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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa da Pós-Graduação em Letras
OS QUATRO ELEMENTOS DO GRANDE SERTÃO:
Veredas de sua Gênese Narrativa.
FERNANDO ANTÔNIO DE ARAÚJO
Belo Horizonte
2010
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FERNANDO ANTÔNIO DE ARAÚJO
OS QUATRO ELEMENTOS DO GRANDE SERTÃO:
Veredas de sua Gênese Narrativa.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Literaturas de Língua Portuguesa.
Orientadora: Márcia Marques de Morais.
Belo Horizonte
2010
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Araújo, Fernando Antônio de
A663q Os quatro elementos do Grande Sertão: veredas de sua gênese narrativa /
Fernando Antônio de Araújo. Belo Horizonte, 2010
197f.
Orientadora: Márcia Marques de Morais
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Programa de Pós-Graduação em Letras
Bibliografia.
1. Narração. 2. Gênese. 3. Fogo. 4. Água. 5. Ar. 6. Terra. 7. Rosa, João
Guimarães. Grande Sertão: Veredas. I. Morais, Márcia Marques de. II.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-
Graduação em Letras. III. Título.
CDU: 869.0(81)-3
Fernando Antônio de Araújo
OS QUATRO ELEMENTOS DO GRANDE SERTÃO:
Veredas de sua Gênese Narrativa.
Dissertação de mestrado em Letras apresentada ao curso de Pós-Graduação em
Literaturas de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais,
Belo Horizonte, 2010.
Prof.ª Dr.ª Márcia Marques de Morais (Orientadora) – PUC Minas
Prof.ª Dr.ª Helena Alvim Ameno – FUNEDI-UEMG
Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart – PUC Minas
A meu filho Heitor e minha esposa Viviane.
Agradecimentos
Agradeço a Deus, a minha família, a minha orientadora Prof.ª Dr.ª rcia
Marques de Morais, ao CNPq e a todos que, de alguma forma, colaboraram comigo
neste trabalho. Agradeço também aos membros da banca examinadora Prof. Dr.
Audemaro Taranto Goulart e Prof.ª Dr.ª Helena Alvim Ameno pelas sugestões que
muito enriqueceram este trabalho. Obrigado a todos.
RESUMO
Os quatro elementos da natureza fogo, água, ar e terra podem estar na
gênese da narrativa de Riobaldo na obra Grande Sertão: Veredas, de João
Guimarães Rosa. A frequência desses elementos no discurso do narrador pode
mostrar que a origem deles está na epígrafe “o diabo na rua no meio do
redemoinho”. A narrativa de Riobaldo gira em direção ao centro do turbilhão que
essa imagem constrói. Os quatro elementos o em sua gênese heterogêneos.
Contudo, na narrativa do Grande Sertão: Veredas, esses elementos estão presentes
como elementos textuais, de forma a atribuir ao texto uma estrutura homogênea que
pode desviar com freqüência o olhar para a epígrafe do romance.
As diversas espécies de sensações e sentimentos que os elementos
despertam em Riobaldo parecem comprovar sua responsabilidade no crescimento
do narrador. Esses elementos podem assumir o papel de iniciadores que
possibilitam e servem de base para a criação de atmosferas no encontro de
Riobaldo com ele mesmo e seus outros: o Tatarana, o Cerzidor e o Urutu-Branco.
Palavras-chave: narrativa, gênese, quatro elementos da natureza, sertão.
ABSTRACT
The four elements of nature - fire, water, wind and earth - may be the genesis
of the narrative of Riobaldo on Grande Sertão: Veredas (The Devil to Pay in the
Backlands) by João Guimarães Rosa. The frequency of these elements in the
discourse of the narrator can show that their origin is in the word "devil in the street in
the middle of the whirlwind." The narrative of Riobaldo turns toward the center of the
turmoil that image builds. The four elements are heterogeneous in their genesis.
However, the narrative of the Grande Sertão: Veredas (The Devil to Pay in the
Backlands), these elements are present as textual elements in order to give text a
homogeneous structure that can traverse often look for the title of the novel.
The various kinds of sensations and feelings that awaken in Riobaldo
elements seem to show their responsibility in the growth of the narrator. These
elements can take the role of primers that enable and provide the basis for creating
atmospheres in Riobaldo meeting with himself and his others: the Tatarana, the
Cerzidor and the Urutu-branco.
