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Cláudia de Fátima Montesini
Do clássico ao comezinho:
intertextualidade e ironia em Papéis avulsos,
de Machado de Assis
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Cláudia de Fátima Montesini
Do clássico ao comezinho:
intertextualidade e ironia em Papéis avulsos,
de Machado de Assis
Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre
em Letras, área de concentração: Literaturas em Língua
Portuguesa junto ao Programa de Pós-Graduação em
Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São
José do Rio Preto
Orientadora: Profa. Dra. Maria Celeste Tommasello
Ramos
São José do Rio Preto
Agosto de 2010
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Cláudia de Fátima Montesini
Do clássico ao comezinho:
intertextualidade e ironia em Papéis avulsos,
de Machado de Assis
Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre
em Letras, área de concentração: Literaturas em Língua
Portuguesa junto ao Programa de Pós-Graduação em
Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São
José do Rio Preto
BANCA EXAMINADORA
Presidente e orientadora: Profa. Dra. Maria Celeste
Tommasello Ramos
Segundo Examinador: Prof. Dr. João Batista Toledo
Prado
Terceiro Examinador: Profa. Dra. Lúcia Granja
São José do Rio Preto
Agosto de 2010
AGRADEÇO
Primeiramente, aos meus pais Antonio e Cleuza pela educação, amor e carinho sempre a mim
dedicados e, acima de tudo, obrigada por terem me dado a vida.
Ao meu irmão Carlos por me apoiar, alegrar e torcer sempre por mim.
Ao meu marido Samuel pela paciência, companheirismo e por me amparar nos momentos
difíceis.
À minha orientadora Maria Celeste Tommasello Ramos pela atenção, confiança e
ensinamentos.
Ao professor Luís Augusto Totti (Luigi) pela amizade, auxílio com os textos clássicos e por
me receber na sua disciplina como estagiária docente.
Aos professores Cláudio Aquati e Lúcia Granja, cujas sugestões e apontamentos feitos no
Exame de Qualificação enriqueceram o desenvolvimento deste trabalho.
A todos os familiares e amigos por fazerem parte da minha história.
Finalmente, à FAPESP, que me concedeu a bolsa para que me dedicasse integralmente à
pesquisa, contribuindo decisivamente para a sua realização.
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar as referências à Cultura Clássica na coletânea de
contos Papéis avulsos (1882), de Machado de Assis. Adotando a metodologia
fenomenológica-hermenêutica, e tendo como base teórica os estudos de Bakhtin, Kristeva,
Jenny e Compagnon, buscaremos verificar como o diálogo intertextual coopera para o
desenvolvimento do sentido nas narrativas curtas machadianas. Para tanto, em um primeiro
momento, extrairemos do texto as citações e desvendaremos seu contexto original; em uma
etapa posterior, voltaremos ao texto machadiano para caracterizar e analisar essa tessitura.
Nossa hipótese é a de que Machado de Assis, ao lançar mão das referências à Cultura
Clássica, faz um “apequenamento” da tradição clássica, promovendo uma reflexão sobre
diversos aspectos sociais.
Palavras-chaves: Contos; Cultura Clássica; Intertextualidade; Machado de Assis.
ABSTRACT
The aim of this work is to analyze references to the Classical Culture in the anthology of short
stories Papéis avulsos (1882) by Machado de Assis. By adopting the phenomenological-
hermeneutic approach and having as theoretical basis the studies of Bakhtin, Kristeva, Jenny
and Compagnon, we seek to examine how the intertextual dialogue contributes to develop the
meaning in short narratives written by that author. In order to do that, firstly, we extract
quotations from the text and present their original context; the next step is to return to
Machado’s text, so that it can be analyzed. Our hypothesis is that Machado de Assis, by
manipulating these references, performs an “apequenamento” (diminishment) of the classical
tradition, as well promoting a reflection about several social aspects.
Keywords: Short stories; Classical Culture; Intertextuality; Machado de Assis.
“É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho.”
Machado de Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas)
“Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa
frase nova, original e bela”
Machado de Assis (“Teoria do Medalhão”)
SUMÁRIO
Introdução ..................................................................................... 09
I. Aportes Teóricos .......................................................................
18
II. Estudos sobre a intertextualidade em obras de Machado de
Assis ..............................................................................................
26
III. Papéis avulsos e a Cultura Clássica ........................................
30
III.1. Quem é você?: a questão da identidade em “O
espelho” e “Verba testamentária” .................................................
30
III.2. Dois retratos da volubilidade em “D. Benedita” e “O
empréstimo” ..................................................................................
41
III.3. O escritor traduzindo a si mesmo em “O alienista” .......
53
III.4. Aranhas, Veneza, Odisséia e eleições em “A
Sereníssima República” ................................................................
59
III.5. Da Teogonia pagã ao Espiritismo: “Uma visita de
Alcibíades” ....................................................................................
68
III.6. Xavier-Polícrates-Artur e seus legados: “O anel de
Polícrates” .....................................................................................
79
III.7. Sílfides, Ninfas e Musas: “A chinela turca” ................. 87
III.8. A paideia inversa: “Teoria do Medalhão” ..................... 95
III.9. Do pomo da concórdia ao deus Término: a Cultura
Clássica em Papéis avulsos ..........................................................
105
Considerações Finais.....................................................................
108
Referências Bibliográficas ............................................................
111
INTRODUÇÃO
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu na cidade do Rio de Janeiro, no ano de
1839, e, ainda em vida, foi considerado o principal escritor brasileiro. Aventurou-se nos mais
diversos escritos: romance, poesia, críticas de teatro, tradução, conto e crônica.
Em 1854, com quinze anos incompletos, estreou no mundo literário quando
publicou o soneto “À Ilma. Sra. D. P. J. A.”, no Periódico dos Pobres, datado de 3 de
outubro. Em 1864, com Crisálidas, teve seu primeiro livro de poemas publicado.
Ressurreição, de 1872, seu primeiro romance, abriu as portas para mais oito textos desse
gênero, dentre os quais se destacou Memórias póstumas de Brás Cubas (publicado em
folhetins na Revista Brasileira, de 15 de março a 15 de dezembro de 1880, e, em volume
único, no ano seguinte). Com Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado inaugurou sua
chamada “fase madura” ou “segunda fase” e passou a figurar entre os grandes autores da
Literatura Brasileira, como afirma José Guilherme Merquior:
A significação profunda da obra de MACHADO DE ASSIS (1839-
1908) reside em ter introduzido nas letras brasileiras essa orientação
problematizadora. Bem antes de Machado, a nossa literatura utilizava os
modelos da tradição moderna, na lírica e na narrativa; mas o que
caracterizava a nossa produção literária era a atrofia da visão
problematizadora, a quase inexistência, nos nossos textos poéticos, de
qualquer impulso filosófico. Nem mesmo os grandes românticos para não
falar nos naturalistas e parnasianos constituíram exceção. Com isso,
porém; a nossa literatura, por mais que assimilasse as formas ocidentais,
permanecia alheia à inspiração necessária e fatal da arte contemporânea;
permanecia uma literatura de consciência ingênua. A grandeza de Machado
foi ter posto os instrumentos de expressão forjados no primeiro Oitocentos –
a língua literária elaborada por Alencar – a serviço do aprofundamento
filosófico da nossa visão poética, em sintonia com a vocação mais íntima de
toda a literatura do Ocidente. Foi com Machado de Assis que a literatura
brasileira entrou em diálogo com as vozes decisivas da literatura ocidental.
(1996, p. 209, grifos do autor)
10
Assim, a introdução dessa visão problematizadora, como afirma Merquior, igualou Machado
de Assis aos grandes autores ocidentais como Sterne, por exemplo. A referida visão fica mais
evidente nas publicações após 1880, como complementa Gledson: “Em Papéis avulsos e Brás
Cubas, a energia é, acima de tudo, satírica: o Machado bem-comportado dos romances da
época anterior [...] revela-se, finalmente, em de igualdade com os grandes temas de um
Erasmo ou um Swift.” (2006, p. 70-71). Desse modo, ao mesmo tempo em que se equiparou a
tais escritores, Machado de Assis também dialogou com toda uma gama literária e é esse
diálogo que nos interessa focalizar na presente pesquisa.
Sabendo-se que muitas foram as culturas citadas por Machado em suas obras, e
muitos foram os estudos empreendidos a esse respeito, elegemos estudar a retomada da
Cultura Clássica, visto que, além de influenciar a origem da Literatura, da Arte, do Teatro
etc., encontra-se forte e indiscutivelmente presente na obra desse autor.
Uma pergunta se põe neste momento: qual corpus deveria ser constituído para
delimitar um estudo que retome parcialmente esse diálogo, pensando-se na Literatura
Clássica, no âmbito de um Mestrado? A essa pergunta poderíamos responder: decidimos
trabalhar com narrativas curtas, visto que existiam estudos da presença clássica em romances,
principalmente em Memórias póstumas de Brás Cubas. Nossa escolha recaiu na coletânea
Papéis avulsos, uma vez que esta representa para o conto o mesmo que Memórias póstumas
de Brás Cubas representa para o romance, ou seja, a completa passagem da fase inicial para a
fase de total maturidade do autor, como atestam os estudiosos machadianos, entre os quais,
Bosi (1982, p. 134).
Na coletânea escolhida para a análise, Machado apresenta todos os recursos de
estilo, de humour e de fabulação, característicos dessa sua “nova fase”, como aponta Gledson:
“O que é mais extraordinário nesta mudança [...] é que o poder da prosa de Machado ganha
uma intensidade e uma confiança inéditas.” (ASSIS, 1998, v. 1, p. 31), ou, ainda, como afirma
11
Merquior: “Os contos dos Papéis avulsos e os poemas das Ocidentais consubstanciam a
emergência de uma visão problematizadora inédita na literatura brasileira, e sem equivalente
nos demais autores pós-românticos.” (1996, p. 225).
Conforme Ribeiro (2008), Machado escreveu 218 contos em sua carreira de
escritor, dos quais 76 foram recolhidos e publicados em livros, e somente oito foram escritos
diretamente para os livros. Dos 210 contos publicados em folhetins, 53 constaram na Gazeta
de Notícias e 43 em A Estação. Outro fato interessante foi o nível de aproveitamento desses
contos em livros: dos 53 contos publicados na Gazeta de Notícias, 41 foram selecionados para
a publicação em livros; em contrapartida, dos 43 de A Estação, somente seis foram
republicados.
Inicialmente, os contos que compõem a coletânea Papéis avulsos foram
publicados a meados de 1882, oito na Gazeta de Notícias, e dois foram retirados de A
Estação, ambos folhetins considerados os principais veículos de comunicação daquela época.
A Estação, revista ilustrada para senhoras, era publicada quinzenalmente no Rio
de Janeiro pela gráfica Lombaerts na época a mais completa gráfica –, tendo circulado
regularmente entre janeiro de 1879 e fevereiro de 1904.
Segundo Meyer,
[A Estação] era um completo jornal de modas, com abundância de belos
figurinos, gravuras, ricos trabalhos manuais, editorial sobre a moda em Paris,
correspondência de leitores, incluía também uma Parte Literária: várias
páginas com ficção, crônicas, notícias teatrais, relatos de viagem etc. (1993,
p.73)
Essa revista era a versão brasileira da revista francesa La Saison, de espírito burguês e
aristocrata, mas também liberal. Era divida em “Jornal de Modas” e “Parte Literária”, com
paginação independente. A primeira parte (praticamente igual nas treze línguas em que
circulava) era a tradução da revista alemã Die Modenwelt. A Parte Literária”, como
12
apresentava um caráter de edição nacional, poderia ou não ser publicada a depender do país.
Todas essas informações encontravam-se expostas no editorial de abertura da revista:
A parte do jornal que, hoje, indevidamente ocupamos com estas
observações, pertence à nossa redatora parisiense, que, depois de nos dar a
explicação, minuciosa de todas as gravuras e moldes publicados na folha,
aqui resumirá em breves palavras os fastos da moda na sua metrópole.
[...]
Por outro lado porém, na parte agradável e recreativa, devíamos
torná-lo nosso e assim o fizemos.
Confiamos a parte literária da Estação a pessoas de reconhecida
habilidade e neste número encetamos a publicação de uma produção de um
dos nossos mais talentosos e festejados romancistas, que, especialmente para
o nosso jornal, a escreveu e cuja coroa brilhante vai por esse motivo adquirir
mais um luzido florão. (A ESTAÇÃO, 15 de janeiro de 1879, p. 1)
A Gazeta de Notícias, com seu formato modesto e colunas estreitas, era um jornal
mais barato que os outros e comercializava seus exemplares avulsamente. De caráter popular
e liberal, abolicionista e republicano, a Gazeta inaugurou no Brasil a fase do jornal de ampla
divulgação. Segundo Costa & Vidal “foi o jornal que iniciou a entrevista, a reportagem
fotográfica, a caricatura diária, o que deu a fórmula a reportagem moderna” (1940, p. 160).
Como dissemos anteriormente, foi esse o primeiro jornal a ser vendido de forma avulsa, pois,
antes, os jornais eram entregues por assinatura, e aqueles que os possuíam liam e
emprestavam para os interessados. Com a Gazeta de Notícias, quem quisesse somente um
exemplar poderia tê-lo por meio dos garotos-jornaleiros (vendedores ambulantes). Por conta
dessa iniciativa, a Gazeta passou a ser conhecida como um jornal ao alcance das massas. Em
razão disso, em 2 de agosto 1875, o grande evento jornalístico foi a inauguração desse
folhetim, cujo editor era Ferreira Araújo, homem de iniciativas saneadoras” que reformou “a
imprensa do seu tempo, para dar espaço à literatura e às grandes preocupações, com desprezo
pelas misérias e mesquinharias da política” (SODRÉ, 1977, p. 254). Nesse jornal, Machado
publicou de 1881 até próximo a sua morte, contabilizando 27 anos de colaboração.
13
No final de 1882, os contos foram reunidos por Machado e publicados como
Papéis avulsos. O volume veio acompanhado da seguinte advertência:
Este tulo de Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa
unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o
fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles,
mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na
mesma hospedaria. São pessoas de uma família, que a obrigação do pai
fez sentar à mesma mesa.
Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro
está nas mãos do leitor. Direi somente, que se aqui páginas que parecem
meros contos, e outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer
que os leitores das outras podem achar nelas algum interesse, e das primeiras
defendo-me com S. João e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa
besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): “E aqui há sentido, que tem
sabedoria.” Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra. Quanto a
Diderot, ninguém ignora que ele, não escrevia contos, e alguns deliciosos,
mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão do
enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo
escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso.
Deste modo, venha donde vier o reproche, espero que daí mesmo
virá a absolvição. (ASSIS, 1998, v.2, p.527-528).
Assim, alertados pelo autor, procuramos encontrar tal fio que conduz à união dos textos de
Papéis avulsos ao mesmo tempo em que buscamos melhor compreender a função do diálogo
intertextual com a Cultura Clássica travado nas narrativas curtas que o compõem, e que, a
nosso ver, se interligam.
Sobre a unidade de Papéis avulsos, Antonio Henrique Corrêa, por meio da análise
das referências bíblicas na coletânea em questão, propõe que a alegorização da
metalinguagem” seria o fio que conduz os contos. Desta forma, “Teoria do Medalhão” tornar-
se-ia uma espécie de “matriz”, pois segundo o pesquisador: “parece-nos que a personagem
pai, ao apresentar as características do medalhão, esteja descrevendo um tipo semelhante a
alguns narradores e personagens da obra machadiana.” (CORRÊA, 2008 p. 74-75). É comum
aos narradores machadianos usarem como recurso o fingimento de um conhecimento geral e
superficial das ideias, muitas vezes, como prova de uma falsa erudição, dito de outro modo,
para o leitor, o narrador se fazia um falso erudito. Os conhecedores dos textos desse autor
14
brasileiro, entretanto, sabem que uma função maior: comprovadamente um discurso
poderoso e cheio de referências a culturas diversas, com significados escondidos e/ou sentidos
profundos.
Ainda no que diz respeito ao que torna esses contos pessoas de uma família”,
José Guilherme Merquior define como sendo o fato de pertencerem a um gênero específico de
narrativa, ou seja, pela maioria ser considerada como conto filosófico. Desse gênero,
excetuam-se contos como “Dona Benedita” e “O empréstimo”, classificados por Merquior
como retratos de tipos morais.
Alguns pesquisadores dedicaram-se a estudos específicos a respeito de Papéis
avulsos, dentre os quais destacamos Alfredo Bosi, Daniel Piza e John Gledson.
Bosi, em “A máscara e a fenda” (1982), parte da premissa de que os escritos
daquela coletânea se constituem enquanto contos-teorias, com uma narrativa problemática,
carregada de ambiguidade, na qual Machado cunha “a fórmula sinuosa” da contradição “entre
parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público e a corrente escusa da
vida interior.” (p. 441). O referido autor analisa os contos “O alienista”, Teoria do
medalhão”, “A Sereníssima República”, “O segredo do bonzo”, “O espelho” e “D. Benedita”,
demonstrando como o indivíduo é dependente tanto das instituições quanto do outro para se
firmar “ser existente”.
Piza, em Machado de Assis: um gênio brasileiro (2005), revisa toda a produção
literária machadiana, seguindo o critério cronológico; fornece, além disso, detalhes
biográficos, destacando as principais características e o contexto sócio-político de cada obra.
Nesse estudo, um capítulo dedicado à coletânea em questão, intitulado Galhofa e
melancolia (1882 – 1887)”.
No início do citado capítulo, informa-se que a saúde de Machado de Assis
continuava debilitada e que, para se restabelecer, o escritor havia viajado a Petrópolis na
15
companhia de sua esposa, Carolina. Apesar da saúde comprometida, nesse ano, a produção
literária de Machado foi impressionante, pois seus contos, artigos, críticas e poemas foram
numerosamente publicados na Gazeta de Notícias e em A Estação. Ao prosseguir sua revisão,
Piza, partindo da leitura da “Advertência” inicial de Papéis avulsos, destaca que Machado
tinha plena consciência de que a literatura era “ao mesmo tempo fuga e crítica da vida” e de
que em seus domínios não “lugar para juízos classificatórios” (2005, p.221). O estudioso
brasileiro passa, então, a tecer comentários a respeito dos contos “O alienista”, em que
Machado de Assis cria um médico que, estudando os “loucos” de Itaguaí, busca o “remédio
universal”, assim como Brás Cubas; “Teoria do medalhão”, no qual o narrador aconselha que
não se faça uso da ironia – exatamente o inverso do que escolhe para seus textos; “O
espelho”, onde se aborda a relação aparência e essência, tema muito recorrente nos textos
machadianos; e “A Sereníssima República”, que era claramente direcionado às fraudes
eleitorais daquela época. Por último, há a apresentação do contexto sócio-político e cultural de
1882, destacando-se como principais acontecimentos: 1) a alternância de gabinetes no
governo imperial, fato que, para Piza, deixou marcas nos escritos de Machado, visto que o
grande escritor brasileiro sempre criticou a indistinção profunda entre conservadores e
liberais; 2) as constantes críticas a Dom Pedro II, decorrentes de suas longas viagens (tanto
que passa a ser conhecido como “monarca itinerante”), dos excessivos gastos da Corte, das
acusações de possuir várias amantes; além disso, era criticado, pelos militares, por se
interessar por fotografia, música, arqueologia e literatura; e, pela Igreja, por sua intimidade
com os maçons; 3) o episódio do roubo das joias da Coroa”, furtadas pelos irmãos Manuel e
Pedro Paiva, na noite de 17 de março, em Petrópolis, que apesar de obter uma enorme
repercussão nos jornais, não fez com que os culpados fossem punidos.
John Gledson também dedicou um capítulo a Papéis avulsos, em seu Por um novo
Machado de Assis (2006), intitulado “A história do Brasil em Papéis avulsos, de Machado de
16
Assis”. Nesse texto, Gledson afirma que, em termos de evolução intelectual do seu autor,
Papéis avulsos (1882) é sem vida a mais importante das coletâneas de contos de Machado
de Assis” (2006, p. 70). Segundo o estudioso inglês, apesar de “A Sereníssima República” ser
o único conto em que Machado assume explicitamente uma clara ligação com os
acontecimentos históricos (nesse caso, as eleições), ainda há outros nos quais essa ligação é
feita implicitamente, e que remetem à questão da identidade nacional, abordada em Papéis
avulsos por meio da identidade pessoal. Para exemplificar essa afirmação, Gledson promove
uma análise do conto “Verba testamentária”, realizando uma aproximação entre as etapas da
“doença” de Nicolau (protagonista) e a história brasileira.
Justificada nossa escolha por Papéis avulsos, pela importância e qualidade da
coletânea, passamos a traçar nosso percurso de pesquisa, que se apoiará nas considerações
teóricas e críticas sobre Intertextualidade publicadas por Mikhail Bakhtin (1999 e 2005), Julia
Kristeva (1974), Laurent Jenny (1979) e Antoine Compagnon (1996); sobre Mitologia e
Literatura, tecidas por Marilena Chauí (2000), Mircea Eliade (1972) e Raul Fiker (2000); e
sobre Machado de Assis, elaboradas por José Guilherme Merquior (1996), John Gledson
(2006), Gilberto Pinheiro Passos (1996a), Marta de Senna (1998 e 2003), Lúcia Granja
(2000), entre outros. Como um dos objetivos do trabalho era trazer as fontes primárias dos
mitos, elegemos, principalmente, as obras Teogonia (Hesíodo) e Metamorfoses (Ovídio) para
tal tarefa. Contudo, não afirmamos que Machado de Assis teve acesso a tais fontes.
O objetivo geral da nossa pesquisa é compreender melhor a função do diálogo
intertextual entre a Cultura Clássica e o discurso machadiano nos contos de Papéis avulsos.
Os objetivos específicos são, por sua vez: arrolar, caracterizar e descrever as referências
apresentadas, propondo uma reflexão sobre as relações que as narrativas curtas machadianas
estabelecem com os textos clássicos; analisar o diálogo intertextual nos níveis temático,
narrativo ou discursivo, avaliando de que forma esse diálogo pode colaborar com a construção
17
da célebre ironia machadiana; revelar e/ou apurar como o trabalho intertextual participa na
composição dos contos, buscando indicar os fatos novos a respeito do processo de
composição literária do corpus.
A hipótese por nós sustentada é a de que, ao contrapor a Cultura Clássica, buscada
tanto na História como em textos literários gregos e romanos, à cultura brasileira de seu
tempo, Machado de Assis evidencia o paradoxo brasileiro; salienta, portanto, uma sociedade
que almejava ser como a europeia, deixando, consequentemente, de expressar o real, o
comezinho da vida diária brasileira para enganar-se com modelos inatingíveis. Logo, é nesse
sentido que o escritor brasileiro também promove um “apequenamento” (PASSOS, 1996a) do
discurso grandiloquente e da tradição clássica, proporcionando um convite à reflexão, inerente
aos discursos filosóficos.
Adotamos como fonte dos contos o livro Contos: uma antologia (1998),
organizado pelo crítico inglês John Gledson, uma vez que essa seleção vem acompanhada de
comentários do organizador e de notas de rodapé que os contextualizam historicamente. Além
disso, é apresentada, na referida antologia, uma versão fiel à primeira edição dos contos,
exceto no que tange à atualização ortográfica. É necessário destacar, ainda, que os doze
contos que compõem Papéis avulsos encontram-se entre os setenta e cinco selecionados por
Gledson para figurar em sua coletânea, o que confirma, dessa forma, sua importância.
Com a finalidade de comprovarmos nossa hipótese, teceremos, no próximo
capítulo, considerações a respeito dos aportes teóricos sobre Intertextualidade e sobre
Mitologia e Literatura. A seguir, faremos uma breve revisão bibliográfica sobre os estudos
cujo foco é a Intertextualidade em obras de Machado de Assis. No capítulo III, passaremos à
análise das presenças clássicas detectadas nos contos que constituem o corpus da pesquisa,
para, posteriormente, reunir nossas conclusões e finalizar a presente dissertação.
CAPÍTULO I
Aportes teóricos
Com relação à “intertextualidade”, foi Mikhail Bakhtin um dos primeiros
estudiosos a considerar a possibilidade da interação entre textos. Ao estudar os romances de
Dostoievski, percebeu que as obras do escritor russo travavam um diálogo tanto entre si como
com outras obras. O estudioso afirma que:
a representação das personagens em Dostoiévski é acima de tudo a
representação de consciências, que não se trata da consciência de um eu
único e indiviso mas da interação de muitas consciências, de consciências
isônomas e plenivalentes que dialogam entre si, interagem, preenchem com
suas vozes as lacunas e evasivas deixadas por seus interlocutores
(BAKHTIN, 2005, p. 7).
Pela afirmação exposta, podemos destacar que Bakhtin notou que não havia uma voz
unificadora, ou um centro regulador de precedência, de autoridade e de verdade; existia, sim,
uma “pluralidade de vozes” (polifonia), que apontava para uma nova forma de discurso (o
dialogismo), no qual ressoava uma multiplicidade de outros discursos. Barros, buscando
interpretar os trabalhos de Bakhtin, explica que para esse estudioso “nenhuma palavra é nossa,
mas traz em si a perspectiva de outra voz referência ao papel do ‘outro’ na constituição do
sentido” (BARROS; FIORIN, 1999, p. 3). São essas reflexões sobre o princípio dialógico que
contribuíram para desenvolver e aprimorar as principais orientações teóricas de abordagem
textual e discursiva dos últimos anos, fundamentos indispensáveis aos estudos intertextuais.
Do mesmo autor, destacamos, ainda, o conceito de “carnavalização”, presente na
obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais
(1999). Bakhtin, por meio da análise do contexto e da linguagem utilizada por Rabelais,
19
verificou, nas obras deste autor, o carnavalesco, que subvertia o sentido de tudo e cuja
principal característica era o riso:
o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto
jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é “ambivalente”:
alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega
e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (p. 10).
