freud em suas obras em que a dor foi considerada. Nesse trajeto, Freud
constrói uma oposição entre a vivência de satisfação, pautada pelo par prazer
desprazer, e a vivência de dor. Nesse dualismo, satisfação e dor estariam inscritas no
corpo, sendo a dor totalmente distinta do desprazer e não assimilável a ele. Ela se
caracterizaria por um fenômeno de ruptura de barreiras, seguida por uma descarga no
corpo. Trata-se, assim, da dor como violação, como implosão dos limites do corpo e do
eu. Trata-se, com isso, de um furo que é excesso, ou de um cheio demais que cria um
vazio.
A dor retorna, na obra freudiana, em “Além do princípio de prazer” (1920). O
que está além do prazer desprazer é a dor. A vivência de dor se no interior do “eu-
corpo” e, diferentemente do que ocorre na vivência de satisfação: “(...) aqui não
metáfora, ou seja, criação de sentido, mas analogia, transferência direta de um registro
para o outro: são utilizadas as mesmas palavras, são invocados os mesmos mecanismos.
113"
"
Como se, com a dor, o corpo se transformasse em psique e a psique em corpo.”
(Pontalis, 2005, p.271).
Enquanto o que Pontalis denomina angústia (e que Birman nomeia sofrimento) é
algo que pode ser comunicado, representado, descarregado, a dor é fechada em si. O
sofrimento pode até surgir como anteparo a ela, metodologia de sua evacuação. Assim,
a dor está nos confins, na junção entre psique e corpo, morte e vida. Ou seja, ela traz o
campo do pulsional, das bordas e daquilo que pode se dar ali. Como se a dor fosse o
que pudesse dar ao sujeito a percepção de estar vivo, contraponto necessário à sedução
imaginária na qual se inscreve por meio do olhar e do que lhe é dado a ver.
Em suas obras mais recentes, Nazareth faz uso do artifício de mostrar uma
exposição de modo que, quando ali entramos, vemos apenas dois pequenos vidros
transparentes de perfume com algo vermelho em seus interiores, fechados em caixas de
acrílico, ladeados por diversas fotos desses mesmos frascos, além de circunferências
acrílicas vermelhas colocadas na parede como se fossem quadros, um espelho frente ao
qual encontramos uma cadeira também em acrílico vermelho, que parece muito frágil e
pouco confortável devido às pontas acrílicas que são ainda colocadas em seus objetos-
mobiliários. Após isso tudo, em uma segunda sala, vemos desenhos muito delicados de
apenas pequenos pontos, circunferências em madeira pelo chão, mais fotos e, enfim,
duas últimas fotografias nas quais finalmente encontramos o tema da exposição. Trata-
se do sangue, o sangue da artista que esteve sempre presente nas feridas e nos cortes
supostos enquanto descobríamos os brilhos metálicos de seus objetos sedutores de
outrora que é, agora, exposto de forma explícita. O sangue retorna à obra, o corpo
ausente pode ser colocado em seu lugar de direito.
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"
Se tomarmos em consideração o que escreve Bernard Marcadé (1995) para o
catálogo da exposição Féminimasculin Le sexe de l’art, podemos pensar que a
assepsia da sedução está posta na história da arte de maneira a conectar o belo, o
feminino e o que é olhado. O feminino passivamente se a ver pela atividade que lhe
está posta fora, no olhar de que é objeto. E é esse feminino olhado que se entrega como
engodo, como máscara ou como objeto-fetiche: daí seu apelo de sedução. A sedução
feminina dos objetos de Nazareth Pacheco traz para a cena o escancaramento dessa
assepsia sedutora, contrapondo-a a todas as excrescências e feridas que ali se
presentificam – mesmo que ausentes – pela lembrança dos objetos cortantes e das
feridas que provocam nos corpos, fazendo-os sangrar.
E como, então, Nazareth Pacheco desmascara esse feminino limpo e sedutor em
que se afiguram seus objetos-fetiches? A meu ver, articulando seus objetos à dor que
causam no corpo. O corpo, lugar no qual incide diretamente o mandato da ausência de
obra sobre a qual escrevi no início dessa tese, construindo-se em palco para a
subjetividade tornada doença, bem como para as intervenções sobre a mesma, é também
o lugar no qual a artista encena uma rebelião contra esse estabelecimento de um corpo
despossuído de si. O corpo mutilado, manipulado, interferido de suas obras críticas,
também, dos lugares de controle, tratamento e embelezamento a que esse corpo é
submetido em nossos tempos, tornando-se corpo ausente, objeto perdido. O corpo
ausente se presentifica por meio das obras e, através delas, convoca o corpo do outro a
se aproximar sem poder tocar, tornando-o prisioneiro de uma dor presumida e da
fascinação do olhar.
O corpo como ausente, ao qual se substitui o objeto-fetiche, não é lugar do
apaziguamento do olhar na negação da castração mais do que denúncia desse mesmo
lugar enquanto farsa, engodo, embuste de supor que ao objeto perdido suceda um
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"
substituto que lhe propicie um espetáculo de gozo do qual o sofrimento estaria ausente.
O que Nazareth Pacheco nos noticia, com suas obras de contas, cristais, acrílico, facas,
giletes, lâminas e agulhas é que a ferida, o rasgo, não se desvencilha tão facilmente do
belo, guardando em cada objeto fascinante seus potenciais de dor.
Mas o que se mostra, também, com as obras da artista, é a maneira asséptica
como tal sedução se dá, trazendo para o campo do belo o limpo, o lindo, o brilhante, o
ofuscante e o perfeito. O limpo como necessário ao belo e, conseqüentemente, à
sedução, contrastam com o sujo dos fluidos e excrescências potencialmente presentes
nos encontros entre os corpos, lembrando-nos de Freud (1930) em seu comentário sobre
a assunção pelo homem da postura ereta que deixa de lado odores e visões, mostrando-
nos que depende dessa ausência de corporeidade, de substancialidade para que o corpo
possa ser propagado como lugar da sedução. Um corpo despossuído de si e de sua
corporeidade é a manobra que a sedução faz para surtir efeito. E tal corporeidade se
reencontra na dor, no sangue das mãos da artista cortadas na fatura das obras, naquilo
que não se desmente nem se denega. A dor sendo, então, o contraponto necessário à
sedução para devolver ao corpo sua condição de presença em ausência e,
conseqüentemente, de marca.
116"
"
Capítulo 10 – O feminino como desvelamento: Cindy Sherman.
Do mesmo modo como Nazareth Pacheco traz questões sobre o corpo feminino
enquanto asséptico, Cindy Sherman nos trará questões sobre o feminino enquanto
desvelamento.
Desde sua primeira série de fotografias em preto e branco, os Untitled Film Stills
que começaram a ser feitos no final dos anos 70, a artista tomará sua própria figura,
sempre transformada pela ajuda da maquiagem e pelo uso de próteses, a fim de criar
personagens que nos parecem conhecidos, vistos e perturbadores. Mas ao contrário
daquilo que poderíamos pensar em um primeiro momento, não se trata em sua obra de
uma discussão sobre o eu, nem sobre o narcisismo, na medida em que suas fotos não
são auto-retratos. É isso que a artista nos afirma por suas entrevistas e pela continuação
de seu percurso, assim como o discutem vários críticos de sua obra (Villemur, 2006,
para dar apenas um exemplo), que rapidamente se aperceberam que a utilização de sua
própria figura serve, contraditoriamente, a seu apagamento enquanto sujeito e à criação
de uma discussão sobre os gêneros, assim como sua desconstrução.
Nos Film Stills, trata-se freqüentemente de figuras femininas solitárias,
capturadas em momentos muito íntimos ou muito frágeis em relação a alguém que não
aparece na cena ainda que suposto por sua construção, como se elas tivessem saído das
cenas de filmes noirs dos anos 40 e 50, ou dos filmes de Alfred Hitchcock. Essas fotos
serão vistas enquanto denúncia dos lugares estereotipados ocupados pelas mulheres no
contexto cultural e essa interpretação de seu trabalho como denúncia dos lugares das
117"
"
mulheres se tornará praticamente um clichê, o qual seguirá a maior parte do percurso de
Cindy Sherman ao longo dos anos.
9
Não é à toa que sua obra será vista como influenciada e influenciadora do
movimento feminista que acabara de ganhar um papel central nos Estados Unidos na
época do começo de seu trabalho. O poder das imagens difundidas pelas mídias, sua
influência na construção das identidades, tanto quanto a criação desse imaginário como
um produto de consumo por uma sociedade de consumo são temas incluídos de maneira
sutil e paradoxal em meio às fotos da artista, que não nos deixa jamais saber se o que ela
faz é uma denúncia ou uma apologia, como bem o notou Heartney (2007). Em todo
caso, suas fotos dos Film Stills parecem ter sido sempre tomadas desses filmes noirs na
medida em que não revelam nunca sua origem, deixando a história de cada cena ser
criada pelo espectador o que o coloca, a ele também, a desempenhar um papel ativo nas
obras.
Assim, estamos face a trabalhos nos quais encontramos personagens vistos em
seus momentos íntimos, fragilizados em relação a alguma outra pessoa que é apenas
suposta pela cena enquanto que nós mesmos os terceiros dessa cena vemos tudo
enquanto voyeurs. Eis novamente a posição do espectador como voyeur da obra de arte
assim como da mulher posta em questão. A evocação do voyeur ligada aos lugares
estereotipados destinados às mulheres no contexto social aparecerá nos trabalhos
seguintes de Sherman, tais como os Centerfolds ou os Rear Screen Projections, criando
fotos em grande formato coloridas que utilizam as poses, os ângulos e os
enquadramentos das revistas pornográficas, no caso das primeiras, ou das emissões
televisivas, no caso das segundas, como base para as fotos. O papel das mulheres, a
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Cruz (2003) por exemplo, é uma das críticas feministas que apresentam o trabalho da artista por esse
prisma.
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história aberta oferecida ao espectador para que ele a complete, a alusão às situações de
violência ou de fragilidade, tudo comparece para ser posto em questão.
A mudança no percurso da artista começa quando, em Pink Robes, suas
mulheres nos olham face a face, retornando o apelo sutil ao espectador voyeur de suas
primeiras fotos a juntarem-se à cena em uma inversão chocante, através da qual a
mulher vista nos olha agora explicitamente. Ainda que frágil e vulnerável, através de
seu olhar direto ela nos coloca a questão acerca do que fazemos frente a ela. O olhar
voyeur que a olha em sua condição de vulnerabilidade, por que é que ele o faz, gozando
de tal contemplação? É como se Cindy Sherman nos colocasse face à perversidade de
nosso próprio olhar e podemos nos lembrar de Lacan (1964) uma terceira vez: “Você
quer olhar? Então, olhe isso!”, sendo o isso agora a qualidade perversa do próprio olhar
enquanto olhar que faz do outro um objeto do seu gozo. Dessa maneira, a artista começa
a reenviar o olhar pousado sobre as mulheres em seus papéis sociais clichês de volta ao
voyeur, que se acreditava confortável e reassegurado em sua posição de espectador
frente a uma obra que o perturbará cada vez mais.
A seguir, são os editoriais de moda o alvo da artista. Nas Fashion Photos, as
mulheres vestidas em roupas de luxo de estilistas famosos aparecem como suicidas, os
olhares loucos, os cabelos despenteados, os rostos perturbados, as aparências destruídas,
como se o resultado de tudo o que foi imposto ao corpo feminino para que ele se
submetesse aos ideais de beleza e de feminilidade de nossos tempos o tivessem levado a
sua destruição. A imagem glamourosa da mulher tornada bicho, destruída, louca. O
horror aumenta a cada vez, nas imagens que se seguem.
As Fairy Tales e as Disasters Pictures põem a nu as máscaras e próteses
utilizadas pela artista na composição de seus personagens. Os monstros das histórias
119"
"
infantis são seguidos por cadáveres humanos, fragmentos de corpos, de carne humana,
de sangue, de fluídos corporais, enfim, um corpo nem feminino nem masculino, mas um
corpo decomposto.
Faz-se necessário parar por um instante, nesse percurso pela obra da artista, a
fim de constatar que, se é possível que suas fotos até o momento tragam a discussão
sobre o papel das mulheres de maneira a criticá-lo, não é menos possível que elas nos
conduzam a lugares insuspeitados no que diz respeito a tal discussão. As críticas
feministas, como Mulvey (1991, 2006), vêem a obra de Cindy Sherman pelo viés da
tomada de consciência feminista através da denúncia dos lugares assujeitados e
dessubjetivados apresentados por suas fotos de maneira crítica, como se todo o percurso
da artista até os anos 90 dissesse respeito ao desvelamento das diversas máscaras
impostas às mulheres e ao feminino, levando ao vazio como revelação última,
aproximando a verdade da mulher e o feminino da castração... Isso quer dizer que
aquilo que elas apresentam enquanto lugar essencialmente feminino, uma vez que todas
as máscaras estejam por terra, é o da mulher castrada. Ora, não deixa de ser uma ironia
que a análise crítica das feministas proponha ainda a mulher enquanto desvelamento que
leva à castração. Como se não fosse nada além disso a verdade sobre o feminino,
acentua bem Rosalind Krauss (1999), quando ela mostra que tal tipo de análise mantém
a mesma lógica fálica que acredita criticar, na medida em que propõe a verdade última
do feminino como o lugar da castração. E podemos ver, seguindo a análise de Krauss
que, se é plausível que haja uma discussão sobre o papel das mulheres e do feminino
nas obras de Sherman, não é menos plausível que tal discussão não termine com a
constatação da mulher enquanto castrada, senão que ela seja precisamente uma crítica
de tal lógica aplicada ao feminino.
120"
"
Na medida em que Mulvey (1991), por exemplo, compreende o percurso de
Cindy Sherman como desmascaramento das mulheres em sua posição de objeto-fetiche,
e se considerarmos aquilo que escreve Freud a respeito do fetichismo (1927) e da
função do objeto-fetiche para esconder o corpo da mulher enquanto castrado, chegamos
ao trabalho da artista como o percurso desse desvelamento que retira todos os objetos
encobridores para não deixar nada além da verdade da mulher definida a partir da falta.
Mas retornando ainda ao que propõe Krauss (1999), as idéias do véu, do
velamento / desvelamento tanto quanto da verdade são ligadas a uma lógica fálica, o
que as torna também máscaras, uma farsa a partir da qual nos é proposto desvendar a
verdade do feminino quando, nas obras de Sherman, a lógica apresentada é bem outra.
O sistema do objeto-fetiche não é nada além de um véu ligado à idéia da mulher
enquanto ferida. Trata-se de uma fetichização da mulher a mesma fetichização do
corpo feminino passivo ao olhar e à ação do outro, na forma como a mulher sempre foi
tomada como objeto e tema no campo das artes visuais que tem sua essência no ser
castrado, ou seja, uma construção inscrita na lógica fálica, que supõe uma verdade sobre
a mulher a ser atingida a partir do desvelamento de suas máscaras, levando à totalização
do conhecimento. Haveria algo além?
Na série Masks, Cindy Sherman nos mostra que a idéia do desmascaramento
levando a uma verdade não é nada além de uma farsa através da qual acreditamos
atingir um fim, um alvo, um significado último inexistente. As máscaras cobrem sempre
outras máscaras, em um movimento incessante no qual não podemos nem ao menos
saber o que está dentro ou fora do quê, misturando o que serve para mascarar o quê, sem
nos levar à essência. As fotos da artista nos contam que não algo como uma essência
e que as máscaras não mascaram nada além de outras máscaras. Assim, nada de verdade
última, nada de definição verdadeira sobre o feminino.
121"
"
Villemur (2006) e Heartney (2007) aproximam o trabalho de Cindy Sherman da
idéia do simulacro em que as imagens não fazem mais referência ao original que, por
sua vez, nunca existiu. Tratam-se de representações sem referente, a idéia de origem
desconstruída. Podemos encontrar tal aproximação ao simulacro na série Bus Riders do
início do percurso da artista ou em History Portraits or Old Masters, a série que se
segue aos Disasters, em que Sherman escancara a utilização das próteses, dos
manequins e de outros artifícios, mostrando-nos que é do artifício que se trata, cada foto
como uma farsa que não dá indicações acerca do quadro original sobre o qual se apóiam
os seus. Assim, podemos constatar que a artista faz ao mesmo tempo uma crítica à
história da arte, naquilo que diz respeito à idéia de original, através da utilização
explícita dos artifícios mostrados ao espectador, e à idéia do feminino referido à lógica
fálica através da desconstrução dessa lógica enquanto um recurso às origens que não são
nada além de ilusórias. Ou seja, o que Cindy Sherman propõe à história da arte se
aproxima daquilo que ela propõe acerca do tema do feminino, forma e conteúdo levando
a uma mesma via de desconstrução. Eu cito:
“Mais do que um trabalho de citação, mais do que um trabalho de copista, a obra
não cessa de evocar o original perdido. Sabemos que, na encenação visando a ter
novamente presente um corpo ausente, tínhamos anteriormente o recurso às efígies. Do
mesmo modo, hoje em dia, se entendemos por efígie tudo aquilo que concerne a
reprodução do corpo como imagem, o advento da fotografia inaugurou, em sua
reprodução ad infinitum, uma estética da desaparição.” (Villemur, 2006, p.65).
A desaparição do referente nas imagens, a desaparição do sujeito Cindy
Sherman nos personagens, a desaparição do verdadeiro nos simulacros, o
questionamento da idéia de origem. A crítica da artista sobre o feminino como
desvelamento nos leva a uma crítica do feminino referido à lógica fálica preenchida de
122"
"
absolutos, de verdades, de originais. Trata-se assim de uma discussão sobre o fracasso
do mundo patriarcal que a aproxima das teorias pós-modernas criadas no momento
presente por diversos autores e que também está presente no campo psicanalítico, sobre
a qual escrevi anteriormente nesta tese.
Em seguida à série Disasters, as fotos de Cindy Sherman mostram de mais a
mais a farsa implicada no tema do desmascaramento. History Portraits, Civil War, Sex
Pictures, Horror & Surrealist Pictures, Masks, Broken Dollsabrem-se ao inumano,
ao inquietante, ao dejeto, ao terrível, ao abjeto, ao perturbador ou, dito de outra maneira,
ao grotesco. Nada se segue ao desmascaramento, o sexual se desvenda vazio,
maquínico, os olhos colados aos rostos não são janelas pelas quais se vislumbra a alma,
mas um artifício, as bonecas mutiladas mostram o sexual como o horror, a dor, a
aniquilação. Aproximamo-nos daquilo que alguns críticos vão descrever como a
aparição do informe na obra da artista.
“Um informe que vai além da abjeção, que visa a se opor a todas as certezas
formais, a todas as iconologias. Lembramo-nos que Georges Bataille, que foi o primeiro
a definir o termo como o lugar de um distanciamento, de uma alteração arruinando toda
forma ideal, faz dessa noção um operador de desconstrução. Não se deve entender o
informe como uma ausência de forma ou defini-lo apenas sob o aspecto da negatividade
(o abjeto), mas por em relevo sua faculdade de colocar em movimento as formas por
meio do jogo do dessemelhante. O informe caracteriza, em Bataille, um certo poder que
têm as formas de se deformarem através de semelhanças transgressivas.” (Villemur,
2006, p.61)
Retomemos aquilo que escrevi acerca do feminino quando discorria acerca da
obra de Nazareth Pacheco, a fim de melhor desenvolvê-lo neste ponto.
123"
"
No fim de seu percurso, Freud (1931, 1933) nos mostra a impossibilidade de
constranger o feminino à mulher e o masculino ao homem, na medida em que anatomia
e condição subjetiva não se equivalem. O feminino ligado ao puramente orgânico, à
mulher, à passividade e ao masoquismo, mesmo se coerente com a lógica freudiana de
aproximação desses temas pelo viés do complexo de Édipo, deixa algo não tocado por
suas formulações.
Lacan (1972-73), mesmo marcado pela tentativa de restauração da figura do pai,
da metáfora paterna e do simbólico como pontos de apoio do psíquico, nos apresenta a
interessante idéia de qualquer coisa do feminino que escapa à lógica da castração. A
mulher é uma impossibilidade na medida em que sua nomeação enquanto tal pode
ser feita a partir da linguagem ou, nos domínios do simbólico, em uma lógica fálica que
deixa de fora algo do feminino no exato momento em que lhe um nome. A mulher
dividida entre ser toda e não ser toda, a partir de uma leitura que assume a existência de
uma libido única masculina, não pode ser circunscrita pelo campo que a nomeia. E, na
medida em que para testemunhar o real de seu corpo ela tem que atravessar o campo da
linguagem ou, em outras palavras, submeter o feminino ao significante que define a
falta a partir do ter e o feminino a partir do masculino, não seria possível conceber que
esse real do qual a mulher traz notícias passa principalmente por aquilo que lhe escapa?
