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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
IINSTITUTO DE ARTES
KELLEN MARIA JUNQUEIRA
A IMAGEM E A MEMÓRIA NOS PROCESSOS DE
CRIAÇÃO: O RURAL E A CULTURA CAIPIRA NO
IMAGINÁRIO DA LUTA PELA TERRA
CAMPINAS
2007
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KELLEN MARIA JUNQUEIRA
A IMAGEM E A MEMÓRIA NOS PROCESSOS DE
CRIAÇÃO: O RURAL E A CULTURA CAIPIRA NO
IMAGINÁRIO DA LUTA PELA TERRA
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas para obtenção do grau
de Doutor em Multimeios.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Fernando da Conceição Passos
Campinas
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Título em inglês: “The image and memory on the creation process: the rural and
the countryside culture in the imaginary of the land fight”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Creation process – Countryside - Rural life
- Memory – Imaginary - Oxcart -Brazil
Titulação: Doutor em Multimeios
Banca examinadora:
Prof. Dr. Fernando Passos
Prof. Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco
Profa. Dra. Rosemeire Scopinho
Prof. Dr. Wenceslao de Oliveira Jr
Profa. Dra. Sonia Maria P.P. Bergamasco
Profa. Dra. Agueda Bernardete Bittencourt
Profa. Dra. Julieta Teresa A. Oliveira
Data da defesa: 26 de Fevereiro de 2007
Programa de Pós-Graduação: Multimeios
Junqueira, Kellen Maria.
J968i A imagem e a memória nos processos de criação: o rural e a
cultura caipira no imaginário da luta pela terra. / Kellen Maria
Junqueira. – Campinas, SP: [s.n.], 2007.
Orientador: Fernando Passos.
Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.
1. Processo criativo. 2. Caipira. 3. Vida rural. 4. Memória.
5. Imaginário. 6. Carro de bois-Brasil. I. Passos, Fernando.
II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Artes.
III. Título.
(lf/ia)
Ao meu avô, Pedro Honório Paulino
ao seu irmão, o tio Vicente Manoel de Souza
e ao Sr. Antonio Batista, amigo e conterrâneo deles,
que aos 94 anos ainda participa da Festa de Carro de Bois.
Seu Antonio Batista na Primeira Festa de Carro de Bois da Juréia/MG
AGRADECIMENTOS E RECONHECIMENTOS
Ao meu avô,
pelas imagens primordiais que motivaram este processo e alegraram este percurso.
Ao Fernando Passos,
por ter insistido no caminho da arte e da subjetividade como uma forma de conhecer e explorar o mundo,
como forma de expressão e transformação pessoal. Pelos seus apontamentos tão instigantes sejam no
processo de amadurecimento do meu projeto de pesquisa seja na realização do vídeo.
Às amigas da minha equipe de trabalho na FEAGRI,
que sempre acreditaram em mim, mesmo quando eu não acreditei, Sonia e Julieta. Com elas e outros
parceiros de trabalho compartilho ideais, muita labuta e tantas reflexões, aos quais também saúdo aqui -
Chico, Rio, Lica, Márcia e Carlão, Antenora, Leonardo, Rose Scopinho, Leandro Inakake, Adriana Silva,
Marcelo Pupo, Toni, Poti,Regininha ... e os que o fazem vivendo na e da terra: Calixto, Sinésio, Ileide.
Trabalho que todos nós realizamos com prazer e amor. Dentre eles ainda a Agueda e o Wences que
tantas amarras me ajudaram a perceber (e a soltar).
À Anali - a montadora-, ao Caio - compositor da trilha musical- e ao Alessandro -editor de som,
que voluntariamente dedicaram momentos preciosos de inspiração para a edição dodeo “Conversas de
Bois”.
À equipe de Paulinos, Junqueiras, Figueiras, Fugis e Silvas,
meus parentes, mas também amigos, que na intimidade trato em diminutivos e em monossílabos -Ká,
Raphinha, tio, tia, Vivi, Penha, Celinha. Todos eles na aventura de participarem da produção de um vídeo
fizeram contatos, seguraram microfones, dirigiram carro, anotaram nomes, cederam moradia: pode ser
que falte algum detalhe técnico na captação das imagens do vídeo, mas amor, com certeza não faltou.
Aos amigos, que tiveram uma participação direta no processo de redação da tese, lendo e dando
sugestões e contribuições que foram fundamentais,
Apontaram-me passagens interessantes, confusas, impositivas, ofensivas ou deslocadas. Se o texto está
de alguma maneira fluído é devido a eles: Chico, Quincas, Lakshmi, Chanti, Eliana, Alaísa, Carlos
Tavares, Kátia, Thaís, Teca. E ainda a Márcia e a Bia que se debruçaram sobre o texto todo. Muito
agradecida!!
Aos amigos que foram meus interlocutores em diversos momentos no desenvolvimento deste projeto,
Isabela, Marlene, Írio, Regininha, Carlos Tavares, Regina, Carusto, Dagoberto (que tem memórias de uma
Campinas que faz me orgulhar de ter nascido nesta cidade). E ainda a Eliana e o Quincas que
acompanharam o processo do começo ao fim.
Aos que são caipiras de coração,
Ivan e Gabi que me deram dicas e referências bibliográficas que foram preciosas ao desenvolvimento do
meu projeto. Uma das indicadas por eles foi Célia Cassiano que também foi muito gentil emprestando
suas gravações em vídeo das Folias de Reis de Campinas.
Aos amigos do Hyveritas,
Joana, Rafael e Pablo-, que inspirados, eles e eu, nas reflexões decorrentes dos seminários de Jean-
Louis Leonhardt estivemos juntos algumas vezes conversando sobre processos de criação e arte.
À vida?
Não sei a quem... mas agradeço o fato de ter tido a oportunidade de tomar a ayawasca e fazer as minhas
primeiras viagens astrais/espirituais, que me possibilitaram reconhecer a força do imaginário e outras
dimensões da vida dando-me serenidade em relação à existência. Aos amigos que fiz nesta dimensão, os
da Divina Estrela: Beto e Lai, Nana e André, Paula e Patrícia, e os da casa do padrinho Luis -Luciana,
Adriane, Diogo, Joana, Júlia e Bruno - espaços onde a fraternidade nos une. Na espiritualidade devo
agradecer ainda à Rosália, que nunca duvidou de sua fé.
Aos meus cumpadres,
Samuel e Isabela - que me deram um lindo presente que foi ter me tornado uma “madrinha” que na
imaginação da Tainá certamente é papel de fada.
À adaGeisa,
que fez a arte da Epígrafe e das Considerações Finais desta tese. Especialista em colagem, esta amiga
vive a vida na beleza das tantas imagens que ela cria e recria nos cortes e grudes que ela aprendeu a
fazer na vivacidade de sua percepção.
Ao Tiago,
que me salvou fazendo pesquisas na Internet (devo confessar a minha preguiça neste tipo de
navegação) e percorrendo as bibliotecas da UNICAMP, confirmando os textos dos meus relatórios de
leituras.
Aos amigos todos,
os que desejaram um “AXÉ!” para que esta tese se desenvolvesse bem Verônica, Nilson, Teresa, Adriana
(do Super Bacana que cuidou do figurino para a defesa; ela que tece com as mãos as flores que conhece
na alma), Marina e Marcos, Buthi e Chico, Cidinha, Eliana Creado, Rosângela, Ermelinda, Luis Vilela. Ao
Álvaro Tucunduva -o Tucun do Sarau- que me ensinou a segurar e sossegar o pensamento sugerindo que
eu os anotasse, acho que ele nem lembra disso...
Aos colegas do Instituto de Artes,
Joice, Magali, Vivian, Jaime, Josué, Edson, Daniel, Josias- que me informaram e me orientaram
atenciosamente sobre as regras e em um momento e outro as ultrapassarampara que algo pudesse se
desenrolar.
Aos amigos que vivem como anjos!
Aos colegas,
com os quais troco sorrisos, olhares, e às vezes abraços, no meu dia-a-dia: os que servem o café, os
vigilantes e os da limpeza, em sua maioria pessoas muito amáveis e gentis, dos quais nem vou citar os
nomes porque se trocam estes profissionais constantemente, de forma que nem tempo de se
estabelecer vínculos. Mas a cada dia eu renovo a minha disposição de estabelecer esta relação, pois não
acho justo que eles, na condição de trabalho em que vivem, não possam dispor ao menos desta acolhida
que percebo que eles buscam trocar, acolhida da qual eu muito me valho.
E as últimas, que são as primeiras no meu coração,
Eu -Kellen Maria- junto com minha irmã -Kátia Maria- e nossa mãe -Maria- compomos as Três Marias,
aquelas que vocês podem ver no céu, no cinturão de Orion (en)cerrando a sua força. Somos Marias como
tantas outras por aí, cantadas em verso no jongo do grupo “Dito Ribeiro”:
“Lá no céu tem três estrelas,
uma é sua, uma é minha, outra é da Virgem Maria...
e em Maria, Maria de Milton Nascimento: todas guerreiras!
adaGeisa
RESUMO
JUNQUEIRA, Kellen Maria. A imagem e a memória nos processos de criação: o rural e a
cultura caipira no imaginário da luta pela terra. Campinas, 2008, 262f. Tese (Doutorado),
Instituto de Artes, Programa de Pós-Graduação: Multimeios, Universidade Estadual de
Campinas.
Neste trabalho de pesquisa tratei o imaginário rural, e em especial o imaginário da cultura
caipira e as suas influências no desejo de permanecer e de retornar à terra. Abordei em
imagens as características e as diferentes formas de expressão dos sujeitos influenciados por
estes imaginários: seus gestos, hábitos, músicas, rituais e crenças, assim como o seu silêncio, o
que guarda a sua força. Pretendi com esta pesquisa abordar o que seja esta relação com a
terra, enquanto espaço de vida, de trabalho e de resistência, influenciados pelos mitos da terra e
pelo mito do herói. Pesquisa desenvolvida a partir de uma experiência pessoal/ subjetiva, a da
autora deste projeto. Imagens que repercutem e determinam o vínculo de muitos dos que se
unem aos movimentos de luta pela terra. Imagens que ressoam e se concretizam nas
instituições que organizam este movimento. Imagens compostas em sons e imagens nas pautas
dos roteiros dos deos Trilogia, Trajetórias e O Afeto da terra e ainda no vídeo Conversas de
Bois.
Palavras-chave: imaginário; processo criativo; caipira; vida rural; memória; carro de bois-Brasil
ABSTRACT
JUNQUEIRA, Kellen Maria. The image and memory on the creation process: the rural and the
countryside culture in the land fight imaginary. Campinas, 2008, 262f. Tese (Doutorado), Instituto
de Artes, Programa de Pós-Graduação: Multimeios, Universidade Estadual de Campinas.
In this research the rural imaginary will be discussed, in special the imaginary of the countryside
culture and its influences on the desire to stay and return to the land. It will be accosted in images
the characteristics and the citizens’ different ways of expression influenced for this imaginary:
their gestures, habits, music, rituals and beliefs, as well as their silence, what keep their force. It
intends with this research accosting what is this relation with the land, while a living, working,
resistance space, influenced by land and hero myths. Research developed from a
personal/subjective experience, from the author of this Project. Backwashing images that
determine the joining from many of the ones to the movements for the land fight. Grumbled
images and that materialize in the institutions that organize this movement. Images composed in
sounds and images on the scripts guidelines on the videos Trilogy, Trajectories and the Affection
of the land and still in the video Colloquy of oxen.
Keywords: creation process, countryside, rural life, memory, imaginary, oxcart-Brazil.
LISTA DE FIGURAS
Página
Figura 1. Escultura Carro de Bois Sr. Pedro ...............................................................................46
Figura 2. Paisagem Serra Fina / Mantiqueira...............................................................................53
Figura 3. Krishna Dança com Pastoras de Gado – Índia, séc. XVII............................................86
Figura 4. Aula “Linguagens e Memórias......................................................................................95
Figura 5. Agricultores Ceará........................................................................................................96
Figura 6. “Viagem pelos Caminhos da Juréia”- 2005.................................................................104
Figura 7. “ II Viagem pelos Caminhos da Juréia - 2006.............................................................107
Figura 8. Festa Carro de Bois, Macuco/MG..............................................................................118
Figura 9. Portal de Entrada do Assentamento Sumaré I “Terra Nossa Prometida”..................144
Figura 10. Sr. Aparecido mostrando as pragas em sua acerola - Sumaré”..............................151
Figura 11. Assentados Horto Vergel decarregando folhas eucalipto para produção de óleo
essencial – Mogi-Mirim .......................................................................................... 154
Figura 12. stica realizada no curso"Realidade Brasileira" oferecido para jovens do meio rural
vinculados ao MST de todo o Brasil, realizado na UNICAMP em julho de 1999 ...167
Figura 13. Assentamento Che Guevara”, Pontal do Paranapanema..................................... 169
i
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11
2. MINHAS IMAGENS E MEMÓRIAS: PERCURSOS E CENÁRIOS PESSOAIS 31
2.1. Em busca da subjetividade do outro, o encontro pessoal........................... 40
2.2. No período desta pós-graduação, a conexão com questões que
influenciam a minha percepção................................................................................... 42
2.3. O encontro com a subjetividade do avô......................................................... 45
2.4. A alma! Questão de fé? .................................................................................... 50
3. SUBJETIVIDADE......................................................................................................... 55
3.1. Subjetividade - Criatividade ............................................................................ 65
3.2. A arte e a ciência ............................................................................................... 66
3.3. O conhecimento e o espaço da singularidade.............................................. 68
3.4. Linguagens e Formas de expressão .............................................................. 74
3.5. O fazer artístico, a liberdade............................................................................ 75
4. “A IMAGEM É, EM NÓS, O SUJEITO DO VERBO IMAGINAR” ......................... 79
4.1. As imagens ......................................................................................................... 84
4.2. “É pela imagem que o ser imaginante e o ser imaginado estão mais
próximos”......................................................................................................................... 88
5. MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA: MEMÓRIA É EXPERIÊNCIA ................................ 91
5.1. Linguagens e Memórias ................................................................................... 96
5.2. Memórias de foliões caipiras ......................................................................... 102
5.3. Memórias de carreiros caipiras ..................................................................... 104
5.4. As memórias do avô: o Sr. Pedro ................................................................. 115
6. TERRA: DA CULTURA AGRÍCOLA, DA CULTURA HUMANA......................... 125
7. CULTURA CAIPIRA: A MINHA CULTURA ........................................................... 131
7.1. A moda de viola ............................................................................................... 137
7.2. A literatura brasileira e as leréias dos caipiras ........................................... 140
7.3. E o caipira chega ao cinema.......................................................................... 142
7.4. Imagens de resistência e luta ........................................................................ 145
8. TERRA, TRABALHO E AFETO............................................................................... 151
8.1. O trabalho: provação e/ou realização........................................................... 155
9. LUTAR PELA TERRA: QUANDO A BUSCA EM SI É O SENTIDO.................. 159
9.1. O mito do herói – a alma do artista e do militante...................................... 163
9.2. O herói, militante.............................................................................................. 166
9.3. O herói, artista.................................................................................................. 172
ii
10. POSSIBILIDADES NARRATIVAS PARA AS IMAGENS-MOVIMENTO.......... 179
10.1 Linguagens e Ofícios: Roteiro, direção e montagem................................. 184
10.2 As histórias de cada vídeo ............................................................................. 190
10.2.1 Trilogia........................................................................................................... 195
10.2.2 Afeto da Terra............................................................................................... 209
10.2.3 Trajetórias ..................................................................................................... 213
10.2.4 Conversas de bois....................................................................................... 226
10.3. Parâmetros que defini para a concepção do roteiro, para a definição das
filmagens e edição:...................................................................................................... 230
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 241
REFERÊNCIAS................................................................................................................ 247
ANEXOS ........................................................................................................................... 255
Anexo A – Música “Poeira” de Luiz Bonan e Serafim Gomes.............................. 255
Anexo B – Música “Peão na amarração” de Elomar Figueira de Mello.............. 256
Anexo C – Música “Assentamento” de Chico Buarque ........................................ 257
Anexo D – Música “Deixe-me viver” de Enoque Oliveira..................................... 258
Anexo E - Prosa “De boi quem mais conhece é carreiro” de Kellen Junqueira e
Pedro Honório Paulino................................................................................................ 259
Anexo F – Poesia “Cantá” de Gildes Bezerra......................................................... 260
Anexo G – Poema “Pronominais” de Oswald de Andrade.................................... 261
Anexo H – Primeira pauta do roteiro Trajetórias .................................................... 262
Anexo I – Pré-pauta do roteiro Conversas de bois ................................................ 263
Anexo J – Foto Carro de bois Sr. Pedro e a nomenclatura .................................. 266
Anexo K – Página 22 do Caderno de Memórias de Pedro Honório
Paulino...............................................................................................................262
11
1. INTRODUÇÃO
A prática da pesquisa
Que pedaços do mundo que observo habitarão partes de mim que os vejo?
qual seiva de uma flor vermelha das manhãs de agosto,
que florida no entremeio dos Gerais de Minas
terá a mesma tinta de uma vida que corre no rio de minhas veias?
Carlos Rodrigues Brandão
1
Construir as imagens que expressam a poética de uma vivência seja ela qual
for, implica em externalizar uma subjetividade que muitas vezes anda emaranhada
em confusos sentimentos, idealismos, fantasias e dúvidas que o decorrentes,
para além da história pessoal, da história deste país e da humanidade. Imagens
que pulsam no sujeito impulsionando-o ou retraindo-o na relação com o mundo ou
em um trabalho de criação seja ele qual for. Imagens que vão se construindo e se
tornando significativas no processo de autoconhecimento, o qual também se
através e pelo reconhecimento do outro, nos encontros da vida. No caso desta
pesquisa destaco os encontros que tenho com aqueles que têm a terra como
espaço de vida e luta bem como os que tenho com os pensadores, escritores e
estudiosos que se debruçaram sobre este tema em suas reflexões.
Neste processo de pós-graduação ative-me a pensar como poderia abordar
em imagens a questão e a disposição dos que se vinculam ao movimento de luta
pela terra, construindo-as em uma obra artística, no caso, audiovisual. Das artes,
a literatura, em especial, oferece muitas imagens da terra: em palmos medida
2
a
paisagem e a roça, o local de trabalho e meio de vida, serenidade e alegria,
imagens de luta e resistência que tratam e retratam estas questões com a magia
das imagens poéticas. Poderia criar o roteiro do vídeo desta tese a partir de uma
das muitas narrativas disponíveis em nossa literatura, riquíssima em imagens e
1
BRANDÃO, 1982, p.80.
2
Referência ao poema Funeral de um lavradorde João Cabral de Melo Neto, à música de
Chico Buarque, feita para este poema, e ao livro de AGUIAR (1999).
12
reflexões
3
. Mas como vou abordar um universo que se mescla e se funde com o
da minha origem e ciclos de vivência subjetiva, profissional, social e política,
resolvi fazê-lo a partir da minha experiência pessoal, ainda que eu a viva na
ambigüidade de pertencer ou de ser um outro. Dualidade que de certa maneira
busquei superar tentando compreender
4
minhas características pessoais, quando
me deparei com algumas que são decorrentes do universo rural, com as minhas
vivências urbana, universitária e existencial em geral. Compreensão que se deu
em grande parte em função do desenvolvimento deste projeto, ao procurar alguns
pensadores, tanto os dos livros quanto os da vida, suas reflexões e pesquisas. Tal
superação não é totalmente atingida e se mantém pulsante a partir de minha
relação social e afetiva com o tema, com os assentados e com as imagens que
venho construindo nesta vivência.
Esta relação afetiva é o fundamento e a substância da minha forma de ser e
estar no mundo. Forma que provavelmente muitos vivenciam, mas que nem todos
expressam, talvez por estarem contidos, ou quem sabe mais adaptados a este
mundo tão pragmático e competitivo. Forma de ser que em certo sentido é o ponto
de conflito que vivo no meio acadêmico.
Minha satisfação maior se quando me encontro entre os trabalhadores
rurais com os quais convivo: os que estão assentados em programas de Reforma
Agrária e com os quais compartilho uma relação afetiva. Os que têm como
característica pessoal uma forma de estar e se relacionar com o mundo no qual o
3
Lembro-me de Bachelard que opta por construir suas reflexões sobre a matéria - em seus
ensaios sobre ar, água, terra e fogo - a partir da literatura que ele julga ser muito rica de
imagens: "no ímpeto e no fulgor das imagens literárias, as ramificações se multiplicam; as
palavras já não são simples termos." (BACHELARD, 2001, p.5).
4
Creio não ser necessário justificar a escolha de cada palavra e/ ou conceito que coloquei na
tese. Mas a escolha deste é bastante significativa para mim, de forma que resolvi justificá-lo.
Em FERREIRA, A.B.H. Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, Ed. Civilização
Brasileira S.A., Rio de janeiro, RJ, 1983, entre os léxicos possíveis está conter em si;
abranger; perceber; entender”. O conter em si é o que para mim parece fundamental, o
prefixo “com” remete ao conjunto, ao coletivo, além de remeter-me à coração: a compreensão
que se com o coração. Das outras opções possíveis destaco perceberque não sugere
uma elaboração do vivido e “entender que creio ficaria mais no nível do entendimento mental.
13
vínculo com a terra, não se por status ou poder, mas pela realização que
sentem quando trabalham a terra, vivenciando todo um conjunto de saberes e de
sentimentos de pertencimento à vida. Forma de ser que tem por base valores
religiosos e familiares na qual os bens e o patrimônio são, em geral, valorizados
enquanto formas de garantir uma certa estabilidade econômica e pela autonomia
que se pode desfrutar quando se dispõe de um meio de sobrevivência e de renda.
Forma de ser na qual as dificuldades e limitações são muitas vezes superadas
pelas relações de solidariedade. Forma de ser que muitas vezes não "cabe" neste
mundo e que assim sendo não encontra espaço de expressão. Afetividade que
vira coragem, que pode ser violenta quando é preciso defender a integridade, que
não é apenas a física, assim como estudou Maria Sylvia Franco. Provavelmente a
proximidade com a natureza é um dos fatores fundamentais para determinar esta
forma de ser, assim como apontou Antonio Cândido; ou então o trabalho que para
José de Souza Martins é o cerne da práxis do caipira; ou então a expropriação dos
bens e meios de sobrevivência que vem acontecendo no decorrer da nossa
história, principalmente para os que vivem no meio rural, que Carlos Rodrigues
Brandão identifica como sendo o motivo da apatia que imobiliza este homem, que
vive próximo da terra.
Da literatura consultada, das histórias de vida narradas, as que mais me
tocaram foram as de Fabiano em Vidas Secas de Graciliano Ramos e de Miguilim
em Campo Geral de Guimarães Rosa: a dificuldade e até mesmo impossibilidade
de comunicação destes personagens angustia-me. Esta questão é uma das que
mais me atrai no desenvolvimento do meu trabalho, tanto no desta pesquisa,
quanto no que realizo na minha atividade profissional, especialmente quando
estou mediando o encontro de dois universos tão diferentes como são o dos
alunos da Faculdade de Engenharia Agrícola - FEAGRI/UNICAMP, que em sua
maioria (90%) são de origem urbana, de classe social média e alta, e o dos
agricultores, os assentados.
14
Lembro-me das reflexões de Andrei Tarkovski
5
sobre a forma de estar no
mundo de algumas pessoas, como as que vão ao cinema em busca de
entretenimento. As imagens -as que eu pretendo construir, e as que construí-
talvez não sirvam para o diálogo entre aqueles universos. Quiçá elas possam ao
menos dar leveza e dignidade à existência destes agricultores, aquela que a gente
sente quando pode ser sem ter que pensar para tanto. Imagens, que eu pretendo,
que reflitam de alguma maneira cada uma das descobertas que fui alcançando
neste percurso, que não começa neste espaço de tempo do doutorado, que
remonta à minha entrada na Extensão Rural da FEAGRI, na época em que
comecei a registrar minhas atividades com fotos, depois com vídeos. Quando
comecei a selecionar e editar imagens para ilustrar e mostrar o que fazíamos em
nossa área de trabalho enquanto ia percebendo o quanto cada uma é expressiva
por si. Imagens que são construídas a partir de outras que estão arraigadas no
meu ser, das que eu ia elaborando cada vez que, passeando pelas Minas Gerais,
passávamos por um pasto na estrada e alguém nos chamava a atenção
carinhosamente: “olha o boizinho!”
Descobertas que foram se clareando com os vários pensadores com os
quais fui entrando em contato. Descobertas de quando comecei a refletir sobre o
que significava a memória sobre a terra, memória que a princípio parecia-me algo
tão simples em nossas vidas, mas que foi se mostrando complexa e profunda,
metafórica e ambígua. Esta dimensão das minhas descobertas é recente e, vem
sendo reforçada e almejada por diversas circunstâncias pessoais, dentre as quais
as lembranças inconscientes que meu pai trouxe de um mundo rural, que não
sabemos se vivido ou imaginado
6
, mas que tem a terra como símbolo de desejo e
satisfação. Reforçado pela reaproximação com um aque esculpi miniaturas de
carros de boi em madeira, atentando para o detalhe de cada peça reproduzida tal
5
TARKOVSKI, 1990, p.214.
6
Assim como pela imaginação literária "Inventar um passado! ... para estar bem certo de que
se ultrapassa a autobiografia de um real acontecido e de que se reencontra a autobiografia das
possibilidades perdidas" (BACHELARD, 2001b, p. 77).
15
qual os carros que ele usava em sua mocidade, quando vivia na roça. Pela
memória que determina e motiva o Sr. Sebastião (in memoriam), amigo de família
que morava em Areado/Minas Gerais, a colocar um lenço no pescoço quando
pedimos para que ele cante uma moda de carreiro. A que Fernando Passos se
refere em sua tese e a que o personagem de seu filme "Antes do trem, o trem"
expressa: a terra e o trabalho substituindo a ausência da mulher. A memória viva
que os moradores de Juréia e Macuco e região mantém com a realização das
Festas dos Carros de Bois, quando vários agricultores locais vão para estes
eventos celebrar uma cultura e firmar uma devoção. A memória itinerante, assim
como denominou Célia Cassiano no título de sua tese, aquela que moradores da
região periférica da cidade de Campinas, muitos deles de origem rural,
reproduzem na realização dos rituais das Folias de Reis, quando cada um pode
contar com a vinda da bandeira para agradecer ou pedir alguma graça. E ainda, a
que os trabalhadores que estão vinculados ao Movimento de Trabalhadores
Rurais Sem Terra, o MST, trouxeram em um curso do qual participei da
coordenação, sobre a memória que cada um tem de sua história de vida e, em
especial, da que vem vivenciando na luta pela terra.
Além do percurso empreendido na busca e compreensão do que significava
esta memória, a da terra, houve uma outra, tanto ou mais difícil, que percorro no
intuito de ir ao encontro da minha subjetividade. Concebo o mundo em vista de um
horizonte no qual almejo a transformação da "paisagem" avistada em função das
minhas motivações político-sociais. Horizonte que precisaria estar livre, assim
como apontam muitos pensadores que trataram de processos de criação, para
que se possa conceber uma imagem e, quiçá, uma obra de arte. Desejo uma
transformação que possibilite o encontro de formas alternativas de direito, não
moralistas, direito que o se oponha ao torto, que não contraponha o certo ao
errado, o bem ao mal. O direito que voz e reconheça a legitimidade da forma
de ser de cada homem, favorecendo sua participação na construção de uma
sociedade livre.
16
A vida material com base na tecnologia moderna muda muito. Mais rápido do
que é possível ao sujeito imaginante acompanhar, aquele que percebe o mundo
através de uma complexa rede de imagens arquetípicas e de conceitos e
enquanto sociedade que vive sob leis e regras, deveres e obrigações. Estruturas
construídas no decorrer de tantos séculos de existência humana e que se
atualizam na complexa estrutura bio-psicológica de cada um. Estruturas que para
se transformarem precisam revolucionar um sistema ou atuar através de
processos dos quais não se tem controle. Assim sendo as relações humanas
tornam-se tensas e conflituosas. Talvez devido à dificuldade que é mediar estas
relações o mundo caminhou de forma a propiciar a individualidade como forma de
ser que, ao contrário do que muitas vezes se imagina, acontece em oposição à
liberdade que tanto almejamos. Liberdade, que apenas uma sociedade
minimamente íntegra e integrada poderia oferecer e que, neste momento da
história da humanidade, podemos alcançar em parte, dentro de um universo
particular ou subjetivo.
Quem trabalha com criação artística vive "às voltas" com questões pessoais
e existenciais, pois para além do que cada um tem que elaborar para si, o artista
tende a fazê-lo para poder expressá-las em sua obra de arte. Seja qual for a sua
matéria de trabalho, no encontro com ela, a expressão de suas idéias, que não é
apenas consciente, revela sua subjetividade fruto de reflexões pessoais e da
sensibilidade que algumas pessoas demonstram ter diante do mundo e no
encontro que acontece com a matéria é que se dará a base de sua criação.
Assim sendo, os percalços a serem vivenciados pelo artista não estão
concebidos/ pré-definidos em teorias ou metodologias. Talvez alguns deles
possam compartilhar algumas experiências, nada que garanta a compreensão do
que seja esta forma de fazer e de estar no mundo. Vários autores apresentam
pontos em comum do que seja a arte, a obra-de-arte e algumas características
dos artistas, no entanto nenhum deles indica um caminho a ser percorrido que
17
possibilitasse o encontro com estas dimensões. Ivan Vilela
7
em suas
apresentações sempre ensina rituais e "simpatias" para quem quer se tornar um
violeiro, um artista da viola, e apesar de saber de vários destes, confessa que até
hoje só percorreu o caminho dos estudos
8
.
Teoria das cores, arquitetura de fornos, o “tempo real” no cinema, a luz na
fotografia: quantos elementos do trabalho artístico poderiam ser compreendidos e
ainda assim precisaríamos ir ao encontro do que cada um deles podem traduzir do
desejo de harmonia, do vazio que se percebe em seu ser, da angústia da perda ou
da leveza ou dureza de um estar que cada um de nós quer compartilhar. Ainda
que o caminho para ser artista não esteja definido, pela reflexão que se faz a partir
da experiência dos que o são, bem como, a partir dos estudos dos pensadores da
arte, percebemos que os artistas estão instigados a buscar a magia do mundo, a
beleza que está além da estética, que pode esboçar e expressar a essência da
vida.
Na busca de imagens, que oscilam entre as do imaginário da cultura caipira e
do movimento de luta pela terra, é que me mantenho firme neste projeto, onde
pode estar a "chave" da minha singularidade. Isto tudo pretendo compreender
estudando e identificando as imagens da TERRA enquanto meio de vida e de
origem da vida.
Segundo Heráclito (1973, fragmento 53) "O conflito é o pai de todas as
coisas; de alguns faz homens; de alguns escravos; de alguns homens livres".
Poderia o conflito levar-me ao horizonte da liberdade? Deparar com ele poderia
ser o primeiro passo. Estou sempre o ignorando, ocultando-o ou tentando superá-
7
Violeiro, compositor de música instrumental/caipira e um dos fundadores da Orquestra
Filarmônica de Violas, da cidade de Campinas/SP.
8
No entanto, quando ouvimos sua música, duvidamos que a beleza que ele alcança em suas
composições seja fruto apenas de exercícios práticos ou teóricos, quaisquer sejam,
desconfiamos isto sim, que ele desfruta de algum dom divino, assim como diz Bachelard "O
poeta contempla o universo com olhos de um Deus" (2001b, p. 179).
18
lo. Procuro o que é comum, similar, uno. Talvez o conflito se dê em função da
dificuldade que tenho de conviver com a ambigüidade, com a incerteza. A situação
conflituosa pode favorecer um processo criativo, no entanto, enquanto perdura
angustia-me. Uma das situações conflituosas para mim é quando faço críticas.
Sempre que na redação desta tese ensaiei alguma, parava e avaliava a real
pertinência da mesma: procurava verificar se ela também não cabia a mim e se eu
não poderia formulá-la de maneira a apontar uma saída.
O mistério da vida pertence a todos: como cada um o encara é o que me
instiga a conviver com as pessoas e conhecer os caminhos que escolheram. O
mistério pode ser um prazer para os que são aventureiros, ainda que com as suas
limitações e desafios. Aparentemente alguns optam por uma filiação religiosa e/ou
ideológica; outros declaram ignorar o mistério e o sentido; outros pretendem
encontrá-los, descobri-los, desvendá-los -filósofos, pensadores (acadêmicos ou
não)-. Creio que olhar para cada um destes homens pode ser revelador! Neste
conjunto de vivências e convivências é que construo a minha própria perspectiva.
[...] O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas
vão sempre mudando. (ROSA, 1982, p.39).
Praticamente toda a referência bibliográfica deste trabalho aponta os limites
do conhecimento humano e dos modelos de sociedade existentes: talvez o
modelo esteja apenas em esboço ainda. Mais do que estas referências é a vida
que está sempre nos apontando as limitações de nossas concepções, abalando
nossa fé, reafirmando o mistério da vida. Curiosamente persiste em alguns,
superadas as crises, o desejo de transformação, a busca de seus ideais. Persiste
em mim este sentimento, assim como sinto que acontece com muitas das pessoas
com as quais convivo, que escolheram o engajamento político, seja aonde for:
seja na universidade, seja no movimento social; seja defendendo o meio
ambiente, seja defendendo a solidariedade. Buscando a construção de relações
19
mais humanas para as quais muitas vezes nos remetemos ao passado, à tradição
ou ao futuro, aos ideais, ou ainda, às referências, as que estão latentes, em cada
um, agora. Pessoas com as quais compartilho muitos ideais, seja trilhando o
mesmo ou diferentes caminhos.
Heidegger (1959, p.24-25) reflete sobre as ameaças de desenraizamento
que sofre o homem no mundo atual e para transformar esta perspectiva ele
propõe uma outra atitude perante a tecnologia e as coisas. Atitude que ele designa
com uma palavra por ele identificada dentre as que não estavam mais em uso em
sua época: serenidade
9
. Atitude que pode acontecer a partir de um
“pensamento determinado e ininterrupto”, um que não sirva apenas para calcular:
“a serenidade em relação às coisas e a abertura ao mistério dão-nos a perspectiva
de um novo enraizamento”. Para muitos a abertura se pela necessidade, pelas
possibilidades que o retorno à terra pode proporcionar em termos de qualidade de
vida: qualidade que não se mede em números de consumo, mas que se vive
dignamente, com autonomia e liberdade, atitude que também favorece o
enraizamento.
[...] a imagem da raiz, desde que sincera, revela em nossos sonhos tudo aquilo
que nos faz filhos da terra. Todos nós, sem nenhuma exceção, temos por
antepassados lavradores. (BACHELARD, 1990, p.228, grifo do autor).
Das raízes podemos passar pelo caule e chegar à ponta das folhas e entrar
na gica de que se reveste o mundo quando o percebemos simbólico: podemos
iniciar esta viagem com as leituras de pensadores como Gaston Bachelard, Walter
Benjamin, Hanna Arendt, James Hilmann. uma rede de sentidos se refazendo
o tempo todo. Junto os elementos que parecem dispersos: teço uma tese, um
roteiro, um vídeo. Complexidade de motivações fragmentadas: narradas nesta
9
Demorei para conseguir uma redação que me satisfizesse para este parágrafo. Sinalizei esta
pendência com um asterisco(*), o qual “olhou” para mim diversas vezes. Fiquei uma semana
sem relógio, ele quebrou, e pude perceber o que é mudar de atitude diante da tecnologia.
Consegui fechar a redação do parágrafo.
20
tese com começo, meio e fim, arrematadas no prazo determinado pela instituição
acadêmica. Escolhi experimentar o vídeo como forma de expressão. Não procurei
a sociologia, nem a pedagogia e nem a psicologia: na convivência com tantos
mistérios preferi arriscar a poética imagética. Deparei-me com pensadores e
artistas que refletiram sobre a dimensão simbólica da vida, que “pintaram” com
muita beleza a lógica de outros universos. Construí os argumentos para os deos
a partir das minhas vivências e experiências, que são as do meu mais profundo
ser, talvez da minha alma.
Repensar os valores e a vida no âmbito da imaginação. Valorizar os detalhes
do cotidiano, a sabedoria de cada homem e o relacionamento com o outro como
uma forma de se conhecer. A liberdade que se pode alcançar através do vazio ou
do nada. Nos permitir uma experiência mais aberta, sem tantas amarras
ideológicas e moralistas que direcionem o olhar ou então propondo o retorno da
alma ao mundo através do coração na busca de uma dimensão espiritualizada.
Construo as minhas reflexões tendo como referência os trabalhos
acadêmicos, os dos artistas, a relação com cada um dos agricultores e outras
pessoas com as quais tive oportunidade de estar. Todos os encontros, inclusive
alguns por acaso, foram amistosos: cada uma destas pessoas foi atenciosa e
generosa ao compartilhar o que sabia, indicando bibliografias, emprestando livros,
apontando incoerências, problemas, semelhanças e familiaridades, sugerindo
perspectivas. Creio que o tema de reflexão que nos une é o que favorece este tipo
de relação. Trago deles o que repercute em mim, aquilo com o que me identifico e
que se manifesta em uma memória fragmentada, tanto mais, pela diversidade de
universos que vivencio, universos tantas vezes ambíguos e até antagônicos. Não
me remeto a estes autores para dar autoridade às reflexões que estão nesta tese.
Trago deles o que coaduna com o que eu penso e que me possibilitou
compreender melhor o que remoia e elaborava em meu ser.
21
A decisão pela defesa da tese no local onde trabalho -a FEAGRI-, se deu em
função de assumir o que penso no espaço onde muitos anos venho
construindo grande parte da minha subjetividade. Local onde vários
acontecimentos determinaram e contribuíram neste processo, entre eles: a
diversidade do espaço acadêmico, o que favoreceu eu associar-me aos que
buscam mudanças sociais, e o que me levou a entrar na área de Extensão e
Comunicação Rural desta faculdade. As relações de confiança que se
estabeleceram entre meus colegas e parceiros de trabalho, o que foi fundamental
para que eu pudesse acreditar em mim mesma de forma a conseguir fortalecer-me
e superar as dificuldades. Algumas vezes entrei em conflito com estes colegas e
amigos: somos diferentes, temos diferentes perspectivas de vida, contudo os
nossos conflitos nos ajudaram a ganhar respeito uns pelos outros.
Tentei buscar em minha memória o motivo pelo qual fui parar na
comunicação. O que a princípio era uma necessidade pessoal -aprender a
comunicar-me, a expressar-me, a falar o que pensava- virou a minha atividade
profissional, o meu tema de pesquisa. Necessidade que primeiramente senti
participando dos espaços políticos do sindicato da UNICAMP e na Faculdade
onde trabalho, quando sentia remoer em mim o desejo de manifestar concepções
que se opunham a dos demais colegas, o que era mais difícil quando este
representava algum tipo de autoridade. Especialmente quando estive como
representante dos funcionários e era procurada pelos colegas com questões que
eu tinha que mediar, o que me exigiu, para além de aprender a articular as idéias
e as palavras, enfrentar a autoridade. Característica que foi mudando conforme ia
percebendo e entendendo melhor o jogo de poder e status” que regem as
relações.
Será que é possível identificar objetivos em uma pesquisa que se pretende
artística? Desejos! Desejos que traem ou que alimentam a criatividade almejada.
22
[...] (o) desejo permeia o campo social, tanto em práticas imediatas, quanto em
projetos muito ambiciosos ... (refere-se) a todas as formas de vontade de viver,
de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra
sociedade, outra percepção de mundo, outros sistemas de valores …(
GUATTARI e ROLNIK
10
apud GOMES, 1995, p. 28).
O que eu aprendi neste período? É sobre isto que vou falar, o que acredito
ser coerente com a minha proposição de que a subjetividade é o espaço legítimo
de conhecimento. Espaço-tempo em que experimentei e experienciei diversos
processos: os da alma, os da memória, os de criação e realização. Processo que
não estanca com a finalização desta tese e que provavelmente terá continuidade
na minha carreira profissional.
Refiro-me também ao desenvolvimento da minha subjetividade, a que
alcancei no decorrer deste processo. Entretanto devo confessar que quem tinha
claro esta questão como sendo um objetivo a ser alcançado era meu orientador:
ele sabia da necessidade deste “encontro” para que o meu projeto pudesse
realizar-se plenamente. Encontrar minha singularidade e a partir daí poder
explorar as imagens e traduzi-las em narrativas audiovisuais.
Confesso um desejo: o de participar do processo de reencantamento do
mundo assim como diversos autores dos que tive contato se propuseram a fazer
ou de alguma maneira fizeram. O que procurei fazer tentando identificar imagens
que poderiam retratar dimensões imateriais e simbólicas que influenciam e
motivam os que se unem aos movimentos sociais de luta pela terra e os que
resistem como agricultores familiares. Bem como as que ilustram o prazer pelo
trabalho e pelo estar com o outro. Imagens, estas e outras que possam dar leveza
e força à alma. Aprender a narrar histórias e estórias através da linguagem
audiovisual. A tradição de narrar vem se perdendo o que ocasiona o apagamento
10
GUATTARI, F. e ROLNIK, S. Micropolítica - Cartografias do desejo, Ed. Vozes, Petrópolis/RJ,
2ª ed., 1986.
23
e esquecimento de tantas experiências importantes para a humanidade... Quem
sabe ela poderá ser resgatada através de um outro meio?
Alguns desejos que tinha por ocasião da concepção dos roteiros para os
vídeos:
Valorizar tradições que permanecem a despeito da falta de recursos e da
modernização tecnológica, pois guardam um conjunto de conhecimentos
construídos e respeitados por diversos homens, que lhe permitem viver com
autonomia e liberdade.
Valorizar a sabedoria dos velhos e dar dignidade a eles, o que favorece
ainda a valorização do ser humano em geral que não prescinde da velhice em sua
existência.
Retratar o resgate e a celebração de uma memória e de uma cultura de
forma a favorecer que as pessoas usufruam uma melhor qualidade de vida.
Usei a primeira pessoa a maior parte do tempo durante a redação desta tese.
É muito difícil assumir pessoalmente a responsabilidade por uma pesquisa. Tentei
fazer um exercício de uma escrita “inteira em si”, sem divagações, sem
referências: desisti. Não como não usar parênteses, notas de rodapés e todo
tipo de recurso que possa expressar os pensamentos que se bifurcam e se
cruzam.
Alguns amigos
11
leram as redações que fui aprontando para esta tese: leram
os textos da qualificação, capítulos da tese, leram o conjunto todo. Esta minha
experiência reforça as minhas perspectivas de que a solidariedade existe
12
: eu
posso dar um testemunho pessoal sobre o carinho e a atenção com que cada um
o fez. Certamente o resultado desta minha tese não teria a mesma qualidade se
não tivesse passado pelas mãos de tantas cabeças pensantes e corações
11
Estes amigos estão relacionados nos “Agradecimentos”.
12
E segundo a Bia -uma das amigas que leu- esta é uma “solidariedade caipira”.
24
pulsantes. Muitos estranharam a construção tão subjetiva da narrativa, o que eu
esperava, e ao que alertava quando entregava o texto. Mas para alguns,
especialmente os que são das áreas mais técnicas, esta diferença, realmente
causava surpresa. Estes amigos apontaram algumas passagens que estavam
confusas, as que quebravam a narrativa e as que simplesmente os incomodaram.
Esta experiência, a de discutir com estes amigos suas impressões, foi muito
interessante e permitiu-me amadurecer melhor as minhas reflexões e a minha
forma de expressar-me. Muitos dos conceitos que uso, que em geral não estão
explicitados no corpo da tese, estão abordados nos respectivos contextos em que
aparecem. Esta abordagem é o que creio ser imprescindível para a compreensão
do que desejo compartilhar. De qualquer maneira, reformulei muita das passagens
apontadas pelos amigos e algumas, que não eram fundamentais à minha
argumentação, descartei.
Um dos amigos que revisou o texto de alguns capítulos desta tese -Francisco
Corrales, o Chico- observou o uso repetido da palavra “homem” e sugeriu que eu
a substituísse procurando uma outra que não suscitasse o problema de gênero,
inclusive deu sugestões “ser humano” ou “indivíduo”. Repassei o texto revendo
esta palavra e me dei conta que faltam na língua portuguesa palavras
contemplando a diversidade de gêneros, ou talvez um gênero neutro. Algumas
foram possíveis de serem substituídas, mas a maioria não se ajustava a estas
duas opções, pois “ser humano” generaliza demais e “indivíduo” restringe...
No que tange à língua portuguesa ainda, algumas vezes me faltaram
palavras que expressassem o que eu queria compartilhar. Alguns casos foram
solucionados com o uso de mais de uma palavra o que sinalizei com uma barra
juntando as mesmas. Se ao menos eu tivesse a genialidade e liberdade de um
Guimarães Rosa para poder inovar o meu vocabulário... No entanto devo salientar
que em geral tinha um bom leque de opções.
25
Das tantas correções que fui fazendo, destaco as que fiz ao pronome
reflexivo “me” que tendia sempre a colocar antes dos verbos. Destaco-a também
para poder citar Oswald Andrade que compôs um poema com este pronome e em
protesto a esta regra, ou melhor, às regras, no movimento da Semana de Arte
Moderna”, poema no anexo G.
Quando parágrafos em destaque, em itálico, centralizados no corpo do
texto e que não tem uma identificação de autoria é porque a redação é minha.
Eles não cabiam no texto corrido: têm forma e conteúdos diferentes.
As palavras com aspas são para indicar que elas são estrangeiras, estranhas
ao português ou quando estão colocadas no corpo do texto com um sentido
metafórico, ambíguo ou aberto (nestes casos, leitor, fique à vontade!).
Não me furtei de compartilhar algumas informações de senso comum quando
elas eram fundamentais para a compreensão do meu trabalho: não quis arriscar
que algum leitor as desconhecesse.
Os leitores deste texto irão se deparar com citações as mais diversas, todas
as que eu quis prestigiar, que foram fundamentais para a construção da minha
pesquisa e destas minhas reflexões. Foi bom dialogar com tantos pensadores,
contudo foi difícil. O pior foi quando com três capítulos finalizados fui ler Hanna
Arendt: instaurou-se uma crise que não sei se chegava a ser de conceitos, creio
antes que de termos e expressões. Tranqüilizei-me e voltei a expressar-me com
as minhas palavras, ainda que românticas ou trágicas, são minhas. Não estão
completamente maduras, contudo estão abertas e atentas para perceber o
movimento e a dinâmica do mundo.
Na rotina de estudos fugi do ambiente ruidoso e movimentado da minha sala
de trabalho e das bibliotecas da UNICAMP (que além de tudo, em geral, são frias).
26
Procurei as mesas de jardim, os bancos e os troncos para estar. Talvez o
incômodo seja interno: os sons humanos me dizem respeito. A formação e o
trabalho na área de humanas trouxe significado para todos os momentos de
minha vida: o profissional, social, cultural, político. Por isso necessito das
montanhas (e que decepção quando na última viagem ouço um celular tocar no
mais alto pico da Serra da Mantiqueira). Recostada num “trono”, de madeira e
terra, a população deste micro universo me alcança: formigas, aranhas, seres
verdes ondulantes, vespas, mosquitos; passam calmamente pelo meu colo, pelos
livros e ouvidos. Algumas vezes do céu caem folhas e flores. Assim estudava,
embalada pela melodia do vento que tem sons que dizem respeito a outras
dimensões da vida...
Enfim, tenho que fechar um espaço de tempo que na vida se estende.
Finalizo esta introdução comentando cada capítulo nos quais construo o
argumento da tese e dos vídeos.
É difícil separar os assuntos por capítulos: eles se mesclam, se fundem.
Alguns argumentos precisam ser repetidos, ser resgatados em outros contextos:
uma certa circularidade, que não sei se é peculiar à minha cultura oral, ou se é
da vida. Tantas vezes li este texto, que identifiquei e analisei cada uma das
passagens que retornam e por fim conclui pela permanência desta circularidade.
Desde a introdução até o final desta tese me exponho abertamente
compartilhando dúvidas e crenças. Faço-o na convicção de que é deste modo que
se compartilha o que se sabe, possibilitando ao outro incorporar para si o que lhe
valeu.
No capítulo As minhas imagens e memórias: percursos e cenários
pessoais relato as experiências da minha trajetória de vida, a que se delineia
traçando a minha personalidade e contextualizando as reflexões que afloraram e
27
que formulei para esta pesquisa e, também, que vivenciei e elaborei tendo estas
questões como referência.
As reflexões desta pesquisa estão embasadas na convicção que tenho de
que a subjetividade é uma fonte viva e original de conhecimentos os quais podem
contribuir efetivamente para a criação de uma nova realidade e influenciar outras
formas de estar no mundo, quando repercutem na alma de outros indivíduos e
ressoam no espírito de uma época. Ainda que a sua validade como conhecimento,
idéia ou intuição, universal, só possa ser dada quando o mesmo ressoa na
totalidade de indivíduos, poder olhar para qualquer homem e perceber nele esta
capacidade é um caminho para se abrir e se construir outras formas de saber
para o mundo.
A subjetividade está permeando todos os capítulos desta tese. Contudo,
resolvi dedicar um capítulo especial a este tema para poder compartilhar mais
sistematicamente os aprendizados decorrentes da atenção que dei a este
processo: o de percepção e amadurecimento da minha subjetividade. O que se
deu em função das reflexões que fiz e faço a partir da minha própria experiência,
que vivenciei nos decursos de espaço/ tempo de minha vida, especialmente no
decorrer desta pós-graduação. Neste capítulo “Subjetividade”, esboço minhas
reflexões sobre o assunto tomando como base as reflexões de Iria Zanoni sobre
subjetividade e identidade e sobre o quanto a experiência - tomando aqui como
referência as reflexões de Jorge Larrosa - é fundamental no processo de
subjetivação. Abordo sucintamente algumas teorias do conhecimento (creio que a
maioria delas bastante conhecida dos leitores) apenas para justificar a
subjetividade como uma dimensão legítima de concepção de conhecimentos.
Faço a defesa da subjetividade também por ser o espaço da imaginação:
forma de atividade do pensamento humano que se tanto no processo de
percepção como no de criação. Para tanto "valho-me" das concepções e reflexões
28
de Gaston Bachelard feitas especialmente na introdução dos livros A poética do
espaço e O ar e os sonhos e em seus outros sobre a terra
13
. Dentre as várias
concepções de como se o conhecimento e os processos de criação, é nas
concepções deste pensador que encontro da melhor maneira expressas as
possibilidades da atividade artística. Quando se trabalha a partir do conceito de
imaginário, as imagens, idéias e conceitos ganham significados subjetivos: para
quem escreve e para quem lê, ou assiste. Este tema será tratado no capítulo
A imagem é, em nós, o sujeito do verbo imaginar”, onde vou abordar a
Filosofia do imaginário e os conceitos de: imagem, imaginário e imaginação.
Memória é experiência”. Esta foi uma das descobertas neste percurso, em
uma aula de Agueda Bittencourt sobre escritas biográficas, e que expressou a
forma como eu percebia na minha personalidade memória e experiência”, que
assim articulados brotam do mais profundo ser, dos seres, dos caipiras, dos
foliões (de Reis), dos carreiros (de bois) e do meu avô (Sr. Pedro).
Terra! Eu admiro muito o homem ter descoberto, inventado ou recebido como
dom a arte ou a tecnologia de cuidar da terra: a agricultura. Ela revoluciona a sua
relação com a natureza e com os outros homens. É sobre os vínculos decorrentes
com a terra que vou discorrer no capítulo Terra: tanto a agrícola, como a
humana”.
Na seqüência vou discorrer sobre o imaginário da cultura caipira”, que é o
universo de grande parte da minha memória e da minha história de vida. Para
tanto me vali, como ressaltei, da leitura que fiz de vários autores e atores,
artistas e escritores, muitos deles caipiras mesmo. Neste mesmo capítulo em
outro item tratarei da questão do vínculo com a terra como cultura, o que podemos
compreender dentro de um processo histórico e geográfico. Vínculo que se
constrói na dimensão simbólica e que não pode ser definida precisamente.
13
BACHELARD, (1978, 1990, 2001a e 2001b).
29
Vínculos que determinam a "atividade" do imaginário de muitos indivíduos. Outros
vínculos que se estabelecem ainda com a terra são os de afeto que muitos
expressam através do trabalho.
De quantas formas pode-se buscar a transformação seja ela qual for? A
busca perde o sentido quando se percebe que ela, “a busca em si”, é o que nos
motiva a entrar no caminho da militância ou da vida de artista? Não são caminhos
fáceis estes, no entanto encontrei, e continuo encontrando, muitos que me
acompanham com determinação nestes percursos.
Finalmente, no capítulo Possibilidades narrativas para as imagens-
movimentodescrevo o processo de concepção de três vídeos e a realização de
um deles Conversas de bois”. O mesmo material que usei para a edição usei
para discutir as minhas questões na tese, principalmente sobre a memória e sobre
a cultura caipira, de forma que a redação dela influenciou o roteiro e vice-versa.
Creio que quem assistir o vídeo poderá confirmar as reflexões deste capítulo.
Uma amiga -a Márcia- leu uma das últimas versões da tese e comentou que é
neste capítulo que amarro o conjunto das minhas reflexões.
31
2. MINHAS IMAGENS E MEMÓRIAS: PERCURSOS E CENÁRIOS PESSOAIS
Meu conhecimento é viajeiro de poucas léguas;
num rejo por nenhum conhecimento de mestre,
mas de mim por mim, aprendido no simples do viver
(Zequinha Fartura)
Meu percurso: reafirmação de ideais,
nem sempre das idéias...
Porque eu, uma pessoa relativamente jovem em relação à geração do meu
avô, que efetivamente sofreu com o êxodo rural, compartilho o afeto pela terra
assim como um certo ressentimento em relação a estas perdas? O que questiono
que sou genuinamente urbana. Certamente não é por nostalgia. Creio,
outrossim, ser um reconhecimento de valores de um modo de vida que me atrai. O
vínculo com a terra é familiar, mas tem também outras dimensões: arquetípica,
mítica, mística...
Percebo uma recorrência deste tema como referência na minha vida:
meus signos astrológicos pertencem ao elemento terra (touro e cabra);
família de origem rural (e caipira);
tenho a natureza como refúgio
e muitas vezes como deleite:
o desafio de subir as montanhas
o desejo de sentir a força da cachoeira;
o trabalho no Meio Rural.
