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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
É tudo verdade?
A exploração no documentário e o documentário de
exploração.
Lúcio De Franciscis dos Reis Piedade
CAMPINAS – 2007
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
Doutorado em Multimeios
É tudo verdade?
A exploração no documentário e o documentário de
exploração.
LÚCIO DE FRANCISCIS DOS REIS PIEDADE
Tese apresentada ao Curso de
Doutorado em Multimeios do Instituto
de Artes da UNICAMP como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Doutor em Multimeios sob a
orientação do Prof. Dr. Marcius César
Soares Freire.
CAMPINAS – 2007
ii
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Dedico esse trabalho à minha mulher Lucia,
pela extrema paciência e por ter agüentado
esse longo período de ausências e
sobrecargas; e aos meus filhos Lúcio (que
contribuiu, auxiliando nas traduções de
textos) e Mariana.
iii
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P595e
Piedade, Lucio DeFranciscisdos Reis.
É tudo verdade? A exploração no documentário e o
documentário de exploração / Lucio De Franciscis dos Reis
Piedade. - Campinas, SP: [s.n.],2007.
Orientador: MarciusCesar SoaresFreire.
Tese(doutorado)- UniversidadeEstadualde Campinas,
Instituto de Artes.
1.Documentário(Cinema).2. Cinema-História.3. Filmes
cinematográficos-Exploração.I. Freire, MarciusCesar Soares.
11.Universidade Estadualde Campinas.InstitutodeArtes. lU.
Título.
(em/ia)
Título em ingles:" Is it all true? Exploration in documentary and exploitation
documentary"
Palavras-chaveem inglês (Keywords):Documentaries(Motionpictures). Motion pictures-
History.Movies-Exploration.
Titulação: Doutor em Multimeios
Banca examinadora:
Prof. Dr. Marcius Cesar SoaresFreire
Prof. Dr. Bemadette Lyra
Prof. Dr. Rosana Soares
Prof. Dr. FranciscoElinaldoTeixeira
Prof. Dr. Nuno César Abreu
Prof. Dr. RogérioFerraraz (suplente)
Prof. Dr. RobertoBerton (suplente)
Data daDefesa:21-08-2007
ProgramadePós-Graduação:Multimeios
11
Instituto de Artes
Comissão de Pós-Graduação
Defesa de Tese de Doutorado em Multimeios, apresentada pelo
Doutorando Lúcio De Franciscis dos Reis Piedade
-RA 000122
como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor,
perante a Banca Examinadora:
rota. Dra. Maria Berna
Membro Titular
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Prota. Dra. Rosana de Lima Soares
Membro Titular
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Agradecimentos
De todo o coração agradeço à Universidade Estadual de
Campinas, casa que me acolheu; e à Pós Graduação em Multimeios do
Instituto de Artes, que deu oportunidade para que desenvolvesse esta
tese. Do mesmo modo sou profundamente grato ao suporte da CAPES,
que através da bolsa concedida, deu importante incentivo para a parte
final do trabalho.
Ao meu Orientador, Prof. Dr. Marcius Freire, não só pelo seu
interesse pelo projeto, mas por sua inestimável orientação ao longo de
toda a minha jornada, iniciada ainda no Mestrado. Suas considerações
e observações minuciosas foram fundamentais para o rumo e forma
que tomou a pesquisa.
Por fim, muito tenho a agradecer ao colega e amigo de todas as
horas, Alfredo Suppia, pelo apoio e pelos bate-papos. Com certeza,
aquela cervejinha de fim de tarde foi de grande ajuda nos momentos
mais difíceis.
iv
Resumo:
O trabalho parte da idéia de que desde os primeiros registros
com imagens até o estabelecimento do filme como instrumento de
pesquisa no campo da antropologia, uma busca pelo incomum, pelo
exótico, se constituiu na base de apoio de uma grande parte do cinema
documentário. Desse modo, alguns ingredientes geralmente
considerados como atributos de um “gênero” cinematográfico conhecido
como filmes exploitation também fazem parte de uma porção importante
do cinema documentário. A pesquisa pretende mostrar que, na
verdade, o bizarro e o exótico sempre estiveram presentes, desde o
início, nos registros do “mundo histórico” com imagens em movimento.
A diferença é que, apesar desses filmes que configuram a vertente
principal ou mais relevante do cinema documentário serem objeto de
estudos exaustivos, notadamente nas duas últimas décadas, os
aspectos que aqui ressaltamos até recentemente vinham sendo
deixados de lado. Do mesmo modo são colocados à margem e
desprezados enquanto objetos de estudos seus congêneres menos
afortunados: as produções categorizadas como mondo ou exploitation
que apresentam em seu cerne as estruturas narrativas comuns ao
documentário “sério”, inclusive neles se encontrando os vários modos
de representação atribuídos ao gênero. O que vai confirmar que os
filmes alinhados à vertente da “exploração” se apropriaram das mesmas
bases formais do cinema documentário, só que evidenciando em sua
linha narrativa a ênfase em aspectos espetaculares, elementos que
sempre estiveram presentes nos documentários considerados mais
importantes sob o ponto de vista acadêmico. Sendo assim, o objetivo
principal do trabalho foi trazer à luz a exploração no documentário,
v
partindo de suas origens nos filmes exóticos e no nascente cinema
exploitation, resgatando a sua história e tentando estabelecer as
relações existentes entre o registro documental e seu apelo por cenas
impactantes. Chegando até a sua posterior e definitiva assimilação, que
terminou desaguando no atual e até certo ponto desconcertante cortejo
de produtos áudio visuais, todos devedores da forma de abordagem e
estética dos documentários de exploração. O que nos levou a confirmar
que a espetacularização dos aspectos sobre os quais nos debruçamos
no correr do trabalho – o exotismo, o inusitado e o grotesco – se tornou
a forma dominante atualmente no documentário.
Palavras-chave:
Cinema Documentário – História do Cinema – Exploração
vi
Abstract:
This work investigates the idea that a quest for the uncommon
and exotic supports a significant portion of the documentary cinema,
since the first registers of images in movement until the recognition of
movies as an important tool in anthropology research. So that, some
ingredients generally considered as attributes of a cinematographic
genre – the exploitation films - are also found in an important portion of
the documentary cinema. This research aims to show that, actually, the
bizarre and exotic have been present since the earlier registers of the
historical world with images in movement. Although these films that
configure the mainstream of the documentary cinema have been object
of exhausting studies - notably over the last decades - the aspects that
we stand out here has being almost ignored until recently. Similarly, less
fortunate congeners of "serious" documentary cinema, which are
productions categorized as mondo or exploitation, are also rejected as
object of study. What confirms that the films lined up to the rank of the
exploration had appropriated the same formal bases of the documentary
cinema, evidencing in its narrative line the emphasis on spectacular
aspects, elements that had always been presents in documentaries
considered more important under an academic point of view.
The main contribution of this work is to bring to light the
exploration in the documentary films, since its origins in the exotic films
and the rising of exploitation cinema, rescuing its history and trying to
establish the existing relations between the documentary register and its
appeal for shocking scenes. This relation strengthened until the
definitive assimilation in the current and – to a certain degree -
disconcerting procession of audiovisual products, all debtors from
exploration documentaries’ approach and aesthetic. This support our
vii
conclusion that the over exhibition of the aspects on which we lean over
- the exotic, the unusual and the grotesque - currently became the
dominant form in the documentary film.
Key Words:
Documentary Films – History of the Movies – Exploration
viii
Sumário:
Introdução ……………………………………………………............................…pg. 11
Capítulo 1: Considerações Iniciais…………………...............................……….pg. 18
Capítulo 2: Exploradores e Colonizados – a visão colonialista e a exploração no
documentário
2.1 Exotismo e Teratologia.............................................................................. pg. 33
2.2 O Circo de Aberrações e a Exploração do Outro como Atração pg. 45
2.3 Cinema e Legado Colonial......................................................................... pg. 54
2.4 O Filme Exótico e o Exploitation ............................................................. pg. 60
2.5 Segunda Metade do Século XX............................................................... pg. 91
Capítulo 3: Desumano e Degradante – Re-interpretando a Tragédia Humana
3.1 O Filme de Atrocidade............................................................................ pg. 108
3.2 Os Filmes de Sala de Aula .....................................................................pg. 145
3.3 Educação Sexual................................................................................... pg. 146
3.4 Educação no Trânsito.............................................................................. pg. 158
3.5 Mundo Cão.............................................................................................. pg. 161
Capítulo 4: O Olhar Perverso – Voyeurismo e Exploração da Morte
4.1 A Morte como Espetáculo........................................................................ pg. 228
4.2 A Morte Documentada............................................................................. pg. 232
4.3 A Morte Filmada....................................................................................... pg. 244
Capítulo 5: A Exploração do Sexo no Documentário
5.1 Sexo e Representação............................................................................ pg. 257
5.2 O Filme Stag............................................................................................ pg. 269
5.3 O Documentário Nudista.......................................................................... pg. 283
ix
5.4 A Influência Européia e a Batalha pelo Sexo........................................... pg. 298
5.5 Jag Är Nyfiken: Um Documentário Sueco Mudou o Sexo no Cinema..... pg. 301
5.6 Kärlekens Sprak e W.R. – Misterije Organizma....................................... pg. 310
5.7 Mondo Sexo............................................................................................. pg. 322
5.8. O Lado Escuro de Vênus: o Sexo e o Oculto......................................... pg. 330
5.9 A Reivindicação do Real.......................................................................... pg. 353
Capítulo 6: Autenticando a Farsa
6.1 O Falso Documentário............................................................................. pg. 372
6.2 Snuff: a Fronteira Final?.......................................................................... pg. 379
Conclusão...................................................................................................... pg. 385
Referência Bibliográficas ...............................................................................pg. 398
x
Introdução:
A primeira versão deste trabalho surgiu durante o período em que
iniciava meu mestrado – já se vão quase sete anos -, mais precisamente quando
cursava o primeiro semestre do curso (2000), e precisava de um tema para o
seminário final da disciplina “Cinema e Ciências Humanas”, ministrada pelo
professor Marcius Freire – então e sempre, meu orientador. O desafio era articular
algo relacionado à minha pesquisa “A Cultura do Lixo: Horror, Sexo e Exploração
no Cinema” com o objeto da disciplina. A solução encontrada foi um ramo do
cinema exploitation conhecido por filmes mondo – grosso modo documentários
derivados do famoso Mundo Cão (Mondo Cane/1963), dos italianos Gualtiero
Jacopetti e Franco Prosperi. Assunto, diga-se de passagem, sobre qual nunca
tinha me debruçado em anos de fantasmagorias e horrores fílmicos. Na verdade,
não só não tinha nenhuma afinidade com esse tipo de produção, como pouco
conhecia, não tendo ainda nem assistido Mundo Cão, apesar de já contar com
uma cópia disponível em minha coleção de fitas na época. Olhava também com
11
desagrado e censura os documentários que exploravam a morte (Faces da Morte
e congêneres), que via nas prateleiras das locadoras. Produções que naquele
momento, por força das circunstâncias, teria que encarar.
O resultado foi um pequeno trabalho, “Mondo Films &
Shockumentaries” de cerca de vinte páginas onde tentava uma primeira
aproximação com o tópico. E que, apesar de ainda engatinhar no vasto universo
que descobri posteriormente, ganhou definitivamente a minha atenção, abrindo um
novo campo de pesquisa e o desejo de abordar historicamente esses filmes. Após
três anos de espera, o tempo que levou para concluir o mestrado e ingressar no
doutorado, o tema - já ampliado para a exploração no documentário - é retomado
em outro curto artigo. Dessa vez para a disciplina do professor Fernão Ramos,
mais centralizado na imagem intensa e cenas de morte.
Durante todo o período dedicado à pesquisa, além da volumosa
bibliografia, dezenas de filmes relacionados me chegaram às mãos, provenientes
das mais diversas fontes: cópias em VHS, DVDs e a valiosíssima contribuição da
internet, que permitiu não só procurar mundo afora filmes não disponíveis em
nosso mercado, quanto encontrar obras raras e inexistentes para venda que foram
“baixadas” por demoradas horas. O que acrescentou um vasto e fértil acervo na
área do documentário (especificamente de exploração) à minha coleção particular.
Infelizmente tive que fazer uma seleção e grande parte não entra no corpus da
pesquisa. O que ocorreu por várias razões, sendo que muitas vezes a escolha não
foi por favoritismo, mas por suas condições de apresentar uma variedade de
diferentes estilos e técnicas referentes à exploração no documentário desde o final
do século XIX.
Tenho como ponto de partida a idéia de que desde os primeiros
registros com imagens até o estabelecimento do filme como instrumento de
pesquisa no campo da antropologia, uma busca pelo incomum, pelo exótico, se
constituiu na base de apoio de uma grande parte do cinema documentário. Tal
12
busca constrói seus alvos de acordo com o grau em que determinados aspectos
sócio-culturais ou comportamentais são considerados tabus para o público a que
se destina a produção.
Vamos tentar demonstrar que alguns ingredientes geralmente
considerados como apanágio de um gênero cinematográfico conhecido como
filmes exploitation – que denominaremos aqui filmes de exploração
1
– também
fazem parte de uma porção importante do cinema documentário. Nosso objetivo,
portanto, é mostrar que, na verdade, o bizarro e o exótico sempre estiveram
presentes, desde o início, nos registros do mundo histórico com imagens em
movimento. A diferença é que, apesar desses filmes que configuram a vertente
principal ou mais relevante do cinema documentário serem objeto de estudos
exaustivos, notadamente nas duas últimas décadas, os aspectos que aqui
ressaltaremos até recentemente vinham sendo deixados de lado.
Do mesmo modo são colocados à margem e desprezados enquanto
objetos de estudos seus congêneres menos afortunados
2
: as produções
categorizadas como mondo ou exploitation que apresentam em seu cerne as
estruturas narrativas comuns ao documentário tradicional, inclusive neles se
encontrando os vários modos de representação atribuídos ao gênero, conforme
estabelecidos por Bill Nichols. O que vai confirmar que os filmes alinhados à
vertente da “exploração” se apropriaram das mesmas bases formais do cinema
documentário, só que evidenciando em sua linha narrativa a ênfase em aspectos
1
A expressão exploitation deve ser aqui compreendida como “exploração”, mas diferente de
exploration, de teor mais técnico (referindo-se a algum tipo de exame). Exploitation significa uma
situação de que alguém se aproveita em benefício ou lucro próprio, o que vai em direção da
abordagem que pretendemos dar ao tema.
2
Teóricos do cinema e, particularmente do documentário ignoram sumariamente esses filmes.
Encontramos vagas referências a Mundo Cão em obras básicas, como por exemplo, na história do
documentário de Erik Barnouw, em que é citado em uma nota de rodapé da página 253.
13
espetaculares, elementos que sempre estiveram presentes nos documentários
considerados mais importantes sob o ponto de vista acadêmico.
O preconceito que cerca o documentário de exploração se explica pelo
caráter popular dessas produções, pelo óbvio objetivo que levava à sua
realização: causar choque e capitalizar com a espetacularização do que antes era
omitido pelos padrões de bom gosto das produções sérias. Por ficarem relegados
a um segundo plano, dirigidos ao grande público e sempre à margem do que se
convencionou chamar de cinema documentário, compõem uma segunda categoria
de filmes distinta da vertente principal. Conseqüentemente, chamá-los de
“documentários de exploração”, mesmo sendo uma denominação mais
abrangente do que filmes mondo ou shockumentaries
3
, de certo modo reforça
esse preconceito. Afinal, como pretendemos demonstrar, os limites entre as
diversas vertentes que configuram este “outro” documentário são bastante tênues,
assim como o limiar que os separa da linha de frente dos filmes de não-ficção.
Principalmente nos dias de hoje, quando estas distinções se dissipam
irremediavelmente com a migração cada vez maior do documentário para canais
comerciais de grande difusão e audiência como A&E, The History Channel,
National Geographic ou Discovery Channel. Estes, que têm no apelo ao
sensacional um grande motivo para captar audiência, flertam com o exploitation
em suas produções sem, entretanto se enquadrarem nesta categoria.
A exploração no documentário conforma um campo ainda
insuficientemente pesquisado nos estudos de cinema. Percebemos isso na busca
de bibliografia especializada – quase inexistente (computamos até agora apenas
3 O epíteto mondo foi dado a uma linha de documentários que se estabeleceu com o sucesso do
filme Mundo Cão, e que seguindo a linha de seu antecessor, se especializou em mostrar eventos
exóticos ao redor do mundo. Já os posteriores shockumentaries, sucessores dos mondo, têm como
premissa explicitar seqüências impactantes e repulsivas, girando em torno de mortes violentas e
cadáveres
.
14
três livros relacionados ao tema
4
) – e outras fontes de pesquisa e referências
relacionadas tanto aos filmes exploitation quanto aos aspectos de exploração no
documentário sério. Desse modo consideramos de grande relevância um estudo
que se proponha a expor aquilo que o tema representa, tanto para a história
quanto para a teoria do documentário.
O objetivo principal do trabalho é, primeiramente, trazer à luz a
exploração no documentário, partindo de suas origens nos filmes exóticos e no
nascente cinema exploitation, resgatando a sua história e tentando estabelecer as
relações existentes entre o registro documental e seu apelo por cenas
impactantes. Para tanto pretendemos, através da análise de exemplares
significativos, ver até que ponto essas vertentes - à primeira vista tão distintas - se
cruzam, valendo-se de diferentes conteúdos ideológicos, modos de
representação, aspectos pictóricos e linhas narrativas. Vamos procurar investigar
até onde se definem os limites na exposição do exótico ou polêmico para angariar
uma resposta do espectador, seja por seu caráter de proporcionar excitação,
choque ou simplesmente explorar um voyeurismo mórbido como garantia de
retorno, que pode ser tanto financeiro, quanto de conteúdo político-social. Neste
caso nos referindo a produções que utilizam a exploração de cenas intensas em
favor de alguma causa, como as que enfocavam as atrocidades nazistas na
segunda-guerra ou os filmes de “sala-de-aula”. Estas mostrando aos jovens os
“perigos” da sexualidade, através de corpos deformados e mutilados pelas
doenças venéreas.
Além disso, nos deteremos na relação entre essa exposição e a forma
narrativa, que freqüentemente escarnece e falsifica em função da sensação
4
São eles Bold! Daring! Shocking! True! – A History of Exploitation Films, 1919-1959, de Eric
Schaeffer; Killing for Culture: An Illustrated Histroy of Death Film, from Mondo to Snuff, de David
Kerekes e David Slater e o recente Sweet and Savage: The Eorld Through the Shockumentary Film
Lens, de Mark Goodall. Todos relacionados nas referências bibliográficas.
15
almejada. Ligação que já se insinua nos primórdios do filme documentário,
profundamente ligado
aos espetáculos circenses das primeiras décadas do século
XX; estes por sua vez herdeiros da tradição dos carnavais e feiras de outrora, com
suas exibições de aberrações e curiosidades. O que irá nos remeter a refletir em
como a exposição de eventos exóticos se tornou justificativa para fazer prevalecer
o olhar dominante (e sua hegemonia de representação) e garantir a exploração de
temas e imagens consideradas tabu ou inapropriadas de acordo com os padrões
sociais vigentes. O que me leva a propor um estudo sobre a utilização das
imagens representativas do sexo, da morte e da tragédia humana nos
documentários, sua crescente exploração e relação com a banalização da
violência nos meios audiovisuais.
Distribuí os elementos de exploração em cinco partes temáticas. A
primeira – Exploradores e colonizados – a visão colonialista e a exploração nos
documentários – vai aos primórdios do cinema para mostrar como as primeiras
tentativas de se registrar outras culturas já trazia consigo a inerente curiosidade e
apelo pelo diferente ou exótico. Iremos percorrer as primeiras décadas do século
XX e as relações entre o filme antropológico e o cinema exploitation.
A segunda – Desumano e degradante – re-interpretando a tragédia
humana – centraliza o seu foco no “filme de atrocidade” e nas suas manifestações
no cinema documentário do pós-guerra, e sua evolução até chegar ao
estabelecimento da linha de filmes “mundo-cão” ou mondo.
Em seguida, em O olhar perverso – voyeurismo e exploração da morte,
vamos nos debruçar sobre os documentários em que imagens ou cenas de mortes
humanas são inseridas na narrativa, tanto em documentários que a princípio não
têm cunho sensacionalista, quanto nos “filmes de morte” (death movies),
produções que seguem a estrutura herdada dos filmes mondo, mas construídos
em função de seqüências de mortes filmadas, encenadas ou não, compiladas a
partir de cenas de arquivo.
16
A Exploração do Sexo no Documentário é a quarta parte do trabalho,
em que a nudez, atos simulados e aspectos curiosos ou não convencionais do
corpo e da sexualidade humana são evidenciados. Neste capítulo vamos abordar
a trajetória dessa vertente, das primeiras tentativas em se registrar as várias faces
do sexo até o atual estilo gonzo, em que o realizador ou narrador participa
profundamente da ação.
Por fim, em Autenticando a farsa, iremos tratar brevemente de filmes
que seguem os preceitos dos documentários e, afirmando se basearem em fatos
reais, exploram cenas de morte, violência e atos bizarros. O que fazem não só
visando o lucro nas bilheterias, mas também muitas vezes objetivos políticos e
ideológicos. Muitas vezes escarnecendo tanto das convenções do cinema
documentário quanto dos padrões do exploitation, efetivando uma subversão do
factual em uma aproximação do mock-documentary. Subversão vai se refletir na
própria narrativa, mais despojada, irônica, sem deixar de lado, entretanto, a crítica
ácida. Neste capítulo ainda passaremos rapidamente pelos famigerados e
controversos filmes snuff. Estes, diferentemente dos “filmes de morte” com os
quais são constantemente confundidos, apresentariam a tortura e mortes reais de
indivíduos direcionadas ao registro da câmera.
Tenho consciência do caráter pessoal que permeia a pesquisa, o que
justifico por acreditar que abordagem de um tema tão rico e original, não poderia
ser feita de outra forma. Não tenho pretensões de criar uma obra definitiva,
considerando inclusive o extenso período abordado. Mas contribuir com uma
primeira aproximação e desse modo, não só suscitar futuros desdobramentos
como servir de base para novas investigações e abordagens, delimitando os
terrenos que configuram tão vasto campo de pesquisa. Com certeza, a trajetória
da exploração no documentário é uma grande e rica aventura, repleta de
situações pitorescas e personagens fascinantes. E na qual me dispus a embarcar
(tendo o leitor como convidado), sempre buscando olhar para além das evidências
com seriedade, mas sem deixar de lado a mordacidade inerente a esse universo.
17
1. Considerações iniciais
Algumas considerações são necessárias antes de nos debruçarmos
sobre os aspectos históricos que vão pontuar a nossa pesquisa e a análise dos
filmes selecionados. Considerações que nos servirão de guia para estabelecer o
ponto-de-vista defendido de que a exploração de imagens intensas, envolvendo
aspectos não usuais da imagética tradicional, não são um privilégio de um tipo
específico de filme de não-ficção. Ao contrário da idéia comumente aceita de que
a violência, o sexo, a tragédia humana e a morte - convertidas em representações
do grotesco e do bizarro são do âmbito de um tipo distinto de cinema
documentário – que vamos denominar de “documentário de exploração” -,
evidenciamos a presença marcante desses elementos em variada gama de filmes
que independente de seus objetivos ideológicos, acadêmicos ou mercadológicos,
em nada se enquadram nos parâmetros que configuram essa denominação. Ou
18
seja, estão inseridos no universo do documentário tradicional, aquele amplamente
aceito como manifestação artística de um pensamento erudito e bastante
representativos do que veio a constituir uma linha evolutiva do gênero. Inserção
que já está presente nos mais primitivos travelogues, passando pelo documentário
clássico e se imiscuindo nas novas formas de narrativa que foram surgindo com o
desenvolvimento de novas técnicas e abordagens.
Dentro dessa premissa, essa é uma pesquisa que envolve não somente
filmes que vêm sendo reprimidos e desprestigiados. Produções que muitas vezes
foram submetidas a cortes e colocadas na ilegalide. Mas também sobre filmes que
foram aceitos, discutidos e premiados, tornando-se referência para estudos e
pesquisas tanto do objeto tratado como do próprio cinema. E que como as menos
afortunadas contrapartes, em suas imagens exploraram a tendência à
indisposição do espectador, causando aversão, transgredindo e escandalizando.
Não só por suas asserções e releituras do Outro, determinadas por aspectos
culturais ou raciais, mas também pela explicitação daquela parcela de nós
mesmos, um Outro mais íntimo, correspondente aos recônditos menos palatáveis
de nossa corporalidade.
A principal diferença é que os primeiros foram realizados, antes de
tudo, como empreendimentos comerciais, intencionalmente destinados a ganhar
notoriedade através da repulsa e excitação da assistência. E por isso - a despeito
de sucesso – foram considerados por demais banais ou inconvenientes para
constituírem parte de qualquer cânone cinematográfico. Por outro lado, os outros
documentários se encarregavam de efetivar manifestos culturais, sociais ou
políticos, tornando as demonstrações de fatores extremos parte de um corpus
que, se também repugnantes ou abjetos, podem configurar relevantes agentes de
uma saudável transgressão: a quebra de tabus em função de um objetivo maior.
19
Freud em “Totem e Tabu” (1913) observa que tendemos a evitar
manifestações de particularidades íntimas que tememos conhecer: desejos
reprimidos, instintos sexuais e a atração pela corporalidade e morte
5
.
De modo aproximado, Mikhail Bakhtin sugere nesse afastamento,
quando nos são revelados o inverso dos padrões culturais, pondo de ponta-
cabeça a tradição e às avessas a história, o estabelecimento de uma forma de
contracultura
6
. Devemos, sob essa luz ter em mente que essa inversão, ganhando
corpo na excentricidade, diz respeito a uma violação do costumeiro e aceito
(BROTTMAN, 2005, p. 2). Violação que, ao tirar dos eixos as representações da
vida ordinária, permite que saltem aos olhos as marcas não visíveis da trilha onde
se sustentam esses eixos. Ou seja, através da inscrição de um espaço
considerado marginal, exótico, excêntrico ou não-convencional, somos levados a
uma compreensão maior da experiência humana. E esses elementos que em
geral queremos evitar ou negar, constituem nossos próprios reflexos. Essa súbita
imersão em um novo modo de ver o mundo e a nós mesmos – de que o cinema
documentário é o meio por excelência – nos surpreende e faz com que
incorporemos à força um novo entendimento do mundo que nos cerca, bastante
pessoal e pautado pelo horror e pelo deslumbramento. Tal sentimento configura a
5
Freud resume os aspectos da natureza do tabu. De acordo com ele (2005, p. 44), “o tabu é uma
proibição primeva forçadamente imposta (por alguma autoridade) de fora, e dirigida contra os
anseios mais poderosos a que estão sujeitos os seres humanos. O desejo de violá-lo persiste no
inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu têm uma atitude ambivalente quanto ao que o tabu
proíbe”.
6
Contraculturas podem ser compreendidas como movimentos de vanguarda transgressivos. De
acordo com Goffman e Joy (2007, p. 54), “o apego contracultural à mudança e à experimentação
inevitavlemente leva à ampliação dos limites da estética e das visões aceitas. (...) A maioria dos
contraculturalistas acredita em absoluta liberdade para divulgar o conteúdo de suas mentes e de
sua imaginação. Não surpreende, portanto, que as contraculturas normalmente sejam submetidas
a algum grau de perseguição. Quando uma contracultura nasce, a sociedade encontra estrangeiros
em seu meio. Quebra de tabus, violação de normas, desafio a idéias sacrossantas: o espírito
antiautoritário inerente à contracultura é uma ameaça potencial a qualquer ordem estabelecida.”
20
abjeção, teorizada por Julia Kristeva, se referindo à reação humana a um
ameaçador desarranjo no sentido (propósito) causada pela perda da distinção
entre sujeito e objeto ou entre uma individualidade e o outro.
O primeiro exemplo para o que causa essa reação é o cadáver (que
traumaticamente nos relembra de nossa própria materialidade), entretanto, outros
itens podem causar a mesma reação: uma ferida aberta, excrementos, e resíduos
de matéria orgânica, por exemplo. Como observa Kristeva (1982, p. 10), "a
abjeção preserva um arcaísmo pré-designado, na violência imemorial com a qual
um corpo se separa do outro com a finalidade de ser”. Marca o que a autora
denomina de “repressão primária”, que precede o estabelecimento das relações
do sujeito com seus objetos de desejo e de representação, antes mesmo da
oposição entre consciente e inconsciente. Mais especificamente, Kristeva associa
a abjeção com a irrupção do real em nossas vidas, e com nossa rejeição da
insistente materialidade da morte. Ela é bastante cuidadosa ao diferenciar o
conhecimento da morte ou o sentido da morte, do infortúnio de ser confrontado
com o tipo de materialidade traumática que lhe permite vivenciar a própria morte.
Sendo assim, uma ferida com sangue e pus, ou o cheiro repulsivo, acre, do suor,
da deterioração,
não significam a morte. A presença da morte significada, traria
em si compreensão, reação, ou aceitação. Ao contrário, como numa encenação
sem composição ou máscaras, o refugo e os cadáveres
mostram o que é deixado
permanentemente de lado a fim de que se possa viver. Estes líquidos corporais,
essa corrupção, estes excrementos são elementos a que a vida se opõem, pois
remetem à morte (
KRISTEVA, 1982, p. 3). Kristeva estabelece, portanto, a
categoria de abjeção como constitutiva da cultura. Abjeto seria tudo aquilo que é
objeto de horror. É também o refugo e o sagrado. O cadáver humano, refugo por
excelência, objeto de horror, re-ingressa na cultura como objeto sagrado. Não se
constitui cultura sem objetos de horror. Afinal estes, se remetermos a Freud no já
citado “Totem e Tabu”, é elemento fundador da cultura, pois este é criado a partir
das proibições, dos tabus. O cadáver especialmente exemplifica o conceito de
21
Kristeva a partir do momento em que rompe a distinção entre sujeito e objeto, que
é crucial para o estabelecimento de uma identidade. O que confrontamos quando
experimentamos o trauma de ver um cadáver (particularmente o corpo de um
amigo ou familiar) é que a eventualidade de nossa própria morte se torna
palpavelmente real. De acordo com a autora, o cadáver, visto sem o revestimento
religioso (Deus) e afastado da ciência, é o extremo da abjeção. “É a morte
contaminando a vida. Abjeto” (1982, p. 4). Essa abjeção, para Kristeva, é
conseqüentemente atrelada tanto à religião quanto à arte, que ela vê como dois
modos de purificar o abjeto: “Os vários modos de purificar o abjeto – as várias
catarses – constituinte da história das religiões, e terminando com a cartase por
excelência chamada arte” (1982, p. 17).
O que nos leva a Noël Carroll, que aprofundou seu olhar nas razões
porque somos atraídos às imagens do horror e da morte tanto na vida quanto em
suas manifestações representativas. Carroll discute os muitos caminhos
anteriormente trilhados que tentaram explicar este fenômeno, este paradoxo
aparente de como “a representação artística de eventos e de objetos normalmente
adversos pode causar o prazer” (CARROLL, 1990, p. 161). Este paradoxo é um
assunto particularmente interessante com uma multiplicidade de explanações e
reflexões, sendo que somente uns poucos se aproximam com mais abrangência e
acuidade. O horror sempre teve lugar e muitas vezes tomou dimensões
formidáveis nas manifestações artísticas – notadamente na literatura e no cinema.
Carroll procura explicar o fascínio com o horror e suas implicações em um quadro
social colocando em questão o porque do horror. Por que este gênero de material
categoricamente repulsivo compele seus espectadores? Dentre as teorias a
respeito destaca a teoria do “horror cósmico” de Lovecraft. Tentativa de explicar
nossa atração pelo grotesco e pelo horrível baseada na suposição que os “seres
humanos são alimentados com um tipo do medo do desconhecido que margeia a
admiração” (CARROLL, 1990, p. 162). O medo, ordinariamente um sentimento
desagradável, quando combinado com a admiração ou reverência, pode resultar
22
prazeroso. Ou seja, o horror inspira o maravilhoso
7
e mantém vivo “o sentimento
instintivo do temor sobre o desconhecido” (CARROLL, 1990, p. 162). Carroll não
se satisfaz plenamente com essa explicação como resposta ao paradoxo, como
também afasta a idéia do horror como uma experiência religiosa. Ainda que
inspiradoras e ajudarem a definir parcialmente os paradigmas do horror, essas
teorias ainda são limitadas. As razões para o paradoxo de que trata Carroll são
mais profundas. Ampliando um pouco o pensamento do autor, o horror entrelaça
dentro de sua estrutura muitos dos mitos e imagens que trazem dentro de si toda
uma gama de relações com a experiência humana que podem ser lidas tanto por
um viés psicanalítico como dentro de um contexto histórico e social. Reflexões que
são particularmente úteis em olhar os elementos simbólicos presentes no horror
pautado pela visualização de imagens intensas presentes, no nosso caso
específico, nos filmes documentários. O que corrobora a inclusão, por Butler
(1972, p. 11), do documentário entre as categorias que estabeleceu sobre o uso
do horror no cinema pela inclusão no mesmo de cenas “horríveis”. Ele cita as
tomadas de atrocidades cometidas pelos nazistas e filmes como Terra Sem Pão
(Las Hurdes), de Buñuel.
7
Segundo Todorov, no maravilhoso não é possível qualquer explicação racional para os
fenômenos naturais (ou sobrenaturais). Tanto o protagonista quanto o destinatário de uma
narrativa maravilhosa aceitam sem surpresa novas leis da natureza. O espaço do maravilhoso é o
de um mundo transfigurado, subvertido o que permite uma quase arbitrariedade na intriga. A
questão da verossimilhança no maravilhoso é peculiar já que neste gênero os fenômenos apesar
de impossíveis não deixam de ser críveis. O universo do maravilhoso é o da inverosimilhança
verossímil. Sua definição maravilhoso é determinada na relação que Todorov estabelece com os
gêneros que lhe são próximos, isto é, o gênero fantástico em que o herói e o leitor mantém a
hesitação entre uma explicação natural e sobrenatural dos fenômenos ao longo da narrativa e o
gênero estranho onde é fornecida uma explicação racional dos fenômenos insólitos, mantendo-se
desse modo intactas as leis da natureza. A paternidade do termo maravilhoso não é de Todorov.
Já Aristóteles o tinha utilizado na Poética (séc.IV a.C.) quando no Cap.XXIV refere o modo como
este participa na tragédia e na epopéia. Aristóteles apresenta o maravilhoso como um elemento do
irracional, mas não o conceitualiza (Isabel Branco de Mascarenhas).
23
De acordo com esse pensamento, essas cenas se apresentam como
pesadelos, simultaneamente atraentes e repulsivas porque abrigam tanto a
consumação do desejo quanto a sua inibição. Graças a esse caráter ambivalente,
Carroll expande essa definição na inclusão de ansiedades reprimidas, mas com
um certo cuidado na abordagem psicanalítica – na qual não é nosso objetivo
enveredar -, um caminho que apresenta suas possibilidades, ainda que nem todos
os monstros reflitam essas ansiedades ou desejos sexuais represados. O que
mais chama a nossa atenção nas proposições de Carroll é sua sugestão de que,
no horror, o que mais nos atrai e prende a atenção, é ele não necessitar estar – e
isso está patente na maioria dos filmes que vamos abordar - em primeiro plano, ou
ser elemento primordial (como acontece na maioria dos filmes de horror de ficção).
Mas se manifestar como um elemento funcional de uma estrutura narrativa e que
vai suscitar a maioria dos questionamentos por ela levantados. Esse segmento da
teoria de Carroll pode aplicar-se a todas as categorias e sub-categorias do que
vamos considerar arte-horror, onde podemos sem sombra de dúvida situar a
exploração de imagens intensas no documentário de que tratamos. Vale destacar
uma observação de Carroll, simples, contudo elucidante: “o horror atrai porque as
anomalias comandam a atenção e aliciam a curiosidade” (p 195). Nada mais
verdadeiro, já que há um fascínio mórbido inerente ao que convencionou-se
chamar humanidade. E que pode explicar, por exemplo, a atração despertada
pelos acidentes, assassinatos, e o olhar fixo nas vítimas de anomalias e
deformidades. Esse fascínio, de modo semelhante ao que ocorre no cinema de
horror, no documentário joga com a curiosidade pelos extremos. O impulso em
observar a morte e a deterioração de uma distância segura, e testemunhar os
extremos, também denota um sentido de inevitabilidade e falta de sentido. O bem
não triunfa e o monstro – aí entendendo-se as adversidades - não é subjugado. O
que cria nuances ideológicas que fogem da mão única e da confortável fórmula
que se sustenta no jogo primário de oposição normal-anormal. Uma ambigüidade
prevalece, mesmo quando esse horror documental toma partido de uma ideologia.
24
Isso é particularmente interessante quando se expressa em imagens e se reveste
em documento para cumprir determinada função social, podendo ser contrária ao
establishment ou conservadora. Como sugere o autor, as expressões do horror
representam transgressões das categorias estabelecidas da cultura
(CARROLL,1990, p 210) e que podem ser usadas como uma ferramenta que,
paradoxalmente, aquieta nossos medos enquanto os excita simultaneamente. O
espectador resguarda-se incólume, pois pode testemunhar a destruição da carne
humana e configurá-la irreal pelo distanciamento fílmico. Nossos medos da própria
mortalidade e corporalidade são atenuados pela imersão na destruição e pelo
fascínio que esta desperta. O corpo que está sendo manipulado e desmontado na
tela é uma janela para nossos medos e, por outro lado, uma maneira de ganhar
poder sobre ele. Prestando atenção a nossos maiores medos, podemos controlá-
los e pô-los em perspectiva. Este fascínio mórbido é, portanto, também uma
catarse. Aproveitando o observado por Kristeva, podemos considerar que a
narrativa, dentro dessa perspectiva, é uma tentativa mais elaborada de situar o
indivíduo entre seus desejos e suas proibições. Em sua concepção, o tema da dor
e do horror é testemunha da abjeção no interior de uma representação narrativa,
quando as fronteiras sujeito-objeto se quebram, quando os limites entre interior e
exterior se tornam incertos. A linguagem da violência reorganiza essas fronteiras,
com uma sintaxe própria, de modo que a representação gráfica do horror permita
ao sujeito se colocar frente a seus desejos e interdições. O abjeto não é sujeito
nem objeto, mas sim algo que Kristeva descreve como um rebaixamento. O que
dá a entender a sua posição inferior em uma escala hierárquica racionalmente
construída. Dentro da categoria de abjeto voltamos a encontrar os ingredientes
descartados pelo discurso científico, um conglomerado desordenado de resíduos
corporais que são testemunhos de destruição, violência e morte. Portanto, se
aprofunda mais no campo do primitivamente sagrado que, rodeado de proibições,
deve ser transgredido. Nesse universo, voltamos a Freud, que destacou a
analogia entre os fenômenos individuais e os fenômenos socioculturais, sendo as
25
pulsões pessoais de vida e morte - Eros e Tanatos - presentes nas sociedades.
Para ele as proibições-tabu são ambivalentes: se por um lado desejamos violá-las,
tememos fazê-lo. Ou seja, pela supressão do prazer cria-se um confito. Para
Bataille, a sexualidade e a morte não seriam mais do que momentos agudos de
uma festa que a natureza celebra e ambas têm o sentido de dissipação contra o
desejo de durar que é próprio de cada ser. Para ele, o sentido final do erotismo é a
morte. A morte mostra a fragilidade do ser humano, sendo indissociável da
sexualidade.Já dizia Sade em sua obra Justine que não há melhor meio de
familiarizar-se com a morte do que aliá-la a uma idéia libertina. O que nos leva à
idéia angustiante de que o amor, levado ao extremo, é um movimento de morte, e
este vínculo não deveria ser paradoxal. Os tabus mais antigos (interdições iniciais)
– expresso nas leis judaico-cristãs – são a esses campos relacionados: à morte
(não matar) e ao sexo (não fornicar, não desejar a mulher do próximo, não
derramar a sua semente, não deitar com consangüíneos). Frente aos tabus,
portanto, o indivíduo está dividido na sistemática oposição de duas forças
inconciliáveis: a interdição e a transgressão. Bataille observa que
De toda a maneira, o homem pertence a um e a outro desses dois
mundos, entre os quais sua vida, não importando o que ele queira, fica
dilacerada. (...) Por meio de sua atividade, o homem construiu o mundo
racional, mas nele sempre subsiste um fundo de violência. A própria
natureza é violenta e, por mais razoáveis que tenhamos nos tornado,
uma violência que não é nada além da violência natural pode nos
dominar novamente – que é a violência de um ser racional, que tentou
obedecer, mas sucumbe ao movimento que em si próprio não pode
reduzir à razão (BATAILLE, 2004, pp. 61, 62).
Tal e qual Freud e Bataille, Kristeva considera que a trangressão tem
lugar na arte. Segundo Russo (2000, p. 22), ao supor uma identificação entre o
potencial social e político da transgressão e transgressões de normas, códigos e
estruturas, ela defende um fascínio pela angústia, a perturbação da identidade, e a
abjeção – horror – como uma “codificação definitiva de nossas crises”. O que
26
vamos encontrar, de modo similar ao que ela encontra na literatura, são
expressões do proibido, do que se designa como impuro, vergonhoso,
monstruoso, tudo o que tem sido considerado ameaça a um processo civilizatório
ordenado. Podemos dizer, se relacionarmos com Kristeva, que do mesmo modo
que a moderna literatura (Dostoievsky, Proust, Artaud, Kafka), o cinema
documentário também explora o terreno do abjeto, território onde as fronteiras
começam a se romper. O confronto com esse espaço arcaico, constituído antes de
qualquer dualismo primário entre identidades (sujeito e objeto, ou indivíduo e o
“outro”), constitui um esforço em subscrever com excesso a ruptura associada à
abjeção, reconfigurando os frágeis limites entre o sublime e o abjeto (1982, p.
207). Em seu texto, a autora afirma ser a dor o lugar do sujeito e advém de onde
este começa a distinguir-se do caos. Ela sugere que a dor é o limite
incandescente, insuportável, entre o interior e exterior, entre o “eu” e o “outro”. O
ser é visto como mal-estar, e deste a dor é o aspecto íntimo e o horror seu rosto
público. Devemos destacar também que Kristeva chama a atenção para o fato do
“perigosamente impuro” estar baseado numa repugnância natural. A antropologia
sugere que não há nada repugnante por si mesmo, mas conforme critérios
relativos a uma transgressão, a preceitos e regras particulares ao sistema
simbólico pré-estabelecido. Kristeva observa que há muito tempo vêm sendo
comprovado que as causas do medo e do horror - e também em outro contexto do
humor e do riso – é a evidência de uma falta de controle corporal, reflexo da
quebra dos limites materiais e da presença de coisas que deveriam permanecer
dentro do corpo. Qualquer elemento que se ponha fora do corpo, deixe seu
confinamento, é considerado ofensivo e grotesco. Em parte, isso explica o
desenvolvimento dos tabus acerca dos processos de eliminação corporal, como a
defecação, a menstruação, o parto, urina, suor, sangramento e ejaculação, todos
atos efetuados no limiar entre o corpo e o mundo exterior. Fica evidente que a
autora tem consciente uma perspectiva sociológica em que o indivíduo, de uma
maneira contagiosa, traduz em interdições os sintomas de uma enfermidade
27
cultural que vai abarcar de forma homogênea toda a sociedade. De modo concreto
expressa como a arte leva consigo testemunhos da crise do sujeito e de sua
latente heterogeneidade. O que está claramente expresso na exploração das
cenas intensas – ou desagradáveis – nos filmes que selecionamos. Cada um
deles provê, a seu modo, algum tipo de mudança no modo binário no qual
tradicionalmente se sustenta a cultura, quebrando os limites inerentes à própria
representação. Ao não só mostrar a experiência, mas também induzi-la no
espectador (como a náusea), eles ultrapassam a barreira do espetáculo a ser
testemunhado, estabelecendo um tipo muito particular e vívido de corporalidade.
Isso por terem o foco centralizado no corpo humano e as forças que sobre ele
agem, explicitamente, sem deixar sugestões para a imaginação. Ao fazerem isso,
produzem efeitos físicos no corpo do espectador, que se submete a um tipo de
violação ao ser tomado de assalto. Isso justifica a resistência e oposição a essa
categorizada baixa cultura, que tem suas raízes na concepção de uma
corporalidade considerada adequada, distanciada física e geograficamente do
corpo grotesco, inadequado, associado ao mau gosto. Esses preconceitos de
grande parte da crítica especializada e da academia foram determinantes para
essa forte desaprovação de qualquer representação baseada no corpo – e capaz
de repercutir fisicamente no espectador -, de que a pornografia é o exemplo mais
óbvio.
Esse corpo grotesco, que permeia toda a produção que iremos
destacar, tem sua base na percepção carnavalesca do mundo, desenvolvida pelo
teórico russo Mikhail Bakhtin. Em “A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento” ele traça um universo de regeneração, onde as velhas estruturas
caem por terra e dão lugar a novas formas. O realismo grotesco se opõe às
figuras representativas dessa antiga ordem, em que o belo – associado à
perfeição e equilíbrio das formas clássicas – cede ao fascínio do desequilíbrio e da
feiúra. Conceito importante, constitutivo dessa carnavalização, é o rebaixamento,
que ao contrário do transcendente, está vinculado às formas do mundo material e
28
corporal, com seus excessos, orifícios e funções fisiológicas. Nesse estudo da
obra de Rabelais, conforme chama a atenção Brottman (2005, p. 152), Bakhtin
argumenta que o ponto crucial do carnaval é a sua posição concernente ao corpo
humano. No carnaval Rabelaisiano, a estrutura anatômica do corpo humano é
exibida em movimento – este se tornando personagem por si mesmo. Não o corpo
individual, destaca o autor, mais propriamente o corpo impessoal, a humanidade
como um todo, sendo parida, vivendo e morrendo de várias maneiras. O singular e
bizarro corpo carnavalesco é o corpo no ato de sua transformação, que nunca
termina ou se completa, continuamente se quebrando, se construindo e
modificando. Bakhtin, como observa Fontanella (2004),
define mais precisamente no que consiste a corporalidade no realismo
grotesco popular. Se os cânones apresentam um corpo fechado e
acabado, o corpo grotesco expressa exatamente o contrário: não está
isolado do mundo, não é perfeito, mas ultrapassa-se a si mesmo em seus
limites. (...)Além disso, trata-se de um corpo em evolução dentro de um
mundo material também mutável. Os corpos nascem, crescem,
envelhecem e morrem para serem substituídos pelo novo. Para Bakhtin
essa imagem de renovação constante é o grande aspecto positivo do
realismo grotesco popular. Todos os fatos que expressam esse caráter
transitório e material também ganham importância: o comer, o beber, as
necessidades naturais, a transpiração e o humor nasal, a cópula, a
gravidez, o parto, a velhice, as doenças, a morte, a mutilação, o
desmembramento, as feridas.
O carnaval, em sua concepção, desconhece a superfície impenetrável
que fecha os limites do corpo como um fenômeno completo e separado, expondo
não somente o exterior, mas também seus aspectos internos: sangue e entranhas.
O carnaval medieval realçava detalhadas mostras de partes corporais, em
extensas anatomizações de diferentes camadas e níveis. Bakhtin chama a
atenção para um episódio de Rabelais em que corpos humanos são
transformados em picadinho, contendo uma longa e detalhada lista anatômica de
membros feridos, órgão e ossos quebrados. Resquícios das festividades pagãs,
em que rebanhos eram abatidos, estripados e devorados. Devemos relevar a
29
proximidade maior do indivíduo medieval do corpo grotesco, refletindo nos
carnavais e sua mostra de corpos incongruentes, exagerados e deformados.
Como sugere Robert Stam (1992, p. 45) em sua análise da obra do teórico russo,
o carnaval celebra
o “corpo grotesco” como o “local-de-vir-a-ser”. Na visão carnavalesca de
Rabelais, os elementos-chave do corpo são os pontos onde ele tem
apêndices, transgredindo os seus próprios limites: os intestinos e o falo,
as convexidades e os orifícios que ressaltam para o mundo ou que
absorvem o mundo. Quando focaliza a vida corpórea (cópula,
nascimento, defecação) o carnaval oferece uma versão temporária da
proibição e do tabu, transferindo tudo o que é espiritual, ideal e abstrato
para o nível material, para a esfera da terra e do corpo. Os excrementos
tornam-se uma expressão literal daquilo que Bakhtin chama de “extrato
físico material mais baixo”. Em Rabelais, os produtos da parte inferior do
corpo baixo, a merda e a urina, aparecem em quantidades hiperbólicas e
dimensões cósmicas.
Mas essa carnavalização do mundo, a despeito de suas características
subversivas defendidas por Bakhtin, também pode, em alguns casos,se submeter
a uma função social conservadora. Durante um tempo permitido, os participantes
podem mostrar esses elementos potencialmente perigosos para o estabelecido
num misto de exorcismo e saciedade. No que também se aproxima da exploração
no cinema documentário, ainda que esta vá além de uma invulgar representação
da procissão carnavalesca de deformidades e perversões. Ambíguos, através de
suas imagens eles se aproximam do carnavalesco com suas flutuações entre o
horror e o escarnecedor. Desmascarando o frágil equilíbrio entre o horrível e o
burlesco, tão delicado quanto o que encontramos entre a tragédia e a comédia.
Também professam um tipo de anti-carnavalização, onde o perpétuo desfile de
horrores e tragédias dá margem a uma perene transgressão dos paradigmas do
permitido, emergindo como um desvio da norma. Ou como Stam (1992, p. 60)
observa, “podem ser considerados como apresentando versões invertidas,
distópicas, do carnaval, onde fenômenos que antes haviam sido objeto de riso
catártico são submetidos a uma espécie de mutação, transformando-se em
estigmas de terrores absolutamente pessoais”.
30
Nesse sentido, os documentários de que tratamos possuem uma
vigorosa vitalidade, que lhes confere o poder de estimular conexões radicais que
efetuam entre o real e o textual, o discurso e desejo, e espetáculo e corporalidade.
Por sua vez, afastam-se dos conceitos de representação ou apresentação,
envolvendo uma série de eventos que invariavelmente incluem a participação de
corpos humanos – na tela – e sua repercussão – na audiência. Podendo-se aí
inserir uma aproximação do dialogismo bakhtiniano, em que interagem autor –
através do narrador e enunciador - e espectador, narrativa (e suas linguagens) e
contexto social. Estejam esses eventos comprometidos em ações de violência ou
sexo, ou mesmo exibindo deformidade ou morte, abrangem as funções mais
básicas – e também grosseiras – de nossa própria carnalidade e do corpo
grotesco. Radicalismo reforçado pela amostragem de formas bastante vulgares e
individuais da vida humana e das rudes realidades que são sublimadas nas
manifestações culturais tradicionais: o nascimento, a morte, a sexualidade, a
defecação, a ejaculação, a evisceração e todas as outras funções corporais que
outros gêneros do cinema exibem de forma abstrata ou simbólica. Aspectos quase
sempre filtrados pelas lentes de cineastas - que apesar de seu radicalismo
imagético (como Pasolini em Saló, 1975, por exemplo; ou Jörg Buttgereit em
Nekromantik, 1987) – não rompem as barreiras que configuram o real. Certamente
só o cinema documentário têm essa capacidade: ao retratar o “real”, ultrapassar
as suas fronteiras, criando uma nova forma de factualidade. Peter Burke (2004, p.
200) observa, ao tratar das relações entre cinema e história, que o poder do filme
é ele proporcionar ao espectador uma sensação de testemunhar os eventos.
Segundo ele,
este é o perigo do medium – como no caso da fotografia instantânea –
porque essa sensação de testemunha é ilusória. O diretor molda a
experiência embora permanecendo invisível. E o diretor está preocupado
não somente com o que aconteceu realmente, mas também em contar
uma história que tenha forma artística e que possa mobilizar os sentidos
de muitos espectadores.
31
O que nos leva à famosa frase expressa no filme de John Ford, O
homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, 1962): “se a
lenda é mais interessante que o fato, publique-se a lenda”
8
. Frase que se adapta
com perfeição no universo no qual nos aventuramos, onde se fundem
freqüentemente as fronteiras entre o “real” e a representação. Tornando efetivas
as palavras de Jean Baudrillard (1991) de que esses limites entre o simulacrum e
o factual se tornam tão indistintos, que muitas vezes o primeiro prevalece, de
modo que se torna praticamente impossível distingui-los. A representação do
“real” se torna mais poderosa do que o “real” em si, e é esse aspecto o grande
desafio de significativa parcela do cinema documentário (os de exploração aí
incluídos): não só a pretensão, mas a reivindicação da verdade.
8
Do original: “This is the west, sir. When the legend becomes fact, print the legend”.
32
2. Exploradores e colonizados – a visão colonialista e a exploração
nos documentários.
2.1. Exotismo e teratologia
A ambígua atração pelo “estranho”, “exótico” e teratológico
9
, não é
novidade. Na verdade, o homem sempre desfigurou o seu mundo. Nos céus, no
mar e lugares longínquos, sempre imaginou monstros e demônios, bestas
mitológicas e criaturas deformadas. Inventou feras humanas para assombrá-lo,
legiões de espíritos malignos e demônios, registrando híbridos infernais –
minotauros, górgonas, sereias e homens-centopéia -, cultos subterrâneos ou
anfíbios gerados em câmaras profanas antediluvianas. Fantasias que eram
9
Relativo à “teratologia”, estudo das monstruosidades. A teratogenia é a produção de malformação
congênita.
33
transformadas em mitos e lendas, para que melhor pudessem absorver e
compreender os mistérios da natureza. E através das manifestações de sua arte –
a escultura, a pintura e a literatura – deu representatividade não só ao universo
que o cercava, mas também a seu universo interior, e desse modo, aos terrores
de seus pesadelos.
Nos tempos clássicos, lendas gregas e contos de viajantes povoaram a
terra com criaturas fantásticas. Heróis montaram em cavalos alados para resgatar
donzelas e matar dragões. Viajantes foram tentados pelo amor fatal e pelo canto
das sereias. Haviam raças de estranhos homens, alguns com a face dentro do
peito, outros com um único pé tão grande que este poderia protegê-los da luz do
sol quando não estivessem saltando sobre ele. Dos mais primitivos desenhos nas
cavernas, passando pela demonografia medieval e visões infernais de Bosch e
Grünewald, os sonhos e temores da raça humana criaram um zoológico
fantasmagórico de seres estranhos e trouxeram o inferno à Terra. O fascínio pelo
diferente ganhava corpo nas anomalias, mutilações e deformidades, por um lado
revestido de aura mística graças aos medos e crenças geradas pela superstição e
crenças religiosas; por outro pela atração que exerciam, em geral associado a
uma forma de lascívia. Vamos aqui ressaltar a herança da atração despertada por
esses aspectos considerados bizarros da natureza humana, que remete à
antiguidade, e teve o seu apogeu no século XVIII - época em que aventureiros já
corriam o mundo exibindo por módica quantia embriões deformados e outros
horrores.
O “circo de aberrações” que mais tarde se estabeleceria – em outras
palavras o reconhecimento, tratamento e exibição de anomalias humanas como
seres especiais (para melhor ou para pior) – data do início da história
documentada, em todas as civilizações ao redor do mundo. Na biblioteca do Rei
Assurbanípal em Níneve, uma tabuleta cujos escritos narram uma exibição de
monstros humanos foi encontrada e decifrada. Na antiguidade, se os gregos
deificaram hermafroditas, criaturas andróginas e seres antropomórficos; os
34
romanos os suplantaram, ao tornar esses seres mal-formados objetos de
entretenimento. Como os egípcios antes deles, não foram opostos a criar
aberrações pelas intencionais torceduras e deslocamentos de corpos de
crianças
10
. Contam antigas narrativas
11
– certamente enfeitadas - que Nero,
Tibério, Calígula e outros imperadores estiveram constantemente rodeados por
um séqüito de estranhas anomalias. Segundo esses relatos, Domiciano teria
enviado sua legião privada de anões-gladiadores para a arena combater violentas
amazonas, enquanto as nobres romanas assistiam escondidas aos treinos desses
guerreiros, comumente despidos. Curiosidade despertada pelo poder fálico
atribuído aos anões (que podiam ser comprados em um mercado especial, o
Fórum Morionium). Também o ditador Lucius Cornelius Silla teria reunido um
harém bizarro de mulheres corcundas, anãs, aleijadas e destituídas de membros,
com as quais se entretia; do mesmo modo procedendo Júlia, neta de Augusto, que
constituíra um similar conjunto de aberrações com o propósito de satisfazê-la em
incomparáveis orgias de prazer e crueldade.
Posteriormente a Renascença assinalou a idade de ouro dos monstros,
quando as cortes européias se encheram de anões, corcundas, gigantes,
cabeças-de-pino e outras anomalias, sendo que até o despertar do racionalismo
no século XVIII e o início da classificação das espécies, havia pouco ou nenhum
método científico para distinguir a lenda do fato. O que pode ser demonstrado
10
Era comum a prática dos antigos egípcios de, utilizando amarraduras, alterar a forma corporal,
notadamente o crânio, de forma que ficasse alongado (o que pode ser visto nas efígies do faraó
Akhenaton), por exemplo. O que é explicado pela grande admiração daquele povo pelos
portadores naturais desse tipo de deformidade cranianas, que eram venerados como divindades.
11
Parte delas reunidas no volume de autoria de um certo Bagneux de Villeneuve intitulado “Crônica
Escandalosa dos Doze Césares”, fruto da reunião de relatos de cronistas e obras do período, como
Catullo, Lucanio, Petrônio, Valério Maximo, Suetônio, etc.
35
desde a antiguidade, nas narrativas de Homero, Heródoto, Plínio
12
e Aristóteles
(que cunhou o termo lusus naturae, ‘brincadeira da natureza’); permanecendo sem
mudanças séculos depois nas representações feitas por Albrecht Dürer e
Sebastian Brant em xilogravuras que mostravam porcas de oito pernas e outras
monstruosidades. Autores como André Thevet em La Cosmographie Universelle,
Ambroise Paré em seu Animals, Monsters And Prodigies (1573), e Ulisse
Aldrovandi em seu Monstrorum Historia (1642), entre outros, tornaram
obscurecidas as fronteiras entre mito e mundo histórico, quase além do
reconhecimento.
12
Burke (2004, p.157) dá como exemplo clássico e antigo desse processo as denominadas “raças
monstruosas”, que os antigos gregos imaginavam existir em lugares distantes como a Índia, Etiópia
ou Catai. Essas raças incluíam pessoas com cabeça de cachorro (Cinocephal); sem cabeça
(Blemmiai); com apenas uma perna (Sciopods); canibais (Anthropophagi); pigmeus; a raça marcial
de mulheres com apenas um seio (Amazonas), etc. A História Natural do antigo escritor romano
Plínio transmitiu esses estereótipos para a Idade Média e épocas posteiores.
36
A Miscellanea Curiosa Medica Physica (1662) de Gaspar Schottcontém,
por exemplo, contém até mesmo instruções de como tornar crianças aberrações
com artifícios de feitiçaria. Homens monstruosos foram por outro lado atribuídos à
cólera dos deuses, ou punição pelo pecado da sodomia (De Animalibus Natis Ex
Sodomia [1493] de Paracelso). A lista de Paré (apud HUNTER, 1998, p. 14) de
supostas causas de monstruosidades ainda refletem esse ponto de vista
supersticioso por volta de um século mais tarde:
Em primeiro lugar vem a glória de Deus. Em segundo, sua ira. Em
terceiro, muita quantidade de sêmen. Em quarto, pouca quantidade de
sêmen. Em quinto, imaginação. Em sexto, a estreiteza ou pequenez do
útero. Em sétimo, a imprópria posição de se sentar da mãe, que,
enquanto grávida, permanece sentada por muito tempo com suas coxas
cruzadas ou pressionadas contra o estômago. Em oitavo, por uma queda
ou golpe contra o estômago da mãe durante a gravidez. Em nono, por
doença hereditária ou acidental. Em décimo, pelo apodrecimento ou
corrupção do sêmen. Em décimo primeiro, pela mistura ou combinação
de esperma. Em décimo segundo, pelo ardil de mendigos errantes. Em
décimo terceiro, por demônios ou diabos.
Os primeiros passos em direção a um quadro mais claro começa a se
estabelecer na França. Buffon (apud HUNTER, 1998, p. 14), em seu Varieties Of
The Human Species, Of Monsters (1749), ditou uma nova máxima que seria
seguida pela maioria de seus sucessores imediatos em identificar tipos de
anomalias humanas:
“Todos os monstros possíveis podem ser reduzidos a três categorias: a
primeira é aquela dos monstros por adição, a segunda, monstros por
omissão, e a terceira, aqueles que são semelhantes por razão de errôneo
ou invertido posicionamento de partes”.
37
A partir dessas regras básicas gerais, a história da teratologia humana
pode ser fundada. Uma ciência mais específica e exata foi prenunciada pelo De
Monstris de Haller; esse foi o início de um período que veria também a publicação
de dois marcos milionários no campo: Anatomical Philosophy (1822) por Etienne
Geoffroy Saint-Hilaire, e Treatise On Teratology (1837) por Isidore Geoffroy Saint-
Hilaire.
Mas não só de monstros se constituía o pensamento da época acerca
do não-familiar. É importante levarmos em conta que nos séculos XV e XVI, era de
exploração geográfica, a sede pelo diferente tocava profundamente o imaginário
coletivo. Peter Burke (2004, pp. 153, 154) observa que, no caso de grupos
confrontados com outras culturas, ocorrem duas reações opostas: a negação da
distância cultural, assimilando os outros a nós mesmos ou a nossos vizinhos pelo
uso de analogia (artifício consciente ou inconsciente); ou a construção da outra
cultura como um oposto à nossa. Segundo ele, a imagem construída (mental) foi
evidenciada através de textos, sendo recuperadas ou reconstruídas através de
indispensáveis imagens visuais, a despeito de todos os problemas de
interpretação por elas suscitados. Imagens que refletem uma visão estereotipada
que cada cultura possui da outra e que, se não completamente falsa, exagera
alguns traços do mundo histórico e omite outros. Segundo Burke:
38
Alguns desses estereótipos são positivos, como no caso do “nobre
selvagem”, uma expressão usada em 1672 pelo poeta e dramaturgo
inglês John Dreyden. A imagem tornou-se um clássico que foi revivido no
século 16 e desenvolveu-se junto com a imagem de seu oposto, a do
canibal. (...) Infelizmente, a maioria dos estereótipos de outros – judeus
vistos por não-judeus, muçulmanos por cristãos, negros por brancos,
camponeses por pessoas da cidade, soldados por civis, mulheres por
homens, etc. – era ou é hostil, desdenhosa, ou no mínimo
condescendente. Um psicólogo provavelmente buscaria o medo
subjacente ao ódio e também à projeção inconsciente de aspectos
indesejáveis do eu no outro. Talvez por essa razão que os estereótipos
muitas vezes tomam a forma de inversão da auto-imagem do espectador.
Os estereótipos mais grosseiros estão baseados na simples
pressuposição de que “nós” somos humanos ou civilizados, ao passo que
“eles” são pouco diferentes de animais como cães e porcos, aos quais
eles são freqüentemente comparados, não apenas em línguas européias,
mas também em árabe ou chinês. Dessa forma, os outros são
transformados no “Outro”. Eles são transformados em exóticos e
distanciados do eu. E podem ser mesmo transformados em monstros
(BURKE, 2004, p. 157).
Pensemos nisso aplicado em um mundo bastante limitado
geograficamente, onde as distâncias eram quase intransponíveis e o indivíduo
comum passava toda a sua existência confinado na terra onde nascera,
trabalhava e inevitavelmente morria, tendo a sua moralidade dividida entre os
conceitos de bem e mal ditados pelas concepções espirituais de então. Esse
reinado do maravilhoso já era encarnado, para as mentalidades da Baixa Idade
Média, pela Ásia, com seus “interiores ignotos, confins imaginários e impérios
formidáveis” (GIUCCI, 1992, p.13), sendo prolongado pela investidas européias no
Novo Mundo e África. Maravilhoso que projetou-se para além do medievo, sendo
suas criaturas monstruosas, anomalias, costumes exóticos e paraísos
deslumbrantes incorporados a um modo de ver o “outro”, ou o que não fazia parte
do estado das coisas que era reconhecido como “comum”, seguro, e por que não
dizer, confortável. Pode ser esclarecedor, como chama a atenção Burke (2004, p.
158), tratar essas imagens não como simples invenções, mas como exemplos de
percepção distorcida e estereoptipada de sociedades remotas.
39
É importante nos aprofundarmos mais um pouco nesse “maravilhoso”,
por acreditarmos estar esse conceito enraizado nas bases da “evolução da
imagem do desconhecido ou vislumbrado” (GIUCCI, 1992, p.13) e do que vamos
mais tarde encontrar por trás do que veio a ser o apelo dos primeiros
documentários que se propuseram a enfocar culturas fora do padrão convencional
dominante (o modelo europeu/ocidental) e constituiu no futuro a linha mestra para
o desenvolvimento de toda uma vertente importante do cinema documentário.
Para tal, selecionamos alguns pontos dentre a série de princípios com
que Guillermo Giucci (1992, p. 16) caracterizou o maravilhoso. São eles:
- Situa -se fora do familiar.
- Magnífica o que toca, forjando freqüentemente, por meio da
interposição sistemática de um ouropel de excessos, uma imagem empobrecedora
da alteridade.
- É relativo, pois adquire vida em função do sujeito que percebe.
- Revela mais sobre a ideologia que o engendra e consome do que
sobre a realidade que declara reproduzir.
- Inesgotável enquanto sistema de representação, é perecível enquanto
formulação histórica específica.
Esses princípios endossam a tese do autor de que:
O maravilhoso sustenta-se num sistema de oposições: reside na
diferença, no contrário ao conhecido, no inaudito. Tão excêntrico ingressa
no horizonte europeu a visão das terras dos mares ocidentais, a tal ponto
deformada que, além de aparecer desligada da imaginação que a gera,
sucumbe em termos de verossimilhança diante do próprio exagero.
Pode parecer, a princípio, que essa abordagem das diferenças culturais
e sua conseqüente assimilação distorcida de uma situação desconhecida (ou
40
pouco conhecida) sejam baseadas em fatos remotos, mas não devemos esquecer
que o indivíduo comum do final do século XIX e primeiras décadas do século XX
ainda via cercadas de mistérios culturas distantes e não familiares. E que os
viajantes – ai incluídos os primeiros fotógrafos e cine-documentaristas –
constituíam a versão moderna dos navegadores de outrora, incorporando muitas
vezes os mesmos deslumbres e exageros de representação.
Chama-nos a atenção essa interessante analogia entre os relatos de
viagens do período das grandes navegações e dos séculos seguintes e as
primeiras tentativas de se registrar em película. Em ambas as formas narrativas, a
despeito de aproximadamente quinhentos anos de diferença, estão explícitas as
deformações resultantes da mescla de testemunho e lenda. Esta, geralmente mais
espetacular que o fato, era muitas vezes moldada para, se aproveitando por um
lado do desconhecimento do leitor ou espectador, por outro de sua avidez pelo
extraordinário, afirmar que o relato do viajante deve satisfazer as expectativas do
leitor. (GIUCCI, 1992, p. 89). Estas, em parte originadas pela própria factualidade
menos aventurosa:
Assim como a regularidade e a repetição suscitam o desejo do
imprevisível, a monotonia gera a esperança do extraordinário e do
admirável. A fim de participar da ilusão dos contrários, o leitor transfere a
experiência pessoal do viajante para seus próprios desejos de aventura.
Tende, desse modo, a se colocar à margem da mediocridade de sua
própria sociedade, a apagar sua realidade imediata, a tornar exeqüível o
inalcançável e a compensar suas frustrações cotidianas. Sente-se único
fantasiando ser um outro diferente; emociona-se como o protagonista de
uma expedição incomum; acredita renovar-se com seu desterro ficcional.
(GIUCCI, 1992, p. 88)
O que torna relevante outro aspecto nada sutil: o indubitável apelo
comercial, ou seja, em troca de relatos de um mundo desconhecido, satisfazer
esse leitor ávido de maravilhoso; o que vai se traduzir em títulos sugestivos e
gravuras bizarras. Exemplificando com a troca do título do livro “Viagens”, de
41
Mandeville, habilmente transformado no sugestivo “Juan de Mandevilla. Libro de
las maravillas del mundo y del viaje de la Tierra Sancta de Jerusalem y de todas
las provincias y ciudades de las Indias, de todos los hombres monstruos que hay
por el mundo. Con otras muchas admirables cosas”; Giucci (1992, p. 88) sugere
que
A reformulação do título, foco através do qual se percebe a totalidade do
relato, não só revela a integração desta às convenções literárias como
também indica a participação de uma variável de grande influência no
processo de difusão do arquétipo do maravilhoso: o mercado. Ao título
acima mencionado, e aos ciápodos, cinocéfalos e epistígios
representados na capa, soma-se um intrigante “Quem quiser muitas
coisas do mundo saber. Compre este livro e saberá coisas de que se
espantará”. Quem escreve “compre” pensa em venda, propaganda,
criação de entusiasmos, manipulação social das imagens, curiosidade
pelo desconhecido, desejo de aventura. Esse desejo de aventura
constitui, além da suposta crença na realidade fantástica narrada pelo
texto, a base real do interesse suscitado pelos relatos de viajantes.
É interessante vermos como esses fatores constituíram as bases da
literatura de viagem, que veria seu apogeu nos séculos XVIII e XIX com uma
roupagem mais moderna e aparentemente ambígua, mas que reforça a diferença
do outro e a atração pelo exótico, sempre flertando com maior ou menor
intensidade com o racismo. O leitor, levado a se identificar com o personagem
aventureiro e heróico, encontra uma natureza idílica, idealizada em resposta aos
males da civilização. Mas ao mesmo tempo, como nos indica FERRO (2002, p.
195), essa mesma natureza exige uma passagem para o mundo civilizado - do
progresso, da técnica, da higiene – sendo esta a justificativa mais constante para
os empreendimentos coloniais. O que também vai dar margem aos estereótipos
relacionados ao outro retratado nas figuras opostas do bom selvagem – o nativo
pacificado, submisso e tolerante; e o mau selvagem, que não se enquadra no
processo civilizatório. Segundo Brandon (2005, p. 28):
42
Esse bom selvagem, acima de tudo, era descrito como passivo. Assim, o
tema central do bom selvagem é a capacidade natural de se tornar
civilizado, convertido ao cristianismo ou morrer em silêncio. O mau, o
indócil selvagem é definido como exatamente o oposto do bom selvagem,
ou seja, naturalmente perverso, bárbaro e incivilizado.
A autora ainda observa que:
O bom selvagem é extremamente genérico, na medida que não esteja
associado a grupos culturais específicos, tanto quanto um indígena
onipresente é inocente, belo e natural como uma criança do Éden ou
amigo do branco. (...) O selvagem mau é demoníaco, guerrreiro,
supersticioso ou canibal (BRANDON, 2005, pp. 35, 36).
O Bom e o Mau Selvagem
Essa construção de um retrato mítico do colonizado pela ideologia
dominante impõe ao mesmo uma desumanização. Tanto a literatura de viagem
como seu sucessor direto e legítimo – o cinema de viagem – reforçam essa
situação. “O cinema ocupou o lugar do romance e dos jornalistas no enraizamento
dessa atitude colonialista” (FERRO, 2002, p. 197).
43
Devemos lembrar que na segunda metade do século XIX intensificou-se
uma corrida imperialista que enfatizava a busca por novos horizontes nos quais os
países pudessem tirar vantagens econômicas. Resultado de uma
compartimentação do mercado europeu pela implementação de restrições
aduaneiras. Foi levada a cabo a grande expansão e consolidação colonial das
potências européias, sendo que os territórios conquistados serviriam tanto para
suprir o fornecimento de matérias primas quanto para consumir a produção
industrial de seus dominadores. Como sugere Edwards (s.d., p. 13):
Este movimento pôs os europeus em contato com diferenças culturais em
uma escala sem precedentes. Apoiando esta apropriação da maior parte
do globo não-européia, e estruturando respostas para ela, havia um
conjunto de hipóteses relacionadas à superioridade do homem branco e
aos deveres e direitos que esta superioridade conferia.
Esta política se justificava por razões filantrópicas e humanitárias, onde
os homens brancos, superiores, livrariam os povos atrasados de seu primitivo e
selvagem cotidiano através do evangelho e da melhoria das condições de vida. O
que está atrelado às noções de raça, sendo estas comuns, como nos chama a
atenção Edwards (s.d., p. 14), tanto à justificativa e racionalização da dominação
colonial quanto ao estudo científico da antropologia. Esta, por sua vez, segundo a
autora, veio a conferir peso de verdade científica às hipóteses de caráter racial.
Ou seja, o modelo intelectual dominante durante o período era o evolucionismo,
que abraçava idéias como progresso, regressão, recapitulação e sobrevivência
“arcaica”. Sendo assim, tornava-se primordial para esses modelos a crença no
relacionamento intrínseco entre a natureza biológica e física do homem e sua
natureza cultural, moral e intelectual. Como recorda Edwards, portanto, a cultura
era vista como sendo biologicamente determinada, de modo que as raças não
européias, aparentemente menos dotadas tecnologicamente, eram consideradas
representantes da “infância da humanidade”. Fase pela qual o homem europeu
44
havia passado em seus períodos pré-histórico e proto-histórico, em uma
progressão linear em direção à civilização.
É significante que esses modelos do pensamento evolucionário tenham
esmaecido com as mudanças no pensamento científico no final do século XIX.
Porém, chama a atenção Edwards (s.d., p. 15), “as hipóteses culturais de
superioridade racial, cultural e moral foram completamente absorvidas e
perpetuadas pelas estruturas sociais e políticas européias e continuaram como um
poderoso sistema de apoio às relações coloniais e ao pensamento antropológico”.
2.2. O circo de aberrações e a exploração do outro como atração
A obsessão por anomalias humanas não diminuiu séculos XVIII e XIX.
Com isso, o apelo da pesquisa médica engendrou uma proliferação de
“ressurreicionistas” – ladrões de túmulos profissionais, empregados pelo desejo do
cirurgião extraordinaire John Hunter (“o pai da cirurgia inglesa”) em recolher os
bons espécimes teratológicos recém-enterrados. Caçador, autor de On Monsters
(1775), ficou famoso não só por sua ampla coleção de caveiras humanas e outras
coisas exóticas, mas também pelo notório pote de ferro fundido no qual dissolvia a
carne e a gordura de anômalos ossos humanos. Outro inglês, o sargento-major
Philip Ashby, nascido em 1742, e responsável por estabelecer o formato do circo
de três picadeiros; inaugurou também as exibições suplementares, organizando
mostras de anomalias tanto humanas quanto animais, assim como artefatos de
trágica reputação, como instrumentos de tortura e execução, tais como a
guilhotina (integrada por cabeças de cera).
Portanto, graças a essa herança, não se pode estranhar o fato de que
no século XIX e início do XX, podia-se ver uma verdadeira invasão de livros e
tratados sobre aberrações humanas. Ao mesmo tempo, os teatros, circos e
45
exibições se difundiam, ganhando popularidade. Este interesse, que se consolidou
na forma dos shows de aberrações, se espalhou em larga escala no século
seguinte através de circos itinerantes e supostos “museus educacionais”. Esse
divertimento bastante popular teve o seu auge a partir de 1850 graças a nomes
como o de Phineas Taylor Barnum, o mais famoso organizador de espetáculos,
responsável pelo enorme sucesso dessa forma de entretenimento público.
P.T. Barnum (1) e seu circo (2). À direita, uma de suas atrações.
Barnum fundou seu museu em 1841, um estabelecimento nova-iorquino
contendo diversas atrações monstruosas. A partir dessa base, organizou seu circo
itinerante. A primeira atração de destaque de Barnum foi o lendário anão Tom
Thumb. Nascido Charles S. Stratton em Bridgeport, Connecticut, em 1838, foi
descoberto por Barnum, levado a Nova York e apresentado como General Tom
Thumb da Inglaterra. Logo tornou-se mundialmente conhecido, enriquecendo e
casando com a atriz (também anã) Lavinia Warren. Cerimônia que foi o evento
social da temporada, contando até mesmo com a presença do presidente Lincoln.
Esse culto à deformidade culminou no gigantesco show de Barnum e
Bailey em Paris em 1901, no qual um grande número de “fenômenos vivos e
prodígios humanos” foi noticiado e exibido, compreendendo tanto anomalias
46
genuínas quanto atrações características do teatro de variedades. Embora
Barnum tenha morrido em 1910, seu circo continuou a exibir seus “prodígios” por
todo o mundo, imitado nos Estados Unidos por grandes números de carnavais
itinerantes e exibições suplementares que cruzaram o continente, sempre em
busca de novos membros. Crianças deformadas, mantidas escondidas, eram
repentinamente vistas como valiosas mercadorias e alugadas ou vendidas por
seus pais. Nas exibições acabavam encontrando um lar, vivendo e trabalhando
com os seus semelhantes, e criando uma sombria sociedade paralela cuja atração
nunca falhava ao capturar as multidões com olhares de soslaio, gente normal
encarando inconscientemente o espelho de seu eu secreto. Outras importantes
comitivas incluíam o Ringling Bros. Circus, o Clyde Beatty Circus, e o itinerante
Believe It or Not! de Robert L. Ripley. Aberrações foram importadas de todo o
mundo para esses espetáculos, e os Estados Unidos se estabeleceram como
ponto de convergência para anomalias da natureza.
P.T. Barnum e o famoso anão Tom Thumb (1), Koo Koo, a “Mulher Pássaro” (2) e Sealo, o
Homem-Foca” (3).
47
Entretanto, como decorrência da exigência do público pelo bizarro,
aberrações “feitas por si mesmo” uniram-se às criados pela natureza. Koo-Koo, a
“Garota Pássaro”, e Betty Green, a “Mulher Cegonha” são exemplos notáveis,
adquirindo uma persona grotesca por trajes, maquilagem e exagero. Outro é
Mortado, a “fonte humana”, que realmente tinha perfurações em suas mãos e pés
de modo que não só a água podia passar por eles, mas que serviam para que
fosse crucificado. Rolhas de madeira impediam o fechamento dos buracos. Essa
prática em se fabricar monstros, bastante antiga, já é narrada pelo escritor Victor
Hugo. Em seus relatos fala de pessoas normais que eram e mutiladas para se
produzir deformidades determinadas e de indivíduos que fizeram fortuna
comercializando os aleijados e aberrações que produziam. Hugo em O Homem
que Ri, revela que um truque comum era cortar a boca de uma criança de orelha a
orelha, dando a ela o sorriso permanente de um palhaço. Tais mutilações eram
também trivialidades na China e na Índia, onde sacerdotes ganhavam a vida como
fazedores de eunucos itinerantes. A castração era também praticada na Europa
para produzir jovens meninos sopranos, os castrati, cuja extensão vocal não podia
ser equiparada pelas mulheres. Mesmo na Inglaterra, a tradição da corte requeria
que se cortasse a laringe de um homem para transformá-lo em um galo humano
cujos horríveis cantos marcavam a passagem da noite.
Atos dessa natureza, junto de similares que engoliam espadas, peixes e
lagartos como Mac Norton; ou bebiam gasolina e faziam seus olhos saltarem
como o “Popeye” Perez, não estavam realmente muito distantes do mais baixo
nível das aberrações, que Hunter (1998, p. 23) denomina geek:
O geek é um homem (ou mulher), freqüentemente estúpido e alcoólatra
vestido com andrajos, semelhante a um dementes saído de pesadelos,
colocado em uma jaula fedorenta. Com seus atos atraíam uma multidão
de espectadores arrepiados e fascinados, consistindo os mesmos em
arrancar a dentadas a cabeça de ratos vivos, galinhas, e até mesmo
cobras. Enquanto alguns geeks eram tão drogados que precisavam ser
48
alimentados manualmente, outros se satisfaziam capturando e segurando
com força sua presa com as mãos nuas. Geeks que se excediam, não
satisfeitos com o ato de matar, podiam então comer o animal cru,
mastigando os ossos entre os dentes e esfregando em sua face sangue
quente e vísceras, ou vomitando de volta a pele não digerida, penas ou
cartilagens. Esses atos (geeking) foram proibidos pelas autoridades no
início do século XX.