Keywords: narrative, genesis, four elements of nature, wilderness.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................10
1.1 Justificativa........................................................................................................12
1.2 Objetivos............................................................................................................14
2 DESENVOLVIMENTO ...........................................................................................15
2.1.Dos casos do sertão e das presenças do diabo: a cena de abertura...........15
2.1.1.Considerações iniciais...................................................................................15
2.1.2.Do título...........................................................................................................15
2.1.3.Do subtítulo ou epígrafe ................................................................................18
2.1.4.Bala-palavra: nonada, a fala e o movimento................................................18
2.1.5.O sertão...........................................................................................................34
2.1.6.O diabo............................................................................................................35
2.2.Dos casos do sertão e das presenças do diabo: as maldades.....................41
2.2.1.Proposição......................................................................................................41
2.2.2.Nuvens: o jogo do mostrar/esconder...........................................................41
2.2.3.As maldades: o Aleixo...................................................................................46
2.2.4.As maldades: o Valtei ....................................................................................48
2.2.5.Água de todo rio.............................................................................................49
2.2.6.As maldades: um tal Jazevedão ...................................................................52
2.2.7.Um pensamento alado e as rápidas mudanças provocadas pelo fogo.....55
2.2.8.Deus e o Diabo ...............................................................................................56
2.2.9.No fogo-e-ferro ...............................................................................................57
2.2.10.O fogo e os jogos eróticos..........................................................................58
2.2.11.A necessidade de “alívio” ...........................................................................63
2.3.O Liso da Memória ............................................................................................67
2.3.1.Proposta inicial...............................................................................................67
2.3.2.O tempo muda tudo........................................................................................68
2.3.3.O sonho de vôo ..............................................................................................70
2.3.4.Os elementos na memória.............................................................................76
2.3.5.O fogo de Diadorim e a água de Riobaldo ...................................................78
2.3.6.Um grande sertão, o céu e suas constelações............................................80
2.3.7.O fogo bélico ..................................................................................................84
2.3.8.As asas da consciência.................................................................................86
2.3.9.Nhorinhá e Ana Duzuza .................................................................................90
2.3.10.Da ideia de atravessar o Liso......................................................................91
2.3.11.O fogo e ar das origens e das figuras paternas ........................................92
2.3.12.A primeira travessia do Liso do Suçuarão.................................................98
2.3.13.Tiroteios: fogo e mudanças.......................................................................105
2.4.Os Bebelo Vaz-Ramiro....................................................................................108
2.4.1.A matéria.......................................................................................................108
2.4.2.Zé Bebelo ......................................................................................................113
2.4.3.A morte de Medeiro Vaz...............................................................................115
2.4.4.Fogo: o retorno de Zé Bebelo .....................................................................117
2.4.5.A chefia de Zé Bebelo Vaz-Ramiro..............................................................119
2.5. As travessias ..................................................................................................123
2.5.1.O primeiro encontro com Diadorim............................................................123
2.5.2.O primeiro encontro com os jagunços e o menino/moço ........................132
2.5.3.Riobaldo Tatarana........................................................................................138
2.5.4.O julgamento de Zé Bebelo .........................................................................144
2.5.5.Na Guararavacã do Guaicuí.........................................................................152
2.5.6.Um ritual de purificação para os ramiros...................................................164
2.5.6.Um devaneio.................................................................................................167
2.6.Uma travessia nos quatro elementos............................................................173
2.6.1.A casa dos Tucanos.....................................................................................173
2.6.2.Os catrumanos .............................................................................................176
2.6.3.O pacto..........................................................................................................177
2.6.4.A chefia .........................................................................................................182
2.6.5.A segunda travessia do Liso do Suçuarão................................................184
2.6.6.O Tamanduá-tão...........................................................................................187
2.6.7.A batalha do Paredão: o diabo na rua, no meio do redemunho...............188
3 CONCLUSÃO......................................................................................................202
4 REFERÊNCIAS....................................................................................................205
1. INTRODUÇÃO
Esta pesquisa bibliográfica e de orientação analítico-interpretativa propõe fazer um
mapeamento dos quatro elementos da natureza fogo, ar, água e terra como gênese da
narrativa de Riobaldo na obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.
Observando a trilha desses elementos no discurso do narrador, investigaremos a
pista deixada pelo autor no subtítulo ou epígrafe o diabo na rua no meio do redemoinho”,
tomando como ponto inicial e final dessa travessia a obra como um todo, haja vista que as
passagens do romance a serem focalizadas estão em diversas partes do corpo da narrativa.
A nossa proposta é fazer uma releitura do texto de Rosa, recortando passagens que
sejam relevantes para a elaboração de uma resposta à seguinte questão: os quatro
elementos podem ser identificados na obra como gênese da narrativa de Riobaldo? Com
essa investigação, tentaremos buscar outras pistas que nos permita formular mais uma
possível leitura para o Grande Sertão: Veredas.
No curso dessa investigação, não registraremos as diversas espécies de
sensações e sentimentos que os elementos despertam em Riobaldo, mas também
procuraremos comprovar sua responsabilidade no crescimento do personagem-narrador.