Assim, temos aquilo que escapa e ao que a psicanálise faz referência como corpo,
pulsão de morte, repetição, excesso ou resto ligado ao feminino. Ou bem, ao estranho,
outro conceito que faz alusão ao que escapa, e que retorna a essa discussão à medida
que as obras de Cindy Sherman nos levam ao campo do grotesco. Não por acaso, Freud
e Lacan farão referência ao feminino para discutirem o que escapa ou o que resta, seja
isso a pulsão de morte freudiana ou o real lacaniano.
124"
"
O grotesco que, na obra de Cindy Sherman, traz o absurdo, o simulacro, o
desvelamento da farsa do desvelamento, o automatismo, o maquínico, o inumano
mascarado de humanidade e tudo aquilo que seu desfile de horrores é capaz de criar
aproxima o feminino daquilo que Freud (1919) designa como estranho. Uma de suas
obras do período entre as Horror and Surrealist Pictures e a série Masks, tantas
que poderiam ser mais profundamente abordadas neste ponto nomeada Untitled #316
de 1995, mostra a máscara monstruosa e deformada de uma boneca. Nos limites desse
rosto de boneca, além dos cabelos desgrenhados, vemos que essa máscara encobre uma
borda do que supomos ser uma outra máscara, que encobre outra borda de outra
máscara e assim sucessivamente. Podemos assumir que a máscara horrorosa se sobrepõe
a outras ad infinitum ou se quiséssemos retomar o ponto do qual partimos neste
capítulo – que aquilo que Sherman nos confirma aqui é o desvelamento de máscara após
máscara, a culminar na revelação de uma verdade, insinuada pelos olhos vivos e
disformes da figura. A verdade do feminino, quem sabe?
Mas um olhar a mais sobre essa obra nos mostra que, surpreendentemente, não é
essa máscara que se sobrepõe às outras que estariam ocultas ao nosso olhar. É bem o
contrário. As bordas revelam que as outras máscaras estariam por cima dessa que vemos
e, então, nos encontraríamos diante do ponto final, a chave do enigma: no final das
máscaras, uma a mais jaz como verdade. Uma máscara monstruosa como a máscara da
Górgona (Vernant, 1991). Não há substancialidade nesse encontro derradeiro, a máscara
oca encobre o nada. É o vazio que se revela. O artifício dos olhos e do olhar apenas
serve para perpetuar o engodo. Daí a ironia
10
, o simulacro na obra da artista. Daí sua
estratégia de lhes fazer referência a partir de seu uso do grotesco.
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10
"Tomo aqui a idéia de ironia a partir de Muecke (1995) e das aproximações possíveis de serem feitas do
modo como ele a descreve com o campo psicanalítico.
125"
"
A criação artística, para Schlegel (cf. Muecke, 1995, p.41), tem duas fases
contraditórias e complementares. Uma em que o artista se expande, cheio de entusiasmo
e imaginação, mas cego e sem liberdade. Outra em que ele se dobra sobre si num ato de
reflexão, crítica e ironia. A ironia, portanto, depende dessa dobra sobre si mesmo em
que a consciência se faz presente. Ou seja, ela depende de um saber sobre o não sabido,
ou de um desconhecimento sobre o conhecido para operar. Com isso, quero dizer que a
ironia necessita do desmascaramento tanto quanto da máscara, pois ela incide sobre o
desvelamento daquilo que não parecia ser sabido até aquele exato momento em que o
discurso irônico lhe revela ao encobrir-lhe. Ela evita a unilateralidade ao trazer sempre o
oposto daquilo que é manifestamente afirmado para o próprio cerne da afirmação. O
discurso irônico faz dupla referência à situação tal qual aparece e, também, como ela
realmente é. Em outras palavras, a ironia traria o desvelamento da lógica do simulacro,
como veremos a seguir, a partir do uso que dela faz Cindy Sherman.
Se o traço básico da ironia é o contraste entre uma realidade e uma aparência, ela
nos remete, psicanalistas, à pedra de toque da psicanálise que é o inconsciente. E, uma
vez que a ironia depende do tempo e da linguagem, ela diz respeito ao inconsciente que
acontece na fala, que se revela e se esconde no discurso, ou seja, vinculado a um
testemunho de um outro. A mensagem irônica, até que seja interpretada, não existe. Ela
depende de duas pessoas, daquele que a cria e daquele a quem a fala irônica é dirigida, e
ganhará substância no momento em que o receptor dessa fala for capaz de rejeitar o
conteúdo literal expresso em favor de “um significado ‘transliteral’ não-expresso de
significação contrastante.” (Muecke, 1995, p.58).
Freud (1905c) demarca o chiste como uma formação do inconsciente que, de
maneira semelhante aos sonhos, traz à tona o que se encontra oculto. Mas, de modo
diferente do sonho que se basta em seu encontro com o sonhador, o chiste necessita de
126"
"
um terceiro a quem sua construção se endereça. É do efeito de riso, prazer e revelação
produzido nesse terceiro que aquele que constrói o chiste retira sua satisfação. A ironia,
que joga com o duplo sentido e com a representação pelo oposto para realizar essa
revelação do oculto, aproxima-se de algumas das formas possíveis em que o chiste se
materializa.
Os chistes tornam possível uma satisfação pulsional frente a um obstáculo que
seria, no modo de Freud ver, a capacidade da mulher de tolerar a sexualidade franca. Ou
seja, os chistes permitem a realização de uma demanda pulsional relativa à sexualidade.
O que eles revelam, de maneira tortuosa, disfarçada e elaborada, relaciona-se com o
caráter sexual daquilo que mobiliza o psiquismo a funcionar. Sexual ou hostil, o que
na mesma, que se trata dos impulsos mais submetidos ao recalcamento, posto que
inaceitáveis, os que terão que se movimentar em torno das construções psíquicas para
encontrar vias de satisfação que, de outro modo, lhes seriam vetadas. A função dos
chistes é, sinteticamente, obter prazer.
Para Lacan (apud Ribeiro, 2006), o efeito do riso é o desmascaramento, aqui
entendido como oscilação da imagem unificadora do eu, a máscara privilegiada a que
Lacan se dedica a desconstruir. Para ele, quando o sujeito deixa escapar a verdade,
quando o chiste apresenta o inconsciente, desconcerta o eu, desmascarando-o. E fica
feliz por libertar-se da máscara da imagem unificadora.
Encontramo-nos, ainda, no campo da verdade revelada naquilo que Freud, tanto
quanto Lacan, depreendem do chiste. A verdade do sujeito, a emergência do recalcado e
do verdadeiro sentido estão implicadas nas assunções psicanalíticas que fazem o chiste
se remeter a um funcionamento dentro da lógica fálica do desmascaramento. Ao
contrário do que nos aponta a obra de Cindy Sherman, em que a verdade última nunca é
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"
alcançada, restando à denúncia a desconstrução da própria lógica, o uso das noções de
ironia e de chiste insistem em remeter-nos enquanto certeza àquilo que, nas fotografias,
aparece posto em questão. A artista parece ter algo além para nos comunicar.
A ironia em Cindy Sherman, portanto, está em apresentar em suas composições
aquilo que pode ser imediatamente apreendido e seu contrário, sua desconstrução. A
foto que mostra uma cena e, simultaneamente, a construção da cena enquanto farsa da
composição artística. As mulheres de Sherman não serão, também, a enunciação de que
se tratam apenas de construções? Ou até mesmo o mote para uma falsa discussão sobre
o feminino, irônica por apontar que o ponto de partida sobre o qual se funda a questão
os múltiplos lugares e papéis ocupados pelas mulheres em nossa cultura é, também
ele, uma máscara que encobre o nada?
O grotesco, que surgiu como arte ornamental na Antiguidade, refere-se, a partir
do Renascimento, a algo concomitantemente lúdico, alegre, leve e fantasioso, além de
angustiante e sinistro. Remete à suspensão das ordenações existentes na realidade, ao
mundo dos sonhos enquanto contrário a tal ordem, à mistura do animalesco com o
humano, ao monstruoso como característica mais importante.
O monstruoso diz respeito à mistura dos domínios, à desproporção e ao
desordenamento. O grotesco pode ser atenuado em sua equiparação ao cômico e ao
ridículo, na medida em que a falta de relação com a realidade naquilo que é fantástico,
sobrenatural ou absurdo, aniquilam o ordenamento do mundo e causam, quando se
apresentam, o riso, o assombro e o terror. A angústia de se perceber desprovido de
referências é, segundo Wolfgang Kayser (1957), o efeito do grotesco. Mas, enquanto
desterritorializante, o grotesco traz consigo uma dimensão de verdade, de enunciação de
uma verdade subterrânea àquilo que aparenta.
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"
Ao tomar as obras de Cindy Sherman, nos apercebemos que a maneira pela qual
ela coloca em questão os simulacros, a história da arte, o lugar da mulher e a verdade do
feminino é através de um percurso que vai da ironia ao grotesco.
Kayser (1957) esclarece que as máscaras servem para aplicar algo de animalesco
aos corpos humanos. Elas remetem a uma força estranha que atua nelas, levando ao
paradoxo do encontro entre o ridículo e o monstruoso, a caricatura sem ingenuidade.
Onde a ironia provoca o riso, o grotesco suscita a intensidade do mal-estar. O disfarce e
a descarga de prazer propiciados pelo chiste e pela ironia não encontram lugar no campo
do grotesco. Assim, o grotesco se aproxima ainda mais de uma outra categoria que
Freud (1919) tratou de abordar, a do estranho.
O unheimlich é o estranho que traz como oposto o familiar, daí o horror e o
temor que provoca, que o que se encontra nele é aquilo que de mais próximo,
familiar, íntimo e secreto. Se, para Freud (1919), aquilo que causa horror remete ao
retorno do recalcado e, conseqüentemente, à castração como, de modo análogo, é ao
que ele remete os chistes, permanecendo em ambos os casos no campo daquilo que se
inscreve psiquicamente e que é passível, portanto, de representação, recalque,
deslocamentos e tudo mais que o psíquico lhe faculte o que vimos sugerido a partir
dos trabalhos de Cindy Sherman é que o horror advém do desmascaramento da
lógica da máscara. Ou seja, encontramos na última máscara não a castração, mas
a falência dessa lógica do desvelamento.
O estranho diz daquilo que é ao mesmo tempo o mais familiar e o mais
desconhecido. Trata-se de um paradoxo entre distância e fusão, entre o que está
compreendido enquanto eu e o que está alhures, o outro. O horror é produzido pelo
apagamento dessa divisão entre o ‘eu’ e o não eu’, que o sujeito inquieto tenta manter
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separados não importa como. O estranho é o estrangeiro que nos aproxima de tudo
aquilo que tentamos evitar assumir enquanto partes daquilo que somos ou, lembrando
Lacan (1972-73), no que tange ao sexual, daquilo que não cessa de se inscrever.
A feminilidade marca a diferença e, por isso, pode ser aproximada ao estranho
familiar. Ela é a fonte de uma experiência psíquica marcada pelo horror, precisamente
na medida em que coloca em questão o autocentramento da subjetividade baseado no
referencial fálico. Joel Birman (1999, 2006) apresenta a idéia de que, se a distinção
entre os sexos se constrói a partir desse referencial, pensar sobre a feminilidade é
deslocar-se para o lado de fora do mesmo e de suas construções, colocando-nos em
outro registro quanto à sexualidade. Segundo ele, uma possibilidade de existência
subjetiva através do feminino que difere inteiramente daquela que tem lugar na
referência fálica, baseada no desamparo e no masoquismo erógeno em lugar do pai e da
razão. Onde o masculino era ponto de origem, organização e referência, segundo o
signo do patriarcado, o feminino advém enquanto fonte do informe, do amorfo e do
abjeto de onde nascem as coisas.
Ainda que as obras de Cindy Sherman não nos desloquem de uma origem fálica
a uma origem feminina, o que de todo modo nos enviaria ao mesmo registro, sem
colocá-lo em questão, elas nos deixam em um campo para além da primeira e sem
definições, um domínio aberto em que cada afirmação pode ser posta em questão pela
perda do referente. Dessa maneira, ela nos propõe o feminino ligado ao simulacro e
levando ao informe que põe em movimento as formas, ao invés do feminino cristalizado
como desvelamento em direção a uma verdade última. O feminino ligado ao que se
desloca e coloca em movimento, como veremos a seguir.
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Nos trabalhos de Cindy Sherman, o feminino comparece enquanto outro e, pela
maneira como o mesmo se materializa em sua obra temos, constantemente, o corpo e
sua ausência traduzidos pelo recurso às próteses e manequins como o lugar privilegiado
em que esse deslocamento do feminino se dá, ou seja: o corpo como o lugar onde o
feminino se revela como estranho, como borda e como outro, como fora. No corpo tem
lugar o desvelamento do feminino e da desconstrução mesma dessa lógica do
feminino como véu.
Como Nazareth Pacheco nos havia mostrado o corpo feminino privado de seus
atributos a fim de se tornar objeto do desejo, agora é Cindy Sherman quem nos
apresenta esse feminino concebido como desvelamento da verdade da mulher em
relação à castração. Nos dois casos, as artistas nos propõem uma crítica de tais
afirmações ao nos apresentar uma outra via, seja a reinserção do corpo em sua
materialidade na obra de Nazareth, seja a ausência de uma verdade última levando ao
simulacro e ao informe na obra de Sherman. Substancialização, desubstancialização. A
origem é o corpo, a origem não existe. Duas maneiras de fazer sair o feminino de sua
relação com a lógica fálica?
Podemos constatar, nas obras das duas artistas, um uso dos mesmos mecanismos
utilizados por essa estratégia de assepsia do corpo a fim de desconstruí-lo: tanto
Nazareth Pacheco quanto Cindy Sherman apelam aos signos referidos ao corpo e ao
feminino para representá-los, ao mesmo tempo, tal qual aparecem em nossos tempos e
em nossa cultura e, por um mesmo gesto, dotados de algo dissonante que atormenta a
totalidade da obra e faz com que ela não seja apenas a tradução desse corpo ou desse
feminino, mas sua colocação em tensão.
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Desse modo, Cindy Sherman faz uso dos signos do feminino referidos ao fálico
para perturbar a evidência dessa associação a partir de seu desvelamento das máscaras,
das estratégias artificiais aplicadas a fim de criar o que parece ser a natureza mesma
desse feminino. Isso se avizinha à maneira aparentemente apaziguadora pela qual
Nazareth Pacheco coloca os objetos infinitamente repetidos e seriados em suas obras até
que nos apercebamos que no interior mesmo dessa repetição sempre a aparição de
um elemento perturbador que desmascara a inocência do que foi posto em obra.
Nesse ponto posso dizer, a título de hipótese, que os trabalhos dessas artistas
que nos levam às bordas do feminino e do corpo como lugares possíveis para a
subjetivação o fazem a partir do objeto-fetiche, e fazendo com que tal objeto
trabalhe contra sua própria cristalização. O objeto-fetiche posto em movimento
pelas artistas coloca em questão o feminino e o corpo como lugares possíveis para que
haja um movimento. A possibilidade subjetiva reside nos lugares de borda através da
confrontação com suas localizações fora, além e, por conseqüência, próximas da
localização fetichista em relação à ultrapassagem de um limite.
O fetichismo suprime os sinais da castração tanto quanto a arte e o olhar
suprimem os sinais da materialidade do corpo e do corpo feminino. Quando não essa
confrontação com o lugar fetichista a partir dele mesmo, como o fazem as duas artistas a
fim de colocá-lo em movimento e em questão, ou quando tal confrontação atinge o
limite do traumático como veremos na obra de Marina Abramovic o que pode
ocorrer é um recuo a uma dimensão imaginária que distancia as bordas do corpo e do
feminino, suprimindo sua materialidade e negando sua ligação. É a essa terceira
possibilidade que farei referência a seguir.
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Capítulo 11 – O corpo enquanto feminino: Marina Abramovic
Eis o que Diane Watteau (2006) escreve sobre as artistas mulheres que se
dedicam à performance nos anos 60-70 e que pode servir ao que quero apresentar acerca
do trabalho de Marina Abramovic, ou seja, que ela trabalha para desconstruir o
vínculo entre corpo e feminino:
“Tais concepções da mulher não saberiam responder às exigências das grandes
figuras da performance feminina. Essas artistas rebelaram-se contra o ‘tornar-se
mulher’, clichê na arte e na vida que as alarmou. Carolee Schneemann, Valie Export,
Martha Roesler, vão se atacar à persona social da mulher, à função que ela encarna e a
todos os valores femininos. (...) A mulher como corpo, para ser vista, à vista, é
controlada pelo olhar dos homens e das outras mulheres. Tema do quadro, tema da
‘ação’ e tema assujeitado sempre foram confundidos no caso da representação da
mulher. Desarranjar esses códigos culturais vai ligar a mulher ao corpo, enquanto
terreno experimental nos anos 60-70. Tornar-se sujeito de sua história é tomar o poder.
Toda a obra de Valie Export e de Annick Sprincke foi voltada à vontade de tornar
visível o invisível (o estatuto do sujeito) e de tornar invisível o visível (o sexo) ao qual
as limitamos em diferentes liberações.” (p.74).
A performance enquanto obra de arte começa a ser feita nos anos 60 e 70.
Segundo Francesco Poli (2008):
“Que o corpo, com a atração poderosa que lhe é inerente, tenha estado no cerne
de boa parte da história da arte, não é nenhuma revelação. Ao longo dos tempos,
representações históricas ou mitológicas e retratos ou homenagens de diversas naturezas
foram, em proporção crescente, consagradas pelos artistas à sua própria ‘espécie’. (...)
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Consolidada ao longo dos séculos, a tradição do nu artístico produziu a pureza das
formas ao lado daquelas, mais explicitamente voluptuosas que (...) fixaram os traços
pré-estabelecidos de uma feminilidade sempre descrita de um ponto de vista masculino.
Simultaneamente, o nu foi interpretado, de modo mais geral, como o desvelamento da
parte mais vulnerável e sem defesa da existência: mostrado em toda sua imediaticidade,
o corpo parece, ao expor sua intimidade, revelar um momento de verdade. Os períodos
mais recentes da história da arte testemunham, contudo, uma tomada de consciência
crescente dos sujeitos femininos, relegados durante séculos ao lugar de simples objetos
de interesse, de estudo ou de afeição.” (p.242)
As mulheres artistas conquistam um lugar cada vez mais importante e autônomo
no meio artístico a partir do fim da segunda guerra e, não por acaso, encontram nas
modalidades da performance e da arte corporal os meios privilegiados para sua
produção.
“Dos Estados Unidos à Europa, através de uma linguagem original e da
aparência efêmera, mas em realidade muito potentemente comunicativa, uma reação
contra a tradição e os clichês perpetuados ao longo do tempo se desenrola. Com o
auxílio das novas mídias, como a fotografia e o vídeo, numerosas artistas mulheres
inventam práticas inéditas que invertem os estereótipos femininos postos em relevo pela
cultura dominante e que, recorrendo à ironia e à provocação, colocam em causa a
primazia e a autoridade supostas das categorias do pensamento moderno.” (Poli, 2008,
p.242).
As performances, impossíveis de serem reproduzidas, criam um vínculo entre
arte e vida, fundado em uma temporalidade outra que aquela da arte eterna. As ações
dos artistas fazem tal aproximação entre a arte e a vida que abole as fronteiras entre o
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artista, a obra e o espectador, misturando seus lugares, imprimindo um movimento
inesperado no campo artístico, através da colocação em questão da obra de arte tornada
problemática no momento em que ela se torna apenas uma ação dependente dos
testemunhos de um outro para que seja percebida como tendo existido.
Marina Abramovic descobre a performance através do som, com sua instalação
“Airport” em 1972. Mesmo sendo considerada uma das pioneiras não se trata, segundo
diz, e no que diz respeito a seu trabalho, de uma discussão sobre o corpo feminino, mas
do corpo enquanto meio de experimentar um limite e ultrapassá-lo, o corpo desligado de
sua equivalência ao feminino e à mulher presente frequentemente na obra de muitos
artistas apresentado enquanto corpo nu, para o qual a sexuação não faz qualquer
diferença no sentido de estabelecer aquilo que a artista vai colocar como limite. Ou seja,
o limite trazido pela desconstrução do próprio corpo, por sua morte ou por sua
imobilização em um quadro puramente imaginário.