Esse riso “ambivalente” tornou-se a principal característica do processo de carnavalização na
Literatura, que, na busca desse efeito, lança mão de um discurso ambíguo e irreverente.
Partindo dos estudos de Bakhtin e utilizando uma perspectiva semiótica, Julia
Kristeva observou que todos os textos eram formados por “um diálogo de várias escritas: do
escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural actual ou anterior” (1974, p.
70). Nomeando esse processo de “intertextualidade”, caracterizou-o:
A palavra (o texto) é um entrecruzar de palavras (de textos) onde se
pelo menos uma outra palavra (texto). (...) todo o texto se constrói como
mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação de um outro
texto. No lugar da noção de intersubjectividade instala-se a de
intertextualidade, e a linguagem poética lê-se, pelo menos como dupla.
(KRISTEVA, 1974, p. 72)
Desta forma, um texto literário não é entendido como um mero meio de
transmissão de informações entre enunciador e enunciatário; ao contrário, o texto literário é
parte ativa no processo semiológico, pois assimila as configurações sociais, políticas,
econômicas, ideológicas etc., e instaura um diálogo entre essas configurações, o contexto e os
outros textos literários.
Dando sequência aos estudos sobre a “intertextualidade”, Laurent Jenny afirmou
que “a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o
trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador,
que detém o comando de sentido.” (1979, p. 14). O novo enunciado constitui uma resposta
20
aos anteriores, podendo reafirmá-los, negá-los, satirizá-los etc., gerando, assim, uma interação
entre o sentido dele e dos demais textos. Para esse pesquisador, sem a intertextualidade, a
obra literária não teria a mesma importância: “Fora da intertextualidade, a obra literária seria
muito simplesmente incompreensível, tal como a palavra duma língua ainda desconhecida.”
(JENNY, 1979, p. 5). A obra literária é completa, portanto, dentro de um sistema literário,
a partir de sua relação com seus arquétipos, que a transformam.
Ainda trilhando os estudos de incorporação textual, passamos às contribuições de
Antoine Compagnon, que, em O trabalho da citação (1996), afirmou que todos os textos
sofrem o processo de intertextualidade. Um texto novo traz, na verdade, recortes da arte, da
ficção e da realidade que fizeram parte da experiência do seu escritor. Vale ressaltar que esse
trabalho de (re)criação será completo com a participação do leitor, pois, segundo
Compagnon, metade desse processo pertence a quem fala, e a outra metade àquele que ouve.
A partir da premissa de que “o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas se
elabora em vista do outro” (BARROS; FIORIN, 1999, p. 29), Fiorin diferenciou dois
processos dessa interação, nomeando-os: “intertextualidade” e interdiscursividade”. A
“intertextualidade” seria o processo de incorporação de um texto em outro, podendo assimilá-
lo ou transformá-lo. Esse estudioso também dividiu a intertextualidade em três categorias:
citação (retoma elementos/palavras do texto-fonte, podendo afirmar ou alterar o sentido
original), alusão (reprodução de construções sintáticas com substituição de figuras/temas) e
estilização (reprodução do estilo – tanto no plano da expressão quanto no plano do conteúdo
de outro).
O segundo processo de interação seria a “interdiscursividade”, que, para Fiorin,
consistia na incorporação de temas ou figuras de um discurso a outro, e cujas categorias
seriam a citação (repetição de ideias e/ou temas) e a alusão (incorporação de temas e/ou
figuras na formação de um contexto). Nessa perspectiva, a intertextualidade estaria ligada
21
somente ao diálogo entre textos, ao passo que a interdiscursividade seria qualquer relação
dialógica. Avançando, porém, em seus estudos, Fiorin volta a definir a intertextualidade como
“qualquer referência ao outro, tomado como posição discursiva: paródias, alusões,
estilizações, citações, ressonâncias, repetições, reproduções de modelos, de situações
narrativas, de personagens, variantes linguísticas, lugares comuns, etc” (2006, p.165).
É essa concepção mais abrangente de intertextualidade que adotamos em nossa
pesquisa. Assim, na retomada de um texto por outro, acontece uma margem de
semelhança/diferença que vai delimitar o nível de desvio entre o arquitexto (texto-fonte) e o
texto. Cabe lembrar, além disso, que os elementos intertextuais no texto literário estabelecem
não somente uma relação dialógica entre outros textos, mas também com o leitor, que deverá
reconhecer e entender a referência a outras obras, mitos e personalidades.
Dado ao fato de que em nossa pesquisa abordamos as civilizações grega e romana,
e de que, para ambas, a Mitologia foi fundamental para o desenvolvimento e organização de
suas sociedades, julgamos de grande valia, primeiramente, conceituá-la.
A palavra “mito”, segundo Marilena Chauí (2000), origina-se do grego Mythos,
que deriva de dois verbos: mytheyo (contar, narrar) e mytheo (conversar, anunciar, nomear). A
etimologia dessa palavra ressalta o caráter oral do mito, que era, em sua origem, sagrado e
proferido em público por um rapsodo. Este, por sua vez, era merecedor de muita
confiabilidade e autoridade, pois era considerado um escolhido dos deuses, e, em razão disso,
podia testemunhar o que narrava, ou, então, conhecia quem testemunhou. Nesse sentido, o
mito, nos primórdios, era algo incontestável e inquestionável.
No mundo moderno, o mito possui dois significados distintos. Primeiramente, é
entendido como fruto da imaginação, ou seja, como uma bula ou uma ficção. Em uma
segunda significação, o mito designa uma história sagrada e verdadeira para o grupo humano
22
que a criou. Mircea Eliade, estudando os povos arcaicos de pensamento mítico, afirmou que,
para essas sociedades,
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento
ocorrido num tempo primordial, num tempo fabuloso do princípio”. Em
outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes
Sobrenaturais, uma realidade passa a existir, seja uma realidade total, o
Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição. (ELIADE, 1972, p. 11)
O autor ainda acrescentou que o mito “fornece os modelos para a conduta humana,
conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência” (ELIADE, 1972, p. 8).
Para Eliade, a principal função do mito era revelar os modelos “de todos os ritos e
atividades humanas significativas” (idem, p. 13). Dito de outra forma, “os mitos revelam que
o mundo, o homem e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que essa história
é significativa, preciosa e exemplar” (idem, p. 22). Marilena Chauí, por outro lado, destaca
três funções fundamentais que o mito desempenhava naquelas sociedades: explicar, organizar,
e compensar. As observações feitas por essa autora foram articuladas a partir do sentido
antropológico, “no qual essa narrativa [o mito] é a solução imaginária para tensões, conflitos e
contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade”
(CHAUÍ, 2001, p.5).
Com o advento da escrita e da filosofia, o pensamento lógico foi instaurado, e o
mito passou a ser visto como uma narrativa simbólica.
Em seu Dicionário de Termos Literários, Massaud Moisés defende que a palavra
“mito” deve ser separada pelas diferentes perspectivas a partir das quais é abordada, ou seja,
separada pela ótica da Filosofia, da Linguística, da Psicologia, da Teologia, da Crítica
Literária e da Antropologia. Para o estudo que aqui desenvolvemos, nos interessam as duas
últimas perspectivas.
23
Do ponto de vista da Antropologia, o “mito” é uma narrativa do que os deuses ou
os seres divinos fizeram no começo do Tempo: O mito é encarado como a palavra que
designa um estágio de desenvolvimento humano anterior à História, à Lógica, à Arte”
(MOISÉS, s/d, p. 342).
Do ponto de vista literário, Moisés lembra ainda que Aristóteles aproximava o
mito à narrativa, pois “o mito não expressa o sentido profundo das coisas, como também o
expressa, particularmente, através de uma história” (idem, p. 345). Aqui, começamos a notar
outra mudança de postura quanto ao mito, compreendido anteriormente como sagrado, depois
com o advento da Filosofia, passaram a ser histórias exemplares, símbolos, e, ainda, como
temas para obras de arte. Ficaram “esquecidos” durante boa parte da Idade Média, por serem
julgados, pela Igreja Católica, como heresia, sendo, contudo retomados a partir da
Renascença, não enquanto símbolos e/ou alegorias, mas também enquanto portadores de
uma arte superior”. E, por fim, o mito foi tomado como narrativa literária. Perceberemos,
pois, que foi dessa forma que Machado de Assis o utilizou.
A Mitologia Clássica chegou ao nosso conhecimento graças à passagem da
oralidade à escrita. Assim, consideramos o mito greco-romano como uma narrativa, que
outrora foi sagrada, mas que perdera essa condição muito antes da época de Machado de
Assis. Pelo fato dessas narrativas terem sido registradas como textos, esse autor pôde
aproveitá-las como fonte literária, livre para as suas experimentações. Fiker define esse uso
literário do mito como “modalidade temática”, conceituando-a da seguinte forma:
A modalidade temática ocorre de maneira direta quando da
utilização – tradicionalmente imposta ou deliberadamente escolhida de um
tema mítico para desenvolvimento literário por um autor, ou através de todo
um processo de romanceamento de um mito ou tradição mítica. (2000, p. 57)
O mito assume uma função literária e estética:
24
Finalmente, se nesta etapa o mito ainda se articula em narrativas, [...]
sua articulação como foi sublinhado diversas vezes se em termos
literários, isto é, em função de diretivas não mais estritamente religiosas,
mas estéticas. Não se trata apenas do grau de literariedade que a narrativa
oral adquire ao ser escrita, impondo ao mito certa[s] características que lhe
são originariamente estranhas. Trata-se aqui de uma mudança profunda no
nível da finalidade mesma da narrativa. Os enredos tradicionais se
desintegram em função de novas estruturas aglutinantes decorrentes das
necessidades específicas aos gêneros literários: a narrativa não procura
apenas transmitir uma sabedoria, entreter e, na medida em que para tanto
não conduz além de si mesma, ela não é um meio, mas um fim. (FIKER,
2000, p. 69, grifo do autor)
Fiker ressalta que, inicialmente, como o mito estava relacionado à ideia do
sagrado, e a paródia, à do profano, mito e paródia faziam parte de polos opostos. Na
Modernidade, porém, com a dessacralização do mito, esse antagonismo não é mais relevante,
já que uma das maneiras de permanência daquele se dá por meio de paródias. O mito passou a
ser usado na Literatura como uma “modalidade temática”, perdendo o sentido religioso, mas
adquirindo uma função estética.
A todas essas considerações teóricas, nos resta, por último, inserir a noção de
“mitema”, que, segundo Claude Lévi-Strauss (1996), seria a parte mínima do mito, visto que
este pode conter em si várias narrativas interligadas. Se tomarmos o mito de Hércules como
exemplo, teremos cada “trabalho” executado por esse herói como um “mitema”. O referido
autor considera que os sistemas mitológicos podem ser divididos em várias partes mínimas e,
desse modo, compara a noção de “mitema” à de “fonema”, sugerindo que aquela designaria a
menor unidade constitutiva do mito. A evocação de um nome mitológico em um diálogo
intertextual, por conseguinte, estabelecerá a conexão desse nome ao mitema, ou seja, ao
trecho do mito com o qual se relaciona.
Cientes das suas mudanças de acepção ao longo do tempo, percebemos que a
principal característica do mito é contar algo. Em outros termos, temos a concepção de mito
enquanto narrativa, concepção essa da qual nos valeremos em nossa pesquisa. A nosso ver,
são essas narrativas que Machado retoma, ao lançar mão, em seu discurso, de nomes de
25
heróis, monstros e outras personagens mitológicas, além, é claro, de referências a
personalidades históricas da Antiguidade Clássica. Antes de passarmos ao estudo das
referências clássicas em nosso corpus, apontaremos a importância do processo intertextual na
obra machadiana por meio do levantamento dos estudos de intertextualidade em sua produção
literária.
CAPÍTULO II
Estudos sobre a intertextualidade em obras de Machado de Assis
O estudo das inúmeras “presenças” nos textos de Machado de Assis não é novo.
Eugênio Gomes, um dos pioneiros nessa área, ao realizar estudos sobre a influência inglesa
em Machado de Assis, verificou a importância desse artifício e afirmou que é “imprescindível
a necessidade de tais investigações, até porque abre caminho à elucidação do processo de
criação ou recriação artística em muitas de suas minúcias reveladoras” (1958, p. 97).
Magalhães Júnior, por sua vez, constatou diversas “influências” em Vida e obra de Machado
de Assis (1981) e Machado de Assis desconhecido (1991).
Antonio Candido (1995), partindo da leitura de alguns romances e contos
pertencentes à fase madura de Machado, procurou desvendar algumas características da obra
desse autor e conclui que, para uma melhor análise literária, era preciso partir da leitura da
presença da literatura universal intrínseca àquelas obras. Candido demonstrou, além disso,
como Machado de Assis buscou igualar seu estilo ao de Sterne, usando o discurso
fragmentário e o narrador intruso, e ao de Voltaire, resgatando certo tipo de conte
philosophique
1
, conforme apontado por nós, na introdução deste trabalho, quando então
citamos Merquior, estudioso que também notou essa ligação.
Lúcia Granja, em Machado de Assis, escritor em formação (2000), analisa alguns
pontos importantes a respeito da questão da intertextualidade nas primeiras crônicas
machadianas. Segundo ela, o uso das citações não é uma forma de ilustrar e/ou ornamentar o
texto (p. 44-45), dado que a exploração da intertextualidade constitui um dos recursos
1
Trata-se de um gênero literário cujas principais características são a perplexidade metafísica, os jogos com a
filosofia idealista e as dúvidas irônicas sobre a própria condição humana. O aparecimento desse tipo de gênero
remonta ao século XVIII e está frequentemente ligado à obra do francês Voltaire.
27
retóricos e literários mais utilizados pelo autor brasileiro. Decorre daí a necessidade de que as
referências machadianas sejam desvendadas, para, que a ironia seja, então, revelada por
completo. A pesquisadora destaca ainda outras características da crônica (o diálogo com o
leitor e o olhar atento dirigido à realidade social brasileira, por exemplo) que mais tarde serão
incorporadas à prosa.
Edoardo Bizzarri (1961) e Francesca Barraco-Torrico (2005), realizaram
levantamentos e reflexões sobre a presença italiana na obra desse grande autor brasileiro. A
presença portuguesa foi estudada por Marcelo Sandmann (2004), cuja pesquisa enfoca a
biografia do autor, passando pela historiografia e pela crítica, para, ao final, arrolar e
descrever os inúmeros autores portugueses presentes na obra machadiana, dentre os quais se
destacam Almeida Garret e Luis de Camões.
Gilberto Pinheiro Passos, por sua vez, enfocou a presença francesa em cinco
romances de Machado de Assis: A poética do legado (em Memórias póstumas de Brás
Cubas), As sugestões do Conselheiro (em Memorial de Aires e em Esaú e Jacó), O Napoleão
de Botafogo (em Quincas Borba) e Capitu e a mulher fatal (em Dom Casmurro).
Em A poética do legado, Passos observa como a obra machadiana é permeada por
“presenças” diversas: A caminhada do leitor, portanto, se facom freqüentes incursões no
amplo domínio de uma vasta gama literária” (1996a, p. 11); o estudioso ainda destaca que a
citação machadiana é
alterada de acordo com as necessidades do próprio romance, o que revela
uma nova faceta da tradição, vista não mais como um cânone fixo, mas
campo do possível, no qual as novas inquietações temáticas e formais o
buscar elementos (1996a, p. 39).
Dessa forma, o estudioso conclui que, para compreender o processo de composição da obra de
Machado de Assis, é preciso conhecer as referências do narrador, que se “apropria” de textos,
fatos e objetos franceses, alterando-os conforme a necessidade do romance.
28
Os estudos de Bizarri, Barraco-Torrico, Sandmann e Passos têm um caráter
amplo, enfocando a relação das obras machadianas com as culturas italiana, portuguesa e
francesa.
De caráter mais geral, o estudo Alusão e zombaria (2003), de Marta de Senna,
apresenta um levantamento das citações e alusões presentes em todos os romances de
Machado de Assis. De acordo com a referida autora, Machado soube usar esses artifícios
como nenhum outro escritor brasileiro, manipulando-os conforme seu interesse, tornando-os,
desse modo, fundamentais à estrutura da narrativa.
Outros estudos enfocaram mais diretamente o diálogo intertextual entre textos
machadianos e obras e/ou autores específicos da literatura mundial, como, por exemplo, Sônia
Brayner (1976), em “Edgar Allan Poe e Machado de Assis: um caso de literatura comparada”,
que analisou o tema da loucura em um conto de Poe e em “O alienista”. Temos outra vez,
Marta de Senna, que, em O olhar oblíquo do bruxo (1998), buscou estabelecer um paralelo
entre Memórias póstumas de Brás Cubas, Tom Jones (de Fielding) e Viagem sentimental
através da França e da Itália (de Sterne). Outro caso é O Otelo Brasileiro de Machado de
Assis: um estudo de Dom Casmurro, onde Helen Caldwell (2002) elucidou o diálogo entre
essa obra machadiana e Otelo, de Shakespeare. Temos, ainda, Primos entre si (2000), de
Paulo Venancio Filho onde se investigou as convergências e divergências entre os temas em
Proust e Machado de Assis. Sergio Paulo Rouanet, por sua vez, em Riso e melancolia (2007),
traçou um paralelo entre Machado de Assis, Sterne, Diderot, Xavier de Maistre e Almeida
Garret, destacando como principal procedimento desses autores a digressão, que pode ser:
“extratextual” (composta de materiais prontos externos ao texto); “autorreflexiva” (discute o
próprio livro); “opinativa” (traz as opiniões de diversos personagens); e, “narrativa” (histórias
paralelas que intercalam a principal). Ramos (2001), orientadora da presente dissertação,
desenvolveu, em seu doutorado, um estudo que enfoca as consonâncias e dissonâncias entre
29
Memórias póstumas de Brás Cubas e A consciência de Zeno, de Ítalo Svevo. Posteriormente,
em sua pesquisa de pós-doutorado (2008), direcionou sua atenção às citações da Mitologia
Clássica em Memórias póstumas de Brás Cubas. Por sua vez, Antonio Henrique Corrêa
(2008) empreendeu uma pesquisa de mestrado cujo objetivo era verificar a relação entre
alguns contos de Papéis avulsos e os “textos sagrados” da Mitologia hebraico-cristã, reunidos
na Bíblia. Por fim, temos Priscila Maria Mendonça Machado (2010) que estudou, na sua
pesquisa de mestrado, a presença da literatura latina no romance Memórias stumas de Brás
Cubas.
Os estudos acima mencionados comprovam a existência de um campo profícuo da
vertente de estudos literários que aborda o diálogo de um texto com outros, ou ainda as
realações intertextuais em geral travadas com o discurso machadiano em seus textos diversos
(romances, crônicas, contos etc.). Nenhum estudioso, porém, abordou, até o presente
momento, o diálogo existente entre Papéis avulsos e a Cultura Clássica. Nosso estudo,
portanto, é desenvolvido com o intuíto de suprir esta lacuna. Passamos, para tanto, às análises
das referências à Cutura Clássica contidas na coletânea de contos machadianos.
CAPÍTULO III
Papéis avulsos e a Cultura Clássica
No decorrer da fase de levantamento de dados de nossa pesquisa, tivemos contato
com alusões ou referências clássicas no discurso machadiano que, estudadas, levaram-nos a
crer que Machado de Assis realiza uma espécie de “tradução de si mesmo” (conforme Villaça,
1998, que será discutido mais à frente). Também constatamos, nessa fase, que os contos “Na
arca” e “O segredo do Bonzo” o estabeleciam qualquer tipo de alusões ou referências à
Cultura Clássica, fato que justifica que o sejam estudados esses textos no âmbito desta
pesquisa.
III.1. Quem é você?: a questão da identidade em “O espelho” e “Verba testamentária”
Os dois contos a seguir foram publicados, a princípio, na Gazeta de Notícias: “O
espelho”, em oito de setembro de 1882, e “Verba testamentária”, em oito de outubro de 1882.
O conto “O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humanaambienta-se,
inicialmente, em uma casa no morro de Santa Tereza, onde cinco cavalheiros debatiam temas
metafísicos, dos quais o mais controverso era a natureza da alma. Jacobina, um deles, para
melhor exemplificar o tema, se dispõe a expor uma parte da história de sua vida,
condicionando o silêncio dos outros quatro companheiros.
Jacobina narrou então sua história, quando, aos 25 anos, tornou-se alferes,
nomeação que lhe garantiu status e orgulho familiar. Por ser um rapaz pobre, seu fardamento
lhe foi dado por seus amigos. Em decorrência do uso do uniforme, passou a ser visto e
31
identificado com o cargo que assumira, ou seja, Jacobina não era mais chamado por seu
nome, mas, sim, por sua alcunha: “Senhor Alferes”. Marcolina, sua tia, convidou-o a fazer-lhe
companhia em seu sítio, no qual foi muito bem recebido pela parenta e pelos escravos. Como
forma de agradá-lo, Marcolina adornou o quarto do sobrinho com um grande espelho que era
a relíquia da casa, visto que havia sido comprado de uma fidalga da corte de D. João VI, e que
havia se tornado herança de família. Dias depois, a anfitriã recebeu a notícia de que precisaria
partir para auxiliar uma filha adoentada. Na manhã seguinte, Jacobina notou que os escravos
haviam fugido e que se encontrava, portanto, completamente só. O rapaz, acostumado aos
elogios e bajulações, sentiu uma espécie de crise existencial: [...] e à tarde comecei a sentir
uma sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse
consciência da ação muscular” (ASSIS, 1998, v.1, p. 407). Após oito dias de solidão,
enquanto debatia a possibilidade de abandonar a casa da tia, lembrou-se de sua farda, vestiu-a
e desfilou diante do espelho. Jacobina reencontrou, consequentemente, sua alma exterior, e,
por conta disso, voltou a sentir-se íntegro. Adotando o regime do desfile diário, o jovem
aguardou o retorno da parenta.
O primeiro ponto, por nós destacado diz respeito à etimologia do nome Jacobina,
do tupi, significa “terreno de cascalhos” ou “terreno impróprio para a agricultura
(GUÉRIOS, 1973). Significado que, de certa maneira, está retomado no conto, pois a
personagem Jacobina, mesmo estando presente nos debates, não participa de nenhuma
discussão, em outros termos, Jacobina não contribui com a reflexão, “não dá frutos”.
Com a dicotomia alma interior/exterior, Dixon afirma que o texto machadiano
antecipa “por uns trinta anos os modelos fenomenológicos da consciência, com sua
intersubjetividade ou implicação mútua do sujeito e do objeto” (1992, p. 19), tornado-se,
dessa forma, merecedor de atenção.
32
Gledson, por sua vez, analisa o ato de Jacobina olhar-se no espelho como uma
metáfora da identidade nacional do povo brasileiro, que se encontra emoldurada pela cultura
portuguesa:
Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe,
que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João
VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava
naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte
pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns
enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom
... (ASSIS, 1998, v. 1, p. 405)
No conto, o transporte da constituição da identidade individual de Jacobina
para a constituição da identidade nacional. As identidades nacionais são construídas a partir
dos mitos e tradições; assim, notamos que, no conto, a identidade brasileira está vinculada à
Cultura Portuguesa (espelho português antigo), que representa a tradição. Dessa forma,
poderíamos aceitar que, quando Jacobina apresenta qualquer tipo de problema com sua
identidade pessoal, essa mesma situação transporta-se para a identidade nacional brasileira.
Gledson também destaca que a independência brasileira constituiu um caso
particular se comparada àquelas dos outros países latino-americanos, pois, ao contrário destes
que se tornaram repúblicas, o Brasil, mesmo “independente”, manteve um laço com a família
real portuguesa, visto que essa regia a monarquia brasileira. Esse tipo de interação, contudo, é
natural tanto na literatura quanto na própria questão da identidade, como declara Perrone-
Moisés:
É uma ilusão, infelizmente freqüente, dos povos que se sentem ameaçados
pelo colonialismo cultural, pensar que as raízes que lhes o próprias lhes
permitirão viver fechados neles mesmos. Pois as próprias culturas
metropolitanas, que são vistas como ameaçadoras de uma identidade
nacional, se fizeram de absorção e transformação de elementos alheios. a
Antropofagia nos salva desses enganos e dessa consciência, por assumir
alegremente a escolha e a transformação do velho em novo, do alheio em
próprio, do déjà vu em original. Por reconhecer que a originalidade nunca é
mais do que uma questão de arranjo novo. (1982, p. 99).
33
Mesmo não podendo afirmar que Machado de Assis foi um escritor antropofágico
(principalmente pela questão do anacronismo), a visão da formação da identidade nacional
que possuía era muito próxima daquela apresentada depois por Perrone-Moíses, como fica
evidente no trecho do ensaio Notícia da atual Literatura Brasileira Instinto de
Nacionalidade”:
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente,
deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região;
mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se
deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos
no espaço e no tempo. (ASSIS, 2004, v. 3, p. 802).
Ao interligar a identidade nacional brasileira à cultura portuguesa, no conto “O
espelho”, e refletindo sobre o extrato acima, notamos o quão Machado de Assis era consciente
de que a literatura e a identidade nacional se constituem da interação entre textos diversos,
entre culturas diversas; em outros termos, se constituem na sua relação com o outro.