As buscas e os encontros: a militância na UNICAMP. O desejo de uma
autonomia nas avaliações políticas - a graduação em FILOSOFIA-. A procura por
um emprego em que pudesse estar inteira no meu desejo de transformação -a
EXTENSÃO RURAL-. Meu amadurecimento na relação com os agricultores,
superando uma postura de julgamento que tinha diante deles, transformada em
respeito e admiração, ao reconhecer a realidade complexa e difícil dos que estão
lutando por estabelecer-se na terra. Uma relação que sempre foi afetiva,
32
especialmente com alguns -a Cida, Calixto, Sinésio, Osita-. A minha auto-
afirmação enquanto indivíduo -o LADO NOTURNO
14
, a terapia, o psicodrama-. O
convite para trabalhar com uma ilha de edição que uma ONG
15
nos concedeu em
comodato, que foi feito para mim pelo fato de que eu gostava de fotografar. Como
decorrência desta nova função busquei capacitar-me para a produção de vídeos:
primeiramente as disciplinas no MULTI-MEIOS, onde soube que tinha um
professor que dava aulas mais práticas -Fernando Passos- e em seguida o
mestrado sob sua orientação. A proximidade com o meu avô que me possibilitou
clarear várias das minhas inclinações pessoais. A parceria com os amigos do
grupo de pesquisa Linguagens e Memórias”. Os muitos AMIGOS, que
compartilham esta curiosidade pelo que representa estar no MUNDO. A
espiritualidade que retomei com a AYAWASCA
16
.
Resolvi fazer filosofia para poder ter as minhas próprias reflexões sobre os
processos políticos, os quais então me interessavam enquanto militante partidária:
ao mesmo tempo ingressava profissionalmente no meio acadêmico como
pesquisadora. Quantas idéias, conceitos e argumentos! Muitos sendo
ultrapassados por outros, pode ser que sejam simplesmente novas descobertas,
novas informações, e se a gente não sabe olhar para dentro de si se perde, seja
neste mundo, seja no mundo das idéias... Mudanças: mudou a minha forma de
pensar como deveria se dar a relação com o outro nos espaços políticos, contudo
não mudou o meu desejo de transformação social.
Durante o tempo de militância condenei algumas perspectivas e modos de
ser que identificava na minha família como sendo de “alienação”. Não dialogando
com este universo, não compreendia a sua complexidade e beleza: quando somos
14
Grupo de meditação budista e de terapia.
15
Uma Organização Não Governamental: o PROTER - Programa da Terra.
16
Chá feito à base de chacrona e jagube, duas plantas da região amazônica, descobertos
pelos indígenas da região, que utilizam esta bebida em rituais religiosos.
33
jovens nos apegamos a alguns valores e desconsideramos tantos outros tão
importantes na vida.
Acredito que uma melhora sempre se em função de uma crise espiritual.
Uma crise espiritual é uma tentativa de encontrar a si mesmo, de adquirir uma
nova fé. ... E como poderia ser de outro modo se a alma anseia por harmonia,
e a vida é plena de discórdia? Essa dicotomia é o estímulo para a
transformação, é simultaneamente a fonte da nossa dor e da nossa esperança:
a confirmação da nossa profundidade e do nosso potencial espiritual.
(TARKOVSKI, 1990, p. 234).
Neguei a espiritualidade por muito tempo por, entre outros motivos, não
encontrar nas religiões que conhecera a justificativa para a vida material. Hoje não
me preocupo mais em identificar o motivo desta existência. Desejo encontrar PAZ,
o que creio que se dará aceitando o mistério do mundo, o que o quer dizer
aceitar o mundo tal como está. Foi assim que fui procurar um espaço, um grupo
em que pudesse compartilhar esta busca e quiçá o encontro. Religare! Quais são
as possibilidades para que se firme os laços que levam aos caminhos de encontro
consigo mesmo e com o sagrado? A religiosidade atribui significados simbólicos e
transcendentais para o real: o sinal da cruz, a comunhão, a oração, o véu, a vela
acesa. O mundo ganhou então uma força simbólica e mágica. E isto favorece que
eu compreenda e possa explorar melhor a imaginação.
Minhas rupturas, incoerências, ausências: Indo para onde? Acumulando que
riquezas (me refiro às intelectuais)? Será que posso despender meu tempo
cuidando do outro, que não o idealizado? Que não seja informando-me e
formando-me para construir uma personalidade firme e segura da verdade. As
idéias e atividades que não satisfaziam a necessidade de afeto: este “mínimo vital”
pelo qual tanto anseio. Assim que decidi parar de “acumular currículo”.
Voltei-me para a arte através da fotografia, o que fazia simplesmente pelo
prazer das tomadas das imagens, ensaiando enquadramentos e luzes, e pela
admiração que tenho pela imagem fixa, que tanto me encanta. As pessoas que
34
encontrei na vida acadêmica das áreas de artes foram fundamentais para eu dar
uma outra qualidade para meu trabalho: aprendi que uma narrativa audiovisual é
uma linguagem com a qual se escolhe como estabelecer relações.
A minha experiência no mestrado da qual destaco a participação no grupo de
Educação Ambiental que tratava o meio ambiente com a dimensão humana que
lhe é inerente. Grupo que tinha como proposta de trabalho a construção coletiva
dos saberes, o que infelizmente não vivenciei a fundo naquele momento, mas que
marcou a minha forma de relacionar-me em geral e especialmente nas atividades
que desenvolvo com os agricultores bem como nas situações em que sou
professora.
Eu comecei este doutorado desejando avaliar as possibilidades pedagógicas
do vídeo e de alguma maneira, por caminhos diversos, acabei fazendo isto.
Estudei e pesquisei a imagem-movimento como matéria de criação, como forma
de expressão, como possibilidade de encontro com a subjetividade.
No segundo semestre de 2005 fiz minha qualificação quando submeti à
Banca Examinadora o meu projeto de pesquisa e alguns resultados. Várias
considerações foram feitas: como a necessidade de produzir os vídeos propostos
e o de ampliar os referenciais reflexivos da minha pesquisa, especialmente em
relação ao perfil do agricultor familiar que descrevera bastante idealizado. Em
função destes questionamentos, encaminhei vários projetos
17
solicitando recursos
para a realização dos vídeos. Não obtive nenhuma resposta positiva, contudo
estas iniciativas valeram-me como experiências principalmente no que tange ao
exercício de elaboração de roteiros bem como para refletir melhor as minhas
propostas e suas possibilidades narrativas. Quanto à questão do perfil do
agricultor percebi que as dimensões histórica, sociológica e antropológica das
quais havia impregnado o texto da qualificação é que “comprometiam a minha
17
Deitais da: Petrobrás, DOC TV, Ministério da Cultura, Prefeitura de Campinas e Itaú Cultural.
35
abordagem. Reformulei o texto procurando relativizar estas referências.
Procurando compreendê-las como imagens, na leveza que tem esta forma de
concepção para Gaston Bachelard. Compreendo-as como imagens que foram
percebidas e concebidas em função das reflexões e perspectivas destes autores.
Quando se consegue perceber uma imagem muitas vezes é possível perceber
algo que a transcende, assim como se passou com Antonio Cândido em relação
ao perfil do malandro e a sua intuição sobre o universo sem culpabilidade
18
. No
meu dia-a-dia eu percebo a “malandrageme alivio meu coração vislumbrando a
perspectiva que lhe dá Antonio Cândido.
Porque eu busco no caipira o referencial para o meu trabalho? A princípio
esta era uma resposta bem simples:
- Porque é a cultura na qual eu fui criada.
ou
- A busca de uma identidade.
Com o aprofundamento das minhas reflexões e algumas leituras,
principalmente a que fiz a partir de José de Souza Martins
19
, percebi que estes
argumentos poderiam ser uma estratégia para justificar meus ideais. Esta resposta
soma-se às anteriores e reformula-se em uma longa frase:
- Afirmação de uma forma de ser que corresponde à minha concepção de
mundo e que favorece a constituição de uma sociedade mais justa, mais humana
e livre, que possibilite um posicionamento altivo do caipira assim como ao homem
do campo ou qualquer ser humano, inclusive eu!
18
Vou referir-me a esta questão no item 8.3.
19
O “caipira” é a figura social e tradicionalmente depreciada que é utilizada para polarizar a crítica
ao mundo urbano. ... Essas qualidades são invocadas especialmente para situar os sentimentos
“desnaturados” que a cidade gera e cultiva.” MARTINS (1975, p.134).
36
Segundo Badiou (1997, p. 13) “os movimentos de grupos (culturais, étnicos)
são potencialmente não universais”. A defesa da cultura caipira
20
neste trabalho
não está sendo feita por oposição ou contra a de outras culturas e etnias, ou o que
seja. Mas sim, entre outros motivos, para expressar uma forma de ser cada vez
mais desvalorizada pelo fato de suas características não favorecerem e nem
serem condizentes com o sistema cio-econômico vigente. Por outro lado,
ressalto nela o que acredito ser universal, assim como a afetividade e
solidariedade, de forma que valha para qualquer ser humano: “apreender uma
realidade imanente ao homem... aquém de todo indivíduo e toda sociedade”
(LEVI-STRAUSS
21
apud LAPLANTINE, 1993, p.133).
Tenho uma vivência com esta cultura, uma interna e outra de observadora,
na qual eu pude compreender e compreender-me enquanto indivíduo que tem
características e valores que são peculiares à cultura caipira. Em que medida sou
eu o outro nesta cultura e o que isso me permite refletir sobre ela? Percebo que
muitos dos que se voltam para esta cultura têm vínculos pessoais com ela ou
então buscam nela valores e referências para suas vidas. Creio que muitas
pessoas, assim como eu, estão querendo encontrar uma forma mais humana e
prazerosa de estar no mundo. Encontro nesta cultura, ou destaco nela, vários
elementos que favorecem estas perspectivas.
Eu reavivei esta cultura por um conjunto de circunstâncias e percepções e o
faço sem, no entanto, “colar” no que ela representa em sua totalidade. Não quero
reafirmar os valores machistas, os quais nem sempre foram assim, ou não são
exatamente assim, se olhados a partir de uma outra perspectiva. Ou os de
submissão, os quais hoje compreendo melhor e em sua complexidade, no que
eles representam de respeito ao que está dado. O desejo de não reafirmá-los, não
quer dizer ainda que esteja livre deles.
20
Irei dedicar um item específico à “cultura caipira” quando irei abordar conceitos de cultura e
de cultura caipira bem como as suas características.
21
Levi-Strauss, C. Anthropologie Structurale Deux, Paris, Plon, 1973.
37
A leitura do livro de Walter Ong Oralidade e cultura escrita
22
foi
fundamental para a compreensão de como a minha forma de ser e estar
combinam características de diferentes universos: o da oralidade e o da escrita, o
do caipira e o acadêmico. o relaciono estes universos como pares de opostos
ainda que eles estejam polarizados por circunstâncias das mais diversas ordens,
principalmente pela classificação que se tende a fazer de idéias e conceitos. No
caso desta pesquisa, o que importa é perceber o que é conflituoso e a possível
confluência destas dimensões e, no encontro delas, a possibilidade de uma
experiência, um diálogo, do aflorar de uma expressividade ou de uma imagem.
Eu tenho pelo menos trinta e dois anos de escolaridade, de convivência com
a escrita e a leitura. Além disto, estou trabalhando na área de “Extensão e
Comunicação Rural” quatorze anos como pesquisadora, tempo em que venho
exercitando a organização e consolidação do conhecimento que venho elaborando
a partir das minhas experiências profissionais. Estar no mundo acadêmico é um
desafio muito grande para mim. Espaço onde convivo com colegas tão confiantes
nos seus quadros de referências conceituais que defendem a ciência e a
objetividade/ racionalidade da existência. Desde a graduação em filosofia venho
enfrentado este desafio
23
. Almejo abrir espaços para outras formas de
conhecimento e expressão no universo acadêmico, pois assim como ele se
apresenta para mim, ele não é apenas difícil, mas também indesejado.
Percebo que muitas das minhas características pessoais de pensamento e
de expressividade estão fundadas no universo da cultura oral, assim como
descrevo através das expressões de Walter Ong as quais “pincei” de diversas
passagens de seu livro: meus pensamentos são mais agregativos do que
22
ONG, 1998.
23
Parece que não escolhi o melhor caminho, pois no meu curso de graduação em Filosofia para
além dos estudos -em ética, estética, lógica, linguagem, política ou epistemologia- tínhamos que
conhecer o significado das palavras e das nguas em que foram escritas cada obra estudada.
Tínhamos que conhecer não as línguas de origem dos filósofos, mas também as línguas que
originaram esta forma de pensamento e reflexão que é a filosofia: a grega e/ou a latina.
38
analíticos, mais tradicionalistas, mais empáticos e participativos
24
do que
objetivamente distanciados e/ou homeostáticos
25
. ONG sintetiza algumas de suas
idéias neste parágrafo:
Uma economia verbal dominada pelo som é mais conforme às tendências
agregativas (harmonizadoras) do que às analíticas, dissecadoras (que viriam
com a palavra inscrita, visualizada: a visão é um sentido dissecador). É
igualmente mais conforme ao holismo conservador (...as expressões
formulares que devem ser mantidas intactas
26
, ao pensamento situacional do
que ao pensamento abstrato, mais conforme a uma certa organização
humanística do conhecimento, que envolve as ações dos seres humanos e
antropomórficos, indivíduos interiorizados, do que a que envolve coisas
impessoais. (ONG, 1998, p.87).
Walter Ong neste estudo destaca qualidades que se ganha e que se perde
em cada uma destas dimensões: na cultura oral as pessoas desenvolvem uma
maior atenção aos sons, entonações, gestos e ao contexto; na cultura escrita, as
pessoas aprendem a sintetizar os pensamentos, a tornar mais objetivo os
discursos e a abstraírem mais facilmente. Para mim foi importante saber que
algumas qualidades, que eu julgo positivas, caracterizam a oralidade, assim como
uma maior disposição para a vida social.
O fato de eu não dominar a linguagem acadêmica não era um problema em
si, entretanto se tornou em função do temor que eu tinha de não ser aceita, de não
ser amada neste meio. E assim tornava-me a caipira no sentido pejorativo que
muitos empregam ao termo para caracterizar alguém sonso, alguém que não se
expressa com desenvoltura e muitas vezes se intimida. A situação é bastante
complexa: muitos fatores que influenciam esta questão. Cito apenas mais uma
que Jorge Larrosa aborda no texto Nota sobre a Experiência e o Saber da
Experiência”:
24
Para uma cultura oral, aprender ou saber significa atingir uma identificação íntima, empática, comunal
com o conhecido.
25
As palavras adquirem significados que incluem também gestos, inflexões vocais, expressão facial e
todo o cenário humano e existencial.
26
As quais favorecem o processo de memorização.
39
a experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião
Desde pequenos até a universidade, ao largo de toda nossa travessia pelos
aparatos educacionais, estamos submetidos a um dispositivo que funciona da
seguinte maneira: primeiro é preciso informar-se e, depois, que opinar,
que dar uma opinião obviamente própria, crítica e pessoal sobre o que quer
que seja. (LARROSA, 2001, p. 6).
E se alguém não tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o que se
passa, se não tem um julgamento preparado sobre qualquer coisa que se lhe
apresente, sente-se em falso, como se lhe faltasse algo essencial. (LARROSA,
2001, p. 7).
É tão bom quando a gente encontra uma expressão, uma perspectiva para o
que sentimos e vivemos. No meio acadêmico percebo uma expectativa que cada
um tenha uma opinião formada sobre “quase tudo, que se argumente
logicamente, que se faça comentários... O que Larrosa reflete neste texto é sobre
se é possível que estas tantas opiniões sejam decorrentes de experiências
efetivas
27
.
Pode ser que a defesa de valores humanitários seja uma questão de fé, ou
quem sabe de culpas, não sei, de qualquer forma, creio que o mundo assim como
está dado não se sustenta...
27
A falta deste tipo de experiência e de vivência pelos acadêmicos não seria negativo, a meu
ver, se eles não influenciassem tanto a opinião das pessoas e a elaboração de políticas
públicas.
40
2.1. Em busca da subjetividade do outro, o encontro pessoal
Estou tentando romper as amarras dos outros
e isto me faz olhar para as minhas.
Em parceria com um grupo de professores-pesquisadores participei do
módulo Linguagens e Memórias
28
, no curso Gestores da produção
agropecuária em assentamentos rurais de Reforma Agrária
29
, no qual
buscou-se explorar a relação dos sujeitos participantes
30
e do grupo em conjunto
com a questão da luta pela terra e dos vínculos que eles estabelecem com ela
através de diferentes linguagens: a escrita -em especial a autobiográfica-, as
imagens em fotografia e as audiovisuais. Trabalhou-se a partir do reconhecimento
das possibilidades da imagem artística e pela valorização do conhecimento
singular/ subjetivo, que muitas vezes se contrapõe ao papel que muitos deles
exercem dentro do movimento social enquanto líderes e militantes imbuídos de
fortes princípios ideológicos. Deu-se espaço para que as memórias registradas
pelos participantes expressassem os distintos sentidos das trajetórias, suas
nuances e profundidades. Havia um certo receio em relação à receptividade que a
proposta teria, entretanto a experiência foi muito positiva, pois os alunos se
engajaram na realização do trabalho.
Eu tenho muita admiração pelos parceiros do Linguagens e Memórias”,
muitas vezes eu tornava-me aluna e desfrutava dos conhecimentos que eles
28
Módulo composto de um conjunto de disciplinas. São elas e os respectivos professores:
Escritos biográficos e histórias de vida: prática social de apresentação do mundo pessoal -
Agueda Bittencourt; Imagens Fotográficas: registros e documentos que adensam memórias e
histórias - Wenceslao Oliveira Jr; A linguagem audiovisual (cinema e televisão): formas de se
filmar a memória - Milton Almeida; Roteirização e Realização Audiovisual – Kellen Junqueira; A
comunicação como prática social - Maria do Carmo Martins.
29
Curso realizado através do Programa de Educação para a Reforma Agrária -
PRONERA/INCRA/MDA- em parceria com Faculdade de Engenharia Agrícola -
FEAGRI/UNICAMP- com o Centro Educacional Paula Souza do Governo do Estado de São
Paulo -CEETPS- e com a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil -
CONCRAB-, entidade vinculada ao Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra -MST- e
que aconteceu ao longo do ano de 2004.
30
Líderes e militantes ligados ao MST.
41
compartilhavam nas salas de aula. Conhecimentos que se referem à nossa vida, a
que a gente vive no dia-a-dia. Aluna também porque para além do que possa ter
adquirido neste processo o que também aprendi foi a deixar: as tantas amarras
que prendiam a minha subjetividade. Outra experiência foi quando tive que
assumir a condução de uma aula. Certamente não adiantaria expor um conjunto
de termos e expressões da linguagem que se usa para a elaboração de um
roteiro, nem que o fizesse exemplificando. Foi assim que a encenação em sala de
aula de um roteiro O despojo” de Juan Rulfo
31
foi a deixa para que de forma
lúdica eu apresentasse esta linguagem.
Dentro deste curso eu pessoalmente tive ainda outra experiência: a de
orientar quatro “Trabalhos de Conclusão de Curso”. Esta experiência foi muito
interessante para eu compreender quais os desafios enfrentam quem assume
este tipo de papel e para eu perceber qual era a minha forma de estabelecer esta
relação. Cada um usa de uma certa estratégia neste momento para estimular ou
provocar o outro no desenvolvimento do seu trabalho. Acho que a minha é a da
acolhida: a certeza do apoio de alguém creio ser imprescindível para a leveza no
processo de criação e reflexão.
Vivenciei com estes alunos as dificuldades e as angústias para formularem e
colocarem suas questões de forma a contribuir no amadurecimento da instituição
da qual participam. O trabalho de cada um ganhou muito mais qualidade quando
os participantes se sentiram à vontade para compartilhar a experiência pessoal e
não o que percebiam serem as expectativas da organização do MST. Por ocasião
da elaboração dos trabalhos de conclusão de curso percebemos, eu e os colegas
da organização do curso, as dificuldades com a linguagem escrita e, por outro
lado, sabíamos das habilidades com a oralidade da maioria deles, de forma que
definimos uma nota razoável para a exposição oral.
31
RULFO, 1999, p.67.
42
2.2. No período desta pós-graduação, a conexão com questões que
influenciam a minha percepção.
Durante o período de doutoramento algumas questões mobilizaram-me. Uma
delas era como a arte poderia ser a forma de expressão de conhecimentos e
sentimentos que vivenciara no decorrer da minha vida. O quanto era idealizado,
ou não, as minhas perspectivas de vida. Quais eram os interstícios entre arte e
comunicação.
Destaco neste período algumas experiências que foram ao encontro às
minhas questões e perspectivas:
Apresentação de Maria Aparecida de Moraes e Silva na “II Jornada de
Estudos sobre Assentamentos Rurais”, junho 2005, falando sobre a memória e o
vínculo com a terra resgatada a partir de um trabalho artesanal com barro ao som
de uma rabeca tocando “A Volta da Asa Branca
32
.
Palestra do Prof. Carlos Rodrigues Brandão durante o evento da “Semana
do Folclore da UNICAMP”, agosto de 2005. Em sua exposição ele analisa uma
perspectiva da sociedade atual na qual ele percebe um resgate de antigos
valores, os quais ele identifica como sendo da cultura caipira (como a religiosidade
e família).
Rubinho do Vale, músico e compositor, no “Programa Senhor Brasil”, TV
Cultura, novembro 2005: "a gente só sobrevive porque tem raiz”.
Exposição de Adriano Picarelli no Laboratório OLHO
33
sobre varandas e
32
Música de autoria de Zé Dantas/ Luiz Gonzaga.
33
Laboratório de estudos audiovisuais OLHO, da Faculdade de Educação/FE, coordenado
pelo Prof. Dr. Milton José de Almeida. O grupo reúne docentes e estudantes, especialmente os
que estão cursando pós graduação nesta área na FE.
43
jardins de casas nos centros urbanos. Este pesquisador aborda a relação
amorosa que suas proprietárias mantêm com estes espaços. As lógicas de
entrada e saída de plantas, na qual a doação de uma muda significa uma
ampliação, um desabrochar, uma riqueza. Todos os vasos têm uma origem
identificável, uma história de chegada e permanência.
“Terra Paulista”, uma exposição interativa no SESC/Pompéia na cidade de
São Paulo, setembro 2005, onde tive oportunidade de ver uma retrospectiva
histórica sobre a cultura caipira no estado de São Paulo: o movimento de
bandeirantes e tropeiros, a agricultura -com destaque para o café-, a influência
das civilizações indígenas, o crescimento econômico e a industrialização.
“III Encontro Nacional de Violeiros” promovido pelo MST, outubro 2005, no
qual o auge da Festa era a música caipira e o clima amistoso cultivado entre os
participantes. Neste mesmo evento conheci, e assinei, a revista “Viola Caipira”
que traz reportagens das histórias de vida, carreiras profissionais e composições
de diversos artistas da viola entre outras reportagens sobre o que julgam
pertinente ao modo de vida caipira como: culinária, cachaça, artesanato, entre
outros.
Um filme do Festival “É tudo verdade”, março 2006, marcou-me bastante
Leila Khaled, Hijacker” dirigido por Lina Makboul. Filme que tem o mesmo nome
da protagonista principal da qual tocou-me especialmente seu depoimento sobre o
desejo de estar em sua terra natal, declaração que ganha muita força dentro da
sua história de vida como terrorista. Este e ainda um outro filme O amigo de
Sara Rastegar marcaram-me pelas formas como se estabelecem e se
desenvolvem as relações com os protagonistas, nos quais as diretoras também
são personagens e compartilham suas concepções políticas e existenciais.
44
Palestra do cineasta Jorge Bodansky, abril 2006, na qual ele se referiu à
sua determinação em abordar questões sociais e políticas em seu trabalho. Para
tanto ele explora o “tempo real” na gravação dos depoimentos e na edição de
seus filmes.
Palestra/ show de Hélio Ziskind no qual ele comenta sobre quando
percebeu que arte é conhecimento ao compor Canção de morcegosa partir de
um painel didático sobre morcegos feito por alunos de uma escola fundamental da
cidade de São Paulo/SP. Esta percepção se deu quando apresentou o resultado
aos autores do painel.
O processo de readequação curricular da graduação do curso de
“Engenharia Agrícola quando houve um questionamento em relação à
manutenção da temática da sustentabilidade na grade curricular da formação
deste profissional. Destaco este episódio porque neste momento estava bastante
envolvida com a redação da tese, isto era outubro de 2006, e este
acontecimento fez-me pensar que não podemos abandonar tudo na vida em
função de uma pós-graduação. Não tive dúvidas: sentei com as minhas colegas e
preparamos um documento, explorando nossos argumentos sociais, humanitários
e os legais.
Poderia relacionar ainda muitos outros itens, no entanto não vou esgotar a
lista. O meu objetivo era compartilhar que o apenas nas referências
bibliográficas estão as fontes de reflexão e de conhecimentos, mas também na
vivacidade das experiências.
45
2.3. O encontro com a subjetividade do avô
As plantas tornam-se botões, mas apenas para voltarem à raiz.
Retornar à raiz é como buscar a tranqüilidade.
Buscar a tranqüilidade é como caminhar ao encontro do destino.
Caminhar ao encontro do destino é como a eternidade.
Conhecer a eternidade é iluminar-se...
(Joseph Campbell)
34
Meu avô encontrou um sentido para suas memórias e experiências:
ele é categórico em referir-se ao destino em conclusão à sua história de vida.
Pessoas mais velhas atraem-me: a textura da pele, o olhar miúdo, a mão que
não se amolda, que permanece rija no encontro com a minha, os cabelos
brancos-prateados refletindo tantas histórias que vão se fechando: conclusivas
por decoro do tempo. A serenidade de alguém que não tem tantas ilusões,
quando os padrões se flexibilizam e uma leveza pueril retorna.
Meu a-Pedro Honório Paulino- é um homem de experiências. Um homem
que sabe que fez tudo que podia para ser feliz e para proporcionar o mesmo aos
seus. Ele exercita constantemente a paciência e a perseverança em seu trabalho
como artesão: quando algo não se concretiza, quando uma peça na qual
empenhou muito trabalho se perde, se quebra.
O encontro com meu avô aconteceu quando a solidão foi comum para os
dois: desde que perdemos a avó e que eu me separei, nos aproximamos. O
quando se refere à nossa condição de solitários sempre acrescenta: sozinho e
Deus”. Esta condição certamente favorece os nossos processos imaginativos e
conseqüentemente reflexivos e criativos. Segundo Bachelard (2001a, p.23) O
caráter se confirma nas horas de solidão tão favoráveis às proezas imaginárias”.
Em nossa reaproximação a primeira surpresa foi o seu bom humor. Viajamos
juntos algumas vezes; divertia-me com as histórias, que ele e seu irmão - o tio
34
CAMPBELL, 1997, p. 177.
46
Vicente Manoel de Souza-, sempre transformavam em anedotas; dividia minha
atenção entre a estrada e o espelho retrovisor para não perder de vista o caminho
para Minas e as expressões destes mineiros brincalhões. As visitas em Minas de
casa em casa: uma rodada de café, uma nova receita de biscoito e tantas
histórias. Quando por ventura parávamos para uma informação, mais um
conhecido encontrávamos e a parada se estendia, no ritmo caipira.
A segunda aproximação foi quando resolvi aprender a fazer as esculturas de
carro de bois: a convivência em sua oficina e na sua casa. A sua organização para
mim é um conforto, um aprendizado. Os objetos quando ganham lugares, nomes,
datas, ganham valores e não se perdem. Cada vez aproximo-me mais dele: a
última foi por ocasião das filmagens do vídeo Conversas de bois”. Enquanto
filmava e depois quando conferia as filmagens aprendia um ofício e a respeitá-lo
cada vez mais. Eu gosto muito de ficar em sua oficina: um espaço de poder, de
poder fazer e criar. Tudo tem lugar e tem ferramentas para tudo que se quer fazer.
Objetos que foram comprados um a um ou foram presenteados: são relíquias
(P.H.P.
35
). As ferramentas à mão, com as quais se entende, segundo Bachelard
(2001b, p. 30), a “provocação das coisas” : cada momento da escultura é um novo
desafio, pois a sua obra não é a cópia de um carreiro, mas, de acordo com
Bachelard (2001b, p.80) a “substânciade um homem.
35
P.H.P. são as iniciais do nome do meu avô e é assim que ele assina as escultura, vou usá-la
para identificar as falas dele.
47
Kellen Junqueira
Figura 1: Escultura Carro de bois Sr. Pedro
As ferramentas, verdadeiros temas de intencionalidade, nos fazem viver
tempos instantâneos, tempos prolongados, tempos ritmados, tempos
mordazes, tempos pacientes. (BACHELARD, 2001a, p. 41).
Cada peça do carro de bois tem uma denominação específica tudo tem
nome” (P.H.P.) é assim que é possível a comunicação, como se o diálogo entre os
homens passassem pelas coisas que eles fazem, pelo trabalho que realizam. A
denominação de cada peça favorece que carreiro e candeeiro
36
, que carreiro e
carapina
37
se comuniquem.
Uma bela tora de madeira para desbastar com o formão bastaria para lhe
ensinar alegremente que o carvalho não apodrece, que a madeira
dinamismo atrás de dinamismo, em suma, que a saúde de nosso espírito está
em nossas mãos. (BACHELARD, 1990, p.234).
Se Gaston Bachelard o tivesse conhecido, certamente o teria citado em seu
livro A Poética do espaço”. Comentaria a simetria e equilíbrio nos seus arranjos
e espaços, falaria sobre o uso do esquadro e das réguas, das curvas que ele forja
nas retas. Associaria estas observações à sua roupa bem arrumada no corpo
assim como o cabelo ondulado para o que ele traz o pente sempre no bolso de
36
Ajudante de carreiro que vai à frente do carro de bois.
37
Construtor de carro de bois.
48
trás de sua calça de linho. Ele teria ficado admirado também com a sua
imaginação:
“O que é uma coisa que pula pra cima encapado e cai para baixo
pelado?
Mamona!
38
Conviver com a velhice: ele e eu. Passaram-se vários dias até que percebi
que seus humores vão e voltam: dias de silêncio, de monossílabos e apelos Ô
chão de Minas!” Nossa Senhora Aparecida(P.H.P.); dias de braços abertos, de
cantorias e catiras; dias de problemas, de filhos, de saúde e dos que
compartilhamos: o amoroso. Raras vezes ele fez referência à morte, entretanto à
velhice: várias. Ele deseja a juventude, deseja a vitalidade, dirige seu fusquinha 73
laranja; freqüenta os bailes e arrisca umas paqueras, não qualquer uma: deseja
uma mulher, uma que seja carinhosa, trabalhadora, honesta e que não dê tábua”;
você sabe o que é “dá tábua””? (P.H.P.): antigamente nos bailes as mulher
dançava com todo mundo, hoje elas pagam entrada no baile, pode dá tábua
39
”.
Ele é bastante didático: ele sempre explica e contextualiza as palavras que
são antigas ou que são regionais; exemplifica as distâncias se referindo ao espaço
em que ele está; lança mão de objetos para ilustrar algo que queira dizer. Esta
sua atenção ao vocabulário também me faz pensar que ele sabe que está falando
com o outro, um outro que não o da sua cultura, da sua geração. As palavras têm
muita força para ele. Ele é uma pessoa arisca e atenta, é preciso ser coerente
com ele: quando se faz supostas promessas é preciso que se cumpra, pois é
difícil algo passar desapercebido.
38
O casulo da semente de mamona quando amadurece estoura e salta no ar soltando as
sementes. Em função desta observação ele inventou esta charada.
39
E se ainda não entendeu “dá tábua” é negar um convite para dançar.
49
Tempo livre. Tempo para criar e brincar. É gostoso e divertido estar com o
” e o tio Vicente: eles ficam lembrando várias histórias da época em que viviam
em Minas, principalmente as anedotas. Eles se lembram de jogos, os constroem e
quando se encontram brincam: de estupim
40
e jogos de desafios
41
. O “observa
que em sua terra natal -Areado/MG- as pessoas brincavam o tempo todo umas
com as outras, estavam sempre procurando uma maneira de gozar o outro, o que
mudou bastante quando chegou em Caconde/SP que é divisa com o estado de
Minas. Aprecia seus “Long Plays” e Fitas K7 de música caipira e se diverte com as
de humor.
A sua impressiona-me, ele reza todo dia o pai nosso: um de manhã,
quando faz o seu pedido, e à noite quando agradece por tudo
42
. Participa dos
encontros das Folias de Reis todo ano. É à sua que ele atribui o fato de nunca
ter perdido nenhum filho e de estarem todos eles com uma boa qualidade de vida:
ninguém põe sentido nisto aí” (P.H.P.).
40
Taquara fina com uma pequena abertura no lado do nó, um pau roliço como êmbolo e casca
de laranja grossa para munição - época de laranja baiana é quando eles mais se divertem e
quem limpa a casa, menos.
41
Como os de passar argolas em linhas, de um lado para outro; separar pregos dobrados e
encaixados, estes entre outros.
42
Especialmente pela cura de uma ferida de minha avó, para o que ele fez uma promessa de
dedicar um terço todos os dias pelo resto de sua vida.
50
2.4. A alma! Questão de fé?
Com o corpo e alma
(Silvana Nascimento)
Quando eu uso meu corpo
Eu guardo as coisas
Quando atravesso meu corpo
Me liberto das coisas
Corpo faz
Alma diz
No meu corpo eu me apego a
Você
Atravessando meu corpo
Eu me relaciono com você
É minha alma quem diz
Meu corpo guarda
Minha alma liberta
No corpo o tempo
Através do meu corpo a
Eternidade
No meu copo, com meu
Corpo...
Tempo, limite, apego
Através do meu corpo
Eterno, ilimitado, asas para voar
Um corpo que faz
Uma alma que atravessa
Um corpo que fica
Uma alma que vai
Palavra bonita que é alma: suave! O “l” no meio da palavra nos permite
prolongar a sua pronúncia num som que se perde no ar. Quando li o texto de
James Hillman, que propõe o retorno da alma ao mundo”, não tive dúvidas e
incorporei esta palavra como expressão/ conceito de minha subjetividade. Esta
palavra permite que se viaje pela terra e pelo céu, da imaginação ao coração,
refletindo a dimensão espiritual e singular do indivíduo, resgatando a
responsabilidade de cada um de nós diante do mundo, responsabilidade com
51
leveza. Tenho buscado um encontro com a minha alma que me proporcione uma
forma de estar no mundo que seja serena, de forma a equilibrar a pressão que
sinto da necessidade de constituir uma personalidade, de ter uma coerência
psicológica e existencial. O retorno da alma poderia ainda ser a possibilidade da
transformação que almejo.
O que na minha história de vida ou nas minhas características poderiam ser
a sua forma de manifestação? Forças que pulsam: míticas ou místicas? O
reconhecimento dos sentimentos, dos valores ou das buscas ... A cultura caipira.
A memória da submissão; do ser social; mais que revolucionário, amistoso. A
imagem que tenho que sustenta a minha adesão à vida política, ao movimento
social e à cultura popular não é a da caridade, mas a da afetividade. Desejo de
tratar o outro com dignidade, sem perder a minha, valorizar o conhecimento do
outro, sem ignorar o meu. Sentimentos que às vezes parecem-me ser de dívida,
de carência ou ainda pulsões do mais profundo do meu ser.
Tantas dimensões a se aprofundar e a viver na vida... Meu corpo no mundo,
um corpo que remodela ainda que não seja modelo, apenas ou tanto mais,
matéria pulsante. É com este corpo que abraço forte, peito aberto, sem medo,
assim como aprendi com a Gilian Carraro (in memoriam). Corpo que aprendo a
perceber depois de muitas experiências e aprendizados: é nele que sinto alegrias
e sofrimentos, a saúde, o prazer e a angústia de estar aqui. Conceitos como o de
afeto estudado por Carlos Rodrigues Brandão e o de violência estudado por Maria
Sylvia Franco.
Para ser militante, é necessário acreditar no homem. Esta determinação é
uma questão de fé? A em cada homem como fonte e força de vida e de beleza,
o que me parece mais palpável já que estaria na dimensão do mundo empreendê-
la. que é fortalecida pelo fato de conviver com muitas pessoas nas quais
acredito e com as quais compartilho os mesmos ideais. Por isso acredito na
52
possibilidade de transformação
43
. Assim como eu muitas pessoas, que conheço e
que trabalham com movimentos sociais vivenciam situações, presenciam fatos
aos quais não é possível aceitar sem que se fira a alma. Onde é que se pode
encontrar a confirmação da incoerência das condições dadas? É na História? Na
Sociologia? Na Antropologia? Procurei vários pensadores na busca de
justificativas e perspectivas e por isso talvez a leitura dos mesmos tenha ficado
carregada de interpretações. Como dizê-las? Na militância? No trabalho? Nas
imagens?
Uma ideologia pode ofuscar a complexidade dos acontecimentos. Esta
questão foi uma das levantadas na qualificação e fundamental para que eu
pudesse assumir uma dimensão que verdadeiramente possibilitasse a realização
do meu trabalho: a da imaginação.
O alento da concepção de memória que se constrói a partir da experiência.
Uma justificativa para mim em relação aos processos de avaliação escolares que
me obrigaram a decorar informações, fatos e fórmulas vazios de vida, que assim
como chegaram, sem história, assim também se dispersaram, sem que eu
percebesse.
O desafio da construção e da formulação de conhecimentos através de
imagens. Às vezes eu penso tanto através de imagens que me equivoco com o
real, assim como quando me deixando levar pelo poético, perco-me rimando.
Tímida? Por isso escrevo? Ou por isso filmo? Ou será que simplesmente não
sejam estas as minhas melhores formas de expressão?
43
Ecléa Bosi comenta sobre uma das personagens entrevistadas em seu trabalho Memória e
Sociedade lembranças de velhos”, a D. Jovina, e fala sobre quem tem esta sina do desejo de
transformação, também um dos entrevistados no filme Doutores da alegriamanifestou ter esta
inclinação.
53
Para Pasolini (1990, P.128) “Nada como fazer um filme obriga a olhar as
coisas”. Esta experiência vem modificando a minha sensibilidade, inclusive de
auto-observação. Meu olhar ficou mais acurado: eu o dirijo. Percorro uma
paisagem ou um céu estrelado fazendo uma panorâmica, percebo que um
contra-plano possível de ser enquadrado ou um som off que procuro identificar. As
luzes clareiam e as sombras silenciam, guardam; uma forma mostra ou esconde.
Eu só pude captar a poesia do Sr. Pedro e do Sr. Zé Moreno
44
porque meu olhar a
procura.
Sobre as minhas formas de expressão e de interação destaco as que se dão
de forma dialógica, as que se constroem no diálogo. Percebo que nestes espaços
a minha participação é muito mais viva: é quando lanço mão dos meus
conhecimentos, inclusive os teóricos e sistematizo minhas experiências, formulo
argumentos e justificativas e contribuo na discussão que transcorre.
Vou ao encontro do que atende às aspirações da minha alma: às montanhas.
A altitude, a caminhada, ou perto da alma, os músculos rijos, o esforço físico, o
frio, o cheiro de mato molhado orvalhado na manhã... O desafio! A possibilidade
de vislumbrar o mistério.
estamos nós no centro onde são trocados os valores imaginários entre
nuvens e rochedos. Ao nosso capricho, iremos fazer do real o imaginário ou do
imaginário o real. Quando algumas metáforas são reversíveis, temos certeza
de viver em estado de graça de imaginação. A vida fica leve. (BACHELARD,
2001a, p. 148).
44
Sr. Pedro é protagonista e Sr. Zé Moreno co-adjuvante do vídeo “Conversas de bois”.
54
Kellen Junqueira
Figura 2: Paisagem Serra Fina / Mantiqueira
55
3. SUBJETIVIDADE
... a maior lição da vida a ser aprendida é a liberdade:
liberdade em relação às circunstâncias, ao ambiente,
a outras personalidades e, para muitos de nós,
liberdade em relação a nós mesmos ...
(Edward Bach)
Apesar de eu ser uma pessoa com uma vida social bastante intensa, senti-
me solitária muitas vezes no decorrer desta pós-graduação. Ainda que tenha
conversado com muitas pessoas neste percurso, quando se trata de definir e
articular uma questão motivadora e mobilizadora para o desenvolvimento de um
projeto pessoal, seja ele qual for, não quem possa fazê-lo pelo outro. É no
interior de cada um que se pode encontrar a sua formulação. Eu pude
efetivamente compartilhar as minhas questões e saber da opinião dos outros
quando vislumbrei o caminho que iria seguir. No entanto, algumas experiências
foram atenuando estes conflitos, especialmente a experiência de outros colegas e
amigos que testemunhavam ter passado pelas mesmas dificuldades, as quais se
resolviam quando o processo ia se fechando. Uma das experiências, entre tantas,
foi a participação em um dos encontros do Laboratório OLHO
45
quando o
professor responsável pela coordenação do grupo -Milton José de Almeida-
comentou sobre a perspectiva com a qual eles trabalham: a de que um projeto de
pós-graduação não tem necessariamente que apresentar resultados, mas relatar
um processo de pesquisa e reflexões que se fecha com o prazo estabelecido para
encerramento do mesmo
46
. Foi assim que fui acalmando as minhas angústias, o
que foi me propiciando leveza e condições para elaborar as minhas questões.
Outro fator é a certeza que Fernando Passos tem de que é na dimensão da
expressão da subjetividade que está a possibilidade de criação de novos
conhecimentos para o mundo e de que eu tinha que me libertar de tantas
45
Referido no item 3.2.
46
Destaco esta experiência não pela autoridade que este professor doutor tem, mas pela
admiração e respeito que tenho pelo seu trabalho e pelas reflexões tão interessantes que ele faz
sobre imagens e sobre a condição humana.
56
prerrogativas para que o meu processo criativo pudesse fluir. As tantas
prerrogativas o os desejos que tenho de mudança social, o que por um lado
vivacidade para as minhas experiências, mas por outro as restringe às
perspectivas que eu vislumbro. Ainda que não tenha me libertado de todas estas
amarras, creio que estou muito mais “solta”, muito mais leve. As leituras sobre
processos criativos, a convivência com os meus amigos do “Linguagens e
Memórias”, os meus embates políticos com as instituições -a Universidade, o
MST-, as minhas perdas e crises. Foram muitos os fatores que favoreceram a
compreensão desta dimensão da subjetividade.
Iria Zanoni parodiando Gilles Deleuze intitulou sua tese A recriação da vida
como obra de arte”, ela cita uma passagem deste autor, em que ele mostra que o
processo de subjetivação se trata:
[...] de uma relação de força consigo ... trata-se da constituição de modos de
existência, ou da invenção de possibilidades de vida que também dizem
respeito à morte ... a existência ... como obra de arte. Trata-se de inventar
modos de existência, segundo regras facultativas, capazes de resistir ao
poder... (DELEUZE
47
apud GOMES, 1995, p. 23, grifos da autora).
Assim que fui flexibilizando as minhas referências ao mesmo tempo em que
ia reforçando algumas enquanto princípios. É sutil a linha que costura “flexibilizar”
e “reforçar”. Reforço o que julgo ser fundamental costurando-o com uma linha
maleável, ou com um que se pode desatar, pois pode ser que a imagem que
neste momento estou vislumbrando como sendo a que melhor retrata estes
princípios podem ser revistas e reelaboradas.
Neste processo estive olhando para todos os imaginários e valores que
compunham as minhas referências e tentando identificar o que neste conjunto
poderia associar, mudar, inventar de forma a criar uma nova imagem para o que
desejava retratar e ressaltar. Alguns destes imaginários, como o da cultura caipira,
47
DELEUZE, G. Conversações, Ed. 34, Rio de Janeiro/RJ, 1992.
57
são formas de identificação e identidade, o que a princípio se contrapunha à forma
de concepção de subjetividade assim como o expunha Iria Zanoni Gomes (1995).
Cultura é algo que se manifesta e a que se pertence sem que alguém tenha
se decidido por isto. É fruto de uma história de vida e dos grupos sociais de que se
participa: do que se apreende um conjunto de valores e condutas que se
manifestam inconscientemente. Não imagino alguém sendo obrigado a ser caipira
ou cowboy”... uma certa pressão social que às vezes é favorável e às vezes
opressora, mas que, entretanto, não chega a interferir em nosso livre arbítrio no
que se refere a esta questão. A questão formulada por Iria Zanoni Gomes é que a
filiação a uma identidade impede o processo de subjetivação. Subjetividade é algo
que está em constante construção; é um processo e não uma representação nem
tampouco uma estrutura, assim como acontece na formação de uma identidade
(GOMES, 1995, p.22-34
48
). Este tipo de provocação foi muito interessante, pois
me fez refletir e aprofundar as questões que discuto nesta tese. Buscar ou assumir
a cultura caipira como uma forma de identidade era algo relativamente simples
para mim. Há diversos autores
49
, que usam a palavra “identificação” eidentidade
para definir a forma como as pessoas se vinculam a uma cultura.
Apesar das determinações pessoais de um sujeito não serem o ponto de
partida exclusivo para qualquer um esboçar um projeto artístico, seus ideais e
ideologias o mobilizam a pensar, a refletir sobre o mundo e a projetar as vivências
que experimenta neste processo. Assim concebendo gostaria de salientar que a
identificação que tenho com o movimento de luta pela terra ou com a cultura
caipira não restringe a minha subjetividade, apenas caracteriza-a. Minha
subjetividade, assim como a dos demais homens, nutre-se de concepções de
mundo que ultrapassam as que estão dadas pelas circunstâncias pessoais, pela
história e pelos mitos da comunidade ou sociedade a que se pertence. Conhecer
48
Capítulo 3: “A dança da diferença: (re)construindo o conceito de subjetividade”.
49
Inclusive alguns irei citar no capítulo que discorro sobre a “cultura caipira”.
58
as determinações históricas e simbólicas que me mobilizam e aprender a lidar
com elas pode ser uma forma de perceber meus caminhos e despertar o meu
processo de criação.
Não proponho a defesa de uma cultura: constato a sua existência. O meu
objetivo é favorecer que cada um possa valer-se das características que mais se
afinam com seu modo de ser, de forma que possa assim valer-se do seu
repertório de referências e ser e se manifestar da maneira que melhor lhe
aprouver sem se sujeitar ao que o sistema impõe. Os limites para tanto deverão
ser colocados no meio social em que se vive, de forma a garantir a liberdade de
todos.
Apesar de não estar fazendo campanha de filiação a qualquer cultura, creio
que uma “memória”, uma tradição cultural, que se cultivar: uma em que possa
se estabelecer valores comuns e laços de afetividade. Valores e laços que
favoreçam que as pessoas se encontrem e possam compartilhar necessidades e
desejos, quiçá formas de satisfação dos mesmos. A força da subjetividade está
justamente no poder ser, podendo manifestar o que está dado em função de sua
cultura, pois em geral os valores decorrentes desta filiação remetem às relações
afetivas e concepções existenciais de cada um. Nada mais angustiante para
qualquer pessoa do que não poder se expressar espontaneamente. A minha
curiosidade pelo outro está baseada na convicção de que para promovermos a
vida social há que se olhar para cada homem não como meio para a satisfação de
um desejo ou necessidade qualquer, nem tampouco como objeto de estudo, para
aprisioná-lo em qualquer categorização, ou para induzir-lhe um ideal qualquer,
mas para compartilhar um ponto de vista, que não é único, nem tampouco
definitivo.
Poder ser, poder criar, ter para dar e compartilhar, poder receber:
a multiplicidade propicia a liberdade.
59
De acordo com Gomes (1995, p.26), a subjetividade, assim como a memória,
é um processo e está em constante construção. Forjada na experiência vivida
tendo em mira o futuro. Nos contatos que se têm com o mundo, vão se
estabelecendo afinidades, que vão se constituindo em modos de ser: a profissão,
a religião, as inclinações estéticas. Referências possíveis que podem aflorar de
maneira criativa, especialmente se as experiências mantiverem-se nesta
qualidade: a de referência, na leveza de serem relativas. Assim, a subjetividade é
constituída e modelada nas circunstâncias da vida, no registro social,
fundamentada na resistência vivenciada no corpo como um todo: matéria e
espírito.
Um outro motivo para tratar a subjetividade em um capítulo específico é o
desejo que cada um de nós, cada ser humano deixe de ser uma particularidade,
um número, uma categoria. De maneira que possa assim ser visto pelos demais e
por si próprio em sua riqueza e beleza: expressão da experiência que acumula em
Sr. estar no mundo, o que espero cada um venha vivendo no intuito de ser feliz.
O resultado não é, decerto, a cultura de massas, que em termos estritos não
existe, mas sim o entretenimento de massas, alimentando-se dos objetos
culturais do mundo. Crer que tal sociedade de se tornar mais “cultivada”
com o correr do tempo e com a obra da educação constitui, penso eu, um fatal
engano. (ARENDT, 1999, p. 264).
Os objetos culturaisque são consumidos em massa não constituem uma
cultura. Cada pessoa que de alguma maneira entra em contato com estes objetos
estabelece relações ou têm motivações diferentes. A complexidade de
sentimentos que perpassa a vida de cada um o é possível de ser captada em
fórmulas sociológicas ou psicológicas. Trago esta reflexão para esta tese para
ponderar que o que proponho não é apenas a defesa da subjetividade em si, mas
que cada homem tem uma subjetividade, uma singularidade. Os comportamentos
que observo e que percebo serem reflexos de uma cultura de massa não
60
mobilizam um indivíduo em sua totalidade. Não agimos por simples reflexo. Creio
que muitos destes comportamentos são estratégias: “não me atraía imitar os
homens; eu imitava porque procurava uma saída”
50
(KAFKA, 1990, p.65)
51
.
Estas estratégias são formas de se conseguir soluções para necessidades e
desejos pessoais e não separarei as que são essenciais à existência material das
que se referem à nossa inserção cio-cultural, as quais, por seu turno, muitas
vezes são necessidades tão primordiais quanto àquelas. Por isso não me afino
com os que desejam conscientizar as pessoas
52
. Mais do que espaços de
construção de subjetividades é necessário espaços de expressão para que as
perspectivas de cada um, assim compartilhadas, possam ser revisitadas, revistas
e reconstruídas na perspectiva do coletivo junto ao qual se vive, de forma a que se
construa assim uma:
[...] subjetividade que parece apontar não para um “modo de ser moral”, que
respeita as regras, as normas, mas para um “modo de ser ético”, que, se
necessário, muda normas e regras e tem como critério de suas práticas o
respeito à vida, quer dizer, respeito ao outro, seja um indivíduo, um grupo ou
um ecossistema. (GOMES,1995, p.45).
Esta flexibilidade com a qual se propõe tratar as “normas” pode assustar:
pode parecer anárquica. A humanidade cercou-se de conceitos e regras no intuito
de controlar melhor o desenrolar dos acontecimentos. Enrijeceu tanto esta
estrutura que não percebe os acontecimentos em si, mas o que projeta a partir
deles. HILLMAN (1993, p. 25) se refere a esta condição da humanidade. Para ele
a “responsabilidade desta subjetividade” é atenuada pelas “ideologias e cultos”.
Os homens não se posicionam e nem agem de acordo com uma disposição
50
Talvez seja interessante conhecer o contexto em que o personagem -um chimpanzé- se
manifesta: preso em uma jaula, refém de seres humanos, para os quais faz graça imitando-os,
na expectativa de assim conseguir sua liberdade. A outra saída possível, a que ele vislumbra,
era a de se atirar ao mar... Vale a pena ler este conto!
51
Kafka, F. Um médico rural, Brasiliense, Um relatório para uma Academia, 1990.
52
Esta perspectiva eu amadureci em função da minha convivência com os parceiros do
Linguagens e Memórias”.
61
pessoal, pois as ideologias e cultos da atualidade não oferecem referências de
modos de ser para os homens, mas comportamentos a se reproduzir. “A função
incomparavelmente útil do símbolo dogmático [consiste no fato de ele] proteger a
pessoa da experiência direta de Deus” (JUNG
53
apud CAMPBELL 1997, p.201).
Jorge Larrosa aponta outros fatores da vida moderna que fazem com que a
experiência seja “cada vez mais rara”: 1) o excesso de informação; 2) o excesso
de opinião - a necessidade que sentimos de ter uma opinião formada sobre tudo,
nos impele a correr atrás de mais e mais informações; 3) a falta de tempo - o
excesso de afazeres a que estamos obrigados e os que nos atribuímos; 4) o
excesso de trabalho - uns em função de garantir uma renda, quem sabe se não é
inclusive a sobrevivência, outros como fuga, outros por uma “ética da vocação”
54
;
estes diversos fatores estão apontados por Jorge Larrosa em seu texto Nota
sobre a Experiência e o Saber da Experiência” (LARROSA, 2001). A sua
“fórmula” para se sair desta condição, apesar de tentadora, não parece nada
fácil...
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer
um gesto de interrupção...: requer parar para pensar, parar para olhar, parar
para escutar, pensar mais devagar... e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião...,
suspender a vontade, ... falar sobre o que nos acontece, ... escutar aos outros,
cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.
(LARROSA, 2001, p.6).
Esta vivência, a que experimentamos nesta forma de atenção, torna-se uma
necessidade quando nos aventuramos a escrever uma tese abordando a
subjetividade. Como sistematizar conhecimentos sobre as nossas vivências sem
que elas estejam pulsando em nosso ser? Não como pescar palavras
55
se
não temos a “não-palavra” ou uma imagem como referência, se não a percebemos
53
JUNG. C.G. The integration of the personality, Nova York, 1939, p.59.
54
Referência aos estudos de Max Weber sobre o protestantismo e o trabalho.
55
Referência às expressões de Clarice Linspector no poema “A pesca milagrosa” que irei citar
no capítulo 11.
62
em nosso corpo. Experiência segundo LARROSA (2001, p.4, grifo da autora) “é o
que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” é o que nos afeta, “o que
passa pela nossa afetividade e que por isso ganha força em nossa memória”
56
. É
o que se associa à nossa compreensão de mundo e à nossa relação afetiva que
cada um estabelece para com ele.
Depois que se toma consciência do processo pessoal é possível voltar-se ao
coletivo fortalecido e pronto para estar e compartilhar conhecimentos e emoções.
No percurso desta pesquisa estou descobrindo como é que se constrói a minha
forma de percepção, de sistematização do meu conhecimento e ainda as minhas
possibilidades de expressá-lo. É preciso tempo para esta compreensão e mais
tempo
57
ainda para falar sobre ela.
[...] (O nirvana) está aqui mesmo ... É o estado que você atinge quando não
está mais sendo levado a viver em função de desejos, medos e compromissos
sociais compulsivos, quando encontra o seu centro de liberdade e, a partir daí
é capaz de agir por opção própria. (CAMPBELL, 2002, p. 172).