Isso quer dizer que, ao contrário de suas contemporâneas, Marina não se
interessa pela performance como meio privilegiado de por em questão a mulher, o
feminino e os lugares sociais a elas atribuídos durante séculos. O feminino não é
questão e a artista toma seu corpo como sujeito e objeto de uma outra que, mesmo
sendo próxima, não é totalmente assimilável às questões que ligam corpo e feminino
colocadas pelas outras artistas, que quiseram por em causa o papel das mulheres em sua
época. Será graças a essa não vinculação que a artista chegará ao limite do corpo em
toda sua radicalidade pois, uma vez distanciado de seu aspecto sexuado, não restará
nada além de uma pura materialidade próxima de uma mortalidade desse corpo real
sobre as quais ele poderá nos informar.
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É por conta dessa diferença que seu trabalho me interessa, pois ele propõe uma
terceira via através da qual posso me aproximar dos lugares possíveis para a
subjetivação em nossos tempos ou, talvez, dos lugares em que essa possibilidade
subjetiva encontra seu limite e deve recuar. Lá onde Nazareth Pacheco sugeria recolocar
o corpo carnal a fim de fazer face ao corpo asséptico sem corporeidade propriamente
dita como um caminho possível, e onde Cindy Sherman sugeria o esvaziamento da
verdade e da origem para fazer face ao feminino como desvelamento e confirmação
dessa lógica fálica como um segundo caminho, penso que Marina Abramovic teria
sugerido como terceiro caminho o desligamento entre corpo e feminino levando quer ao
limite desse corpo mortal, quer à sua ultrapassagem pelo recurso a um deslocamento
imaginário.
Em 1974, com Rhythm 5, no qual ela queima uma estrela comunista ficando
deitada em seu interior até perder a consciência e ser salva pelo público, Marina
Abramovic se deu conta de que seu trabalho explorava os limites do corpo, seu uso da
performance testava limites físicos e psíquicos.
Mesmo se os artistas sempre representaram a forma humana, foi apenas em um
período recente que seu modo de perceber tal corpo modificou-se, deixando de ser
apenas o conteúdo da obra para tornar-se “(...) também tela, pincel, quadro ou suporte.”
(Warr, 2005, p.11). O centro das atenções se desloca da obra à sua percepção, à sua
experiência, o que coloca em primeiro plano a idéia, o gesto e o comportamento ao
invés da criação propriamente dita.
“O artista que trabalhava com seu corpo se insurgia contra o mito do artista
‘gênio individual’ e sublinhava o caráter efêmero da obra.” (Warr, 2005, p.13). Ora, o
corpo do artista, em que a falta está sempre presente e estabelecida na cultura ocidental,
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torna-se o lugar em que se vai jogar a possibilidade de existência de uma obra, inclusive
a do artista enquanto seu produtor. Lugar de falta torna-se lugar de existência. Além do
mais, no corpo, a partir desse momento, joga-se a disputa entre os mecanismos de poder
e as técnicas de resistência. Sigo um pouco mais as considerações de Warr (2005) a esse
respeito:
“O corpo que era necessário antes esconder para se confirmar nos sistemas de
significações e de valores apareceu durante esse período, cada vez mais
agressivamente, como o lugar do ‘eu’ e o lugar em que o domínio público encontra o
domínio privado, em que o social é transformado, produzido e em que ele perde o
sentido.” (pp.20-21).
Na obra de Marina Abramovic, o flerte com o limite começa com o limite do
corpo frente à dor e à morte e se desloca ao limite contornado pela semelhança entre
suas performances e os ritos primitivos. Isso quer dizer que não se trata de uma
mudança de tema em seu trabalho, mas de uma mudança de enquadre, como se a artista
buscasse uma maneira menos perigosa, na medida em que inscrita nos padrões culturais,
ao invés das experiências solitárias do começo de sua carreira. A artista afirma seu
objetivo de “(...) levar o corpo a um estado borderline que nos permitisse realizar um
salto mental a fim de entrar nas dimensões diferentes da existência e de eliminar o medo
da dor, da morte ou dos limites do corpo.” (1998a, p.18).
A ultrapassagem do limite pelo recurso a um deslocamento imaginário é um
retorno à posição perversa, incluída sua imobilização, a respeito da qual me deterei a
seguir. Não por acaso muitas das obras de Marina Abramovic em que ela convida o
espectador a fazer parte demandam uma imobilização do corpo e uma ultrapassagem
imaginária dessa imobilidade, que ela liga a uma possibilidade de transcendência. Então
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a transcendência, se seguirmos as indicações dadas pelo percurso e pela obra da artista,
tem algo a ver com um desvio do corpo à imaginação naquilo que diz respeito à
possibilidade de movimento do sujeito, quer dizer, à possibilidade sublimatória. Mas
retornemos ao percurso da artista para pensarmos melhor sobre esse tema.
Seu processo de produção de obra – e é interessante que a artista fala muito a seu
respeito, teorizando-o começa com os perigos das primeiras performances em que ela
está só, como as que mencionei, assim como aquelas feitas com Ulay, em que a
confrontação com a dor e a extenuação da força física são importantes na medida em
que elas lhe dão a experiência da “presença total de seu próprio corpo”.
“Rhythm 10” de 1973 – em que a artista brinca com uma faca entre seus dedos e,
a cada vez que se corta, muda de faca, gravando o som de seu jogo até que termine de
utilizar 20 facas e que deva, então, escutar a gravação e tentar fazer o jogo como na
primeira vez, com os mesmos cortes, pausas e ritmos... “Thomas Lips” de 1975 na
qual ela come um quilo de mel, bebe um litro de vinho, quebra a taça com a qual bebeu
o vinho, corta uma estrela de 5 pontas em sua barriga com uma lâmina de barbear, se
chicoteia até que não sinta mais dor, deita-se sobre uma cruz feita de blocos de gelo e
coloca sobre seu ventre um aquecedor, de modo que a estrela sangre enquanto todo o
seu corpo congela... “Rest energy” de 1980 – na qual ela e Ulay seguram um arco e uma
flecha apontados para seu coração, o peso dos dois corpos em equilíbrio precário
mantendo a tensão do arco e os batimentos dos corações sendo registrados...
“Imponderabilia” de 1977 – na qual estão os dois nus na entrada da galeria, deixando ao
público a tarefa de escolher de frente para quem eles entrarão... “Cleaning the mirror I”
de 1997 na qual ela limpa um esqueleto humano... “Balkan Baroque” de 1997 uma
instalação apresentada na Bienal de Veneza em que ela mostra vídeos de seus pais, um
vídeo em que ela canta músicas de sua infância enquanto faz uma performance na qual
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ela limpa uma pilha de ossos de vaca... Todas essas obras são apenas um extrato de seu
percurso no qual ela nos confronta de maneira radical com o limite do corpo até o limite
último da morte. A intensidade, a atmosfera densa e perturbadora nos oferecem uma
indicação de tal limite, da consistência dele. De que se trata, então?
A pulsão como intensidade vinda do corpo e demandando trabalho ao psiquismo
(Freud, 1915b), a pulsão de morte como única pulsão que fica fora da possibilidade de
ser absorvida por esse psiquismo, transformada em desejo e, consequentemente,
representada (Freud, 1923), o inominável, o fora da linguagem ou, se levarmos em
conta o vínculo entre corpo e feminino desfeito pela artista, o gozo e o gozo feminino
enquanto suplementar e fora do campo simbólico (Lacan, 1972-73).
O desligamento do corpo de seu feminino, será que isso nos mostra onde o
feminino e o gozo outro se distanciam da diferenciação, da existência de um corpo
feminino à existência de um corpo em que o feminino não joga nenhum papel? Se a
diferença sobre a qual o feminino define pode ser ignorada em relação ao corpo na obra
de Marina Abramovic, será que podemos conceber que ela põe em jogo um corpo sem
feminino, sem diferença, um corpo pura materialidade? Será que isso nos informa dessa
outra possibilidade do feminino, disso que está fora da diferença e para o qual ela não
tem nenhuma importância? O gozo outro, dito suplementar, terá ele alguma relação com
esse corpo real do qual a artista nos traz notícias?
Marina diz se interessar pelos espaços ‘entre’, lugares de transição e de
passagem. Seu desejo, segundo Pansy (1990), é abolir a distância entre exterior e
interior, criando um lugar de passagem, um vínculo entre a obra de arte, o artista e o
público através da abolição das mediações entre eles, quer elas sejam um quadro, um
objeto, a posição do artista e do público...
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Ainda em 1974, com “Rhythm 0”, na qual ela deixa vários objetos à disposição
das pessoas, liberadas para utilizá-los sobre seu corpo – desde um chicote até um
revolver carregado, passando por maquiagens, uma pluma, uma rosa e assim por diante
trata-se do momento a partir do qual ela nunca mais deixará tanto controle nas mãos
de seu público. E, a meu ver, tratar-se-á em seus trabalhos, cada vez mais, de tentar
tomar o controle sobre as experiências do espectador, propondo a ele interagir e
experimentar suas obras. Uma busca de transcendência, certamente, uma busca de viver
e fazer viver experiências verdadeiras, é inegável. Mas, também, uma busca de controle
sobre o corpo e sobre as experiências dos outros, por meio da imobilização do corpo e
da pressão para que o outro experimente o que quer que seja, o que nos leva novamente
ao campo da perversão, da maneira que eu o havia descrito antes em relação às obras de
Nazareth Pacheco e de Cindy Sherman.
O controle dos corpos do seu e dos de seus espectadores remete à idéia do
poder disciplinar que incide sobre os corpos dos indivíduos, tornando-os dóceis, tal qual
apresentei anteriormente. Pode-se depreender daí o campo sobre o qual a artista parece
buscar incidir: trata-se de jogar com esse controle e com essa submissão dos corpos. O
que está posto como estratégia de poder e saber sobre os corpos é o lugar de onde ela
parte – ou no qual ela aprisiona seu público – a partir do qual tentará criar uma
possibilidade de movimentação.
No caso de Marina Abramovic, esse enclausuramento do corpo domesticado em
suas estratégias de controle, por meio das propostas da performance, será aliado à sua
proposição de que o movimento possível se pelas vias da fantasia e da imaginação,
ao contrário do que fazem Nazareth Pacheco e Cindy Sherman, para as quais esse
aprisionamento nos lugares cristalizados do objeto-fetiche quer seja o corpo ou o
feminino serve apenas como ponto de partida para uma possibilidade de
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movimentação que não retorna ao lugar do fetiche, mas se lança a um outro. As duas
parecem sustentar a convulsão no âmbito do corpo em sua materialidade mais estrita, a
fim de incitá-lo a uma resistência, tema ao qual retornarei posteriormente ao pensar suas
estratégias como um movimento de uma fixidez perversa à uma condição de fluidez
sublimatória, movimento esse que também Abramovic inicia em toda sua radicalidade
para, posteriormente, fazer retornar ao lugar fixo, salvo pelo imaginário.
De todo modo, as três artistas partem do campo do aprisionamento no olhar, no
lugar de objeto-fetiche, no clichê do feminino, na assepsia do corpo tomado pelo campo
da arte ou, em outras palavras, do campo da perversão. E é a partir dele que constituirão
suas produções artísticas enquanto projetos de desconstrução.
A perversão, no que tange à obra freudiana, é tomada segundo dois prismas:
- a partir da referência à sexualidade perversa polimorfa da criança dos Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade (1905), em que Freud nos apresenta o sexual infantil
como experiência de uma sexualidade fragmentária, de pulsões parciais, centrada sobre
a satisfação do órgão, todo o corpo e todos os caminhos estando livres para estarem a
seu serviço;
- e a partir da referência ao fetichismo (1927), em que Freud discute tanto a questão do
olhar quanto a questão da satisfação pulsional. Nesse segundo texto, é praticamente o
contrário da perversão polimorfa da criança que ele nos apresenta, ao menos no que diz
respeito à liberdade e ao movimento pulsional em busca de se satisfazer. Ao contrário,
no fetichismo trata-se acima de tudo de imobilização: um caminho único para a
realização da pulsão, um único meio, um ritual, uma impossibilidade de se deslocar na
medida em que tal deslocamento poderia fazer com que olhar – fixo antes de constatar a
castração – recaia sobre a falta que ele busca evitar.
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A perversão – como fetichismo – é um deslocamento e uma fixação do olhar que
evita todo o deslocamento ulterior e, assim, a percepção da castração da mãe, objeto
último que faz agir a castração como um limite para o sujeito. Freud coloca em relevo
no seu texto: tão fundamental quanto a ameaça de castração que sofre a criança para que
ela possa renunciar a seus objetos primários de amor e se investir noutro lugar é sua
constatação da castração da mãe, para que ela possa não ser deixada em uma posição
histérica na qual sua falta poderia ser compensada pela não falta do outro que, assim,
lhe ajudaria a ultrapassar a sua. Eis a perversão ligada à falta e às manobras feitas pelo
sujeito a fim de evitá-la e, ainda mais, por meio das estratégias que dizem respeito ao
olhar.
Deslocamento e fixação, como eu havia dito acerca do olhar depositado sobre a
mulher, ou seja, o olhar durante boa parte da história da arte, do qual Nazareth Pacheco
nos informava por meio de suas obras, que o deslocavam e o aprisionavam através do
mesmo movimento utilizado para deslocar e aprisionar a mulher num lugar de mulher
vista passivamente enquanto corpo asséptico de suas materialidades capazes de
distingui-lo, ou até do olhar do saber psicanalítico que desloca e aprisiona também
facilmente a mulher no lugar do desconhecido. A mulher e a feminilidade têm relação
com a perversão na medida em que sua referência nos leva sempre a um lugar fora da
linguagem e fora do simbólico, fixando-a aí. O que pode ser visto, mas não tocado, a
perversão e o sagrado terão algum tipo de ligação íntima?
Não vou me aproximar do sagrado senão a partir do conceito de sublimação,
tendo em conta que o que pode fazer o sagrado tem algo a ver com a renúncia a uma
satisfação pulsional direta. Ao mesmo tempo, levo em consideração que certos
psicanalistas contemporâneos aproximarão o feminino e a sublimação da perversão,
especialmente Assoun (1983, 1989) e Mijolla-Mellor (2004, 2005, 2009), o que coloca
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diretamente em relação vários aspectos daquilo acerca do que escrevo neste momento: o
feminino levando à perversão e ao sagrado e esses enviando à sublimação e à obra de
arte, o que retorna à perversão e às questões do deslocamento do investimento libidinal.
O feminino aproxima-se da perversão naquilo que diz respeito ao interdito e ao
Outro. A mulher, ao ter que construir-se em relação ao sexo que é apenas um, a partir do
qual a criança se define segundo tê-lo ou não tê-lo, o que fará com que Freud (1925b,
1931, 1933) assinale que ser mulher é sobretudo uma construção à qual é necessário
dedicar-se por meio do deslocamento de uma escolha de objeto da mãe ao pai, assim
como de uma experiência de satisfação ativa, fálica e clitoriana em direção a outra
especificamente feminina, passiva e vaginal. Nesse movimento, se qualquer coisa
que se atinge em relação à castração e à referência fálica ao lado da qual a mulher
advém, na medida em que substitui seu desejo da mãe por um desejo do pai e, em
seguida, por um desejo de um filho, resta também algo de não atingido, o que permite
que ele afirme não ter podido desvendar os enigmas da mulher e do feminino. Segundo
Lacan (1972-73), tal enigma requer a mulher não toda fálica e o gozo complementar no
qual ela goza no ponto em que transborda.
“Isso cria, convenhamos, uma relação bem específica com a ‘lei’. E é justamente
essa possibilidade crônica de estar fora da lei que nos conduz a esse caminho que
atravessa da feminilidade à perversão. (...) O que vimos emergir ao longo de uma
pesquisa pelos textos literários é esse casal paradoxal: entre o perverso e a mulher, é
‘isso’, o objeto fálico cenário da angústia de castração quem ‘cria as ligações’. É
precisamente por estilizar a negação da castração que faz do perverso um ‘revelador’ da
feminilidade. É justamente por se confrontar com a diferença sexual e por tentar
subvertê-la que ele se torna um ‘artista’ em feminilidade.” (Assoun, 1983, p.35).
143"
"
A feminilidade não é um destino biológico, mas uma terceira via se
considerarmos os textos freudianos sobre o tornar-se mulher, sendo a primeira a
inibição e a segunda a inversão no contrário. Mijolla-Mellor (2004) pergunta-se, então,
se a feminilidade não seria uma via sublimada em relação às duas outras? Ela considera
que a feminilidade, tanto quanto a sublimação, respondem a processos e a maturações,
sendo destinos psicossexuais. No entanto, o sublimável é apenas do campo do
masculino, quer para os homens, quer para as mulheres, deixando novamente o
feminino fora desse campo e próximo da perversão enquanto aquilo que não pode se
deslocar. Mas não nos esqueçamos que, se o feminino não se desloca enquanto
sublimação, é por ter que realizar um outro deslocamento sobre o qual Freud muito bem
escreveu e ao qual fiz referência nos parágrafos precedentes. E, nova inversão, o que se
desloca na medida em que se sublima se aproxima do deslocamento perverso,
guardando a diferença de não ser fixado. Assim, deslocamento perverso, deslocamento
sublimatório e deslocamento feminino se aproximam, o deslocamento sublimatório
sendo a outra escolha do trabalho do feminino.
Quando Marina Abramovic volta sua atenção ao público e à maneira pela qual
ele reage e vive o contato com sua obra, tenta ter mais controle sobre eles criando
performances em que deverão participar, de maneira frequentemente bastante calculada.
Ao mesmo tempo, trata-se também de apostar que o público não deve ser passivo frente
à obra de arte, mas tomar parte. Ela afirma a importância da experiência como o único
meio de mudança, dizendo que uma pessoa não pode viver através das experiências de
uma outra. (Abramovic, 2001). Busca de transcendência e de controle, talvez a obra de
arte enquanto sublimação nos leve à perversão tanto quanto aos domínios do sagrado.
Em relação aos seus “Transitory objects” (1989), por exemplo, a artista nos
informa que seu objetivo era deslocar a atenção do olhar em direção ao ser ligado ao
144"
"
objeto. “Esses objetos não são suficientes por eles mesmos, buscam uma interlocução
para serem ativos (...)” (Abramovic, 2001, p.11). Então, um objeto que depende do
público para existir e o espectador a quem é solicitado substituir sua posição confortável
de voyeur por aquela mais difícil de ser aquele que vive a experiência. Não se trata de
objetos simbólicos, mas de objetos que guardam sua função de esvaziar, preencher ou
criar uma mudança mental no público, daí sua utilização de pedras brutas, de cristais,
aos quais a artista atribui o poder de movimentar a energia dos seres humanos. Um
recurso à idéia de energia, assim como uma referência quase religiosa a uma
transcendência possível a partir das experiências corporais. Um deslocamento do corpo
na direção de sua sublimação em energia, transcendência, iluminação? Uma nova
negação do corpo a partir dele mesmo?
No que diz respeito à sublimação, não vou me aprofundar agora, posto que se
trata de uma vasta discussão. Em todo caso, tomando a obra de arte como um de seus
produtos, o que me parece interessante é que novamente a questão do deslocamento é o
que está sendo posto em causa. Deslocamento da obra de arte, deslocamento que a
sublimação propõe à pulsão em direção a um outro alvo e um outro objeto por meio de
uma modificação da pulsão propriamente dita, bem diferente dos mecanismos de defesa.
A sublimação tem em conta o interdito e o ultrapassa (Mijolla-Mellor, 2005) e é
graças a isso que podemos aproximá-la da perversão, na medida em que se trata, nas
duas, de tentar contornar tal interdito. “Há dois movimentos que, sem serem idênticos,
aproximam-se: o ‘per-verter’ e o ‘de-rivar’ indicam ambos que o fluxo libidinal
conseguiu não se deixar tomar pelo recalque.” (pp.28-29).
Assim, temos a sublimação (que implica a obra de arte) tanto quanto o
feminino (assunto de certas obras) ligados à perversão, seja enquanto processo
145"
"
através do qual a arte toma forma (sublimação), seja enquanto assunto mesmo de
tal obra (a discussão sobre o feminino), seja ainda como relação entre a obra, o
sujeito e o espectador (o olhar do público e a busca do controle pela artista).
O olhar retorna igualmente como ponto de vinculação entre o feminino, a
perversão e a sublimação e, se eu havia apresentado a economia do olhar em relação
ao feminino e à perversão, faz-se necessário adicionar que ele implica também a
sublimação em seu jogo.