Acima, artistas do circo de Barnum posam para fotógrafo (anônimo). Abaixo, cartaz promocional.
49
Não é de se estranhar que a exploração das aberrações humanas
passasse a dividir espaço com os primeiros exemplares de filmes exóticos, já que
era comum, durante as primeiras décadas do século vinte, que filmes etnográficos
e de conteúdo antropológico fossem exibidos em espetáculos itinerantes, atraindo
o público justamente por motivos parecidos: exibir aspectos capazes de causar
estranhamento ao espectador não familiarizado com outras sociedades e
diferentes padrões de cultura e comportamento. Produções que consistiam, em
sua maioria, de relatos de viagem produzidos (travelogues) sob a ótica do
colonizador e devidamente maquiados pelos distribuidores e exibidores através de
campanhas promocionais que enfatizavam o seu caráter exótico. Esses
travelogues acabaram suplantando e tomando o lugar das exibições ao vivo de
excentricidades locais ou trazidas de longínquos rincões do planeta por valentes
desbravadores, ou que pelo menos assim eram divulgadas. Vale ressaltarmos que
naquele período, eram atividades de lazer os parques públicos e os divertimentos
populares. Os circos e espetáculos itinerantes tinham lugar de destaque para
exibições presumidamente etnológicas, representações de culturas exóticas não
familiares ao público, ou seja, que não eram brancas, ocidentais ou de acordo com
o conceito de civilizadas. Portanto, não é errado afirmar que o circo de aberrações
compartilhasse do mesmo apelo que motivava a exibição daqueles filmes
pioneiros que o historiados de cinema Tom Gunning, citado por Bill Nichols (2005,
pp. 120, 121) denominou de “cinema de atrações”:
Essa expressão se refere à idéia de atrações circenses e a seu notório
prazer em nos mostrar uma ampla gama de fenômenos incomuns. Essas
atrações poderiam tanto aguçar a curiosidade como satisfazer a paixão
dos primeiros cineastas e públicos por imagens que representassem os
aspectos do mundo que os cercava. Prevalecia um tom de exibicionismo,
que diferia radicalmente tanto da idéia de olhar para dentro de um mundo
privado e fictício como do material documental usado como prova
científica. (...) “O cinema de atrações” baseou-se na imagem como
documento para apresentar aos espectadores esquetes sensacionais do
50
exótico e representações demoradas do corriqueiro. (...) O “cinema de
atrações” lançava seu apelo diretamente ao espectador e deliciava-se
com o sensacionalismo do exótico e do bizarro (NICHOLS, 2005, p.121).
Tod Browning com seus artistas durante as filmagens de Monstros (1932).
Uma seleção de aberrações famosas, atuantes nos espetáculos
circenses, pode ser vista no filme Monstros (Freaks, 1932), de Tod Browning, para
o qual faremos um pequeno desvio em nossa cronologia. No filme, polêmico e
incompreendido na época, a trapezista Cleópatra é objeto de desejo do anão
Hans. Associada ao amante Hércules, o “homem forte” do circo, tenta tirar proveito
da situação para ficar com os bens do anão, acabando desmascarada e vítima da
vingança de seus bizarros colegas. Browning, que fez parte de um circo na
juventude
13
é o primeiro a registrar em película deformidades reais, dando novo
13
Tod Browning se juntou ainda criança a uma trupe circense, e durante sua juventide percorreu
várias cidades não só fora do picadero, anunciando as atrações, como também atuando nas
51
suporte à exposição do grotesco em uma de suas representações mais
significativas: a do corpo. Como sugere Ito (2000, p. 27), ele se atreveu
a pintar um retrato dos fenômenos bizarros que surgem de uma
combinação de sonhos de criança com traumas infantis. Browning tentou
evocar o medo transcendente e eletrificante, que ele próprio tinha sentido
no seu primeiro encontro com as aberrações. Ao ser confrontado com
estes arquétipos, o espectador experimenta sensações desde há muito
reprimidas.
A interpretação de Bakhtin sobre o corpo grotesco no carnaval medieval
pode auxiliar a nossa compreensão do fascínio exercido pela deformidade não só
nos espetáculos de aberrações dos séculos dezenove e vinte, como também das
representações dos mesmos nos mass-media, de que Monstros é a primeira
investida. Bakhtin aponta que o circo e expressões carnavalescas, como um
fenômeno específico, sobreviveram além de seu tempo, quando outras
manifestações festivas-populares a eles relacionados em estilo e caráter tenham
sucumbido ou degenerado (BAKHTIN, 1987, p. 189). Exibições de deformidade
corporal e do grotesco, segundo ele, eram um motivo central dos carnavais
medievais, e mantiveram a sua importância nas versões contemporâneas. Seus
aspectos mais revolucionários eram impulsionados pelas mais singulares imagens
de membros, órgãos – especialmente partes desmembradas ou mutiladas. Eram
recorrentes amostragens de áreas de corpos distendidos ou exageradas a
dimensões gigantescas: barrigas monstruosas, narizes, orelhas e seios enormes,
em emio á procissão de gigantes, anões e corcundas.
funções de palhaço e comediante. Seus primeiros filmes frreqüentemente se baeavam no
submundo circense, como The Unholy Tree (1925), em que Lon Chaney fazia o papel de um
ventríloquo que, associado a outras duas atrações do circo em que trabalhava – o homem-forte e o
anão -, usava suas habilidades em ações contra a sociedade. Outro foi The Unknown (1927),
sobrre um atirador de facas especializado em realizar seu número com os dedos dos pés.
52
Essa exibição de um corpo aberrante – que por sua vez configura uma
inversão -,seja nos carnavais, circos ou filmes enfatiza a fusão de formas,
enfatizada em funções corporais como consumação, defecação, e reprodução,
criando uma densa atmosfera na qual todas as fronteiras entre homem e besta se
esvanecem. Em Monstros, uma variedade de corpos que transgridem os limites
entre animal e humano são colocados em primeiro plano, culminando com a
bizarra imagem final da ardilosa Cleópatra transformada em uma mulher-galinha.
Cleópatra (Olga Baclanova) na forma de mulher-galinha. Vingança final em Monstros (1932).
De qualquer forma - tanto em filme quanto em carne e osso – essas
exibições cumpriam o papel de inserir o Outro na experiência cotidiana de norte-
americanos e europeus (SCHAEFER, 1999, p. 264). Vale lembrar que no início do
século XX ainda existiam lugares inexplorados no mundo e, por sua vez, repletos
de exotismo aos olhos ocidentais, ainda não familiarizados pelos meios de
comunicação de massa que tornariam, no futuro, as fronteiras mais próximas e
determinados ritos e culturas menos estranhos ou perturbadores.
53
2.3. Cinema e legado colonial
A fotografia e o cinema vieram contribuir com o estabelecimento do
colonialismo, tomando a vez da literatura de viagem e da ficção de aventura. É
bastante significativo o fato dessa nova linguagem surgir na mesma época em que
os países europeus estavam no apogeu de seu domínio imperialista, estendendo
suas garras sobre grande número de territórios estrangeiros. E que os maiores
produtores de filmes do período – Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha –
congregavam para defender e louvar a iniciativa colonial, não só absorvendo como
também disseminando o discurso dominante. Conforme sugerem Shohat & Stam
(1994, pp. 100, 101):
O cinema emergiu exatamente no ponto em que o entusiasmo pelo
projeto imperialista estava se espalhando para além das elites, em
direção às camadas populares, em parte graças à literatura de ficção e
exibições. (...) O cinema adotou as obras de ficção de escritores
colonialistas como Kipling para a Índia e Rider Haggard, Edgar Wallace e
Edgar Rice Burroughs para a África (...) Os filmes de aventura e a
“aventura” de ir ao cinema criaram uma experiência vicária de ardente
fraternidade, um campo de ação para a auto-realização da masculinidade
européia. Do mesmo modo que o espaço colonial estava disponível para
o domínio, e os cenários coloniais disponíveis para o cinema, o espaço
psíquico se destinava para o exercício da imaginação viril do espectador.
Nessa senda controversa, entre o nascente filme de viagem e o
surgimento da antropologia científica, consolidou-se, portanto, a câmera
(fotográfica e cinematográfica) não só como instrumento principal para se registrar
e explorar as maravilhas naturais e humanas encontradas às margens do centro
dominante, como registra Lira (1997, p. 253):
Antes do advento das técnicas mais modernas de representação icônica
(a fotografia, por exemplo), desenhistas de reconhecida habilidade
integravam as expedições científicas européias que se lançavam ao
54
mundo dentro de um projeto de expansão colonialista para investigar o
outro: o “selvagem”, o “primitivo”. Em meados do século XIX, a fotografia
aliou-se à antropologia na tarefa de inventariar culturas e modos de vida
estranhos ao homem dito “civilizado”. Desde então, as imagens
produzidas por este meio mecânico de representação bidimensional do
mundo passaram a fazer parte da bagagem dos cientistas sociais,
servindo como provas ilustrativas das “verdades” contidas nos textos
sobre as sociedades analisadas.
Mas também como veículo para afirmar as diferenças marcantes entre
o olhar de quem registra e o objeto desse olhar, assim como reproduzir as
impressões subjetivas – e conseqüentes interpretações -, imbuídas da cultura do
observador, coerente com o discurso cristão e o ego do homem ocidental, situado
no centro do conhecimento. Este, agente do colonialismo, era o viajante e
aventureiro romântico que produzia e reproduzia exóticos discursos sob a ótica do
colonizador e os auspícios da cultura que trouxeram da Europa e América
(DEVEREAUX, 1995, p. 331).
Como sabemos, as origens da antropologia são coincidentes e ligadas
aos processos tecnológicos. Notadamente a aplicação da fotografia na tentativa
de se estudar a cultura e diversidade humana. Tornou-se um braço de uma
disciplina que “nasceu da curiosidade dos ocidentais, notadamente os europeus,
em relação às culturas diferentes das suas” (FREIRE, 2005, p. 109). E as
primeiras tentativas nesse novo modo de representação – que suscitou
resistências - foram feitas de acordo com os estabelecidos métodos
antropológicos. A produção de filmes etnográficos foi possível com o
aprimoramento da tecnologia, que propiciou o desenvolvimento de uma nova
forma narrativa que, se esperava, revelasse ou expusesse os padrões de
comportamento de outras culturas. Como observa Freire, o surgimento da
antropologia permitiu a observação e interpretação sistemática do Outro, “o não
ocidental, o diferente, seu corpo, paramentado ou desnudo, sua terra, seu habitat,
suas crenças, seus hábitos sexuais e gastronômicos”, sendo que nunca é demais
lembrar que
55
o aparecimento dessa especialidade das ciências do homem se deu
numa época – segunda metade do século XIX – que viu nascer, também,
o mais efetivo instrumento de registro visual deste mesmo “outro” na
plenitude de seus movimentos: o cinematógrafo (FREIRE, 2005, p. 109).
Vale a pena nos estendermos brevemente sobre o tópico:
Conforme nos conta Brigard (1995, p. 15), o filme etnográfico está inter-
relacionado ao colonialismo, e floresceu em uma época de grandes
transformações políticas: revoluções socialistas, movimentos democráticos e a
independência de antigas colônias. O grande pioneiro foi Félix-Louis Regnault, um
médico patologista que mostrou interesse pela antropologia por volta de 1888, o
mesmo ano em que E. J. Marey demonstrava sua nova câmera, usando um rolo
de celulóide, para a Academia Francesa de Ciências. Regnault se dedicou ao
estudo dos movimentos de modo comparativo em culturas nativas, registrando os
indivíduos de diferentes origens em ações da vida ordinária como subindo em
árvores, caminhando, etc. Ele introduziu o sistemático uso de filmes em
movimento na antropologia, propondo a formação de arquivos antropológicos
constituídos de registros em película.
Regnault e um de seus estudos de movimento (1) e Etienne Marey (2).
56
Um dos acontecimentos que marcaram a transformação da
antropologia especulativa do século dezenove em uma disciplina com padrões de
evidência comparável às das ciências naturais foi a expedição antropológica ao
Estreito Torres (entre a Austrália e a Nova Guiné), liderada pelo zoólogo Alfred
Cort Haddon (1898). A expedição foi concebida como um esforço em conjunto
para um resgate antropológico cobrindo todos os aspectos da vida no Estreito
Torres, incluindo antropologia física, psicologia, cultura material, organização
social e religião. Todo um aparato de métodos de registro foram usados,
destacando-se a fotografia, gravação de áudio e filmagens. Os filmes etnográficos
de Haddon, para os quais uma câmera Lumière foi utilizada, são considerados os
primeiros registros do gênero em antropologia. O que encorajou os colegas de
Haddon a lançarem mão dos novos aparatos tecnológicos em suas pesquisas de
campo.
Alfred Cort Haddon e registros de sua expedição ao Estreito Torrres.
57
Esforços que, como observa Brigard (1995, p. 17), sempre encontraram
dificuldades, tanto financeiras, já que tomadas em filme era bem dispendiosas
naquela época, quanto técnicas, devido ao deslocamento de toda o equipamento
necessário e a pouca confiabilidade do resultado das filmagens. Além disso,
problemas de ordem teórica se avizinhavam: as perspectivas do filme etnográfico
não pareciam muito animadoras, vistas com desconfiança nos meios científicos.
Um ponto interessante levantado pelo autor (1995, p. 18) é concernente ao fato do
filme etnográfico ser feito por cientistas e, desse modo, não direcionados aos
leigos. Ocorrência que acarretaria uma séria limitação sob um ponto de vista
metodológico referente ao estudo do comportamento humano em escala global.
Que seria enriquecido pela inclusão dos filmes comerciais ou patrocinados por
iniciativas autônomas, como as que levaram tanto os cameramen de Lumière
quanto os de Edison a colher curiosidades pelo mundo afora. Este trabalho de
campo vai denotar, como sugere FREIRE (2005, p. 7), em “similitudes, tanto na
fatura quanto nos seus objetivos, com os documentários antropológicos”. Relação
que vai se assemelhar à relação entre os documentários antropológicos com os
realizados para o grande público.
Brigard cita Edgar Morin (1956), que descrevia a transformação dos
filmes em brinquedos de inspirados bricoleurs, e o cinema, a máquina dos sonhos
para as massas. Desde seus primeiros dias, duas tendências do cinema podem
ser vistas: o documentário ou filmes de atualidades, que tem raízes nos Lumières,
e o filme de ficção, com Méliès por base, estes últimos buscando recuperar um
público já enfastiado dos filmes que nada mais eram do que tomadas de imagens
em movimento. A união das duas tendências logo se mostrou vantajosa
comercialmente, tornando indistintas as fronteiras entre as atualidades e a ficção,
resultando no híbrido documentaire romance (BRIGARD, 1995, p. 18): uma
narrativa filmada em um genuíno set exótico. Gaston Méliès (irmão de Georges)
foi um dos que aderiu à moda de filmes passados em locações remotas,
produzindo melodramas nos Mares do Sul para a Star Film, companhia do irmão.
58
Ele levou equipamento e equipe ao Taiti e Nova Zelândia realizando cinco
documentaires romances, dos quais nenhum sobreviveu. O melhor deles, sob um
ponto de vista de produção etnográfica, foi provavelmente Loved by a Maori
Chieftainess (1913), no qual um explorador inglês, prestes a ser morto por um
caçador de cabeças, foge para uma ilha e acaba ajudado por linda princesa com
quem se casa, sendo aceito pelos Maori. A ação se passa em um cenário
autêntico, com o registro do cotidiano da aldeia, suas danças e guerras de canoas.
Mas se esta evolução na forma de se retratar o Outro trouxe a angústia
em como se proceder na relação entre representação e objeto, também deixou
presente a inclinação pelo bizarro e apelativo. Além disso, em vista do potencial
financeiro desses filmes, várias produtoras comerciais (como a Pathé) se
associaram a museus e universidades para a realização de várias películas que,
sem dúvida deram um impulso técnico e profissional para o filme antropológico.
Essas produções de caráter educativo foram suplantados em visibilidade e
rentabilidade pelas filmagens de exploradores e aventureiros, assim como pelas
citadas obras de ficção rodadas em lugares exóticos, esmaecendo cada vez mais
os limites que diferenciavam os filmes de caráter antropológico da exploração do
exótico, justificando a observação de Freire (2005, p. 109) de que nem sempre os
caminhos percorridos pelo cinematógrafo e antropologia convergiam para o
mesmo alvo:
Inúmeras vezes eles se cruzaram, um reencontrando o outro ao sabor de
suas próprias práticas. O cinema registrando a aventura humana naquilo
que passou a ser chamado de “filme documentário”, ou reconstituindo-a
no filme de ficção, e a antropologia servindo-se, de quando em vez,
desses registros para ilustrar ou edulcorar a rigidez de suas exposições.
59
2.4. O filme exótico e o exploitation
De acordo com Erik Barnouw (1993, p. 24), junto às tendências
colonialistas, o filme documentário estava infectado com crescentes falsificações –
no caso as reconstituições de eventos, seqüências filmadas em estúdio ou mesmo
locações e que eram muitas vezes inseridas entre tomadas reais. Quanto mais
distante, difícil ou arriscado o registro – como por exemplo acidentes naturais,
desastres e conflitos -, maiores eram as chances de serem reconstituídos. O apelo
ao exótico e a necessidade de estar em sintonia com os acontecimentos – um
requisito para as atualidades – dava aos produtores e realizadores um justo
motivo para que rodassem filmes como Hunting Big Time in Africa (1909), no qual
William Sellig filma uma simulação do safári de Theodore Roosevelt rodada em
Chicago com um ator interpretando o ex-presidente.
Produções deste tipo, além de se aproximarem do travelogue de
aventuras, podem ser considerados filmes “pseudo-etnográficos”, conforme
sugere Schaeffer (1999, p. 266): apesar de apresentarem cenas do dia-a-dia e
rituais, deixam de promover o que pode ser descrito como “compreensão
etnográfica”, esta definida como um modo de se fazer uma detalhada descrição e
análise do comportamento humano baseando-se em estudos de observação a
longo prazo no local.
Podemos incluir nessa senda, por exemplo, os registros fotográficos e
cinematográficos da Comissão Rondon tomados pelo major Luiz Thomaz Reis
durante as primeiras expedições da “Comissão de Linhas Telegráficas e
Estratégicas de Mato Grosso e Amazonas”, a partir de 1912. Afinal, não devemos
deixar de lado o fato de que, também no Brasil – ao mesmo tempo em que o
cinema descobria as suas possibilidades -, já se registrava em película diversas
peculiaridades da sociedade brasileira, notadamente os indígenas. Na verdade,
iniciava uma expressiva filmografia sendo o índio brasileiro enfocado não tanto
60
como centro das atenções, mas uma atração que iria legitimar o olhar do
espectador e inseri-los nas expectativas e projeções ideológicas da classe
dominante. Como observa Brandon (2005, p. 408):
A Comissão proveu a jovem nação com a segurança de que quando o
‘selvagem’ fosse contatado seria estudado e lembrado como peça de
uma herança nacional, sendo colocado em seu ‘respectivo’ lugar.
Rondon, enquanto um dos cabeças da Comissão tornou-se a face do pai
‘republicano’, protegendo e conduzindo o filho com a respectiva herança
do ‘progresso’. As pessoas indígenas eram definidas como naturais,
semelhantes a uma criança ou inocentes protetores da floresta. O nativo
era nobre por ser passivo e pacífico segundo os brancos que faziam o
contato, os quais, por sua vez, olhavam-no como ‘primitivo’ e, algumas
vezes, como ‘nativo hostil’, devido às raízes primordiais de uma nação
que se erigia. As imagens da Comissão levavam a identidade brasileira
aos sujeitos indígenas, colocando-os em contraposição com a civilização,
criados, em termos iconográficos, por valiosos fotógrafos.”
O filme Viagem ao Ronuro, como sugere Tacca (1998, p. 84), é sobre a
própria expedição e o índio fílmico somente uma conseqüência da aventura.
Passa a existir e se transforma assumindo uma nova existência visual em função
da expedição. No pequeno trecho de um filme da comissão, em formato de cine-
jornal, inserido no documentário de Sylvio Back Yndio do Brasil (1995), temos um
bom exemplo de como a acuidade em se registrar se rende à exploração, de
acordo com o enfoque pretendido. No caso, enaltecer os valores da civilização e
de seus representantes maiores, aqui representados na figura imponente do
General Cândido Rondon. Vale a pena reproduzirmos o texto da narração:
“(...) com vigor físico extraordinário enfrentou febres tropicais, as feras da
selva e até a fome. Já então estabelecera seu princípio: Morrer se preciso for,
matar nunca! Cumpria a sua missão de apóstolo das selvas fazendo com que os
índios aderissem espontaneamente aos costumes civilizados. Índios em seus
vilarejos se capacitam das boas intenções dos expedicionários e recebem com
61
evidente prazer a visita do pai grande. Cada presente que recebe o general
retribui com um facão, ambição máxima dos índios.”
Rondon entre os índios: visita do “pai grande”.
No filme, os índios são retratados como curiosidades exóticas,
infantilizados - “(...) o selvagem nobre, apresentado como inocente diante da
cultura ‘civilizada’ e vinculado às origens brasileiras” (BRANDON, 2005, p. 408) -,
sempre tendo dominando a cena Rondon, em seu uniforme de campanha. São
closes em geral de rostos sorridentes e receptivos ante a desenvoltura e postura
de conquistador do general. Este circula com espontaneidade entre eles, os
presenteia, agracia com brincadeiras e até os ensina a fumar. Mais do que um “pai
grande” condescendente com seus filhos, porta-se como o “salvador” perante
“vítimas do contato sem supervisão, da pobreza, do alcoolismo, da prostituição e
dos conflitos com agricultores” (BRANDON, 2005, p. 415). Esta confraternização
se desfaz momentaneamente, revelando as intenções de um projeto político por
trás de uma construção bem elaborada de imagens, quando o militar indica
sutilmente com a cabeça para onde um índio bastante caracterizado, deve olhar (a
câmera).
62
Rondon direciona o indígena para a câmera.
A produção, em sua bela fotografia, se rende ao exótico na significativa
mostra dos adornos corporais dos índios: as pinturas, os cocares de penas e as
perfurações. Em uma tomada vemos um índio demonstrando a colocação de um
adereço em forma de pena na perfuração que atravessa o seu nariz. Não só uma
atração aos olhos do espectador não familiarizados com costumes “selvagens”,
mas a idealização e consagração do homem-símbolo Rondon e da sociedade
civilizada. Denota-se maior aproximação com a exploração do filme-propaganda
do que da etnografia, pois os aspectos da mesma, incipientes, estão submetidos
aos objetivos principais. Essas imagens, como sugere Brandon (2005, p. 417),
“levam o observador a acreditar que aquele projeto foi a grande presença
salvadora e de civilização do índio, que ele poderia gradualmente transformar o
índio em um cidadão útil e produtivo membro da sociedade”.
63
O Índio “pacificado”: outras imagens da expedição de Rondon.
Como fica evidente, mesmo se na produção de documentários a
primazia era dada ao comportamento e padrões estabelecidos que se
consideravam caráter essencial da etnografia – ênfase na compreensão dos
eventos em seu contexto social e cultural tentando ser o mais correto e autêntico
possível -, os primeiros filmes etnográficos realizados após o estabelecimento das
bases do trabalho de campo dentro da área e sua popularização como Nannok of
the North (1922) e Moana (1926), de Robert Flaherty, serviram de modelo para os
filmes exploitation baseados no exotismo. Linha que emergiria a partir dos anos 30
centralizando seu foco naquele Outro não enquadrado nos paradigmas da
civilidade. Não é para menos que a África tenha se tornado o território preferido,
como sugere Marcius Freire (2005, p. 107):
64
A África foi, desde sempre, o grande fornecedor de matéria prima para
esses “shows de exotismo”, a tal ponto que nos últimos anos do século
XIX a profusão de “atualidades” Lumière retratando a vida e os costumes
dos povos das antigas colônias francesas era tamanha que deu origem a
um gênero chamado de exotica. Tais produções estão na raiz de um
outro gênero que mais tarde seria denominado de “documentário”.
O filme exótico tem relação direta com o documentário clássico, pois
apresenta elementos comuns: a voz over, a dramatização e a montagem, se
inserindo também dentro do que já conceituamos como “filme de exploração”
(exploitation), sendo esta palavra assim definida:
(...) a palavra exploitation, de acordo com o Dicionário Inglês-Português
(Ed. Antonio Houaiss), pode ser compreendida como “exploração”,
diferente de exploration, de teor mais técnico (uma investigação ou
exame). Segundo o Longman – Dictionary of Contemporary English,
exploitation significa uma situação em que alguém tira partido – de modo
não muito honesto – em benefício ou lucro próprio. Escolhemos utilizar
“exploração” como tradução (ainda que limitada) por, conforme o Novo
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, poder ter como definição, entre
outros significados, “tirar partido ou proveito (de um fato, uma situação,
etc.)” e “abusar da boa-fé, ingenuidade ou da ignorância de; enganar,
ludibriar: explorar os incautos”, o que vai, até certo ponto, na direção da
abordagem que pretendemos dar ao tema. (PIEDADE, 2002, p. 12).
E ao preparar o terreno para essas produções de caráter menos
altruísta, filmes como o de Flaherty ou mesmo da dupla Merian C. Cooper e Ernest
B. Shoedsack (especialmente Grass / 1925 e Chang / 1927) também insinuam o
limiar – muitas vezes não muito nítido – que deveria separar essas duas linhas de
produção, os filmes que tentavam se inserir no discurso antropológico e o
exploitation exótico, sendo que ambos invariavelmente distorciam as culturas e
práticas exibidas. Com a diferença de que, como nos faz notar Silvio Da-Rin
(2004, p. 46), o Nanook of the North de Flaherty, ainda que tivesse aberto um
novo campo de criação entre os filmes de viagem e as ficções, não se centra na
65
figura do viajante-explorador, mas sim na vida da comunidade e seus integrantes.
Modelo que de certo modo Cooper e Schoedsack utilizam, mas sem abrir mão,
como Flaherty, de sua onipresença.
Nanook of the North, de Robert Flaherty.
Nanook of the North é um caso interessante, principalmente se
remetermos à análise de Fatimah Tobing Rony, que reforça esse caráter de
indistinção entre o exótico e o antropológico, e a deformação de uma cultura.
Como observa a autora (1996, pp. 99, 100) o filme não só foi
extremamente popular ao ser lançado, como foi considerado o ponto alto da age
d’or do cinema etnográfico silencioso, o período de 1922 a 1932 que também
assistiu o lançamento de Moana (1926), de Flaherty, e sua colaboração com Tabu
(1931), de F. W. Murnau. Segundo ela, o discurso acadêmico em Nanook of the
North converge em questões de autenticidade. Alguns argumentam que pelo fato
de cenas cotidianas da vida dos esquimós terem sido reconstruídas para acentuar
o visual e o impacto narrativo do filme, estas não podem ser consideradas
científicas. Outros antropólogos sustentam que a representação cinemática nunca
66
pode, inteiramente, ser objetiva – dessa maneira tanto o inovador estilo “fluxo de
vida” de Flaherty, como Siegfried Kracauer o designou, quanto o sentido da
participação dos povos Inuit filmados, são aclamados como marcas do gênio
pioneiro de Flaherty. Outros ainda acrescentam que o valor de documentário do
filme encontra-se em sua representação pictórica de essencial humanidade –
visão que a análise da autora vai contradizer ao enfatizar em sua análise o olhar
de uma cultura superior, realçando não só o exotismo do retratado, mas também
incorporando ao personagem as características do “bom selvagem”. Ela
exemplifica, entre outras, com a seqüência passada no posto comercial, onde
Nanook é exibido como ignorante em relação à tecnologia ocidental. Diante de
uma parede de peles brancas, sua mulher senta-se em segundo plano embalando
o bebê. Nanook, agachado à esquerda e em primeiro plano, com o comerciante à
direita e em posição superior, olha atento para o gramofone no centro. Intertítulos
explicam que ele não entende aonde ou como o som é produzido. O esquimó é
então mostrado mordendo o disco de vinil e rindo para a câmera. O conceito da
pessoa indígena que não entende a tecnologia ocidental possibilita a satisfação
voyeurística e re-assegura para o espectador o contraste entre o primitivo e o
moderno: isso arraiga a noção de que as pessoas não estão realmente atuando
(RONY, 1996, pp. 112,113). A nudez também é explorada durante o filme,
brevemente em duas seqüências. Em ambas Nyla, mulher de Nanook, exibe os
seios. Na primeira, ao acordar pela manhã, surge das grossas cobertas de peles.
A outra cena ocorre quase no final do filme, dessa vez quando a esquimó se
prepara para dormir, tirando o casaco. Curiosamente ficamos sabendo que os Inuit
dormem nus.
Mas chama a atenção, principalmente, o fato de Flaherty recriar um
mundo que já não existia e que em seu pretendido resgate cultural, torna similares
as cenas do filme com a sala de exibições de um museu, onde modelos
esculpidos de grupos familiares realizam atividades tradicionais. A família de
Nanook adota uma variedade de poses para a câmera, sendo essas cenas do
67
pitoresco uma visão particular da família ou comunidade, usualmente com o pai
como caçador e a mãe como nutridora, paralela à visão ocidental de família
nuclear. (RONY, 1994, p. 112)
.
Nanook, desconfiado, “prova” o disco de vinil.
Imagens das duas seqüências de nudez, incluídas por Flaherty.
O que revela ligação com um interessante ponto em sua teoria: o
conceito de taxidermia. Ela cita Donna Haraway, que em artigo de jornal sobre os
dioramas do início do século XX, fala de taxidermia enquanto um meio de proteger
68
contra a perda, na intenção de que o corpo possa ser transcendido: “Taxidermia
completa o desejo fatal de representar, de estar completo; é uma política da
reprodução”. Quando Flaherty declarou, “Alguém freqüentemente tem que
distorcer uma coisa para capturar seu verdadeiro espírito”, ele não se referia ao
seu próprio trabalho artístico, mas as precondições para a efetiva representação
de uma cultura que tende a desaparecer. (1994, p. 102). Como ele próprio
explicou, não era seu objetivo mostrar os Inuit como eram na época em que
realizou o filme, mas como eles haviam sido. Rony denomina o modo de
representação do “etnográfico” que emergiu desse impulso de taxidermia.
Conceito que se refere ao processo de fazer com que aquilo que está morto
pareça estar ainda vivo, “empalhado”. Dessa maneira, o taxidermista etnográfico
se volta para o artifício, em busca de uma imagem mais real do que a postulação
original.
Um dos filhos bastardos dessas produções é Ingagi. Produzido pela
Congo Pictures em 1931, dirigido por William Campbell e freqüentemente
classificado como filme de horror, se utiliza dos clichês do travelogue aventuresco
como base para a construção de um exemplar filme exótico. Na verdade, Ingagi é
considerado o filme que iniciou este gênero do exploitation, além de ter inspirado
dois anos depois King Kong (1933). Supostamente a documentação de uma
expedição ao Congo Belga, foi montado com material de arquivo – como as cenas
de animais selvagens em seu habitat retiradas do anterior The Heart of África
(1915) – com outras rodadas especialmente para o filme como o sacrifício
(encenado na Califórnia) de uma virgem por suas companheiras de tribo ao
personagem título, um feroz gorila (na verdade um extra fantasiado). É
interessante nos determos um pouco na história do filme:
A narrativa de Ingagi acompanha uma expedição em 1926, liderada por
Sir Hubert Winstead e pelo capitão Daniel Swayne, caçadores que se embrenham
nas profundezas da África acompanhados por um cameraman e carregadores
negros para investigar os relatos sobre uma tribo que adora o deus-macaco
69
Ingagi, (supostamente uma palavra africana para gorila, o que de fato não tem
fundamento) e pratica sacrifícios humanos. Nota-se a montagem descuidada, já
que os “bwanas” das seqüências filmadas por Campbell usam chapéus de
caçador e bermudas, e quando são intercaladas as cenas de arquivo, aparecem
com roupas “safári” e elmos achatados. As filmagens mostram diferentes tribos e
uma variedade de vida selvagem, enquanto os exploradores se empenham em
matar uma aparentemente sem fim procissão de hipopótamos, rinocerontes, leões,
hienas e outros animais. Tudo ao som da trilha – um sinuoso solo de órgão – e à
ocasional voz condescendente e superior do narrador. Também cruzam o caminho
dos desbravadores falsos animais, como um réptil desconhecido – o tortadillo -, na
verdade uma tartaruga leopardo vestida com a couraça de um pangolim e asas
laminadas de pássaro, assim como uma gigantesca cobra. O cinegrafista é morto
por um leão ferido e após chegarem à região “Ingagi”, os caçadores tropeçam com
uma tribo de desconfiados pigmeus. De relance aparecem algumas mulheres nuas
entre a folhagem, para logo em seguida os carregadores tentarem capturar um
gorila que os sobrepuja e escapa. Outro gorila arrebata uma mulher de seios nus
que é salva por Swayne, que o mata com um tiro. Os exploradores finalmente
encontram a tribo perdida – filmagens de indivíduos vestindo roupas peludas
intercaladas com autênticas seqüências de orangotangos – e suas companheiras,
um grupo de mulheres nuas. No clímax do filme, Winstead e Swayne atiram em
um gorila com suas armas e posam para as câmeras com o animal morto. Uma
das mulheres sai da mata para lamentar a morte de seu amante gorila. O filme é
ousado ao fazer alusão clara ao cruzamento entre humanos e macacos,
mostrando inclusive uma negra seminua embalando um bebê adornado com pelos
colados, descrito pelo narrador como uma “estranha criança, parecendo mais
macaco do que humano”. Diga-se de passagem, a crença na união sexual entre
macacos e mulheres africanas era considerada fato, pelo menos até o século
XVIII. Naturalistas da época, em seu pensamento pseudo-científico e racista, viam
70
nos negros, inferiores aos brancos na escala da humanidade, um apetite sexual
animalesco, o que levaria as mulheres a copularem com macacos.
Cartaz promocional de Ingagi.
Ingagi, em sua fórmula que mistura nudez, matança de animais,
zoologia e antropologia fraudulentas, pode e deve ser visto como um marco para o
nascente “exótico exploitation” e a base sobre a qual toda esta vertente foi
estabelecida. A sua influência foi marcante nas décadas seguintes, tendo bastante
em comum com a tradição dos circos itinerantes e os primeiros travelogues e
filmes etnográficos. Denúncias de que era uma fraude não demoraram a ocorrer, o
que não chega a ser surpreendente. Afinal, como bem coloca Schaeffer (1999, p.
267), mesmo se levando em conta a recepção do filme em seu contexto histórico,
somente o mais ingênuo espectador poderia considerar o clímax do filme crível,
71
registro filmado sem interferência de um acontecimento real. Membros de uma
pré-estréia na Califórnia reconheceram, por exemplo, uma das “nativas” como
figurante regular em diversas produções. Também a Sociedade Americana de
Mamalogistas reclamou do filme, após perguntar à embaixada britânica sobre Sir
Hubert Winstead e descobrir que ele não existia (assim como seu parceiro
Swayne). Além disso, os produtores foram processados pelo uso indevido das
cenas de Heart of Africa. E mais: descobriu-se que várias seqüências foram
rodadas no jardim zoológico de Los Angeles e os pigmeus, crianças negras de
cinco a dez anos de idade. Outros figurantes negros foram utilizados para
representar as mulheres da tribo a serem sacrificadas aos gorilas e, devidamente
caracterizados, as “estranhas criaturas meio-humanas, meio-macacas”. Refletindo
a interpretação comum de que os nativos são codificados como negros, o que vem
a depreciar estereótipos com relação a afro-americanos, situação que deve ser
observada com atenção no discurso racial do cinema etnográfico. Como sugere
Rony (1996, p.177) muitos indonésios tem sido e são vistos pelo Ocidente como
negros ou, usando a categoria científica, “negróides oceânicos”. Dessa maneira, o
uso de figurantes afro-americanos para representarem insulados indonésios
sublinha como nos imaginários popular e científico a pele negra era inteiramente
sinônimo de selvageria. Relatos antropológicos de grupos de Sumatra como os
insulados Nias e os grupos de Dayak, Kalimantan e Sarawak (o Homem Selvagem
de Bornéu) também os pintam como selvagens de pele negra, animistas, canibais
belicosos.
O fato é que toda a controvérsia sobre a veracidade de Ingagi e o
desacordo da censura em relação aos “nativos” despidos serviram para
impulsionar as bilheterias, que faturaram com Ingagi mais de quatro milhões de
dólares, uma verdadeira fortuna para a época. Ao que parece, os espectadores
não se importaram em saber que o feroz símio era na verdade o ator Charles
Gemora fantasiado. Isso sem falar na inauguração de uma leva de filmes
protagonizados por falsos gorilas, como Angkor (1935), mais tarde relançado
72
como Forbidden Adventure, uma “autêntica aventura passada nas ruínas da
Indochina, conhecida como Angkor”. Pretendendo ser a combinação das
filmagens de uma expedição à essa cidade perdida combinadas a recriações
sugeridas pelos diários e notas dos próprios exploradores, era uma combinação
de seqüências de arquivo tiradas de outros filmes (algumas eram filmagens
genuínas de tribos africanas) com o acréscimo de cenas mostrando seios nus.
Este, ambicioso, prometia ter encontrado o “elo perdido” – novamente um ator
vestindo fantasia de macaco - e alardeava “antigas e desconhecidas orgias de
mulheres selvagens”.
Cartaz promocional de Angkor (Forbidden Adventure)
73
Três cenas de Angkor (Forbidden Adventure).
Certamente, as teorias acerca da evolução das espécies e a
mistificação em torno de um suposto “elo perdido” – algo que hoje em dia é
refutado pela biologia – causava sensação naquele período em que as
especulações científicas e a aventura – e por que não dizer o misticismo –
caminhavam de mãos dadas. Sobre este assunto, particualrmente, vale
74
relembrarmos o caso relatado por Rony (1996, p. 157) do nativo do Zaire (antiga
Kasai) Ota Benga, exibido no zoológico do Bronx no início do século. Levado aos
Estados Unidos pelo antropólogo e missionário Samuel P. Verner a pedido de
William John McGee, diretor da Smithsonian Institution, foi exposto com outros
nativos na Feira Mundial de St. Louis, como curiosidade antropológica. Após ser
devolvido à sua terra natal, Ota Benga retornou aos Estados Unidos, sendo
alojado primeiramente no Museu Americano de História Natural da Cidade de
Nova York. Posteriormente, foi abrigado em uma jaula na Casa dos Macacos do
Zoológico do Bronx, que dividia primeiro com um chipanzé e depois com um
orangotango, tornando-se um espetáculo zoológico para um público ávido por
excentricidades. Segundo relatos da imprensa
14
da época, Ota Benga não podia
ser diferenciado dos outros macacos, sendo que as fotografias e sua
caracterização reforçavam sua posição de “elo perdido”. O que só alimentava essa
vertente de filmes sobre selvas, tribos perdidas e macacos.
Ota Benga: atração na casa dos macacos do Zoológico do Bronx (1906).
14
No New York Times de 9 de dezembro de 1906, a nova atração foi noticiada como “um pigmeu
que não é muito mais alto do que o orangotango, e onde se pode notar os pontos de semelhança.
Suas cabeças são parecidas e quan do parecem satisfeitos, riem do mesmo modo”.
75
De Angkor também derivou Gorilla Woman, que garantia “monstros
gigantes entronizados como deuses do amor”. Outro foi Love Life of a Gorilla
(1937), que tomou cenas emprestadas de Angkor, passou anos a fio com vários
títulos: Kidnapping Gorilla, Jungle Gorillas, Gorilla Kidnappers e The Private Life of
Ingagi. Também apelava para as relações sexuais entre mulheres negras e
gorilas, que podem servir de metáfora para uma ameaça ao tabu do sexo inter-
racial. O próprio Ingagi ganhou um filho em Son of Ingagi (1940). O sucesso King
Kong (1933), dos “grandes caçadores brancos” Merian C. Cooper e Ernest B.
Schoedsack, pode ser inserido nessa leva. Obra de ficção que em seu subtexto
remete à produção desse gênero: um diretor que viaja com sua equipe para uma
selva remota, para rodar capturar em seus filmes o espetacular, sem nenhuma
preocupação com a cultura com a qual está interagindo.
Posters de Gorilla Woman e Son of ingagi.
76
Ficam evidentes em Ingagi os contornos do que se tornaria padrão na
leva de filmes que viriam em sua esteira. Em primeiro lugar: quase todos os
exóticos exploitation mostravam nudez de alguma forma, sendo esta o maior
chamariz dessas produções. Nos anos 30, geralmente os espectadores eram
brindados com os seios nus de mulheres africanas ou de ilhas do Pacífico Sul.
Seios que, junto às nádegas e posterior nudez frontal feminina e masculina se
tornaram os alvos preferidos dos censores, principalmente após a proclamação do
Código Hays. Deve-se ter em mente que corpos nus de nativas e nativos das
colônias, desde finais do século XIX eram explorados por fotógrafos que, sob o
manto da etnologia, tinham por objetivo satisfazer tanto a curiosidade quanto o
prazer.
Outro fator que merece destaque é a iniciativa de se causar choque ou
impacto no espectador. Nesse caso, pode-se dizer que a linha que separa os
autênticos travelogues de aventura, filmes etnográficos e o exótico exploitation é
tênue e dificilmente visível. Vamos considerar, por exemplo, que muitos filmes
etnográficos foram elaborados para fazer uma espécie de ponte entre culturas
distintas. Independente da intenção, essas diferenças culturais podem chocar ao
serem exibidas para determinado público. Por outro lado, em sua maioria, os
filmes exóticos foram feitos para causar impacto, o que não os impede de servir a
um propósito ao atingir uma meta da antropologia, ao colocar em foco a diferença
e enfatizar a diversidade, revelada em aspectos sensacionais e estranhos:
modificações corporais, sacrifício humano, canibalismo, ou práticas sexuais nada
convencionais, como bestialismo e poligamia. Aspectos instigantes que também
remetem à carnavalização bakhtiniana ao evocarem traços do “realismo grotesco”
do teórico russo, como a ênfase nos princípios corpóreos materiais, ou seja,
imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades naturais
e da vida sexual.
A nudez e os rituais (que no contexto ocidental iriam de ofensivos a
repelentes), assim como outros tipos de comportamento facilmente rotulados
77
como primitivos são na verdade as qualidades que fizeram dos filmes exóticos um
gênero do cinema exploitation, posto que estes podiam mais facilmente romper
com os cânones previamente configurados oferecendo, por sua vez, conforme a
idéia de Bakhtin (1987, p. 5) uma visão do mundo, do homem e das relações
humanas totalmente diferentes, não-oficial, parecendo terem construído um
segundo mundo “às avessas”, paralelo e oposto, invertendo e subvertendo a
ordem estabelecida.
Algumas produções centralizam a ação quase que exclusivamente na
nudez. Em outras, o espetáculo é comandado por terríveis sacrifícios humanos e
cenas de canibalismo. Fora os filmes que combinam todos esses elementos. Vão
ser estes os fatores – nudez e “choque” - que vão distingüir os exóticos das
aventuras de selva produzidas por Hollywood no período, sejam ficcionais ou
travelogues. Mas, apesar de nem o mainstream nem o exploitation terem chegado
perto (ou mesmo tentado) se aproximarem de fato de alguma veracidade
etnográfica ou zoológica, conseguiram pavimentar o imaginário ocidental –
notadamente norte-americano (ponto de convergência de grande maioria dessas
produções), principalmente em uma era de incertezas e desilusões que foi o final
dos anos 20 e início dos 30. Devemos ter em mente que esse período em que o
exótico floresceu está relacionado aos efeitos da queda da bolsa de valores, em
1929. Os infortúnios da vida civilizada e moderna eram sublimados pelo estilo de
vida escapista que essas imagens exóticas ofereciam, distantes das pressões do
capitalismo. Tanto que um dos grandes sucessos da época eram as viagens do
cartunista e explorador Robert Ripley – criador do famoso Acredite se quiser
(Believe it, or not!) -, que desde 1923 percorria o mundo sempre acompanhado por
uma câmera (sua jornada o levou a praticamente percorrer o globo terrestre)
descobrindo estranhezas que publicava diariamente em suas colunas em diversas
publicações. Era uma elegia a um mundo de maravilhas (visto sob as lentes dos
documentaristas e aventureiros), um retorno à natureza, onde a selva ou as ilhas
paradisíacas eram locais de abundância natural e mesmo as suas adversidades
78
eram um estímulo, por serem obstáculos a serem vencidos ou conquistados.
Como sugere Schaeffer (1999, p. 269):
Com tantos exóticos feitos a partir de remendos de filmagens que foram
encontrados, comprados ou mesmo roubados de diferentes fontes, um
tipo de “selva” foi criado. A selva da imaginação da classe média norte-
americana. Um lugar onde estranhas bestas dos mais diversos
continentes e diferentes ecossistemas co-existiam. Nesta selva, os
animais são tanto criaturas peludas e amistosas, facilmente
domesticáveis, quanto assassinos cruéis e sedentos de sangue, prontos
para o extermínio. Não havia meio-termo. Do mesmo modo eram
apresentados os habitantes desse espaço imaginário: indivíduos
preguiçosos, inocentes infantilizados cambriolando em um Jardim do
Éden do século XX; ou selvagens pré-históricos deslocados no tempo
somente para nos lembrarmos de como somos civilizados. Como outros
gêneros do exploitation, os exóticos tinham como destino as inquietações
do norte-americano comum acerca de raça, sexo e modernidade. Em
nenhum outro gênero do exploitation a dicotomia entre atração e aversão
foi tão pronunciada.
Provavelmente nenhuma obra cinematográfica do período chegou tão
perto do exótico exploitation como o citado King Kong. Vale abrirmos um espaço
para nos dedicarmos não só à criatura, como aos criadores, que se revestem do
espírito aventuresco das produções deste gênero e nelas se inserem de modo
como poucos realizadores já fizeram.
Merian C. Cooper é o modelo exemplar do aventureiro e explorador.
Piloto de bombardeiro na Primeira Guerra Mundial, prisioneiro dos alemães e
depois dos russos – quando resolveu se engajar na causa da Polônia -, dos quais
empreendeu uma fuga audaciosa, teve o seu primeiro contato com a África ainda
na infância. Aos seis anos leu o livro Adventures in Equatorial África (1861), que
descrevia um continente de maravilhas, repleto de animais selvagens atacando
vilarejos, mulheres nativas sendo levadas por macacos e a caçada de um grande
gorila. A influência dessa leitura deixou nele a semente do explorador, que
consolidaria ao tornar-se documentarista.
79
Cineastas e aventureiros: Merian C. Cooper (esq.) e Ernest B. Schoedsack (dir.)
Seu primeiro trabalho com o parceiro de aventuras e ex-fotógrafo de
guerra Ernest B. Schoedsack foi em uma expedição à Abissínia, onde filmaram o
documentário Grass (1925), sobre a migração de milhares de pessoas através das
inóspitas montanhas de Zardeh Kuh, cruzando a Turquia e o Irã em busca de
pasto para os seus rebanhos. Assim como os seus contemporâneos, ficaram
cativados pelas nuances dramáticas daquele mundo e do tipo de vida que seus
habitantes levavam. Começaram a estabelecer uma linha de documentários
“empolgantes e mais estranhos que a ficção”, que denominaram de “dramas
naturais”: o drama de pessoas vivendo em lugares reais, mas contando uma
história, capturando uma realidade. Algo que poderia se assemelhar ao que
Robert Flaherty fizera em filmes como Nanook of the North (1922) e o posterior
Man of Aran (1934), mas acrescentando um toque do “espetacular” e do épico –
no caso a travessia de um caudaloso rio, de modo que pudessem construir uma
narrativa mais palatável e melhor capitalizar em cima da exibição, levada a cabo
por um grande estúdio, a Paramount. Vale lembrar que após o sucesso de
Nanook, os estúdios norte-americanos estavam interessados em investir em
80
“dramas etnográficos”, repletos de romantismo aventureiro. Além disso, cristaliza a
figura do explorador-documentarista, que provavelmente nenhum outro encarnou
tão bem quanto Cooper, e que se mostra para além do exibido. Marca a grandiosa
concepção do cineasta como novo explorador, o audaz viajante e descobridor de
terras exóticas, e estabelece o mito do documentarista etnográfico como herói
(BALIKCI apud RONY, 1996, p.133).
Chang (1927), filmado na Tailândia, é a consolidação desse estilo
narrativo, pois inclui o drama humano através da sobrevivência de uma família e
espetaculares cenas de ação, principalmente animal (a dupla foi pioneira na
filmagem de animais selvagens), como o ataque do tigre e o sensacional estouro
da manada de elefantes.
Cooper e Schoedsack durante as filmagens de Grass (esquerda) e cena de Chang.
Voltando a King Kong, vamos relembrar rapidamente sua trama: o
gigante gorila pré-histórico Kong é capturado e transformado em uma lucrativa
atração da Broadway pelo cineasta da selva Carl Denham (Robert Montgomery).
Kong, então, escapa, criando o terror na metrópole; ele aproxima-se
silenciosamente da heroína loura Ann Darrow (Fay Wray) e a carrega até o topo
81
do Empire State Building, onde é morto por uma incessante saraivada de balas
dos aviões de combate.
King Kong (1933)
King Kong é antes de tudo um filme sobre as suas experiências, sobre
a instigante possibilidade de se descobrir nas selvas coisas que jamais foram
vistas. E uma homenagem mútua, onde o aventureiro diretor Carl Denham
representa o próprio Cooper e o intrépido imediato, Jack Driscoll, seu parceiro
Ernest Schoedsack. Além disso, consagrou definitivamente essa nova roupagem
para a “bela e a fera” (ou a “bela e o gorila”), que já se tornara elemento
predominante dos filmes de selva desde Ingagi.
A origem de King Kong foi um filme de expedição que contém
elementos etnográficos sem ser explicitamente sobre povos indígenas. Realizado
por W. Douglas Burden, acompanha a expedição de 1927 do Museu Americano
de História Natural para estudar o ainda desconhecido Dragão de Komodo
82
(Varanus komodensis ). Animal que habita a ilha de Komodo, (Indonésia), é
conhecido como o maior lagarto do mundo e o mais próximo atualmente do
dinossauro. Merian Cooper alegaria mais tarde que a expedição de Burden fora
uma motivação direta para King Kong. Possivelmente o diretor lera o relato da
expedição de Burden em seu livro intitulado Dragon Lizards of Komodo: The
Expedition to the Lost World of the Dutch East Indies – título bastante semelhante
em apelo comercial aos das narrativas de viagens que seduziam o desejo por
aventuras e exotismos dos leitores do passado.
O filme de Burden se inicia com uma visão do Museu Americano de
História Natural, seguida por um mapa detalhando o itinerário de sua viagem. Em
seguida são mostradas cenas da chegada da expedição na ilha de Komodo, a
caçada de animais para serem usados como isca e a busca pelos lagartos, sendo
uns mortos e outros capturados vivos. King Kong, rotulado como um filme de
horror e de fantasia, foi moldado com êxito na narrativa do filme de expedição. A
partir daí podemos traçar uma breve comparação começando com a chegada da
expedição na Ilha da Caveira (recriada a partir dos relatos sobre a Ilha de
Komodo). Carl Denham, o líder, mais do que incorporar as aspirações de Cooper,
também ganha substância ao ganhar as características de Douglas Burden.
Desbravadores, ambos – o fictício e o real - conquistam o direito de serem os
primeiros homens brancos a capturar um monstro exótico. Acompanha o grupo a
personagem de Ann Darrow, baseada na esposa de Burden, Katherine, uma
fotógrafa na expedição do museu. Foi Burden quem primeiro chamou a atenção
para o espetáculo de um monstro encantado por uma bela mulher branca, tema
nada inédito, como vimos, nos filmes exóticos de exploração, e que ganha maior
relevância de forma até redundante nas várias alusões de Carl Denham ao
relacionamento de Ann com Kong como “Bela e a Fera”. O próprio Burden dá a
deixa, comentando: “um dragão flamejante em si é uma idéia fascinante –
igualmente, assim, a idéia de uma bela donzela de pele branca. Una essas duas
83
idéias, de uma forma ou de outra, e você terá uma história que por sua própria
natureza sobreviveria através de anos incontáveis”.
Na ilha os aventureiros se defrontam com nativos “pueris e
supersticiosos”, ainda de acordo com a narrativa de Burden, com seus tambores e
danças; além de vários animais selvagens e antediluvianos que vão surgindo
durante a exploração do local. Chegando ao objetivo, capturam Kong, que é
levado para a cidade e exibido publicamente, antes de sua fuga e morte na
metrópole. Assim como o gigantesco gorila, o lendário dragão de Burden também
é vítima da civilização, perecendo no local onde era exposto. Curiosamente,
Cooper tinha em mente ir à África, capturar gorilas e leva-los até Komodo, onde os
animais seriam filmados lutando com os dragões.
A grande abrangência temática de King Kong, responsável por sua
difusão e popularidade, levou às mais variadas interpretações: um conto de fadas
capitalista, metáfora imperialista, alegoria do inconsciente, e espetáculo recalcado
de tabus raciais. Seu status de fantasia cinemática, como “um moderno mito
nascido de um filme” é inquestionável. Mas King Kong vai além da condição de um
clássico do cinema fantástico produzido por um grande estúdio de Hollywood. Na
verdade é uma obra que, em aspectos bastante significantes, reconstrói os
paradigmas da antropologia (RONY, 1996, pp. 158,159) conformando uma
metáfora da feitura de um filme etnográfico, revestida de fantasia de horror.
Essas relações chegam a ser óbvias: a filmagem, a captura, a exibição,
a fotografia e, finalmente, a morte de Kong, se inspiram na histórica exploração
dos povos aborígenes como singulares espécimes etnográficos pela ciência,
cinema e cultura popular. King Kong, além do mais, começa com uma expedição a
uma ilha remota, equipada com câmera de filmar. É, literalmente, um filme sobre a
realização de um filme etnográfico. Tão exagerado e grotesco, King Kong
compara-se, de acordo com Rony (1996, p. 159)
84
com as cronofotografias de Regnault, ou com o Nannok of the North, de
Robert Flaherty, fazendo referência a vários temas que caracterizaram a
construção do etnográfico no início do cinema. Se, como Cooper
lamentou-se, não havia mais lugares remotos, ou culturas genuinamente
desconhecidas, monstros ainda permaneciam espreitando na imaginação
do cinema etnográfico do entre-guerras. No cinema comercial do período,
a monstruosidade era o modo de representação do etnográfico.
O que corrobora nossa idéia, embasada no trabalho da autora (1994,
pp. 160, 161) de que o modo de representação do “etnográfico” no cinema
comercial pode tomar a forma de teratologia. Ela sugere que não é de se
surpreender que King Kong possa emergir em grande parte dos “filmes raciais”,
gênero iniciado por Nanook of the North.
Sendo, neste sentido, um trabalho inspirado pelas políticas e estéticas
da reconstrução, King Kong não é somente um filme sobre um monstro. O próprio
filme é um monstro, um híbrido dos gêneros de expedição científica e fantasia,
remetendo também à teratologia, outro um importante aspecto da antropologia: o
monstro, como o “outro primitivo”, era de forte interesse pois podia ser usado para
estudar e definir o normal. Ela cita The Normal and the Pathological, do historiador
de ciência Georges Canguillen, que descreve o quanto de anormalidade é
necessário para constituir a normalidade:
O anormal, enquanto a-normal, vem depois da definição do normal, é sua
negação lógica... O normal é o efeito obtido pela execução do projeto
normativo, é a norma exibida no fato... Não é paradoxal dizer que o
anormal, embora seja o segundo logicamente, é o primeiro
existencialmente.
A noção do “etnográfico” como monstro era apenas um exagero da
tendência comum de ver povos nativos como estranhos, bizarros e repugnantes.
O etnográfico torna-se monstruoso no exato momento da apropriação visual.
85
Estes filmes de aventuras exóticas também ficaram conhecidos como
“goona goonas”, denominação retirada da produção francesa Goona Goona
(1932), realizado em Bali pelo sobrinho de Theodore Roosevelt, André e Armand
Denis. O título se referia a uma planta que os nativos fumavam e que tinha
poderes afrodisíacos. O que os desinibidos nativos não sabiam é que suas
escapadas sexuais, capturadas em filme, seriam vistas por voyeurs civilizados nos
Estados Unidos. É interessante destacarmos que os censores, em geral,
deixavam passar estes goona goonas por um motivo nada altruísta: preocupar-se
com a nudez de africanos e balineses seria admitir que eles eram, em uma escala
evolucionária, mais próximos dos homens brancos do que se gostaria de pensar.
Sendo assim, de 1930 até o início dos anos sessenta, os censores que entravam
em alerta cada vez que uma branca ameaçava tirar o sutiã, permitiam que
mulheres negras mostrassem com impunidade os seios e nádegas nas telas.
Somente a exposição de pêlos púbicos era totalmente proibida. O que nos remete
às palavras de um dos produtores ao diretor Carl Denham na nova versão de King
Kong (Peter Jackson, 2005) quando afirma que o motivo pelo qual as pessoas vão
a esses filmes é ver as nativas sem roupa.
Goona Goona (1932)
86
E nativas com pouca roupa não faltam no filme brasileiro Tabu (1949),
de Eurico Richers, certamente inspirado não somente em King Kong, mas também
em antecessores como Ingagi e Angkor. Um autêntico exploitation, trata –
segundo o narrador em over - de uma tribo remanescente da desaparecida
Atlântida ou do fabuloso Eldorado, que volta da caça trazendo aprisionado um
terrível macaco carnívoro. As dançarinas da aldeia, seminuas, dançam em torno
do animal, ao centro. Os nativos – caracterizados como africanos de carnaval,
como se tivessem saído de um filme de Johnny Weissmuller – tentam dominar a
perigosa fera, mas em vão. Nota-se claramente que o perigoso gorila é um ator,
em uma tosca fantasia. É convocado o feiticeiro da tribo (vestido com uma pele de
onça) para apaziguá-lo. Com passes mágicos, ele tira as forças do macaco.
Rasga-se a pele do monstro e de seu ventre surge uma mulher branca e nua (na
verdade apenas os seios estão desnudos, o resto coberto com uma tanga
sumária) que passa a dominar a tribo. Ela é mostrada dançando sedutoramente, a
pele muito branca contrastando com seus parceiros negros, submissos. Nem
precisamos falar do contexto subjetivo, sobre a questão racial inerente.
Tabu é uma curiosidade, que merece ser mencionada por abranger
tanto os clichês do filme de expedição, do goona-goona quanto do burlesco, este
último, uma herança da tradição do vaudeville. O burlesco ganhou força durante o
período da segunda guerra, enfraquecendo no fim da década de 1940 e
retornando com vigor renovado posteriormente. Basicamente giravam em torno de
dançarinas, em trajes sumários, em exóticas performances que em geral
prenunciavam stripteases. Ainda que contidos. Naquele período, somente as mais
audaciosas performers chegavam ao máximo da exibição que era mostrar os
seios nus (como a dançarina de Tabu), usando somente uma minúscula cobertura
para a genitália.
87
As dançarinas da tribo, em Tabu, fazem seu número para o perigoso gorila aprisionado, que não
parece muito entusiasmado. O feiticeiro da aldeia, com passes de mágica, faz sair de dentro do
bicho uma bela mulher, branca e nua, que domina os homens com sua dança sensual.
88
Eric Barnouw (1993, p. 50) chama a atenção, dentro dessa tradição do
explorador-enquanto-documentarista, para as extravagantes contribuições do
casal Martin e Osa Johnson. De acordo com o autor, podemos concluir que, longe
do talento de seus contemporâneos Cooper e Shoedsack (mas próximos da
tendência à auto-glorificação), ou mesmo Flaherty, foram quem melhor plantaram,
junto com Ingagi, as sementes do exótico com suas fotos, relatos e filmes. Saídos
do Kansas para distantes paragens, entre 1917 e 1936 rodaram dezenas de filmes
– Martin morreu em 1937 – em que se misturavam intenções etnográficas e o mais
exemplar exploitation. Congorilla (1929) – “o primeiro filme sonoro feito
inteiramente na África” – pode ser considerado uma de suas produções mais
significativas. Nele, o casal registra sua volta ao Quênia e à Tanzânia, antes de
partirem para Uganda e Congo, filmando diversas espécies de animais,
culminando com a captura de dois gorilas. No filme estão marcantes os abusos do
casal, que possuía um senso de humor bastante peculiar, além da evidente busca
pela auto-promoção:
Os Johnsons estavam constantemente sendo filmados em seqüências
que demonstravam a sua coragem ou sagacidade, ou ambos. Em uma
floresta, claramente os vemos recrutando quarenta jovens negros como
carregadores. Quando um diz seu nome, ele soa como “coffee pot” para a
Sra. Johnson, então o nome é assim registrado. A narração de Johnson
fala de “engraçados e pequenso selvagens”, “os mais felizes pequenos
selvagens na face da terra”. Sua idéia de humor era dar um cigarro a um
pigmeu e esperar ele sentir-se mal; dar um balão para outro pigmeu
encher e assistir sua reação quando o balão estourasse; fazer um
macaco beber cerveja e ver o resultado. (...) Para capturar dois gorilas
bebês, sete grandes árvores foram cortadas, isolando os gorilas em uma
árvore no centro, sendo esta também derrubada. (BARNOUW, 1993, pp.
50, 51)
Isso exemplifica a conclusão do autor de que uma década após Nanook
of the North, o explorador-enquanto-documentarista estava em declínio
(BARNOUW, 1993, p. 51). Na verdade um outro tipo de explorador iria se
estabelecer, aquele que se não deixa o legado do cinema documentário de lado, o
89
reveste de espetáculo. O que nos remete a Bazin quando afirma, falando no que
considera o declínio desse gênero calcado no exotismo, que essa decadência se
caracteriza por uma busca cada vez mais descarada do espetacular e o
sensacional. O fato é que, infelizmente, o crítico francês não pôde ver que essa
exposição do espetacular acabaria se tornando mais popular ainda nas décadas
vindouras, não só no cinema documentário tradicional, mas também em uma
ramificação que foi se estabelecendo, partindo da mesma raiz comum, mas com
uma proposta bastante transparente. Afinal, como o próprio Bazin (1991, p. 34)
escreveu, já não basta caçar o leão, se ele não come os carregadores. Essa sim,
uma inspirada observação que serve muito bem aos documentários de
exploração, que vão ganhar um novo epíteto - filmes mondo.
Martin e Osa Johnson (esq.) e uma de suas vítimas (dir.)
90
2.5. Segunda metade do século XX
Mesmo considerando o período que vai até a segunda guerra mundial
como a era do “exploitation clássico”, podemos constatar a permanência dos
exóticos – na forma herdada das primeiras décadas – durante o pós-guerrra. Se
nas antigas narrativas passadas no continente africano freqüentemente a ficção
obscurecia os fatos, a guerra de 1939 trouxe uma indefinição ainda maior ao que
se poderia chamar de factualidade, já que as simulações e reconstituições foram
cada vez mais incorporadas às atualidades. Além disso, nos Estados Unidos, o
rigoroso código
15
que regulamentava as produções com seu selo de aprovação,
empurrava qualquer título que aí não se encaixava para os circuitos itinerantes.
Dentro dessa premissa se inseriam tanto filmes ditos educacionais, como Mom
and Dad (1946), mostrando o nascimento de um bebê, quanto os exóticos,
repletos de nativas despidas e violência (alusão a sacrifícios, canibalismo, etc.).
A década de 1950 viu uma revitalização e um re-direcionamento nos
herdeiros diretos dos exóticos da primeira metade do século XX. Wild Rapture
(1950) pode ser considerado uma das primeiras entradas no que viria a ser a nova
encarnação dos documentários de exploração. Uma legítima tentativa de capturar
rituais primitivos para o público alvo dessa linha de produção, Wild Rapture foi
filmado na África Central, na região do Congo. O filme documenta uma expedição
que tem como objetivo se aventurar num território inexplorado e consegue
algumas surpreendentes filmagens da vida primitiva. Inclui o registro da famosa
tribo Ubangi, que tinha o costume de cortar e estirar os lábios de seus nativos
desde tenra idade até que discos de madeira do tamanho de pratos de jantar
pudessem ser colocados na incisão. A narração, jocosa, prenúncio também de
15
O Código Hays.
91
outro modo de se lidar com a voz neste tipo de documentário, ao que parece,
ainda não tinha a vivacidade posterior (como veremos em Mundo Cão), sendo
elemento prejudicial. Por exemplo: a visita a uma aldeia de pigmeus inspira o
narrador a descrever as suas ações, de forma constrangedora, como brincadeiras
infantis. Um tratamento capilar à base de lama é administrado, dentro desse
ponto-de-vista, em um “salão de beleza pigmeu”. Ou seja, o exótico deixa de ser
curioso para ser ridicularizado. Como piada visual, uma tomada do lábio com o
disco inserido de um Ubangi é seguida por dois hipopótamos abrindo e fechando
as enormes mandíbulas. Também em Wild Rapture, os realizadores (dos quais até
o momento não conseguimos as referências – talvez por vergonha), se os nativos
não eram tratados de forma paternalista e condescendente, as privações porque
passavam eram apresentadas com excessivo melodrama.
A técnica de montagem também varia de acordo com a seqüência
apresentada, de forma irregular. Isso pode ser visto principalmente nas cenas de
ação do filme. Cortes rápidos e frenéticos dão o tom enquanto um leopardo é
atravessado pelas lanças dos pigmeus. Do mesmo modo são apresentadas cenas
como do ataque de outro leopardo a um desafortunado membro da tribo e a caça
(e morte) de um perigoso gorila. Curiosamente, essa última seqüência acabou
sendo vendida para o mercado doméstico de filmes em 8 mm pela Castle Films
sob o título de Gorila Assassino (Killer Gorilla). Antevendo o estilo mondo e
também os shockumentaries dos anos 70, Wild Rapture também oferece
segmentos retratando crianças nativas degustando enormes lagartas e a
sistemática dissecação da carcaça de um elefante pelos pigmeus famintos.
Em Jungle Head Hunters (1951), dirigido e protagonizado por Lewis
Cotlow para a RKO, o explorador tem como meta conhecer os índios Bororos.
Após exaustiva e interminável jornada pelo rio Amazonas é aprisionado pelos
nativos, armados e aparentemente hostis. Utiliza as táticas comuns, de oferecer
amizade e bugingangas, sendo avaliado cuidadosamente pelo conselho da tribo,
todos ostentando muito coloridos cocares e pinturas corporais – na verdade
92
bastante convincentes e bem fotografadas. A desconfiança é justificada, já que
muitos estranhos chegam àquelas paragens não tão bem intencionados quanto
Cotlow, mas em busca de um lendário ouro inca que acreditava-se estarem sob a
guarda dos Bororos. Sendo rapidamente convencidos de seus objetivos altruístas,
os Bororos aceitam Cotlow na tribo, deixando que visse as suas mulheres – todas
de seios nus -, e presenciasse suas danças e ritos tribais. Quanto à prática que dá
nome ao filme, e é utilizada como chamariz – “Veja cabeças humanas serem
encolhidas ao tamanho de bolas de beisebol” -, é nitidamente encenada. Assim
como o ataque das piranhas e as danças das nativas de seios nus.
Jungle Head Hunters: após convencer seus captores indígenas de suas boas intenções, o
explorador consegue ver as mulheres da aldeia Bororo.
93
Dirigido por Ernest Gould e rotulado de “estudo antropológico” dos
nativos do Congo, o filme Karamoja (1954) causou uma certa comoção ao ser
lançado, apesar de sua improvável narrativa. De acordo com a publicidade da
época, em Karamoja – “a terra do povo perdido” -, um dentista californiano (Dr.
William B. Treutle) vai à África caçar. Chegando em Nairobi, envolve-se com uma
inglesa que o convence a fotografar os animais em vez de matá-los. Munido de
uma câmera Bolex de 16mm, o dentista segue viagem com o intuito de
documentar uma tribo primitiva conhecida como karamojanos, próxima a Uganda,
vivendo como na Idade do Ferro. Treutle aparentemente filmou cerca de dez mil
pés de kodachrome registrando “inenarráveis ritos e costumes” dos nativos,
“selvagens usando nada mais do que o vento”.
Cartaz de Karamoja (1954).
94
As privações e rituais de suas vidas cotidianas constituem esse registro
filmado. O mais notório ritual dos karamojanos, e que certamente levou as platéias
dos anos 50 a virarem-se com aversão, é a ingestão de sangue. O pescoço de um
bezerro vivo é perfurado com pequena flecha e o sangue que escorre, coletado
em pequenas tigelas, é engolido com gosto: “nem uma gota é desperdiçada”,
entoa o narrador. A ferida é então remendada para que o animal possa ser
sangrado regularmente. Os karamojanos também praticam a automutilação como
arte decorativa. Evidenciada na prática dolorosa na qual a parte debaixo e frontal
da mandíbula de uma criança é serrada para deixar espaço para um pino de metal
ou quartzo. Do começo ao fim de suas vidas, os homens de Karamoja usam esse
pino através de um buraco no lábio inferior. Outro ritual sangrento envolve golpear
o rebanho até a morte nos preparativos para um festim. Também devem ter
arrepiado os espectadores as cenas de um ritual celebrado pelos homens da tribo
girando de maneira selvagem, em uma dança frenética, seus corpos nus sujos
com “o conteúdo de seus intestinos”, conforme os comentários do narrador. O
filme é ousado em revelar a nudez frontal masculina, sendo que durante muito
tempo o cinema comercial ainda consideraria o pênis um tabu. Dá para imaginar a
sensação que isso deve ter causado em 1954, principalmente entre os
anatomicamente curiosos adolescentes com estômagos fortes. Quando não está
se deleitando nos aspectos lúridos da vida karamojana, o filme fascina através de
revelações de cunho sociológico. Os nativos fazem cerveja de urina animal, por
exemplo, mas a embriaguez é um tabu que resulta em ostracismo social. E,
diferentemente de outros povos primitivos, parecem dar mais valor às filhas do
que aos filhos. Ainda que se coloque em discussão a seriedade de intenções, um
perverso humor acompanha a observação do narrador de que, enquanto dentista,
gostou de saber que os nativos de Karamoja escovam os dentes diariamente.
Além das habituais cenas de nudez e ingestão de sangue citadas, o filme mostra o
desmembramento de um bezerro, a extração dos dentes da frente de
95
adolescentes a pedradas, circuncisões, escarificações e a promessa de
canibalismo. Como podemos ver, Karamoja se situa um passo além de seus
predecessores na linha do exótico, deixando mais claras as suas intenções e
ênfase no sensacionalismo. Isso graças, em parte, ao talento de Howard W.
“Kroger” Babb, - “o destemido apresentador da América” -, um dos primeiros
talentos na promoção de filmes exploitation, responsável por pérolas como Mom
and Dad e She Shoulda Say No!. Babb, aparentemente convenceu Treutle a
vender-lhe o filme, acabando encarregado da distribuição de Karamoja. É de sua
autoria a excitante chamada publicitária, que proclamava:
“(...)Veja o entusiasmo primitivo! Assista-os enquanto drenam o sangue
quente de animais e o bebem! Assista os ritos de passagens em que jovens tem
seus dentes frontais golpeados com pedras! Seja observador de rituais de
mutilação humana nunca antes testemunhados, e que datam da aurora da
Civilização! Veja tudo isso! Sem cortes! Sem censura! Sem roupas! Sem pudor!”
O exploiteer Kroger Babb.
96
Contudo, Karamoja, como habitualmente acontecia, prometia mais do
que cumpria, principalmente no que se referia ao canibalismo (promessa
constante nos filmes nessa linha). Exibido originalmente compondo um programa
duplo (o double feature, uma espécie de “pague um, leve dois”) é complementado
com Halfway to Hell (1954), de Robert Snyder, uma fita compilada com cenas de
arquivo tiradas de filmagens dos campos de concentração nazistas e descrito por
Babb como “vinte e cinco minutos de pilhas de corpos, fornos repletos de cinzas
humanas, sobreviventes famintos, enforcamentos dos criminosos de guerra após
os julgamentos de Nuremberg...” – um adicional ao espectador sedento por cenas
mais fortes.
O legado dessas produções foi o desenvolvimento de uma linha de
documentários que ficou conhecida como filmes mondo, conforme sugere
Schaeffer (1999, p. 284), “a apoteose do exótico após o fim do período de
exploitation clássico” e a transição feita por filmes, tanto na linha de Karamoja,
quanto de produções mais substanciais, como o caso a seguir.
No mesmo 1954, um filme de cunho etnográfico se aproxima dessa
linha e pode ser considerado uma fonte para o desenvolvimento do documentário
de exploração, mesmo sendo o seu direcionamento bastante diferenciado. Os
Mestres Loucos (Les Maîtres Fous), do etnólogo e cineasta francês Jean Rouch,
chama a nossa atenção não só por focalizar um aspecto bastante exótico de uma
cultura distante através de um assunto significativo que é um ritual. Mas também
por explicitar cenas intensas e de difícil digestão para nossos paladares
ocidentais, principalmente na época em que foi produzido. O filme abre com um
alerta, que a despeito da seriedade do realizador já era, como vimos em Karamoja
e outros antecessores, um artifício comum em produções de exploração:
“Os produtores ao apresentar este filme, sem concessões nem
dissimulações, adverte sobre a violência e a crueldade de certas cenas, mas quer
97
que você participe de um ritual que é uma solução particular para o problema da
readaptação e que mostra como certos africanos vêem nossa civilização
ocidental”.
O etnólogo e cineasta Jean Rouch em campo: Os Mestres Loucos (1954).
Alerta que pode revelar um prazer secreto de Rouch por ser o
responsável por trazer cenas inéditas e de uma intensidade até então não
registrada, prazer que se tornaria o carro-chefe de colegas de Rouch com outras
preocupações em mente. Devemos ter em mente, entretanto, de que o cineasta já
desenvolvera uma tese sobre cerimônias de possessão, que lhe rendeu seu Ph.D.
Ele tinha em mente, em seus filmes, já que os antropólogos sempre contestam a
sociedade em que vivem, contestar a antropologia e o ponto-de-vista
antropológico. Isso dá um direcionamento interessante e diferente ao conceito de
exploração (NACIFY, 1992, p. 342, 343).
Os Mestres Loucos enfoca o culto dos haoukas, segundo o realizador
um jogo violento que é um reflexo de nossa civilização. É na verdade uma seita
religiosa, que emigrou do Niger francês para Acra, capital da Costa do Ouro (atual
Gana). Oriundos da região do Mar Vermelho, foram trazidos em 1927 por
98
peregrinos em viagem à Meca. Suas manifestações violentas causaram a sua
expulsão do Níger, chegando a Gana em 1935, local onde seu culto se
desenvolve rapidamente (BAZIN, 2006, p. 2). Rouch começa o filme mostrando
um grupo desses africanos em suas atividades cotidianas. São trabalhadores
braçais, religiosos, prostitutas, todos inseridos na movimentação urbana,
absorvidos por suas práticas profissionais.
Os Mestres Loucos (1954): africanos de Acra em atividades cotidianas.
Esse dia-a-dia esconde, por trás dessa fachada ordinária, nos bairros
afastados cerimônias até então pouco conhecidas, em que são convocadas as
entidades – descritas como novos deuses, deuses da cidade, deuses da
tecnologia. Como observa Bazin (2006, pp. 2, 3):
Esse culto tem em comum com vários outros cultos africanos o fato de
ser basicamente constituído de danças de possessão, durante as quais
os participantes entram aos poucos em outro nível de consciência, uma
espécie de transe em que o sujeito incorpora deuses ou o gênio por ele
invocado. Esse processo clássico (...) nada teria de original (...) se não
nos permitisse testemunhar não tanto a continuidade de uma prática,
mas, acima de tudo, o nascimento de um culto. E mais ainda, pois esse
99
culto que nasce, cujo ritual ainda inseguro vai se fixando a cada
cerimônia, adota, como gênios e deuses, não os gênios e deuses da
floresta ou das águas, do fogo ou da chuva, mas os mitos da potência
colonialista segundo a experiência pessoal dos negros.
Nessa prévia do que está por vir é mostrada em close a imagem
assustadora do rosto de um negro, olhos saltados e a baba viscosa escorrendo
pelo queixo (figura abaixo).
Os Mestres Loucos (1954).
O quartel general dos haoukas é em Acra, no mercado de sal. Lá eles
se reúnem e partem em diversos veículos para fora da cidade, saindo da estrada
principal e seguindo depois a pé até a propriedade do sumo sacerdote,
Mountyeba. E aos poucos vão sendo descritas as práticas ritualísticas do grupo,
na verdade uma mimese grosseira dos colonizadores. A cabana do sacerdote
revela-se o palácio do governo, um totem de madeira a estátua do governador e
panos dependurados, a representação da union jack, a bandeira inglesa. E que a
seu modo também são representações do universo místico africano,
respectivamente, a casa do santo, a efígie do orixá, as cores e símbolos do rito. O
que não deixa de ser coerente, como sugere Bakhtin (1987, p. 5):
100
A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no
estágio anterior da civilização primitiva. No folclore dos povos primitivos
encontra-se, paralelamente aos cultos sérios (por sua organização e seu
tom), a existência de cultos cômicos, que convertiam as divindades em
objetos de burla e blasfêmia (“riso ritual”); paralelamente aos mitos sérios,
mitos cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias
paródicos.
É o que Rouch, de certo modo, vai nos mostrar se aprofundando no
universo dos haoukas, que a princípio gira em torno de uma cerimônia mágico-
religiosa com os seus principais paradigmas: a iniciação, o transe e a possessão.
Os adeptos são divididos entre sentenciados e não-sentenciados, ou seja, os
postulantes e os já atuantes no grupo. Estes primeiros passam por confissões e
penitências, sendo afastados logo em seguida ao sacrifício de sangue de alguns
animais. Eles devem ser possuídos para terem permissão de retornar ao círculo
sagrado. Um cão é reservado para o auge do ritual. Por ser um alimento
totalmente proibido na sociedade, se os haoukas matam e devoram este animal,
mostram que são mais fortes que os outros homens, negros ou brancos.
Início da cerimônia: confissões, penitências e transe.
101
Os haoukas passam do transe à possessão.
Como todo ritual mágico é um teatro, o dos haoukas começa no altar de
sacrifícios, com o sacerdote Mountyeba puxando uma dança que tem como
finalidade propiciar o transe necessário para a possessão. É necessário que todos
os adeptos estejam possuídos, e eles vão, pouco a pouco se entregando a um
estado alterado no qual passam a incorporar não antigas divindades tribais, mas
os colonizadores brancos, se paramentando com símbolos desse universo: fuzis
de madeira, chapéus coloniais, vestidos e adornos que simbolizam a civilização
ocidental. Essa degradação paródica se revela em um sincretismo singular, no
arremedo do gestual dos colonizadores misturado aos maneirismos e práticas
comuns aos ritos de possessão africanos. Ou seja, a entidade incorporada é uma
síntese desses dois universos. E que possui estreita ligação com o carnavalesco,
se voltarmos a Bakhtin, por através da sublimação dos paradigmas da autoridade,
construir um mundo às avessas – parodiando a vida ordinária – e demandar uma
liberação. Esta, consumada em, como é bem colocado por Bazin (2006, p. 3),
“uma espécie de commedia dell’arte da possessão, quando cada um pode fazer o
que bem entender, desde que se mantenha dentro dos limites de sua personagem
e dê aos outros o tratamento apropriado à personagem que encarnam”. Nesse
102
sentido, os possessos são semelhantes aos bufões que parodiavam com os seus
atos as funções do cerimonial sério, da autoridade vigente.