[...] (Com a) “extirpação final da ilusão, do desejo e da hostilidade” (nirvana), a
mente sabe que não é aquilo que pensa ser: o pensamento flui. (CAMPBELL,
1997, p. 156).
Estou em um momento existencial que se aproxima bastante do que Joseph
Campbell descreve nestas citações. Talvez mais do que estar neste momento
existencial, o que é um desejo de alcançar este estado de espírito de forma
que interpreto algumas ações e acontecimentos da minha vida como sendo
reflexos destas características.
Não diria que não tenho desejos, contudo não vivo em função deles. Não
diria que não tenho hostilidades, contudo procuro clareá-las e evitar as situações
que as provocam. Reconhecer que esta vida é uma ilusão não implica em negá-la.
Estou ainda em processo de reconhecimento desta condição, mas vislumbro
56
Expressão de Márcia Regina Andrade, uma das amigas que leu a minha tese.
57
O que infelizmente me foge neste prazo que se extingue: o deste doutorado.
63
uma certa serenidade. Ao mesmo tempo em que meu orgulho está se
apaziguando, sinto uma força e uma gana de compartilhar o que penso e o que
sinto. Tenho sido capaz de identificar em muitos momentos qual o meu papel e
como devo agir.
Tenho percebido inclusive uma certa sincronicidade
58
:
Sincronicidade é um conceito desenvolvido por Carl Gustav Jung para
definir acontecimentos que se relacionam não por relação causal mas por
relação de significado. Jung afirmava que temos quatro funções básicas:
razão, emoção, sensação e intuição. No nosso ser, geralmente uma delas é
predominante. Mas quando trabalhamos internamente na direção do equilíbrio,
uma nova função é acrescentada: a sincronicidade. (WIKPÉDIA, 2007, online)
Além de o pensamento fluir parece que as circunstâncias conspiram para
que as coisas aconteçam. Como por ocasião da identificação dos personagens
59
dos deos
60
, em que os que foram indicados correspondiam às minhas
expectativas.
Pode ser que este momento da minha vida seja a curva ascendente da
espiral do tempo ou se esta linha for circular pode ser que seja o ponto em que a
cobra morde o rabo”, quando a gente se encontra. O que estou procurando
resgatar a partir das últimas experiências é a espiritualidade a qual tenho buscado
por curiosidade (o que sinto ser inerente a minha pessoa, assim como a dúvida
também). Saliento, no entanto, o quanto esta conquista tem sido importante para
eu perceber a dimensão simbólica a que eu tanto me remeto, bem como para
reconhecer o imaginário que eu vivia mais no plano mental do que no conjunto de
58
Conceito que um amigo -o Quincas- mandou para mim e o qual eu conhecia através de
alguns amigos psicodramatistas. Conceito que ele encontrou no site”:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sincronicidade.
59
Fiquei em dúvida de como referir-me a atores de filmes documentários. Acabei me decidindo
pela palavra “personagem”, que apesar de arrancar-lhes da vida real, o que talvez “ator social”
fosse mais propício, lhes “imprime” o papel que desejo lhes atribuir em função da narrativa que
concebi.
60
O que irei relatar no último capítulo desta tese.
64
meus sentidos. Esta espiritualidade tem favorecido a confiança em minha
subjetividade e a conquista da minha liberdade.
Outro fator que creio permite ascender ao estado de nirvana é livrar-se dos
preconceitos, pré-concepções e expectativas em relação aos outros. Isto
certamente é fruto do amadurecimento e da abertura pessoal para outras
perspectivas e possibilidades de se pensar a vida.
Iria Zanoni identifica elementos no comportamento dos homens que indicam
a construção de singularidades. Substitui a moral pela ética (em citação referida
anteriormente) na certeza de que há: “respeito pelo mundo em que vivem, pois se
sentem parte dele” (GOMES, 1995, p.238). Iria Zanoni, nesta frase, está se
referindo aos agricultores com os quais convive: esta sua constatação creio ser
resultado da sua fé, reflexo da que tem em si mesma, na confiança em sua
disposição para cuidar do mundo. É fundamental que se tenha fé em si e no outro
para que se construa uma postura ética diante do mundo. É o que possibilita estar
aberto e disponível para encontrá-lo. Abertura que é “fundamentalmente da ordem
dos afetos” (ROLNIK
61
apud GOMES, 1995, p. 289).
Creio que o que mais motiva as pessoas a procurarem suas almas e as do
mundo, são os sentimentos de vazio e solidão que estão cada vez mais comuns
em nosso tempo. Sentimentos que são indicativos da nossa necessidade de
afetividade: uma ausência que percebemos. Incomoda bastante viver em um
mundo que “não me olha com interesse” (HILLMAN, 1993, p. 25). James Hillman
propõe o retorno da alma ao mundo pelo caminho do coração, que é o caminho
que une espiritualidade e corporeidade, que une o homem e a sociedade, para a
construção de um mundo que retribua “meu olhar”.
61
ROLNIK, S. Cidadania e alteridade, IV Encontro Regional de Psicologia Social, ABRAPSO,
São Paulo, 1992, mímeo.
65
3.1. Subjetividade - Criatividade
meu amigo, meu cumpadre, meu irmão,
escreva sua história pelas suas próprias mãos...
Zé Geraldo
62
A suprema norma do conhecimento é, para Vico, o princípio segundo o qual
nenhum ser conhece e penetra verdadeiramente senão aquilo que ele mesmo
cria. O campo de nosso saber não se estende nunca além dos limites de nossa
própria criação. O homem compreende enquanto cria. (PIGNATARI, 1980,
p. 77).
Estariam as dimensões da criação e da subjetividade imbricadas? Cada um
pode valer-se de seu repertório para criar e recriar e também reafirmar ou mudar
os conceitos do espaço/ tempo em que vive.
O processo de criação uma disposição ao sujeito que favorece que ele
entre em contato com a sua subjetividade. Para tanto é preciso ter disponibilidade,
ferramentas e material. Ferramentas e materiais mesmo que estes se resumam a
caneta e papel a partir dos quais pode-se criar obras poéticas ou literárias
imaginando a dureza e a leveza de qualquer matéria que seja. Gaston Bachelard
explorou os devaneios que este momento pode oferecer aos homens:
Pelo expediente da imaginação literária, todas as artes são nossas. Um belo
adjetivo bem colocado, bem iluminado, soando na harmonia certa das vogais,
e eis aí uma substância. ... Falar, escrever! Dizer, contar! Inventar o passado!
(BACHELARD, 2001b, p. 76).
Processo de tensão e ao mesmo tempo de satisfação em função dos
desafios vividos a cada momento, que tomara sejam superados. A obra seja ela
qual for, representa o ápice deste processo, resultado de toda a energia e de
todas as imagens que afloram: expressão de uma subjetividade reafirmada neste
embate. O desenvolvimento desta expressão é também conseqüência do
manuseio da matéria de cada tipo de atividade artística: as tintas, o barro, a
62
Verso da música Como diria Dylan” de sua autoria.
66
granulação do fotograma, o ritmo. Neste corpo-a-corpo algumas experiências
podem ser vivenciadas: as imagens concebidas e que se concretizaram, o
reconhecimento das possibilidades e limites da matéria, a paciência. Relações que
se estabelece com a matéria de forma a concretizar as imagens que se concebe e
a liberar os devaneios e a criatividade. Conjunto de reflexões que o homem
experimenta e que o são exclusivas desta dimensão, pois podem ser
transpostas para o cotidiano. É num processo assim vivenciado que é possível a
mitologização do meio ambiente e do mundo(CAMPBELL, 2002, p.89), quando
o artista consegue traduzir em sua obra sua experiência: a que ele vive no
decorrer deste processo. A dimensão mágica e simbólica da vida nos foi
arrancada e o as obras artísticas que possibilitam que elas sejam trabalhadas e
recompostas. Os artistas o fazem cada vez que nos oferecem imagens que
estimulam a imaginação e ajudam a recobrar estas forças que dão sentidos para a
existência e resgatam esta dimensão no interior de cada ser humano.
Imagens significativas, expressivas,
dilatadas e condensadas de sentimentos e enraizamento.
3.2. A arte e a ciência
O que seja um processo de criação pode-se até intuir, entretanto definir um
percurso pelo qual alguém possa caminhar com a determinação de conceber uma
obra de arte, isto não encontrei em nenhum dos pensadores que estudei, antes
sim, estes afirmam que este caminho não é passível de ser antecipado por
ninguém. O processo de criação artística não acontece a partir de modelos
teóricos ou princípios de elaboração quaisquer: o horizonte aberto é o que
possibilita alcançar novas e diferentes formas de criação.
67
Muitos pensadores
63
discutem os processos de criação e todos são
unânimes em dizer que não é possível estabelecer etapas de aprendizagem para
alguém se tornar um artista: “Você pode ser um poeta, mas não pode transformar-
se num poeta.” (HERMANN HESSE apud TARKOVSKI, 1990, p.30). O artista
pode-se valer de informações e de idéias na concepção de sua obra de arte, mas
a sua criação transcende este plano. Para além da gica que envolve este
processo também o trabalho que ele tem de desenvolver com a matéria que é
a base de sua obra. É na vivência com esta matéria-prima que cada artista vai
aprimorando as suas técnicas e muitas vezes definindo um estilo, num processo
no qual em certos momentos não se distingue forma, matéria ou conteúdo.
Em minha pesquisa refleti sobre as imagens e conhecimentos dos universos
da arte e da ciência. Como sendo do universo da arte considero os textos e
imagens poéticas de alguns dos autores que tenho por referência assim como:
Guimarães Rosa, Gaston Bachelard, Carlos Rodrigues Brandão, Andrei Tarkovski,
Valdomiro Silveira, Ivan Vilela, Carlos Carusto, Cândido Portinari, Luiz Fernando
Carvalho, entre outros, os quais admiro e com os quais de alguma maneira
compartilho a vivência e experiência que cada um deles expressa. Universo da
ciência, no caso, é o das ciências humanas e dentre os pensadores cito
novamente Brandão, Bachelard e Tarkovski e ainda Jean-Louis Leonhardt, Joseph
Campbell, Maria Sylvia Franco, Antonio Cândido, José de Souza Martins, Alain
Badiou, Nayla Farouki, François Laplantine, Walter Ong e Albert Camus.
Tendo em vista as confluências destes universos achei interessante uma das
estórias relatadas por Campbell, a de Dédalo:
63
ARGAN (1993); CROCE (1997); TARKOVSKI (1990); JUNG (1991).
68
Dédalo representou o tipo do artista-cientista: aquele fenômeno humano,
curiosamente desinteressado e quase diabólico, que está além das fronteiras
normais do julgamento social, dedicado à moral da sua arte, e não à moral do
seu tempo. Ele é o herói do caminho do pensamento de bom coração,
dotado de coragem e cheio de no fato de que a verdade, tal como ele a
conhece, nos libertará. (CAMPBELL, 1997, p. 31).
Na dimensão da arte tenho ainda uma outra proposta para esta pesquisa que
é conceber uma proposição através de uma obra audiovisual sobre os vínculos
que se estabelece com a terra e os que se refletem na luta pela terra. Ter a
concepção de imaginário
64
como referência para esta proposição parece-me que é
a melhor forma de percorrer este processo.
3.3. O conhecimento e o espaço da singularidade
O homem tem se valido de sua capacidade de entendimento e de
criatividade para organizar sua experiência e compreender sua existência, o que
faz a partir de um conjunto de concepções, conceitos e intuições; mitos, símbolos
e imagens arquetípicas, frutos de uma história de vida, que cada um guarda em
sua memória e que são referência e motivação para o pensar e agir. Esta
motivação se constrói na relação entre o mundo físico e o espiritual; entre o
mundo visível e o invisível; entre o tempo finito e a eternidade; dicotomias que
estão fundadas na cisão com o divino do qual originou-se o mundo: imagem
mitológica comum a várias culturas e religiões segundo Campbell (2002, p.50,76).
O desejo de superação destas dicotomias se reflete na busca da reconstituição da
unidade originária do homem: busca que pode se resolver quando um se depara
com a imanência do uno na diversidade do mundo, através de experiências
religiosas, místicas, míticas e artísticas. Também Albert Camus percebe esta
tendência no espírito humano, ainda que este autor não acredite na possibilidade
real deste encontro: "Essa nostalgia da unidade, esse apetite de absoluto ilustra o
movimento essencial do drama humano" (CAMUS, 1989, p.37). Nayla Farouki
64
O que irei abordar no próximo capítulo.
69
estudando os diversos tipos de conceitos -empíricos, antitéticos, transcendentais,
entre outros- elaborados pelo homem
65
, aponta esta mesma tendência. Para ela a
nostalgia se na busca de uma síntese harmônica, que é motivada por um
sentimento estético (FAROUKI, 1996, p.63).
Esta tendência acontece no intuito de superar as incertezas da vida:
encontrar algum caminho que possibilite uma experiência mais estável e mais
tranqüila, de forma a compreendê-la e preparar-se para ela. O que pode ser feito
transcendendo a realidade, concebendo conceitos que o se prendem à
descrição do mundo observado. É neste percurso que os diversos tipos de
conhecimento vão sendo elaborados e a partir do qual o homem vai constituindo
sistemas de compreensão do mundo. Na história das teorias do conhecimento
várias transformações foram revolucionando as possibilidades de entendimento
humano. Algumas mudanças são processuais, outras radicais, outras mais
abertas, entre outras possibilidades, a reconhecerem a diversidade das formas de
conhecimento possíveis, assim como podemos relacionar a ciência, a arte, a
mitologia e a teologia
66
. Abertura fundamental, pois propicia uma diversidade de
opções das quais o homem pode se valer para pensar a sua existência.
No universo acadêmico percebo muitos indivíduos imersos nas certezas
científicas e nas estratégias econômicas crentes nas concepções totalitárias de
desenvolvimento e progresso. Convivo com uma massificação cultural na qual o
espaço para a expressão subjetiva está cada vez mais restrito. Entretanto a vida
não se e não se alimenta senão a partir de cada subjetividade: creio ser
necessário reconhecer a importância dessa dimensão senão não haverá leis e
regras suficientes para determinar e assegurar as relações sociais e humanas,
65
para exemplificar: "árvore" é um conceito empírico, "mortal" um conceito antitético e
"mamífero" transcendental.
66
É interessante notar alguns desmembramentos desta história: para Aristóteles, pensador
grego do século IV a.C., o conhecimento se dava também em outras dimensões, assim como
pela arte, enquanto para o empirismo/ positivismo, teorias fundamentadas nos conceitos deste
autor, a ciência é considerada como a única forma de conhecimento possível.
70
pois, como abordarei a seguir, não há anuência a elas a não ser por uma
determinação subjetiva.
Exponho a seguir uma teoria do conhecimento e algumas reflexões feitas
pelo professor e pesquisador Jean-Louis Léonhardt em um seminário
67
e
aprofundadas pelas leituras de alguns textos do mesmo professor e outros
indicados por ele como Alain Badiou, Nayla Farouki e Karl Popper. Esta teoria
parte de três conceitos básicos, quais sejam: universal, singular e particular, assim
como proposto por Aristóteles. Destes denominam-se conceitos singulares os que
são propostos por um sujeito e que são frutos exclusivos de sua subjetividade. Os
que são concebidos por uma comunidade, por um conjunto de indivíduos que
trabalha a partir de princípios e referências teóricas comuns, são denominados
particulares. Os conceitos que são passíveis de serem vivenciados por todos os
seres humanos, como atributo de todos, estes são os universais.
O conhecimento singular é o que é elaborado pelo sujeito em sua atividade
artística ou pela sua convicção ou em algum princípio ordenador e que são
elaborados e expressados nas obras de arte e na declaração de crentes, profetas,
santos e militantes (BADIOU, 1997, p. 29,62).
O conhecimento particular é concebido por diferentes comunidades,
científicas, políticas
68
ou religiosas, constroem e acordam princípios e concepções
como sendo verdadeiros e que são elaborados, sejam pelos pesquisadores, sejam
pelos legisladores (os do Estado, os da Igreja).
67
Seminário Avançado III - "Arte, Ciência e Tecnologia: a Linguagem", coordenado pelo
Prof.Dr. Fernando Passos.
68
BADIOU, 1997, p.12.
71
Diagrama 1: Neste diagrama
69
de J.L. Léonhardt percebe-se as duas
dimensões possíveis de conhecimento e as relações que se estabelece entre elas:
na dimensão singular, através da arte e da , qualquer sujeito pode conceber e
perceber verdades universais e na dimensão particular, o mesmo se dá através da
corroboração da comunidade científica, filosófica ou religiosa.
uma certa cautela por parte de alguns pensadores e pesquisadores em
relação aos conhecimentos particulares fruto do reconhecimento dos limites das
concepções humanas sobre o mundo. O que está por detrás destas precauções é
o questionamento quanto à possibilidade de conhecimento humano apreender a
realidade. Realidade que não é ainda o real, realidade que é a construção
histórica da humanidade e não o mundo dado. O desconhecimento destes limites
é preocupante principalmente quando se pensa nas ciências humanas, pois neste
caso, o objeto de conhecimento, bastante complexo e dinâmico, é o homem e a
sociedade e as conseqüências da aplicação de qualquer teoria neste caso não
são mensuráveis apenas estatisticamente.
Muitos pensadores refletiram e abordaram esta questão:
69
Apresentado no seminário referido anteriormente.
arte
ciência
filosofia
singular particular universal
72
Aquele que crê saber qualquer coisa, este ainda não conheceu o que é
necessário conhecer (SÃO PAULO, Cor.I.13.8 apud BADIOU, 1997, p. 48).
O real o é incognoscível no entanto jamais terminamos de conhecê-lo
(SANTO AGOSTINHO apud LÉONHARDT, 1999, p. 10).
O céu tornou-se, para nós, o espaço cósmico dos materialistas, e o divino
empíreo, uma grata lembrança de coisas que um dia existiram. Mas o ´coração
palpita´ e uma inquietação se instala nas raízes do nosso ser. (JUNG
70
apud
CAMPBELL, 1997, p. 181).
Eis nosso problema (o de que devemos enfrentar sozinhos a vida), na
qualidade de indivíduos modernos "esclarecidos", que foram privados da
existência de todos os deuses e demônios por meio da racionalização.
(CAMPBELL, 1997, p. 107).
Nos dias de hoje muitos cientistas trabalham a partir do princípio da
corroboração proposto por POPPER (1975) em que não existem teorias falsas ou
verdadeiras. A teoria é corroborada se o fenômeno corresponde à hipótese que o
explica e enquanto esta permanece válida dentro das condições identificadas em
seu estudo e de acordo com a reprodutibilidade do fenômeno na relação espaço-
temporal. A veracidade da teoria pode ser questionada a qualquer momento por
qualquer fenômeno que contrarie a sua formulação.
O conhecimento é, em última instância, ou talvez primeira, uma construção
que se em função da concepção de mundo que cada um tem: seja ela mística,
científica, mítica ou um "emaranhado" destas dimensões. a cada ser humano
em si é possível o reconhecimento da verdade desta concepção. Os conceitos,
leis e princípios concebidos e corroborados em foro coletivo são assumidos
como verdadeiros na dimensão subjetiva: não nenhuma autoridade ou algum
tipo de constrangimento que garanta que alguém tenha para si algum tipo de
determinação. A verdade é uma convicção interna que pode ser expressa e
compartilhada, no entanto sua verificação não pode ser feita no mundo físico: só o
que pode ser verificado é o fenômeno ou sinal ao qual ele remete. A verdade,
70
JUNG. C.G. Archetypes and the collective unconscious.
73
assim vivenciada, se mantém viva pela convicção, ou mais especificamente ,
que o indivíduo tem em suas concepções.
A
71
é uma dimensão onde as relações dos homens com o mundo se
constroem. É uma percepção interna que vem se perdendo. A identidade do
indivíduo descrente se fragmenta e ele perde a perspectiva de construir conceitos
universais singulares que são os que lhe poderiam propiciar uma compreensão do
mundo: se o homem perde a perspectiva da ele perde a si mesmo (BADIOU,
1997, p. 57). Alain Badiou para expor sua teoria sobre universalismo traz cena"
São Paulo Apóstolo que resgata o status” da verdade como singularidade
universal" de forma que "ela é oferecida a todos ... e não há nenhuma condição de
filiação/ pertencimento que possa limitar esta destinação.” (BADIOU, 1997, p.
23,15).
Os conhecimentos subjetivo e científico têm esferas de validação diferentes:
enquanto estas não forem reconhecidas o diálogo e a comunicação entre os
homens continuarão prejudicadas, bem como a convivência social. A esfera
subjetiva permanece em desvantagem no mundo moderno no qual a maioria dos
paradigmas desqualifica o conhecimento concebido nesta esfera. No entanto,
quando alguém compartilha as suas concepções, as que julga como sendo válidas
para si e para os outros, oferece ao mundo várias possibilidades no que tange à
compreensão do que seja a existência.
Vive-se um momento no qual muitos indivíduos sofrem com a crise de
paradigmas e conseqüentemente com a ausência de referências. Mais do que
encontrar um sistema que abarque a totalidade do ser, o fundamental é que o
sujeito possa acreditar neste sistema ainda que não o faça de forma indiscutível. A
71
É importante salientar que a religião não é o único caminho para a fé: CAMPBELL (2002)
em seus estudos se refere a diversos mitos que organizam a vida de indivíduos de diversas
culturas e que se constituem em sistemas de crenças que não são necessariamente religiosas.
74
perspectiva da abre um horizonte interno que permite que o homem encontre
um caminho e quem sabe um sentido para a sua vida.
3.4. Linguagens e Formas de expressão
Cada uma destas formas de conhecimento dispõe de linguagens a partir das
quais suas concepções o construídas no intuito de expressar o "sentido" e as
descobertas que cada uma vai elaborando. Para tanto se valem de palavras e
imagens que designam algo que se encontra no mundo ou conceitos e
concepções que a humanidade vem elaborando no intuito de construir formas de
expressar idéias e intuições
72
. A formulação da linguagem e a busca de sua
conformidade com o que se quer expressar são tão importantes que desde a
origem da filosofia, alguns pensadores se preocupavam com esta questão.
Aristóteles concebeu uma linguagem que deveria ser utilizada para a formulação
dos conceitos elaborados a partir dos estudos dos fenômenos naturais -a
linguagem categórica- que para ele possibilitava a expressão da verdade.
As linguagens que são formuladas de forma a apontar um significado preciso
são as mais monossêmicas
73
, assim como na ciência, cuja linguagem mais usual
é a matemática
74
. Quando a linguagem tende para um outro extremo no qual a
interpretação está dada ao interlocutor, quando a sua construção tem aberturas e
metáforas que serão preenchidas e lidas de acordo com a experiência pessoal
deste, neste caso estas tendem a ser polissêmicas, assim como a da arte e a da
72
No exercício de redação de um texto assim como este em que pretendo abordar tantas
concepções abstratas e em construção é quando percebemos o quanto a escolha das palavras
e das imagens é fundamental para se designar o que se deseja expressar.
73
Estes conceitos foram abordados pelo prof.Dr. Jean-Louis Léonhardt no seminário referido
acima.
74
Esta tendência a unificar o sentido é uma das formas identificadas por Farouki, como
abordamos anteriormente, e que se dá no intuito de tornar familiar o que é estranho e, também,
para assim o tornar comunicável (FAROUKI, 1996, p.64).
75
mitologia. O fundamental é que este tipo de linguagem possa expressar a
complexidade e diversidade de forma criativa, assim como é a poesia.
a poesia consiste em permitir que a Palavra seja ouvida para além das
palavras. ... Tudo o que é transitório não é senão uma referência metafórica.
(CAMPBELL, 2002, p. 241).
A linguagem polissêmica prescinde de estudos de metalinguagem para se
fazer poética: ela aflora cada vez que um artista concebe uma nova imagem. Ela
se faz na leveza ou na dureza de um sentimento ou intuição formulada na certeza
interior que deseja comunicar o que a si se revelou. Assim como faz São Paulo
Apóstolo que lança mão de um discurso original para declarar a sua verdade: um
discurso subjetivo, um discurso que o se vale nem de conceitos, nem de sinais,
nem de leis. Um discurso que não equivale ao do filósofo, nem ao do judeu, ou do
profeta: é uma nova língua (BADIOU, 1997, p. 50).
A linguagem pode ser construída de forma a permitir a expressão de uma
subjetividade. Coloco esta reflexão para lembrar que no processo de criação, não
apenas a subjetividade de quem cria está em evidência, mas também a do
espectador/ leitor
75
. A linguagem de uma obra pode favorecer que o espectador
também se coloque com sua alma diante dela o que pode ainda favorecer a
compreensão de si e do outro.
3.5. O fazer artístico, a liberdade
Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!
Cecília Meireles
76
Se a universalidade de um conceito pudesse ser vislumbrada, certamente a
que cabe ao conceito de liberdade que cada homem elabora para si,
75
Voltarei a tratar esta questão no capítulo 11.
76
MEIRELES, C. Flor de Poemas, Ed. Nova Fronteira, 3
a
ed., Rio de Janeiro, 1972, p.218.
76
proporcionaria a melhor imagem e mais abrangente do que seja um conceito
universal.
Os pensadores que estudam processos criativos apontam como fundamental
um horizonte de liberdade para que o indivíduo possa intuir novas idéias:
Liberdade das amarras ideológicas e moralistas, concepções totalitárias e
utilitárias quais sejam, as quais podem induzir e direcionar o processo de criação
"roubando-lhe" a pureza da intuição. Intuição, que é ao mesmo tempo sensível e
inteligível, é a unidade do espírito (CROCE, 1997).
Liberdade como a que se conquista vivendo em um grupo em que seus
integrantes se dedicam à concretização do espaço social, visando a liberdade
para si e para os outros; quando se pode aceitar que a experiência interior tem
importância social (TARKOVSKI, 1990, p. 216-219, 283).
Liberdade como a do universo sem culpabilidade retratado por Antonio
Candido (1977) em "A dialética da malandragem" onde ele estuda um dos
arquétipos de nossa sociedade: o do "malandro". Este autor aponta o quanto o
indivíduo que vive sob este desígnio desfruta de uma leveza em sua existência, a
qual lhe permite a construção de saídas criativas e originais assim como as que
ele aponta na análise do personagem do livro Memórias de um sargento de
milícias de Manuel Antonio de Almeida.
Liberdade que possa estar garantida pela no horizonte da salvação
assim como proposto por Jesus Cristo, pregado por São Paulo Apóstolo e
vislumbrado por Alain Badiou como sendo um horizonte que liberta das amarras
das circunstâncias históricas, dos discursos filosóficos/ morais e das leis
(BADIOU, 1997, p. 26, 87, 96).
77
A liberdade pode ainda ser vivenciada depois de um processo doloroso
como é o do encontro com o nada, quando o mistério do mundo prevalece e se
instaura com brutalidade na vida, assim como o percebe o ser humano. Esse
encontro faz com que o indivíduo se depare com a superficialidade da existência
humana, percebendo as certezas, regras e valores do mundo como
circunstanciais e vazias. Se este indivíduo sobrevive a este encontro, ele
estabelecerá uma nova relação com o mundo, vivenciado-o, a partir de então, livre
das amarras que o prendiam, passando a encará-las, questioná-las e reformulá-
las de maneira mais criativa para sua vida (CAMUS, 1989).
Para Campbell, liberdade é o horizonte do herói, o homem que não se
prende às suas tradições e sai em busca de novos horizontes, em uma saga que
pode, ou não, ser bem sucedida, ainda que não possa ser evitada. Esta é a saga
que empreende o artista, o militante e tantos outros sujeitos.
Percebe-se nestas concepções, do que é liberdade para cada um dos
pensadores acima citados, que todas elas passam pelo crivo do sujeito. Para ser
livre é preciso ter em si mesmo, em suas concepções, pois é a partir de um
horizonte que se pode caminhar e chegar ao encontro com a própria
subjetividade.
Liberdade é o que nos proporciona viver o aqui/ agora intensamente, o que
nos abre um "leque" de caminhos a seguir, ainda que seja muito angustiante ter
que fazer a escolha, como intui Tarkovski: Muito mais importante que sentir-se
feliz é afirmar a própria alma na luta por aquela liberdade que é, no verdadeiro
sentido, divina." (TARKOVSKI, 1990, p.286).
Horizonte que talvez seja o que Guimarães Rosa vislumbra: "Como aquela
vista vai longe, longe, nunca esbarra. Assim eu entrei dentro da minha
78
liberdade".
77
Liberdade que também para ele é decorrente de um aprendizado
subjetivo, no caso, o de Riobaldo
78
: "Tem uma verdade que se carece de
aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se
fazer."
79
Mas quem sabe não é ela própria, a liberdade, quem ensina: “Tornar
imprevisível a palavra o será um aprendizado da liberdade? ... a poesia
contemporânea pôs a liberdade no próprio corpo da linguagem.” (BACHELARD,
1978, p. 190).
77
ROSA, 1982, p.351.
78
idem, Personagem principal deste livro.
79
idem, p. 233.
79
4. “A IMAGEM É, EM NÓS, O SUJEITO DO VERBO IMAGINAR”
80
Caminhando pelas serras de Minas, cantarolávamos voltando da cachoeira,
catamos uma latinha e lançamos nas corredeiras que se formaram em decorrência
das tantas chuvas. A latinha, com a sua leveza, desliza, boiando, aventureira,
rodopiando nas curvas girando em cambalhotas. Aline
81
comenta: - Queria ser
essa latinha! “A imagem é o ser que se diferencia para estar certo de vir a ser”
(BACHELARD, 2001b, p. 21).
Quantas imagens podem oferecer o dia-a-dia? Algumas remetem às
memórias, outras aos desejos.
Um senhor conversa com uma criança levando-a sobre os ombros,
atravessando uma praça arborizada. Imagino ser ele um avô que narra uma
estória na magia de vivê-la: transforma seu neto no herói montado sobre um
cavalo cruzando o bosque, indo libertar “Prometeu”
82
. A meia luz do espaço, o
sorriso do velho, os braços abertos da criança: não sei quais elementos
estimularam-me a imaginação, sorri para a cena e fiquei pensando o quanto venho
compreendendo a filosofia do imaginário elaborada por Gaston Bachelard.
Quando se aprende a pensar por imagens é possível olhar o cotidiano percebendo
e criando imagens, especialmente as que se desejaria vivenciar. “no mundo do
sonho, não se voa porque se tem asas, mas acredita-se ter asas porque se voa”.
(BACHELARD, 2001a, p.28).
80
BACHELARD, 2001a, p.14.
81
Amiga que nos acompanha no passeio e que por acaso é dançarina... Nós recolhemos a
latinha após a caminhada...
82
Referência ao verso “Montado no meu cavalo libertava prometeu” da música “Estampas
Eucalol” composição de Hélio Contreiras cantada por Xangai. Aline cantou esta música no
retorno da cachoeira e no dia seguinte presenciei esta cena: as imagens se sobrepuseram...
80
Muitas vezes usa-se a imaginação para fins práticos e como nem sempre se
consegue sucesso com tantos cálculos, o sujeito se cansa e desconsidera sua
potencialidade criativa. Também as imagens que se cria podem ser negativas
assim como as que os noticiários instigam o tempo todo no imaginário dos
espectadores: as de violência e catástrofes. Desta forma o cotidiano passa a ficar
povoado de gente maldosa e ladra
83
e de uma natureza traiçoeira. “Se déssemos
mais importância à imaginação, veríamos muitos falsos problemas psicológicos
esclarecidos”. (BACHELARD, 2001a, p.65).
As possibilidades de criação de imagens são infinitas tendo em vista, entre
outros fatores, o excesso de referências culturais que hoje se vivencia. Entretanto
a exuberância delas se quando refletem nossa experiência, quando
repercutem, quando favorecem ao outro que se identifique e quem sabe
compartilhe os mesmos sentimentos ou até que ele continue o processo criativo
em seu ser.
a imagem que condensa, que dilata, que divaga...
imagens de ascensão, de inversão, dialéticas,
as que expressam a dureza e a leveza.
Gaston Bachelard escreveu vários livros expondo suas concepções de vida e
de mundo inspirado nas imagens de diversos escritores.
Interior da rosa
Rilke
84
Que céus se puseram ali
No lago interior
Dessas rosas abertas
83
Não desconsidero a efetividade destas informações, no entanto, deixar de usufruir mais da
vida por causa delas é o que lamento acontecer.
84
Esta é uma citação de Gaston Bachelard que está na mesma passagem em que ele faz
leitura deste verso.
81
O céu inteiro cabe no espaço de uma rosa. O mundo vem viver num perfume.
(BACHELARD, 1990, p.40-41).
Apesar de declarar -na introdução de seu livro A poética do espaço”- a sua
dificuldade para a proposta de trabalho que ele tem em perspectiva
(BACHELARD, 1978, p.184), esta não transparece no decorrer do seu texto, no
qual a poesia que ele cita e a que ele cria são repletas de imagens belíssimas e
instigantes. E repletas não apenas destas que provocam as sensações e vão-se
embora, mas das que modificam minha concepção de mundo, forma de ser e
sensibilidade. “... as imagens são necessárias para que as virtudes de nossa alma
se distingam e se desenvolvam”. (BACHELARD, 2001b, p.283).
Gosto da disposição com a qual este pensador/artista trabalha: Gaston
Bachelard distingue-se do crítico literário justificando-se que prefere retratar
apenas as obras que ele desejaria fazer: não lemos, não relemos senão o que
nos agrada, com um pequeno orgulho de leitura mesclado de muito entusiasmo.”
(BACHELARD, 1978, p.189).
Depois de estudar Gaston Bachelard minha imaginação está muito mais viva:
muitos atos se tornaram ritualísticos e os objetos simbólicos. O espaço, o
percurso, a textura, o ritmo, a passagem, o silêncio, tudo pode ser metáfora,
metáforas que não se limitam a duplicar a realidade(BACHELARD, 1990, p. 38).
Pois como dizia Gilberto Gil em sua canção Metáfora”: “quando o poeta diz meta,
pode estar querendo dizer o inatingível”.
Deixe a meta do poeta, não discuta, deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta, deixe-a simplesmente metáfora
85
85
Versos da música Metáfora.
82
Certas concepções que quando tratadas como imagens, ganham a leveza de
uma metáfora. Eu tenho uma imagem de mundo, e do mundo, e é ela que eu
quero conferir e incrementar: acredito em sua universalidade e em sua verdade.
Não é uma imagem estanque; ela vem se modificando:
[...] a imaginação a nosso ver, inteiramente positiva e primária, deve, quanto ao
tema das qualidades, defender o existencialismo de suas ilusões, o realismo
de suas imagens... (BACHELARD, 1990, p.62).
Este capítulo, sobre Imagem”, é uma sistematização dos estudos que fiz a
partir de Gaston Bachelard, a mesmo o título é uma citação deste pensador
eloqüente, e que é convicto que a imaginação é uma forma de percepção e
invenção do mundo. Para cada um dos elementos naturais que ele trata -ar, água,
terra, fogo- reúne belíssimas passagens de diversos escritores buscando imagens
para as suas reflexões. Cita-as, interpreta-as, imagina-as, traduzindo sentimentos,
trazendo a beleza do ser/ estar na dimensão de cada uma delas. A valorização da
imaginação em Gaston Bachelard é uma forma de expressar o quanto o mundo é
mágico e o quanto ela pode mudar a vida de um indivíduo.
[...] a imaginação quer sempre sonhar e compreender ao mesmo tempo,
sonhar para melhor compreender, compreender para melhor sonhar.
(BACHELARD, 1990, p.224).
Carlos Rodrigues Brandão compartilha as reflexões que fez a partir das
leituras de Gaston Bachelar:
[...] a primazia do devaneio como a mais excelente fonte de conhecimento
humano sobre as coisas. Sobre a sua plena realização no voltar-se ao
imaginário da natureza e recosmicizar tudo e todos a partir da contemplação
poética do significado afetivo, afetuoso, de todas as relações. (BRANDÃO,
1999, p. 150).
A imaginação é um processo que se única e exclusivamente na
singularidade de cada sujeito. As imagens que decorrem deste processo são
imagens poéticas, que não são identificáveis em nenhuma forma, objeto, causa ou
83
princípio: o podem ser apontadas no espaço, sendo que no percurso temporal
acontecem subitamente. De acordo com Bachelard (2001a, p.153) “a imaginação,
mais que a razão, é a força da unidade da alma”.
Imaginário é um processo dinâmico onde existe e persistem muitas
imagens, construídas e reconstituídas a todo instante pela alma do sujeito
imaginante. Imaginário é uma dimensão transcendente da experiência, não é
possível identificá-lo como um produto, como algo que possamos descrever ou
descriminar. Assim que não palavras com as quais se possa defini-lo
precisamente. Arrisca-se uma concepção sobre ele em função das imagens que
emergem decorrentes de sua atividade. Imaginário é um processo individual, é o
que fica “borbulhando” na alma de cada um. O único imaginário ao qual eu posso
chegar é o meu, o pessoal; o de uma época, o de uma cultura ou geração, eu só
posso esboçar. Quando expresso um imaginário em qualquer linguagem eu o
simplifico e quando o fixo em uma imagem escamoteia-se sua complexidade. Ele
existe e vai se constituindo no processo repercussivo que acontece de indivíduo
para indivíduo, no movimento que se dá em torno de um imaginário.
Em se tratando de descrever e falar sobre imagens, imaginário e imaginação,
nada melhor do que se valer de imagens, assim como fez Gaston Bachelard que
usou dois termos: ressonância e repercussão que expressam em si movimento,
espacialidade e dinamicidade, identificando características fundamentais das
concepções que está abordando.
A exuberância e a profundidade de um poema são sempre fenômenos da
dupla: ressonância-repercussão. Parece que, por sua exuberância, o poema
desperta profundezas em nós. (BACHELARD, 1978, p. 187).
84
repercussão ressonância
sujeito imaginante => * soma das repercussões individuais => espírito de uma
época**
voz pessoal, criação coletivo/ social
* repercussão indivíduo X indivíduo.
** quando muitas pessoas sentem a repercussão, estabelecendo-se assim um
imaginário, uma cultura, um movimento estético, um mito: determinando o espírito de uma
época.
O sujeito pode elaborar ou intuir uma imagem e ao formulá-la e expressá-la
seja pela sua voz ou suas ações, estará compartilhando algo de sua singularidade
o que poderá provocar uma repercussão. A partir de então esta imagem estará
disponível para os demais indivíduos e, de acordo com a receptividade em um
conjunto de sujeitos, poderá se tornar uma ressonância, uma concepção
disponível ao espírito humano. Dentro de um contexto histórico e geográfico este
conjunto de imagens pode caracterizar uma cultura ou uma organização social.
Ressonâncias que se vivencia tanto na vida material quanto na afetiva, tanto as
que nos chegam pela consciência como também pelo inconsciente. Ressonâncias
que repercutem na criação da imagem poética de uma alma. Ressonâncias que se
concretizam em organizações como a da “Associação da Cultura Caipira” e do
movimento de luta pela terra.
4.1. As imagens
Viver, viver verdadeiramente uma imagem poética,
é conhecer, em cada uma de suas pequenas fibras,
um devir do ser que é uma consciência da inquietação do ser.
(Henri Bosco).
Ainda existe a possibilidade de se pensar por imagens? Para Campbell
(2002, 64) o homem perdeu esta dimensão, o que se pode verificar ainda através
85
de outra passagem deste mesmo autor: "Sempre que [a mitologia] é objeto de
uma interpretação que a encara como biografia, história ou ciência, a poesia
presente no mito fenece. As vívidas imagens estiolam-se em fatos remotos de um
tempo ou céus distantes." (CAMPBELL, 1997, p.244).
Walter Benjamin discorre sobre o motivo pelo qual decaiu a arte de contar
estórias “porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis”
(BENJAMIN, 1982, p. 200). Talvez seja também este o motivo pelo qual a
imaginação e a magia deixaram de fazer parte do cotidiano das pessoas.
Pense-se, por exemplo, no conto A alexandrita, que coloca o leitor nos velhos
tempos em que: as pedras nas entranhas da terra e os planetas nas esferas
celestes se preocupavam ainda com o destino do homem, ao contrário dos
dias de hoje, em que tanto no céu como na terra tudo se tornou indiferente à
sorte dos seres humanos ... Os planetas recém-descobertos não
desempenham mais nenhum papel no horóscopo, e existem inúmeras pedras
novas, todas medidas e pesadas ... mas elas não nos anunciam nada e não
tem nenhuma utilidade para nós. (BENJAMIN, 1982, p. 219)
Várias dimensões da existência humana estão represadas. A religião e a
ciência são as formas de conhecimentos predominantes no mundo moderno, no
entanto elas o têm sido suficientes para resolver as diversas questões que
mobilizam os homens. Muitas vezes ignoram, julgam ou condenam imagens que
"vibram" no íntimo dos seres humanos.
[...] valorizar a imagem antes do sentimento, o cada um antes do todo, o
imaginar antes do conhecer, a coisa antes do significado; abandonar jogos
(pares de opostos) para que a emoção possa romper vasos e circular de novo
no mundo; respeitar é olhar de novo com o coração. (HILLMAN, 1993, p. 28)
Gaston Bachelard aponta a dificuldade de voltar-se às imagens como formas
de expressão, em superar a tradição da ciência que influenciou tanto nossa época
e que determinou um certo tipo de estar no mundo.
86
[...] no tempo da alquimia .... a beleza privilegiava um resultado, era o signo de
uma substancialidade pura e profunda (enquanto) o pensamento científico,
nesse aspecto, não tem nenhuma tonalidade estética. (BACHELARD, 2001b,
p.35).
Os homens elaboram imagens de suas vivências, algumas delas, as que são
frutos da imaginação, são fulgazes. Estas imagens o esquemas dinâmicos que
cada sujeito toma para si e reformula conforme sua experiência pessoal, motivado
por necessidades, sentimentos, desejos e frustrações.
As imagens não se deixam classificar como os conceitos. Mesmo quando são
muito nítidas, não se dividem em gêneros que se excluem. Após ter estudado,
por exemplo, as pedras e os minérios, não dissemos tudo sobre os cristais.
(BACHELARD, 2001b, p.229).
... a poesia, não obstante seu caráter de incompletude, é criada para alcançar
uma unidade. Quando minha imaginação se mistura com ela, a poesia torna-se
minha. ... Raramente encontrei alguém que, ao ler uma poesia, dissesse : “Não
a compreendi”. ... Aceita-se tal como ela é. (KIAROSTAMI, 2004, p. 182).
O que queremos imaginar ... é a imanência do imaginário no real, é o trajeto
contínuo do real ao imaginário. (BACHELARD, 2001a , p. 5).
O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no
meio da travessia. (ROSA, 1982, p. 50).
As imagens se encontram “antes dos pensamentos” têm “seu verdadeiro
lugar na atividade psíquica” ((BACHELARD, 2001b, p. 299). Imagens que
percebemos e usufruímos nas diversas experiências que temos. As arquetípicas,
originárias da constituição bio-psicológica e ontológica do homem. Segundo Carl
Gustav Jung o imagens primordiais "que condensam inúmeros processos" e
referem-se "a determinados processos da natureza observáveis pelos sentidos,
sempre renovados ... e a certas determinações íntimas da vida" (JUNG, 1991, p.
516, 517).
Quando as imagens são metáforas elas são denominadas símbolos. Estes
não têm um sentido fechado. Um exemplo de símbolo são as imagens circulares
87
que em diversas culturas representam o divino, a harmonia e o retorno à unidade
originária do mundo (JUNG apud CAMPBELL, 2002, p. 224).
Figura 3: Krishna dança com pastoras de gado - Índia, séc.XVII
86
Estas imagens quando se estruturam em narrativas que expressam
concepções de como os homens se relacionam entre si e com o mundo elas são
denominadas mitos, o que exemplifico com a estória de Tainá-Cã.
86
CAMPBELL, 2002, p.25.
88
Macunaíma – o herói sem nenhuma caráter
Mário de Andrade
87
Tainá-Cã derrubou mato, botou fogo em todos os macurus de formiga e
preparou a terra. Naquele tempo inda a nação carajá não conhecia as plantas
boas. Era peixe e bicho que carajá engolia. (...) Tainá-Cã deu uma
chegadinha no céu, foi até o corgo Berô, fez oração e botando uma perna em
cada barreira do corpo esperou assuntando a água. Daí a pouco vieram vindo
no pêlo da agüinha as sementes do milho cururuca, o fumo, a maniveira, tôdas
essas plantas boas. Tainá-Cã apanhou o que passava, desceu do céu e foi no
roçado plantar. Desde então por causa da bondade de Tainá-Cã é que Carajá
come mandioca e milho e possui fumo pra se animar. (...) Tainá-Cã (traído pela
namorada) até orvalhou de tão triste, pegou nos teréns e foi-se embora pro
vasto campo do céu. Si a (Tainá-Cã) continuasse trazendo as coisas do outro
lado de lá, céu era, aqui, nosso todinho. Agora é só do nosso desejo.
A mitologia é muito fluida, muitos mitos se contradizem podendo fornecer
diferentes versões de um mistério, ainda que pertençam a uma mesma cultura
(CAMPBELL, 2002, p.50).
4.2. “É pela imagem que o ser imaginante e o ser imaginado estão mais
próximos”
88
A imagem decorre de uma singularidade. Ela, em sua formulação aberta e
metafórica, permite a repercussão, a troca entre indivíduos.
Meu avô é um homem que pensa e se expressa por imagens: e ele sabe
disto. Ele tem sempre uma explicação na “ponta da língua” quando questionado
sobre algumas das que ele me formula:
ô chão de Minas ... é que eu sou de lá né Kelli.
meu pai sempre dizia: “ah tanta lida prá pouca vida”; isto não foi bom para ele:
morreu com trinta e cinco.
O seu artesanato, a confecção do carro de bois foi a imagem primordial para
o vídeo Conversas de bois a partir da qual fui elaborando a narrativa,
87
ANDRADE, 1973.
88
BACHELARD, 2001, p.4.
89
incrementando-a com outras imagens: a da música Poeiraque trouxe para mim
a imagem do homem se percebendo terra vermelha; a celebração da memória na
Festa da Juréia, dos tempos que os carros de bois percorriam aquelas serras; o
afeto do Sr. Zé Moreno pelo seu carro de boi; a música “Peão na amarração
89
de
Elomar Figueira de Mello, que traz uma imagem que meu avô também conhece: a
da “peleja” que é tocar esta vida, sobre o que também falam os bois de Guimarães
Rosa em Conversa de bois”. Imagens que se sobrepõem e que se
complementam no softwareonde edito e componho as imagens. Repercussões
que articulo de forma a se tornarem comunicativas ao espectador. “As imagens
visuais do ouvido esticado levam a imaginação para além do silêncio”.
(BACHELARD, 1990, p. 68, grifo da autora).
Vivência que Luiz Fernando Carvalho experimenta na música/ imagem de
Marco Antonio, compositor da trilha musical de seu filme “Lavoura Arcaica”:
Confesso: sou um músico frustrado. Não sei sequer tocar um instrumento. E
faço desta falta um dos meus impulsos para compreender imagens. Não sei
ao certo separá-las, o que será imagem do que será música. E foi certamente
esta confusão que invadiu meus sentidos desde a primeira vez que ouvi a
música de Marco Antonio, ou deveria dizer, da vez que vi as imagens de
Marco Antonio? Como deve chamar este demônio sonoro que respira junto
com o filme, que tanto me orientou na montagem, como devo chamar o que
não tem nome, o que está para além de nós? (grifos meus)
90
.
A imagem poética se enraíza sem explicação!
89
Música completa Anexo C.
90
Texto de introdução do encarte do "Compact Disc" da trilha musical do filme Lavoura
Arcaica”.
91
5. MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA: MEMÓRIA É EXPERIÊNCIA
A memória é o “chão” do imaginário a partir do qual as imagens podem
emergir, é a alavanca e a âncora para a criação proposta nesta tese e na narrativa
do vídeo. A memória que guardo e que estou mobilizando para desenvolver este
projeto está apoiada em minhas experiências, nas que eu vim acumulando na
minha vivência no universo rural, nos da luta pela terra e nos da cultura caipira.
Memórias que se manifestam como sentimentos e valores.
Não desejo resgatar uma memória de forma a fortalecer ou alimentar alguma
tradição ou identidade específica. Não creio tampouco que a minha memória seja
nostálgica. Quando nos remetemos ao passado reconstruindo uma realidade de
modo a valorizar ou justificar uma existência, construindo ou idealizando outras
possibilidades, estabelecendo-se ou restabelecendo-se assim os sentidos para a
nossa vida. Pode ser que algum dia as recordações não sejam mais nostálgicas
nem idealizadas. Pode ser que algum dia a gente não precise mais sair do
presente para lembrar uma “idade de ouro” qualquer ou idealizar uma outra
condição para o futuro.
Para Antonio Candido os caipiras buscam o passado como uma:
[...] maneira de criar uma idade de ouro para o tempo onde funcionavam
normalmente as instituições fundamentais da sua cultura, cuja crise lhes
aparece vagamente como fim da era onde tinham razão de ser como tipos
humanos. (CÂNDIDO, 1987, p. 195).
A memória mobiliza todo um conjunto de experiências de um homem em
função das circunstâncias de cada momento de sua vida, das questões pessoais
que o intrigam, assim como dos contextos discursivos em que ele se encontra
quando narra as suas lembranças -o estado emocional, as pessoas presentes, o
92
espaço/ local em que ele se encontra. Ela se manifesta de diferentes maneiras e
se atualiza em cada uma destas circunstâncias.
uma concepção mais comum de memória como sendo algo estanque/
estagnado que se define e se forma cronologicamente, para a qual é atribuída
uma função nos dias de hoje: a de que é conhecimento, como uma forma de
organização do passado (BOSI, 1999, p.89). No entanto em muitos de nossos
devaneios as associações que a cadeia de pensamentos vai recobrando não
seguem necessariamente qualquer critério causal ou temporal, antes se de
forma casual e aleatória. Quando qualquer questão ou emoção nos mobiliza a
tendência é a de que as lembranças se manifestem em torno destes.
[...] o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para
tudo o que veio antes e depois. (Jeanne Marie Gagnebin in BENJAMIN, 1982,
p. 15).
Do ponto de vista do homem que vive sempre no intervalo de tempo entre o
passado e o futuro ... a posição dele não é o presente ... mas, antes, uma
lacuna no tempo, cuja existência é conservada graças à sua luta constante, à
sua tomada de posição contra o passado e o futuro. (ARENDT , 1999, p.37).
uma divisão na linha temporal: o homem se encontra em um ponto desta
linha, em uma lacuna, pressionado pelas forças do passado e do futuro, forças
que quando se encontram saem em diagonal. Esta imagem foi elaborada por
Hanna Arendt ao interpretar uma parábola de Frans Kafka (ARENDT, 1999, p. 37).
A linha resultante do encontro entre as forças do passado e do futuro não é
retilínea, ela se desvia para as mais diferentes direções (o plano de referência é
tridimensional). Qualquer que seja esta direção, ela é o que dá sentido à memória
e conseqüentemente aos projetos de vida de uma pessoa:
...na qual o curso do pensamento, da recordação e da antecipação salvam o
que quer que toquem da ruína do tempo histórico e biográfico ... não pode ser
herdado e recebido do passado, mas apenas indicado; cada nova geração, e
na verdade, cada novo ser humano ... deve descobri-lo ... (ARENDT, 1999, p.
40).
93
A memória não se articula apenas na consciência racional, a que é
verbalizável, ela tem diversas outras dimensões: a dos sons, das sensações
táteis, olfativas e corpóreas, a da afetividade. São muitos os fatores que podem
despertar toda uma rede de lembranças e sensações
91
.
A ausência de paradigmas e referências é cada vez mais difícil de se
suportar, cada vez se aceita menos a morte e o mistério. Com os avanços da
ciência e da tecnologia, e da publicidade positivista que se faz em cima deles,
cada vez mais o homem acredita que possa controlar suas condições de
existência. Contudo, sempre surgem novos desafios que reafirmam o mistério. Em
função destas crises muitas pessoas experimentam o sentimento de vazio e as
lembranças que as acometem neste dado momento, mostram-se desconexas. Em
geral é possível resgatar uma centelha de esperança e reacender a “chama”: O
homem se volta sobre sua vida ... contempla essa seqüência de atos sem nexo
que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o olhar de sua memória.
(CAMUS, 1989, p. 145). Os que passam por esta experiência desfrutam em
seguida de uma outra qualidade em suas vidas e provavelmente todas as
lembranças que alguém possa ter em sua memória ganharão um novo significado.
[...] não nenhum sentido verdadeiro do mundo senão as interpretações e
valores que trazemos para ele. (DIGGINS, 1999, p. 308).
Lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com as idéias de
hoje. (BOSI, 1999 , p. 55).
O que nos motiva a guardar certos objetos que nos remetem às lembranças?
Tantos querem nos fazer acreditar na objetividade deste mundo e deparo-me a
todo o momento com várias pessoas carregando toda uma vida que não se
91
uma memória que se automatiza e que possibilita ao sujeito realizar uma série de atividades
no dia-a-dia, como andar ou ler uma partitura musical, ou as que se apreende na convivência
social, como o modo que se cumprimenta alguém: estendendo a mão, abraçando ou curvando o
corpo.
94
enquadra na vivida. Ter, manter ou até construir um fogão de lenha em casa é
uma das tantas formas de se guardar uma lembrança de um modo de ser: a
despeito de um desses não ser de uso diário, é um aconchego preparar uma
comidinha saborosa ou um bom motivo para um encontro de amigos.
Para poder perceber estes valores que estão subliminares, contidos e/ou
deslocados é preciso observar expressões que se manifestam mais nas
dimensões emotivas, afetivas e nos detalhes das rotinas das pessoas do que nas
que são diretamente pragmáticas. Como o cuidado e atenção pessoal que Adriano
Picarelli vem pesquisando em seu projeto Jardins de mistura: idéias, mitos,
memórias no qual identificou toda uma simbologia de trocas, apegos,
generosidade e afetividade
92
:
Jardins onde as plantas aparecem todas misturadas nos canteiros, jardins
onde vasos de panelas, pratos de calotas de automóveis, jardins feitos
pelos próprios moradores das casas ... Jardins de plantas achadas,
presenteadas, plantas que fazem a pessoa lembrar de acontecimentos,
lembrar de outras pessoas ... O modo de compor, de criar estes jardins, acolhe
o acaso, o inesperado ... Não há um planejamento fixo, seguido até o fim, pode
até haver algo parecido, mas ele também muda.
Ou então as peças e objetos antigos mantidos como artigos de relíquia em
diversas casas e quintais, assim como observou M.Onice Payer: “Carroças velhas,
gamelas, todos esses objetos que não se descartaram nunca, assinalam traços da
resistência de múltiplos sentidos estranhos ao urbano.” (PAYER, 2001, p. 172).