As pulsões particularmente envolvidas pelo processo sublimatório são as pulsões
parciais independentes das zonas erógenas, tais como a pulsão de ver, nos lembra
Mijolla-Mellor (2005). Ela é analisada por Freud como alvo preliminar do ato sexual,
fixação perversa e derivação sublimada na contemplação artística e na pulsão de saber,
fixação e derivação reencontrando-se novamente.
O olho não é uma zona erógena até que seja sexualizado pela qualidade sexual
do objeto. O que está para ser visto falta desde o princípio, e é a ameaça de castração
que é encontrada. Daí a rejeição fetichista ou a sublimação em pulsão de saber, duas
vias que têm em comum a solução de não se deixarem interditarem de forma alguma.
(Mijolla-Mellor, 2005). A mulher também tem algo a ver com esse fora da interdição. É
interessante salientar que essa possibilidade de deslocamento e de escape do interdito
guarda, sempre, o interdito em si mesma, fazendo com que o sujeito não consiga, em
nenhum caso, se ver livre de sua falta.
A negação do corpo pelo próprio corpo aparece nas obras mais recentes de
Marina Abramovic, nas quais o público é convidado a fazer parte do trabalho e, no
entanto, sem poder realmente participar por conta da impossibilidade que a artista
constrói, aprisionando o corpo e solicitando um deslocamento apenas mental, ou
146"
"
imaginário, como podemos constatar em “Double edge” (1995), em que quatro escadas
são oferecidas ao público para que ele as utilize, senão que a primeira é feita de madeira
muito fina, a segunda é feita com facas, a terceira é de ferro quente e a quarta é de gelo,
o que impossibilita os movimentos de serem realizados; ou em “Escape” (1998), em que
ela aprisiona o público em uma sala de uma antiga prisão em Melbourne, amarrando-os
e cobrindo suas orelhas, obrigando-os a fugirem... apenas por sua imaginação!
Ainda mais recentemente, em retrospectiva realizada no MoMA em Nova
Iorque, a artista apresenta uma performance intitulada “The artist is present” (2010), na
qual passou três meses sentada em uma cadeira, durante os horários de abertura do
museu, no átrio do mesmo, completamente imóvel e em silêncio, tendo à sua frente uma
cadeira na qual qualquer espectador poderia sentar-se. Quando isso ocorria, a pessoa e
ela se olhavam durante um período até que o indivíduo se retirasse e desse lugar ao
seguinte, com quem a situação se repetia. O olhar da artista oco, vazio, inexpressivo não
possibilitava um encontro, nem uma descoberta do outro, mas uma ausência. A artista
não estava presente, e convidava seu interlocutor a também retirar-se. Ao público
sobrava a possibilidade de participar de seu modo calculado de um simulacro de
encontro com uma presença que não estava lá, a não ser talvez no campo da fantasia e
da imaginação de cada um acerca daquilo que encontrou em seu olhar morto.
São exemplos que retornam a obra de Marina Abramovic para o corpo, para seu
limite e, além do mais, para a perversão do desejo de controle sobre esse corpo, seu
limite e o recurso à imaginação a fim de substituir o que o corpo não pode fazer. Frente
ao limite do corpo, a artista escolhe um deslocamento imaginário que supõe ignorá-lo,
sua obra levando esse fora na direção de alguns lugares distanciados de sua busca de
carnalidade inicial. O desligamento entre o feminino e o corpo que a artista provoca, é o
que a faz chegar a essa solução imaginária?
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"
O desligamento entre o corpo e a referência à sexuação através do feminino que
o inclui e exclui simultaneamente deixa lugar, contraditoriamente, a um corpo menos
real e mais imaginário. O corpo asséptico no qual Nazareth Pacheco recoloca, em suas
obras, todos os aspectos mais carnais que haviam sido suprimidos a fim de que se
tornasse objeto de arte e do olhar parece ser o mesmo corpo que Marina Abramovic põe
em jogo através de sua materialidade nua. Contrariamente a Pacheco que o faz por meio
de sua ausência e através da alusão às suas dores, Abramovic o faz por uma presença
extrema, radical, invasiva de todas as fronteiras precedentes anteriormente estabelecidas
entre o público e a obra e, ainda mais, entre o artista e sua obra, no sentido de que o
corpo do artista nunca esteve tão presente nas suas obras do que quando ele foi
diretamente implicado pelas performances. Um excesso de presença da artista, uma
saturação de materialidade por meio de seu corpo que se torna obra. Desse modo,
Abramovic começa por recolocar o corpo e sua materialidade carnal e sanguínea
enquanto contraponto do corpo asséptico distanciado de si mesmo da produção artística
anterior. É sua crítica a essa arte e à maneira como o corpo e o feminino ali estão postos.
E, no entanto, contrariamente a Nazareth Pacheco, que sustenta sua posição de
recolocar o corpo em suas produções artísticas, o que parece fazer Marina Abramovic é
se distanciar progressivamente, começando pela negação da ligação entre o corpo e o
corpo feminino, na medida em que afirma não colocá-lo em questão – seu corpo
enquanto corpo feminino em suas obras. O corpo tão radicalmente posto em jogo está
fora da referência à sexuação e à diferença e se torna, mais e mais, um corpo imaginário
que se desloca na medida em que o corpo material fica imobilizado pelas propostas
feitas por seus trabalhos. Como uma crítica a uma assepsia do corpo no domínio
artístico pode levar novamente a sua negação através de sua imobilização? Negar o
corpo para não negar o deslocamento frente a seu limite, é o percurso que a artista
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parece sugerir. Retorno ao lugar do objeto-fetiche. A origem é o corpo (Nazareth
Pacheco); a origem não há (Cindy Sherman); o corpo não há (Marina Abramovic).
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Parte IV Uma tentativa de dar forma, ou à guisa de considerações finais ou
iniciais.
A ausência de obra é como o outro nome da loucura, sendo a obra a
conseqüência dessa ausência. Ela pode se dar no campo da ausência, ou seja, nas
bordas da possibilidade de subjetivação.
Se Foucault (1972) apontava a loucura enquanto desrazão como aquilo que
define o campo da razão por seu negativo, o que temos na loucura como ausência de
obra, trazida por ele e por Blanchot (1969), é que esse campo que é contornado como
obra como foi outrora o campo da razão depende daquilo que lhe é excluído para
ganhar forma.
A estratégia da obra possível, assim como a da subjetividade possível, marcam-
se então a partir dessa delimitação que o “de fora” ou, se preferirmos, que o “da borda”
delineia. Não é possível, consequentemente, pensar na possibilidade de obra e de
subjetividade sem levar em consideração o seu ponto de origem na ausência de obra.
Nesse sentido, partir da loucura para se chegar na arte contemporânea e à sua produção
de obra, tanto quanto na subjetivação contemporânea que daí se depreende, adquire um
novo sentido de que as possibilidades de obra não poderiam advir de outro lugar que
não de sua ausência primeira. Tendo situado esse campo da ausência no lugar da
loucura, tendo a propor que a possibilidade de obra / subjetivação na
contemporaneidade advém da loucura enquanto ausência de obra desde a Idade
Clássica, idéia à qual as produções das artistas por mim mencionadas vieram
acrescentar forma e conteúdo.
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"
Por conteúdo, entendo as produções dessas artistas como indicações de algumas
possibilidades do que seja o campo dessa ausência de onde a obra provém. Esse campo,
que nomeio como campo de borda, a loucura, é aquilo que elas situam no corpo e no
feminino.
A loucura, em seus primórdios, não era excluída do campo social e trazia a
possibilidade de enunciação de uma verdade em sua experiência trágica. Ao ser
cristalizada como desrazão oposta ao campo do dizer verdadeiro proposto pela razão,
ela foi encerrada em um movimento que a objetificou em doença, patologizando sua
condição de lugar de existência.
Importante salientar que a loucura enquanto desrazão é o que primeiro contorna
o campo da razão, sendo o fora que o origina, razão e desrazão dependendo uma da
outra para sua afirmação enquanto limites de uma oposição. A loucura, como ausência
de obra, marca então esse lugar da presença de obra, constituindo-se em campo da
existência subjetiva fora da subjetividade e que, por isso mesmo, delimita o seu
contorno.
Mas do mesmo modo que a loucura como experiência trágica fica obscurecida
pela consciência crítica pautada pelo conhecimento racional e científico, não deixando,
entretanto, de existir, podemos pensar que a ausência de obra da qual ela fala também
não deixa de dar notícias mesmo desse lugar ilegítimo da obra que ela produz. A
obra possível no campo da ausência de obra nos interessa na medida em que ficamos
todos postos enquanto possibilidades de existência subjetiva nesse lugar de sua
negatividade inaugurado pela loucura. Então, a obra possível do lugar de sua ausência
nos traz a subjetividade possível do lugar de seu assujeitamento. É nesse sentido que as
obras produzidas pelas artes contemporâneas me trouxeram a condição de perscrutar o
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campo da obra que é feita no lugar de sua ausência e, com isso, diz desse lugar, posto
que se trata de obras produzidas a partir de subjetividades advindas em um mundo
contemporâneo em que não são possíveis, a não ser como ausência. Subjetividades
assujeitadas no lugar mesmo inaugurado pela loucura enquanto ausência de obra
produzem obras desse e nesse lugar, dando-nos a conhecê-lo e às suas possibilidades de
subjetivação. A subjetivação possível vem das bordas da ausência de obra e do lugar da
loucura, na medida em que as subjetividades foram confinadas nesse lugar desde sua
objetivação em patologias.
Além disso, buscar a obra no campo de sua ausência no domínio das artes
visuais de nossos tempos é se remeter, duplamente, a essa ausência de obra, tanto do
ponto de vista do artista que a produz, ele também colocado no lugar dessa
subjetividade objetificada e impossível e que diz que ela pode, no entanto, ocorrer
quanto do ponto de vista da própria história da arte que, a partir da modernidade, coloca
em xeque a idéia de obra de arte pela negação de sua materialização e por sua
assimilação à vida. Arte conceitual e performática, a obra e o autor também
desaparecem no campo das artes plásticas e serão produzidos a partir do lugar de sua
desaparição.
A psicanálise comparece a essa discussão, a princípio, do lugar mais evidente de
discurso que aposta na presença de obra na loucura – neurótica ou psicótica – aliando-se
com isso a um possível de seu aspecto trágico de enunciação de uma verdade. Verdade
que, para a psicanálise, é a verdade do sujeito descentrado, verdade do inconsciente, do
desejo, do sexual e do pulsional, colocando-a tanto no campo dessa possibilidade de
uma constituição subjetiva quanto ao lado de seu assujeitamento, que faz tudo falar e
que tem na ética da confissão a impossibilitação de circulação do sujeito para além dos
contornos da disciplina. Consequentemente, não é possível ficarmos apenas com aquilo
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que a psicanálise diz acerca do sujeito e de sua obra possível na contemporaneidade,
tendo que buscar noutros campos o aparecimento dessa possibilidade subjetiva a fim de
confrontá-la com o discurso psicanalítico, fazendo-o trabalhar para além dele mesmo. A
presença de obra e a possibilidade do sujeito não no campo psicanalítico, mas no campo
da cultura ou, mais precisamente, no âmbito em que a idéia de obra pareceria, a
princípio, um clichê auto-evidente: nas artes visuais.
A obra de arte que pode existir a partir das vanguardas modernistas é aquela que
tem como ponto de origem precisamente o lugar de sua ausência. A partir do momento
em que uma obra de arte pode ser definida como não-arte, tal qual acontece com o
quadro de Manet, o deslocamento que essa delimitação entre obra e não-obra provoca
faz com que, desde então, se uma obra possível, ela poderá advir do lugar em que
foi excluída. A obra de arte mistura-se e emerge do lugar da não-arte, dos objetos
cotidianos que Duchamp vem sagazmente apontar como o lugar de uma obra possível.
Na contemporaneidade, as questões e impasses inaugurados pela modernidade
fazem acentuar-se e esparramar-se pelo âmbito mais amplo das constituições
subjetivas tornadas doenças do sujeito posto no lugar do homo sacer, em um estado
de exceção lugar inaugurado pela loucura enquanto ausência de obra da morte do
autor que passa agora a ser público, a relação do público com a obra não remetendo
mais a qualquer interioridade, ou seja, dos deslocamentos operados em relação ao
sujeito da razão e da consciência cartesiano que agora encontra-se solto e por isso
confinado do lado de fora de uma possibilidade subjetiva pelos discursos de saber e
poder atuais. Qual a subjetividade possível? E onde ela acontece? Retomarei as
indicações dadas pelas artistas que me acompanharam nesse percurso, por meio do meu
acompanhamento do percurso de suas obras, para traçar essas indicações em termos dos
lugares e estratégias possíveis para essa subjetivação nas bordas.
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Capítulo 12 – Os temas de borda: o corpo e o feminino. Elas.
Retomando Foucault (1976b), temos que o corpo e o feminino são lugares sobre
os quais incidiu e incide diretamente o mandato da ausência de obra dos dispositivos do
biopoder, pois o eixo central a articular a tecnologia disciplinar sobre o corpo individual
e a tecnologia de regulamentação sobre as populações é, como trabalhei
anteriormente nesse texto, a sexualidade.
Quando o poder se estabelece a partir dos saberes organizados em disciplinas, é
sobre o corpo que ele recai, na medida em que se focaliza sobre a gestão da vida dos
indivíduos. O poder disciplinar busca a normalização através do saber dito científico.
Ele é ortopédico, buscando produzir indivíduos dóceis por meio da docilização de seus
corpos, para que possam ser submetidos e utilizados como se queira.
O momento da disciplina é o momento em que, segundo Foucault (1975), nasce
uma arte do corpo humano que busca a coerção do indivíduo a partir do trabalho sobre
seu corpo, manipulação de seus elementos, de seus gestos e de seus comportamentos. O
corpo torna-se, assim, um campo de forças a ser explorado. A disciplina lhe promove a
ortopedia, que se realiza sobre a materialidade corporal. O corpo torna-se, por
excelência, o lugar da dominação do biopoder e da biopolítica.
Dentre os corpos docilizados, dois deles que são privilegiados pelo saber /
poder disciplinar nessa sua articulação entre o individual e o coletivo a partir da
sexualidade: o da criança sexualizada e o da mulher histericizada.
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O sexo tornado fala sobre sexo é normalizado a partir de uma série de discursos
que buscam adestrá-lo. O corpo sexual inscreve a sexualidade no campo do biopoder,
sendo intensificado ao extremo como objeto de saber. Corpos e prazeres intensificados
como discurso passível de ser manipulado pelos dispositivos de saber / poder, eis o
território a partir do qual o corpo feminino será sabido e agido, saturado de uma
sexualidade aliada a seu papel de mãe e de reprodutora da espécie, modo possível de se
pensar o lugar a ser ocupado por esse feminino a partir daí, tanto no campo das artes
quanto no das subjetividades, como veremos a seguir.
Quero apenas destacar, antes de seguirmos adiante, que o corpo da mulher
saturado de sexualidade é, segundo Foucault (1976b), precisamente o que o constitui
enquanto ameaça patológica e alvo da medicalização. Assim, o mesmo poder que se
abate sobre a loucura como ausência de obra e doença mental recai sobre os corpos, e
sobre o corpo feminino tornado doença na figura da mulher histérica. A mulher fica
reduzida à figura da mãe e/ou à histeria seu corolário às custas do sacrifício de seu
erotismo.
Vamos a Freud e àquilo que ele traz para a discussão sobre o corpo feminino no
campo psicanalítico, paradoxalmente inserido e problematizador desse campo
discursivo do poder disciplinar.
12.1 – O corpo freudiano enquanto corpo indócil
A materialidade e a corporeidade não passaram despercebidas a Freud que as
apontava, tanto no texto a respeito do bloco mágico (1925[1924]), como arquitetura
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possível do psíquico dependente de marcas e de lugares para tais marcas, quanto ao se
referir, em “O ego e o id” (1923a) ao ego como projeção de uma superfície, estando
considerada uma superfície corporal como o ponto de origem de uma precipitação que
pode se entender como uma unidade e, mais ainda, no extenso trabalho que faz acerca
das pulsões, especialmente em “Pulsões e seus destinos”
(1915b), que nada mais são do
que a articulação entre psique e corpo, ou a exigência do corpo que dispara um
movimento psíquico, dependendo esse último do que se movimenta como intensidade
no primeiro. Ou seja, o corpo, em Freud, teve lugar proeminente para a construção de
algum saber sobre o psíquico a partir de suas noções de inconsciente, de ego e de
pulsão. Isso sem nem sequer mencionarmos a noção fundamental da sexualidade, na
qual se apóia toda a construção metapsicológica freudiana e que tem, por sua vez, seu
ponto de apoio e, também, suas conseqüências, naquilo que a psicanálise vai entender
como corpo. A esse ponto retornarei mais adiante, restringindo-me, por ora,
particularmente aos três primeiros conceitos que citei logo acima.
No que diz respeito ao inconsciente e sua articulação com a materialidade das
marcas mnêmicas, podemos referir-nos ao modo como Freud (1925[1924]) compreende
a memória na dependência de uma materialidade do suporte para que ela se inscreva
como representação. A memória não é factual para a psicanálise, mas construção
permanente. A realidade psíquica se opõe à realidade material, conforme Freud afirma
em “A interpretação dos sonhos” (1900). O aparelho psíquico é aparelho de memória
inventada, marcada pelos fantasmas e pela realização de desejo, permanentemente
inscrito e transcrito. Isso indicará que a materialidade do suporte sobre o qual se
depositam os traços mnêmicos não é um lugar estabelecido, mas uma corporeidade
pulsante, dependente de seu próprio movimento.
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Com isso, a idéia de que o inconsciente trata-se, antes de qualquer coisa, de uma
instância corporal, será incrementada pela relação estabelecida por Freud entre o
inconsciente e a pulsão, à qual tornarei adiante. Pois, se a memória em psicanálise
vincula-se ao inconsciente e esse, por sua vez, através do pulsional relaciona-se ao
corpo, temos aqui que a memória é como o atesta o bloco mágico de Freud corpo.
Retomo, então, o texto de Freud sobre o inconsciente de 1915, no qual ele vincula a
representação inconsciente à marca de memória e, também, ao pulsional, duas formas
de sua corporeidade. Nesse texto, ele o define como dizendo respeito às idéias, às
representações que são os objetos do recalque em contraposição aos afetos que,
desligados das idéias que lhes deram origem, transitam no psiquismo vinculando-se a
outras representações ou em forma de ansiedade. Assim, o inconsciente difere quando
se busca conceituá-lo a partir de representações ou de afetos. Nas palavras de Freud:
“A diferença toda decorre do fato de que idéias são catexias basicamente de
traços de memória –, enquanto que os afetos e as emoções correspondem a processos de
descarga, cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos.” (1915a, p.183).
Em sendo o inconsciente regulado pelo princípio do prazer, movido pela força
pulsional inscrita como representação e afeto, e objetivando a satisfação / descarga
dessa mesma força, podemos entender que aquilo que anima o psiquismo ainda que
inscrito a partir de traços de memória considera a mesma, bem como a realidade e os
fatos, de maneira bastante peculiar. A realidade, o factual e a memória são construídos
por esse movimento psíquico, por isso que se organiza psiquicamente desde uma
pressão pulsional, que Freud entende como a energia animadora de um psiquismo que
se conforma a fim de garantir sua descarga.
Ou seja, e Freud o afirma categoricamente no artigo de 1915 o traço de
memória diferencia-se da lembrança consciente, pois o primeiro remete à experiência do
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inconsciente e, conseqüentemente, do pulsional, através da representação de coisa,
distinta da representação de palavra que seria a representação consciente. Assim, a
representação de coisa que é a representação inconsciente “(...) consiste na catexia, se
não das imagens diretas da memória da coisa, pelo menos de traços de memória mais
remotos derivados delas.” (1915
a
, p.206).
Se a memória lança mão de um suporte para se estabelecer e criar uma marca
psíquica, também no que diz respeito ao ego, Freud (1923a) estabelecerá uma
vinculação com o corpo, na medida em que afirma o ego como projeção de uma
superfície corporal. O ego, para ele, seria uma organização coerente de processos
mentais responsável tanto pela consciência quanto pela descarga das excitações, a partir
de seu acesso à motilidade. É de onde parte o recalque e, como conseqüência, a
resistência.