Desse modo, em Os Mestres Loucos, os haoukas representam
elementos chave da sociedade colonial: os militares (general, cabo da guarda,
capitão, tenente), os funcionários da administração (o governador, o condutor da
locomotiva) e outras figuras de forte significado, como a mulher do médico – um
membro masculino do culto travestido. Na medida em que vão sendo possuídos,
se reconhecem hierarquicamente e perambulam pelo espaço sagrado
aparentemente cumprindo as funções do cargo que agora carregam. Rouch se
encarrega de mostrar cenas de uma cerimônia oficial do governo colonial, em
montagem paralela às seqüências com os nativos, e é marcante como são fiéis
simulações, guardada a diferença de que não se trata de uma imitação ou um
teatro simplesmente, mas uma prática religiosa, sob efeito do transe. Ou melhor
ainda, como sugerem Shohat e Stam (1994, p. 150), um exorcismo coletivo da
dominação estrangeira.
Cerimônia oficial do governo colonial (esq.) e haoukas possuídos (dir.)
Enquanto a possessão se intensifica, também vão se tornando mais
fortes e menos palatáveis as imagens. Estas se tornam mais gráficas, explicadas
103
com distanciamento pela narração over. A baba espessa, branca, produzida pelo
engrossamento da saliva pelo movimento da língua, torna-se constante, saindo da
boca dos participantes, espalhando-se pelo queixo e respingando para todos os
lados, em meio à gesticulação frenética. No auge do ritual, o cão é degolado (o
que não é mostrado) e os haoukas se debruçam sobre os seus restos para beber
diretamente o sangue do animal. Agora, das bocas manchadas de sangue, a baba
escorre tingida, dando um aspecto ainda mais selvagem e insano aos membros do
culto. O cão morto e já estripado é carregado, esquartejado e seus pedaços
cozidos em uma panela, sendo retirados fumegantes pelos haoukas famintos. Eles
disputam os melhores pedaços, como as tripas, sendo a cabeça, queimada com
os dentes à mostra, passada de mão em mão, até ter uma orelha arrancada pela
dentada de um dos africanos.
Sacrifício de sangue: cão é morto e devorado.
É interessante que, de acordo com Barnouw (1993, p. 253), os próprios
africanos não gostaram de Os Mestres Loucos. Para eles, a abordagem dos
violentos ritos dos haouka faz prevalecer o ponto-de-vista colonialista,
fortalecendo pretensões de superioridade do homem branco. A história se repete,
trazendo semelhanças à reação dos descendentes dos hurdianos ao Terra sem
104
Pão de Buñuel. De acordo com o próprio Rouch, eles o acusam de ser um novo
comerciante de escravos, e que deveria para com essa bobagem. Após três anos
em campo e seu Ph.D., estaria vendendo a cultura deles na universidade - crítica
que o teria aborrecido bastante, atesta o documentarista (NACIFY, 1992, p. 343).
Isso pode ser ilustrado com a famosa reprimenda endereçada a Jean Rouch pelo
cineasta senegalês Sembène Ousmane em meados dos anos 60, conforme relata
Marcius Freire (2007):
Rouch lhe perguntou, numa conversa em forma de entrevista, porque ele
não gostava de seus filmes puramente etnográficos, aqueles em que ele
mostra a vida tradicional. Sembène respondeu: "Porque eles mostram,
descrevem uma realidade mas sem ver a sua evolução. As recriminações
que lhes faço são as mesmas que faço aos africanistas: nos olhar como
se fôssemos insetos.
Ainda argumentam os opositores de Rouch se práticas estranhas não
estariam disponíveis para os documentaristas em outros lugares, como a Europa
ou América, por exemplo. A resposta para esses críticos viria anos depois, a partir
da compilação de estranhos ritos mundo afora que seria efetivada com Mundo
Cão (1963).
E se dermos razão para essas críticas? Poderíamos associar Os
Mestres Loucos aos documentários de exploração? Como se daria essa relação,
entre o etnográfico e a exploração? Em parte pelo caráter imagético incorporado.
Por ser a imagem no filme etnográfico tomada como “real”, a filmagem
de uma pessoa em êxtase, espumando pela boca e arrancando a cabeça de uma
galinha, ou de uma pessoa abrindo em fatias uma foca e comendo sua carne crua,
freqüentemente é interpretada pelo provável espectador, em nosso caso
específico, ocidental, como evidência da selvageria do outro. Afinal, culturas
focalizadas em filmes etnográficos são vistas pelo público em geral, usualmente,
como aberrações bizarras e até mesmo repulsivas, a menos que a cultura em
105
exibição seja similar à cultura do auditório. Jorge Preloran sugere que (apud
RONY, 1996, pp. 161-162):
Após ver dúzias de filmes em tópicos etnográficos, um assunto sobressai
claramente para mim: a maioria dos [filmes] criam um abismo entre nós e
os povos “primitivos” que usualmente representam. Isso é para mim uma
abordagem racista, porque a menos que tenhamos uma chance de
escutar em primeira mão a essas pessoas, deixando-as explicar para nós
porque agem da maneira que agem, porque tem aqueles extraordinários
rituais, aquelas fantásticas, coloridas, exóticas, repulsivas, fascinantes –
você as rotula – cerimônias que são mostradas para nós, pensaremos
neles apenas como selvagens.
Mas no caso de Os Mestres Loucos, também em parte concordamos
com Bazin, que com sua costumeira elegância exalta as qualidades do filme,
afirmando que o mesmo,
por si só (...) já seria um documento de qualidade rara, por ter sido
filmado com habilidade e realismo extraordinários; além disso, entretanto,
tais aspectos excepcionais ainda dão a esse fenômeno estranho, porém
clássico, um sentido totalmente novo, fazendo o interesse por ele passar
do mero plano etnográfico para o plano de história e sociologia política.
Assim, mais apropriado não seria dizer que tais “mestres loucos” são
“sensatos escravos” ou, melhor, que são também “sensatos escravos”,
que cumprem à perfeição sua função de escravos, a ponto de adorar o
poder dos mestres? Neles a mitologia colonialista se cumpre além da
imaginação e, por isso mesmo, é dialeticamente destruída, pois que
triunfo maior, que apoteose mais esplêndida se poderia conceber do que
essa substituição espontânea dos deuses milenares e ancestrais por
símbolos representativos da civilização européia? O feiticeiro invoca o
espírito do governador!
É justamente através da exploração das seqüências mais intensas que
Jean Rouch passa do campo etnográfico para o da história e da sociologia, ao
confrontar os aspectos grotescos da incorporação desses “novos deuses” com os,
por comparação, ridículos cerimoniais da classe dominante colonial. É
106
interessante entender um pouco essa relação de Rouch com os haoukas. Ele
explica que os sacerdotes quiseram a câmera como um instrumento no culto, para
que este fosse mostrado às pessoas e as chocasse. O que não ocorreu, já que o
filme foi censurado pelo governo britânico não apenas por ser considerado um
insulto ao governador, representante da rainha da Inglaterra, mas também pelo
veto da sociedade protetora dos animais local, que o considerou violento e cruel
(NACIFY, 1992, p. 352). O que se relaciona, por um lado, às tomadas que
mostram um ovo sendo quebrado na cabeça da imagem que representava o
governador (uma imitação das plumas que adornavam o capacete cerimonial do
verdadeiro governante) e por outro, ao sangrento sacrifício do cão, seu preparo na
panela e consumação pelos membros da seita.
Fica evidente, portanto, que a exploração tem uma função política em
Os Mestres Loucos, refletindo não só uma situação histórica, mas uma tomada de
posição ideológica do realizador, à qual se atrelam as necessidades por ela
suscitadas e se rende a objetividade documental. O que consolida visualmente o
conceito de poder colonial. Sendo assim, Rouch está entre cineastas que
conscientemente ou não, estão a serviço de uma causa, uma ideologia,
explicitamente ou sem colocar abertamente as questões. Sem excluir o fato de
que haja entre eles resistência e duros combates em defesa de suas próprias
idéias (FERRO, 1992, p. 14).
107
3. Desumano e degradante: re-interpretando a tragédia humana
3.1. O filme de atrocidade
Paralelamente ao exótico, uma outra forma de documentário apropriada
pelos filmes mondo a partir dos anos 60 foi o denominado “filme de atrocidade”. A
diferença em relação aos exóticos – apesar de que em muitos casos existia uma
interação – é que, enquanto estes priorizavam as diferenças entre culturas através
de aspectos mais comportamentais ou geográfico-naturais almejando um
deslumbre ou espanto - ou conforme Schaeffer (1999, p.285), “despertar
sentimentos de desejo sexual ou aversão” -, os filmes de atrocidades eram assim
denominados por apelar ao repugnante, com imagens de violência, massacres e
sanguinolência. Remetendo ao conceito de carnavalização de Bakhtin, estes
filmes seriam, como sugere Stam (1992, p. 60):
(...) ecos cinematográficos do carnaval somente através de sua negação
ou degradação (...) onde fenômenos que antes haviam sido objetos de
riso catártico são submetidos a uma espécie de mutação, transformando-
se em estigmas de terrores absolutamente pessoais.
De acordo com este conceito, vamos abranger dentro dessa
categorização não somente documentários de exploração, mas também obras que
prioritariamente possuem outros objetivos estéticos ou conceituais, e que por sua
vez não deixam de apelar para cenas desagradáveis. Na verdade, podemos
considerar a atrocidade mais do que um subgênero do cinema documentário, mas
uma atribuição que pode ser vista como uma das mais antigas e duradouras
manifestações presentes no gênero.
108
As produções enquadradas nessa linha, além disso, foram as primeiras
a explorar de modo sensacional imagens de morte, lançando a semente que iria
se infiltrar nos filmes mondo e a conseqüente geração dos “filmes de morte” (death
films) a partir do final da década de 70.
Os filmes de atrocidade remetem aos anos 30, quando documentários e
reencenações eram apresentados em séries de curtas, geralmente recontando
crimes, sendo ilustrados por tomadas reais de cadáveres que sofreram mortes
violentas (March of Crime, 1936).
Mas a exposição crua da tragédia e da miséria humana, sempre
motivou, pelos mais diversos motivos, diversos realizadores e produtores, sendo
que produções como Terra sem pão (Las Hurdes, 1933) de Luis Buñuel, ajudaram
a pavimentar a ponte que liga os documentários à exploração.
Pela forma como foi concebido e os artifícios utilizados em sua
construção, o elaborado média-metragem de Buñuel pode ser considerado – antes
que se inventasse o epíteto – um dos primeiros filmes shockumentary, ainda
insuperável e do qual somente África Adeus (África Addio, 1966), mais de três
décadas depois, se aproximaria em audácia e crueldade, tanto na forma quanto no
conteúdo. É notável na filmografia de Buñuel o destaque dado a comportamentos
culturais. Encontramos um conteúdo fílmico riquíssimo, relacionado a crenças
religiosas, sexualidade, relações familiares, padrões morais, poder das
instituições, mecanismos de controle social, enfim, uma vasta gama de aspectos
que permitem o desenvolvimento de uma leitura antropológica. Terra sem pão se
destaca em sua obra por ser o melhor exemplo dessa conexão.
Obra de referência do cinema documentário, não agradou às
autoridades e ao poder instituído quando de seu lançamento, sendo proibido. E
mesmo passados mais de setenta anos continua a sua polêmica, sendo
rechaçado pelos descendentes dos hurdanos retratados na película. Tanto que em
2000, ano em que se comemorou o centenário de Buñuel, as prefeituras das
109
províncias que compõem a região de Las Hurdes se opuseram a qualquer
homenagem, devido ao modo como seus antepassados foram retratados: seres
estranhos, sem moral, sentimentos ou dignidade. Acusam o diretor de ter causado
danos irreparáveis à comunidade com mentiras em um filme que é uma farsa
montada.
O que os hurdanos talvez não tenham compreendido – ao contrário das
autoridades da época da realização do filme, tanto que o proibiram -, é que Terra
sem pão é um filme militante, de forte apelo político, que usa da exploração de
seqüências bastante intensas para intervir em um contexto político bastante
caudaloso que, como sabemos, desencadearia um dos momentos mais
conturbados da história espanhola: a guerra civil e a ditadura de Franco. Devemos
ter em mente que é, antes de tudo, o resultado da união de uma equipe composta
por anarquistas e comunistas
Terra sem pão é um filme híbrido, que mistura em sua narrativa
aspectos precisos do cinema antropológico, com seu aprofundamento nas
relações entre a geografia da região e o modo de vida de seus habitantes, com um
realismo subversivo, estruturado através do eixo da tragédia humana e,
principalmente, da morte. Em seus planos curtos, mistura reportagem e
encenação, envolvendo o espectador com fotografia eficiente e o dinamismo da
câmera. Que reforçam a expressão visual plena de dramaticidade, através de
imagens em preto e branco de fortes contrastes, enriquecidas pela iluminação.
O filme é estruturado em blocos que vão se sucedendo de acordo com
as necessidades de uma narrativa vinculada aos aspectos visuais, sendo a
informação processada a partir da trilha sonora e dos comentários em over. Não
há, naturalmente, diálogos ou som ambiente. Essa divisão em blocos é feita a
partir de marcas de enunciação. Forma narrativa que seria bem aproveitada na
linha temática de diversos documentários de exploração, décadas à frente.
110
Dentro dessa estrutura, o filme abre com uma aproximação geográfica
da região de Las Hurdes, uma das mais miseráveis da Espanha, uma árida
passagem entre montanhas ao norte de Extremadura, na vertente meridional da
serra da França. Uma paisagem rude e abrupta, de grandes rochas entre as quais
se amontoam casebres que denotam um total abandono pelo tempo e pela
história. O presságio de morte iminente que percorre todo o filme já aparece nas
primeiras tomadas, em caveiras incrustadas na fachada da igreja, que parecem
determinar o destino fatal, também anunciado em uma bizarra festividade: uma
vez por ano, cada rapaz recém-casado deve arremeter contra um galo, pendurado
pelas patas, e arrancar-lhe a cabeça. Seqüência violenta que causou problemas
com os censores, insensíveis à observação do narrador de que “esta festa
sangrenta esconde, sem dúvida, vários símbolos e complexos sexuais que não
vamos analisar agora”.
Fachada de igreja decorada com caveiras (esq.) e festividade em que galo é degolado (dir.).
Em seguida, passamos aos aspectos tradicionais da vida cotidiana,
apresentados com descritivo horror no que poderia ser uma passagem bucólica:
crianças bebem da água contaminada de um córrego, onde também molham os
pedaços do pão duro e mofado de que se alimentam. Água que também é usada
111
para higiene pessoal, lavagem de roupas e utensílios domésticos, servindo
inclusive aos animais. Destaque para as condições de extrema pobreza e
enfermidades que assolam os resignados habitantes, que convivem com porcos e
constroem pequenos e ineficientes campos de cultivo com terra fértil trazida de
outras localidades, o que lhes consome quilômetros de caminhada em terreno
rochoso. A fome é crônica, sendo, junto às precárias condições de higiene,
responsável pela desnutrição. É examinado em detalhe o interior da boca de uma
menina, supostamente enferma, e que depois sucumbiria à doença,
provavelmente malária.
Aldeões em extremas condições de pobreza e doença.
O preparo do escasso alimento é mostrado, sendo que a carne dos
animais só é consumida quando alguma cabra despenca despenhadeiro abaixo.
Nota-se claramente a montagem: a cabra sobre o penhasco, um corte abrupto e a
queda do animal, ao mesmo tempo em que sobe uma coluna de fumaça. Claro
sinal de que a cabra foi abatida com um disparo, em função da mise-em-scène.
Isso se repetirá logo depois, com o burro, que é infestado pelas abelhas do tosco
apiário, que produz o mel de má-qualidade da região. É evidente que o animal é
deliberadamente amarrado sobre as colméias e a equipe, ao invés de ajudá-lo,
112
deixa que seja consumido pelos insetos, conseguindo uma das imagens mais
poderosas do filme, que remete ao surrealismo de obras anteriores como Um Cão
Andaluz (Un Chien Andalou/1929) ou A Idade do Ouro (L’Âge d’or/1930): o close
na cabeça do burro, totalmente tomada pelas abelhas, o olho arregalado
sobressaindo. Mais um símbolo da morte, que ronda Las Hurdes.
Nas imagens de cima, as cabras se movimentam pelo penhasco. Abaixo, já abatida pelo tiro, uma
delas (indicada pela seta da esquerda) despenca pelo despenhadeiro. A seta da direita mostra a
fumaça do disparo.
113
O burro sendo consumido pelas abelhas.
Buñuel retorna em seguida aos efeitos da fome - crianças comendo
cerejas em um ramo – e às más condições de vida. Mostra mal-formações
resultantes da penúria, causadora também do nanismo e do cretinismo (devidos
também a relações endogâmicas). Passa a uma explicação científica sobre o
impaludismo, ilustrada com páginas de um livro de ciências com informações
sobre o mosquito anopheles e um grupo de idiotas, sorridentes, retratados como
se fossem aberrações de feira. Uma mensagem clara de que os únicos capazes
de serem felizes naquelas paragens marcadas pelo abandono e pela miséria são
os loucos.
Terra sem pão abre e fecha com a morte. O augúrio prenunciado nas
caveiras do início se confirma na trágica morte de uma criança, que jaz em um dos
barracos da aldeia. Acompanhamos o difícil translado do cadáver até o cemitério,
anexo à igreja. Vitória da onipresença da morte, notadamente infantil.
Fica claro que todas as imagens que constroem o filme não estão
isentas de artifícios. Poderíamos nos estender discorrendo sobre isso, buscando
nas fontes bibliográficas evidências das seqüências forjadas: se a garganta
mostrada é mesmo da menina adoentada, ou se ela mesmo morreu dois dias
114
depois, como diz o narrador. Ou se o bebê do final estava realmente morto... O
fato é que não vamos aqui distinguir os méritos entre uma pretensa verdade, ou
construída, como faz Rothman (1997, p. 32, 33), que sugere:
Falhar em reconhecer que a ficção predominante em Terra sem pão é de
fato ficção, é falhar em reconhecer que o filme é um mock documentary.
Mas reconhecendo sua ficção predominante como ficção, admitimos que
nenhuma das asserções do narrador é realmente verdadeira. Em algum
ponto de nossa observação sobre Terra sem pão, esse reconhecimento
nos atinge como um raio, de que o narrador está constantemente tecendo
proposições sobre o que estamos vendo, asserções que a câmera não
pode comprovar, às quais nós não temos que dar crédito somente porque
o narrador as enuncia.
Miséria, idiotismo e morte em Terra sem Pão.
115
O que importa é que Terra sem pão, em sua ousada e brilhante
interseção do documental com mise-em-scène, é uma crônica social de crueza
sem comparação, sendo a exploração da atrocidade legitimada como um
instrumento didático político tão eficaz que alarmou as autoridades.
Anos depois do filme de Buñuel, as mazelas de uma nova guerra
proveriam material mais que suficiente para uma nova leva de filmes de
atrocidades. Se a Alemanha nazista deixou um legado terrível para a humanidade,
se tornou uma das maiores fontes para essa linha de filmes. O próprio partido que
levou Hitler ao poder, através de seu ministério de propaganda, incentivou
documentários de exploração de cunho educativo, bastante semelhantes aos
produzidos nos Estados Unidos, mas com objetivos mais sinistros. Os filmes de
propaganda alemães, durante a segunda guerra mundial identificavam dois grupos
de inimigos: o interno – no caso os judeus -, e os externos – os ingleses. É
importante termos em mente que dentro das diretrizes principais do NSDAP (Die
Nationalsozialistische Deutsche Arbeitspartei – Partido nacional-socialista dos
trabalhadores alemães) a figura do outro, conforme sugere José Rocha Filho
(2006), está relacionada a
qualquer elemento que desestabilizasse a noção altamente volátil de
Volksgemeinschaft (comunidade nacional), tal qual ela era entendida pelo
nacional-socialismo. “O outro” estava associado a sensibilidades
conectadas com o judaísmo -seguida de perto por outros grupos
minoritários: eslavos, ciganos, deficientes físicos, homossexuais e demais
indivíduos considerados associais. Em contextos nacionais é possível
observar ódio declarado aos britânicos e russos, em especial -
necessários à construção de um conceito de comunidade onde “o outro”
precisava ser eliminado.
“Outro” que ganha contornos de ameaça ao sistema estabelecido, e
que no caso das anomalias (deficientes e deformados) que, ao invés de exibidas,
deveriam ser eliminadas, varridas da face da terra para não conspurcarem o
116
sonho alemão de uma nova ordem. Possível temor de expor o fascínio que
poderiam causar ao novo alemão, e a uma ideologia estética construída a partir
das necessidades do Partido. Devemos lembrar que até então, as anomalias
humanas tiveram o seu pior momento com a ascensão do Cristianismo. Na Idade
Média, cristãos perseguiram e queimaram em estacas tudo que temiam ou não
compreendiam, incluindo gatos e outros animais, mulheres e bruxas, judeus e
ciganos. Nesse ambiente de genocídio, monstros não tinham chance, seus corpos
pervertidos sinais claros de que eram progênie de Satã. Mesmo gêmeos normais
foram passados como criaturas do mal. Somente com a elevação do nazismo –
com o que cristianismo exibe perfeita comparação –, no século XX, voltaria a
ocorrer tamanho extermínio de purificação, tendo como objeto o debilitado
fisicamente e o mentalmente retardado.
Contudo, somente a partir de 1939, com a deflagração do conflito, que
a indústria cinematográfica alemã se dedicou na produção específica de filmes
panfletários de caráter antisemita e antibritânicos. Destes destacamos três
produções de 1940 que representam o empenho cinematográfico do governo em
preparar o público alemão para o extermínio em grande escala dos judeus. Die
Rothschilds (Erick Waschneck) e Jud Süss (Veit Harlan), longametragens de
ficção que descreviam os judeus como excessivamente ricos e amorais,
orquestravam com maestria os tópicos e arquétipos da propaganda nazista.
Entretanto, podemos considerar o ápice dessa produção destinada a promover o
ódio racial o mediametragem em formato documentário O Eterno Judeu (Der
Ewige Jude), de Fritz Hippler, realizado didaticamente para alertar o povo alemão
contra os judeus, mostrados como monstruosidades inumanas, sendo
comparados a ratos propagadores de doenças. Compilado em seus 45 minutos é
uma sistemática exposição da propagação do mal, através de cenas mostrando o
cotidiano de condições sub-humanas rodadas em um gueto na Polônia. Toma o
aspecto de uma aula expositiva ilustrada, com o narrador discorrendo desde a
aparência física (“os judeus são feios e sujos”) para atingir a meta do problema da
117
raça enquanto coletividade – corruptores dispostos a dominar o mundo. O filme
termina com a proclamação de Hitler de que os judeus seriam aniquilados.
Poster do filme anti-semita nazista O Eterno Judeu, afixado em muro de Amsterdam (1942).
Por outro lado, muitos aspectos da Alemanha de Hitler foram
explorados pelo cinema documentário desde o início da década de trinta pelos
adversários do eixo, mas foi o pós-guerra e a quantidade de tomadas feitas
principalmente nos campos de concentração que engrossou o acervo de cenas
atrozes. Às fotos e filmagens realizadas pelos próprios nazistas e encontradas em
seus arquivos somam-se as documentadas em larga escala pelos cinegrafistas
das tropas de libertação norte-americanas e inglesas. Vale lembrar que, apesar
das especulações de que Hitler teria algumas mostras de tortura e execução
filmadas para exame - câmeras adaptadas aos postigos de observação das
câmaras de gás gravando as vítimas despidas em seus momentos finais, por
exemplo -, nenhuma evidência foi encontrada. Existem fotos tiradas por soldados
e alguns registros em filme, feitos por amadores ainda antes do extermínio
sistemático ser estabelecido, mostrando algumas execuções (fotografias em sua
maioria provenientes do leste europeu das ações dos Einsatzgruppen – brigadas
118
de morte alemãs que levavam a cabo as execuções em massa nos países
ocupados) e atividade cotidianas dos campos de concentração. Mas não há,
efetivamente até hoje indícios de filmagens do extermínio. Não há sentido ou
propósito - a não ser se formos levados ao senso comum dos nazistas pervertidos
e tarados que tanto alimentaram o cinama exploitation – de que eles registrassem
essas ações, muito menos as vítimas tiveram alguma oportunidade de registrar o
que lhes acontecia. A grande fonte de imagens do holocausto foi posterior, os
resultados encontrados pelas tropas que entraram nos campos.
Fotografias dos Einsatzgruppen em ação.
Este material, compilado pelos departamentos de defesa aliados
acabou sendo utilizado em cine-jornais já em 1945, sendo até hoje matéria prima
para uma vasta gama de documentários, sejam de exploração ou não. Tivemos,
durante a pesquisa, acesso tanto ao material original, quanto a um desses cine-
jornais.
O diretor George Stevens, o mesmo de Os Brutos Também Amam
(Shane/ 1953) e Assim Caminha a Humanidade (Giant/ 1956) atuou com uma
equipe de cinegrafistas durante os combates da segunda guerra, sendo o
responsável pelas filmagens da libertação do campo de concentração de Dachau.
119
Acabou encarregado da direção da compilação encomendada pelo comando
militar Nazi Concentration Camps (1945), produzida com o intuito de ser utilizada
durante o julgamento dos criminosos de guerra em Nurenberg. O filme é
apresentado nos créditos de abertura como “documentação oficial compilada de
filmes feitos pelos próprios cinegrafistas militares servindo com as forças militares
enquanto avançavam em território alemão, feitos por ordem do supremo
comandante das forças expedicionárias aliadas Dwight Eisenhower”. É
interessante que, logo a seguir aos créditos, aparecem filmados documentos
certificando a autenticidade do filme, de que as imagens são originais do negativo
e não foram alteradas.
Militares norte-americanos cheagam aos campos de extermínio. À direita, o general Eisenhower.
O filme inicia com o slide de um mapa da Europa ocupada, com
marcações identificando os locais que abrigavam campos de concentração. Uma
seleção destes (a partir do primeiro – Leipzig), vai sendo apresentada em blocos,
uma por uma, identificada por um intertítulo após o qual vemos as cenas
registradas. A estrutura é a mesma em todos: uma mostra de como esses locais
de aprisionamento foram encontrados pelos soldados, com as provas de tragédia
e morte, assim como a reação dos aprisionados e habitantes locais à libertação.
120
Em alguns destes blocos, somos introduzidos por um oficial que brevemente dá o
seu depoimento.
A narração é bastante descritiva e seca, sem alterações emotivas ou
comentários, talvez por se destinarem principalmente ao uso em um julgamento. E
se nela encontramos traços de uma manipulação em função do ponto-de-vista dos
vencedores, estas estão mais presentes nas tomadas de tragédia e morte, com
larga exposição de cadáveres e mutilações, e nas seqüências obviamente
instigadas pelos cinegrafistas. Por exemplo, quando a câmera focaliza um grupo
de ex-prisioneiras que sorriem artificialmente para a câmera, enquanto o narrador
diz que “estão sorrindo pela primeira vez em anos”. A justiça dos libertadores
também está marcada em registros importantes que mostram os soldados e
oficiais da SS, agora prisioneiros, cuidando sob a mira de armas, dos cadáveres
de suas ex-vítimas sob a supervisão dos soldados aliados. Uma reparação
forçada aos crimes que cometeram, como fala a voz over. Outras tomadas
significativas envolvem as excursões obrigatórias aos campos de morte, a que
foram submetidos os moradores das cidades próximas, para que vissem as
barbaridades que os seus conterrâneos e o governo de seu país cometeram.
Magistralmente articuladas, essas seqüências, subjetivamente, jogam sobre todo
o povo alemão a sombra da culpa.
Às imagens deste, que podemos considerar um guia dos campos de
concentração, juntam-se no último bloco, introduzido por um comandante
britânico, trechos das seqüências registradas pelas lentes das tropas inglesas, que
libertaram o campo de Bergen-Belsen em abril de 1945. Estas que podemos
considerar as mais explícitas e cruéis realizadas, principalmente após uma
apreciação mais completa dessas tomadas, reunidas no documentário feito para a
tv inglesa Memory of the Camps (1985), depois de permanecerem guardadas nos
arquivos do Imperial War Museum. Dirigida por Sidney Bernstein, a partir de
roteiro construído a mais de quarenta anos por expoentes do cinema britânico,
como Alfred Hitchcock, traz à luz um retrato cru e explícito da fragilidade do corpo
121
humano graças a um trabalho de fotografia e técnica cinematográfica que, se
compararmos - e isso levarmos em conta a época e as condições em que foram
capturados os registros – supera os cameramen norte-americanos. O que faz
sobressair cada detalhe macabro dos efeitos da violência e da decomposição nos
cadáveres, intensificando a violência e o impacto das cenas.
Os britânicos registraram com mais detalhamento as atrocidades nazistas.
Sobre os efeitos da libertação, há uma curiosa seqüência. Conforme os
comentários sugestivos do narrador (a voz nessa versão é do falecido ator inglês
Trevor Howard, o que dá personalidade e tira do filme um caráter impessoal, como
em Nazi Concentration Camps) ficamos sabendo que antes de chegarem as
tropas aliadas, os nazistas cortaram o abastecimento de água de Bergen-Belsen,
deixando os prisioneiros sobreviventes quase uma semana sem as mínimas
condições. Após serem, portanto, mostrados os efetivos ingleses restabelecendo o
fornecimento de água, e seus efeitos – mulheres lavando roupas e as vestindo,
satisfeitas, temos uma inusitada tomada de algumas ex-prisioneiras tomando
banho em chuveiros comuns improvisados. São destacados seus corpos nus, a
maior parte de costas, em que nádegas, partes de seios e vislumbres rápidos de
pelos pubianos são exibidos. A tomada é demorada, e é interessante constatar, já
que corpos nus são exibidos à exaustão nesses registros – a maioria em péssimas
condições, desumanizados pela morte, ou em indivíduos reduzidos à condição de
122
esqueletos humanos -, que essas mulheres parecem estar fora daquele universo,
com corpos bem nutridos, incompatíveis com seus companheiros e companheiras
de martírio, que ficaram tempos suficiente em condições sub-humanas que
reduziram seus corpos a nada mais que pele e ossos.
Sobreviventes tomam banho após voltar o fornecimento de água.
É de Bergen-Belsen que ficaram as inesquecíveis e provavelmente as
mais emblemáticas imagens do massacre nazista, que até hoje assombram o
imaginário: os bulldozers empurrando para as covas coletivas pilhas de corpos. A
morte se apresenta em sua plenitude mais de quarenta anos antes que um
segmento do cinema documentário se direcionasse exclusivamente para esse
universo.
Essas filmagens, que como dissemos passaram a abastecer uma
diversidade de produções com os mais diversos fins, inicialmente vieram a público
em cine-jornais tendenciosos apresentados logo em seguida ao final da guerra na
Europa, como o panfletário Nazi Murder Mills, produção da Universal Newsreel,
dirigido por Ed Herlihy, o único que conseguimos, por sorte bastante
representativo. Apresentado em programa duplo com outro filme enfocando os
planos dos vencedores para a Europa, Nazi Murder Mills abre com o aviso de que
são “as primeiras imagens reais das atrocidades nos campos de morte nazistas.
123
Prisioneiros sem esperança torturados até a morte por um inimigo bestial... AQUI
ESTÁ A VERDADE!”.
Letreiro de abertura de Nazi Murder Mills.
O cine-jornal mostra primeiramente as tropas libertadoras percorrendo
as estradas do território alemão sendo saudados pelos populares, rostos
sorridentes demonstrando alívio e satisfação. Que, apesar da verdade contida
nessas imagens se justificar pela queda de um regime autoritário e violento, não
deixa de remeter aos escritos de Curzio Malaparte – principalmente A Pele – que
mostra os efeitos colaterais da libertação, assim como filmes que abordaram o
tema de uma Europa sem rumo, principalmente os realizados pelos diretores que
constituíram o neo-realismo italiano.
No caso de Nazi Murder Mills, através de um narrador que incorpora o
aspecto propagandistico da produção, as tropas aliadas são mostradas como
verdadeiros anjos da salvação, alimentando e medicando os sobreviventes, que
ostentam em muitos casos feridas e mutilações apavorantes. Estes aos cuidados
de dedicados médicos e enfermeiras, são, como diz o narrador, “trazidos de volta
do inferno”. Os soldados também se ocupam de desenterrar e dar um funeral
124
decente (sic) aos mortos, seqüência ilustrada com a exumação do cadáver
corrompido de uma mulher e outros corpos decompostos.
A narração dramática enfatiza a visita de um ultrajado Eisenhower aos
campos, e seu horror, junto aos colegas de farda Bradley e Patton, perante aos
corpos espalhados. Assistem a uma demonstração das técnicas de tortura
nazistas, protagonizadas por ex-prisioneiros.
As cenas são todas tiradas de Nazi Concentration Camps, mas
apresentadas em um contexto um pouco diferente, já que a carga panfletária é
maior, com um enunciador exaltado, narrando com dramaticidade ensaiada as
tomadas de acordo com os propósitos do filme. Sendo assim, essas seqüências
foram tiradas do contexto original em função da apologia aos heróicos libertadores
e da demonização do inimigo, servindo para enaltecer e justificar as ações das
tropas norte-americanas (o filme é destinado aos cinemas dos Estados Unidos). A
exploração das cenas de morte é intensa, mas limitada. Devemos lembrar que
existia um limite para o que poderia ser exibido publicamente. Ao serem
mostradas imagens como essas, o narrador é incisivo: “Não se vire! Olhe!”, diz ao
espectador provavelmente relutante em ver os cadáveres remanescentes nos
fornos crematórios de Buchenwald. Palavras como brutalidade, bestialidade e
massacre são ditas freqüentemente, sendo que, nas palavras do narrador, essa
carnificina organizada estará para sempre atrelada à Alemanha. Ele diz, acusador,
que “os aliados obrigam os moradores locais a corrigir o que os seus compatriotas
fizeram, enterrando os mortos. Documentada evidência que jogará o nome da
Alemanha na lama da história registrada”.
Dentre a produção dessa época, apesar de não conter nenhuma cena
referente aos campos de concentração, mas conter o que podemos considerar
uma atmosfera a eles relacionada e um atrelamento ao filme de atrocidade,
devemos abrir um parêntese e incluir O Sangue das Bestas (Le Sang des Bêtes,
1949), de Georges Franju.
125
Rodado em preto e branco para despertar a emoção estética do
espectador e não a repulsa que causaria a cores (o diretor associa o horror a
trevas, e não consegue conceber as trevas em cores), O Sangue das Bestas
contrasta a melancolia e decadência dos subúrbios parisienses do pós-guerra,
com as rudes e sangrentas atividades dentro dos matadouros locais. Franju
descreve em detalhes explícitos o destino dos animais e as condições de trabalho
dos açougueiros, se utilizando de imagens poderosas e reais de horror e violência.
Em um estilo ultra-realista, em que o excesso transcende a própria imagem, ele
sobreleva aspectos que de outra forma poderiam ser percebidos como ordinários.
Expandindo os limites do tema abordado e acentuando as suas características, faz
do comum extraordinário e do incomum mais incomum (ainda que preservando a
integridade da imagem original), flertando também, na elaboração de uma
atmosfera de pesadelo e horrores inimagináveis, com o surrealismo.
Imagens melancólicas dos subúrbios da Paris pós-guerra (O Sangue das Bestas).
O Sangue das Bestas remete ao extermínio sistemático, com os
animais sendo abatidos com precisão, estripados, decapitados, esquartejados,
suas carcaças deixando uma trilha de sangue pelos pisos e calçamentos. Franju,
acreditamos, faz ecoar os fantasmas do passado recente de um país que se
126
submeteu e – em parte – colaborou com horrores até então inimagináveis. E
efetua seu exorcismo nessas imagens cruas e cruéis.
Abate de animais no Matadouro Vaugirard (O Sangue das Bestas).
A mais relevante dentre as produções, feitas com material registrado
pelos cameramen militares é também considerado um dos grandes documentários
já realizados. Noite e Neblina (1955), de Alain Resnais, exige uma certa cautela no
que diz respeito a ser caracterizado no mesmo rol de outros filmes do período que
exploraram as cenas dantescas registradas pelos nazistas e posteriormente, pelas
tropas de libertação. As preocupações de Alan Resnais se desvinculam das que
127
moviam a maior parte dos filmes de atrocidade e por isso mesmo, graças ao
caráter diferencial que o filme apresenta, vale a sua inclusão. A singularidade de
Noite e Neblina pode ser ressaltada pelo modo como são exibidas as imagens
coletadas, que são exploradas pelo diretor para construir um estado de angústia
no espectador não pela amostragem de cenas intensas explícitas, mas pelo
vínculo criado com a imaginação do espectador pela sugestão de um horror que
se estende para além do representado.
Em primeiro lugar precisamos ter em mente que Noite e Neblina
rompeu o silêncio sobre um tema constrangedor para a humanidade, passados
apenas dez anos do fim da guerra, com as feridas ainda abertas. Principalmente
na França, país que viveu o terror das deportações e à sombra do
colaboracionismo. Tanto que até hoje, pode ser considerado um dos textos
audiovisuais mais importantes sobre os campos de concentração, evitando o
problema que encontramos na maioria dos filmes sobre o holocausto: a
exploração dos sentimentos de ultraje ou tristeza da audiência.
Para Resnais, diga-se de passagem, tratar da destruição em massa de
seres humanos não era novidade, pois poucos anos antes ele já se aproximara do
tema em Guernica (1950). Mesmo assim, ele não se sentia à vontade em fazer um
média metragem sobre assunto tão intenso sem ter vivido a experiência. Não se
via em condições de falar pelas vítimas e, portanto, fora de suas possibilidades
atender à encomenda do Comitê de História da Segunda Guerra Mundial, dirigido
então pelo historiador Henri Michael. Para tanto, foi imprescindível a participação
no projeto de Jean Cayrol, sobrevivente do campo de concentração de
Mauthausen (na Áustria) e autor de um poema intitulado Poèmes de la nuit et
brouillard (1946). Este reticente porque não tinha muita vontade de voltar a esse
passado, como relata o próprio Resnais (2006, p. 13). Fica evidente, desde o
princípio, uma precaução com a abordagem, pela magnitude do tema.
128
Depois de vários meses de documentação, em maio de 1955, Resnais
propõe ao produtor a necessidade de se alternar material de arquivo com longos
travellings em cores das abandonadas instalações dos campos de Auschwitz e
Maïdanek, na Polônia. Vale ressaltarmos as intenções do diretor, já que naquela
época aparecem na França campos de reagrupamento devido ao conflito argelino,
além dos rumores sobre gulags stalinistas. Em sua concepção, portanto, Noite e
Neblina passa de uma homenagem às vítimas do totalitarismo nazista a um alerta
aos espectadores de que horrores como aqueles do passado ainda estão à
espreita e é nessa abordagem que reside a exploração. O contraste entre as
imagens coloridas capturadas em 1955 e as cenas de arquivo em preto e branco
dizem em seu subtexto, em uma das leituras que podemos subtrair da obra de
Resnais, que apesar do distanciamento daqueles eventos, seus gritos silenciosos
ainda ecoam naquelas estruturas solidamente de pé. Não só um monumento à
tragédia humana, mas estruturas que, ainda que adormecidas, ainda estão vivas,
e à espera. Uma âncora em que os horrores do passado estão para sempre
aprisionados.
A estrutura narrativa se mostra consciente do tempo que separa o
espectador da barbárie de que é herdeiro, legado que ele muitas vezes ignora
justamente por querer evitar. Dentro dessa perspectiva Noite e Neblina se propõe,
através das imagens de arquivo do genocídio, atualizar o espectador e afirmar que
tais imagens contaminam de tal forma o presente que ninguém, após assistir o
filme, pode sentir-se a salvo. Assim encarado, ele consegue manter essa
capacidade até os dias de hoje, mesmo tendo sido superado em técnica e
aspectos formais. Isto remete a uma observação pessoal: no fim dos anos 1970,
anos de chumbo no Brasil, testemunhamos a projeção do filme em 16 mm em
escolas, artifício dos professores para uma articulação com os perigos do
fascismo e as práticas da ditadura brasileira.
Longe de ser uma espécie de panorama ou guia compreensivo dos
campos de concentração, Noite e Neblina é construído cronologicamente através
129
da contraposição das imagens selecionadas por Resnais com as tomadas feitas
em 1955, agrupadas em blocos temáticos que se amarram através do olhar e da
subjetividade do espectador e da voz over do narrador - o ator Michel Bouquet -,
de forma diferente do documentário clássico, em que essa voz simplesmente
conduz didaticamente a ação. A narração aqui se revela tanto um monólogo - o
narrador dialoga consigo mesmo, refletindo -, como um diálogo com a audiência.
Também é plena de ceticismo, de dúvida ante o indescritível, e desse modo cria
empatia com a resistência da audiência, consciente ou não dos eventos, em
aceitar o impensável. Acrescentada às imagens, aproxima-se do modo expositivo,
remetendo ao documentário clássico, “mas a característica obsessiva e pessoal
do comentário leva-o em direção ao performático” (NICHOLS, 2005, p. 173). Tanto
que uma interessante dialética é criada entre essa voz over, que repetidamente
afirma consternadas frases de efeito como “desnecessário dizer o que aconteceu
nesses aposentos”, “palavras são insuficientes”, “nenhuma descrição ou imagem
podem revelar a real dimensão”, com as precisas e até serenas informações sobre
os procedimentos nazistas de extermínio. Uma tentativa de se representar o
irrepresentável, ou como sugere Nichols (2005, p. 173), “atos absolutamente
inconcebíveis que se opõem a toda razão e a toda a ordem narrativa”. O que se
traduz nas palavras do roteirista Cayrol (2006, p.6):
Levamos à luz o que não estava mais nos arquivos ou no coração dos
sobreviventes incuráveis, um lote de imagens que se desdobram, se
multiplicam ao infinito no sangue, nos gritos, no pus. Nós sabíamos muito
bem que poderíamos somente nos aproximar da realidade
concentracionária: um filme de várias horas não teria sido suficiente para
dizer tudo. Como descrever esses “principados do assassínio, nos quais
a única rebelião que podia nascer era a da morte?
O filme é um mergulho no pesadelo, no qual vamos sendo tragados.
Rothman (1997, p. 39) faz uma interessante analogia entre o filme de Resnais e
Terra sem pão, de Buñuel:
130
Em Terra sem pão, o narrador (...) parte de Alberca e atravessa uma
cadeia de altas montanhas em direção à terra dos hurdanos. Uma vez lá,
ele se aprofunda cada vez mais nesta empobrecida região até que o
horror da existência dos hurdanos se revela totalmente. Noite e Neblina
segue uma trajetória semelhante. É também uma jornada alegórica ao
âmago de uma região em que horrores indescritíveis serão descobertos.
A dimensão de Noite e Neblina como de Terra sem pão é, ao mesmo
tempo, geográfica e espiritual. Mas para entrar nesta região, só é
necessário atravessar para o outro lado da cerca, e não transpor altas
montanhas. E para atingir o seu âmago, fazer uma viagem através do
tempo, e não do espaço.
Resnais vai sufocando aos poucos, terminando por deixar pouco
espaço para respirar. O filme pode ser dividido em cinco blocos, assim
apresentados linearmente: “a construção dos campos”, “um mundo à parte”, “o
homem é resistente”, “extermínio” e “quem é o responsável”? Encadeados, vão se
aproximando do horror etapa por etapa, como os diversos círculos do inferno de
Dante, cada um sucedendo ao outro até o núcleo que guarda a provação final. E
desse modo, caímos na armadilha, que se fecha sobre nós, em que confrontamos
um mundo pior do que qualquer pesadelo.
No primeiro bloco, temos uma rápida prévia da ascensão de Hitler, da
máquina nazista em marcha e o modo como foram gerados e construídos os
campos de concentração, relatados de maneira até bastante técnica. As
deportações, de diversas partes da Alemanha e da Europa ocupada, vêm em
seguida, tendo esta seqüência causado polêmica e ameaça de censura. Sobre
isso, vale a pena reproduzirmos as palavras de Resnais (2006, p. 16):
Criaram-se também imediatamente tensões com a comissão de controle,
que era chamada de “censura”. Pediram-me antes da estréia para cortar
as cenas do final onde apareciam cadáveres, porque seria violento
demais. E há um plano que eu não tinha percebido, que era a famosa
história do quepe do policial. Porque efetivamente há nesse plano de três
segundos, no qual enumera-se diversos campos, e na contra-luz –
preciso dizer que não vimos isso, foi completamente inconsciente – é
131
possível ver um policial francês em cima de um mirante. Acho que ele
está vigiando o campo. (...) Era no campo de Phitiers. (...) No final das
contas, eles proibiram o filme porque tinha esse plano do policial, de dois
segundos, que ninguém teria percebido. (...) Logo, negociações que eu
não presenciei foram feitas. (...) Mas eu queria guardar as palavras
“Campo de Phitiers”, porque era importante mostrar que a França tinha
organizado pontos de partida para os campos de concentração. “Campo
de Phitiers” era importante para mim, o quepe do policial não era. E eles
acabaram não cortando o final. Eles não ousaram. O final foi conservado
integralmente.
Ainda no que diz respeito às deportações, são mostradas as vítimas
sendo embarcadas nos vagões que as levariam para o confinamento. São
imagens emblemáticas (que reproduzimos nos fotogramas a seguir), registradas
pela propaganda nazista, dentre as quais destacamos o judeu com suas crianças
(1), os oficiais da SS reunidos conversando informalmente com um pastor alemão
ao lado (2) – a representação da opressão, e talvez a mais contundente: a criança
que olha da porta entreaberta de um vagão (3), aparentemente mesmerizada, sem
compreensão da real dimensão do que ocorria, observando algo fora de nosso
campo de visão – provavelmente a câmera. Nota-se o direcionamento, como bem
notou Nichols (2005, p. 173) não em se fixar na história, mas sim na memória. Ou
seja, em vez de se deter no que aconteceu, quando e por quê, tentar resgatar as
experiências pessoais envolvidas em uma situação como aquela.
Figura 1
132
Figura 2
Figura 3
O segundo bloco começa com o detalhe do olhar aterrorizado, talvez já
evidenciando sinais de loucura perante o que o narrador chama de “um outro
planeta”. É o mundo à parte onde os deportados serão submetidos a toda uma
subversão dos valores que conheciam de humanidade. Somos introduzidos
naquele universo, delimitado pelas cercas que o separavam do “mundo real”, de
vilarejos, paisagens bucólicas e campanários. Novas regras se aplicam em um
cotidiano cruel, pontuado por sacrifício. São as primeiras cenas de morte
mostradas, fotos de prisioneiros executados em tentativas de romper esses
limites, de voltar ao mundo real, emaranhados nas cercas de arame farpado.
133
Os suplícios fazem com que os aprisionados tentem se adaptar às
normas, sobreviver em meio ao caos, trabalhando, lutando por comida, se
organizando, mantendo a mente sã através da escrita e do artesanato. E
praticando o auxílio-mútuo, cuidando uns dos outros, compartilhando comida e
levando os doentes ao hospital. É a resistência do indivíduo em meio às mais
cruéis adversidades o tema do terceiro bloco. Resistência que se esvai nas mãos
dos médicos e enfermeiras, em experiências médicas, amputações e práticas que
só podemos adivinhar ao ver expostos sistematicamente os instrumentos
cirúrgicos, equipamentos e as vítimas agonizantes e mutiladas na enfermaria.
No quarto bloco chegamos ao núcleo do inferno, após passar por suas
ante-salas. São seleções das seqüências tomadas pelas tropas britânicas de
libertação em Bergen-Belsen. Mas o filme não cai na armadilha de simplesmente
mostrar essas cenas e deixá-las fluir, supondo sua capacidade pedagógica e
esquecendo-se do fascínio visual que as mesmas podem provocar. O diretor
somente utiliza essas imagens no final do filme, onde se encaixam
cronologicamente, sem coincidi-las com algum clímax pelo tratamento com que
montou o material, evitando cair no dramático. Até esse ponto final, Resnais não
precisou lançar mão de imagens essencialmente escabrosas para criar uma
angústia, sendo mostrado, inclusive, recatado, nas seqüências agrupadas
tematicamente. Essa montagem é a grande mola mestra e força de Noite e
Neblina, declinando da continuidade em favor de uma rapidez mais fragmentada,
que impede que se detenha na morbidez do detalhe. Segue em um crescendo de
sentidos até a colagem que compõe a última seqüência, em que somos soterrados
por cadáveres.
O bloco começa com a visita de Himmler a um dos campos e a sua
mecanização do extermínio. A partir daí, são as modalidades instituídas e a
eficiência de execução industrial: o fuzilamento e o gás Zyklon; os crematórios e
as valas comuns. Resnais vai mostrando os corpos despedaçados, mutilados,
queimados, empilhados, em diferentes estágios de decomposição, e sua
134
articulação com os indivíduos que deixaram de ser, dando-lhes identidade ao
exibir pilhas de óculos, cabelos, malas e sapatos. Da câmara de gás, que prometia
um banho desinfetante, temos as fortes imagens do cimento do teto arranhado
pelas unhas dos agonizantes. Especulou-se, inclusive, que o diretor tinha em
mãos e não utilizou planos tomados pelos nazistas do que acontecia dentro
dessas câmaras, o que ele nega veementemente. O enfoque na usina de horrores
vai se dominando, com cenas cada vez mais intensas. Corpos se desfazendo em
tanques; uma fileira de cadáveres decapitados enfileirados, com as cabeças
arrumadas ao lado, empilhadas dentro de uma tina; closes em rostos vazios,
mostrando as marcas da violência, alguns nos fitando através de órbitas vazias.
Uma série de stills, como nos diz Rothman (1997, p. 57), “de cortar o coração,
grotescas, estranhamente belas”.
Usina da morte nazista (Noite e Neblina).
Essa industrialização da morte nos remete às cenas do matadouro de O
Sangue das Bestas. Aliás, as estruturas entre os dois filmes são bastante
semelhantes, com as cenas de matadouro deste intercaladas com as bucólicas e
decadentes tomadas dos subúrbios de Paris, de forma análoga ao contraste entre
as cercanias do campo de concentração e os horrores lá contidos estruturado no
135
jogo entre as tomadas em cores e preto e branco. Os espaços vazios dos
subúrbios, a arquitetura escura, gasta, decadente – restos de uma velha ordem,
de uma França que se entregou e não saiu incólume da tragédia – podem ser
transpostos para as tomadas de Resnais do campo deserto, também sobras
vazias e corrompidas, igualmente emanando morte.
Desolação: subúrbio de Paris em Sangue das Bestas (esq.) e Campo de Concentração
desativado de Noite e Neblina (dir.)
O morticínio está presente, reforçando nossa idéia de que Franju a isso
também se referia quando fez o filme, tais são as semelhanças entre as imagens
de seu filme com as tomadas pelas tropas de libertação. Até que ponto essas
imagens circularam ou chegaram ao diretor, não podemos constatar, mas que as
evidências de que ele teve acesso a esse material não deixa dúvidas, já que as
semelhanças se destacam na tela. Logo nas primeiras seqüências, um manequim
feminino, sem braços, largado no meio da terra e entulho, nos leva a relembrar
dos cadáveres despidos e mutilados também abandonados ao tempo e à
decomposição. Do mesmo modo as relíquias de outras eras – utensílios,
brinquedos, mobiliário, roupas - dispostas provavelmente com o intuito de
comércio ao ar livre, remetem às pilhas de objetos pessoais descobertas nos
136
campos: sapatos, óculos, malas. Lembranças de indivíduos dos quais não temos
referência, e que certamente morreram ou foram destituídas de humanidade.
Manequim (Sangue das Bestas) e cadáveres insepultos (Noite e Neblina).
O matadouro Vaugirard, metáfora para o campo de extermínio, sua
área também delimitada por cercas e portões, está em pleno funcionamento. Os
açougueiros se entregam à tarefa cotidiana com a mesma disposição e eficiência
que os carrascos da SS, presume-se, aplicavam aos prisioneiros. São
didaticamente apresentados os instrumentos de trabalho dos carniceiros: o caniço,
a machadinha, a pistola utilizada na fronte do animal e o mata instantaneamente;
e que na outra realidade se transformam nos fuzis, forcas, câmaras de gás e
fornos crematórios. Um funcionário serra uma carcaça de cavalo em duas partes
durante as doze badaladas do meio dia, no campanário próximo. Mise-em-scène
elaborada para enfatizar, com ironia, a banalidade da situação. Morte rápida,
morte em escala. Quantos judeus eram mortos por dia na fase mais aguda do
extermínio, quando os alemães queriam a todo o custo acelerar o processo?
Os animais seguem para a morte, enfileirados, olhares vagos em sua
maioria, com o mesmo desconhecimento temeroso com que os prisioneiros dos
campos, conforme vemos nas fotos do massacre nazista, seguiam para as covas
137
onde seriam fuzilados ou para os supostos chuveiros, que camuflavam os tubos
de gás venenoso. É nas evidências de seus restos e carcaças, após o abate, que
se revelam as analogias mais cruéis. Os despojos dos bezerros decapitados e
enfileirados, suas cabeças empilhadas próximas, são quase iguais a uma das
seqüências de imagens mais chocantes de Noite e Neblina. A degola brutal de
ovelhas, nos leva a refletir a morte em escala industrial, a linha de montagem
extrema que revestida nos corpos sem pelagem dependurados desses pobres
animais, evoca os milhares de cadáveres que vimos espalhados nas tomadas das
tropas britânicas, sendo empilhados e empurrados pelos tratores.
Analogia: cabeças decapitadas e carcaças: O Sangue das Bestas (esq.) e Noite e Neblina (dir.).
138
A narração final de O Sangue das Bestas é bastante sugestiva e óbvia:
“O dia está acabando. No curral, as ovelhas agitadas vão dormir em
silêncio. Não ouvirão os portões de sua prisão serem fechados, nem o trem Paris-
Villette, que parte ao cair da noite para o interior, para reunir suas próximas
vítimas”.
A diferença fundamental entre Noite e Neblina e O Sangue das Bestas
é que o registro da morte e da violência no primeiro não causa repulsa como no
filme de Franju, mas torna real um pesadelo pela sugestão do horror, inspirando
um estado de melancolia, uma angústia silenciosa, que talvez mais se assemelhe
ao efeito causado por Terra sem pão. Aqui, como sugere Claude Mauriac (2006, p.
10), “a realidade ultrapassa de longe o que conceberam, na área da ficção, as
mentes mais fantásticas. São visões anódinas comparadas às de um Dante ou de
um Hyeronimus Bosch. Ficamos pasmos de espanto, enojados primeiro no sentido
físico da palavra, e logo tocados na alma”.
Quando Noite e Neblina chega nesse ponto, quando assistimos as
gigantescas máquinas empurrando avalanches de defuntos para as valas, já
estamos suficientemente angustiados para sermos surpreendidos por essas
imagens. Afinal, a sensação de derrota é muito anterior. Ela remete à dialética de
que falamos, entre a voz que nos pergunta se é em vão que tentamos relembrar –
na verdade uma necessidade – e a impossibilidade de se fazer algo, que marca o
quinto e último bloco. E que, como coloca Lopate (2003), faz de Noite em Neblina
um anti-documentário. Afinal, não é possível documentar este fato particular tão
horripilante, da qual só resulta um sentimento de derrota. Mas que também enseja
139
um esforço de análise e reflexão. E é nesse ponto que o filme encontra a sua
grandiosidade, que justifica a exploração de cenas tão intensas: ele não manipula,
mas nos instiga a refletir, questionar, examinar os registros e buscar em nós
mesmos as respostas. Como diz Resnais (2006, pp. 17, 18):
Eu queria um filme que não dissesse às pessoas “Não esqueçam” – isso
era interessante – mas “Procurem entender porque isso acontece. Não
esperem que isso aconteça para começarem a se preocupar”. Eu falava
muito de “sineta de alarme”. Era o terror de que isso voltasse. Hoje eu
diria que o que me chama a atenção - e eu não tenho a solução, talvez
os filósosfos a tenham – é essa espécie de proporção (porque se fala de
equilíbrio na raça humana) entre os que destroem ou os que torturam, os
que oprimem, os que tiram seu prazer do domínio que exercem sobre
outros seres humanos, e os que tiram o seu prazer do sacrifício, da
reparação, da edificação, etc. Como se existissem esses dois extremos
de – eu não sei... não se chama isso de a curva de Gauss? Talvez, eu
não tenho certeza da palavra. Eu queria que alguém se debruçasse sobre
os motivos pelos quais existem essas duas forças que parecem alimentar
a raça humana, há mais de seis mil anos. Não posso falar sobre antes
disso... É realmente um ponto de interrogação enorme, o aspecto “Quem
é o responsável?”
Trator empurra restos mortais das vítimas para vala comum.
140
Tentando seguir essa linha, de um alerta de tons ideológicos, mas sem
a mesma maestria de Noite e Neblina, temos Minha Luta (Mein Kampf ou Den
Blodiga Tiden, no original), dirigido em 1960 por Erwin Leiser. Na verdade, trata-se
da tentativa de uma versão estendida do primeiro, sendo a estrutura construída de
forma bastante semelhante: a ascensão do nazismo, a segregação racial, o
extermínio, a responsabilização; encadeados de forma bem mais linear e com um
atrelamento histórico que não permite tanto a reflexão, já que o enunciador faz
isso pelo espectador.
Recriando a partir de imagens de arquivo a trajetória do nazismo e de
seu mentor, o filme rompe a linearidade de forma ainda não usual nos
documentários, ainda que brevemente, na seqüência inicial, que mostra cenas da
queda de Berlim sendo devastada pelas bombas aliadas. Em seguida, volta aos
tempos da República de Weimar, seguindo cronologicamente até o fim da guerra
na Europa, sempre tendo como centro a Alemanha e o nazismo. A história é
recriada dentro desse ponto-de-vista, tendo a preocupação de tentar mostrar as
sementes do ódio e suas conseqüências, principalmente a política de exclusão
racial.
A exploração de imagens violentas também vai se intensificando, sendo
carregadas de dramaticidade por um narrador nada isento. Começa com uma
batida em conjunto de soldados alemães e policiais a uma feira na Polônia, com
abordagem e maltratos aos judeus presentes. A segregação se intensifica com o
estabelecimento dos guetos, sendo parte dessas imagens, que mostram a miséria,
a sujeira e as doenças bastante semelhantes às utilizadas pela propaganda
nazista em O Eterno Judeu. De acordo com o filme, foram rodadas sob a
supervisão pessoal de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, com
fins óbvios. Mas acabaram sendo, em sua maioria, censuradas por serem
consideradas fortes demais e capazes de causar pena nos espectadores, o que
não era o objetivo. Essas cenas, de 1940, que já dão uma prévia do que veríamos
nos filmes das tropas aliadas nos campos de concentração, mostram pessoas
141
vivendo em condições sub-humanas, famintas, perambulando pelas ruas. Mortos
sendo recolhidos nas ruas, alguns já exibindo sinais de decomposição, sendo
colocados em caixões. Outros carregados em carroças e levados para campo
aberto, onde eram despejados em covas coletivas. São mostrados também fotos
de enforcamentos e fuzilamentos.
Judeus registrados no gueto, convivendo com a miséria, doenças e cadáveres. Cenas filmadas
pelos nazistas, incluídas em Minha Luta, de Erwin leiser.
As seqüências de deportações e campos de extermínio são as mesmas
utilizadas em Noite e Neblina, articuladas aos comentários melodramáticos do
narrador: “óculos que viram o indescritível”, “sapatos que fizeram a última
caminhada” e o final apregoando de que “isso nunca mais pode acontecer, nunca
mais!”.
É importante constatar que os espectros desse período - que ainda
vagam com seus corpos torturados e esqueléticos pelo imaginário – ainda estão
presentes no cinema documentário, em produções que, se em parte
amadureceram em análise do tema, ainda se prendem muitas vezes aos
parâmetros da exploração para a defesa de uma causa. É o caso de Libertação
1945 (Liberation 1945), produção de 1994 dirigida por Arnold Schwartzman para a
142
produtora de filmes do “caçador de nazistas” Simon Wiesenthal. O documentário
se propõe a contar, paralelamente aos eventos que a partir de 1940 foram
desmontando a máquina de guerra nazista e terminaram com a sua derrocada em
1945, a história do extermínio dos judeus desde o seu aprisionamento no gueto de
Varsóvia às deportações e extermínio sistemático nos campos de concentração.
Por um lado o filme ganha credibilidade ao colocar o dedo na ferida,
dando evidência e questionando as atitudes aliadas que apesar de terem
conhecimento não se manifestaram em relação ao que acontecia com os judeus
da Europa ocupada. Acusa a apatia e resignação do mundo quanto ao massacre
em andamento. Levanta fatos embaraçosos, como as ações da polícia francesa,
que tomou parte nas deportações (o que lembra o policial no campo de Pithiers,
em Noite e Neblina) e o apoio velado do Vaticano, que, segundo o filme, “não
podia conter o prazer de os nazistas derrotarem o maior inimigo da Igreja: os
comunistas”.
Totalmente apoiado em cenas de arquivo, tendo como enunciadora a
narração melodramática a cargo de atores conhecidos, amarra as imagens –
muitas vezes fora de seu contexto original – ao objetivo maior do filme:
propaganda judaica e legitimação do sionismo. Aqui, os mortos e sobreviventes
(imagens de Bergen-Belsen principalmente) perdem humanização e ganham a
dimensão de símbolos para evidenciar não só a demonização nazista, mas
também o mundo não-judeu. Como se afirmasse uma individualização racial à
parte de um mundo hostil, motivação para a união e mobilização em torno de um
ideal comum. Mesmo quando é dada a voz aos relatos de sobreviventes e
desaparecidos (através de relatos de diários, como no caso da mitificada Anne
Frank), essas narrativas e imagens associadas são exploradas de modo a criar
uma empatia pelo drama. Talvez Goebbels invejasse o caráter propagandístico de
Libertação 1945, inclusive por estar presente através das imagens que capturou
nos guetos poloneses, suas tomadas ganhando dimensão oposta às que ele
143
pretendia. O ministro de Hitler também tem sua imagem explorada no filme,
destacando-se a rara filmagem de seu cadáver queimado no bunker de Hitler.
Libertação 1945 termina com um plano geral do cemitério militar
americano de Arlington, com as cruzes que marcam os túmulos dos que morreram
em combate se perdendo no infinito. Em primeiro plano e ao centro, um desses
marcos funerários ostenta uma estrela de David. Nada mais sutil poderia se
esperar do diretor dedicado à causa judaica e que já dirigira outros trabalhos sobre
o tema, como Genocide (1982).
Mas não só as mazelas da guerra na Europa foram documentadas e
recicladas nas produções posteriores. Também as atrocidades cometidas pelos
japoneses serviram de motivo para filmes que serviram de propaganda e
justificavam as ações dos vencedores do maior conflito armado até então.
Este conteúdo ideológico vai se tornando mais explícito no turbulento
período que se seguiu à Segunda Guerra, quando o mundo mergulhou em uma
era de incertezas, capitaneada pela Guerra Fria, o terror atômico e um novo
conflito na Coréia. Além da irrupção de uma série de movimentos de libertação
que visavam a independência de vários países ainda sob jugo colonial, como a
violenta revolta dos Mau-Mau no Quênia (1952) contra seus opressores ingleses.
A insurreição foi supostamente documentada em Mau-Mau (1955), de Elwood
Price, um bom exemplo de como a nova leva de produções do gênero ainda
retoma os cânones do exploitation exótico e clássico, mas sem deixar de estar em
sintonia com as ansiedades do pós-guerra. Nota-se que, além do óbvio intuito de
se ganhar dinheiro com a exibição dessas películas, do mesmo modo como o
filme exótico exaltava as virtudes do colonialismo em relação aos selvagens de
lugares primitivos, um forte conteúdo ideológico pode ser encontrado nos filmes de
atrocidades dessa época.
Mau-Mau foi idéia do produtor Joe Rock após o livro Something of
Value, contando a revolta africana, se tornar best seller. Vendo uma oportunidade
144
de ganhar dinheiro com um assunto do momento e pouco investimento, reuniu
material de arquivo: basicamente trechos de filmes de viagem de seu anterior
Krakatoa (1933) e tomadas com mulheres negras de seios nus. Associado ao
diretor Elwood Price, pagou ao jornalista Chet Hunley para que emprestasse a sua
voz a algumas seqüências em formato de cine-jornal, costurando tudo em uma
muito particular visão do levante da facção Mau-Mau da tribo Kikuyu, no Quênia,
assim como do choque da cultura dos nativos com a dos colonizadores brancos.
De acordo com a tradição, a exposição dos eventos dramáticos que mudavam
política e economicamente o Quênia era interrompida para dar lugar à encenação
barata do ataque a uma aldeia, onde nativas de seios de fora corriam dos homens
que as perseguiam armados de facões.
3.2. Os filmes de sala-de-aula
O período também viu florescer outra fonte relevante, que a seu modo,
também podem ser associados aos filmes de atrocidades: os hygiene films,
também conhecidos sugestivamente como “filmes de sala de aula” (classroom
films), que tiveram o seu auge entre 1945 e 1970. São filmes que foram feitos com
a intenção de promover um ajuste social de seus espectadores, procurando a
manutenção do status quo e a proteção aos males e perigos que afligiam o
mundo. Tanto que eram, em sua maioria, exibidos em salas de aula, onde o
público jovem poderia, através deles, ser direcionado a um padrão de
comportamento considerado apropriado sob a ótica dos adultos (não que estes
não estivessem também sujeitos a específicos tipos de hygiene films). Herdeiros
dos clássicos exploitation, em geral versavam sobre os perigos do sexo, do
alcoolismo, das drogas, do comunismo e do comportamento considerado de risco.
Sua estrutura era simples e podia se apresentar de dois modos. Uma
delas era na forma de um documentário tradicional, onde a voz do narrador ia
145
conduzindo os fatos que eram ilustrados didaticamente com a apresentação de
slides tirados de livros científicos, inserção de filmes de arquivo ou mesmo
algumas encenações. Mas, aparentemente, devido ao grande número realizado,
os mais efetivos eram os filmes em que a narrativa dramática, encenada, servia de
base para que as idéias a serem incutidas nos espectadores se integrassem à
trama de forma mais atraente. Os objetivos educacionais da produção se
desenvolviam através de um enredo bastante simples, mas ao mesmo tempo
engenhoso, onde nenhuma palavra proferida ou seqüência filmada se distanciava
do interesse principal. Eficientes, podemos dizer que se existisse uma máxima
para essa linha seria “ser simples para ser direto”, sem subterfúgios, metáforas ou
insinuações. Era tudo explícito nos hygiene films, de modo que nenhum
ornamento narrativo dificultasse o seu entendimento, claramente explicado pela
voz over do narrador ou do personagem “detentor do saber”, que funcionava como
arauto da razão e da consciência, em geral benévolo, compreeensivo, mas
incisivo. A voz desse personagem, participante da trama, poderia passar a off
durante seqüências em que eram vistos os slides ou trechos de filmes dentro da
produção principal.
3.3. Educação Sexual
Em Because of Eve (1948), de Howard Bretherton, todos os elementos
predominantes nos hygiene estão presentes. A trama é apresentada em três atos
simples e básicos: introdução, desenvolvimento e conclusão. No primeiro temos a
apresentação dos personagens e o problema que será o motivo principal do filme.
Somos introduzidos a Harry e Sally (nomes banais como João e Maria, facilmente
identificáveis), prestes a casar, que vão ao médico saber os resultados do exame
pré-nupcial. O médico causa uma comoção entre os dois, dizendo a Sally que seu
primeiro bebê não causou grandes problemas, e para Harry, de que não havia
146
nenhum traço de uma antiga doença venérea. Tanto um como o outro não sabiam
desses antecedentes, sendo que Sally, magoada, sai da sala brigada com Harry.
O casal Harry e Sally recebem aconselhamento do Dr. West em Because of Eve.
No segundo ato, assistimos em flashbacks as circunstâncias que
causaram a doença venérea de Harry e a gravidez inesperada de Sally. O Dr.
West dá um sermão no rapaz sobre promiscuidade e contágio, exibindo o
documentário A História das Doenças Venéreas (The Story of V.D.), em que,
embalados pela voz over do narrador, assistimos cenas repulsivas de doentes de
sífilis, em vários estágios. São imagens assustadoras de membros cobertos de
pústulas e feridas, assim como faces e órgãos genitais. O que na verdade está de
pleno acordo com o ramo dos hygiene films de educação sexual, que são os que
versam sobre a sífilis, para coroar o seu objetivo moralizante. Como sugere Smith
(1999, p. 68):
Esta triste associação entre sexo e doença era justificada pelo seguinte
raciocínio: sexo fora do casamento era errado; adolescentes não eram,
provavelmente casados; conseqüentemente qualquer adolescente que
fizesse sexo não seria casado e por sua vez, estava com certeza errado.
(...) A mensagem era clara: mesmo se adolescentes fizessem sexo e se
147
sentissem bem, seus corpos poderiam ainda carregar uma doença
mortal.
O documentário A História das Doenças Venéreas, incluído em Because of Eve.
Utilizando seu discurso conservador, em que o sexo pode ser algo
maravilhoso – desde que feito por pessoas casadas -, o bom doutor passa outro
filme: o documentário A História do Nascimento (The Story of Birth, também
intituladoThe Story of Reproduction e The Story of Life), de 1948, também dirigido
por Howard Bretherton. Realizado com o auxílio do Departamento de Saúde da
Universidade da Califórnia começa com uma comparação entre o corpo masculino
e feminino, descrevendo o ciclo menstrual e a fertilização, acompanhando todo o
processo de gestação. Em seguida, mostra os procedimentos médicos de um
parto normal e uma cesariana, sendo graficamente explícito, conforme já atestava
a chamada promocional: “o filme mais revelador já feito”. Because of Eve conclui
com uma mensagem otimista e conservadora, com o Dr. West enriquecendo o
casal com ensinamentos sobre a medicina moderna e de como ensinar aos filhos
sobre as coisas da vida.
148
Cenas do documentário A História do Nascimento, também inserido em Because of Eve.
É importante percebermos em como esses filmes se alinham ao
paradigma central dos filmes exploitation: enquanto mascaram uma liberalidade,
tratando de temas tabu e mostrando cenas fortes – clara pretensão de faturar nas
bilheterias -, são profundamente moralistas e conservadores. Não é para menos
que muitos deles tenham sido produzidos e dirigidos não só por indivíduos já
ligados à realização dos filmes de exploração. Também serviram de estágio para
futuros e prolíferos exploiteers, todos utilizando como temas assuntos
controversos do período. Um nome que destacamos, dentro dessa vasta linha de
produção, é Joseph P. Mawra. Diretor que já tinha experiência nesse tipo de
abordagem, sendo responsável pelos documentários de exploração da série Olga,
149
todos feitos em 1964: White Slaves of Chinatown, Olga’s Girls e Olga’s House of
Shame. Produzidos em preto e branco, remetem tanto aos antigos documentários
de exploração clássicos quanto aos filmes de sala de aula, tanto pela forma
narrativa quanto pela temática: os perigos das drogas e da prostituição. Também
se aproximam da forma de documentário expositivo, com a inclusão da voz over
de um narrador, alternada com a de Olga (também em off). Merece destaque a
presença de Audrey Cambell, sempre vestida com uma apertada calça preta e
botas de cano alto, como a personagem título. Sua performance notadamente
sádica e pervertida, certamente serviria de modelo para megeras de produções
futuras.
Cartaz promocional de Olga’s House of Shame e cena de Olga’s Girls.
Em White Slaves of Chinatown conhecemos Olga, figura-chave do
sindicato do crime, responsável pela prostituição e tráfico de drogas. Sua base é
150
em Chinatown e a escolha do bairro chinês de Nova York vai além do racismo
evidente em associar os chineses ao crime e sordidez (recurso já antigo e
bastante recorrente nas décadas anteriores), sendo uma clara referência ao
“perigo vermelho”. A falta de diálogos (provavelmente pela falta de recursos
suficientes para se obter uma sincronia de áudio) é compensada pela narração e
por uma repetitiva e desagradável trilha de caráter oriental. O filme intercala
tomadas de rua do bairro chinês com encenações passadas no quartel general de
Olga, na verdade um prédio decadente e escuro. Em seus porões estão instalados
os cativeiros e as câmaras de tortura. É para lá que atrai as jovens recrutadas
para a sua rede e que, através da tortura, subjuga. Submetidas à sua vontade,
acabam viciadas em narcóticos e obrigadas à prostituição. As faltas são
castigadas com as mais diversas formas de tortura, tendo como ponto comum o
fato das garotas serem amarradas e espancadas. O modus operandi varia:
espancamentos, chicotadas, garrotes, abortos forçados, a mão de uma das
vítimas esmagada em um tipo de prensa, outra têm os seios queimados por um
cigarro... Os resultados são bem explícitos, com a visão dos ferimentos e marcas
nas carnes à mostra. A exposição de nádegas e seios é freqüente, assim como
algumas cenas de sexo são sugeridas. Mesmo não sendo nada explícitas, são
bastante ousadas, principalmente o momento em que Olga acaricia o corpo de
uma jovem e se despe, deixando bastante clara a sua intenção.
Olga’s Girls, o segundo filme da série, mantém o esquema do filme
anterior, com o mesmo narrador amarrando as seqüências, sendo acrescentados
novos acessórios ao repertório fetichista, como botas de couro e correntes. As
seqüências são mais ousadas, tanto em violência, quanto em sexo e nudez. O
filme evidencia melhor, através da narração em off, a idéia da relação entre os
comunistas (Olga seria uma simpatizante) e o sindicato do crime, sendo os
agentes soviéticos e chineses responsáveis pelo aumento de consumo de drogas,
e a conseqüente expansão do comunismo. Fatores que contribuiriam para a
derrocada dos ideais americanos. Bondage (o ato de amarrar) e espancamento
151
continuam a base dos suplícios, com detalhes das cordas com que as garotas são
amarradas apertando seios e coxas de mulheres vestidas apenas com roupas
íntimas, cintas e ligas. As cenas de tortura ganham novas modalidades. Os seios
passam a ser queimados com maçaricos. Eletrochoques são aplicados, ao que
parece com o único intuito de mostrar os seios balançando e a degradação cai
mais alguns níveis, com a exibição de duas prisioneiras acorrentadas em um
porão, se alimentando como cães em tigelas largadas no chão imundo.
O terceiro filme da série, Olga’s House of Shame, procura seguir
exatamente o padrão já estabelecido, já deixando de lado o seu caráter
estritamente documental, com a inclusão de alguns diálogos. A base de operações
de Olga agora, é uma velha mina abandonada, onde, além dos narcóticos e
prostituição, passa a se dedicar ao contrabando de jóias. Novamente temos o
desfile de mulheres aprisionadas seminuas sendo submetidas aos suplícios do
cativeiro. Alguns incrementos são dados às torturas: seios queimados (agora com
um ferro de solda), mamilos apertados com alicate e nádegas espancadas com
tábuas com pregos. O lesbianismo de Olga é explorado novamente, de maneira
um pouco mais explícita. Ela e uma das jovens começam uma série de carícias
mútuas, até que a elas se juntam outras duas mulheres.
Joseph P. Mawra ainda realizaria mais um filme, fechando a série:
Olga’s Massage Parlor, em 1965, mesmo ano em que roteirizou e realizou
Chained Girls, que destacamos por ser o que melhor se apropriou, dentro da
vertente dos filmes de atrocidades e exploração, da linguagem documental para
atingir objetivos nada encorajadores, entre eles reafirmar o conservadorismo moral
e instilar o medo.
Chained Girls se propõe a ser um aprofundado mergulho no universo
das lésbicas, tomando como base a cidade de Nova York. O documentário,
rodado em preto-e-branco, é composto por cenas de rua, intercaladas por cartões
explicativos e seqüências encenadas. A voz over do narrador, faz as asserções,
152
presumidamente fundamentadas por respaldo científico. Logo na abertura, após
os créditos iniciais, já ficam evidentes as intenções da fita. O narrador questiona
quem seriam as lésbicas, como vivem e interagem com a sociedade; e se o
lesbianismo seria uma doença ou ocorrência natural. Após essa introdução,
apresenta uma breve explanação histórica, ilustrada por slides, sobre as origens
do homossexualismo feminino na Grécia antiga e a lenda de Safo. Em seguida,
nos transporta para os tempos atuais, com seqüências que serão recorrentes, de
prédios e do burburinho das ruas novaiorquinas, com suas lojas, luminosos,
passantes e automóveis. Uma referência ao fato “delas” estarem entre nós,
incógnitas. A conceituação dada, apregoada científica, já começa destilando uma
visão negativa, definindo as homossexuais femininas por suas denominações
pejorativas. Divididas então entre butches ou dykes – as lésbicas dominadoras, de
aparência masculina – e baby butches ou debs – as neófitas, preferencialmente
adolescentes que vão, na visão do filme servir de comida às butches.
Chained Girls: uma butch e sua deb.
153
Após uma curta seqüencia na penumbra, com duas mulheres de rostos
velados se agarrando dentro de uma cabine telefônica ressaltando o caráter
escuso da relação, o narrador discorre sobre os problemas que as lésbicas têm
em se adaptar à sociedade que as condena, o que leva muitas delas, ainda na
adolescência, à prostituição e às drogas. Procuram também exercer profissões
que as aproximem de outras mulheres, sendo que algumas dessas ocupações
inclusive, segundo Mawra, conduzem ao lesbianismo. Destaca o trabalho em
teatros, nightclubs, prisões femininas e especialmente como modelo fotográfico. O
que serve de gancho para a primeira seqüência encenada, passada em um
estúdio. Enquanto ouvimos o narrador tecer seus comentários empolados, a
fotógrafa pede à jovem que tire a roupa para a sessão de fotos. Pelo reflexo do
espelho vemos a modelo tirando as calças, de costas. A fotógrafa se aproxima e
dá palmadinhas nas nádegas da moça, ajudando-a a tirar a camisa. A câmera
passeia pelo corpo da garota, vestida apenas com calcinha e sutiã transparentes,
enquanto esta se revira em poses provocantes. O detalhe fica para a dedicação
da fotógrafa, que acaricia e arruma os trajes íntimos da modelo.
O filme também se propõe a mostrar o cotidiano das lésbicas,
apontando causas para o lesbianismo. Pérolas que na verdade poderiam constar
em qualquer almanaque ou enciclopédia de educação sexual daqueles anos. E
não duvidamos que, de alguma maneira tivessem mesmo respaldo científico, em
uma época onde a medicina ainda engatinhava em questões relacionadas à
sexualidade e revestia-se da moral do período, chegando a extremos como este
trecho, de um artigo relacionado à masturbação feminina, que retiramos de um
desses manuais, assinado por um certo Dr. William Drauger (1954, p. 31):
O meio de combater esse vício na mulher é, pouco mais ou menos, o
mesmo que se recomenda par o homem, isto é, a higiene, a distração e o
trabalho. Se o recurso não produz o resultado apetecido e se o clitorismo
está perfeitamente demonstrado pela exuberância e volume do orgão,
deve recorrer-se à cauterização. Se a cauterização não bastasse para
combater o mal, restaria ainda o último recurso, da excisão do citado
154
orgão. Este recurso é, em muitos casos, o único possível para salvar a
existência de muitas jovens entregues com paixão à ninfomania.
Ao que tudo indica, Mawra desconhecia ou, mais apropriadamente, não
tinha interesse por trabalhos como o de Kinsey, provavelmente porque uma visão
mais esclarecida sobre sexualidade não tinha relevância para os seus objetivos –
sejam eles a simples exploração ou uma pregação moralista - ou de seus
espectadores que se excitavam vendo as mulheres seminuas se esfregando, ao
mesmo tempo em que eram convencidos de que aquilo era moralmente
condenável. Não para eles, diga-se de passagem, mas para quem se entregava a
esse tipo de desvio. Dentro dessa visão unilateral e preconceituosa, as causas
apontadas – e comprovadas por exames psiquiátricos - que poderiam levar ao
desenvolvimento do lesbianismo são, conforme nos dita o narrador: brigas
familiares; separações e divórcios; pais alcóolatras, psicóticos, tirânicos ou
desajustados sexualmente; mães que instilam medo do sexo ou negligenciam
educação sexual; influência da personalidade paterna; entre outras.