92
A citação a seguir foi-me enviada em uma mensagem eletrônica por este pesquisador no dia
8/11/2006.
95
Na exposição Terra Paulista”, um dos temas abordados na sessão
destinada aos séculos XX e XXI foi “Permanências
93
:
A assimilação de tecnologias, de costumes “modernos” e a destruição parcial
de nosso patrimônio não impedem que persistam em São Paulo algumas
tradições. Sempre reinventados, o artesanato, a música e as festas são frutos
de diálogos entre os diferentes povos que constituem a “gente paulista”.
alguns traços que estão escondidos, guardados nas entranhas, nos
músculos, são memórias sensitivas que podem aflorar através do trabalho
empregado na matéria, as que Maria Aparecida Moraes e Silva conseguiu
resgatar a partir de oficinas em barro em um assentamento rural. Memórias que
voltam intactas: O tempo das mudanças, das andanças, do moderno, em virtude
da passagem pela cidade, não aparece nas peças modeladas.” (MORAES, 2005,
p. 17). Além do uso desta matéria tão espessa que é o barro, ela também se valeu
de uma outra tão mais sutil assim como é a música e foi quando mesmo as almas
mais enrijecidas, que negavam experiências anteriores com este tipo de
artesanato, cantarolaram ao som de uma rabeca e se emocionaram com A volta
da asa branca
94
.
Também ganha um novo significado uma lembrança, uma memória, quando
ela é despertada em função de um acontecimento que valorize a sua imagem. Isto
provavelmente se passou com o Sr. Roque de Faria, um dos organizadores do
“Grupo Folclórico Campinense”
95
, para quem a formação do grupo abriu o
caminho para que ele pudesse reviver uma determinação tão profunda em sua
alma: a de tocar, cantar e fazer o papel de embaixador nas Folias de Reis. O
mesmo pode ter se passado com cada um dos que confiam na força desta
bandeira para a realização de suas necessidades e desejos.
93
Referi-me a esta exposição no capítulo 2. O texto a seguir é do folder da exposição.
94
Música de Zé Dantas e Luiz Gonzaga.
95
Associação que organiza uma das companhias de Folia de Reis na cidade de Campinas/SP.
96
Para o Sr. Nelson, um dos participantes da Segunda viagem pelos
caminhos da Juréia
96
, este evento é uma oportunidade para reviver valores e
conhecimentos que lhe são tão caros e pelos quais ele se sente pessoalmente
responsável por manter:
Três dias já viajando e na chegada ainda faz festa ... nóis luta pra não acabá, o
carro de bois é uma tradição que nóis cuida dela.
Ou ainda para Maria Ileide Teixeira, agricultora do Assentamento Horto
Vergel, Mogi-Mirim/SP, que pôde recobrar as esperanças de ir trabalhar na terra
quando começou a ouvir falar dos movimentos sociais de luta pela terra:
a gente sempre naquela esperança de a gente encontrar, a gente ouvia falar
“Reforma Agrária, Assentamento”, mas a gente não conhecia ... a gente foi
numa reunião e quando chego tinha um pessoal do sindicato ... ficamos
fazendo as reuniões mais aqui ansiosos de dia vim embora pra terra. Isso se
passou mais de ano, um ano e meio, e quando foi um dia na reunião “olha, a
gente tem uma terra e a gente é destinada a Reforma Agrária só que o
governo ainda não destinou, quer dizer, não preparou essa terra pra que a
gente possa receber”. E tudo isso teve uma continuidade e hoje a gente é o
que vocês tão vendo hoje. A gente conquistou, um ano depois a gente
conquistou a terra, ganhamos.
97
5.1. Linguagens e Memórias
98
Dentre as tantas formas de guardar uma lembrança destaco a fotografia que
é por excelência a memória dos momentos em que foram tomadas. Percebo o
quanto as pessoas gostam de fotografar. Hoje os meios para tanto se
96
Evento que reuniu carreiros da região de Monte Belo/MG, homenageando a memória de um
momento histórico do distrito desta cidade - Juréia.
97
Depoimento gravado para um vídeo de Fernando Passos.
98
Muitas das reflexões que abordo neste item foram elaboradas e compartilhadas com os
parceiros desta equipe (referida no capítulo 2) por ocasião da escrita de um texto que
apresentamos em um Encontro “II Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais” citado
nas Referências Bibliográficas desta tese e por ocasião de umas filmagens que fizemos para
a edição de um vídeo que faremos sobre esta experiência, com a direção de Wenceslao.
97
popularizaram bastante, tendo se tornado habitual muitos aparelhos registrando
imagens fixas e em movimento em qualquer lugar por onde se vai. Quando o
acesso a tais aparelhos era restrito e as fotos eram poucas elas, em geral, eram
emolduradas e usadas como objetos de decoração. De uma maneira ou de outra
guardar uma foto é um ato bastante significativo. Na disciplina “Imagens
Fotográficas: registros e documentos que adensam memórias e histórias” do
módulo Linguagens e Memórias os participantes trouxerem cada um uma
fotografia de seu acervo pessoal.
Rosalino Dias Francisco
Figura 4: Aula “Linguagens e Memórias”
Estas fotografias foram analisadas e discutidas por Wenceslao Oliveira Jr.,
professor desta disciplina, que neste exercício ia fazendo referência à linguagem
fotográfica e a todo imaginário a que lhe remetia as composições, os
enquadramentos, os cenários, as presenças, os movimentos, as linhas e os
planos que conduzia o seu olhar, mente e coração. Este texto, do qual cito um
trecho a seguir, introduz a análise que Wenceslao fez das fotografias e que ouvi
“primeiramente” junto com os participantes do curso.
98
Montando cenários:
... gostaria de dizer poucas palavras sobre o ato de guardar. Ele carrega em si
os ditos três tempos de nossas existências: passado, presente e futuro.
Passado porque um guardado é sempre um objeto de um tempo que já se foi e
que nos serve de retorno nos momentos futuros. É assim que creio o futuro é
uma dimensão inerente ao ato de guardar, pois é por querermos que nos
tempos seguintes de nossa vida os momentos densos” vividos possam se
fazer presentes e atuantes. O presente se faz sentir nos nossos guardados
porque é nele que tomamos as decisões de continuar a guardar, pois
poderíamos, a todo e qualquer momento, nos desfazer desses objetos que
guardamos do passado para o futuro lembrar o passado de modo que este
possa ser perpetuado no futuro...
Após a leitura do texto todo as fotografias perderam a aura de simples
referência ao real e ganharam planos e perspectivas deixando transparecer
significados que não estavam explícitos: interessante notar o quanto se utiliza uma
linguagem ainda que se desconheça a sua gramática. As fotografias, então, se
transformaram em linguagem, incorporada pelos participantes que em seguida
repetiram o exercício. A seguir um texto preparado por um dos Núcleos de Base
99
:
Antonia Ivoneide Melo Silva
Figura 5: Agricultores Ceará
Ambiente verde. Revela fartura. A beleza da paisagem entre verdes e
amarelos da plantação e o azul do céu, infinito. Duas árvores secas nos indica
99
Os estudantes se organizaram em grupos que denominam “Núcleos de Base”.
99
que no preparo do solo houve fogo. Contrasta com a beleza da vegetação a
tristeza dessas duas árvores que podem ter sido queimadas e a alegria de três
camponeses na colheita do que será previsão alimentícia pelos próximos
meses. Em segundo plano, à direita e a esquerda sob o sol radiante da manhã
apresenta-se o que ainda existe de mata nativa, mata essa que supõe-se, já
ocupou toda essa grande área que hoje produz alimentos para esses
trabalhadores, que provavelmente são da mesma família e para seus filhos e
os filhos de seus filhos. Basta olhar no rosto de cada pessoa da foto para dizer
que estes provavelmente continuarão com o trabalho agrícola, se depender
da vontade deles.
Neste mesmo módulo, outra forma que foi utilizada para retratar as memórias
foram “Escritos biográficos e histórias pessoais”. A professora responsável por
esta disciplina, Agueda Bittencourt, solicitou uma escrita livre para os alunos, a
qual poderia ser feita no formato de uma carta pessoal, uma prosa, uma poesia,
“real” ou ficcional. Nos relatos enviados, a maioria de cunho autobiográfico, cada
um conta sua história atualizando as lembranças, fazendo projeções de acordo
com suas expectativas, perspectivas e concepções atuais. Constroem um
passado exemplar alimentando o desejo de que algum dia os sonhos e os ideais
se realizem. Não é o passado que estas pessoas trazem que interessa, não são
as histórias, os fatos, mas os sentidos que elas constroem a partir destas
narrativas.
Cito a seguir um trecho de uma das biografias apresentadas e na seqüência
uma análise do grupo de professores deste módulo:
Desde pequeno minha mãe exigia que todas noites antes de dormir
rezássemos, sempre em voz alta e posto de joelho... desde muito cedo
puxava o terço na comunidade, com 10 anos, de joelho em frente a uma
enorme cruz de madeira que era o marco onde foi morto um padre que
catequizava os índios... Quando puxava o terço cheio de devoção o tinha
clareza nenhuma do que significava minha fé... Tornei-me catequista, reunia a
criançada para passar a doutrina que seguia... Nesta época a igreja
progressista ganhava força e questionava certos roteiros que se reproduzia.
Neste período pós-ditadura militar foi um enorme processo de aprendizagem
para mim... começava a sentir que nem tudo era como tinha aprendido. Este
choque trouxe conflitos para a comunidade.
100
As histórias dos personagens são contadas realçando-se a dramaticidade e/ou
o percurso heróico de cada um deles, realçam os vínculos com o movimento
de luta pela terra e a chegada ao MST que muitas vezes é identificada como
um ponto de inversão em suas vidas, quando alcançam pequenas e grandes
realizações, quando conquistam um espaço de sobrevivência e de dignidade:
conquista ainda que seja a da esperança de realização de sonhos e desejos.
Nestes relatos, passado, presente e futuro se imbricam; lembrança de
momentos difíceis e prazerosos (tensão familiar, solidariedade, expropriação);
os conflitos e as conquistas; a infância (algumas prazerosas, outras
conturbadas; algumas que começaram no MST); casamentos (muitos
encontros amorosos, referência a esposas fortes e cúmplices); a
escolarização; a religião, a propriedade da terra de pais e avós.(JUNQUEIRA,
2005, p. 6).
Assim como Antonio Cândido estudando os caipiras de São Paulo percebo
que nestas memórias: “...há interpenetração de planos, em que o passado e o
presente, o mágico e o racional se combinam normalmente, sancionando em
conjunto por assim dizer, a validade do ato.” (CÂNDIDO, 1987, p.183).
Havia uma preocupação muito grande por parte dos alunos participantes
deste curso em criar uma memória que se afinasse com os ideais do movimento
de luta pela terra. Pude perceber melhor isto na disciplina “Roteirização e
Realização Audiovisual” do mesmo módulo que estava sob minha
responsabilidade. Por ocasião da concepção do roteiro para o vídeo, um dos
exercícios do módulo, o que seria feito a partir dos relatos e das fotografias
discutidos nas outras disciplinas do mesmo módulo, houve uma discussão muito
interessante: se o roteiro do vídeo deveria ser pensado a partir de algum objetivo
ou não. Sugeriu-se naquela oportunidade que procurassem estar livre de qualquer
compromisso: primeiro porque o MST tem diversos produtos audiovisuais
institucionais; segundo porque, de qualquer maneira, o resultado daquele
exercício provavelmente estaria afinado com a proposta do grupo, que por sua vez
era afinado com os ideais do movimento de luta pela terra. A decisão do grupo foi
por uma narrativa que destacasse os perfis mais característicos dos que entram e
participam desta organização.
101
“A memória é a mais épica de todas as faculdades” (BENJAMIN, 1982, p.
210) e mais épica ficou pois além das “trajetórias” escolhidas serem as mais
heróicas e exemplares, a forma escolhida para narrá-las realça estas
características: na abertura a referência à guerra de Canudos
100
e nas passagens
de uma biografia a outra que são ilustradas com estradas e caminhos nos quais
vão se multiplicando o número de pés que caminham, representando o aumento
do número de pessoas que estão se vinculando ao movimento de luta pela terra.
Tanto no vel individual como no nível do grupo, tudo se passa como se
coerência e continuidade fossem comumente admitidas como os sinais
distintivos de uma memória crível e de um sentido de identidade assegurados.
(POLLAK, 1989, p. 13).
Na concepção dos que estavam na coordenação do módulo e da discussão
que transcorria, a sugestão fora feita no sentido de que o processo de criação
pudesse se dar de maneira mais livre, para que a diversidade de possibilidades
que fossem cogitadas pudesse ser mais aberta. É preciso salientar que o
processo e o resultado agradaram bastante: desde as memórias que foram
forjadas e que foram descobertas junto a cada um dos participantes do curso e até
a que se construiu coletivamente -o roteiro do vídeo. De qualquer maneira,
entendo e louvo a decisão dos participantes: nas condições sociais em que
vivemos é difícil “dispensar” qualquer oportunidade na qual se possa reforçar a
memória que contribui para o fortalecimento do movimento de luta pela terra.
Reflexão que coaduna com a de alguns pensadores:
...necessidade da reconstrução (da experiência vivida) para garantir uma
memória e uma palavra comuns, malgrados a desagregação e o
esfacelamento social. (GAGNEBIN in BENJAMIN, 1982, p. 9).
A memória coletiva não é somente uma conquista é também um instrumento e
um objeto de poder. (LE GOFF, 1990 apud CASSIANO,1998, p. 193).
100
O que fariam valendo-se do nome que o grupo de participantes deste curso escolhera para
identificar-se: “Seguidores de Canudos”. Esta expressão estaria na tela de abertura do vídeo.
102
A memória é impotente fora de um quadro de referências. (ARENDT , 1999,
p.32).
...não se toma posse da terra imensa sem um ponto fixo. (BACHELARD,
2001b, p. 302).
Os militantes dos movimentos sociais vêm se esforçando para recriar uma
tradição: de luta, resistência e solidariedade. Eles acreditam em seus ideais de
transformação do mundo. Ideais que atravessam gerações de filósofos,
pensadores e lutadores que, no entanto nem sempre ressoam nas pessoas com
as quais estes militantes trabalham. Eles procuram resgatar valores, que se
perderam em função da individualização crescente e da espetacularização do
mundo.
Passo a comentar agora a memória que acontece e que se reforça em
espaços e tempos exclusivamente coletivos, assim como os das Folias de Reis e
das Festas de Carro de Bois: eventos que são manifestações de organizações
populares, celebrativas e elogiosas de uma memória. Memórias trazidas pelo meu
avô e que me mobilizaram em função dos vínculos com a terra a que elas me
remetem.
5.2. Memórias de foliões caipiras
A Folia de Reis de Campinas é uma adaptação de uma tradição que era
peculiar ao meio rural e que fazia parte do passado dos participantes deste grupo.
Ela sempre teve um componente que é muito forte e atual na vida das pessoas: a
religiosidade.
a esperança destrói o medo e as tristezas do caminho
103
Quando se trata de cuidar da vida espiritual as pessoas não medem esforços
para alcançarem o que elas acreditam possa garantir a abertura de caminhos e
diálogos para com o divino. Foi assim que muitos se esforçaram por resgatar esta
tradição. O Sr. Roque de Faria participa de Folias de Reis desde a idade de 13
anos: ele confessa que sente ser de ordem divina esta sua missão. Para o Sr.
Levindo de Faria, presidente do “Grupo Folclórico Campinense”, cada casa que
participa e solicita a passagem da bandeira de Reis é de grande importância.
Entretanto ele manifesta orgulho e um carinho especial pelas que são feitas na
roça da sua terra natal -Caconde/SP- pois a tradição nesta cidade foi retomada
pelos que estão fora, assim como é o caso dele, que muitos anos vive em
Campinas/SP.
Para além da religiosidade, a retomada da Folia representou a abertura para
a expressão de diversas habilidades e anseios, assim como as dos que eram
tocadores ou desempenhavam qualquer papel dentro dos grupos de Folias de
Reis dos quais haviam participado. O ritual foi atualizado em diversos aspectos:
em função das condições de cada um e também como uma estratégia do grupo
para atrair os mais jovens (CASSIANO, 1998, p.163). E ainda aumentar a
participação de alguns, ou melhor, algumas: as mulheres, que não ficam mais
apenas nos preparativos das refeições, mas também assumem papéis à frente da
organização do grupo.
Estes foliões são muito caipiras, o que percebo primeiramente pelo sotaque
de suas falas, pelos seus valores religiosos, pela solidariedade e pelos vínculos
com a terra e com a moda de viola.
104
5.3. Memórias de carreiros caipiras
Em função do meu vínculo com o meu avô esbocei uma pauta de roteiro para
um vídeo em que eu retrataria a minha relação com ele, sua memória e seu
trabalho com as esculturas, com destaque para as do carro de bois. Comecei a
pesquisar sobre a existência de agricultores que mantinham manejos tendo como
meio de transporte e ferramenta de trabalho o carro de bois. A primeira notícia que
tive foi “das bandas” de Minas Gerais, através de um amigo -Admilson Irio- que
sabia não de um agricultor mas de vários deles que se reuniam uma vez por
ano em um evento no distrito de Macuco, do município de Itumirim. Pois bem, em
2004 estive lá quando me inspirei neste evento e ensaiei esta trova:
um carro de bois lá vai
gemendo lá no estradão
suas grandes rodas fazendo
profundas marcas no chão
101
Um carro de bois soa na paisagem, entre as montanhas de Minas ele
percorre estradas e levanta poeira: Fubá EAA!! Mimoso êta!!
Os que são de perto e os que se anteciparam ao horário ou os que
vieram resolver outras questões, já estão lá: a fila vai crescendo, ela varia de
largura, conforme a vizinhança vai se achegando.
O tempo pára na espera pelo início da missa, pára naquele encontro
com José, Pedro, Vicente, Sebastião. O tempo ganha a velocidade da luz e
traz notícias, causos e acontecimentos; novidades, informações e recados,
em conversas intimistas ou extrovertidas.
Da janela se acompanha a concentração de carros, se oferece uma
água, se toma um café, se toma notícia da comadre, da situação da lavoura,
da colheita do café.
No distrito de Macuco, Minas Gerais, os carreiros se encontram no mês
de julho para pedir a bênção ao padroeiro São Sebastião e por todo o dia
101
Verso da música Poeira, anexo A.
105
festejar. É gente de toda região: de Itumirim, de Rosário, de Lavras, de tantos
lugares e serras e seus pequenos sítios. A cidade tem mais que os quatros
pontos cardeais: de todos eles chegam carreiros. A cidade é uma toada só,
ao norte a rua faz divisa com céu e a sul uma linha sinuosa de morros e
depois o céu novamente.
Era a primeira vez que ouvia o som do carro de bois com seu eco na
paisagem. Conhecia apenas as miniaturas em madeira que meu avô fazia e
que tinha inclusive o carreiro tocando a boiada, não o carreiro suado,
desfigurado pelo trabalho, não! um carreiro, como aquele que estava ali na
festa do Carro de bois de Macuco, um carreiro alinhado, camisa ajeitada, o
cinto de couro e a palha de fumo no bolso de trás da calça de linho. O
carreiro em seu pedestal, tocando o carro.
Carreiro: serviço pesado, serviço de homem, jovens e adultos; os
meninos aprendem o ofício equilibrando a vara de ferrão, mas sabem usar
o chapéu.
Esta memória não é ficcional: é revivida. Fora do dia deste encontro
talvez se esconda para se preservar, talvez tenha estabelecido limites de
convivência, contudo ela se confirma na homenagem feita durante a festa
aos marceneiros e outros que garantem a manutenção e a construção de
tantos carros.
O dia do encontro dos carros também é dia de festa profana, com sons
amplificados nos bares, nos carros e das bebidas gasosas. Ritual para uns,
folclore para outros: entre a fé e o passeio, oferendas e fotografias.
A vara de ferrão organiza os bois, indica os caminhos, incita-os ao
trabalho, que hoje é apenas o de se exibir: se exibir para as bênçãos, para os
cumpadre ou para as filhas deles. As varas cortam o cenário, formam linhas
que organizam em ângulos a distribuição dos homens e descansam braços
que pitam cigarros.
106
Neste dia, deu até para ouvir uma “Conversa de bois”
Guimarães Rosa
102
- Nós somos bois ... Bois-de-carro ... Os outros, que m em manadas,
para ficarem um tempo-das-águas pastando na invernada, sem trabalhar,
vivendo e pastando, e vão-se embora para deixar lugar aos novos que
chegam magros, esses todos não são como nós ...
- Eles não sabem que são bois ... Há também o homem.
- É, tem também o homem-do-pau-comprido-com-o-marinbondo-na-
ponta ...
– O homem me chifrou agora mesmo com o pau ...
Manoel Leandro da Silva
Figura 6: “Viagem pelos caminhos da Juréia”-2005
Em 2005 fiquei sabendo através de dois tios -Manoel e Gilberto
103
- de um
encontro de carreiros e carros de boi que acontecera na cidade da infância e
juventude deles -Juréia- distrito de Monte Belo/MG, cidade que meu avô também
freqüentara em sua juventude. A Primeira viagem pelos caminhos da Juréia
aconteceu por iniciativa de alguns moradores que desejavam reviver os momentos
102
Rosa, 1984, p.308.
103
Manoel Leandro da Silva e Gilberto Antonio Fabiano.
107
áureos da região. A memória de um momento histórico desta região de Minas
Gerais que teve seu auge na época em que a agricultura e as estradas de ferro
eram as "sinfonias" e os ritmos dos centros urbanos e dos meios rurais. Quando
este distrito era o lugar do entroncamento das estradas de ferro: as que vinham do
estado de São Paulo, trazendo produtos industrializados e outros, e as que
partiam para as cidades do estado de Minas Gerais e de onde vinham diversos
produtos agropecuários, sendo importante pólo econômico, sede de muitos
armazéns, comércios e hotéis. Cinqüenta e quatro carreiros da região foram para
esta festa para relatarem a memória que guardam daquela época e se
apresentaram com seus carros de bois vindos de diversas cidades da região:
Monte Belo, Areado, Alterosa, Muzambinho, Nova Rezende, entre outras. O
evento atraiu ainda a visita de muitos ex-moradores e outros que freqüentavam a
região na época: foi um sucesso e seus organizadores e outros se
comprometeram a repeti-lo. Combinamos todos -tios e avô- que no ano seguinte
iríamos prestigiar a Segunda viagem pelos caminhos da Juréia”, eu curiosa
para ouvir de viva voz do meu avô as histórias e sentir as emoções que o
acometeriam. Infelizmente meu avô não esteve bem de saúde por ocasião da
festa do ano de 2006 e não pode ir. De qualquer maneira segui para o que havia
programado com a câmera de filmagem e os parentes na equipe de produção.
Não estava com o meu carreiro tão querido, entretanto encontrei diversos
outros por , das mais diferentes idades que contaram histórias com tanta
vivacidade quanto a que eu esperava sentir do meu avô. Por ocasião deste evento
eu dominava grande parte do vocabulário que se usa na identificação de cada
parte do carro de bois o que me favoreceu bastante a aproximação e a
comunicação com os carreiros.
O evento seguiu em clima amistoso: carreiros e candeeiros, moradores de
agora e de antes reencontraram amigos, posaram para fotos empunhando a vara
de ferrão e passeando de carro de bois relembrando passagens da infância e
108
juventude, revendo as serras de Juréia que delineiam a paisagem. Para a maioria
é bastante sacrificante ir para esta festa: se deslocar de tão longe, por dias, sem
garantia de boas estruturas de alojamento e alimentação, sacrificando os bois,
enfrentando sol e chuva... mas se alguém fez referência a estas dificuldades foi só
para salientar o quanto vale a pena enfrentar todas elas para estar ali, junto com
os companheiros, relembrando os tempos idos. Contando os causos de agora e
os de sempre; trovado ou rimado, em tom épico ou romântico. Apresentando a
família e os amigos. Fazendo negócios e barganhas. Mostrando as habilidades e
os dons -canzis, cangas e ajojos de autoria própria
104
; os bois caracus, os
malhados e os mestiços. Dizendo o nome de cada animal que ainda que sendo de
trabalho ou para exibição, é também de estimação. Trocando conhecimentos: de
uma localidade para outra as práticas são diferentes, as melhores madeiras para o
chumaço, a que não deixa a peça queimar com a pressão do peso, a que faz o
carro cantar melhor.
O mundo real apaga-se de uma só vez, quando se vai viver na casa da
lembrança. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa natal, a
casa de intimidade absoluta, a casa onde se adquiriu o sentido da intimidade?
... ela é mais do que uma lembrança ... é a nossa casa onírica. (BACHELARD,
1990, p. 75).
É neste clima onírico que se pode ouvir novamente o carro de bois cantar em
meio ao proseio de carreiros e mugidos de bois. Onírico porque nos remete a
outro tempo tanto material -a madeira, o couro-, quanto histórico e humano,
quando a proximidade com a natureza era maior. Quando os recursos eram os
que estavam disponíveis no local onde se vivia, em função do que se tinha um
entrosamento maior com este espaço e certamente se cuidava melhor dele.
Muitos dos participantes são sitiantes da região e ostentam carros de bois
puxados por até cinco juntas (dez bois), veículos que exigem muita habilidade
104
No anexo J, a fotografia de uma das esculturas do Sr. Pedro com a identificação de diversas
partes de um carro de bois.
109
para serem conduzidos. Todos empunham a vara de ferrão e muitos demonstram
domínio dos animais na condução dos carros. Apesar da maioria ser mais velha,
havia muitos jovens e a maioria, dos jovens e dos velhos, usava chapéu de
cowboy” -alto de aba larga e curvada- e cintas com fivelas de metal, contudo, o
cigarro que pitavam era de palha.
Manoel Leandro da Silva
Figura 7: “II Viagem pelos caminhos da Juréia”-2006
Parece que todos se sentem responsáveis pelo evento, tanto os
organizadores quanto cada um dos participantes, assim como declara o Sr.
Maurílio um dos carreiros do evento:
nós anda até 100 kilômetros pra ir no desfile, que a gente gosta, se não for
nós, a turma, não vai fazê a festa.
105
Para muitos o evento é um “sonho que virou realidade”. Mauro Roberto
Martins, um dos organizadores do evento, professor de história, contextualiza para
105
Transcrições que fiz a partir das filmagens do evento.
110
nós (a equipe) a festa e o momento histórico ao qual ela se remete e também
como ela começou:
Um dia encontrei com o Luiz Carlos, vereador de Monte Belo, e ele disse “se
ocê tem esse sonho, esse sonho não é teu, é nosso” nós realizamos ano
passado com sucesso ... queremos resgatar a história do distrito de Juréia.
Houve exposição de fotos e artigos de época em um museu improvisado em
uma das casas antigas de Juréia. O museu em si uma certa historicidade ao
evento com as fotos dos vagões de trem e das estações onde se percebe a
movimentação de muita gente. Fotos de um dos momentos dramáticos na vida do
lugar, quando houve uma enchente que inundou e derrubou várias construções,
inclusive uma da Fábrica Polenghi, que desde essa época saiu desta
localidade
106
. A montagem do museu é bastante informal, não havendo nenhum
tipo de organização cronológica ou temática na disposição das peças, dos artigos
de jornais, documentos e fotos.
Na abertura oficial do evento tocou-se o Hino Nacional, sem que muita
cerimônia se fizesse, poucos foram os que pararam o que estavam fazendo para
cantá-lo. Os cavaleiros que estavam presentes desfilaram, com três deles à frente
empunhando as bandeiras do Brasil, de Minas Gerais e do município de Monte
Belo. Dentre estes cavaleiros, que estavam nesta posição de destaque, um era
fazendeiro e o outro filho de um médico famoso. Este destaque para pessoas de
classe social e econômica mais alta leva-me a pensar no evento reproduzindo as
estruturas da sociedade local, que ainda que aproxime os que são das mais
diferentes classes sociais, mantém uma divisão hierárquica. Observo nestes fatos,
assim como em outros, como a montagem do museu, por exemplo, uma tendência
observada por Ecléa Bosi: a valorização da história oficial celebrativa”, ainda que
não perceba que isto aconteça no caso deste evento em detrimento das demais
formas de lembranças” (BOSI, 1999, p.18). Em seguida houve o desfile dos
106
O que fez com que decaísse bastante as condições econômicas do distrito.
111
carreiros: cada um deles foi convidado pelo animador e organizadores da festa a
se apresentar, ocasião em recebiam uma lembrança da festa.
Os organizadores na hora de apontar as finalidades e motivações do evento
relacionam tanto as afetivas quanto as pragmáticas. Um dos objetivos apontados
por eles é que o evento se torne o marco de uma tradição que se quer resgatar e
que se quer manter -a do carro de bois-, bem como a lembrança da “idade de
ouro” da região, e também se referiram ao desejo de que se torne um atrativo
turístico local. No intuito de que o evento se consolide estabeleceram vários
atributos que contribuem para tanto, assim como a definição de uma data, um
feriado nacional, o que favorece o deslocamento de pessoas de fora para a
cidade; o local, o distrito de Juréia, onde nos bares se concentram visitantes e
turistas nos finais de semana, um lugar onde o estar representa para muitos um
retorno às origens; o comprometimento de vários carreiros de diferentes regiões
que estão responsáveis pela organização local do evento.
A maioria dos participantes da festa declara que o carro de bois é de uso
exclusivo para as festas que acontecem em várias cidades da região, que a
disposição e a motivação deles são a de não deixar que esta memória e tradição
se acabem. A maioria deles sabe, e com tranqüilidade, que esta memória não é
atualizável, que não é possível retomar as estradas com os carros de bois no dia-
a-dia. No entanto que se preservar os objetos como relíquias, os encontros
como momentos de recordação, de modo a celebrar uma memória que ainda
pulsa no coração de muitos dos participantes. Que pelo menos nestas
oportunidades os carros de bois deixem de ser objetos de decoração ou peças de
museu, saiam dos canteiros de jardim e cantem pelas serras de Minas.
O grupo é suporte da memória se nos identificamos com ele e fazemos nosso
seu passado, é preciso estar sempre confrontando, comunicando e recebendo
impressões para que nossas lembranças ganhem consistência. (BOSI, 1999,
p. 414).
112
Para além da afirmação de uma identidade ou da fruição de uma afetividade,
uma motivação que não é silenciosa mobilizando os participantes: que canta
alto, trocando a voz para grave ou agudo conforme as estradas das serras de
Minas Gerais, “não é Sr. Evaristo?”
Uh! a gente gosta, prá mim se não cantá acabou:
cada carro que canta de um jeito, que beleza não é?!
Solicitei ao Sr. João, um dos participantes da festa, que fosse o entrevistador
dos amigos que ele queria apresentar-me para que eu filmasse, os que haviam
feito a viagem junto com ele. Ele os reuniu e entre as apresentações e as
perguntas que ia fazendo ele formulava a sua idéia do que era a motivação de
cada um para participar do evento:
Sr. Geraldo, nestas caminhadas que a gente fazendo, hoje tá com quatro
dias que nós anda, é por ganhar dinheiro, ou porque gosta?
Esta ressalva de que a motivação deles não era da dimensão econômica eu
a ouvi e registrei mais duas vezes em minhas entrevistas e para mim foram
bastante significativas: primeiro porque foram espontâneas, segundo porque
reforçam as minhas percepções e expectativas em relação a estes agricultores (o
que abordarei nos capítulos 6, 7, 8 e 9).
Conforme informação de um dos organizadores da festa uma parcela de 10%
dos participantes ainda usa o carro e os bois em sua lida diária o que para estes
certamente é a garantia de sua continuidade como agricultores. Conversando com
um dos agricultores, que me foi apontado como um que fazia uso diário dos bois
em sua roça, este demonstrou bastante orgulho pela abordagem e falou sobre a
autonomia que tem com este meio de trabalho.
113
Kellen: cê usa o carro de bois na roça ainda?
Maurílio: ô! Direto, puxo café; minha mão de obra, o que tem de maquinário
pra fazê eu faço com meus bois: puxa café, ará terra, puxa milho, puxa arroz,
puxa lenha...
A minha percepção é a de que estas tradições são mantidas não devido à
falta de recursos e de condições de alguns para se modernizarem
tecnologicamente, mas porque aquelas guardam um conjunto de conhecimentos
construídos e respeitados, lhes permitem viver com autonomia e liberdade e ainda
pela carga de afeto em que está envolta.
Como esta memória pode se perpetuar sem o manejo diário? Sem que a
habilidade e a condição física estejam sendo construídas no dia-a-dia? As novas
tecnologias não dão o preparo físico necessário para que um homem tenha
condições de conduzir um carro de bois por tantos dias.
faz 50 anos que eu sou carreiro ... passava aquela vida, do do caso:
gostosa! e ali eu peguei a tradição do meu pai, ensinando meus netos ... eu
nesta luta e se Deus quisé (e o Sr. Roberto levanta o chapéu): isto vai
longe!
O carro de bois está ainda presente em todo o cenário nacional, não no
imaginário dos homens, mas também como meio de transporte, como instrumento
de trabalho para fins agrícolas e ainda como motivo de encontros de carreiros por
todo o Brasil: Pão de Açúcar/AL; Santana do Ipanema/AL; Tomar do
Geru/Aracajú/SE; Caldas/MG; Macuco/ Itumirim/MG; Formiga/MG; Juréia/Monte
Belo/MG; Parque da Água Branca/São Paulo/SP; São Francisco Xavier/SP;
Trindade/GO
107
.
107
Algumas destas cidades eu identifiquei em função de uma pesquisa que fiz na Internet a
qual não esgotei, pois a quantidade de opções eram muitas; algumas foram anunciadas no
Globo Rural e outras eu soube através de contatos pessoais.
114
Através do tio Manoel soube do site
108
“Guimarães Rosa Lugares”, um
projeto educativo realizado na cidade Morro da Garça/ MG, que tem por objetivo:
“traçar com os habitantes do sertão roseano (mas também, com um universo
mais amplo de seus leitores, oriundos de outros cantos), os mapas dos
lugares da história local, na trilha dos lugares descobertos nas estórias de
Guimarães Rosa.” (grifos no original)
109
Participam deste projeto professores da Universidade de São Paulo/USP e
outros profissionais como dançarinos e artistas plásticos, os quais desenvolveram
diversas atividades nesta cidade e outras do entorno que compõe o circuito
“Guimarães Rosa”. Uma das atividades desenvolvida foi “Carro de bois
temperamentos dos bois e das madeiras” que teve como objetivo, discutido com
os participantes:
o reconhecimento de um ofício em extinção, de um domínio técnico, de um
engenho, um conhecimento construído em seu lugar, mas também, um
conhecimento que nos ensina a compreender o lugar. Um artefato que reúne
técnica e destreza, sabedoria que lida com os temperamentos das madeiras -
nas árvores presentes na região - e com os temperamentos dos bois, pois
quem constrói, como mestre Manuel, também conduz.
110
Destaco este projeto no conjunto das memórias coletivas desta pesquisa,
pois ilustra mais uma iniciativa e uma preocupação em registrar e documentar
uma tecnologia que está vinculada a um conjunto de fatores em extinção tais
como a poesia de Paulo César Soares descreve (citada abaixo). Uma pesquisa
histórica citada no contexto da oficina procurou identificar os primórdios do uso
desta tecnologia e as especificidades dela, bem como permite apontar a
singularidade da arquitetura do carro de bois do Mestre Manuel Alexandre,
célebre construtor de carros da região
111
, que foi responsável pela oficina de
finalização e montagem de um carro. A oficina propiciou aos participantes
108
www.guimaraesrosalugares.com.br.
109
Citado no link “O "Método de Rosa: a Leitura da Vida”do site do projeto acima referido.
110
Citado no link “Carro de bois- os temperamentos dos bois e das madeiras II”, idem.
111
Citado no link “Carro de bois- os temperamentos dos bois e das madeiras”, ibidem.
115
conhecer cada detalhe que determina o bom funcionamento e a beleza de um
carro, com destaque para o puro sentimento estéticodeste Senhor que riscava
com a unha a curva ideal da cheda (a mesa base do carro- identificada no anexo
J).
Lamento de carreiro
112
(Paulo César Soares)
Carro de bois que canta E toda gente se levanta Para ver ele passar Na
verdade ele não canta Tem presa na garganta Uma vontade de gritar
De gritar cadê o sertão Cadê até mesmo o chão Para que eu possa
marcar O chão hoje é asfalto Já não vejo lá no alto A poeira levantar
Sou feito de madeira de lei Muitas delas eu o sei Como o nome falar
Umas porque são caras Outras estão tão raras Que tá difícil encontrar
Sucupira, folha-de-bolo, amargoso, jacarandá Peroba, pau-barco, pau-
ferro, jatobá Bálsamo, pau-d´óleo, aroeira, tingui Pau-terra, mangue, faveira
E alguns outros que eu esqueci
O pior de tudo, o moço Que um carro cantando grosso difícil
escutar Porque quando o carro se esbandaia Qualquer coisa atrapalha Não
tá tendo quem consertar
Os nossos meninos Já seguem outro destino Querem saber só de
estudar Preferem computador Essas coisas, meu Senhor Que nem sei como
explicar
Enquanto Deus for abençoando Neste chão eu for andando Eu quero
carrear Mas vejo com desespero Carro veio companheiro Vamos ter que
aposentar
Canta, carro veio, canta Solta sua garganta Com toda força que você
tem Porque eu sei que você agora Não canta, mas chora Como estou
chorando também
5.4. As memórias do avô: o Sr. Pedro
Para falar da memória do meu avô destaco o quanto a leitura do livro de
Eclea Bosi influenciou a sua compreensão. Leitura que eu fiz quase que
dialogando com esta autora, pensando nas minhas experiências e vivências com
112
Citado no link “Carro de bois- os temperamentos dos bois e das madeiras”, ibidem.
116
ele, bem como fazendo paralelos com as que tive com os assentados, os
espoliados”, na expressão de Marilena Chauí
113
.
[...] Como deveria ser uma sociedade para que na velhice o homem
permaneça um homem?
A resposta que Eclea Bosi dá é a de Simone de Beauvoir:
Seria preciso que ele sempre tivesse sido tratado como homem.
(BOSI, 1999, p. 81).
Para mim esta é a citação “por excelência” deste livro: repeti-a para diversos
amigos logo depois que terminei sua leitura. Convivo com muitas pessoas que
deveriam ser tratadas como homens! E ser tratado como homem não só em
função das suas necessidades econômicas, mas especialmente as humanas.
uma tendência em relação aos velhos de se desqualificar suas perspectivas de
vida em função das diferenças que são cada vez maiores de uma geração para
outra. Isso se agrava em função de um processo de individualização crescente em
nossa sociedade, em que as gerações mais novas em geral não consultam e nem
consideram seus pares em suas tomadas de decisão. Ser tratado como homem é
ser respeitado pelo outro e ser considerado pela sociedade em suas
necessidades, o que é difícil acontecer nas condições de disputa social vigente.
Sempre gostei de estar com pessoas mais velhas. Gosto de ouvir suas
histórias e experiências. Para mim estão carregadas de sabedoria, assim como
observa Eclea Bosi:
Mas o ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a
qual está maduro, a religiosa função de unir o começo e o fim. A consciência
de ter suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma
ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha finalidade se encontra
ouvidos atentos, ressonância. (BOSI, 1999, p. 22).
Eclea Bosi se questiona se “a senilidade é o efeito da seniscência ou um
produto artificial da sociedade que rejeita os velhos” (BOSI, 1999, p.78). Não é
113
Autora do prefácio do livro: BOSI, 1999, p.23.
117
que as idéias dos velhos sejam retrógradas, mas é que uma tendência de se
poupar os velhos de discussões e, conseqüentemente, de formas que os
possibilitem verificar e, se for o caso, atualizar suas concepções. A minha
presença junto ao provavelmente motivou muitas recordações, ajudou-o a
sistematizá-las e atualizá-las.
Nos encontros com o meu avô o assunto principal é a terra, a roça e as
Minas Gerais, temas que são os da sua juventude, do seu passado (ele chegou
em Campinas em 1960, quando já tinha 42 anos). Mais do que compartilhar
conhecimentos ou histórias, nossas conversas são de troca de afetividade e de
atenção de um para o outro.
O único desejo que ele manifesta nos dias de hoje é o de visitar os entes
queridos, o único passeio que deseja fazer é para Areado/MG, sua terra natal,
tomar notícias de como vão todos e relembrar os ocorridos. Ele também gosta de
ir aos bailes encontrar amigos.
Percebo no um desejo e um esforço por compartilhar suas memórias:
ele tem um caderno onde as escreve com muito sacrifício, pois além de não ser
alfabetizado ele está perdendo a precisão da articulação das mãos. Ao mesmo
tempo em que as valoriza quando as registra, ele nega a importância delas
desqualificando-as como bobas”, coisas de io (P.H.P.). Creio que ele não
imaginava que as mesmas pudessem vir a ser alvo de atenção.
As suas memórias estão marcadas de ressentimentos e remorsos que não
sei em que medida carrega seus relatos de acusações e de dramas. No entanto,
ele encontrou um sentido para elas -o destino- ao qual ele se referiu ao narrar
sobre uma ex-namorada, “Maria Amélia”, que fora muito querida, e sobre a
armação para matar o padrasto, que transcrevo aqui (página original escaneada,
anexo K)
118
Vou contar a história da minha vida, eu fiquei sem meu pai eu tinha seis anos
eu fui criado nas fazenda, eu tinha 14 anos fui morar com o Vicente, porque eu
apanhei do meu padrasto, minha mãe casou com um demônio, ele batia no
filho pra matar, ele era tão ruim, ele tinha um filho com 13 anos chamava José,
nós dois tinha a mesma idade, cada um tinha um facão, nós afiava a faca todo
dia, nós tava preparado, mas infelizmente José ficou doente e morreu, o filho
apanhava demais, ele falou que quando ele viesse bater em nós, nós ia matar
o pai, mas passado uns dias ele teve tuberculose, morreu, se ele não
morresse nós ia faze burrada, depois que o José morreu eu fui morar com o
Vicente. (Diário de Pedro Honório Paulino, p.22)
Na transcrição escrita de suas memórias meu avô mantém algumas
concordâncias que são peculiares de sua oralidade, bem como repete e/ou pula
palavras, devido à sua dificuldade com a escrita. Seu conjunto de registro não tem
nenhum tipo de seqüência cronológica ou temática. Na transcrição que fiz alguns
elementos se perdem: os que eliminei quando mantive a lógica da escrita do que
imagino ter compreendido e do que conferi com o que conheço de sua história de
vida.
Que orgulho eu percebi no quando levei impressas suas memórias:
você hem?!” (P.H.P.). O passado que ele narra é no mesmo tempo/ espaço
recordação de alegrias e tristezas, abundâncias e tragédias: ele fala da fartura de
alimento, da solidariedade, das brincadeiras e das festas em que eles
amanheciam bailando, bem como da violência, da expropriação e das sofridas
migrações. O que em alguns momentos ele narra como sendo o alimento da
pobreza -como os produtos feitos à base de milho- hoje é riqueza, é alimento
forte (P.H.P.): ele toma mingau de fubá todos os dias. Naquele tempo era um
martírio comer a mesma coisa todos os dias, hoje é um prazer: os valores
mudaram, mais que tudo saúde é o bem mais precioso que um velho pode
desejar. São dimensões que a princípio podem parecer ambíguas: ele relativiza os
valores de sua memória em função das circunstâncias vividas. Em sua infância o
milho era abundante na mesa da família, entretanto não gerava renda suficiente
para que eles pudessem adquirir outros produtos como sapatos, por exemplo.
119
Contudo foi o milho que possibilitou o sustento e a saúde da família naquele
momento (o milho e as frutas frescas do quintal... ele nunca coloca as frutas em
sua casa na geladeira “elas perdem o sabor” (P.H.P.)).
Meu avô trabalhou como carpinteiro muito tempo depois que chegou no
estado de São Paulo, a princípio na construção da represa feita pela empresa
“Camargo Correia” em Caconde e depois na construção civil em Campinas. Antes
disto trabalhara muito tempo cortando madeira e lenha que vendia para os
fazendeiros e na cidade:
“levava lenha para Caconde, todo dia, sozinho, sozinho e Deus”
Hoje ele faz esculturas relembrando estes tempos, se preocupando em
reproduzir cada detalhe. Nestes detalhes meu avô vive intensamente suas
recordações. Em suas miniaturas a memória ganha força quando passa pelo
trabalho feito com as mãos, quando através delas ele esculpi com a determinação
de reproduzir um carro de bois que poderia percorrer as estradas, orgulhoso de
seu canto... É possível que o Sr. Pedro, cada vez que termina uma de suas
esculturas, que a coloca sobre seu pedestal, imagine qual seria o som que aquele
carro faria. “A matéria seria, na verdade, a única fronteira que o espírito pode
conhecer”. (BOSI, 1999, p. 54)
O carreiro construído pelo meu avô é um homem digno, sereno, que mantém
sua vara de ferrão de como se tudo estivesse sob controle: como se ele fosse
“dono da situação”. Não ilustra os tantos contratempos vivenciados em sua vida,
aquele momento difícil que determinou a sua saída do meio rural e a busca de
melhores condições de vida nos centros urbanos.
“Ao invés de sonhar com o que fomos, sonhamos com o que deveríamos ter
sido...” (BACHELARD, 1990, p. 77).
120
Isabela Soares
Figura 8: Festa Carro de bois – Macuco/MG
Meu avô ficou emocionado quando mostrei as fotos da festa do carro de bois
de Macuco/MG (2004). Lembrou-se com arrependimento o quanto judiava dos
bois: quando estes não queriam continuar viagem "cutucava-os com a lança, que
até sangrava..." (P.H.P.). Contou ainda que tinham uma relação tão afetiva com os
bois que o tinha coragem de matá-los para comer; vendia-os para outros e
estes, por sua vez, vendiam para os abatedouros. Segundo BRANDÃO (1999, p.
74) estas relações afetivas com animais sugerem o direito à vida: “os bichos são
singular e familiarmente tal como as pessoas” e que “possuem a metáfora do
exagero das virtudes e defeitos que as mulheres e os homens possuem, ou
deveriam possuir ou evitar”. (BRANDÃO 1999, p. 135).
Os relatos do “vô” sobre as relações que estabeleciam com os animais
sempre fazem referência às formas de ser do homem. Como o cangar
114
o boi que
é como o casamento para o homem:
quem vai casar, nós falava: vai coloca a canga...porque tem que mudá tudo
né? ... é o sistema ... prá honesto é a canga no pescoço, tem que obedece
... isso é a verdade.
114
Ato de colocar a canga no boi. Canga é um objeto de madeira colocado sobre os pescoços
dos bois de cada junta (Verificar anexo J).
121
ou quando a porca suporta o castramento voltando a ter uma atividade
normal logo em seguida, coragem muito maior que a de qualquer homem, ou
ainda:
macaco abria espiga que nem gente fazia ... macaco não pode caçá ... é bicho
inteligente ... acho que ninguém te explicou isso ... é que eu sou da roça.
Além do carro de bois ele também esculpi rodas de fiar, monjolos, silãos de
montaria para mulher, as grandes serras que eram usadas para cortar toras de
madeira. Além dos objetos, ilustrando como se usava cada um deles, estão os
homens e as mulheres, pois os objetos não são compreensíveis sem que uma
mão os ponha em movimento, sem que um faça uma roda circular, sem que
dois homens façam uma serra correr, ou sem que uma água corrente faça uma
roda girar e um pilão bater.
Meu avô manteve diversos hábitos que o remetem à sua vida na roça: um
fogão de lenha onde gosta de cozinhar feijão; uma moenda para fazer caldo de
cana quando reúne a família; um pilão para fazer paçoca de amendoim com
farinha de milho; um baralho para jogar truco com os amigos; um quintal onde ele
planta algumas ervas medicinais, onde tem alguns pés de fruta e uma árvore “pau
d´óleo” que é a que fornece a madeira para a maioria das peças de um carro de
bois, madeira que ele sabe que não chegará a usar, pois quando estiver apta para
virar um carro: eu já estarei debaixo da terra muito tempo (P.H.P.). A sua
casa se fecha em um conjunto de espaços que se complementam e que
possibilitam que alguns destes hábitos e conhecimentos se mantenham, assim
como a trouxinha de cinzas que ele faz para engrossar o caldo da canjica: é
preciso ter um fogão de lenha para que se possam ter cinzas disponíveis.
Sua casa está repleta de objetos biográficos (BOSI, 1999, p. 441), são
relíquias personalizadas: têm nomes, origem (seja a da lembrança de quem deu
122
ou vendeu ou do lugar de onde vem), idade (há datas anotadas em todos eles:
uma forma de saber a duração e avaliar a qualidade, qualidade que não tem os
objetos de hoje, e pode ser que durem pela eternidade...).
“O que se poderá igualar à companhia das coisas que envelhecem conosco?
“(BOSI, 1999, p. 441).
Alguns destes objetos são fotografias, santos, quadros e calendários.
Fotografias daquele tempo em que elas eram únicas, com molduras laqueadas e
rebuscadas; quadro da Santa Ceia que é quase uma continuidade da mesa de
jantar, quadros de Santos e Santinhos abençoando cada cômodo da casa; vários
quadros de dois de seus filhos que são pintores -Célia e Juscelino
115
- quadros que
homenageiam a Mater noster Margarida ora pro nobise a vida no campo.
Os tantos anos que ele contabiliza para cada um destes objetos dobram de valor
em função da afetividade em que estão envoltos: cada um deles o remete a
alguém especial ou a alguma passagem de sua vida. Em sua casa vários
calendários e relógios: a marcação do tempo, a disciplina, o horário dos remédios,
da missa, do programa de rádio preferido “Beira da Mata”
116
, os dias santos e os
domingos, dias que devem ser resguardados.
O conjunto de memórias que meu avô expressa remetem-me
às que eu identifico como sendo as da cultura caipira.
Voltando da Segunda viagem pelos caminhos da Juréia mostrei as
gravações para ele e seu irmão -tio Vicente-, na companhia ainda da sua
namorada a Ernesta e da prima-tia a Maria: o clima que se instalou na sala foi
como se estivéssemos no evento perto dos carreiros e dos carros que apareciam
na televisão, relembrando as suas próprias experiências, espantados com o uso
115
Célia Paulino da Silva e ]uscelino Paulino.
116
Programa da Rádio Brasil Central AM de segunda à sábado das 5:00-7:00h da manhã,
apresentado por João Veloso.
123
de oito bois na aração, satisfeitos com a explicação que o Sr. Moreno deu para
tanto, e bastante críticos em relação à forma como um outro personagem aprontou
o cigarro de palha.
Nem todas as suas memórias são revisitadas a partir das “idéias de hoje”
(BOSI, 1999:55), pois ele é bastante crítico em relação a vários comportamentos
que ele observa nas gerações mais novas: a falta de respeito para com os mais
velhos e a falta de religiosidade (sendo a máxima expressão destas o fato de que
ninguém mais pede a bênção hoje em dia(P.H.P.)); o descuido com as coisas;
os gastos desnecessários, ou, dizendo à minha maneira, o consumo excessivo.
Algumas de suas posturas, ele mudou, como em relação ao movimento de luta
pela terra, que ele condenava em função de sua concepção e valores de
propriedade: ele até já me acompanhou duas vezes em visitas aos assentamentos
em que trabalho.
Saulo Laranjeira
117
Eu costumo dizer que para quem é das Minas Gerais o duro é sair de
casa e mudar de lugar, no entanto saímos; saí de casa quem não sai é
caramujo, mesmo assim tenho visto alguns correndo trechos levando casa e
tudo naquele lentamente que marca os bichos lentos, mas, apesar de tudo,
obstinados em suas viagens.
Se caramujo vai daqui ali viajou dez mundos que dirá gente que não
leva a casa nas costas, mas sim carrega seus vivos e mortos plantados e
colhidos, mais dezenas de memórias na cabeça. Assim eu corro trecho
equilibrando no pico da memória meus idos mineiros onde me fiz homem.
Onde vou carrego, todo um vale vai a meu arreboque assim como o tiro
desta matolagem -Vale do Jequitinhonha- eu sempre trago comigo pra
eventualidade de ter que mostrar que sou gente e não bicho.
Pois do que canto, do que falo, tudo são memórias: arte brasileira,
misteriosa e que eu nunca acabarei de desvendar em seus brilhos mágicos
nem mesmo na décima vida que terei no mesmo renascer mineiro. nasci
mais de cem vezes, Deus quis no mesmo lugar. Todas as vidas juntadas, me
fizeram ser este palhaço, cantador que corre trecho levando os causos de
um pequeno vale na imensidão de ser brasileiro.
117
Saulo Laranjeira declamou este texto no Programa “Sr. Brasil”, da TV Cultura, em 4/7/2006.
125
6. TERRA: DA CULTURA AGRÍCOLA, DA CULTURA HUMANA
A terra desolada
Que demos nós?
Amigo, o sangue em meu coração se agita
A tremenda ousadia de um momento de entrega
Que um século de prudência jamais revogará
Por isso, e por isso apenas, existimos
T.S.Eliot
A agricultura é uma forma de conhecimento que tem diversas dimensões:
social, econômica, científica, política e simbólica. Esta forma de conhecimento
118
foi o que possibilitou ao ser humano que ele se fixasse em um território, criando-se
assim outros vínculos entre os indivíduos e deles para com o meio ambiente. Ao
mesmo tempo em que o ser humano descobre a agricultura ele passa a enterrar
os seus mortos, dando um outro significado para a existência
119
. A agricultura é
uma forma de tecnologia que vem sendo desvendada, criada e reinventada,
ultrapassando os limites do visível, chegando a modificar a célula originária de sua
espécie
120
. Muitos homens vivem com esta tecnologia, tirando dela o seu sustento,
a sua fonte de renda econômica e o sentido de sua existência.
Para falar dos trabalhadores rurais que estou retratando em minha pesquisa
relativizo ou generalizo algumas impressões pessoais e formulo algumas imagens,
as quais venho percebendo e construindo na minha convivência com eles em
função da minha rotina de trabalho com agricultores, pesquisadores e profissionais
da área, como também em função da leitura de alguns autores, dentre os quais
destaco novamente: Maria Sylvia Franco, Antonio Cândido, José de Souza
Martins, Sonia Bergamasco, Célia Cassiano, Iria Zanoni Gomes e Carlos
Rodrigues Brandão. Estas impressões parecem-me ambíguas muitas vezes, frutos
118
O conhecimento dos ciclos reprodutivos e produtivos das plantas permitiu que o homem
ganhasse autonomia no que se refere ao abastecimento alimentar e satisfação de suas
necessidades em geral.