Dixon afirma que a narrativa forma uma espécie de reflexo. Assim, no primeiro
quadro, durante a reunião entre os cinco homens, somente quatro deles falavam, enquanto
Jacobina se mantinha em silêncio, o participando das discussões; ao final, no entanto, a
situação inverte-se, e Jacobina passa a ser o único a falar, enquanto os outros quatro o ouviam
em silêncio. Temos então, de certa forma, um espelhamento e um encaixe entre a primeira e a
última parte da narrativa. O estudioso conclui que:
O conto “O espelho” desperta o interesse, não por sua análise dos
paradoxos da consciência humana, como também pela riqueza de seu
discurso em nível metaliterário. Obra que espelha sua própria forma, o conto
também comenta sobre a escritura em geral, sugerindo sua função como uma
atividade hermética em que o autor cria sua própria “alma exterior”, e
sugerindo, talvez até uma função autocorretiva, na qual o escritor, ao olhar
34
para dentro, se cura. A imagem central do espelho circunscreve todas estas
sugestões em seu próprio laço de retroação. (DIXON, 1992, p. 28)
O encontro entre Jacobina e os outros quatro homens, que discutiam
amigavelmente os problemas do universo, seria, portanto, uma espécie de moldura para a
narração da história de Jacobina.
No que diz respeito ao rito de usar a farda de alferes, Dixon atribui ao espelho a
cura do estado de melancolia de Jacobina, situação motivada pela perda de sua “alma
exterior” de “Sr. Alferes”. Essa opinião converge com a visão de Bosi de que a farda é
símbolo e é matéria do status. O eu, investido do papel, pode sobreviver; despojado, perde o
pé, dispersa-se, esgarça-se, esfuma-se. o tem forma, logo não tem unidade. Ter status é
existir no mundo em um estado sólido.” (1982, p. 447). Em outras palavras, temos que, para
se constituir como indivíduo, é necessária a visão do outro. No caso de Jacobina, quando essa
visão se ausentou, ele buscou uma maneira de tê-la novamente.
Nesse conto, encontramos uma referência à Mitologia Clássica, conforme
apresentada no trecho a seguir:
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido,
esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és a ama da
civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que
não aquele pomo da mitologia. A sala, até pouco ruidosa de física e
metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão em Jacobina, que
concerta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. (ASSIS, 1998, v. 1, p.
403)
A citação, conforme definida por Barros e Fiorin (1999), e aplicada nesse conto,
dá-se, parodisticamente, com a história do pomo da discórdia, estopim da Guerra de Troia.
Enquanto os deuses celebravam as núpcias de Tétis e de Peleu, Éris, a Discórdia (que não
havia sido convidada à festa), enviou uma maçã de ouro endereçada “À mais bela”, que foi
reivindicada por três deusas: Atena, Hera e Afrodite. Como nenhum dos deuses quis se
35
comprometer com tal julgamento, Zeus ordenou a Hermes que conduzisse as três deusas ao
Monte Ida, onde Páris julgaria a questão. Cada deusa prometeu algo ao príncipe, caso fosse a
escolhida: Hera dar-lhe-ia o domínio de toda a Ásia; Atena prometeu-lhe a sabedoria e a
vitória em todos os combates; Afrodite ofereceu-lhe o amor de Helena de Esparta, a mais bela
mulher. Páris, então, decide-se por Afrodite. A fuga da rainha espartana com o príncipe
troiano foi a causa iminente da famosa guerra (GRIMAL, 2005, p. 355-356).
No conto, o narrador refere-se à curiosidade como o pomo da concórdia, que seria
um bom fruto, pois serviu ao seu propósito, ou seja, serviu para fazer com que os
companheiros de Jacobina ouvissem sua história em silêncio. A nosso ver, os dois pomos são
frutos da mesma árvore, ou, ainda, ambos não passam do mesmo fruto, visto que é a
curiosidade de saber qual é a mais bela das deusas que as impele a questionar Zeus e,
posteriormente, Páris e que, por conseguinte, gera a Guerra de Troia.
Assim, por meio da analogia estabelecida (pomo da concórdia e da discórdia),
uma evidenciação de que, para Machado de Assis, nada é absoluto, isto é, tudo tem duas
faces, como a alma (interior ou exterior), a curiosidade (boa ou ruim), ou mesmo a formação
da identidade nacional que, apesar de pertencer a determinado país, necessita dialogar com
outros países.
Concluímos que, como um espelho, a curiosidade pode ter duas faces: uma
apaziguadora (no conto) e uma incendiária (Guerra de Troia), unindo, dessa forma, o clássico
(pomo da discórdia) ao comezinho (pomo da concórdia).
Partimos agora para o outro conto deste item, “Verba testamentária”, que se centra
no comportamento patológico de seu protagonista, Nicolau.
A narração inicia-se com a transcrição de uma cláusula do testamento de Nicolau
B. de C., pela qual exige ser enterrado em um caixão fabricado pelo Sr. Joaquim Soares, o
fabricante de caixões mais humilde e o que os produzia com a menor qualidade. Após essa
36
transcrição, o narrador, heterodiegético, passa a demonstrar como essa atitude foi obra de uma
inveja patológica da qual Nicolau sofrera desde criança.
Quando pequeno, Nicolau destruía os brinquedos de outros garotos, quando estes
eram melhores; rasgava as roupas das outras crianças, quando mais caras; batia nos colegas
com mais destacado desempenho escolar do que ele. Seus amigos sempre eram os rapazes
mais antipáticos, vulgares e ínfimos da cidade, visto que, somente assim, podia sentir-se
superior a eles. Anos mais tarde, quando Nicolau passou a integrar a Assembleia Constituinte,
sofreu por ter de conviver com os melhores oradores. O cunhado, desconfiando de que
Nicolau tivesse alguma doença estranha, traçou um plano para tentar curá-lo. O plano, porém,
não foi bem sucedido. Na verdade, com o passar dos anos, a doença piorou, e, por
conseguinte, tudo o que era de boa qualidade, superior ou exortava outra pessoa, irritava
Nicolau.
No que diz respeito a esse conto, Gledson (2006) afirma que o texto promove uma
espécie de analogia ao momento histórico do Brasil, desde o século XVIII até 1855, ano da
morte de Nicolau; logo, o pesquisador inglês desconfia tratar-se de uma forma satírica de
Machado interpretar os acontecimentos históricos. O principal ponto seria o momento em que
Nicolau, impulsionado pelo cunhado, assumiria o cargo de diplomata, mas fugiria para casa
ao chegar à secretaria e ouvir a notícia da queda de Napoleão. Esse relato seria o reflexo do
momento de incerteza brasileira, com a queda de Napoleão, uma vez que a família real
deveria regressar a Portugal. O que aconteceria então com o Brasil? Tornar-se-ia realmente
independente ou voltaria a seu status de colônia?
Após a maioridade, Nicolau tendeu à vida política, mas não conseguiu se decidir
entre defender o Absolutismo ou o Liberalismo, ou seja, ele não teve uma posição definida.
Segundo Gledson, isso reflete que, por trás do desejo público da independência, todos ainda
tinham um medo secreto. No geral, para o estudioso inglês, esse conto abordaria o
37
aparecimento de uma consciência nacional abrangendo o contexto político, intelectual e
literário com os seus problemas.
Nota-se certa ironia na escolha do nome da personagem: Nicolau, variante latina
de Nikólaos (do grego), significa “o vencedor do povo” (GUÉRIOS, 1973). No conto, porém,
a personagem não consegue se estabelecer em nenhuma área, ou seja, popularmente não
“vence na vida”. O nome Nicolau é citado também em “Antes da missa” (Páginas
recolhidas).
No conto, entre os anos de 1840 e 1850, o foco são os eventos culturais, entre os
quais se destaca o teatro. Para Gledson, esse fato justifica-se pela dedicação de Machado de
Assis, na década de 50, em, juntamente com outros (como Jode Alencar), fundar um teatro
nacional. É nesse contexto que encontramos a referência à Cultura Clássica:
O teatro mal chegava a distraí-lo. Era tão melindroso o estado dos
seus órgãos auditivos, que o ruído dos aplausos causava-lhe dores atrozes. O
entusiasmo da população fluminense para a famosa Candiani e a Meréia,
mas a Candiani principalmente, cujo carro puxaram alguns braços humanos,
obséquio tanto mais insigne quanto que o não fariam ao próprio Platão, esse
entusiasmo foi uma das maiores mortificações do Nicolau. (ASSIS, 1998, v.
1, p. 420).
A alusão à Cultura Clássica dá-se na citação do nome de Platão, filósofo e
matemático grego, discípulo de Sócrates e mentor de Aristóteles. Os três fundaram a
Academia de Atenas. Platão utilizava os seus “diálogos” para ensinar filosofia, matemática,
retórica etc. Segundo Harvey (1987, p. 398-9), Platão nasceu em aproximadamente 427 a.C.,
em Atenas, descendente de uma família nobre. Iniciou seus escritos na Poesia, mas, depois de
conhecer Sócrates, voltou sua atenção para a Filosofia. Após a morte de Sócrates, Platão
partiu para inúmeras viagens, e, de retorno à Atenas, começou a ensinar filosofia na
Academia. Por duas vezes, cogitou entrar na vida política; porém, desiludido com alguns
acontecimentos políticos, não efetivou seu desejo. Morreu em 348 a.C., em Atenas. A obra de
38
Platão constitui-se por meio dos diálogos, dentre os quais os mais conhecidos são Apologia de
Sócrates, O banquete e A república. Considerado fundador do idealismo filosófico e um dos
maiores prosadores gregos, sua importância é indiscutível nos Estudos Clássicos.
Juntamente com essa referência à Cultura Clássica, duas outras personalidades são
encontradas, Candiani e Meréia, sobre as quais teceremos algumas considerações.
Carolina Merea, cantora lírica italiana, apresentou-se em várias cidades da
América do Sul, em meados do culo XIX. Estreou no Rio de Janeiro com Straniera, de
Bellini, em 2 de dezembro de 1846; em 1848, chegou a Buenos Aires, onde, em 1849,
interpretou, com Nina Barbieri, a Norma, também de Bellini. (PATI, 1972, p. 153).
Augusta Candiani, famosa cantora lírica italiana, veio ao Brasil na década de 1840
e aqui passou a viver, asua morte, em 1890, aos 69 anos. Foi uma das mais importantes
prima-donas do teatro brasileiro no século XIX. Em solo brasileiro, foi a intérprete de Norma,
cuja primeira apresentação ocorreu em 17 de janeiro de 1844, no Teatro “São Pedro” (idem,
p. 51). O entusiasmo da plateia para com ela era tal, que, na saída do teatro onde se
apresentasse, os jovens atuavam como cavalos em seu carro. Machado declarou em uma
crônica
2
que estivera entre esses jovens:
eu fui (me, me adsum) eu fui um dos cavallos temporários do carro da
prima-dona, nas noites da bela Norma!
Ó tempos! Ó saudades! Tinha eu vinte anos, um bigode em flor,
muito sangue nas veias e um enthusiasmo, um enthusiasmo capaz de puxar
todos os carros, desde o carro do Estado ate o carro do sol duas
metaphoras, que envelheceram como eu.
Bom tempo!
3
(ASSIS, apud BOSI, 1994, p.86)
2
Crônicas de Lelio, veiculada em 30 de julho de 1884.
3
O Prof. Dr. Cláudio Aquati, durante o Exame Geral de Qualificação, ressaltou que, embora esse trecho não faça
parte do corpus, serve para demonstrar como é grande a influência clássica nos textos machadianos. Me, me
adsum, é uma expressão latina retirada ou de um discurso de Cícero, ou do nono capítulo da Eneida. “Ó tempos!
Ó saudades!”, faz referência a Catilinárias, de Cícero. A expressão “desde o carro do Estado”, faz referência a
Horácio; e, por fim, “o carro do sol”, refere-se ao carro de Apolo/Sol e, ao mito de Faetonte, narrado nas
Metamorfoses, de Ovídio.
39
A admiração de Machado de Assis pela prima-dona italiana fica evidente após a
leitura dessa crônica. A figura de Candiani volta a aparecer no romance Memórias póstumas
de Brás Cubas e, também, no conto “A senhora do Galvão” (Histórias sem data).
Mais uma vez, Machado de Assis une o clássico, representado por Platão, ao
comezinho, representado pelo entusiasmo da sociedade brasileira. A analogia é feita por meio
do reconhecimento público, do recebimento de favores (como ter, por exemplo, o carro
carregado por braços humanos), e não pelas contribuições de Platão ou Candiani. É
interessante notar, além disso, que outra crítica velada esteja em dizer que a sociedade
brasileira valorizaria mais a distração (mesmo sendo de bom nível) do que o conhecimento.
Por intermédio da leitura de Bosi, vemos que os contos “O espelho” e Verba
testamentária”, entre outros, caracterizam-se pela inclusão do indivíduo na sociedade por
meio do uso de máscaras:
Chegando mais perto dos textos vê-se que a vida em sociedade,
segunda natureza do corpo, na medida em que exige máscaras, vira também
irreversivelmente máscara universal. A sua lei, não podendo ser a da verdade
subjetiva recalcada, será a da máscara comum exposta e generalizada. O
triunfo do signo blico. Dá-se a coroa à forma convencionada, cobrem-se
de louros as cabeças bem penteadas da moda. Todas as vibrações interiores
calam-se, degradam-se à veleidade ou rearmonizam-se para entrar em acordo
com a convenção soberana. Fora dessa adequação só tolice, imprudência
ou loucura. (BOSI, 1982, p. 441)
Notamos, então, que a diferença entre Jacobina e Nicolau está no fato de o
primeiro utilizar a “máscara”, ou, ainda, possuir a alma exterior” de “Sr. Alferes”. Mesmo
após uma crise, Jacobina “rearmoniza-se”, entrando novamente em acordo com a convenção.
Nicolau, por sua vez, não se adapta a nenhuma máscara pública: “Eu não quero ser nada!”,
declara ele, negando a si mesmo uma “alma externa”. Está a razão de o triunfo dos outros
(com suas máscaras) o incomodar tanto, ao ponto de fazê-lo adoecer. Bosi ainda afirma que “é
40
impossível viver fora das determinações sociais” (1982, p. 447); a nosso ver, Nicolau é prova
dessa impossibilidade.
41
III.2. Dois retratos da volubilidade em “D. Benedita” e “O empréstimo”
Dois contos de Papéis avulsos, a saber, “D. Benedita: um retrato” e “O
empréstimo”, fazem referências à Cultura Clássica, ao mesmo tempo em que traçam retratos
de seus protagonistas. “D. Benedita: um retrato” foi publicado pela primeira vez, em cinco
partes, na revista A Estação, nos dias 15 e 30 de abril, 15 e 31 de maio e 15 junho de 1882.
Como expusemos na “Introdução”, essa revista, como a maioria dos jornais daquela época,
era vendida por assinatura e tinha como público alvo as mulheres burguesas alfabetizadas. De
acordo com Magalhães Junior (1981), Machado destinava textos mais amenos para a
publicação em A Estação. Revelamos também que dos 43 contos publicados nesse folhetim,
apenas seis foram selecionados pelo autor para constarem em livros. Isso, talvez, constitua
uma forma de Machado demonstrar que, apesar da sua grande colaboração àquela revista, ele
provavelmente não tenha julgado esses escritos dignos de qualidade para figurarem como
parte de seu legado. Podemos também supor que o problema fosse, talvez, as restrições por
parte tanto da ideologia da revista quanto do público alvo à liberdade de criação do autor de
“D. Benedita”. São notáveis, para qualquer conhecedor dos textos machadianos, algumas
diferenças entre esse conto e os outros da coletânea em questão. Exemplos dessas diferenças
são a extensão do texto, seu caráter descritivo, ou, ainda, a exposição da crítica e da ironia de
forma aberta.
Fazendo uso do narrador heterodiegético, o conto versa sobre um período da vida
de D. Benedita, e inicia-se justamente na comemoração do seu aniversário de 42 anos. No
jantar de comemoração, fica evidente a grande amizade da protagonista com D. Maria dos
Anjos, e do jovem Leandrinho, que deseja desposar Eulália, filha de D. Benedita. Apesar
do fato de D. Benedita ser casada, seu marido, Proença, não se encontrava presente na
42
comemoração, visto que morava no Pará, onde, algum tempo, atuava profissionalmente
como desembargador.
As marcas desse conto são a inconstância e a indecisão da protagonista. Temos,
por exemplo, a situação do jantar de aniversário, em que vemos a quase devoção de D.
Benedita por D. Maria dos Anjos; poucos dias depois, essa devoção diminui e, ao final, a ex-
grande amiga nem mesmo é convidada para o casamento de Eulália.
Ao contrário da mãe, Eulália é uma pessoa decidida e consegue ludibriá-la, para
assim poder se casar com quem deseja. Logo após a realização do casamento da filha, o
desembargador Proença falece. Meses depois, D. Benedita recebe uma proposta de casamento
e se vê, outra vez, em uma encruzilhada: casar novamente ou não?
No conto em questão, o narrador faz referência à Mitologia Clássica no seguinte
comentário:
Enquanto ela compõe os babadinhos e rendas do roupão branco, um
roupão de cambraia que o desembargador lhe dera em 1862, no mesmo dia
do aniversário, 19 de setembro, convido a leitora a observar-lhe as feições.
que não lhe dou Vênus, também não lhe dou Medusa. Ao contrário de
Medusa, nota-se-lhe o alisado simples do cabelo, preso sobre a nuca.
(ASSIS, 1998, v. 1, p. 343).
Como vimos, há, no trecho acima, referência a duas figuras mitológicas: Vênus
(deusa da beleza) e Medusa (monstruosa górgona).
Medusa, Esteno e Euríale eram as três irmãs górgonas, das quais apenas a
primeira era mortal. Filhas das divindades marítimas Fórcis e Ceto, são descritas como
monstros que possuíam garras de bronze e asas de ouro; possuíam também serpentes no lugar
dos cabelos. Os seus olhos eram cintilantes, e quem quer que olhasse diretamente para eles era
petrificado. Grimal apresenta algumas das versões que explica como Medusa tornara-se esse
monstro tão horrendo. Segundo expõe o autor, contava-se que Gorgo fora uma jovem muito
bela e que seu maior orgulho eram as lindas madeixas encaracoladas. Envaidecida, declarou-
43
se mais bela que a deusa Atena e recebeu, como forma de punição, a metamorfose nesse ser
horrendo, outra versão contava que a cólera de Atena se abatera sobre a jovem porque
Posídon a violara num templo consagrado à deusa, como punição por tal sacrilégio Medusa
recebeu a conhecida metamorfose (GRIMAL, 2005, p 187-188).
Vênus, para os romanos, ou Afrodite para os gregos, era a deusa do amor e da
beleza. Quando levada ao Olimpo, foi cortejada por vários deuses. Júpiter, contudo, decidiu
que seria Vulcano, deus feio e coxo, que a desposaria, dado o fato de que a mais bela das
criaturas teria de ser capaz de amar a mais feia (idem, p. 10-11). Inúmeras são as histórias que
narram os amores extraconjugais de nus. Dentre todas, a mais célebre pode ser encontrada
em Ovídio:
O Sol vê todas as coisas primeiro. O Sol, dizem,
Foi o primeiro a espionar Marte e Vênus
Quando eles faziam amor. O Sol, ofendido,
Foi contar a história ao marido de Vênus, Vulcano,
E lhe narrou tudo, quando, como, onde,
E Vulcano parou de fazer o que estava fazendo,
E fez uma rede com fios de bronze tão finos
Que ninguém era capaz de ver a malha: nem um tear de lã
Faria trabalho tão delicado, nenhuma aranha
Conseguiria tecer uma teia tão delicada quanto essa.
Ele a fez de forma a permitir que, ao mais leve toque, ela vergasse,
O menor movimento a acionaria, e então
Ele a colocou sobre a cama, e quando os amantes
Apareceram de novo, a arte astuta do marido
Os pegou e os enrolou rapidamente, e eles ficaram
Presos nos braços um do outro, e Vulcano, senhor
De Lemnos, escancarou as portas de marfim do quarto
E chamou os outros deuses para verem. Eles estavam deitados ali,
Os dois, subjugados, em desgraça. E alguém,
Certamente o último dos bem-humorados deuses dos Céus,
Rogou que algum dia fosse, ele próprio, surpreendido
Por tal desgraça. E houve risos
Por um bom tempo nos Céus, quando a história
Foi contada outra e outra vez.
(2003, p. 77-78)
Vênus, após episódio tão constrangedor, vingou-se do Sol, e manteve seus
encontros extraconjugais, tanto com Marte, como com muitos outros, uma vez que o amor e a
44
beleza não deveriam ser guardados. Notamos que, nesse conto, o mitema
4
retomado em
ambos os casos é o da aparência da deusa e da górgona, que estabelece uma analogia com a
aparência de D. Benedita.
O narrador, portanto, caracteriza essa mulher que não era belíssima e nem
horripilante; essa mulher que não conseguia ser uma coisa ou outra, que vive da inconstância,
em eterno vai não vai, viaja não viaja, casa não casa. Essa comparação é feita pelo lugar-
comum da beleza: não é horrenda como Medusa ou belíssima como Vênus. Podemos,
contudo, entender esse meio termo como uma afirmação do caráter indeciso de D. Benedita.
Esse “retrato”, construído por meio das relações sociais e familiares e pelas ações da
personagem central, nos leva a crer que Machado de Assis se vale de analogias, sempre
comparando seus motivos ou temas a outros já apresentados e desenvolvidos em textos
literários célebres, como os clássicos.
Dessa forma, o conto constituiria uma crítica dirigida à superficialidade de
mulheres, como D. Benedita, o que nos leva a uma pergunta: Qual era a situação da mulher no
século XIX? Segundo Oliveira (2008), a mulher no Brasil oitocentista era dependente e
subordinada ao pai ou ao marido, pois o maior objetivo de uma mulher era casar-se. Estando
em uma sociedade completamente patriarcal, a educação das mulheres era totalmente voltada
para que elas desempenhassem o papel de esposa: aprendiam a cozinhar, bordar, costurar, ou
seja, aprendiam tarefas absolutamente domésticas. Carregavam, além disso, o estigma da
fragilidade e da pouca inteligência. Até então, era vetado à mulher o direito de frequentar
escolas. Na verdade, a mulher era praticamente mantida encarcerada na casa/quintal, e a
leitura era aprendida dentro do lar. Em 1881, no entanto, uma americana desembarcou em
nossas terras com um projeto inovador. Miss Martha Watts, educadora e missionária, veio ao
Brasil com o propósito de abrir escolas para moças. Evidentemente, a educação nessas escolas
4
Conforme definição de Lévi-Strauss (1996), mitema é a unidade mínima constitutiva de um mito.
45
deveria se apresentar da forma mais conveniente aos interesses daquele tipo de sociedade; é
nesse sentido, então, que Martha Watts afirmava que o principal objetivo de sua escola era
tornar as moças boas mães e boas esposas, formadoras de futuros cidadãos, educadoras.
Mesmo tendo sido um processo lento, esse, certamente, foi o primeiro grande passo para a
assunção de um novo papel social por parte da mulher: o papel de profissional da educação,
de professora.
Como observamos, não havia muitas alternativas para as mulheres daquela
sociedade patriarcal. Machado de Assis, porém, como pensador à frente do seu tempo, e como
homem acostumado a ter uma mulher que comumente o auxiliasse, fez, provavelmente, essa
crítica não contra a mulher, mas contra as instituições que as obrigavam a se manter como
nulas, superficiais. Podemos argumentar também que Machado promove essa crítica como
forma de alertar as mulheres, conforme podemos ver em um texto publicado em 15 de agosto
de 1881, em A Estação:
CHERCHEZ LA FEMME
LYCEO DE ARTES E OFFICIOS
AULAS PARA O SEXO FEMININO
CHERCHEZ LA FEMME
é preciso dizer que a mulher se descative de uma dependência que lhe é
mortal que não lhe deixa muita vez outra alternativa entre a miséria e a
devassidão. Vindo à nossa sociedade brasileira urge dar à mulher certa
orientação que lhe falta.
Duas são as nossas classes femininas: uma crosta elegante, fina,
superficial, dada ao gosto das sociedades artificiais e cultas; depois, a grande
massa ignorante, inerte e virtuosa, mas sem impulsos, e, em caso de
desamparo, sem iniciativa nem experiência. Esta sem jus a que lhe dêem os
meios necessários para a luta da vida social; é tal a obra que ora empreende
uma instituição antiga nesta cidade que não nomeio porque está na boca de
todos e aliás vai nomeada em outra parte desta publicação. (ASSIS, apud
MEYER, 1993, p. 86)
Podemos observar na crônica que, para o autor brasileiro, a completa dependência
feminina não era algo saudável, mas, antes, algo a ser combatido, a fim de que a mulher não
fosse somente “elegante, fina e superficial” ou “ignorante, inerte e sem impulsos”.
46
É interessante notar que a etimologia dos nomes das personagens é bastante
significativa para a interpretação: Benedita, do latim, significa “bem dita” ou abençoada”; e
Eulália, do grego, significa “bela língua” ou “que fala bem, eloquente” (GUÉRIOS, 1973). O
nome Eulália aparece em outros dois contos, “Manuscrito de um Sacristão” (Histórias sem
Data) e “Onze anos depois” (Contos fluminenses), e também nos romances Memórias
póstumas de Brás Cubas e Iaiá Garcia. Realmente, Benedita demonstra ser abençoada por
Deus (ou pelos deuses!), pois, apesar da evidente volubilidade, a sorte lhe sorri
constantemente. Eulália, por sua vez, pelo uso que faz de sua argumentação e de sua astúcia,
acaba por convencer a mãe e tem o enlace que gostaria realmente de ter.
Por fim, voltando à discussão sobre as citações mitológicas, notamos que ao
caracterizar a beleza de D. Benedita como mediana, Machado utiliza uma alusão parafrásica a
dois símbolos opostos de beleza: Vênus e Medusa. Abordar na citação mitológica somente a
aparência, talvez constitua, também, uma forma de crítica, pois, pensemos, o que era a mulher
no século XIX senão um prêmio a ser exibido pelo seu marido ou pelo seu pai?