Cena de Chained Girls.
155
Durante essa explanação, o espectador é brindado com mais uma
encenação erótica, dessa vez mostrando uma butch e sua companheira chegando
em casa. A primeira, veste-se de forma masculina, de chapéu e camisa larga.
Beijam-se com ousadia, as línguas se tocando em close. Na seqüência, entre
avançadas carícias, despem as camisas e deitam-se uma sobre a outra, vestidas
com os sutiãs. Esfregam-se mais um pouco e por fim, tiram a lingerie, mostrando
os seios e chegando aos limites permitidos. A cena temina aí, sem os seios se
encostarem.
O filme insere regularmente cartões ilustrativos com estatísticas
presumidamente coletadas de relatórios médicos. Dentre elas:
“O desvio feminino do comportamento sexual normal excede em muito
o masculino!”
“Entre adolescentes, 40% têm desejos lésbicos... e experimentam!”
“33% das mulheres solteiras, estudadntes de graduação são lésbicas!”
Essa última sentença possui valor significativo, pois ele também afirma,
baseado em seus dados científicos, que 25% das estudantes universitárias já
tiveram uma experiência lésbica. O que justifica as seqüências finais do filme, nas
quais o caráter documental passa a um segundo plano e as encenações
predominam, rodadas no interior de uma irmandade feminina universitária – um
antro de perversão. Reforçando o discurso, condena as mulheres que querem se
tornar independentes, se metendo na política e profissões de caráter masculino
como motorista de táxi e caminhão -, deixando de lado as tarefas domésticas,
naturais a elas. As imagens não condizem muito com a narração, mostrando duas
garotas na cama em avançada simulação de cunnilingus. Provavelmente a cena
mais erótica do filme, e que praticamente não mostra nada. Vemos apenas um
close da jovem que está sendo servida, com expressão de prazer. Em
156
contracampo, a câmera mais baixa focaliza o topo da cabeça da parceira. Nesse
momento, ela levanta a cabeça, olha para a câmera, lambe os lábios, e abaixa
novamente em direção ao seu objeto de prazer.
A narração afirma que muitas dessas mulheres, com anseios por
independência, além das movidas por outros problemas, acabam caindo nas mãos
de butches aliciadoras, que as seduzem e as fazem até largar casa, marido e
filhos. Também garotas recém chegadas à universidade acabam fazendo
amizades, compartilhando moradias no campus, onde são vítimas vulneráveis
dessas aliciadoras, que acabam as induzindo às drogas e as explorando através
da prostituição, do mesmo modo que faria um cafetão masculino. Devido à sua
natureza mais emotiva e sensível, segundo o diretor, esss mulheres são mais
facilmente frustradas. Se essa frustração é causada por um homem, tornam-se
mais propícias a um avanço lésbico. No caso de relações homossexuais, também
se desiludem rápido, sendo o ciúme entre lésbicas causa de grande incidência de
suicídios. O filme ainda mostra o que seria um casamento entre mulheres, um
arremedo da cerimônia heterossexual, oficiada por um gay, e assitido só por
lésbicas; uma cena de ciúme, motivo para mostrar uma briga entre mulheres – o
famoso cat fight - com final sangrento e fatal; e duas mulheres nuas na banheira,
com direito à exposição de nádegas. O clímax é a iniciação forçada de uma deb
na moradia universitária, em que a jovem acaba imobilizada na cama pelas outras
garotas, sendo sugerido o seu estupro pela líder do grupo.
Graças aos conhecimentos de Mawra sobre sexualidade humana, o
público pode ir para casa satisfeito, confiante em conhecer as causas do
lesbianismo, e fascinado em saber que as lésbicas se casam, rolam pelo chão em
brigas e iniciam jovens em seus prazeres proibidos e nefastos. Acreditando unir o
útil ao agradável, e cumprir uma função tanto educativa quanto excitante, o diretor
nos deixa com a mensagem de que “somente através da compreensão dos fatos,
podemos impedir o lesbianismo de se tornar um sério problema social”. E
acrescenta que “lésbicas podem ser curadas, assim como seus fortes impulsos.
157
Mas elas não se podem se curar sozinhas. Só com acompanhamento médico
podem se curar totalmente”.
Chained Girls apela para algumas cenas de nudez ousadas para a época.
3.4. Educação no Trânsito
As mais horríveis dentre as várias modalidades de filmes de sala de
aula – e que tiveram maior longevidade, sendo projetados em escolas norte-
americanas até a década de 1990 (SMITH, 1999, p. 73) - eram as de “segurança
nas estradas” (highway safety movies). Estes filmes, com o passar dos anos,
foram se tornando cada vez mais grosseiros e brutais, passando a mostrar
imagens de acidentados, alguns ainda vivos, outros em agonia e cadáveres
mutilados. O pioneiro em inserir essas tomadas reais foi Budge Crawley, que
dirigia uma produtora no Canadá, especializada em hygiene films. Safety or
Slaughter (1958) pode ser considerado o primeiro “filme de atrocidade”
educacional, mostrando destroços de carros e corpos. Crawley, coincidência ou
não, teria ficado louco e se matado tempos depois. Outro precursor dessas
158
mórbidas exibições foi Richard Wayman, que segundo a lenda, se interessara
pelos filmes de segurança na estrada após perder um amigo em uma batida de
carro. Wayman começou percorrendo as estradas equipado com um rádio
sintonizado na freqüência da polícia e uma máquina fotográfica no banco traseiro.
Desse modo, chegava aos locais dos acidentes com presteza, conseguindo tirar
fotos dos acidentes e das vítimas, que transformava em apresentações de slides.
Estas eram distribuídas gratuitamente aos postos policiais da região.
Impressionados, os policias ficaram sabendo que Wayman possuía uma câmera
de 16mm e perguntaram se ele alguma vez pensara em fazer um filme.
Rapidamente, o que seria uma contribuição altruísta para a segurança nas
estradas, se tornou um negócio rentável, com a aquisição de outra câmera e um
parceiro, um repórter que conhecera quando registrava um acidente. O resultado
dessa parceria, que contou também com a contribuição dos patrulheiros, foi a
montagem de um filme de trinta minutos com as conseqüências sangrentas de
inúmeros acidentes fatais, que intitulou Signal 30 (1959) – uma referência ao
código usado pela polícia rodoviária para mortes nas estradas. O filme, “rodado
em cores vivas (e mortas)”, de acordo com a chamada publicitária, foi um sucesso,
permitindo que Wayman fundasse a sua companhia, a Safety Enterprises.
Duas cenas de Signal 30, de Richard Wayman.
159
Sua produção seguinte foi Mechanized Death (1961), em que uma
mulher agoniza coberta de sangue nas ferragens de um carro, enquanto os
patrulheiros tentam retirá-la. O narrador profere com gravidade, enquanto ouve-se
o áudio completo da agonia (graças aos colaboradores que levaram um gravador
de fita): “Este é o som de uma excruciante agonia. Isso não é um sonho, nem um
pesadelo. Isso é real”. O curta, em sua quase meia hora, desvela horrores de
carnificina rodoviária. Não há um estilo definido em Mechanized Death, ou uma
trama, ou mesmo uma preocupação técnica em montagem. Semelhante em sua
totalidade aos posteriores death movies, é uma colagem de cenas granuladas,
feitas amadoristicamente com câmera de mão nos locais dos acidentes,
amarradas pela monótona narração, carregada de julgamentos e posições.
Mechanized Death (1961)
Dois anos depois, Wayman lança Wheels of Tragedy (1963), onde
lança mão das habituais dramatizações, em que atores interpretam as vítimas nos
últimos momentos de suas vidas e os erros que teriam levado aos acidentes,
mostrados depois em tomadas autênticas.
160
Seqüência de Wheels of Tragedy (1963)
Outro significativo exemplar é Highways of Agony (1969), de Earle
Deems, que adquirira a empresa de Wayman. Coerente com a escalada de
violência gráfica nos filmes, já em sua abertura, brinda os espectadores com um
sapato estraçalhado em primeiro plano. Ao fundo, uma carreta; e entre eles, no
asfalto, um amontoado não discernível de restos humanos. Um alerta de que as
estradas não são seguras para motoristas irresponsáveis – “Na estrada, a punição
para quem não segue as regras é morte certa!” (um dos motes desses filmes).
3.5. Mundo Cão
O fato é que se os filmes de atrocidades ainda não eram tão populares
como outros gêneros do exploitation após mais de trinta anos se insinuando na
produção de documentários, a partir do pós-guerra, abriram o caminho para uma
nova geração de produtores e diretores, mais inseridos na escalada de violência
que tomava de assalto os filmes na década de 60 e dispostos a expor visualmente
o nervo de uma sociedade atônita diante de toda uma nova leva de horrores,
como sugere Schaeffer (1999, p. 287):
O foco em um espetáculo bárbaro nos filmes de atrocidades foi produto
do pós-guerra, forjado nos anos do medo e preceitos da guerra fria.
161
Similaridades ideológicas entre os filmes de atrocidades e outros gêneros
do exploitation, os quais expuseram e expandiram a esfera de ação do
desejo e tensão individuais sobre a crescente sociedade de consumo,
podem não ser de imediato aparentes, ainda que o sujeito dos filmes de
atrocidades trabalhasse de acordo com o ponto de vista ideológico
conservador da maior parte dos outros gêneros do exploitation. A
segunda guerra mundial trouxe uma leva de novos horrores, incluído o
bombardeio de populações civis, o espectro da devastação nuclear, e a
revelação do genocídio nos campos da morte nazistas. Os anos do pós-
guerra incluíram guerras civis, massacres provocados por revoltas
políticas, e o ainda incipiente terrorismo. Com constantes lembranças da
morte e da aniquilação como parte da vida diária (...) os filmes de
atrocidades foram atraídos para essa ansiedade enfocando ações
assustadoras causadas pelas novas guerras, tecnologia e sistemas
políticos em desagregação. Na verdade, ao representar os mais sombrios
aspectos da vida dos meados do século vinte, os filmes instigavam os
espectadores a meditar sobre os males da humanidade e, por sua vez,
serviam como uma crítica do mundo contemporâneo.
Este novo ponto-de-vista foi em parte responsável pela evolução de um
espetáculo de barbaridades, com um significativo incremento das cenas
“desagradáveis”, agora mais próximas graças ao imediatismo e abrangência das
transmissões de tv. Soma-se a isso a influência do cinema de ficção, também
direcionados pelos novos rumos a uma exposição maior de violência, tendência
sem volta que teve seu ponto de partida com produções feitas fora dos grandes
estúdios (no caso dos Estados Unidos), como Banquete de Sádicos (Blood Feast
(1963), de Herschell Gordon Lewis, onde mutilações e desmembramentos eram
revelados explícitamente em cores vivas; ou na Europa com Olhos sem Face (Les
Yeux sans Visage, 1959), em que faces são removidas cirugicamente através das
lentes do também documentarista George Franju dez anos depois de sua
contribuição às atrocidades com o já comentado O Sangue das Bestas.
Do início dos anos 60 em diante, o choque com culturas diferentes, com
o Outro, não era mais tanto pelo desconhecimento, mas pela exacerbação das
diferenças. E o resultado, ao combinarmos esse novo mundo com a tragédia
exposta dos filmes de atrocidades e os elementos dos exóticos, é o filme mondo.
Neles, segundo sugere Bill Nichols, subsistem aspectos da tradição do cinema de
162
atrações, além da tendência de espreitarem o que há de mais desagradável na
vida cotidiana (NICHOLS, 2005, p. 121). Podemos assim, considerar os filmes
mondo um cruzamento destes com o show de variedades, por apelarem ao
fascínio pelo incomum inerente ao ser humano. E desse modo, são os melhores
exemplos de transposição para as telas da carnavalização de Bakhtin, pois além
de inserir o documentário na cultura popular, remetem todo o tempo à paródia e
ao realismo grotesco. Além disso, com suas inversões, celebram o mundo às
avessas e com ele o caráter dual da percepção que temos do mundo e da vida
manifestados através de um grotesco carnavalesco que
(...) ilumina a ousadia da invenção, permite associar elementos
heterogêneos, aproximar o que está distante, ajuda a liberar-se do ponto
de vista dominante sobre o mundo, de todas as convenções e de
elementos banais e habituais, comumente admitidos; permite olhar o
universo com novos olhos, compreender até que ponto é relativo tudo o
que existe, e portanto permite compreender a possibilidade de uma
ordem totalmente diferente do mundo (BAKHTIN, 1987, p. 30).
O filme mondo vai ressaltar aspectos marginalizados e excluídos,
trazendo à tona o insano, o excessivo e o escandaloso, valorizando o obsceno, o
vulgar e o absurdo. Em sua carnavalização, reflete, remetendo a Stam (1992, p.
47) em sua análise da obra de Bakhtin, uma “estética anticlassicista que privilegia
não a unidade formal, mas a assimetria, o oxímoro, o heterogêneo, a
méssaliance”.
O epíteto mondo se deve ao filme italiano Mundo Cão (Mondo
Cane/1962), sem dúvida a produção mais bem sucedida dessa vertente e seu
marco determinante. Não só forneceu um formato e uma base narrativa para os
realizadores que continuaram nessa linha, como também mostrou a viabilidade de
se ganhar dinheiro com documentários, já que enriqueceu as bilheterias de
proprietários de cinemas pelo mundo afora com as multidões que formavam filas
para assisti-lo. Goodall (2006, p. 24) é preciso ao observar que todos os
163
componentes do que agora se conhece como mondo foram forjados nesse filme e
se tornaram a freqüentemente distorcida matriz para todos os outros trabalhos do
gênero, incluindo descrições de rituais biazrros de culturas e religiões; a crueldade
dos homens com os animais; a intromissão do desenvolvimento no mundo
primitivo e recorrentes alusões a sexo e morte.
Cartaz promocional de Mundo Cão.
Mundo Cão é produto da associação entre o jornalista e documentarista
Gualtiero Jacopetti e o diretor de cinema Franco Prosperi
16
. Ambos se
conheceram através de um amigo em comum e logo descobriram suas afinidades.
Jacopetti, que tinha passagem pelo universo do documentário de exploração como
roteirista de Mondo di Notte e Europa di Notte (ambos de 1959) – coletâneas
mostrando night clubs, teatros de revistas e strippers - já tinha em mente realizar
16
Franco Prosperi já tinha algumas passagens pela indústria cinematográfica italiana desde os
anos 50, tendo co-dirigido dois épicos italianos: La Schiava di Roma (1960), junto com Sergio
Grieco e Ercole al centro della Terra (1961), com Mario Bava.
164
um filme, algo semelhante a um cine-jornal em longa-metragem, mostrando o que
seria, em sua concepção o “mundo real”. Como ele mesmo diz em depoimento
presente em The Godfathers of Mondo (2003), filme que retrata a carreira dos
responsáveis por Mundo Cão, sua intenção era realizar um “anti-documentário”.
Com essa idéia escolheu um título que pudesse se relacionar de modo irônico e
debochado com os “fatos da vida” que iria exibir.
Os “inventores” do mondo: Gualtiero Jacopetti (esq.) e Franco prosperi (dir.)
A partir daí, ele e Prosperi passaram a recolher notícias, artigos e
histórias, que eram depois selecionadas dentro do critério do
“cinematograficamente reproduzível” em termos de narrativa. Quando estavam
com a lista de eventos definida, estes eram separados em relação à localização
geográfica, de modo que pudessem otimizar e viabilizar financeiramente as
filmagens. Certamente no período, ainda que tivesse avançado em relação à
primeira metade do século XX, o público ocidental em geral conhecia muito pouco
o mundo que o cercava, principalmente em se tratando de distantes rincões do
planeta, que eram a Ásia e a África. O que para eles foi uma vantagem,
165
principalmente por pegar desprevenidos os seus objetos, que se há bastante
tempo já tinham suas imagens capturadas por fotógrafos e cinegrafistas, em sua
maioria ainda não estavam familiarizados com câmeras e suas estratégias de
filmagem. As portas se abriam com mais facilidade, a receptividade era maior e,
por sua vez, com menos gastos. Hoje em dia, com a difusão de imagens e o
advento de canais de tv destinados a essa coleção de exotismos (Discovery,
National Geographic, etc.), talvez a empreitada de Jacopetti, Prosperi e Paolo
Cavara (co-dirigiu) não fosse viável no formato em que foi concebida. Eles
também mobilizaram correspondentes em todo o mundo, com a instrução de que
procurassem e filmassem os mais bizarros eventos de natureza violenta, sexual e
repulsiva em seus respectivos países.
O filme abre com um letreiro:
“Todas as cenas que você assistirá neste filme são fatos. Se com
freqüência são cenas chocantes é porque são muitas coisas amargas neste
mundo. Além do que o dever do jornalista não é amenizar a verdade, mas sim
expô-la com objetividade”.
Essa chamada inicial já dá o tom do que vai ser encontrado pelo
espectador, funcionando como uma entrada para o prato principal, criando
expectativa e levando o público a crer com mais facilidade nos eventos inusitados
que serão apresentados. Notamos que eles não assinam como cineastas, ou
documentaristas, mas sim como jornalistas, como se isso reafirmasse seu
compromisso com uma pretensa verdade, já que o cinema sempre esteve
associado à ilusão. Isso é sustentado pelas declarações dos diretores de que
parte do material filmado era composto por descobertas casuais e que muitas
vezes se surpreendiam com o que encontravam.
166
A forma narrativa utilizada se aproxima da tradição do documentário
clássico, desenvolvendo-se a partir de um eixo enunciativo. Vão sendo feitas
asserções sobre o mundo através de uma voz fora de campo, estabelecendo
relações com as imagens apresentadas em seqüências de episódios interligados
com o didatismo do documentário expositivo, mas também com a argúcia e o
humor negro que poderiam caracterizar um outro tipo de documentário que foge
das categorias descritas por Bill Nichols (2005, pp. 135, 177) e que vamos
denominar de documentário cínico. Um estilo que se aproxima da essência do que
viria a ser conhecido como jornalismo gonzo, em que a objetividade se subverte
em favor de uma postura irônica, freqüentemente escarnecedora. Com esse
espírito, a voz over vai expondo e questionando variados eventos exóticos ou
chocantes filmados ao redor do mundo. Deve-se ressaltar, para nos aproximarmos
mais da visão de mundo muito particular de Jacopetti e Prosperi, e que constitui a
essência do filme, a inspirada observação de Goodall (2006, p. 22) de que
Mundo Cão foi criado com uma singular sensibilidade italiana: uma
potente combinação do liberalismo do pós-guerra (uma posição radical
em um país fimemente católico amparado pelo conservadorismo de
partidos políticos cristãos), tendências jornalísticas (Jacopetti iniciou
como repórter sob a tutela de Indro Montanelli, o patrono do jornalismo
radical italiano, enquanto o cinematografista Antonio Climati foi treinado
como cameraman de noticiários) e pesquisa etnográfica/antropológica
(Prosperi e o gerente de produção Stanis Nievo começaram como
biólogos marinhos). O filme foi concebido como um violento repúdio à
obsessão italiana do pós-guerra com o neo-realismo que, em seu modo
de representar a crua realidade através de suas tomadas de cena, uso de
atores não-profissionais e monocromia, era considerado por Jacopetti
não convincente. Ele seguiu em direção oposta, produzindo uma vibrante
versão em technicolor dos sérios newsreels que eram exibidos nos
cinemas para “instruir” o público sobre os acontecimentos mundiais.
Mundo Cão foi, portanto, construído como um filme de viagem
sensacionalista no qual o apelo principal é a ênfase em um comportamento
cultural não familiar ao espectador, evidenciando as diferenças, sempre buscando
ultrapassar os limites que levam do exótico ao incontestavelmente repelente.
167
Exotismo, aqui compreendido como estranho e extravagante, que vai permear
todo o filme.
Poderíamos dizer que reproduz o discurso dominante do colonialismo,
mostrando os habitantes das antigas colônias ou nativos de tribos distantes do
padrão de civilização ocidental como inferiores, divididos entre a selvageria e a
infantilidade. Ou que faz a apologia do modo de vida norte-americano e europeu,
moderno e bem-humorado – em consonância com a opulência do pós-guerra,
sempre contrastando com os modos de vida das periferias da humanidade, seus
costumes bárbaros e primitivos, e seu atraso tecnológico. Isso está claramente
presente. É óbvio. Mesmo assim, cairíamos na banalidade se quiséssemos
reafirmar isso. Não só reproduziríamos o preconceito que cerca essas produções,
como reduziríamos em muito a riqueza narrativa do filme. Pois Mundo Cão, em
sua sincera amoralidade e ambigüidade, também lança seu olhar perverso e
crítico aos colonizadores e opulentos ocidentais, deslocando o outro para as
nossas próprias paragens
17
. Algo até então raro e, por sua vez original e
importante. Propõe que o bizarro e o ridículo são inerentes à raça humana, do
mais remoto aborígene com seus costumes tribais ao mais moderno e bem
sucedido norte-americano ou europeu. E consegue, com êxito, provar a tolice e a
inconsistência da existência humana. Jacopetti e Prosperi colocam no mesmo
patamar contrapondo, por exemplo, as nativas do povo Tabar, que são
submetidas à “engorda”, confinadas para atingirem o padrão de beleza da tribo
(120 a 150 Kg) e serem desfrutadas pelo chefe; com as gordas de Los Angeles
que se submetem aos mais árduos exercícios para emagrecer e também serem
desfrutadas. Talvez por isso, por essa total falta de correção política ou decoro, o
17
Lembremos que um questionamento levantado durante as críticas a Os Mestres Loucos, de Jean
Rouch, foi justamente essa, de nunca se direcionar o foco para práticas estranhas das culturas
ocidentais. O que veio a se concretizar pelas lentes de Mundo Cão.
168
filme tenha angariado tantos detratores. A começar pela crítica da época que se
dividiu, a maior parte (até hoje) sem ver com bons olhos a empreitada dos
italianos. A famosa Variety considerou o filme “impetuoso e provocativo” e se
impressionou com o fôlego do material, sua irônica justaposição de cenas e seus
comentários jocosos, concluindo que Mundo Cão era “horrivelmente estimulante”.
Para a Time, a única mensagem que passava era de que “as pessoas não valem
nada”. Apesar dessa pressão hostil, provavelmente nenhum documentário foi tão
visto ou fez tanta bilheteria. O filme causou sensação ao redor do mundo com a
sua habilidade de surpreender, divertir, e também enojar os espectadores.
Nativa do povo Tabar: dieta de “engorda” para atingir o padrão de beleza da tribo. Mulheres norte-
americanas se exercitando para perder peso.
Na verdade isso se deve à elaborada técnica utilizada. Nesse quesito,
Mundo Cão não é só a pedra fundamental de uma linhagem que ainda renderia
muitos frutos, mas também é um grande ponto de ruptura para o próprio cinema
documentário. Começando pelo exemplar trabalho de câmera de Benito Frattari,
com seus enquadramentos, sempre bem articulados com a mensagem que se
queria passar. Essas imagens ganhariam sentido quando unidas à narração,
sendo que muitas vezes criavam uma engenhosa contradição que faziam crescer
169
em conteúdo a seqüência exibida. Por exemplo, a cervejaria em Hamburgo, é
narrada como uma distração ao cemitério e ossadas apresentados na seqüência
anterior e um tributo à alegria de viver. Enquanto isso, as imagens mostram
homens e mulheres decadentes, embebedando-se e perdendo completamente a
compostura com o passar da noite. Terminam ao amanhecer perambulando
trôpegos pelas calçadas, urinando e vomitando nos becos.
Bêbados de Hamburgo.
A música, composta por Riz Ortolani, também está organicamente
ligada ao filme. Não podemos imaginar Mundo Cão sem a sua trilha sonora
descritiva, funcional. Ela também conta a história, alternado o seu andamento de
alegre a denso de acordo com o tema focalizado.
Mas a grande força do filme está na brilhante montagem de Gualtiero
Jacopetti. Temos de levar em conta que eles tinham em mãos filmagens de todos
os tipos, de várias partes do mundo. Era necessário dar um senso de unidade à
narrativa, para que o filme não fosse apenas uma coleção de eventos isolados e
despertasse o interesse do público. Essa unidade foi obtida através da montagem
de cenas contrastantes amarradas através de cortes rápidos e concisos, sendo as
seqüências costuradas através de temas assemelhados (ou forçosamente
170
assemelhados): a homenagem à memória do ator Rodolfo Valentino em sua
cidade natal, que iria escolher, durante as festividades seu sucessor, por exemplo,
é sucedida pela seqüência em que o ator Rossano Brazzi – o “moderno Valentino”
– é atacado por horda de fãs em uma loja de departamentos nova-iorquina, onde
teve a infeliz idéia de entrar para comprar uma camisa. Outro bando de mulheres
vêm em seguida: nativas de uma ilha do arquipélago das Trobriand atacando em
bando um jovem da tribo – um “Rossano Brazzi bronzeado”, segundo os
comentários do narrador. Este, irônico, ainda explica ser a “caça aos homens”,
prática que faria o “deleite dos etnólogos”.
Outras vezes eram imagens semelhantes que davam a unidade
pretendida: as nativas de seios nus das Trobriand cedem a vez a uma jovem
ocidental seguida por um grupo de marinheiros (Figura 1), em cenas que se
amarram visualmente com bastante eficiência. Do mesmo modo que no final deste
episódio, os seios de uma mulher de biquíni dão lugar aos seios de uma africana
da Nova Guiné amamentando um leitão (Figura 2). Ou o esqueleto no fundo do
mar, na Malásia, subseqüente à ossada de uma tartaruga gigante em praia do
Pacífico.
Figura 1
171
Figura 2
Evento por evento eram encadeados através de suas aberturas e
fechamentos até o final com maestria. Cada seqüência dava o “gancho” para a
outra, formando os elos de uma corrente que fechada, vai corresponder a um
estudo em contrastes. Além disso, as contraposições foram organizadas de modo
que trechos mais leves permitissem melhor digestão das cenas mais fortes ou
intensas: a procissão de devotos que se auto-flagelam com cacos de vidro e
desfilam sangrando pelas ruas da Calábria, por exemplo, é seguida pela
apresentação de jovens e lindas salva-vidas australianas em maiôs dando
demonstrações de suas aptidões.
A sexualidade é tema recorrente, mas de modo ainda tímido. Estão
presentes algumas práticas que remetem aos tempos do exploitation clássico,
como no que diz respeito à nudez. Em nenhum momento vemos em Mundo Cão a
nudez das mulheres brancas. No máximo elas aparecem em trajes de banho ou
camufladas pelas camadas de tinta azul de Yves Klein. As negras de tribos
africanas ou aborígenes de outras regiões estão sempre de seios nus.
172
A morte – tema raro em filme até então – se insinua, seja no funeral de
um rico chinês, que têm seu cadáver maquiado para a cerimônia ou na deprimente
casa da morte em Singapura, onde os velhos e doentes em fase terminal
aguardam o fim. E aparece com violência na decapitação de touros pelos gurkha,
um verdadeiro banho de sangue em honra aos soldados britânicos, colonizadores
da região.
Cadáver sendo maquiado e moribundo da casa da morte.
Touro sendo decapitado em por guerreiro gurkha.
173
Fica evidente que o enfoque central do filme – assim como de todas as
produções mondo que o seguiram - é a exposição do grotesco, este transitando
entre o exótico e o bizarro, expondo o ridículo inerente às situações e suscitando o
escárnio. Para o gozo da audiência. Vamos buscar em Sodré uma compreensão
melhor do que representa esse grotesco, através de sua análise dos trabalhos de
Bakhtin e Wolfgang Kayser::
A teoria do grotesco de Bakhtin é tida, com boas razões, como
complementar à de Kayser. (...) Assim como sua contraparte alemã, o
erudito russo acha imprescindível reinterpretar o paradigma do
neoclássico, a partir do qual se constituiu a reflexão estética no Ocidente,
cognitivamente incapaz de apreender adequadamente o grotesco. Até
aqui vai a concordância. Para começar, Bakhtin não tem uma perspectiva
“negativa” quanto ao grotesco, nem o limita, como faz Kayser, aos
produtos da cultura oficial. (...) Bakhtin (...) entende que a dificuldade em
bem se avaliar o grotesco consistia em não se levar em consideração a
criatividade da cultura popular (...) O carnaval (uma espécie de “segundo
mundo”, com regras opositoras à seriedade da cultura oficial) e o
rebaixamento (“aproximar as coisas da terra”, explica ele) são as duas
constantes de seu “realismo grotesco” (...) Na concepção apresentada
pelo teórico russo, o grotesco não mais depende da noção de obra-de-
arte. Sua principal categoria analítica é o realismo, que gira em torno do
“corpo grotesco”, isto é, uma corporalidade inacabada, aberta às
ampliações e transformações, como na figura da mulher grávida. É o
corpo da gestação, mas igualmente dos desbordamentos, dos orifícios,
dos excrementos e da vitalidade (SODRÉ, 2002, pp. 56, 57).
O que se encaixa perfeitamente à concepção do que Jacopetti e
Prosperi tinham em mente, se nos determos nas seqüências que citamos e o
breve histórico da produção, em seu intuito de causar sensação, em oposição ao
que se fazia até então em termos de documentários embasados na cultura oficial.
Ou seja, tomar de assalto os sentidos do espectador. E que melhor maneira de
fazer isso senão apelar para os aspectos mais básicos da natureza humana, ou
seja, aqueles relacionados ao corpo e às suas atividades fisiológicas mais
básicas. Não é para menos que todos os eventos mostrados no filme estão
centrados na corporalidade humana, predominando o sexo e a morte como
174
elementos primários. Estes quase sempre inseridos em ritos que podem ser
definidos, de acordo com um ponto-de-vista bem particular (do espectador não
familiarizado), como bizarros. Ou seja, que fogem a uma confortável concepção de
normalidade e causam estranhamento, tanto pela fascinação quanto pela repulsa,
tirando o espectador de seu universo previsível pela inversão do mesmo e
rumando em direção a um grotesco, em que, como sugere Kayser em sua análise
de Wieland (1986, p. 30), “se aniquilam as ordenações que regem o nosso
universo”. E que pode ser associado, ainda segundo o teórico, com uma
amálgama da aversão com o jocoso. Diz ele:
Nós, porém, verificamos que, no tocante à essência do grotesco, não se
trata de um domínio próprio, sem outros compromissos, e de um fantasiar
totalmente livre (que não existe). O mundo do grotesco é o nosso mundo
– e não o é. O horror, mesclado ao sorriso, tem seu fundamento
justamente na experiência de que nosso mundo confiável e
aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a irrupção
de poderes abismais, se desarticula nas juntas e nas formas e se
dissolve em suas ordenações (KAYSER, 1986, p. 42).
Ou seja, parafraseando o título de uma das obras de Goya – de onde
Kayser se inspirou em parte ao observar suas séries Caprichos e Desastres da
Guerra no Museu do Prado -, é do sonho libertador das amarras sombrias da
razão. Que vem a ser, grosso modo, uma das faces do universo carnavalesco de
que tratamos e que pode ser um forte indício da nossa dupla natureza, em que um
Mr. Hyde transgressor se liberta do reprimido Dr. Jekyll.
Podemos estabelecer, se desmembrarmos o encadeamento de
seqüências de Mundo Cão, duas estruturas, ampliando o conceito do grotesco em
suas relações com o corpo, através do rebaixamento. De acordo com Bakhtin
(1987, p. 17), “o traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, na
transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua
175
indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato”. E que
opera, conforme Sodré (2002, p. 17),
por uma combinação insólita e exasperada de elementos heterogêneos,
com referência freqüente a deslocamentos escandalosos de sentido,
situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e dejetos
(...) que atravessa as épocas e as diversas conformações culturais,
suscitando um mesmo padrão de reações: riso, horror, espanto, repulsa.
Nas estruturas de que vamos tratar, e que iremos denominar de
corporalidade festiva e corporalidade abjeta, o corpo está sempre no centro das
atenções, sendo o grotesco, como sugere Sodré (2002, p.60), “quase sempre o
resultado de um conflito entre cultura e corporalidade”.
Na primeira, a ênfase são nos aspectos que vão mais de acordo com o
universo carnavalesco do teórico russo, em que é celebrada a descontração que
rege a carnavalização do mundo própria à cultura popular cômica, onde as
representações do oficial e da autoridade estabelecida cedem a vez à
regeneração e ao novo. Assim como à expressão da alegria de existir nesse
mundo em que tudo é mutável, e no qual a desproporção e mesmo o mau gosto
exerce o seu fascínio.
Já na corporalidade abjeta, vamos aglutinar os eventos em que a
exposição do corpo seguem padrões que têm como objetivo causar comoção ou
repulsa – remetendo ao filme de atrocidade que já vimos. Doenças, deformidades,
mutilações, excreções, enfim, qualquer manifestação da fisiologia humana ou
ação deliberada ou acidental sobre o corpo humano. Aí incluídas interferências
que podem ser consideradas fora dos padrões estabelecidos das convenções
atreladas à normalidade, e que podem ser estendidas a outros organismos vivos –
no caso animais. O que vai configurar, desde uma degeneração mais sombria da
confusão, da desordem, da alegria desabrida, da exuberância de formas
176
aparentadas a conteúdos culturais reprimidos pela ordem burguesa (SODRÉ,
2002, p. 58); até uma total inversão do princípio carnavalesco bakhtiniano.
Ainda recorrendo ao autor de O Império do Grotesco, vamos utilizar de
seu trabalho as categorizações que atribuiu às diversas modalidades expressivas
do grotesco (SODRÉ, 2002, p. 68) e que podemos encontrar relacionadas tanto à
corporalidade festiva quanto abjeta e que são: o escatológico (situações
escatológica ou coprologicamente caracterizadas, por referência a dejetos
humanos, secreções, partes baixas do corpo, etc.); teratológico (referências a
monstruosidades, aberrações, deformações, bestialismos, etc.); chocante (quando
voltado apenas para a provocação superficial de um choque perceptivo,
geralmente com intenções sensacionalistas); e crítico (dá margem a um
discernimento formativo do objeto visado, ou seja, é um recurso utilizado para
desmascarar convenções e ideais, podendo assumir formas de paródia ou
caricatura, obtendo efeitos de inquietação pela surpresa e pela exposição
ridicularizante das convenções estabelecidas). Esta última modalidade é a única
que perpassa todo o filme, sendo as outras, sozinhas ou combinadas, distribuídas
entre as seqüências ou episódios.
Podemos, portanto, alinhar no grupo da corporalidade festiva, a
sequência nonsense em que as mulheres atacam e despem Rossano Brazzi,
assim como a caça aos homens nas Trobriand. Ou mesmo as jovens desfilando
de biquíni para o deleite dos marinheiros norte-americanos ancorado em algum
paraíso da costa européia. Também aí se enquadram o desfile de salva-vidas
femininas em trajes de banho demonstrando suas práticas de boca-a-boca em
rapazes na praia australiana; e as beldades nuas ostentando nos corpos as tintas
de Yves Klein. Seqüências que servem, como já falamos, de paliativos para as
cenas de temática mais intensa, e por sua vez mais contidas, nem por isso
deixando de se enquadrar na categoria de grotescas. Risíveis, mas ainda assim
críticas enquanto forma, na medida que confrontam a sociedade ocidental. O
ponto de destaque entre esses episódios é o contraste entre a espontaneidade e
177
descontração das nativas das Trobriand em relação tanto às suas colegas da
Riviera, quanto às que tomaram de assalto o ator italiano. E que nos permite duas
leituras:
Rossano Brazzi sendo atacado por fãs e as mulheres nuas de Yves Klein.
É na corporalidade abjeta que encontramos, se é que podemos chamar
assim, o grotesco em sua plenitude. A começar pelos créditos iniciais do filme, que
passam sobre cenas de cães abandonados e ferozes em um canil, e pela
homenagem ao aniversário do finado galã Rodolfo Valentino em sua cidade natal
na Itália, que efetivamente abre o filme e é um exercício de teratologia. Durante as
festividades, é realizado um concurso para a escolha do “novo Valentino”.
Centenas de homens da região se candidatam ao posto, desfilando pela tela
enquanto ouvimos os comentários irônicos do narrador, criando uma harmoniosa
oposição entre a narração e o trabalho de câmera. Oposição que tem como intuito
enfatizar o ridículo. O trabalho de fotografia cria altos contrastes, jogando com
luzes e sombras e a câmera em grande angular, dando a ilusão de exagero nas
proporções faciais, tornando mais proeminentes narizes, testas, bocas e detalhes
mais marcantes. O que confere aos rostos em close dos aspirantes a latin lovers,
não só uma dramaticidade barroca, mas aparências demoníacas, que removem a
sua humanidade, e os assemelham a gárgulas. Que são, como sabemos, figuras
178
monstruosas, humanas ou animalescas, comumente presentes na arquitetura
gótica. E que entram em consonância com o campo da teratologia e do corpo
grotesco de Bakhtin. Segundo ele (1987, pp. 276, 277),
Dentre todos os traços do rosto humano, apenas a boca e o nariz (esse
último como substituto do falo) desempenham um papel importante na
imagem grotesca do corpo. As formas da cabeça, das orelhas, e também
do nariz, só tomam caráter grotesco, quando se tornam figuras de
animais ou de coisas. (...) Assim todas as excrescências e ramificações
têm nele um valor especial, tudo o que em suma prolonga o corpo, reúne-
o aos outros ou ao mundo não-corporal. (...) No entanto, para o grotesco,
a boca é a parte mais marcante do rosto. A boca domina. O rosto
grotesco se resume afinal em uma boca escancarada, e todo o resto só
serve para emoldurar essa boca, esse abismo corporal escancarado e
devorador.
Ou seja, através da deformação, coloca-se abaixo a idéia de um corpo
estetizado e espiritualizado, em concordância com o estabelecido pelas
convenções da sociedade, e através da imagem é inserido um certo mal estar. O
grotesco subverte igualmente as figurações clássicas do corpo, passando a
valorizar as vinculações corporais com o universo material, assim como seus
orifícios, protuberâncias e partes baixas (SODRÉ, 2002, p. 60). Além de revelar
um desejo-de-ser-corpo que coloca em situação de desconforto os corpos que não
se encaixam nos padrões (FONTANELLA, 2004, p.7).
179
Candidatos a sucessor de Rodolfo Valentino. Qulaquer semelhança com a figura à direita não é
coincidência.
O desfile de corpos, em diferentes estágios que podem ser vinculados
ao rebaixamento bakhtiniano, é a linha mestra de Mundo Cão. O filme,
estabelecidas suas estruturas de corporalidade abjeta e festiva, além de revelar as
categorizações de Sodré sobre as quais discorremos acima, também se sustenta
sobre três vértices: o sexo, a morte e a fisiologia humana, transitando entre
extremos. Ele não só mostra as aborígenes seminuas ou as gordas, ápices da
subversão dos cânones corporais, mas também relaciona o corpo à desintegração
morte - os moribundos da casa da morte chinesa, cadáveres e ossadas.
Estabelecendo a ligação entre o corpo, que deixa o ideal para se vincular ao
terreno e ordinário. Reafirmando, portanto, que o grotesco subverte as hierarquias,
as convenções e as verdades socialmente estabelecidas. Perverte igualmente as
figurações clássicas do corpo, passando a valorizar as vinculações corporais com
o universo material, assim como seus orifícios, protuberâncias e partes baixas.
Alimentação, dejeção, cópula, gravidez e parturição compõem constantes na
imageria grotesca.
180
O ato de comer ganha novas dimensões, reduzindo nas entrelinhas o
homem aos seus instintos básicos e que, visto à distância (o espaço que separa a
tela do espectador), nada mais é do que uma curiosa criatura que respira, faz
sexo, come e defeca. A alimentação está presente em boa parte das seqüências,
inserida nas imagens corporais mais extremas, a partir da nativa da Nova Guiné
que amamenta o leitão. O que permite que criemos uma vasta gama de
associações, por exemplo entre as obesas californianas com os gansos que são
entupidos de comida para a fabricação do foie gras, ou ao gado massageado e
engordado a cerveja no Japão. E em oposição, os moradores das áreas pobres de
Hong Kong comprando em nos mercados de rua crocodilos, cobras, sapos e
lagartos para a refeição.
Uma das mais interessantes seqüências é a final, que mostra o cargo
cult, o “culto aos aviões de carga”, supostamente praticado por aborígenes da
região de Port Moresby, na Austrália. O epísódio narra a veneração das tribos aos
aviões que, acreditam, vêm do paraíso enviados por seus ancestrais, mas acabam
capturados pelos astutos ladrões brancos que os atraem para uma armadilha (o
aeroporto local) e roubam a carga originalmete a eles destinada.
Primeiramente os nativos são mostrados caracterizados com suas
pinturas e adornos corporais, assistindo ao pouso de um grande jato, por trás da
cerca que os separa da pista do aeroporto. Em seguida, após a introdução do
narrador àquele universo, conhecemos o templo do culto, situado no alto de uma
montanha, a 3.000 metros de altura. Lá se destaca o altar, na verdade um avião
construído de bambus e folhas secas, e uma torre de controle nos mesmos
moldes, em extremidades opostas, ligados por uma pista de pouso cavada na
terra. Em toda a extensão sentam-se contemplativos os aborígenes que esperam,
olhando o céu, que seus mortos descubram a traição dos brancos e guiem os
aviões para a sua pista, tornando-os ricos e felizes.
181
Comparando, para colocarmos em questão a relação entre o mundo
histórico documentado e o criado em função dos objetivos da produção, citaremos
uma seqüência semelhante, extraída de outro filme: o travelogue especulativo
alemão Eram os Deuses Astronautas (Erinnerungen an die Zukunft), dirigido em
1970 por Harald Reinl a partir da obra de mesmo nome do escritor Erich von
Däniken. Filme que une o filão pseudo-científico sobre discos voadores iniciado
com o best seller de mesmo nome, com o tipo de construção narrativa já
característica dos filmes mondo.
Neste, também encontramos em situação parecida nativos de algum
lugar dos mares do sul. Lá, eles também cultuam toscos aviões, construídos com
matéria prima local e esperam, olhado para o céu, a vinda de deuses celestes. De
acordo com o narrador, a origem para essa crença seriam os aviões norte-
americanos, que durante a segunda guerra pousavam em bases e pistas locais.
Situação que serve para a corroborar a idéia – defendida pelo filme – de que
nossos mitos e religiões teriam nascido do contato com extraterrestres.
Cargo Cult: aborígenes devotos de aviões de carga.
182
Surpreendidos e satisfeitos com o sucesso de público de Mundo Cão, e
com muito material ainda disponível que ficara de fora da mesa de montagem,
Jacopetti e Prosperi foram – segundo eles – persuadidos pelos produtores a rodar
a continuação logo no ano seguinte. Se Prosperi é mais condescendente, não se
mostrando muito avesso à idéia, Jacopetti deixa claro o seu desagrado, afirmando
que era contra a realização de Mundo Cão 2 (Mondo Cane 2), de que seria algo
requentado. É enfático em dizer que o filme não lhe entusiasmou desde o
princípio, pois o encanto do primeiro filme, de tudo que ele tinha de belo e novo se
quebrara. Mundo Cão 2, em sua opinião, era motivado simplesmente por dinheiro,
comércio, e não sobre a criação de algo. Jacopetti renega o filme, deixando claro
que não lhe pertence, e só acabou aceitando dirigir por causa da insistência dos
produtores, com quem tinha uma dívida. Além disso, justifica hoje essa rejeição
não apenas por uma questão de reputação – para a qual não ligava muito, visto os
escândalos e polêmicas em que se envolveu -, mas por causa das dezenas de
filmes que seguiram o filão descoberto por ele e Prosperi, todos se apropriando do
epíteto mondo. O que a seu ver não apenas o ofendeu, como prejudicou, pela
associação que se passou a fazer de sua obra principal com, em suas palavras,
todo o tipo de lixo feio e vulgar.
Contrariada ou não, a dupla de diretores arregaçou as mangas e
lançou-se ao trabalho que se concretizaria em Mundo Cão 2. Aos metros de
sobras de seqüências do primeiro filme, outras adicionais foram rodadas, seguindo
a mesma estratégia, em lugares díspares, como África, Índia, Europa e América,
tanto por eles, quanto por terceiros. Material já pronto e que acharam
especialmente interessante também foi adquirido.
A nova produção, que abre também em um canil, não apresenta
grandes novidades em relação ao primeiro. A estrutura é a mesma, assim como o
estilo de montagem e as inserções de duplo sentido do narrador (sem o mesmo
183
entusiasmo). Tanto que as relações que estabelecemos para a análise anterior
aqui também são apropriadas. O filme também gira em torno das manifestações
de baixa corporalidade a que nos referimos. Porém, o filme não é tão bem
construído - falta engenhosidade -, a escolha de episódios é mais frouxa e, salvo
alguns momentos que vamos destacar mais para a frente, somos levados a
concordar com Jacopetti de que é um filme mais burocrático, sem a força e o
envolvimento do primeiro. E apesar da ênfase no escatológico, no teratológico e
no chocante – com ainda procedente conteúdo crítico -, a dosagem entre cenas
fortes e amenas é menor, sendo as relacionadas à corporalidade festiva menos
inspiradas do que as direcionadas à abjeta. Ainda assim, foi bem nas bilheterias e
enfureceu os críticos, como Bob Salmaggi, do The New York Herald Tribune, que
escreveu: “(...) é hora de vomitar-vomitar-vomitar novamente!”.
A crítica mais recorrente à Mundo Cão 2 foi o embuste evidente em
suas cenas supostamente autênticas. Desaprovação que tem sido comum aos
documentários de exploração e aos posteriores mondo. A falsificação é, de fato,
um elemento do gênero, e que se espalha pelo cinema documentário em geral e
não é nada que consideremos tão relevante. O problema com essa continuação é
que as esquisitices culturais relatadas são insuficientemente contextualizadas, e
muitas não parecem ter propósito. Além da questionável autenticidade, carecem
da ironia e da perspicácia do primeiro filme.
Dentro da corporalidade festiva podemos agrupar segmentos
desnecessários como o desfile de modas em que modelos são acompanhadas de
poodles tingidos da mesma cor da roupa que usam; ou a cidade da Itália onde os
cabelos são cortados para serem vendidos em feiras, acabando na indústria de
perucas norte-americana. Também aí se agrupam seqüências como o stand de
tiros onde policiais mexicanos praticam tiro-ao-alvo; a confecção de jóias em
insetos no México; a joalheria para cães em Nova York; a já utilizada (no filme
anterior) visita de turistas de meia idade a Honolulu, onde são submetidos a
banhos de lama; o bordel móvel (uma casa de prostituição sobre rodas) e o desfile
184
de chapéus esquisitos nos Estados Unidos. Todas essas seqüências agrupadas
na primeira metade do filme, que começa a se mostrar mais interessante daí em
diante.
Alusões a sexualidade estão presentes de modo incipiente, que
também pode ser enquadrado dentro da corporalidade festiva. A nudez ainda é
velada, sendo ainda privilegiada a de aborígenes, cujos seios balançam
livremente. Apesar de que um vago mamilo de uma mulher ocidental é
rapidamente vislumbrado na “festa da água”, em que homens com sifões lançam
jatos d’água sobre jovens enroladas em papel higiênico. O voyeurismo dá o tom,
com strippers apresentando-se em night clubs europeus, além de cenas de teor
fetichista ainda leve. Afinal, em uma época em que uma sexualidade mais ousada
só era permitida em espaços fora dos circuitos normais de exibição ou na
clandestinidade onde genitálias podiam ser vistas impunemente. Sendo assim, o
público podia se deleitar com atividades sexuais dissimuladas em episódios como
das jovens – também na referida “festa da água” – que brincam na fonte onde a
estátua de um menino jorra água pelo pênis. Não satisfeitas, manipulam
miniaturas dessa estátua, bonecos que têm, fazendo a vez de diminutos órgãos
sexuais, pequenas mangueiras, que apontam umas para as outras, recebendo o
líquido nos corpos e bocas. Em outro segmento, mulheres seminuas posam para
as fotos que irão ilustrar as capas de livros pulp. Com roupas rasgadas ou
vestindo roupas de época, uniformes, hábitos de freiras, simulam atos de tortura e
morte em cenários que reproduzem masmorras medievais, igrejas e salas de
cirurgia. Cobertas com sangue cenográfico e maquiadas para ostentar cicatrizes e
ferimentos, representam os próprios estrangulamentos, facadas, mutilações,
torturas e eletrocussões. Uma inserção de exploração sexual, que iria ganhar cada
vez mais espaço nessa nascente linha de documentários.
Aqui também podemos incluir o travestismo, que já aparecera no filme
predecessor quando foram mostrados os guerreiros gurkha de Singapura que em
trajes e pinturas femininas executam uma dança sensual para os oficiais ingleses
185
que ocupavam a região. Aspecto provocador e ainda tabu aparece na
performance de drags francesas, em um clube noturno. Melancólicas, se
escondem por trás de excessiva maquiagem, que as faz parecer bonecas.
Rendendo-se à curiosidade, o filme as mostra nos camarins, retirando o
revestimento feminino, e com ele, a falsa alegria e espontaneidade. Em situação
diferente se travestem policiais norte-americanos do esquadrão de vícios, que vão
às ruas caçar tarados e maníacos sexuais. O homossexualismo masculino
também é enfatizado no dancing onde pares masculinos dançam tango, mas de
maneira breve.
Vale destacar alguns poucos, mas significativos segmentos de teor
escatológico que podem ser incorporados nessa categoria da corporalidade
festiva. O que se deve por se situarem na posição de ridículos e risíveis, mais
dentro do espírito carnavalesco e do rebaixamento corporal de Bakhtin, por
inverterem as convenções e configurarem uma verdadeira ode ao grotesco.
O primeiro focaliza uma festa beneficente nos Estados Unidos. O
evento principal na arrecadação de fundos é a venda de beijos: belas jovens da
sociedade ofertam seus lábios aos passantes pelas módicas quantias de cinco
dólares o beijo (ou três por dez dólares). Segue-se uma procissão de bocas e
rostos, cada qual mais passível de repulsa. Velhos, suas faces enrugadas
acentuadas pela câmera que os torna gárgulas disformes (tal e qual os aspirantes
a Valentino), com dentaduras se soltando e mucosas bucais em mau estado. A
expressão nos rostos das moças vão do nojo ao pavor, sendo que
constantemente elas passam a mão nos lábios após o beijo, crispam as mãos e
contorcem os pés em franca agonia. Uma metáfora inspirada no conto de fadas
em que a princesa beija o sapo. Só que no caso, este não vira um príncipe.
O outro trecho que separamos é um dos finais. Se na produção
precedente foi suficiente mostrar as mulheres nuas de Yves Klein, com os corpos
pintados, agora um tempero maior foi adicionado. Trata-se da “pintura estomacal”
186
(derivada do grego stoma, boca), técnica do presumido pintor Achilles Gropulus.
Um grupo de mulheres circula por amplo salão decorado em um arremedo do
estilo greco-romano. Dominando a cena, o referido pintor, de toga e coroa de
louros, preside o ritual que configura a sua técnica de pintura. Ele mistura a tinta
na boca, e depois cospe em frascos, dispostos na mesa à sua frente. Por ali
passam as jovens, enfileiradas. Sem demonstrar nenhuma repugnância, cada uma
pega um frasco e derrama o conteúdo na própria boca, sem engolir. Continuam o
trajeto até se postarem defronte a uma grande tela, na qual cospem o líquido
colorido, formando uma grande pintura abstrata. Seqüência desagradável que
expressa desprezo não só pela arte contemporânea e pela figura do artista como
alguém capaz de conferir status artístico a qualquer excrescência que produzisse;
como também uma crítica à futilidade de uma sociedade que enaltecia e
legitimava esse modo de fazer artístico, sem consciência do ridículo que abraçava.
O método de pintura nada convencional de Achilles Gropulus.
Porém, se nesses episódios a repulsa promovida ainda se situa em
uma abordagem mais festiva, fustigando levemente o abjeto, aos poucos, em uma
transição, violência e brutalidade vão ganhando maior espaço. Inclusive na
abordagem da comemoração do carnaval que, como falamos, se ainda nos é
187
possível nos determos em Bakhtin, representa uma inversão dos valores em
função de uma maior espontaneidade e desprendimento. Uma negação desse
modo-de-ver começa a se fazer presente, mostrando um lado que refuta o riso e
todas as elucubrações positivas do teórico russo. Como a descida de Orfeu aos
infernos, deixando para trás a fantasia e a ilusão festiva, essa carnavalização vai
tomando um aspecto cada vez mais negativo, até se anular. O que fica bem claro
nessa seqüência em que um carnaval de rua é mostrado, com os foliões se
divertindo em roupas coloridas e brilhantes, bebendo e se divertindo. Aos poucos,
a violência vai tomando conta do grupo, sendo que termina com uma mulher
sendo agarrada e despida à força pela turba, em meio a gritos de desespero,
antevendo um estupro coletivo.
Esta violência, capaz de transformar perplexidade em choque, também
pode ser exemplificada por outra mostra de celebração pública, registrada em uma
localidade na Espanha. O grande momento da comemoração ocorre quando
homens de todas as idades, para promoverem sua virilidade, lançam-se em uma
contenda bastante singular: após uma corrida, arremetem de cabeça, vezes
seguidas, contra portas metálicas até arrebentá-las (e a cabeça). Depois,
aturdidos, alguns gravemente feridos e ensangüentados, são levados em
ambulâncias. O vencedor, finalmente, de cabeça enfaixada, é ovacionado e
levado nos ombros do populacho, carregando seus troféus: um chouriço e um
grande pão. Uma celebração da estupidez humana, enaltecida pela narrativa de
Jacopetti e Prosperi.
Uma definitiva interseção entre corporalidade festiva e abjeta é
finalmente promovida na seqüência final do filme, que nos faz passar da
perplexidade ao constrangimento. Coroa o filme de modo a promover um mal
estar pela violência gratuita e humilhação que impõe. Trata-se de um concerto,
onde o pianista apresenta seu número com um acompanhamento singular.
Enfileirados no palco, em ordem de tamanho – do mais alto até um anão -, sete
homens, cada um representando uma nota musical. Representam unidos um
188
instrumento, movido pelas bofetadas que o acompanhante do pianista vai
distribuindo, de acordo com o acorde sonoro pretendido. Os tapas são intensos,
aplicados a duas mãos velozmente nas bochechas dos homens, que padecem
nesse sofrimento até o fim, chegando às lágrimas e sangrando pelo nariz e pela
boca. Como se estivessem na fila de execução, esperam – assim como nós – o
momento do tapa. O filme apela aos sentimentos na figura indefesa do anão, em
uma exploração compungente do abuso físico e suas conseqüências. E fechando
o filme, o letreiro de “fim” sobre o rosto ensangüentado do anão, é um recado para
o espectador de que o mundo cão continua, esperando lá fora, e o faz repassar
em choque o sentido de ter ficado quase duas horas se entretendo com a miséria
de sua própria espécie. Dificilmente alguém sai à vontade após presenciar esse
espetáculo de violência e abuso, do mesmo modo que seria contemplar o rosto de
uma criança que sofreu um acidente ou maus tratos. O que pode refletir também o
estado de espírito de Jacopetti e Prosperi ao realizar este segundo filme.
Anão submetido às bofetadas em Mundo Cão 2.
A corporalidade abjeta se apresenta dentro de três universos: da
religião, da morte e do político-social, e são nos segmentos aí relacionados que
Mundo Cão 2 ganha consistência e força, em alguns momentos conquistando a
189
sua própria identidade e deixando marcas. Permitindo também que Jacopetti e
Prosperi começassem a enveredar por um caminho que os afastariam dos
padrões estabelecidos com Mundo Cão rumo a uma nova forma de abordagem,
que se consolidaria (como veremos) com África Adeus (Africa Addio): a do
documentário sensacionalista de reportagem e denúncia. Ainda, entretanto, de um
ponto-de-vista conservador.
A indispensável África está presente em Mundo Cão 2 na abordagem
de costumes estranhos, numa etnografia que se anula pela forma narrativa que se
rende ao espetáculo. Essa incursão tem o seu ápice nas jovens nuas, filmadas de
longe – justificando os alegados riscos de vida para obtenção das tomadas –
sendo negociadas em um mercado de escravos entre Aden e Mukalla, nas costas
do Mar Vermelho. Seu destino: os prostíbulos do oriente. Essa curta seqüência é
apenas o aperitivo para o prato principal, um mergulho nas profundezas da
natureza humana em seus aspectos mais vis. Crianças mutiladas se apresentam
ao oficial britânico responsável pela polícia de Maridi como testemunhas dos maus
tratos infligidos por mercadores de escravos, mostrados atrás das grades, com
ênfase em suas faces cruéis. Efeito obtido pela precisão do enquadramento, que
focaliza detalhes dos rostos de modo a, junto à narração, conseguir o efeito
demonizante dos prisioneiros. Da mesma maneira que consegue enfatizar nas
faces e olhares das crianças todo o sofrimento por que teriam passado nas mãos
dos malfeitores. O objetivo por trás dessas ações seria mutilar e deformar os
pequenos de modo que atraíssem mais a piedade das pessoas e, por
conseguinte, esmolas. Entrada no universo da teratologia, com a criação de
aberrações fabricadas.
190
Mercador de escravos observa, por trás das grades, oficial britânico conferir os maus tratos em
um uma de suas pequenas vítimas.
A descrição das torturas é demonstrada in loco pelo estóico militar
inglês, sendo apresentado e simulado o uso, nas próprias vítimas, dos
instrumentos utilizados. Com detalhes dos ferimentos, cicatrizes e deformidades.
Apesar do forte caráter de denúncia, e do claro intuito de apelar para a
emotividade do espectador pela exploração crua, vislumbramos um
posicionamento político, encarnado na figura do oficial colonialista. Ou seja, é ele
que vai se interpor entre o bom e o mau selvagem, levando a lei e a justiça dos
ocidentais àqueles rincões bárbaros e desumamizados. Prosperi e Jacopetti são
claramente pró-colonialistas, o que não deixam dúvidas nas entrelinhas de sua
narrativa. Devemos ter sempre em mente que, seguindo um modelo já presente
em Terra sem pão de Buñuel, na maior parte dos chamados documentários
clássicos, a narrativa é sujeita aos aspectos visuais e a informação processada a
partir da trilha sonora e dos comentários do narrador. Ou seja, a verdade
apresentada é filtrada a partir do olhar e dos objetivos dos realizadores. É
importante, dentro deste contexto, sabermos que entre as décadas de 50 e 70,
inúmeros movimentos de libertação surgiram no continente africano e vários
191
países se tornaram independentes, transição difícil e sangrenta com reflexos até
hoje.
Um tratamento semelhante é usado na apresentação de rituais e
cerimônias de cunho festivo e religioso, mostrando que padrões de
comportamento fora dos aceitos por uma visão pretensamente civilizada; e que
em geral cercam essas manifestações, não são privilégio de lugares remotos e
exóticos como a África e a Índia. Tanto que as primeiras amostras vêm de regiões
provincianas e atrasadas economicamente da Europa, e que demandam
curiosidade e até interesse antropológico por serem remanescentes de ritos que
remontam a tempos mais remotos. E que ganham intensidade por acontecerem
em ruas de vilarejos quase intocados pelo tempo, com seus calçamentos de pedra
e edificações medievais. Cerimônias de que já tivemos amostra na procissão de
flagelantes de Mundo Cão ganham maior destaque e duração no filme,
começando pelas cenas de histeria e possessão em uma igreja italiana. Nesse
interessante deslocamento do tema das aldeias africanas, os possessos italianos
se comportam de forma semelhante aos haoukas de Os Mestres Loucos,
debatendo-se no chão, enrolando a língua e babando. Um deles chega a atear
fogo nas próprias roupas, sendo socorrido pelo público. Outros segmentos
revelam na possessão um fenômeno universal, independente das distâncias. Na
Itália, fiéis se martirizam subindo de joelhos uma longa e áspera escadaria, com
destaque para os joelhos em carne viva. No que são superados pelos devotos
portugueses: estes não apenas se arrastam pela escadaria por onde vai passar a
efígie da santa, como também deixam uma trilha do sangue que escorre das
línguas feridas que esfregam nos degraus. Se a fé é medida desse modo, com
certeza os portugueses terão suas preces atendidas com mais eficácia. O Oriente
e suas excentricidades vêm na esteira dessas cenas, com faquires indianos e seu
arsenal de perfurações, trespassamentos, mortificações e caminhadas sobre
brasas.
192
Italianos e portugueses dão provas de fé.
É com a morte, a violência e o contexto político que os exotismos vão
perdendo a vez, tomando a narrativa um novo rumo, que vai ser fundamental para
o estabelecimento de novas abordagens nos filmes mondo, que resultariam nos
shockumentaries da década seguinte.
A morte, que vinha engatinhando nessas produções, procurando um
espaço de forma ainda tímida, têm em Mundo Cão 2 um divisor de águas, com
seus símbolos espalhados durante todo o filme. O terreno foi preparado já no
início do documentário, em que são mostradas cenas das comemorações do Dia
dos Finados no México, com crianças comendo uma guloseima diretamente de
dentro de um crânio. Elas também devoram um boneco doce, representando
Judas, que é cortado e dissecado, sendo a carne feita de marzipã e os órgãos de
geléia e confeitos. Na Espanha, uma procissão leva os devotos em caixões até o
interior da igreja, onde se levantam para render graças e nos Estados Unidos, as
pessoas experimentam seus esquifes em lojas especializadas. Lá também é
mostrada uma escola de treinamento para futuros embalsamadores e agentes
funerários. Um cadáver é mostrado rapidamente, coberto sobre a mesa em que a
professora ensina técnicas de restauração. Ainda nos Estados Unidos, o
espirituoso funeral da sra. Agatha Connie Russel demonstra que a morte pode ser
193
exibida de forma descontraída. Morta aos 84 anos em sua casa na Califórnia, foi
preservada pelo embalsamador, de modo que pode presidir, confortavelmente
instalada em sua poltrona preferida, a recepção em sua homenagem.
Também as mortes violentas de animais estão distribuídas: as brigas
entre pássaros e peixes, promovidas por crianças de Singapura, e a comovente
mortandade de flamingos, definhando de forma dramática em seu habitat,
conspurcado por uma fábrica de soda construída nos arredores. Reflexo de um
momento histórico de divisões, o narrador não se furta em comparar o “grande
espetáculo da morte”, apreciado lento e cruel na China, (o “triunfo da morte”), com
a luta entre um homem e um tubarão em um parque aquático da Flórida, evento
encenado para distração pública, que celebra o “triunfo da vida”.
Mas são nas cenas rodadas em Saigon que a morte toma contornos
mais sombrios, associada à violência e tragédia. Definida pelo narrador como
“uma cidade onde a vida é dor”, a câmera passeia pelas ruínas de uma cidade
deserta, uma zona militarizada onde somente soldados armados transitam,
prontos para qualquer desafio, por menor que seja, ao novo governo. Um novo
recurso documental é utilizado, mudando o enfoque e trazendo o espectador para
mais perto da ação: a interação da equipe de filmagem com seu objeto é mostrada
(um soldado checando o grupo da janela do carro, por exemplo), sendo essa
intervenção um passo definitivo para dar maior autenticidade, e talvez uma
aproximação com a técnica do cinema verdade. O que, mesmo após a montagem,
destoa e se destaca, como um filme dentro de outro. Muda o estilo narrativo, a
enunciação toma outro tom e o enfoque se torna mais jornalístico, mais próximo
do cine-jornal. A movimentação da câmera se torna menos formal (uso evidente
de câmera na mão), mais dinâmica, assim como a preocupação plástica com as
imagens se rende à força da narrativa (e não o oposto como no resto do filme).
Talvez reflexo da experiência de Jacopetti como jornalista e o estabelecimento de
um campo de ensaio para as mudanças que possivelmente já tinham em mente.
194
Cadáver de manifestante nas ruas de Saigon e soldado fazendo sinal para a equipe de Mundo
Cão 2.
O ponto principal dessa seqüência de Saigon é a repressão ao budismo
e os abusos cometidos pelo governo contra seus praticantes. Monges são presos
e arrastados para dentro de carros ou celas, onde são largados machucados e
sangrando. A revolta popular contra essa opressão também é mostrada, com
grandes cenas de rebelião e luta entre soldados e populares, das quais se destaca
uma rápida aparição de corpos cobertos, sobre poças de sangue na calçada.
Mundo Cão 2 se propõe a oferecer ao público algo inédito: a morte
filmada no momento ocorrido, um tabu ainda não rompido. E nisso, ele faz a
transição para uma nova abordagem do tema, ultrapassando os limites dos corpos
já sem vida ou moribundos, ou da carnificina animal. E é nessa passagem de
Saigon, que o público pode assistir uma imolação pública. Situação que realmente
ocorreu em junho de 1963, envolvendo o monge budista Quang Duc. O religioso
resolve seguir o caminho de mártir para protestar contra a perseguição religiosa
empreendida pelo governo do Vietnã do Sul e ao tratamento dado aos budistas
pelo presidente Diem, que ordenara a seus soldados que abrissem fogo contra
manifestantes, resultando em nove mortes na semana anterior. A morte de Quang
195
Duc foi registradas pelas lentes do fotógrafo Malcolm Browne, que horrorizado
com a cena e o cheiro de carne queimada, tirou quatro filmes de fotos do monge
em chamas em sua morte silenciosa. Os restos do monge ainda fumegavam
quando essas fotografias se espalharam pelo mundo. E se encaixaram com
perfeição nas pretensões de Prosperi e Jacopetti.
Semelhante ao recurso utilizado por Edwin S. Porter sessenta anos
antes, que recriou para a câmera, sob os auspícios da companhia de Thomas
Edison, a execução de Leon Czolgosz (o assassino do presidente McKinley) em
Execution of Czolgosz with Panorama of Aubburn Prison (1901), a seqüência do
suicídio de Duc levada às telas em Mundo Cão 2 também foi encenada.
Encomendada, mas não totalmente, se defende Prosperi, para ser utiilizada como
filmagem real. Alega que tinham muito pouco material – algo como se tivessem
chegado atrasados para filmar o evento - e que precisaram de cenas adicionais.
Jacopetti entrega o jogo, afirmando que foi totalmente falso. Um manequim feito
pelo técnico em efeitos especiais Carlo Rambaldi foi levado a Bangkok e
queimado.
Vamos a um resumo da seqüência: em plano geral, vemos o monge,
em suas vestes tradicionais, sentado na posição de lótus, centralizado em uma
área pública. Outro religioso derrama gasolina sobre o colega, coloca a lata no
chão, se curva e então se afasta, derramando uma trilha do combustível
inflamável até uma distância segura (este trecho não está presente em todas as
versões do filme). O evento é observado por outros monges e alguns
manifestantes ostentando cartazes. Estes são contidos por policiais
uniformizados. O cúmplice de Quang Duc acende o fogo, que corre pela trilha e
engolfa o mártir. Os religiosos em volta se curvam em respeito e os policiais se
voltam para observar a cena. O monge em chamas tomba, sendo seus restos
incandescentes focalizados pela câmera.
196
Se procedermos a uma análise de toda a seqüência e compararmos
com os registros fotográficos constatamos, em primeiro lugar, a minuciosa
composição do espaço cenográfico. Nenhum elemento falta ao quadro, sendo
cada um colocado em seu devido lugar: os monges, os policiais, a lata de
gasolina, o carro com o capô aberto e, principalmente, o presumido Quang Duc. A
câmera oscilante, de mão, é típica da filmagem jornalística. Hoje utilizada à
exaustão para realçar efeitos de cena, ainda não era comum em documentários
cinematográficos. Ela se insinua entre as cabeças dos monges, procurando
espaços para contemplar a cena, desse modo tornando mais fácil a montagem.
Afinal, é entre uma dessas passagens, entre a cabeça calva de um monge e as
costas de outro que, observando quadro-a-quadro, notamos claramente o artifício:
em um momento é uma pessoa, sentada no centro do cenário, vestindo o manto
budista. Em outro, é o manequim de Rambaldi, suas vestes em tom mais escuro,
que logo se incendeia. Quando tomba entre as chamas, o corpo permanece
estático para alguém sendo consumido pelo fogo – mesmo para um monge
budista que, supõe-se, tenha passado a vida meditando – sendo que os únicos
movimentos, que passam por espasmos corporais, são das articulações da figura
sob ação do fogo.
197
Nos quatro quadros anteriores, seqüência da auto imolação do monge budista Quang Duc em
Mundo Cão 2 e abaixo, fotografia original de Malcolm Browne
Não importa, para todos os efeitos, que a primeira morte filmada não
passe de uma elaborada simulação, ou como sugerem Kerekes e Slater (1998, p.
118), um convincente suicídio em Technicolor. O que importa é como foi
comercializado e vendido ao público: uma verdadeira morte registrada. E desse
modo, ganha autenticidade. Torna-se real. De maneira parecida com a execução
de Czolgosz por Porter, Jacopetti e Prosperi simulam, ou como diz Baudrillard,
198
fingem ter o que não se tem, deixando desse modo intacto o princípio de realidade
(1991, p. 9). Sendo assim, conforme o sociólogo francês,
Trata-se de uma substituição no real dos signos dos signos do real, isto
é, de uma operação de dissuasão de todo o processo real pelo seu duplo
operatório, máquina sinalética metaestável, programática, impecável, que
oferece todos os signos do real e lhes curto-circuita todas as peripécias.
O real nunca mais terá oportunidade de se produzir – tal é a função vital
do modelo num sistema de morte, ou antes de ressurreição antecipada
que não deixa qualquer hipótese ao próprio acontecimento da morte.
Hiper-real, doravante ao abrigo do imaginário, não deixando lugar senão
à recorrência orbital dos modelos e à geração simulada das diferenças.
A maior contribuição de Jacopetti e Prosperi ao universo do
documentário – não só de exploração, mas do documentário como um todo – foi
um longo e difícil empreendimento que levou cerca de três anos para ficar pronto e
certamente constitui o ponto alto de uma filmografia irregular e controversa. Africa
Addio (1966), filme em que se afastam, ainda que não totalmente, da estrutura dos
filmes mondo, sendo seus eventos articulados de forma menos sincronizada pela
temática ou por ganchos específicos. Está mais próximo de um filme de viagem,
com enfoque jornalístico e apelo sensacionalista. Foi concebido a partir de notícias
recebidas por Jacopetti, sobre as mudanças que estavam ocorrendo no continente
africano. No turbulento processo de repolitização, a África romântica, idealizada e
retratada pelos europeus estava desaparecendo.
Com a idéia de estarem perante um tema politicamente explosivo (e
espetacular) a dupla de realizadores chegou ao continente com o pretexto de uma
expedição fílmica, subseqüentemente penetrando nos levantes políticos e
processos revolucionários que tomavam de assalto a Áfica com o fim do
colonialismo. Várias tribos e facções competiam pelo poder e o resultado eram
conflitos, anarquia e execuções. Em meio a esse caos generalizado tinham em
mente testemunhar a tragédia resultante de tranformações brutais com
objetividade, ainda que existam reservas quanto a essa conveniente idéia de estar
199
no lugar certo na hora certa. Segundo Jacopetti, em depoimento no filme
Godfathers of Mondo (2003), eles não tinham um planejamento definido, indo em
direção aos eventos na medida em que se tornavam explosivos. Sendo assim,
cada vez que algo importante acontecia, estavam lá. Coincidências que,
justificadamente, levantaram desconfiaças. Se por um lado, fica evidente que
certas circunstâncias não foram encontradas por acaso, em outras devemos ter
em mente a convulsão por que passava o continente. Não seria, naquele
momento, tão difícil encontrar matéria prima. Pode-se questionar também o fato
de que, com essa apregoada proximidade dos fatos e oportunidade de
documentar acontecimentos que mais ninguém conseguiu, tenham achado
necessário criar algumas situações, dirigir o comportamento de alguns
personagens retratados e mesmo dar outro sentido ao ocorrido através da
narração e dublagem
18
. Artifícios que como sabemos, de modo algum são
estranhos ao filme documentário.
Nada disso impede de - com devidas precauções - Africa Addio de ser
um singular documento, com tomadas raras, daqueles eventos dramáticos que
repercutem até hoje. Se analisarmos a situação da África atual, o documentário
ainda é relevante, diferente do mundo mostrado em Mundo Cão que, como o
próprio Prosperi observa em Godfathers of Mondo, não existe mais. O manifesto
de abertura já dá o tom que permeia todo o filme, e insere o espectador no
contexto objetivado: dar adeus à África, ao mesmo tempo prevendo o que
aconteceria no futuro e fazer uma crítica aos que – na visão dos realizadores – a
tinham abandonado:
18
No julgamento de prisioneiros Mau Mau, os acusados são colocados perante um juiz inglês para
receberem a sentença. O narrador dá detalhes dos crimes cometidos e o magistrado profere a
pena. Esta adulterada pela dublagem.
200
“A África dos grandes exploradores, o imenso território de caça e
aventura amado por gerações de crianças está desaparecendo para sempre. À
velha África, que está sendo varrida e destruída pela tremenda velocidade do
progresso dizemos adeus. A devastação, a carnificina, o massacre que assistimos
pertencem à nova África – aquela que emerge de suas ruínas para ser mais
moderna, mais racional, mais funcional, mais consciente e irreconhecível. (...) A
nova África irá se erguer sobre a tumba de um punhado de homens brancos,
milhões de negros, e sobre o imenso cemitério que se tornaram as reservas de
caça. O empenho é tão moderno e recente que não há espaço para discuti-lo em
planos morais. O propósito deste filme é somente dar adeus à velha África que
agoniza e entregar à história a documentação de sua agonia”.
Manifesto em que está patente a crença de Jacopetti e Prosperi de que
britânicos e franceses cometeram um grande erro tendo deixado a África naquele
momento. Ainda que afirmassem considerar a independência um direito, de
acordo com eles o continente ainda não estava pronto. Principalmente por não
haver classe política que pudesse substituir a administração estrangeira. Posição
politicamente incorreta que angariou antipatia da esquerda italiana na época do
lançamento, que defendia a África independente, festejava a morte do
colonialismo e a liberdade. Ainda mais pela evidente convicção da dupla na
supremacia ocidental e inerente racismo – no que se aproximam de suas
produções anteriores.
O documentário mostra a difícil tomada de posse do governo do Quênia
em 1963, o estágio final do terrorismo Mau Mau, a violenta guerra civil no Congo,
um levante em Dar Es Salaam, a revolução em Zanzibar, o genocídio dos Watusi
pelos Bantu em Ruanda e a revolta contra os portugueses em Angola e
Moçambique. A violência é mostrada progressivamente, começando nas
recorrrentes cenas de animais sendo mortos. Elefantes, antílopes, bisões e outros
201
exemplares da fauna africana são impiedosamente abatidos, encurralados por
caçadores brancos e nativos. São usadas armas de vários calibres, algumas
disparadas de helicópteros, e até granadas. Destaca-se a longa seqüência do
suplício de um grupo de hipopótamos, cercados por uma horda de africanos que
os espetam continuamente com suas lanças, como podemos ver nas figuras
abaixo. O sangue escorrre em profusão, enquanto os maiores tentam proteger
suas crias, as grandes bocas abertas pela dor e agonia.
Segue-se a exposição de inúmeros cadáveres de vítimas das disputas
entre facções rivais e rebeliões, alguns visivelmente forjados, outros bastante
reais: os restos e membros amputados dos Watusi e os mortos insepultos
apodercendo nas ruas de Stanleyville, no Congo. Jacopetti alega que, para
conseguir tomadas como essa, tanto ele como sua equipe teriam corrido risco de
vida. O que dá margem a especulações, mesmo no ataque supostamente sofrido
em Dar Es Salaam, quando tentavam cobrir a revolta muçulmana contra Nyerere,
presidente da Tanganyka (em vias de se tornar Tanzânia). De modo semelhante
ao incidente ocorrido em Saigon, em Mundo Cão 2, eles são vítimas dos soldados
rebeldes que primeiramente querem impedir que prossigam, partindo depois para
a agressão atingindo o jipe da equipe a coronhadas e retirando os seus
202
ocupantes. Segundo Jacopetti, em Godfathers of Mondo, após terem sido
retirados do veículo, tiveram seus pertences roubados, as mãos amarradas e
colocados enfileirados diante de um pelotão de fuzilamento armado de
metralhadoras.
Cenas de Dar Es Salaam (de cima para baixo, da esquerda para a direita): o soldado caminha em
direção ao carro da equipe (1) gritando para os jornalistas. Enfurecido, rodeia o veículo (2) e ataca
a coronhadas o vidro dianteiro (3). Jacopetti, ferido, é retirado e levado preso (4).
Preparados para morrer – deve-se levar em conta a predisposição de
Jacopetti para “dourar a pílula” – foram salvos por um oficial que chegou gritando
203
para que parassem, pois eles não eram brancos, mas italianos. Brancos
significando ingleses. O diretor confessa ter sido o pior episódio por que passaram
durante a cobertura dos traumáticos eventos, podendo configurar uma
convergência de dois modos de aproximação, conforme tipificado por Sobchack
(2005, p.148), tipologia que seria retomada por Bill Nichols em Representing
Reality, conforme observado por Ramos (2005, p. 202):
Ao detalhar os dilemas determinados pela representação da intensidade
no documentário, Nichols segue de perto a trilha delineada por Sobchack
em “Inscrevendo o espaço ético”. Nichols e Sobchack aproveitam as
condições excepcionais que cercam a imagem da circunstância da morte
como base para o estabelecimento de balizas éticas que vão sustentar a
representação no campo documentário Trabalham com o conceito de
“visão”/”olhar”. (...) Para Sobchack, a “visão” define-se como “inscrição da
atividade visual do cinegrafista (...) A “visão”, portanto, é a maneira pela
qual o sujeito que sustenta a câmera abre-se, interage para/pelo mundo
em situação de tomada, na eclosão da intensidade extraoridnária. As
diferentes posições do sujeito-da-câmera são caracterizadas em seis
tipos (formas gerais de se estar, de se agir, na tomada): “acidental”,
“impotente”, “ameaçada”, “intervencionista”, “humanitária” e
“profissional”.. Essa tipologia aparece (...) descrevendo a presença do
sujeito-da-câmera na tomada da imagem intensa e, particularmente na
morte.
Em Africa Addio detectamos, de acordo com essa tipologia,
primeiramente o “olhar ameaçado”, codificado em termos de proximidade com
cenas de violência ou morte. Inscrito por
signos que apontam de maneira indicial e reflexiva para o perigo mortal
enfrentado pelo cinegrafista, indicando uma presença física e
corporificada por trás da câmera e presente na cena. A representação se
caracteriza pela relativa instabilidade de seu enquadramento – a câmera
treme, por exemplo, quando há explosões por perto, ou é segurada nas
mãos quando o terreno é acidentado ( indicando, é claro, um corpo
concreto, um operador humano vulnerável). (SOBCHACK, 2005, p. 150)
204
Olhar que se faz presente na imagem do soldado rebelde indo de
encontro ao vidro dianteiro do jipe onde se encontrava a equipe e arremetendo a
coronha do rifle contra o mesmo, estilhaçando-o defronte á câmera. E na cena
seguinte de Jacopetti, retirado do veículo, sendo conduzido com o rosto
ensangüentado pelos militares para o destino – segundo ele -, quase fatal. Mas o
modo que predomina em Africa Addio é o “olhar profissional”, caracterizado
pela ambigüidade ética e pela competência técnica e maquinal diante de
um fato que parece requerer uma resposta adicional, humana. (...) A
preocupação em obter uma imagem clara e desobstruída e a crença de
que é possível despir essa imagem , essa representação de um viés
humano e ético, de modo que venha a ser “objetiva”, marcam
indelevelmente as inscrições do olhar profissional com sua própria e
problemática perspectiva ética diante da mortalidade humana e do tabu
visual. (SOBCHACK, 2005, p. 155)
As cenas mais polêmicas, que levaram os diretores aos tribunais e
quase lhes custaram a liberdade são passadas no Congo, quando a equipe segue
um comando mercenário contratado para dar suporte e liderar um regimento do
exército local no combate os revoltosos Simba. De acordo com relato de Carlo
Gregoretti (jornalista convidado pelo próprio Jacopetti a acompanhar as filmagens)
na publicação italiana L’Espresso de 24 de outubro de 1964,
A 54º Coluna do Exército Nacional Congolês mal tinha iniciado sua
jornada rumo a Boende quando três rapazes rebeldes repentinamente
apareceram na estrada indo em direção aos seus inimigos
completamente desarmados. No jipe que liderava a coluna estava o
mercenário sul-africano Bem Louw. Ele colocou o dedo no gatilho da
metralhadora e, ao invés de atirar, virou-se para o primeiro caminhão
atrás dele, viu Antonio Climati, o cinegrafista, olho na abertura, viu Stanis
Nievo (gerente de produção) e Jacopetti ao lado de Climati. Ele
perguntou se eles estavam prontos. Mas não estavam. Louw olhou em
volta pela segunda vez, depois novamente, amaldiçoando, e disse que ia
atirar assim mesmo; naquele momento Climati sinalizou para Louw ir em
frente. A Arriflex rodou junto com a metralhadora;e os três jovens
rebeldes caíram na estrada.