119
Segundo estudos de Jacques Cauvin referidos no Seminário proferido pelo Prof.Dr.Jean-
Louis Léonhardt, referido acima.
120
Assim como pelas pesquisas que são feitas sobre transgênicos.
126
de uma realidade complexa e dinâmica, ou talvez da limitação de uma forma de
compreensão que ainda não superou a dualidade de suas percepções, de forma
que quando se depara com a dialética do duro e do mole
121
: a resistência e a
afetividade a um só tempo, estranha e desconhece e nem sempre consegue
vislumbrar a síntese.
A condição humana é que eu procuro compreender e reconstruo-a com
“pinceladas” da história, da antropologia, da sociologia, da literatura e da vida em
geral. A leitura de alguns pensadores sobre o universo caipira e sobre a questão
da terra abriu vários horizontes e perspectivas para a minha pesquisa e favoreceu
a compreensão das questões simbólicas que permeiam estes universos.
Retrato histórias e imagens da agricultura e outras relativas às questões da
terra no Brasil para contextualizar o imaginário da cultura caipira e dos que se
vinculam aos movimentos sociais de luta pela terra. Estas histórias e imagens
assim como as narradas e analisadas por Maria Sylvia Franco e Antonio Cândido,
ainda que se refiram a circunstâncias do século XIX e do início do século XX, são
relevantes, primeiro porque em nossa sociedade ainda se reproduzem muitas
relações injustas -autoritárias e de submissão, de conivência e de exploração-. As
condições que estavam dadas aos agricultores retratados por estes autores
persistem em nossa sociedade, tais como: falta de uma política agrícola eficiente
para o pequeno agricultor, crises econômicas, migrações, dificuldades de
organização. Em segundo lugar porque estas histórias e imagens, e aqui me refiro
não às de Maria Sylvia e Antonio ndido, mas também as dos demais
autores, favoreceram minha compreensão das motivações e características dos
caipiras e as posturas e atitudes dos agricultores com os quais convivo,
principalmente as que julgava como sendo limitações.
121
Termos de Bachelard para designar a dialética que rege todas as imagens da matéria
2001b, p.8.
127
O trabalho que venho desenvolvendo no Laboratório de Comunicação de
Pesquisas Ambientais e Agrícolas/TERRAMÃE
122
está voltado para agricultores
familiares assentados em programas de Reforma Agrária. Tal opção política
justificamos
123
em função destes representarem grande parcela da população rural
brasileira; por serem os mais carentes em termos de tecnologia e de organização
em geral; e porque a Universidade enquanto instituição pública deve contribuir
para o desenvolvimento social e para a democratização do conhecimento.
Na disciplina de graduação "Sociologia e Extensão Rural" que acompanho, e
na qual estou responsável pelo trabalho de campo dos alunos, sempre que se
justificar e contextualizar as circunstâncias atuais e as vividas que estes
agricultores enfrentaram e enfrentam (que de um modo geral dificultam a
produção e a produtividade dentro dos padrões comerciais) bem como falamos
sobre as diferenças culturais, às quais me referi quando abordei a questão da
oralidade.
O trabalho com assentamentos rurais e com a agricultura familiar o para
mim opções estéticas e éticas: é a que desenha e recorta a paisagem
embelezando o horizonte onde se avista gente morando -famílias inteiras, crianças
e velhos- onde se agradece pelos frutos recebidos, onde se ouve pássaros cantar,
a lua nascer e onde histórias de amor acontecem, assim como muitas das
narradas por Valdomiro Silveira em suas Leréias
124
ou por Rolando Boldrin em
seu Programa Sr.Brasil da TV Cultura. Nos dias de hoje existem resquícios
destas aquarelas, assim como observou Nazareth Wanderley
125
: o esvaziamento
da terra, o desmatamento, a ausência de pássaros e de pessoas, o silêncio; neste
sentido também fez uma observação alguém da família do Sr. José Fernandes,
122
Vinculado à área de Sociologia e Extensão Rural - FEAGRI/UNICAMP.
123
Junto com as minhas colegas de trabalho: Sonia M.P.P. Bergamasco e a Julieta T. Aier
Oliveira.
124
SILVEIRA, 1975.
125
Por ocasião da sua participação na mesa de abertura da I Jornada de Assentamentos
Rurais, FEAGRI/UNICAMP, junho de 2003.
128
um dos interlocutores de Carlos Rodrigues Brandão, que se pergunta sobre
quando o campo vai ficar vazio de gente e virá a ser invadido por aqueles que
não o tendo criado, não saberão preservar o que até aqui o fez ser o melhor
lugar”. (BRANDÃO, 1999, p. 147, grifos da autora).
O rural foi associado como sendo o lugar de atraso, como inculto. Hoje na
era do agronegócio, vem sendo identificado como a alavanca da economia
nacional, ainda que se sustente a partir de relações de trabalho servis e até
mesmo escravistas, tal como ainda se ouve comentar nos noticiários,
especialmente no corte de cana, em um estado tão “desenvolvido” como São
Paulo.
É da agricultura e do rural que dá sentido à existência que trato aqui. Sentido
que se constrói séculos, que atravessa continentes, que se mistura com outros
sentidos, outros deuses, outros costumes e que se revitaliza e se reconstrói nas
adversidades e transformações do mundo. Uma agricultura retratada por diversos
autores, além dos que citei anteriormente relaciono ainda: Ellen Woortmann,
Klaas Woortmann, Maria Ap. Moraes e Silva e Sidney Valadares Pimentel.
Autores que, talvez, motivados por uma busca pessoal de sentidos para as suas
vidas, estudam os modos de vida destes agricultores procurando a lógica do que
lhes parece ser uma sabedoria ou a compreensão do que seja este mundo, o que
eles depreendem das relações simbólicas que percebem nos sistemas que eles
vão estruturando com os seus estudos. Não afirmo qualquer tipo de
intencionalidade na pesquisa de cada um deles, no entanto identifico no trabalho
de alguns deles perspectivas que vislumbro no meu.
Sinto uma grande satisfação cada vez que percebo que a realização de
muitos dos agricultores se na relação que vivenciam no seu cotidiano com a
terra e com a agricultura. Tranqüilizo-me em meu posicionamento o subjetivo
trazendo a autoridade de um autor como Carlos Rodrigues Brandão e citando um
129
trecho do seu livro O afeto da terrano qual ele se questiona sobre um possível
exagero, talvez peculiar à sua profissão de antropólogo, e a qual ele caracteriza
como uma economia de explicaçõespara uma ética de compreensõesna qual
um jogo de opostos em que acontece a passagem do valor de uso para o
uso como valor”, e na qual ele se ocupou
126
[...] bastante em acentuar a dimensão não diretamente pragmática, não
imediatamente dirigida a uma lógica utilitária, nos sentimentos, nos
imaginários, nos códigos relacionais e nas ações diretas de meus
interlocutores. (BRANDÃO, 1999, p. 163).
Há um desejo de retorno e permanência na terra, que se configura em
instituições como o MST, o MPA Movimento de Pequenos Agricultores e outros,
em que trabalhadores e agricultores familiares se mobilizam para reivindicarem
melhores condições para a sua vida e para a produção no campo. Para muitos
dos agricultores com os quais convivo a terra representa espaço de decisão e de
criatividade; de liberdade e autonomia para desenvolver suas inspirações, as mais
profundas. Este desejo observa-se ainda pela revitalização da cultura caipira, que
tem como uma de suas características principais o elogio à vida do campo, e pela
valorização da terra como lugar de trabalho.
Para além das impressões claras e das satisfações grosseiras do instinto de
proprietário, há sonhos mais profundos, sonhos que querem enraizar-se.
(BACHELARD, 1990, p. 92, grifos da autora).
José de Souza Martins na abertura do Seminário “Caipira: Cultura,
Identidade e Mercado”
127
comentou sobre a dimensão simbólica do movimento
social de luta pela terra. A princípio estas dimensões pareciam-me ambíguas, pois
no universo da cultura caipira o sujeito está voltado para si e para a terra,
126
Brandão está se referindo ao trabalho de pesquisa que está descrevendo e analisando e
que foi realizado junto a pequenos agricultores da cidade de Bragança Paulista/SP.
127
Seminário organizado por professores e estudantes do “Grupo de pesquisa Música Popular:
história, produção e linguagem do Instituto de Artes/UNICAMP e pelo “Núcleo da Cultura
Caipira de Campinas”,
6 a 8 de outubro de 2003.
130
vinculado a ela pelo trabalho, o que ele compartilha no âmbito da vizinhança e da
comunidade com a qual convive, numa escala de tempo local(GOMES, 1995,
p.11); enquanto no universo de luta pela terra o enfoque é a política, para a qual o
vínculo com a terra é também uma estratégia para a transformação social e pela
defesa de ideais que se julgam universais numa escala dos grandes processos
históricos (GOMES, 1995, p.11). Para mim foi bastante oportuna a associação
dos temas neste evento, pois me possibilitou articular idéias que se esboçavam
em meu imaginário e favoreceu-me encontrar um caminho para perceber como eu
poderia compor uma imagem a partir destes universos. Uma imagem que associa
a simplicidade, a afetividade e coragem do caipira e a vontade de poder, do desejo
de transformação social e solidariedade do militante.
Será que narrarei estas imagens de forma a abrir uma porta para que
indivíduos de diferentes universos dialoguem? Será que esta imagem repercutirá
em outros indivíduos? Tenho vivido intensamente cada oportunidade que tenho de
estar com agricultores e militantes da luta pela terra, bem como com estudantes e
profissionais das áreas de agrárias e agronômicas, pois é na vivacidade desta
experiência que acredito poderei elaborar as imagens que darão força e
expressão à minha narrativa.
131
7. CULTURA CAIPIRA: A MINHA CULTURA
muitas dimensões que determinam diferentes universos culturais, assim
como o momento histórico em que se vive, o espaço geográfico-político, a religião
que se professa, os meios de comunicação, a classe social à qual se pertence, a
raça e as condições econômicas. Dimensões que em sua diversidade determinam
diferentes culturas. No entanto, cada uma destas dimensões e expressões
culturais não determina exclusivamente a forma de ser de um indivíduo.
Cultura para Antonio Arantes é a denominação que se dá a grupos sociais
que compartilham "um modo específico de comportar-se em relação aos outros
homens e à natureza" (ARANTES, 1990, p. 26), os quais se valem de códigos e
convenções simbólicas para constituir suas ações: "seja na esfera do trabalho, das
relações conjugais, da produção econômica ou artística, do sexo, da religião, das
formas de dominação e de solidariedade." (ARANTES, 1990, p. 34).
Dentre as tantas culturas possíveis de se identificar no universo rural, nos
estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Goiás e Mato Grosso encontra-se
uma que se denomina caipira. Cultura formada pela tradição portuguesa e
influenciada pela indígena e que se formou no seio da população pobre do meio
rural, influenciada pela atividade de bandeirantes, tropeiros e boiadeiros, homens
de espírito aventureiro e nômade e que se mantinham com pequenas provisões.
Cultura religiosa e festeira, que fazia até mesmo do trabalho um momento de
diversão, assim como eram os mutirões de plantio e colheita; que em seu tempo
de ócio conta causos, canta músicas, inventa brinquedos e brincadeiras,
"passatempos" que dão leveza para a vida. Cultura que se constrói a partir da
vivência com a fauna e a flora, em um ritmo que o homem caipira aprendeu com a
natureza e seus ancestrais, tendo elaborado um conjunto de práticas que
permitiram garantir a sua sobrevivência através do domínio da natureza pela
132
agricultura, caça e pesca. Este homem conhece “os temperamentos dos bois e
das madeiras”
128
, tendo sido possível a partir disto desenvolver a tecnologia dos
carros de bois. Conhece as plantas: as aromáticas, as medicinais, as de benzer,
as usadas nas armadilhas para peixes, as de lenha e as de tábua; aprendeu a
tecer balaios, a construir casas de adobe, a rezar o terço e a tocar viola, pois
nunca dispensa uma oportunidade de cantar suas desventuras. O caipira é um
homem entre esperto e tímido, orgulhoso e corajoso, que acredita nos outros
homens como parceiro para a "labuta" diária mesmo que este homem fosse o de
uma outra classe sócio-econômica, distinção que não lhe parecia cabível fazer,
que a sua sujeição era percebida como sendo natural (FRANCO, 1969, p.108).
Destaco novamente a leitura que fiz de Walter Ong (1998), pois me
favoreceu compreender melhor os valores e costumes dos que se vinculam à
cultura caipira, que é eminentemente oral. A partir da perspectiva que este estudo
proporcionou-me, as características desta cultura, as que descrevi acima, foram
perdendo assim a sua aura romântica. Neste estudo o autor caracteriza histórica e
bio-psicologicamente cada cultura, a oral e a escrita, as qualidades que se ganha
e que se perde, às quais me referi no capítulo 2. A partir deste estudo fui
compreendendo o esta cultura, mas também como me relaciono com ela,
enquanto alguém que pertence e que é ao mesmo tempo outro, o que favorece a
elaboração e aprofundamento das minhas reflexões.
Algumas das características descritas por este autor se confirmam na
pesquisa sobre comunicação feita por ARAÚJO, I e AZEVEDO, A M. A DE (1996)
129
A recepção de impressos, dio, vídeo e audiovisuais no meio ruralem
comunidades agrícolas do Nordeste. Estas pesquisadoras observam uma
tendência nas pessoas vinculadas a estas culturas: que sua percepção de mundo
acontece de um modo concreto e relativamente ao grupo ao qual pertencem.
128
Título da oficina oferecida dentro do Projeto “Guimarães Rosa: Lugares”.
129
Araújo, I.S. e Azevedo, A.M.A. (1996).
133
-falta de introspecção, de audácia analítica, de preocupação com a vontade
como tal, de uma percepção da diferença entre passado e futuro-
características da psique nas culturas orais não apenas do passado, mas até
mesmo nos dias de hoje. (ONG, 1998, p. 40).
A auto-avaliação se ajustava à avaliação do grupo (nós) e era então tratada
em termos das perspectivas dos outros. (ONG, 1998, p. 67).
A cultura caipira se firmou na época do auge da cultura cafeeira quando
apesar de prevalecer as formas de trabalho escravo, alguns conseguiram se
estabelecer como sitiantes e outros como empregados nas fazendas, mantendo
relações de compadrio e trocas de favores com fazendeiros e patrões abastados
de suas localidades. Este homem era uma pessoa que mantinha a sua
sobrevivência e inserção social prezando e valorizando as suas relações de
parentesco e vizinhança.
Assim viviam as pessoas vinculadas a esta cultura até que as relações que
pareciam igualitárias foram se tornando ambíguas e tensas. As circunstâncias
históricas e os fatos políticos que impulsionaram estes acontecimentos são dos
mais diversos tipos e foram estudados por Maria Sylvia Franco em um trabalho
que reconstituiu mais do que a história, o imaginário da sociedade da época. Com
as crises que assolam o país na década de 1930, os primeiros a "pagarem" pelas
dívidas
130
são os trabalhadores que eram considerados livres e o pagam com a
perda do trabalho e dos meios de sobrevivência: os vínculos sociais foram se
quebrando e a situação econômica ficando precária. Muitos agricultores perderam
suas terras em função da expropriação econômica a que foram submetidos, ou
ainda expulsos por grileiros.
Estes trabalhadores desconheciam a importância da legalização das
relações de trabalho e dos títulos de posse de terras; desconheciam as relações
130
Contraídas por fazendeiros e agentes comerciais junto aos bancos mundiais (FRANCO,
1969).
134
de poder que se estabeleciam entre a oligarquia rural e os representantes
governamentais; não sabiam da mais valia da força de trabalho e do poder da
organização social.
No enfrentamento de tantas adversidades, estes homens reagem
violentamente: Maria Sylvia Franco também encontrou entre os arquivos e
documentos que analisou vários casos de enfretamento físico entre homens.
Muitos deles quando ameaçados ou submetidos a condições que consideravam
injustas, que violavam sua dignidade, ou por uma simples desavença, reagiam das
mais diferentes maneiras, em geral com agressividade. Estes relatos levam esta
autora a caracterizar o perfil destes como sendo violento, o que em função das
condições sociais dadas na época, era a única reação possível que restava em
um sistema de valores que estava centrado na coragem como forma de defesa e
preservação pessoal.
Quando a consolidação da propriedade fundiária o privou dos alicerces de seu
antigo estilo de vida, o foi para um esforço de organização do futuro que se
canalizaram as energias do caipira: estas se sublimaram em representações
nostálgicas que valorizam um passado farto para o qual gostariam de voltar ...
o caminho do homem pobre foi o mais das vezes de reafirmar sua submissão...
a revolta de cada indivíduo, solitário em seu desafio à ordem estabelecida,
entregue às suas próprias forças para afirmar-se. (FRANCO, 1969, p.109-110).
O caipira é um homem que buscou diversos meios de vida, e segue
buscando, pois seu desejo é o de algo que permanece esquecido em nossa
sociedade: algo que foi perdido com a produção capitalista, especialmente no que
se refere aos nculos com a terra que passa a ser propriedade e fonte de renda,
quando as pessoas moradoras do campo passam a ser assalariadas e ias-frias
(MARTINS, 1986, p. 83). Os vínculos entre os homens se perdem com a distância
física e a aproximação econômica, quando não é a relação de compadrio que
prevalece, mas a de patrão-empregado.
135
Muitos dos que conseguiram se manter como pequenos proprietários e
sitiantes neste período não resistiram às revoluções tecnológicas da agricultura
que aconteceram por ocasião dos programas da "Revolução Verde" na década de
1960, que levaram à sua descapitalização e à perda de suas terras. Outro fato
marcante da história do trabalho no campo se deu por ocasião da introdução do
Estatuto do Trabalhador Rural
131
, do qual originaram-se conseqüências retratadas
nos versos de João Silvino de Faria e Roque José de Faria, cantados nas Folias
de Reis da periferia de Campinas
132
:
Sou agricultor
Vim do sertão
Hoje moro na cidade
Mas lembro com saudade
Da minha linda profissão
Se vim para a cidade
E deixei o meu sertão
Não foi só porque quis
Veja o esforço que fiz
Para salvar a situação
Quando morava na roça
Um lugar abençoado
Trabalhava como ninguém
Todos viviam bem
Porque eram recompensados
O trabalho no campo
Foi ficando desamparado
Porque as leis trabalhistas
Seguiam para outras pistas
O lavrador ficou de lado
Apesar do espírito migratório em busca de melhores condições ser uma das
características da cultura caipira, a aventura que estes trabalhadores rurais
tiveram que empreender, não foram satisfatórias na maioria das vezes. Muitos
agricultores migraram em grupos familiares, de vizinhança e mesmo solitários sem
saber o que esperar. As primeiras tentativas foram feitas para áreas de agricultura
de outros estados, como os de Mato Grosso, Goiás e Paraná aonde as fronteiras
agrícolas iam se alargando. No entanto iam se alargando com incentivos para um
tipo de agricultura que não correspondia a destes agricultores, nem enquanto
pequenos proprietários, nem a dos que os empregaria como fixos ou temporários.
Alguns seguem para centros urbanos, as periferias das cidades grandes, onde o
131
Estatuto instituído "em meados dos anos 60, obrigando a extensão dos direitos trabalhistas
ao homem do campo" (CASSIANO, 1998, p. 98).
132
idem, p. 145.
136
crescimento industrial e comercial "promete" empregos e melhores condições de
vida. Este espírito migratório parece-me ser muito mais circunstancial do que
essencial. No sertão nordestino também encontramos tal espírito migratório,
conforme estudos de Célia Tolentino:
[...] trabalhadores da terra em tempos de chuva ... buscam a cidade para fugir
do ciclo repetitivo da seca e do emprego temporário ... padecem de uma
identidade transitória ... fazendo com que a compreensão de mundo dependa
das condições imediatas, uma vez que o dia seguinte pode trazer consigo
outros elementos determinantes para a existência. (TOLENTINO, 1997, p.147).
Empregos, ou sub-empregos, muitos conseguiram na cidade, entretanto,
melhores condições de vida, poucos, não tanto pela redução do padrão alimentar
e de moradia a que muitos se sujeitaram, mas porque muitos se sentiram
constrangidos diante das perspectivas de vida nos centros urbanos, com seu ritmo
acelerado, exigindo mão-de-obra com uma qualificação que eles não tinham,
havendo disputa de empregos e cargos. Onde não havia espaço-tempo para as
cantigas e rodas de viola.
Carlos Rodrigues Brandão aponta a autonomia que a cultura caipira tinha
para se reproduzir, que no seu dia-a-dia ensinava e aprendia, fosse o trabalho,
fosse a sua religião, fosse a sua viola: o precisava instituir espaços e tempos
específicos e formais para tanto (BRANDÃO, 1986, p.155). Cultura que se
aprende de pai para filho, ouvindo histórias de tropeiro, de roça ou de boiada;
convivendo com roceiro, violeiro, com o Bastião da Folia de Reis ou com o
puxador de terço; freqüentando as festas: as juninas, as folias, as de carros de
bois e as de boiadeiro.
137
7.1. A moda de viola
Pena é não haver viola para acompanhar estas mágoas.
José Saramago
133
Esta população guarda silenciosa, no seu íntimo, seus costumes e crenças, e
muitas vezes por assim fazerem é que estas tradições estão preservadas. Esta
tendência pode se perceber pela história da música caipira. Cornélio Pires
pressente a demanda contida e lança um disco com músicas caipiras no ano de
1929, revelando assim um novo mercado musical e fonográfico, que vai ocupar os
espaços dos circos, das rádios e, muito mais tarde, da televisão
134
. Para se
adaptar a este mercado, os cantores e compositores deste estilo são obrigados a
mudar as características de suas sicas que em muitos casos eram longas
narrativas de causos e acontecimentos, que para serem gravadas precisam ter
seu tempo de duração reduzidos, tempo que era ainda menor no início do culo
passado, quando os discos de vinil eram muito pequenos
135
. Ainda assim, muitos
compositores mantêm algumas das características originais de suas músicas,
enquanto outros, principalmente os que têm maior espaço nos meios de
comunicação, inserem instrumentos eletrônicos além de outras modificações. Os
espaços na mídia para este estilo musical oscilam; ele volta a crescer depois da
década de 1970, quando cantores da “Jovem Guarda” se voltam para a música
caipira. Quem começa esta empreitada é Sérgio Reis que grava O menino da
porteira”
136
. Em nossos dias percebe-se novamente um movimento de resgate e
valorização da música caipira empreendida pelo trabalho de artistas como -Ivan
Vilela, Pereira da Viola, Almir Sater, Roberto Correia, Tinoco, Renato Teixeira,
Pena Branca- e outros que compõem, registram e a reproduzem abrindo espaço
para a sua veiculação. também programas de televisão como Viola minha
133
SARAMAGO, 1988, p. 243.
134
Ainda que neste meio de comunicação isto tenha acontecido modestamente, assim como o
é até os dias de hoje.
135
Muitas destas informações tenho das apresentações de Ivan Vilela que sempre faz destes
momentos, além de artísticos, bastante instrutivos.
136
Composição de Ted Vieira e Luizinho.
138
viola” apresentado por Inezita Barroso, que é pesquisadora e estudiosa da
música caipira e madrinha de vários cantores. Este programa abre espaço para
vários artistas que estão começando sua carreira neste estilo musical; nas
apresentações dos artistas sempre se destaca a relação familiar e de parentesco
e as suas origens (cidade natal ou de moradia) assim como é costume se fazer na
cultura caipira. Neste programa mantém-se viva a memória dos antigos e idos,
recordando-os e homenageando-os. O cenário sempre tem referência ao mundo
rural, seja a da casa de fazenda, a do caboclo ou a da venda do bairro rural, e
ainda a vista para uma paisagem agropecuária. Programa de auditório com
participação aberta e popular e exibido em rede aberta a fiéis espectadores.
O estudo da música caipira e sertaneja é uma das formas de se
compreender o imaginário dos homens vinculados a este universo cultural. José
de Souza Martins, Carlos Rodrigues Brandão e Sidney Valadares Pimentel
estudaram este gênero e as letras das músicas, bem como as diversas
circunstâncias que envolvem a produção e a reprodução das mesmas, para
poderem compreender a simbologia e a história desta cultura.
Na música caipira, as aspirações do caipira são bastante prosaicas. Nada que
exceda a simplicidade de uma vida doméstica ao lado dos familiares, dos
amigos (da companheirada) e do compadrio. É quase como se os seus limites
coincidissem com as fronteiras do seu bairro rural e tudo o que excedesse daí
significasse excessos e transgressões a uma ordem cujas principais
características são o ganho modesto, o ajuste temporário no trabalho, a auto-
suficiência e o desenvolvimento endógeno. (PIMENTEL, 1997, p.209).
MARTINS (1975) intitulou Música sertaneja: a dissimulação na
linguagem dos humilhados” um dos capítulos de um de seus livros.
Dissimulação pelas possíveis significações outras que a análise das letras das
músicas podem revelar no que se refere aos valores e comportamentos dos
caipiras:
139
A estrutura da música sertaneja organiza-se de forma a que a narrativa
conduza a um final triste e, muitas vezes, trágico ... A crítica ao capitalista é
encetada em nome de relações de trabalho e dependência pré-empresariais ...
como se alguns patrões tivessem se tornado homens sem coração e alguns
empregados tivessem que cumprir um destino desumano ... crítica incompleta
e inacabada ao sistema de relações que desumaniza e afronta. (MARTINS,
1975, p.155).
José de Souza Martins e Carlos Rodrigues Brandão, entre outros estudiosos
e profissionais, participaram do Seminário “Caipira: Cultura, Identidade e
Mercado. Evento que tinha por objetivo:
Aprofundar a reflexão sobre a cultura caipira, de um modo geral, e a
compreensão dos múltiplos sentidos que adquirem determinadas práticas
culturais originárias desse universo ao serem apropriadas por agentes ligados
ao mercado de bens simbólicos. Foram convidados pesquisadores
acadêmicos, artistas, críticos e profissionais que atuam nos meios de
comunicação de massa, todos ligados de alguma maneira à temática da
cultura caipira. Pretende-se dar ênfase a dois aspectos: a trajetória da música
caipira ou sertaneja, a partir da sua apropriação pela indústria fonográfica, e as
diversas faces do caipira veiculadas pelo cinema.
137
Certamente o evento alcançou seu objetivo, especialmente no que se refere
à abordagem do imaginário do caipira através de seus diversos tipos de
manifestação artístico-cultural, fazendo-se ainda referência às formas atuais de
apresentação da mesma, o que mais do que o resgate do passado foi considerado
como uma forma de reconstrução de uma identidade, assim como apontou um dos
expositores: Prof. Dr. Eduardo Vicente (Universidades Anhembi-Morumbi).
Nesta ocasião, Carlos Rodrigues Brandão comentou sobre os diferentes
comportamentos que ele observa em diversos universos. Em uma festa caipira
cada um participa devido ao vínculo que tem com as pessoas presentes e o
espaço aonde ela acontece: cada pessoa não é a sua pessoa, e não está ali
porque quer, no mínimo está ali por amizade ou cumplicidade a grupos
complexos, altamente estruturados, hierarquizados por princípios de sociabilidade,
137
Texto do Folder de divulgação do evento.
140
de parentela, de vizinhança ou religiosidade”. Nos rituais que acontecem em torno
da música atual, prevalece a democratização, a massificação da individualidade,
na qual o importa quem esteja ao seu lado: Entra quem quer, fica quem quer,
não há censura, nem repressão, cada um na sua!”.
A música enquanto expressão artística perdeu sua dimensão ritualística,
virou produto comercial e de entretenimento. Os artistas reclamam da rotina e da
responsabilidade de uma carreira profissional. Para o caipira a música estava
associada ao prazer, a obrigação era no máximo para com a festa santa e a sua
divindade.
7.2. A literatura brasileira e as leréias dos caipiras
Antonio Candido no prefácio do livro “Com palmos medida: terra, trabalho
e conflito na literatura brasileira” (AGUIAR, 1999)
138
observa que: “é o teor
literário que faz a verdade da escrita, porque permite transformar o fato em
significado. O resultado é um mundo além do nosso mundo, que no entanto nos
faz compreendê-lo melhor.” (AGUIAR, 1999, p.9)
diversos escritores que retratam a cultura caipira: Cornélio Pires, Rolando
Boldrin, José J.Veiga e Mário de Andrade, destaco dentre eles Valdomiro Silveira.
Escritor paulista, que viveu no interior de São Paulo, lançou mão do sotaque do
caipira, do seu vocabulário e da sua fantástica
139
imaginação para conceber suas
estórias. Estórias românticas, picantes, moralizantes e de momentos singelos e
surpreendentes da vida do homem do campo. Ele demonstra sensibilidade e
percepção aguçada, atentas aos detalhes do cotidiano dos homens do universo
caipira. Em seu livro Mixangosele descreve algumas de suas características:
138
Flávio Aguiar, organizador da publicação, selecionou trechos de textos literários, dos mais
diferentes estilos e escolas, com o intuito de retratar os diversos períodos históricos do Brasil:
desde a ocupação da terra até o fim da ditadura e o seu declínio.
139
No seu duplo sentido – por ser grandioso e/ou mágico.
141
"porque era de seu natural envergonhado" (SILVEIRA, 1937, p.57); a proximidade
com o mundo dos animais: “até a raiva dos passarinhos, quando eles cantam, é
formosa...” (SILVEIRA, 1937, p.21); e com a natureza... "a tempo que o céu
formigava de estrelas" (SILVEIRA, 1937, p.12); "estirando os braços por toda a
frescura da sombra" (SILVEIRA, 1937, p.53); de uma natureza que se compadece
do drama dos personagens "Muito cheia de sangue a tarde começava a fechar"
(SILVEIRA, 1937, p.112); bem como em uma das histórias, A dúvida:
Foi, como sempre, um mouro no trabalho (Antonio Lasbino). Arrendara umas
terras mal conhecidas, de casqueiro de areia, mas legítimas roxas, onde a
criciúma e o palmito vermelho trançavam passo a passo, e os alheiros,
atacados, nessa quadra, pelas pacas famintas, carregavam o ar de um cheiro
agudo e entontecedor. Conheceu o suplício das derrubadas, longe dos
córregos, de um lagrimal que fosse; o medo das queimadas, quando o vento
não firmou ainda e os aceiros têm muita folha seca; o destocar das roças, o
abrir das covas ao peneirar dos chuvisqueiros; a timidez das primeiras
plantações; o terror das geadas tardias, quando o feijão embainha e o arroz
cacheia, e das ventanias bravas, que às vezes quebram milharais
embonecados. (SILVEIRA, 1937, p.56).
Não poderia deixar de citar Monteiro Lobato que criou um personagem -
Jeca Tatu-
140
que se eternizou na literatura brasileira e que marcou a
personalidade do homem do campo com diversas características pejorativas
assim como a indolência para o trabalho, a falta de higiene e a falta de hábitos
“civilizados”. Este escritor tempos idos reconsidera as suas concepções sobre este
homem:
no convívio do sertanejo, valente de dia e medroso de noite, ao som da
viola num rancho de tropeiros ... é que um artista poderá “ouvir e entender”
sacys. ... A verdade é esta: Geca é a única affirmação de individualidade não
laivada de ridicularias que possuímos. Vede-o. ... Defronta-o a matta em
calmaria, onde embirussús gigantes escorrem-se de cipós e parasitas ... Os
pensamentos que lhe purilampejam no cérebro são filhos do ambiente ...
producto da observação insconsciente dessa guerra eterna e silenciosa que é
a natureza virgem. (LOBATO, 1998).
140
Protagonista de seu livro “Urupês”.
142
Na verdade esta reconsideração não é de aceitação de sua personalidade,
mas de identificação de um potencial e/ou de uma proposta de mudança:
o homem rural necessitava de cura para converter-se em homem produtivo ...
através dos recursos técnicos e científicos ... transformando-se em trabalhador
incansável ... adepto dos inventos modernos ... torna-se um rico fazendeiro.
(LOBATO, 1918 apud TOLENTINO, 1997, p.91).
A Reforma Agrária reivindicada deveria favorecer o progresso e a produção no
campo. Certamente estava-se longe de sugerir a necessidade de
desapropriação em favor do camponês como uma forma de garantir o seu
próprio tempo e ritmo de trabalho. O camponês deveria ser o antijeca para os
olhos desenvolvimentistas dos primeiros anos de 60. (TOLENTINO, 1997,
p.218).
7.3. E o caipira chega ao cinema
Mazzaropi interpreta o personagem preconizado por Monteiro Lobato no qual
o estado de Jeca era condicional e não uma identidade:
... de modo que caipira de Mazzaropi, não é um romântico, destes que não
aceitam e estão em crise com a modernização e as novas relações impostas.
Jeca recusa a disciplina do trabalho moderno mas não as possibilidades de
consumo que lhe traz. (TOLENTINO, 1997, p.110).
Para Luzimar Gouveia o personagem Jeca interpretado por Mazzaropi
representa o homem que desistiu de lutar e que recusa o sistema produtivo, o qual
julga injusto, afastando de si o dogma do trabalho e elegendo a preguiça como um
direito (GOUVEIA, 2001, p.92). Luzimar Gouveia faz estas reflexões a partir do
texto A dialética da malandragem de Antonio Candido (1977), para quem a
malandragem é a única possibilidade para o protagonista do romance que ele está
analisando conseguir empreender uma ruptura com a fixidez dos lugares sociais
assim como estão dados para este personagem. Esta esfera, que é a da
desordem”, está associada também à idéia de um “universo sem culpabilidade”.
143
No Brasil, os grupos ou os indivíduos ... nunca tiveram obsessão pela ordem
senão como princípio abstrato, nem pela liberdade senão como capricho. As
formas espontâneas de sociabilidade atuaram com maior desafogo e por isso
suavizaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos
dramáticos os conflitos de consciência. (CANDIDO, 1977, p.XXXV).
As diversas perspectivas dos diversos autores referidos acima não são
excludentes, no entanto nos encaminham para compreensões diferenciadas.
Construção, desconstrução e reconstrução dos personagens e suas respectivas
implicações dentro do quadro de referência de cada autor: o Jeca de Monteiro
Lobato, revisitado pelo seu próprio criador, depois por Mazzaropi, Célia Tolentino
e Luzimar Gouveia.
Antonio Candido, em sua obra Os parceiros do rio bonito” estuda as
diversas características por ele identificadas do mundo caipira no intuito de
construir um sentido para esta cultura
141
. Antonio Candido estuda o cotidiano de
homens moradores de um bairro rural, o qual identifica como sendo caipira, e
busca a compreensão de um ser avacalhado na literatura
142
, pelos meios de
comunicação e pelo meio urbano. Estas circunstâncias levaram diversos caipiras a
se modernizarem, assumindo formas de apresentação e valores externos à sua
cultura e a si. Antonio Candido cria uma tipologia para classificar as diferentes
reações adaptativas do caipira: a que se primeiro pela aceitação dos traços
impostos e dos propostos; segundo pela aceitação dos traços propostos; e terceiro
pela rejeição de ambos. O segundo caso é o que mais interessa ao seu trabalho:
são os que procuram ajustar-se ao que se poderia chamar de mínimo inevitável
de civilização que aceitam para não comprometer a sua sobrevivência,
apegando-se a um mínimo de fórmulas da modernidade de forma a preservar o
máximo possível das formas tradicionais de equilíbrio” (CANDIDO, 1987, p.218).
141
A busca por umuniverso sem culpabilidade” parece ser uma prerrogativa para este autor.
142
Conforme citação acima.
144
A leitura da tese sobre a Folia de Reis em Campinas “Memórias itinerantes
de Célia Cassiano confirma as perspectivas dos laços de solidariedade nas
vizinhanças, assim como estudado por Antonio Candido em Os parceiros do rio
bonito”, os quais permanecem nos centros urbanos para onde estas populações
migram. Esta pesquisadora confirma também a latência dos valores desta cultura
que afloraram e reconstituíram-se, atualizando-se e revigorando-se, no caso
estudado, com a recriação das Folias de Reis na cidade de Campinas(SP). Hoje
as Folias contam com várias "companhias" que percorrem toda a cidade em
atendimento a pedidos feitos e para cumprimento de “obrigações” e promessas.
“Um objeto é cultural na medida em que pode durar; sua durabilidade é
contrária mesma da funcionalidade” . (ARENDT, 1999, p.260).
A cultura caipira, apesar de ser originária do meio rural, se difundiu bastante
no meio urbano com a migração desta população. Assim, muitas vezes
percebemos pessoas que vivem na cidade e que mantém características
peculiares da cultura caipira. Apesar da população brasileira estar classificada nos
censos como sendo em sua maioria urbana
143
, muitas das características culturais
neste meio são marcadamente determinadas pelas relações sociais e temporais
frutos da vivência com a natureza que muitos dos cidadãos carregam em suas
histórias de vida
144
.
"Aprofundar o olhar, pisando na terra"
145
143
José Eli da Veiga em seus estudos questiona os números desta classificação,
argumentando serem estas características culturais visíveis na população de diversas cidades,
que apesar de viverem em espaços urbanos, mantêm em suas relações e em suas vidas
comportamentos que são característicos do homem do campo. VEIGA, J.E. Cidades
imaginárias – o Brasil é menos urbano do que se calcula, Ed.Autores Associados,
Campinas/SP, 2002.
144
No capítulo Memória é experiência descrevo alguns exemplos que ilustram estes
vínculos.
145
Esta frase e as outras que também estão identificadas neste texto são dos autores referidos
e o restante é de minha autoria. Esta frase em especial é de Helton Souza Lima in WHITAKER,
D.C.A. Sociologia Rural-questões metodológicas emergentes”, Ed.Letras a margem, São
Paulo/SP, 2002, p.233.
145
A terra é textura, é paisagem, é solo, é visceral. A agricultura, o
alimento, o humano. A plantação, a mesa posta, o ritual, a reza.
Em close variedade de cores, granulações e cristais, que brilham com o
sol e se desmancham com a chuva, que correm para o rio, entre montanhas
formando uma linha nos vales, onde muitas vezes as plantações de arroz
formam um tapete, onde se pode deitar e sentir o coração palpitar.
“os que se apegam a ela (a terra) deixam seu som mais triste no mundo”
146
.
“O que sabemos é isto: a terra não pertence ao homem, o homem pertence à
terra.”
147
O mundo caminha estabelecendo limites, colocando cercas, e quem
desconhece o papel em que se definiu propriedades, foi expulso para onde o
mínimo vital é a sobrevivência que precisa ser batalhada dia-a-dia: a miséria
na favela; o bóia-fria no corte-de-cana.
As pessoas se encontram, ainda festejam, se alegram, embaladas pela
música, pelo afeto, pela solidariedade, no consolo da religião, na acolhida da
família e da vizinhança. Em cada um destes espaços alguém sonha com
melhores dias.
Porque não uma horta comunitária naquele terreno baldio?
Será que o Sr. Roque não topa tocar prá gente fazer a Folia de reis?
Folia de reis? Em agradecimento por qual colheita?
Mas a bíblia nos inspira e que se medir forças para que se possa
alcançar a terra prometida...
7.4. Imagens de resistência e luta
Muitos dos autores que tenho lido sobre memória e cultura (especialmente a
caipira), comentam sobre as imagens que permanecem arraigadas nos homens,
constituintes de cada um como uma força interna:
A experiência da perda da terra é acompanhada por perdas afetivas, por
marcas de trabalho sem retorno, pelas andanças por diferentes regiões,
executando as mais variadas tarefas. Um dia vem o cansaço, que não mata a
vontade de viver, mas cria uma vontade de mudar, de transformar, de criar um
“outro mundo”. (GOMES, 1995, p.144).
146
Música El condor pasa, letra de Paul Simon & Art Garfunkel, tradução do Instituto de
Desenvolvimento do Potencial Humano.
147
CAMPBELL, 2002, p.34.
146
Uma história de exploração, expropriação e expulsão, permitiu também que se
construísse uma história de resistência. (GOMES, 1995, p.9).
Cresce a população na periferia da cidade, continua migrando para onde
possam pagar aluguéis
148
ou então para espaços onde esperam encontrar
melhores condições de vida. Este contínuo vai-e-vem de gente dificulta o
estabelecimento, a manutenção de vínculos e a organização social
149
. Apesar de
tantas dificuldades ao menos o deslocamento e a comunicação são mais fáceis na
cidade e com o aumento dos encontros se começa a retomar antigas tradições
assim como aconteceu com a Folia de Reis de Campinas.
[...] a própria ação organizada ocupava ... o espaço deixado pelas formas
coletivas de sociabilidade. (MEDEIROS, 1995
150
apud TOLENTINO, 1997,
p.215).
Alguns grupos reunidos em torno da religião católica iniciam discussões
políticas e reflexões sobre a questão da terra e começam a se mobilizar para
conquistá-la, terra que vêm sendo almejada pelos “povos de Deus” desde os
tempos idos do Êxodo, assim como se pode observar pelo depoimento do Sr.
João Calixto
151
, agricultor do Assentamento de Sumaré I:
então a bíblia nos inspirou, que nós haveria de partir e ir em busca de uma
terra prometida ... a gente vivendo num mundo tão violento e a igreja falava
coisa tão bonita ... a gente resolveu a por a bíblia em prática ... a gente foi em
busca de que? de uma terra e esta terra prometida seria este horto tão
maravilhoso que ocês tão vendo aqui ... era horto florestal ... hoje é um
assentamento de pequeno agricultor de Sumaré.
148
CASSIANO,1998, p.186.
149
FRANCO, 1969, p.37.
150
MEDEIROS, L.S. Lavradores, trabalhadores agrícolas, camponeses: os comunistas e a
constituição de classes no campo, tese de doutorado apresentada ao IFCH/UNICAMP,
mimeo.
151
Depoimento para o vídeo Reforma Agrária: um projeto de vida, de minha autoria; neste
depoimento o senhor Calixto faz referência aos estudos bíblicos promovidos pela CPT – Centro
da Pastoral da Terra ligado à Igreja Católica.
147
Kellen Junqueira
Figura 9: Portal de Entrada do Assentamento Sumaré I
“Terra Nossa Prometida”
Assim foram sendo construídas as imagens de resistência e de luta, imagens
que deram confiança para que as pessoas começassem a se organizar para
reivindicar terra, Movimento que enfrentou, e enfrenta, os poderes instituídos,
autoridades e a polícia.
Segundo José de Souza Martins esta força está centrada na indignação que
estes homens sentem ao verem o que julgam ser de direito -o trabalho na terra-
ser subjugado pelo mercado, que atribui à terra um valor de renda, mantido em
vastas extensões improdutivas:
[...] em cima da concepção do ser e não do ter ... essa concepção estava
embutida nas formas de vida de diferentes tipos de trabalhadores rurais... que
foi se transformando em concepção política, foi emergindo na palavra e na
consciência das pessoas... (MARTINS, 1986, p.100).
O retorno à terra é tido como solução para o problema econômico de
diversos cidadãos, desempregados, que vivem em péssimas condições de vida
nos centros urbanos, carentes antes de mais nada de liberdade: liberdade para
148
definir o uso do seu tempo, seu ritmo de vida e o trabalho ao qual gostariam de se
dedicar.
[...] ser dono da terra é condição básica de ser liberto, juntamente com o
domínio tanto cognitivo como simbólico do saber que orienta o processo de
trabalho. (WOORTMANN, 1997, p.44).
Os agricultores assentados em programas de Reforma Agrária vivem uma
situação de cobrança muito grande. Os movimentos sociais articulam suas
reivindicações argumentando o caráter primordial da Reforma Agrária e da
agricultura familiar: a de prover alimentos básicos, a de empregar mão-de-obra, a
de respeitar o meio ambiente; afora outras expectativas como as de que eles
devam se organizar coletivamente, de que devem ter uma participação política
ativa e a de que os participantes devem ter comportamentos “morais”. Estas
exigências são maiores para com estas pessoas do que para com qualquer outra
da sociedade, especialmente porque elas estão constantemente sendo abordadas
pela mídia. É preciso avaliar as reais possibilidades de algumas destas
determinações se concretizarem. As comunidades que se formam e se organizam
vinculadas aos movimentos sociais tendem a se preocupar com estas questões e
tentam resolvê-las. Estar em um assentamento, para além da conquista de um
espaço e de condições de trabalho, representa também estar em um lugar onde
se pode contar com uma comunidade organizada e disposta a buscar condições
para solucionar suas necessidades
152
, entre elas: as de educação, saúde e
transporte. E ainda outras que são mais difíceis de serem abordadas e resolvidas
e que são alvos de atenção das organizações dos movimentos sociais de luta pela
terra, tais como o uso de drogas e a violência familiar e entre vizinhos
153
.
152
Recordo-me dos laços sociaismuito fortes que Antonio Candido descreve em seus estudos
sobre as comunidades rurais-caipiras da década de 1940, nas quais as situações de adversidades
são tantas que as pessoas têm que se apoiar umas nas outras (CÂNDIDO, 1987, p.169, 181).
153
Reflexões decorrentes das minhas conversas com Potiguara Lima, estudante e apoiador do
movimento de luta pela terra
149
Estar em um assentamento algumas vezes representa simplesmente ter um
espaço do qual se possa cuidar. Percebo isto quando alguma dona de casa faz
questão de levar-me para uma visita em seu barraco, o qual observo organizado,
limpo e decorado. Um lugar para acomodar a visita e para servir um café. Em um
passeio por um acampamento pode-se perceber a beleza que alguns buscam dar
à sua moradia, buscando a simetria no arranjo do telhado ou na harmonia das
peças recicladas que compõe as paredes; o chão batido ou com cimento
queimado. Cuidados que me surpreendem em função do caráter circunstancial
deste momento, os quais, por outro lado, admiro em função da força, resistência e
beleza, que estas imagens representam para mim.
E é por isto que não as condições materiais devem ser garantidas aos
assentados, mas também as culturais:
Muitas pesquisas apontam que muitos assentados abandonam suas atividades
e retomam a estrada da migração, engrossando o número dos fracassados,
em razão de projetos que negam seu modo de vida e são estranhos à sua
tradição. Oxalá, os organismos estatais, as lideranças e os mediadores
compreendam que qualquer projeto alheio à cultura destes trabalhadores será
imbuído de violência simbólica, pois reforçará o processo de desvalorização e
desestruturação cultural ao qual foram submetidos ao longo de suas vidas.
(MORAES, 1995, p.19).
José de Souza Martins, no seminário referido anteriormente, comentou sobre
quanto os caipiras vivem em um mundo dividido, vítimas da história, entre fatos
visíveis e dissimulados. Conflito também identificado por Maria Sylvia Franco que
em seus estudos se refere às relações tidas como harmônicas e, que entretanto,
guardam tensões ocultas com escassas possibilidades de emergirem (FRANCO,
1969, p.91).
Sidney Valadares Pimentel observa uma certa ambigüidade na população
por ele estudada:
150
Assim, é possível a um pirajubense referir-se ao atraso como impeditivo da
conquista de padrões modernos de vida e, à decadência, como destruição da
tradição, ou seja, da perda de controle sobre o sistema de festa por parte da
comunidade. (PIMENTEL, 1997, p.140).
e ao mesmo tempo percebe estratégias para superá-las:
Em cada festa os pirajubenses procuram contar uma versão da história de
Pirajuba, na qual aspectos da religiosidade caipira e do mito do bom” sertão
se enlaçam para a construção de uma ideologia que procura combinar o apego
à tradição com o anseio de se modernizar. (PIMENTEL, 1997, p.288).
Na era do progresso, ser caipira é uma condição menor, uma denominação
pejorativa. Uma das alternativas é associar o nosso rural, o nosso sertão ao sertão
americano: o do cowboy”. Pimentel estudou as festas de Rodeio de Pirajuba e de
Barretos e apontou-as como sendo formas de domesticação do sertão e de
reinvenção da noção de ruralidade”, o que se deu também devido à influência dos
movimentos musicais: caipira, sertanejo e country e pela cultura literária
brasileira: Com Guimarães Rosa, o sertão deixa de ser o indesejável para se
converter no inevitável ... é o espaço privilegiado do entendimento do ser
humano.” (PIMENTEL, 1997, p.19).
[...] um dos grandes méritos da obra de Guimarães Rosa foi o de ter ampliado
o significado da categoria sertão em direção à universalidade ... através da
articulação de três níveis, ou seja, do privilegiamento do sertão como signo
constitutivo da identidade nacional que se reconhece como universal mesmo
nas suas manifestações mais locais. (PIMENTEL, 1997, p.22, grifos do autor).
Vem se construindo assim uma nova noção de ruralidade afastada da noção
do atraso (PIMENTEL, 1997, p.27). E se assim é, como estudou Sidney Valadares
Pimentel, que se observar o aumento do número de festas de Peão que se
alastram por todo o país. As festas são realizadas próximo a grandes centros
urbanos como as que acontecem em diversas cidades do Estado de São Paulo:
Jaguariúna, Americana, Limeira, Pedreira, Sumaré, Hortolândia e Mogi-Guaçu.
151
8. TERRA, TRABALHO E AFETO
O rastro dos cantos
Antes dos brancos chegarem não havia nenhum sem terra na Austrália,
já que todos herdavam como sua propriedade privada,
um trecho do canto do antepassado e o trecho de terra por onde o canto passava.
Os versos de um homem eram sua escritura do território ...
Cantar um verso fora da ordem era um crime ... seria desfazer a criação.
(Bruce Chatwin)
154
Escolhi para estabelecer um "diálogo" os agricultores que têm um vínculo
afetivo com a terra. Acredito que algo "pulsa" em muitos deles de forma que se
mantêm firmes e determinados em permanecerem na terra, de forma que as
tantas adversidades vividas na agricultura brasileira não os desanimam.
Agricultores assim como Tonhá, que à pergunta de Carlos Rodrigues
Brandão sobre o motivo pelo qual ele, mesmo depois de aposentado, dedicava
horas do dia a trabalhar no quintal ou mesmo em “terrenos de outros” com a
enxada”, ele responde que plantava porque havia feito isto a vida inteira e tomara
gosto pelo ofício”; disse ainda: é que eu sou muito amoroso com a terra
(BRANDÃO, 1999, p.64). Carlos Rodrigues Brandão observa que este afeto tem
mais ênfase quando a terra é própria e mais ainda quando é um “bem de raiz”
que atravessa gerações.” (BRANDÃO, 1999, p.66).
Na minha vivência com a luta de homens e mulheres por terra, deparei-me
com diversas expectativas e ansiedades, mais do que tudo, o que me chama a
atenção é quando a percebo como uma busca por uma forma de ser. Vislumbro
nesta vivência muitas imagens: o desejo de liberdade e autonomia, o amor pela
natureza, pelos sons, pelos pássaros; a familiaridade com o trabalho na terra; o
prazer do encontro e de compartilhar.
154
Apud WEISS, 1988, p.9.
152
O movimento por terra tem inclusive dimensões míticas e universais
155
: ele
acontece em diversas civilizações e em muitas delas "a terra se torna uma espécie
de templo ... as pessoas reivindicam terra criando sítios sagrados" (CAMPBELL,
2002, p.99). Diversas culturas, movimentos sociais, símbolos e narrativas
mitológicas têm a terra como imagem primordial para a qual criam divindades e
rituais para reverenciá-la, ações para assegurá-la. Deusa e provedora, fonte de
vida e de acolhida; cantada e contada em verso e prosa. O mito da terra é
vinculado ao arquétipo da mãe: uma pulsão biológica e psicológica que mobiliza
muitos homens.
mitos que a consagram como espaço sagrado e outros tantos que a
sensualizam como espaço feminino e fecundo. Recordo a exposição de Romildo
Sant´Anna no Seminário “Caipira: Cultura, Identidade e Mercado quando ele
comenta sobre as “músicas de corno”, as que fazem referência à perda da mulher,
que para ele representa a perda da feminilidade, a perda da terra mãe e conclui:
esta é uma terra de sem terras.” O desejo por ela pode ser o simples prazer de
fruir da beleza de um cenário natural, ou rural. E ainda pelo status e/ou poder que
pode representar um título de propriedade de uma área.
Decorrem diferentes representações de acordo com o tipo de interação que
se estabelece com ela. A terra pode significar antes de tudo um espaço de
sobrevivência, já que dela prom as bases da sustentação material do homem. A
exploração dos recursos naturais pelo extrativismo, caça e pesca determinaram
relações específicas do homem para com o meio em que vive, muito diferentes
das que ele estabeleceu através da agricultura (CAMPBELL, 2002, p.106,108), a
partir de quando ele pode, ainda que não totalmente, controlar, garantir e
intensificar a produção de alimentos para ter maior estabilidade no seu
155
Isto é especialmente verdade na luta por terra realizada pelos indígenas. Em especial junto
a esta população a luta ganha uma característica sagrada, pois o direito de posse remonta a
épocas imemoriais.
153
provimento, tendendo assim a se fixar em um território
156
. O homem enfrentou
muitas adversidades no que se refere ao abastecimento de alimentos (CÂNDIDO,
1987, p.197), assim que a possibilidade de controle de sua produção é
considerada uma das grandes conquistas da humanidade. Para além desta
função, a agricultura é valorizada como uma forma de transformação do mundo
natural em cultural através do trabalho, que é considerado como um dom divino,
no qual o homem continua o processo de criação do universo através de suas
mãos: "(o trabalho cotidiano dos homens e das mulheres) é a ponte entre o mundo
"criado" e dado e o mundo transformado e incorporado à vida partilhável da
sociedade..." (BRANDÃO, 1999, p.109).
Ellen Woortmann e Klaas Woortmann trazem ainda outro sentido para ele:o
processo de trabalho, além de construir roçados, também constitui direitos
(WOORTMANN e WOORTMANN, 1997, p.148). Estes pesquisadores analisam as
perspectivas dos pequenos agricultores do sertão nordestino para os quais o
trabalho na terra lhes dá, ou assim deveria ser, o direitode posse das mesmas.
Assim como deveria ser em relação ao trabalho duro que realizam por ocasião da
derrubada das matas que deverão se tornar áreas agriculturáveis, o trabalho de
amansar a terra lhes atribui a qualidade de herói - a de herói civilizador
(WOORTMANN e WOORTMANN, 1997, p.180).
O vínculo afetivo dos homens para com a terra, à que me referi no início
deste capítulo, eu percebo nos que mantém uma relação com ela pelo trabalho
que é realizado através de uma experiência pessoal-corporal. Quando um
agricultor conhece as potencialidades e carências de sua terra; quando caminha
com desenvoltura pela sua plantação comentando detalhes de sua cultura, como
156
A relação com a natureza vem se modificando: as condições de produção tornam-se cada
vez mais artificiais, chegando nos dias de hoje a dispor de ambientes completamente
controlados, assim como são os das produções hidropônicas feitas em estufas, cujo substrato
das plantas não é mais a terra e sim uma solução nutritiva diluída em água e em lugar com
controle de luminosidade, temperatura e aeração precisos.