Neste triângulo Vênus-Medusa-D.Benedita, Machado une o clássico (tido como
superior e representado aqui pela deusa Vênus e pela górgona Medusa) ao comezinho. O
triângulo se forma unicamente por uma comparação superficial em torno da beleza, não
considerando as histórias ou os valores mitológicos e caracterizando-se, portanto, por uma
alusão puramente analógica à aparência.
Partimos, neste momento, para a análise do outro conto deste item, O
empréstimo”, publicado inicialmente na Gazeta de Notícias em trinta de julho de 1882.
Em “O empréstimo”, também encontramos a narração heterodiegética, isto é,
aquela em que o leitor é convidado a testemunhar os acontecimentos narrados. Exemplos
desse tipo de narração podem ser observados em frases do tipo “vede este rapaz” e “como
deveis saber” (ASSIS, 1998, v. 1, p. 382). Segundo Rouanet esse tipo de “interferência” do
47
narrador é essencial ao texto machadiano: Tirem do livro as digressões: o que sobra é um
corpo sem alma.” (2007, p. 105).
Logo no início, o narrador se propõe a contar uma anedota de como encontrou um
fundo filosófico em uma situação de empréstimo, pedido por Custódio, e dirigido a Vaz
Nunes. Custódio é descrito como um homem que “nascera com a vocação da riqueza, sem a
vocação do trabalho” (ASSIS, 1998, v.1, pág. 384); Vaz Nunes, por seu turno, é um tabelião
que possui a capacidade de desvendar o interesse que se esconde atrás da aparência. O intuito
inicial de Custódio era conseguir cinco contos para investir em uma empresa de agulhas. Com
a negativa do tabelião em emprestar-lhe tal quantia, e com a educada desculpa de que se
tivesse tal valor o faria sem delongas, Custódio tenta negociar empréstimos menores para que
pudesse então quitar suas dívidas. -se, contudo, novamente na situação de ter os valores
recusados. Ao fim de uma hora, pronto a voltar para casa, Vaz Nunes mostrou ao “pedinte”
que possuía duas notas de cinco mil-réis e lhe propõe dividir o valor. Custódio, muito
satisfeito, aceitou e deixou o cartório com um valor que equivalia ao seu jantar daquele dia.
Alertados pelo narrador que uma situação de empréstimo pode demonstrar a
personalidade das pessoas, concluímos que as mudanças de valor e de objetivo do empréstimo
deixam clara a natureza de Custódio. Assim, no início do conto, Custódio tinha um “ímpeto
de águia”, galgando um valor monetário muito alto, a fim de ser sócio de um industrial. Ao
final, como descrito por Machado, ele deixou o cartório com suas “asas de frango rasteiro”
(ASSIS, 1998, v. 1, pág. 390), ao aceitar um valor infinitamente menor, que servia somente
para uma refeição.
Uma leitura possível do conto esteja talvez relacionada com o empobrecimento de
famílias “tradicionais” (nobres) e o enriquecimento da burguesia. No início do referido texto,
encontramos a seguinte afirmação: “Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande
ambição, uma pasta de ministro, um banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos
48
cinquenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça.”
(ASSIS, 1998, v. 1, p. 382). Vemos nessa observação do enunciador exemplos de funções
provavelmente hereditárias, que demandavam tradição e sobrenome. Essa classe social, no
entanto, estava em decadência, e é por essa razão que temos, ao final daquela afirmação,
representantes dessa classe exercendo cargos considerados menores. Se pensarmos na
descrição de Custódio como grande apreciador e conhecedor de artigos finos, elegantes e
caros, podemos relacioná-lo a essa classe em decadência.
Por outro lado, a burguesia era uma classe emergente, que detinha o dinheiro,
mas não a tradição. Isso, no entanto, não caracterizou um problema no Brasil, pois para
arrecadar dinheiro, o imperador passou a vender alguns títulos de nobreza. Nessa leitura, Vaz
Nunes corresponderia a essa classe social emergente, detentora do poder econômico. Temos
assim o estabelecimento de uma ironia, ao pensarmos que Custódio, representante da tradição,
nos é apresentado somente com seu primeiro nome, ao passo que o tabelião Vaz Nunes, parte
da classe emergente, não tradicional, possui uma tal importância que é apresentado com seu
nome e sobrenome.
Encontramos outra ironia, ao averiguarmos a etimologia do nome Custódio. De
origem latina, o nome significa “o que guarda”, significado diretamente em oposição ao
caráter da personagem do conto, que se mostra como um tipo bon vivant. Vale a pena
comentar que esse nome aparece, igualmente, no conto “O astrólogo” (Relíquias de Casa
Velha) e no romance Esaú e Jacó.
Quanto à referência à Cultura Clássica, podemos observá-la no seguinte contexto
“filosófico”:
Como deveis saber, em todas as coisas um sentido filosófico.
Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário, e
ninguém ignora que os números, muito antes da loteria do Ipiranga,
formavam o sistema de Pitágoras. [...]
49
E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele
moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida
dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele, que
muitas vezes uma hora é a representação de uma vida inteira? (ASSIS,
1998, v.1, pág. 382)
Sêneca (Lucius Annaeus Seneca), filósofo romano que viveu entre 4 a.C a 65
d.C., nasceu na Espanha e foi trazido ainda criança para Roma, onde estudou retórica e
filosofia. Foi questor,
5
orador forense, senador, e preceptor de Nero. Em 62, com a piora do
comportamento de seu antigo aprendiz, Sêneca pediu permissão para retirar-se da Corte.
Passou, então, a dedicar-se à literatura e à filosofia, até o ano de 65. Sendo “acusado de
cumplicidade na conspiração de Piso [contra Nero], Sêneca recebeu ordens para matar-se.”
(HARVEY, 1987, p. 458). Segundo os estudiosos, Sêneca teria cumprido essa exigência com
calma e dignidade.
Filósofo estoico e pensador político, escreveu nove tragédias, dentre as quais
estão Édipo, Fedra, Medeia e Agamêmnon. Dos seus escritos filosóficos, podemos destacar
De clemientia, De benificiis e De otio, obras que propõem uma reflexão sobre a liberdade, a
justiça, a tirania e a participação dos cidadãos na vida pública. Podemos destacar igualmente
Consolationes, em que expõe os ideais estoicos de renúncia aos bens materiais e busca da
tranquilidade da alma mediante o conhecimento. Uma de suas obras mais conhecidas foi a
sátira ao imperador Cláudio, Apocolocyntosis. Harvey (1987, p. 458-459), entre outros
estudiosos, afirma que os escritos de Sêneca trazem um afastamento quase completo da
questão divina. As peças desse filósofo focavam principalmente as lutas internas dos
personagens, como, por exemplo, as questões morais, e a luta entre razão e paixão.
No mesmo trecho citado anteriormente, o enunciador refere-se também a Thomas
Carlyle (1795-1881), escritor inglês, membro de uma família de camponeses calvinistas.
Segundo a Enciclopedia Garzanti della Letteratura (1997, p. 179-180), Carlyle deveria seguir
5
Cargo com funções administrativas, esse era o primeiro passo na hierarquia política da Roma Antiga,
fornecendo acesso ao Senado (HARVEY, 1987, p. 458).
50
uma carreira eclesiástica, mas a abandonou para estudar filosofia e literatura e interessou-se
principalmente pela Cultura Alemã. O autor em questão escreveu obras históricas, tratados e o
romance histórico Sartor Resartus (1833-34), uma mistura de alegórico e autobiográfico, sob
o disfarce de uma “filosofia das roupas” fortemente satírica. Sustentador do individualismo
contra as instituições da democracia, Carlyle exaltou o herói (profeta, sacerdote, rei, poeta)
como “receptáculo visível de Deus” e artífice da história. Daí seu método histórico, que o
consistia numa reconstrução objetiva dos fatos, mas, antes, uma interpretação pessoal à luz de
uma visão mística e voluntariosa do destino humano. O espírito e o estilo de Carlyle foram os
mesmos do profeta bíblico e do moralista. Em outros termos, ele evocou os episódios em
quadros carregados de emoção e de uma prosa vibrante de eloquência.
É evidente que a citação busca traçar uma analogia entre Carlyle, que abordou a
“filosofia do vestuário”, Sêneca, que possuía a xima de que cada dia pode representar uma
vida, e o narrador machadiano, que se propõe a expor a filosofia presente em uma situação de
empréstimo, ao mesmo tempo em que “atualiza” a teoria de Sêneca, comprovando que a vida
de uma pessoa pode ser representada em uma hora. Dessa forma, o enunciador se compara a
esses dois escritores, que comumente o considerados moralistas, mas que se distinguem em
seu modo de escrita. Sartor Resartus, obra de Carlyle, é um romance de certa forma
autobiográfico, no qual o autor descreve a sua trajetória intelectual, manifestando-se também
contra a falta de ideais da época. Tanto a autobiografia quanto a critica estão “camufladas”
pela filosofia do vestuário, que é desenvolvida com uma linguagem alegórica e satírica. Como
fica claro, a “filosofia do vestuário” é um disfarce para a autobiografia, ou seja, não se
constitui enquanto teoria séria. neca, ao contrário, produziu tragédias e obras (realmente)
filosóficas, além de sempre abordar questões morais. O texto machadiano seria, por assim
dizer, uma união da filosofia satírica contida na situação de um empréstimo com a “emenda”
da teoria de Sêneca (BAPTISTA, 2006).
51
Machado de Assis, dessa forma, une o clássico, representado por Sêneca,
importante filósofo e autor de inúmeras tragédias, ao comezinho da anedota de uma filosofia
do empréstimo (narrador machadiano). Essa filosofia remete àquela satírica do vestuário
(Carlyle), estabelecendo, desse modo, uma interligação entre textos sérios, como os do
moralista romano, a textos cômicos, como o dessas duas “filosofias”.
É evidente o paralelismo na construção dos retratos de D. Benedita e de Custódio.
Ao passo que, no primeiro, temos “A boca é daquelas que, ainda não sorrindo, são risonhas, e
tem esta outra particularidade, que é uma boca sem remorsos nem saudades: podia dizer sem
desejos, mas eu digo o que quero, e quero falar das saudades e dos remorsos.” (ASSIS,
1998, v. 1, p. 343), no segundo, temos “A alma do Custódio empertigou-se; vivia do presente,
nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente era
tudo.” (idem, p. 387).
A nosso ver, as duas personagens ligam-se pela veleidade. O caráter de D.
Benedita é tão volúvel que não havia a possibilidade de a personagem sentir remorso por uma
ação que praticou (caso consiga praticar alguma) e nem saudade. Mesmo estando muito
tempo sem ver o marido, pensa em visitá-lo, para cumprir seu papel como esposa. A
veleidade de Custódio, por outro lado, habita na impossibilidade de conseguir alcançar seus
ideais (sem esforço). Diferentemente de D. Benedita, o pedinte de “O empréstimo” demonstra
ter objetivos, e o exemplo disso é o fato de ele decidir ser sócio da fábrica de agulhas. No
entanto, como essa personagem não tinha uma fonte de renda fixa ou convencional, vivia à
custa de amigos que “davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais
espórtulas é que ele principalmente tirava o albergue e a comida” (ASSIS, 1998, v. 1, p. 384).
Custódio tornou-se dependente da generosidade alheia, fato que não o incomodava de maneira
alguma; muito pelo contrário, no conto é explícito: Custódio receberia, com a mesma alegria,
o dinheiro para a sociedade (cinco contos) como o fez ao receber o valor final oferecido por
52
Vaz Nunes (cinco mil réis). É em decorrência desse fato que sua volubilidade pode ser
evidenciada.
53
III.3. O escritor traduzindo a si mesmo em “O alienista”
6
“O alienista”
7
foi publicado inicialmente na revista A Estação, em partes, com
frequência quinzenal, entre 15 de outubro de 1881 e 15 de março de 1882. No capítulo
introdutório, fizemos uma breve exposição sobre a ideologia dessa revista. No item III.2,
transcrevemos uma declaração de Magalhães Junior de que os textos machadianos veiculados
nessa publicação eram mais amenos. Acreditamos, no entanto, que “O alienista” pode figurar
como caso particular, dado que sua publicação seriada foi fator decisivo para que esse escrito
fosse publicado em A Estação. Ao considerarmos a ideologia dessa revista feminina e os
outros textos machadianos nela veiculados, e ao contrapô-los ao teor, ao estilo e à
complexidade da narrativa do escrito em questão, acreditamos que “O alienista” está nos
padrões dos escritos da Gazeta de Notícias. No entanto, como sabemos, esse jornal era
comercializado por exemplares, dificultando o acompanhamento de um conto/novela
publicado em série.
A história ambienta-se em uma pequena cidade do interior do Rio de Janeiro,
Itaguaí, durante o período colonial. Retornado da Europa, Simão Bacamarte, um alienista que
tem o interesse de estudar os limites entre a razão e a loucura, funda uma Casa de Orates
(manicômio). Na opinião de Alfredo Bosi, o discurso do médico, estudando a sanidade
mental, mascararia a intenção do narrador:
Mas essa história de loucos quer-me parecer índice de uma outra
dimensão, que inclui e ultrapassa a caricatura do perfeito alienista. Porque há
nela um desenho claro de uma situação de força. Bacamarte não é,
absolutamente, o tipo do cientista maluco, marginal, entregue à irrisão dos
bem-pensantes. Filho da nobreza da terra, ele traz para a colônia a nomeada
de maior médico de Portugal e das Espanhas. Protegido pelo rei, fora
6
Entende-se por alienista o médico que se especializava em cuidar de problemas ligados à mente. Nos dias de
hoje, teríamos algo como um psiquiatra (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 157).
7
Sabemos que na opinião de alguns estudiosos, “O alienista” pertenceria ao gênero novela (considerando-se o
critério de extensão). Justificamos, porém, sua presença nessa pesquisa, baseados no fato de Machado de Assis
tê-lo incorporado à coletânea de contos Papéis avulsos.
54
convidado para reger a Universidade de Coimbra, ou, se preferisse,
despachar os negócios da Monarquia. Ele pode executar os projetos da
ciência que o obseda. Seu status de nobre e portador do valimento régio
tranforma-o em ditador da pobre vila de Itaguaí. (1982, p. 442-443).
Realmente, nota-se que Simão Bacamarte só consegue seu intento porque, na
história, ele é a voz do poder, ou seja, o representante da “instituição” (do Estado) que recolhe
do convívio público todo aquele que se diferencia. Para cumprir essa “obrigação”, quando
necessário, é auxiliado por outros representantes do poder, como a polícia e o corpo de
dragões.
Pelo exposto acima, acreditamos que a escolha do nome do Dr. Bacamarte não
seja aleatória, Simão, abreviatura de Simeão, do hebraico, significa “o escutado” “aquele que
tem a dádiva da atenção” (GUÉRIOS, 1973). Como observamos, a personagem Simão é a voz
que ordena, em “O Alienista”. Vale ressaltar que há, ainda, um Simão no conto “Um capitão
de voluntários” (Relíquias de Casa Velha), segundo Marta de Senna. Evarista, por sua vez, do
grego, significa bem recebida” (GUÉRIOS, 1973), o que realmente ocorre no conto quando
do seu retorno do Rio de Janeiro.
Encontramos inúmeras referências à Cultura Clássica em “O alienista”.
Localizamos a primeira delas no início do Cap. II, Torrente de loucos”, logo após Dr.
Bacamarte explicar o objetivo da Casa de Orates ao boticário Crispim Soares. O narrador cita
o exemplo de um rapaz que, diariamente, logo após o almoço, proferia um discurso
acadêmico, “ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim,
e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano.” (ASSIS, 1998, v.1, p. 277-278).
Segundo Harvey (1987, p. 113-118), Marcus Tullius Cicero, filósofo, orador,
escritor, advogado e político romano, viveu entre 106 a. C. e 43 a.C. Foi um dos maiores
expoentes da oratória clássica. Contou também com uma sólida formação proporcionada pelo
pai, que lhe entregara aos cuidados do célebre senador e jurista romano Múcio Cévola. Dos
seus escritos, conservou-se quase um milhar de cartas sobre temas variados, que constituem
55
um valioso conjunto documental. Escreveu diversos tratados filosóficos sobre o Estado, o
bem, o conhecimento, a velhice, o dever, a amizade etc., que demonstram e transmitem a
tradição do pensamento grego. Em outros tratados, como De Oratore, Brutus e Orator,
expressou tanto suas ideias sobre a arte da oratória quanto sua própria história.
Lucius Apuleius (Apuleio) foi um escritor latino que viveu entre 125 e 180.
Estudou em Roma e em Atenas e possuía um grande interesse pelas ciências naturais. Proferiu
conferências sobre filosofia, pelas cidades africanas, enquanto estava se instalando em
Cartago. Dessas conferências, alguns trechos foram documentados em Florida. Seus tratados
filosóficos, dos quais destacam-se De Platone et Eius Dogmate e De Deo Socratis,
demonstram certo misticismo. Em sua obra mais famosa, O asno de ouro, narra, em um dos
capítulos, o mito de Cupido e Psiquê. Apuleio foi também um dos autores clássicos
preocupados com questões de retórica. (HARVEY, 1987, p. 46-47).
Tertullianus (Tertuliano), jurista romano, nascido em Cartago, viveu entre
aproximadamente 155 e 222 da era cristã. Em 193, converteu-se ao Cristianismo, tornando-se
sacerdote e pondo sua erudição a serviço da fé. Lutador empedernido, de temperamento
violento e enérgico, quase fanático, deixou um legado de escritos polêmicos que tocavam,
direta ou indiretamente, questões relacionadas à fé e à divindade sagrada, ou questões
filosóficas que se originavam da relação entre homem e mito cristão, que para ele era sagrado.
Considerado um dos mais importantes escritores eclesiásticos da Antiguidade, Tertuliano
demonstrou em suas obras grande habilidade retórica e eloquência. (idem, p. 485).
Acreditamos que essas referências constroem uma analogia entre os grandes
oradores supracitados e o rapaz internado na Casa Verde, visto que seus discursos eram
requintados e incluíam até mesmo citações em grego e latim. A analogia se pelo fato de
que todos eram estudiosos de retórica e mestres em eloquência. Dessa forma, concordamos
com Villaça ao assumir que o uso da alusão é uma forma de Machado de Assis “traduzir”, de
56
maneira relativa, a tradição literária, cultural e histórica em sua obras, por meio de simetrias,
analogias e equivalências. Temos então que:
as tradições que constituem seu repertório de cultura, que vem da Bíblia e de
Homero, da Antigüidade clássica e dos teólogos medievais, que passa por
Dante, Maquiavel, Montaigne, Cervantes, Shakespeare, Pascal, pelos
enciclopedistas, por Schopenhauer, pela literatura brasileira – e acaba caindo
no colo de uma dama fluminense ou num chapéu elegante da Rua do
Ouvidor. Essa “queda” na verdade o reconhecido salto crítico de
Machado particularizante e universalmente nacional é marca de fogo de
sua fase madura, quando a ironia se torna princípio e a “tradução” uma rica
possibilidade de composição. (VILLAÇA, 1998, p. 10)
Notamos que ao “traduzir” a Cultura Greco-romana, Machado de Assis une o
clássico, representado, nesse caso, por Cícero, Apuleio e Tertuliano, ao comezinho,
representado pelo interno da Casa Verde. Evidencia-se, desse modo, o paradoxo nacional
entre os grandes oradores dos primórdios da História Ocidental e um rapaz que é trancado em
um manicômio por causa da sua eloquência.
Encontramos a próxima referência no Cap. V, intitulado “O terror”. Durante o
jantar de boas-vindas, D. Evarista, que retornara do Rio de Janeiro, era saudada com brindes,
discursos e versos que diziam, entre outras coisas, que: “Ela era a esposa do novo Hipócrates,
a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação” (ASSIS, 1998, v. 1, p.
294).
Hipócrates, segundo Harvey (1987, p. 274-275), foi um grande médico grego,
nascido por volta de 460 a. C. A ele, são atribuídas 120 obras sobre medicina, das quais
somente seis são realmente confirmadas como sendo de sua autoria. A hipótese mais provável
é de que a maioria tenha sido escrita por seus discípulos. A principal premissa de Hipócrates
era a necessidade de observação cuidadosa dos fatos médicos. Por ser culto, humanitário,
calmo, puro de espírito, sério e discreto, foi considerado o tipo perfeito de médico.
57
As Musas eram nove irmãs (Calíope, Clio, Polímnia, Euterpe, Terpsícore, Erato,
Melopômene, Talia e Urânia), filhas de Mnemosine e de Zeus, tidas como as cantoras divinas
que alegravam os deuses. A elas era outorgada a função de presidir o pensamento em todas as
suas formas: eloquência, persuasão, sabedoria, história, matemática e astronomia (GRIMAL,
2005, p. 319-320). Hesíodo narra o nascimento das Musas da seguinte forma: “[Zeus] Amou
ainda Memória de belos cabelos, / dela nasceram as Musas de áureos bandos, / nove, a quem
aprazem festas e o prazer da canção.” (2007, p. 151, v. 915-917).
Outra referência encontra-se no Cap. VIII, “As angústias do boticário”, no qual,
Machado menciona Catão e, consequentemente, Lucano. O narrador heterodiegético
demonstra o que se passava pela cabeça do boticário Crispim Soares, declarando que:
A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia
que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe
bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por
ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê-lo Catão, é verdade, sed victa
Catoni, pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do padre
Lopes. (ASSIS, 1998, v.1, p. 307)
Em nota de rodapé, o organizador da antologia utilizada, John Gledson, informa
que a expressão em latim contida no trecho acima foi retirada da obra Farsália, de Lucano, e
a versão completa seria Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni”, que significa “A causa
vitoriosa agradou aos deuses, mas a vencida, a Catão”.
Catão de Útica, republicano austero, cometeu suicidou quando Júlio César venceu
Pompeu na batalha de Tapso. Marcus Porcius Cato (Catão), partidário da filosofia estoica, foi
um político romano célebre por sua inflexibilidade e integridade moral. Opunha-se,
frontalmente, a Júlio César, tendo sido retratado por alguns como a antítese desse estadista
(HARVEY, 1987, p. 105).
Marcus Annaeus Lucanus, por suas palavras em Farsália, também é convocado
ao diálogo intertextual. Lucano, poeta romano, sobrinho de Sêneca, viveu entre 39 e 65 d. C.,
58
sendo igualmente acusado de conspiração contra a vida de Nero, e, consequentemente,
condenado, assim como o tio, ao suicídio (idem, p. 312).
No conto machadiano, a presença de Catão e Lucano corrobora com as
conjecturas do boticário, preocupado em salvar a própria vida e em levar maior vantagem nas
situações. Ramos (2008), ao observar o uso das referências a textos clássicos no conto em
questão, afirma que há uma analogia entre a escolha de Catão, narrada na Farsália de Lucano,
e a atitude que o boticário Crispim Soares se recusa a tomar: seu próprio sacrifício. Segundo a
estudiosa, essa analogia, como outras, produz um “apequenamento” do texto-fonte
convocado, conceito utilizado no sentido que Passos o verificou ao estudar a presença
francesa em Memórias póstumas de Brás Cubas, concluindo sobre o diálogo intertextual que:
O uso, evidentemente, se prende a uma visão desencantada da vida e dos
seres humanos, e tende, conforme vimos, à fatura paródica e à retomada
por ângulo diferente – o da necessidade da trama e das concepções do
narrador –, onde não mais lugar para idealizações. O impacto do
espetáculo social atinge diretamente sua representação literária, fazendo com
que os textos franceses passem obrigatoriamente pelo constante processo de
apequenamento. (1996a, p. 150).
Esse apequenamento também ocorre ao comparar a personagem do boticário que é
prosaica, corriqueira, comezinha, àquela heróica de Catão, capaz de cometer suicídio por suas
convicções políticas. Inversamente, a personagem machadiana procura salvar-se e pondera ao
lado de quem deve estar para o ser prejudicada. Eis, novamente, a exposição do paradoxo
brasileiro por meio do contraponto entre o clássico (heroico) e o comezinho (individual), que
converge para o processo de apequenamento da Antiguidade Clássica.
59
III.4. Aranhas, Veneza, Odisséia e eleições em “A Sereníssima República”
O conto “A Sereníssima República” foi publicado inicialmente em 20 de agosto
de 1882, na Gazeta de Notícias. No volume de Papéis avulsos, vem acompanhado da seguinte
nota: “Este escrito, publicado primeiro na Gazeta de Notícias, como outros do livro, é o único
em que um sentido restrito: - as nossas alternativas eleitorais. Creio que terão entendido
isso mesmo, através da forma alegórica.” (ASSIS, 1998, v.2, p. 534).
Proferindo uma conferência, Cônego Vargas, narrador autodiegético, discorre
sobre a sua descoberta de uma espécie de aranha que possuía fala (similar à humana). Em
decorrência desse fato, o nego fundou uma sociedade de aracnídeos. Uma vez que as
aranhas estavam socializadas, o próximo passo seria, então, adotar uma forma de governo. A
forma adotada foi a de uma República à maneira de Veneza. O sistema eleitoral utilizado era,
portanto, o do saco e bolas: “Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e
extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras
públicas.” (ASSIS, 1998, v.1, p. 395). O conferencista observou que, mesmo sendo um
sistema simples de votação, surgiram vários obstáculos, dado que a sociedade das aranhas
ainda era muito jovem, e, por conseguinte, imperfeita. Entre os obstáculos declarados pelo
cônego, encontra-se a facilidade em fraudar o sistema eleitoral. As damas da república, dez
aranhas designadas para tecer os sacos eleitorais, eram, dessa forma, obrigadas a adaptar o
saco (espécie de urna) a cada eleição.