205
Gregoretti acusou a equipe de crimes de guerra, afirmando terem sido
os rebeldes mortos ao comando de “câmera-ação”. O que Jacopetti e os outros
acusados negam enfaticamente. Primeiramente alegando que quando do ocorrido,
24 de outubro, Gregoretti ainda não tinha chegado ao Congo, muito menos ido
àquela localidade.
Jacopetti e equipe acompanham grupo de mercenários e exército congolês contra os revoltosos
Simba.
Também constava na matéria uma outra execução que, a pedido de
Jacopetti e Prosperi, foi ajustada de modo que a luz estivesse correta.
Possivelmente se referindo às ações dos mercenários registradas no témino da
incursão contra os Simba, quando ocorrem as tomadas de um inquestionável
fuzilamento. Na libertação da localidade ocupada pelos Simba, enquanto os
militantes do movimento são obrigados a carrergar os despojos de suas vítimas,
um dos rebeldes é conduzido pelos militares até uma parede, onde é fuzilado.
Mais chocante é a inesperada morte de um homem acusado de ter queimado
vivas vinte e sete crianças dentro de uma escola. Acuado entre mercenários
206
uniformizados, que o maltratam. A câmera acompanha de perto, enquanto o
indivíduo, aterrorizado, tenta argumentar com seus captores. Subitamente, o líder
do grupo, indiferente aos apelos, dá um passo à frente, saca a pistola e acerta o
homem no peito. Este cai por terra, ferido, sendo novamente atingido por seu
executor na cabeça.
Da esquerda para a direita: rebelde Simba é fuzilado pelos soldados congoleses e acusado de ter
queimado crianças em escola executado por mercenário.
Jacopetti e equipe se livraram das acusações, que foram revistas,
principalmente depois que os diretores voltaram ao Congo para obter documentos
207
que atestavam sua isenção nos fatos documentados. Chegaram inclusive, a
alegar que as cenas em questão eram falsas. Irônica contradição, já que a prática
comum era autenticar falsificações, e não o contrário.
Podemos afirmar que, se Mundo Cão 2 mostra com a morte encenada
de Quang Duc a fechadura da porta que se leva aos portões do inferno, Africa
Addio é a chave que vai abri-la. Prosperi defende em Godfathers of Mondo a
violência como uma forma de objetividade. “Afinal, se existe no mundo, por que
não mostrá-la?” Ainda assim, o filme – apesar da polêmica - teve um certo
reconhecimento ao receber o Donatello (a premiação do cinema italiano) por
melhor produção. É interessante lembrar que alguns anos depois, o documentário
de Peter Davis Corações e Mentes (1974) sobre a Guerra do Vietnã também
dividiu opiniões devido ao seu teor político. Mesmo mostrando cenas intensas e
extremamente violentas, como o tiro à queima-roupa no prisioneiro vietcong,
recebeu o Oscar de melhor documentário (1975) e teve uma carreira mais
promissora.
Anos depois, na co-produção sino (de Hong Kong) - alemã Ásia
Violenta (Shocking Asia - sunde, sex und sukiyaki /1980) é utilizada a mesma
fórmula estabelecida por Jacopetti e Prosperi nos dois exemplares de Mundo Cão
sendo, dentre todas as outras produções que seguiram o modelo original e
proliferaram durante a década de 1970
19
, a mais interessante e efetiva.
Principalmente por algumas significativas – ainda que sutis - mudanças. O que faz
com que possamos considerá-la um divisor de águas para o documentário mondo,
mostrando os novos direcionamentos do gênero: um distanciamento daquele
mosaico multi-cultural anterior, pontuado pela ironia e humor, e uma aproximação
maior e mais explícita, centralizada em situações mais pesadas. Ásia Violenta é a
19
Só para citar algumas: Africa Ama (1972), Hombres Salvajes, Bestias Salvajes (1975), Brutes
and Savages (1975), Magia Nuda (1975), Addio Ultimo Uomo (1976), Sabana Violenta (1978).
208
versão mondo de um pesadelo no qual Faces da Morte (Faces of Death/ 1978) já
penetrara.
Retoma a idéia da Ásia, desde tempos remotos grande pólo de fascínio
para o imaginário europeu, e que “encerrava o Paraíso Terrestre, vedado por altas
montanhas, por uma cortina de ferro e por hordas de animais monstruosos”
(Souza, 1989, p. 25). Bakhtin, em seu estudo, atribui ao ciclo de lendas e de obras
literárias inspiradas pelas “maravilhas da Índia”, importância na constituição do
imaginário grotesco (1987, p. 301), destacando o seu caráter dual onde a visão do
paraíso se inverte na do inferno. Segundo ele:
Quais são, afinal, essas famosas maravilhas da Índia? Essas lendas
descreviam as riquezas fabulosas da Índia, sua natureza extraordinária e
contavam também histórias fantásticas: os diabos que cuspiam chamas,
as virtudes das ervas mágicas, as florestas encantadas, a fonte da
juventude. Davam assim amplo lugar á descrição dos animais. Ao lado de
animais verdadeiros (elefante, leão, pantera, etc.), descreviam-se
detalhadamente animais fantásticos: dragões, harpias, unicórnios, fênix,
etc. (...) O que nos interessa, antes de mais nada, é a pintura de seres
humanos extraordinários, todos de caráter grotesco. Algumas dessas
criaturas são meio homens, meio bestas, como por exemplo o hipópode,
cujos pés são revestidos de cascos, as sereias, os cinocéfalos que latem
em vez de falar, os sátiros, os centauros, etc. Constituem de fato uma
verdadeira galeria de imagens do corpo híbrido. Encontram-se
naturalmente gigantes, anões e pigmeus, personagens dotadas de
diversas anomalias físicas: seres de uma só perna, ou sem cabeça que
têm o rosto no peito, com um único olho na testa, com os olhos sobre as
espáduas, nas costas, outros com seis braços que comem pelo nariz, etc.
Tudo isso constitui as fantasias anatômicas de um grotesco descabelado,
que gozavam de intenso favor na Idade Média. (...) As maravilhas da
Índia oferecem uma outra particularidade notável: sua ligação toda
especial com os infernos. O número de demônios que habitam as
florestas e vales da Índia era tão insólito que se acreditava que o seu solo
escondia orifícios ligados aos infernos (BAKHTIN, 1987, p. 303).
209
Souza (1989, pp. 25, 26) também chama a atenção sobre essa
constituição do Oceano Índico como horizonte mental corporificador do exotismo
do Ocidente
20
medieval e de sua dualidade. Essa expressa por um lado pelo
sonho de riqueza – “as ilhas transbordantes de pérolas, madeiras preciosas,
especiarias, peças de seda” -, atrelado à expansão comercial; e por outro
pela exuberância fantástica da natureza, dos homens, dos animais – uns
e outros monstruosos: para os europeus, seria a compensação de seu
mundo pobre e limitado. Do ponto de vista sexual, seria a fascinação pela
diferença: canibalismo, nudismo, liberdade sexual, erotismo, poligamia,
incesto. (SOUZA, 1989, pp. 25, 26)
O que vai constituir o orientalismo
21
enquanto discurso representativo
de uma fantasia ocidental sobre o Oriente, bastante significativo nas pinturas
realizadas especialmente nos séculos dezoito e dezenove, todas repletas de
estereótipos, focalizando o sexo, a crueldade, a preguiça e a “luxúria oriental”
(BURKE, 2004, p. 160). Estereótipos que o cinema herdou das artes plásticas e da
fotografia, e sobre os quais já discorremos.
20
Segundo Edward W. Said, o oriente era quase uma invenção européia, e fora desde a
Antiguidade um lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de
experiências notáveis. (SAID, 1990, p. 13).
21
Aqui aplicando-se o conceito de orientalismo de Said (1990, p. 13), constituindo um modo de
resolver o Oriente na experiência ocidental européia. Como observa o autor, o Oriente não está
apenas adjacente à Europa; é também onde estão localizadas as maiores, mais ricas e antigas
colônias européias, a fonte das suas civilizações e línguas, seu concorrente cultural e uma das
suas mais profundas e recorrentes imagens do Outro. Segundo ele, além disso, tomando o final do
século XVIII como um ponto de partida muito grosseiramente definido, o orientalismo pode ser
discutido e analisado como a instituição organizada para negociar com o Oriente – negociar com
ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele, descrevendo-o,
colonizando-o, governando-o: em resumo, o orientalismo como um estilo ocidental para dominar,
reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente (1999, p. 15).
210
Ásia Violenta é a encarnação mais completa, pode-se dizer, desse
modo de ver em que a construção e a consolidação da visão estereotipada de um
Outro essencialmente maravilhoso desembocava na representação de um remoto
insólito, deslumbrante e assustador (GUCCI, 1992, p. 71). E que difere de seus
antecessores na abordagem, pois enquanto estes incluíam entre os eventos
compilados seqüências asiáticas como amostragens do exótico e bizarro, Ásia
Violenta centraliza o seu foco sobre as diversas variantes de um objeto, tendo por
base um encadeamento de episódios passados em várias paragens do mesmo
continente. De modo semelhante ao já efetivado em relação à África em Africa
Addio (1966) e Africa Ama (1972), mas sem obrigatoriamente esses eventos
estarem ligado a um eixo central, como as convulsões revolucionárias da África
pós-colonial no primeiro.
O filme, dirigido por Emerson Fox – pseudônimo de Rolf Olsen,
veterano do cinema de baixo orçamento alemão - começa com uma introdução em
que são mostrados fragmentos de imagens (paisagens, templos, etc.) e na qual o
narrador prepara o terreno para o que está por vir:
“Conhecimento e erudição não tem mais lugar em nossa vida
materialista. A Ásia fascina quem quer fugir das pressões da vida diária e escapar
da estreiteza de sua existência. Ásia, encontros com o mistério. O encanto
estranho de belezas e aventuras no enigmático e no inexplicado. Ásia, chamariz
para famintos de novas experiências, arredios, idealistas e até turistas da classe
média. Ásia, céu e inferno para mais de 2,5 bilhões de pessoas. Ásia, lar de mais
da metade da população mundial. É impossível chegar a descobri-la totalmente. A
Ásia nunca revelará os seus segredos. Terá sempre algo novo e misterioso. Terá
sempre um novo e chocante horror para revelar”.
211
Vamos nos deter um pouco nessa passagem da abertura, que segue
um padrão já comum nesse tipo de produção. Nas palavras do narrador, não
encontramos nada além das idéias e conceitos já banalizados no ocidente, da
Ásia como “lugar de mistérios e encantos”. Progressivamente e de modo
eficiente, o narrador continua criando o clima em que deseja inserir o espectador –
e criando a necessária cumplicidade. Deve-se destacar essas asserções como o
carro-chefe do filme, em que se reafirma o apelo ao exótico por trás de uma
fachada educativa ou ideológica. O interessante é que toda a narrativa de Ásia
Violenta é construída – ou melhor dizendo, costurada – de modo que o enunciador
não dá espaço ao espectador para reflexão. É na seleção de imagens e atuação
da voz dominante (narração) que encontramos as sutis, mas determinantes
modificações em relação à matriz mondo original de que falamos. Enquanto nos
antecessores essa voz
22
, ainda que seguisse o estilo “voz-de-Deus” característico
do documentário clássico – narração fora de campo, supostamente autorizada,
mas quase sempre arrogante (Nichols, 2004, p. 48) -, trazia incorporada, como
diferencial, uma ironia ácida que não poupava dominantes e dominados; em Ásia
Violenta ela é a legitimação de um modo de ver unilateral, declaradamente
tendencioso à visão superior do ocidental. Enquanto Mundo Cão, por exemplo
mostrava que nossos costumes também, vistos filtrados pelas lentes de Prosperi e
Jacopetti, podem revelar-se insólitos ou ridículos, Ásia Violenta se ocupa
especialmente do Outro, exótico, selvagem e pervertido nos valores. A
contextualização cede terreno à exploração do bizarro onde a todo o momento
somos lembrados – pela tomada de posição do narrador - em como somos felizes
22
Remetemos à “voz”, ampliando o seu conceito, conforme observação de Nichols (2004, p. 50),
de algo mais restrito do que o estilo: aquilo que, no texto, nos transmite o ponto de vista social, a
maneira como ele nos fala ou como organiza o material que nos apresenta. Nesse sentido,
segundo o autor, “voz” não se restringe a um código ou característica, como o diálogo ou
comentário narrado. Voz talvez seja algo, conclui, semelhante àquele padrão inatingível, formado
pela interação de todos os códigos de um filme, e se aplica a todos os tipos de documentário.
212
e superiores por estarmos assistindo aquilo tudo de nossas poltronas, longe
daquela barbárie e primitivismo, em um mundo seguro e civilizado.
A primeira sequência é um festival em Kuala Lumpur, capital da
Malásia. São apresentados os mais variados rituais de auto-mutilação, nos quais
os praticantes tem suas línguas, bochechas e outras partes do corpo perfuradas
pela introdução de ganchos e espetos (figura abaixo). Em momento algum se faz
alguma referência aos aspectos culturais que originaram esses rituais. Apenas
evidencia-se o macabro e o brutal.
De Kuala Lumpur passamos para o Japão. O objetivo agora é ilustrar o
que seria, nas palavras do narrador, “a contraditória atitude dos asiáticos para com
os animais. Uns os consideram seres sacrossantos, outros os abatem cruelmente
como alimento”, através das dietas especiais dos japoneses para revigorar a
vitalidade sexual usando partes de criaturas vivas”. Afinal, como enfatiza o
narrador, “só o produto fresquinho pode garantir os efeitos afrodisíacos e
revigorantes”. São mostradas em seqüências rápidas desde a manipulação e
preparo de testículos de boi, próstata de bezerro a lanchonetes onde cobras são
213
retiradas vivas de recipientes, descamadas e preparadas refogadas, sendo
servidas para os fregueses empolgados. Essa sessão de gastronomia tem seu
clímax em um mercado no bairro chinês de Singapura, onde diversos espécimes
são mortos e esfolados para serem vendidos. Inclusive morcegos, supliciados em
detalhes. Esse abate é reforçado por outro sarcástico
23
comentário do narrador, na
verdade um recado para os espectadores:
“(...)ele (o cozinheiro) pode não ser muito gentil, mas tampouco você
come vitela que morreu de velhice, nem carne de uma vaca que morreu de tanto
rir.”
Após mostrar essas cenas de matanças, o documentário questiona se
seria essa a vontade de Deus ao mandar o homem dominar os animais. E
tendencioso, vai além, perguntando se Alá abençoaria tais ações.
Como sabemos, é recorrente nos documentários de exploração a dúbia
posição estabelecida na narrativa, em que cenas bizarras e intensas são
evidenciadas, para depois serem condenadas moralmente. O que estabelece uma
espécie de jogo de gato-e-rato com o público, um passeio numa montanha russa
de contradições onde os sentidos e julgamentos da audiência são de certa forma
postos a prova. Afinal, paga-se para assistir um filme como esse sabendo
exatamente o que se vai encontrar. Portanto, sem nos aventurarmos pelas trilhas
23
Essa ironia e as freqüentes intervenções bem-humoradas do narrador em seus comentários
também servem para criar um vínculo de camaradagem com o espectador, além de quebrar o
clima pesado que certas cenas poderiam produzir. Uma alternativa à sucessão alternada de
episódios chocantes com outros mais “leves” dos Mundo Cão originais.
214
tortuosas da recepção ou psicologismos, podemos ver uma forma de prazer nisso,
um prazer sádico que é pego na ratoeira que o próprio filme constrói.
O ponto alto de Ásia Violenta, que em momento algum abre espaço
para a corporalidade festiva, centralizando seu foco na abjeção, é Benares.
Também chamada de Varanasi, é uma cidade sagrada para o hinduísmo,
localizada à beira do Ganges, e que pelas lentes de Olsen serve de palco para
uma das exibições mais cruas de pobreza e miséria humana registradas até então
em película. Devemos salientar que a mesma localidade será abordada, com a
mesma temática – só que em contexto diferente – alguns anos depois pelo
antropólogo e documentarista Robert Gardner, em Forest of Bliss (1986), com o
qual podemos estabelecer interessante paralelo.
Em Ásia Violenta desfilam na tela as mais trágicas figuras humanas,
certamente escolhidas a dedo pela produção e corporificadas pelos comentários
do narrador (que adverte não estarmos diante de um filme de horror). Este
fazendo a vez do mestre-de-cerimônias dos carnavais de outrora, apregoando a
sua coleção de aberrações humanas: “mendigos, mulheres leprosas com seus
filhos famintos, aleijados, monstros, deformados e outros cujas chagas abertas se
enchem de moscas e vermes”, remetendo a uma forma infernal do carnaval
bakhtinino. Todos focalizados em primeiro plano, estendendo as mãos e pedindo
esmolas.
Mais do que um desdém pela cultura enfocada, é crítico em relação à
busca espiritual ocidental, marcante durante as décadas de 1960 e 1970,
direcionada às religiões orientais, notadamente o hinduísmo. O que fica explícito
na forma de uma alfinetada nos espectadores, ao mostrar os monges mendigos
ascéticos
“(...)que são venerados por muitos sonhadores ocidentais”. Ele
pergunta, incisivo: “O que ocidentais, que tem tudo, estão fazendo venerando
215
criaturas que não conseguem resolver os problemas de seus próprios povos?” E
conclui: “(...) e embora seja possível que tenham influência positiva sobre algumas
pessoas e conduzam ao caminho certo, duvidamos que os ensinamentos e
experiências desses filósofos sejam úteis contra o sofrimento das massas aqui.
Essas idéias são baseadas no próprio fracasso deles em erradicar a miséria em
seu próprio país. Velhos meditando sobre o sentido da vida ou se preparando para
uma melhora na próxima existência são de pouca ajuda aos que morrem de
fome”.
Mais do que evidenciar uma deliberada ignorância e desprezo dos
envolvidos com o filme para questões culturais e aspectos sociais e históricos,
transparecem aspectos ideológicos que reforçam a supremacia eurocêntrica e a
eles submetem valores não-familiares ao olhar colonialista. Omitem que a miséria
desses povos se deve em grande parte à exploração que sofreram das metrópoles
ocidentais que as colonizaram, à má distribuição de renda que divide o mundo e à
política de exclusão social. A função do filme não é fomentar discussões e
questionamentos, muito menos propor soluções. Seu objetivo principal é
exacerbar as diferenças culturais buscando os aspectos mais controversos e
contrastantes, ressaltando as qualidades mais aviltantes. Sem isso, ou com um
viés sociológico que fugisse do tom de farsa da produção, deixaria de fazer
sentido, perdendo sua força imagética e atrativos.
Ainda na seqüência de Benares, o destaque se direciona para a crença
dos hindus em uma vida melhor na próxima existência e seus ritos funerários. De
acordo com o costume, após os preparativos fúnebres, os mortos são levados até
a beira do rio Ganges e cremados em grandes fogueiras. Em seguida, as cinzas
ou restos são atirados no rio. O narrador destaca o pioneirismo e sentido
aventureiro da equipe de filmagem. Afinal, teria a equipe conseguido filmar cenas
216
autênticas de cremações, coisa quase impossível para estrangeiros. Ele enfatiza
que as cenas foram conseguidas com grande dificuldade e perigo.
Ásia Violenta: acima, cenas de corpos sendo queimados em Benares. Abaixo, indianos se banham
nas águas sujas do Ganges, sem se importar com os cadáveres em decomposição que flutuam.
O tom é dramático. Enquanto somos informados de que, como a
madeira é cara e os familiares não tem dinheiro, muitos corpos parcialmente
queimados ou chamuscados são entregues ao rio, a câmera se direciona a um
grupo de abutres de prontidão. São intercaladas cenas de cadáveres mutilados e
217
decompostos boiando, alguns já servindo de repasto às aves de rapina. O
narrador empresta tons sombrios aos seus comentários:
“A sufocante fumaça cheirando a carne queimada flutua a baixa altura
na margem do Ganges. A morte revela ao homem o que ele realmente é. Os
indianos aprenderam a aceitá-la. Aos seus olhos não é um mal, mas uma semente
para outra vida.”
E conclui, alternando seqüências de homens se banhando nas águas
poluídas do rio sagrado e outros cadáveres flutuando:
“Isso pode ajudar a entender que usem essa água para beber, se
banhar e se purificar, enquanto cadáveres decompostos passam flutuando.”
Forest of Bliss, de Robert Gardner também se passa em Benares e
surpreendentemente, se retirarmos os comentários da voz over de Ásia Violenta,
suas seqüências passadas na cidade sagrada indiana poderiam ser incluídas no
filme de Gardner, intercaladas às tomadas originais. No que poderia ser
considerada uma versão prolongada de Forest of Bliss, tamanha a semelhança e
intensidade das cenas.
O filme mostra um dia na cidade de Benares, tendo como tema central
a indústria da morte, levada a cabo pela casta dos “intocáveis”, e as atividades da
comunidade em torno dos ritos funerários. Chopra (1989, p. 2) bem observa que o
poderia ter sido intitulado “Um Dia na Vida da Cidade da Morte”. De modo
singular, Gardner constrói um documentário sem narrador ou legendas, deixando
218
que as cenas capturadas a partir de seu ponto de vista tenham seu entendimento
construído pela contemplação das mesmas pelo espectador. Belo e assombroso,
esse retrato da “cidade da morte” atrai e repele, com a crueza de imagens que a
todo momento, também remetendo a Ásia Violenta, emerge a corporalidade
abjeta, onde o rebaixamento se faz presente continuamente.
Forest of Bliss
Apesar da grande diferença residir no aparente approach antropológico
do diretor – proeminente nos meios etnográficos nas décadas de 1950 e 1960,
notadamente por seus filmes The Hunters (1957) e Dead Birds (1965) –, Forest of
Bliss criou controvérsia, dividindo críticos e antropólogos tanto por sua singular
construção narrativa como pela ética do documentário em sua representação de
uma outra cultura.
O antropólogo e co-produtor Akos Ostor em defesa declarou que o filme
é fundamentado por oito meses de pesquisa de campo etnográfica (OSTOR,
1988, p. 7), ainda que o próprio Gardner, contraditoriamente, tenha declarado
claramente que via Forest of Bliss como um filme pessoal, não etnográfico. O que
corrobora as conclusões de Alexander Moore e Jonathan Parry, segundo as quais
o filme não pode ser proveitosamente considerado antropologia. Para Moore
219
(1988, p. 1) ele mais se configura uma obra prima estética, visualmente
absorvente – ainda que seja rotulado como documentário antropológico. Nesse
sentido, seria deficiente por se apoiar em um único modo perceptivo, a visão, para
transmitir sua idéia. Ele defende que essa construção narrativa a partir de imagens
apresenta claras limitações, sendo que poderiam ser utilizados meios de ampliar
essa informação visual, como legendas para os diálogos, material em áudio
retirado de entrevistas que poderiam ser utilizados como comentários em voz over
ou mesmo um narrador onisciente. Sem esses artifícios, o espectador seria
deixado à deriva, obrigado a dar seus próprios significados às imagens – muitas
delas desagradáveis: particularmente as que lidam com restos e detritos humanos,
alguns devorados por cães às margens do Ganges, outros decompostos boiando
no rio. Para Moore, Forest of Bliss resulta em um rico exercício visual, uma
exploração das imagens, e não um documento antropológico. Visão compartilhada
por Parry, para quem o filme é incompreensível para os não familiarizados com as
tradições retratadas, levando a conclusões errôneas sobre a cultura e os ritos
mortuários. Ele enfatiza o horror na configuração por Gardner de uma experiência
de extraordinária intensidade (PARRY, 1988, p. 4). Nesse sentido, poderíamos
dizer que Forest of Bliss, ainda que de modo diferente de Ásia Violenta também
descontextualiza. Este por sua construção de uma realidade pela justaposição das
imagens aos comentários distorcidos ou tendenciosos do narrador; Forest of Bliss
por, ao deixar que as imagens – escolhidas pelo olhar do realizador - falem por si,
distanciem-se ou se submetam a uma apreciação que não raro, transcende o real
significado do retratado.
220
O mais enfático desses críticos é Jay Ruby, para quem a atuação
pública de Gardner, através de observações, escritos e filmes desde Dead Birds
não refletem nenhum aparente conhecimento sobre os temas que tem ocupado a
antropologia desde os anos de 1970 (1991, p. 14). Para ele, Gardner permaneceu
fiel à ultrapassada e inadequada noção de que a tarefa principal da antropologia é
salvaguardar os últimos remanescentes de uma cultura autenticamente primitiva,
mostrando-se indiferente ou inconsciente das implicações éticas e políticas dessa
idéia e comportamento. Melhor do que olhar seu filme como antropologia, Ruby
considera mais produtivo criticá-lo enquanto trabalho de um artista romântico que
acredita ser o Outro exótico uma única oportunidade de explorar suas reações
pessoais a questões proeminentes da natureza humana como, no caso de Forest
of Bliss, a morte (1991, p. 14).
Ele põe em questão a validade antropológica do trabalho de Gardner,
ao mesmo tempo que ressalta no filme sua concepção artística sustentada pela
exploração. Ele argumenta que Forest of Bliss é uma mistura de vinhetas
incompreensíveis que aparentemente ganham sabor por seu conteúdo formal e
justaposição de imagens e seqüências. E que falsamente mistifica não só pelo
desconhecimento a linguagem das pessoas retratadas no filme, mas também pela
falta de percepção do significado da ação. Ainda que se possa atribuir um sentido
que tem boa possibilidade de ser etnocêntrico e incorreto pela incapacidade de se
221
deduzir alguma coisa sobre as intenções do realizador
24
. Afinal, salienta, desde
que este tenha indicado que o falado não é relevante suficiente para ser traduzido
e a ação não necessita ser apresentada de modo que se torne compreensiva,
somos deixados no âmbito de puro formalismo. Ressalta que, apesar de não ser
contrário ao formalismo no cinema, Forest of Bliss além de ser nulo como
etnografia, é falho como arte. Para Ruby, Gardner confunde ignorância com
mistério: a Índia é misteriosa somente para aqueles incapazes de aprender algo
sobre ela. Ainda assim discorda da posição de Parry e Moore, segundo a qual
subtítulos e narração falada deveriam estar presentes em um filme que lida com
um tema exótico para a maioria dos espectadores. Desde a invenção do cinema
sonoro, argumenta, o filme tem se fiado demais em palavras para explicar, de
modo que a possibilidade de uma narrativa puramente visual é desafiadora. Ele
não condena o filme por Gardner ter tentado transmitir seu sentido visualmente.
Ele o critica por ter falhado em ter sucesso na tarefa (1991, p. 13). Ele ressalta
uma defesa informalmente oferecida por alguns antropólogos a Forest of Bliss: a
de que ele pode não ser grande coisa como etnografia, mas excepcional como
arte. Alegam que por serem tão tocantes, dizerem coisas importantes sobre a
condição humana, serem formalmente tão belos, podem perdoar suas deficiências
antropológicas.
O que refuta, pois a seu ver, a ética e política de Gardner manifesta em
Forest of Bliss requer mais discussões. Afinal, ele usa a vida das pessoas de
Benares como matéria prima, objetos estéticos que constituem o produto bruto
24
De acordo com Parry (1988, p. 4), conhecedor da cultura retratada no filme de Gardner, a
narrativa perfaz um documento válido e interessante para ele justamente por ter alguma noção de
seu significado. Mas reconhece ser dificilmente uma audiência expressiva, principalmente por ter
passado meses fazendo trabalho de campo nas locações onde Forest of Bliss foi rodado, tendo
conhecido pelo menos três dos principais personagens da narrativa de Gardner. Mas, enfatiza que
sem esse conhecimento do meio, fica imaginando como alguém não familiarizado poderia se
relacionar com esse material, ou mesmo como Gardner presumiria que fosse feita uma leitura do
mesmo.
222
para seu processo criativo, sem nenhum aparente escrúpulo moral. Cita Gardner,
que afirma não ter tido nenhum embaraço ético ao fazer o filme. E que seus
próprios sentimentos deram forma ao filme e às tomadas (RUBY, 1991, p. 13).
Subjetividade que não estava tentando suprimir e que da qual, ao contrário,
necessitava.
Concordamos com Ruby de que parte do apelo do filme à audiência
ocidental é a qualidade exótica da vida indiana. O que traz de volta a idéia do
Oriente misterioso, bem explorada no já citado livro de Edward W. Said
25
. E de
acordo com essa idéia, calcada na exploração do exótico, cita Tom Waugh (1988,
pp. 13, 14) para quem Forest of Bliss é simplesmente mais um Mundo Cão (um
Mondo Cane Índia), uma variação etnográfica do então excessivo manancial de
fantasias indianas nos meios de comunicação ocidentais. Para Ruby (1991, p. 14)
a base da obra de Gardner se encontra no romantismo do século dezenove e seu
comportamento se justifica pela noção de licença artística. Ou seja, de acordo com
a suposição de que aos artistas são permitidas normas de comportamento
diferentes das outras pessoas. E que eles devem ser fiéis à sua visão acima de
tudo. Noção moralmente e politicamente fora de sincronia com a época. Conforme
observa, artistas são parte da sociedade e devem responder por seu
comportamento como qualquer um. E o que é mais relevante no pensamento de
Ruby e que permeia toda uma discussão sobre ética nos documentários (e outras
formas de representação): fazer arte com a vida de indivíduos politicamente e
economicamente desfavorecidos, à margem dos direitos mais básicos e
oprimidos, é extremamente difícil de justificar. Principalmente quando o realizador
vem da mais privilegiada classe da mais poderosa nação do mundo. E questiona
como podem antropólogos defender essa atitude. Desde a Guerra do Vietnã, diz,
antropólogos norte-americanos têm observado a necessidade de examinar as
25
Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (ver Ref. Bibliográficas).
223
implicações morais e políticas de seu trabalho e as complexidades em usar o
Outro como sujeito de sua pesquisa. Por que deveriam abraçar a obra de alguém
que aparentemente não está interessado nessas questões? (RUBY, 1991, p. 14)
A conclusão de Ruby, dessa suposição de que o artista tem uma certa
licença moral, é a idéia de que filmes que são sensíveis representações não
requerem os serviços de um antropólogo para legitimá-los enquanto filmes
etnográficos. Ele acredita que aqueles que tomam essa posição argumentam que
devido à visão artística ser tão importante quanto uma visão etnográfica derivada
de conhecimento e critério, devemos aceitar essas produções como se fossem
antropológicas. A lógica desse argumento leva, segundo o autor, à absurda
posição de aceitar virtualmente toda a literatura e filme como antropologia e desse
modo erradicar qualquer singularidade antropológica como recurso de gerar
conhecimento sobre a condição humana. Se apoiarmos a atitude de Gardner,
pergunta, por que não de qualquer outro? Existem literalmente centenas de
documentários poéticos sensivelmente feitos sobre a condição humana. Por que
não caracterizá-los todos como antropológicos?
Forest of Bliss
224
Seguindo o caminho inverso, em defesa de Forest of Bliss, Radikha
Chopra exalta o banquete visual que, na mais pura tradição hindu, estimula todos
os sentidos de uma só vez. “Quase sem preâmbulo”, observa, “somos imersos em
Benares, a mais sagrada cidade da Índia, que é um paradigma e um símbolo da
civilização hindu” (CHOPRA, 1989, p. 2). Ele associa um dos princípios centrais do
pensamento daquela cultura, a justaposição e interpenetração de opostos (criação
e destruição, vida e morte) com a construção da narrativa. Que exemplifica com a
inauguração de um barco, que compartilha espaço com a imersão de um cadáver.
Ou com as crianças brincando e soltando suas pipas às margens do rio, onde os
corpos são cremados. A câmera fornece um testemunho dos processos de viver
com a morte, não a morte solene e separada da energia da vida, mas a morte
cercada por uma cacofonia de cânticos e sinos, adornada pelas cores das flores e
fogos. Para o acadêmico da Universidade de Déli, a complexidade dessas
relações de separação e inclusão são tomadas de várias formas. A captura visual
do perpétuo movimento é a maneira de Gardner introduzir tais tópicos, revelando
que mesmo para um olhar não familiarizado, que o universo mundano não se
intromete no espaço ritual, mas faz parte dele (CHOPRA, 1989, p. 3). De forma
polida, lança outra luz sobre a narrativa e compra a briga de Ostor, defendendo a
ausência de comentários ou legendas. O co-produtor, em sua resposta às críticas
de Moore e Parry, já expressara que
Moore e Parry contam com uma voz sussurrando em seus ouvidos um
extenso comentário sobre o que já está defronte de seus olhos. Forest of
Bliss tem uma estrutura completamente visual, sendo que informações
narradas ou colocadas em legendas o transformaria em outro filme. (...)
Forest of Bliss não é um filme sem diálogos, já que muitas palavras são
proferidas na trilha. Mas não são determinantes para o entendimento do
filme (OSTOR, 1988, p. 5).
225
Chopra admite que Forest of Bliss é um filme difícil de se ver,
principalmente pela ausência de comentários ou tradução. Mas, observa
complementando Ostor, se considerarmos seriamente a noção de evento ou
ações como texto, o silêncio deliberado se torna um modo de remover ou eliminar
uma interpretação individual (1989, p. 3). Ou seja, removendo o enunciador
solitário, evita a unilateralidade (como está expressa em Ásia Violenta), deixando
o tema aberto aos vários níveis de interpretação que suscita.
Forest of Bliss
Fica evidente a questão, já na época em que foi exibido, se Forest of
Bliss se enquadra ou não nos documentários de exploração. Não temos dúvidas
de sua divergência dessa vertente. Mas a exploração de imagens intensas no
filme é óbvia, partiu de um determinado ponto de vista e todas as cenas foram
selecionadas de modo consciente. Ainda que o próprio Akos Ostor demonstre
cautela e preocupação ao fazer sua defesa do filme que co-produziu na inflamada
226
resposta que escreveu tendo como alvos, principalmente Moore e Parry. Ele
enfatiza terem evitado qualquer sensacionalismo sobre os problemas de Benares:
(...): nós não ocultamos nem chamamos a atenção para problemas
sociais ou ecológicos. O filme não é sobre saneamento, brigas de cães,
lixo e cadáveres descartados. Mas não censuramos o filme para a classe
média ocidental ou para os olhares acadêmicos. Existem algumas
imagens desagradáveis no filme, mas foram incluídas como parte de um
ciclo de vida e morte, não como uma exposição gratuita de exotismo
(Ostor, 1988, p. 4).
Ele acusa os detratores (especialmente Parry), de queixarem-se do
horror, só vendo miséria e morte. Ele questiona se seria a morte tão difícil de
contemplar, ou se os críticos sentiriam-se ofendidos de terem de compartilhar com
nosso destino final. Talvez seja esse o ponto principal da defesa de Forest of Bliss
e de sua provocante exploração: transcender as fronteiras de Benares sendo,
como Ostor observa (1988, p. 4), sobre nossa própria humanidade.
Forest of Bliss
227
4. O Olhar perverso: voyeurismo e exploração da morte.
4.1. A morte como espetáculo.
Como vimos desde o início de nossa trajetória, a morte como
espetáculo já rondava os filmes documentários desde o final do século XIX.
Pensar em sua representação nos remete ao trabalho de Ariès, citado por Vivian
Sobchack
(2005, p. 128), quando o mesmo assinala as mudanças radicais por que
passou a significação social da morte e do morrer ao longo dos séculos,
transformando-se de um evento social e público em uma experiência privada e
anti-social. Para ele a morte, separada da vida social cotidiana, perde o seu
aspecto natural e, ligada ao irracional, o convulsivo, o erótico, o sexual e o
privado, deriva em um fascínio mórbido, sendo associada ao erótico e ao exótico
(SOBCHACK, 2005, p. 129). De acordo com Áries, a partir do século XVIII, o
homem ocidental passa a dar à morte um novo sentido. Ao mesmo tempo que a
exalta, dramatiza, e deseja de forma impressionante arrebatadora, se ocupa
menos da própria morte, direcionando-se para a morte do Outro (ARIÉS, 2003, p.
64). Ele observa também que desde finais do século XV os temas da morte
carregam-se de um sentido erótico. Segundo o autor:
Do século XVI ao XVIII, cenas ou motivos inumeráveis, na arte e na
literatura, associam a morte ao amor, Tanatos e Eros – temas erótico-
macabros ou temas simplesmente mórbidos, que testemunham uma
extrema complacência para com os espetáculos da morte, do sofrimento
e dos suplícios. Carrascos atléticos e nus arrancam a pele de São
Bartolomeu. Quando Bernini representa a união mística de Santa Teresa
e Deus, inconscientemente aproxima as imagens da agonia e do transe
amoroso (ARIÈS, 2003, p. 65).
228
Ele sugere que como o ato sexual, a morte passa a ser cada vez mais
considerada uma transgressão que arrebata o homem de sua vida cotidiana, de
sua sociedade racional, de seu trabalho monótono, para submetê-lo a um
paroxismo e lançá-lo, então, em um mundo irracional, violento e cruel (ARIÈS,
2003, p. 65). Tornada interdita e segregada, ganha um novo espaço nas
mentalidades de então. Interdição cuja significação pode ser resumida, como nota
Bataille (2004, p. 64) a um simples elemento: a violência – relacionada de modo
notável à sexualidade e à morte. Segundo ele:
a violência e a morte que ela significa possuem um duplo sentido: por um
lado o horror não afastado, ligado ao apelo que a vida inspira; por outro,
um elemento solene, ao mesmo tempo aterrador, fascina-nos e provoca,
uma perturbação soberana. (...) A interdição, no caso do cadáver, nem
sempre parece inteligível. Em Totem e Tabu, Freud, em razão de seu
conhecimento superficial dos dados – aliás, hoje menos imprecisos – da
etnografia, admitia que, geralmente, a interdição (o tabu) se opunha ao
desejo de tocar. Antigamente o desejo de tocar os mortos não era sem
dúvida maior do que é hoje. A interdição não previne necessariamente
contra o desejo: na presença do cadáver, o horror é imediato e certo, e é,
por assim dizer, irresistível (BATAILLE, 2004, p. 74).
Essa abordagem pode ser muito bem representada pelas exibições de
cadáveres que atraíam enormes multidões ao necrotério de Paris no final do
século XIX. O caráter espetacular desses eventos pode ser exemplificado nas
palavras de Schwartz (2001, p.413):
(...) o necrotério atraía tanto visitantes regulares quanto grandes
multidões de até 40 mil pessoas em seus dias mais movimentados,
quando a história de um crime circulava na imprensa popular e os
visitantes faziam fila na calçada à espera de andar em fila pela salle
d’exposition para ver a vítima. (...)No fim do século XIX, o necrotério
(morgue) apresentava uma salle d’exposition, onde duas filas de
cadáveres, cada uma em sua laje de mármore, eram exibidas atrás de
uma grade janela de vidro com cortinas verdes de cada lado. (...) Das três
grandes portas frontais, a do meio permanecia fechada, e os visitantes
faziam fila, entrando pela esquerda e saindo pela direita(...).
229
Necrotério de Paris, final do século XIX.
A autora enfatiza, nesse ponto, o caso do cadáver de uma menina de
quatro anos encontrada em julho de 1886 em um vão de escada na capital
parisiense – a Enfant de la rue Vert-Bois. O corpo, transferido para o necrotério,
não mostrava sinais aparentes de ferimentos, além de discreta escoriação na mão
direita. De acordo com os jornais da época, a exibição do cadáver da menina –
trajando um vestido e colocado na salle d’exposition, “em uma cadeira coberta por
um pano vermelho que salientava ainda mais a palidez da pequena morta” - atraiu
uma “multidão considerável”, sendo estimada em aproximadamente 50 mil em 3
de agosto daquele ano e chegando – segundo o Le Matin – a 150 mil o número de
pessoas que fizeram fila para ver o corpo. Este era preservado em uma caixa
refrigerada, onde era depositado a cada noite, sendo devidamente autopsiado
somente quando o estado de decomposição o exigiu. Ou seja, o espetáculo teve
primazia às necessidades legais, sendo que no dia da autópsia, em que foi
revelada uma morte natural (a criança, que não chegou a ser identificada,
sufocara ao engasgar-se com uma minhoca), foram registrados na imprensa os
sentimentos da multidão que se amontoou naquele dia, somente para “ter a
230
decepção de não ver a criança exibida em sua cadeirinha”
(SCHWARTZ, 2001, pp.
416, 417).
Enfant de la rue Vert-Bois
Essas espetacularização também pode se relacionar ao que Sobchack
enfatiza, ainda se referindo a Ariès, de que:
(...) ao remover o evento da morte natural do olhar cotidiano para
preservar seu exotismo e estranheza, e ao diminuir, tornando-os
indecorosos, os excessivos deslocamentos da morte encontrados nas
231
representações sociais do século XIX, para finalmente rejeitá-los, a
cultura ocidental do século XX efetivamente fez da morte natural um tema
“tabu” para o discurso público e limitou drasticamente as condições para
a sua representação. Ao se remover a morte natural do espaço e do
discurso públicos, só o que fica nas conversas e lugares públicos é a
morte violenta (SOBCHAK, 2005, p.131).
4.2 A morte documentada
Brueghel – O Triunfo da Morte (detalhe).
A representação da morte através de imagens é tão antiga quanto as
técnicas de gravar, pintar e esculpir. Desde as antigas pinturas rupestres do
período neolítico encontradas nas cavernas, passando pelas agonias e torturas
dos mártires cristãos registradas na arte do período medieval até os trabalhos de
pintores dos séculos XVII e XVIII; várias abordagens do morrer - sejam motivadas
por processo natural (doença e velhice) como por fatores externos inerentes a
tragédia humana (guerra, calamidades ou crimes) – foram exploradas. Tanto do
ponto de vista mais alegórico, como podemos ver em “O Triunfo da Morte”, de
Pieter Brueghel, o Velho, quando em obras de caráter mais documental. É o caso,
232
por exemplo, do pintor e gravador holandês Rembrandt que, dentre os retratos de
grupo que lhe foram encomendados, não se furtou a registrar em “A Lição de
Anatomia do Doutor Tulp” ou na “Aula de Anatomia do Doutor Joan Deyman”
cadáveres sendo dissecados. Os ritos fúnebres são tema de Gustave Courbet em
“Enterro em Ornans”. Também o espanhol Francisco Goya retrata a morte violenta
em “Os Fuzilamentos do 3 de Maio”, isso sem falar em sua famosa série “As
Desgraças da Guerra” (Los Desastres de la Guerra), feita entre 1810 e 1820.
Rembrandt - Aula de Anatomia do Doutor Joan Deyman
O desenvolvimento da fotografia, a partir da descoberta do processo
conhecido como daguerreótipo – derivado do nome de seu criador Louis Jacques
Mendé Daguerre – estabeleceu uma nova forma de aproximação com a morte.
Passaram a ser comuns as fotografias mortuárias, uma última lembrança que os
familiares encomendavam aos fotógrafos. Devemos lembrar que nesses tempos
pioneiros, devido a dificuldades técnicas, ainda não era possível deslocar o
equipamento com facilidade ou mesmo valer-se das oportunidades que
233
aconteciam independentes da vontade do fotógrafo devido ao tempo necessário
de exposição do filme para a captura da imagem. A situação mudou com a
evolução tecnológica que deu maior mobilidade à câmera e possibilidade de maior
imeidatismo em seus registros. Como sugere Susan Sontag (2003, pp. 24-25):
Desde quando as câmeras foram inventadas, em 1839, a fotografia
flertou com a morte. Como uma imagem produzida por uma câmera é,
literalmente, um vestígio de algo trazido para diante da lente, as fotos
superavam qualquer pintura como lembrança do passado desaparecido e
dos entes queridos que se foram. Capturar a morte em curso era uma
outra questão: o alcance da câmera permaneceu limitado enquanto ela
tinha que ser carregada com esforço, montada, fixada. Mas depois que a
câmera se emancipou do tripé, tornou-se de fato portátil e foi equipada
com telêmetro e com uma modalidade de lentes que permitiam inéditas
proezas de observação detalhada a partir de um ponto de vista distante,
a fotografia adquiriu um imediatismo e uma autoridade maiores do que
qualquer relato verbal para transmitir os horrores da produção da morte
em massa.
Foto mortuária.
234
De maneira semelhante ao que ocorreu com a fotografia, a morte
começou a ser representada de forma documental no cinema tão logo se
estabelecia o novo meio. No final do século XIX, Edison filmou a impactante
recriação de uma decapitação em The Execution of Mary Stuart (1895) – dirigido
por Alfred Clark - e An Execution by Hanging (1898), que chegou a ser
considerado o primeiro registro de uma morte real em película, na cadeia de
Jacksonville. O que, na verdade, é pouco provável, sendo mais factível ter sido o
enforcamento recriado, antecipando a prática que se tornou comum nas
atualidades e serviria de herança para produções posteriores: o uso de
reconstituições de cenas reais. Como também fez pouco depois, com Edwin
Porter na direção, no citado anteriormente Execution of Czolgosz with Panorama
of Auburn Prison (1901). No que difere o registro da eletrocussão da elefanta
Topsy, que havia matado algumas pessoas, em Electrocuting an Elephant (1903)
– este sim, um dos primeiros represetantes da exibição de uma morte violenta real
nas telas.
Execution of Mary Stuart (acima) e Execution of Czolgosz (abaixo).
235
O cinema documentário, portanto, desde as experiências pioneiras de
Edison, já vinha se encarregando do assunto no que foram mais tarde chamados
de filmes de atrocidades. Vamos recapitular brevemente este itinerário, mais
detalhado no capítulo anterior, em que o martírio real de animais e seres humanos
já era explorado no passado. Em Nanook of the North (1922) e Man of Aran
(1934), Robert Flaherty filma respectivamente as mortes de uma morsa e um
tubarão. Ele deliberadamente reproduz a caça dos animais do modo que era feito
pelos locais. A morte da morsa é particularmente impactante, sendo o animal
atingido por um arpão no quebra-mar e após lenta agonia cortado em pedaços,
que servem de alimentos a Nanook e seus companheiros. Em Las Hurdes (1934),
como vimos, Buñuel filma a morte de uma cabra em uma das mais miseráveis
regiões da Espanha e o suposto cadáver de uma criança. Duas décadas depois,
Noite e Neblina (Nuit et Brouillard,1955), de Alain Resnais, deu nova dimensão
aos horrores do holocausto através de filmes e fotos de arquivo, mantendo
guardado o devido distanciamento com o momento fatal em si e repletos de um
viés poético que tornam a morte, como é bem colocado por Sobchack, objeto de
contemplação mediada. Para a autora, “a contemplação da morte é ritualmente
formalizada como uma reflexão moral das condições mortais do corpo, da
fragilidade da vida, do fim da representação que a morte representa”
(SOBCHACK, 2003, p. 156 ).
Sendo assim esses filmes, em suas diferenças estilísticas, refletem
determinadas responsabilidades sociais inerentes à concepção de mundo de seus
realizadores. Mas que também se situam naquela fronteira, como nos sugere
Fernão Ramos (2000, p. 200), onde a fruição do horror traz em si uma porção
inevitável de má-consciência pelo desbalanço entre a desgraça representada e o
prazer obtido com a representação. O que é bem exemplificado no registro do
histórico concerto dos Rolling Stones em Altamont, São Francisco, pelos irmãos
Albert e David Maysles, e Charlotte Zwerin: o documentário Gimme Shelter (1971).
236
O espetáculo foi realizado em 6 de dezembro de 1969, poucos meses depois do
histórico festival de Woodstock, e difere dos famosos “três dias de paz e amor” por
um incidente que retratava o fim de uma era e mostrava a irrupção da violência em
plena cultura hippie, dissipando a imagem idílica do flower power. Durante a
apresentação pontuada por tumultos e brigas, Meredith Hunter, um espectador
negro que portava um revólver é assassinado a facadas por um membro dos
Hell’s Angels – contratados como seguranças pela produção - a poucos metros de
onde cantava o vocalista Mick Jagger. O crime é registrado pela câmera e é a
partir da notícia desse crime que se desenvolve a narrativa do documentário,
estruturada de modo não linear.
Os irmãos Maysles.
Após uma breve introdução, na sala de montagem, o baterista Charles
Watts e Mick Jagger ouvem o noticiário de uma rádio local relatando o ocorrido.
Seguem-se várias seqüências de apresentações musicais e as recorrentes pausas
para que se tentasse controlar o público inquieto, prenúncio de uma tragédia
prestes a eclodir. Durante um desses segmentos, inclusive, o cantor interrompe
Sympathy for the Devil, avisando que sempre acontecem coisas estranhas durante
237
a execução dessa música. O clímax do filme é a morte: sensacional e oportuna,
que os realizadores guardam para a parte final, mostrada tanto no contexto do
show, quanto na mesa de montagem, quadro-a-quadro, com um dos diretores
direcionando o olhar de Jagger e o nosso. O que vemos, em meio ao alvoroço, é
um rapaz negro, caindo e levantando cambaleante, ao que parece em meio a uma
contenda. Entrando no quadro, à direita e acima, um homem se aproxima,
erguendo e descendo o braço sobre o pescoço do jovem. Em sua mão, um objeto
semelhante a uma faca ou punhal. Abraçado à vítima, desfere mais um golpe,
antes de serem tragados pela multidão.
Nas duas ilustrações a seguir, o momento em que a faca do membro dos Hell’s Angels desce
sobre o jovem negro. Detalhe realçado no círculo mais claro.
238
As imagens do concerto de Altamont, antes dos incidentes, mostram
um cenário com os espectadorres praticamente em contato com os músicos.
Vemos o grupo de costas tocando, e mais além o emaranhado de cabeças que
forma o público. Em torno da banda estão os Hell’s Angels, enormes, robustos,
com suas jaquetas e coletes cheios de inscrições. Em um momento perturbador
(ilustrado na seqüência de fotogramas a seguir), a câmera focaliza Jagger e em
segundo plano, por detrás, um dos Angels que olha para o cantor. A teleobjetiva
encurta as distâncias entre os dois e a imagem que cria, do Angel olhando
ensandecido para o músico a tão aparente proximidade é mais do que inquietante.
É um sinal de que alguma coisa pode acontecer, de que algo está prestes a
239
ocorrer. E que somado à crescente violência do concerto, denota a perda de
confiança e esperança no proclamado amor, compreensão e no poder libertador
das drogas.
Esses incidentes vão sendo mostrados – arrumados na montagem com
o novo rumo que tomou o foco do documentário em função da morte documentada
– ainda durante o dia. Por exemplo, na apresentação do Jefferson Airplane,
quando o guitarrista Paul Kantner repreeende os Angels pelas atitudes agressivas
com os espectadores. O líder dos motociclistas subiu no palco, pegou um
microfone e começou a discutir com o músico na frente do público e das câmeras
dos Maysles. Á noite, durante a apresentação dos Stones, o clima de batalha era
240
indiscutível, com os Hell’s Angels golpeando a torto e a direito. Cenas que
culminam com o assassinato. O filme termina com as imagens de estúdio do rosto
perplexo de Jagger, que acabara de presenciar a cena.
Mick Jagger é obrigado por diversas vezes a interromper a apresentação devido aos tumultos
ocasionados pelas brigas.
Essa inquietante experiência de presenciar um assassinato real, o clima
de pesadelo crescente no concerto e um cenário singular – a noite escura, meio
milhão de pessoas e um bando de violentos arruaceiros – fazem de Gimme
241
Shelter, mais do que um documentário sobre uma banda de rock, mas um
dramático presságio de que tempos piores viriam. Não negamos que parte do
atrativo do filme é a presença dos músicos – principalmente de Jagger – mas os
rumos que tomaram a apresentação certamente se tornaram um dilema (e
também um golpe de sorte) para os diretores. O que resultou na interessante
opção de tirá-los do cenário e colocá-los em outro âmbito, o do estúdio, escutando
a própria música e vendo as cenas do concerto de Altamont e do assassinato –
que se torna a estrela principal.
Mas foi no documentário de exploração que a visualização da morte
atingiu novos patamares, seguindo progressivamente. A presença da morte de
seres humanos nessa linha de documentários, evidente na recriação da morte do
monge budista Quang Duc em Mundo Cão 2 (Mondo Cane 2) é o estabelecimento
da conquista de uma nova fronteira para o gênero. Durante muito tempo
considerada a primeira morte de um indivíduo em um documentário de
exploração, está um passo adiante de seu predecessor, que não mostrava
pessoas sendo mortas, mas não evitava exibir cadáveres ou moribundos. Muito
menos a já recorrente matança explícita de animais; exemplificada em Mundo Cão
no abate de porcos pelos aborígenes da Nova Guiné e a sangrenta decapitação
dos touros em Singapura. Espetáculos que, em sua representação documentária
da morte são vivenciadas aparentemente – utilizando um conceito de Sobchak
(2003, p. 141) - como uma visualização do real. É interessante nos determos
brevemente nessa questão, da representação narrativa da morte para
estabelecermos uma diferença fundamental entre a exploração da mesma no
documentário. Como observa a autora,
No cinema, parece que a representação narrativa da morte é vivenciada
como uma visualização no abstrato, enquanto a representação
documentária da morte é vivenciada aparentemente como uma
visualização do real. Por isso (...), a excessiva atenção visual que se
dedica à morte violeta no filme narrativo parece ser culturalmente
tolerada – ainda que muitas vezes criticada. O filme documentário, por
242
sua vez, se caracteriza por uma excessiva evitação visual da morte, e,
quando a morte é representada, a representação parece exigir uma
justificação ética. Assim, quando a morte é representada como algo
fictício em vez de real, quando seus signos são estruturados e realçados
de modo a funcionar de maneira icônica e simbólica, fica entendido que a
única coisa que está sendo violada é o simulacro de um tabu visual. No
entanto, quando a morte é representada como algo real, quando seus
signos são estruturados e flexionados de modo a funcionar indicialmente,
um tabu visual é violado, e a represetnação deve encontrar meios de
justificar a violação (SOBCHACK, 2005, p.141).
Não vamos nos aprofundar aqui nas numerosas e inevitáveis questões
éticas envolvidas. Mas não temos dúvida de que a carnavalização
exibicionista de mortes violentas sem justificativas sustentáveis é a
principal causa da depreciação e rejeição dessa linha de filmes. Ainda
que a exposição da morte como forma de entretenimento popular não
fosse novidade, a sua centralização em uma significativa categoria dos
meios visuais - o filme documentário – permitindo um testemunho de toda
uma gama de tragédias particulares, colocaram esse tópico em outro
patamar. Ao tornar a visualização da morte violenta uma atividade de
prazer, o filme mondo e seus sucessores passam a ser perigosamente
ofensivos.
Não justificando, o mondo é mais visivelmente chocante que outras
formas narrativas – documentais e ficcionais – por sacrificar qualquer
contextualização em função do choque manifesto pelo predomínio de imagens de
corpos despedaçados. Por outro lado, essa aproximação a um horror corporal
estabelecido pela obsessão com a exposição despersonalizada de feridas e
entranhas, traz à tona a vulnerabilidade da condição humana. No que é similar ao
discurso carnavalesco de Bakhtin. Tal e qual os carnavais medievais, os filmes
mondo e posteriores shockumentaries também se sustentam na dramaticidade da
corporalidade em seus aspectos mais rudes: nascimento, cópula, defecação,
alimentação e especialmente a morte. Esta, tirada da escuridão, ganha espaço no
mundo, sendo estabelecida como um aspecto inevitável da vida. E ostentada
nessas produções, sua inevitabilidade é expressa em minuciosos detalhes
anatômicos. O sucessivo desfile de seqüências de corpos humanos submetidos à
violência em contextos desarticulados fazem com que rompam as barreiras
narrativas estabelecidas – sejam ficionais ou documentais – e personifiquem a
243
abjeção. São, portanto, muito mais perturbadores (e ofensivos) que outras
variedades de filmes que lidam com aspectos extremos da natureza humana, em
suas contradições não se ajustando em qualquer categoria pré-existente.
Representação do carnaval medieval: o “mundo às avessas” de Bakhtin.
4.3. A morte filmada
Nos anos seguintes, as produções que seguiram a linha inaugurada
com Mundo Cão flertaram com maior ou menor intensidade com a morte, sempre
dando margem a especulações sobre a autenticidade ou não dos segmentos
apresentados. Não que isso, de fato, signifique algo para o resultado do
espetáculo. O que se vai colocar em evidência são outros fatores, estritamente
ligados a questões morais, éticas e ideológicas. A morte se converte em objeto,
sendo a violação do tabu visual uma transgressão deliberada com a exposição do
244
cadáver – “signo indicial do morto” (SOBCHACK, 2005, p. 135) – e do processo
não natural, mas sim abrupto e violento, que originou esse cadáver. Estaríamos
diante, portanto, refletindo novamente sobre o comportamento ético do
cinegrafista diante da morte de que trata, de um tipo de olhar não listado. Um olhar
que se reveste de um caráter acidental ou mesmo ameaçado, e que pode até se
esconder por trás do problemático “olhar profissional” (SOBCHACK, 2005, pp.
148, 154). Mas que deixa transparecer a sua verdadeira natureza e revela o seu
caráter sensacionalista, sendo que poderíamos atribuir-lhe a denominação de
“olhar ameaçador” por sua transgressão deliberada e manipulação. Nesse olhar, o
realizador se torna predador e a câmera a sua arma. Olhar que vai predominar a
partir do final da década de 1970, cristalizado em filmes menos elaborados,
criados a partir de uma costura de cenas descontextualizadas.
Faces da Morte (Faces of Death/1978) se tornou para o documentário o
que foi Mundo Cão nas décadas anteriores, sendo mais difundido e ganhando em
notoriedade – principalmente no Japão, onde foi um grande sucesso. E apesar de
seguir uma estrutura narrativa semelhante, redireciona a vertente dos filmes
mondo em direção a uma abordagem mais centralizada na morte, com inserções
mais intensas, ainda que sem as qualidades técnicas e narrrativas dos
antecessores.
Dirigido por Conan Le Cilaire (pseudônimo de John Alan Schwartz),
Faces da Morte já abre, durante a apresentação dos créditos – em letras
vermelhas sangrentas que lembram as usadas em filmes de horror – com intensas
e verossímeis cenas de uma operação cardíaca; corpos sendo abertos e
dissecados em mesas de autópsias; órgãos retirados e ossos serrados; e stills de
rostos de cadáveres mostrando agonia. Logo após os créditos, o filme introduz um
especialista, Dr. Francis B. Gröss, o presumido patologista que vai ser o narrador
(na verdade o ator Michael Carr) e autenticar as asserções, em que alerta:
“Prepare-se para uma viagem. Uma viagem em um mundo onde cada passo pode
dar-lhe uma melhor compreensão de sua própria realidade”.
245
Abertura de Faces da Morte: cadáveres e autópsia.
Faces da Morte é uma colagem de sequências – encenadas e genuínas
– que se propõe a expor várias modalidades de morte. Tudo justificado pelo
desejo do “consultor” do filme, o Dr. Gross, de, após vinte anos investigando as
várias faces da morte, empreender uma jornada pelo mundo para tentar entender
o destino final do homem. Uma justificativa obviamente falsa (como o próprio
patologista e toda a equipe do filme) e um pretexto para o convite que ele nos faz:
“Vocês serão testemunhas de minhas descobertas. (...) Sei o que
testemunhei. Agora é a vez de vocês.”
O filme se estrutura em quatro blocos, sendo o primeiro mais próximo
da estética mondo, com múmias mexicanas, ataque de piranhas e índios do
Amazonas reduzindo a cabeça de seus inimigos. O segmento seguinte é dedicado
a matanças de animais e o terceiro montado basicamente com cenas de arquivo
(provavelmente não-editadas de telejornais) referentes a mortes humanas: um
246
homem que chacinou a família sendo morto pela polícia, uma mulher se atirando
da janela, o assassinato de um político por um atirador, além de reconstruções de
mortes na câmara de gás e na cadeira elétrica.
O Dr. Gross – consultor e narrrador.
Diferente dos filmes de Jacopetti e Prosperi, e de outros realizadores do
gênero, que se esmeravam em todos os aspectos envolvidos em suas produções,
Faces da Morte mostra, no mínimo, a falta de talento do diretor, sendo montado
desordenadamente, configurando uma colagem mal amarrada que perde qualquer
significado. Principalmente a partir do terceiro bloco, e perdendo o rumo no
derradeiro, que tenta costurar tomadas de atrocidades nazistas com a fome em
Biafra, desastres naturais, acidentes fatais e cenas genuinamente perturbadoras
das conseqüências sangrentas de acidentes aéreos e automobilísticos. No bloco
final ainda envereda pela parapsicologia e misticismo, exibindo uma
constrangedora seqüência de missa negra, onde o sacerdote (interpretado pelo
prórpio diretor do filme) remove o coração e os órgãos de uma vítima.
247
Algumas de Faces da Morte.
Ainda que Faces da Morte inaugure uma nova era para o documentário
de exploração, concordamos com Goodall (2006, p. 126), para quem “o único feito
de Faces da Morte é assinalar o fim do período do mondo clássico. Após o que o
filme mondo balançou para uma disforme perversão e degradação”.
Novo período também marcado por outro motivo. Na época de seu
lançamento, o vídeo doméstico entrava com força no mercado. Da mesma forma
que os filmes pornográficos, os filmes mondo deixavam as salas de cinema
migrando para um negócio mais rentável e direcionado. Tanto que Faces da Morte
fez um grande sucesso no novo formato, bem maior do que nas telas. Com o
aprimoramento da tecnologia e popularização do videocassete, essas produções
248
foram adquirindo um caráter cada vez mais restrito, recebendo uma nova
denominação: shockumentaries. E do mesmo modo como aconteceu com Mundo
Cão, resultou em uma demanda por mais filmes do mesmo tipo, a partir de então
direcionados ao novo e lucrativo mercado do home video
26
.
Com a banalização da violência e uma exigência cada vez maior de seu
público alvo, títulos como Faces da Morte (que teve seis continuações entre 1978
e 1996, além de coletâneas e edições especiais), Traços da Morte (Traces of
Death – série iniciada em 1993 e com cinco volumes até 2000) e Cenas da Morte
(Death Scenes – três filmes entre 1989 e 1993) se tornaram mais vívidos e
explícitos do que as produções dos anos 60 e 70. Seguindo a fórmula já padrão,
resumem-se a coletâneas de cenas não editadas dos próprios arquivos da polícia,
dos noticiários, e de cinegrafistas amadores. Sequências consideradas não
apropriadas de serem veiculadas pela tv, intercaladas com trechos encenados,
incluídos nos filmes em maior ou menor quantidade. O primeiro Cenas da Morte é,
inclusive, um caso interessante. Dividide-se em duas partes, sendo os primeiros
cinqüenta minutos do filme uma compilação de fotografias e cenas de arquivo
relacionados a crimes, desastres e assassinatos. O segundo segmento, que
ocupa o restante da produção (cerca de 40 minutos), é uma aula de anatomia
26 É interessante observar o modo como esse material é divulgado nas locadoras e pontos de
venda.. As capas geralmente mostram caveiras e alertas sobre a capacidade do filme em causar
náuseas e ataques cardíacos. Chamarizes para reforçar a qualidade de seu conteúdo e atrair o
consumidor. É comum também alardearem ineditismo em suas cenas, já que muitos desses filmes
repetem sequências já mostradas anteriormente em outros títulos. Essas características tornaram-
se um padrão para a exposição e divulgação dessas fitas e mantido aqui desde que foi lançado o
primeiro Faces da Morte, pela América Vídeo. Além das capas apelativas, com caveiras
desenhadas (algumas caracterizadas como a morte, com capa e foice e presas pontiagudas) em
meio a cadáveres, algumas tentam forçar um conteúdo moral nas resenhas. Uma tentativa de fingir
dar alguma justificativa, algum propósito ao filme.
249
completa, com corpos sendo desmontados em mesas de autópsias, como
podemos conferir nas imagens a seguir:
Seguindo a mesma forma narrativa e bastante violento - mas situando-
se um nível acima da maioria dessas produções - destacamos o documentário
inglês Execução (Executions, 1995), dirigido por David Herman, Arum Kumar e
David Monaghan. Diferente dos outros filmes citados e incorretamente inscrito na
categoria de filme snuff na Inglaterra, tem a seu favor se sustentar com uma boa
justificativa – condenar a pena de morte -, sem recorrer a apelos morais
duvidosos. E conseguir ser convincente de seus propósitos altruístas. Os
realizadores argumentam a favor da exibição das cenas violentas que vão
apresentar, serem um legado dos que foram executados. E afirmam que, sendo as
250
imagens de suas mortes um alerta para os vivos, suprimi-las seria a maior de
todas as indecências.
Reunindo umas poucas seqüências encenadas e muitas imagens de
arquivo, Execução traça um amplo e cruel panorama das diversas formas de
execuções pelo mundo afora, mostrando a evolução histórica dessas práticas.
Logo na seqüência de abertura, assistimos a uma reprodução das experiências do
Dr. Burieux. Ele tentou, em 1905 na França, provar que depois de separada do
corpo, a cabeça humana continuava respondendo a estímulos no instante que se
seguia à decapitação. De acordo com o médico, uma vítima da guilhotina olhou
diretamente em seus olhos, ainda consciente, momentos depois do terrível
instrumento ser utilizado. De forma análoga o narrador desafia o espectador, do
mesmo modo que Burieux, a olhar nos olhos dos condenados para que entenda a
verdade sobre a pena de morte.
O filme é dividido em capítulos, cada um dedicado a uma forma de
execução: decapitação, enforcamento, apedrejamento, eletrocussão e
fuzilamento. Todos ilustrados com fotos de arquivo, seqüências de noticiários e
vídeos amadores. São exibidas as imagens rudes de uma mulher sendo despida e
apedrejada em Mogadishu; de chineses sendo mortos da maneira tradicional, com
um tiro na nuca; das ações de esquadrões da morte na América do Sul e Central;
do uso da cadeira elétrica nos Estados Unidos e muitas outras explicitando o
resultado fatal de perseguições políticas, guerras e disputas étnicas.
O momento mais chocante é a seqüência final, que mostra a execução
do jovem Mohammadine Salar por pistoleiros em Beirute. Amarrado e com um
cartão pendurado no pescoço contendo algumas inscrições, ele é deitado em um
banco de terra. As pessoas em volta disputam com cameramen e fotógrafos um
melhor ponto de vista, enquanto a vítima, aparentemente calma, aguarda o
primeiro tiro. Um dos pistoleiros avança com um rifle automático e dispara uma
rajada contra o corpo do rapaz. Outros se aproximam e dão mais alguns tiros, um
251
deles despedaçando horrivelmente uma das faces de Mohammadine. O cartão
vira para trás, cobrindo o rosto desfigurado. Mas alguém – talvez um cameraman
– vai até o corpo ainda vivo e remove a obstrução. A câmera aproxima com um
zoom o rosto desfigurado, arfante em suas últimas tentativas para respirar.
252
Fotogramas dos últimos momentos de Mohammadine Salar.
A espetacularizacão da morte nesses filmes nos faz voltar aos aspectos
éticos que envolvem a representação da morte e que levam ao que Bazin
denominava obscenidade. Em seu ensaio “Morte todas as tardes”, ele vê a morte
como um momento único por excelência. Ele nos fala que nenhum instante vivido
é idêntico, mas podem se assemelhar, de onde podemos admitir - apesar de seu
caráter paradoxal - a reprodução cinematográfica como uma réplica objetiva da
memória. Para ele, porém, dois momentos da vida escapam a essa concessão da
consciência, não podendo ser representados sem que se violente a sua natureza:
o sexo e a morte. A essa violação ele chamou de obscenidade (BAZIN, 1983, p.
133). Sendo para ele o momento da morte irreproduzível, ele confere à exploração
gratuita e espetacular destas imagens intensas e sua repetição um caráter não-
ético e questiona os limites do que é exibido. De acordo com Fernão Ramos
(1994, p. 22),
Na imagem da morte, o que por definição é único, surge duplamente
experimentado em seu aspecto “qualquer”: pela forma de adesão ao
transcorrer própria à câmera, ou, como quer André Bazin, ao nível
espectatorial, pela repetição obscena do que é único por definição
(morre-se apenas uma vez). Para o crítico francês, essa tensão entre o
representado e sua forma de representação constitui a imagem que
253
chama de obscena, sendo sua manifestação apresentada como uma
“contradição ontológica”.
Fica evidente que os filmes mondo e, principalmente, os death movies
seguem na contramão da ética baziniana. Esses filmes se dedicam a capturar a
evidência visual da verdade involuntária da desintegração corporal em seu último
espasmo, o incontrolável e derradeiro reconhecimento da ruína material no
momento da morte. Uma possibilidade jamais imaginada pelo autor de “Ontologia
da Imagem Fotográfica”.
Fernão Ramos nos chama a atenção ao remeter ao texto Morte todas
as tardes, se referindo ao dilema da repulsão e atração pela imagem intensa que
incomoda Bazin em relação à obscenidade da morte real enquanto espetáculo.
Isto por não só se projetarem para além dos limites da exposição – em clara
oposição à sobriedade e tendência à elipse defendidas pelo crítico -, mas por
manipularem o irreproduzível através dos recursos técnicos próprios ao meio
cinematográfico
27
. Retomamos o artigo onde sugere Fernão Ramos (1998, p.94):
Intensidade, unicidade e reprodutibilidade técnica compõem um coquetel
que, quando misturado, produz o efeito obsceno. (...) Para Bazin, no
ponto extremo da “perversão cinematográfica” está não apenas a
reprodução infinita do que é único mas a manipulação desta unicidade
através dos diferentes procedimentos técnicos da reprodutibilidade
cinematográfica (retrocesso, acelerado, câmera lenta) (...) Também
qualquer outro traço de virtuosismo estilístico adentraria aqui a dimensão
de obscenidade. Bazin pede uma imagem sóbria, tendendo à elipse, para
a representação do sexo e da morte.
27
Uma prática comum é o uso de música incidental para enfatizar as seqüências, principalmente
as mais chocantes. Isso está bem representado em Africa Addio.
254
Centrados na exploração do caráter mais espetacular da morte, os
death movies seriam uma exacerbação do “ver para além da elipse” a que Ramos
se refere ao sugerir que “a intensidade da imagem do perigo, da morte e do sexo,
incomoda ao Bazin espectador, embora este revele um claro prazer ao se
defrontar com esse tipo de imagem”. O que se relaciona à posição explícita de
Bazin a favor da não imagem, embora a mesma traga em si reprimida uma clara
pulsão de “ver para além da elipse”.
Os death movies podem se situar na esfera de filmes, como se refere
Sobchack, menos estruturados e menos elaborados que são percebidos como
mais imediatos e chocantes em termos do confronto diretamente visceral,
inesperado e não intelectual com a violência abrupta que em geral representa a
mortalidade humana em nossa cultura (SOBCHACK, 2003, p. 155). E capazes de
despertar com suas seqüências emoções diferenciadas, dos mais diversos níveis,
nos observadores. Emoções que vão desde indiferença (pela proliferação dessas
cenas elas tendem a chocar cada vez menos), interesse e curiosidade – talvez o
mesmo tipo que sempre levou as pessoas a assistirem execuções, enforcamentos
e justifique as massas de curiosos em volta de cadáveres expostos nas ruas e
acidentes fatais - até a um estado de morbidez, este definido por Koury (1998)
como “um estado ou uma inclinação a viver com pensamentos perniciosos ou
nocivos, a apresentar ou ter interesse em situações sombrias ou melancólicas, ou
em coisas tristes, especialmente doença e morte”.
Mas se os filmes de morte desejam, em essência, explorar nossa
morbidez (latente ou não) se superando e indo cada vez mais longe na exposição
da tragédia humana, eles compartilham uma limitação. Os segmentos de mortes e
degradações apresentadas guardam entre si uma característica comum: a maioria
foi apresentada em segunda mão, ou seja, foram obtidas através de outras fontes
que as registraram e, mesmo assim, referem-se a acontecimentos ocorridos
alheios a uma intenção. Aconteceriam independentes da presença da câmera,
salvo nos trechos encenados (ou quando o cinegrafista se torna vítima). Mesmo
255
nas seqüências mais polêmicas de Africa Addio, pode-se afirmar que aquelas
mortes ocorreriam, podendo ter sido redimensionadas pela presença dos
cinegrafistas. O que sem dúvida induz a um distanciamento, por mais chocante
que seja a cena mostrada. O ultrapassar desse limiar, dessa última fronteira – o
filme snuff -, é assunto sobre o qual faremos uma introdução, no fim do trabalho.
256
5. A exploração do sexo no documentário
5.1. Sexo e representação
Segundo o produtor David Friedman, um dos grandes nomes do cinema
exploitation, tão logo as imagens foram postas em movimento, não demorou para
que algum sujeito empreendedor despisse a namorada frente às câmeras. Na
verdade, os registros visuais da nudez e da sexualidade remetem a muito antes do
nascimento do cinema, desde as primeiras manifestações artísticas da
humanidade. Como pode ser visto nas pinturas rupestres mostrando homens com
falos imensos, alguns em desafiantes posições guerreiras, outros acasalando. Um
reflexo, como sugere Neret (1994, p. 8), de um arrebatamento ou êxtase erótico, o
único antídoto para a angústia engendrada no ser humano pela consciência da
inevitabilidade da morte. E que já conformaria o conflito no inconsciente do
homem de duas forças antagônica: Eros – o impulso da vida – e Tanatos – o
impulso da morte. Paradoxo que está expresso no pensamento de Georges
Bataille (2004, p. 21), segundo o qual o “erotismo é a aprovação da vida até na
morte”. Ou seja, de acordo com o pensamento do filósofo, a vida e a morte –
forças antagônicas e complementares – vão ser a base sobre a qual se edificará
seu conceito de erotismo, onde a vontade de superar a morte se reflete na fusão
entre dois indivíduos. Fusão que só se tornará duradoura com a morte. Para
Bataille, é o desejo de perenidade que move Eros, deus do amor e princípio de
criação, nascido do caos original e elemento vital do universo. Perenidade que
inevitavelmente termina na agregação final, na perda de identidade da morte. E o
artista, como observa Neret (1994, p. 7), está em busca da eterna, imperecível
beleza; fazendo das coxas femininas as colunas do templo através do qual
passará para chegar ao paraíso. Reconhecendo naquela fenda escondida a
passagem para vida, morte e a divindade, a transição da carne para o sagrado.
257
Nessa busca, obviamente, encontramos desde a antiguidade um privilégio na
representação dos genitais, notadamente o masculino. Os falos enormes dos
primitivos se perpetuam nas pinturas murais egípcias, na grande variedade de
variações sexuais deixadas pelos gregos – inclusive bestialismo e
sadomasoquismo -, e notadamente na generosa constituição do deus Príapo,
ornamentando uma parede da Villa dei Vetii, em Pompéia. Símbolo do poder
masculino e reflexo das sociedades patriarcais, o falo continuou imperando com o
advento da pornografia em escala industrial, manifesto em seu comprimento,
ereções e ejaculações incansáveis e contínuas.
O deus Príapo e seu enorme falo.
O que não desfavorece a nosso ver de modo algum a contraparte
feminina. O artista, mesmo estando patente o ponto-de-vista masculino – sempre
foi generoso na representação tanto das formas corporais das mulheres,
notadamente a vagina. Isso deixando de lado elucubrações de cunho feminista
sobre o tratamento da mulher enquanto objeto. Não vem ao caso e não temos
258
nenhum interesse em trazermos à pauta esta discussão. Mesmo porque esse
poder expresso em grandiosas e férteis ereções pode ser lido de outra maneira:
um tributo à mulher enquanto fonte de criação. Pois ela, como sugere Neret (1994,
p. 7), seja bacante ou cortesã, maenad
28
ou houri
29
, dançarina ou feiticeira, é
quem procria. E parafraseando o autor, é em sua devoção que o estúdio do artista
se torna um templo orgiástico, um bordel místico e templo do olhar. E assim como
o falo, a vagina se tornou objeto de culto, sendo a ela rendidas graças pictoriais
através da história, culminando, no século XIX, com a pintura de Courbet – “A
Origem da Vida” – em que é motivo de tela inteira, e com a escultura de Rodin,
“Íris”, em que escancara seus lábios. Podemos imaginar se representações como
essas também foram fontes de escândalos, já que muito tempo depois, em
meados da década de 1970, o editor Larry Flint chegou a ser preso e processado
por romper o tabu ainda existente e exibir muito mais explicitamente a genitália
feminina em sua publicação, a Hustler Magazine.
Courbet - A Origem da Vida.
28
Mulher participante do culto orgiástico a Dioniso.
29
Como são chamadas as virgens do paraíso islâmico.
259
Devemos ter em mente que os artistas das primeiras gerações da idade
moderna, que em seu processo criativo aludiram diretamente à sexualidade,
produziam para si mesmos e uma limitada clientela, aí incluídos amigos e
patrocinadores. De uma maneira ou outra, a maior parte dos mais renomados
pintores, por exemplo, deixaram obras de caráter erótico, inacessíveis ao grande
público. Entre eles, durante os séculos XVIII e XIX, podemos relacionar, além do
citado Courbet: Fragonard, Watteau Boucher, Rowlandson, Turner, Daumier,
Degas e Millet. Certamente a reputação e futuros ganhos destes artistas poderiam
ser severamente ameaçados pela censura não só de críticos, mas também das
autoridades vigentes. Afinal esses trabalhos refeltiam uma busca na qual o
estranho, o fantástico e o bizarro vêm à tona, procurando efetivar uma realização
visual, além do fato de serem sexualmente estimulantes. O que suscitava nada
bem vindos estímulos à curiosidade do espectador, dando vazão a um despertar
da sensualidade. Esse processo de negação e cerceamento chegou ao auge nos
anos 1900, para uma posterior distensão no século XX.
Em seu capítulo, intitulado Scientia Sexualis, Foucault (2005, pp. 53,
71) reflete como, a partir dos séculos XVI e XVII se multiplicam na sociedade
ocidental os discursos sobre o sexo, o que vai contra o senso comum segundo o
qual, até o século XIX, o sexo era reprimido. De acordo com Foucault existia a
intenção de examinar todos os aspectos do sexo. Desenvolve-se desse modo um
instrumento que, ampliando as reflexões e estudos sobre o tema, tem como
objetivo iluminar e esclarecer sobre suas nuances. Ele sugere que
(...) no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As
práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem
reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com
o ilícito uma tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da
grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados com os do
século XIX. Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões
visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas
260
vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os risos dos adultos: os
corpos “pavoneavam”. (FOUCAULT, 2005, P. 9).