A consciência, para Freud, é a superfície do aparelho mental, o primeiro ponto
de um sistema a ser atingido pelas estimulações do mundo externo. Os traços mnêmicos
são contidos em um sistema adjacente ao da percepção / consciência. Uma lembrança
revivida é um traço mnêmico catexizado. O ego, que tem como núcleo a consciência e a
percepção, é dominado e atravessado por várias forças: as que provêm do mundo
externo, as pressões do recalcado inconsciente, as forças e intensidades pulsionais. O
ego seria, portanto, a superfície do psíquico.
Trata-se de uma parte do psíquico por excelência, do assim chamado id, que se
diferencia a partir de seu contato com o mundo externo, por meio da percepção e da
consciência. Tal diferenciação decorre, especialmente, de uma percepção que se atém ao
próprio corpo e suas estimulações. Isso indica que a precipitação de um ego a partir de
uma superfície do psíquico depende, principalmente, daquilo que se a perceber no
corpo.
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O corpo é um objeto destacado dos outros no campo perceptivo. Assim, se o
núcleo do ego é a percepção /consciência, temos que seu núcleo é o corpo, quando
Freud (1923a) afirma que o ego é corporal. Não apenas uma entidade de superfície que
se alojaria na superfície do aparelho psíquico, mas também a projeção de uma superfície
na medida em que é superfície corporal projetada psiquicamente como ego. Ele deriva
das sensações corporais que se originam, principalmente, da superfície do corpo e, com
isso, inscreve-se como sua encarnação psíquica.
Temos, então, que o inconsciente e o ego têm suas fundações no corpo, a partir
da memória e da projeção da superfície corporal. Resta, para abordarmos a importância
do corpo na constituição do psíquico em Freud, ver como também no campo do
pulsional o mesmo guarda um lugar de base constituinte.
A pulsão brota no indivíduo como fenômeno físico e orgânico. Trata-se de um
fenômeno fisiológico e de um processo energético-econômico. Ou seja, ela provém do
corpo e coloca em movimento um processo que vai da necessidade ao acúmulo de
energia que gera uma pressão no sentido da descarga que conduz à satisfação. Por sua
vez, a pulsão é percebida pelo indivíduo como fenômeno psíquico - idéia, vontade, dor,
medo, sensações - e o impele a agir. Nas palavras de Freud (1915b):
“(...) um ‘instinto’ nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira
entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se
originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita
à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo.” (p.127)
A força constante da pulsão impulsiona ao movimento em um sentido, com um
objetivo: ser satisfeita. Ela visa à satisfação, à extinção das necessidades, das urgências
somáticas ou até, em última instância, à aniquilação de si mesma e de sua própria
tendência ao movimento mediante o retorno a um estado de plenitude, no qual nenhum
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movimento se faz necessário posto que o ser de nada carece. E tal movimento que
orienta a constituição e a circulação psíquica é disparado pelo acontecimento corporal.
Parece-me interessante retomar Freud nesses três pontos em que ele vincula o
psíquico a uma corporeidade – o psíquico como inconsciente e como aparelho de
memória, o ego / eu como projeção de uma superfície corporal, e o pulsional como
medida do psíquico paga às intensidades do corpo não apenas para nos relembrar que
o corpo está mais imbricado com o campo psicanalítico e com a própria psicanálise,
quer como processo, quer como metapsicologia, do que costumamos considerar mas,
também, para tecermos algumas considerações a respeito de como se articula essa
imbricação.
É importante considerar, entretanto, o corpo de que estou falando. E aqui retomo
a noção de sexualidade, tão cara à psicanálise.
A sexualidade humana é, como se comprova na leitura dos “Três ensaios para
uma teoria da sexualidade”
(Freud, 1905a), aberrante em relação à função biológica da
reprodução. Ela é infantil, perversa polimorfa, marcada pela pulsão e seus movimentos,
a partir do princípio do prazer, no sentido da satisfação e da descarga.
A pulsão sexual não visa a reprodução, mas a satisfação. A sexualidade humana
é permeada por essa pulsão, o que a torna antinatural, pouco instintiva, atravessada pelo
psíquico e, conseqüentemente, pelo simbólico. O desejo é o hiato que faz movimentar o
psíquico em torno de representações e afetos que, marcados enquanto traços
inconscientes, dão notícias daquilo que mais se aproxima dessa experiência de
satisfação sem, contudo, jamais realizá-la totalmente, sustentando o psiquismo tanto na
pressão por realização quanto em seu adiamento.
Na pulsão sexual se pode verificar, com mais clareza, as características da
pulsão que a distinguem do instinto: objeto não predeterminado biologicamente
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(contingente), formas de satisfação variáveis, ligada ao funcionamento de zonas
corporais determinadas. A diversidade de fontes somáticas de excitação sexual faz com
que a pulsão sexual não esteja unificada desde o início mas, ao contrário, fragmentada
em pulsões parciais cuja satisfação reside no prazer do órgão, o que constitui, também,
um corpo fragmentado a se unir apenas em um segundo movimento, em consonância
com a precipitação de um ego enquanto entidade organizadora do psíquico.
O sexual e a sexualidade em psicanálise recuperam, portanto, a idéia de um
corpo erótico, marcado pelo movimento das intensidades pulsionais e do desejo,
circulado e circunscrito pelo desejo do outro, pela fala e pela história, investido,
configurado por zonas erógenas, pelos modos, meios e históricos das experiências de
satisfação. Ou seja, é um corpo tão dependente do outro para sua existência como
suporte, em si, de que possa haver algo como um eu e um outro. É o corpo da percepção
e da memória que, imbricadas, constroem algo como uma percepção e uma memória.
Pois não se trata de um corpo organismo, mas de um corpo pulsional, intensivo, um
corpo que também se faz enquanto corpo na medida em que percebe, marca e cria
memória. Não há, assim, uma precedência de um sobre outro, corpo sobre psiquismo ou
vice-versa, mas uma interdependência que coloca a existência de ambos a partir de um
mesmo gesto.
O corpo sexual freudiano é um corpo marcado pelo erotismo, pela
pulsionalidade, pelo desejo e pela história. Trata-se de um corpo indócil, ou de um
corpo que simultaneamente se assujeita e se rebela em relação à docilização que recai
sobre ele. E a história desse corpo constituído em subjetividade é precisamente a
história desses assujeitamentos e dessas resistências que têm como palco o corpo, assim
como seus desdobramentos em termos de trabalho e constituição de psiquismo.
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O que as artistas com as quais dialogo ao longo dessa tese trazem para esse
corpo freudiano em especial no que diz respeito aos trabalhos de Nazareth Pacheco e
de Marina Abramovic é, exatamente, o modo como essa resistência ou rebelião pode
se dar, ou seja, através da reinserção de sua materialidade corpórea na obra, da
recolocação em cena de tudo aquilo do corporal que fora negado para que o mesmo se
tornasse apresentável. Uma manobra contra sua assepsia.
O sangue, a carne, aludidos nas instalações, a concretude do corpo presente na
performance, tudo isso reapresenta o corpo pulsional e erótico mesmo quando vai ser
destituído até mesmo de seu erotismo e de sua vinculação à sexualidade a fim de
enfatizar sua radicalidade enquanto corpo mortal, como acontece ao longo dos trabalhos
de Marina problematizando a calmaria de sua tácita aceitação enquanto corpo
descorporificado naquilo que fora sua representação artística anteriormente, ou naquilo
que, no domínio das subjetividades, apresenta-se como corpo apaziguado por meio do
apaziguamento do olhar, negação de seu potencial de convulsão relembrado pela
histeria e tão bem considerado pela obra freudiana.
Ele é, ainda, um corpo marcado pela diferença e pela sexuação enquanto
materialidades que o compõem e que dele demandam trabalho psíquico a fim de se
configurarem enquanto condição de subjetivação. O corpo tomado por Freud, então, em
sua materialidade imbricada em sua eroticidade, não pode prescindir de uma nem de
outra para produzir psiquismo, o que significa que os contornos desse corpo implicarão
em conseqüências naquilo que ele será enquanto marca psíquica.
Nesse sentido, que haja um corpo de mulher, ou um corpo feminino, parece
tratar-se de uma marca nada desprezível para o que se constituirá tanto quanto corpo
erótico quanto como inscrição psíquica de tal corpo e de tal feminilidade. E temos que,
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para a psicanálise, a principal marca desse corpo feminino ou sua marca inaugural é
sua inscrição psíquica enquanto histeria. É a mulher histérica do corpo feminino,
marcado eroticamente pelos movimentos e convulsões que a levam à conversão, a
inauguradora do campo conceitual e discursivo da psicanálise, ou seja, a mulher e o
corpo feminino nesse lugar da histeria – patologização de sua condição subjetiva.
12.2 O feminino psicanalítico enquanto transbordamento da lógica fálica e da
idéia de origem.
Assim, se ser mulher é ser uma histérica, estão as primeiras histéricas de
Freud que não nos deixam mentir. Aliás, o próprio Freud (1914a), em seu texto sobre o
narcisismo, foi categórico em afirmar que as mulheres ligam-se aos outros
narcisicamente, ou seja, de um modo em que a sua satisfação prevalece sobre a
possibilidade de abrir-se para as necessidades e demandas do que está fora de si. A
mulher é um narciso de olho em seu próprio umbigo, a quem ser amada importa mais do
que amar, o que dificulta muito a que ela consiga desvencilhar-se da posição fálica em
que o mundo se configura como dividido entre aqueles que têm valor (o falo) e os que
não o possuem. A mulher, em Freud
11
e com a psicanálise, mas não apenas aí, oscila
entre o apaziguamento de bastar-se a si mesma em uma posição narcísica na qual o
mundo gira ao seu redor ou, então, percebendo-se incompleta, imperfeita e falha, em
buscar naqueles que não o são crente de que eles existem uma restauração daquilo
que perderam. A condição feminina, portanto, aparece como equivalente à posição
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11
Vide o trânsito feito por Freud da mulher narcísica em 1914a à mulher castrada dos textos da década de
20 (1923b, 1924a, 1925b), da completude à falta e à impossibilidade ou quase de restauração.
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narcísica, à posição castrada no binômio fálico-castrado e à histeria no modo como
busca sua restauração do que teria sido sua primeira condição de beatitude e inteireza.
Se, para Freud, o organizador do psiquismo é a passagem pelo complexo de
Édipo e o confronto com a castração, há diferenças na maneira como tal processo atinge
homens e mulheres, bem como no lugar que teria para uns e outras. Enquanto o menino
tem por objeto de amor a mãe e por rival o pai, numa acepção simples, unidirecional e
positiva daquilo que se encontra proposto desde 1905a, com os Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, em oposição ao Édipo completo de que falará em “O ego e o
id” (1923a) para a menina, cujo primeiro objeto de amor também é a mãe, haverá a
necessidade de um percurso mais complexo que lhe permita mudar de objeto
investindo assim no pai do mesmo modo que tem que mudar de zona erógena do
clitóris, seu correspondente ao pênis do menino, para a vagina. É o que Freud constatará
na década de 20, com seus textos de 1923b, 1924a e 1925b sobre o tema.
A ligação da menina com o pai é antecedida por uma ligação dela com a mãe, de
grande intensidade e longa duração. Praticamente tudo aquilo que ocorre no período da
sexualidade infantil perverso polimorfa está marcado, no caso da menina, por seu
profundo investimento na mãe como objeto de amor. A fase pré-edípica, portanto,
adquire maior importância com a tentativa de Freud perscrutar aquilo que se com as
mulheres em suas primeiras ligações objetais. Com isso, ele abandona o paralelismo
antes suposto entre os desenvolvimentos sexuais masculino e feminino.
Para a mulher, a bissexualidade presente em todos os seres humanos ocupa o
primeiro plano. Enquanto o homem possui apenas uma zona sexual principal e um
órgão sexual, a mulher tem dois: a vagina e o clitóris. Isso significa que as mulheres
vivem, em relação à sua sexualidade, a partir de duas posições decorrentes desses dois
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órgãos responsáveis por ocorrências genitais distintas: uma de caráter masculino e outra
especificamente feminina. Para Freud (1931), e como a menina vive suas principais
experiências sexuais da infância em relação ao clitóris, ela transitará desse primeiro
momento de vida sexual masculina para um segundo, com a descoberta da vagina, onde
o que haveria de propriamente feminino na sexualidade ganharia lugar de destaque.
Ao mesmo tempo em que deve mudar de sexo, seu objeto também deve ser
modificado. Enquanto o complexo de castração age no menino como fator limitante que
lhe impulsiona à renúncia da mãe como objeto de amor em prol da preservação de sua
integridade narcísica, precipitando a introjeção dessa interdição na forma do superego e
do objeto interditado na forma do deslizamento possível na construção das instâncias
ideais, a menina, para quem a castração é entendida como um fato e não como uma
ameaça confronta-se com uma problemática bastante distinta. Entre desvencilhar-se
de sua atividade fálica e de sua sexualidade como um todo, ou aferrar-se a essa
masculinidade ameaçada, pode ser que escolha, como terceira via, o ingresso no
complexo de Édipo ao tomar o pai como objeto. Ou seja, a possibilidade do Édipo se
constrói com a castração para a mulher, sendo ponto de chegada e não de partida, como
o que ocorre com os homens. E, segundo Freud, não será superado por ela. Portanto,
frente à castração, a menina pode cessar sua vida sexual, superenfatizar sua sexualidade
ou, então, ingressar no campo da feminilidade.
As primeiras experiências da criança com a mãe encontram-se marcadas pelo
caráter passivo que elas possuem para a criança. Submetida aos seus cuidados, ela
desfrutará das satisfações proporcionadas por esse contato e, ao mesmo tempo, buscará
transformar em atividade suas experiências vividas de maneira passiva. Daí decorrerão
todos os impulsos orais agressivos dirigidos à mãe. São esses impulsos sexuais ativos os
mais frustrados para a menina com a constatação da castração. Assim, seu trânsito se
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da atividade frustrada para a passividade, da mãe como objeto, da masturbação
clitoridiana e da masculinidade de sua primeira infância para a ligação com o pai. A
passividade e a feminilidade se aproximam.
Em 1933, a feminilidade e a masculinidade são, para Freud, características
desconhecidas que fogem ao alcance da anatomia e para as quais as diferenças
anatômicas servem pouco como base ou ponto de inflexão. Além disso, a associação de
masculinidade e feminilidade a aspectos mentais que terminam por se traduzir em
atividade e passividade pouco esclarece sobre o tema, do mesmo modo que a derivação
da passividade para o masoquismo como característicos do feminino. A psicanálise não
tenta mais descrever o que é a mulher, mas apenas se pergunta como é que a mulher se
forma a partir da criança dotada de disposição bissexual.
A identidade da fase pré-edípica entre meninas e meninos é total. A menina é um
homem que obtém satisfação a partir da masturbação de seu clitóris. A prevalência do
modo masculino é comum a ambos os sexos, ao longo da primeira infância, sendo que a
feminilidade e seus signos – a vagina, por exemplo – permanecem também, para ambos,
como um desconhecimento.
Com a constatação da castração, a menina teria em vista a possibilidade de
ingresso no campo da feminilidade. O que se encerra, nesse momento, é a atividade
fálica, na qual a menina funcionaria como o menino, segundo a lógica de ter ou não um
falo, equivalente ao pênis ou ao clitóris. São os impulsos pulsionais passivos que a
imprimem na direção do pai. O desejo de ter um pênis é substituído, através de uma
equivalência simbólica, pelo desejo de ter um bebê de seu pai. Para Freud, o desejo de
ter um pênis, que desliza da posição masculina pré-edípica para a posição feminina,
sabedora da castração, equivalente a ter um filho, é um desejo feminino por excelência.
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Ao contrário do menino, cuja entrada no complexo de Édipo evolui da fase
lica e é encerrada pela ameaça de castração, a menina ingressa na dinâmica do
complexo de Édipo através da castração que, longe de encerrá-lo, prepara-lhe o terreno.
Com isso, falta a ela o motivo principal que a levaria a superar esse complexo, o que
leva a diferenças na formação do superego decorrente da passagem pelo Édipo na
mulher. Freud atribui à feminilidade uma maior quantidade de narcisismo, o que afeta
sua escolha objetal, uma vez que ser amada ainda será, para a mulher, mais importante
do que amar. Sua escolha se faz em conformidade com o ideal narcisista de homem que
a menina quis ser.
Assim, trata-se de um verdadeiro clichê psicanalítico que a mulher tenha
dificuldade em se descobrir enquanto tal. Desde Freud e seus Estudos sobre a histeria
(1893-95) tomamos conhecimento dessa maneira típica pela qual as mulheres guardam
a ilusão de serem portadoras de um falo posto em equivalência com o pênis em seus
corpos convertidos em sintomas. Evidentemente, o sintoma estando a serviço da
manutenção dessa ilusão fálica na qual nenhum lugar será destinado à falta. De forma
que, segundo Freud (1932, 1933), descobrir-se como mulher, um ser sexuado, barrado e
também em falta passa por atravessar o complexo de Édipo tanto quanto pela aceitação
da castração, dois processos bastante falhos no que diz respeito às mulheres
diferenciadas dos homens após sua equivalência nesse sentido apresentada nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905a). Daí que, ao se descobrirem castradas,
elas não terão nenhuma razão tão forte quanto os homens para renunciar a seus prazeres
pré-genitais e a seu primeiro objeto a mãe, fazendo de sua escolha do pai e de seu
acesso ao conhecimento do prazer vaginal pontos de chegada, não de partida como para
os homens. Para as mulheres fica reservado, nesse momento, o lugar de incompletude
frente ao homem tanto quanto face às possibilidades de subjetivação que demandam um
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acesso à via simbólica, encontrado apenas pela travessia do Édipo, o que não será
evidente em seu caso na medida em que seu processo a envia para o Édipo, mas não
para fora dele. Quer pelo deslocamento ter um pênis ter um bebê, quer por meio da
permanência nesse lugar em que se pode ainda acreditar que o pênis existe por meio do
sintoma neurótico, quer pela opção homossexual, Freud às mulheres soluções falhas
que retornam sempre à manutenção dessa posição fálica e narcísica através da qual
buscam uma restauração do que foi perdido no momento em que elas se descobriram
castradas. É por essa razão que a mulher freudiana (1914b), menos motivada para sair
de uma posição narcísica, se ocupa mais de ser amada do que de amar, buscando a
passividade de existir enquanto objeto do olhar e da ação dos homens.
Constatamos aqui que a teoria freudiana repete nela mesma as contradições e os
impasses ligados às mulheres e à denegação em conceber um feminino que indique uma
existência fora da referência ao falo, fora da linguagem e do simbólico, ligado ao que
não pode ser nomeado. A teoria freudiana é tão fálica quanto a descrição que ela faz
dessa organização psíquica, tomando sempre o falo como o ponto de partida e o ground
zero de toda possibilidade de subjetivação humana. Não haveria nada além?
Aqui, também, os trabalhos das artistas presentes ao longo dessa tese
especialmente as produções de Cindy Sherman, mas não apenas elas contribuem para
problematizar o feminino freudiano, do mesmo modo que problematizaram o corpo
freudiano, como acabo de abordar anteriormente, ao trazerem a discussão acerca desse
feminino para além daquilo que fica subsumido à lógica fálica e ao âmbito do que pode
ser contornado pela castração e pela maneira como a mulher se articula com a mesma.
O feminino da mascarada revela a falácia da lógica das máscaras, feminino e
masculino articulados a partir do falo desconstruindo- se e desconstruindo-o ao mostrar
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que o desvelamento, assim como a própria idéia do véu, conduzem ao engodo de pautar-
se em uma idéia de origem e de verdade última que os trabalhos de Cindy Sherman
tensionam até o limite de sua dissolução. Véus, artifícios e estratégias mostrados
reintroduzem o feminino enquanto possibilidade outra que escapa à ordem do
desvelamento e da verdade, impasse frente ao qual a psicanálise não ficará imune,
forçada que será a considerar o feminino também em relação a essa brecha que o põe
fora daquilo que o saber psicanalítico propôs enquanto modo de constituição psíquica
alicerçada no campo do representável e do simbólico. Foi necessário surgir Lacan para
que essa aproximação à mulher e ao feminino sempre fragilmente ordenados pela
organização fálica fosse posta em questão.
Será Lacan (apud. Alonso, 2002) quem se perguntará se a mediação fálica dará
conta de todo o campo pulsional em uma mulher. Deslocando-se do campo do sexo para
o campo do gozo, se indagará acerca de um gozo feminino, considerando que existe,
para a mulher, uma divisão entre ser “toda fálica” e “não toda fálica”. Com isso, Lacan
recoloca a idéia de Freud de uma libido única e masculina como aquilo que impede que
se apreenda o que é da ordem da feminilidade que, também para a mulher, para que
possa dar testemunho do real de seu corpo, terá que passar pelo campo da linguagem.