154
se assim personalizasse cada de planta, como se percebesse uma
manifestação de vida em cada um, quiçá uma alma. Conversando e caminhando
ao lado do Sr. Amarildo em sua roça, no Assentamento Horto Vergel (Mogi-
Mirim/SP), de repente ele para e observa no chão uma “rota” de formigas: foi
como se ele tivesse ouvido a multidão delas trabalhando, lamentavelmente,
consumindo sua plantação; ou quando em seguida me oferece as mandiocas de
um dos pés que arranca com o facão que carrega pendurado na cintura, lançando-
o à terra para mostrar o fruto do seu trabalho. Ou então o Sr. Aparecido, agricultor
do Assentamento de Porto Feliz (Porto Feliz/SP), junto aos seus pés de acerola
lamentando a presença das pragas em sua plantação. E ainda a Cida (in
memoriam), que foi agricultora do Assentamento de Sumaré II (Sumaré/SP),
contando sobre a origem de cada um dos pés de fruta da coleção do seu quintal.
É a partir destas experiências e referências que recordo José de Souza Martins
quando ele comenta o quanto é inconcebível a lógica do capitalismo que atribui
valor à terra independente do fruto que ela possa oferecer, que cerca um pedaço
de chão, confere-lhe um título de propriedade, que entra no mercado financeiro
valorizando-se cada vez mais conforme o tempo em que permanece improdutiva
(MARTINS, 1986, p.68).
Kellen Junqueira
Figura 10: Sr. Aparecido mostrando as pragas em sua acerola –
Sumaré
155
8.1. O trabalho: provação e/ou realização
A instituição do trabalho na versão bíblica, relatada no Velho Testamento,
tem uma característica ambígua, pois é ao mesmo tempo penalidade e salvação:
E a Adão (Deus) disse: ... maldita é a terra por tua causa... No suor do rosto
comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu
és o pó e ao pó tornarás.
(GÊNESIS, cap.3, vers.17-19).
Sina que se observa também no conto “Cantador” de Valdomiro Silveira:
“Hei de lidar co´a minha ferramenta, brigando ou fazendo as paz´ co´a terra,
até que a terra chegue a me vencer e me estenda d´uma vez... (SILVEIRA,
1975, p.41).
Ou nos versos da música “Peão na amarração” de Elomar:
u´a vontade aqui me dá
dum dia arresolvê
quebra a cerca da manga
157
e dexá de sê boi-manso
dexá carro dexá canga
de trabaiá sem discanso
...
é a ceguêra de dexá
um dia de sê pião
de num comprá nem vendê
robá isso tomen
158
não
de num sê mais impregado
e tomen num sê patrão
...
mais
159
a canga no pescoço
Deus punhô pru modi Adão
dessa Lei nunca me isqueço
cum suó cumê o pão
mermo Jesus cuano
160
moço
na Terra tomen foi pião
157
“Tapume de madeira e arame ou pedra que delimita o pasto dos animais” no glossário do
encarte do CD Cartas Catingueiras.
158
Também, ibid.
159
Porém, ibid.
160
Quando, ibid.
156
Sina que José Saramago atribui à “bondade” do criador:
Estes homens e estas mulheres nasceram para trabalhar, são gado inteiro ou
gado rachado, saem ou tiram-nos das barrigas das mães, põem-nos a crescer
de qualquer maneira, tanto faz, mesmo que para um gesto só, que importância
tem se em poucos anos ficarem pesados e hirtos, são cepos ambulantes que
quando chegam ao trabalho a si próprios se sacodem e da rigidez do corpo
fazem sair dois braços e duas pernas que vão e vêm, por aqui se a que
ponto chegaram as bondades e a competência do criador, obrando tão
perfeitos instrumentos de cava e ceifa, de monda e serventia geral.
(SARAMAGO, 1988, p.327).
No decorrer da história da civilização ocidental a percepção do trabalho vem
se firmando como negativa em função tanto da escravidão (LOURENÇO, 2001)
quanto do sistema de produção industrial, perdendo assim a sua dimensão
criativa. Antonio Candido observa uma resistência, uma indolência dos caipiras,
quando enfrentam os novos ritmos de trabalho na cidade (CANDIDO, 1987,
p.216). que se destacar que muitas das atividades que os caipiras realizavam
de forma a garantir a sua sobrevivência não eram percebidas como trabalho,
assim como a caça e a pesca, que apesar de garantirem uma boa qualidade
nutricional para esta população, eram feitas sem o compromisso com horários e
com produtividade; e outros momentos de trabalho intenso assim como os dos
mutirões eram suavizados através do ambiente amistoso em que transcorria a
atividade.
157
Kellen Junqueira
Figura 11: Assentados Horto Vergel decarregando folhas eucalipto
para produção de óleo essencial – Mogi-Mirim
Meu avô gosta muito de trabalhar: ele desfruta deste prazer que, aliás, para
ele passou a ser o sentido de sua vida: é o que vem lhe distraindo em sua solidão.
A sua matéria é a madeira e é com ela que exercita sua “ciência” e a sua
paciência e com a qual cria soluções no seu cotidiano. Gaston Bachelard fala de
classificar as vontades pelas matérias trabalhadas pela mão do homem
(BACHELARD, 2001b, p.8). No caso de meu avô eu devo acrescentar as
necessidades: por toda a sua casa há “engenhocas”, suportes, amparos, bancos e
alças feitos de madeira, em sua maioria feitos com o intuito de facilitar a vida de
um homem que não pode se curvar nem se abaixar. As “vontades” ele realiza
com o trabalho que emprega nas suas esculturas de carro de bois, de fiandeiras,
monjolos e todos os objetos que o remetem aos seus tempos queridos.
Creio que a retomada do trabalho em uma perspectiva prazerosa seria
benéfico e relevante para a condição humana principalmente para o agricultor,
pois para ele, sem este envolvimento com o trabalho dificilmente alguém
consegue uma produção a contento.
158
O trabalho da matéria, assim que lhe devolvemos todo o seu onirismo,
desperta em nós um narcisismo de nossa coragem. (BACHELARD, 2001b,
p.7).
Acredito que a competência para o trabalho na agricultura possa ser
desenvolvida através de cursos e de uma experiência cotidiana, no entanto, esta
disposição, esta relação afetiva para com a terra, é algo que cada um sente e
desenvolve no âmago do seu ser. Eu gostaria de contribuir na construção desta
relação: criando imagens que favoreçam esta percepção, que propiciem o sentir-
se integrado ao trabalho com a terra.
159
9. LUTAR PELA TERRA: QUANDO A BUSCA EM SI É O SENTIDO
A luta e a resistência pela terra e na terra têm dimensões sociais, históricas e
simbólicas que se inter-relacionam em complexas subjetividades: cada indivíduo é
uma constelação de motivações e determinações pessoais que compõem o seu
imaginário e que são bastante específicas à sua história de vida, à maneira como
cada um vai elaborando sua concepção de mundo e às motivações imateriais que
influenciam o vínculo de muitos dos que participam destes movimentos. Dentre
estas motivações e sentimentos se misturam a, o afeto pela família e pela terra.
Estas motivações e sentimentos dão sentidos e força para estes homens lutarem
e defenderem a sua existência. Batalhas que muitas vezes se concretizam num
coletivo de um movimento social, onde em geral o individual se dilui na
necessidade de agregação dos interesses comuns.
Trato neste capítulo dos que participam do movimento de luta pela terra:
dentre eles não os que são militantes, mas também os que estão inscritos nas
listas de interessados em programas de Reforma Agrária, os que estão
assentados, os que resistem bravamente às condições adversas da agricultura no
Brasil.
Quem começou esta luta enfrentou contratempos e contradições. O fato é
que eram tantas as dificuldades e angústias que estas pessoas viviam, e tão
poucas as possibilidades que vislumbravam para superá-las, que o Movimento
quando começa a aflorar aparece como uma "tábua de salvação". Ainda assim é
preciso muita fé para entrar neste tipo de organização, na conquista da terra
prometida, principalmente no homem, naquele que está ali do seu lado, corpo-
a-corpo, suado, tenso, tantas vezes faminto, reivindicando meios de trabalho e
garantia de sua sobrevivência, quiçá dignidade. Ainda que fortalecidos pelo elo
entre eles, os participantes deste Movimento estiveram sempre muito vulneráveis,
160
tanto assim é que muitas vezes ouvimos falar de mortes e massacres. Contudo
um espírito guerreiro fortaleceu-se entre eles, talvez fruto de um sistema de
valores centrado na coragem pessoal
161
que os organizadores destes movimentos
souberam muito bem usar, transformando os assassinados em mártires, os locais
de confronto e embate em referências históricas. Foi assim que a Reforma Agrária
proposta e defendida por tantos parlamentares na história política do Brasil,
idealizada em leis e programas partidários e governamentais, só se concretizou na
força do movimento de luta pela terra. É por isso, também, que hoje é forte a luta
pela terra e fraca a luta pela Reforma Agrária”. (MARTINS, 1986, p.96)
José de Souza Martins considera grande a diferença nas perspectivas de
vida que este sujeito almeja com a luta pela terra em relação ao que é proposto
pelos diversos governantes deste país para as políticas de Reforma Agrária.
Assim sendo, este pensador não vislumbra possibilidades de que esta possa
contentá-lo. Para este autor, seria necessária uma revolução nos valores sociais e
econômicos para que uma outra relação pudesse se estabelecer no campo: uma
que possibilitasse uma convivência mais humana e mais justa (MARTINS, 1995,
p.177). Lembro-me do movimento social mexicano EZLN “Ejercito Zapatista de
Libertácion Nacional” para o qual a principal reivindicação é a PAZ, o que
podemos conferir no texto de TACHO
162
: Vamos pedir paz, mas uma paz que
seja justa, digna, na qual se reconheçam os direitos de todos os indígenas ... com
nossos dialetos, costumes e tradições”. Esta organização, assim como o MST,
contesta os padrões da sociedade capitalista.
O sonho de ter uma terra, poder plantar e daí tirar o que comer é tão forte
que muitos quando voltam para a "roça" mantém o plantio de gêneros
alimentícios, a despeito do que orientam os "entendidos" de mercado financeiro e
das condições agronômicas das áreas em que são assentados. Creio que assim
161
FRANCO, 1969, p.48.
162
www.ezln.org/entrevistas/index.html, pg.1. Siteque foi discutido e analisado por Maria do
Carmo Martins uma das professoras do “Linguagens e Memórias”.
161
procedem não só pelo abastecimento dos alimentos que possam deste modo
garantir, mas pela complexidade de fatores que pautam a relação com a terra,
como meio de produção, bem como todo um conjunto de conhecimentos que
estes indivíduos estabelecem em suas relações com as plantas, os animais, o
meio ambiente e os outros homens.
O processo de trabalho camponês faz-se ... sobre um saber e este é mais que
uma “tecnologia”. É um modelo de ordenamento do mundo que também
ordena as pessoas. (WOORTMANN e WOORTMANN, 1997, p.177).
Complexidades que Carlos Rodrigues Brandão, Ellen Woortmann e Klaas
Woortmann alertam para a dificuldade que tantos outros - intelectuais, agrônomos,
extensionistas, "os de fora"
163
- tem que compreender. Aqueles que desejam
transformar hábitos dos quais desconsideram outros possíveis significados assim
como têm os de gênero nas relações estudadas por Ellen Woortmann e Klaas
Woortmann: como o acesso às matas que é interditado às mulheres de forma a
poupar-lhes o enfretamento das adversidades peculiares a este espaço;
interdições que muitos dos que foram formados após os movimentos sociais
feministas criticam considerando-as machistas. Deve-se tomar cuidado ao julgar e
desejar transformar certos hábitos, pois pode ser que se desconheça o real
fundamento de alguns e, pior, que a perda destes possa levar à desorganização
de um grupo social.
Os agricultores assentados em programas de Reforma Agrária não possuem
o título de propriedade da terra, têm apenas um documento de cessão de uso da
mesma, concedido à família, que a autoriza à exploração das terras com que
foram beneficiadas, por um certo período de tempo
164
. Esta documentação é
emitida pelas instituições públicas do Estado ou da Federação, encarregadas da
legalização fundiária. Isto é motivo de angústia para muitos que se sentem
163
Expressão identificada como sendo de uso dos agricultores das áreas de estudos dos autores citados.
164
No caso dos assentamentos que são de responsabilidade do ITESP – Instituto de Terras do
Estado de São Paulo, este período é de 99 anos.
162
inseguros em relação à efetividade da posse. As histórias de vida de alguns deles
remetem à perda de seus espaços de produção por não atentarem, na época em
que foram expropriados, às questões legais de registro e documentação de seus
imóveis. Mesmo que o direito de uso-fruto baste para a geração que empreendeu
a conquista, este nem sempre a satisfaz, pois mantém em suspenso a garantia do
direito para a geração dos filhos e netos e também porque o título de propriedade
da terra em si ganhou muito valor em nossa sociedade.
Para alguns a relação para com a propriedade da terra ganha novas
perspectivas a partir do processo de luta, para os quais “mais que a legalização do
lote, interessa a possibilidade de trabalhar a terra: “terra de trabalho” não “terra de
negócio””. (GOMES, 1995, p.202). E para outros ainda, esta situação não é a mais
preocupante, especialmente para os que continuam ativos no movimento de luta
por terra, pois acreditam na força da organização e da mobilização dos
trabalhadores, a qual sempre garantirá a conquista realizada. Esta vida política
ativa lhes proporciona também um espírito crítico e aguçado, fruto das vivências
nas organizações e movimentos sociais. Consciência de seus direitos enquanto
cidadãos e a conquista dos bens mais preciosos ao ser humano: auto-estima e
dignidade.
Para o foco do meu trabalho não é relevante se os assentados são
produtivos, se querem agricultura de subsistência ou de mercado. Minha questão
é se as pessoas estão bem: se elas têm condições dignas para viver e se são
respeitadas. Alguns lutam por um lugar para os seus produtos no mercado de
consumo mais por uma questão de dignidade, pelo desejo de estarem inseridos
no sistema social, que no caso de nossa sociedade é capitalista. Certamente
muitos gostariam de usufruir os bens e estruturas materiais que esta sociedade
produz e oferece, no entanto o grau de ambição de cada um pode ser medido no
quanto certas pessoas se submetem a determinadas condições para desfrutar
destes benefícios. Percebo que para muitos os limites de qualidade de vida, desta
163
que se vive no dia-a-dia, pesam na hora de ponderar o quanto vale, ou não vale,
dispor de tempo para tanto.
O grande defeito dos destinos é esse, não fazem nada, põem-se à espera, a
ver, e nós é que temos de fazer tudo, por exemplo aprender a falar e aprender
a calar. (SARAMAGO, 1988, p.247).
Quando é que fazemos o nosso tempo?
Quando somos herói?! O herói tem poder sobre Cronos?
9.1. O mito do herói – a alma do artista e do militante
A busca! A partida em busca do novo, do outro, das origens: o enfretamento
e rompimento em relação às circunstâncias, às tradições, às adversidades; esta é
"a saga do herói", um dos muitos mitos disponível em nosso imaginário e
estudado por CAMPBELL (1997; 2002)
165
. Um mito que impulsiona a
transformação e recriação do mundo. Um mito que pode preencher e induzir a
alma de qualquer indivíduo: artistas, militantes, cientistas; os que "vivem"
intrigados com o mistério do mundo. Um homem que vislumbra em sua
imaginação formas novas e originais para o mundo, formas que retratam e
refletem imagens que podem vir a tocar profundamente outros seres humanos.
Homens que procuram caminhos que os levem ao encontro das realizações de
seus ideais. Caminhos que se forjam no percurso, que se delineiam com as
soluções criativas que se vai vislumbrando. É fundamental que existam indivíduos
exercendo este papel na sociedade para que as possibilidades existenciais
estejam sempre renovadas e para que haja beleza no mundo.
[...] a questão não está no fato de tal e tal coisa ter sido realizada na terra. A
questão é que, antes dela poder ser feita na terra, uma outra coisa, mais
importante e essencial, teve de passar pelo labirinto que todos conhecemos e
visitar nossos sonhos. ... superadas obscuras resistências e onde forças
esquecidas ... são revitalizadas, a fim de que se tornem disponíveis para a
165
CAMPBELL, 2002, Capítulo V, e idem, 1977.
164
tarefa de transfiguração do mundo. ... a vida já não sofre sem esperança ... ela
se torna penetrada por um amor que a tudo abarca e a tudo sustém e por um
conhecimento do seu próprio poder não conquistado. (CAMPBELL, 1997,
p.35).
A saga do herói recriando a vida de um homem ou de uma comunidade pode
se dar em qualquer dimensão de sua existência: seja a profissional, afetiva ou a
de cidadão; se for intelectual a sua profissão, pode perceber inovações que
dinamizem as descobertas em biologia, física ou sociologia; como artista, pode
criar imagens sublimes que revelem dimensões inimagináveis; ou ainda, como
militante político, pode idealizar condições de existência mais humanas que
motivem outros tantos homens a partir em busca dos mesmos ideais. John Patrick
Diggins estudando a obra de Max Weber e comparando-a com as de Nietzsche e
Tolstoi identifica: “a política como uma vocação trágica, o drama do destino e da
liberdade” ... “a força para resistir, para viver com convicção, ... a política, como a
tragédia, precisa de herói.” (DIGGINS, 1999, p.164).
De diferentes maneiras são sujeitos que realizam um mergulho interno e se
encontram com a sua singularidade trazendo percepções pessoais, originais,
novas formas de pensar e sentir o mundo. Para tanto abrem caminhos e
vislumbram possibilidades novas de se relacionar com o invisível e com o mistério,
o que muitas vezes é fruto de uma alma inquieta.
Esta busca não é tranqüila: as narrativas míticas das sagas heróicas alertam
para os perigos que correm os que se lançam em caminhos desconhecidos;
algumas sagas inclusive são narradas como não sendo bem sucedidas. Quais
determinações poderiam motivar um indivíduo a seguir caminhos tortuosos, e
possivelmente dolorosos, assim como é o do herói? O que será que instiga
alguém de tal maneira que o impulsiona a se lançar em caminhos incertos? O que
será que determina este desejo de transformação? Que este caminho seja o do
165
encontro com o sublime ou com o divino, o da conquista de uma terra ou de uma
condição de vida mais digna, pode parecer que seja simples justificar a partida.
Mesmo que nem sempre esteja claro qual objetivo o herói irá alcançar, ele
tem clareza da necessidade da transformação que ele percebe iminente, negar
este chamado é negar-se a si mesmo. A busca em si é o sentido de sua
existência. É algo da dimensão da revelação, intrínseco à alma de um homem, de
forma que não pode ser apontado por um outro qualquer e só a cada um é
possível saber se alcançou ou não, se encontrou ou não o que almejava.
Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos
os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua
extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos
encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos
matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para
longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde
pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo. (CAMPBELL,
2002, p.131).
Quantas voltas se dão em uma mesma alma: creio que algumas destas
voltas são espirais e outras circulares. Em algumas os passos são dados
somando-se experiências e em outras buscando as origens, o originário, ou então
o sentido. Conforme Joseph Campbell o de sempre volta sob nova formulação
(1997).
Agora, aprendi porque o mundo dá volta, quanto mais a gente se solta mais fica no
mesmo lugar Mônica Salmaso
166
166
Música “Na volta que o mundo dá
de Vicente Barreto e Paulo César Pinheiro, CD
Trampolin.
166
ROTINA
Elizabeth Rocha de Sousa
167
Quis mudar tudo...
Transformar
Quis parar com essa idéia,
De um dia após o outro...
Busquei conquistar...
Pensei mudar
Não deu em nada
Acabei voltando ao ponto de partida
Terminei na ROTINA.”
Para este projeto tomo dois perfis que julgo heróicos: o do militante e o do
artista; ambos querem criar uma nova realidade, os primeiros imbuídos de
sentimentos de justiça, solidariedade e amor e os segundos da necessidade de
expressão de sua visão estética do mundo. Ambos se remetem a questões
universais: é assim que o militante reúne forças para lutar por seus ideais e o
artista para realizar a sua obra.
O elemento comum que liga arte e política é serem, ambos, fenômenos do
mundo público. O que medeia o conflito do artista com o homem de ação é a
cultura animi, isto é, uma mente de tal modo educada e culta que se lhe pode
confiar o cuidado e a preservação de um mundo de aparências cujo critério é a
beleza. (ARENDT, 1999, p.272).
9.2. O herói, militante
Atenho-me, a partir daqui, a falar do militante, e mais especificamente, do
que está vinculado ao MST. Neste movimento social percebe-se nas pessoas uma
grande diversidade de motivações que determinam sua entrada e permanência
nele. No módulo Linguagens e Memórias tive a oportunidade de entrar em
contato com histórias de vida de alguns integrantes do Movimento. Foram muitas
167
Poesia enviada como parte do texto biográfico desta aluna do módulo Linguagens e
Memórias”.
167
as emoções compartilhadas: umas íntimas outras extrovertidas; umas dramáticas,
outras cômicas; umas poéticas outras em prosa; todas se entrelaçaram no texto
"Tramando histórias" elaborado por Agueda a partir destes escritos que em
conjunto apontam:
Semelhanças que aglutinam sentidos de pertencimento coletivo, nos quais
percebeu-se a repetição das características de alguns personagens que são
reconstituídos como heróis e mártires, que vivenciam situações dramáticas e
aventureiras; no entanto uma especificidade em cada uma destas histórias
que nos "pegam" pela sua força e beleza. (JUNQUEIRA, 2005, p.5).
Percursos heróicos ou casuais determinando a entrada no MST, instituição
que para a maioria pode representar mais do que uma solução econômica, o
espaço de realização ideológica e do desejo de transformação das condições
dadas no mundo e que o são apenas materiais, mas também as das relações
humanas, políticas e ambientais. Nestes relatos eles se colocam como pessoas
que se sacrificam, que são solidários e que estão imbuídos de uma missão
fundamental em suas vidas. Agueda, ao final do texto “Tramando histórias”,
retoma as reflexões que "conduziram a sua agulha na costura” desta narrativa:
Voltamos para nossos alojamentos cada um pensando em como temos
histórias em comum e como as nossas diferenças nos aproximam, na
medida em que aprofundamos o nosso conhecimento de nós mesmos.
Paramos para pensar nas possibilidades e nos riscos de nossa união
tão forte, de nossa fé, sem limites no nosso movimento.
Alguns poderão se perguntar: E que chances nós temos de fazer a
Reforma Agrária se universalizar?
E que possibilidades aparecem para o Brasil se tornar um país
socialista?
E o que ocorre se nos tornamos um grupo tão coeso que nos afastamos
dos outros?
E se de tão forte gerarmos o medo de quem está de fora?
E se crescermos tanto que nosso Movimento não caiba mais no campo?
E se a expansão do Movimento gerar a burocracia?
E bom, cabem mais, muito mais: se ...
Cabe seguir perguntando.
168
O MST é uma instituição criada com a finalidade de organizar um movimento
social que se dá em torno da luta pela terra. Para tanto necessita de regras e leis
que favoreçam a articulação e construção de possibilidades de realização dos
ideais que compartilham e ainda a proteção de seus participantes
168
. É
fundamental que estas regras e normas não cristalizem os ideais e não marquem
os caminhos "a ferro e fogo" de forma a eliminar as perspectivas subjetivas. É
preciso ter claro que as leis podem "caducar" e que não são elas a expressão do
ideal dos sujeitos que a elas se submetem. Este ideal é um conceito singular e
não pode ser reduzido a uma forma particular, assim como é a lei. A verdade
deste ideal é verificável no interior de cada um, onde a sua imagem está
“traçada” e de onde ela repercute e ressoa. Estes ideais repercutem porque estão
em sintonia com os das almas dos outros que participam deste mesmo espírito.
Ainda assim é uma imagem fluida e dinâmica, que não pode ser sintetizada em
uma fórmula acabada. Quando isto assim acontece, quando “os legisladores e as
leis são o que nos mantém unidos” é porque “não ethos”
169
na sociedade.
(CAMPBELL, 2002, p.9).
A força do Movimento se mantém pelo conjunto de singularidades que
concebem seus ideais como sendo atributo de todos. Um movimento de homens e
mulheres que caminham juntos de forma a realizar seus objetivos, determinados
em seus ideais e fortalecidos em sua união. Saliento assim, mais uma vez, a
importância da subjetividade citando Alain Badiou, para quem "a multiplicidade
sustenta a universalidade" (BADIOU, 1997, p.82), pois será com a diversidade de
caminhos e soluções vislumbradas no conjunto que o ideal que une todos os
indivíduos que estão vinculados ao Movimento poderá se realizar. O
168
Especialmente quando se trata de movimentos como o do MST em que o embate com as
tradições e o poder instituído na sociedade é tão forte.
169
Ethos é a palavra grega para “uso, costume, hábito” (Dicionário Grego-português de Isidro
Pereira, Livraria Apostolado, 6ª ed., Portugal, s/d); no entanto o emprego desta palavra no texto
de Joseph Campbell me remete ao conceito de ética, o qual pode ser mais facilmente
caracterizado relativamente ao conceito de moral, assim como fez Iria Zanoni Gomes na
página 45 de sua tese citada no capítulo Subjetividade desta tese.
169
posicionamento subjetivo permite que a pessoa avalie e reflita sobre o seu
posicionamento e a sua inserção a partir de sua própria experiência, o que lhe
propicia a busca de coerência entre o que está expressando e o que está
realizando em sua vida.
Iria Zanoni Gomes reflete sobre a importância dos movimentos sociais na
atualidade:
[...] não como construtores de sujeitos conscientes do sentido e da
intencionalidade de suas ações -o que implica pensar identidades, oposições e
totalidade-, mas como portadores de possibilidade de construção de novas
subjetividades ... subjetividades singulares. (GOMES, 1995, p.31).
O subtítulo da tese de Iria Zanoni é no assentamento a deconstrução/
reconstrução da subjetividade”. Esta autora elabora seu conceito de
subjetividade a partir do que foi proposto por Félix Guattari: enquanto uma
maneira de ver e construir o mundo, da resistência ao presente, enquanto
possibilidade de construção do devir, o que significa a possibilidade de construção
de subjetividades singulares.” (GOMES, 1995, p.21).
Iria Zanoni fala de uma subjetividade forjada na resistência (GOMES, 1995,
p.25) e construída na convivência com os movimentos sociais tanto para os
participantes destes como para os que trabalham junto a estes, como os
profissionais de extensão rural
170
. Cada um destes participando de um processo
que procura a democracia como forma de organização social, busca uma
participação pessoal/ subjetiva coerente com esta proposta.
170
Muito tem se falado e se discutido sobre o papel dos movimentos sociais na construção de
relações emancipadoras, especialmente nos meios em que participo e nos quais se está
procurando construir a Nova ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural), como o Projeto
de Assistência Técnica para Assentamentos no Estado de São Paulo: Formação
Complementar para Estudantes de Engenharia Agrícola e o Curso Formação de
Formadores em Metodologias Participativas para a Extensão Ruralambos vinculados ao
Ministério de Desenvolvimento Agrário-MDA.
170
A mística
171
preparada e realizada freqüentemente em diversos encontros do
MST possibilita que os participantes do Movimento se expressem singularmente e
é quando cada um o melhor de sua experiência na construção da imagem do
que seja esta nova realidade
172
: e quanta criatividade há em cada um destes
rituais.
Kellen Junqueira
Figura 12: Mística realizada no curso"Realidade Brasileira" oferecido para
jovens do meio rural vinculados ao MST de todo o Brasil, realizado na
UNICAMP em julho de 1.999.
O perigo que o herói sempre tem de enfrentar em sua saga sempre se
dissipa, mesmo quando o perigo se concretiza no mundo físico, assim como se
pode até contabilizar pelo número de vítimas da luta pela terra:
Assassinatos no campo de 1980-2003 = 1671; no MST 1987-2003 - 137
173
.
171
Expressões orais e musicais, encenações teatrais e outras preparadas pelos participantes do movimento
e que representam as diversas temáticas e ideais dos mesmos como a educação e a Reforma Agrária como
uma das questões fundamentais para a mudança social, a defesa da agricultura familiar em contraponto ao
agronegócio, a agricultura alternativa em contraponto aos transgênicos, entre outras bandeiras.
172
Um dos agricultores assentado em um programa de Reforma Agrária, o Assentamento Sumaré II, o
Sr.Trampolim, em uma conversa nossa comparou o cidadão que está debaixo de lona aguardando um lote
de terra com o favelado; para ele o primeiro dorme sonhando e o outro tendo pesadelos, pois o primeiro
em sua condição, ainda que precária, goza da expectativa de um dia ter um espaço para levar a sua vida
com dignidade.
173
Informações do site MST - www.mst.org.br - no qual aparece também o nome de cada
vítima, cidade natal e a data do assassinato.
171
Estes números antes que amedrontar os que participam do MST fortalece-os
e revitaliza-os, justificando-se o perigo iminente através da valorização de cada
um dos que se dedicaram à luta por um mundo melhor. Quando o herói não
conta com nenhuma de suas forças físicas para enfrentar seu inimigo e se
mantém fiel ao seu ideal enfrentando as adversidades é que a vitória é certa:
vitória mesmo que ela aconteça com a morte de um homem, que permanece
como vitória, pois fortalece os ideais de todos os que estão engajados no mesmo
movimento social.
Várias formas e espaços de consagração se renovam a cada dia, a cada
evento, a cada mística: em todos os encontros do MST espaço para
homenagear seus heróis. São heróis que não são apenas os mártires, os que
alcançaram com a própria vida este reconhecimento, mas também os intelectuais;
e não os de economia e política, mas também os da educação e da cultura; e
não os acadêmicos, mas também os agricultores, operários e migrantes,
"Serafins e Miguilins"
174
que tem seus bustos estampados em outros bustos e em
faixas levantadas em todos os espaços de atividades do MST. Personagens que
propiciam uma multiplicidade de referências para cada um dos que entram e se
engajam no Movimento. “A construção das lutas não tem caminhos, nem espaços
únicos, não constrói identidades, mas subjetividades heterogênicas”. (GOMES,
1995, p.69).
174
Personagens da música Assentamento, cuja letra é de Chico Buarque, Anexo 1. Estes nomes são de
personagens de Guimarães Rosa.
172
Kellen Junqueira
Figura 13: “Assentamento Che Guevara”, Pontal do Paranapanema
9.3. O herói, artista
A poesia tem uma felicidade que lhe é própria,
qualquer que seja o drama que ela seja levada a ilustrar.
Gaston Bachelard
175
Parece que ao artista está reservado abordar as questões humanas de forma
a tocar o íntimo dos indivíduos, despertando a sua sensibilidade e o seu
emocional para as questões primordiais da existência: como o direito que cada um
deve ter de se decidir em relação a sua própria vida assim como me fez refletir o
filme “Mar adentro”, que com o mergulho das meras pelas paisagens que
Ramón apenas avistava da janela de seu quarto era possível imaginar toda a
angústia deste personagem que ficara paraplégico
176
. Ou então no filme
Doutores da Alegria”, um documentário que arranca risos e lágrimas dos
espectadores, no qual os próprios artistas falam sobre suas experiências de
atores-palhaços nos hospitais, compartilhando suas aspirações, as mais
profundas, e seus princípios de respeito ao próximo. Questão que é muita bem
abordada pela psiquiatra-pesquisadora Morgana Masseti, uma das entrevistadas
175
BACHELARD, 1978, p.192.
176
Reflexão que foi fundamental para mim, pois assisti este filme logo após a perda de uma
amiga que suicidou-se.
173
no filme, que citando Spinoza e Nietzsche, comenta sobre as relações que
favorecem a potencialidade do outro e não sua passividade.
As relações são compostas de encontros onde um é capaz de aumentar ou
diminuir a potência de ação do outro. Se os encontros potencializam nossa
essência, experimentamos alegria. Quando uma idéia ameaça nossa própria
coerência através da culpa e piedade, por exemplo, experimentamos tristeza,
diminuindo nossa potência.
177
Esta argumentação tocou-me bastante, é uma das questões que atravessa
as minhas reflexões: a de como estabelecer relações com o outro. Creio que se
deve ter o cuidado de estar com o outro de forma a estar aberto para compartilhar
o que se sabe, o que não implica em dizer ao outro o que e como ele deve ser. As
relações impositivas muitas vezes intimidam o outro e o constrangem. Esta
questão me remete a uma outra reflexão sobre a disposição que alguns
manifestam do desejo de ajudar os outros
178
. Acho louvável a atitude de quem
saia de uma perspectiva individualista e atente para o outro, mas percebo que
muitas pessoas o fazem ignorando as necessidades e desejos do outro. Sinto que
muitas vezes o fazem no intuito de cumprir “obrigações” ou para se livrarem de
“culpas” que acometem alguns em função de uma moral religiosa ou existencial,
seja ela qual for. Creio que as relações devem se dar no intuito de se construir
uma sociedade melhor para todos. Acho que o sentimento que melhor expressa
esta postura é “solidariedade” o que todos precisam, e não só os que são carentes
e excluídos. Solidariedade é uma disposição fundamental para se pensar a vida
coletiva, pois tendo este sentimento como referência se deseja para o outro o que
também se almeja para si, como por exemplo: ter condições dignas para se viver,
177
Site “www.doutores Alegria.com.br”, no link em que há uma resenha do livro "Boas Misturas"
de Morgana Masetti.
178
Estando eu uma tarde no assentamento Milton Santos-Americana/SP, em meados de
dezembro, chega um carro novo tipo caminhonete, descem três pessoas que distribuem
brinquedos de plásticos e balas. Em um minuto as crianças disputavam os brinquedos e os
papéis de balas voavam por toda a área. Em seguida estas pessoas se aproximaram do grupo
de assentados reunidos, junto ao qual eu me encontrava, para se despedir e comentaram:
bom, agora, a gente vai assar uma carninha e beber umas pois afinal de contas todo mundo é
filho de Deus”. Eu não tinha nenhum gravador para registrar tal frase, mas foi assim que ela
ficou zoando na minha memória...
174
o que não significa apenas o alimento na mesa, mas também uma renda para que
se possa escolher o que colocar à mesa. As ações exclusivamente
assistencialistas distanciam as pessoas, separam os que podem e os que não
podem, e reforçam a passividade e o conformismo.
É de longa data a tradição de sociólogos, filósofos e pensadores se
remeterem às obras de arte para estudar e para retratar o imaginário de uma
época. no início do século XIX um conde russo, o escritor Leão Tolstoi, através
do apêndice de seu livro "Guerra e Paz", faz um questionamento sobre que tipo
de escrita pode ser considerado a melhor para expressar o mundo e a vida dos
homens: a de um literato ou a de um historiador?
O historiador é por vezes obrigado a forçar a verdade para fazer com que
concordem todos os atos de uma personagem histórica com a idéia que ele faz
dela. O artista, pelo contrário, considera esta idéia preconcebida incompatível
com o seu desígnio e trata apenas de compreender e de nos mostrar, não o
autor deste ou daquele ato, mas um homem. (TOLSTOI, 1976, p.1553)
A narrativa poética tem maiores probabilidades de refletir a verdade de que
está imbuída uma vivência. Com outro enfoque, esta idéia é reafirmada por um
outro russo, Andrei Tarkovski: Há alguns aspectos da vida humana que só podem
ser reproduzidos fielmente pela poesia.
179
” (TARKOVSKI, 1990, p.31).
Machado de Assis é um autor bastante estudado e referido por sua
capacidade de apreender os costumes da sociedade como nenhum outro de sua
época. Podemos nos remeter ainda à obra Memórias de um sargento de
milícias”, de Manuel Antonio de Almeida a partir da qual Antonio Candido
elaborou concepções tão instigantes como as da “dialética da malandrageme do
universo sem culpabilidade
180
.
179
Para este cineasta, bem como para diversos pensadores, uma obra poética não se restringe
à literária. Qualquer obra artística pode ter a sua poesia.
180
A que me referi no capítulo 8.
175
Estas análises não se restringem à indicação de relações de causa-efeito. Os
que partem deste tipo de obra para fazerem as suas leituras, pelo menos as que
destaco como pertinentes, o fazem interagindo e recriando o que está dado.
alguns que tendem a analisá-las tendo em vista conceitos psicológicos ou
psicanalíticos, assim como observou Gaston Bachelard, e assim sendo o fazem
desconsiderando que as “imagens são imprevisíveis” (BACHELARD, 1978, p.193).
também os que se remetem aos artistas plásticos assim como José de
Souza Martins, que no Seminário “Caipira: Cultura, Identidade e Mercado”, se
referiu aos pintores Tarsila do Amaral e Almeida Jr., os quais segundo ele retratam
muito bem a cultura caipira. Acrescento ainda Cândido Portinari que também se
inspirou nesta cultura para conceber muita das suas imagens, eternizando a
memória de brinquedos e brincadeiras, festas e paisagens que foram vivenciadas
por este artista:
Silenciosas quase sempre
Raros caminhantes, cores diversas
As mais próximas das fazendas
Alegravam-me sempre
A porteira preta acolhia
As assombrações, a coragem
Ao avistá-la, fugia no espaço
O som das porteiras distantes que estão dentro de mim ...
(PORTINARI apud CALLADO, 1978, p.113)
Rodrigo Naves em seus estudos de alguns pintores que retrataram a
realidade brasileira analisa as obras de Jean Batiste Debret, pintor convidado pela
realeza brasileira para representar e documentar o país e que chegou ao Brasil
em 1816. A partir da análise de uma de suas aquarelas ele escreve:
As festas, danças e músicas são as poucas ocasiões em que eles (os
escravos) podem sentir o próprio corpo de maneira prazerosa, e Debret
consegue apreender esses ritmos ... Soltos e despreocupados, eles se deixam
levar por um movimento que não lhes é imposto de fora. (NAVES, 1996, p.82).
176
Para além do que uma obra de arte pode revelar de sutilezas e durezas de
uma dada época, muitos pensadores que acreditam que os artistas captam
tendências ou então criam novas perspectivas para a vida, assim como percebeu
Sidney Valadares Pimentel em relação à obra de Guimarães Rosa, como
mencionado (PIMENTEL, 1997, p.19).
Walter Benjamin
181
, em seus estudos, se remete a vários escritores para
esboçar suas reflexões, como se nas obras destes artistas estivessem
subentendidas as concepções que ele apreende: “A tarefa do escritor não é,
portanto, simplesmente relembrar os acontecimentos, mas substituí-los às
contingências do tempo em uma metáfora.” (BENJAMIN, 1982, p.16).
ainda pensadores que acreditam que é preciso estar imbuído de um
espírito artístico para que se possa desenvolver a contento uma profissão: "o
sociólogo que quer compreender o Brasil deve transformar-se em poeta". (Roger
Bastid
182
apud LAPLANTINE, 1991, p.177).
Para Andrei Tarkovski é muito clara a função da arte:
A arte nasce e se afirma onde quer que exista uma ânsia eterna e insaciável
pelo espiritual, pelo ideal: ânsia que leva as pessoas à arte. A arte
contemporânea tomou um caminho errado ao renunciar à busca do significado
da existência em favor de uma afirmação do valor autônomo do indivíduo.
(TARKOVSKI, 1990, p.40).
181
Este pensador dedica capítulos inteiros para falar a partir da obras de artistas como Marcel
Proust, Kafka e Baudelaire. (BENJAMIN, 1982).
182
Roger Bastide, Images du Nordeste Mystique en Noir et Blanque (Imagens do Nordeste
Místico em branco e preto), Pandora, Paris, 1978 in LAPLANTINE, 1991.
177
Além de Tarkovski diversos outros pensadores - Benedetto Croce, Carl Jung,
Giulio Carlo Argan, Hanna Arendt e Joseph Campbell
183
- destacam a percepção
aguçada que os artistas têm para retratar a vida e as questões existenciais que
envolvem os homens e os conflitos que os afligem. Quando a arte consegue
apreender estes significados universais de nossa existência, é que ela
emociona e mobiliza em nós os mais fortes e profundos sentimentos.
O trabalho artístico anseia entender o tempo, entender a eternidade naquele
instante e criar materialidade na ausência, no vazio. (WEISS, 1988, p.95)
184
O vazio era vazio sem textura,
sem memória, intocável. Tinha
consciência de sua presença
e começava a explorá-lo
enquanto possibilidade de criação
poética. (CARUSTO, 2003, p.13)
185
Diversos estudiosos apontam as expressões inovadoras que muitos
movimentos artísticos trouxeram ao mundo. As perspectivas abertas pelos artistas
são de toda ordem, assim como a que HERKENHOFF se refere ao falar sobre a
obra de Ligia Clark:
183
O poeta confere (ao tema) um grau superior de clareza e de humanidade.” (JUNG, 1991,
p.78); Arte é intervenção na realidade com o propósito de fornecer a chave para a
interpretação e fruição estética.” (ARGAN, 1993, p.74); A arte prescinde dos valores, ideais e
regras (particularidades) mas as contém enquanto universais.” (CROCE, 1997, p.129); Nosso
interesse pelo artista não concerne tanto ao seu individualismo subjetivo como ao fato de ser
ele afinal, o autêntico produtor daqueles objetos que toda civilização, deixa atrás de si como a
quintessência e o testemunho duradouro do espírito que a animou.” (ARENDT, 1999, p.252);
citação no capítulo “Linguagens e Formas de expressão” (CAMPBELL, 2002, p.241).
184
Importante salientar que Luise Weiss antes de ser uma acadêmica-pensadora ela é uma
artista plástica.
185
CARUSTO é o nome artístico de Carlos Augusto Nunes Camargo e esta citação é de sua
tese “Vazacorpos: Vestígios de um corpo oculto”, sob orientação de Luise Weiss.
178
Entendendo o plano como um conceito criado pelo homem para satisfazer sua
necessidade de equilíbrio, Lygia Clark parece encontrar seu limite para
enfrentá-lo: o plano marcando arbitrariamente os limites do espaço, ao
homem uma idéia inteiramente falsa e racional de sua própria realidade...
Demolir o plano como suporte de expressão é tomar consciência da unidade
com um todo vivo e orgânico. (HERKENHOFF, s.d., p.27).
Muitas das manifestações de protesto político no Brasil foram realizadas com
a participação ativa de muitos artistas: assim como Chico Buarque, que compôs a
música Assentamento”, anexo D, em apoio ao MST no auge dos conflitos e
confrontos dos movimentos sociais de luta pela terra. Nas épocas de grande
repressão foram os artistas que puderem continuar a falar dos ideais de libertação
com a linguagem metafórica e dissimulada que lhes é peculiar.
179
10. POSSIBILIDADES NARRATIVAS PARA AS IMAGENS-MOVIMENTO
A grande função da arte é a comunicação,
uma vez que o entendimento mútuo é uma força
a unir as pessoas, e o espírito de comunhão
é um dos mais importantes aspectos da criação.
Andrei Tarkovski
186
Uma das metáforas que procurei realizar no processo de concepção e
realização dos roteiros e do vídeo “Conversas de bois” foi a do olhar: a do “olhar
com a alma”. Para olhar com a alma é preciso tempo, é preciso estar, é preciso
estar disponível, aberto ao que está sendo vivenciado com sentimentos de
respeito e amor.
Quando há um encontro de almas,
a poesia emana e o universo conspira a favor.
Creio que foi isto que garantiu que aflorasse neste percurso a alma dos
protagonistas dos vídeos. Compartilho com eles as minhas verdades e percebo a
ressonância de nossas concepções de mundo: há algo nos encontros que revelam
o que se é, mais do que o discurso, os argumentos e justificativas para o vídeo
que seria feito. Talvez os gestos e o olhar propiciem a revelação das almas e
favoreçam a abertura para a intimidade, das memórias, da experiência.
É mostrando o olhar que se pode entrar em contato com a alma. Um dos
personagens do filme Doutores da alegria”, o Wellington, comentando sobre a
“máscara” de palhaço, disse que eles “conduziam” o nariz redondo como se fosse
os olhos procurando enxergar tudo o que se passa, ficando os olhos abertos,
como canais, para a alma. Assim sendo poderiam intuir qual seria a melhor
atuação: quais eram as possibilidades e limites cada vez que entravam em um
186
TARKOVSKI, 1990, p.42.
180
novo quarto do hospital. “A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim
transforma o narrador sua matéria, a vida humana”. (BOSI, 1999, p.90 ).
A narrativa de qualquer história tem a sua magia, mesmo que seja a simples
leitura de uma lenda: proporciona prazer. Isto se observa principalmente nas
crianças que solicitam que se repita uma narrativa, infinitas vezes, ou então nos
cinéfilos que freqüentam as salas de cinema sem se preocuparem em conferir a
programação. Se há mãos complementando a narração, incrementando o
movimento e conduzindo o olhar do espectador, a viagem pode ser muito mais
longínqua... Especialmente a nossa cultura, a latina, é famosa pela sua
gestualidade, sendo a mão um dos membros do corpo de expressão mais forte.
Tenho amigos que são grandes contadores de histórias, verdadeiros artistas: eles
compartilham suas experiências tornando-as exemplares, divertidas, dramáticas,
uma das qualidades da cultura oral que admiro muito.
Como eu não sei rezar, só queria mostrar, meu olhar, meu olhar, meu olhar...
187
Cada vez mais nos valemos do uso de diferentes linguagens para narrar
histórias. Isto o implica na criação de obras completamente novas
188
, mas que
podem, no entanto, ser originais dentro do contexto em que são concebidas, como
algo que tendo sido traduzido se reveste de perspectivas diferentes.
[...] o estudo do fenômeno da imagem poética ocorre quando a imagem
emerge na consciência como produto direto do coração, da alma, do ser do
homem na sua atualidade. (BACHELARD, 1998, p.2).
O percurso que fiz no intuito de compreender a linguagem audiovisual não foi
na área de comunicação, mas nas artes, o que acredito é o motivo pelo qual
entendo de modo diferente as qualidades do que é narrar. Dentro das
187
Verso da música “Romaria” de Renato Teixeira.
188
Mesmo porque, se assim o fossem, não seriam comunicativas, pois as linguagens utilizadas
não seriam compreensíveis.
181
perspectivas que estudei -cinema, vídeo e linguagem audiovisual- bastava-me a
literatura indicada para o desenvolvimento do meu trabalho, o qual estava dado
dentro de uma perspectiva da subjetividade.
Do ponto de vista acadêmico, a subjetividade muito vem sendo uma
questão de interesse no estudo da narrativa do cinema. (RENOV in MOURÃO
et al., 2005, p.244).
E não do ponto de vista acadêmico, pois também cineastas e outros se
manifestaram sobre o assunto:
ver é uma subjetividade ... o que eu tento fazer em cinema com o meu trabalho
é ver as coisas pela subjetividade do outro Walter Carvalho
189
(O filme Vida e nada mais
190
) é a reconstituição da viagem, que retoma não
o percurso da viagem original como a experiência afetiva vivenciada por
Kiarostami. (BERNARDET, 2004, p.64).
O ato de fazer filme, quando você inventa uma linguagem, é você que está
inventando, você tem que se compreender, tem de saber aquilo você é, aquilo
que você diz com clareza. Ruy Guerra
191
um filme é parte da sua biografia (alguém do público em uma mesa de debate
com Eduardo Coutinho in MOURÃO et al., 2005, p.131)
Quando tive que me preparar para dar uma aula de comunicação, foi
então que procurei uma bibliografia sobre o assunto. Foi interessante notar que as
reflexões colocadas pelos autores correspondiam às que eu estudara sobre
construtivismo, troca de saberes e processos participativos. Perspectivas dentro
das quais pretendo desenvolver o meu trabalho, inclusive o de produção
audiovisual. A princípio isto me parecia algo que ainda estava por ser descoberto:
uma linguagem ou o meio que possibilitasse este tipo de comunicação.
189
Declaração no Programa ZOOM/ TV Cultura, 1/4/2006. Especial sobre o Cine
Pernambuco” que aconteceu em maio 2004.
190
Dirigido por Abbas Kiarostami.
191
Declaração no Programa ZOOM/ TV Cultura, 26/8/2006.
182
Nas últimas aulas que dei usei o vídeo “Uma nação de gente
192
para
discutir linguagem audiovisual e exemplificar uma que fosse aberta. Paralelamente
tenho trabalhado, junto aos parceiros destes cursos
193
, o texto de Jorge Larrosa
Nota sobre a Experiência e o Saber da Experiência”. Neste processo fui
associando a sua idéia com os resultados das discussões que fazíamos a partir do
vídeo e quem mais aprendeu fui eu ao perceber o quanto a linguagem deste vídeo
favorece a troca de experiências. exibi este vídeo para diversos públicos, os
mais diferenciados: alunos da área de agrárias da região Sul e Sudeste e do
Acre/RO, alunos da FEAGRI, assentados de Americana e para um curso de
extensionistas em que estavam presentes pessoas de todo o país. De todas estas
experiências e em cada uma delas as provocações e as reações foram as mais
diversas. Os diretores deste vídeo construíram uma narrativa que ainda que
elogiosa ao protagonista, que posa de herói na história, não deixa de apontar
outras perspectivas, diferentes das que o protagonista coloca, contrapondo-a com
o depoimento dos outros personagens. Muitos dos espectadores, dos que
estiveram vendo o vídeo comigo, se referiram às suas próprias experiências,
sobre o uso do boi, da moto, da tecnologia, da relação com o patrão, com a
mulher. Houve até reações nostálgicas: muitos fizeram referência às passagens
de sua vida e às da infância. Percebo em muitos deles um contentamento, uma
alegria com o fato de alguém ainda manter um modo de vida tão afetuoso. Creio
que estas reações sejam frutos da troca de experiências que esta narrativa
propicia, do encontro de olhares, talvez de almas...
Uma produção audiovisual pode ser feita tendo como objetivo compreender a
realidade e não explicá-la. A compreensão acontece quando o diretor se abre para
192
Curta-metragem de Margarita Hernández e Tibico Brasil. Sinopse (elaborada por mim): Um
documentário sobre a vida do sertanejo e do vaqueiro, aboiando e cuidando de gado,
orgulhoso de sua farda de couro; o cenário é a caatinga; os aboios são como cantorias. O
diretor elege um dos atores como protagonista de sua narrativa e através dele faz a sua crítica
aos vaqueiros modernos que tocam a boiada com uma motocicleta; imagens em close trazem
elementos que dão dramaticidade ao filme, como um olhar sério e introspectivo e a chuva que
cai...
193
Os do “Linguagens e Memórias” e com Eliana Kefalás Oliveira e Maria Rita Avanzi.
183
os personagens e para o tema de seu projeto. Eu desejo comunicar-me com a
alma e provocar a vontade nos espectadores que assistirem o meu deo de
conhecerem a vida dos personagens que estarei abordando. O que não implica
necessariamente em ir até Minas visitar o Sr. Zé Moreno. Refiro-me a uma
dimensão de vida que possa vir a repercutir em cada um ao entrar em contato, e
quem sabe ser tocado, no que pulsa em cada um de nós. Pretendo favorecer esta
disposição valendo-me do “tempo real”
194
, quando os personagens falam por si
195
,
bem como da construção de simbologias, quando, através dos recursos de
montagem, buscarei associações que remetam a significações diversas das que
estão dadas na seqüência cronológica dos acontecimentos. Procurei explorar a
intimidade do personagem, expondo os espaços e tempos íntimos, como os da
família, da oração, da soneca; quando se toca um instrumento sozinho na calada
da noite ou se passeia nas ruas da cidade natal: quem sabe assim revelar-se-á
suas almas. Irei me valer ainda de recursos de edição e da trilha sonora.
Não quero mostrar heróis, ainda que os reconheça como tais, pois quero que
seja possível a identificação para que seja possível a qualquer um pensar na
perspectiva posta como sendo possível para si, para que as pessoas reconheçam
a humanidade em cada um dos personagens.
Mais do que dar informações e relatar o conjunto de conhecimentos e
experiências do Sr. Pedro, do Sr. Moreno, da D.Osita, do Sr. Calixto ou da
Silvia e do Bugão (personagens do vídeo realizado e dos propostos), o que eu
quero é provocar um desejo que abra o canal para a alma de cada um deles:
quem sabe os espectadores se descobrirão viajantes.
194
Utiliza-se o termo “tempo real” quando faz-se as filmagens registrando uma ação no tempo
em que ela decorre ou quando na edição mantém-se o máximo possível o tempo de filmagem,
sem tantos cortes.
195
Assim como eu fui tocada nas oportunidades que tive de gravar os depoimentos e rotinas de
cada um dos personagens.
184
10.1 Linguagens e Ofícios: Roteiro, direção e montagem
A verdade nunca pode ser contada
de forma a ser entendida e não acreditada
( Willian Blake)
Tornar visível o invisível: seria esta a verdadeira função da linguagem? ...
O cinema algumas vezes tomou a dianteira neste processo e nos ajudou a
descobrir sentimentos; associação entre imagens, o sussurro, a pulsação, o
silêncio, o olhar...” (CARRIÈRE, 1989, p.32).
A linguagem audiovisual é um dos meios de se narrar histórias, tradição que
vem se perdendo o que ocasiona o apagamento e esquecimento de tantas
experiências importantes para a humanidade; e mais do que isto, não permite que
se mantenham, que se criem e recriem referências para se pensar o mundo.
Porque decaiu a arte de contar histórias? ... Talvez porque tenha decaído a
arte de trocar experiências. (BOSI ,1999, p.28).
Não seria sua tarefa (a do narrador) trabalhar a matéria-prima da experiência -
a sua e a dos outros- transformando-a num produto, sólido, útil e único?
(BENJAMIN, 1982, p.221).
É o que se faz a partir da linguagem, construindo-se através dela os
sentidos, o sentido, o sem sentido, ou o que alguns denominam “experimental”. As
possibilidades narrativas para as imagens-movimento são muitas, talvez infinitas.
O sentido almejado e atribuído pelo autor, pode ou não ser captado, pode se
transformar em outro em função das experiências e expectativas de cada
espectador. Abbas Kiarostami, por exemplo, prefere manter o espectador
subinformado (BERNARDET, 2004, p.51): Gosto que o cinema deixe o
espectador livre para interpretar, como se o filme fosse seu” (BERNARDET, 2004,
p.52).
A narrativa que pretendo conceber é poética, o que procurei imprimir através
de determinados posicionamentos, movimentos e velocidades da câmera e ainda
na articulação do som e da música e pela inclusão de textos poético-literários de
185
forma a criar uma situação emotiva que favoreça a imaginação, bem como pela
inserção de outras passagens que qualifiquei como reflexivas. Opção que dá
maior liberdade ao processo de criação, pois não uma estrutura dramática ou
um começo-meio-fim para articular.