Posteriormente, no século XIX, essa mentalidade reveste-se de um
caráter científico, que acaba incorporando o evolucionismo e, por sua vez, as
teorias racistas. O discurso científico de então, respaldado na medicina e nas
idéias evolucionistas de reprodução, passa a estabelecer afirmações sobre o
sexo. Asserções ligadas às idéias de higiene e ao estabelecimento das relações
entre o patológico e o pecaminoso. Associação que vem legitimar o discurso sobre
o sexo. O autor observa (2005, p. 55) que esse discurso científico, no século XIX,
era repleto de credulidades e ofuscações e que pelo menos até Freud, tudo o que
era dito, as precauções e análises sobre o tema, conformavam procedimentos que
esquivavam a verdade insuportável e perigosa sobre o sexo. O que para Foucault,
o simples fato de se ter pretendido falar dele do ponto de vista purificado e neutro
da ciência é significativo. Isso em se tratando de uma ciência feita de esquivas em
que, na incapacidade ou negação de se falar do próprio sexo, atentava às suas
aberrações, extravagâncias excepcionais, anulações patológicas e exasperações
mórbidas.
Nessa passagem, entre os séculos XVIII e XIX, observa Foucault (2005,
p. 9),
Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana, até as noites
monótonas da burguesia vitoriana. A sexualidade é, então,
cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família
conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função
de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador,
dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade,
guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No
espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de
sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao
que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos,
a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se
mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá
pagar as sanções.
261
Na virada do século XIX para XX, tão logo a sociedade começou a
examinar seus impulsos e individualidades, e aceitar a responsabilidade por suas
próprias emoções, o processo artístico das mais variadas áreas ganhou maior
liberdade em focalizar a atenção em impulsos inconfessáveis e explorar mais
profundamente os altos e baixos do desejo humano. Foi um momento de ruptura –
ainda que pequena -, quando os mecanismos de repressão ainda estavam
presentes, mas começando a distender-se. Passou-se, como observa ainda
Foucault (2005, p. 109), das interdições sexuais imperiosas
a uma relativa tolerância a propósito das relações pré-nupciais ou extra-
matrimoniais; a desqualificação dos perversos teria sido atenuada e, sua
condenação pela lei, eliminada em parte; ter-se-iam eliminado em grande
parte os tabus que pesavam sobre a sexualidade das crianças.
Com essas novas investidas, veio a compreensão da importância da
fantasia, do humor, dos símbolos e até do romance nas novas abordagens do
tema. Um conceito novo e diferente do que se fazia. Mas por outro lado ainda
incipiente, sendo que um caráter clandestino vigorava no que se refere às
manifestações e representações da sexualidade. De acordo com Cabral (1995, p.
136), encontramos de forma bastante explícita o caráter dual das mentalidades do
século XIX. Afinal, nada mais racional para a burguesia do período do que se
apegar, por um lado, de modo quase desenfreado à privacidade e por outro, se
entregar aos desejos terrenos. O que refletia a necessidade de conveniências, de
autocensura e preocupações com a moral. As aparências encobriam o que não
era discutido, que se fingia não apreciar, mas que com certeza conheciam e
praticavam. Assim, novamente remetendo a Foucault (2005, p. 10),
marcharia, com sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades
burguesas. Porém, forçada a algumas concessões. Se for mesmo dar
262
lugar às sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar: que
incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos circuitos da
produção, pelo menos nos do lucro. O rendez-vous e a casa de saúde
serão tais lugares de tolerância: a prostituta, o cliente, o rufião, o
psiquiatra e sua histérica – estes outros “vitorianos”, diria Stephen Marcus
– parecem ter feito passar, de maneira sub-reptícia, o prazer a que não
se alude para a ordem das coisas que se contam; as palavras, os gestos,
então autorizados em surdina, trocam-se nesses lugares a preço alto.
Somente aí o sexo selvagem teria direito a algumas formas do real, mas
bem insularizadas, e a tipos de discursos clandestinos, circunscritos,
codificados. Fora desses lugares, o puritanismo moderno teria imposto
seu tríplice decreto de interdição, inexistência e mutismo.
Essa ambigüidade fica evidente com o advento da fotografia. Não é de
se estranhar que a nudez e o sexo tenham se tornado um de seus temas mais
populares, ao mesmo tempo que sua divulgação trilhasse o caminho oposto, da
clandestinidade. Não se sabe exatamente quando foi tirado o primeiro nu
fotográfico, mas ao que tudo indica, teria sido em Paris, por volta de 1845
(KOETZLE, 1994, p. 9). O conteúdo dessas imagens é bastante variado,
retratando desde nus relativamente comportados, no estilo clássico acadêmico,
passando por atrevidas poses que expunham genitálias, até homossexualismo
feminino, masculino e penetrações heterossexuais. Certamente, a maior parte
dessas fotos foi produzida por homens, para homens. Popularizadas a partir de
1850, constituíam-se em sua maioria de retratos de mulheres em cartões postais
que visavam estimular o apetite sexual dos espectadores, em sua maioria
masculinos (BOTTI, 2001, p. 15). Desse modo, estão intrinsecamente
relacionadas ao imaginário erótico masculino – ou pelo menos ao que os
fotógrafos assim consideravam. Para atingir esse público, por exemplo, muitas
fotografias retratam a prática do fellatio; outras tantas lesbianismo - ainda que em
menor quantidade do que atualmente, quando é uma das modalidades mais
presentes em qualquer publicação ou produção fílmica pornográfica. Conforme
observa Botti (2001, pp. 15, 16):
263
Os cartões postais, modo mais barato de se distribuir fotografias na
época, variavam entre paisagens e temáticas fetichistas:
sadomasoquismo, como dominadoras batendo em bundas de homens ou
mulheres; lesbianismo, com mulheres tocando e despindo uma à outra;
entre demais práticas sexuais consideradas socialmente “transgressoras”
(pelo menos no período), eram representadas e distribuídas. As
fotografias eróticas logo foram encontradas em Paris, e a maioria delas
tentava realçar o caráter voyeur inerente ao meio fotográfico, olhando o
obsceno (o fora de cena) pelo “buraco da fechadura”. (...) Os espelhos
também eram utilizados e, assim como na pintura, permitiam que o
voyeur simultaneamente visse o corpo feminino de outros ângulos. Os
cenários das fotografias eróticas que datam desse período eram
freqüentemente exóticos, onde a mulher deitava-se sobre uma cama ou
divã adornado por panos e tecidos bordados.
Exemplar da fotografia erótica produzida entre o final do século XIX e início do XX.
264
Vale a pena, antes de nos aprofundarmos nessa etapa da pesquisa,
nos determos um pouco em convenientes considerações feitas por Bill Nichols
(1991, pp, 212, 217), que traça um interessante paralelo entre a pornografia e a
etnografia. Segundo ele, ambas, em sua forma narrativa se originam com o exame
do corpo e suas propensões sexuais e sociais, cada uma examinando as ações,
rituais e papéis pertinentes com uma inserção nos domínios do utópico onde as
contradições se fundem sem desagregar a estrutura pornográfica ou etnográfica.
De acordo com essa idéia, ele propõe – respondendo à própria indagação sobre
qual forma de mito ou ideal cultural proporiam a pornografia e a etnografia – que
para a primeira, esse ideal poderia ser chamado de “pornotopia”, já que propõe
uma sempre renovada e contínua satisfação sexual. A diversidade é
constantemente descoberta e colocada a serviço do prazer. A pornografia também
apresenta dois modos alternados de envolvimento do espectador: ação narrativa e
contemplação erótica descritiva. Na ação narrativa são levantados os problemas,
ações se desdobram e ocorre o desenvolvimento dos personagens. Na
contemplação, o mecanismo narrativo entra em suspensão para a exibição do ato
sexual, pleno de redundância. Esse intervalo na narrativa é o ponto principal, onde
a ação sexual toma a frente, sendo estes momentos narrativas fechadas dentro da
narrativa, cada um com começo, meio e fim bem demarcados. Para Nichols, esses
números pornográficos idealizam as relações sexuais, imbuindo o ato sexual tanto
com realismo documental quanto mítico idealismo. Sendo que na pornografia
clássica prevalecem processos de compreensão que colocam a narrativa a serviço
da documentação. Conhecimentos e objetivos não podem ser simplesmente
adquiridos ou tomados; o ato ou processo de compreensão e domínio devem ser,
por si mesmos, descritos e documentados em muito mais detalhes que o
requerido por qualquer outro enredo. Este detalhe é indispensável para os
padrões da pornografia, já que a evidência do ato sexual sobrepõe-se ao
desenvolvimento da história. O ato que, por sua vez, é uma passagem rumo ao
prazer e à fascinação, identificação e transgressão; aspectos de uma
265
subjetividade que escapa à esfera do estabelecido. O sexo documentado busca
reduzir a narrativa a mera coadjuvante, e embora esta dê a impressão de liberar a
imaginação sexual, pode se tornar um simples pretexto para atingir esse objetivo.
Segundo Nichols, essa ambivalência ou oscilação entre a progressão narrativa e
evidência documental torna extremamente difícil, senão inútil, tratar a pornografia
como parcela da ficção e de textos narrativos. De fato, suas dimensões
documentais e exibicionistas vão mais longe, configurando certas convenções na
estrutura de cenas individuais que contribuem para um efeito narrativo, mesmo se
limitado ou diferente, se comparado com outros gêneros. A unidade básica é uma
situação ou evento demonstrando a ação sexual entre atores - personagens,
organizados e fotografados de acordo com a perspectiva de um espectador ideal.
O que vai contrastar com a etnografia, onde a unidade básica é a situação ou
evento expondo uma especificidade cultural apresentada da perspectiva de um
observador ideal, mas também de acordo com o permitido pelas condições de
campo. Em ambos os casos, câmera e som, seqüência e estrutura, antecipam a
lógica do que um espectador ideal iria querer ver em se tratando de atividade
sexual ou social. Mas com a especificidade, na pornografia, uma iconografia do
desejo sexual abunda conferindo representatividade ao modo físico como o
indivíduo masculino interage com o outro, no caso seu parceiro ou parceira sexual.
Apresenta imagens de desejo (corpos jovens e atléticos; vestimentas informais,
mas na moda; espaços domésticos e naturais, confortáveis e agradáveis), tudo de
modo a configurar um comportamento em que a busca do prazer é o objetivo
principal de seus agentes masculinos e femininos. O “bom sexo”, sugere o autor,
medido em termos de gratificação pessoal e apetite irrefreável por mais, fornece a
meta fundamental, figurada em imagens de gozo, freqüentemente acompanhadas
por gemidos e gritos de êxtase.
O que nos leva a outro ponto importante que Nichols destaca, nesse
paralelo entre pornografia e etnografia: a forma como lidam com o corpo. Em
266
ambos os casos, alçado a condição socialmente significante. Ele observa (1991, p.
216) que
através do corpo, ocorre a domesticação do outro. Nos filmes
pornográficos, o corpo é um instrumento de performance sexual. Graças
ao seu isolamento prolongado em close-ups, as partes do corpo parecem
funcionar independentemente de personagem ou personalidade. A
iconografia dos filmes pornográficos incluem “lições de anatomia”, close-
ups clínicos da genitália em ação sexual. O desempenho físico mostra
lábios, seios, pernas, braços, vulvas, clitóris e pênis como instrumentos e
alvos do desejo.
O que resulta na fragmentação e anatomização do corpo, aspecto
desumanizador contrário ao discurso ocidental estabelecido pelas artes - em
especial a pintura – que priorizava uma representação idealizada. Uma construção
corporal que refletiria no corpo ideal através do somatório de distintas partes que
se harmonizariam. Idealização que não ocorre na pornografia, que busca a sua
autenticação na singularidade corporal de um indivíduo, examinada como menos
do que a soma das partes. Nichols dá o exemplo das cenas de orgias, onde a
identificação com indivíduos específicos pode ser sacrificada, mas a dependência
da singularidade dos corpos para propósitos de autenticação permanece em sua
totalidade.
Por fim ele chama a atenção para o fato de que, tanto a etnografia
quanto a pornografia dependem do compromisso estabelecido com o espectador
de que o exibido realmente aconteceu. Que os eventos exemplifiquem um domínio
particular das práticas culturais ou sexuais que representam. Ao mesmo tempo,
estas representações devem ser reconhecidas ou aceitas como evidências de
eventos concretos ocorridos entre indivíduos específicos. Ao contrário de
tipificações metafóricas ou alegóricas de um universo ficcional, elas dependem de
sua autenticação histórica para serem válidas. Não é a realidade que está em
jogo, mas a impressão de realidade, a impressão conduzida pelas convenções de
267
um mundo histórico. No documentário, essa impressão de realidade é amplificada
em relação a um efetivo curso dos eventos retratados configurado pelas ações,
palavras e gestos, assim como o estado de espírito dos participantes e os
resultados ou resoluções representadas. O fundamento e a garantia tanto da
etnografia quanto da pornografia reside na evidência de que as práticas culturais e
sexuais representadas ocorreram como descritas, tanto no âmbito histórico como,
sem efeitos que as releguem ao plano do ilusionismo. Concordamos com Nichols
quando afirma que um filme pornográfico é considerado falso pelo espectador se
os homens em cena simularem o orgasmo. O que seria comparável a um
realizador etnográfico fabricar práticas culturais. Várias estratégias comprobatórias
são colocadas em ação de modo a garantir a reputação do filme em relação aos
eventos descritos. Na pornografia essa função se sustenta nas cenas onde o
pênis ejaculando viola as regras da sexualidade real que representa. O falo – peça
central da narrativa, após o tempo destinado à estimulação – que se dá através de
várias modalidades de posições sexuais - , chega ao seu momento da verdade, le
petit mort, e banha o quadro cinematográfico com a sua descarga. Como
evidências de feitiçaria ou divindade, este aparente e manifesto signo oferece a
prova de um estado interior e subjetivo (1991, 217):
A mais típica representação da ejaculação masculina engendra um
notável paradoxo iconográfico. O testemunho do prazer ocorre na visível
prova da ejaculação per se, (e nos sons do êxtase), ao contrário dos atos
de penetração ou fellatio que deixariam o pênis pouco visível. Seriamos
deixados com uma simbólica representação do que teria ocorrido não
tivessem sido priorizadas as necessidades do observador. A introdução
se torna onanismo, a prova pornográfica de atividade sexual. (Este
onanismo difere nitidamente da masturbação: não é um prazer auto-
ministrado e é raramente admitido como fonte de prazer; mais
propriamente, é tratado como o que é, uma convenção que proibe a
ocorrência do orgasmo fora de vista).
268
5.2. O filme stag
No cinema, como bem expressou Friedman conforme vimos no início
do capítulo, nudez e sexo caminham paralelos ao seu desenvolvimento. Ainda que
não exista uma certeza de quais teriam sido os primeiros exemplares, ao que tudo
indica, os primeiros filmes pornográficos começaram a aparecer por volta de 1896.
Filmados clandestinamente e mostrados com discrição, floresceram nas primeiras
décadas do século que iniciava, destinados a um público seleto. Estes primitivos
filmes stag, como se tornaram conhecidos, foram pouco a pouco sendo difundidos
à margem dos iniciantes circuitos oficiais, deixando registros que hoje se tornam
fontes documentais do comportamento sexual em diferentes épocas e etapas.
Como sugerem Di Lauro e Rabkin (apud ABREU, 1996, p.49),
O stag film foi, e é, o cinema véritè do proibido, um incalculável registro
de imagens que abertamente assumiram sentimentos desconhecidos
sobre sexo. (...) Eles documentaram aquelas experiências privadas,
isoladas e não mencionadas, que todavia eram de alguma forma
universais. Compartilhando os mistérios da informação sexual através de
rituais coletivos de iniciação masculina (...) recebia-se um curso de
iniciação não-creditado. Os filmes provavam que o mundo da sexualidade
existia fora das limitadas experiências individuais. Neles, havia gente e
atividade sexual reais. A personificação estética era tão frágil e simplória,
vivida por “performers” e não por “atores”, que tornava tudo mais
verdadeiro.
Além disso, as seqüências que ficaram, independentes de suas
aspirações, configuram um vasto panorama da diversidade corporal e fisiológica,
sendo que em muito podem ser vinculadas ao “realismo grotesco”. Principalmente
por se situarem de forma manifesta e oposta ao velado corpo da cultura oficial,
revelando uma corporalidade desmistificada e entregue aos excessos em uma
profusão de orifícios, cópulas e excreções. Isso tendo-se o cuidado de levar em
conta que, apesar de uma primeira impressão e a tendência de inserirmos aí as
269
idéias de Bakhtin, nem sempre a exposição do sexo se revela dentro dos
parâmetros libertadores da “carnavalização”. Quanto a isso, concordamos com
Stam (1992, pp. 80-81) quando evoca na pornografia comercial não o caráter
libertário de uma reviravolta carnavalesca, mas um interesse velado nas
proibições que supõe combater. Além do fato de durante quase toda a sua
história, estar subordinada aos ditames da imaginação masculina.
Independente disso, os filmes stag podem ser considerados,
certamente, uma significativa manifestação da produção humana. O que se tornou
evidente com um distanciamento temporal, quando passaram a ser olhados com
interesse e foram integrados no vasto caldeirão que configurou a chamada cultura
popular. Afinal, na época em que foram produzidos, além dos óbvios
consumidores – pessoas proeminentes ou de alto poder aquisitivo, clubes
masculinos e casas de prostituição -, só despertaram a atenção das autoridades.
O fato desses primitivos registros da atividade sexual serem caso de polícia
naquela época – e assim permaneceram até os anos sessenta do século passado
- não deixa de ser coerente. Afinal, observando hoje em dia esses curtos
documentos visuais, dá para ter uma clara idéia do impacto que efetivamente
causaram – e ainda são capazes de causar. Mesmo em uma época, como a
nossa, onde o sexo transpira de cada anúncio publicitário, novela de tv ou mesmo
filmes destinados ao público em geral. Eles ainda retêm uma forte dose de
vulgaridade, explicitação e perversão, que se tornam intensas não só por estarem
vinculados a um período distante de nosso universo – o de nossos avós e bisavós
– como pela surpresa de não ficarem em nada atrás em exposição das atuais
produções pornográficas – estas, aliás, atreladas a uma dimensão diferente dos
stag, de que são herdeiras. Equivocadamente tenta-se comparar graficamente
estes antigos exemplares com os filmes atuais. Leva-se em conta o fato desses
últimos serem considerados mais ousados e tecnicamente superiores aos riscados
remanescentes, mudos e em preto e branco. Grosso modo pode proceder, se os
categorizarmos junto aos filmes pornôs a que estamos acostumados, deixando de
270
lado significativas distinções e esquecendo a evolução do filme de sexo enquanto
vertente do cinema, com suas diversas frentes e direcionamentos. E dentro de
nossa compreensão, eles são tão ousados – ou mais – do que as coloridas,
manipuladas digitalmente e estéreis produções atuais, em que corpos depilados
construídos em academias de musculação, com suas próteses, silicones e
tatuagens, são tragados em um paraíso de ânus dilatados, “consolos”
fosforescentes e triplas penetrações. Os stag movies chocam tanto pela falta de
familiaridade de suas imagens – corpos ao natural, com seus excessos e
deficiências -, quanto pela autenticidade que nelas estão impressas, a revelação
de uma sexualidade em que a simplicidade não é impedimento para a falta de
limites e excessos. Caráter acentuado pelo primitivismo formal, fazendo com que
se enquadrem em sua maioria, no padrão dos filmes rodados antes do advento do
som: curta duração - geralmente eram rodados em um único rolo de película (ou
menos, até) -, e freqüentemente sem uma coerência narrativa. Como bem observa
Williams (1989, p. 60), os stag permaneceram desse modo bastante tempo após a
transição do cinema primitivo para o longa-metragem sonoro. Tanto que para
alguém não familiarizado com a moda e cortes de cabelo, fica difícil muitas vezes
distinguir se determinado exemplar foi realizado nos anos vinte ou cinqüenta do
século passado. Mesmo com as mudanças ocorridas no cinema comercial com a
chegada do som, eles permaneceram silenciosos, já que se considerava o som
supérfluo à ação e necessitaria incrementos técnicos demasiado caros. O preto e
branco continuou em vigor até o fim dos anos sessenta, sendo que a cor vai
aparecer nos filmes em super 8 de sexo explícito – que ainda seguiam o mesmo
padrão formal - que substituíram os stags em 35 mm e passaram a ser produzidos
na segunda metade da década de 1960. O super 8 reinou até meados do decênio
seguinte, ficando obsoleto com os novos rumos tomados pela indústria do filme
pornográfico e o advento do videocassete.
Ainda é complicado traçar a história das produções desse período. Até
relativamente bem pouco tempo, os stags do primeiro cinema eram dados como
271
perdidos, sendo que até meados dos anos 1970, os historiadores do gênero se
embaraçavam com a total falta de documentação disponível. O que refletia em
textos repletos de especulações e sinopses de filmes deduzidas. Acreditamos que
a popularização do videocassete permitiu que os stag movies que sobreviveram e
hoje circulam fossem resgatados dos porões e coleções particulares e
reproduzidos. Um grande passo, ainda que dificilmente se obtenham informações
relevantes sobre a sua produção. Os créditos, se existem – a maioria, quando
muito, só possui título –, são fictícios e jocosos: L. M. Heavyhang, por exemplo,
assina The Modern Gigolo, produzido pela Fuckaduck Films, que tem em seu cast
nomes significativos como Gigolo Gus e Bigtit Mary. Também não existem
registros impressos, como anúncios ou resenhas, o que é óbvio, dado o caráter
clandestino. A própria distribuição era feita de modo a não deixar rastros (afinal,
seu flagrante causaria sérios problemas legais): comumente eram levados de
cidade em cidade por um projecionista que os exibia nos locais combinados,
recebia em dinheiro pelo serviço e sumia no dia seguinte. Ou seja, perfazem o
pesadelo de qualquer historiador: todos os envolvidos com a produção ou
distribuição desses filmes não deixaram rastros. Mas se uma história definitiva dos
stag movies nunca poderá ser escrita pela falta de documentação, vários aspectos
podem ser relevados, tomando por base a sua construção narrativa e pictorial.
Estes filmes, deve-se ressaltar, foram rodados em quase todos os
países ocidentais onde estavam disponíveis meios de produção cinematográfica,
inclusive os de tradição católica. Na Espanha, por exemplo, temos os registros de
algumas películas, arquivadas na Filmoteca de la Generalitat Valenciana e
disponibilizadas com o apoio da Filmoteca Española, que teriam sido
encomendadas por um certo Conde de Romanones. Este, encarregado da
empreitada pelo Rei Alfonso XIII, para uso privado. Isso é atestado em entrevista
radiofônica realizada em 1996 com o operador de câmera Albert Gaset, única
pessoa ainda viva então, que trabalhara na produção destes stags espanhóis.
Dessa safra damos destaque a El Ministro, El Confesor e Consultório de Señoras,
272
todas produções dos anos vinte. Também a França deixou um legado
surpreendente, com uma apurada técnica, em um período em que ainda
engatinhava-se em termos de narrativa. Infelizmente, apesar dos exemplares
disponíveis estarem bem preservados, não fornecem dados como datas ou títulos.
Mas podemos, de acordo não só com a observação, mas com as poucas
referências que encontramos, situa-los entre 1899 e 1910. Em um destes, o que
chama a atenção é o uso da montagem paralela. Na narrativa, um casal
enamorado caminha por uma trilha campestre, entre beijos e abraços. No interior
de uma residência, outra dupla: ela se insinua para o marido, que não quer nada
além de ler o jornal. Ela vai à janela e observa o casal anterior, em carícias cada
vez mais ousadas. Dali,vê o homem levantando a saia da companheira, e esta
correspondendo às carícias. A mulher da janela percebe ali uma oportunidade de
ouro: leva o marido até seu posto de observação, estimulando sua libido com a
visão do jovem casal em pleno ato sexual. Assim, consegue atingir seu objetivo. O
curta prossegue, mostrando paralelamente as atividades dos dois casais.
Bastante ousadas, essas películas européias são mais elaboradas do
que a grande maioria das norte-americanas. Ainda que em muitos casos bastante
teatrais, fica evidente na mise-em-scène um apelo naturalista, em que pessoas
comuns e sem idealizações são fotografadas em atividades sexuais explícitas.
Fator ressaltado pelo fato de que esses indivíduos não eram atores no sentido que
geralmente se dá à palavra. Do mesmo modo como ocorria com modelos de fotos
licenciosas, a identidade de muito poucos era conhecida. Na verdade, podemos
atribuir-lhes a denominação de atores sociais, já que eram, em sua maioria,
pessoas recrutadas nas classes mais baixas, quando não na condição de
marginalizadas, aí incluídos imigrantes pobres e prostitutas. Existem, inclusive,
evidências do uso de deficientes mentais, com pouco ou nenhum conhecimento
do que estavam fazendo. Para esses indivíduos, tendo em vista a situação
enfrentada pela maioria, ou seja, uma vida de sofrimentos, privações e penosos
trabalhos, posar para fotos ou atuar em filmes pornográficos se justifica.
273
Dificilmente se veriam negros, já que os stags refletiam uma cultura sexual, na
época altamente segregacionista, notadamente nos Estados Unidos. Dessa
população de proscritos se originaram as “caídas” que se despiam sem vergonha
ou dissimulação. Muitas delas, como podemos ver, aparentam ser mais velhas do
que se poderia esperar, e mais endurecidas. O que confere credibilidade à
construção narrativa. Mas se as pessoas e cenários possuem certo vínculo com o
“real”, as situações e personagens trabalham a subjetividade, trazem à tona toda
uma variedade de situações e práticas sexuais que certamente explicitam os tabus
da época e alfinetam os poderes vigentes. Fetichismo e homossexualismo são
mostrados, inclusive, com mais desenvoltura do que nos filmes feitos na segunda
metade do século XX. Em um desses curtas, sem referências, encontramos um
surpreendente mènage a trois: a mulher, deitada de costas, é penetrada pelo
amante enquanto este é sodomizado por outro indivíduo.
A irreverência e inovações presentes nos stag movies são notáveis,
sendo sua marca uma espécie de alegria dissoluta, em que os indivíduos se
entregam uns aos outros em um carnaval profano, marcado por enlevados
excessos corporais. O grotesco torna-se voluptuoso, nas formas rotundas das
protagonistas e nos detalhes capturados pela câmera de corpos nus e orifícios
sendo expostos ou preenchidos. Grotesco que, devemos lembrar, está
condicionado ao nosso olhar, já que naquele período a estética dos corpos seguia
outros parâmetros e variava de lugar para lugar. As mulheres dos filmes europeus,
notamos, são geralmente mais roliças do que as colegas norte-americanas. Nas
produções espanholas que citamos, as protagonistas e coadjuvantes são
especialmente gordas, exibindo com orgulho suas formas exuberantes, sendo
dado especial detalhe para as generosas nádegas marcadas por celulites. Como
pode ser conferido nas duas ilustrações a seguir, tiradas do filme espanhol El
Confesor:
274
A ação nos stags, muitas vezes não é compreendida pelo todo: mais
importante é o detalhe. São comuns, a despeito da continuidade, as tomadas em
close dos órgãos sexuais, notadamente a vulva, que é escancarada
deliberadamente e preenche a tela com a visão de seu interior. Ou mesmo da
penetração genital durante o ato (ou meat shot): inserts – inserção de plano, não
necessariamente em continuidade espacial ou temporal (ABREU, 1996, p. 46).
Como bem observa Williams (1999, p. 72):
275
Esta é a tomada quintessencial do stag film: um close-up da penetração
que mostra que a atividade sexual está se realizando. Embora a maioria
dos filmes pornôs não estejam completos sem uma grande quantidade de
meat shots em qualquer seqüência de sexo, estes filmes geralmente não
terminam seus números do modo que o stag film tipicamente faz, com a
evidência visual da penetração. A forma posterior do gênero tem uma
meta mais elevada: provar que não só a penetração, mas também a
satisfação teve lugar. Satisfação que pode ser distinguida de várias
maneiras.
E é com honestidade descritiva que temos momentos como a curiosa
seqüência em que o pênis do protagonista de The Modern Pirates não consegue
ficar no interior da vagina da parceira, escapulindo continuamente e fazendo com
que a mulher o ajustasse de novo. A ejaculação externa, ainda sem a
obrigatoriedade que se tornaria padrão nos pornôs contemporâneos, já aparece
conferindo autenticidade. Em The Radio Man o protagonista ejacula sobre o torso
da companheira de cena. Segundo Williams (1999, p. 73), provavelmente a
maneira mais notável encontrada pelo cinema pornô para fechar a narrativa da
ação sexual foi com a recente convenção da ejaculação externa (money shot, no
jargão da indústria). De acordo com a autora, embora o stag film ocasionalmente
mostre a ejaculação peniana – algumas vezes inadvertidamente -, somente em
um período posterior de seu desenvolvimento essas tomadas passaram a ser
vistas com regularidade. E só se tornaram a evidência visual do clímax da ação
sexual com o estabelecimento do cinema pornô, muito tempo depois. O que irá
refletir a ambígua relação da pornografia com a subjugação da “realidade”
concretizada na imagem do pênis - figura central da mise-em-scène, como nos
lembra Bill Nichols (1991, p. 217) – ejaculando em detalhe (cum shot) sobre a
mulher, contra a tendência natural da ejaculação interna. Ou seja, a realidade só
se confirma com a visualização da emissão de esperma.
A nosso ver, no stag, não é a narrativa em si que conta, mas o que eles
documentam, tanto da época que refletem, quanto da própria evolução do cinema
como meio de expressão, pois utilizaram toda a técnica e trucagens do então
276
nascente meio visual. Fica evidente que por trás das câmeras estavam
profissionais experientes, inclusive porque o equipamento necessário para
capturar imagens e posteriormente montá-las era bastante caro na época. Esse
profissionalismo e vínculo com o processo cinematográfico pode ser bem ilustrado
com The Modern Magician, rodado por alguém certamente inspirado nas
trucagens de Georges Méliès. Na verdade, este curta é uma brincadeira, uma
bem-humorada experimentação técnica com o sexo como pano de fundo. Nele,
conforme vai sendo narrado através dos sugestivos intertítulos decorados com
desenhos eróticos, um mágico visita elegante e bela dama para demonstrar os
seus poderes. Já deixando claras as suas intenções, começa despindo com
passes mágicos a senhorita, começando pelas roupas de baixo, que faz surgirem
em suas mãos, e depois desaparecendo com o vestido, deixando a jovem
completamente nua. Hoje ingênuos, esses truques certamente exigiam prática e
deslumbravam o espectador, afirmando o ilusionismo da arte cinematográfica. O
Méliès do sexo, já despido, passa a apresentar os seus números: tira um coelho
de dentro não da cartola, mas da vagina da moça; faz brotar e inflar um comprido
balão do mesmo lugar; e o mais divertido: o pênis destacável. Ele retira e coloca o
membro na própria púbis (uma bem elaborada prótese), para deleite da dama. Na
seqüência, entregam-se ao sexo convencional. Este tipo de absurdo cômico está
presente em grande parte dos bem-humorados stags. The Modern Gigolo, só para
complementar, começa com uma mulher, fumando nua sentada no sofá, exalando
a fumaça pelo sexo.
Se em geral os filmes europeus parecem mais bem elaborados, alguns
exemplares dos stag norte-americanos não ficam atrás, se mostrando impecáveis
hoje em dia, tanto sob o ponto-de-vista da narrativa quanto da técnica. O que pode
ser conferido, inclusive, no mais antigo exemplar conhecido entre os realizados
nos Estados Unidos: A Free Ride, também conhecido como A Grass Sandwich,
datado como realizado em 1915, mais provavelmente entre 1917 e 1919 (não há
um consenso sobre isso) e pertencente à coleção do Instituto Kinsey.
277
Dirigido e fotografado pelos pseudônimos, respectivamente, A. Wise
Guy e Will B. Hard, inicia com um estimulante letreiro:
“Em lugares ao ar livre, onde homens são homens e mulheres são
mulheres, as colinas estão cheias de romance e aventura”.
O filme remete ao naturalismo de que falamos e por isso mesmo, nos
remete à pintura Le dejeuner sûr l’herbe, de Manet, pela temática naturalista e
licenciosidade presente. Começa em um cenário campestre, com duas senhoritas
caminhando por uma estrada de terra. Elas são abordadas pelo motorista de um
calhambeque, que oferece carona, prometendo comportar-se. Tão logo as moças
sentam no banco do carro, ele começa a boliná-las, sendo suas investidas
recusadas. Mais à frente, atendendo ao chamado da natureza, o homem para o
carro e se dirige ao meio do mato para urinar. Um longo close pega sua mão
segurando o pênis de lado, enquanto se alivia com um forte jato de urina.
Curiosas, as garotas observam de longe, lançando olhares gulosos e cochichando
maliciosas. O motorista se vira de frente, de modo que a câmera pegasse de
frente o membro, pendente para fora da braguilha, sendo sacudido. Em seguida,
as moças resolvem urinar também, agachando sobre a relva. O homem observa,
ficando excitado. De volta ao carro, oferece uma garrafa de bebida para elas, e
convida uma para dar uma volta. Afastando-se, o casal começa a se esfregar. A
representação para a câmera fica evidente quando ele despe a moça, primeiro
mostrando as suas nádegas e depois a virando de frente, para que fosse
destacada a púbis. A mulher mete a mão dentro da braguilha do motorista e tira o
pênis para fora. A amiga, que ficara no carro, vai até eles, encontrando-os em
ação, o homem por cima. Ela se aproxima do casal, já com o vestido levantado e a
mão sobre o sexo. Close nas nádegas do sujeito, movimentando-se no ritmo da
penetração. Ela pede para que ele lhe dê um pouco, ficando de joelhos e
empinando as nádegas. Ao que ele atende, pegando-a de quatro. A outra,
278
saciada, fica deitada ao lado, com as pernas escancaradas, mostrando a vulva.
Após uma rápida felação, o filme termina, com o trio seguindo o seu caminho.
A Free Ride (cerca de 1915).
Como podemos conferir, a essência destes filmes é a irreverência e
este estado de espírito reveste as cenas mais grosseiras. Mas que, dentro do
nosso ponto-de-vista dão veracidade documental, pois apesar da encenação,
atividades como a cópula, a ejaculação e as funções fisiológicas como o urinar
perfazem o rebaixamento que traz do mundo idealizado para o cotidiano concreto.
Desse modo, desmistificam temas vistos - inclusive atualmente – como marginais,
como o bestialismo e a escatologia. Tanto que parecem ser bastante comuns
279
tomadas de homens e mulheres urinando nos stag movies. Em Keyhole Portraits,
onde um faxineiro observa por buracos de fechaduras e frestas de portas as
atividades íntimas dos moradores de um sobrado, a câmera focaliza em detalhe
uma mulher nua urinando no vaso sanitário. Também nada convencional é a
seqüência onde uma garrafa é usada como “consolo”. Aliás, o uso de objetos é
uma prática comum. Em The Radio Man, um técnico de rádio excitado graças às
“pílulas de ereção do Dr. Pet”, insere no sexo de sua parceira desde os medidores
de seu potenciômetro – que em um momento de nonsense indica carga máxima -,
até válvulas e alicates.
No que diz respeito ao bestialismo, interessante e inusitado é The
Ocean, também rodado, dentro da tendência de que falamos, tendo a natureza
como cenário, e um bom exemplo do caráter irreverente do stag. Um desocupado
observa, na praia, três garotas se despirem e correrem alegres para o quebra-mar.
Ele pega as roupas e promete devolvê-las, com um acréscimo de cinqüenta
dólares, se elas em troca, fizerem sexo com ele.
The Ocean: o espertalhão e as três moças.
280
As moças aceitam desde que, ele fique por trás de uma cerca de
madeira, e tudo seja feito através de um orifício. Assim combinado, ele fica do
outro lado e escolhe qual delas seria a contemplada tocando às cegas, pelo
buraco, as vulvas. A que apresentasse melhor cheiro ganharia. Escolhida a
garota, ele tira o pênis para fora e passa pelo buraco, para que fosse feito o
serviço. Enquanto uma das jovens masturba o sujeito, as outras, maliciosas,
trazem uma cabra, que encaixam no pênis do infeliz. Este, exultante, acredita ser
a melhor garota que teve em toda a sua vida. Uma inesperada lição de moral
aparece no final quando, em um segundo encontro, uma da moças finge estar
grávida para tirar mais algum dinheiro do “otário”.
Três garotas, uma cabra e um “otário”.
Também alusão a outras más conseqüências do sexo, como doenças
venéreas faz parte do senso de humor negro dos filmes do período, onde era
comum uma piada ser o motivo da trama. Em The Pickup, citado por Alex de
Renzy em seu documentário A History of the Blue Movie (1970), um espertalhão
mal-intencionado leva uma mulher para andar de carro. Parando a uma certa
distância, pede que ela ceda aos seus avanços. Sendo recusado, ele a larga na
estrada. No dia seguinte, ele a leva mais longe ainda. Nova negativa e a pobre
281
mulher fica novamente a pé. No terceiro dia, após muitos quilômetros percorridos,
ela acaba cedendo. O homem pergunta por que ela não deu logo no primeiro
encontro, poupando-lhe todo esse trabalho. Ela responde que poderia andar uns
quinze ou trinta quilômetros, mas por nada andaria cinqüenta para poupar alguém
de sua gonorréia.
Algumas vezes os stags saíam dos interiores e ambientes cenográficos,
ou mesmo das paisagens campestres e marítimas, para reforçar seu vínculo com
o documental ao retratar o espaço público urbano. O melhor exemplo que
encontramos é o filme New York Honeymoon, realizado em algum ponto da
década de 1920. Conta a chegada de Mary e Bill a Nova York para desfrutarem a
lua-de-mel. Temos uma longa seqüência inicial, com a chegada de um trem à
estação, rodada de forma semelhante ao filme pioneiro de Lumière, inclusive no
posicionamento da câmera. Em seguida, o casal passeia pela metrópole, em meio
aos carros, pedestres e à arquitetura local de grandes edifícios, com ênfase no
Empire State, que visitam. O filme toma outro rumo quando o casal decide deixar
a viagem turística de lado para se dedicar a atividades mais gratificantes no quarto
do hotel, com direito a preliminares como masturbação feminina, felação e um
animado “sessenta-e-nove”.
New York Honeymoon: visita ao Empire State e sexo no hotel.
282
5.3. O documentário nudista
Paralelamente, a nudez permitida nos circuitos oficiais, como já
discutimos nos primeiros capítulos, era a de aborígenes (ou afro-americanos
assim caracterizados) que apareciam em diversos filmes e documentários durante
as primeiras décadas do século XX. Também, durante o final dos anos 1910 e
início da década seguinte começaram a se difundir os nudies, cuja origem sem
dúvida é mais antiga. Estes, diferentes dos stags, não apresentavam cenas de
sexo explícito, mas mulheres que se exibiam sem roupa, apresentando algum
número de dança sensual ou protagonizando um sketche erótico de caráter
humorístico com um parceiro ou parceira.
Nos interessa particularmente outra modalidade do documentário de
exploração surgida ainda nos anos trinta: os documentários nudistas. É dessa
época o mais famoso e considerado o pioneiro – ainda que não o primeiro: Elysia
(1933), criação do produtor Bryan Foy. Outros filmes da década vieram da
Alemanha, inclusive os rodados pela jovem cineasta Leni Riefenstahl que,
mostrando a nudez de jovens alemãs, buscava inspirar um modo de vida mais
saudável, natural e sem dúvida, superior. Na verdade, como observa Schaefer
(1999, p. 291), quando o nudismo se tornou objeto de exploração no cinema, o
movimento nudista já se fazia presente. Iniciado na Europa, na virada do século,
teve como primeiro manifesto o livro Die Nacktheit. Publicado na Alemanha pelo
autor Richard Ungewitter, pregava uma sociedade utópica em que todos viveriam
sem roupas, seguindo rigorosas normas que preconizavam uma vida saudável e
incluíam o vegetarianismo e a abstinência de álcool e tabaco. À boa receptividade
do livro – provavelmente menos pelas convicções do autor do que pelas fotos
mostrando os discípulos do autor nus em cenários campestres – seguiu-se a
abertura do primeiro campo de nudismo próximo a Klingberg, na Alemanha.
283
Estima-se em cerca de cinqüenta mil os nudistas alemães em 1926, sendo que o
movimento espalhou-se para a França, chegando à conservadora Inglaterra. A
filosofia do nudismo pregava os benéficos efeitos dos banhos de sol nos corpos
nus em ambientes naturais. E que a nudez permitia ao corpo uma liberdade de
ação e movimentos irrestrita. As roupas, nessa concepção, instilavam vergonha e
falta de modéstia. Sendo assim, defendiam uma sociedade mais igualitária, em
que as crianças poderiam crescer confortáveis com seus corpos e livres de
neuroses sexuais. Além disso, consideravam que o corpo não devia servir a
propósitos levianos ou exploração sexual e que qualquer atitude ou
comportamento diferente dessa visão era contrário ao que pregavam e não
deveriam encontrar lugar entre eles. Como sabemos, os diretores de filmes
exploitation tinham outra idéia sobre o uso do corpo como objeto de leviandade e
exploração sexual.
O movimento nudista chegou aos Estados Unidos em 1929 através de
Kurt Barthel, um imigrante alemão. Três anos depois, conseguiram obter
permissão para a abertura do primeiro campo nudista naquele país, em uma
propriedade que adquiriram próxima a New Jersey. A pequena associação
cresceu silenciosamente, mas logo ganharia importante incremento pelas mãos de
dois singulares indivíduos: o reverendo Ilsley Boone, carinhosamente apelidado de
“Tio Danny” e Bryan “Brynie” Foy, filho de um famoso ator de vaudeville envolvido
na produção de filmes desde 1920 e responsável pela direção de The Lights of
New York (1928), o primeiro filme sonoro da Warner Bros.
Tio Danny já era cinqüentão quando descobriu as benesses do nudismo
e se juntou à American League for Physical Culture, a associação criada por
Barthel. Graças às suas habilidades em oratória e estampa imponente e
carismática, rapidamente tornou-se figura proeminente no movimento. Logo criou
a sua própria organização – International Nudist Conference – e lançou a primeira
revista nudista do mercado: The Nudist (que depois tornou-se Sunshine & Health).
A publicação causou alvoroço pela novidade: além dos artigos sobre nudismo, era
284
ilustrada com fotos de nudistas europeus. Infelizmente, o que deve ter frustrado
muitos compradores interessados em emoções mais fortes, as genitálias foram
propositalmente borradas. É interessante levar em conta que a fotografia de teor
nudista se estabeleceu por volta da década de 1920, dissociada do tipo mais
comum de fotografia ao ar livre que remete à virada do século. Esse tipo de
representação, em sintonia com as questões corporais e filosóficas levantadas
pelo movimento, ainda em seu berço alemão, ganhou força com a necessidade de
material ilustrativo para as publicações do movimento, sendo responsáveis, entre
outros, fotógrafos como Lotte Herrlisch, Kurt Reichert e Gerhard Riebicke. Esse
material, além dos estereotipados cenários naturais, privilegiavam os modelos em
assexuadas poses que reproduziam movimentos de dança ou modalidades
atléticas e esportivas.
Mas se Tio Danny promoveu a causa nudista através de suas revistas,
Bryan Foy atuou em outra frente, o cinema, com o mesmo intento, através do
documentário Elysia, Valley of the Nude. Filme que não foi apenas a sua
realização mais famosa, mas também sua entrada para os filmes exploitation,
prática que lhe garantiria posteriormente (1935) liderar toda a produção de filmes
B da Warner. Elysia foi também o primeiro filme de temática nudista rodado nos
Estados Unidos. Estima-se que em 1933, alguns filmes alemães importados por
exibidores locais ainda circulassem desde 1920 no mercado norte-americano,
como This Nude World e Back to Nature (também intitulado This Naked Age).
Ambos panorâmicas de campos nudistas ao redor do mundo, com cenas de nudez
frontal feminina que muitas vezes eram retiradas para atender restrições locais.
A produção de Elysia começou em setembro daquele ano, com Foy e
equipe se instalando na recente Fraternidade Elysia, na Califórnia. Vale citar que
pouco depois, em novembro, outro travelogue nudista estava em produção, The
Nudists (ou Back to the Sun). Com um competidor em vista, Foy prontamente
finalizou seu filme para lançamento com uma interessante publicidade, impressa e
distribuída aos exibidores, para que não confundissem Elysia com “qualquer outro
285
assim chamado filme nudista”. A publicidade em nada fica a dever às chamadas
que se tornaram padrão nos filmes exploitation, sempre alardeando as pretensas
qualidades da produção. De acordo com o material publicitário, Foy alertava para
que “não tenham a idéia de que, por causa da exibição de outro filme nudista na
cidade, Elysia não pode ser exibido por aqui. Elysia é americano... é autêntico – e
entretenimento – honesto, divertido e instrutivo. Elysia é romântico e dramático...
Há uma história em Elysia... Há juventude, beleza... Há fato. Elysia não é uma
miscelânea de cenas de newsreels misturadas e empurradas para o público...
Elysia é real... dará satisfação e fará a audiência sair do cinema comentando”.
Sobre o “real” em Elysia, há controvérsias, como veremos. Mas em
parte, Foy estava sendo honesto em seu anúncio. Afinal, era comum que os filmes
nudistas anteriores – e que ainda estavam no mercado – fossem colagens de
cenas tiradas de cine-jornais, coisa que o diretor evita na maior parte do filme,
sendo ele e sua equipe responsáveis por todas as tomadas rodadas no campo de
nudismo. Aí estava o pioneirismo do filme.
O filme é construído seguindo uma fórmula já padrão e que seria ainda
muito utilizada, inclusive nos documentários educacionais que mencionamos
anteriormente. Uma mescla de ficção, que serve para situar o espectador no
universo a ser introduzido, com o documental. O caráter propagandístico do filme
é evidente - o que nos leva a crer que ou o realizador realmente tinha afinidade
com o movimento nudista, ou o mesmo se utiliza dessa empatia para explorar as
cenas de nudez. Isso já está evidente na abertura, que procura dar justificativas à
realização de Elysia , no letreiro introdutório:
“Este filme foi fotografado no maior campo de nudismo da Califórnia,
perto da Lagoa Elsinore, no lugar denominado ‘Campos Elíseos’. Um dos cantos
mais aprazíveis da Califórnia. Nosso objetivo é demonstrar os benefícios do sol e
286
do ar sobre o corpo humano. O progresso do nudismo no mundo inteiro é baseado
na saúde, tanto do corpo como da mente”.
Em outro letreiro, uma passagem do gênese pretende um caráter moral
e uma prerrogativa cristã: “Estavam ambos nus, o homem e sua mulher, e não se
envergonhavam”.
A fórmula padrão já se estabelece na primeira seqüência, quando o
editor de uma revista encarrega um de seus funcionários de fazer uma matéria
sobre o nudismo, assunto principal de uma revista que tem em mãos. Com a
relutância do repórter, pouco à vontade com o tema, ele explica – iniciando a
jornada didática do filme – que o nudismo está progredindo a passos largos, que
um importante jornal já publicara uma matéria sobre nudismo e saúde, e um juiz
em importante cidade norte-americana teria dito que há demasiado puritanismo no
mundo e que o corpo humano não é indecente.
O primeiro lugar aonde o repórter vai em busca de informações é em
uma livraria, onde a vendedora informa a grande procura de livros sobre o
assunto, e indica uma autoridade no assunto. Em seguida, no consultório do Dr.
King – incorporando a figura tradicional do especialista, o sábio moderador acima
do bem e do mal -, Mack, nosso repórter, ganha uma aula sobre a filosofia nudista.
King projeta um filme – as únicas cenas de arquivo do filme -, que nos leva a uma
outra dimensão de Elysia, a documental. As imagens projetadas tornam-se as
principais, e a voz de King, em off, vai fazendo as asserções necessárias.Começa
com a imagem de dois expoentes da Grécia antiga: Heródoto, que teria defendido
a helioterapia (“é necessário expor o corpo ao sol para gozar de boa saúde”), e
Hipócrates, também adepto da exposição solar. Após um breve histórico do
nudismo, o repórter pergunta – um jogo de perguntas e respostas semelhantes
aos utilizados nos filmes de sala-de-aula – para que serve o nudismo no momento
atual e quem são os praticantes. O que serve de gancho para novas explanações
287
em off, tendo como pano de fundo um travelogue sobre aborígenes africanos.
Segundo o doutor, três quartos da humanidade são constituídos por nudistas e
que na África, o nudismo é necessário à saúde. Ressaltamos que as imagens não
possuem características que realmente se amarrem ao contexto, sendo uma
colagem de cenas de arquivo “africanas” em que os nativos seminus em
atividades variadas ganham significado somente graças às palavras do narrador.
Acabam – imagem e voz – se articulando, podemos dizer, artificialmente. Ou seja,
separadas tornam-se vazias de significado. O filme também reflete a mentalidade
do período, em que o colonialismo e a supremacia ocidental ainda eram fortes.
Ainda que valorize o bem estar físico, resistência e estrutura corporal bem
desenvolvida dos nativos mostrados, o que seria reflexo da exposição dos corpos
despidos ao sol, enfatiza que “essas raças selvagens não tem a estrutura
muscular de um lutador, mas de um animal da selva. E que se o homem branco
prestasse atenção ao seu desenvolvimento físico, com sua inteligência superior
venceria o selvagem em qualquer competição física”. Em toda a aula, é reforçada
a distinção entre selvagens e civilizados, de modo a enfatizar que, a despeito das
qualidades em comum (os benefícios solares em corpos nus), o nudismo civilizado
se fundamenta intelectualmente.
O repórter acaba conseguindo do Dr. King a permissão para visitar um
campo de nudismo. Acompanhado da secretária do médico, Miss Kent, chega aos
“Campos Elíseos”, onde é recebido por um dos freqüentadores que pede-lhe que
assine um termo em que reconhece como sadios, morais e beneficentes os
objetivos do campo. Também promete comportar-se e não ofender os membros
da comunidade. De longe se vêem alguns nudistas circulando pelas trilhas. A
filosofia nudista é novamente explicitada por um porta-voz do grupo (na verdade,
Hobart Glassey, presidente de Elysia). Em seguida, o repórter é convidado a
também ficar nu para melhor conhecer as atividades do campo e interagir com os
nudistas. É quando o caráter de documentário passa a primeiro plano, mostrando
os nudistas em seus afazeres: praticando esportes, cuidando das plantações,
288
consertando artefatos diversos e desfrutando as horas de lazer deitados em
espreguiçadeiras lendo ou entregues a jogos-de-salão. Os figurantes são todos
nudistas, realmente, sendo que os únicos atores são os condutores do filme: o
médico, Mack, a atendente da livraria e a bela Miss Kent. O Dr. King continua
presente, como cicerone do repórter e do espectador, que introduz no cotidiano
nudista, sempre com comentários edificantes. Esse apelo propagandístico se
rende obviamente à exploração. Mesmo não havendo cenas picantes, ou alusivas
a sexo, o que contrariaria o moralismo enunciado. Aliás – diga-se de passagem -,
é interessante constatar como um filme sobre nudismo mostra tão pouco. Há
corpos nus na maior parte de Elysia, durante as seqüências rodadas no campo de
nudismo, mas pouco se vê. Eles estão, na maioria das vezes, longe da câmera, e
quando são pegos com mais proximidade, o naturalismo é comprometido pelo
posicionamento elaborado de modo que sejam vistos de perfil, ou com braços e
pernas cobrindo estrategicamente órgãos genitais, principalmente. É uma nudez
velada, nunca frontal. O que mais se mostram são nádegas e seios, estes sempre
que possível, meio encobertos. Mesmo assim, em se tratando de uma produção
da década de trinta, esse pouco se torna demasiado, tanto para o público ávido,
quanto para os censores e ligas de decência.
Elysia: didatismo e exploração.
289
A exploração da nudez é mais evidente quando a secretária de King, e
discreto interesse romântico do repórter, surge em todo o seu esplendor. Filmada
de modo completamente diferente das outras mulheres do filme, mais se
assemelha a uma pin up de calendário, conforme podemos conferir abaixo:
Mas Elysia, em seu caráter documental, é ambíguo graças,
principalmente ao moralismo inerente. O que provavelmente confundiu a cabeça
das autoridades e responsáveis pela censura da época. Pois se ele apela para a
nudez em função de uma evidente atração mercadológica, ele é conservador, pois
dessexualiza o indivíduo, tendendo a um tipo perigoso de fundamentalismo
cristão. Mostra os nudistas em cenário idílico, brincando como crianças, sem
desfrutarem do fruto proibido. A regra é rigorosa, conforme alertado ao repórter:
comporte-se bem, ou será excluído. Expulso do paraíso, onde reina a harmonia, a
nudez é pura e o sexo pecado. Mensagem que com certeza não foi levada em
consideração pelos jovens que assistiram Elysia em busca de emoções mais
fortes, e no escurinho do cinema deixaram-se esvair nas curvas de Miss Kent.
290
Dr. King, Miss Kent e Mack, o reporter: o trio protagonista de Elysia.
Conforme podemos concluir, as estratégias utilizadas para trazer o
nudismo às telas tinham por princípio se sustentar através de uma pretensa
aproximação científica. O que legitimava os objetivos de filmes como Elysia, This
Nude World, e The Nudists, sendo que estruturalmente, tinham muito em comum
com os filmes que exploravam o exótico, no período. Este caráter é claramente
exemplificado em Elysia, ganhando ênfase na didática projeção feita pelo Dr. King
a Mack, o repórter, de filmes que mostravam a prática do nudismo entre povos
primitivos. Outro filme, Nudist Land (1937), que como de hábito foi exibido com
diversos títulos, também propunha um ponto-de-vista antropológico mostrando
cenas oriundas da África, Bali, Somoa e outros rincões onde trajes sumários eram
costume. Essa ênfase em um estado de vida natural, que traz subentendida uma
crítica à vida moderna, também aproxima os filmes nudistas, em discurso, com o
exploitation clássico.
Estes filmes também carregam o que Schaeffer (1999, p. 296)
denomina “história-da-vida-real”, ou seja, um esteio com o público, elaborado com
a inserção no documental de uma situação vivida por pessoas comuns, que vai
justificar e permear toda a narrativa. Do mesmo modo que serviu a aventura do
repórter em Elysia, Nudist Land parte dos conflitos do casal Betty e Jack Weston,
291
que tem o casamento e a saúde ameaçados pelas pressões da vida urbana.
Enquanto Jack está sempre ocupado trabalhando, Betty adoece. Após uma
estadia no hospital, uma amiga a leva para um campo nudista, onde ela recupera
a saúde. Por conta disso, Jack acaba também conquistado pelo nudismo.
É interessante que as maiores críticas a esses documentários partiram
não dos moralistas, mas dos próprios grupos nudistas. Se as cenas passadas em
campos eram verossímeis para o grande público, foram consideradas um embuste
para os praticantes do nudismo. Eles notavam principalmente o fato de que,
apesar do movimento nudista sempre enfatizar uma orientação familiar, de modo
que a maioria dos clubes não permitia a associação de pessoas solteiras –
especialmente homens -, os filmes davam destaque à nudez de mulheres
atraentes, deixando famílias e pessoas mais maduras simplesmente como extras
em segundo plano. O que confirmava o fato de que os filmes nudistas eram
realizados para criar excitação sexual e estimular a audiência, contrariando os
princípios do movimento. A sexualização do nudismo tanto era completamente
oposta à filosofia e propaganda das organizações nudistas, que o citado Hobart
Glassey – presidente de Elysia – manifestou sua frustração e arrependimento pela
participação no filme. De acordo com ele, a mensagem do movimento foi
deturpada, sendo que filmes desse tipo não só eram nocivos ao cinema enquanto
indústria, mas para organizações como a sua. Independente disso, os filmes
nudistas não deixaram de cumprir a função de servir de veículo para o movimento,
apregoando os benefícios do nudismo para o público. O que reflete a ambigüidade
dessa linha de produção, que tinha na exploração da nudez e do sexo sua base.
Como bem observa Schaeffer (1999, p. 297),
pode-se presumir que alguns espectadores iam ver os filmes para
satisfazer a curiosidade sobre o movimento nudista, mas a promessa de
excitação sexual prevalecia. A apresentação no início de This Nude
World, pergunta: “Quem são os nudistas de que ouvimos falar? Como
são e o que fazem? Eles se encontram e se entregam à orgias sob a luz
do luar? São exóticos e imorais?” A resposta para as duas últimas
292
perguntas era, sem dúvida, negativa. Mas pelo simples fato de colocá-las,
os produtores imbuíam os filmes de fortes expectativas de compensação
sexual.
Esse caráter espetacular dado ao nudismo fica evidente na campanha
promocional que envolvia a exibição dos filmes. Segundo conta Schaeffer (1999,
p. 198), quando Elysia entrou em cartaz no Rex Theater, em Seattle, foi
apregoado como o maior evento que o cinema conheceu em anos, sendo a
fachada ornamentada com árvores pintadas e desenhos em tamanho real de
mulheres nuas. Uma grande legenda prometia: “Você verá o que espera, e não
será desapontado”. Ampliações fotográficas em preto-e-branco e coloridas eram
disponibilizadas aos exibidores, mostrando jovens atraentes, inclusive a
onipresente secretária Miss Kent. Nenhuma foto de homens estava presente. A
nudez masculina ainda era um tabu maior do que a feminina.
Pouco depois, em 1940, um forte indício do progressivo afastamento do
documentário nudista da filosofia original do movimento, com uma ênfase cada
vez maior na encenação e na exploração da nudez. Em Nude Ranch,
encontramos todos os elementos centrais dessa vertente: ambientes naturais,
atividades esportivas e recreativas. Com a diferença de que não há uma
justificativa presente através de narração ou intertítulos. Nenhuma asserção sobre
os benefícios da vida natural, como em outras produções. Mas um contínuo desfile
de garotas seminuas, vestindo um arremedo de fantasia em estilo western
configurando um delírio fetichista: chapéus de cowboy; botas; um avental franjado
cobrindo somente a frente da cintura, deixando as nádegas de fora; e um grande
lenço amarrado no pescoço, caindo sobre peito, que se move a cada movimento
revelando vislumbres dos seios.
293
As freqüentadoras do Nude Ranch.
Nessa década, a fórmula original dos documentários nudistas vai
decaindo, com a contínua distribuição de filmes curtos montados a partir de
material de arquivo e uma guinada rumo ao burlesco
30
e ao nudie-cutie
31
.
30 Os filmes burlescos começaram a ser produzidos no pós-guerra, em 1947, pelo Quality Studios,
de Merle Cornell. Eram curtas, protagonizados por dançarinas profissionais das boates de Los
Angeles, se apresentando geralmente tendo um cenário pintado como fundo. Suas protagonistas
foram as primeiras a assumirem de modo ousado a sua sexualidade, ou seja, não eram atrizes
insinuando ou sugerindo uma pretensa sensualidade, mas verdadeiras performers sexuais que não
deixavam dúvida sobre o que vendiam
. Devido às diferenças legislativas regionais que
regulamentavam a censura dependendo do território em que eram exibidos, os filmes burlescos
eram montados em pelo menos três versões. Cada uma mostrando menos (apenas pernas, sorriso
e gestos sugestivos) ou mais. Somente as dançarinas mais ousadas chegavam ao ponto máximo,
desnudando os mamilos ou cobrindo apenas a genitália. Em pouco tempo os burlescos evoluíram
de pequenas exibições de danças sensuais ou simulações de strip-teases para o que seria uma
tentativa de inserir algum tipo de narrativa, de modo ainda incipiente. Um dos pontos altos dos
Burlescos foi o longa metragem a cores Teaserama (1955), que promovia o encontro entre duas
performers que se tornariam lenda: a ruiva de busto avantajado Tempest Storm e a morena Betty
Page (PIEDADE, 2002, p. 109, 110).
31
Os nudie-cuties entraram em cena no final dos anos 50, introduzidos pelo ex-cameraman das forças
armadas e que viria a se tornar um dos grandes nomes do exploitation, Russ Meyer, com The Immoral Mr.
Teas (1959). O enfoque deixou de lado o naturalismo e inseriu mais malícia, com clara alusão à sexualidade,
além de mostrar mais nudez do que qualquer produção feita comercialmente até então. Deu novo verniz aos
tradicionais filmes nudistas. Ao contrário de simularem um contexto educacional ou mesmo filosófico, vão
direto ao seu objetivo: mostrar mulheres nuas e, pela primeira vez, dentro do contexto de uma estrutura
294
Em 1957 o Juiz Charles Desmond atendeu a uma apelação do produtor
Walter Bibo, veterano produtor de filmes burlescos, que teve o seu filme Garden of
Eden (1954), inteiramente filmado no campo nudista Lake Como Club, na Flórida,
proibido em Nova York. Garden of Eden deu novo ar aos filmes nudistas
justamente por ser a primeira produção do gênero rodada em cores, ainda que
sua narrativa se baseasse em Elysia e outros prerdecessores. O importante é que
com sua decisão, o juiz dava a entender que a nudez, em si, não era obscena, e
que poderia ser mostrada livremente, desde que não estivesse vinculada a
qualquer ato remotamente sexual. A partir desse momento, as nádegas e torsos
de homens e mulheres brancas podiam ser mostrados sem reservas, do mesmo
modo que comumente acontecia com as dos negros dos goona-goonas (a que já
nos referimos). O que o Juiz Desmond não sabia é que graças à sua sentença ele
estava inaugurando uma nova era para o cinema exploitation, anunciando a
explosão irremediável do sexploitation.
Com isso, uma nova leva de filmes nudistas, com preços de bilheteria
mais altos que os demais, invadiram as telas entre 1957 e 1963, mostrando a já
conhecida nudez feliz, inócua, em que pessoas sorridentes interagiam sem
nenhuma atitude – nem um olhar – que pudesse ter alguma conotação sexual.
Mas com um acréscimo significativo de nudez e menor necessidade de
justificativas. O que garantia opositores, que os julgavam indecentes e até uma
forma velada de propaganda comunista, o que viria ainda a ocasionar freqüentes
embates com as organizações religiosas, policiais e cívicas.
narrativa ficcional. Assinalam após o período de transição representado pelos filmes burlescos e nudistas, o
início da trajetória do sexploitation. A fórmula básica dos nudie-cuties em geral, resumia-se a uma linha
narrativa sem muita consistência e bem-humorada como pano de fundo para a exibição da nudez feminina
sem sugestão de atos sexuais. Também resumiam-se em mostrar nádegas e, principalmente seios. Em
alguns, mais audaciosos, podemos vislumbrar resquícios de pêlos pubianos. Podemos afirmar que os nudie-
cuties eram um cruzamento mais ousado dos filmes nudistas com os burlescos. Afinal, muitos nos remetem
às apresentações de strippers e dançarinas daquelas produções, com a diferença que as mulheres realmente
tiram as roupas (PIEDADE, 2002, p.113, 116).
295
Com o evidente cansaço dos espectadores em relação à simples nudez
este ciclo de filmes entrou em decadência. Seus produtores, que já sabiam de
antemão que a onda seria passageira pela evidente falta de conotação sexual,
decidiram dar novo fôlego à vertente. Já no final dos anos 50 e início da década
seguinte, incluíram nos cenários idílicos dos campos de nudistas algumas
famosas performers dos filmes burlescos tirando a roupa em função da bilheteria.
Sendo assim, o enfoque deixou de lado o naturalismo e inseriu mais malícia, com
clara alusão à sexualidade, além de mostrar mais nudez do que qualquer
produção feita comercialmente até então, dando novo verniz aos tradicionais
filmes nudistas. O simulado contexto educacional e filosófico, dando a entender o
nudismo como uma forma de vida saudável e alternativa, passou a simples
subterfúgio para a exibição de corpos nus. Um bom exemplo dessa leva é a
produção de 1965 The Raw Ones, que une com destreza o discurso moralista dos
documentários nudistas precursores, sendo dedicado na abertura “aos princípios
do nudismo americano e à coragem da mente que busca a verdade e se empenha
na iluminação”. Dessa forma, o narrador em over enuncia a já tradicional cartilha
sobre as benesses do nudismo, enfatizando o filme como educacional, científico e
sociológico. Porém, o discurso se torna facilmente secundário, perante o
selecionado grupo de nudistas que expõem seus corpos tendo como fundo a
natureza. Sem nenhuma inibição, a câmera se aproxima e passeia entre o grupo,
detalhando não só seios e nádegas, mas também órgãos genitais masculinos e
femininos. As pessoas retratadas são todas jovens e atraentes. Elas interagem em
meio a práticas esportivas, das quais destacamos os exercícios com halteres e a
cama elástica. Fica evidente uma preocupação maior do cinegrafista em se ocupar
das formas femininas. Tanto que são as mulheres as responsáveis pela maior
parte da ação, sendo os homens suportes ou participantes secundários. Nos
exercícios com halteres, por exemplo, dois deles ficam de lado, preparados,
enquanto as garotas, uma por uma se posicionam no meio, de frente para a
câmera. Eles levantam a barra e entregam a elas, que fazem alguns movimentos
296
com os pesos, levando o corpo para frente e agachando sensualmente o corpo. O
que deve ter feito muitos espectadores lamentarem que a câmera não estivesse
colocada por trás, e em contra -plongé. Já a brincadeira seguinte constitui o clímax
da exibição de nudez. O grupo se reúne em volta da cama elástica e uma por
uma, as mulheres sobem e dedicam alguns minutos a pular, ao natural. Seus
movimentos são registrados pela câmera em frente, devidamente parada – ao
contrário da câmera de mão utilizada em quase todo o filme. Dentre todos os
presentes, somente um homem entra no jogo.
The Raw Ones.
297
5.4. A influência européia e a batalha pelo sexo
Enquanto os documentários nudistas e filmes educativos supriam o
mercado convencional e os stag movies alimentavam na clandestinidade as
fantasias de felizes voyeurs, desde o início dos anos cinqüenta filmes europeus
começaram a ser difundidos. Essas produções, logo denominadas “de arte”
32
retratavam o mundo do pós-guerra com uma nova abordagem, mais franca e
explícita no tratamento dado ao sexo. A voluptuosidade de atrizes européias,
como Anna Magnani, Silvana Mangano e Sophia Loren logo incendiou o
imaginário do público masculino, fazendo com que
os filmes europeus se
tornassem sinônimo de filmes eróticos, fomentando a antipatia das ligas de
decência e a ganância dos distribuidores que, sem nenhum pudor, divulgavam
qualquer filme vindo do velho continente como obra de conotação erótica. Do
mesmo modo, remodelavam os filmes em função dos seus objetivos. Monika e o
Desejo (Sommaren med Monika/1953), de Ingmar Bergman, por exemplo, teve os
direitos adquiridos pelo já nosso conhecido exploiteer Kroger Babb, ganhando o
sugestivo títulos de Monika, the story of a bad girl. Cortado de seus 95 minutos
originais para 62 minutos, tinha como atração principal os dois minutos de nudez
da atriz Harriet Andersson. Também marcou o período a produção francesa E
Deus Criou a Mulher (Et Dieu...Créa La Femme/1956), de Roger Vadim, com
Brigitte Bardot mostrada como veio ao mundo. A influência desses filmes, que
promoviam uma atitude tanto mais liberal quanto questionadora em relação ao
sexo, se fez presente em um público cada vez mais exigente por mudanças, já
32
Os filmes europeus eram exibidos nos Estados Unidos por distribuidores exploitation,
competindo com os burlescos em casas de espetáculo alternativas, geralmente destinadas a filmes
“para adultos”, agora transformadas em “art houses”.
298
nas fronteiras da década de sessenta, colocando mais ênfase na necessidade de
uma revisão das leis que regiam a exibição da nudez nos espetáculos.
O que veio cerca de uma década depois, entre 1967 e o emblemático
1968. Pouco antes, alguns filmes mainstream já forçavam os limites, deixando os
censores com um sério dilema quanto à sua liberação ou mesmo em relação à
integridade dos filmes. Apuros que ocasionaram as esperadas mudanças (1966)
no antigo código de conduta que regia a produção, distribuição e exibição de
filmes nos Estados Unidos. A Motion Pictures Association of América (MPAA),
com o mais liberal Jack Valenti à frente, conseguiu acomodar no velho código
material mais controverso e atual. Mas somene em 1968 que o antigo sistema foi
realmente colocado de lado, substituído por um novo sistema de classificações
que vigora até hoje, no qual foi inserida a classificação X33 ou seja, proibido para
menores de 16 anos. Com esse sistema, a MPAA acabou iniciando o caminho
sem volta para a permissividade que se instalaria nas telas a partir de então. A
princípio, Valenti não queria uma classificação além de “R”, de modo que a MPAA
se resguardasse de produtores independentes direcionados à realização de filmes
para adultos (adults only). Mas acabou sendo obrigado a reconhecer a
classificação “X” devido a pressões de exibidores que queriam uma salvaguarda
contra arbitratriedades legais. Por outro lado, mas em consonância com a atitude
da associação, também influiu para a liberalização outra pendenga iniciada em
1967 quando o então presidente Lyndon Johnson instaurou uma comissão para
avaliar a pornografia e seus efeitos. Essa comissão ficou responsável por analisar
o material existente (incluindo os stag movies) e determinar o que seria obsceno.
Apesar da tentativa de minar a comissão levada a cabo por Richard Nixon, quando
assumiu a presidência em 1969 e colocou um de seus homens no grupo com clara
33
Outras classificações do novo código: (G) sem restrições, (M) para público maduro, (R) restrito –
menores de 16 anos somente acompanhados por maior ou responsável legal.
299
intenção de minar os trabalhos, argumentando que a própria existência da
comissão era uma promoção da pornografia; o parecer final foi favorável a que
fossem abolidas as leis sobre obscenidade, já que não encontraram nenhuma
evidência de que a exibição de conteúdo sexual estava relacionada a algum tipo
de comportamento fora dos padrões. E estabeleceram apenas que esse tipo de
material fosse restrito para menores e pessoas que não desejassem contato com
ele. O impasse entre as deliberações da comissão e a posição presidencial
acabou fazendo com que nada se modificasse então, ainda que segundo
pesquisas, mais de sessenta por cento do público acreditava que as pessoas
tinham o direito de determinar por elas mesmas o que era obsceno. O passo
decisivo veio com um obscuro documentário sueco, que acabou se tornando um
dos três
34
mais importantes filmes para adultos já feitos: Jag Är Nyfiken - mais
conhecido pelo título norte-americano I Am Curious (Yellow) -, feito em 1967 pelo
diretor Vilgot Sjöman, antigo colaborador de Ingmar Bergman e considerado o
Jean-Luc Godard escandinavo.
Anteriormente, um documentário europeu sobre sexo já tinha sido
exibido, sem muito a acrescentar aos já tradicionais filmes educativos produzidos
nos Estados Unidos: o alemão Helga - Vom Werden des menschlichen Lebens
(título em inglês: Helga – The Becoming of Human Life) dirigido por Erich F.
Bender em 1967. Prometendo conter cenas nunca antes exibidas do momento da
concepção até o nascimento do bebê, e a completa intimidade de uma jovem, foi
produzido em cooperação com o Instituto Central para Educação e Saúde, de
34
Os outros são The Immoral Mr. Teas, de Russ Meyer (1959), e Garganta Profunda (Deep
Throat), de Gerard Damiano (1972). O primeiro tornou-se um marco na história do cinema adulto
não só por mostrar mulheres nuas dentro do contexto de uma estrutura narrativa ficcional, mas
também por ser uma ruptura decisiva no exploitation clássico assinalando, após o período de
transição representado pelos filmes burlescos e nudistas, o início da trajetória do sexploitation.
Garganta Profunda
deu nova dimensão ao filme pornográfico, transpondo a barreira que até então
o confinava às salas marginais e público específico rumo ao mainstream, fazendo do sexo explícito
centro de acaloradas discussões, debates na imprensa e assunto de repercussão nacional.
300
Colônia. Helga é um documentário que trata dos aspectos físicos da anatomia
humana e reprodução. A câmera segue a jovem alemã que dá nome ao filme dos
primeiros estágios da gravidez até o nascimento da criança, sustentando-se em
informações médicas e educativas. Bem realizado, utiliza desenhos animados,
modelos, microfotografia dos processos internos e seqüências encenadas para
mostrar as circunstâncias em que ocorre a concepção, o desenvolvimento do feto
e, finalmente o parto – filmado em notáveis close-ups. Filme que seria mais
apropriado para exibição em escolas do que em cinemas não fosse a distribuição
apelativa da American International Pictures, famosa companhia produtora de
filmes de science-fiction, horror e exploitation.
5.5. Jag Är Nyfiken ou: como um documentário sueco mudou o
sexo no cinema
Jag Är Nyfiken se diferencia completamente de tudo que já havia sido
feito em relação à representação sexual no documentário. Ainda que possa
parecer datado ou mesmo entediante para os padrões atuais
35
, essa improvável
mistura de política, sexo e crítica social deve ser compreendida como um produto
de sua época. Sjöman andava descontente com os filmes que vinha realizando,
que considerava convencionais demais. Teve a idéia de mudar o direcionamento
de seu trabalho, com um pequeno grupo de colaboradores e pediu ao produtor
Göran Lindgren que lhe cedesse 100.000 metros de filme preto e branco e
liberdade para fazer um filme sem roteiro: Jag Är Nyfiken, que acabou ganhando
duas versões, a amarela e a azul (montada com cenas que não entraram no
35
Jordan Hoffman, em crítica no encarte do DVD, que o considera perfeito para apreciadores de
filmes tortuosos, sobre pessoas que gritam palavras de ordem socialistas, ocasionalmente ficam
peladas, e depois gritam mais palavras de ordem socialistas.
301
outro), cores que remetem à bandeira da Suécia. Filme para o qual juntou uma
equipe e elenco inexperientes.
Retratando uma sociedade em transição, a narrativa é contada
utilizando um amálgama de modos de registro: posters e material visual do
período, entrevistas no estilo cinema verdade, gravações em fita e filme de ficção.
Em um interessante (ainda que não profundo) mergulho revolucionário, procura
ser um filme pleno, no sentido em que se propõe a examinar a cultura e a
sociedade - do mesmo modo que Godard fez em filmes como Masculin Féminin:
15 faits précis (1966), La Chinoise (1967) e Week End (1967) – sob um ponto de
vista marxista. O mais relevante sobre o filme é a flexibilidade com que o diretor,
de modo bastante singular, lança mão das convenções ao juntar elementos
ficcionais – como as atrevidas cenas de sexo que fizeram a reputação do filme – a
documentais, forçando os limites do gênero em direção às fronteiras do ainda não
popular mockumentary. Se aproxima, conforme conceito de Roscoe (2001, p. 6)
desta forma factual-ficional que possui estreita relação tanto com o dramático
quanto documental, se apropriando dos códigos e convenções do documentário.
No caso o cinema-verdade, expressão que ganha um novo sentido no período
36
,
“uma designação global dos movimentos que empregavam novos métodos de
filmagem com equipamentos portáteis” (DA-RIN, 2004, p. 150). Meios nos quais o
diretor passava de observador a participante. Sjöman se apropria desses modos
de expressão, falseando os que Nichols categoriza como modos observativo e
participativo, através da construção das circunstâncias. Dentro dos parâmetros do
primeiro que, conforme o teórico, “propõe considerações éticas que incluem o ato
de observar os outros ocupando-se de seus afazeres”(2005, p. 148), estão as
36
Antes o termo já designara uma série de cinejornais (1922-1925) na Rússia, assim como a
fórmula encontrada por Dziga Vertov para representar o objetivo estratégico de todo o seu trabalho
(DA-RIN, 2004, 114).
302
seqüências em que a câmera, de fora, nos coloca em posição de voyeurs da
intimidade – notadamente sexual, no caso - dos protagonistas. Já na outra
categoria, participativa, o diretor interage no cotidiano de seus objetos, e muitas
vezes acabam se tornando parte ativa do próprio experimento. No caso,
principalmente, a interação entre ele e a atriz e personagem principal. É relevante
que por trás dessa elaborada construção fílmica estão as intenções de Sjöman em
fazer prevalecer o seu discurso e elevar a consciência social na Suécia, em
sintonia com os modos de pensar do período. Devemos ter em mente que a partir
dos anos sessenta surgiram novas teorias e abordagens sobre cultura e
sociedade que refletiam e assimilavam idéias políticas e, como observa Kellner
(2001, p. 34), práticas radicais. Diz o autor:
A febre teórica surgiu nos anos 1960 na França, quando a proliferação de
novos discursos emanou da teoria pós-estruturalista. Rejeitando as
teorias totalizadoras, universalizantes e cientificistas do estruturalismo, da
semiótica, da psicanálise, do marxismo e de outros “discursos mestres”
que produziram a febre teórica e as guerras entre teorias de uma era
anterior, a revolução pós-estruturalista viu a proliferação de novas teorias
da linguagem, do sujeito, da política e da cultura. No entanto, voltando-se
exatamente para as teorias cujas afirmações mais extravagantes
rejeitava, o movimento pós-estruturalista apresentou novas sínteses do
marxismo, da psicanálise, da semiótica e do feminismo, produzindo uma
quantidade luxuriante de discursos teóricos que circularam por todo o
mundo (KELLNER, 2001, p. 34).
Jag Är Nyfiken conta em seu primeiro subtexto, a história de Lena
Nyman, uma ambiciosa atriz que trabalha em um caleidoscópico filme sobre temas
sociais para Vilgot Sjöman, que aparece como ele mesmo (assim como equipe e
equipamento), no filme. O personagem principal também é Lena Nyman, séria
(mas também divertida) jovem que vive em Estocolmo, em busca de respostas
para os atrasos sociais, políticos e sexuais, que, a seu ver, teriam calcificado a
vida sueca. O que desde o começo preconiza a idéia de “um filme dentro de um
filme”. Ou seja, nem sempre é evidente quando vemos Lena na vida real,
303
documentada pelo filme, ou Lena como personagem de Sjöman. As Lenas ora se
mesclam, ora se alternam, assim como os enfoques, que passam sem cerimônia
do documental para a representação ficcional. O que define as dimensões do filme
é esse habilidoso toque de meta-filmagem que acaba trazendo o espectador para
o centro da narrativa: enquanto eles realizam o filme, nos empenhamos em
assistir a feitura do filme, de modo que com freqüência, quando já estamos
confortáveis com a condução da trama, Sjöman sem a menor cerimônia corta para
outra seqüência de estilo narrativo diferente. Pode-se observar que Jag Är Nyfiken
se apresenta em três atos, que se desenrolam de forma fragmentada ao longo do
filme, articulando-se justamente a partir dos contrastes de aspectos formais para
os quais a mola mestra é o estilo documental. São bastante influentes os então
recentes modos de se fazer cinema - Godard especialmente – em que
a trama em
si é secundária à construção dos personagens e seu modo de agir e pensar frente
às mudanças, ideologia e posicionamentos políticos. É bem nítida a influência do
diretor francês, como a mobilidade da câmera, os enquadramentos não
convencionais e, principalmente, o rompimento com as formas narrativas
tradicionais em função de uma linguagem descontínua, repleta de rupturas e
elipses. Essa fragmentação, habilmente estruturada por Sjölman, vai resultar na
unidade pretendida. Os atos que se entrelaçam no filme podem ser classificados a
partir de três vértices: o discurso político e pregação marxista, construído com
cenas de rua, registro de assembléias, passeatas e depoimentos; o
relacionamento entre Lena e Sjöman, os aspectos da filmagem e feitura do filme; e
os conflitos pessoais e familiares da protagonista, especialmente a relação com o
pai e o amante.
No filme, em que predomina o caráter documental – é importante
relevarmos que o próprio universo ficcional ou atos que se alternam estão sujeitos
a este caráter primário – começa com Lena e Vilgot Sjöman descendo por um
elevador, aparentando algum relacionamento. Estão se dirigindo para uma
assembléia de caráter político, sendo que da platéia, são espectadores da cena
304
principal que se desenrola, que é o registro dos discursos inflamados da esquerda
sueca. São intercaladas fotos de arquivo de grupos de trabalhadores, sendo que
na seqüência, em apurado estilo cinema verdade da época (linha condutora do
filme), a câmera acompanha as inúmeras entrevistas que Lena realiza nas ruas,
de gravador a tiracolo e microfone, querendo saber dos cidadãos de Estocolmo se
eles acreditavam ser a Suécia uma sociedade sem classes. Sua pergunta é
sempre a mesma: “Existe um sistema de classes na Suécia?” Seus alvos são
tanto membros da classe trabalhadora, quanto de grupos sociais mais favorecidos
e as respostas que recebe são as mais diversas: vão do mais profundo
desinteresse à apatia ou não comprometimento. Também questiona membros do
sindicato, em seu quartel-general, sobre o porque do movimento trabalhista ser
tão conservador. Mais adiante, acusa os espanhóis de terem abandonado o ideal
democrata (tenta promover boicote ao turismo à Espanha), participando também
de manifestações de rua e piquetes em frente das embaixadas americana (contra
a guerra do Vietnã), chinesa (denunciando os campos de trabalho escravo) e
russa (por um socialismo sem tirania).