Isso significa submeter o campo do feminino ao significante, que define a falta a partir
do ter, o feminino a partir do masculino, amarrado a uma lógica masculina, fálica.
O gozo, segundo Lacan (1972-73), é aquilo que não serve para nada. Imperativo
do superego, não diz respeito ao amor, já que não supõe a reciprocidade, nem tampouco
a alteridade para se firmar enquanto ordenamento. Em sendo gozo fálico, coloca a
mulher em uma posição de “não toda”. Ele nos lembra que o significante, enquanto
fundamento da dimensão do simbólico, é a causa do gozo. É a única maneira de abordá-
lo, o que quer dizer que, ainda que seja ele quem barre o gozo, é também a partir dele
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do significante e da lógica simbólica à qual remete, que temos o único instrumental
possível para abordá-lo e, assim, ao corpo.
Para abordá-los, corpo e mulher, apenas a partir do significante, deixamos de
fora aquilo que neles não se inscreve e que, por isso mesmo, aponta para uma realidade
extradiscursiva, extrapsíquica, extra-simbólica. A idéia interessante proposta por Lacan
de uma mulher que é dividida e existe na articulação entre ser “toda fálica” e “não toda
fálica” coloca a importante questão de se o feminino pode ser subsumido a essa lógica
ou se não dirá respeito, também e principalmente, àquilo que lhe escapa. Afinal, o
feminino o que é? E a mulher? Em que medida compreender mulher e feminilidade nos
traria recursos para nossas reflexões iniciais sobre o que pauta a construção das
subjetividades na contemporaneidade?
Colette Soler (2003) nos apresenta a questão do gozo feminino por onde a
psicanálise poderá pensar nesse “de fora” da lógica fálica para o qual aponta o feminino
e a respeito do qual nos falou Lacan por meio da referência à maneira como a mulher
e o feminino foram tratados pela psicanálise, especialmente por Freud e por Lacan.
Desde sua aproximação da histeria, o que Freud (1893-95) evidencia é que existe, a
partir de Anna O., ao menos duas. Duas mulheres, dois tipos de gozo, o que será posto
em cena será sempre a mulher incluída e excluída daquilo que pode defini-la.
As pulsões parciais ignoram a diferença sexual: isso significa que não
diferença sexual no inconsciente a não ser a partir do Édipo – estratégia teórica utilizada
por Freud para fazer face à problemática da diferenciação, na medida em que ela não
aparece senão como ter fálico no psiquismo. Freud descobre as pulsões como pulsões
parciais (1905a). A idéia da perversão polimorfa quer dizer que não há pulsão genital no
inconsciente. E as pulsões parciais nada informam da diferença entre homem e mulher.
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As pulsões parciais ignoram a diferença sexual do mesmo modo que o corpo na
obra de Marina Abramovic parece poder prescindir de sua referência ao feminino. Isso
quer dizer que o corpo do qual a artista busca experimentar os limites guarda uma
relação íntima com o inconsciente das intensidades pulsionais parciais, demandando um
trabalho psíquico pelo fato de ser corpo.
O Édipo faz o homem, mas não faz a mulher. Ela se faz, segundo Freud, apenas
a partir de sua parceria com o homem, esperando o falo daquele que ela supõe que o
possua. Não se trata disso para Lacan, que introduz uma outra problemática naquilo que
diz respeito às mulheres, que não sendo definidas pelo Édipo, o serão apenas pela
lógica. “Apenas a lógica pura rege o que é totalmente outro, a saber, o gozo vivo dos
corpos. Não nos espantaremos então se Lacan formula a diferença entre os sexos, por
vezes, a partir da oposição entre duas lógicas, aquela do todo fálico para os homens e do
não toda fálica para as mulheres, assim como entre dois tipos de gozo, um fálico e outro
dito suplementar.” (Soler, 2003, p.19).
O gozo suplementar, que se agrega à referência do falo, está situado em outra
lógica aquela do não toda que não pode levar a uma totalização. Trata-se de uma
vertigem do Absoluto, de uma busca do amor total que extermina o objeto portador da
falta, criando um deslocamento de uma falta fálica a um nada que não é sua negação,
mas um deslocamento a uma outra coisa, uma busca do Outro absoluto.
A lógica da castração não rege todo o campo do gozo, resta uma parte que é fora
do simbólico. A mulher, que não existe para Lacan, nada mais é do que um dos nomes
desse gozo. Ela é, então, o outro nome do real, da borda, do Outro. Falar sobre a mulher
é falar a respeito disso tudo. É como falar do corpo, daí sua aproximação ao feminino.
A mulher, que se torna o falo para o outro (ela é aquilo que ela não tem), sua
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falta fálica convertida em um benefício, é chamada no lugar do objeto e, como objeto,
ela é para o homem. Isso quer dizer que ela é enquanto semblante, a partir do que ela é
para o outro, de onde qualquer coisa de seu próprio ser fica forcluída. Soler (2003)
afirma:
“Se a mulher se inscreve no casal sexual apenas enquanto ‘se deixar desejar’,
sua posição como parceira do desejo masculino deixa na sombra a questão do desejo
próprio que condiciona esse consentimento.” (p.38). Então, o que quer a mulher? Um
encontro com o gozo que possa abolir o sujeito, que o ultrapasse e “(...) que não possa
que não ser res-sucitado sem ser significantizado”. Isso aproxima a questão do feminino
da questão do sublime, sobretudo naquilo que diz respeito ao campo artístico,
deslocando a mulher e o feminino de sua relação com o belo na história da arte e os
recolocando, talvez após ter-lhes restabelecido de sua materialidade tanto quanto de ter-
lhes desnudado de seu vínculo com uma verdade última, próximos do sublime, do
aterrador ou, digamos, da morte. Retornarei a isso adiante.
Descobrir-se enquanto mulher não é necessariamente encontrar uma referência
de si em relação aos homens, nem ao masculino, nem mesmo ao feminino. Lacan, em
seu seminário 20, intitulado “Mais, ainda” (1972-1973), refere-se à mulher como o
sujeito que traz a alteridade radical, uma vez que ela é toda fálica e não toda fálica. Isso
quer dizer que a mulher não pode ser reduzida nem encerrada em uma referência ao
masculino, nem ao falo. Algo escapa, criando todo um outro continente desconhecido
do qual não podemos nos aproximar a não ser pela via do simbólico, a qual apela
necessariamente à palavra para tornar-se símbolo. Assim, são aproximações mancas
essas que se dão pelo meio da linguagem ao qual esse não toda fálica não pode ser
totalmente circunscrito.
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Prosseguirei essa discussão através dos exemplos trazidos pelos trabalhos das
artistas que nos acompanharam ao longo dessa tese mas, neste ponto, quero apenas
assinalar que um interesse nesse tema na medida em que é possível pensar
psicanaliticamente sobre o mundo contemporâneo a partir do feminino, como fez Joel
Birman (1999, 2006). Ele nos apresenta a idéia de que, se a distinção entre os sexos se
constrói a partir do referencial fálico, pensar sobre a feminilidade é deslocar-se para o
lado de fora do mesmo e de suas construções, colocando-nos em um outro registro
quanto à sexualidade. Para Birman (2006), ainda segundo Freud (1937), a feminilidade
traria como categorias pelas quais pensar as condições para nossa subjetividade
contemporânea, desterrada de Deus, do pai e da razão, as idéias de desamparo e do
masoquismo erógeno, possibilidades vindas de alhures, com as quais criaríamos
condições de subjetivação. Haveria, portanto, uma via de existência pelo feminino.
Encontramos, então, um movimento na psicanálise que parte do feminino
submetido à lógica fálica em direção à possibilidade de um fora que nos faça considerá-
lo como uma condição outra de subjetivação. No campo das artes, algo de um
movimento / deslocamento semelhante do corpo feminino teve lugar.
12.3 – Corpo e feminino no âmbito das artes visuais.
A mulher foi, durante séculos, um dos objetos privilegiados do olhar e da ação
dos artistas, a passividade de ser vista como pintura ou escultura enquanto signo de
beleza ao passo que aos artistas – quase sempre homens seria reservada a atividade de
pintá-las ou esculpi-las. Essa divisão tão marcada começa a ser perturbada apenas após
os movimentos vanguardistas, quando a beleza foi posta em questão enquanto objetivo
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principal do trabalho artístico por meio da dobra da arte sobre si mesma. É com as
vanguardas que a arte se distancia de seu aspecto representacional sob a rubrica do qual
ela havia sido feita com o fim de ilustrar os valores maiores de cada cultura – sejam eles
religiosos ou seculares para se voltar às discussões sobre a arte propriamente dita,
inclusive sobre sua fatura: as cores, a forma, a perspectiva, a representação, tudo isso
sendo posto em discussão tanto quanto desconstruído.
É com Gustave Courbet e seu Origine du monde (1866) que a mulher ou o
corpo feminino interroga seu espectador pela primeira vez de maneira chocante. As
mulheres tão belas quanto adequadas a servirem como objeto do olhar apaziguador, no
mesmo sentido em que Lacan (1964) fala do quadro que faz com que o olhar se
pacifique e seja deposto, mudam de posição e, depois disso, olham as pessoas de frente.
A deposição e a elisão do olhar indicados por Lacan como um meio de apaziguar
a pulsão se aproximam desse lugar dado às artes visuais e consequentemente, à mulher
ali encontrada enquanto representação até o século XIX. O alvo da arte, tanto quanto
seus temas e seus modos de execução conformam-se a tal função apaziguadora, na
medida em que as turbulências pulsionais devem ser submetidas aos valores
civilizadores da cultura. Mas se tal afirmação serve bem para a arte até o século XIX,
após as vanguardas será muito difícil sustentá-la, pois o olhar será tomado em uma outra
economia. A Olympia de Édouard Manet, de 1863-65, serve como referência a
propósito de tal mudança, a mulher nua confrontando por seu olhar duro e por seu rosto
vulgar aqueles que ousam se postar em frente ao quadro, desconstrução de todos os nus
anteriores nos quais a mulher estava sempre passivamente aberta a ser contemplada. A
Olympia de Manet olha seu espectador, ela olha fora do quadro e, dessa maneira, ela se
faz ser olhada enquanto pintura, não como uma representação das mulheres. Mais ainda,
ela faz referência à sua sexualidade, ela nos olha e nos confronta com seu sexo, nos
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desafiando enquanto toca seu sexo, reenviando-nos ao quadro de Courbet e à maneira
por meio da qual será o sexo da mulher o que nos confrontará.
Dupla mudança: a mulher vista agora olha e, também, a representação da mulher
se desconstrói ao se desvelar quadro, o que coloca uma questão à representação na arte e
uma outra ao objeto mulher enquanto objeto do olhar. Uma mudança tão notável quanto
a que terá lugar no momento em que as mulheres se colocarão do lado de fora das telas
a fim de fazer suas próprias obras. Foi também nos movimentos de vanguarda que a
mulher encontrou pela primeira vez seu lugar enquanto artista.
Mas retornando ainda a Courbet, o que ele faz por meio de seu Origine du
monde é se aproximar tanto de seus temas que a distinção entre ver e ser visto será
praticamente eliminada, levando consigo a oposição entre o homem que olha e a mulher
enquanto objeto desse olhar. Em frente à Origine du monde, é sobretudo o quadro que
nos olha em retorno ao nosso olhar, embaraçando as distinções. Até aqui, nada de
diferente daquilo que foi dito a respeito do desafio feito por Olympia alguns anos antes.
E, no entanto, no quadro de Courbet que propus como obra fundadora de uma questão
trazida pelo feminino aos domínios artísticos, é o sexo da mulher que nos olha. Não é
mais, como em Olympia, o olhar de uma mulher que nos encara, mas o sexo de uma
mulher (acéfala) que nos perscruta.” (Marcadé, Bernard, 1995, p.24). Não se trata mais
de uma disputa de poder entre os olhares trocados, mas de outra coisa. Ou seja, uma
terceira questão é posta a partir do sexo da mulher. Uma questão sobre as origens? Uma
questão toda outra? Será necessário, também no campo das artes, cerca de cinqüenta
anos até que Marcel Duchamp recoloque em jogo a questão posta por Courbet a
propósito e a partir do feminino: o feminino, o que é fora do jogo olhar / ser olhado, da
pintura como representação e da representação como apenas pintura?
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Mais do que à Fountain de 1917 de Marcel Duchamp, em que um mictório feito
para receber passivamente os líquidos masculinos é invertido ao se tornar uma fonte,
um dispositivo ativo de projeção que, ao mesmo tempo, guarda a significação popular
lingüística de sexo da mulher, trazendo novamente o tema das misturas e das
desconstruções no que tange às diferenças sexuais, faço referência a seu último trabalho,
os Étant donnés de 1946-66, obra póstuma na qual o espectador olha através de buracos
feitos em uma parede para ali descobrir um manequim feminino sem cabeça, deitado
sobre um tapete de grama artificial, ao fundo de uma paisagem campestre, tendo uma
lâmpada acesa em uma das mãos e as pernas abertas a mostrar seu sexo (ou seu não
sexo, ali no lugar onde se suporia encontrar um). No fim, reencontramos quase a mesma
cena do quadro de Courbet à exceção do sexo que não é mais mostrado em detalhes.
Um sexo que fazia alusão ao buraco torna-se agora um sexo sem buraco que faz alusão
ao sexo. Uma negação, talvez? Eis o que Marcadé (1995) diz a respeito de Fountain e
que pode bem servir para o Étant donnés:
Fountain se pretende deliberadamente como um atentado ao ‘bom gosto’ da
arte, ao seu poder de idealização. Há, expressa nessa obra, a vontade de fazer descerem
as coisas da arte das alturas etéreas onde elas mais gostam de estar. Por mais
provocadora que seja, a abordagem de Duchamp não deixa de ser genealógica e, ao
mesmo tempo, moral porque ela recoloca a questão do gosto na esfera da origem em
que ele se constituiu, fisicamente: aquela do corpo e, mais precisamente ainda, do lugar
do corpo que por seus orifícios, excreções e odores coloca mais em jogo o
afrontamento do belo e do feio, do nobre e do ignóbil: os órgãos sexuais.” (p.27)
Assim, encontramo-nos no registro do corpo e é a esse registro que o quadro de
Courbet tanto quanto a instalação de Duchamp nos enviam: o registro do real, talvez, tal
qual foi nomeado por Lacan?
176"
"
Sem me precipitar em direção a essa opção pelo real, eu sublinho que essas duas
obras fazem referência ao corpo das mulheres enquanto acéfalas como um corpo puro,
uma pura natureza sem representação, o que nos reenvia àquilo que não pode ser
nomeado ou representado. Quando Lacan (1964) fala da função do quadro no que tange
ao olhar, ele nos diz que o artista pode provocar o olhar ao propor: “você quer olhar?
Então, olhe isso!”, sendo o isso o quadro em que o olhar se depõe. Ao mesmo tempo, o
quadro que serve para apaziguar o olhar não faz unicamente isso, mas também o leva ao
campo das satisfações pulsionais, uma vez que a função do olhar não termina com a
existência do órgão, o olho, o isso do “veja isso” fazendo referência também a esse
órgão em que se jogam os jogos das pulsões.
Não é por acaso que o feminino e o corpo tenham estado sempre vinculados,
fazendo com que um pensamento sobre o corpo tombe sobre o feminino e vice-versa. A
mulher objeto do olhar e da ação dos artistas é o corpo feminino idealizado como
expressão do Belo. Mas esse corpo feminino expressão do Belo não pode ser senão um
corpo retirado de tudo que o torna carnal, assim como uma mulher retirada de tudo o
que a torna feminina. Assim, trata-se de uma subtração, feita a partir do momento em
que corpo e feminino são inscritos enquanto lugares de ausência de obra, subtração,
conseqüentemente, de suas condições de obra. E veremos que, na história da arte, é
sempre esse corpo de mulher subtraído daquilo que poderia nos enviar quer ao corpo,
quer à mulher, o que é posto em cena.
É a partir da filosofia que o homem é dividido em dois: uma alma e um corpo,
estando o segundo sempre identificado à natureza, ao feminino, à mortalidade e à
decadência do homem. O corpo e o feminino são vinculados por esse discurso e, no
campo artístico, vemos freqüentemente os impasses e as manobras aos quais os artistas
apelam a fim de conceber as representações de mulher e do corpo de tal maneira que
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"
seus aspectos mais singulares serão negados na maior parte do tempo. Por exemplo, é
como isso se dá, segundo Leibenson (2007), na Idade Média, quando as representações
da Virgem não mostram nem uma mulher, nem uma mãe, mas uma figura imaterial e
hierática que serve como receptáculo de um filho que não pode ser considerado como
uma criança, enquanto que no início do Renascimento, o mundo profano penetra no
quadro através da decoração, das vestimentas, da mulher e de sua carne, da mãe, criando
um contraste com as formas de representação anteriores.
Nessa disputa entre a ideologia falocrática que mantém a divisão e o esforço de
recolocar em cena aquilo que fica negado pela mesma o feminino e o corpo como
retornos do recalcado, eu poderia dizer – é interessante constatar que algumas mudanças
mais profundas terão lugar no momento em que as mulheres ingressam no campo
artístico, trazendo consigo seus corpos. Graças a esse ingresso que, diferentemente de
Leibenson (2007), eu não penso que o feminino e o corpo venham seguindo um
caminho na direção de seu desaparecimento na arte ocidental, salvo por alguns períodos
de sua história como o que acabo de mencionar, senão que penso ser mais provável que
ambos lutam desde sempre a fim de encontrar seu lugar no campo artístico tanto quanto
no campo sócio-cultural e, acima de tudo, no campo psíquico, o que os aproxima
corpo e feminino – do recalcado que retorna em psicanálise, trazendo notícias do
inconsciente e, ainda mais, das intensidades pulsionais que lhes originam.
Na medida em que falamos de corpo, e de corpo feminino, somos enviados ao
campo das pulsões e ao campo das bordas. E chego a afirmar que é nesses campos de
borda que a subjetivação tem lugar para se fazer no mundo contemporâneo, tese
para a sustentação da qual a referência às artistas contemporâneas e a seus trabalhos me
auxiliou muito. Retornemos à arte contemporânea.
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"
Nos capítulos precedentes, tentei apresentar, a partir do trabalho de três artistas
contemporâneas, o que poderia ser considerado como indicação dos lugares possíveis
para a subjetivação em nossos tempos, sejam eles o corpo e o feminino.
Assim, apresentei o corpo feminino como tendo sido tomado e representado, no
campo da arte, sempre enquanto corpo asséptico em ligação direta com a economia do
olhar que, a fim de contemplá-lo, fez e quis ver outra coisa que a constatação da
castração e da falta. O corpo asséptico da mulher sendo, assim, a negação de tal falta e
do feminino propriamente dito, um corpo subtraído de toda sua materialidade enquanto
corpo. O corpo subtraído de sua materialidade e de sua feminilidade como encarnação
da estratégia de disciplinamento que o dociliza, através da retirada daquilo que, nesse
corpo, seria a materialidade de sua resistência à sua sujeição: sua carnalidade e seus
atributos femininos.
O que propõe Nazareth Pacheco, a primeira artista sobre a qual escrevi, é uma
reintrodução do corpo carnal na obra, que faz frente a tal corpo asséptico da mulher
apresentado pela arte, por meio da captura e do aprisionamento que ela faz do olhar
entre os brilhos e cortes de seus objetos, alusões a um corpo despedaçado, sangrando,
que mesmo em ausência se presentifica através dos materiais e de seu próprio sangue.
Também apresentei o corpo feminino, sempre ligado a essa economia do olhar,
enquanto corpo / desvelamento, o feminino guardando a verdade última da castração em
seu próprio desnudamento. Feminino enquanto desvelamento aprisionado à lógica da
mulher enquanto histérica, feminino patologizado a serviço da sustentação da lógica
fálica, que garante a manutenção da idéia de essência e de origem.
O que propõe Cindy Sherman, a segunda artista a respeito da qual escrevi, é
colocar em questão a lógica fálica de uma verdade última incluída nessa assunção da
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"
mulher como desvelamento, através do apagamento do sujeito em suas obras, o
percurso em direção ao vazio e à ausência de figura humana tanto quanto à ausência de
origem apresentada por suas obras de máscaras, manequins ou cópias de quadros da
história da arte dos quais falta o original.