A poesia faz o sentido da palavra ramificar-se, envolvendo-a numa atmosfera
de imagens. (BACHELARD, 2001b, p.5).
De qualquer maneira na linguagem audiovisual há um contínuo para se
cuidar, que no caso de uma narrativa audiovisual não há como escapar da
sucessão de imagens e/ou sons. Eles podem estar desconexos, no entanto, um
conjunto deles sempre se estende numa linha temporal, que pode, isto sim, ser
comprimida e dilatada ou quebrada através de interferências na imagem ou no
som.
Se algum caminho que favoreça a compreensão do quanto a articulação
de um discurso é ideológico é a realização de um vídeo. Quando se tem que
articular um conjunto de idéias de forma a construir um sentido e, o mesmo se
passa, se o cuidado é o de não fechar os sentidos. Qualquer que seja a situação,
estamos sempre articulando elementos significativos de uma linguagem.
A beleza é uma necessidade epistemológica: é como conhecemos o mundo ...
resposta estética ao mundo (que) vincula a alma individual à alma do mundo.
(HILLMAN, 1993, p.20,16).
“A pesca milagrosa”
(Clarice Lispector)
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra
pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra morde a isca,
alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia
com alívio jogar a palavra fora. Mas cessa a analogia: a não-palavra, ao
morder a isca, incorporou-a. (Clarice Lispector apud OLIVEIRA JR., 2005, p.
57).
186
A não-palavra tem leveza, se encaixa na narrativa através da palavra em
função de uma ou mais dimensões: como a rima oral ou visual, a continuidade
espaço-temporal. Passa a ser matéria. A não-palavra ao ser incorporada em uma
palavra passa a ter um significado relativo à linguagem empregada e ao contexto
em que se insere. Nem sempre a isca mordida é a que melhor expressa a imagem
que desejávamos compartilhar, processo que não emite ruído, mas pode deixar
arestas. um tempo-percurso necessário para a maturação, elaboração e
concepção de um filme, tempo que não condiz com o tempo acadêmico,
institucional, com o do mercado. Tempo para criar uma intimidade com os
personagens, sejam os da vida real, sejam os da vida teatral, para compreender
suas perspectivas e expectativas e explorá-las. Tempo para vivenciar o tema e
elaborá-lo, seja a pauta de filmagens ou de edição.
Vou expressar a minha forma de relacionar-me com os personagens através
de uma citação de François Laplantine em que ele compara a experiência literária
com a do etnólogo:
Ele é tomado pela beleza ... que o encanta e mobiliza não apenas seu olhar,
mas o conjunto dos seus sentidos ... histórias de vida ... nas quais se procura
compreender o funcionamento e a significação das relações sociais a partir do
relato de indivíduos singulares. (LAPLANTINE, 1991, p.175,176).
Apesar de não ter realizado uma pesquisa e nem concebido um vídeo
antropológico sobre memória, sobre a cultura caipira ou sobre a luta pela terra,
valho-me de muitas das reflexões e experiências desta área de estudo. Isto se
em função do que apreendi da parceria que tive com alguns profissionais desta
área, bem como de algumas leituras que fiz. Dentre elas destaco Aprender
Antropologiado autor citado logo acima -François Laplantine- pensador francês,
que usa a metáfora do olhar em algumas passagens para descrever os processos
de descoberta do mundo e de si que o antropólogo vivencia. Para este pensador a
antropologia é um certo olhar sobre o mundo: no encontro das culturas -do
187
antropólogo e a da comunidade que se estuda- é que acontece o reconhecimento
de si no outro, através da experiência da alteridade (LAPLANTINE, 1971, p.21).
A leitura deste livro foi muito interessante ao meu projeto, pois coloca
questões e reflexões sobre o pesquisador antropólogo que se coadunam com a
minha forma de relacionar-me com o outro, com o mundo e com a pesquisa.
Destaco, a seguir, algumas delas: a busca de uma inserção que além de social
seja também subjetiva; percepção que não se mede apenas no nível macro do
grupo, mas também nas condutas fúteis”; observação da complexidade de
dimensões em função dos contextos em que os fenômenos e objetos se inserem;
percepção de que a sua cultura não é a única no mundo. Laplantine atribui
inclusive determinações místicas/ existenciais para o perfil deste profissional:
“explorar de uma maneira não especulativa esse ser do homem esquecido pela
tendência cada vez mais hipertecnológica e não reflexiva da ciência”
(LAPLANTINE, 1991, p.179, grifos do autor).
Por fim expresso a caracterização tipológica que este autor faz da etnologia à
qual ele se filia, uma que seja eminentemente amorosa e acrescento a
expressão de um outro autor citado em um livro de metodologias participativas:
de tudo aprendido, resta a certeza do afeto como primordial metodologia”.
(Bartolomeu Campos Queiroz apud CENPEC, 1999, p.25)
196
.
Creio que o estes tipos de posturas que possibilitam uma interação, uma
troca, de forma que se conheça assim a intimidade de alguém, para o que é
preciso estar disponível, tanto na disposição pessoal para olhar para o outro,
quanto tendo tempo para tanto. E é assim que podemos trazer o depoimento
de alguém respeitando a sua perspectiva, tratando-o com dignidade. Para o
cineasta-documentarista Eduardo Escorel é preciso criar uma relação de
confiançacom o personagem (ESCOREL, 2006, p.12), o que é fundamental em
196
CENPEC, ONG: Espaço de convivência, São Paulo/SP: CENPEC, 1999.
188
sua concepção para se ter um compromisso ético na realização de um
documentário.
O documentário é por excelência uma forma de encontro “entre os que
filmam e os que são filmados(Jean Rouch apud Andrés di Tella in MOURÃO et
al., 2005, p.76). Creio que para além do documentário isto acontece sempre que
se trabalha em uma perspectiva assim como a de Abbas Kiarostami, que cria
situações nas quais atores não profissionais, os que participam de suas
produções, mais se apresentam do que representam, de forma que eles vivem o
filme. Jean-Claude Bernardet cita um texto de Jean-Louis Comolli com o intuito de
favorecer a compreensão que ele tem da obra de Abbas Kiarostami:
Comolli, sugere “1) que ator e personagem se fundam; 2) que a ligação corpo-
palavra-sujeito-experiência-vida seja assegurada a tal ponto que a filmagem
não possa deixar de comprometer o corpo filmado; 3) que o filme seja
efetivamente o documento desse comprometimento. (COMOLLI
197
apud
BERNARDET, 2004, p.152).
Acredito na autenticidade dos personagens com os quais estive me
deparando: ainda que tímidos e mesmo que não soubessem especificar seus
papéis, se apresentaram bem, falaram com sinceridade de suas experiências.
Eu destaquei o percurso de realização do vídeo como tendo sido
construído na sincronia dos acontecimentos.
Ter sua imagem permite, talvez sair do fluxo ininterrupto, desse magma dos
sem-nome da terra. Assim como, dizem, cada coisa espera que um poeta a
nomeie para enfim existir realmente, pode ser que ela também espere por sua
imagem. E se cada um deseja ser fotografado para ter a prova visível, pelo
menos para si próprio, de que existe, que existência superior, que prestígio
não experimentará/ terá ao tornar-se visível a todos, ao aparecer na tela, no
cinema. (KIARTOSTAMI apud BERNARDET, 2004, p.131).
197
Comolli, J.L. L´anti-spectateur, sur quatre film mutants. Images documentaries, Paris,
44, 1°e2° trimestres 2002.
189
Procurei bibliografias para preparar-me para a elaboração dos roteiros, bem
como exemplos de redação de alguns. Busquei autores que eram cineastas ou
artistas dentre os quais encontrei: Jean-Claude Carrière, Gabriel Garcia Márquez,
Fernando Meireles, Giba Assis Brasil, Eduardo Escorel. Em um “site” de roteiros
198
consegui também alguns exemplos de roteiros de documentários. A maioria dos
roteiros disponível e dos textos sobre o assunto é de ficção, ainda assim, muitas
das indicações foram bem interessantes no que se refere à construção dos
personagens e da narrativa, pois desejava retratar dimensões simbólicas dos
personagens. Vale ressaltar o que é senso comum para muitos realizadores/
cineastas: que não provém a distinção entre ficção e documentário, pois tanto em
um quanto em outro há uma construção narrativa e uma encenação.
As leituras foram bastante válidas para a concepção dos roteiros; a definição
dos cenários, onde seriam tomados os depoimentos; repetições na estrutura que
denotem uma continuidade da história (trilha sonora, objetos de cena,
características dos personagens); definição de pontos altos no começo e final de
cada bloco narrativo; a relação com os objetos de cena/ ferramentas de trabalho, o
que poderia ser realçado em função dos enquadramentos; as ações, rotinas e
espaços de atuação dos personagens que muito mais que seus depoimentos
revelam suas personalidades
199
, um filme não deve descrever mas mostrar o
caráter dos personagens” (CHION, 1989, p.227).
198
site www.roteirosdecinema.com.br
199
É difícil um corpo mentir ou inventar uma habilidade ou se mostrar leve em um estar, em um
agir, que não o do seu natural, o da sua experiência.
190
10.2 As histórias de cada vídeo
A obra poética possibilita a participação do
espectador no processo de descoberta da vida
Andrei Tarkovski
Como resultado desta pesquisa gostaria de estar relatando as experiências
de realização de quatro vídeos, assim como havia previsto no início deste
processo, mas a falta de recursos e de estrutura do laboratório TerraMãe não
possibilitaram tal intento. Tendo em vista o prazo de finalização desta s-
graduação, resolvi investir pessoalmente na realização de um deles -“Conversas
de bois”- que, de comum acordo com meu orientador, seria o melhor para os
objetivos desta tese pois se refere ao meu universo pessoal. Era a narrativa à qual
eu tinha uma relação pessoal e afetiva, já que se refere ao meu avô e aos vínculos
da minha ligação com a terra.
No entanto, amadureci bastante as demais propostas -Trilogia, Afeto da
Terra e Trajetórias- em função dos projetos enviados para solicitação de recursos
e devido aos contatos que estabeleci com os possíveis protagonistas destes
vídeos, de forma que também vou abordá-las neste item. O Afeto da terra será
um curta-metragem (em torno de vinte minutos) e os demais média-metragens (de
quarenta a cinqüenta minutos).
Apesar de narrativas abertas, procurei dar sentido(s) para elas; explorar e
expressar valores. Cada um dos roteiros e o conjunto deles é fruto das minhas
reflexões decorrentes do tempo em que transcorreu esta pesquisa, bem como de
toda a experiência que venho acumulando na minha história de vida.
São essas experiências (cotidianas de olhar e ouvir), provenientes de nossos
corpos em ação no mundo, que poderão ser apropriadas (utilizadas por nós
próprios ou outros) como signos de uma narrativa audiovisual. (OLIVEIRA JR.,
2005, nota 8).
191
As observações que faço a seguir me guiaram na gravação das imagens do
Conversas de bois” e na concepção das pautas de gravação dos outros vídeos.
Nos depoimentos procurei uma certa intimidade através do uso de uma
câmera próxima e em closes. Evitei ruído do som ambiente (sempre que passava
algum meio de transporte, na rua ou no céu, e se fosse possível, eu parava a
gravação; ruídos que algumas vezes foi possível resolver na ilha de edição).
Procurei uma iluminação suave, evitando a exposição ao sol direta, para o que
contei com a ajuda de São Pedro, o que é guardião das portas e das águas do
céu, que nos dias de gravação em Minas Gerais mandou chuvas e antes delas as
nuvens. No caso das gravações previstas nos assentamentos, pretendo fazê-las
no começo ou final do dia.
A câmera se aproxima do personagem revelando sua expressão facial e
corporal, especialmente quando este estiver compartilhando os conflitos e as
dificuldades vividas. As cenas de trabalho serão feitas destacando-se o esforço
físico bem como os momentos de pausa em meio à rotina de trabalho. A câmera
se movimenta mostrando o esforço físico dos personagens. Registrar as
expressões do olhar e do corpo durante os depoimentos de forma a dar força e
carga simbólica aos depoimentos.
Quanto ao cenário procurei tomar alguns cuidados e atenção: manter os
indícios de trabalho, de movimentação de pessoas e se possível mostrar os
espaços que considero bonitos e significativos seja os de vivências pessoais, seja
os do universo rural. Quanto aos “figurinos”, prefiro as pessoas usando as roupas
de suas rotinas de trabalho que, entretanto, podem estar “alinhadas”; tomarei o
cuidado para não expor os personagens.
O som será um elemento fundamental. Usarei o som direto nas cenas de
trabalho (esculpindo, aboiando, plantando, colhendo, cozinhando, afinando o
192
instrumento). Destacarei o som da roda de viola, do grupo rezando o “Pai Nosso”.
Atenção ao registro de sons do ambiente: da oficina, do estábulo, do rural, do
trabalho, do canto do carro de bois do arado, da paisagem, da cigarra, do
depoimento. Pelo som e pela música pretendo identificar diferentes formas de
expressão e de manifestação das motivações simbólicas, que também seo
caracterizadas pelo silêncio. Explorarei na trilha sonora a passagem do som direto
para o silêncio interior, subjetivo. Em alguns momentos vou mesclar sons de
diversas fontes para ilustrar as dúvidas e conflitos.
Cantá
(Gildes Bezerra)
200
Cantá seja lá cumu fô
Si a dô fô mais grandi que o peito
Cantá bem mais forte qui a dô
Eu gosto muito de cantá e de música. Não é à toa que tantas citações de
poesias de letras de música nesta tese: se a linguagem musical fosse mais
difundida, e se eu a conhecesse, eu colocaria as partituras de cada uma delas
aqui para que o leitor ao se deparar com cada uma delas pudesse cantarolar. Para
além do som melódico e rítmico que gosto de ficar ouvindo e cantando na minha
rotina do dia-a-dia, dedico tempos exclusivos para entrar na dimensão que, pelo
menos para mim, a sica propicia, dimensão que eu nem sei qualificar... Eu
desejaria compreender melhor este universo e, como a gente compreende bem
aquilo que a gente cria, eu, assim como Luiz Fernando Carvalho
201
também
gostaria de compor músicas, compor imagens musicais, as que se “vê com os
ouvidos”.
Com os meus estudos sobre cinema, e especialmente os que fiz sobre trilhas
sonora e musical, passei a perceber melhor a espacialidade que o som tem e
200
Poesia completa no anexo F.
201
Diretor do filme “Lavoura Arcaica”, citação referida no item Imagens.
193
proporciona. A inclusão de trilhas musicais e sonoras nos vídeos, sejam as
diegéticas -as que são internas aos planos de filmagem- ou as que estarão sendo
colocadas em som off e/ ou sendo compostas especialmente para os vídeos, eu
pretendo fazê-la de forma que elas sejam narrativas também, que não sejam
simples preenchimento dos espaços-tempos e muito menos para dar um ritmo que
garanta o envolvimento do espectador. Desejo que sejam narrativas significativas:
líricas, épicas ou dramáticas, ou quem sabe traduções das almas de cada um dos
personagens ou dos temas a que se remetem: que sejam as músicas do Pedro,
do Zé Moreno, da Osita, Calixto ou Marcelino; da memória da Festa da Juréia, dos
Reis Magos ou de uma ocupação de terra. Em geral a música é composta a partir
da edição das imagens feitas, o que não implica em que ela esteja subjugada a
elas, e como estamos na era da edição digital, a música pode até determinar uma
reedição das imagens. Pode até ser que ela seja inaudível, pois ela se mesclará
no ritmo da montagem. O que, aliás, eu espero que assim aconteça: que o
espectador possa estar se deleitando com o conjunto da narrativa de forma a
relaxar os sentidos e percebê-la como um todo. Não ser escutada no entanto, não
quer dizer que ela não será perceptível, talvez tanto mais, que em dimensões
de nossa percepção na qual não estaremos observando o que estará
acontecendo. Seria um “pecado” pedir a alguém que criasse algo que não seria
objeto de observação, quiçá de desejos, certamente os compositores de trilhas
sonoras sabem da peculiaridade de seu trabalho.
O som que introduz o vídeo Conversas de boisé o da serra de madeira, o
qual transportará o espectador para a oficina do Sr. Pedro: é a “porta de entrada”
para o imaginário que remeterá ao trabalho com a madeira. Antes de terminar o
som da serra entra suavemente a música, para que o espectador mantenha a
atenção na narrativa.
194
Caio Petrônio colocou violão e clarinete na composição da melodia da trilha
sonora, instrumentos que dialogaram com o som que o Sr. Pedro faz com as suas
ferramentas e a madeira.
A ausência do texto abre o leque de significações associativas da linguagem
musical que pode assim interagir diretamente com a imagem, sem a
intermediação das palavras ... a letra da canção limita o número dessas
possibilidades associativas, a partir do momento em que a palavra estabelece
um sentido que direciona a percepção do público. A música pura, pelo
contrário, mesmo quando usada com função descritiva, sugere mais do que
explica. (CARRASCO, 1993, p.118).
Este sentido aberto é fundamental especialmente para o ponto da narrativa
no qual ela foi usada: no começo. A música instrumental está articulada com a
narrativa, provavelmente concentrando a percepção na cena que se estende na
confecção do carro de bois. A música denominada A resposta da marreta”,
apesar de ser diegética, foi usada como narrativa da memória do Sr. Pedro: voltei
para São Paulo para cantar moda de viola
202
, quando aparece sob o olhar deste
homem as suas esculturas: as de carreiro, agricultor, serrador, cavaleiro e sua
dama. A inserção da sica instrumental da canção -“Poeira”- ao final deste
vídeo certamente irá provocar rememorações nos que cantarolaram esta
música vivenciando alguma emoção. as músicas Peão na amarração de
Elomar, deste mesmo vídeo ou Deixe-me viver de Enoque Oliveira, do deo
Trajetórias”, foram usadas especialmente pelos sentidos a que as letras
remetem.
Outro recurso que pretendi explorar nas trilhas sonoras é o silêncio. Silêncio
que o é necessariamente a ausência de sons, mas que pode ser decorrente da
retirada ou quebra de sons que identificavam um conjunto da narrativa. O silêncio
no altar da casa do Sr. Pedro foi dado pela retirada em fade do tempo cronológico,
do som do relógio, que pulsa marcando o ritmo da sua vida, mas não a sua fé.
202
Verso da música.
195
Este silêncio será introspectivo, subjetivo, ou quem sabe lírico. Já o som da
música que foi dando o tempo épico e alegre para a Viagem pelos caminhos da
Juréiafoi retirado de súbito quando a câmera enquadra a escultura do carro de
bois no museu, o que pode ocasionar um tom dramático, mas que permaneceu
em um espaço de tempo que não chega a oprimir o espectador.
Todos os sentidos almejados são poéticos, não referências objetivas que
me possibilitem apontar claramente as percepções que cada um teem função
das narrativas construídas, mas espero que propiciem ao menos momentos de
contemplação. Todo este conjunto de indícios e desejos de construção narrativa
propicia um estilo ao meu trabalho, o que certamente eu irei atualizando no
decorrer das experiências que tiver.
10.2.1 Trilogia
Em função das reflexões e leituras que fiz para esta pesquisa preparei-me
para elaborar uma narrativa em vídeo que refletisse as motivações imateriais dos
que se vinculam ao movimento de luta pela terra. Motivações às quais referi-me e
especifiquei no capítulo “Lutar pela terra”.
Os meios de comunicação, em sua maioria, retratam os momentos de
ocupação de terras, de enfrentamentos com policiais e donos de terras enfocando
as dimensões econômicas das reivindicações dos movimentos sociais. Expõe a
público os participantes destes movimentos em seus momentos de maior
fragilidade (e muitas vezes de insegurança); exploram as forças políticas e
econômicas que estão em jogo, desconsiderando muitas vezes as tantas outras
motivações que impulsionam tantas pessoas a se vincularem a estes movimentos.
196
A luta é a expressão da busca, da transformação pela terra que liberta, é
união e solidariedade dos que heroicamente desafiam o que está dado para
construir um mundo melhor.
A música é arte e cultura, consolo e alegria que distrai a fome e a espera
pela terra, que anima as festas e os encontros, uma forma de expressar
sentimentos e desejos, angústias e esperanças; especialmente para quem toca
um instrumento ou compõe uma música, para quem tem o dom de transformar
som em música, no som da terra.
É preciso muita para entrar neste tipo de movimento, no homem que
está ali, ao lado, durante uma ocupação; que muitas vezes é fruto de uma
determinação religiosa, pela promessa da terra prometida.
O trabalho é o cerne da práxis do homem rural que tem a agricultura como
um dom divino ou um direito. Trabalho que além de árduo exige muita
sensibilidade: é preciso estar inteiro com a natureza, é preciso afeto pela terra,
para que se possam perceber as necessidades dela, para que se possa colher
seus frutos da terra, cumprindo a rotina do ciclo de cada cultura agrícola. O corpo
se curva e se expande nos tratos culturais, com a enxada, com o arado; o olhar
permanece voltado para a terra, em atenção ao trabalho, cumprindo a rotina do
ciclo de cada cultura agrícola.
O trabalho compartilhado, na presença de um companheiro, é também
momento de afetividade, momento em que se conta causos e se canta músicas.
Coletivo que muitas vezes se restringe à família e outras vezes cresce para além
de uma comunidade, como é o caso do movimento de luta pela terra, no qual a
acolhida faz parte dos valores humanistas. Das tantas formas de expressão,
muitas vezes desconexas e incoerentes, não outra saída: o que resta é
compartilhá-las e no compartilhar, alguém as organiza, coloca em filas que cruzam
197
as estradas brasileiras e chegam a as autoridades para reivindicar "Reforma
Agrária: um direito de todos"
203
.
203
Lema da primeira Marcha Nacional por Reforma Agrária realizada pelo MST em 1997.
198
Os pontos de vistas e a memória dos protagonistas constroem em seu conjunto
uma perspectiva do que seja a luta pela terra.
Protagonista
Elemento
simbólico
Resistência
Grupo,
Organização
com o
Tempo
em
Silêncio
o Som Solidariedade
Osita a luta
a busca por
justiça
MST a terra liberta
o herói
universal
o hino
Marcha dos
Sem Terra
Calixto a fé
o sentido
da vida,
a esperança
a Pastoral da
Terra
a terra acolhe
São João
Batista
o pai nosso
Jornada "Zumbi
pela vida"
todos o trabalho
o afeto
pela terra
a Associação
do
Assentamento
a terra dá
frutos
o esforço
físico
dos
instrumentos
de trabalho
As assembléias
Silvia e
Cícero
a música
a cultura
a Folia
de Reis
a terra canta
a arte
a música
caipira,
a viola
o Encontro de
violeiros do
MST
199
A proposta deste vídeo é abordar estas dimensões, estes pontos de vistas e
estas memórias, através da história de vida e rotina de agricultores familiares
engajados nos movimentos sociais que em suas diferentes subjetividades tem
cada um mais presente uma ou outra dimensão.
Conheci o Sr. Calixto
204
em 1989 quando iniciei minhas atividades na
Extensão Rural da FEAGRI. Sempre me impressionou sua capacidade discursiva,
um homem que ainda que analfabeto, e talvez por isso mesmo, fala com destreza,
articulando fatos da política corrente e que consegue impregnar sua narrativa de
elementos familiares às pessoas e grupos com os quais se depara. O Sr. Calixto
entrou na luta através da CPT
205
, e a partir dele destaco a religiosa como um
dos elementos fundamentais dos que se engajam neste movimento.
A identificação dos demais personagens foi feita com a ajuda de amigos do
MST aos quais solicitei que procurassem pessoas que participam do Movimento e
que apesar de convictos na luta e resistência na terra que não tivessem falas
carregadas de fórmulas discursivas e expressões ideológicas, foi assim que
encontrei os demais personagens. Fui conhecer cada um deles e todos pareceram
corresponder ao perfil que eu imaginei retratar nesta narrativa.
D. Osita
206
é liderança do MST e a partir do vínculo que mantém com esta
luta abordaria sua disposição heróica, a busca por justiça e transformação social.
Atualmente ela apóia diversos grupos de ocupação e acampamentos do
Movimento. D.Osita tem um vocabulário bastante peculiar e uma boa
expressividade, expondo claramente as suas experiências e concepções de vida,
para o que se vale de muitas imagens.
204
João Calixto da Silva, assentado em Sumaré/ SP.
205
Comissão Pastoral da Terra ligada à Igreja Católica
206
Maria Osita Costa De Albuquerque, assentada em Iperó /SP.
200
O casal Silvia e Cícero
207
onze anos formou a dupla "Silvia e Bugão" e
desde então anima diversos encontros e festejos tocando música
208
caipira. Com
a volta à terra, participa da organização de uma Folia de Reis que percorre os
lotes de todos os devotos da área, tocando e cantando, agradecendo as
conquistas e pedindo melhores dias para a agricultura neste país.
Destacarei também a participação nas organizações de que faz parte, que
mais do que espaços de poder, são espaços de convivência e solidariedade.
Roteiro:
Abertura: (tela preta). Música original com o som da viola em destaque.
(letreiro e logomarca) uma produção Laboratório TerraMãe.
fade
Apresentação dos protagonistas (imagem still e nome).
Imagem Silvia (lado esquerdo tela) e nome completo abaixo da imagem
Imagem Cícero (lado direito tela) e nome completo abaixo da imagem
Imagem Osita (lado esquerdo tela) e nome completo abaixo da imagem
Imagem Calixto (lado direito tela) e nome completo abaixo da imagem
(letreiro) em
fade
título do filme: Trilogia da terra
fade
Seqüência 1: manhãs de trabalho.
cena 1: Continua o som da viola ritmado por uma percussão que faz
contraponto com o som direto do trabalho na roça e um tom mais
lírica nas câmeras subjetivas. EXT/DIA - lote Calixto.
207
Cícero Pereira da Silva e Silvia da Silva são do Assentamento Antonio Conselheiro
localizado na cidade Mirante do Paranapanema/SP da região do Pontal do Paranapanema.
208
Silvia na viola e Cícero na voz, inclusive com composições próprias.
201
Calixto trabalhando na roça. Câmera percorre o corpo até o no
chão. Retratar o corpo que se curva e se expande nos tratos culturais com a
enxada; o olhar permanece voltado para a terra, em atenção ao trabalho. Estas
imagens serão feitas destacando-se o esforço físico. Mostrar a roça com parte do
trabalho feito. Também será registrado o momento de pausa em meio à rotina de
trabalho, o qual será filmado buscando-se um olhar reflexivo. Na passagem para a
pausa será feito um fade out no som permanecendo o silêncio até o final da cena.
cena 2: Som direto. EXT/DIA - lote Calixto.
Calixto na roça, falando sobre sua plantação, livre para qualquer
interrupção: alguma observação sobre algum pássaro, algum elemento da
paisagem. Depoimento sobre os projetos em agroecologia
209
.
cena 3: Som direto. Música original em tom lírico. EXT/DIA - lote Osita.
Osita na horta escolhendo e colhendo verduras. A câmera anda e
se movimenta acompanhando a personagem. Uma câmera subjetiva mostra o
olhar para a terra e para o horizonte. Osita cuidando dos vasos na varanda.
Depoimento sobre os contratempos vividos. Câmera lenta com closes na face
idosa.
cena 4: Som direto. INT/DIA.
Sra.Osita na cozinha coletiva do MST preparando e servindo
almoço (identificável como sendo do MST através de bonés, camisetas,
bandeiras).
cena 5: Som direto. INT/DIA.
Sra.Osita dando depoimento sobre o prazer em servir, sobre
quando optou por entrar no Movimento; sobre os contratempos vividos.
209
O Sr.Calixto tem se envolvido com projetos de manejo alternativo na agricultura, evitando o
uso de defensivos, fazendo rotação de culturas e aplicando adubos orgânicos, entre outras
tecnologias agroecológicas.
202
cena 6: Som direto. Música original em tom lírico. EXT/DIA lote Silvia e
Cícero.
Silvia, Cícero e filhos tiram leite e cuidam do gado. Cícero anda em
direção ao pasto, câmera enquadra o corpo de Cícero junto às vacas.
cena 7: Som direto. EXT/DIA – lote Silvia e Cícero.
Cícero conta sobre a origem do gado.
cena 8: Som direto. EXT/DIA – portão entrada lote Silvia e Cícero.
Cícero entrega leite no portão do lote. Chegada do caminhão.
Carregamento.
cena 9: Som direto. EXT/DIA – no mesmo local onde Cícero fez as
entregas.
Depoimento Cícero sobre sua participação no grupo de sementes
crioulas, sobre as dificuldades de organização da cooperativa e de produção/
comercialização.
cena 10: Som direto. Música original com tom épico. EXT/DIA.
Câmera acompanha Sr. Calixto saindo de bicicleta do
assentamento para comercializar suas verduras; pegando a estrada em direção à
cidade (a câmera espera ele desaparecer na paisagem); o corpo no esforço de
empurrar a bicicleta na subida.
cena 11: Som direto. EXT/DIA.
Calixto vendendo verduras.
Seqüência 2: A vida coletiva, a na luta, no outro: as tardes nos assentamentos
e acampamentos...
cena 1: acampamento. Som direto EXT/DIA.
203
Sra. Osita acompanhando cenas de rotina de um acampamento.
Plano geral.
cena 2: Som direto. INT/DIA. Dentro de um barraco de lona.
Sra.Osita fala sobre sua motivação para acompanhar e ajudar
grupos de ocupação, sobre como tem sido a vivência dela acompanhando o
Movimento em um dos momentos mais difíceis desta trajetória que é a do
acampamento.
cena 3: acampamento. Som direto EXT/DIA.
Sra. Osita participa de algum trabalho em mutirão.
fade
cena 4: Som direto. EXT/DIA.
Ensaios musicais do grupo de Folia de Reis do qual Silvia e Cícero
participam.
cena 5: Som direto. EXT/DIA.
Pausa do ensaio. Imagens do grupo em conversas paralelas.
cena 6: Som direto. EXT/DIA - no mesmo local onde foi gravado o ensaio
da folia.
Depoimento Silvia sobre sua devoção e sobre a graça da “terra
prometida”.
fade
cena 7: Som direto. INT/DIA.
Sr. Calixto participando de grupos de discussão da igreja,
organização e apoio a grupos de ocupação de terra.
204
cena 8 :Som direto. EXT-INT/DIA.
Sr. Calixto apresenta a Igreja “São João Batista” de sua
comunidade e conta sobre o empenho de todos para conseguirem construí-la.
cena 9: Som direto. INT/DIA. Dentro da igreja.
Depoimento Sr. Calixto sobre sua na conquista, como um dom
divino que se recebe novamente a cada luta, que não é pela terra. Sobre sua
entrada na CPT
210
e sua participação hoje.
cena 10: Imagem de arquivo.
Depoimento do Sr. João Calixto
211
:
"então a bíblia nos inspirou, que nós haveria de partir e ir em busca de uma
terra prometida ... a gente vivendo num mundo tão violento e a igreja falava
coisa tão bonita ... a gente resolveu a por a bíblia em prática ... a gente foi em
busca de que? de uma terra e esta terra prometida seria este horto tão
maravilhoso que ocês tão vendo aqui ... era horto florestal ... hoje é um
assentamento de pequeno agricultor de Sumaré."
Seqüências 3: à noite: as marcas e as lembranças da vida de cada um dos
personagens.
Seqüência 3A: A música: a memória.
cena 1: Som direto INT/NOITE - casa Silvia e Cícero.
A câmera contorna lentamente Silvia afinando seu instrumento.
Silvia tocando a viola (Câmera em closes mostrando no olhar, no corpo, o prazer
de tocar).
cena 2: continuidade da cena anterior.
210
Comissão Pastoral da Terra ligada à Igreja Católica
211
Depoimento referido anteriormente.
205
Imagem da mão de Silvia tocando, executando a parte instrumental
da música que marcou a formação da dupla
212
, imagem abre em zoom mostrando-
a com a viola, continua o som, a imagem corta para um close de Cícero cantando;
a câmera abre para a dupla. O casal falando sobre a música que tocaram, sobre
as composições musicais próprias, sobre o lançamento da dupla na Rádio
Difusora.
cena 3: Som direto INT/NOITE - casa Silvia e Cícero. No cenário a
intimidade da casa, a presença dos filhos.
Depoimento sobre o que sentem quando tocam nos grupos de
movimentos sociais, na mística e em rituais religiosos.
cena 4: Som direto INT/NOITE - casa Silvia e Cícero.
O casal tocando e cantando uma moda de viola de autoria própria.
cena 5: Som direto, continua a mesma música. INT.
Silvia e Cícero apresentando-se na “Rádio Camponesa”
(Itapeva/SP).
cena 6: Som direto, continua a mesma música. EXT/DIA.
Silvia e Cícero apresentando-se no Encontro Nacional de
Violeiros
213
.
cena 7: Som direto, continua a mesma música. INT/DIA.
Silvia e Cícero participando em atividades do Movimento: tocando
na mística (identificável como sendo do MST através de bonés, camisetas,
bandeiras).
212
A música que marcou o início da dupla foi “O cachorro amigo” de Irídio e Irineu, em 1995, na
Rádio Difusora -Presidente Prudente/SP.
213
Encontro Nacional de Violeiros organizado pelo MST, realizado na cidade de Ribeirão Preto;
em 2005 aconteceu a terceira edição.
206
Seqüência 3B: A raça: da memória.
cena 1: Som direto INT/NOITE - casa Calixto.
Calixto depoimentos sobre o orgulho de sua condição de
assentado, o orgulho que sente pelas conquistas, sobre sua disposição a defender
mais e mais uma vez seu direito à terra. Depoimentos sobre sabotagens
(queimadas de plantios no assentamento), sobre a ameaça de expulsão da terra
por ocasião da construção do presídio da cidade de Sumaré e da rodovia
Bandeirantes. Tem seus frutos e suas alegrias por, entre outros motivos, ter visto
nascer os netos na terra conquistada.
cena 2: Imagem de arquivo.
Participação do Sr. Calixto na "Jornada Zumbi pela vida"
214
.
Voz off Calixto : Colaboração neste movimento por solidariedade e
compreensão que tem quanto à questão.
Seqüência 3C: A cidade: na memória.
cena 1: Som direto INT/NOITE - casa Osita.
Osita dando depoimentos sobre sua trajetória, que começa no
meio rural, teve sua passagem pelos centros urbanos onde se engajou nos
movimentos sociais até que se decidiu pelo retorno à terra.
cena 2: Som direto. Música original em tom lírico. EXT/DIA centros
urbanos.
Voz off Osita dando depoimento sobre a participação em
movimentos sociais da cidade. Sra. Osita andando em um centro urbano, fazendo
compras.
214
Marcha de São Paulo a Aparecida do Norte realizada por militantes, de diversas instituições,
promovida pela CUT (Central Única dos Trabalhadores) defendendo os direitos da população
negra.
207
cena 3: Som direto INT/NOITE - casa Osita.
Depoimentos sobre a participação dos filhos no MST que atuam
intensamente ajudando na articulação de ocupações.
Fade in som e imagem
Som da noite
Fade out som e imagem
Seqüência 4A: a fé religiosa, a fé na luta: a esperança.
cena 1: Som direto. EXT/DIA.
Edição paralela de imagens da Folia de Reis percorrendo o
assentamento, parando nas casas e o grupo em oração, contrapostas a imagens
de marchas públicas, ocupações e manifestações do movimento de luta pela terra
(As Imagens de Arquivo do MST
215
serão usadas na cor sépia para evitar uma
"quebra" na imagem devido à diferença de qualidade, para estabelecer um
contraste com as imagens coloridas da Folia e ainda para identificá-la como
sendo de um tempo passado). O ritmo da edição vai ficando rápido. A princípio o
corte do som direto acompanha o corte da imagem até que o som das imagens se
mescla completamente. Finalizar a seqüência com a imagem da Folia saindo de
uma casa.
fusão
cena 2: música original com a viola em destaque; volume da música baixo
com destaque para o som direto da imagem. EXT/DIA - lote Silvia e Cícero.
Silvia e Cícero com as filhas arando a terra, preparando-a para o plantio (a
imagem-movimento permanece na tela e vai ficando sépia). Com a mesma
215
O MST dispõe de um grande acervo de imagens de ocupações de terra, de enfrentamentos
com policiais e autoridades e das marchas públicas. Tenho autorização da Secretaria Nacional
da Cultura desta organização para usar as imagens do acervo.
208
imagem-movimento (sépia) na tela, sobe os créditos, entre eles, Silvia como
solista da viola.
Observações:
Minha expectativa é que a fala dos protagonistas seja suficiente para
expressar o objetivo proposto neste documentário, qual seja, retratar dimensões
simbólicas que motivam as pessoas a se agregarem a este movimento. Esta é a
poética que almejo empregar: atendo-me a estes personagens como
protagonistas/ porta vozes do meu argumento. Caso seja necessário, vou incluir o
depoimento de pessoas que têm experiências, vivências e reflexões sobre cada
uma das dimensões apontadas. Eles seriam a ponte com o real, com o racional,
explicitando através de depoimentos as dimensões simbólicas dos protagonistas.
São eles e os respectivos temas sobre os quais seriam consultados: Pereira da
Viola, um artista da viola - a música, a inspiração para compor, o vínculo pessoal
com o rural
216
. Carlos Rodrigues Brandão, antropólogo, estudioso da agricultura
familiar e da cultura caipira - o trabalho enquanto forma de ser/ estar. O Padre
Jansen será consultado sobre a disposição heróica e a , a convicção que
determina a participação militante na luta. Procurarei uma dimensão emotiva ao
depoimento deles, o que acredito possível devido às características pessoais de
cada um e suas histórias de vida: Pereira da Viola tem sua origem no meio rural e
expressa o seu dom artístico como fruto desta experiência; Pereira da Viola tem
ainda uma inserção política muito forte, tendo sido dirigente da Associação de
Violeiros e é um dos organizadores do Encontro de Viola do MST, participando em
diversos eventos desta organização; Carlos Rodrigues Brandão sempre exerceu
sua profissão interagindo com a população com a qual desenvolveu seu trabalho,
inclusive tornando-se morador do meio rural. Padre Jansen, para além de
professar a eucaristia, sempre se engajou e ajudou vários grupos a se
216
Caso opte por incluir este personagem poderia filmar Pereira com o violeiro assentado
participando do Encontro de Viola do MST.
209
organizarem na luta pela terra. Estas pessoas foram consultadas e se dispuseram
a participar do documentário caso solicitados.
10.2.2 Afeto da Terra
Encantou-me conhecer Silvia e Cícero. Creio que daria uma interessante
narrativa focar nestes personagens a abordagem das diversas dimensões
simbólicas que havia previsto fazer com os três personagens da “Trilogia”: um
casal de assentados que são parceiros ainda em uma dupla caipira e que tocam e
cantam em Folia de Reis. Afetos que se duplicam nos diversos espaços em que
eles se relacionam.
Pensei em articular a narrativa na seqüência de um dia na qual a luz da
manhã, da tarde e da noite, daria os tons do trabalho, da vida social e da memória.
Roteiro:
Abertura: (tela preta)
(letreiro e logomarca) Laboratório TerraMãe.
(letreiro) Apresenta
Imagem Silvia (lado esquerdo tela) e nome completo abaixo da imagem
Imagem Cícero (lado direito tela) e nome completo abaixo da imagem
(letreiro) em
fade
título do filme: O afeto da Terra (Música original com o som da viola em destaque)
fade
Seqüência 1: A subjetividade, a família: numa manhã de trabalho.
210
cena 1: Continua o som da viola ritmado por uma percussão que faz
contraponto com o som direto do trabalho na roça e um tom mais
lírico nas câmeras subjetivas. EXT/DIA - lote Silvia e Cícero.
Cícero trabalhando na roça. Retratar o corpo que se curva e se
expande nos tratos culturais com a enxada; o olhar permanece voltado para a
terra, em atenção ao trabalho. Estas imagens serão feitas destacando-se o
esforço físico. Mostrar a roça com parte do trabalho feito. Também será registrado
o momento de pausa em meio à rotina de trabalho, o qual será filmado buscando-
se um olhar reflexivo. Na passagem para a pausa será feito um fade in no som,
permanecendo o silêncio até o final da cena.
cena 2: Som direto. EXT/DIA - lote Silvia e Cícero.
Cícero na roça, falando sobre sua plantação, livre para qualquer
interrupção: alguma observação sobre algum pássaro, algum elemento da
paisagem. Cícero anda em direção ao pasto, conta sobre a origem do gado.
Câmera enquadra o corpo de Cícero junto às vacas. Depoimento sobre os
projetos em agroecologia, sua participação no grupo de sementes crioulas.
cena 3: Som direto. EXT/DIA - lote Silvia e Cícero.
Silvia terminando de lavar roupa, mostrar os movimentos pesados
deste trabalho, estende com a ajuda da filha; caminha para a horta onde escolhe
e colhe verduras. A câmera anda e se movimenta acompanhando a personagem.
Uma câmera subjetiva mostra o olhar para a terra e para o horizonte. Depoimento
sobre quando optou por entrar no MST, sobre os contratempos vividos. Câmera
se aproxima da personagem revelando sua expressão facial e corporal.
cena 4: Som direto. EXT/DIA.
Cícero entrega leite no portão do lote. Chegada do caminhão.
Carregamento.
211
cena 5: Som direto. EXT/DIA – no mesmo local onde Cícero fez as
entregas.
Depoimento Cícero sobre as dificuldades de organização da
cooperativa e de produção/ comercialização.
Seqüência 2: A vida coletiva, a : uma tarde tranqüila no assentamento.
cena 1: Som direto. EXT/DIA.
Ensaios musicais do grupo de Folia de Reis do qual Silvia e Cícero
participam.
cena 2: Som direto. EXT/DIA.
Pausa do ensaio. Imagens do grupo em conversas paralelas.
cena 3: Som direto. EXT/DIA - no mesmo local onde foi gravado o ensaio
da folia.
Depoimento Silvia sobre sua devoção e sobre a graça da “terra
prometida”.
Seqüência 3: A música, a memória: à noite.
cena 1: Som direto INT/NOITE - casa Silvia e Cícero.
A câmera contorna lentamente Silvia afinando seu instrumento.
Silvia tocando a viola (Câmera em closes mostrando no olhar, no corpo, o prazer
de tocar).
cena 2: continuidade da cena anterior.
Imagem da mão de Silvia tocando, executando a parte instrumental
da música que marcou a formação da dupla, imagem abre em zoom mostrando-a
com a viola, continua o som, a imagem corta para um close de Cícero cantando; a
212
câmera abre para a dupla. O casal falando sobre a música que tocaram, sobre as
composições musicais próprias, sobre o lançamento da dupla na Rádio Difusora.
cena 3: Som direto INT/NOITE - casa Silvia e Cícero. No cenário a
intimidade da casa, a presença dos filhos.
Depoimento sobre o que sentem quando tocam nos grupos de
movimentos sociais, na mística e em rituais religiosos.
cena 4: Som direto INT/NOITE - casa Silvia e Cícero.
O casal tocando e cantando uma moda de viola de autoria própria.
cena 5: Som direto, continua a mesma música. INT.
Silvia e Cícero apresentando-se na “Rádio Camponesa”
(Itapeva/SP).
cena 6: Som direto, continua a mesma música. EXT/DIA.
Silvia e Cícero apresentando-se no Encontro Nacional de Violeiros.
cena 7: Som direto, continua a mesma música. INT/DIA.
Silvia e Cícero participando em atividades do movimento: tocando
na mística (identificável como sendo do MST através de bonés, camisetas,
bandeiras).
Fade in som e imagem
Som da noite
Fade out som e imagem
Seqüência 4: a fé religiosa, a fé na luta: a esperança.
213
cena 1: Som direto. EXT/DIA.
217
fade
cena 2: música original com a viola em destaque; volume da música baixo
com destaque para o som direto da imagem. EXT/DIA - lote Silvia e
Cícero
218
.
10.2.3 Trajetórias
O roteiro deste documentário é o que foi concebido em conclusão ao
desenvolvimento do conjunto de disciplinas Linguagens e Memórias".
Construiu-se este roteiro a partir dos exercícios e reflexões feitos com os
participantes deste curso, abordando-se diversas esferas de comunicação e
formas de expressão que perpassam a memória pessoal e o universo destes
trabalhadores rurais e lideranças em suas histórias de vida. O roteiro reflete e
expressa o percurso de algumas experiências que, antes de qualquer coisa,
simbolizam a “história universal” da luta destes homens por justiça e liberdade,
configurada na busca de uma terra, característica do movimento social ao qual
pertencem: o MST.
No desejo da conquista, estratégias são experimentadas; estão juntos
os que leram Marx, os que foram sindicalizados, os que foram expropriados,
os que são amigos de João, de José e de Manoel; todos com seus desejos
pulsantes, com seus valores cristãos, universais, idealistas, vislumbrando na
terra o começo do céu.
O caminho, uma metáfora, a do percurso: é caminhando que se
aprende o caminhar.
Bernardo, filho de sitiantes, aprendera na dureza da vida no campo o
que lhe cabia, o que lhe seria possível prouver.
Gildo trabalhara na roça, depois como bóia-fria no corte-de-cana,
engoliu muito desaforo de "gato" capataz.
Hortência, técnica agrícola, começara prestando serviços e terminou
casada com um assentado.
217
Repete as observações da Seqüência 4A, cena 1, do roteiro do vídeo “Trilogia”.
218
Repete as observações da Seqüência 4A, cena 2, do roteiro do vídeo “Trilogia”.
214
Raquel, intelectual-universitária, vislumbrara no Movimento uma forma
de realização de seus ideais de transformação.
Cada biografia uma maneira de dizer qual o vínculo com o movimento
de luta pela terra.
Não caminhos que se possa percorrer para que se construa uma
personalidade heróica: ela se forja nas condições e circunstâncias da vida de
cada um que está nesta busca.
Na disciplina “Escritos biográficos e histórias pessoais” houve o
reconhecimento de diversas formas para se relatar histórias e memórias. A partir
dos exercícios com as fotografias explorou-se e analisou-se a linguagem do
conjunto de imagens como, por exemplo, identificando-se a presença de linhas em
perspectiva que indicavam a racionalização dos espaços e o direcionamento do
olhar. Foram feitos exercícios imaginativos de produção cinematográfica durante
os quais foram tratados conceitos de linguagem audiovisual indicando elementos
de câmera, luz, figurino, encenação e montagens que poderiam ser realizados de
forma a traduzir e expressar o que ia sendo proposto por cada aluno como
argumento para um vídeo. Discutiram-se as formas de apresentação de imagens
e informações nas linguagens usadas nos sites do MST e do Movimento
Zapatista EZLN “Ejercito Zapatista de Libertácion Nacional” de que “se valem”
para expressar suas ideologias. Por fim, tratou-se de processos de captação,
recursos de edição e finalização de som e imagem, bem como os termos técnicos
e os elementos de linguagem utilizados na elaboração de um roteiro. Foi proposto
aos alunos que se organizassem em grupos e que, tomando por base os relatos
biográficos do grupo, articulado na narrativa "Tramando histórias
219
”, criassem e
apontassem personagens e cenários para a elaboração do roteiro. A escolha
recaiu sobre três dos relatos biográficos identificados como os mais significativos
para a memória do grupo em sua trajetória de luta pela terra.
219
Texto elaborado pela professora responsável pela disciplina “Escritos biográficos” -Agueda
Bittencourt- a partir do conjunto de relatos dos alunos.
215
A narrativa elaborada tem uma linha condutora que resvala na tensão entre
documentário e ficção. A narrativa foi composta a partir de três das biografias do
grupo, dos quais foram feitos destaques das passagens consideradas as
principais; para duas das quais foram apontadas/ indicadas outras duas
complementares
220
. Definiu-se ainda que uma abertura do deo mostraria o curso
como o momento de encontro destes personagens e que a passagem de uma
biografia para outra seria feita com a imagem de um caminho ao longo do qual se
multiplicam os números de pessoas que caminham, representando assim, os que
participam da luta pela terra (em anexo H a primeira pauta do roteiro). Foi
proposto o uso de imagens de arquivo em algumas passagens das biografias que
foram veiculadas pela mídia e documentadas pelo MST, recurso que leva ao
reconhecimento do fato como verídico e contextualiza a narrativa dentro de uma
perspectiva histórica. O grupo avaliou que os próprios autores dos relatos
escolhidos deveriam contar/narrar os textos do roteiro final do vídeo. Por ocasião
da elaboração de projetos para solicitação de recursos para editais de
financiamento de produções audiovisuais, detalhei o roteiro valendo-me das cartas
pessoais dos autores escolhidos, destacando trechos e apontando possíveis
cenários e situações em que os depoimentos poderiam ser gravados.
Coloquei uma citação de Joseph Campbell no início da narrativa para fazer
referência ao mito do herói que julgo ser muito forte no MST: em todos os
espaços, tanto os das salas de aula, quanto os das demais atividades neste curso,
e nos tantos outros que já tive oportunidade de conhecer do Movimento, há
cartazes e imagens dos que são reconhecidos como heróis exemplares.
220
São elas: a de Marcelino João Hanauer Soares - Cruz Alta/RS e como biografia
complementar a de Adelar Pospish - Caibaté/RS; a de Inácia Alves Dantas Caruaru/PB e
como biografia complementar a de Adriane Siqueira Fonseca - Pelotas/RS; e a de Edemir
Henrique Batista - Euclides da Cunha/Pontal do Paranapaenam/SP.
216
Roteiro:
Abertura: (tela preta).
(letreiro e logomarca) Laboratório TerraMãe.
Fade
Música tema: “Deixe-me viver” (anexo 4).
Fade in do Letreiro Seguidores de Canudos lado direito inferior da tela.
O letreiro Seguidores de Canudos vai para a parte central/ superior da tela;
a imagem diminui de tamanho e segue para a parte inferior direita da tela; navega
para o lado esquerdo; a partir dela avança uma seqüência de fotos do curso
“Gestores de Assentamentos Rurais".
As fotos param de correr.
Mantém o letreiro Seguidores de Canudos e na mesma linha que percorria
as fotos aparece o letreiro:
Apresentam
Fade in letreiro, mantém a mesma música apenas instrumental.
Fade out letreiro
Trajetórias
O letreiro Trajetórias vai para a parte superior da tela e logo abaixo o
seguinte texto/letreiro por 30”:
Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura,
pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes
de nós... Temos apenas de seguir a trilha do herói, e
lá, onde temíamos encontrar algo abominável,
encontraremos um deus... E lá, onde pensávamos
estar sós, estaremos na companhia do mundo todo
Joseph Campbell
217
Seqüência 1: Biografia Marcelino.
cena 1: EXT/INT/DIA agrovila Assentamento Marcelino. Som direto.
Música tema instrumental.
Em um único plano seqüência: o chão de um caminho, pés de Marcelino (de
chinelo) enquadrados por trás; câmera vai subindo para o corpo que caminha na
rua da agrovila, cumprimenta alguém e entra em uma casa (rústica, chão batido);
prepara um chimarrão, senta e começa a contar sua história.
cena 2: INT/DIA – casa Marcelino. Som direto. Luz suave.
Marcelino Plano médio tomando chimarrão. Letreiro lado direito, parte
inferior tela: nome Marcelino e do Assentamento.
Marcelino contando sua história de vida (zoom in lento até enquadrar o
rosto): a infância.
Meu pai agricultor, sempre lidou com plantação, só não tinha terra, quase todo
ano trocávamos de morada”.”o pai e mãe saíam para trabalhar na lavoura, eu
tomava conta do fogo e que não faltasse água no feijão”. “Eu ajudava meu pai
a torcer o fumo que era enrolado em um pedaço de pau, como ajudava minha
mãe a tirar a palha o milho para trocar a palha do colchão”.”Eu lembro que
fiquei muito contente quando meu pai comprou um calçado para que eu fosse
à escola: uma conga”. ”A escola ficava distante da casa pois fazia 7km para ir
e 7km para voltar, além de passar por uma estrada péssima, picada de mato,
no verão se passava por dentro da água”. “gostava muito de declamar poesia e
nas festas promovidas pela escola era um dos alunos que mais assumia a
tarefa.
221
cena 3: EXT/DIA paisagem rural. Mantém voz off. Som direto. Música
instrumental em tom épico. Marcelino.
221
Os trechos em destaque são citações das biografias.
218
Um menino com 8 anos e a irmã de 7 se despedem da mãe na porta da casa
(a bolsa é um saco de açúcar); caminham um trecho ao lado de uma cerca
(câmera se aproxima e enquadra os rostos); percorrem uma trilha em um lugar
descampado; passam em frente a uma casa, cumprimentam alguém; chegam
num bairro rural, se aproximam da fachada da escola onde estão concentradas
algumas crianças; cada um vai se juntar a um grupo diferente. Terminada a
narrativa desta passagem, mantém imagem com Som Direto.
Fusão curta
cena 4: EXT/INT/DIA na mesma escola que termina cena anterior. Som
direto. Luz suave.
Marcelino entra em quadro no mesmo espaço da imagem anterior, soa um
sinal e todos entram na escola, as crianças e o professor sentam, Marcelino vai
para frente da sala e declama uma poesia.
cena 5: INT/DIA – casa Marcelino. Som direto. Luz suave.
Marcelino tomando chimarrão e contando sua história de vida: a fé.
Desde pequeno minha mãe exigia que todas noites antes de dormir
rezássemos, sempre em voz alta e posto de joelho”. “já desde muito cedo
puxava o terço na comunidade, com 10 anos, de joelho em frente a uma
enorme cruz de madeira que era o marco onde foi morto um padre que
catequizava os índios”. “Quando puxava o terço cheio de devoção não tinha
clareza nenhuma do que significa minha fé”. “Tornei-me catequista, reunia a
criançada para passar a doutrina que seguia. Foi nessa época que iniciei a sair
de casa para encontros de catequistas”. “Nesta época a igreja progressista
ganhava força e questionava certos roteiros que se reproduzia. Neste período
pós-ditadura militar foi um enorme processo de aprendizagem para mim”.
“começava a sentir que nem tudo era como tinha aprendido. Este choque
trouxe conflitos para a comunidade.
cena 6: EXT/DIA – Explanada dos Ministérios. Som direto.
Missionários participando de uma marcha de luta pela terra.
cena 7: INT/DIA – casa Marcelino. Som direto. Luz suave.
219
Marcelino tomando chimarrão e contando sua história de vida: experiências
de vida.
Neste momento que buscava um espaço importante de aprendizagem, tive
uma notícia inesperada: com apenas 14 anos de idade, no dia 21 de novembro
de 1985, numa tarde que trabalhava com meus dois irmãos capinando, um
primo nosso chega gritando “é para vocês ir para casa: sua mãe morreu”.