Sjöman aproveita para entrevistar figuras proeminentes, como Martin
Luther King, que estava em Estocolmo para palestrar sobre a não-violência, assim
como o ministro do transporte sueco Olof Palme, o social-democrata de maior
evidência no país, inimigo manifesto da guerra do Vietnã e defensor célebre da
igualdade de direitos. Ele utiliza essas filmagens como material pseudo-
documental, inseridas em uma estrutura ficcional. Especialmente as tomadas com
King, intercaladas de modo que parecesse que era Lena quem conduzia a
entrevista.
Os aspectos privados da vida de Lena já se estruturam a partir de outro
ponto de vista, onde a encenação passa a primeiro plano. É o que vemos na casa
da protagonista, espaço que divide com o pai de passado revolucionário – ele
participou, durante duas semanas na resistência a Franco na guerra espanhola.
Seu quarto é uma toca, entulhada de recortes de jornais, fotos de revistas,
305
arquivos, fichários e registros espalhados sobre qualquer tema de seu interesse,
indo de religião a questionários preenchidos pelos homens que já passaram por
sua cama (vinte e três, segundo ela).
O sexo é um dos pontos altos do filme, e também o mais explorado em
sua divulgação: a grande quantidade de nus frontais e freqüentes cópulas entre o
casal Lena e Börje. O que lhe garantiu bastante audiência, ainda que frustrada
pelo extenso discurso político que deve ter feito muita gente sair aborrecida. O que
faz, apesar do forte apelo dessas cenas, que Jag Är Nyfiken não se situe na linha
de documentários de exploração. A busca de Lena por uma identidade sexual – e
que viola a tradicional submissão feminina tanto no sexo quanto na luta por
direitos iguais - faz com que se envolva com o casado Börje. O primeiro encontro
entre os dois ocorre pouco depois de serem apresentados pelo pai da jovem. Lena
leva o rapaz para o seu quarto, onde passam a noite juntos. Seus corpos nus são
graficamente expostos, enquanto trocam carícias entre arquivos, gravadores de
fita e toda a papelada que entulha o quarto de Lena. Os dois, no auge da
excitação e com os movimentos tolhidos pelas roupas abaixadas, acabam por se
acomodar e fazer amor em um colchão que Lena tira do armário e coloca no chão.
Durante a peleja, um cartaz preso à parede (Jag är fri!!! / Eu sou livre!!!) vem ao
chão. Essa e outras cenas que mostram as relações sexuais entre Lena e Börje
são bastante explícitas, honestas e tão francas que fogem dos paradigmas da
pornografia ou mesmo do erotismo. Principalmente por serem exploradas em
função do conteúdo político. Como o protesto contra a monarquia em frente ao
palácio do governo, durante a luz do dia, em que Lena tira a calcinha e monta
sobre Börje. Acomodados na balaustrada, fazem sexo ao som do hino nacional. O
filme vai num crescendo em que os tabus vão se rompendo, em seqüências
bastante audaciosas. Dentre elas, duas se destacam especialmente. A primeira ao
ar livre, no retiro campestre em que Lena se refugia. Após desfilar boa parte desse
trecho de seios nus, entre incensos, ilustrações eróticas tiradas do Kama Sutra e
panfletos políticos, reencontra o amante, que chega da cidade. Terminam ambos
306
nus, deitados na relva, simulando um sessenta-e-nove que beira o explícito. Börje
aplica um cunnilingus em Lena, que corresponde acariciando e beijando o pênis
em repouso de Börje. Nenhum filme do cinema comercial até então tinha chegado
a tanto, faltando apenas a ereção para efetivamente consumar-se o fellatio.
Jag Är Nyfiken
Mas se vemos audácia nesse trecho, também fica evidente em
contrapartida uma preocupação em não deixar o erótico suplantar os objetivos
principais e cair na banalidade. Ou seja, através do próprio reconhecimento da
genitália e de suas funções durante o ato sexual – do sexo por um lado como
função biológica e por outro como ato político - o filme resgata a representação do
mesmo da exibição fragmentada e muitas vezes desordenada dos filmes
exploitation e stags. A outra seqüência que relevamos, por sua intensidade, é a
briga do casal, quando os dois, nus, se entregam a um sexo violento. No auge da
cena, Börje pega a companheira por trás e a sodomiza a força. Logo depois, Lena
tem um significativo sonho: ela se vê caminhando por uma floresta e encontra,
amarrados em torno de uma árvore, seus vinte e três amantes anteriores
307
amarrados juntos em torno de uma árvore, enquanto Börje aproxima-se. Ela o
mata com um tiro e após desabotoar e arriar a calça do morto, corta fora seus
genitais. Sjöman constrói um retrato completo de Lena enquanto mulher buscando
a liberação através dos altos e baixos de uma personalidade sempre
questionadora, transitando entre a política e a própria sexualidade, o que não
poderia ser feito sem essas cenas em que a nudez e o sexo ajudam a desconstruir
todo um universo. Kellner observa que
no fim dos anos 60, por meio de movimentos radicais, as mulheres
começaram a revoltar-se contra aquilo que consideravam práticas
opressivas das sociedades patriarcais contemporâneas e de seus
consortes. Ocorreram muitos casamentos – freqüentemente infelizes –
entre marxismo e feminismo, enquanto outras variedades da teoria
feminista encontravam importantes ferramentas na psicanálise para o
estudo da opressão e das experiências das mulheres e para a
reconstrução de indivíduos mais acolhedores, esnsíveis e amorosos.
Portanto, assim como ocorreu com o marxismo, emergiu uma enorme
gama de teorias feministas, muitas vezes em guerra entre si assim como
contra os discursos masculinos (2001, p. 35).
Para o que contribui, no filme, a negação do erotismo de que falamos, e
que pode ser bem exemplificada pelas interferências criadas de modo que não se
desenvolva um envolvimento erótico do espectador. Recursos que o diretor utiliza,
como por exemplo, exibição de Lena e Börje deitados, nus, discutindo longamente
algum assunto de teor sociológico, enquanto a câmera corta para a equipe de
Sjöman observando a cena. O que continuamente tira do chão os pés da
audiência, deixando inclusive indefinido se os atores/personagens realmente
estavam se envolvendo emocionalmente tanto na tela quanto fora dela. Essa falta
de consistência sobre a realidade dos eventos testemunhados e construídos de
forma documental, de acordo com o que observamos, faz parte de seu ponto de
vista, de que nossas concepções de fato e ficção podem ser manipuladas em um
mundo cada vez mais moldado pelas percepções de realidade engendradas pelos
mass media.
308
Falamos em Jag Är Nyfiken como um dos mais importantes filmes para
adultos já feitos, ainda que suas cenas de nudez não se enquadrem no que se
justificaria chamar de erótico ou mesmo pornográfico. Em primeiro lugar, voltando
um pouco atrás, uma batalha governamental se desenrolava nos Estados Unidos
para determinar a exibição de material de conteúdo sexual e o que seria ou não
obsceno. Quando o filme de Sjöman chegou àquele país (1968), a Grove Press,
um grupo editorial com inclinação para batalhas judiciais em defesa da primeira
emenda
37
, comprou os direitos de exibição já determinado a colocar lenha na
fogueira. O fogo não demorou a pegar, pois tão logo a primeira cópia do filme foi
apreendida pela alfândega, tratada como importação pornográfica ilegal, a
pendenga começou. Talvez se isso não ocorresse, a carreira do filme de Sjöman
nos Estados Unidos tivesse sido completamente diferente, quem sabe até
fracassando na obscuridade de algum cinema de arte. O fato é que Barney
Rosset, proprietário da Grove Press, veterano em disputas judiciais envolvendo
suas publicações, levou o caso à Suprema Corte. Podemos argumentar que um
dos pontos que levou Jag Är Nyfiken ao banco dos réus seria seu ponto de vista
socialmente progressista e esquerdista, particularmente no que diz respeito ao
feminismo. Afinal, Lena Nyman contestava e aspirava mudanças no status quo, e
sua abordagem do sexo era radicalmente diferente de tudo que já tinha sido visto
no cinema norte-americano. Ela gostava, queria e fazia sexo; sendo algumas
vezes recompensador, outras vezes não. O modo como ela se sentia em relação
aos seus parceiros conduziam as suas reações.
Em defesa ao filme juntaram-se psiquiatras, sociólogos, escritores e o
próprio Vilgot Sjöman, todos argumentando, frente ao júri, que o sexo e a nudez
estavam a serviço das idéias. Por fim, sem nos determos detalhadamente no
37
A primeira emenda da constituição norte-americana estipula, entre outros pontos, a liberdade de
expressão.
309
processo, após duas horas de deliberações, o filme foi considerado obsceno – o
primeiro passo rumo à notoriedade e rentabilidade. Meses depois (1969), a Corte
de Apelações reviu e derrubou a decisão anterior, alegando que mesmo o
conteúdo sexual sendo um importante aspecto do filme e um de seus principais
temas, o mesmo não pode ser considerado uma abordagem lasciva do sexo. E
que o tema dá suporte, no filme, a idéias, e estas são trabalhadas artisticamente -
o que faz com que a produção se encaixe no âmbito de realização intelectual, para
a proteção da qual foi criada a primeira emenda.
Com esse precedente, o filme de Sjöman se tornou imune a qualquer
processo por obscenidade. E mais: a publicidade resultante fez dele um sucesso
de bilheteria (cerca de vinte milhões de dólares), algo incomum para uma
produção européia. E tornou Jag Är Nyfiken um marco por ampliar os limites do
que era possível mostrar nas telas. A partir de então, a nudez frontal – masculina
inclusive – estava liberada, assim como mais definidas e explícitas simulações do
ato sexual. A partir de então, somente a real penetração e ejaculação
permaneceriam proibidas na tela grande. Mas não por muito tempo.
5.6. Kärlekens språk e W.R. - Misterije Organizma
Apenas dois anos após Jag Är Nyfiken, outro documentário sueco
rompeu as barreiras derradeiras do permitido, trazendo consigo, como era de se
esperar nova dose de controvérsia. Kärlekens språk (mais conhecido
internacionalmente
pelo título em inglês The Language of Love), realizado em
1969 por Torgny Wickman, toma a sua inspiração dos filmes-de-sala-de-aula. Com
a diferença de que, enquanto estes se empenhavam na exploração de cenas de
sexo ou violência para ratificar o seu conservadorismo através do medo e da
coerção – como Chained Girls -, o filme de Wickman procurava ser educativo de
uma maneira mais de acordo com os novos ventos que sopravam a favor da
310
liberação sexual. Ou seja, segue em completa oposição não só aos seus
antecessores, como a outros filmes educativos do período, como It’s Wonderful
Being a Girl (1966) – sobre o ciclo menstrual -, Don’t Smoke Pot (1968) e Drug
Abuse: The Chemical Tomb (1969) – contra as drogas, - e Highways of Agony
(1969) – outro filme sobre os perigos da direção imprudente. O que faz de
Kärlekens språk um marco, pois até então nenhum documentário de educação
sexual tinha abordado o sexo sob um ponto-de-vista positivo, muito menos
enfocado a sua função de dar prazer.
O filme se baseia nas até então disponíveis pesquisas sobre
comportamento sexual, levadas a cabo por estudiosos da área – especialmente o
trabalho de Masters e Johnson -, e está centrado em um grupo de pesquisadores
bastante conhecidos na Suécia no período: Inge e Sten Hegeler, Maj-Brit
Bergstroem-Walan e Sture Cullhed, todos conceituados especialistas que
dedicaram os seus estudos científicos aos vários campos da vida sexual. Aborda
os vários tipos de problemas ligados ao relacionamento íntimo das pessoas,
sendo cada questão discutida pelo grupo. Começa no melhor estilo do cinema
direto, com a câmera posicionada como observadora, de modo a registrar as
conversas do grupo, sem interferência. Não há voz over ou entrevistas. Apenas
eventualmente, algum dos pesquisadores fala diretamente em direção do
dispositivo de registro, de modo a fazer uma quebra na narrativa e falar
diretamente com o espectador. Reunidos em uma confortável sala e instalados ao
redor de uma mesa, os cientistas fumam e bebem litros de café, enquanto vão
apresentando os temas que compõem a estrutura narrativa. Esse bate-papo
aparentemente informal é intercalado com cenas ilustrativas, encenadas de modo
teatral em um mesmo cenário, que vai sendo modificado de acordo com a
necessidade. Começa mostrando dificuldades comuns de relacionamento entre
casais, como falta de comunicação, desinteresse, atitudes de intolerância e apatia
sexual. A partir daí, passam a se dedicar à ativação da libido e às atividades
sexuais, partindo do funcionamento dos órgãos genitais masculino e feminino,
311
suas funções e estímulo e posições sexuais. Seqüências ilustradas primeiramente
por slides, diagramas e animações do corpo humano e do sistema reprodutivo,
posteriormente passando para um sistema de tela dividida que permite a
visualização das reações de diferentes partes do corpo. O que simplifica a
compreensão das complexas reações que ocorrem com um indivíduo sob estímulo
sexual. As discussões do grupo também abordam o papel do sexo na sociedade,
os preconceitos e tabus.A primeira parte do filme culmina com a exibição de uma
jovem nua se masturbando sobre uma cama redonda giratória. Pela primeira vez é
usado um artifício que se repetirá durante todo o filme: a tela se subdivide, sendo
que a imagem principal – a mulher deitada se estimulando – ocupa os três quartos
inferiores e as imagens secundárias ocupam a faixa superior, repartida em quatro
quadros. Cada um mostrando um ângulo diferente da cena, inclusive um close dos
dedos da jovem esfregando o clitóris e os grandes lábios (figura abaixo). Em off
um dos especialistas descreve o que se passa corporalmente, tendo ao fundo os
gemidos de prazer da mulher. De maneira semelhante é abordado o sistema
reprodutor masculino, começando por uma animação mostrando o que acontece
internamente durante o processo, do início à ejaculação. Também são exibidos
vários slides com fotos diversas de orgãos genitais masculinos em close.
312
Essa introdução didática é encadeada por várias cenas simuladas de
cópulas, bastante gráficas e representativas das mais variadas posições, inclusive
sendo inseridas curtos exemplos de sexo homossexual masculino e feminino. O
estímulo e a busca pelo prazer ocupam a maior parte do discurso, sendo inserida
uma pequena peça dramática sobre um casal com dificuldades a serem
superadas. Na seqüência, a jovem chora frustrada após a relação pelo fato do
companheiro ter ejaculado rápido demais e não lhe ter propiciado o orgasmo. No
dia seguinte, ao acordar, o rapaz consola a namorada, compensando através de
uma explícita cena de sexo oral sua ejaculação precoce.
Se a cena descrita já mostra um avanço dos limites da representação
sexual, serve de preliminar para a até então inconcebível exposição da real
penetração. O que ocorre pouco depois, no que podemos considerar sem dúvida,
o ponto alto do filme. A seqüência começa com um casal despido, entregue a
carícias. Como anteriormente, o homem masturba e faz sexo oral na garota. A
vagina, sendo aberta durante o cunnilingus é mostrada em detalhe. Indo além, a
mulher corresponde, também acariciando o membro do parceiro. Em seguida, ela
guia o pênis ereto em direção de sua vagina. É mostrada muito rapidamente a
penetração, nos segundos certamente mais audaciosos da história do cinema
documentário. E tão significativo quanto, pela primeira vez o sexo é mostrado em
tempo real, sem cortes, artifício ou edição. O que é raro até hoje em filmes de
sexo explícito. Igualmente à seqüência de masturbação feminina, a tela é
subdividida em quadros. Na faixa ocupando os três quartos inferiores, vemos em
plano geral a cópula do casal. Na parte superior, dividida em três quadros, temos
à esquerda um gráfico representando a curva orgásmica, ao centro a penetração
em detalhe, e à direita uma animação mostrando o interior dos corpos durante o
coito. Enquanto um dos especialistas em off narra os aspectos fisiológicos,
acompanhamos através da cena principal e dos gráficos a ação sexual, em toda a
sua duração, até o orgasmo (ver ilustração a seguir).
313
O caráter educativo retorna em seguida, com uma das pesquisadoras
explicando para adolescentes em uma sala de aula, os métodos contraceptivos.
Essa exposição vai até o fim do filme, sendo esses métodos mais esmiuçados nas
seqüências passadas no consultório ginecológico de um dos especialistas do
grupo. Lá, em evidente encenação, ele recebe suas pacientes que se submetem a
explícitos exames, nos quais assistimos a inserção de dispositivos
anticoncepcionais. Cada um é exemplificado em uma garota diferente, sendo que
das duas primeiras, vemos em close suas vaginas expostas pelo instrumental
ginecológico, e a introdução respectiva de um diafragma e um DIU.
Kärlekens språk termina com uma colagem de cenas documentando a
liberação sexual nas ruas da Suécia, com ênfase na indústria do sexo: uma
colagem de fotos de revistas pornográficas, shows de striptease, o comportamento
nas ruas e a moda. Tudo visto sob uma ótica positiva e libertária, em parte
vinculada à política e a contestação do período, tendo também em vista uma
moderna concepção de educação sexual. Mas a contínua exibição de corpos nus,
314
órgãos sexuais e cenas de sexo envolvendo jovens e atraentes casais –
indivíduos mais velhos ou de aparência mais desgastada servem apenas para
enfatizar os desencontros de relacionamento e desajustes sexuais – nos leva a
considerar se Kärlekens språk não seria, na verdade, um filme pornográfico
fazendo se passar por documentário científico e educativo para burlar a censura.
A despeito da evidente exploração da nudez e do sexo, acreditamos ser
exatamente o contrário: um filme de educação sexual que se utiliza do material
pornográfico para passar a sua mensagem em um momento de distensão em que
a revolução sexual passava à ordem do dia e o corpo e suas funções deixavam de
ser tabu.
W.R. – Misterije Organizma (1971), de Dusan Makavejev, traz de
volta o teor político que prevalecia em Jag Är Nyfiken. Mas com um olhar mais
crítico dos dogmas marxistas e um caráter sexual menos denso e mais
sintonizado com a permissividade que aflorava no período. Podemos dizer que,
enquanto o filme de Sjöman, em seu preto e branco manifestava um
comprometimento político mais inflexível, o documentário de Makavejev, trazia nas
cores uma aspiração por liberdade que ampliava esse comprometimento para
além dos dogmas da própria esquerda em que se encaixa e contesta.
O filme traça relações entre o comunismo e a sexualidade, tendo como
base a vida e obra de Wilhelm Reich (“WR”), o polêmico psicanalista marxista que
se tornou um dos gurus dos movimentos de contracultura. Reich também angariou
o título de persona non grata tanto entre os comunistas do Leste Europeu quanto
em meio aos capitalistas dos Estados Unidos. País que adotou em 1939 graças às
perseguições dos nazistas e onde acabou morrendo em 1957 na prisão de
Lewisburg, após ser condenado acusado de fraude por ter supostamente
descoberto o orgônio, uma energia cósmica com poderes curadores e de
implemento sexual, em função da qual inventou uma máquina. O dispositivo se
constituía em uma cabine metálica destinada a condensar esse material e tratar
problemas sexuais. Invenção que se tornou um sucesso comercial e também
315
causou sua ruína quando caiu nas mãos da FDA (American Drug and Food
Administration).
Quer fosse um lunático ou um visionário, o fato é que suas teorias
referentes a comportamento sexual e política - que o tornaram proscrito dos
círculos científicos - ainda no início dos anos setenta eram capazes de deflagrar a
ira de censores e conservadores. Isso tendo como uma de suas credenciais mais
relevantes ter sido perseguido tanto na Alemanha de Hitler como na União
Soviética de Stalin e nos Estados Unidos de Joseph McCarthy. Essa foi uma das
motivações que levou o iugoslavo Dusan Makavejev a tentar elucidar o
pensamento reichiano e, como bem observou Rittner (1990, p. 325), a quebrar a
conspiração de silêncio erguida em torno de um dos mais notáveis pensadores de
nosso tempo”.
Makavejev chegou aos Estados Unidos poucos anos antes, vindo da
Iugoslávia, já com o propósito de fazer o filme. Para tal empreitada utilizou, tal
como Vilgöt Sjoman, estruturas narrativas diferentes montadas paralelamente.
W.R. – Misterije Organizma é constituído de uma série de plots e entrevistas
intercaladas. Não obstante os distintos cenários, personagens e períodos de
tempo, a montagem das diferentes tramas cria uma singular crônica da
sexualidade e dos anseios revolucionários. Tanto que o W.R do título também se
refere à expressão World Revolution. Podemos encontrar no filme cinco sub-plots,
sobre os quais vamos brevemente discorrer, lembrando que, ainda que sigamos a
ordem primária em que os mesmos são apresentados, os mesmos não configuram
episódios isolados amarrados seqüencialmente, mas trechos de cada um vão se
intercalando até o final, a partir da abertura com textos explicativos:
“Este filme é em parte uma resposta pessoal à vida e aos ensinamentos
do Dr. Wilhelm Reich (1897-1957). Estudando o reflexo orgásmico como primeiro
assistente de Sigmund Freud, Reich descobriu a energia da vida, revelando as
316
raízes profundas do medo da liberdade, medo da verdade e medo do amor no
homem contemporâneo. Durante toda a sua vida, Reich lutou contra a pornografia
no sexo e na política. Ele acreditava em uma democracia trabalhista, em uma
sociedade orgânica baseada no trabalho e amor livre”.
E em cartões separados, centralizado na tela em letras grandes:
“Dr. Wilhelm Reich”, “Joy of Love”, “Enjoy”, “Feel”, “Laugh”, “Filmado
nos Estados Unidos e na Iugoslávia (1968-1971)”.
Podemos denominar o primeiro sub-plot de “O Soldado”. Trata-se do
registro do trabalho do poeta e artista performático Tuli Kupferberg que, vestido
como soldado faz uma paródia da guerra e da natureza sexual do fascínio
exercido pelas armas no homem, masturbando o seu rifle de brinquedo. A maior
parte das seqüências são mostrando o artista de corpo inteiro, filmado a média
distância, e que provocam o espectador com seu aspecto teatral. “O Soldado”
aparece logo no início do filme, em uma vizinhança pobre de Nova York coberta
por pichações de slogans pró-comunistas. Duas assistentes ajudam o performer a
preparar a vestimenta – capacete e roupa vermelha. Mais adiante, em outra
inserção pelo meio do filme, ele toma de assalto o centro comercial da cidade,
interagindo com os passantes e homens de negócio que assistem a performance.
Como parte do clímax do filme, a masturbação do rifle é montada com outras
seqüências de orgasmo. Mas Makavejev não se ocupou só do trabalho de
Kupfebgerg. Outros artistas de vanguarda do período também foram objeto das
lentes do diretor em outros dois sub-plots. No primeiro, a desenhista e pintora
Betty Dodson, que pedia aos amigos para se masturbarem em seu estúdio de
modo que ela os retratasse no ato. Ela discute, em primeiro plano, suas
317
experiências em desenhar essa atividade, o feminismo e a sexualidade da mulher.
Ao fundo, o desenho em grande escala de um homem nu, deitado e segurando o
pênis ereto em posição de masturbação domina todo o segundo plano. Já o
segundo e de fundamental importância se passa no ateliê da artista plástica Nancy
Godfrey. Ela recebe o amigo Jim Buckley (editor da revista de temática sexual
Screw), que se despe e deita em um sofá. Ela passa a acariciar o membro do
rapaz, até ele ficar duro. Em seguida, Nancy lambuza o órgão com algum tipo de
lubrificante, e cobre a pélvis de Jim com um plástico, deixando apenas o pênis
para fora através de um orifício. A artista aplica camadas de gesso sobre a
genitália de seu feliz colaborador para, no final, retirar a forma com a qual faz um
molde colorido em resina (figuras abaixo).
Não nos estenderemos na repercussão dessa seqüência, óbvio ponto
de controvérsia entre os censores - a maioria das cópias exibidas na época tinha
psicodelismos coloridos adicionados sobre o órgão sexual de Buckley, de modo a
escondê-lo. Mas é importante relevarmos o significativo fato de que, junto com
Kärlekens språk, foram filmes documentários destinados ao cinema comercial os
pioneiros em mostrar não só um pênis ereto, mas, como no caso do segundo,
também closes de vaginas e atos sexuais explícitos. Atitude semelhante em
318
ousadia e um passo além ao dado em Jag Är Nyfiken. O que sugere fortemente
que, graças ao cinema documentário foi possível acelerar a bastante próxima
liberação da pornografia hardcore.
Outro sub-plot é o documentário enfocando o trabalho pioneiro de
Reich, a vegetoterapia – que envolve desfazer os bloqueios do corpo e restaurar o
fluxo energético – e suas relações na localidade norte-americana onde o Orgonon
(seu centro de pesquisas) se estabeleceu. Apresenta entrevistas com Eva e Peter
Reich (filhos do psicanalista), praticantes de vegetoterapia, amigos de Reich e
membros da comunidade que relatam suas relações com ele. Algumas práticas da
vegetoterapia são mostradas, com mulheres em collants simulando cópulas, se
contorcendo e gemendo em estertores orgásmicos. Sendo esta uma das
inserções iniciais do filme, temos a idéia de que se trata de um documentário
tradicional, utilizando técnicas padrão como entrevistas com enquadramento fixo,
voz over, filmagens de lugares e inserção de filmes de arquivo - como um filme de
educação sexual alemão dos anos trinta mostrando um casal fazendo sexo no
campo.
Uma praticante da vegetoterapia de Reich em W.R. – Misterije Organizma.
319
O transexualismo é o tema abordado no terceiro sub-plot que
identificamos. Makavejev aborda o medo do despertar da sexualidade e a
realização de se viver de acordo com ela em entrevista com Jack Curtis, um
transexual que já esteve sob a tutela de Andy Warhol e atuou nos filmes de Paul
Morrissey Flesh (1968) e Women in Revolt (1971). As tomadas são realizadas em
Nova York, em movimentada avenida, em meio aos escandalizados passantes e
anúncios luminosos e em lugares inusitados como, por exemplo, numa igreja. O
transexual passeia de mãos dadas com o parceiro homossexual, que beija na
boca.
Mas é a trama envolvendo os comunistas iugoslavos que transmite de
melhor maneira os objetivos de Dusan Makavejev, que reflete de maneira ímpar o
mal estar da esquerda com os eventos desencadeados com a morte de Stalin e as
revelações do recente Congresso do partido Comunista da União Soviética.
Através da história da jovem Milena e sua colega de quarto Jagoda, defensoras da
liberdade sexual e da democracia trabalhista de Reich, o diretor põe em questão
os valores estabelecidos e as ideologias do contexto político da época –
particularmente o comunismo. Como Vilgot Sjöman em Jag Är Nyfiken, a
encenação se atrela ao mundo histórico pela interseção de imagens de arquivo –
Klyatva (Mikheil Chiaureli, 1946), um velho filme de propaganda soviético para
santificar Stalin interage no sub-plot -, pelos discursos políticos e pela dissolução
das fonteiras que separam personagens dos atores: Milena Dravic interpreta
Milena, do mesmo modo que Jagoda Kaloper continua sendo Jagoda, e assim por
diante.
Na trama, a primeira deixa de lado o amante proletário Radmilovic
(Zoran Radmilovic) para cortejar o bailarino russo Vladimir Illych, interpretado pelo
ator Ivica Vidovic e o único batizado com outro nome. Clara referência com
objetivo de representar o comunismo soviético. Milena é uma metáfora para a luta
dos trabalhdores iugoslavos para se libertar da influência do Estado russo. Todos
as cenas e diálogos dessa seqüência, rodada no interior do apartamento das
320
garotas, são em função disso. Seja enquanto Milena e a amiga discutem a
liberação sexual e sua relação com liberdade revolucinária; quando Jagoda faz
sexo com um homem embaixo da fotografia de Reich e palavras de ordem
comunistas; ou quando o embriagado Radsmilovic, após assediar sem êxito a ex-
amante, acusa a classe dirigente iugoslava de ser uma “burguesia vermelha”.
Milena acaba assassinada em um encontro sexual ao ar livre que dá errado com
Vladimir Illych que, incapaz de lidar com os próprios impulsos sexuais, arranca a
cabeça da jovem com a lâmina de sua bota de patinação no gelo. Uma maneira de
expressar a crença reichiana de que a liberdade sexual era a verdadeira
expressão do comunismo, o que era reprimido pela doutrina soviética. Através
dessas seqüências, Makavejev condena com bom humor a determinação do povo
iugoslavo e o seu empenho pela liberdade, deixando-se subjugar pelo comunismo
russo; além de enfatizar que a busca por liberdade sexual é toldada pelos
“fascistas vermelhos“ e que o socialismo não pode tirar o prazer erótico de seu
programa.
Mas se Makavejev tentou elucidar, como pretendia, o pensamento
reichiano, algo se perdeu no caminho. O próprio sub-plot sobre a vida do
psicanalista, que deveria ser o principal fica em segundo plano em relação à clara
manipulação e explícita exploração através das quais o diretor busca seus
objetivos de traçar os paralelos entre liberdade social e sexual. Aliás, Makavejev
considerava a real pornografia a repressão política e sexual. Detalhes que não
tiram o mérito do filme, que a primeira vista pode parecer simplesmente um bizarro
exercício cinemático, mas é uma obra singular. Ele consegue unir com maestria
todo esse material fragmentado, dando ao todo não só sentido, mas criando uma
estrutura na qual o espectador, provocado, interage. E, principalmente, ao justapor
os Estados Unidos da era hippie e a Iugoslávia da guerra fria, encena um encontro
entre psicoterapia e marxismo, permissividade sexual e socialismo. Como bem
observa Ebert (1972) em sua crítica, Makavejev se supera,
321
pegando as religiões oficiais de duas superpotências: o marxismo
(Russia) e a psiquiatria (America). No leste, o filme foi proibido porque
poderia ofender os russos. No ocidente, seguidores de William Reich o
acusaram de ter canibalizado o trabalho do falecido gênio perseguido.
(...) Todas as seqüências foram feitas com uma espécie de malabarismo
artístico, com Makavejev ao centro, sem emoção, ainda que com os olhos
se estendendo sobre a bizarra variedade da experiência humana. Como
iugoslavo, ele está naturalmente cansado do doutrinário marxismo
soviético – não por ser antimarxista, mas porque os soviéticos possuem
pouco senso de humor sobre política. E se os russos não podem ser bem
humorados em relação à política, os norte-americanos são
indiscutivelmente melancólicos em relação ao sexo. Ele pretende nos
relaxar um pouco, talvez nos chocar se isso é o que precisamos, mas
fazer-nos sorrir, sorrir, sorrir, e levar à falência a indústria dos manuais
que ensinam como fazer sexo. Ele se apropria das coisas que mais
levamos a sério e nos mostra como podem parecer absurdas quando
trazidas à luz. Se pudermos reduzir tudo ao absurdo, quem sabe?
Poderemos ser deixados em um mundo onde as pessoas podem tirar
suas capas ideológicas, arregaçar as tímidas mangas e dar um novo
brilho ao velho organismo.
5.7. Mondo sexo
Durante a segunda metade dos anos 60, os documentários mondo logo
perderam a sua originalidade e pretensão jornalística, principalmente graças à
grande quantidade de produtores e realizadores que resolveram investir no filão
criado por Jacopetti e Prosperi. Estes já tinham inserido em suas coletâneas
episódios de apelo sexual. Seus concorrentes foram além, fazendo do sexo o
tema principal em produções que somavam à estética mondo, elementos dos
burlescos, nudies-cuties e documentários nudistas. Como por exemplo o notório
Mondo Freudo (que ganhou o subtítulo The World of Freud), produzido em 1967 e
dirigido por Robert Lee Frost. Também conhecido com o nada benemérito título de
“o duque do sadismo”, Frost é um dos mais interessantes e originais diretores do
sexploitation, tendo iniciado uma produtiva parceria no início da década de 1960
322
com Robert W. Cresse
38
, com quem fundou a Olympic International. Companhia
que não só produziu alguns dos mais controvertidos filmes de exploração do
período, como também adquiriu e distribuiu filmes rodados tanto nos Estados
Unidos como na Europa, acrescidos de cenas eróticas dirigidas por Frost para
atrair audiência.
Mondo Freudo foi a aposta da dupla para aproveitar o sucesso que
vinham fazendo os documentários italianos, apesar de não terem seguido à risca o
padrão, se aproximando mais dos filmes exploitation a que estavam vinculados. O
título é evidente referência ao pai da psicanálise, justificado pelas palavras do
narrador durante a introdução em que um cinegrafista, no alto de um mirante,
monta uma câmera de 35mm com potente teleobjetiva. Segundo a narração,
aquelas lentes poderosas serão os olhos do narrador, ampliados para poderem
ver de perto a sociedade: “Mondo Freudo: um mundo de Freud, um mundo de
sexo, de símbolos sexuais e estranhos costumes”. O que não passa de uma
desculpa para a exploração da nudez e exotismos sexuais, a maior parte
encenados, em planos longos e expositivos, sem encadeamento, sendo a maior
parte dos comentários dispensável.
O filme começa mostrando uma praia, com destaque para garotas de
biquíni. Seqüência encadeada com uma filmagem noturna em que casais fazem
sexo às escondidas na areia; passando por clubes de striptease com a filmagem
de números completos e farta exibição de seios e nádegas; e pintores que usam
garotas nuas como telas e pincéis – cópia menos elaborada da performance das
garotas de Yves Klein em Mundo Cão -; e lutas de mulheres na lama.
38
Ninguém definiu melhor o motivo central do exploitation do que Cresse, em uma tirada bastante
inspirada: “Enquanto na MGM o lema era ‘Arte por amor à arte’, o nosso era ‘Arte por amor ao
dinheiro’.
323
Uma quebra na narrativa é o trecho enfocando a prostituição em
Londres. A voz over dá lugar à entrevista com duas garotas de programa – uma
norte-americana e outra inglesa – que ganham a vida atraindo homens através de
anúncios. Lésbicas, são especializadas em sexo a três, com o cliente participando
ou assistindo as duas tendo relações. Seqüência orquestrada para que tirem a
roupa e se acariciem durante a entrevista, concessão à idéia – não totalmente
infundada, devemos ressaltar – de que homens gostam de ver garotas nuas se
esfregando.
Prostitutas inglesas em Mondo Freudo.
Mondo Freudo é menos sutil do que seus antecessores ao defender
ideologicamente a superioridade anglo-saxã, deixando os aspectos menos usuais
– e por sua vez mais exóticos ou bizarros - sobressaírem, ao direcionar sua lente
para outras sociedades. Com isso reforça preconceitos na abordagem do outro. A
abjeção xenófoba substituindo o sarcasmo, o que está patente nas palavras do
narrador, “a sexualidade é sadia nos Estados Unidos e na Inglaterra”. Gancho
para sermos transportados da fútil e inócua nudez das garotas com tintas no corpo
se esfregando em cartões para Tijuana, na rude fronteira mexicana. Um mundo
324
sem lei em que a prostituição é institucionalizada e proliferam clínicas de aborto.
Enfatizando visualmente as condições de pobreza ao lado – com ênfase do
narrador – “da nação mais rica do mundo”, o filme mostra um mercado de
escravas para a prostituição em um vilarejo miserável. Filmagem supostamente
clandestina – o que não diminui seu caráter degradante -, registra um grupo de
garotas que, uma a uma, são apresentadas para supostos compradores. Como
em um desfile, tiram a roupa, exibindo os seios e o traseiro, sendo os pêlos
púbicos censurados (figura abaixo).
De maneira parecida, Porto Rico é supostamente cenário – já que não
aparece nenhuma cena externa que caracterize o local – para uma cerimônia
satânica. Claramente rodada em estúdio, mostra a realização de uma missa negra
em um templo, decorado como se fosse para uma produção barata de terror, com
cruzes invertidas e panos pretos e roxos. É onde está mais bem impressa, em
todo o filme, a marca do “duque do sadismo”: uma sacerdotisa seminua dança e
despe o traje sumário em meio aos acólitos do culto, organizados em círculo ao
seu redor. Ela mata uma galinha, deixando o sangue escorrer. Ao que tudo indica,
pré-requisito para o sacrifício de uma virgem de dezessete anos ao Diabo. A líder
do grupo continua sua dança, balançando para a câmera os seios nus,
325
destacados em close. A virgem é deitada no chão vestindo somente calcinha.
Sobre ela é derramado o sangue – obviamente cenográfico – da cabeça
decapitada de um porco, que se espalha pelo torso. O último ato, que segundo o
narrador não poderia ser mostrado, é o sacrifício em si – a cópula de um dos
membros do culto, representando Satã, com a garota.
Ao Japão é reservado o destaque como paraíso dos pervertidos, não só
pelos sexshops, strippers e prostitutas, mas, principalmente, pelo destaque dado
ao sexo violento naquele país. Ainda que de forma reservada, são mostrados
clubes de sadismo, com encenações de garotas sendo amarradas, chicoteadas,
submetidas a sessões de cócegas e ganhando bordoadas com bastões.
Encenação de missa negra em Porto Rico e sadomasoquismo no Japão.
Mais próximo da fórmula de Mundo Cão é América na Era do Sexo
(This is America, também conhecido como Mondo America e Jabberwalk),
realizado em 1973 pelo diretor Romano Vanderbes. O filme é uma visão
exacerbada dos Estados Unidos do início dos anos setenta pela perspectiva de
um diretor europeu, com suas corridas de destruição, em que carros colidem uns
com os outros; igrejas drive-in (onde fiéis confortavelmente instalados em seus
cadillacs folheiam playboys enquanto o pastor faz a sua pregação); etc. Mas é a
326
exploração dos aspectos sexuais, em que liberação se confunde a permissividade,
o motivo principal. Com essa premissa são encadeados quadros inusitados e
bizarros como o concurso Miss América Nua (All Bare Americans) em que,
seguindo o estilo tradicional dos concursos de misses, as candidatas desfilavam
de biquini e depois despidas para o delírio da platéia; shows de strippers
masculinos em bares “só para mulheres”; lutas de mulheres na lama; inevitáveis
satanistas em Massachussets, com seus rituais envolvendo nudez e sexo;
pessoas sendo tatuadas em suas partes íntimas; a entrega do “Oscar” da indústria
pornô e – provavelmente as seqüências mais bizarras: o “Instituto do Amor Total”,
uma presumida clínica onde as pessoas buscariam uma “nova introdução ao sexo
e à liberdade sexual” através de sexoterapia (motivo para mostrar cenas de sexo
grupal); e o “bordel para idosos”, onde velhinhos buscavam o prazer com
profissionais encanecidas.
A fórmula do documentário de sexploração não demorou a se esgotar.
No caso, não só com a chamada revolução sexual, que tornou possível a
assunção de comportamentos e preferências, como pela ampliação dos limites do
que era exibido, não só no cinema comercial como na nascente indústria
pornográfica, que foi impulsionada ainda nos anos 70 com a popularização do
videocassete. Mesmo assim, do mesmo modo que ocorreu com os filmes mondo,
seja em sua nova encarnação na série Ásia Violenta ou nas tentativas de se
retomar a série Mundo Câo, o documentário com ênfase nas cenas de sexo ainda
perdurou até meados dos anos 80, em derradeiros e não muito inspirados
espetáculos que apenas repetiam a fórmula sem nada mais a acrescentar, como o
francês A França Proibida (La France Interdite, 1984), dirigido por Jean-Pierre
Garnier e outros. O filme já começa com uma visão aérea de Paris em um dia
ensolarado, no qual mulheres nuas tomam banho de sol nos terraços dos prédios.
Uma introdução para o “mundo proibido e insólito” do qual, segundo a voz over do
narrador, “levaram um ano de pesquisas e persuasão para conseguir imagens”.
327
O documentário é uma colagem de seqüências mal-amarradas, feita às
pressas, sem nenhuma preocupação com a continuidade narrativa que era
característica fundamental dos antigos filmes mondo. O enfoque predominante é o
sexo, como o próprio título dá a entender, mas é a exploração de seus aspectos
mais exóticos ou perversos que ocupa a maior parte do filme. Ainda que sejam
rapidamente mostrados episódios sobre um criador de águias de caça na
província, um cemitério de automóveis, lutadores de boxe tailandês nos arredores
parisienses e um curandeiro octogenário, esses trechos, totalmente
desnecessários, parecem ter sido inseridos somente para não caracterizar o
documentário como filme de sexo, o que na verdade teria sido mais efetivo. Afinal,
é a combinação da nudez com prazeres perversos o único fator de interesse que o
filme pode despertar. O que não se resume ao pueril desfile de modas, com
mulheres seminuas do início; o cansativo passeio por cenas noturnas e sex shop;
o nada excitante peep show, onde uma stripper tira a roupa e dança pelada para
voyeurs instalados atrás de paredes espelhadas; ou mesmo a farta exibição de
seios, bundas, pênis e testículos em Saint Tropez. Mas na imersão em um
universo mais “barrra pesada”.
Desse modo, somos levados à zona de prostituição do bois, onde duas
jovens de corpo escultural e sumárias peças de lingerie, exibem os seus atributos
aos possíveis fregueses. São na verdade travestis, que não só mostram seus
atributos viris em close, como também ensinam como fazê-los desaparecer
camuflados nas calcinhas apertadas. Uma deixa para uma entrada – ainda que
superficial – no universo homossexual, encadeando um clube para travestis com
uma festinha undeground de lésbicas, obviamente encenada, em que garotas
vestindo lingeries e trajes de couro trocam beijos, carícias e chicotadas. De
maneira semelhante é feita a abordagem do homossexualismo masculino, com
uma visita à uma sauna onde gays se entregam ao sexo coletivo e a um clube
sadomasoquista no qual dominadores bigodudos, trajando roupas de couro,
óculos ray-ban e quepes humilham seus parceiros submissos.
328
O sadomasoquismo se faz presente também em outro trecho do filme,
em que um casal se dedica a esse tipo de relacionamento na masmorra de um
castelo. Segundo o narrador, a dupla, casada e com filhos, semanalmente vai a
este local com essa finalidade. O homem suspende a mulher pelos pulsos através
de correntes e chicoteia sua nádegas. Na verdade, em um plano geral, vemos ao
fundo outras pessoas nuas entregues a atividades de dominação, o que nos faz
deduzir que esse trecho obviamente encenado nada mais é do que enxerto de
alguma outra produção. Essa evidência de falta de amarração narrativa e
aproveitamento de material de outras fontes também está presente na visita a um
estúdio onde estão sendo recrutadas atrizes para um filme pornô. Sai a narração
em over, passando ao som direto, com a câmera observando o diretor de cena
dando instruções para as jovens aspirantes. Elas começam lendo pequenos
trechos do script, se movimentando para a câmera e, seguindo as orientações,
tirando a roupa e fazendo poses provocantes. Logo são instigadas a performances
mais ousadas, duas delas se engajando em uma cena de lesbianismo, trocando
beijos e afagos, enquanto a outra se entrega ao sexo solitário, inclusive com a
insinuação do uso de um acessório de borracha em forma de pênis.
O grande problema de A França Proibida, como das derradeiras
produções mondo em uma época onde tudo podia ser exibido, é que não havia
justificativa para se cortar as seqüências antes do clímax. Ou seja, beiram o
pornográfico, mas nele não se situam, deixando uma insinuação de obscenidade –
aí ampliando esse sentido não só em relação ao sexo como à violência também –
que não se concretiza. Deixam um gosto de “quero mais” sem nem tentar, através
da continuidade narrativa de que carecem, dar um sentido que esconda essas
deficiências. A parte dedicada ao ocultismo, por exemplo, começa em um castelo
onde nos anos 30 adeptos das artes mágicas teriam desaparecido durante a
realização de um ritual, seus espíritos permancecendo assombrando o lugar. Pula
para uma constrangedora missa negra na floresta, em que encapuzados vestidos
de preto sacrificam uma galinha sobre o torso nu de uma mulher. A cena é
329
abruptamente cortada no momento em que um dos bruxos espalha com a mão o
sangue sobre os seios da discípula, passando para a exibição gratuita de nudez
na ensolarada Saint Tropez.
5.8. O lado escuro de Vênus – o sexo e o oculto.
Com a cada vez maior inserção de nudez e relações sexuais no cinema
convencional e uma crescente liberação da censura, assim como o esgotamento
da fórmula dos documentários mondo, os envolvidos nessa vertente buscaram
tornar mais intensas as seqüências de sexo. Não bastava mostrar apenas
mulheres despidas ou simulações de sexo softcore, mas trazer à tona um lado
mais perverso, o que já vinha sendo feito gradativamente. Afinal, desde Mundo
Cão, passando por inúmeros mondo posteriores, até os anos 80, como vimos com
Ásia Violenta e A França Proibida, eram inseridas cenas de prostituição,
homossexualismo, bizarrices e anomalias, em um apelo ao grotesco que tem
como base o fascínio atrelado a esse tipo de atração.
Com isso, o documentário se volta para os prazeres sombrios em um
mergulho diabólico onde a perversão testa os limites da liberação dos costumes.
Nesse universo dos sentidos se tornam comuns não só a exibição de fetiches e
anomalias extremas, mas também dos mais inusitados aspectos da sexualidade,
indo das operações para troca de sexo, passando por transexuais e clubes
dedicados ao sadismo, até rituais de magia negra e ocultismo. Esses rituais,
pretensos ou não, ficaram em voga a partir de meados da década de 1960, como
bem observa Lachman (2001, p. xvi), período em que o pensamento oculto e
mísitico ganharam maior destaque na consciência popular.
Em plena contracultura dos sixties, quando a palavra de ordem era
“Deus está morto!”, o ocultismo já vinha colhendo as sementes plantadas anos
330
antes, com o ressurgimento das práticas pagãs na Wicca
39
, trazida para os
Estados Unidos pelo casal Buckland após a reabilitação promovida por Gerald
Gardner. Sementes que encontraram terreno fértil na clara tendência do
movimento hippie em retornar a um modo de vida mais natural e nas tentativas de
Timothy Leary em promover estados alterados baseados no LSD. A ascensão do
satanismo encontrou espaço nas recém-formadas comunidades insatisfeitas com
o status quo, tornando-se manifestação da necessidade de libertação e evasão.
As bruxas passaram a sair à luz do dia e ganhar notoriedade e as ervas mágicas
(a maconha entre elas) usadas como alternativa ao LSD.
Mas nem tudo eram flores no alvorecer da Era de Aquário. Um lado
sombrio caminhava paralelo a toda a paz e amor que, supostamente caracterizava
a época. Por debaixo daquela colorida imagem de um mundo de fraternidade e
compaixão, uma outra dimensão emergia, tingindo com uma outra cor – o negro –
os sonhos de uma geração. Dimensão marcada pelo emblemático assassinato
perpetrado pelos hippies a serviço de Charles Manson. Portanto não era de se
estranhar que o cinema se direcionasse para essa tendência – ainda que não
fosse nenhuma novidade a abordagem do oculto e bruxaria como tema, visto a já
então enorme quantidade de filmes de horror dedicados ao assunto. Podemos
considerar, em se tratando dos anos sessenta, O Bebê de Rosemary (Rosemary’s
Baby, 1968), de Roman Polanski (coincidência ou não, marido da vítima mais
famosa da “família” Manson – a atriz Sharon Tate), o exemplar que melhor
representou o período.
Já o cinema documentário não tinha uma tradição em tratar dessa
temática, passando a utilizá-la, na maioria das vezes com fins não muito
abonadores nessa passagem dos anos 1960 para 70. O que é interessante, pois
39
Denominação contemporânea da feitiçaria, que conta hoje com grande número de adeptos em
vários países.
331
foi nos primórdios do documentário que vamos encontrar as raízes do que viria a
ser o “cinema satânico”, na produção dinamarquesa Häxan (1921). Obra prima de
Benjamin Christensen, é também um dos mais importantes filmes realizados sobre
o assunto e uma espécie de pedra fundamental para o que se faria no futuro, no
que podemos chamar de “cinema satânico”.
Häxan foi escrito e dirigido a convite da Svensk Fimindustri e filmado na
Suécia durante os anos 1919 e 1921, sendo lançado em 1922 e permanecendo
até hoje uma interessante experiência fílmica. Recria de forma única, em que
didatismo se mistura à bem humorada fantasia, a perseguição à bruxaria nos
séculos XV e XVI, usando o tema para mostrar que os medos que a causaram
ainda persistiam no início do século XX. As seqüências de pessoas sendo
torturadas são exploradas, assim como as imagens grotescas com doses de
nudez e blasfêmia – relacionadas à temática religiosa -, justificam em parte a
censura que acompanhou o filme durante décadas.
A construção narrativa de Häxan é pontuada pela presença do diretor,
que se impõe durante todo o filme. É ele quem vai narrar – através dos intertítulos,
já que o filme é mudo – os sete capítulos que compõem a obra. Narrador que se
afirma pelo uso constante da primeira pessoa. Christensen se apresenta inclusive
como tal, já que a primeira tomada é um close seu – uma evidente assinatura da
obra. Ao contrário de adotar um estilo impessoal e distante, comum aos
documentários clássicos, ele se dirige ao espectador como um bem-humorado
professor, ou mesmo um amigo em uma conversa informal. Procura, desse modo,
conforme a sua afirmação “se debruçar sobre a história do misticismo e tentar
explicar o misterioso capítulo conhecido como bruxaria”.
É interessante observarmos como Christensen trabalhou vários modos
narrativos, integrando – o que é observado por Chris Fujiwara (2001) - fato, ficção,
realidade objetiva, alucinação e diferentes níveis de representação, elementos que
manipula com uma inusitada liberdade deixando no ar uma permanente
332
ambigüidade. Ele literalmente abre parênteses em meio aos episódios narrados,
sendo que muitas vezes não dá muitas pistas (ou nenhuma) sobre o trecho
inserido, talvez acreditando que sirvam para ilustrar, de modo a dar mais
informações sobre o evento apresentado. O que preenche de forma interessante
os freqüentes saltos narrativos.
Com toda a ousadia formal, percebemos a construção de Häxan se
encaixa em essência na forma utilizada pelo documentário clássico, pricipalmente
pelo uso da voz over – presente através dos intertítulos -, encenação e
enunciados sobre o tema abordado. Forma que é freqüentemente rompida ou
mesmo superada por necessidades estilísticas ou de efeito.
O primeiro capítulo é didático: uma apresentação do que seria a história
da magia a partir da Antigüidade, com seus deuses, demônios e exemplos de
cosmogonias. O narrador adota um tom professoral, exibindo slides e
comentando, através deles, o assunto. São mostrados diversos exemplares
iconográficos remetendo à mitologia das antigas civilizações e período medieval,
além de maquetes (como a que reconstrói a idéia dos antigos egípcios sobre o
mundo). Um bastão é introduzido nos quadros, destacando o que é descrito nos
intertítulos. Chamamos a atenção, nessa parte do filme, para uma simulação do
que seria o universo no imaginário da Alta Idade Média. Ele nos dá, inicialmente,
uma visão do planeta, uma esfera estacionária e solitária no centro do universo.
Seqüencialmente vão sendo inseridos em sobreposição, conforme são explicados,
os outros elementos: uma camada de ar, uma camada de fogo, os planetas
circundando e sobre tudo isso o Todo-Poderoso, cercado por nove coros de anjos.
Isso serve de preâmbulo para chegar ao motivo principal da apresentação: o
Inferno, profundamente abaixo, no centro da Terra, figurado primeiramente com
uma gravura na qual condenados são torturados e cozidos em caldeirões. É
exibida nova sequência de exemplares da iconografia medieval e renascentista,
desta vez priorizando motivos infernais, enquanto o narrador nos leva a conhecer
o mundo dos demônios, bruxas e sabbaths. Tema que se apresenta bastante
333
apropriadamente por Bakhtin, como outra fonte da concepção grotesca do corpo
em sua representação dos mistérios e, sobretudo, das diabruras (BAKHTIN, 1987,
p. 304). A essa cosmologia medieval recriada visualmente por Christensen,
podemos atrelar o observado pelo teórico russo:
O próprio arranjo da cena, onde deviam representar-se os mistérios, tem
igualmente uma importância primordial. Ela era o reflexo das idéias
relativas à organização hierárquica do espaço mundial. O primeiro plano
estava ocupado por uma construção especial, espécie de plataforma que
constituía o rés-do-chão da cena e que se chamava a terra. A parte de
trás estava ocupada por uma seção ligeiramente mais elevada: o paraíso,
o céu (esse nome se reserva nos teatros anuais ao último andar dos
balcões). Sob a terra se encontrava a cavidade do inferno que tinha o
aspecto de uma larga cortina sobre a qual estava pintada a cabeça
aterradora e gigantesca do diabo (...). Essa cortina podia ser corrida por
meio de cordões e então os diabos pulavam para fora da boca aberta de
Satã (às vezes também de seus olhos) e saltitavam sobre a plataforma
que representava a terra (BAKHTIN, 1987, p. 305).
O segundo capítulo de Häxan é todo encenado e se passa em 1488 –
quatro anos após a promulgação da bula de Inocêncio VIII. O cenário é a casa de
uma bruxa, que se encontra entretida cozinhando suas poções em um fogão a
lenha. Visão bastante fiel às narrativas folclóricas, que se reflete no cenário bem
cuidado e nos próprios personagens retratados. Estes elementos – cenários e
personagens - parecem saídos diretamente de pinturas e gravuras do período. O
caráter pictórico das imagens de Christensen é um ponto que merece atenção.
Por vezes ele literalmente reproduz antigas xilogravuras e pinturas, fazendo com
que ganhem vida. São evidentes, durante quase todo o filme, as suas
interpretações dos trabalhos de artistas contemporâneos à época retratada,
principalmente o holandês Hieronymus Bosch, responsável por assustadoras
representações das forças do mal. Em suas pinturas, conforme o historiador da
arte E. H. Gombrich (1999, pp. 356 – 359), amontoam-se horrores sobre horrores,
labaredas e tormentos de toda a espécie, e todos os tipos de demônios
pavorosos, meio humanos ou meio máquinas, que flagelam e castigam por toda a
334
eternidade as pobres almas pecadoras. Concordamos com o autor quando afirma
que pela primeira e talvez única vez, um artista conseguiu dar forma concreta e
tangível aos medos que obcecavam o espírito dos homens na Idade Média. Outro
mestre da pintura flamenga do século XVI a quem Christensen também recorreu
foi Pieter Brueghel, o Velho – óbvia inspiração para que representasse as figuras
humanas daquela época com uma ênfase de um grotesco caricatural. Também
podemos citar as influências de outros pintores e gravadores que se dedicaram ao
tema, como Albrecht Dürer e o posterior Francisco Goya (1746 – 1828), autor de
célebre série de pinturas sobre bruxas. Imagens do inferno traduzidas na língua do
“baixo” material e corporal, que refletem a carnavalização das idéias cristãs oficiais
e se espalharam e prolongaram durante toda a Idade Média (BAKHTIN, 1987, p.
346).
O próprio diretor Benjamin Christensen interpreta o Diabo.
A bruxa do segundo capítulo é arquetípica: velha, feia e recolhe os
pedaços de um enforcado, que chegam escondidos em meio a um feixe de lenha.
Ela os guarda junto a outros ingredientes, como sapos e cobras vivas. O narrador
nos conta a influência do Diabo naqueles dias e como ele se insere no universo
335
das bruxas, através de suas artimanhas. Ilustra a idéia que se tinha da mulher
suscetível ao mal em duas histórias paralelas: da matrona que se utiliza de filtro
mágico para despertar a luxúria em um velho frade e da jovem adormecida
tentada em seu leito pelo Diabo. Este aparece interpretado pelo próprio Benjamin
Christensen, não satisfeito apenas com a posição de narrador. Calcado na
imagem que a própria Igreja fez do príncipe das trevas, apropriada do “deus
chifrudo” das religiões pagãs e visão antropomórfica do bode, o diretor personifica
um diabo caricato e debochado. Ao mesmo tempo em que o imbui de positivo teor
libertário. Um rebelde contra a negatividade e repressão representadas pela
Igreja,
O diretor também lança mão de efeitos especiais, na verdade trucagens
cinematográficas simples que revelam uma montagem bastante eficiente de
tomadas cuidadosas, associadas a animações, maquiagem e figurinos. Não
podemos deixar de lembrar, ao assistirmos a essas seqüências de cunho
fantástico, dos filmes do pioneiro Méliès
40
que, com certeza, serviram de modelo.
Em Häxan são utilizadas várias das técnicas exploradas inicialmente pelo
ilusionista francês, como: fotografia quadro-a-quadro para a animação, inversão
do tempo da ação com cenas montadas de trás para a frente, sobreposições e
fusões. Esses recursos, amplamente utilizados durante toda a narrativa, refletem o
engajamento de Christensen na sustentação do caráter maravilhoso do cinema.
Caráter herdado do assim chamado “primeiro cinema” na uma época em que o
novo meio mal saíra da puberdade. Ele constrói, desse modo, uma peça única de
40
É relevante o fato de ser o pioneiro francês também um dos primeiros a flertar com o fantástico e
representar o Diabo em suas produções (como Le Manoir du Diable/1896, entre outros curtas), o
que nos leva a crer como por demais explícita a influência de Méliès e seus filmes na obra de
Christensen.
336
poesia visual, desfraldando para o espectador um mundo fantástico e de encantos
– ainda que sinistros. Flávia Cesarino Costa (1995, p. 115) faz uma interessante
alusão ao trabalho de Méliès que merece ser citada, pois de certo modo, também
pode se aplicar a Benjamin Christensen:
Ao chamar a atenção do espectador de forma explícita e direta, Méliès
formula o projeto básico do primeiro cinema: espantar, mostrar uma
novidade, exibindo junto as capacidades mágicas do cinema. Deixando
aberta a ligação entre o mundo do espectador e a atmosfera exibicionista
do mundo mostrado na tela, os primeiros filmes vão permitir que a própria
montagem esteja a serviço do espetáculo e não da narrativa, e se mostre,
por isso, explicitamente.
A bruxa arquetípica.
O terceiro capítulo inicia novamente com o desfile de imagens, dessa
vez sobre os métodos usados pela inquisição para torturar e executar os acusados
de bruxaria. Em seguida, Christensen, através de outras sequências encenadas,
procura dar uma idéia de como ocorria um processo por bruxaria na época em que
o Papa enviou os seus padres inquisidores para a Alemanha. Em cuidada
337
reconstituição, a curta narrativa conta a história de Anna, uma jovem esposa
levada a acreditar por um adivinho que a doença de seu marido se devia a
bruxaria. Ela acaba acusando uma velha mendiga, que é encarcerada e torturada
pelos sacerdotes. O anticlericalismo do diretor vai se tornando cada vez mais
explícito, principalmente ao relacionar as ações dos inquisidores à repressão
sexual, que se revertia em atos sadomasoquistas. Ele enfatiza a satisfação dos
algozes eclesiásticos ao torturar as suas vítimas seminuas, assim como as auto-
flagelações com que estes procuravam se livrar dos tormentos da carne, deixando
cada vez mais evidente sua incursão na exploração – imagem de um corpo
grotesco, freqüentemente despedaçado, queimado, engolido (BAKHTIN, 1987, p.
303). Estes conflitos estão presentes na figura de um jovem inquisidor, que sente
atração pela jovem Anna desde quando ela toca em seu braço ao pedir ajuda.
Gesto que faz com ele se sinta – de acordo com os intertítulos – “em fogo” e, por
sua vez, enfeitiçado.
O capítulo seguinte nos leva direto às masmorras e câmaras de torturas
da Santa Inquisição, com a mendiga sendo forçada a confessar as suas relações
com o Diabo e a bruxaria. Cedendo aos martírios e induzida pelos algozes, inicia o
seu relato, ilustrado por cenas de teor fantástico que relacionam-se às crenças e
superstições que foram agregadas na construção da imagem da bruxa e que são
o ponto alto do filme. Reminiscências de um passado pagão, hostilizadas pelos
cristãos. São recriadas as visões sensuais e fantasias eróticas que cercam o
ideário do sabbath
41
. Vamos citar um trecho da famosa “História da Feitiçaria”, de
Jeffrey Burton Russell (1993, pp. 25-26), que reproduz o quadro de bruxaria tal
41
Segundo Peter Haining (Magia Negra e Feitiçaria, 1973, pp. 55-56) “é bem difícil determinar a
época em que o sabá, como representado popularmente, começou a se realizar; talvez o Prof. Kurt
Seligman esteja mais próximo da verdade, quando diz: - O sabá tornou-se sinistro quando os
velhos ritos pagãos não foram mais considerados a ressurreição de um passado decadente, mas
uma atividade maligna nascida da heresia”.
338
qual foi fantasiado por escritores dos séculos XV e XVI e tornou-se um estereótipo
do tema:
Pusera-se o sol e as pessoas honestas estão dormindo. As bruxas
deslizam silenciosamente para fora de suas camas, (...). Preparam-se
para o sabá. Aquelas bruxas que vivem perto do local da reunião para lá
se dirigirão a pé; as que residem mais longe irão a um lugar secreto,
esfregam seus corpos com um ungüento que lhes permite levitar e saem
voando montadas em vassouras (...). Se entre elas está uma neófita (...)
é obrigada a guardar os segredos do culto (...). Renuncia oralmente à fé
cristã e sela a apostasia calcando aos pés um crucifixo ou excretando
sobre uma hóstia consagrada. Em seguida, ela adora o mestre masculino
do culto, o Diabo ou seu representante, oferecendo-lhe o beijo obsceno
nas nádegas. (...) As crianças são imoladas como oferendas ao Diabo.
(...) Começa então a orgia.
Christensen recria visões do sabá, de acordo com o imaginário medieval.
339
Um dos objetivos das torturas era obrigar o acusado a revelar os nomes
de seus cúmplices. O que acabava acontecendo, pois, sob tortura, a vítima ia
entregando os nomes de conhecidos que vinham à cabeça. No filme, a velha
aprisionada denuncia seus próprios acusadores – Anna, sua mãe e a criada. O
capítulo cinco mostra as conseqüências, com todos os envolvidos presos e
condenados.
O sexto capítulo descreve em detalhes os métodos e instrumentos de
tortura. Christensen indaga se não seriamos induzidos a confessar talentos
secretos se em nós fossem usadas tais ferramentas. E, em um corte narrativo
passa aos bastidores, com uma de suas atrizes experimentando por conta própria
um apertador de polegares
42
no intervalo das filmagens. Bem humorado, ele nos
diz:
“Não vou revelar as terríveis confissões que eu tirei da jovem em menos
de um minuto!”.
Também merece destaque outro momento registrado pelo diretor nos
bastidores, desta vez com mais sobriedade, fazendo convergir as realidades
fílmica e extra-fílmica. Ele relata que em determinado momento a atriz que
interpreta a mendiga – ela própria uma mulher simples -, séria, levanta o rosto
cansado e diz:
“O Diabo é real. Eu o vi sentado em minha cabeceira”.
42
Instrumento de tortura muito utilizado nas mulheres.
340
Como sugere Chris Fujiwara (2001):
Na tomada da atriz, ela aparece em sua vestimenta medieval. Sem
dúvida, Christensen estava ciente da analogia entre a confissão do
personagem aos inquisidores e a confissão da atriz a ele, assim como
entre os instrumentos de tortura e sua câmera.
Outra faceta da histeria demoníaca que tomou conta da Europa durante
a Idade Média não foi esquecida em Häxan: as possessões coletivas e práticas de
feitiçaria que relatos extraordinários contam ter ocorrido nos monastérios de forma
quase epidêmica, principalmente durante os séculos XV e XVI. Um dos casos
mais célebres teria ocorrido em Loudun, França (1634), envolvendo o pároco
Urbain Grandier e freiras ursulinas do convento local
43
. Episódio que
posteriormente inspirou o livro “Os Demônios de Loudun”, de Aldous Huxley e o
filme de Ken Russell The Devils (1972). Em Häxan, as piedosas irmãs são
tentadas pelo Diabo (Christensen) e passam a agir, ensandecidas, entre
blasfêmias e desrespeito aos objetos sagrados. Lembramos que em 1899, Méliès
já abordara o tema em Le Diable au Couvent, interpretando seu personagem
preferido: o Demo.
Na sétima e última parte do filme, o diretor traz o tema para os dias
atuais – no caso a segunda década do século XX – e, à luz das novas formas de
se ver o mundo, tenta estabelecer relações com os temas abordados em Häxan.
Faz-se necessário lembrar que naquele período Freud estava, com o lançamento
43
Urbain Grandier foi sacerdote do convento de Loudun. Foi levado à fogueira em 1634 acusado
de ter pactuado com o Diabo e ser o responsável pela possessão de todas as freiras do convento.
O processo de Loudun é um dos mais absurdos de endemoniados que a História conhece. Nos
arquivos de Poitiers foram encontrados o pacto que Grandier fez com o Diabo e a “resposta” deste.
341
de “O ego e o id”, completando a organização de sua teoria psicanalítica que vinha
sendo edificada desde o final do século anterior. Notamos que Christensen utilizou
as idéias do médico austríaco no desvendamento dos mecanismos psíquicos da
histeria, associando os mesmos ao comportamento atribuído às bruxas e aos
possessos. Ele ilustra com a encenação da história de uma jovem que perambula
sonâmbula e é movida a compulsões. Também está explícito neste último capítulo
uma tentativa de enfoque sociológico – reflexo de um período de efervescência
política. De forma documental, através de closes de mulheres idosas, deficientes e
de aspecto miserável, afirma que no passado, elas com certeza seriam acusadas
de bruxaria. Ele pretende enfatizar que, se as pessoas não são mais queimadas
em estacas, ainda sofrem na miséria e exclusão social. E que de modo
semelhante aos seus antepassados, o ser humano ainda está preso às
superstições, buscando a solução para os seus males e incertezas nos que
perpetuam a tradição das antigas bruxas e feiticeiras – atualizados na pele dos
leitores de sorte, videntes e cartomantes. Com Häxan, Christensen não só
cristaliza sua crítica ao papel negativo das igrejas e a todas as formas de
superstições mas, principalmente, executa um brilhante exercício de cinema
documentário, onde um didatismo revestido de profundas raízes históricas ganha
vida e se abrilhanta através da bem dosada exposição de imagens que transitam
entre o naturalismo e o maravilhoso, pontuadas por uma exemplar exploração do
grotesco, da violência e do sexo.
Também merece destaque o fato de ser até hoje, indubitavelmente
atual. Häxan, com seu tom blasfemo e anticlerical, escandalizou o público na
época de seu lançamento, sendo banido em vários países. Pode ser considerado
um desses filmes que, injustamente negligenciados, tiveram poucas exibições e,
apesar de sua importância histórica, foi algumas vezes modificado. Mesmo assim
continuou sendo exibido e comercializado. Sua mais conhecida encarnação –
Witchcraft Through the Ages –, foi exibida no final dos anos 60 graças não só a
seu caráter subversivo, mas por sua representação do Diabo como uma figura de
342
liberação, um rebelde contra as forças de negatividade e repressão sexual
representadas pela Igreja e pelos poderes constituídos. Nesta versão remontada,
os intertítulos foram substituídos pela narração do poeta e romancista beat William
Burroughs, sendo também incluída como trilha sonora jazzística. Isso se justifica
pelo caráter atemporal do filme de Christensen. Atemporalidade que creditamos
ao fato de ser Häxan, diferente de muitos filmes mudos do período de sua
realização, uma peça única e ainda vibrante e inventiva.
Somente décadas depois, na passagem dos anos 1960 para a década
seguinte, vamos encontrar outros dois documentários significativos, totalmente
voltados para a temática abordada por Christensen: Sex Rituals of the Occult e
Satanis (também conhecido como Satanis - The Devil’s Mass), ambos realizados
em 1970 e bem distintos em sua concepção.
O primeiro, realizado pelo operador de câmera Robert Caranico – que
possui no currículo como diretor somente esta produção e um episódio da série de
tv The New Lassie – é supostamente um documentário com o intento de revelar
ao público pela primeira vez autênticos ritos sexuais protagonizados por adeptos
das artes místicas da era de aquário. A legitimidade é conferida pelo sóbrio
narrador, que se apresenta como um estudioso do oculto – o ator Vincent Stevens.
Ele é também o mestre-de-cerimônias do filme, aparecendo em blocos que
servem de introdução às seqüências obviamente encenadas, nos quais ele dá
uma prévia do que será mostrado. Apregoando um propósito educativo, busca
associar em sua pseudo-erudição trechos de livros de história ou de feitiçaria com
o senso comum, que sempre associou bruxaria e perversão sexual. Desse modo,
enfatiza o que seria um caráter sexual das artes mágicas.
Sex Rituals of the Occult se passa em apenas dois cenários: o escritório
do apresentador, constituído por uma escrivaninha e um abajur, onde ele faz os
comentários; e um espaço – que pode ser um palco ou canto de estúdio – onde se
desenrolam os tais ritos sexuais. É interessante constatarmos alguma
343
preocupação cenográfica, já que esse ambiente único se transforma a cada bloco,
graças às cores utilizadas na iluminação e à mudança dos adereços utilizados, em
sintonia com o psicodelismo da época. Nota-se claramente uma criatividade
submetida ao orçamento nitidamente inexistente da produção já na sequência de
abertura, em que os créditos surgem escritos à mão sobre uma tela translúcida
que cobre os vultos de um homem e uma mulher, ambos despidos, simulando
posições sexuais.
Cada bloco representa uma modalidade de fetiche ou sexo não
convencional. Essas cenas são protagonizadas pelo mesmo bem disposto bando
de hippies. As ações vão progressivamente se tornando mais ousadas, a partir da
primeira em que uma das acólitas se finge de morta, despida em um caixão. Após
ser apalpada pelo grupo, que circula a urna, protagoniza uma sessão de sexo
simulado com um dos rapazes, que se sobrepõe a ela dentro do caixão.
Sex Rituals of the Occult.
344
Sucede-se inserção simulada de objetos, alusão ao bestialismo (na
verdade um dos bruxos usando uma coleira de cachorro), lesbianismo com
cunnilingus explícito, flagelações e sadomasoquismo, uma rápida e tímida
seqüência de homossexualismo masculino e um número que explora o exotismo
do vodu, com dança e striptease. Poucos limites são ultrapassados, apesar da
pretensão de ousadia calcada na representação de tabus. Pênis e vulvas são
expostos continuamente, mas raras são as cenas em que se vislumbra uma
ereção. As cópulas são todas simuladas, ainda que se mostre freqüentemente
contatos genitais superficiais, principalmente no final de cada bloco, que termina
invariavelmente com uma cena de sexo coletivo, atenuada pelo efeito das lentes
que reproduz em caleidoscópio o que está sendo mostrado. O máximo de audácia
é o breve trecho em que uma mulher manipula e estimula oralmente o membro do
parceiro até a ejaculação. Não a ejaculação copiosa, em jorros que viria a se
tornar padrão na pornografia fílmica, mas um acanhado esguicho.
Mais elaborado é o documentário Satanis – The Devil’s Mass, um bem
articulado documentário com fortes elementos de exploração. Retratando as
atividades da famosa Igreja de Satã, de São Francisco, criada por Szandor Anton
LaVey, foi todo rodado buscando a estética do cinema verdade. O que lhe confere
um caráter pretensioso, já que o ponto alto é o apelo das cenas envolvendo o
cerimonial satanista. É, além do primeiro, um dos raros registros em filme de um
movimento não só significativo da contracultura americana dos anos 60, e também
o mais importante do satanismo contemporâneo. Como sugere Baddeley (2006, p.
67):
De modo perverso, o grupo satanista de LaVey teve origem na revolução
dos anos 1960. Em um acesso de fúria edipiana, a Igreja de Satã
assassinava o pai – o movimento hippie – com repulsa, para “foder” a
mãe – o establishment conservador. LaVey construiu um templo para
verdadeiros individualistas que não queriam se abrigar debaixo do pálido
aspecto de não-conformismo hippie: uma crença herética que zombava
do mal-passado misticismo oriental e filosofias simplórias de amor
345
universal, identificando no ethos hippie nada mais que outro movimento
utópico – como o Cristianismo – definitivamente inútil por se recusar a
reconhecer a natureza bestial do animal humano. (...) LaVey exaltava o
autêntico individualismo que ele destacava em meio ao não-conformismo
que sempre existiu nas margens da cultura ocidental, dando-lhe lugar em
uma filosofia que rotulou de “satânica”. Por outro lado, seria improvável
que ele pudesse estabelecer sua nova igreja se não fosse pela convulsão
espiritual e social dos anos 1960.
Intercala depoimentos de LaVey e seus discípulos, vizinhos da igreja,
detratores e simpatizantes com cenas bizarras de nudez e sexo simulado durante
os rituais, apresentados como um grande teatro, no melhor estilo grand-guignol.
Szandor LaVey, criador da igreja de Satã, durante cerimônia em Satanis.
Para melhor nos situarmos, devemos ter em mente o passado circense
do auto-intitulado “papa negro”, primeiramente como assistente do domador de
leões e pouco depois profetizando a sorte dos pagantes, fazendo cartas astrais e
treinando hipnotismo em parques de diversão. A isso soma-se a experiência no
ramo do entretenimento de exploração, conquistada graças ao período que
passou tocando órgão (instrumento que dominava com maestria) em shows
346
burlescos. Esse background não estaria completo sem seus estudos em
criminologia, que levou a cabo na San Francisco City College, e que lhe deram
meios para atuar temporariamente no departamento de polícia daquela cidade
como fotógrafo de cenas de crime. A experiência, como observa Lachman (2001,
p. 251), fez com que lhe fosse revelado o pior lado da vida humana, levando
LaVey a reconhecer a violência como parte de um plano divino e fazendo com que
aprofundasse mais seu interesse no oculto.
Como geralmente ocorre com figuras controversas, fato e ficção
misturam-se de modo que muitas vezes tornam-se indistintos os limites entre
lenda e factualidade. Principalmente em indivíduos com a capacidade de
autopromoção de Anton LaVey. Mas levarmos em conta essa variada trajetória
ajuda a compreender o senso de exploração que reveste o filme, que apesar de
dirigido por Ray Laurent, tem explícita a marca do fundador da Igreja de Satã. O
que por sua vez o transforma em atraente peça de propaganda de suas idéias e
publicidade para a instituição. Autêntico showman, LaVey domina completamente
o filme, do início ao fim.
As entrevistas e depoimentos, no estilo característico do cinema
verdade – com alguma interferência em alguns momentos da voz do entrevistador
-, estão agrupados em blocos. São alternados os comentários de representantes
religiosos (um católico e dois mórmons) e da vizinhança – favoráveis e
desfavoráveis – com longos depoimentos de LaVey sobre sua muito peculiar
filosofia
44
. Em alguns momentos mais descontraídos, ele aparece cercado de seus
44
O escritor Hans Holzer – que possui no currículo várias publicações dedicadas ao ocultismo e
parapsicologia - , dedicou um capítulo de sua obra (hoje rara) A Verdade Sobre a Bruxaria a Anton
Lavey. No trabalho, publicado em 1969, em que pinta o quadro do movimento pagão e satanista do
final dos anos 1960, ele relata a sua visita à Igreja de Satã, onde presenciou uma missa negra. É
leitura bastante interessante, pois reafirma e esclarece vários pontos mostrados no filme,
destacando os relacionados à cerimônia,. Pode-se dizer que são obras que se complementam, já
que sua análise nos leva a compreender melhor tanto o grande talento de LaVey (seu domínio de
347
discípulos discutindo assuntos relacionados, com destaque para o sexo. Nessas
tomadas, a câmera ocupa o centro, diretamente oposta ao líder da congregação,
abrangendo todo o grupo, que alinha-se a direita e esquerda, em semi-círculo.
Presença constante da nudez nos rituais celebrados no filme.
Esses blocos são intercalados com a missa negra que dá subtítulo ao
filme. Ou trechos de vários rituais, encenados para ilustrar e angariar não só a
atenção do público, mas também, possivelmente, novos acólitos. Como um teatro
cena e capacidade de fazer do cerimonial um grande show) quanto o seu pensamento e
ritualística. Segundo o relato de Holzer (1969, pp. 218, 222), por exemplo, já que adoravam Satã
como deus da carne, era perfeitamente natural a presença de uma mulher nua no altar. Também
enfatiza o repúdio dos componentes da igreja de Satã às superstições medievais. Ou seja, não
ocorrem assassinatos rituais (inclusive de animais). O satanismo, em sua concepção, é um culto
dedicado aos prazeres mundanos, livre de qualquer restrição moral, de sentimentos de culpa, do
medo e do conceito de pecado original. Não acreditam no demônio como criatura viva. Para eles, o
demônio existe em cada homem, configurando aquela parte da natureza humana que tem
necessidade de viver integralmente os prazeres da carne. Ao invocarem Satã (isso está bem,
marcado no filme), a congregação de LaVey está invocando os seus próprios desejos
inconscientes, a fim de encorajá-los a se manifestarem. Também defendem o egoísmo e
desprezam qualquer tipo de humanitarismo. Como o próprio diz no filme: “If you’re gonna sin, be
the best sinner on the block”. Finalmente, convergem, livro e filme, a peculiar visão política de
LaVey, que gostaria de ver o mundo governado por monarcas e ditadores. Segundo ele, liberdade
demais não é bom para o homem, com exceção da liberdade da carne, que precisa ser
encorajada.
348
macabro, em ambiente cenograficamente elaborado – em muito superior ao tosco
Sex Rituals of the Occult -, já que se tratava do autêntico templo da casa em que
LaVey vivia e conduzia suas cerimônias, cada participante encena um papel
ritualisticamente predestinado. Os acessórios, vestimentas, máscaras e
instrumentos integram-se harmonicamente, configurando um palco elaborado para
as atividades litúrgicas em que a função de espetáculo salta aos olhos.
Essa teatralidade fica evidente logo no início do primeiro bloco ritual –
são quatro ao todo -, quando a congregação dirige-se ao templo. A câmera,
posicionada a uma certa distância, mostra o grupo passando por ela, caminhando
solene. Esse desfile respeita uma hierarquia entre as figuras de preto
paramentadas com os mantos rituais e grandes máscaras de animais e demônios.
Por último passa LaVey, nas vestes com as quais ficou eternizado e que
caracterizam a mais famosa alegoria do Diabo: capa preta e capacete com chifres.
Posicionado em círculo, tendo em destaque uma das mulheres nua
sobre um tablado que serve de altar ostentando ao fundo um grande pentagrama
invertido, o grupo ouve a invocação das potestades infernais pelo mestre-de-
cerimônias. Este é subitamente interrompido por LaVey, que diz: “Ok, é bastante
para essa parte”. Um forte indício de que sua personalidade dominante tomara as
rédeas do encaminhamento do filme. No que acreditamos, já que o filme era um
veículo perfeito para a sua promoção. Infelizmente desconhecemos material
disponível sobre a realização de Satanis que possa esclarecer o assunto (quem
sabe o diretor, o desafortunado Laurent, temia uma maldição do satanista).
Os rituais seguintes vão se aprofundando, progressivamente, na
exploração da nudez e do sexo, do mesmo modo que o teor das entrevistas e
depoimentos. No segundo, comandado por LaVey, que aparece em primeiro plano
tendo ao fundo uma loura nua fazendo a vez de altar, um dos homens, em vestes
que são um arremedo da indumentária dos papas católicos, deita-se de bruços
sobre um caixão. Num exercício fetichista, em que o tom sadomasoquista
349
predomina, uma das participantes aproxima-se, levanta o manto do indivíduo e
desnuda-lhe as nádegas, que passa a chicotear vigorosamente. A câmera se
aproxima, mostrando em detalhes as marcas das vergastadas no traseiro. Em
seguida, ele se levanta e o caixão é aberto, revelando outra discípula de LaVey –
uma mulher na casa dos cinqüenta anos, que passa quase todo o filme despida e
demonstra um apetite sexual formidável – deitada em seu interior. Ela tem pintado
sobre os seios o número da Besta, 666 (figura seguinte). O homem se deita sobre
ela e começam a copular, sendo o caixão fechado pelo grupo com os dois lá
dentro.