Por fim, apresentei o corpo desligado do feminino levando à radicalização de sua
materialidade fora dessa remissão a uma lógica fálica, na qual a feminilidade ainda
estaria parcialmente inscrita, levando ao retorno a uma imobilização perversa enquanto
defesa face ao confronto com o último de tal corporeidade que é a morte. O limite
absoluto desse corpo mortal promovendo um contorno não mais pautado pela
ultrapassagem no próprio corpo, mas pelo deslocamento para o âmbito do imaginário,
recuperando a imobilização perversa. Marina Abramovic propõe tanto a presença desse
corpo na apresentação de sua carnalidade quase absoluta quanto a possibilidade de sua
transcendência / negação por meio do recurso a um deslocamento imaginário / perverso
para além de seus limites.
Cada uma a seu modo, as artistas reenviam seu olhar na direção do espectador,
voyeurismo do espectador que é, naquele momento, olhado enquanto olha. É o fim do
conforto e da proteção de sua posição. As obras o olham. É também o fim da
passividade do feminino que se dá ao olhar do outro. Consiste nesse reenvio do olhar ao
espectador e no seu aprisionamento nesse lugar voyeur o ponto de partida da estratégia
utilizada por essas artistas a fim de recolocar corpo e feminino em jogo, enquanto
lugares de borda nos quais uma possibilidade de subjetivação se constrói.
Examinaremos, então, o modo como constituem suas estratégias de problematização de
tais lugares a fim de recolocá-los em movimento a partir desse lugar da perversão do
olhar voyeur em direção ao que abordarei como sublimação.
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Capítulo 13 – As estratégias de borda: da perversão à sublimação...
Do mesmo modo pelo qual as artistas discutem os temas do corpo e do feminino
em suas obras, penso que seria interessante examinar a estratégia por meio da qual elas
promovem tal discussão, ou seja, a forma utilizada por elas para tensionar e desconstruir
o campo do feminino e do corpo sobre o qual elas buscam incidir.
Mencionei reiteradas vezes ao longo desse trabalho que, a meu ver, Nazareth
Pacheco, Cindy Sherman e Marina Abramovic partem de um mesmo lugar, qual seja, o
aprisionamento de seus espectadores em suas obras, criadas de modo a seduzirem e,
simultaneamente, provocarem um incomodo em relação à essa sedução. Não se trata de
produções confortáveis ou reconfortantes, do tipo que Lacan (1964) definiria como
oferta de pastagem para o olhar mas, ao contrário, de obras que usam precisamente dos
artifícios dessa pastagem dada ao olho para cutucá-lo, feri-lo, desconstruindo o que
estava dado a ver e que parecia tão evidente. Por meio das revelações dos artifícios de
sua fatura e dos perigos contidos no encantamento da obra, as artistas deslocam o olhar
do público de modo a que ele permaneça cativo ao mesmo tempo em que se
desconcerta. Assim, pude propor que as três artistas partem de algum ponto fixo no
contexto dos lugares imobilizados para o feminino e o corpo dados pela rede de
discursos que nos atravessa e, dali, criam um campo de tensões e indagações que
implodem com essa fixidez desde dentro, dando margem a que um movimento se
realize. Qual o sentido desse deslizamento que elas promovem?
Nazareth Pacheco joga com o corpo feminino asséptico, desde sempre objeto
passivo do olhar tanto na arte quanto fora dela, especialmente desde que tomado pelo
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"
saber e pela intervenção médicos. Tendo-os por base, cria objetos sedutores e
aprisionantes, que capturam o olhar e impedem que ele se desvie ou que os toque,
relegando-os a um estado de agoniada imobilidade. São os seu, por mim nomeados,
objetos-fetiche. E como Nazareth Pacheco desmascara esse feminino limpo e sedutor
posto em cena como atrativo ao olhar por seus objetos-fetiche? A meu ver, por meio da
articulação entre tais objetos e a dor que eles causam ao corpo.
O corpo sobre o qual recai diretamente o mandato da ausência de obra, acerca da
qual escrevi no início deste texto, por meio da subjetividade transformada em doença
tanto quanto através das intervenções sobre esse corpo enquanto doente é o lugar no
qual a artista põe em cena sua rebelião contra o estabelecimento de um corpo
despossuído de si. O corpo mutilado, manipulado das obras aparece também como
crítica aos procedimentos de controle aos quais ele é submetido em nossos dias. Ainda
que ausente, ele se presentifica através das obras e demanda ao corpo do outro que ele
se aproxime sem poder tocá-lo, tornando-o prisioneiro de uma dor presumida e da
fascinação do olhar.
Se a sedução tem lugar de maneira asséptica e se a assepsia é justamente o que
faz com que a sedução seja possível, sendo sua condição ela leva ao campo do Belo o
limpo, o perfeito, o bonito, o brilhante, o luminoso. O limpo como necessário ao belo e
à sedução contrasta com os sujos fluídos corporais potencialmente presentes em seus
encontros, mostrando-nos que depende dessa ausência de materialidade para que o
corpo se torne lugar da sedução. Um corpo despossuído de si e de sua materialidade é a
estratégia para que a sedução funcione. E tal materialidade é reencontrada através da
dor, do sangue nas mãos da artista, de tudo o que não pode ser desmentido ou negado. A
dor sendo o contraponto necessário à sedução a fim de restabelecer ao corpo sua
condição de presença em ausência e, consequentemente, de marca.
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"
Cindy Sherman retoma os lugares clichês ocupados pela mulher e pelo feminino
no campo dos discursos e das imagens presentes em nossa cultura. Em relação a cada
um desses lugares, ela compõe uma série de imagens por meio das quais revela cada um
de seus artifícios, artifícios em sua feitura, em sua composição, artifícios fotográficos,
formas, luzes, poses. O olhar encantado com o reconhecimento dessas mulheres nos
lugares a elas destinados, posicionado como o terceiro de todas as cenas, o voyeur
confortável do olhar pousado sobre o objeto passivo começa a se incomodar com o
desmascaramento dos artifícios que a artista inclui em suas produções, especialmente
porque, quanto mais eles se explicitam, mais trazem consigo a constatação de que toda a
cena está envolvida em um campo de artificialidade irônica. O voyeur é olhado ao olhar,
do mesmo modo que Lacan (1964) nos lembrava que o olhar se inicia pelo ser olhado
de todos os pontos, guardando a condição de ser visto como possibilidade de perder-se
de sua função apaziguadora de ver. O simulacro se mostra por meio dos artifícios que
não remetem a nenhum ponto de origem, a nenhuma originalidade de onde tirariam sua
condição de cópias, a nenhuma verdade derradeira como ponto de apoio.
O unheimlich é o estranho que traz como oposição o familiar que se instaura
nessas cenas construídas por Cindy Sherman. Se para Freud (1919) o que causa o horror
reenvia ao retorno do recalcado e, consequentemente, à castração, o que vemos sugerido
pelas obras de Cindy Sherman é que o horror vem do desmascaramento da lógica das
máscaras. Ou seja, reencontramos em suas obras, enquanto última máscara, não a
castração, mas a falência de tal lógica do desvelamento. Desse modo, ela nos propõe o
feminino ligado ao simulacro e enviando ao informe que põe em movimento as formas,
no lugar do feminino cristalizado como desvelamento em direção a uma verdade última
de onde parte sua desconstrução. O feminino ligado ao que desloca e põe em
movimento, seja a perversão e / ou a sublimação.
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"
Em suas obras o feminino aparece como outro e, a partir da forma como se
materializa nas mesmas, temos constantemente o corpo e sua ausência traduzidos pelos
recursos às próteses e aos manequins enquanto lugares privilegiados para esse
deslocamento do feminino, ou seja, o corpo como lugar em que o feminino se desvela
como estranho, como borda, como outro e como fora. O desvelamento do feminino e a
desconstrução dessa lógica do feminino enquanto véu têm lugar no corpo.
Marina Abramovic se lança na radicalidade da experiência de materialidade
corpórea quando, através de suas performances, coloca-a em xeque através do
desligamento entre corpo e feminino. O olhar é atraído por essa presença extrema de seu
corpo convulsivo, em constante perigo de morte, que traz o espectador para participar
de sua encarnação tanto quanto das ameaças à mesma. Desse lugar de presença do
corpo, de reinserção do corpo feminino em sua materialidade palpável, a artista doada
como objeto do olhar e do uso de seu corpo pelo outro vira o jogo, transformando seu
espectador no objeto do controle de suas ações, aprisionando-o na promessa de olhar e
usar quando, na medida em que ele concede em participar da obra, é ele quem fica
prisioneiro e objetificado. Do lugar passivo ao ativo, ela não se desloca do campo do
objeto-fetiche, deslocando apenas quem ocupa o lugar de objeto e quem faz uso das
possibilidades de dominação.
Podemos constatar, nas obras dessas artistas, o uso dos mesmos mecanismos
utilizados por essa estratégia de assujeitamento do corpo e do feminino com o objetivo
de desconstruí-la: tanto Nazareth Pacheco quanto Cindy Sherman apelam aos signos
referidos ao corpo e ao feminino para representá-los, simultaneamente, como eles
aparecem em nosso tempo e em nossa cultura e, por um mesmo gesto, dotados de algo
dissonante, que perturba a totalidade da obra fazendo com que ela não seja apenas uma
tradução desse corpo ou desse feminino mas sua colocação em tensão.
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"
Dessa maneira, Cindy Sherman se utiliza dos signos do feminino referido ao
fálico para perturbar a evidência dessa associação a partir de seu desvelamento das
máscaras, das estratégias artificiais aplicadas a fim de criar o que parece ser a natureza
mesma desse feminino. Isso assemelha-se ao modo aparentemente apaziguador pelo
qual Nazareth Pacheco coloca os objetos infinitamente repetidos e seriados em suas
obras até que não possamos mais nos dar conta de que, no interior mesmo de tal
repetição sempre o aparecimento de um elemento perturbador que desmascara a
inocência do que foi posto em obra. E, ainda, a maneira como Marina Abramovic
apresenta o corpo retirado de seu feminino, a fim de fazê-lo radicalmente presente em
sua materialidade nua tanto quanto em seu potencial mortífero e de limite, para nos
propor, enfim, uma escapatória imaginária como única via possível por meio da qual
manter-se em movimento diante do impasse.
Afirmei, a título de hipótese, que os trabalhos dessas artistas que nos levam às
bordas do feminino e do corpo como lugares possíveis para a subjetivação o fazem a
partir do objeto-fetiche, e fazendo com que esse objeto-fetiche trabalhe contra a própria
cristalização. O objeto-fetiche posto em movimento pelas artistas põe em questão o
feminino e o corpo como lugares possíveis para que haja um movimento, a
possibilidade subjetiva residindo nesses lugares de borda através do confronto com sua
localização fora, além e, consequentemente, próxima da localização fetichista no que
diz respeito à ultrapassagem do limite.
A aproximação radical de Marina Abramovic parece colocá-la desde cedo face à
morte. Isso poderia indicar que o caminho que leva em direção às bordas a fim de
colocá-las em jogo pode conduzir a um desligamento entre as coisas que a constituem,
de modo a transformar em risco de anulação aquilo que teria podido tornar-se
possibilidade de existência subjetiva. Não por acaso a artista opta por se afastar cada
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"
vez mais de colocar em obra seu próprio corpo por meio de por em obra o corpo do
público em seu lugar, como se ela estivesse estado muito próxima de uma posição
traumática frente a qual apenas a distância da defesa pode fazer face.
Anteriormente no texto, apresentei a dor como o caminho para transformar o
apaziguamento necessário à sedução asséptica em inquietude. O masoquismo erógeno
citado por Freud (1924) e o qual Birman (1999) apresenta como possibilidade de
subjetivação?
Os brilhos limpos ficam sujos de corpo. O corpo de mulher perfeito fica sujo de
artifícios que o desvelam enquanto artifício ele mesmo. Onde Nazareth Pacheco
recoloca um corpo pulsante e encarnado, Cindy Sherman retira-lhe a carne,
transformando-o em artifício. Ela mostra, assim, que o sistema do objeto-fetiche não é
nada além de um velamento nessa lógica velamento / desvelamento que liga a mulher à
falta e à idéia de ferida, como se não houvesse nada além de tal lógica para dar lugar à
mulher e ao feminino e, podemos acrescentar, a seu corpo. O que ela faz é colocar a
mulher enquanto objeto-fetiche do olhar como obra de arte para denunciá-la e
desconstruí-la a seguir, mostrando que esse corpo, essa mulher e esse feminino nada são
além de farsas criadas pela história da arte, pela cultura e pela civilização ocidentais. De
maneira totalmente diferente, Marina Abramovic também recoloca o corpo para retirá-
lo em seguida, substituindo-o pela imaginação e apelando a uma transcendência.
Seria possível que a obra de arte seja um objeto que apele a uma posição
fetichista do espectador? E, em caso afirmativo, não seria ela uma maneira de
colocar essa posição em movimento a partir de si mesma, perturbando o olhar a
partir do convite a um apaziguamento que não se alcança nunca? A obra de arte
teria essa função de colocar em movimento, que faz a diferença entre a perversão e
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"
a sublimação tão próximas naquilo que diz respeito à ultrapassagem dos limites?
Não seria ela o registro propriamente dito do caminho que leva de uma à outra?
Através da leitura que Mijolla-Mellor (2005, 2009) faz da sublimação próxima à
perversão enquanto ultrapassagem e deslocamento, depreendi minha leitura da
estratégia que as artistas efetuam para recolocar algo no campo das artes visuais, de um
lugar cristalizado à uma possibilidade de movimentação. Parece-me que as
possibilidades de subjetivação que se dão nos lugares de borda trazidos aqui pelo
corpo e pelo feminino podem existir enquanto tais na medida em que se constituam
nessa busca de recolocar em movimento algo que ficou cristalizado. A subjetivação
seria, assim, esse movimento que o percurso dessas artistas vêm nos indicar como a
ultrapassagem e o contorno de um limite, do campo de um enclausuramento perverso
em direção à uma mobilidade sublimatória e que se faz no campo das bordas. Faz-se
necessário, neste ponto, finalmente deter-me um pouco mais sobre o conceito de
sublimação, a fim de explicitar sua possibilidade de movimento e de ultrapassagem que
traz para a subjetividade contemporânea uma brecha por onde acontecer.
Sublimar pode ser entendido, então, como uma recolocação em movimento.
Trata-se de “(...) uma das direções para as quais se orientam nossas escolhas pulsionais
cotidianas na medida em que encontram um obstáculo que as impeça de irem na direção
de uma realização pulsional a mais direta.” (Mijolla-Mellor, 2009, p.03). A sublimação,
assim, é tão pautada pelo prazer que proporciona quanto as satisfações diretas ou
perversas. Não se trata de uma possibilidade etérea e abstrata, distante do campo
pulsional mas, sim, de uma estratégia de deslocamento e ultrapassagem que busca
igualmente a satisfação.
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Segundo Birman (2008), “(...) a palavra sublimação foi enunciada precocemente
no discurso freudiano. (...) De maneira pontual, ele afirma que o abjeto e o sublime
teriam a mesma origem psíquica, ainda que a representação então presente nos discursos
filosófico e do senso comum os considerassem opostos e em campos diversos. Nesse
momento, portanto, o abjeto se refere ao que, posteriormente, o discurso freudiano
inscreve nos registros do pulsional e do sexual.” (p.18). Ou seja, a sublimação estaria
vinculada ao pulsional.
Para Freud, contudo, a princípio a sublimação não recai sobre a moção pulsional,
mas sobre o conteúdo da representação, depois do que vai se deslocar para a pulsão,
primeiro no que diz respeito à modificação de seu alvo e, enfim, como modificação de
alvo e objeto. Assim, em 1914, quando a pulsão é compreendida no processo
sublimatório, ela é posta por Freud em oposição à idealização enquanto um fenômeno
parcial. A idealização não implica que o objeto da pulsão seja modificado, trata-se de
uma modificação psíquica de exaltação e superestimação do objeto, uma concentração
da libido sobre o mesmo e não uma modificação da natureza da pulsão, o que seria da
ordem da sublimação. Mas, até aqui, o processo sublimatório concerne apenas um
desvio do alvo, distante da satisfação sexual.
Por outro lado, a sublimação é aproximada da identificação, na medida em que a
segunda trata de um processo em que o eu renuncia aos objetos ideais externos e é nessa
renúncia a algo posto na condição de ideal que reside sua proximidade. Ou seja, é na
relação com o objeto, destituído de seu lugar hiperinvestido, que a sublimação guarda
seu potencial de desaprisionamento. Mijolla-Mellor (2009) faz referência a algo
semelhante quando afirma:
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“Contrariamente à idealização que visa criar um estado a-conflitual, do qual a
falta estaria ausente, encerrando o sujeito na fascinação por um objeto abusivo que
instaura uma dependência proporcional à esperança que foi colocada sobre ele, o
processo sublimatório não apenas deixa subsistir a falta mas, ainda, assegura ao sujeito
a possibilidade de investi-la como aquilo que permite a mobilidade dos investimentos e
do questionamento. Ele é tributário de um trabalho de luto sobre as imagens ideais,
permitindo que os objetos não sejam nem rejeitados posto que decretados inacessíveis,
nem erigidos como suporte de uma relação de fascinação, mas que se vejam
conservados no investimento de uma atividade. A essa última será, a partir de então,
assegurado que nunca faltarão objetos, mas ela não poderá mais, também a partir de
então, tomá-los por outra coisa que uma forma transitória e metonímica daquilo que ela
visa, e mesmo daquilo que ela visou anteriormente, em tempos muito esquecidos.”
(p.113).
As fixações da libido são, então, entraves a esse movimento, quer sejam da
ordem das inibições, dos sintomas ou da fixação perversa, o que quer dizer que a
sublimação não é jamais um dado estabelecido de uma vez por todas, ponto em que ela
se diferencia da perversão que, nesse sentido, e por sua característica de fixidez,
aproxima-se mais do campo da idealização ao qual o processo sublimatório se opõe,
como veremos adiante.
Na sublimação, o ideal não está projetado sobre um objeto externo como ocorre
com a idealização (perversa, talvez?). Por outro lado, tanto a perversão quanto a
sublimação operam um movimento de contorno do interdito e conseguem, de algum
modo, não apenas manter o escoamento do fluxo libidinal quanto reforçá-lo a partir de
que lhe haja um obstáculo. Mas isso a que se contorna, no caso da perversão, é por ela
recusado enquanto que, para a sublimação, é deslocado, enquanto objeto e alvo, para um
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outro lugar. E onde Mijolla-Mellor ambos os processos aprisionados em uma fixidez
de seus objetos e alvos, penso que se marca uma diferença entre o movimento que a
perversão faz de ultrapassar e refixar-se noutro ponto, que tem que evitar a castração,
e o movimento estabelecido pela sublimação, que pode deslizar indefinidamente.
Retomarei essa diferença no capítulo seguinte.
“Eu considero essa proximidade entre sublimação e perversão ao retomar a
disposição perversa polimorfa, que compreende as pulsões diretamente ligadas à
atividade das zonas erógenas e os elementos – independentes da atividade sexual dessas
zonas que impulsionam as crianças a serem voyeurs e exibicionistas, tanto quanto à
pulsão de crueldade. (...) Pois, se essa última não reenvia a uma zona determinada, ela
concerne, entretanto, imediatamente ao sexual, na medida em que os órgãos sexuais são
o que se trata de ver ou de fazer ver.” (Mijolla-Mellor, 2009, p.151). Retornamos, ainda
uma vez, às vinculações da perversão e da sublimação com o olhar.
A pulsão de ver ocupa, em Freud, um lugar importante enquanto alvo preliminar
do ato sexual, fixação perversa no voyeurismo ou derivação sublimada na contemplação
artística e na pulsão de saber. Independentemente da fixação voyeurista, o olho pode ser
entendido como zona erógena enquanto função de olhar. Mas o interessante do olho
como zona erógena é que ele se dispersa no que vê, colocando-o imediatamente na
dependência do que é visto. Ou seja, o olho não é fonte da pulsão escópica, que es
esparramada por seus objetos, mas ele se torna na medida em que o olho olha o objeto.
O objeto do voyeurismo, ou seja, do olhar, é o órgão genital da criança e, depois
o do adulto mas, acima de tudo, o órgão suposto à mãe, sobre o que me debrucei nos
capítulos anteriores. A pulsão de ver sofre o impacto da castração na medida em que seu
objeto privilegiado se revela ausente e, a partir daí, haverá uma escolha de que ela se
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destine a um recalque, uma negação perversa ou um deslocamento sublimatório. A
sublimação seria, assim, um dos destinos do olhar, ou seja, do ponto de partida do olhar
e do aprisionamento no olhar, como nos mostram as artistas que me acompanham na
reflexão feita ao longo desta tese é possível uma movimentação de caráter
sublimatório.