Imaginava não ser verdade.” “Entrei dentro da casa, na sala sobre duas
cadeiras estava o caixão, vendo o corpo toquei com a mão para sentir,
estava frio, então toquei o rosto e beijei-a como fazia toda noite antes de
dormir.” “o sentimento da perda é enorme.
Câmera permanece no rosto em close.
cena 8: INT/DIA – casa Marcelino. Som direto. Luz suave.
Marcelino tomando chimarrão e contando sua história de vida: a entrada no
MST.
no início de 1989 acontecia muito manifesto feito pelos sindicatos,
mobilizando os agricultores por melhores condições de trabalho no campo,
meu pai acompanhou e participou de todas as lutas e na época conheceu
pessoas que organizavam Sem Terra para acampar no MST. Como nós
tínhamos 5 hectares, meu pai falou se eu não me animava acampar para
lutar por um pedaço de terra. Prontamente falei que queria ir. Então participei
de uma breve reunião no sindicato do município, e falaram que estava
próximo, mas não sabiam o dia nem a hora. Eu aguardava ansioso, até que
um dia, meu tio passava de bicicleta e falou “Marcelino, aquele negócio é
hoje”. Partimos às 23hs em uma carroceria de uma F4000. se ouvia o
zunido do veículo, às 6hs chegamos, junto com um comboio enorme, o
nosso destino: Cruz Alta 600km de onde morávamos. A ocupação foi na
Fazenda Bocorri com 1800 famílias, mais ou menos 3000 pessoas.
cena 9: EXT/NOITE. Som direto. Música instrumental em tom dramático.
Pessoas silenciosas subindo em um caminhão; imagem das pessoas
apertadas na carroceria; som do caminhão andando.
Fade in imagem
220
cena 10: tela preta. Som direto. Continuidade SOM cena anterior (inclusive
música).
Som do caminhão se mistura com o som de enfrentamentos e
manifestações.
cena 11: Imagens de arquivo (em Preto/Branco). Continuidade SOM cena
anterior (inclusive música).
Fade out imagens de enfrentamentos e manifestações. Som direto.
Entra voz off Marcelino, abaixa volume do Som Direto.
Na data de 8/8/90 (ocorreu) um dos maiores fatos trágicos, no centro de Porto
Alegre, na praça da Matriz em frente o palácio do Governo do Estado, em um
protesto nosso, do MST, onde eu também me encontrava. Chegamos às 7:00
horas da manhã e antes das 10:00 horas montou-se um aparato da polícia
para expulsar dali os Sem Terra, transformando o centro da capital, num
campo de batalha, com cavalos, cachorros e muitas armas. Espalhou-se toda
a manifestação e colocou-se muita gente na cadeia. Inclusive 6 Sem Terra
foram julgados pela morte de um soldado (ocorrida) fora da área de conflito.
Cena 12: mantém imagens de arquivo(Procurar imagens subjetivas). Voz off
Adelar. Som direto.
Em 8 de agosto de 1990 aconteceu um episódio que me chocou um pouco por
não entender o que de fato significava os sem terra. Houve um confronto entre
a brigada militar e os sem terra. Na época eu não tinha conhecimento da
realidade do sofrimento que a classe mais leiga passava. O dia que aconteceu
essa tragédia eu dizia que tinha que matar os sem terra, porque eles não iam
trabalhar em vez de ficar fazendo baderna e atrapalhando quem queria
trabalhar. Só que na época eu era empregado, ganhava tudo livre não passava
dificuldades, só que então eu não imaginava que por falta de estudo eu
poderia perder o emprego e ficar na mesma situação de um sem terra, sem ter
espaço para trabalhar.
Cena 13: INT/DIA escritório MST. Som direto. Enquadrar cartaz do MST
com imagem de figuras heróicas.
Depoimento Adelar Plano Médio. Letreiro lado direito, parte inferior tela:
nome Adelar e do Assentamento.
221
Quando cheguei no acampamento quase chorei, pois comecei a ver uma
realidade totalmente diferente daquela que eu tinha na cidade. Ali as pessoas
não tinham o mínimo de condições de viver com uma família. Em tudo o que
as pessoas iam fazer encontravam várias dificuldades: 1
º
) a forma como
moravam embaixo de lona que mais parecia uma estufa do que um abrigo; 2
º
)
as condições de fazer comida eram precárias, pois não havia na maioria das
vezes lenha seca, (as pessoas) tinham que queimar lenha verde que fazia uma
fumaceira triste e prejudicava a saúde das crianças, elas choravam, pois a
fumaça ardia os seus olhinhos; 3
º
) muitas vezes elas não tinham o que comer
e nem leite para tomar, tinham que comer farinha de mandioca com água p’ra
não passar fome. E assim por diante, as necessidades sempre estavam
presentes no dia a dia.
Cena 14: EXT/DIA. Acampamento. Som direto. Música tema instrumental.
Cotidiano. Preparando e servindo comida.
Cena de passagem: EXT/INT/DIA. Som direto. Continua música em tom
épico.
Em um único plano seqüência: um caminho (uma rua) pés Marcelino,
Adelar e Adriane caminhando enquadrados por trás, câmera vai subindo para os
corpos e passa ao lado dos personagens; câmera acompanha a caminhada e a
conversa dos três, enquadrados em Plano Médio, música abaixa de volume de
forma que se possa ouvir a conversa, entram em um local onde acontece algum
evento do MST.
Seqüência 2: Biografia Inácia.
cena 1: EXT/INT/DIA sítio dos pais da Inácia. Som direto. Música tema
instrumental.
Inácia com a família, preparando o almoço com a mãe e/ou irmã(o), pega
algum produto na horta/ quintal para complementar o cardápio. Paisagem quintal
(algo que identifique o sertão – como uma plantação de palmas).
cena 2: INT/DIA – cozinha do sítio dos pais da Inácia. Som direto.
222
Inácia Plano médio narrando sua entrada no MST. Letreiro lado direito, parte
inferior tela: nome Inácia e do Assentamento.
Conheci o MST na época de estudante no “Colégio Agrícola Vidal de
Negreiros”. “Em 2001 iniciou-se um curso de técnico agrícola do MST foi a
partir daí que passei a me entrosar com o MST, mais especificamente com os
educandos do MST, pois do MST eu continuava sem saber quase nada.
cena 3: INT/DIA – mística MST. Som direto. Voz off Inácia.
Uma das coisas que me chamava muito a atenção eram as noites culturais e
as místicas, onde havia expressão forte de sentimentos, destacando-se a
busca de um ideal e a saudade da família, dentre tantos outros desafios. Eu
me admirava de ver tudo aquilo mas não imaginava que como eles eu também
viria a deixar minha família e me agregar à outra família que é o MST.
Terminado narrativa Inácia mantém Som Direto.
cena 4: INT/DIA – cozinha do sítio dos pais da Inácia. Som direto.
Inácia plano médio continua narrando sua entrada no MST.
Um dia eu estava na fase final do meu curso e estagiando no setor de
bovinocultura do Colégio Agrícola e nesse dia estava a turma do MST para
ter uma aula prática de vacinação, quando próximo ao término da aula, uma
educanda chegou para mim e disse: - O ano que vem você estará no MST!
Confesso que fiquei surpresa e assustada ao mesmo tempo, pois eu nunca
havia demonstrado que queria e ela simplesmente afirmou.
cena 4: imagens (em sépia) formatura Inácia
222
. Som direto. Voz off Inácia.
Terminado o estágio no colégio agrícola eu precisava de outro estágio pra
defender o relatório de conclusão de curso. Foi então quando recebi o convite
para estagiar em assentamentos do MST.” “Fui indicada em junho de 2003
pelo coordenador da turma do curso técnico do MST para participar de uma
oficina sobre “Plano de Desenvolvimento de Assentamentos” no estado de
Goiás.” “Passei dois meses estagiando em Pernambuco e retornei para a
222
Inácia tem uma fita de vídeo com imagens do Colégio Agrícola Vidal de Negreiros onde está
registrado a aula da saudade, a formatura, entre outras imagens.
223
Paraíba pra defender o relatório e ingressar de vez nessa nova família que é o
MST.
cena 5: INT/DIA – casa Inácia. Som direto.
Depoimento marido Ronaldo Plano Médio, contando sobre o romance, o
estágio em Goiás e o reencontro em Pernambuco. Letreiro lado direito, parte
inferior tela: nome Ronaldo e do Assentamento.
cena 6: INT/DIA – escritório MST. Som direto.
Encontro Inácia e Adriane. As duas contam sobre o trabalho no MST e sobre
o projeto que estão desenvolvendo juntas.
cena 7: INT/DIA – escritório MST. Som direto.
Depoimento Adriane sobre sua entrada no MST. Plano Médio. Letreiro lado
direito, parte inferior tela: nome Adriane e do Assentamento.
No movimento estudantil conheci um pessoal que formava um grupo que
discutia a Reforma Agrária dentro da universidade, que se chama Núcleo
Universitário de Luta pela Reforma Agrária “Cio da Terra.” “Através da
participação ativa no núcleo, percebi o quanto é importante a discussão sobre
o tema, e o quanto é presente na vida de cada um, pois excede a simples
discussão sobre a terra.
cena 8: INT ou EXT/DIA. Sala de aula ou alpendre. Som direto.
Voz off Adriane que continua narrando sua entrada no MST. Grupo de
estudantes discutindo questões agrárias.
Iniciei dois estágios. O primeiro ocorreu em fevereiro de 1999, convivi 15 dias
com os assentados de Hulha Negra/RS. Foram 15 dias difíceis pois jamais
havia ido à campo, em compensação, foram dias primordiais para a minha
vida, foi onde escolhi onde iria contribuir com a militânci“. Em seguida recebi o
convite para ingressar na equipe técnica da região de Porto Alegre, aceitei.
Encerra narrativa Adriane e continua Som Direto discussão alunos.
cena 9: EXT/DIA. Centro de Pelotas. Som direto. Música instrumental em
tom lírico.
224
Adriane caminha com intimidade pelas ruas.
Cena de passagem: EXT/DIA. Continua música em tom épico.
Em um único plano seqüência: uma estrada com uma cerca ao lado, um
grupo de pessoas caminhando até a chegada em um acampamento (no mesmo
da próxima cena).
Seqüência 3: biografia de Edemir. Som direto.
cena 1: EXT/ DIA – Acampamento.
Depoimento de um pai de família que está acampado sem a esposa, apenas
com os filhos. Letreiro lado direito, parte inferior tela: nome Senhor e do
Acampamento.
cena 2: EXTDIA. Som direto.
mesmo homem trabalhando com os filhos em grande propriedade de cana.
Voz off Edemir narrando:
Então fomos morar em uma pequena cidade chamada Euclides da Cunha
Paulista, também no Pontal, ali nós trabalhávamos de bóia-fria no corte de
cana. Eu estava na escola, por isso não ia para o bóia-fria, mas quando
entrava no período das férias, tinha que trabalhar no que chamava catador de
bituca. Como eu era muito pequeno para cortar cana, trabalhava pegando
aqueles pedaços de cana que as máquinas não pegavam ou deixavam cair
pelo chão.
cena 3: EXT/DIA. Assentamento Edemir. Som direto.
Edemir plano médio narrando. Letreiro lado direito, parte inferior tela: nome
Edemir e do Assentamento.
Meu pai trabalhava de pedreiro na usina e, eu tinha 11 anos. Os tempos
eram difíceis pois meu pai ganhava muito pouco, e tinha uma descriminação
muito grande pois existiam nessa mesma cidade pessoas de vários níveis
225
sócio-econômicos: quem tinha uma profissão melhor, morava em casas
melhores, em vilas separadas, que muitas das vezes não podíamos entrar.
Um dia meu pai ficou desempregado, e falou para minha mãe:
- Vamos para o acampamento dos Sem Terra? Minha mãe, minha mãe quase teve
um ataque do coração.
Como pode? Toda vida passamos por dificuldade mas nunca precisamos roubar
nada de ninguém, agora vamos nos misturar com esse povo que rouba terra dos
outros?
Coitada da minha mãe! Como até o momento nunca tinha tido a oportunidade de
conhecer a verdadeira história, de quem rouba quem neste país, falava na mais
completa inocência.
cena 4: INT/DIA. Casa mãe Edemir – Sra. Francisca Netto. Som direto.
Edemir chega na varanda de uma casa com sua mãe. Eles sentam. Zoom in
e pan na câmera para enquadrar Sra. Francisca.
Sra. Francisca Plano médio narrando. Letreiro lado direito, parte inferior
tela: nome Sra. Francisca e do Assentamento.
Depoimento Sra. Francisca sobre seus questionamentos quanto à entrada no
movimento de luta pela terra.
Seqüência final
Cena 1: EXT/DIA. Som direto. Música tema instrumental em tom épico.
Em um único plano seqüência: muitas pessoas caminhando, na paisagem a
Esplanada dos Ministérios.
Fade in
Este vídeo foi concebido pela turma “Seguidores de Canudos” alunos do
Curso “Gestores de Assentamentos Rurais”.
Música tema.
Fade out fotografia da formatura dos alunos e letreiro “Seguidores de
canudos” a imagem diminui de tamanho, segue para a parte superior direita da
226
tela e navega para baixo; em seguida outras fotos formatura e outras; os créditos
sobem à esquerda.
é caminhando que a gente aprende a caminhar
Fade out letreiro
Créditos:
Pré-roteiro: Nome de todos os alunos do curso “Gestores” e professores do
“Linguagens e Memórias”.
Roteiro: Kellen Junqueira
Observações ao roteiro:
Os textos das biografias são apenas indicativos para as entrevistas que
serão feitas aos protagonistas.
Observações:
Será colocada a mesma música para os diversos protagonistas em
“Trajetórias” para que uma identidade entre eles seja mantida. No entanto a
música que será usada nas passagens de uma biografia para outra serão
aceleradas para que possa representar o aumento/ a crescente movimentação em
torno da luta pela terra.
10.2.4 Conversas de bois
Este título é referência ao de um conto de Guimarães Rosa -Conversa de
bois-, no qual é narrado o drama de um menino -Tiãozinho- na relação com seu
padrasto -Agenor Soronho-, um carreiro de bois. Os bois do carro conversam,
avaliando a sua condição “-Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas
227
é melhor não pensar como o homem...”
223
e observam o que acontece na relação
do candeeiro com o carreiro, de violência e desrespeito, o mesmo que viveu o
meu avô na relação com o seu padrasto que também era carreiro
224
. A escolha
deste título para o vídeo se deu primeiramente para expressar a minha admiração
por este escritor, que para mim é como um filósofo, um sábio, com quem aprendo
muito sobre a existência e sobre o ser humano; segundo para destacar as
citações que farei deste conto de maneira a estimular a atenção ao conteúdo
delas; terceiro porque de qualquer maneira, uma conversa é sempre algo mais
descompromissado e em sendo de bois cria-se uma magia que creio estimula a
imaginação dos espectadores.
As imagens que fui esboçando para a narrativa do vídeo no decorrer desta
experiência foram se modificando em função das situações que fui vivenciando. A
pauta de gravação que fiz para este vídeo está no anexo 9. Estou neste momento
redigindo este capítulo da tese, e cuidando, ao mesmo tempo, da edição do vídeo.
Este paralelo tem feito e provocado interferências nas duas atividades.
Eu tinha uma certa expectativa em relação aos depoimentos e atuações dos
personagens as quais nem sempre se confirmaram por ocasião dos encontros.
Por exemplo, a participação do vô” era apenas uma entrada e saída no deo, no
entanto, com a maior aproximação, fui percebendo a riqueza de sua história de
vida, de suas experiências, sua cultura. Riqueza que estava em grande parte
materializada, e visualizável, no seu trabalho, na sua escultura, no seu espaço, na
sua rotina. Eu não havia reparado o quanto ele era didático, qualidade que
favorece bastante a interação com o outro, principalmente o espectador.
223
ROSA, 1984, p.311.
224
Trecho citado em parte no capítulo 6, bem como na narrativa do vídeo.
228
Eu não imaginava que encontraria um agricultor -Sr. Moreno- que ainda
realiza um “cem” número de funções dentro da própria extensão de sua
propriedade
225
. É assim que compartilho com os protagonistas a construção das
imagens do deo, como também com Anali Furquim, a montadora
226
do deo,
que além de se empenhar no desafio da escolha das imagens mais significativas,
deu sugestões valiosas e originais para a edição, e ainda com Caio Petrônio, o
compositor da trilha sonora, que rapidamente demonstrou empatia pela prévia da
edição que lhe mostramos, e entrou em sintonia com a narrativa sugerindo
continuidades, como a de explorar a sica que estava citada no vídeo A
resposta da marreta
227
. Parece que os cineastas mais experientes sabem disto:
“A linguagem se estabelece para mim na forma viva; nas relações da matéria
mesmo e dos comportamentos da luz. Não acredito na abstração (roteiro).”
Ruy Guerra
228
“O roteiro é um guia, uma obra transitória, uma espécie de mapa que,
conforme a caminhada avança, vai se desfazendo, ou melhor, vai se
transfigurando.” (MEIRELES, 2005, p.71).
Todos estes percalços confirmam (e tomara permitam aflorar e traduzir) a
temática principal desta tese e desta narrativa: a subjetividade dos personagens e
a minha, de forma que as experiências retratadas sejam compartilhadas de
maneira a revelar as motivações de cada um bem como o que dá força na batalha
pela existência, os sentidos que me impulsionam, bem como a eles. Esta narrativa
tem como objetivo, entre outros, expressar os laços que ligam os personagens à
225
O Sr. Moreno planta vários gêneros alimentícios em sua roça, cria galinhas e tira leite do
gado, o que usa em sua dieta alimentar, para o que conta com o apoio de sua esposa Sra.
Jandira. Além disto ele mesmo faz a manutenção das construções de sua propriedade e
confecciona algumas das peças do carro de bois como os canzis, arreamentos (feitos com o
couro do boi), ferra a roda, o azeiteiro, a esteira (feita de palha e colocada entre os fueiros para
segurar a carga), etc.
226
Estou me referindo ao termo “montagem” para sugerir que para além da operação do
equipamento de edição, também houve uma participação da Anali no sentido de definir os
tempos e pontos de entrada e saída de cada plano.
227
Música da dupla Vieira eVieirinha, composta em 1961.
228
Declaração no Programa ZOOM/ TV Cultura, 26/8/2006.
229
terra: o carro de bois a agricultura, a afetividade, bem como através de suas
memórias, e ainda da que é celebrada nas “Viagens pelos caminhos da Juréia”.
230
10.3. Parâmetros que defini para a concepção do roteiro, para a definição das
filmagens e edição:
o narrador sou eu;
o protagonista o Sr. Pedro - meu avô;
o coadjuvante, o carreiro – Sr. Zé Moreno;
os personagens são os trabalhadores rurais e os participantes da festa
do Carro de bois e da Folia de Reis;
personagens que se expressam através do olhar, do corpo, do gesto e da fala;
a resistência - o trabalho, em plano médio: o esforço físico;
a simplicidade - o cenário, a intimidade, a casa, o quintal;
a afetividade no close, no sorriso, na serenidade;
a solidariedade no trabalho coletivo, na festa, nas adversidades;
o silêncio em câmera lenta, a seriedade;
a música na toada dos carros de bois, na cantoria da Folia de Reis e
na trilha sonora do vídeo;
a dignidade - a sabedoria, a auto-estima;
a e a luta - o coro da ave-maria, o coro das conversas e encontros;
a matéria - a imagem;
a ferramenta - a montagem;
a vida - experiência;
a memória - a da vida.
231
O protagonista do vídeo é o Sr. Pedro, que aos 88 anos de idade revive e
recria seu ofício da juventude -marceneiro e carpinteiro- como escultor de carros
de boi. O Sr. Pedro é um personagem que tem força pela sua sabedoria e pela
sua alegria de viver, e por isso é o gerador e motivador desta narrativa. várias
imagens dele que extrapolam a necessidade estrita da narrativa, o que faz com o
que o personagem não seja apenas funcional(CHION, 1989, p.227). O conjunto
de imagens que descrevem a confecção do carro de bois ganha outra dimensão
quando ao colocar a canga ele comenta tá amarrado, coitado, é que nem o
homem, quem vai casar, s falava: vai colocá a canga”; ou então, quando está
ditando o seu diário para que seja feito o seu registro, ele comenta: então, o que
tá escrito”; ou o seu bordãoô chão de Minas!” que para além de lhe dar um estilo,
também o caracteriza.
Meu ausa as mãos para representar a situação e narrar suas histórias,
algumas vezes tomava algum objeto para demonstrar como realizava determinada
atividade, assim como para ilustrar como torava madeira ou então como macaco
apanhava milho; ele estira o pescoço para mostrar o movimento do boi quando
punham a reata no carro de bois. Histórias que viraram imagens, não digitais,
mas também da narrativa de Conversas de bois”, pois além do som-imagem, do
sinal captado pela filmadora, toda uma magia na expressão deste homem na
sua forma de ser, de se relacionar, no seu vocabulário...
... de acordo com Benjamin, os movimentos precisos do artesão, que respeita
a matéria que transforma, têm uma relação profunda com a atividade
narradora... participando assim da ligação secular entre mão e voz... o
depauperamento desta arte de contar parte, portanto, do declínio de uma
tradição e de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma
experiência coletiva, ligada a um trabalho e a um tempo partilhados em um
mesmo universo de prática e de linguagem. (Jeanne Marie Gagnebin in
BENJAMIN, 1982, p.11).
Meu avô nunca ficou intimidado com a presença da câmera: apesar de ter
ficado bastante admirado com as suas possibilidades técnicas. Quando em
232
seguida de uma filmagem mostrei as imagens ele sorriu impressionado: “que coisa
hein? Como pode?”
A caracterização do espaço é fundamental em uma narrativa, além de
contextualizá-la, também favorece a identificação do personagem. O cenário
principal foi a oficina. Enquanto esculpia, algo que ele faz com segurança, eu
formulava as perguntas que em geral relacionava com o seu ofício de carreiro e a
sua vida na roça. Suas narrativas vinham com a força da sua sabedoria. Cada
cenário e cada cena foi cuidado como se fosse para uma encenação: alterando
entradas de luz e/ou retirando ou colocando objetos para enquadramento, é assim
que percebo quanto os “objetos biográficos” (BOSI, 1999, p.441) são significativos
na caracterização de uma personalidade; não se coloca um chapéu tendo em vista
apenas sua funcionalidade (em dia de sol ou chuva); muitas vezes é para poder
levantá-lo em reverência ao santo.
Fiz tomadas lentas e em close do trabalho do Sr. Pedro, mostrando as
expressões e emoções, seus cabelos prateados, as dobras de sua pele, suas
mãos; as habilidades e presteza deste homem que está lúcido e com uma
memória viva. Emoldurei quadros, fotos, objetos e relíquias. O som ambiente das
cenas de seu trabalho na oficina é muito precioso dando ritmo e intensidade para
a narrativa.
Busquei formas de filmar e retratar sua memória, o que em si sugere uma
narrativa poética. Procurei e criei situações em que elas aflorassem, como as
filmagens e entrevistas feitas enquanto ele esculpia. Memória que emerge no
contexto de vida atual do protagonista: seu espaço e sua rotina revelam
características de sua experiência, de sua vida, de sua cultura -fogão de lenha,
pilão, plantas no quintal, discos LP e fitas K-7 de música caipira e de humoristas.
Memórias duplicadas por ocasião da imagem em que está sendo feito o registro
de suas anotações em um computador, quando seu caderno de memórias é
233
apresentado e ele reformula mais uma vez suas histórias para que sejam
compreendidas pelas suas netas, eu e minha irmã, Kátia Junqueira.
Aproveitei nossa proximidade e também registrei cenas e cenários de
intimidade: lanchando, tirando uma soneca, espaços íntimos, -o quarto, o altar-. E
abordo-as com o cuidado de não extrapolar sua privacidade.
uma certa tensão na cena da assinatura que denota sua dificuldade com
a escrita. Fiz questão de colocá-la para dar maior densidade e dramaticidade às
anotações de seu caderno de memórias. Estas o cenas que se complementam
assim como outras: a do carro de bois na memória e na escultura do Sr. Pedro e
na roça do Sr. Zé Moreno, e nas estradas de Minas.
Criei uma relação entre os personagens ao mostrar as fotos do e de
suas esculturas ao Sr. Moreno e sua família, bem como ao exibir as filmagens
que havia feito em Minas, do trabalho com os bois e dos carros de bois no evento
da Juréia, para o Sr. Pedro e o Sr. Vicente, no retorno para Campinas. Inclusive
estas últimas foram filmadas e farão parte da narrativa de forma a estabelecer
uma relação entre os personagens. São formas de diálogo, dentre outras: as que
se repetem comigo, com o Sr. Vicente, com a Kátia, com a Ernesta pelo telefone e
com as madeiras e as suas ferramentas de trabalho.
Quando a fala é diálogo, não está pautada pela coerência e acabamentos
internos, mas pela capacidade de relação, ação e reação com os outros.
(MEIRELES, 2005, p.71).
Na produção deste vídeo pessoas próximas mediaram os contatos, o que
favoreceu bastante o desenvolvimento destas relações, assim como a que
estabeleci com o Sr. Moreno. Mineiro tem fama de ser desconfiado, contudo
sabe-se também que são pessoas afetuosas e generosas. Apresentada ao Sr.
Moreno por uma prima -Viviana Fugi-, moradora do mesmo bairro rural,
234
rapidamente estabeleceu-se uma conversa amistosa e aberta, com ele e sua
família, tomando café e saboreando um pão-de-queijo
229
. É neste estado de alma
leve que alguém se expressa compartilhando o melhor de si. E foi neste clima que
transcorreram as gravações em sua roça e depois na festa da Juréia
230
.
O tempo chuvoso dos dias de filmagem nas roças de Minas não parecia
favorecer o desenvolvimento do trabalho, no entanto foi ideal para o início do ciclo
de produção daquele ano agrícola. Em função disto alguns agricultores parceiros
resolveram arar as terras de uma várzea para plantio de arroz. Fiquei tão
deslumbrada com a cena que gravei 33 minutos de imagens e sons de arados e
de cigarras: duas boiadas de oito animais, cada uma puxando um arado, uma de
cada lado do terreno, homens conduzindo o arado e outros a boiada. As linhas
marcadas com a aração foram se repetindo mudando a cor, do verde-mato, até se
encontrarem no meio do terreno todo vermelho. O trabalho do Sr. Moreno
conduzindo o arado com tranqüilidade ou aboiando com firmeza, no domínio da
sua ciência, a força do seu personagem.
A princípio fui para a festa A segunda viagem pelos caminhos da Juréia
para fazer umas tomadas para um clip que estava previsto na pauta de
gravação, entretanto encantei-me com o aglomerado de mineiros e carreiros, os
sons, ruídos e mugidos, gestos e olhares, e comecei a abordá-los e desejar saber
as motivações de cada um deles para estarem ali. Foi uma alegria saber de tantos
afetos. Estes festeiros são as encarnações múltiplas do objetivo da festa. No geral
os participantes da festa não pareciam estar familiarizados com equipamentos de
filmagem, pois muitos ficavam muito curiosos diante da câmera; alguns
permaneceram tranqüilos, e compartilhavam com desenvoltura suas histórias,
229
A relação de confiança mútua que se estabeleceu foi tanta que quando consultado sobre o
“Termo de autorização de uso de imagem” ele disse que não era necessário e eu acreditei.
230
Para estabelecer as relações e fazer os contatos para a produção do vídeo, em geral, eu
não declarava o meu vínculo com o doutorado, declaração que creio me distanciaria das
pessoas.
235
causos e trovas, outros desajeitados se “apoiavam” na vara de ferrão falavam
rápido e até esqueciam o nome de seus bois.
10.5. Encontrando os fios que tecem a trama em cada um dos blocos
A grande atração de uma obra
não é a quantidade de coisas que nos permite ver,
mas a intensidade, autoridade e sabedoria
com que são tratadas.
Susan Sontag
As imagens e a montagem propostas para o vídeo não são descritivas,
elucidativas ou ilustrativas, pretendem-se, outrossim, a reproduzir a beleza, o
clima etéreo e o prazer de estar com Sr. Pedro, ouvindo suas histórias, rindo de
suas charadas e proezas, sorrindo de sua pureza ou de sua malícia.
Logo depois de feitas as filmagens, minutei as fitas e preparei a pauta de
edição o que organizei através de blocos temáticos, que são unidades poéticas: 1.
A arte/ artesanato de Sr. Pedro - a confecção do carro de bois: a apresentação
do protagonista com a trilha musical contextualizando a narrativa, o vínculo com a
diretora e a introdução do texto de Guimarães Rosa; 2. A rotina de Sr. Pedro:
sua casa, seu espaço, sua devoção - a rotina de um velho; 3. O carro de bois na
memória das mãos e na roça de Minas; os tantos nomes de um carro e o corpo-a-
corpo com os bois; 4. A festa “A segunda viagem pelos caminhos da Juréia” -
os percursos, o encontro, as histórias e as habilidades; a festa animada e o
silêncio na escultura no museu; 5. As memórias de Sr. Pedro - o que ele
experimentou ficou na memória: têm data e procedência, afetos, saudades e
ressentimentos... Os títulos destes blocos não serão exibidos, e assim o que intuí
como unidade poética para cada um deles poderá ser compreendido das mais
diversas formas. De qualquer maneira, se alguma harmonia se mantiver em cada
um deles, o meu objetivo terá sido alcançado.
236
Assim como para Sr. Pedro “se temos uma faca (ou uma ferramenta
qualquer) na mão, entendemos imediatamente a provocação das coisas
(BACHELARD, 2001b, p.30, grifos no original): quando se usa o software de
edição como ferramenta para trabalhar as imagens, as escolhas dos planos e
recursos acontecem. No “timeline
231
de edição até na diagonal se pode “navegar”
e com toda esta movimentação vai-se experimentando diversas composições,
deslocando expressões para diferentes contextos, invertendo ou complementando
um sentido.
Mas é sempre no crivo humano que a narrativa se fecha. Assisto aos ensaios
de edição imaginando a platéia -de examinadores, familiares, amigos e colegas-,
sentindo e avaliando o resultado. E junto com Anali, o tempo é mais uma vez
encurtado para evitar que os espectadores se cansem. Destaco a contribuição
desta colega não para elogiá-la ou agradecê-la, mas para expressar como é bom
trabalhar em equipe. A redação do texto dos meus depoimentos para o vídeo se
deu quando ela havia iniciado a montagem, de forma que ela deu interessantes
sugestões. Ela não propôs textos mais poéticos e sintéticos, como também
sugeriu a inclusão de expressões do vô” que estavam previstos na pauta de
edição. Contribuiu ainda na direção de atriz (eu!) por ocasião da gravação destes
depoimentos.
Depois de apresentar-me pelo timbre da minha voz, eu convido o espectador
a entrar comigo na narrativa: Eu gosto muito de ficar nesta oficina: tudo está aqui,
ferramentas e relíquias, tudo se pode fazer...”. O diretor é também narrador, minha
inserção dá força para a narrativa, exibindo os vínculos e as motivações. O
narrador também vivencia a história, também faz parte da experiência narrada o
que é reforçado em outros momentos quando compartilho a admiração pela do
avô; quando chamo a atenção para o tema dos encontros ou para a vida na roça
como sendo o que o caracteriza e quando, por fim, destaco sua sabedoria, que é
231
Linha de operação dos “softwares” de edição de som e imagem.
237
suficiente para proporcionar leveza à sua vida. Esta voz ainda que off, fala de si e
é poética.
Ao mesmo tempo em que um convite para que se mergulhe na vida e na
rotina do Sr. Pedro, uma narrativa sobre ele, referências da vida dele que
ressoam na vida dos outros personagens. planos em que a presença da
narradora é esquecida, especialmente quando há o embate entre o Sr. Pedro com
as madeiras e as ferramentas. O que procurei realçar evitando a inserção de
planos em que havia qualquer indício da presença da câmera ou de outra
presença qualquer como o som de cachorros e aviões. Um contraponto que
vivacidade às experiências compartilhadas, como pelo estranhamento do Sr.
Pedro e do Sr. Vicente ao uso dos carros com oito bois na aração. Algumas
imagens são para a simples contemplação: de uma expressão, de um sorriso, de
uma rima.
A música será um elemento fundamental na narrativa e para tanto escolhi
como um dos temas a letra e a melodia da sica Poeira” de Luiz Bonan e
Serafim Gomes que revela dignidade, apontando o boiadeiro, elegante, orgulhoso
de seu trabalho, resignado com a sina de se transformar em terra vermelha. Esta
canção está presente no imaginário de muitos homens, o que favorece o emprego
de uma trilha que remeta à memória melódica o que pretendo explorar de modo a
cativar os espectadores. A outra música “Peão na amarração” de Elomar, por sua
vez, traz uma questão existencial, que corresponde muito mais às minhas
perspectivas de vida, pois aponta uma centelha de dúvida em relação à
existência, o que creio meu avô nunca teve...
O silêncio e pausa na imagem da escultura do carro de bois, em meio às
outras peças antigas do museu, serão usados no intuito de tencionar a narrativa.
Isto será reforçado por esta montagem se dar logo após as que delatam a alegria
da festa e dos carros de bois que percorrem os caminhos da Juréia.
238
No vídeo, explorei o tempo real, tanto nas filmagens quanto na edição.
Tempo que fala por si e não o que a gente inventa, que acelera quando corta os
tempos fracos
232
, repetitivos, aparentemente insignificantes. Tempo em que o
narrador desaparece e aflora a intimidade do protagonista de forma a favorecer
que se vivencie melhor o drama encenado/ relatado. Mas tempo real mesmo é o
que desfruto na presença do meu avô: quanto mais convivo com ele mais percebo
o quanto meu tempo está acelerado.
O drama deste homem é a batalha pela sobrevivência e por uma vida digna,
o que constato, entre outros motivos, por suas histórias e memórias e pelo seu
reconhecimento às manifestações de solidariedade.
O que está colocado na narrativa do vídeo não são os processos sociais e
culturais que determinam e/ ou determinaram as escolhas e opções dos
personagens, e sim as possíveis motivações pessoais de cada um. Procurei
explorar a subjetividade de diversas maneiras: pelo uso de câmeras subjetivas,
bem como pelo recurso à memória. Para Fernando Meireles a narrativa subjetiva
tende a ser
Lírica ... representações do estado de uma alma ... fluxo de imagens que
revelam o que se passa no íntimo do personagem. (MEIRELES, 2005, p.22).
Mitos e músicas para Levi-Straus (apud MEIRELES, 2005, p.85) são
máquinas de suprimir o tempo”, o também formas de narrativas. Se elas nos
fazem esquecer o corpo, a matéria, pode ser que neste estado de espírito
consigamos mergulhar em outra dimensão, superando assim a contingência desta
existência.
232
Conceito de Claudine de France Cinema et anthropoligie, Paris, EHESS, 1989 apud
PEREZ REYNA, 1996, p.16.
239
Os espectadores que idealizei no diálogo interno que travei no decorrer desta
edição foram os próprios personagens, especialmente o protagonista e o
coadjuvante. Pode-se dizer que neste imaginário também estavam presentes os
meus colegas de trabalho e de batalha, inclusive os agricultores assentados: acho
que todos estes sentariam e prestariam atenção à narrativa procurando
compreender o que quis dizer ou simplesmente ouvir o que tinha para dizer.
Qualquer narrativa, mesmo que aberta, solicita a atenção, em geral entra-se
no mundo do imaginário e viaja-se nas possibilidades de visualizar, sentir,
compreender, refletindo sobre o sentido da vida (BENJAMIN, 1982, p.213). A
diversidade de possibilidades de envolvimento com a narrativa é tanto maior
quanto mais se consegue prescindir e extrapolar o que está dado.
Quem quisesse demorar-se longamente em todas estas imagens, depois
deixá-las se amalgamarem lentamente, conheceria as extraordinárias delícias
das imagens compostas, das imagens que atendem ao mesmo tempo a várias
instâncias da vida imaginante. (BACHELARD, 1990, p.135).
241
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resolvi fechar minha tese com um diagrama sintetizando e articulando as
dimensões abordadas no decorrer destas páginas. Procurei uma solução que
possibilitasse visualizar a complexidade de elementos que compõem as minhas
referências, bem como a intrincada redes e camadas em que elas se associam.
Lendo Iria Zanoni Gomes foi que me veio a inspiração. Diagrama é um conceito
de Giles Deleuze
233
a que Iria Zanoni se refere em sua tese é o mapa, a
cartografia, coextensiva a todo campo social”: “é marcar caminhos e movimentos,
com coeficientes de sorte e de perigo”. É instável e fluente, o que permite
caracterizá-lo como “intersocial” e em permanente devir.É o conceito que Giles
Deleuze usa para a análise do processo de subjetivação, o fazer-se a si próprio
na relação com os outros” (GOMES, 1995, p.25). Não sei se Giles Deleuze
chegou a traçar qualquer gráfico ou desenho para ilustrar algum diagrama, mas
imaginei o meu... Nas quatro páginas que o compõem há uma base onde estão os
universos aos quais me referi (estão aqui representados independentemente, mas
certamente eles não são assim na vida). Esta representação, a do conjunto do
diagrama, é apenas um recurso para dar uma tri-dimensão, e mais uma, de como
compreendo o conjunto das minhas experiências. O tri não se refere à coordenada
“z”, a que representa volume. O tri se dá pela sobreposição de três planos. A cada
plano que se sobrepõe um outro se forma. É assim que os imaginários da
cultura caipira, do mito da terra e do mito do herói irão compor o imaginário
da luta pela terra, possibilitando a identificação de algumas das características e
motivações deste. No terceiro plano este imaginário ainda que sendo um resultado
de dois anteriores, ele não os substitui, e estes junto com o mundo intelectual e
institucional, e ainda da vida em geral, irão compor as memórias e
experiências as quais irão me propiciar as imagens para a vida e para as
233
DELEUZE, G. Diferença e Repetição, ed. Graal, Rio de Janeiro/RJ, 1988; idem,
Conversações, Ed.34, Rio de Janeiro/RJ, 1992.
242
narrativas audiovisuais. Se fosse possível representaria cada um destes
elementos pulsando, se atualizando, no decorrer das novas vivências.
Este conjunto pulsante, quiçá ritmado, se dilui em uma expressão singular,
em uma alma que se pretende livre e serena, que tem afeto e busca justiça, que
vive sob o mistério e com . Alma que deseja se comunicar se valendo de uma
linguagem poética em uma imagem-movimento ou com um simples olhar.
Um ensaio imagético,
forjado no vínculo com a terra
que culminou em uma “Conversas de bois”
243
244
245
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O fio da memória. Direção de Eduardo Coutinho.
Reforma agrária. Direção de Kellen Junqueira.
Uma nação de gente. Direção de Margarita Hernández e Tibico Brasil.
255
ANEXOS
Anexo A – Música “Poeira” de Luiz Bonan e Serafim Gomes
um carro de bois lá vai
gemendo lá no estradão
suas grandes rodas fazendo
profundas marcas no chão
vai levantando poeira
poeira vermelha
poeira, poeira do meu sertão
olha seu moço a boiada
em busca do ribeirão
vai mugindo e vai ruminando
cabeças em profusão
vai levantando poeira
poeira vermelha
poeira, poeira do meu sertão
olha só o boiadeiro
montado em seu alazão
conduzindo toda a boiada
com seu berrante na mão
seu rosto é só poeira
poeira vermelha
poeira, poeira do meu sertão
poeira entra em meus olhos
não fico zangado não
porque sei que quando eu morrer
meu corpo irá para o chão
se transformar em poeira
poeira vermelha
poeira, poeira do meu sertão
256
Anexo B – Música “Peão na amarração” de Elomar Figueira de Mello
Inconto a sulina amansa ricostado aqui no chão
Na sombra dos imbuzêro vomo intrano in descursão
É o tempo qui os pé discança e isfria os calo das mia mão
Vô poiano nessa trança a vida in descursão
Na sombra dos imbuzêro no canto de amarração
Tomo falano da vida fela vida do pião
Inconto a sulina amansa e isfria os calo da mão
É qui uma vontade é a qui me dá tali cuma u'a tentação
Dum dia arresolvê infiá os pé pelas mão
Pocá arrôcho pocá cia jogá a carga no chão
I rinchá nas ventania quebrada dos chapadão
Nunca mais vim nun currá nunca mais vê rancharia
É a ceguêra de dexá um dia de sê pião num dançá mais amarrado
Pru pescoço cum cordão de não sê mais impregado
E tomém num sê patrão um'a vontade qui me dá
Dum dia arresolvê jogá a carga no chão
Cumo a cigarra e a furmiga vô levano meu vivê
Trabaiano pra barriga e cantano inté morrê
Vencemo a má fé e a intriga do Tinhoso as tentação
Cortano fôias pra amiga parano ponta c'as mão
Cumo a cigarra e a furmiga cantano e gaiano o pão
Vô cantano inconto posso apois sonhá num posso não
Nos tempo qui acenta o almoço eu sõin qui num sô mais pião
É qui uma vontade aqui mi dá dum dia arresol
Quebrá a cerca da manga e dexá de sê boi-manso
Quebrá carro quebrá canga de trabaiá sem discanso
Me alevantá nos carrasco lá nos derradêro sertão
Vazá as ponta afiá os casco boi Turuna e Barbatão
É a ceguêra de dexá um dia de ser pião
De nun comprá nem vendê robá isso tomém não
De num sê mais impregado i tomém num sê patrão
Cum um'a vontade qui me dá dum dia arresolvê
Boi Turuna e Barbatão Toda veiz qui vô cantá o canto de amarração
Me dá um pirtucho na güela e um nó no coração
Mais a canga no pescoço Deus ponhô pru modi Adão
Dessa Lei nunca mi isqueço cum suó cumê o pão
Mermo Jesus cuano moço na Terra tomen foi pião
E toda veiz qui fô cantá pra mim livrá da tentação
Pr'essa cocêra cabá num canto mais marração
234
234
CD “Cartas Catingueiras” e “Elomar em Concerto”.
257
Anexo C – Música “Assentamento” de Chico Buarque
Quando eu morrer, que me enterrem
Na beira do chapadão
Contente com minha terra
Cansado de tanta guerra
Crescido de coração
Tôo
(apud Guimarães Rosa)
Zanza daqui
Zanza pra acolá
Fim de feira, periferia afora
A cidade não mora mais em mim
Francisco, Serafim
Vamos embora
Ver o capim
Ver o baobá
Vamos ver a campina quando flora
A piracema, rios contravim
Binha, Bel, Bia, Quim
Vamos embora
Quando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Oh Manuel, Miguilim
Vamos embora
258
Anexo D – Música “Deixe-me viver” de Enoque Oliveira
Disco: Canudos e Cantos do Sertão / Fábio Paes
Título da composição: Deixe-me Viver
Música e Letra: Enoque Oliveira
Intérprete: Fábio Paes
Duração: 3min 30s
Ano da gravação: 1996
Gravadora: Independente
Música da trilha sonora do documentário Paixão e Guerra no Sertão de Canudos
Letra:
Deixe-me viver
Deixe-me falar
Deixe-me crescer
Deixe-me organizar
Quando eu vivia no sertão
Aos pés de quem devia me mandar
Gemia, calo e dor nas minhas mãos
A canga era pesada pra levar
Aí apareceu pelo sertão
Um Monte que passou a cativar
Tão belo que ajuntou o povo irmão
Patrão e opressor não tinha lá
Canudos outra vez vai florescer
A vida como um galho vai frondar
A luta pela terra gera o pão
Amores vão de novo começar
Canudos se espalhou pelo país
Embora os tubarões queiram morder
Na roça e na vila, o que se diz:
O povo organizado vai vencer
259
Anexo E - Prosa “De boi quem mais conhece é carreiro” de Kellen
Junqueira e Pedro Honório Paulino
O assobio do carro de bois zoa pelas encostas de Minas: carrega lenha para ser
taboada. O carreiro ouve de perto o eco que soa pela oca: com o deslize da roda o eixo
toca o cocão entoando um canto que alegra todos destas bandas de cá.
Carreiro passa por imperador com seu corpo esguio... mas governador de boi
nem sempre na carroça manda, tem de descer e como boi estar, comendo poeira,
marcando chão. E se a roda cai em falso então! Dana a boiada arrastar e a fileira
endireitar:
- “Ô boi! eia! eia!”
O carreiro acerta a correia no jojo, amarrando a canga para o boi ficar mais
orientado. Com a vara de ferrão cutuca o Malhado: êta bicho preguiçoso! porque cê sabe
não é? mesmo boi dá de negar trabalho...
Mas toda gente sabe que deve de muita obrigação prá boi:
boi ara terra,
transporta lenha, transporta taboada,
puxa moenda;
como touro, alegra rodeio
e se estiver assado, vixe:
agrada o paladar e satisfaz o apetite.
E de tudo,
nada melhor que
um queijinho mineiro
que a dona dele oferece!
E o homê que descobriu todas essas suas proezas, pita um fumo na palha, em
paz com o dia findo, reza o terço prometido à Ave Maria, agradecendo a benção de ter
vivido mais um dia.
260
Anexo F – Poesia “Cantá” de Gildes Bezerra
Cantá seja lá cumu
Si a dô fô mais grandi que o peito
Cantá bem mais forte qui a dô
Cantá pru mor da aligria
Tomém pru mor da tristeza
Cantano é qui a natureza
Insina os ome a cantá
Cantá sintino sodade
Qui dexa as marca di verga
Di arguém qui os óio num vê
I o coração inda inxerga
Cantá coieno as coieta
Ou qui nem bigorna no maio
Qui canto bão de iscui
É o som da minhã di trabaio
Cantá cumu quem dinuncia
A pió injustiça da vida:
A fomi i as panela vazia
Nus lá qui num tem mais cumida
Cantá nossa vida i a roça
Nas quar germina as semente
As qui dão fruto na terra
I as qui dão fruto na gente
Cantá as caboca cum jeito
Cum viola i catiguria
Si elas cantá nu seu peito
Num tem cantá qui alivia
Cantá pru mor disper
U amô qui bati i consola
Pontiano dento da gente
Um coração di viola
Cantá cum muntos amigos
Qui a vida canta mió
É im bando qui os passarim
Cantano disperta o
Cantá, cantá sempri mais:
Di tardi, di noiti i di dia
Cantá, cantá qui a páiz
Carece di mais cantoria
Cantá seja lá cumu
Si a dô fô mais grandi qui o peito
Cantá bem mais forti qui a dô
261
Anexo G – Poema “Pronominais” de Oswald de Andrade
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
262
Anexo H – Primeira pauta do roteiro Trajetórias
Seqüências
Abertura: capa do livro (composição de fotografia de Sebastião Salgado e ...) câmera
em close no grupo de agricultores com ferramentas na mão, câmera vai abrindo e
mostrando toda a imagem onde aparece o nome do grupo "Seguidores de Canudos".
Música: Deixe-me viver
Fotos do curso 3" cada uma
Imagem de um caminho
Uma pessoa caminhando – apenas os pés enquadrados
diferentes caminhos, diferentes solos, diferentes lugares
Biografia Bernardo
O personagem em uma casa rural e rústica (chão batido) tomando chimarrão conta sua
história que será intercalada com imagens que remetem ao que ele está narrando;
- uma criança indo para a escola (a bolsa é um saco de açúcar)
- igreja
- ocupação, caminhões, multidões chegando, manifestações, confrontos (imagem
arquivo)
- encontro com Maurício no Assentamento, a revelação de sua postura inicial, contrária
ao movimento
- relato de sua situação atual
as cenas do incidente do Sul compondo com a fala do Adelar; escolher as imagens que
parecem subjetivas Adelar – o outro
Caminho - duas pessoas caminhando
Biografia Hortência
- família (sertão PB, produção agrícola, caracterizar sua origem rural)
- escola técnica (i. arquivo pessoal)
- alguém declara que em breve ela estará no Movimento (insegurança, euforia)
- estágio Goiás, romance Ronaldo (MST/PE)
- trabalho MST
Hortência representará também o papel da Raquel, um personagem que também entra
no Movimento para trabalhar com assessoria, mas que é de origem urbana
Caminho - grupo de pessoas caminhando, na paisagem um acampamento
Biografia Gildo
- menino e família trabalhando em grande propriedade de cana
- família expulsa migrando
- criança no corte de cana com marmita na mão indo trabalhar
- proposta do pai de ida para um acampamento (diálogo com a mãe que tem medo)
- ida do menino com o pai
"quem rouba quem neste país"
"e se nosso Movimento crescer e já não couber mais no campo?"
Caminho - muitas pessoas caminhando, na paisagem um assentamento
Créditos
263
Anexo I – Pré-pauta do roteiro Conversas de bois
Abertura: (tela preta). Música instrumental Poeira.
(letreiro e logomarca) uma produção Laboratório TerraMãe.
fade (os letreiros a seguir vão aparecendo na ordem em que estão colocados)
com direção de
Kellen Junqueira
que convida
fade
Imagem Sr.Pedro Honório Paulino e nome completo abaixo da imagem
fade
e
fade
Imagem Sr.Zé Moreno e nome completo abaixo da imagem
fade
para a Festa
“A segunda viagem pelos caminhos da Juréia”
Imagem dos carreiros da Festa do carro de bois de Juréia/MG
fade
Seqüência 1: a arte/artesanato de Sr. Pedro.
cena 1: Continua o som da viola com o som direto oficina. INT/DIA
Sr.Pedro na oficina esculpindo – plano geral
cena 2: Continuidade som. INT/DIA
Sr.Pedro na oficina esculpindo – detalhes
cena 3: Continuidade som. INT/DIA
close rosto Sr.Pedro (serenidade)
cena 4: Continuidade som com o som carro de um carro de bois INT/DIA
detalhes da escultura do carro de bois e do carreiro: homem digno, que
mantém sua vara de ferrão de pé.
Trecho Conversa de boi - Guimarães Rosa
- Nós somos bois ... Bois-de-carro ... Os outros, que vêm em manadas, para ficarem um
tempo-das-águas pastando na invernada, sem trabalhar, só vivendo e pastando, e vão-se
embora para deixar lugar aos novos que chegam magros, esses todos não são como
nós..
- Eles não sabem que são bois ... Há também o homem.
- É, tem também o homem-do-pau-comprido-com-o-marinbondo-na-ponta ... – O homem
me chifrou agora mesmo com o pau ...
Fade
Seqüência 2: manhã de trabalho na roça.
cena 1: mudança de ritmo na música instrumental para allegro. Sítio carreiro.
EXT/DIA
Sr. Zé Moreno conduzindo carro, lida diária (sépia)
264
cena 2: som ambiente, cor imagem vai ficando normal. Sítio Sr. Zé Moreno.
EXT/DIA
Sr. Zé Moreno chamando os animais pelo nome.
cena 3: Sítio Sr. Zé Moreno. EXT/DIA
Depoimentos do carreiro sobre a lida diária com o carro de bois. Alguma
especificidade do seu carro.
cena 4: Sítio Sr. Zé Moreno. EXT/DIA
a família trabalhando junto.
Trecho Conversa de boi - Guimarães Rosa
-Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar como o
homem...
- É porque temos de vier perto do homem, temos de trabalhar ... Como os homens ... Por
que é que tivemos de aprender a pensar?
- É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros ...
- Pior, pior ... Começamos a olhar o medo ... o medo grande ... e a pressa ... O medo é
uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho ... É ruim ser boi-de-
carro. É ruim viver perto dos homens ... As coisas ruins são do homem: tristeza, fome,
calor – tudo, pensado, é pior ...
- Mas, pensar no capinzal, na água fresca, no sono à sombra, é bom ... É melhor do que
comer sem pensar. Quando voltarmos, de noite, no pasto, ainda haverá boas touceiras do
roxo-miúdo, que não secaram ... E mesmo o catingueiro-branco está com as moitas só
comidas a meia altura ... É bonito poder pensar, mas só as coisas bonitas ...
fade
Seqüência 3: A festa “A segunda viagem pelos caminhos da Juréia”
cena 1: carreiros de Areado se preparando e se concentrando para a saída para a
Juréia.
cena 2: som direto. A praça do evento. EXT/DIA
Os carreiros de Areado no evento.
cena 3: som direto. Palanque evento. EXT/DIA
Sequências de carreiros – especialmente Sr. Zé Moreno, Doquinha e Sr.
Antonio Batista- contando suas histórias.
cena 4: música molto allegro. EXT-INT/DIA
Imagens evento – montagem rápida que termina com a imagem da
escultura do Sr.Pedro no museu do evento.
cena 5: música tensa, dramática. INT/DIA
Escultura do Sr.Pedro no museu, filmagens de outras imagens museu:
fotos antigas e peças de época.
cena 6: Silêncio. INT/DIA
Volta à imagem da escultura do carro de bois do Sr.Pedro no museu.
fusão
cena 7: som carro de bois começa com volume baixo e vai ficando forte. EXT/DIA
Carro de bois surgindo na estrada (o carro é o do carreiro/ coadjuvante).
cena 8: som ambiente. EXT/DIA
O Sr. Zé Moreno encontra o Sr.Pedro na festa.
Fusão
Sequência 4: As memórias de Sr. Pedro.
cena 1: som ambiente. INT/DIA
265
Sr.Pedro trabalhando na oficina – plano geral.
cena 2: som ambiente. INT/DIA
Detalhes da oficina do Sr.Pedro que remetem à sua memória: objetos
antigos pendurados, recados, serragem acumulada sobre as peças, sob as
bancadas.
Finalizando: música Poeira com voz
Créditos percorrem a tela ao lado de fotos do evento
266
Anexo J – Foto Carro de bois Sr. Pedro e a nomenclatura
canzil(2)
brocha(4)
tamoeiro(1)
canga
ajojo(3)
agulha
cheda
eixo(7)
oca(8)
fueiro
vara de ferrão
Nomes Carro de Boi – Pedro Honório - Areado/MG
Junta de coice
Junta de guia
rabada
pigarro
chaveia(6)
cabeçalho do carro
tiradeiro(5)
Carro de Peão (quando a roda tem pregos no entorno dela) e
de Cordão (quando tem uma chapa de ferro)
Boi Garrotadode garrote e Argolado
Erado – velho
Reata – freio colocado para segurar o carro
Carniço – esteira que fica atrás do carro
(1) parte da canga que fica presa à tiradeira
(2) o canzil tem um PIC para segurar a brocha
(3) que amarra os chifres dos bois da junta
(4) abaixo do pescoço
(5) onde prende a canga
(6) preguinho que fica na tiradeira onde prende a canga
(7) preso à roda por uma cravilha e encaixado no chumaço da
cheda: é o atrito do eixo nele que produz o som que sai pela oca.
(8) buraco na roda por onde sai o Canto do carro.
267
Anexo K – Página 22 do Caderno de Memórias de Pedro Honório Paulino
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