Encontramos as referências à Mitologia Clássica em dois momentos distintos: a
primeira, quando o narrador acentua como principais qualidades dessa sociedade de
aracnídeos a perseverança e a “longa paciência de Penélope” (idem, p. 395); a segunda, ao
60
final do conto, quando Erasmus
8
, cidadão respeitável dessa República, informou às damas da
república que deveriam refazer o saco eleitoral:
contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera
do esposo Ulisses.
- Vós sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar;
tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas
minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha
tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência. (ASSIS, 1998, v.
1, p. 400)
As referências clássicas que abordaremos nesse conto retomam a história de
Ulisses (ou Odisseu) e sua esposa, Penélope.
Iniciamos nosso estudo pelo sentido que Machado de Assis afirmou, em nota
citada, ser o único. Em nota de rodapé, o estudioso John Gledson, organizador da antologia
utilizada, relacionou esse conto com a instituição da Lei Saraiva: em 9 de janeiro de 1881,
havia sido aprovada a Lei Saraiva, que numa tentativa de sanear o sistema representativo do
Império, ao mesmo tempo estabelecia eleições diretas e restringia o eleitorado a 1,5 por cento
da população”. (ASSIS, 1998, v.1, p. 391). Na busca de acabar com o privilégio de
determinado partido político, a Lei Saraiva estabeleceu quais eram “as pessoas em condição
de votar” (FAUSTO, 1995, p. 233), ou seja, quais exigências deveriam ser cumpridas (renda
mínima, saber ler e escrever etc.). Embora Machado afirme que a crítica ao processo eleitoral
seja o sentido restrito do conto, notamos uma outra crítica subjacente a essa narrativa: a do
cientificismo.
O cientificismo é uma concepção filosófica, de cunho positivista, que parte da
premissa de que “fora da ciência não salvação”. Por se julgarem detentores do verdadeiro
conhecimento da realidade, seus adeptos acreditam que a ciência seja superior a todas as
8
Segundo Marta de Senna, Erasmus seria uma referência a Desidério Erasmo (1469-1536), conhecido como
Erasmo de Roterdã, teólogo e humanista holandês, cuja obra mais célebre é Elogio da loucura, considerada uma
sátira à inversão de valores que o escritor constatava na sociedade de seu tempo
(http://machadodeassis.net/dtb_index.asp).
61
outras formas de compreensão humana (religião, filosofia, metafísica etc.) e, também, na
possibilidade de uma racionalização completa do saber. Essa atitude encontra-se fundada nos
três “artigos de fé” do cientificismo: 1) a ciência é o único saber verdadeiro; logo, o melhor
dos saberes; 2) a ciência é capaz de responder a todas as questões teóricas e de resolver todos
os problemas práticos; 3) somente os cientistas e os técnicos devem dirigir todos os negócios
humanos e sociais, pois, como são os conhecedores da verdade, somente eles podem dizer o
que é bom e justo nos planos ético, político, econômico, educacional etc. (JAPIASSU;
MARCONDES, 2001, p.36). Ao se afirmar como única verdade, o cientificismo torna-se uma
espécie de discurso do poder, que, a nosso ver, é, subliminarmente, criticado por Machado de
Assis.
O conto nos leva a refletir que se tudo o que pode ser comprovado por
experiências laboratoriais realmente é verdadeiro, como acredita o cientificismo, então a
existência de uma espécie araneídea que possui uma linguagem similar à nossa, organizada
socialmente, seria possível, devido à comprovação do Cônego Vargas, um cientista, que
baseado na teoria cientificista, possuía autoridade para tal experimento. Mesmo localizada no
espaço ficcional machadiano, sabemos que tal afirmação, é, no mínimo, inusitada. No entanto,
a situação se torna ainda mais insólita se pensarmos que, no início do conto, é relatada uma
experiência com insetos, na qual o pesquisador descobriu sua linguagem fônica. No conto, a
notícia é atribuída a O Globo, jornal de tendência cientificista.
No que diz respeito às citações, na primeira, há uma analogia por meio do
“mitema” da paciência de Penélope, rainha de Ítaca, cuja história encontramos na Odisséia, de
Homero. Penélope aguarda o retorno do marido mesmo após vinte anos de sua partida; as
aranhas (sociedade), por sua vez, esperam que um dia o sistema eleitoral seja perfeito e livre
de fraude.
62
Para ressaltar a importância da Cultura Clássica na práxis literária machadiana,
apontaremos outros escritos desse autor que fazem menção a obras e personagens da
Antiguidade Clássica. Para que possamos promover esse levantamento, utilizamos o sítio
Machado de Assis.net
9
, organizado por Marta de Senna. A obra Odisséia, por exemplo,
também é citada em Esaú e Jacó. A história de Penélope e Ulisses é, por sua vez, retomada
nos romances Helena e Dom Casmurro e, também, nos contos “A mulher de preto”, “A
parasita azul”, “Eterno!” e “O sainete”.
Na segunda citação, encontramos outra analogia, dessa vez, quanto ao tema do
“trabalho sem fim”. Erasmus declara que as dez damas da república, que teciam o saco
eleitoral, são as Penélope daquela sociedade; logo, devem remodelar, mais uma vez, essa urna
até o dia em que não seja mais necessário fazê-lo mas será que esse dia existirá? Assim, as
aranhas ligam-se a outro “mitema”, o da fidelidade de Penélope ao marido. Essa mulher tece
exaustivamente uma mortalha durante o dia e a desmanchava durante a noite, não se
entregando, dessa forma, aos pretendentes que a forçavam a tomar tal decisão, uma vez que
julgavam que Ulisses estivesse morto. Resumidamente, temos que, na epopeia homérica, a
rainha Penélope se propôs a fazer uma mortalha para Laertes, pai de Ulisses, e quando a
terminasse escolheria um dos pretendentes para desposá-la. Contudo, como Penélope tinha
ainda esperança de que o marido estivesse vivo, tecia a mortalha durante o dia, aos olhos de
todos, mas a desmanchava, escondida, durante a noite:
De cólera chorando, o cetro arroja;
Comisera-se o povo. À queixa amarga,
Em roda emudeceram, mas Antino,
Rompe o silêncio: “Altóloquo e impotente,
Da ignomínia o ferrete em nós imprime?
A ninguém mais, Telêmaco, a mãe cara
Somente arguas, que de astúcias mestra,
Quatro anos quase, nos contrista, ilusos
De promessas, recados e esperanças,
9
http://machadodeassis.net/dtb_index.asp
63
E al tem no coração. Com novo engano,
Nos disse, ao predispor fina ampla teia:
‘Amantes meus, depois de morto Ulisses,
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
Sem que do herói Laertes a mortalha
Toda seja tecida, para quando
No longo sono o sopitar o fado:
Nenhuma Argiva expobre-me um funéreo
Manto rico não ter quem teve tanto.’
Esta desculpa ingênuos aceitamos.
Ela, um triênio, desmanchava à noite
À luz da lâmpada o lavor diurno;
Ao depois, avisou-nos uma escrava,
E a destecer a teia a surpreendemos:
Então viu-se obrigada a concluí-la.
(HOMERO, 1992, p. 80)
Na narrativa de Homero, o ardil de Penélope é descoberto, contudo, se
prosseguirmos a leitura, saberemos que a rainha conseguira enganar os pretendentes até o
retorno do marido. É evidente que se dependesse do intuito/desejo de Penélope, o trabalho
não se findaria. Acreditamos que essa seja a questão transposta para o conto machadiano, no
qual se evidencia que o trabalho das aranhas não terá fim, visto que sempre uma maneira
de burlar o sistema eleitoral da “Sereníssima República”.
Para um melhor desvendamento das referências mitológicas, julgamos necessário
abordar a histórica “Sereníssima República”, como era conhecida a República de Veneza
entre os anos de 697 e 1797. Veneza proclamava que seu governo era uma clássica república,
porque era uma fusão entre o poder supremo, representado pelo Doge, o aristocrático,
representado pelo senado, e o democrático representado pelo Grande Conselho. Ao final do
século XVIII, Veneza (assim como toda a Itália) fora tomada por Napoleão. Para Bonaparte, o
fim de Veneza era interessante, uma vez que era o Estado que tinha apresentado uma maior
resistência à sua dominação. Dessa maneira, em 17 de outubro de 1797, contra os pedidos do
Diretório (órgão do Poder Executivo Italiano entre 1795 e 1799), Áustria e França assinaram
um tratado em Campo-Formio, dividindo o território italiano entre si. Veneza passou, então,
ao domínio da Áustria:
64
O artigo dizia respeito a Veneza e declarava o seguinte: “A
República Francesa consente que o Magnífico Imperador e Rei prossiga em
plena soberania e propriedade em relação às regiões abaixo indicadas”. Era,
portanto, a Áustria que aparecia para tomar para si o Vêneto, a Ístria e a
Dalmácia, estas ocupadas, aquele mantido pelos franceses. O Diretório (e
o afirma Carnot em suas Memórias) teve, por um instante, a tentação de
recusar a retificação do tratado, pois preferia ceder Mântua, mas, depois de
longa discussão, acabou concordando. Dessa forma, o sacrifício que a maior
parte dos Italianos e não poucos Franceses chamam “Indelével mancha da
história da França” foi consumado; e a República de Veneza terminou para
sempre.
10
Com esse tratado, extinguiu-se a República de Veneza, que passou ao domínio
austríaco. O exército francês ocupou a Lombardia e toda a região da margem esquerda do
Reno, inclusive a Bélgica, o que significou uma grande vitória político-militar e diplomática
para Napoleão.
Na Odisséia, Ulisses, após muitas aventuras e provações, volta para casa,
decorridos vinte anos de sua partida, e retoma o seu lugar. No conto, é o retorno de Ulisses
que mantém a chama da esperança das aranhas acesa, pois elas anseiam pelo dia em que a
sapiência (Ulisses) tome o seu lugar de direito, assim como no mito. As aranhas são, portanto,
igualadas a Penélope. Por outro lado, pensando na histórica República de Veneza, percebemos
que esse “final feliz” (mito) seja, provavelmente, impossível tanto na “Sereníssima
República” das aranhas, quanto no sistema eleitoral brasileiro, pois a República de Veneza,
tida então como modelo de democracia, foi vencida pela força e extinta por Napoleão.
Acreditamos, assim que a impossibilidade do retorno do Ulisses-Sapiência fica clara, como
demonstrado pela homônima história e seu final trágico.
10
L’articolo 6º concerneva Venezia e diceva: “La Repubblica Francese acconsente che S. M. l’Imperatore
e Re prossegga in piena sovranità e proprietà i paesi sotto indicati”. Era dunque l’Austria che figurava di
prendersi il Veneto, l’Istria e la Dalmazia, queste già occupate, quello tenuto dai Francesi. Il Direttorio (e
lo afferma il Carnot nelle sue Memorie) ebbe per un istante la tentazione di rifiutare la ratificazione del
trattado, mentre avrebbe preferito di cedere Mantova; ma, dopo lunga discussione, finì coll’accordarla. In
tal modo, il sacrifizio, che la maggior parte degl’Italiani e non pochi Francesi chiamano “indelebile
macchia della storia di Francia” fu consumato; e la Repubblica di Venezia era finita per sempre.
(CAPPELLETTI, 1915, p. 162). Tradução para o português realizada a nosso pedido pela Profa. Dra.
Maria Celeste Tommasello Ramos
65
No Brasil, a Lei Saraiva foi uma tentativa frustrada de restabelecer o trono ao
Ulisses-Sapiência, como declara Fausto:
Pensada como instrumento de moralização das eleições e de
ampliação da cidadania, a Lei Saraiva começou a ser aplicada com êxito nas
eleições de 1881. As unanimidades pareciam ter acabado, pois o Partido
Conservador, embora ficasse em minoria, elegeu uma expressiva bancada de
47 deputados. Nos anos seguintes porém voltaram os velhos vícios, as
fraudes e pressões sobre os eleitores. A esperança de alcançar a verdade
eleitoral”, desejada nos meios urbanos e letrados do Império, acabou assim
se apagando. (1995, p. 233)
Com essa observação de Fausto, a “alegoria” da qual nos fala Machado torna-se
evidente. Tendo em mente a declaração do historiador, retomemos a narrativa de “A
Sereníssima República”. No texto narrado, inúmeras tentativas de mudança de um sistema
eleitoral falho, bem como a ilusão da eficiência da última mudança. Essa ilusão termina,
porém, com a eleição seguinte, no momento em que se descobrem outras formas de fraudes.
Há, por último, a nova esperança de encontrar um sistema diferente, que traga a “verdade
eleitoral”. Dessa forma, podemos notar como ambas as sociedades (brasileira e araneídea)
sofreram os mesmos processos e anseiam por um final feliz, como no mito.
Implicitamente, existe outra perspectiva mitológica: a da origem da aranha. A
história de Aracne está narrada no livro VI d’ As metamorfoses
11
, de Ovídio. Aracne era uma
jovem com grande reputação na arte de tecer. A garota, porém, muito orgulhosa, julgando que
sua habilidade de tecelã fosse maior do que a de qualquer outro ser, mortal ou divino,
desafiou Atena, deusa das fiandeiras e bordadeiras. Atena aceitou a provocação e representou,
em seu bordado, os doze deuses do Olimpo, em toda sua majestade. Aracne, por sua vez,
representou os amores dos deuses por mortais. Ultrajada, a deusa rasgou o bordado da garota
e puniu-a, transformando-a em uma aranha, presa eternamente a seu fio:
11
A obra de Ovídio, Metamorfoses, também é citada no conto “As academias de Sião”.
66
“Viva, iníqua moça; continue a viver, mas fique para sempre pendurada,
E, apenas para mantê-la mais ponderada no futuro,
Esta punição será reforçada para sempre
Em toda a sua descendência”. Virou-se então
E a borrifou com um poderoso veneno, e seu cabelo
Caiu, o mesmo aconteceu com o nariz e as orelhas. A cabeça
Encolheu, o corpo minguou
Ficou apenas uma barriga com dedinhos grudados
Nas laterais do corpo como se fossem pernas, e do ventre
Ela continuava a tecer: virou uma aranha que nunca esqueceu
Das habilidades que tinha quando humana. (OVÍDIO, 2003, p. 16)
É interessante notar que Atena era tida como a deusa da sabedoria e da justiça,
protetora dos heróis, entre os quais Ulisses. Talvez, outra ironia de Machado de Assis, visto
que as aranhas aguardam o retorno da sapiência, representada por Ulisses, que é, por sua vez,
protegido de Atena, a mesma deusa que puniu Aracne.
Além das referências mitológicas diretas a Penélope e Ulisses, e indireta a Aracne,
temos uma outra direta à Cultura Clássica, expressa no seguinte trecho: Desde Plínio até
Darwin, os naturalistas do mundo inteiro formam um coro de admiração em torno desse
bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do vosso criado destrói em menos de
um minuto.” (ASSIS, 1998, v.1, p. 392-393).
Plínio, o Velho, nasceu em 23/24 d.C. e morreu na grande erupção do Vesúvio (79
d.C.). Escreveu muitas obras (quase todas perdidas) sobre oratória, gramática, arte militar e
história. Seu trabalho mais importante (o único que se conservou) foi uma obra de cunho
enciclopédico intitulada História Natural
12
, composta por trinta e sete livros e dedicada ao
então futuro imperador Tito (HARVEY, 1987, p. 401-402). Encontramos o verbete referente
às aranhas no livro 11, capítulos 28 e 29. É notável o paralelismo na construção do texto
machadiano (“os naturalistas do mundo inteiro formam um coro de admiração”) com o do
início do verbete da obra de Plínio:Coloca-se aqui a proveitosa história das aranhas, assunto
12
A obra História Natural, de acordo com Marta de Senna (http://machadodeassis.net/dtb_index.asp), também é
citada no romance Dom Casmurro.
67
certamente digno de admiração. várias espécies delas, tão conhecidas que é desnecessário
delas falar em detalhe”
13
.
Ramos (2008) apontou a existência de analogias entre o espaço empírico,
histórico e geográfico (Brasil no contexto da Lei Saraiva – 1881) e o espaço ficcional
(Sereníssima República das aranhas), que, por sua vez, também constitui outra analogia a um
espaço geográfico historicamente preexistente (República de Veneza). Por último, o discurso
literário liga-se, ainda, ao espaço fantástico”, mitológico (Guerra de Troia e retorno de
Ulisses). O resultado da união desses planos temporais e espaciais tão diversos resulta em um
discurso carregado de ironia, que leva o leitor a inúmeras reflexões, em diversos níveis
interpretativos. Acreditamos que, dessa forma, as “leituras” do texto machadiano não se
esgotam. Exemplo dessas inesgotáveis leituras” habita na figura do Cônego Vargas, membro
da Igreja Católica e, ao mesmo tempo, representante da ciência. Na sociedade da
“Sereníssima República”, o cônego torna-se o próprio Deus, e não o seu representante: “A
minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus
das aranhas, e desde então adoraram-me.” (ASSIS, 1998, v. 1, p. 394). Como dissemos, aqui
se encontra mais uma possibilidade de leitura.
Concluímos que Machado de Assis une o clássico, tido como superior (o mito de
Ulisses e Penélope e a História de Veneza) ao comezinho, risível (uma sociedade de aranhas
falantes). Na “Sereníssima República” de aracnídeos machadiana, como afirma Gledson,
uma mistura de algo sério e profundo, e ao mesmo tempo leve e zombeteiro: uma mistura,
também, do local brasileiro com o tradicional europeu” (2006, p. 45). É essa mistura que dá o
tom de ironia e paródia, enriquecendo o texto, atiçando a curiosidade do leitor.
13
Ici se place convenablement l’histoire des araignées, sujet assurément digne d’admiration. Il y en a plusieurs
espèces, trop connues pour qu’il soit nécessaire d’en parler avec detail. (PLINE, 1830, v. 8, p. 59). Tradução
para o português realizada a nosso pedido pela Profa. Dra. Maria Cristina Parreira da Silva
68
III.5. Da Teogonia pagã ao Espiritismo: “Uma visita de Alcibíades
O conto “Uma visita de Alcibíades” foi publicado pela primeira vez em outubro
de 1876, no Jornal das Famílias
14
. Antes de ser reunido aos contos de Papéis avulsos, foi
reescrito
15
para ser publicado novamente em primeiro de janeiro de 1882, na Gazeta de
Notícias. Trata-se da ficcionalização do gênero epistolar, uma vez que em seu subtítulo
especifica-se “Carta do desembargador X... ao chefe de polícia da corte”.
Na carta, datada de 20 de setembro de 1875, o desembargador X relatou ao chefe
de polícia que, logo após o jantar, havia lido sobre a vida do ateniense Alcibíades, em Vidas
Paralelas, de Plutarco. Adepto do espiritismo, invocou então o ateniense para que ele lhe
respondesse algumas dúvidas. Para seu espanto, Alcibíades atendeu ao seu chamado, mas não
como um espírito (sombra): “era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego
autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às
grandes assembléias de Atenas” (ASSIS, 1998, v.1, p. 233). Como Alcibíades ansiava por
notícias de sua Grécia, o Desembargador passou a relatar alguns fatos relevantes daquele país.
Em um dado momento da conversa, o Desembargador lhe informa que iria a um baile:
- Um baile? Que coisa é um baile?
- Expliquei-lho.
- Ah! Ver dançar a pírrica!
- Não, emendei eu, a pírrica lá vai. Cada século, meu caro
Alcibíades, muda de danças como muda de idéias [...] a pírrica foi-se, como
os homens de Plutarco e os numes de Hesíodo. (ASSIS, 1998, v. 1, p.236)
Convencido de que levar o ateniense à rua seria uma boa solução para perdê-lo”, o
Desembargador vestiu-se para o baile. Foi grande o espanto de Alcibíades diante dos trajes,
14
A primeira versão de “Uma visita de Alcibíades” pode ser lida em Contos esparsos (ASSIS, 1956, p. 203-
207).
15
Como afirma o próprio Machado: “Este escrito teve um primeiro texto, que reformei totalmente mais tarde,
não aproveitando mais do que a idéia.” (ASSIS, 1998, v. 2, p. 534)
69
chamados por ele de canudos, ficando igualmente horrorizado com o uso da cor preta e da
gravata. O que realmente o chocou, no entanto, foi o chapéu. Depois de o Desembargador
vestir esse último adorno, Alcibíades caiu morto, pela segunda vez, visto que não era somente
“espírito”, mas homem encarnado/materializado, revivido pela invocação do Desembargador.
Encontramos algumas referências à Mitologia Clássica, quando o Desembargador
discursava sobre as mudanças na crença:
Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabara, que as academias do
século passado ainda lhe deram abrigo, mas sem convicção, nem alma, que
as mesmas bebedeiras arcádicas,
Evoé! Padre Bassaréu
Evoé! etc.
honesto passatempo de alguns desembargadores pacatos, essas
mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe,
acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos restos da
teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a ciência
reduziu todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto.
- Morto Zeus?
- Morto.
- Dionisos, Afrodita?...
- Tudo morto.
O homem de Plutarco levantou-se, andou um pouco, contendo a
indignação, como se dissesse consigo, imitando o outro: - Ah! se estou
com os meus atenienses! – Zeus, Dionisos, Afrodita... murmurava de quando
em quando. Lembrou-me então que ele fora uma vez acusado de desacato
aos deuses e perguntei a mim mesmo donde vinha aquela indignação
póstuma, e naturalmente postiça. Esquecia-me, - um devoto do grego!
esquecia-me que ele era também um refinado hipócrita, um ilustre
dissimulado. (idem, p. 236-237)
Primeiramente, destacamos o autor de Vidas Paralelas, Plutarco, famoso biógrafo
e filósofo moralista, que nasceu em aproximadamente 46 d. C. Entre os lugares que visitou,
destacam-se Roma, Alexandria, Itália e Grécia, onde, na maioria das vezes, pronunciava
conferências a respeito de assuntos éticos. Sua principal obra, Vidas Paralelas, consiste em 23
pares de vidas e mais quatro vidas isoladas. Os pares descritos consistem sempre na vida de
um grego ilustre e na vida de um romano ilustre, cuja carreira apresenta alguns pontos de
semelhança com a do primeiro. Acrescenta-se, ainda, uma breve comparação entre os dois. O
70
principal objetivo de Plutarco era destacar os aspectos morais do assunto; logo, os eventos
escolhidos buscavam revelar a natureza do homem. (HARVEY, 1987, p.404-405). Conforme
explicamos, para ressaltar a importância da Cultura Clássica nas obras machadianas,
destacamos que a obra Vidas Paralelas também é citada diretamente no conto “O programa”,
e indiretamente nos romances Helena, Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e
Quincas Borba, bem como nos contos A mulher de preto”, Eterno!”, Virginius”, “Uma
excursão milagrosa” e “Uma por outra”. Alcibíades, por sua vez, é citado, ainda, no conto
“Luís Soares” (Contos fluminenses) e no romance A mão e a luva.
Alcibíades, personagem reencarnado no conto”, que nasceu pouco antes de 450
a.C., é sempre descrito como muito belo e talentoso, mas também como arrogante e
inescrupuloso. Em Vidas Paralelas, Plutarco inicia a sua descrição exaltando a beleza do
general ateniense e pontuando o problema que ele tinha com a fala: “mesmo seu defeito de
pronúncia lhe conferia graça à linguagem e contribuía para a persuasão”, Alcibíades “ciciava”
(PLUTARCO, 1991, p.10). Sua experiência no exército resultou em sua eleição para estratego
em 420 a.C. Apesar de ser discípulo de Sócrates, levou uma vida desregrada e permeada com
inúmeros episódios obscuros, como a mutilação das Hermas
16
, pouco antes da partida da
Expedição à Sicília para a Guerra do Peloponeso. Tal feito atribuído a Alcibíades foi tido
como grande desrespeito aos deuses. Decidiu-se, em consequência disso, que ele deveria
embarcar e ser julgado posteriormente. No entanto, quando intimado a voltar para o seu
julgamento, em Atenas, fugiu e foi condenado à morte à revelia, tendo seus bens confiscados.
Instalou-se em Esparta, cidade que, sob sua influência, tomou diversas medidas contra
Atenas, como, por exemplo, o envio de espartanos para auxiliar os siracussanos em guerra
contra os atenienses. Anos depois, Alcibíades teve um caso amoroso com a esposa de um dos
16
Pilares quadrangulares encimados por um busto do deus Hermes, erigido em Atenas, nas esquinas das ruas,
nas estradas e em frente às casas. Alguns deles possuíam, ainda, inscrições de preceitos morais. (HARVEY,
1987, p. 268).
71
reis espartanos e passou a não ser bem recebido em Esparta. Morreu assassinado na Frigia, em
404 a.C., por ordem dos persas.
Plutarco afirma que Alcibíades tinha um enorme dom de se adaptar onde
estivesse:
Em Esparta esteve sempre se exercitando, era sempre frugal e
austero; na Jônia mostrava-se efeminado, voluptuoso e sibarita; na Trácia
bebia desbragadamente e montava a cavalo; e, quando esteve na corte do
sátrapa Tissafernes, ultrapassou em luxo e despesas a magnificência dos
persas. (1991, p. 31)
E essa característica tenta ser retomada no conto, visto que o ateniense se propõe a ir ao baile
à “moda da época”; não consegue, contudo, realizar tal feito, pois morre tão logo se depara
com toda vestimenta. Assim sendo, a grande capacidade de adaptação de Alcibíades, louvada
por Plutarco, não foi suficiente para que o ateniense suportasse o novo vestuário. A nosso ver,
essa consequência ressalta que, para Machado de Assis, o os brasileiros que possuem uma
grande capacidade de adaptação, inclusive do elemento estrangeiro, moldando-o ao elemento
nacional. Wisnick transcreve uma crônica machadiana em verso que traduz esse sentimento:
Dizem até que, não tendo
Firme a personalidade,
Vamos tudo recebendo
Alto-e-malo, na verdade.
Que é obra daquela musa
De imitação, que nos guia,
Muita vez nos recusa
Toda a original porfia.