O prazer estético, enquanto prazer inútil, estaria vinculado tanto à economia do
olhar quanto, consequentemente, à perversão fetichista, mostrando que a arte visual não
poderia partir de outro lugar que do campo da perversão, uma vez que esteja implicada
na dinâmica do olhar. Segundo Mijolla-Mellor (2009), “(...) o prazer de ver-mostrar
(Schaulust) reenviaria sempre a uma operação dominação, seja sobre o próprio corpo,
seja sobre o corpo do outro, os dois processos se encontrando em uma relação
especular. Em contrapartida, o exibicionista despossui de sua atividade aquele ou aquela
que ele provoca a ver, posto que ele lhe nega o poder de ver outra coisa que não aquilo
que mostra. (...) O sentido passivo do exibicionismo (ser visto) não pode nos fazer
esquecer que, para além da aparência, apenas é verdadeiramente passivo aquele que
empresta seu olhar, seduzido ou constrangido pelas circunstâncias.” (p.164). O olhar se
confunde, desse modo, com a dominação. Ao mesmo tempo, essa dominação não vem
apenas do fato de que ele pousa sobre o objeto como, também de que ele possa desviar-
se, tornando-o nada.
A sublimação se oporia, para Freud, ao belo que evidenciaria a presença do
erotismo, enunciado pela figura da sedução, e pela idéia de dessexualização da pulsão
sexual empreendida pelo processo sublimatório (Birman, 2008). Mas em “Mal-estar da
civilização” (Freud, 1930), tal oposição se desfaz na medida em que a sublimação passa
a trabalhar contra a pulsão de morte tanto quanto o erotismo, revelando sua ligação ao
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pulsional tanto quanto à possibilidade de satisfação. Ela cria novos objetos para a
pulsão, inscrevendo-a na experiência da cultura.
E ela traz, como possibilidade interessante, justamente a ultrapassagem e o
deslocamento, na busca da criação de um movimento que não se restrinja à uma fixidez
imposta pela organização psíquica, o que faz com que sua mobilidade sirva como
condição de criação de campos para que a subjetivação tenha lugar.
Esse fora do limite, o que ultrapassa o limite, esse lugar de borda que faz lugar à
subjetivação, o corpo, o feminino, a perversão, a sublimação... o informe que coloca em
jogo a forma tal qual nos lembra Villemur (2006), esse apelo à borda que põe em
movimento o que tal borda contorna, a referência ao objeto-fetiche e o trabalho de
tensioná-lo e desconstruí-lo de dentro, a partir de sua recolocação em movimento, em
jogo e em cena, parecem ser indicações enriquecedoras para a psicanálise, de onde
retirar um lugar e um caminho para as formas de subjetivação contemporâneas.
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Capítulo 14 - Sublimação, transgressão, profanação.
Focault toma a psicanálise tanto como enraizada e à serviço de um discurso de
dominação acerca da sexualidade quanto, também, como crítica a esse saber / poder
sobre o indivíduo desde o descentramento do sujeito dado pela idéia do inconsciente.
O que temos como aporte para a psicanálise, a partir do campo das artes visuais,
trazido para esse trabalho especialmente através da discussão das produções de
Nazareth Pacheco, Cindy Sherman e Marina Abramovic, é que esse paradoxo
apresentado por Foucault acerca do saber psicanalítico servindo ao poder disciplinar e
seu discurso possibilitando uma brecha de resistência e de transgressão desse mesmo
poder é recolocado naquilo que as artistas sugerem ao campo psicanalítico, desde a
discussão que fazem a respeito do corpo e do feminino.
Assim, o corpo asséptico do qual partem suas obras, ao aprisionar os
espectadores em seus encantos brilhantes e sedutores, de uma mesma sedução – artifício
desse corpo transformado e domesticado em máquina de seduzir, a fim de transtorná-lo
por meio da reintrodução da materialidade corpórea descartada até então, – e não apenas
nas produções artísticas, como também em vários campos em que o poder disciplinar
agiu sobre esses corpos, as artes espelhando apenas essa estratégia do poder que se
abateu sobre eles – e que será levada até sua radicalidade última de carnalidade e
finitude, aproxima-se enquanto movimento do campo pulsional instituído por Freud
no âmbito psicanalítico. Corpo que não se dociliza na medida em que escapa da
submissão total à possibilidade de inscrição psíquica dada pela representação. Corpo
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"
que escapa não na medida em que haja um inconsciente como elogiou Foucault
que retira o sujeito da razão e da consciência do lugar de controle e de ordenamento
sobre si mesmo e, consequentemente, sobre esse corpo mas, principalmente, na medida
em que esse inconsciente seja tão mais marcado pelos movimentos pulsionais que o
investem enquanto desejo do que por sua falha condição de abarcá-los.
A brecha do corpo dócil e sua possibilidade de resistência parecem estar naquilo
que as artistas apontam como reintrodução desse corpo no âmbito da obra de arte, e que
a psicanálise é forçada também a reintroduzir, no momento em que o campo psíquico
não conta daquilo do sujeito que lhe escapa e Freud se obrigado a considerar uma
brecha advinda de suas reconsiderações em relação ao pulsional, por meio da introdução
da idéia de pulsão de morte, mesmo movimento feito por Lacan em relação ao Real.
No que diz respeito ao feminino, um movimento análogo se faz presente no
campo psicanalítico, de uma circunscrição do mesmo à lógica fálica até sua explosão
naquilo que Freud (1937) não sabe sobre a mulher e que não se abarca nos meios e
modos como ela se constitui a partir da castração. O feminino como o corpo pulsional
retorna como resto e como resistência frente a, e no mesmo lugar em que haviam sido
engolidos por essa lógica psicanalítica a serviço de um saber acerca da sexualidade, um
saber domesticador.
Aqui, também, a contribuição trazida pelas artistas trabalhadas mostra o
movimento que parte desse feminino aprisionado no campo da lógica fálica, na medida
em que colocado em equivalência com a mulher histérica do corpo a ser domado, em
direção à desconstrução, ponto a ponto, de cada uma de suas imagens, até que não sobre
alternativa que não a de perceber a falácia dessa mulher histérica referida à castração
194"
"
enquanto definição acerca do feminino. O que as artistas aportam para a psicanálise,
nesse sentido, é a falência da lógica da máscara.
Temos então que, tanto no âmbito do corpo quanto do feminino, a psicanálise se
viu instada a se movimentar e a se reconsiderar, na medida em que tais pontos parecem
ter funcionado e ainda funcionar como nós em que o saber psicanalítico se tensiona
e se recoloca em questão, deixando de servir a uma estratégia de poder e servindo a uma
possibilidade de rebelião.
Interessante ressaltar que esses consistem, precisamente, nos pontos de maior
alienação do indivíduo seu corpo e o ser mulher tais quais propostos por Foucault
(1975) enquanto pontos sobre os quais recaem as estratégias de poder como saber, a
partir do momento em que tal poder passa a decidir sobre a vida dos homens... É desses
pontos de maior alienação e sujeição que surgem as possibilidades de resistência e
rebelião, como nos mostraram as produções e os percursos de Nazareth Pacheco, Cindy
Sherman e Marina Abramovic, cada qual partindo do corpo e do feminino em alguns
dos seus lugares mais cristalizados e, por meio de uma estratégia extremamente
interessante, recolocando-os em movimento – eis a resistência – do lugar em que
pareciam mais fixos.
Assim, quando chegamos ao que discutem as artistas que escolhi para me
ajudarem a buscar o lugar para a subjetividade em nossos tempos, é ao tema das bordas
que chegamos. A subjetividade não tem lugar além das bordas de si mesma, ou seja, no
corpo e no feminino enquanto duas das possibilidades dessa borda em que o psiquismo
se constrói.
As bordas são espaços de fronteira, sem que esse último termo caracterize o
encontro de dois espaços fixos ou, para dizer de outro modo, as bordas são fronteiras
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retiradas de sua fixação enquanto limites inultrapassáveis entre dois espaços, dois
sujeitos, o sujeito e o mundo. E o que pode transformar uma fronteira em borda passível
de movimento e de criação subjetiva? Trata-se, na minha opinião, da transgressão
trazida por certas condições dessa subjetividade propriamente dita: sua origem
pulsional, seu vínculo com o corpo, sua experiência do feminino. São condições
transgressivas que dão lugar a uma subjetividade possível. Ora, a subjetivação tem algo
a ver com a transgressão.
Birman (2006) nos lembra que Foucault descreve o campo social atual
concebido no século XVIII a partir da disciplina e das práticas de controle social. Quer
dizer que o social será ordenado pelos dispositivos disciplinares e pela normalização das
subjetividades. Então, para os indivíduos, o conflito será centrado na oposição entre a
normalização e a resistência.
Resistir à normalização e ao controle disciplinar. Resistir a ser objeto e
desapropriado de sua subjetividade. Retornamos à loucura enquanto ausência de obra e
à maneira como a mesma ganha tal configuração a partir do mesmo século XVIII, sendo
um dos primeiros campos da subjetividade humana a ser regulamentado pelo poder
disciplinar e retirado de sua potência de produzir singularidades. A loucura que se torna
doença mental aproxima-se de outros campos da subjetividade humana conquistados
pela disciplina e pela norma e nos quais a ausência de obra suposta por esse novo poder
os coloca em questão enquanto subjetividade propriamente dita.
A resistência à normalização é uma defesa da possibilidade subjetiva de cada um
e esse movimento de resistência pode ser feito precisamente através da transgressão.
Birman escreve que a transgressão “(...) implica uma ultrapassagem dos limites e uma
tentativa de traçar novas fronteiras para a individualidade, uma vez que sempre no
196"
"
gesto transgressivo um questionamento do território constituído pelas normas.” (2006,
p.348).
A idéia de transgressão está associada à perversão no discurso psicanalítico,
sobretudo por conta da ultrapassagem das normas aí incluída. Mas se nos recordamos da
aproximação entre perversão e sublimação acerca da qual escrevi anteriormente, é
possível aproximar os dois conceitos da transgressão, buscando suas diferenças e as
implicações de suas aproximações e diferenciações para nossa discussão sobre a
subjetividade possível nos lugares de borda.
A perversão é considerada como manutenção da sexualidade infantil perversa
polimorfa na vida adulta, à exceção do movimento compreendido na idéia do
polimorfismo que a perversão do adulto perde. Quer dizer que aquilo que era para a
criança o percurso fluido da pulsão em direção à sua satisfação torna-se, para o
perverso, um caminho fixo pelo qual a pulsão pode atingir seu alvo. A perversão
funciona como meio para desviar da castração, como recusa e como tentativa de
ultrapassar esse limite. Então, trata-se de uma forma de transgressão. Por outro lado, a
fixação faz parte da recusa, é sua contrapartida, pois faz-se necessário imobilizar, parar
o olhar a fim de não ver. É o que afirma Freud (1927) em seu texto sobre o fetichismo
o texto paradigmático no que diz respeito à perversão e o mais importante no que diz
respeito a esta pesquisa, na medida em que se trata, aqui, de situar a fixação do olhar
sobre o objeto artístico enquanto mecanismo perverso de recusa assim como estratégia
dos artistas para confrontar tal recusa, utilizando-se do potencial transgressivo presente
ali. A perversão nos interessa na medida em que ela fala de uma colocação em
movimento e de sua fixação, permitindo fazer a hipótese de que, para reencontrar as
possibilidades de subjetivação atuais a partir da arte contemporânea, chegamos a um
lugar de borda do qual a perversão ajuda a compreender a consistência e a dinâmica.
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Mesmo se pudermos considerar a perversão e a sublimação próximas enquanto
movimentos transgressivos, a diferença entre os dois nos auxilia a compreender as
diferentes maneiras como a transgressão pode ter lugar. Em suma, a meu ver, a
diferença entre perversão e sublimação reside na manutenção ou na recusa do
movimento, uma vez atingida a ultrapassagem do limite, não nessa ultrapassagem
propriamente dita. O que nos lembra Mijolla-Mellor (2005):
“Podemos, de fato, considerar que a energia libidinal, na perversão e na
sublimação, operam as duas um movimento de contorno do interdito e conseguem, sob
certos limites, não apenas manter o escoamento do fluxo mas reforçá-lo a partir de
haver um obstáculo. Esse último, no caso da perversão, recebe como resposta a
‘rejeição’, quer dizer, a negação e a tomada em consideração simultâneas da existência
da ‘castração’ e, sobretudo, o desafio de não se deixar interditar pelo que quer que seja.
O obstáculo, no caso da sublimação, engendrará o ‘deslocamento’ do objeto e do alvo
em uma direção ‘mais alta’. dois movimentos que, sem serem idênticos, se
aproximam: o ‘per-verter’ e o ‘de-rivar’ indicam ambos que o fluxo libidinal conseguiu
não se deixar tomar pelo recalque.” (pp.28-29).
Então temos dois movimentos: um que desloca e outro que nega e, ao fazê-lo,
deve fixar alguma coisa. Nesse caso, podemos pensar que o movimento transgressivo se
realiza de maneiras diferentes na perversão e na sublimação, o que nos permite até
mesmo colocar a questão de saber se se trata realmente, nos dois processos, de um
movimento transgressivo.
Para Birman (2006), a resposta a essa questão é negativa, pois a perversão não
pode ser aproximada da transgressão. Ele mostra que enquanto a transgressão põe em
causa o sistema de normas, propondo outras maneiras possíveis para a subjetividade que
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levarão a novas formas de subjetivação, a perversão, ao contrário, opera sempre visando
a reprodução do sistema de normas instituído, no qual ela vai apenas aumentar seu
poder. Ou seja, onde a transgressão rompe, a perversão seguimento a um movimento
estabelecido.
Poderíamos supor que a transgressão tem mais a ver com a sublimação do que
com a perversão em virtude de seu aspecto de manutenção de um movimento, de
criação de novas formas, de deslocamento frente ao limite?
Agamben (2005) nos permite essa aproximação, na medida em que estabelece
uma diferença entre profanar e consagrar. Consagrar é retirar as coisas da esfera do
direito humano, enquanto que profanar significa restituí-las ao livre uso dos homens.
Profanar é uma forma de resistir à vida nua. É tocar o sagrado para liberá-lo e para
liberar-se dele. O sagrado é aquilo que subtrai as coisas e os seres do uso comum e os
transfere a uma esfera separada.
No campo psicanalítico, parece-me que os movimentos estabelecidos pela
perversão e pela sublimação, esses movimentos transgressivos, aproximam-se também
da idéia de profanação apresentada por Agamben, cada um à sua maneira, seja a
perversão através da sacralização da coisa e da cessação do movimento, seja a
sublimação através da tentativa de recolocá-lo em jogo. Nesse sentido, profanar estaria
próximo do que busca o movimento sublimatório, contra uma fixidez / sacralização
estabelecidas pela perversão, bem como por outras cristalizações do psiquismo.
Segundo Agamben, a religião não é o que une o homem a Deus, mas o que os
mantém separados. Profanar “(...) é abrir a possibilidade de uma forma particular de
negligência que ignora a separação (...)” (2005, p.66). Ignorar a separação, ignorar a
diferença, ignorar o interdito. A perversão e a sublimação partem dessa ignorância,
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dessa transgressão do estabelecido que o deixa de lado para, em seguida, diferir na
medida em que a perversão se fecha em outra sacralização enquanto a sublimação
procura manter um aspecto não fixo e não imobilizador do objeto. Como afirmou
Mijolla-Mellor (2009), dado o movimento e a busca da manutenção do mesmo, à
atividade “(...) nunca faltarão objetos, mas ela não poderá mais, também a partir de
então, tomá-los por outra coisa que uma forma transitória e metonímica daquilo que ela
visa (...)”. (p.113).
Na medida em que a sacralização e o sagrado, será que perversão e religião
caminham juntas? No sentido de separar algo, de destacá-lo e imobilizá-lo, impedindo-o
de circular por entre os seres humanos, certamente uma aproximação. Mas onde a
religião separa, a perversão tenta transgredir, quer dizer, ultrapassar o limite. Agamben
nos auxilia, também, a distinguir perversão e sublimação no que tange à relação ao
sagrado, na medida em que ele difere profanação de secularização, dizendo que a
segunda é uma espécie remoção que mantém as forças intactas, deslocando-as de um
lugar a outro o que podemos encontrar na perversão enquanto tentativa de profanar
que, entretanto, reenvia a um tipo de imobilização ulterior, a um deslocamento que não
cessa de aprisionar o outro em uma posição fixa enquanto objeto enquanto que a
profanação neutraliza o que ela profana, desativa os dispositivos de poder ali colocados
e o retorna ao uso comum o que podemos supor na sublimação, que não aprisiona o
sujeito em um lugar fixo, com um objeto também fixo, mas tenta manter uma fluidez do
investimento.
A profanação, trata-se de uma restituição, não de uma atribuição, segundo Didi-
Huberman (2009), o que quer dizer retornando nossa atenção ao campo das artes
que a obra de arte que profana para restituir está implicada politicamente e eticamente
na medida em que restituir não é fazer pertencer a quem quer que seja, mas uma outra
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coisa. A restituição que uma obra de arte pode fazer é uma profanação, um toque que
desencanta, ao invés de tornar algo sagrado, separado, petrificado. Ou seja, uma obra de
arte não é um objeto sagrado, mas ao contrário, a profanação dessa esfera do sagrado e a
colocação em movimento desses objetos, sua liberação à circulação que os outros
possam fazer com eles. É certo que muitas obras de arte servem mais à sacralização ou à
secularização do que a liberar o objeto. As obras de certos artistas separam e impedem o
uso mas é certo, também, que outros artistas que se ocupam mais de fazer um
trabalho no qual o objetivo é profanar e restituir, por vezes tomando os lugares e
estratégias de separação e colocando-os em tensão até que explodam. Agamben nos
lembra que profanar não é abolir ou anular as separações, mas aprender e utilizá-las de
uma maneira nova, a jogar com elas. O jogo e o movimento.
Já mencionei o sujeito que faz fronteira enquanto homo sacer entre o sagrado e o
tabu, criando um lugar fora e dentro da lei responsável por sua constituição, um lugar de
exceção. Ele o cria e ele é seu produto, um prisioneiro do fora tanto quanto um sem
limite que funciona como uma linha ao estabelecê-la. O louco que, através de sua
loucura, nomeia o não louco. O corpo, o feminino, o fora do simbólico, o fora do
psíquico que lhe dá sua consistência.
O homo sacer é esse homem que constitui uma fronteira por meio de sua própria
existência. Fronteira desfeita, em nosso tempo, quando estamos todos nesse lugar.
Homo sacer, o homem sagrado. O homem imobilizado na condição de ser sagrado, fora
da lei dos homens. O homem louco, a subjetividade contemporânea. Essa sacralização
do homem o coloca fora, aprisionando-o nesse lugar de ausência de obra de onde ele
não pode falar.
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A subjetivação possível vem precisamente desse lugar de fora, desse lugar de
exceção, desse lugar de fronteira de onde todas as possibilidades subjetivas foram
retiradas, na medida em que ele foi considerado enquanto lugar de sua ausência.
Desrazão, des-obra, dessubjetivação. E a possibilidade é feita do mesmo material de sua
ausência, ou seja, do mesmo material pelo qual essa ausência é posta em jogo: o corpo,
o feminino, os lugares em que a ausência de obra é jogada, quer nas artes visuais, quer
no campo psicanalítico.
A arte contemporânea e algumas de suas artistas, das quais tratei nessa tese,
mostram-nos que os lugares de exceção de subjetividade, os lugares de ausência de obra
podem ser utilizados enquanto estratégia de sua recolocação em jogo, de sua
recolocação em movimento. É como pensar em recolocar o homo sacer em jogo, em
circulação, dessacralizando-o. Recolocar o corpo e o feminino em jogo é dessacralizá-
los, retirá-los do lugar de exceção ou, ainda mais, tomá-los em seu habitat de exceção a
fim de recolocar esse lugar em questão, a fim de fazê-lo circular, de convertê-lo de
fronteira em borda, de profaná-lo. Profanação obtida através de seus próprios
instrumentos, dos instrumentos do sagrado, ou seja, do corpo e do feminino.
O sagrado se retira da lei dos homens e é a profanação que o recoloca em causa,
o faz circular. Podemos pensar que é do lugar de exceção que vem a única possibilidade
dessa profanação criadora de uma condição subjetiva?
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Anexo
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