A terceira cerimônia é dedicada a lançar uma maldição. A loura do ritual
anterior, despida, está amarrada em uma estaca. No centro do espaço
consagrado, outra mulher, também nua, dança com uma cobra enrolada no corpo.
Durante longos minutos a câmera mostra detalhes da anatomia da dançarina,
sendo a nudez frontal focalizada de relance. Filtros vermelhos são utilizados de
modo a acentuar a aura satânica, preparando o espectador para o sacrifício: um
boneco é espetado, representando a vítima.
350
É importante destacarmos que se o sexo, como observa Holzer (1969,
p. 222), é elemento de pouca importância para LaVey, que o considera uma
expressão perfeitamente normal que não precisa de nenhum tipo especial de
propaganda, a idéia passada no documentário é completamente oposta. A leitura
que o filme oferece é justamente a de que, se você for um feliz freqüentador do
“clube” satanista, vai interagir com um ambiente de permissividade e luxúria, em
que poderá dar livre vazão aos seus instintos sexuais. A exploração da
sexualidade sublinha todo o filme, desde o uso da mistura de urina e sêmen usada
para aspergir a congregação durante a abertura dos trabalhos, passando pelos
depoimentos e debates e ostensiva nudez de teor fetichista. São poucas as
mulheres do grupo – pelo menos presentes na filmagem -, composto em sua
maioria de homens. São seis ao todo: A sacerdotisa-chefe (Diane, mulher de
LaVey), jovem e atraente; uma sexagenária; a moça loura, que devia estar na
faixa dos vinte anos; duas entre os trinta e quarenta anos; e a cinqüentona já
citada. Tirando as duas primeiras, todas expõem seus corpos nus. E dentre estas,
com exceção da jovem loura que aparece deitada no altar coberta com uma pele
de onça e em seguida é amarrada à estaca, que poderia figurar em qualquer filme
de terror B e nos leva a sugerir que tenha sido contratada pela produção do filme
ou pelo próprio Anton LaVey para tirar a roupa, todas fogem dos padrões de
beleza convencionais. A que aparenta ter menos idade dentre essas três restantes
– uns trinta-e-poucos, talvez -, é rechonchuda e ostenta seios fartos. Aparece pela
primeira vez na cerimônia de abertura deitada sobre o altar. A segunda, mais
velha – responável pela dança com a cobra e pelas vergastadas no outro
participante -, passando dos quarenta possivelmente, carrega no corpo não só as
marcas da idade, como também características geralmente não evidenciadas em
nudez filmica: celulite, abdomen flácido e profusão de cabelos cobrindo a região
genital. A cinqüentona é a mais emblemática, pois incorpora todos os paradigmas
que sempre marcaram a figura da feiticeira – a “bruxa-má” - e acabaram atrelados
a inúmeras produções do cinema de horror, como O Bebê de Rosemary, filme que
351
contou com o próprio Lavey como consultor. Talvez nenhuma mulher, com
exceção de Marjorie Cameron (que foi uma das protagonistas de Inauguration of
the Pleasure Dome / 1954, de Kenneth Anger), tenha melhor ostentado essa
síntese de perversão e sensualidade bruta quanto essa desconhecida
(infelizmente, graças à falta de documentação sobre o filme, ela permanece
anônima). Totalmente desinibida, desbocada e bem-humorada, fala sem rodeios
de sua vida sexual e práticas masturbatórias. Ela está nua na maior parte dos
depoimentos, sentada sobre o tablado do pentagrama, com apenas um crânio
cobrindo os genitais – com certeza um recurso utilizado para a não exibição
abusiva de partes íntimas. Durante a ritualística é a mais dedicada, sendo que
adornada com o 666 pintado sobre os seios é o mais próximo que a imaginação
poderia chegar da bíblica “prostituta da Babilônia”.
O quarto e último ritual, que antecede os créditos finais, é a conclusão
da missa negra. A mais jovem das discípulas, nua, senta-se no já conhecido
tablado com o pentagrama por trás. O sacerdote ordena que outra participante – a
mulher do número 666 – se dispa e tome o seu lugar. Um dos membros, usando a
máscara de Satã e manto preto, deita-se de bruços em seu colo. Ela suspende a
parte de baixo da indumentária do indivíduo e passa a acariciar suas nádegas.
LaVey se aproxima, faz algumas invocações e recita trechos de sua Bíblia
Satânica. Convida então os membros da seita a dirigirem ao Diabo as suas
preces, pedidos de benesses e infortúnios para os inimigos. Por fim, encerra a
cerimônia com o “beijo do Diabo”: a mais graduada das bruxas do grupo se dirige
ao altar e beija o traseiro ainda exposto do mascarado.
Mas não se limita a cenas de sexo e cerimoniais mágicos a exploração
circense encenada em Satanis. Esta se estende pelos aspectos mais domésticos
do universo de LaVey, como o leão de estimação e seus objetos e pinturas
peculiares, ligadas ao diabolismo. Com destaque para a sua coleção de fotos de
aberrações humanas, às quais dedicava especial apreço e interesse. Quando os
espetáculos circenses que as exploraram entraram em decadência e foram se
352
extingüindo, grande parte das aberrações não tiveram para onde se voltar, muitas
encontrando guarita na organização de LaVey. Este, devido ao seu passado, tinha
muitos amigos de circo, e conhecia intimamente o show business. Ele explicava a
atração de sua seita às aberrações da seguinte maneira: “Eles sentem que Deus
os tratou de maneira desonesta permitindo que nascessem deformados, e Satã,
ele próprio banido, possui mais simpatia por suas condições”. Reafirmando o
papel da Igreja de Satã como santuário para rebelados contra os valores
estabelecidos e injustos.
5.9. A reivindicação do real
Além dessa perseguição ao grotesco tendo Satã como guia, a
pornografia, em sua evolução terminou buscando, a partir dos anos 90, se
aproximar mais de seus objetos e do público reivindicando um caráter mais
realista e se afastando dos antigos paradigmas que a prendiam – salvo algumas
exceções - a estruturas ficcionais tradicionais. Para nos situarmos melhor nessa
aproximação, retornemos ao final dos anos 60. Naquele período, os filmes
pornográficos já incorporavam uma linha narrativa mais estruturada, mas ainda
eram exibidos em locais restritos: peep shows
45
e grindhouses
46
. Contemporâneo
45
Cabines privadas com máquinas que exibem filmes pornôs, geralmente localizadas em
sexshops, ou locais de encontros sexuais e prostituição. Eram equipadas com projetores de 8mm
que mostravam o mesmo filme repetidamente, em troca de pagamento. Com o avanço da
tecnologia passaram a ter televisores embutidos nas paredes e videocassetes, com um maior
número de seleções.
46 Termo usado para descrever um filme que sacrifica os valores tradicionais de filmagem, como
atuação, desenvolvimento de personagens, roteiros bem amarrados, etc., em favor do sexo,
353
de Jag Är Nyfiken, Kärlekens språk e W.R. – Misterije Organizma, Alex DeRenzy,
mais tarde famoso diretor especializado em filmes pornográficos, contribuiu para a
pavimentação do caminho que configurava uma nova abordagem do sexo com os
documentários A History of the Blue Movie e Pornography in Denmark (também
conhecido como Censorship in Denmark: a New Approach), ambos lançados em
1970, quando o documentário sexploitation entrava em declínio.
Nos Estados Unidos, no final daquela década, a liberalização da
pornografia na Dinamarca e em seguida na Suécia, chamaram a atenção dos
realizadores de filmes adultos, ainda na marginalidade. Com a superação de
dificuldades legais de Jag Är Nyfiken e a cada vez maior inclusão de produções
centradas em sexo simulado nos circuitos convencionais, avizinhava-se a real
possibilidade de se romper as barreiras que seguravam a pornografia hardcore.
Coube a Alex DeRenzy fazer isso com Pornography in Denmark, um documentário
sobre a liberdade sexual na Dinamarca rodado na primeira feira pornográfica
naquele país (1969). Evento que reunia produtores especializados em material
sexual (revistas, filmes e acessórios), interessados e consumidores. O filme
também faz uma incursão turística, mostrando lugares típicos e dando um breve
apanhado histórico sobre o país, o que serve ao propósito do diretor em dar ao
filme um aspecto de documentário sério. O que poderia livrá-lo de possíveis
problemas legais, uma possibilidade bastante plausível pela inclusão de cenas
explícitas capturadas pela câmera diretamente da tela de um cinema. Seqüência
justificada por De Renzy como constitutiva do contexto de um filme sobre
pornografia e censura.
History of the Blue Movie mostra a trajetória do sexo explícito nos
filmes, sendo uma coletânea de antigos stag movies, incluindo o anteriormente
comentado Free Ride (ou A Grass Sandwich). Cenas raras, principalmente em
sangue-e-tripas, nudez, violência e outros temas que podem ser considerados chocantes. O termo
se originou de cinemas que exibiam esse tipo de produção..
354
1970, quando ainda eram praticamente desconhecidas e não haviam sido
incluídas em dezenas de fitas de vídeo dedicadas ao tema – como a coleção Old
Time Blues. Acreditamos ser o ponto alto do filme a entrevista com uma jovem
que, interpelada por um entrevistador (em off), vai falando de suas preferências
sexuais e peripécias eróticas. Durante a maior parte da longa seqüência, a câmera
focaliza em close o rosto da moça, pegando cada detalhe de suas expressões,
inicialmente visivelmente constrangidas e no decorrer da entrevista, mais à
vontade e maliciosas. Sincronizada a isso, a câmera vai se afastando, revelando
por fim sua nudez. Termina o segmento com o recorte em detalhe da jovem se
masturbando. DeRenzy também insere duas outras seqüências que consideramos
antológicas – ambas simuladas. A primeira, uma encenação passada numa casa
de massagens, onde o cliente tenta convencer a relutante massagista a trocar de
lugar com ele. Acaba não só conseguindo convencê-la, como também tirar a sua
roupa e fazer sexo com ela. A outra seqüência, que encerra o filme, mostra um
casal chegando a um cinema erótico e procurando o próprio DeRenzy, dispostos a
serem filmados na intimidade.
History of the Blue Movie
355
Finalmente, com Garganta Profunda(Deep Throat), provou-se que era
viável e seguro fazer filmes de sexo explícito comercialmente. As peripécias de
Linda Lovelace iniciaram a chamada “era de ouro do pornô”, que vigorou durante
toda a década de 1970 e terminou com a difusão do videocassete, e a
conseqüente modificação na indústria na primeira metade do decênio seguinte.
Não demorou muito para a portabilidade dos novos equipamentos permitirem o
estabelecimento no pornô da estética gonzo, filmes pornográficos de teor mais
documental, beirando os reality shows atuais. Baseado do estilo jornalístico
inaugurado pelo escritor Hunter S. Thompson nos anos 60 e 70,
o processo de osmose utilizado pelo Gonzo Journalism cria uma situação
onde a captação é participativa, ou seja, o repórter não se limita a
observar os fatos que se desenrolam mas toma parte determinante na
ação. Uma captação participativa faz com que a redação seja
necessariamente confessional - ainda que de forma indireta, na voz de
uma personagem fictícia que represente o repórter, por exemplo. O uso
desta técnica de coleta de dados abre espaço para o uso de um narrador
em primeira pessoa (...).O uso da narrativa em primeira pessoa no Gonzo
encontra a sua explicação no fato deste ser um estilo de reportagem mais
focado na experiência vivida pelo repórter do que no evento em si, além
de ser muito mais simples - e mais verossímil - relatar os fatos através do
ponto de vista de quem os viveu em vez de criar uma personagem fictícia
com este fim (CZARNOBAI, 2003).
Sendo originário de um estilo no qual o jornalista se torna parte e
escarnece da ação, o gonzo hardcore já engatinhava, em filmes que não
privilegiavam contar uma história, mas sim, através de um roteiro simples, buscar
maior interação com o público. Usando poucos recursos orçamentários, o diretor
se transforma em alter-ego do espectador e a câmera em seus olhos, privilegiando
um ponto-de-vista em primeira pessoa. O estabelecimento dessa estética se deve,
em parte, à tendência iniciada nos anos 1980 em se lançar os filmes diretamente
no mercado de vídeo doméstico. Para John Stagliano, o Buttman, que em 1989
estabeleceu definitivamente essa vertente com o hoje clássico As Aventuras de
356
Buttman (The Adventures of Buttman), a relação custo-benefício proporcionada
pelos novos equipamentos de gravação foram fundamentais. De acordo com ele,
Essa maneira de pensar foi resultado de um grande “boom” com a
introdução de câmeras portáteis de alta qualidade e preços econômicos.
Na verdade, Buttman foi totalmente moldado graças à essa inovação.
Alguns de meus vídeos antigos usaram grandes e pesadas câmeras
Betacam (...). As câmeras Betacam não são apenas muito dispendiosas
para produtores como eu, como também são desajeitadas para se
trabalhar. Em outubro de 1989 comprei minha primeira câmera Hi-8. Eu a
estreei filmando uma cena em que duas garotas andavam de biquíni pela
praia. Antes das câmeras Hi-8, eu gastaria uma boa grana alugando uma
câmera que desse, a mim e a outros produtores, o incentivo de filmar o
máximo possível no curto período de tempo antes de vencer o aluguel do
equipamento. Agora que eu tinha minha própria câmera e não precisava
mais de uma equipe, pois o equipamento era fácil de operar e eu já sabia
mais sobre a produção de vídeos, tornou-se possível filmar apenas uma
cena de sexo por dia. Acredito que tenha sido a inovação mais importante
para a melhoria do pornô. (...) Além disso, a câmera sendo pequena e
leve, me fazia passar despercebido, possibilitando assim que eu
registrasse cenas de externa pra valer, sem falar que eu poderia viajar
com ela com muito mais comodidade (STAGLIANO, 1998, p. 12).
O editor da AVN Magazine, Gene Ross (ABREU, 1998, p. 13), define a
pornografia gonzo como “pornô verdade”, onde os atores reconhecem a presença
da câmera. O que é muito diferente de uma obra com roteiro ou de um vídeo sem
história em que os performers apenas fazem sexo sem se manifestar em relação
ao equipamento. Seria, portanto, um estilo mais livre e documental de se filmar,
sem diálogos extensos, cenários e figurinos elaborados e trabalho de câmera mais
técnico e artístico. Os performers não interpretam personagens e o diretor, que
normalmente também é o cameraman, interage com o espectador, contracena
com os atores e o rumo dos diálogos é totalmente improvisado. Essa abordagem é
marcada também por modificações no enquadramento em que a câmera deixa
seu suporte e ganha maior dinamismo na mão do operador/protagonista,
tornando-se presente na narrativa. Com isso, transporta o espectador da posição
tradicional de obsevador para dentro da cena.
357
Stagliano (1998, p. 12) conta que abandonou o pornô tradicional, sem a
visão em primeira pessoa, por principalmente perceber que as cenas de sexo não
precisavam estar necessariamente relacionadas umas às outras. Também pelos
problemas específicos em se fazer filmes de narrativas mais elaboradas: os atores
precisam ter ereção, muitas vezes faltam às filmagens, os custos para construção
de cenários e aluguel de locações, entre outros. Além do fato das pessoas serem
contratadas por sua habilidade em fazer sexo, e não por qualidades dramáticas.
Já que seu objetivo é filmar sexo, questiona em matéria na Revista Buttman
(ABREU, 1998, p. 13), “por que escrever um roteiro com frases e diálogo e
entregá-lo nas mãos de pessoas que não sabem interpretar? Se fizer isso, você se
distanciará da realidade e perderá a chance de uma conexão real com o fato de
mostrar pessoas fazendo sexo”. Sendo assim, concebeu que o melhor modo de se
produzir um filme pornô era registrando as cenas da maneira mais erótica
possível, com os recursos disponíveis, sem que as cenas de sexo tivessem,
obrigatoriamente, que se relacionar entre si. Para ele, fazer uma cena de sexo
com começo, meio e clímax de modo que tudo se relacione dentro de um
contexto, com uma história, é muito difícil e cria vários problemas, comprometendo
a intenção de se conseguir as melhores cenas possíveis. E que nos “pornôs com
história”, essas cenas mal se encaixam, e a pretensão de fazê-las intercalar não
vale muito a pena (STAGLIANO, 1998, 12).
Enquadramento gonzo.
358
Contudo, alguns diretores têm suas restrições ao estilo. Gegory Dark,
um dos renovadores do hardcore nos anos 80 com o reverenciado e hoje clássico
Geração New Wave, Sexo New Wave (New Wave Hookers, 1984) os vê como
relativamente interessantes. Mas acha a grande maioria tecnicamente muito ruim,
principalmente porque as pessoas não sabem capturar as cenas. Várias situações
se apresentam e eles não sabem filmá-las, a câmera fora do lugar. Segundo ele,
qualquer um pode fazer um vídeo amador. Ele mesmo afirma em uma tarde poder
ensinar uma pessoa como se tornar um pornógrafo. Mas – enfatiza -, conseguir
transcender o gênero, inovando a linguagem e o sexo, é a grande dificuldade
(LEMOS, 1997, 18).
Cenas de As Aventuras de Buttman.
Apesar disso, os vídeos gonzo caíram no gosto do público e
conquistaram o público do final dos anos 1980 em diante, alvancando também
outras vertentes que podemos alinhar na categoria de pornô verdade e
estabelecem o padrão atualmente dominante na pornografia fílmica,
estabelecendo a reivindicação do real pelo gênero: os filmes amadores
359
(geralmente caseiros, rodados em VHS), o “pro-am” (filmes feitos por profissionais
com atores amadores, ou uma mescla de atores profissionais e amadores) e o
pornô-realidade (reality pornography). Esta última também tende ao documental e
muitas vezes se confunde com o gonzo, mas se diferenciando por não
necessariamente ter o ponto-de-vista em primeira pessoa com o engajamento do
diretor na ação. Na verdade, ocorreu uma interseção de estilos entre todas essas
vertentes. A popularização do gonzo, entretanto, fez com que se desvirtuasse sua
concepção básica e fizesse com que o rótulo começasse a ser utilizado
indevidamente em produções mais caras e bem cuidadas que contratriam seus
preceitos fundamentais.
Outros expoentes do estilo são os diretores Ed Powers, Seymore Butts,
Ben Dover e Max Hardcore. O primeiro conhecido pela serie Dirty Debutantes,
iniciada em 1989, onde amadoras que nunca atuaram em filme pornográficos
protagonizam cenas de masturbação e cenas de sexo com performers de ambos
os sexos. A fórmula dos episódios de Dirty Debutantes é basicamente a mesma:
começa com uma jovem sendo entrevistada por Powers, que lhe faz várias
perguntas centralizadas em sua vida sexual, como a primeira vez que fez sexo, se
costuma se masturbar ou gosta de sexo anal. No que parece se inspirar na
clássica seqüência de History of Blue Movie, em que Alex DeRenzy procede de
modo parecido. A moça acaba despida, com o diretor sugerindo uma série de
ações que ela pode fazer. Freqüentemente ele a encoraja a se masturbar até
atingir um orgasmo. Ele acaba participando da ação, fazendo sexo oral e vaginal,
geralmente terminando ejaculando sobre o traseiro, o rosto, a boca ou outras
partes do corpo da garota.
Seymore Butts (Adam Glasser) teve diversas participações em várias
produções nos anos 1980, inclusive em um dos primeiros filmes da série Buttman.
Começou a produzir e dirigir seus filmes no início da década seguinte, se
especializando no estilo gonzo, não demorando a se destacar, tendo hoje extensa
filmografia. Chegou a ser processado pela justiça californiana por incluir um fisting
360
(inserção da mão inteira ou do antebraço na vagina ou ânus) duplo no filme
Tampa Tushy Feast (1999). Prática comum nas produções européias, mas
proibida nos Estados Unidos. Teve sua sentença atenuada após acordo.
Já o inglês Ben Dover (Simon Lindsay Honey) se tornou popular pela
série que leva seu nome artístico, que produziu, dirigiu e estrelou entre 1996 e
2002. Os filmes enfocavam jovens mulheres, britânicas e de outros países do
continente, dentro da concepção gonzo, sendo algumas vezes premiado. Também
teve problemas com a distribuição de seus filmes nos Estados Unidos, onde
tiveram cortadas cenas de dupla penetração e analingus.
O mais notório da turma é Paul F. Little (conhecido pelo nome artístico
de Max Hardcore), cujos filmes geralmente o mostram em atos sexuais variados
com mulheres jovens vestidas e atuando como se fossem garotas adolescentes. O
que lhe causou diversos transtornos legais – por incentivo à pornografia infantil -,
ainda que nunca tenha sido condenado. É considerado um dos realizadores mais
“barra-pesada”, e também o mais misógeno pelo modo como degrada as mulheres
em seus filmes. São recorrentes as ofensas – ele as chama de vagabundas e
putas -, os abusos físicos e o enfoque calcado no menosprezo. Hardcore, que em
suas produções não usa nada além de um par de meias e seu indefectível chapéu
de cowboy, é em geral a única presença masculina, sendo considerado à parte
pela própria indústria pornô. Ainda que seu estilo tenha influenciado a pornografia
fílmica atual, com suas rudes cenas de sexo anal (predominantes em relação ao
intercurso vaginal), cuspidas, dilatação do orifício traseiro, engulhos durante o
fellatio, assim como atividades anais-orais, em que o pênis é retirado do ânus da
parceira e rapidamente inserido na boca da mesma ou de outra performer.
O gonzo fez escola no Brasil, onde encontrou campo fértil a partir de
vídeos caseiros que eram gravados e circulavam de forma alternativa e cresciam
em escala proporcional à queda dos preços dos equipamentos e aprimoramento
da tecnologia. Essa popularização do VHS (e mais tarde de outros formatos de
361
melhor qualidade – o Betacam, o Super-VHS e hoje em dia o Mini DV) permitiu o
desenvolvimento de um movimento a princípio estimulado pela possibilidade de
qualquer um registrar a sua intimidade e compartilhá-la através do intercâmbio
com outros amadores. Na verdade, o vídeo caseiro brasileiro não difere muito do
que se faz em outros países: grupos, casais homo ou heterossexuais, ou mesmo
pessoas sozinhas registrando suas atividades. São geralmente produções
rodadas com câmera parada, em quartos ou banheiros, onde o descuido com
elementos básicos como iluminação e enquadramento (principalmente quando
não existe um operador, e o equipamento é montado em um tripé apontado para a
cena) é padrão. O que em muitos casos funciona, mas em geral esses vídeos não
vão além de proporcionarem o prazer voyuerista de mostrar a nudez e
sexualidade de pessoas comuns. O que não quer dizer que alguns não sejam
mais ousados e talentosos tecnicamente, principalmente quando se descobriu no
vídeo amador um mercado altamente rentável.
Vídeos amadores.
Vários desses exibicionistas investiram em mais recursos e passaram a
montar a sua gravação com mais esmero em ilhas de edição caseiras, muitas
vezes encarregando-se também da venda (através de anúncios em revistas ou
362
sites da Internet). Outros enviam seus vídeos para algumas das várias empresas
destinadas especialmente à comercialização e distribuição de produção amadora,
tão grande é a procura desses filmes. É o caso da Explícitavídeo, sediada em São
Paulo, que iniciou suas atividades com a venda de coletâneas de vídeos
pornográficos amadores que recebiam de todas as partes do país, de anônimos
que registravam suas atividades. Eram cuidadosos em esconder digitalmente
(através de quadriculados na imagem) o rosto dos participantes, quando estes
apareciam.
Um certo número de amantes da pornografia, dentro dessa concepção
do “faça você mesmo o seu filme de sexo” buscaram um tipo de produção mais
elaborada e que, ainda no esquema amador, se alinhavam ao gonzo e ao pornô-
realidade. Os mais sortudos acabaram se profissionalizando, como os rapazes
(Ruy, Marcelo e Tatão) da paulista X-Plastic, auto-definidos em entrevista ao site
Brócolos VHS como “três vagabundos, onanistas, que cansaram de gastar
dinheiro na Rua Augusta e resolveram ganhar algum vendendo calcinhas usadas,
vídeos, fotos, camisetas, calcinhas novas”. Afirmam não serem nem pretenderem
ser artistas, definindo o que fazem como pornografia básica, direta, suja, porca e
perversa. Segundo os próprios, conforme manifesto em seu site, nada do que
fazem é arte. Podem inclusive se apropriar do trabalho de outros artistas, mas
tudo o que passa por eles se trasnforma em pornografia. Declaram simplesmente
ignorar o que chamam de erotismo ou nudez artística, considerando erotismo a
pornografia dos oprimidos.Iniciaram em 1995, quando tinham uma banda, e entre
as músicas sempre falavam de pornografia. De onde se direcionaram para os
vídeos pornográficos, sendo a entrada nesse universo, conforme contam, as
festas onde filmavam as bundas enquanto achavam que estavam filmando o
evento. Oficialmente foi com o vídeo Plastic Lesbian, uma animação com “Barbies
do Paraguai” e trechos de vídeos pornográficos, com que participaram do Festival
Mix Brasil de 1998. São unânimes na admiração pelo Buttman, que consideram
um mestre, sendo também influenciados por outros diretores que incorporaram o
363
gonzo ao seu trabalho, como Joey Silveira e a série Big Ass She-Male, Rocco
Siffredi com True Anal Stories, Patrick Collins, além dos filmes da série Take it to
the Limit.
Destacamos sua produção mais significativa, onde incorporam com
maior desenvoltura e anarquia a estética gonzo: Caçando Cuzinhos. Gravado em
Praia Grande, litoral de São Paulo, mostra o trio percorrendo as ruas de carro
procurando uma garota. Encontram uma morena chamada Nicole, a quem
oferecem uma carona.
X-Plastic: Caçando Cuzinhos.
Alegando precisarem dar uma parada em casa, vão bolinando e
pedindo à mulher que se exiba, ainda dentro do automóvel. Fica evidente que tudo
tinha sido combinado anteriormente, para dar autenticidade pela suposta
casualidade. Todos os enquadramentos privilegiam um olhar em primeira pessoa,
a câmera alternando seu foco de detalhes do corpo de Nicole para o rosto dos
realizadores, que se dirigem ao espectador falando diretamente para a lente. Em
certo momento, com a situação esquentando, um deles se volta para o
equipamento e diz: “Cara, você vai ver agora!”. A temática do vídeo é inteiramente
364
fetichista, prevalecendo a relação exibicionismo-voyeurismo, ao invés da relação
sexual que regem outras produções gonzo. O máximo de proximidade física se
resume a passadas de mãos e toques, tudo com muita descontração, com
especial destaque para a cena em que um deles, careca, coloca a cabeça entre as
pernas da moça. Nicole é registrada em detalhes: pés, vulva, seios, com especial
destaque ao traseiro e ânus. Ela é mostrada urinando (uma barata é
estrategicamente colocada dentro do balde e mostrada depois) e brincando com
um pirulito, seguindo a orientação dos rapazes, em meio a muita brincadeira e
desordem.
Cenas de Caçando Cuzinhos.
Um outro vídeo, rodado no mesmo local, parodia os programas onde
os espectadores fazem pedidos. Nicole, sentada em uma poltrona, vestindo
apenas a parte de cima do biquíni e uma bermuda, vai atendendo às solicitações –
presumidamente dos que assistiram Caçando Cuzinhos – passadas por um dos
membros do grupo. Visivelmente intimidada, realiza para a câmera ações como
enfiar o dedo no ânus e chupar, receber um banho de leite condensado na região
genital e simular felação em uma banana.
365
Atualmente a X-Plastic, que durante muito tempo era representante de
um movimento alternativo, com um site na Internet para divulgação e venda de
seus vídeos
47
(e posteriormente um blog
48
) ao que parece aderiu ao mercado com
uma produção mais elaborada, Libertinos Século XXI, lançada pela Explícitavídeo,
onde permanecem fiéis a seus objetivos de aliar pornografia à cena underground.
Outros representantes do gonzo brasileiro é o grupo que realiza a série
de filmes “Sexo na Van”. Caracterizados como amalucados personagens –
Chicano, Azulzinho, The Big One, Porquito e Dr. Xavaska – percorrem as ruas de
São Paulo em uma van, sempre arregimentando uma garota para fazer sexo com
eles, que também se revezam na operação da câmera. Apostam também no
achincalhe – uma versão pornô de programas populares como Casseta & Planeta
e Pânico na Tv, inclusive com as convidadas, com as quais não fazem rodeios
nem – como seus colegas da X-Plastic - economizam grosserias ou vulgaridades,
muitas beirando o escatológico. No episódio em que interagem com uma certa
“Laura”, um deles, se referindo ao tamanho do traseiro da mulher, comenta: “se
soltar um peido, vai voar confete”.
47
http://www.xplastic.net/
48
http://www.xplastic.blogger.com.br/
366
Os amalucados protagonistas de Sexo na Van e uma de suas convidadas.
Vamos encerrar nos direcionando ao pornô-realidade, onde
encontramos duas modalidades principais. A primeira constituída de filmes com
história, sendo esta travestida em casualidade. A câmera pode aparecer ou não
(dependendo de ter outro operador registrando de ângulo diferente), sendo a sua
presença assumida, com os performers – amadores ou atores se passanddo por
tal - se dirigindo ou olhando para ela. Vamos exemplificar com a produção
brasileira Como Comer a Mulherada (ano de produção e direção não informados),
dividido em três episódios que seguem a mesma fórmula: um desconhecido
aborda uma mulher, em um espaço público, e a convence a ser gravada fazendo
sexo com ele. Seguem para um quarto, em local indefinido, e passam à ação,
totalmente direcionada para a câmera, inclusive com sugestões de ângulos e
posições pelo parceiro. A abordagem ao ar livre, em locais ordinários – um
parque, uma feira-livre e uma rua -, somada ao aspecto também comum e simples
das mulheres – confere o sentido de realidade pretendido. As cenas de sexo são
convencionais, inclusive com a obrigatória ejaculação externa.
367
Abordagem na feira e relação sexual: Como Comer a Mulherada.
A segunda modalidade são as produções que se assemelham aos
reality shows, em que não há uma narrativa, mas uma sucessão de situações
criadas de forma a promover uma interação com o público, ciente de estar
assistindo a um espetáculo. Geralmente tomam a forma de programas de
auditórios eróticos, ou versões apimentadas de programas na linha Big Brother. O
mais conhecido e polêmico foi World’s Biggest Gang Bang, aqui intitulado Ela
Transa com 251 Homens, dirigido por John T. Bone em 1995. Produção que
lançou ao estrelato Annabel Chong (nome artístico de Grace Quek). Nascida em
Singapura (1972) e criada na Inglaterra, a pequenina Annabel estudava
antropologia na Universidade do Sul da Califórnia, tornando-se atriz pornô após ter
participado de um grupo de estudos feministas, como expressão de liberdade
sexual. Já participara como coadjuvante de pouco mais de uma dezena de filmes
para John T. Bone, notabilizando-se por cenas de dupla penetração anal, quando
foi escolhida pelo diretor para protagonizar um projeto que ele acalentava a
tempos e no qual pretendia bater um recorde, colocando trezentos homens para
fazer sexo com uma só mulher em uma jornada contínua. Maratona sexual que
durou oito horas (editadas em cerca de quatro horas de video), sendo encerrada
prematuramente quando Annabel foi ferida por um descuidado que a machucou
internamente após enfiar-lhe as unhas compridas (ela chega a dizer estar ferida
368
“pelos dedos, não pelos cacetes”). Ficou por fim abaixo do esperado, com o saldo
divulgado de 251 homens. Na verdade um número bem menor de participantes,
mas como podiam repetir, atingiu-se a marca que bateu o recorde da holandesa
Jenny van der Hoff, que teve relações com 120 homens em nove horas e vinte
minutos.
Annabel Chong com alguns dos anônimos selecionados para Ela Transa com 251 Homens.
Ela Transa com 251 Homens é um grande show, em que
acompanhamos cada detalhe da produção: bastidores; a chegada dos
participantes – selecionados a partir de anúncios -; o aquecimento destes por
mulheres estrategicamente contratadas; as pausas para Annabel descansar, se
enxugar e passar mais lubrificante; as entrevistas e intervenções bem humoradas
do mestre-de-cerimônias (o ator Ron Jeremy, um dos mais recorrentes performers
do gênero) e a orgia em si. Indivíduos de todas as idades, raças e formas se
revezando, em grupos de cinco, sobre a empenhada Annabel, que chupa, é
penetrada pela frente e por trás, e recebe banhos de esperma. Tudo ao mesmo
tempo, enquanto um placar vai marcando a contagem. John T. Bone não esperou
muito tempo para rodar uma continuação. Um ano depois, Jasmin St. Clair, uma
369
exótica nativa das Ilhas Virgens se ofereceu para quebrar o recorde de Annabel,
sendo logo contratada pelo diretor para World’s Biggest Gang Bang 2 (1996), título
desta vez traduzido mais fielmente quando de seu lançamento no Brasil: O Maior
Filme da Terra
49
.
A estrutura do filme é a mesma do anterior, sendo que com maior rigor
no tratamento dos participantes, que tiveram que apresentar testes negativos para
AIDS e ter as unhas tratadas por uma manicure nos bastidores para não ocorrer
de novo o incidente que vitimou Annabel. Jasmin, que declarara que “odiava trepar
com homens feios e preferia ser fodida por trás, para não ter que olhar para
muitos daqueles que se ofereceram para o gang bang”, segundo matéria do Guia
do Vídeo Erótico (1996, pp. 14, 15), quase não chegou ao objetivo final da
empreitada:
Longas horas depois, a orgia encerrou-se de forma meio decepcionante,
quando o parceiro de número trezentos subiu ao palco para foder a
recordista pela última vez: o escolhido foi Jordan, um rapaz de Nova York
que ganhou o concurso promovido por uma revista pornô para ser o
último a penetrar Jasmin. Com toda a pressão da platéia e do impaciente
diretor, Jordan intimidou-se e não conseguiu uma ereção aceitável, sendo
retirado do palco sem conseguir gozar sobre sua deusa pornô-havaiana.
49
Gang Bang em geral significa quando uma mulher faz sexo com vários homens ao mesmo
tempo.
370
Ela Transa com 251 Homens: Annabel Chong em intervalo para descanso (1), passando
lubrificante para outra rodada (2), selecionados enfileirados para entrar em ação (3) e retorno à
gravação (4).
371
6. Autenticando a farsa
6.1. O falso documentário
Uma vertente significativa na evolução desses filmes e sobre a qual
falaremos brevemente, como uma complementação, são as obras de ficção que
se revestem de autenticidade ao incorporar o estilo de narrativa dos
documentários na tentativa deliberada de enganar o espectador, passando a
imagem de “eventos reais retratados”. Na verdade seguem o caminho inverso dos
documentários que inserem em sua narrativa situações encenadas e
reconstituições. São obras de ficção que incorporam, re-interpretando à sua
maneira, os mais diversos formatos e padrões dos filmes de “não-ficção” e muitas
vezes, em sua subversão da factualidade, se assumem enquanto paródias
concernentes ao gênero. E que se aproximam do mock-documentary, nos moldes
que Roscoe sugere (2001, p. 2), de textos de ficção que se apropriaram dos
códigos e convenções do documentário com os quais revestiram um tema
ficcional. Sua eficiência sendo medida pela capacidade de combinar o aspecto de
elementos históricos ou factuais e apresentar situações críveis através de uma
falsa abordagem, muitas vezes levando a audiência a questionar a veracidade do
que está sendo visto. O falso documentário visa mostrar uma história convincente
através do uso de conhecidas táticas e convenções documentais que vão
autenticá-la. Mas sua efetividade depende que seus expectadores acreditem em
sua premissa.
Não devemos confundir mock documentary com o antigo recurso de
falsificações e reencenações geralmente utilizados pelo cinema documentário e
adicionados ao material filmado. Ilustrações que serviam a propósitos bastante
distintos. Sejam para conferir autenticidade, como para incluir ações e eventos
que a câmera era incapaz de capturar. Quando a câmera era incapaz de estar lá
372
fisicamente e de obter o material real, ou quando o filme não era produzido da
maneira desejada, as encenaçações reproduziam ou maquiavam aquilo que se
havia perdido ou não estava de acordo. A premissa era de que, se a audiência
pudesse visualizar (mesmo o falsificado), estaria mais apta a acreditar. Portanto,
enquanto nos filmes documentários o embuste é usado para adicionar
verossimilhança ao que os diretores querem retratar, os mock-documentaries
foram planejados para parecerem os mais factuais possíveis não só no sentido de
enganar a audiência, mas também de desafiá-la a questionar o que ela aceita
como trivial. Durante toda a trajetória dos documentários, eles tem ornamentado a
verdade e tomado liberdades com a forma para fazer com que o retratado pareça
mais crível. No início do cinema, o público não estava pronto para questionar o
que era real e o que havia sido arranjado.
Pode-se considerar que o embrião dos mock-documentaries não foi
gerado no cinema, mas em outro meio bastante popular na primeira metade do
século XX: o rádio. Com a famosa peça que Orson Welles pregou em milhares de
norte-americanos da costa leste daquele país na noite de Halloween de 1938. Sua
inovadora abordagem da “Guerra dos Mundos”, de H.G.Wells, transmitida na
forma de notícias e entrevistas criou pânico entre os ouvintes. Para Roscoe (2001,
p. 79)
A radiodifusão da Guerra dos Mundos por Welles é um precursor
significante do mock-documentary audiovisual por várias razões.
Primeiramente, utilizou um formato condizente com os boletins de
notícias, “interrompendo” a programação. Esse foi um formato
aparentemente escolhido por Welles e sua equipe puramente por razões
dramáticas; como uma tentativa de criar uma peça dramática inovadora
para a audiência. Em outras palavras, foi um embuste não intencional,
onde o papel dos próprios ouvinte foi crucial para a sensação e
controvérsia que a transmissão criou.
Na construção de seu universo, os mock documentaries se apropriam
de diversas ferramentas que o documentário utiliza, sempre de acordo com um
373
modo de representação. Para reproduzir o estilo cinema verdade, por exemplo –
ao que parece um dos mais recorrentes - a câmera é utilizada na mão, trêmula; a
iluminação é irregular; a qualidade sonora é inferior; e a atuação a mais
versossímel. Nesse caso, essa aparência não profissional auxilia a credibilidade. A
Bruxa de Blair (The Blair Witch Project/1999) é um exemplo recente de uso muito
bem sucedido do estilo cinema verdade. Os créditos fornecem o acontecimento
que explica os fatos posteriores, relacionados a dois rapazes e uma moça que se
embrenham na floresta para fazer um documentário sobre eventos misteriosos
relacionados a uma lenda local. Esse filme tem como local Burkittsville, Maryland,
onde uma floresta assombrada é o centro do foco. Após chegarem a um velho
cemitério, começam a vivenciar bizarras situações. Eles entram na floresta e
escutam sons estranhos vindos do mato, ficam perdidos, perdem o único mapa, e
logo estão com fome, frio, e movendo-se rapidamente pelo local. O mais
importante: tudo é registrado pela câmera. O filme se apresenta como um
documentário sobre o subseqüente desaparecimento deles feito a partir do
material não-editado que filmaram e deixaram para trás.
A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project /1999).
374
Também merece ser citada a pouco conhecida produção belga C’est
Arrivé Près de Chez Vous (mais conhecido por seu título em inglês Man Bites
Dog), realizado em 1992. A premissa dessa produção envolve uma equipe de
documentaristas que escolheu acompanhar um notório assassino em série
enquanto ele prossegue com a sua compulsão assassina. O filme passado ao
espectador é, supostamente, o documentado pela equipe. Assim como em A
Bruxa de Blair, Man Bites Dog começa anunciando que aquilo que estamos
assistindo foi feito por Benoît Poelvoodre, Rémy Belvaux, e André Bonzel;
consequentemente, esses são os nomes dos personagens principais. Benoît é o
assassino (Ben), Rémy é o diretor, e André é o operador da câmera. Conforme o
filme prossegue, os membros do grupo experimentam uma drástica mudança em
sua atitude em relação ao assassino. Primeiramente, ficam perplexos pela
desconsideração de Ben pela vida humana e sua atitude com as vítimas.
Entretanto, isso não os desencoraja de continuar o documentário. Seu desejo de
obter o valioso material irá levá-los além de suas objeções morais em relação a
esse mórbido universo. Conforme investigam a vida de Ben, ficam fascinados e,
por sua vez, ao seu alcance. Na conclusão do filme, todos os três personagens
estão mortos, deixando o filme como seu único legado.
Uma derivação é um tipo muito específico de mock-documentaries que
se apropria dos cânones dos documentários de exploração e shockumentaries,
em geral sustentado pelo mesmo tipo de divulgação que enfatiza seu
compromisso com a verdade, afirmando conter cenas reais e proibidas, mostradas
sem censura e sem cortes. Inclusive alertando sobre serem desaconselháveis
para pessoas sensíveis e impressionáveis. Dois expoentes dessa vertente são os
diretores italianos Ruggero Deodato e Umberto Lenzi, responsáveis por uma linha
de produção tendo o continente africano ou a selva amazônica como pano de
fundo para histórias sobre tribos perdidas e canibalismo. Em Mondo
Canibale(1976), de Deodato, por exemplo, assistimos às peripécias do último
sobrevivente de uma expedição, perdido em uma ilha desconhecida. Os nativos
375
são bem convincentes e foram incluídas algumas sequências reais de animais
sendo mortos.
O canibalismo é um tema controverso que sempre teve destaque no
cinema – certamente por ser um grande tabu da humanidade – nas mais diversas
apresentações, tanto do ponto de vista antropológico como motivo de diversas
produções de cunho sensacionalista. Não é à toa que tenha se tornado um tema
recorrente em antigos documentários de exploração e travelogues, como nos
posteriores filmes mondo. Deodato e Lenzi utilizaram essa mistura nos dois filmes
que melhor representam essa vertente e ganharam o status de clássicos: Canibal
Holocausto (Cannibal Holocaust/1976) e Cannibal Ferox/1980 (lançado nos EUA
com o significativo título Make Them Die Slowly).
Consideramos Canibal Holocausto um marco, pois é tão convincente e
habilidoso ao manipular os cânones que regem o documetário e suas formas de
registro, quanto desonesto por tentar fazer acreditarmos que condena exatamente
o que mostra. Afinal, Canibal Holocausto é um filme sobre o próprio fazer
cinematográfico, girando em torno da realização do que viria a ser um
documentário antropológico e de como ele é explorado. Vende a idéia de que se
tratam das verdadeiras filmagens, na selva amazônica, de reais atrocidades
cometidas pelos integrantes de uma cultura primitiva, registradas por um grupo de
documentaristas. O filme é encontrado por um antropólogo a serviço dos
executivos de uma rede de tv norte-americana, contratado para encontrar a
equipe, desaparecida. A trajetória do grupo até a chacina nas mãos dos nativos é
mostrada através das sobras do filme, projetadas para os executivos em uma sala
da emissora. Através do material encontrado descobre-se que a própria equipe,
mal intencionada, tinha sido responsável pelas atrocidades documentadas, em
função da realização do documentário. Canibal Holocausto apresenta animais
sendo realmente mortos e eviscerações humanas bastante convincentes, ainda
que forjadas.
376
Cartaz de Cannibal Holocausto.
Cannibal Ferox segue a mesma linha ao tratar de uma estudante de
antropologia que, com uma dupla de amigos, acaba enfrentando a vingança de
uma tribo enfurecida pelos atos cruéis de dois traficantes aos quais haviam se
juntado na tentativa de sobreviver na selva amazônica. Alardeado como “proibido
em 31 países” inclui, além da já tradicional e real matança de animais, falsas
cenas de canibalismo, castração, rituais e torturas.
Enquanto alguns filmes seguem nessa linha, sendo inventada toda uma
trama que depois vai ganhar “autenticidade”, outros utilizam como base fatos
históricos, que são manipulados em função da capacidade que os mesmos
possuem em fornecer cenas chocantes e espetacularmente bizarras. É o caso de
Man Behind the Sun (1988), produção de Hong Kong, que reconstrói
377
dramaticamente as circunstâncias que envolveram o Esquadrão 731, um grupo
de cientistas japoneses que realizavam experiências biológicas em prisioneiros
chineses durante a Segunda Guerra Mundial. Extremamente violento, mostra
detalhadamente os mais horríveis experimentos, assim como as suas
consequências. Especula-se que, em certas cenas, foram usados cadáveres reais.
O filme é mais do que um docudrama de exploração. Na verdade, a despeito de
seus elementos fortemente apelativos, é um filme de propaganda política, com
forte conteúdo ideológico, realizado para evidenciar os sofrimentos por que
passaram os chineses nas mãos dos japoneses, dentro desse ponto de vista,
capazes de atrocidades que em nada ficavam atrás das cometidas por seus
aliados nazistas nos campos de concentração da Europa.
Men Behind the Sun: a polêmica cena em que teria sido usado um cadáver real.
378
6.2. Snuff: a fronteira final?
Não podemos concluir sem uma pequena explanação sobre um tipo de
filme que vem assombrando a imaginação popular há décadas. Existe grande
controvérsia não só sobre a existência ou não dos filmes Snuff
50
, mas também
sobre a utilização dessa expressão, em geral mal utilizada. É comum serem
considerados snuff movies quaisquer seqüências filmadas em que são mostradas
mortes reais – ou bastante verossímeis para assim serem consideradas. Muitas
vezes, filmes como Faces da Morte e semelhantes são assim denominados.
Na verdade, a palavra “snuff”, em sua língua original, quer dizer
“apagar”, “extinguir”, e por sua vez ganhou o sentido de morrer – “ser apagado”.
Passou a denominar filmes amadores – ou “caseiros” - em que pessoas seriam
torturadas sexualmente e assassinadas sem simulação em frente às câmeras, em
função de um mercado clandestino de filmes e, atualmente, a internet. Nesse
ponto encontramos a diferença fundamental entre os filmes snuff e os death
movies. Nesses últimos, conforme exposto, as cenas de morte já se encontravam
prontas, registradas em circunstâncias específicas (no caso de guerras e
execuções) ou casuais (como as registradas acidentalmente), sendo esses
registros recolhidos e compilados. Nos snuff, ao contrário, é tudo preparado e
encenado para a câmera, de modo que ela registre para o espectador uma morte
a ele endereçada. Deixam de representar cenas públicas ou sociais, ou seja, que
se situam ao largo do sujeito observador – como guerras e chacinas. Como
sugere Koury (1998, p. 74):
50
Os Filmes Snuff também são conhecidos por “White Heat” ou “Real Thing”.
379
(...) embora a morte venha à tona incomodando com sua morbidez, não
diga de imediato respeito aos medos, receios e perdas pessoais. A sua
impessoalidade permitindo um distanciamento e uma interpretação sobre
os horrores e a violência do mundo em geral, sem afetar diretamente o
mundo pessoal do informante.
O snuff traz a morte para o espaço privado, a insinua pela porta da
frente e em sua proximidade com o observador o provoca e cria um vínculo com o
possível. A ritualização da morte e das circunstâncias violentas que a envolvem,
hipoteticamente apresentadas nesses filmes, podem constituir uma exacerbação
da obscenidade baziniana.
Também a forma de distribuição difere: enquanto os death movies
podem ser encontrados com relativa facilidade, os snuff seriam distribuídos
clandestinamente, graças a um presumido mercado negro de fitas pornográficas.
Desde os anos setenta se discute a existência ou não desses filmes, que
acabaram alçados à também discutível posição de “lenda urbana”. Podemos
considerar que o termo, assim como o mito, surgiu durante meados daquela
década, quando um filme causou uma certa polêmica – principalmente por parte
das feministas – ao estrear em um cinema de Nova York. Denominado Snuff,
prometia mostrar uma mulher sendo realmente morta em frente às câmeras.
A origem deste filme se deve, em parte, ao notório Charles Manson –
que incitou seus seguidores ao assassinato de diversas pessoas, entre elas a atriz
Sharon Tate. Circularam boatos de que Manson teria filmado o massacre
51
, o que
não foi comprovado, mas inspirou o diretor de filmes exploitation Michael Findlay a
51
Os membros do grupo de Manson teriam, segundo o livro de Ed Sanders “The Family”, roubado
equipamento da rede de tv NBC, além de possuírem algumas câmeras Super-8.
380
rodar na Argentina a sua versão dos assassinatos. O resultado foi o filme
Slaughter (1972), que acabou comprado dois anos depois por um distribuidor de
Nova York, Alan Shackelton. Em uma jogada promocional, Shackleton remontou o
filme, decidindo se aproveitar do amadorismo da produção para transformá-la em
algo rentável. Foram retirados os créditos de abertura e encerramento, sendo
adicionados quatro minutos ao final, rodados pelo diretor de filmes pornográficos
Carter Stevens. Na seqüência adicional, evidenciando o set de filmagem, a
suposta equipe técnica parava as filmagens e torturava uma atriz até fazê-la em
pedaços na frente das câmeras. Para reforçar, foi lançado na imprensa um boato
de que seriam trechos reais, conseguidos por Findlay na Argentina, registrando a
morte e o esquartejamento de uma mulher por carrascos à serviço da ditadura
militar daquele país. O que justifica a frase em destaque no cartaz promocional:
“The film that could only be made in South America...where life is
cheap!”
Durante todos anos 70 circularam rumores (que já se espalhavam na
década anterior) sobre a existência desses filmes clandestinos. Rodados em 8mm,
de forma semelhante aos stag movies pornográficos, seguiriam os padrões do
formato, se assemelhando aos que simulavam atos sadomasoquistas
52
: uma
câmera fixa, nenhum cenário (no máximo uma cama ou cadeira), som ambiente
(quando este recurso está presente) e um ator (geralmente o próprio diretor) que
sempre aparece em cena mascarado. O fato é que, apesar de dificilmente se
poder conseguir referências relacionadas à existência ou não desses filmes, sua
52
A Something Weird Vídeo, distribuidora norte-americana especializada em filmes exploitation,
possui em catálogo a série de fitas “Bizarro Sex Loops”, que consiste de coletâneas de stags de
bondage e dominação.
381
notoriedade continuou ganhando corpo através de fatos não corroborados,
sensacionalismo nos meios de comunicação e algumas filmagens suspeitas,
geralmente desmascaradas após o envolvimento de autoridades policiais.
Cenas da seqüência final (adicional) de Snuff (1976).
É interessante chamarmos a atenção para o papel da indústria do
entretenimento na propagação do mito através de filmes feitos para o cinema,
inclusive por grandes estúdios. Um dos pioneiros a tratar do assunto para a tela
grande foi o diretor Michael Powell, ainda em 1959 com Peeping Tom (lançado em
1960), sobre um operador de câmera que assassina mulheres com uma faca
estrategicamente colocada no tripé de sua câmera, registrando os momentos que
382
envolvem o desenlace fatal de sua vítima. Peeping Tom merece destaque por
expor – quando ainda não se especulava sobre o assunto -, uma das faces do
snuff movie. Ao fazer-nos contemplar a tela através do olho do assassino, leva-
nos a assumir uma cumplicidade com aquele que se prepara para matar, senão
mesmo uma perfeita identidade. Laura Mulvey chama a nossa atenção para essa
relação, entre esse voyeurismo pleno, que coloca o espectador tanto como
observador da narrativa quanto compartilhando a visão do assassino, fazendo
com que transponha os limites do campo testemunhal e se associe ao
personagem principal. Como atesta Mulvey (1989):
Peeping Tom, como fica subentendido em seu título, é abertamente sobre
sadismo voyeurístico. Seu personagem central é um jovem cinegrafista, o
que faz com que a história de perversão se situe dentro da indústria
cinematográfica e do próprio cinema, colocando em primeiro plano seus
mecanismos de olhar, e os limites que separam o observador secreto
(masculino) de seu objeto de atenção (feminino). O próprio voyeurismo
do espectador se torna óbvio e, até mesmo mais chocante, faz com que
se identifique com o protagonista pervertido.
Formou-se um consenso de que os filmes snuff pertencem a um
imaginário, alimentado por especulações infundadas. Entretanto, podemos afirmar
que hoje, em tempos em que a privacidade se rende cada vez mais ao
desenvolvimento da tecnologia, não seria de se estranhar alguém com uma
câmera de vídeo doméstica em pouco tempo filmar algo assim. Dispositivos
portáteis de captura de imagens, cada vez mais aprimorados, vêm se
popularizando e proliferando desde os anos 80. São camcorders, câmeras de
vigilância, webcams e outros equipamentos que são explorados e utilizados tanto
pelo indivíduo anônimo quanto pelos meios de comunicação. É praticamente
impossível, hoje em dia, que algum evento passe despercebido ou o “inesperado”
383
não registrado, e que os mesmos não acabem alimentando a tendência do público
e da mídia ao sensacionalismo.
Podemos certamente afirmar que a realização de um snuff movie pode
vir a ser algo crível e até inevitável, dado o fascínio que o binômio sexo e morte
exerce sobre a mentalidade humana. O que os eleva a uma posição de ser a
última fronteira a ser rompida, um reality show limite, extremo na exposição da
corporalidade e do grotesco. Em relação a isso podemos observar que já existe
uma rede para distribuição desse material: diversos sites na internet disponibilizam
– alguns gratuitamente outros cobrando pelo acesso – diversos vídeos para
download. Muitos deles seqüências que poderiam figurar em alguma coletânea de
death movies. Outros, snuffs simulados - pequenos curtas encenados de maneira
bastante convincente representando graficamente necrofilia, torturas, estupros e
mortes. Todos ao alcance de um clique de mouse.
Vídeo snuff baixado da Internet. Evidente encenação.
Devemos relevar o fato de que uma filmagem desse tipo entraria em
outra esfera, a da criminalidade. Não é difícil imaginar as consequências penais
para alguém pego com um filme desses nas mãos, assim como para seus
realizadores. O que nos remete à cumplicidade (espectador-realizador/assassino)
de que falamos acima. Portanto, dificilmente seria um assunto que iria a público,
permanecendo nas sombras da clandestinidade e tratado como especulação,
protegido pela dúvida.
384
Conclusão
Gualtiero Jacopetti (2006, p. 146) já observava, em artigo escrito no
longínquo ano de 1966, que um filme documentário deve levar em conta um novo
modo de expressão que chegava ao cenário cinematográfico mundial e, dentro
dessa cena, se considerar tanto a experiência profissional quanto amadora.
Segundo ele, o documentário “sujo” passava a ser reconhecido (e compreendido)
por quase todo mundo e a antiga forma, retórica, previsível e formalmente correta
estava morta. Segundo ele, a partir de então se buscava documentar por um
ângulo mais realista, com mais vivacidade e agilidade de expressão. Dizia que
O documentário é uma das mais nobres expressões de nossa era. O que
queremos de um documentário é verdade e sinceridade. O que nem
sempre é possível; de fato, é muito, muito difícil. (...) Porque o
documentário é uma expressão pessoal e subjetiva e não podemos
esperar dele toda a verdade. Ele irá expressar uma certa verdade, irá
refletir uma porção da vida, através de um feixe de luz sobre um aspecto
da vida. (...) O que importa hoje em dia é a verdade em um trabalho
individual, uma autenticidade que respeite os fatos que serão
documentados (de outro modo estaríamos no campo da ficção), mas
reflita também a verdade interior de seu autor. O documentário deve ser
livre, ágil, vívido, e falar com voz alta, clara e reconhecível. Sem temer
385
ninguém, expressar suas próprias verdades, bem e do melhor modo. (...)
O filme documentário, como outras expressões cinematográficas, é um
meio de comunicarmos nossas idéias – morais, sociais, políticas ou
simplesmente psicológicas – ao público. Algumas vezes percebemos que
o filme documentário parece rigoroso, inflexível, severo, isento de
enfeites cenográficos e pretensões literárias, carência de idéias e de fácil
realização. O que não é verdade. O documentário nem sempre tem
pretensões artísticas. Acredito que o documentário é muito mais válido
se está mais próximo e claro em relação às idéias que determinaram a
sua origem.(...) O sucesso é determinado pelo autor. É o diretor que deve
impor seu estilo pessoal; adequado, convincente e, acima de tudo,
expressar com sucesso o que pretende dizer.
Pensando nessas palavras de Jacopetti, vemos como são em parte
apropriadas, analisadas à luz da trajetória que percorremos. O filme documentário,
desde então, passou por várias mudanças e se embrenhou por diversas formas
narrativas que refletiam não só significativas transformações mundiais como novas
formas de se fazer cinema. Se, conforme tentamos demonstrar, a exploração
nasceu com o documentário e ambos caminharam juntos – o documentário de
exploração ganhando a forma do “gêmeo malvado”-, tendo os limites que os
separavam sempre se mostrado tênues, foi essa mesma exploração, revestida de
uma liberdade para ultrapassar limites e tabus impostos, que permitiu a sua
evolução enquanto relevante manifestação áudio visual. Cristalizada na aceitação
do público, sendo que aqueles aspectos antes explorados nas produções menos
aceitas do gênero se consolidaram e hoje em dia e passaram a configurar a sua
vertente mais popular. Popularidade conquistada pela estética mondo que passou
a integrar essa nova face do documentário, que tornou-se referência para uma
nova geração de documentaristas e acabou encontrando nas produções rodadas
para a televisão o veículo por excelência. Devo ser bem específico nesse ponto, já
que sei estar pisando em terreno pantanoso e, diga-se de passagem, bastante
controverso e por isso mesmo suscetível a uma interpretação errônea: não estou
afirmando que o documentário perdeu sua relevância na tela grande ou que o
gênero, como um todo se rendeu à exploração ou ao mondo enquanto forma
narrativa. Acredito, sinceramente, que a sala escura do cinema ainda oferece as
386
condições ideais para que se estabeleçam as conexões entre o imaginário do
espectador e o representado. Sendo assim, concordo com o cineasta undergorund
norte-americano Nick Zedd (2002, p. 199), em sua sugestão de que
A revelação do inconsciente precipitada no cinema escurecido pela luz
bruxuleante e pela sedução do irresistível através da ilusão de formas em
movimento que uma mágica na qual fatores psicológicos e ambientais se
combinam para dilatar correntes de associação. Amos Vogel disse “a
essência do cinema não é a luz, mas um pacto secreto entre luz e
trevas”. Metade do tempo que passamos assistindo a filmes é gasto na
escuridão total. Com a cumplicidade psicológica do espectador, a
persistência da visão ocorre.
Mas é importante termos em mente que o documentário, em muitos
casos, incorporou elementos antes negligenciados principalmente por uma
convicção de que os mesmos se apropriavam e desvirtuavam postulados
referentes aos modos de representação. Convicção expressa, por exemplo, em
Bill Nichols, que generaliza ao definir as relações do documentário com os filmes
mondo – que espreitariam o que há de mais desagradável na vida cotidiana -
como um “cabaré de curiosidades” que é, com freqüência, mais um companheiro
de viagem que nos envergonha do que um elemento central (2005, pp. 119, 120).
Por trás disso, concordamos com Goodall, encontram-se evidentes razões
estilísticas e documentais que vão justificar o fato de os filmes mondo terem sido
deliberadamente mantidos à margem das discussões acerca de filmes
documentários e de sua história. Como observa o autor (2006, p. 9), em primeiro
lugar, a inclinação dos filmes documentário nos anos 1960 era para os modos de
representação observativo e participativo. A primeira em que o cineasta observa o
que se passa diante da câmera sem uma intervenção explícita, a segunda
lançando mão de entrevistas e interação entre realizador e sujeito. Os filmes
mondo claramente transgrediram essas regras oferecendo uma perversão desses
métodos. Por exemplo, o método participativo assume crucialmente uma
aproximação antropológica da apresentação de eventos reais - aproximação
387
sociológica e acadêmica que leva o expectador a esperar testemunhar o mundo
histórico. Como observa Nichols (2005, p. 154),
Quando assistimos a documentários participativos, esperamos
testemunhar o mundo histórico da maneira pelo qual ele é representado
por alguém que nele se engaja ativamente, e não por alguém que
observa discretamente, reconfigura poeticamente ou monta
argumentativamente esse mundo. O cineasta despe o manto do
comentário com voz over, afasta-se da meditação poética, desce do lugar
onde pousou a mosquinha da parede e torna-se um ator social (quase)
como qualquer outro. (Quase como qualquer outro porque o cineasta
guarda para si a câmera e, com ela, um certo nível de poder e controle
potenciais sobre os acontecimentos).
Ainda que em alguns momentos essa representação tenha sido
construída com a participação dos cineastas conferindo uma aproximação mais
acurada em relação a seus objetos – destacando-se aí os filmes de Jacopetti e
Prosperi -, diversos exemplos de filmes mondo posteriores ignoram essa noção de
elocução empírica, tendo suas narrativas construídas através da distância criada
pelo processo de edição (onde tempo/espaço/geografia desmoronam) ou pela
mais poderosa ferramenta do mondo, a superposição de voz. Não obstante,
observa Goodall (2006, p. 10), o som proveniente de diversas superposições de
voz e os numerosos esforços em convencer o espectador de que o pessoal por
trás das câmeras tenha se envolvido diretamente com seus objetos, são negados
pela proliferação de filmagens “secretas” usando câmeras escondidas. O que vai
justificar a idéia de que filmes mondo abstêm-se de opiniões participativas tais
como a noção do cineasta enquanto ator social, sua presença em carne e osso
“na cena” (NICHOLS, 2005, p. 155). Abstenção evidenciada pela sua insistência
em tomadas aéreas e o uso de material adquirido em fontes externas (arquivo).
De maneira similar, a noção de fazer um filme observativo foi subvertida em filmes
mondo, apesar do fato irônico – como sugere Goodall (2006, p. 10) - de que as
388
ferramentas desse tipo de documentário (câmeras Arriflex leves, por exemplo),
foram cruciais ao desenvolvimento dos filmes mondo. Conta-nos o autor que em
uma critica literária de Mundo Cão, a crítica condenatória do filme pelo inglês
Monthly Film Bulletin’s foi sustentada pelo argumento de que se o filme tivesse
sido feito por Jean Rouch, teria sido muito melhor e verídico. O que reflete a
tendência da crítica aos filmes, na época, por um compromisso com a
autenticidade, o realismo e com a fidelidade da prática do filme documentário. E
que elucida, em parte, a problemática relação estabelecida entre filme mondo – e
por sua vez seus congêneres na exploração - e outras produções mais
conceituadas: filmes documentários “sérios” ou de teor acadêmico que também
lançaram mão de cenas intensas e elementos narrativos dos exploitation: O que
está bem expresso nas palavras do próprio Jean Rouch (1979, p. 60):
A maioria dos filmes antropológicos realizados nos últimos anos, se
apresenta sempre sob a forma de um produto de difusão normal:
créditos, música de acompanhamento, montagem sofisticada, comentário
tipo grande público, duração, etc. Na maior parte das vezes consegue-se
com isso um produto híbrido que não satisfaz nem ao rigor científico nem
à arte cinematográfica. (...) O resultado é um aumento considerável do
custo de produção desses filmes que torna ainda mais amarga a
ausência quase total de sua veiculação, sobretudo quando o mercado
cinematográfico permanece bastante aberto a um certo tipo de
documentário “sensacionalistas” do estilo Mondo Cane
Palavras que soam proféticas face à posterior e definitiva incorporação
da estética mondo, que reverbera, por exemplo, em documentários alçados a uma
categoria artística, como a trilogia qatsi de Godfrey Reggio (Koyaanisqatsi/1982;
Powwaqatsi/1988; e Naqoyqatsi/2002) e o travelogue de Ron Fricke Baraka
(1992), reconhecidos como versões hi-tech e new age dos filmes mondo que,
desde a década de 1980, vêm fascinando o público com seus tours musicais pelos
mais sagrados e profanos recantos do mundo (STAPLES, 1994, p. 662),
oferecendo um caleidoscópio de imagens de pretensão etnográfica.
389
Essa assimilação acabou desaguando no atual e até certo ponto
desconcertante cortejo de produtos audiovisuais, todos devedores da forma de
abordagem e estética dos documentários de exploração. Podemos até arriscar
dizer que a espetacularização dos aspectos sobre os quais nos debruçamos no
correr do trabalho – o exotismo, o inusitado e o grotesco – é a forma dominante
atualmente no documentário. Principalmente – e notadamente – nas produções
que vêm popularizando o gênero – herdeiras diretas dos filmes mondo e do
documentário de exploração como um todo: os documentários feitos para suprir a
programação dos canais de tv direcionados ao gênero, de que falamos. Meio
hegemônico para onde é hoje em dia produzida a maioria dos documentários.
Sendo que, se grande parte dessas produções se apropriou da forma e da
temática da exploração, um significativo número se direcionou para a cobertura de
fatalidades e exposição de imagens intensas. O que é uma interessante (e por que
não dizer, brilhante) contradição: efetivamente, o melhor lugar para encontrar as
imagens violentas que sempre foram consideradas ofensivas ao status quo e aos
valores familiares é na tv - um veículo familiar por excelência - e não mais no
multiplex mais próximo (afinal, cinema da esquina é coisa do passado) ou salas
especiais. O que lhes alça esses documentários um novo patamar, principalmente
por não mais serem produções distribuídas sob o estigma da desonestidade e da
exploração, e ganharem a roupagem “educativa”, em canais conceituados como o
Discovery Channel, A&E, o National Geographic Channel e History Channel. Este
último - um dos canais mais populares da televisão a cabo -, no que diz respeito à
cobertura de tragédias da vida real, pode ser considerado o mais representativo.
Especializado na cobertura de guerras, campanhas militares, assassinatos, e no
bombardeio de grandes cidades, oferece em sua grade de programação
seqüências antes retratadas somente em shockumentaries: material muitas vezes
raro que engloba desde desastres históricos, guerras e fuzilamentos, até imagens
dos campos de concentração nazistas na Segunda Guerra Mundial. Estes últimos
tão comuns que as cenas dos esqueléticos prisioneiros empurrando carrinhos de
390
mão cheios de cadáveres ou os bulldozers empurrando para a vala coletiva pilhas
de corpos, que comoveram o mundo ao serem divulgados após a libertação,
tornaram-se tão familiares a todos nós que, pela reprodução sistemática perderam
parte de seu impacto (sua capacidade original de chocar) e sentido histórico. Vale
a pena citar os títulos sugestivos de algumas dessas séries, sendo que os
mesmos não pedem explicações de seus conteúdos, pois falam por si: Crônicas
Forenses (Dead Reckoning: Crime Scene Alibis), Desastres Aéreos (Mayday:
Aircrash Investigations), Medical Detectives, Survivor’s Guide to Plane Crashes,
Os Mais Violentos Vídeos Policiais (World’s Wildest Police Vídeos), Pronto
Socorro (Untold Stories of the E.R.). Isso é somente uma pequena parcela pinçada
da grade de programação da tv a cabo, sendo que todos os episódios têm em
comum a famosa advertência dos documentários de exploração, em que alertam o
espectador sobre apresentarem eventos reais, algumas vezes lançando mão de
encenações, e que incluem cenas não recomendadas para os mais sensíveis.
Como curiosidade – e exemplo do senso de oportunismo -, menos de um ano
após o acidente com o vôo 1907 da Gol, que caiu na floresta amazônica após
choque com outra aeronave, a tragédia é tema de especial do Discovery Channel.
O acidente é reconstituído em detalhes, passo a passo, com a ajuda da
computação gráfica e imagens de arquivo gravadas por emissoras de tv. São
intercalados os depoimentos emocionados dos familiares das vítimas, assim como
dos controladores de vôo e autoridades envolvidas nas investigações.
Em geral, todos esses canais de documentários estão repletos de
cenas reais tomadas em diversas partes do mundo e reconstituições de eventos
traumáticos da história e da vida cotidiana, conformando um mosaico de
atualidades que, se por um lado cativa pelo caráter espetacular, banaliza,
minimizando qualquer aspecto transgressor. Seu grande apelo é o sentido de
fatalidade que promovem, com suas amostragens de epidemias, catástrofes
globais, massacres, figuras notórias e suas ações desumanas, e toda uma
variedade de mazelas que, se por um lado, destinam-se ao voyeurismo do
391
espectador, também promovem um confortável distanciamento. Antes, promovem
a experiência de visualizarmos a desgraça alheia ou possível, mas distante – de
vermos “o que aconteceria se...” ou “o que ocorreu” – ao invés de instigar
questionamentos sobre nós mesmos. Desse modo constituindo um sentido de
fatalidade que pode se assemelhar à experiência de andar numa corda bamba
com a segurança de uma rede de contenção embaixo. O que também serve para
consolidar a noção errônea de que as ansiedades e temores da sociedade são
resultado da ação de um Outro, ou seja, de que são elementos situados “lá fora”
os responsáveis pelos horrores que ocorrem todos os dias e atentam contra os
princípios fundamentais estabelecidos como socialmente corretos e aceitos. Uma
inversão da configuração desse universo externo ao condicionado, que esteve
sempre situado à margem, estabelecendo manifestações de contracultura.
A fórmula utilizada nessas produções segue um mesmo padrão,
podendo sofrer variações com a inclusão ou exclusão de algum desses
elementos: narração em voz over de tonalidades dramáticas, depoimentos dos
reais protagonistas das situações enfocadas, encenações e reconstituições
meticulosas, animações ilustrativas e ganchos que mantém o suspense e fazem a
ligação entre os blocos durante os intervalos comerciais. Tudo muito eficiente,
dinâmico e correto. O modo predominante, se remetermos a Nichols, é o
expositivo, ainda que alguns desses filmes possam ser incluídos na categoria
participativa, como a interessante série Na Trilha das Múmias (The Mummy Road
Show/ 2001-2003), em que os especialistas Jerry Conlogue e Ron Beckett, do
Quinnipiac’s Bioanthropology Research Institute de Hamden (Connecticut
),
percorrem o mundo atrás de múmias que submetem aos seus equipamentos e
exames para decifrar suas características físicas, modo de vida e circunstâncias
da morte.
Também nos chama a atenção o National Geographic Channel, canal
criado pela parceria da National Geographic Television & Film com as redes Fox
Entertainment Group e National Broadcasting Company (NBC). Divulgado como
392
fiel ao compromisso da National Geographic Society em pesquisa, conservação e
educação, e com sua programação transmitida em 141 países, pode ser
considerado o mais consistente sucessor não só dos documentários de
exploração do início do século XX, como também dos Mundo Cão de Jacopetti e
Prosperi. Ainda que diferentes quanto ao enunciado, pois são feitos à luz do
politicamente correto e com o suporte de especialistas abalizados, não se
desagregam totalmente da exploração de costumes exóticos e cenas intensas.
Um interessante exemplar é a série sugestivamente denominada Tabu
(National Geographic’s Taboo), iniciada em 2003, que foi divulgada quando de seu
lançamento de forma não muito diferente de antecessores categorizados como
exploitation:
“Você iria a um sacerdote vodu para curar loucura? Ou caminhar sobre
carvão incandescente para testar a sua fé? Ou submeter sua filha a um doloroso e
controverso rito de passagem?
No dia 22 de janeiro (Quarta-Feira) às 22:00, o National Geographic
Channel estréia Tabu, uma excitante série em 13 episódios que examina
costumes e práticas que são aceitas em algumas sociedades, ainda que proibidas,
ilegais e ultrajantes em outras. Em cada episódio de uma hora, um tópico
controverso é examinado através da perspectiva de diferentes sociedades –
cobrindo assuntos como ritos de passagem, esportes sangrentos, uso de drogas,
feitiçaria, casamento, alimentação, tatuagens, morte, sexualidade, e testes de fé.
Interpondo as fronteiras entre sociedade moderna de crenças tradicionais, Tabu
explora os limites da diversidade humana e afinidades, das coisas comuns do dia-
a-dia a temas universais como esperança, fé, mortalidade e mal.
Algumas vezes nossa jornada nos levará a mundos restritos, para
testemunharmos rituais raramente vistos por estranhos, como:
393
- o contato com magia negra no México, que abala as crenças de
qualquer antropólogo;
- um ritual de circuncisão na África, que inclui a morte e ingestão de um
cão;
- um praticante do vodu em Benin que suga o sangue do ferimento
aberto de um homem possuído para entrar em contato com os espíritos;
- jovens norte-americanos tomando ecstasy; e uma mulher no Brasil
visitando um curandeiro para se livrar de uma maldição, morrendo uma semana
depois.
Tabu viaja a 24 países com antropólogos, psicólogos, professores de
religião e outros especialistas para investigar uma diversidade de culturas,
desafiando estereótipos esquadrinhando os limites entre “nós” e “eles”.
Tabu: Morte é um bom exemplo da série. O episódio se divide em três
segmentos, todos explicitando imagens de cadáveres. O primeiro se passa em
Toraja, na Indonésia, onde é costume as famílias manterem os corpos de seus
falecidos em casa, embalsamados, até terem condições de lhes oferecerem um
funeral digno. O objetivo é que o morto, satisfeito, não cause nenhum dano à
família. São mostradas fotos do indivíduo enquanto vivo, em contraste ao cadáver
embalsamado, sendo que a maior parte da seqüência é centralizada em um
núcleo familiar e sua morta de estimação, que recebe oferendas e é mantida em
um cômodo da casa, como se estivesse descansando em sua cama. Finalmente,
no melhor estilo mondo, o documentário registra os funerais, com lutas e sacrifício
de animais.
O segmento seguinte é mais interessante, pois retoma um tema já
abordado pelo documentário de exploração Ásia Violenta e a obra de Robert
Gardner, Forest of Bliss: os ritos funerários na cidade sagrada de Benares (ou
394
Varanasi), na Índia, e os denominados “intocáveis”, encarregados de cremar os
corpos. Intercala tomadas da cidade sagrada e do Ganges (semelhantes às dos
filmes citados) com destaque para os cadáveres sendo queimados em detalhes:
corpos inteiros e partes detalhadas de cabeças, mãos e pés consumidos pelo
fogo.
El Muerto, proprietário de um serviço particular de autópsias (que usa
um furgão que alardeia sua profissão e o telefone sugestivo da firma: 0800-
Autopsy) em uma cidade norte-americana é o protagonista do terceiro segmento.
Ele é contratado por familiares desconfiados da causa mortis de seus falecidos,
para que investigue a morte – e se necessário proceda a autópsia – com a
finalidade de elucidar e, caso necessário, forneça provas para eventuais
processos judiciais. O defunto da vez é um homem idoso cujo cadáver
apresentava marcas de maus tratos. El Muerto entra em ação, primeiro
fotografando partes do corpo para a perícia, e em seguida, auxiliando a autópsia
que vai dar o laudo final. A produção tem o cuidado de manter o rosto do cadáver
coberto (o que não acontece nos mortos indonésios e indianos) enquanto o corpo
retorcido pelo rigor mortis é manipulado e cortado pelo legista, em cenas bastante
explícitas.
Dada essa nova forma de divulgação, é importante pensarmos sobre o
papel dessas imagens e de sua inclusão no âmbito do permitido face às
mudanças sociais que foram forçando os limites e, por sua vez, atenuando tabus e
banalizando a experiência de vivenciá-los e visualizá-los. Em nosso primeiro
capítulo, remetemos a Freud que em sua obra “Totem e Tabu” observava nossa
tendência a repudiarmos coisas relacionadas a partes que tememos conhecer,
como desejos reprimidos, sexualidade e o fascínio com a morte. O que nos levou
a Mikhail Bakhtin que sugere nesse afastamento as raízes de uma transfiguração
que reverte numa inversão dos padrões culturais, pondo de ponta-cabeça a
tradição e às avessas a história, estabelecendo nessa transgressão uma forma de
contracultura marcada pela excentricidade e pela violação do costumeiro e aceito.
395
Teriam, então, essas novas produções, esses documentários que se apropriam de
uma estética uma vez transgressora, a capacidade de tirar dos eixos as
representações da vida ordinária, inscrevendo um espaço marginal ou não-
convencional? Ou sua banalização, de forma contrária, coloca essas
representações dentro da esfera do domesticado e afasta qualquer possibilidade
de – com toda a contextualização que prometem promover - estimular uma
compreensão maior da experiência humana?
Fico, em resposta a esse questionamanto, com a segunda opção. Ao
passo em essas produções despertam o interesse e cativam pelos tópicos
abordados – o sentido de fatalidade que proporcionam, de que falamos -, são
estéreis e facilmente digeríveis. Não pretendem ser ofensivos, mas simplesmente
posar de educativos, estando longe de promoverem qualquer transgressão dos
valores estabelecidos, das instituições, das tradições e costumes, e dos tabus
inerentes à realidade consensual. Grande parte deles, ao contrário de
representarem investidas contra o tradicional, acabam reforçando seus dogmas e
formas estáveis, impedindo qualquer experiência de transformação ou subversão
do condicionamento cultural. Acabam desse modo subordinados ao estabelecido,
reforçando os preconceitos, legitimando o condicionamento dos espectadores e
impedindo a transfiguração do tabu em liberdade.
O que fica evidente, se compararmos essas novas investidas no
gênero, amplamente aceitas e veiculadas, com significativa parcela dos
documentários analisados nos capítulos anteriores – notadamente os de
exploração – é que esses antecessores ainda podiam ser considerados à margem
e transgressores não só por sua explicitação de tópicos que ultrapasssavam os
limites do permitido na época em que foram produzidos, mas também por alguns
fatores que se perderam na nova roupagem que ganharam.
Primeiramente, por mostrarem uma irônica consciência de si mesmo,
criando de maneira profana e inconseqüente um processo distinto da cultura
396
oficial, pela própria exploração de temas e imagens não convencionais, assumindo
e ostentando – através do preconceito e descontextualização - a sua incorreção
política. Em segundo lugar, através da ironia que os permeia, acabaram
manifestando uma jocosa vitalidade refletida na própria abordagem, que é a força
básica que lhes conferia o poder de cativar e atrair. Em terceiro lugar, essas
produções eram uma forma de cinema imediata e dinâmica, associada à
corporalidade, promovendo um certo distanciamento entre o real e o textual. O
centro da identidade da maioria dos documentários que transitam pela exploração
é a óbvia e diária natureza do mundo físico e corpóreo. O que faz com que, a seu
modo, fizessem algumas conexões entre cultura, narrativa, e o corpo humano;
entre simplicidade e intempestividade; entre aquilo que é rejeitado e o que é um
desafio para os padrões institucionalizados. Pode-se dizer que eram filmes que, a
seu modo controverso, também trilhavam um caminho em que interpretação,
pantomima, e disfarce poderiam desvincular a consciência individual das práticas
tradicionais.
Finalmente, devemos ter em mente que, onde houver repressão,
existirá uma força contrária. Aonde existir o cinema bem comportado, haverá a
sua contraparte extrema. O documentário tradicional e seu “gêmeo malvado”
constituem duas faces da mesma moeda, a cara e a coroa. A essência do filme de
exploração é a força por detrás da exibição de atos transgressores, cada um deles
um sintoma das ansiedades coletivas. E que se inserem, ora no campo da
manifestação contracultural – no caso dos documentários fundamentados e
tradicionais, que mesmo assim lançam mão de elementos de exploração -,
levando a uma relfexão e questionamento sobre o mundo histórico; ou no campo
da sublimação pura de nossos instintos mais básicos ou primitivos. Nesse caso,
quando desviam o nosso olhar da segurança do convencional em direção ao
parque de diversões sombrio de nosso inconsciente, conformam os recônditos por
onde transitam os documentários de exploração.
397
O que é tão valioso no estudo a respeito desses filmes - e que por si
justifica a sua relevância - é a sua inconsciente advertência sobre as repressões
que nos cercam e a importância do caos e da crise. O que esses filmes podem
ensinar acerca de nossa condição de seres humanos é tanto assustador quanto
repulsivo. Nos documentários sobre os quais nos aventuramos e de que traçamos
a trajetória, e que flertam ou mergulham profundamente na exploração, a
consciência humana é refletida não em superfícies cristalinas ou elevados valores
artísticos e intelectuais, mas nos rictos frenéticos dos últimos espasmos de gozo e
de morte, e nas manifestações mais básicas da corporalidade humana.
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