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veneno. No caso de Peri, a ingestão é voluntária, e seu sacrifício é resultado de um ardil para
exterminar os inimigos; Duarte, por sua vez, seria obrigado a consumir o veneno após o
casamento forçado. Em crônica de 1877, Machado constrói uma visão da “evolução” literária
por meio das mudanças sofridas pelos heróis:
LIVRO II
AQUILES, ENÉIAS, DOM QUIXOTE, ROCAMBOLE
Estes quatro heróis, por menos que o leitor os ligue, ligam-se
naturalmente como os elos de uma cadeia. Cada tempo tem a sua Ilíada; as
várias Ilíadas formam a epopéia do espírito humano.
Na infância o herói foi Aquiles, - o guerreiro juvenil, altivo, colérico,
mas simples, desafetado, largamente talhado em granito, e destacando um
perfil eterno no céu da loura Hélade. Irritado, acolhe-se às tendas; quando os
gregos perecem, sai armado em guerra e trava esse imortal combate com
Heitor, que nenhum homem de gosto lê sem admiração; depois, vencido o
inimigo, cede o despojo ao velho Príamo, nessa outra cena, que ninguém
mais igualou ou nem há de igualar.
Esta é a Ilíada dos primeiros anos, das auroras do espírito, é a
infância da arte.
Enéias é o segundo herói, valente e viajor como um alferes romano,
poético em todo o caso, melancólico, civilizado, mistura de espírito grego e
latino. Prolongou-se este Enéias pela Idade Média, fez-se soldadão cristão,
com o nome de Tancredo, e acabou em cavalarias altas e baixas.
As cavalarias, depois de estromparem os corpos à gente, passaram a
estrompar os ouvidos e a paciência, e daí surgiu o Dom Quixote, que foi o
terceiro herói, alma generosa e nobre, mas ridícula nos atos, embora sublime
nas intenções. Ainda nesse terceiro herói luzia um pouco da luz aquileida,
com as cores modernas, luz que o nosso gás brilhante e prático de todo fez
empalidecer.
Tocou a vez a Rocambole. Este herói, vendo arrasado o palácio de
Príamo e desfeitos os moinhos da Mancha, lançou mão do que lhe restava e
fez-se herói de polícia, pôs-se a lutar com o código e o senso comum.
O século é prático, esperto e censurável; seu herói deve ter feições
consoantes a estas qualidades de bom cunho. E porque a epopéia pede algum
maravilhoso, Rocambole fez-se inverossímil; morre, vive, cai, barafusta e
some-se, tal qual como um capoeira em dia de procissão.
Veja o leitor, se não há um fio secreto que liga os quatro heróis. É
certo que é grande a distância entre o herói de Homero e o de Ponson du
Terrail, entre Tróia e o xilindró. Mas é questão de ponto de vista. Os olhos
são outros; outro é o quadro; mas a admiração é a mesma, e igualmente
merecida.
Outrora excitavam pasmo aquelas descomunais lanças argivas. Hoje
admiramos os alçapões, os nomes postiços, as barbas postiças, as aventuras
postiças.
Ao cabo, tudo é admirar. (ASSIS, 2004, vol. 3, p. 357-358)