Ao que eu contesto, porquanto
A tudo damos um cunho
Local, nosso; e a cada canto
Acho disso testemunho. (ASSIS, apud WISNICK, 2004, p. 44)
A partir dessa crônica, Wisnick, ao estudar os gêneros musicais no Brasil de
Machado, discursa a respeito da versatilidade brasileira de imprimir um cunho próprio às
72
coisas importadas, tornando-as “mui nossa”. Notaremos essa capacidade brasileira não na
música, mas também no vestuário, adaptado do europeu; nas religiões, como o espiritismo,
que sofreu influência das religiões africanas etc.
Voltando às referências, no conto, ainda, há citação a três deuses: Zeus, Afrodite e
Dioniso. Zeus (nome grego) ou Júpiter (nome romano) era o mais importante deus do Olimpo.
Reinava sobre os deuses e os mortais, controlando os raios, os relâmpagos e a chuva, e
mantinha justiça e a ordem. Venceu seu pai Crono, tomou o poder do Olimpo e, além disso,
desposou sua irmã Hera. O nascimento de Zeus é narrado por Hesíodo, em Teogonia, da
seguinte forma:
Réia submetida a Crono pariu brilhantes filhos:
Héstia, Deméter e Hera de áureas sandálias,
o forte Hades que sob o chão habita um palácio
com impiedoso coração, o troante Treme-terra
e o sábio Zeus, pai dos Deuses e dos homens,
sob cujo trovão até a ampla terra se abala.
E engolia-os o grande Crono tão logo cada um
do ventre sagrado da mãe descia aos joelhos,
tramando-o para outro dos magníficos Uranidas
não tivesse entre os imortais a honra de rei.
Pois soube da Terra e do Céu constelado
que lhe era destino por um filho ser submetido
apesar de poderoso, por desígnios do grande Zeus.
E não mantinha vigilância de cego, mas à espreita
engolia os filhos. Réia agarrou-se longa a aflição.
Mas quando a Zeus pai dos Deuses e dos homens
ela devia parir, suplicou-lhe então aos pais queridos,
aos seus, à Terra e ao Céu constelado,
comporem um ardil para que oculta parisse
o filho, e fosse punido pelas Erínias do pai
e filhos engolidos o grande Crono de curvo pensar.
Eles escutaram e atenderam à filha querida
e indicaram quanto era destino ocorrer
ao rei Crono e ao filho de violento ânimo.
Enviaram-na a Licto, gorda região de Creta,
quando ela devia parir o filho de ótimas armas,
o grande Zeus, e recebeu-o Terra prodigiosa
na vasta Creta para nutri-lo e criá-lo.
Aí levando-o através da veloz noite negra atingiu
primeiro Licto, e com ele nas mãos escondeu-o
em gruta íngreme sob o covil da terra divina
no monte das Cabras denso de árvores.
Encueirou grande pedra e entreou-a
73
ao soberano Uranida rei dos antigos Deuses.
Tomando-a nas mãos meteu-a ventre abaixo
o coitado, nem pensou nas entranhas que deixava
em vez da pedra o seu filho invicto e seguro
ao porvir. Este com violência e mãos dominando-o
logo o expulsaria da honra e reinaria entre imortais.
(HESÍODO, 2007, p. 127-129, v.453-491)
Zeus estava a salvo, e o destino que o oráculo previu, cumpriu-se. Aconselhado pela
Prudência, deu uma droga a Crono (seu pai), que vomitou os outros filhos. Apoiado pelos
irmãos, Zeus destronou seu pai e derrotou os Titãs. Após a vitória, dividiu o mundo com os
dois irmãos. Tornou-se, por conseguinte, o responsável pelo céu e pela terra; Posídon ficou
responsável pelos mares, e Hades, pelos infernos. Mesmo com essa divisão, Zeus era tido
como o rei dos deuses. Do casamento com Hera, nasceram Hebe, Ilitia e Ares. As principais
histórias de Zeus narram seus inúmeros casos extraconjugais, dentre os quais destacamos
aquele com Métis (gerou Atena), com Leto (gerou Apolo e Ártemis), com Alcmena (gerou
Hércules), com Dánae (gerou Perseu), com Europa (gerou Minos), com Leda (gerou Helena e
os Dioscuros) e com Sêmele (gerou Dioniso) (GRIMAL, 2005, p. 468-471).
Afrodite, como vimos no item III.2, era tida como a deusa do amor e da beleza.
Segundo Grimal, Gaia (a Terra), descontente com a fecundidade entre ela e o marido, Urano,
pediu aos filhos que a protegessem. Todos se recusaram, exceto Cronos, que decepou o
genital do pai, e lançou-o ao mar. Dele, nasce, então, Afrodite, conforme foi narrado por
Hesíodo, também em Teogonia:
O pênis, tão logo cortando-o com aço
atirou do continente no undoso mar,
aí muito boiou na planície, ao redor branca
espuma da imortal carne ejaculava-se, dela
uma virgem criou-se. Primeiro Citera divina
atingiu, depois foi à circunfluída Chipre
e saiu veneranda bela Deusa, ao redor relva
crescia sob esbeltos pés. A ela. Afrodite
Deusa nascida de espuma e bem coroada Citeréia
apelidam homens e Deuses, porque da espuma
criou-se e Citeréia porque tocou Citera,
74
Cípria porque nasceu na undosa Chipre,
e Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz.
Eros acompanhou-a, Desejo seguiu-a belo,
tão logo nasceu e foi para a grei dos Deuses.
Esta honra tem dês o começo e na partilha
coube-lhe entre homens e Deuses imortais
as conversas de moças, os sorrisos, os enganos,
o doce gozo, o amor e a meiguice.
(HESÍODO, 2007, p. 113, v. 188-206)
Afrodite é o conhecida pelos casos amorosos (ver item III.2) quanto pela sua
cólera. Foi ela, por exemplo, que puniu as mulheres de Lemnos por não à honrarem; que
castigou as filhas de Cíniras, forçando-as a se prostituírem; que, por ciúmes de Ares, puniu
Eos. Afrodite também se encontra relacionada ao estopim da Guerra de Troia, pois é ela que
oferece a mão de Helena a Páris, por esse motivo protegeu os troianos durante a famosa
guerra. Como não pôde, contudo, dar a vitória a esse povo, assistiu Eneas em sua fuga
(GRIMAL, 2005, p. 10-11).
Dioniso ou Baco, filho de Zeus e mele, era o deus da vinha, do vinho e do
delírio stico. Amada por Zeus, Sêmele recebeu a promessa de que o deus atenderia
qualquer pedido seu, exceto tornar-se imortal. Assim, atiçada por Hera, pediu ao amado que
se mostrasse em todo seu poder. No entanto, morreu em seguida, porque não conseguiu
suportar tal visão. Ciente da gravidez de Sêmele, Zeus, imediatamente, arrancou a criança do
ventre materno, cosendo-a dentro de sua coxa. Ao fim do tempo, o deus tirou então Dioniso
da sua perna, entregando-o a Hermes, de modo a evitar o ciúme de Hera. Para escapar da
cólera da esposa de Zeus, Dioniso viajou por diversos países, expandindo seu culto. Ovídio
narra como foi a introdução de Baco em Tebas:
O deus chegou,
E os campos bramiram com um clamor festivo. Multidões de
Pessoas da cidade, homens e mulheres,
Velhos, jovens, patrícios e plebeus,
Todos misturados, participavam
Das celebrações a esse deus ainda desconhecido.
[...]
75
Toma Tebas, ele, que não tem armas
Nem conhece as artes da guerra, nem tem a ajuda dos cavalos, mas apenas
Cabelo encharcado de perfume, guirlandas macias de flores,
Bordados dourados e roxos na roupa. (2003, p. 66-67)
O deus do vinho era festejado com cortejos tumultuosos, nos quais eram usadas máscaras que
evocavam os gênios da Terra e da fecundidade (GRIMAL, 2005, p. 121-122).
O espanto/indignação demonstrado por Alcibíades quando o Desembargador
informa que os deuses Olímpicos não são mais tidos como sagrados (estão “mortos”) é, no
mínimo, curioso, ou mesmo irônico, principalmente quando pensamos em sua biografia, ou,
mais especificamente, no episódio da mutilação das Hermas. Esse episódio constitui não
somente um marco na vida do general ateniense que foge para Esparta a fim de evitar a morte,
mas também uma evidência de que ele não era tão crente e temente a esses deuses, como tenta
aparentar no conto machadiano.
Acreditamos que o conto apresenta uma crítica ao Espiritismo, que fica mais
evidente ao contextualizarmos historicamente o Brasil Imperial, época na qual a Constituição
de 1824 estabelecia expressamente que a religião oficial do Estado era o Catolicismo.
O primeiro jornal espírita do Brasil foi O Echo d’Além-Túmulo, publicado em
julho de 1869, em Salvador, com o esforço de Luís Olímpio Teles de Menezes. A publicação
contava com 56 páginas e chegou a circular em algumas cidades do exterior (Londres, Madri,
Nova Iorque e Paris). O primeiro Centro Espírita do Rio de Janeiro Sociedade de Estudos
Espiríticos “Grupo Confúcio” – foi fundado em 1872 e presidido por Silva Neto. Faziam parte
desse grupo pessoas da alta sociedade da Corte (Capital do Império), entre as quais Joaquim
Carlos Travassos e Bittencourt Sampaio.
Em 1875, a Livraria Garnier publicou a tradução brasileira d’O livro dos espíritos,
de Allan Kardec. Apesar das duras críticas dos intelectuais, o grande retorno financeiro fez
com que Garnier publicasse, ainda nesse ano, mais duas traduções de Kardec (O livro dos
médiuns e O céu e o inferno) e uma tradução de Como e por que me tornei espírita, de J. B.
76
Borneau. Estrategicamente, Machado de Assis utilizou esse ano de grande expressão do
espiritismo para contextualizar o conto em questão. Como vimos, o autor brasileiro datou a
suposta carta em 20 de setembro de 1875.
Conforme informações veiculadas pelo jornal O Mensageiro
17
, com a difusão das
ideias e práticas espíritas no país, registraram-se choques o na imprensa, mas também
em âmbito jurídico-policial. Vale ressaltar um fato ocorrido em 1881, no dia 28 de agosto: O
Cruzeiro e o Jornal do Commercio noticiaram a ordem policial que proibia o funcionamento
das atividades espíritas, tornando passíveis de sanções penais aqueles que contrariassem as
disposições policiais. Dois dias depois da notícia, um Oficial de Justiça apresentou à
Sociedade Espírita do Rio de Janeiro um mandado de intimação do Delegado de Polícia da
Corte que suspendia as reuniões dessa Sociedade, justificando que esta não era legalmente
constituída. Uma comissão formada por Antonio Pinheiro Guedes, Carlos Joaquim de Lima e
Cirne e, Joaquim Carlos Travassos (primeiro tradutor das obras de Kardec para o português),
procurou o Chefe de Polícia, que, por sua vez, alegou a superioridade da ordem.
Em seis de setembro do respectivo ano, na presença do Chefe de Polícia, a mesma
comissão foi recebida no paço da Corte, com o intuito de defender os direitos e a liberdade
dos espíritas brasileiros. O Imperador, aceitando os argumentos, afirmou não consentir com a
perseguição, fato que fez com a Sociedade Espírita continuasse a funcionar, mesmo que seus
membros soubessem que poderiam ser presos, visto que a ordem policial continuava válida.
Pelo que consta, essa ordem nunca foi revogada, mas também não notícia que tenha sido
posta em execução. A aplicação desse regulamento parece ter sido sustada, provavelmente por
intervenção do Imperador.
Para Ubiratan Machado, o conto machadiano fundamenta-se em um fenômeno
muito praticado pelo espiritismo naquela época. Segundo ele,
17
http://omensageiro.com.br/personalidades/personalidade-22.htm
77
O argumento do conto machadiano foi elaborado a partir de um dos
fenômenos de propaganda mais utilizados pelo espiritismo, à época: a
materialização de espíritos, cujas fotografias eram exibidas aos incréus como
provas irrefutáveis, mesmo após o ruidoso Processo dos espíritas. Elas
afirmariam, mais que a sobrevivência do espírito, a possibilidade de
reassumir a sua antiga forma corpórea, desde que recebendo os
indispensáveis fluidos. Aos olhos céticos, no entanto, tudo isso se afigurava
como o absurdo dos absurdos. Uma espécie de tentativa para se avançar no
terreno das possibilidades impossíveis. (1997, p. 145).
Entendemos que esse “absurdo dos absurdos”, apontado por Ubiratan Machado,
esteja exposto no conto em questão, quando se afirma que foi o próprio Alcibíades, em “carne
e osso”, que apareceu para o Desembargador. Trata-se não de um espírito reencarnado, mas
da reencarnação no sentido literal da palavra; Alcibíades reassume, assim, o próprio corpo.
Notamos então, uma vez mais, a conhecida ironia machadiana: se o espírito pode se
manifestar de maneira mediúnica, então, por que o próprio morto não pode voltar a viver,
materializando-se novamente em sua forma corpórea?
Além da forte relação com o Espiritismo, o conto encontra-se permeado de
referências à Cultura Clássica. Nota-se uma fina ironia ao se sustentar que a teogonia pagã
está morta. A palavra “Teogonia”, do grego, significa theos = deus(es) mais genea =
criação, o que, em outros termos, designa como os deuses se criaram ou foram criados.
Hesíodo, por volta do século VIII a.C., criou a sua Teogonia, que era tida como
sagrada pelos gregos antigos, porque continha a narração da gênese dos deuses da
Antiguidade Clássica. Na época de Machado de Assis, não os deuses pagãos estavam
“mortos”, mas também o estava a crença neles, e ainda nos escritos que os transmitiam como
sagrados, como a Teogonia. Segundo a carta/conto machadiano, os mitos e os livros sagrados
que os narravam foram reduzidos a símbolos: “cada século, meu caro Alcibíades, muda de
danças como muda de idéias”, diz Machado. Baseados nessa afirmação, ousamos asseverar
78
que, para o autor brasileiro, esse processo de dessacralização não se esgota. Dessa forma, os
livros que atualmente são tidos como sagrados poderão se tornar símbolos.
Entendemos que As contradições [...] dão vida à prosa machadiana, que transita
com certa desenvoltura entre o coloquial e o formal, o popular e o erudito, o local e o
universal, o detalhe e as grandes questões.” (GLEDSON, 2006, p. 66). Partindo dessa
declaração, notamos que Machado de Assis une o clássico, representado, nesse conto, pela
presença de Alcibíades, general do exército ateniense, historicamente conhecido pelas suas
estratégias e vitórias, ao comezinho, visto que o motivo pelo qual o Desembargador o invonca
é muito trivial: a questão do vestuário. Machado também ironiza uma crença” que estava no
seu começo, pois, ao afirmar que cada época tem sua religião, ele rebaixa tanto a teogonia
pagã quanto o espiritismo, que, a seus olhos, está igualmente fadado a um fim.
79
III.6. Xavier-Polícrates-Artur e seus legados: “O anel de Polícrates”
O conto “O anel de Polícrates” foi publicado pela primeira vez em dois de julho
de 1882, na Gazeta de Notícias. Trata-se de diálogo entre as personagens “A e “Z”, que
discorrem sobre a vida de um conhecido em comum, Xavier
18
. “A” narra, assim, as histórias
ocorridas com esse homem de criatividade fértil, grande articulador e possuidor de ideias
novas e ousadas, que de tanto esbanjar sua criatividade, espalhando ideias ao acaso, perdeu
um dia a capacidade de criá-las. Após um período de escassez de ideias, Xavier conseguiu
conceber uma máxima em que se lia “a vida era um cavalo xucro ou manhoso”, e acrescentou:
“quem não for bom cavaleiro, que o pareça.(ASSIS, 1998, v. 1, p. 377). Nessa altura, “A”
narra a “Z” o mito de Polícrates:
Polícrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; o feliz,
que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e para aplacá-la
antecipadamente, determinou fazer um grande sacrifício: deitar ao mar o
anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a
Fortuna andava tão apostada em cumulá-lo de obséquios, que o anel foi
engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei,
que assim voltou à posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota;
foi ele quem me contou, citando Plínio, citando...
[...]
Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha idéia,
lançada ao mar, pode tornar ao meu poder, como o anel de Polícrates, no
bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo setal, que nunca mais lhe
ponha a mão. (idem, pág. 377 – 378).
Igualmente a Polícratres que reassume a posse de seu anel após este ser jogado ao
mar, Xavier quis testar sua sorte, para saber se um dia sua ideia retornaria a ele. A máxima de
Xavier ficou conhecida e espalhou-se; contudo, ninguém lhe atribuía autoria, ou seja, não lhe
“devolviam o anel”.
18
O nome Xavier é retomado no romance Memórias póstumas de Brás Cubas e nos contos: “Mariana” (Várias
histórias), Um quarto de culo” (Relíquias de Casa Velha), “Galeria póstuma” e “Fulano” (Histórias sem
data).
80
Como vimos no conto, o mito de Polícrates é contado brevemente por Plínio, o
Velho
19
, em História Natural, no volume 33, capítulo seis:
A gema do tirano Polícrates
II. I. Assim começou a moda das pedras preciosas. Logo a estima se
transformou em paixão. Polícrates, o tirano de Samos, respeitado na ilha e no
continente, querendo expiar, pelas perdas, o que ele próprio chamava de
excesso de prosperidade, acreditou fazer suficiente sacrifício, e render dom
por dom à Fortuna, pela privação voluntária de uma pedra: ele acreditou que
a dor dessa única perda seria o bastante para colocá-lo ao abrigo da inveja e
da inconstância da deusa. Cansado de uma felicidade incessante, ele
embarca, atinge o alto mar, atira seu anel às ondas. Um enorme peixe,
grande o suficiente para alimentar o rei, engole a gema; depois, acaba nas
mãos do cozinheiro de Polícrates, que a deixa reaparecer aos olhos do tirano.
Presságio sinistro! Pérfida restituição da Fortuna! Essa gema, com certeza,
era uma esmeralda: a vimos em Roma, no templo da Concórdia, presa a um
chifre de ouro, oferenda de Augusto: é quase a menor do templo; cem outras
mais belas vêm em primeiro lugar.
20
Encontramos a narrativa da vida de Polícrates também em Heródoto, considerado
“o pai da história”. Diga-se ainda, que a palavra história” surge no prefácio da obra deste
autor, cuja “exposição de informações” tinha os seguintes objetivos:
Esta é a exposição das informações de Heródoto de Halicarnasso, a
fim de que os feitos dos homens, com o tempo, se não apaguem, e de que
não percam o seu lustre acções grandiosas e admiráveis, praticadas, quer
pelos Helenos, quer pelos bárbaros, e, sobretudo, qual a razão por que
entraram em conflito uns com os outros. (HERÓDOTO, apud PEREIRA,
1987, p. 272)
Como fica evidente, a inquirição de Heródoto tinha três finalidades: perpetuar o
passado, proclamar a glória e encontrar a causa da guerra. Pereira (1987) afirma que há uma
palavra que é capaz de reconstituir a visão do homem contemporâneo de Heródoto: a inveja.
Esse sentimento também se relaciona com a insolência, e é, portanto, a partir dessa premissa
que se narra no Livro III, de História, a história do anel de Polícrates.
19
Sobre esse escritor, verificar item III.4.
20
Tradução para o português realizada a nosso pedido pela Profa. Dra. Maria Cristina Parreira da Silva, baseada
na versão francesa (PLINE, 1883, v.11, p. 299).
81
Polícrates, o tirano da ilha de Samos, durante a segunda metade do século VI a.C,
transformou essa ilha numa grande potência marítima e realizou grandes obras públicas para
sua melhoria. Buscou aliança com Amásis, grande faraó do Egito, que a princípio acolheu sua
amizade. Passado algum tempo, contudo, o faraó, temente aos deuses, mandou a seguinte
mensagem a Polícrates:
DE AMÁSIS A POLÍCRATES
É para mim muito agradável saber dos sucessos de um amigo e
aliado; mas como conheço o ciúme dos deuses, essa grande felicidade me
preocupa. Em benefício daqueles por quem me interesso, eu preferiria que os
êxitos fossem contrabalançados por um número, correspondente de reveses;
que houvesse uma alternação de venturas e azares, em lugar de uma
felicidade constante e ininterrupta; pois nunca ouvi falar de homem algum
que, tendo sido feliz em tudo, não viesse, por fim, a perecer desastrosamente.
Se quiseres pôr à prova o que te digo, faze contra a tua boa fortuna o que te
vou aconselhar. Procura ver qual a coisa que mais estimas e cuja perda te
seria mais sensível. Feita a escolha, desfaze-te dela, de maneira que nunca
mais possas encontrá-la. Se depois disso a fortuna continuar a favorecer-te
em tudo, sem envolver alguma desgraça em meio aos favores, avisa-me para
que eu me convença da inutilidade do meu conselho. (HERÓDOTO, 2006,
p. 244)
Polícrates, aceitando o conselho do aliado, escolheu um anel de ouro e esmeralda
muito valioso, considerado por ele como um talismã, para atirá-lo ao mar. No entanto, antes
mesmo de jogá-lo, lamentava sua perda. Passado o episódio, censurou-se por rios dias por
tê-lo lançado ao mar com tanta precipitação. Mais ou menos cinco dias mais tarde, um
pescador, na tentativa de agradar Polícrates, levou um peixe enorme ao seu palácio. Quando
os criados abriram o peixe, encontraram em sua barriga o mesmo anel de esmeralda que tinha
sido jogado e o entregaram ao rei. Satisfeito por ter recuperado seu tesouro e por acreditar que
os deuses estavam dispostos a lhe conceder boa sorte, o governante enviou uma mensagem a
Amásis, contando o ocorrido. O faraó egípcio, por acreditar que o retorno do tesouro era sinal
de que os deuses não tinham aceitado a oferenda de Polícrates e que estavam dispostos a puni-
lo, desfez, então, a aliança entre eles. Presságio que se mostrou correto, pois Orestes, rei da
82
Pérsia, armou uma cilada, que resultou na crucificação de Polícrates, em 522 a. C.
(HERÓDOTO, 2006, p. 244-246).
Podemos notar que Machado de Assis manipulou a história, ocultando o final
trágico de Polícrates. Desconhecendo o desfecho trágico do soberano, Xavier deseja ser
Polícrates e resgatar, assim, sua xima, para então realizá-la. Para sua sorte ou azar, esse
fato nunca chegou a ser concretizado.
O texto machadiano, por não considerar as relações com o sagrado, não fala em
termos de oferenda. Ao contrário, aborda tudo como uma questão de acaso, de sorte. Ao passo
que, no conto, Polícrates é tido como um afortunado por ter seu anel de volta, no mito, ocorre
o inverso, visto que o retorno do anel é tido como um mau presságio. Como afirmado por
Fiker, uma subversão de valores: “no contexto moderno ele [o mito] embaça os
significados e contribui para a elaboração de uma falsa consciência” (2000, p. 29). É essa
“falsa consciência” que faz Xavier desejar o seu anel de volta.
Acreditamos que o escritor brasileiro une a Cultura Clássica (Polícrates) à
realidade da sua época (Xavier), o que fica mais evidente ao lermos a nota que acompanha o
conto. Nela, Machado de Assis afirma que a personagem Xavier é, na verdade, seu amigo
Artur de Oliveira: “menos a vaidade, que não tinha, e salvo alguns rasgos mais acentuados,
este Xavier era o Artur”. (ASSIS, 1998, v.2, p. 530)
Artur de Oliveira nasceu em Porto Alegre e, aos 16 anos, veio para o Rio de
Janeiro, onde morreu em 21 de agosto de 1882, quando então com 31 anos. Foi professor do
Colégio D. Pedro e patrono da Academia Brasileira de Letras. Por ter morado na França,
introduziu o pensamento parnasiano no Brasil. Segundo o site da Academia Brasileira de
Letras, outro amigo de Artur, Alberto de Oliveira, em entrevista a Terra Roxa e Outras
Terras, em 1926, também discursa sobre a importância de Artur de Oliveira na introdução do
parnasianismo no Brasil: “O Artur lia Gautier, Banville, Sully-Prudhomme, Baudelaire e
83
empolgava-nos com seu entusiasmo.” Artur, no entanto, mais conversou do que escreveu,
visto que sua produção literária é escassa e não corresponde ao que se espera da genialidade
apregoada pelos que com ele conviveram. Em vida, publicou duas obras sob o pseudônimo de
Bento Gonçalves: Flechas (crônicas) e A Rua do Ouvidor (sátira), ambas em 1873. Dispersos,
sua obra mais importante, foi, postumamente, organizada por Luís Filipe Vieira Souto e
publicada em 1936.
Dessa forma, a nota de Machado de Assis não só estabelece uma ligação entre a
realidade empírica (Artur de Oliveira) e a narrativa ficcional (Xavier), mas também o faz com
a narrativa mítica (Polícrates). Como veremos, essa trama continua por meio de outras
referências.
Encontramos duas referências na seguinte narração de “A”, a respeito de Xavier:
“Sabe quem lhe fazia o café, de manhã? A Aurora, com aqueles mesmos dedos cor-de-rosa,
que Homero lhe s.” (ASSIS, 1998, v.1, p. 372). A Aurora, deusa do amanhecer, pertence à
primeira geração divina: a dos Titãs. Ora é filha de Hiperíon e Tia, ora é filha de Palas.
Descrita como ruiva, seus dedos róseos abrem as portas do céu ao carro do Sol (GRIMAL,
2005, p. 139). Encontramos, no canto XXIV, versos 784 a 788 da Ilíada, uma passagem sobre
essa deusa:
Por nove dias é lenha infinita à cidade trazida;
e quando, ao décimo, a Aurora surgiu com seus dedos de rosa,
por entre lágrimas levam o corpo de Heitor valoroso,
sobre a fogueira o colocam e a chama incansável acendem.
Logo que a Aurora, de dedos de rosa, surgiu matutina,
(HOMERO, 1960, p. 487)
Julgamos que, ao construir essa alusão à deusa da mitologia greco-romana, por
meio dos escritos de Homero, que lhe s” os dedos cor-de-rosa, demonstra-se, de certa
maneira, que não havia nenhum tipo de vínculo com o sagrado. Assim, Aurora seria somente
uma invenção literária, uma personagem de Homero.
84
também outra referência direta a Homero, pai da literatura grega: “Nem tudo
era límpido; mas a porção límpida superava a porção turva, como a vigília de Homero paga os
seus cochilos”. (ASSIS, 1998, v. 1, p. 375), alusão essa feita a um texto de Horácio na sua
obra Arte Poética:
Há, todavia, defeitos que devemos estar prontos a perdoar, pois as
cordas do instrumento o a nota procurada pela mente e pela o, porém
muitas vezes produzem uma nota aguda quando era buscada uma grave, e a
seta nem sempre atinge o alvo. Quando um poema está cheio de belas
passagens, não irei insistir em um defeito que o poeta descuidadamente
deixou escapar, ou que a frágil natureza humana não pôde evitar. O que
concluiremos disso, então? Do mesmo modo que o escriba não merece
indulgência se teima em cometer o mesmo erro, por mais que tenha sido
advertido, ou que se ri do músico se sempre erra na mesma corda, assim
também o poeta que erra frequentemente me parece um outro Cerilo, cujos
dois ou três bons versos saúdo com divertida surpresa, por outro lado, eu me
espanto quando às vezes o bom Homero cochila, embora seja natural que um
ligeiro descuido surja ocasionalmente em um longo poema. (HORÁCIO,
apud TRINGALI, 1994, p. 94).
Tringali compara, nesse trecho, Homero ao poeta alexandrino Quérilo, que,
segundo ele, foi símbolo da mediocridade: Em oposição a Homero que raro erra, Quérilo,
raro, acerta.” (1994, p. 94). Como Homero raro erra”, seus cochilos devem ser perdoados,
tendo em vista suas vigílias, ou seja, levando em consideração a quantidade e a qualidade de
suas obras. Dessa forma, Machado dialoga não com Homero, mas também com Horácio,
responsável por cunhar o termo “cochilos de Homero”.
Homero foi considerado o grande poeta épico grego. Pairam ainda dúvidas sobre a
data e local exato de seu nascimento. Segundo Harvey, quanto à época, podemos situá-la em
meados do século VIII a.C (+- 750 a. C.), data mais aceita pelas autoridades. Aristóteles
atribui a esse poeta “excelência no estilo sério de poesia” e “elocução e pensamentos
inigualáveis” (HARVEY, 1987, p. 279-280).
Para finalizar, temos mais duas referências a grandes personalidades da Cultura
Clássica em O Xavier não perdeu as idéias que tinha, mas aexauriu a faculdade de as
85
criar; ficou o que sabemos. Que moeda rara se lhe hoje nas mãos? Que sestércio de
Horácio? Que dracma de Péricles? Nada”. (ASSIS, 1998, v. 1, p. 375).
Horácio, que viveu entre 65 e 8 a.C., foi considerado um dos maiores poetas
latinos, devido à perfeição de sua forma de escrita. Foi também governador militar protegido
de Mecenas, de quem recebeu milhares de sestércios (antiga moeda romana) e uma
propriedade (HARVEY, 1987, p. 280).
Péricles (500 a 429 a.C) foi um célebre estadista ateniense, tido como a grande
personalidade política do culo V a.C. Eleito estratego inúmeras vezes, “dominou” Atenas
pela sua oratória persuasiva e pelo seu caráter. Possuía como objetivo político fazer de Atenas
uma democracia ideal, “em que houvesse equilíbrio entre os interesses do Estado e os de cada
cidadão” (HARVEY, 1987, p. 388). Outro motivo para a consagração de Péricles foram as
obras de engenharia e arquitetura executadas durante sua “administração”. Pode-se destacar,
entre elas, o Pártenon, o Propileus e a Muralha Longa entre Atenas e Pireu.
Ramos (2008, p. 80) destaca que “em geral, a citação ou alusão tem o objetivo de
dar mais credibilidade ao discurso argumentativo de quem a utiliza. No discurso machadiano,
no entanto, muitas vezes ela aparece distorcida ou truncada e acaba assumindo funções
diferentes.” Assim, Machado de Assis, ao fazer alusão a Plínio, Homero, Horácio e Péricles,
constrói uma analogia entre esses pensadores e políticos da época clássica, Xavier
(personagem do conto) e Artur de Oliveira. O ponto comum para o estabelecimento dessa
analogia é a excelência em oratória e influência que todas essas personagens exerceram.
Machado troça, no entanto, com a questão da perpetuação: Homero, Plínio e
Horácio deixaram várias obras escritas; ricles, por sua vez, teve seu destaque na política,
realizando inúmeros feitos em Atenas; contrariamente Xavier, apesar de rico em ideias, não
conseguiu concretizá-las de forma literária. Artur de Oliveira é também distanciado de
Xavier, como declara Machado: “se o da minha invenção morreu exausto de espírito, não
86
aconteceu o mesmo a Artur de Oliveira, que pôde alguma vez ficar prostrado, mas não
exauriu nunca a força genial que possuía” (ASSIS, 1998, v. 2, p. 530).
Concluímos, então, que o autor brasileiro une a tradição clássica (mito de
Polícrates) ao comezinho, representado na figura de Xavier, que, inconsciente das
consequências, desejava, como o soberano de Samos, recuperar seu tesouro. Ao contrapor a
Cultura Clássica, buscada em textos literários gregos e romanos, à sociedade brasileira de seu
tempo, que almejava ser como a européia, Machado põe a nu o paradoxo brasileiro. Não
podemos esquecer-nos de destacar que, no texto machadiano, o mito de Polícrates é destituído
de qualquer ligação com o sagrado, bem como o é a alusão à deusa Aurora. Por fim, ainda é
necessário que salientemos a existência de um truncado jogo intertextual entre a ficção
(Xavier), a mitologia (Polícrates), a história (Plínio, Homero, Horácio e Péricles) e a realidade
empírica da época de Machado (Artur de Oliveira).
87
III.7. Sílfides, Ninfas e Musas: “A chinela turca”
Por ser o único conto publicado no jornal A Época, “A chinela turca” vem
acompanhada de uma nota de Machado de Assis que fornece detalhes sobre a edição desse
folhetim:
Este conto foi publicado, pela primeira vez, na Época, n.º 1, de 14 de
novembro de 1875. Trazia o pseudônimo de Manassés, com que assinei
outros artigos daquela folha efêmera. O redator principal era um espírito
eminente, que a política veio tomar às letras: Joaquim Nabuco. Posso dizê-lo
sem indiscrição. Éramos poucos e amigos. O programa era não ter programa,
como declarou o artigo inicial, ficando a cada redator plena liberdade de
opinião, pela qual respondia exclusivamente. O tom (feita a natural reserva
da parte de um colaborador) era elegante, literário, ático. A folha durou
quatro números. (ASSIS, 1998, v. 2, p. 529)
Como fica claro, esse folhetim oferecia uma total liberdade de opinião e de criação a cada
colaborador conjuntura aproveitada por Machado de Assis para criar o conto “A chinela
turca”.
A narração apresenta-se em foco heterodiegético e tem como ambientação o ano
de 1850. O bacharel Duarte preparava-se para ir a um baile, encontrar-se com Cecília, com
quem estava namorando pouco tempo, quando um anúncio de uma visita o aterrorizou:
vinha lhe ver o major Lopo Alves, velho amigo da família. Para desespero de Duarte, o major
trazia consigo um drama que acabara de escrever, a fim de que o jovem amigo julgasse sua
qualidade. O drama dividia-se em sete quadros nos quais Duarte percebeu que não havia nada
de novo. Eram quase onze horas, quando o major terminava o segundo quadro. Duarte
estava colérico, não porque era tarde para ir ao baile ver sua amada, mas também pela falta
de qualidade do texto. Nesse momento, o narrador estava preparando o leitor para viver o
sonho que seria, a partir desse ponto da obra, vivenciado pelo bacharel.
88
Pouco após a meia-noite, o major retirou-se, com ódio de seu ouvinte, pois esse
não lhe dera a devida atenção. Minutos depois, Duarte recebia outra visita. Desta vez era um
representante da polícia, que o acusava de furtar uma chinela turca. Esse suposto policial,
acompanhado de mais cinco homens armados, levou o bacharel, à força, até uma casa muito
luxuosa. Nesse local, outro homem relatou a Duarte que não o roubo da chinela fora uma
armação, mas que este seria, além disso, obrigado a casar-se com uma jovem, escrever um
testamento deixando-a como sua herdeira universal e, em seguida, ingerir um tipo de veneno
que o mataria. Com a ajuda do padre que celebraria o suposto casamento, o bacharel
conseguiu escapar do seu cativeiro. Após uma pequena perseguição, ofegante e ferido, caiu
nos degraus de outra casa. Ali estava um homem, lendo um exemplar de um jornal, e que,
portanto, não o viu entrar. Para a surpresa de Duarte, o homem era Lopo Alves. Nesse
momento, o major encerrava a leitura do seu drama e retirava-se em seguida.
A primeira citação mitológica ocorre quando Duarte é apresentado à jovem com a
qual seria obrigado a casar:
Assomando à porta, levantou o reposteiro e deu entrada a uma
mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sílfide,
uma visão de poeta, uma criatura divina. Era loura; tinha os olhos azuis,
como os de Cecília, estáticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam
viver dele. Os cabelos, desleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da
cabeça, um como resplendor de uma santa; santa somente, não mártir,
porque o sorriso que lhe desabrochava os lábios, era um sorriso de bem-
aventurança, como raras vezes de ter tido a terra. (ASSIS, 1998, v.1, p.
228)
A alusão seguinte ocorre quando Duarte, percebendo que as ações que se
estenderam desde o sequestro até sua queda nos degraus foram fruto de sua imaginação,
agradece:
Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma
ruim peça com um sonho original, substituíste-me o dio por um pesadelo:
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foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda
uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco. (ASSIS,
1998, v. 1, p. 231)
Encontramos, portanto, no conto, duas referências à Mitologia: às sílfides (mitologia celta) e à
ninfa (mitologia clássica).
Segundo Koogan e Houaiss, as sífildes (feminino de “silfo”) habitavam o ar, os
bosques e os campos (1995). No Diccionario de la mitología universal y de los cultos
primitivos (1963), as sílfides são definidas como espíritos do Ar, e podem ser tanto malignas
quanto benignas, a depender de como são tratadas pelos homens. Para agradá-las, é necessário
ofertar-lhes ágapes. As sílfides pertencem à mesma família dos gnomos e duendes, sendo,
desse modo, seres da Natureza.
No conto, a mulher do sonho de Duarte é comparada a uma síflide.
Analogicamente ao ente mitológico, essa mulher oferecia tanto o bem (sua beleza e elegância)
quanto o mal (a morte de Duarte).
A segunda referência diz respeito às Ninfas, jovens que povoavam os campos, os
bosques e as águas. Assim como as sílfides, eram consideradas um tipo de divindade
secundária, intercessoras junto às superiores. De acordo com Grimal, “São os espíritos dos
campos e da natureza em geral, de que personificam a fecundidade e a graça.” (2005, p.331).
Nos textos clássicos, os poetas invocavam as Musas, no início da narração, como
fontes inspiradoras. No que diz respeito à estrutura desse tipo de texto, D’Onofrio esclarece
que:
Quanto à sua estrutura, o poema épico é composto de uma parte
introdutória, que compreende a proposição (antecipação do assunto que será
tratado), a invocação (pedido de ajuda à divindade) e, às vezes, a
dedicatória (a um homem ilustre), e da parte chamada de narração. (1995, p.
115, grifo nosso)
90
No texto machadiano, as Musas não são invocadas no início da narração para
auxiliarem na escrita, como era de praxe na Antiguidade. A presença da figura mitológica é
encontrada ao final do conto, quando Duarte agradece às Ninfas por lhe pouparem de ouvir
um texto enfadonho, promovendo, assim, uma “invocação” às avessas. Como afirma Grimal,
um sentido de fecundidade/fertilidade relacionado à figura das Ninfas. A nosso ver, esse
sentido é retomado, de certa forma, no texto, visto que é a fertilidade imaginativa de Duarte
que o faz “ler” (DIXON, 1992, p 100), de uma forma intensa, o texto de Lopo Alves. Essa
alusão às Ninfas seria, portanto, uma das formas de construção da ironia dentro do conto,
visto que Machado de Assis não acreditava que o texto fosse algo que viesse da inspiração,
mas, antes, resultado de um trabalho. Privilegiava, desse modo, a concepção aristotélica
(como atividade prática e “fabricadora”) em detrimento da platônica. Por fim, concordamos
com Ramos (2008), que observou que esse agradecimento às ninfas parece denotar uma visão
dessacralizadora ante as epopeias clássicas.
Outro ponto que destacamos é a similaridade entre Cecília, a amada de Duarte,
que possuía “os mais finos cabelos louros e os mais pensativos olhos azuis, que este nosso
clima, o avaro deles, produzira” (ASSIS, 1998, v. 1, p. 220) e a personagem Cecília, de O
guarani, de José Alencar. Essas duas personagens, além do nome em comum, apresentam o
tipo físico:
Os grandes olhos azuis, meio cerrados, às vezes se abriam
languidamente como para se embeberem de luz, e abaixavam de novo as
pálpebras rosadas.
[...]
Os longos cabelos louros, enrolados negligentemente em ricas
tranças, descobriam a fronte alva, e caíam em volta do pescoço presos por
uma rendinha finíssima de fios de palha cor de ouro, feita com uma arte e
perfeição admirável. (ALENCAR, 1996, p. 18).
Ligado à presença de Cecília, Peri, o herói romântico, também apresenta uma
similaridade com Duarte: ambos, em determinado momento, se veem obrigados a tomar
91
veneno. No caso de Peri, a ingestão é voluntária, e seu sacrifício é resultado de um ardil para
exterminar os inimigos; Duarte, por sua vez, seria obrigado a consumir o veneno após o
casamento forçado. Em crônica de 1877, Machado constrói uma visão da “evolução” literária
por meio das mudanças sofridas pelos heróis:
LIVRO II
AQUILES, ENÉIAS, DOM QUIXOTE, ROCAMBOLE
Estes quatro heróis, por menos que o leitor os ligue, ligam-se
naturalmente como os elos de uma cadeia. Cada tempo tem a sua Ilíada; as
várias Ilíadas formam a epopéia do espírito humano.
Na infância o herói foi Aquiles, - o guerreiro juvenil, altivo, colérico,
mas simples, desafetado, largamente talhado em granito, e destacando um
perfil eterno no céu da loura Hélade. Irritado, acolhe-se às tendas; quando os
gregos perecem, sai armado em guerra e trava esse imortal combate com
Heitor, que nenhum homem de gosto sem admiração; depois, vencido o
inimigo, cede o despojo ao velho Príamo, nessa outra cena, que ninguém
mais igualou ou nem há de igualar.
Esta é a Ilíada dos primeiros anos, das auroras do espírito, é a
infância da arte.
Enéias é o segundo herói, valente e viajor como um alferes romano,
poético em todo o caso, melancólico, civilizado, mistura de espírito grego e
latino. Prolongou-se este Enéias pela Idade Média, fez-se soldadão cristão,
com o nome de Tancredo, e acabou em cavalarias altas e baixas.
As cavalarias, depois de estromparem os corpos à gente, passaram a
estrompar os ouvidos e a paciência, e dsurgiu o Dom Quixote, que foi o
terceiro herói, alma generosa e nobre, mas ridícula nos atos, embora sublime
nas intenções. Ainda nesse terceiro herói luzia um pouco da luz aquileida,
com as cores modernas, luz que o nosso gás brilhante e prático de todo fez
empalidecer.
Tocou a vez a Rocambole. Este herói, vendo arrasado o palácio de
Príamo e desfeitos os moinhos da Mancha, lançou mão do que lhe restava e
fez-se herói de polícia, pôs-se a lutar com o código e o senso comum.
O século é prático, esperto e censurável; seu herói deve ter feições
consoantes a estas qualidades de bom cunho. E porque a epopéia pede algum
maravilhoso, Rocambole fez-se inverossímil; morre, vive, cai, barafusta e
some-se, tal qual como um capoeira em dia de procissão.
Veja o leitor, se não um fio secreto que liga os quatro heróis. É
certo que é grande a distância entre o herói de Homero e o de Ponson du
Terrail, entre Tróia e o xilindró. Mas é questão de ponto de vista. Os olhos
são outros; outro é o quadro; mas a admiração é a mesma, e igualmente
merecida.
Outrora excitavam pasmo aquelas descomunais lanças argivas. Hoje
admiramos os alçapões, os nomes postiços, as barbas postiças, as aventuras
postiças.
Ao cabo, tudo é admirar. (ASSIS, 2004, vol. 3, p. 357-358)
92
A analogia entre Peri e Duarte demonstra essa “adaptação” do herói: Peri enfrenta
corajosamente inúmeras batalhas, além de ingerir veneno para proteger Cecília; Duarte, por
sua vez, como o herói “da época”, é covarde e desajeitado, foge, tropeça e cai. Pensando essa
crônica como idílio das mudanças literárias, e aplicando essa mesma análise ao conto de
Machado, teríamos que, primeiramente, faz-se uma alusão às epopeias, nas quais as Musas
“cantavam” junto ao poeta; passa-se, a seguir, ao romance ultra-romântico de Lopo Alves, e,
por fim, chega-se ao delírio de Duarte, que consistiria uma nova possibilidade ao leitor: a de
participar (reinventar) da narrativa.
No que tange a esse conto, Dixon afirma que é um exemplo da “reivindicação do
sujeito e da subjetividade” (1992, p. 99); logo, “A chinela turca” seria “um discurso sobre o
ato de ler” (p.100). Em outros termos, o texto cumpre duas funções: 1) destaca o ato de
recepção literária; 2) desenvolve uma “teoria da leitura como categoria especial da percepção”
(DIXON, 1992, p. 100). É Duarte que dá vida ao fraco texto de Lopo Alves, transformando-o
de um drama comum em uma interessante aventura. Conforme observa Dixon, para que o ato
da leitura seja completo, é necessário que haja uma espécie de pacto entre o objeto (texto) e o
sujeito (leitor). O autor americano define o que ele chama de lei do livro falho”, declarando
que o texto escrito apresenta uma série de lacunas, espaços para serem preenchidos pela
imaginação do leitor” (idem, p. 100). Foi exatamente isso que Duarte fez: ele preencheu o
texto de Lopo Alves com a sua imaginação. Notamos que a interação entre o texto e o leitor é
tão grande e de tal importância que Duarte não percebe “estar lendo”, à sua maneira o texto
do amigo.
Dixon ainda divide a recepção literária em três etapas: a primeira, com o contato
inicial distante, no qual o leitor tem conhecimento do texto como produto artístico; a segunda
quando o leitor entra” no texto; e a terceira após a leitura, com a contemplação dos fatores
artísticos.
93
Acreditamos, então, que, nas produções machadianas, não a intertextualidade
convida o leitor a preencher as lacunas textuais, mas também “o levam a completar os muitos
esboços sugeridos pelas situações, para que estas adquiram uma realidade própria” (DIXON,
1992, p. 102). Em “A chinela turca”, o observador passa a ser uma personagem dentro do
próprio texto, criando uma realidade paralela. Desse modo, “a saída do autor corresponde à
verdadeira entrada do leitor, à medida que este perde a consciência do texto como artifício, e
começa a participar da ilusão narrativa” (idem, p. 104). Esse seria o verdadeiro ato da leitura:
entregar-se completamente ao texto atualizando-o ou “traduzindo-o”, para nos valermos do
termo de Villaça.
Assim, inspirado pela sílfide/ninfa”, o protagonista do conto realiza uma espécie
de viagem imaginativa, cheia de aventura, como as dos heróis épicos. Segundo sustentamos,
essa fuga imaginativa, de certa forma, introduz uma espécie de alerta dirigido ao leitor
empírico a fim de que ele possa refletir sobre o ato da escrita (construção do texto literário).
No tocante a esse processo, alguns estudiosos apontam, a partir da publicação de Memórias
póstumas de Brás Cubas, uma nova tendência nos textos machadianos: a inserção em sua
práxis literária de uma espécie de convite à crítica literária. Dito de uma outra forma, o
discurso machadiano passa, subliminarmente, a buscar despertar seu leitor. A esse respeito,
Silvia Azevedo afirma que
a intensa auto-reflexividade da obra machadiana – aspecto que a indica como
literatura moderna integra-se a um contexto mais amplo de evolução da
crítica literária brasileira. A partir do momento em que a ficção brasileira faz
da auto-reflexão objeto da própria criação, também na crítica, segundo João
Alexandre, opera-se uma ruptura. (1990, p. 96)
94
É interessante notarmos como Machado passou a educar seu leitor por meio da
própria escrita, buscando torná-lo um leitor crítico
21
, atento. No conto em questão,
percebemos esse fenômeno por meio da leitura metalinguística e também por meio da
retomada dos textos clássicos. Sobre esse aspecto, Lúcia Granja, estudando a crônica
machadiana, notou que a citação funciona
como instrumento de manipulação do leitor, o qual, se desatento, deixar-se-á
iludir pelo uso distorcido que o narrador faz do texto da tradição literária.
[...] O texto literário citado aparece em seu próprio texto para justificar os
fatos comezinhos ou particulares, o que cria a desproporção e acentua a
sátira que ele endereça aos fatos que comenta (ao caráter da personagem que
fica em exposição) e que o deixa, como narrador, em uma posição ao mesmo
tempo elevada e frágil: elevada porque ele é o grande manipulador do verbo;
frágil porque o seu leitor, se não for ele próprio frágil, perceberá as
manobras de que se serve o narrador para compor a sua manipulação, das
quais, ele mesmo, deixa uma pontinha em exposição. (GRANJA, 2000, p.
97-98)
Baseados na afirmação acima, julgamos que, nesse conto (e em outros), o
narrador procede a um uso distorcido da tradição literária visando atender suas necessidades
bem como dois de seus objetivos: manipular o leitor desatento e despertar o leitor crítico.
Machado, dessa forma, une o clássico, aqui representado pelas Ninfas/Musas e
Sílfides, que nos reenviam às epopeias, ao comezinho, representado pelo ssimo drama (não
original) de Lopo Alves. As epopeias, legado da Cultura Clássica, eram praticamente sagradas
e narravam os grandes feitos dos heróis. Eram, no entanto, textos “fechados”, ou seja, não
propiciavam ao leitor a oportunidade de participar da narrativa. O drama escrito por Lopo
Alves permite, por sua vez, que o leitor participe do ato de criação, como o fez Duarte,
exemplificando o processo de leitura “autorreflexiva” que permeia os textos machadianos.
21
Grosser (1986, p. 17-27) tece considerações sobre o pacto narrativo que se estabelece entre leitor e autor,
distinguindo três modalidades de leitores: o ingênuo (aceita a obra como verdadeira), o disponível (ciente que a
história é fictícia, mas disposto a deixar a leitura fluir) e o crítico (leitor analítico que se prende a fatos ou trechos
na busca de relações e significados).
95
III.8. A paideia inversa: “Teoria do medalhão”
Publicado inicialmente em 18 de dezembro de 1881, na Gazeta de Notícias, o
conto “Teoria do Medalhão” descreve o diálogo entre um pai e seu filho Janjão, na noite em
que este completa 21 anos.
Após o jantar comemorativo, agora sozinhos, o pai passa a aconselhar ao filho que
se torne um medalhão
22
, explicando-lhe, então, como proceder. Explica que senecessário
que ele passe a viver sob uma máscara, anulando os seus gostos pessoais e atitudes. Disserta
sobre a necessidade de sempre manter-se neutro, usar e abusar de palavras sem sentido,
conhecer pouco, ter vocabulário limitado. Os conselhos continuam: deve-se fugir da filosofia,
da imaginação, da reflexão, do riso, e, principalmente, nunca empregar a ironia, que o
narrador (pai de Janjão) define como: “esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios,
inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido por Swift e
Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados” (ASSIS, 1998, v. 1, p. 337). O filho avisa
que passa da meia-noite; o pai o parabeniza e diz para dormirem, pois, assim, o jovem pode
“ruminar” as ideias, que valem tanto quanto o Príncipe, de Maquiavel.
Daniel Piza transcreve a recepção desse conto na época de sua publicação na
imprensa. O texto original, de autoria de Araripe Junior, foi publicado na Gazeta da Tarde,
em 28 de outubro de 1882:
De quanta utilidade não seria pararmos, refletirmos nas verdades que
se encerram naquela notável Teoria sobre o Medalhão [sic], em que o
filósofo poeta estampa um dos característicos fatores da nossa decadência?
Acaso não esna consciência de todos que a nossa máquina governamental
move-se por um impulso longos anos adquirido? Que os homens que
entram na composição dos gabinetes são peças que substituem outras
gastas e que quando penetram na engrenagem não aparecem como elemento
22
Indivíduo importante; figura de projeção; profissional de destaque. Ou ainda, indivíduo posto em posição de
destaque, mas sem mérito para tal. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1876)
96
novo, senão [...] para a manutenção do ritmo costumeiro? (PIZA, 2005, p.
226)
Tomando por base a opinião de Araripe Junior e refletindo acerca da analogia
criada pelo narrador com O príncipe, texto fundamental da Teoria Política, acreditamos,
assim como Villaça, que há uma atualização dessa teoria, contextualizada no Brasil, na época
de Machado de Assis:
Dito de outro modo: os séculos que correram entre os principados
italianos e a monarquia brasileira não alteraram em substância os
procedimentos do poder, que unem Maquiavel ao pai de Janjão, e a conduta
recomendada a este à indicada a Lorenzo de Médicis. (VILLAÇA, 2008, p.
53)
Como se sabe, O príncipe é composto de 26 capítulos e uma dedicatória a
Lorenzo de Médicis. Nesse tratado, por meio de conselhos e ponderações, Maquiavel expressa
seu desejo de um monarca determinado, com pulso firme e que não tenha escrúpulos ou não
meça esforços para defender seu reino. Portanto, como afirmou Machado, “guardadas as
proporções”, ambos os textos expressam a maneira pela qual se pode atingir uma certa forma
de projeção social.
Bosi, por sua vez, alerta que “Quanto aos conselhos, visam a mostrar que as
expressões clássicas e as frases feitas compõem uma linguagem cômoda que substitui o
pensamento pela forma verbal: tática para obter o consenso do próximo.” (1982, p. 137).
Acerca dos conselhos, é importante notar que, ao mesmo tempo em que o pai orienta Janjão a
seguir regras rígidas de um “regime debilitante” (VILLAÇA, 2008, p. 39), age, claramente, de
maneira oposta, cultivando o uso da ironia, da crítica, da criação etc., contrariando, portanto,
os próprios ensinamentos. Acreditamos que esse procedimento de aconselhar desrespeitando
os próprios conselhos seja uma das maneiras de construir a ironia no texto.
97
Ao estudar o conto “Um homem célebre”, no qual Pestana, pianista, almeja criar
uma obra-prima clássica, José Miguel Wisnick afirma que essa personagem possui uma
“disposição interior incontrolável que o empurra implacavelmente na direção oposta” (2004,
p.17), sendo apenas capaz de criar polcas:
E balanceia o ponto insolúvel dessa singular celebridade: o
sucesso é inseparável do fracasso íntimo, e tanto maior este quanto maior o
seu contrário, que, afinal, quanto mais mira o alvo sublime mais Pestana
acerta, inapelavelmente, no seu buliçoso avesso. (WISNICK, 2004, p. 18)
Conforme podemos observar, a glória pública da personagem Pestana (o sucesso
das suas polcas) constitui seu próprio fracasso íntimo: a incapacidade de criar a obra
almejada. Acreditamos que na “Teoria do Medalhão” ocorre um processo análogo; logo, a
glória pública (tornar-se medalhão) resulta do fracasso interior do “eu”. Para alcançar a
projeção social almejada, Janjão deverá renunciar o “eu”, visto que para que se torne
medalhão é necessária “aquela plenitude do vazio interior” (BOSI, 1982, p. 444).
A respeito das referências à Mitologia Clássica, a primeira encontra-se no
momento em que o pai discorre sobre o empobrecimento da linguagem, ao o que o filho
exclama:
- Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...
- Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas: a hidra
de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de
Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar
23
,
quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres,
brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os
discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant,
consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi de Si vis
pacem para bellum
24
. (ASSIS, 1998, v. 1, p. 332)
23
Sinônimo de revés e tribulação e antonímia de elegância. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 956)
24
Caveant, consules: “Acautelem-se, ó nsules”. Si vis pacem para bellum: “Se quer paz, prepare-se para a
guerra”, segundo nota de rodapé (ASSIS, 1998, v. 1, p. 332).
98
Ainda aconselhando o filho a tratar as coisas de uma maneira superficial, o pai
afirma ser contra os processos modernos. Encontramos aí a última referência à Mitologia:
- Vejo por que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de
processos modernos.
- Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O
mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la.
Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus
Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser
medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. (ASSIS, 1998,
v. 1, p. 333)
A primeira citação mitológica é a da Hidra de Lerna, derrotada por Hércules em
seu segundo trabalho. A Hidra era um monstro aquático, representado como uma serpente
com um número variável de cabeças entre cinco e cem sendo uma imortal. Esse monstro
vivia no pântano de Argos. Hesíodo narrou seu nascimento da seguinte maneira:
A seguir gerou Hidra, sábia do que é funesto
e em Lerna nutriu-a a Deusa de alvos braços Hera
por imenso rancor contra a força de Heracles;
matou-a o filho de Zeus com não piedoso bronze,
Heracles Anfitrionida, com o dileto de Ares
Iolau, por desígnios de Atena apresadora.
(HESÍODO, 2007, p. 119, v. 313-318)
A cada cabeça que Hércules decepava, duas novas nasciam em seu lugar. Para
conseguir cumprir sua tarefa, Hércules queimava, imediatamente, com fogo, o local do corte
para que este cicatrizasse. Sobrou então apenas a cabeça imortal, a qual o herói enterrou sob
uma enorme rocha, recebendo a ordem de sempre vigiá-la.
A segunda citação é a da cabeça de Medusa
25
, decepada por Perseu, que, para
alcançar esse feito, contou com a ajuda dos deuses e com o uso de muita inteligência e
coragem. As três irmãs Górgonas habitavam no Extremo Ocidente, não muito longe do reino
dos mortos. Perseu, instigado pelo tirano Sérifo, parte para o Ocidente em busca de Medusa.
25
Uma parte do mitema de Medusa foi discutido no item III.2.
99
Após muitas aventuras, o herói chega ao seu destino. Para cumprir sua missão, primeiramente,
faz uso da sandália alada, presente de Hermes; por conseguinte, para cortar a cabeça da
górgona, segue o conselho da deusa Atena de não fitá-la diretamente. Utiliza, dessa forma, o
estratagema de olhá-la a partir da imagem refletida no escudo. Temos abaixo a narração que
Hesíodo faz do nascimento e da morte de Medusa:
Gerou Górgonas que habitam além do ínclito Oceano
os confis da noite (onde as Hespérides cantoras):
Esteno, Euríale e Medusa que sofre o funesto,
era mortal, as outras imortais e sem velhice
ambas, mas com ela deitou-se o Crina-preta
no macio prado entre flores de primavera.
Dela, quando Perseu lhe decapitou o pescoço,
surgiram o grande Aurigládio e o cavalo Pégaso;
tem este nome porque ao pé das águas do Oceano
nasceu, o outro com o gládio de ouro nas mãos.
(2007, p. 117, v. 274-283)
O filho de Zeus mostrou-se também muito prudente, pois, ainda que auxiliado
pelos deuses, esperou que Medusa adormecesse para, então, matá-la. Mesmo depois de
decepada, quem olhasse diretamente para a cabeça da górgona era petrificado. Ovídio narra o
poder do venenoso sangue de Medusa:
Mas Perseu vinha trazendo de volta o assombroso troféu
Do Górgone, o monstro com cabeças de serpente. Enquanto voava
Por sobre as areias da Líbia, gotas de sangue pingaram
da cabeça do Gorgone
E mancharam o chão. A terra as recebia
E as transformava em víboras. Por essa razão,
A Líbia, hoje, está cheia de serpentes mortíferas.
(2003, p. 89)
A terceira citação é a do tonel das Danaides, nome que se refere ao suplício ao
qual foram condenadas as filhas de Dânao. O irmão gêmeo de Dânao, Egipto, tinha cinquenta
filhos, que foram instruídos a se casarem com as cinquenta Danaides. Contudo, nem estas
nem seu pai queriam os casamentos. Dânao preferiu, então, fugir em direção a Argos, para
100
onde os filhos de Egipto o seguiram. A fim de evitar uma guerra em Argos, Dânao concordou
que as filhas se casassem. Não acreditando, porém, nas intenções dos sobrinhos, deu a cada
uma delas uma adaga, e mandou que os matassem na noite de núpcias. Todas cumpriram o
combinado, excepto Hipermnestra. À sua atitude relacionam-se duas possíveis explicações: a
primeira expõe que a filha de Dânao havia se apaixonado por Linceu, seu marido; a segunda
aponta o fato de Linceu tê-la respeitado na noite de núpcias, o que a teria feito ser tomada de
compaixão e perder a coragem de matá-lo, ajudando-o a fugir. As cabeças dos maridos foram
enterradas em um pântano em Lerna. As Danaides que os assassinaram foram punidas no
Hades: para todo o sempre encheriam de água um tonel com furos, por onde a água voltaria a
sair. Esse constituiu um dos suplícios mitológicos mais conhecidos (GRIMAL, 2005, p. 110).
A punição recebida no Hades consistiu em carregar água em vão, uma vez que o tonel jamais
seria cheio. Em uma possível leitura, temos que, como a água é o símbolo da purificação, seu
desperdício significa o desperdício da purificação as Danaides, desse modo, jamais seriam
purificadas.
também, sobre as Danaides, outro mito relacionado à água. Segundo Grimal,
quando Dânao e suas filhas instalaram-se em Argos, o país estava privado desse líquido, o
que levou o rei a pôr suas cinquenta filhas à procura de água. Cansadas da busca, sem
conseguirem seu intento, adormeceram no campo. Enquanto dormiam, um sátiro tentou
violentar uma delas, Amimone. Posídon, no entanto, defendeu a jovem e revelou-lhe a
existência da fonte de Lerna (GRIMAL, 2005, p. 24).
A última citação mitológica desse conto é sobre as asas de Ícaro. Dédalo fizera
dois pares de asas a fim de que ele e o filho escapassem do labirinto de Creta. Como esse
labirinto havia sido por ele mesmo projetado, Dédalo sabia que a única saída seria voar dali.
Para que as asas fossem confeccionadas, Dédalo colecionou penas de pássaros de diversos
tamanhos, fixando-as com cera e encurvando-as delicadamente para que a estrutura se
101
assemelhasse inteiramente a uma asa. Seu filho, Ícaro, o ajudava nessa tarefa. Depois de
prontas, Dédalo prendeu-as em Ícaro e ensinou-o a voar, aconselhando-o:
Preste atenção, Ícaro. Quando você se lançar ao ar,
Não voe muito baixo, ou a água molhará as penas desta asa e
elas pesarão e você cairá.
E não voe muito alto, ou o calor do sol as queimará.
Fique sempre no meio termo. E mais uma coisa,
Não se iluda pensando que é uma estrela ou constelação,
Siga a minha orientação! (OVÍDIO, 2003, p.162)
Enquanto voava, Ícaro, esquecido dos conselhos paternos, elevou-se muito alto, e os raios
quentes do sol fizeram com que a cera derretesse. Como prenunciado por seu pai, as asas
dissolveram-se. O jovem caiu no mar e, por conseguinte, morreu afogado.
Conforme vimos anteriormente, nesse trecho a reunião de quatro “mitemas”,
visto que as referências acima caracterizadas não retomam os mitos de forma completa, mas,
antes, recuperam determinados temas” dentro desses mitos. Não se retoma, assim, toda a
aventura de Hércules, Perseu ou Ícaro, mas somente o “mitema” da Hidra de Lerna, da
decapitação de Medusa, da fuga de Ícaro, ou, ainda, o suplício imposto às Danaides e o
motivo que o legitima.
A nosso ver, a reunião das citações mitológicas no parágrafo do texto machadiano
induz a uma reflexão sobre os conselhos do pai de Janjão, pois, conforme mostrado pelos
mitos, a sabedoria e a inteligência vencem. Temos como exemplo o herói Hércules, que,
apesar de sua força física, vence a Hidra de Lerna por meio da inteligência; o mesmo acontece
com Perseu, que somente derrotou Medusa por meio do um estratagema.
Uma forma de ironia utilizada por Machado consiste na seleção de personagens
mitológicos que perderam literalmente suas cabeças. Acreditamos que seja um emprego
irônico, pois, no conto, o pai de Janjão o aconselha a agir de forma a “vencer na vida”, pondo,
assim, de lado sua inteligência, sua sagacidade, sua “cabeça”, tal qual a Hidra, a Medusa, e os
102
maridos das Danaides, que tiveram as cabeças decepadas. Ícaro, por sua vez, não teve juízo,
ou, popularmente falando, não teve “cabeça” e, por isso, acabou perdendo a vida.
Ainda pensando sobre o aconselhar paterno, introduzimos a questão da paideia,
não há uma palavra correspondente em português para tal conceito, seria a reunião dos
sentidos de criar, instruir, cuidar, nutrir, produzir e tratar.
Na Grécia Antiga, a educação dos jovens primava por essa paideia, ou seja, “a
formação dum elevado tipo de Homem” (JAEGER, 1936, p. 6). Fundamentada naquela
sociedade artista e pensadora, a paideia objetivava a formação da mais alta obra de arte: o
homem vivo. Para isso, a educação deveria ser um processo de construção consciente, na qual
a essência dessa educação consistia na modelagem dos indivíduos pela norma da comunidade.
Também era comum que os jovens possuíssem um tutor que os aconselhava e os
guiava na paideia. No conto em questão, vemos um resgate dessa figura do tutor no pai que
aconselha o filho. Destacamos, no entanto, a natureza contrária dos conselhos do pai de
Janjão, que não buscam formar um homem ético, quanto menos pensante e criador. Busca, na
verdade, formar uma “carcaça” cujo objetivo é, primordialmente, o prestígio social. Outro
ponto contrastante consiste no fato de que o homem grego primava por servir a comunidade.
Diferentemente, é indiscutível a natureza dos conselhos do pai, que visam, estritamente, ao
“crescimento” individual. Por outro lado, não é dada a Janjão a possibilidade de desacatar
esses conselhos, pois, como vimos, a personagem do pai é detentora de uma grande
autoridade (como um tutor grego), não consentindo, por conseguinte, abertura para o
questionamento. Corrêa (2008), ao estudar a influência bíblica no conto em questão, esclarece
que a autoridade do pai é colocada no mesmo nível que a autoridade de “Deus”. O estudioso
notou esse fato na referência “leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar
na terra prometida!” (ASSIS, 1998, v. 1, p. 335). Assim como o pai faz recomendações ao
filho Janjão, “Deus” aconselha Josué sobre o regime que o povo hebreu deve seguir para
103
chegar à terra prometida. Outra figura paterna no conto é Dédalo, que ensina o filho a voar,
além de aconselhá-lo como ser prudente. No entanto, Ícaro, por não levar em consideração as
recomendações do pai, teve um desfecho trágico. A nosso ver, essas analogias reforçam a
autoridade representada pelo pai no conto “Teoria do medalhão”.
É necessário que abordemos, ainda, a última citação mitológica. Grimal nos
informa que o deus Término, essencialmente imutável, era uma divindade romana que se
identificava com os marcos das terras (2005, p. 438). Deus dos pastores, gênio dos campos e
bosques e, portanto, entidade agrária, segundo Pati (1972), era o vingador no caso de
usurpações. Concordamos com Gledson quando afirma que essa alusão tem uma “estreita
relação com a palavra terminologia” (ASSIS, 1998, v.1, p. 333), visto que o pai aconselha
Janjão a decorar a terminologia científica. Em nossa opinião, entretanto, a expressão “certa
atitude de deus Término” seria a chave para que o filho conseguisse se tornar um medalhão.
Seria necessário, portanto, tornar-se imutável, afastar-se do campo das ideias e não ultrapassar
as fronteiras estabelecidas pelo pai.
Ante o complexo processo de narração de “Teoria do Medalhão” e suas
intermitências, seria impossível não nos determos na famosa “ironia machadiana”. Villaça, no
entanto, nos alerta como o desenvolvimento da ironia nesses textos pode ser dúbio:
Levar a sério, em uma recepção sem contrastes, os ensinamentos do pai é
identificar-se com o estado passivo da “inópia mental” de Janjão; mas
recusá-lo como golpes de cinismo inconseqüente é também recusar o
indiscutível lastro de realidade acusado no tipo e no meio que lhe
corresponde. Parece que Machado nos obriga, aqui como sempre, a trilhar
uma terceira via, muito própria dele, na qual a estabilização do sentido é
quase impossível, dada a mescla, em tom de descompromisso, entre o
avanço do humor e a implacabilidade da análise. Essa paradoxal combinação
de dispersão e de pontaria, de divertissement e de totalização, constitui a
base tonal, estilística e ideológica do mestre (2008, p.45).
Como bem destacou Villaça, esse conto é caracterizado pelo tom paradoxal tanto
do texto em geral quanto das suas referências à Mitologia Clássica. Ao citar as figuras
104
mitológicas que tiveram um final trágico, Machado de Assis promove o inverso do esperado,
visto que, quando se quer incentivar uma pessoa, é mais provável que sejam utilizadas figuras
vitoriosas e não o contrário.
Por fim, Machado de Assis uniu, mais uma vez, o clássico (paideia) ao comezinho
(conselhos do pai). O discurso do pai busca, dessa forma, constituir a formação de Janjão,
assim como era feito durante a Antiguidade Clássica, quando um jovem recebia conselhos de
seu tutor, de seu pai ou de um sábio. Ora, como dissemos, essa retomada é realizada de forma
inversa, dado que os conselhos o visam tornar o filho um homem ético e, menos ainda,
criador; muito pelo contrário, busca somente a realização social e econômica, tendo, para isso,
que abdicar de qualquer tipo de ideologia, reflexão, liberdade de escolha ou poder criador. Em
resumo, tendo que abdicar completamente de si mesmo, abdicar completamente do “eu”.
105
III.9. Do pomo da concórdia ao deus Término: a Antiguidade Clássica em Papéis avulsos
Ao concluirmos a etapa das análises às referências à Cultura Clássica em Papéis
avulsos, destacamos, de modo geral, que, em “O espelho”, verificamos as duas faces do pomo
da discórdia/concórdia, evidenciando as faces da curiosidade, que pode acalmar (conto) ou
incitar (Guerra de Troia). Em “Verba testamentária”, notamos a analogia entre Platão
(filósofo que contribuiu sobremaneira para a formação do pensamento moderno) e Candiani
(prima-dona italiana, representante da ópera no Brasil) feita por meio do reconhecimento
público. Em “D. Benedita” há também uma analogia, nesse caso, feita por meio da
comparação superficial da aparência da protagonista, de Vênus e de Medusa. Em “O
empréstimo”, o narrador se compara a neca e a Carlyle, unindo, dessa forma, o discurso
sério do filósofo a textos cômicos/satíricos como o de Carlyle e o do próprio Machado.
Continuando, em “O alienista”, o paradoxo brasileiro é evidenciado não apenas
nas analogias entre Cícero, Apuleio e Tertuliano e um interno de um manicômio, mas também
nas analogias entre Catão (heroico) e o boticário (individual). Em “A Sereníssima República”,
destacamos a comparação entre Penélope e a sociedade de aranhas falantes, analogia essa que
convoca o mito de Ulisses, de Aracne e a História de Veneza, convergindo no sistema
eleitoral brasileiro. Em “Uma visita de Alcibíades”, a reencarnação (literal) do general
ateniense homônimo, devido a um motivo imensamente trivial: o vestuário. Com esse “mote”,
Machado põe em evidência como cada época tem seus representantes em todos os ramos da
humanidade no caso específico desse conto, a religião (teogonia pagã, na época clássica;
espiritismo, na época de Machado).
Além disso, em “O anel de Polícrates”, destacamos o entrelaçamento entre a
ficção (Xavier), a mitologia (Polícrates), a história (Plínio, Homero, Horácio e Péricles) e a
realidade empírica da época de Machado (Artur de Oliveira). Em “A chinela turca”, com a
106
invocação feita às Ninfas/Musas e Sílfides, acreditamos que há, uma vez mais, o intuito de
ressaltar como cada época possui seu representante ideal; assim, na época de Machado, as
epopeias deram lugar aos romances. Por último, em “Teoria do medalhão”, destacamos de
que maneira o discurso do pai, fundamentado na Mitologia Clássica (Hidra de Lerna, Medusa,
Danaides, Ícaro e Término), busca constituir a formação de Janjão, ecoando inversamente a
paideia grega. Por meio da análise das referências à Cultura Clássica, julgamos que as
analogias nos textos machadianos fixam-se nos paradoxos, pois
é exatamente de uma fulgurante configuração de extremos opostos,
nucleada pelo erudito e pelo popular, percebida no fulcro da
experiência cultural brasileira e submetida a uma dialética vertiginosa
de sentidos que se multiplicam e se anulam, que Machado extrai a
visão de uma totalidade que se entende como logro complexo, isto
é, através da possibilidade de uma “coexistência plena de sentido” nos
contrários. (WISNICK, 2004, p. 95)
Buscamos demonstrar, em todos os contos, como Machado de Assis, por meio
dessas referências acima expostas, conseguiu unir o clássico, supostamente tido como
superior, ao comezinho brasileiro. Dessa forma, pudemos comprovar que o diálogo constante
com outros textos é um dos motores que movem os contos estudados. Pudemos verificar
também que essa tessitura se constrói como “o todo da interação entre várias consciências”
(BAKTHIN, 2005. p. 17), se considerarmos que cada empréstimo traz em si uma consciência
diferente, que deve ser contraposta àquela do texto que a toma, no momento do
reconhecimento da alteridade, ou melhor, da intertextualidade, e da interpretação mais
profunda que o diálogo entre textos e culturas acarreta. Logo, no caso das referências à
Cultura Clássica, acreditamos que os contos de Papéis avulsos o construídos por um
discurso que ressoa outros discursos em seus “empréstimos vários” (PASSOS, 1996a, p. 144).
Mostramos, ainda, que, nos escritos machadianos aqui estudados, a
intertextualidade, a “autorreflexividade” e a integração da crítica literária ao texto narrativo,
107
objetivam, como acredita Azevedo, a “educação do leitor” (1990), transformando-o de
disponível a crítico,
26
tornando-o, como resultado desse processo, segundo Ramos (2001), em
questionador dos mais diversos aspectos envolvidos na criação literária.
Por fim, o diálogo intertextual travado entre a Cultura Clássica e Papéis avulsos
demonstra a preocupação do autor brasileiro em despertar uma consciência crítica em seu
leitor.
26
GROSSER, 1986, p. 17-27.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No início da nossa pesquisa, propusemos-nos a, primeiramente, expor a
importância da coletânea por nós escolhida como nosso corpus, apresentando para tanto os
estudos de Bosi, Piza e Gledson. A seguir, passamos a tecer comentários acerca das bases
teóricas que nos sustentaram tanto no tocante à Intertextualidade (Bakhtin, Kristeva, Jenny e
Compagnon) quanto à Mitologia (Chauí, Eliade, Fiker e Lévi-Strauss). Retomamos, então,
alguns estudos sobre a Intertextualidade em obras de Machado de Assis, como os efetuados
por Eugênio Gomes, Gilberto Pinheiro Passos, Marta de Senna, Lúcia Granja, entre outros,
demonstrando a importância desse tipo de pesquisa para os estudos literários. Chegamos, por
fim, às análises das referências à Cultura Clássica em Papéis avulsos, nos contos “O espelho”,
“Verba testamentária”, “D. Benedita”, “O empréstimo”, “O alienista”, “A Sereníssima
República”, “Uma visita de Alcibíades”, “O anel de Polícrates”, “A chinela turca” e Teoria
do Medalhão”.
Cumprimos, dessa forma, o objetivo geral de nossa pesquisa: levar a uma
compreensão da função do diálogo intertextual entre a Cultura Clássica e o discurso
machadiano em Papéis avulsos, em suas diferentes formas. Cumprimos igualmente os
objetivos específicos: arrolar, caracterizar e descrever as referências apresentadas, propondo
uma reflexão sobre as relações que as narrativas curtas machadianas estabeleceram com os
textos clássicos, além de analisar o diálogo intertextual em diversos níveis, avaliando de que
forma essa tessitura pôde colaborar com a construção da ironia; revelar e/ou apurar como o
trabalho intertextual colaborou com a composição dos contos, buscando denotar fatos novos a
respeito do processo de composição literária do corpus.
109
Confirmamos, assim, nossa hipótese de que Machado de Assis buscou evidenciar
o paradoxo brasileiro ao contrapor a Cultura Clássica, buscada em textos literários gregos e
romanos, à Cultura Brasileira de seu tempo, que almejando ser como a européia, deixava de
expressar o real, o comezinho da vida diária brasileira para enganar-se com modelos
inatingíveis. Com isso, o escritor brasileiro também promoveu um apequenamento”
(PASSOS, 1996a) do discurso elevado e da tradição clássica, propiciando um convite à
reflexão, comum aos discursos filosóficos. Pudemos verificar, também, que o uso desse
recurso não pretendeu somente um rebuscamento de estilo, não foi uma simples inserção de
adornos, como aconselhava o pai de Janjão no conto “Teoria do Medalhão”.
Demonstramos que a presença de muitos outros discursos da tradição pode
proporcionar ao leitor crítico uma perspectiva autorreflexiva. Acreditamos, dessa forma, que,
com Papéis avulsos, Machado de Assis ainda comprovou que a Literatura, para ser nacional,
não precisava abordar somente temas indianistas ou indígenas, mas, antes, adaptar-se às
questões do seu tempo, ou concentrar-se em qualquer outro tema, conservando-se, como ele
mesmo afirmou, um “homem do seu tempo”.
A nosso ver, o constante diálogo intertextual travado no discurso de Papéis
avulsos, isto é, o convocar a presença do outro – e no nosso caso, o outro é a Cultura Clássica,
que reúne os mitos, fatos, obras e nomes ligados aos autores e personalidades importantes da
Antiguidade constrói a retórica autorreflexiva machadiana, apontada por muitos
estudiosos de sua obra ao focalizarem outros aspectos.
Ao trazer em seu seio outras narrativas ou referências, o texto produzido desperta
o leitor disponível a tornar-se crítico, utilizando um discurso metalinguístico ou autorreflexivo
em um diálogo que faz recircular. Por fim, acreditamos que esse fenômeno ocorra em Papéis
avulsos, uma vez que a construção do discurso caminha no sentido de se mostrar como
representação, com o propósito claro de desnudamento do processo de construção da obra, ao
110
trazer encaixados, metonimicamente em si, trechos de outras obras, referências a outras
narrativas já tão difundidas.
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