Esses elementos podem assumir o papel de iniciadores que possibilitam e servem de base
ao encontro de Riobaldo com ele mesmo e seus outros: o Cerzidor, o Tatarana e o Urutu-
Branco.
A epígrafe o diabo na rua no meio do redemoinho” será a base de todo o estudo da
narrativa de Riobaldo na perspectiva dos quatro elementos. Tentaremos verificar a
possibilidade de essa epígrafe remeter a todos os quatro elementos, a fim de que possa ser
visualizada como parte essencial da gênese do romance. Ademais, pretendemos nos
atentar para atmosfera que gira em torno dessa frase enigmática e os efeitos disso na
narrativa de Riobaldo.
Nessa frase, o diabo seria o fogo, que pode ser visto como uma metáfora do conflito
humano na compreensão do bem e do mal e do desejo de ascensão intelectual e espiritual.
A rua pode ser entendida como uma junção/casamento da terra e da água, de onde se eleva
pelo ar o redemoinho. A rua também pode ser vista como um rio. Nela o redemoinho sobe e
desce. Na rua de terra ele se ergue pelo ar, na rua-rio ele mergulha da superfície para o
fundo das águas do desconhecido, que é o destino e a origem do homem Riobaldo. Essa
água estaria também no “Rio” do nome do protagonista e narrador do romance. Nessa lama
primordial formada pela união da terra com a água, teremos novamente a figura do diabo
com seu “Pé-Preto” de barro. Ele representa o mundo inferior que Riobaldo conhece através
da figura maligna do Hermógenes. A figura dessa personagem está vinculada a da epígrafe,
pois no duelo final entre o Hermógenes e Diadorim, Riobaldo é o diabo na rua, no meio
do redemoinho.
O redemoinho pode ser visto como a mistura do ar com a terra, sendo que o primeiro
elemento eleva o segundo, dando corpo e carne ao vórtice. A mistura da água com o fogo
estaria também nessa imagem. O fogo, metaforicamente, imita a água na facilidade de
assumir a forma do recipiente o próprio homem sendo na forma do bem ou na forma do
mal; com a água a imagem do redemoinho sugere a imagem da morte que, no sorvedouro,
suga a vida para águas desconhecidas.
O meio seria a essência do movimento onde todos esses elementos se misturam, ele
seria também o receptáculo do diabo. Além disso, o meio pode ser o sertão, que, no centro
do redemoinho, ergue-se como a gênese dos conflitos de Riobaldo. O sertão também pode
ser visto como o próprio redemoinho por se mostrar como o meio das confusões, dúvidas,
angústias e medos do narrador.
O redemoinho seria o ar por ter origem no cruzamento de ventos a base dele é
feita de ar, é do nada” que ele surge, no nada” que ele existe e para “o nada” que ele vai.
O ar é o esqueleto invisível que dá sustentação ao redemoinho, que tem a carne formada de
terra e água, sendo que sua alma é o fogo o diabo no meio. O redemoinho seria a terra
pela poeira que o ar/vento (o nonada) ergue do chão quando cruza em ruas e estradas do
sertão; é a água, pois seu movimento não é exclusivo de ventos contrários, mas também
quando o cruzamento de ondas num rio ou no mar; é o que descreveremos como fogo
negativo, pois nele, como já foi observado pela crítica, a presença do “demo” bem no
meio da palavra “reDEMOinho”. O “demo” em questão aparece como significante, no sentido
saussuriano, no meio do signo e no dizer da própria epígrafe que é uma espécie de refrão
do romance.
1.1.Justificativa
O ponto importante de nossa justificativa pelo interesse no desenvolvimento deste
trabalho está no nosso desejo de comprovar que a narrativa de Riobaldo também pode ser
lida de forma a reconhecer que sua gênese está na interação dos quatro elementos da
natureza fogo, ar, água e terra. Mas não somente na forma que cada elemento tem na
tradição filosófica, pois pretendemos comprovar também que no Grande Sertão: Veredas
esses elementos estão casados
1
ou misturados entre si e suas ações e reações mostram
ora serem positivas, ora negativas, um exemplo disso está no elemento fogo que no
romance ora representa Deus, ora o Diabo, e ora representa a inteligência, ora a
brutalidade.
Essa dualidade, esses jogos de incertezas e duplas faces fazem parte da realidade
da leitura de Grande Sertão: Veredas. Esta pesquisa não propõe uma leitura definitiva do
livro de Guimarães Rosa que se constitui do “certo no incerto”
2
e não permite leituras
fechadas, pois o Grande Sertão: Veredas está sempre aberto à qualidade de romance sem
fronteiras.
Ler o Grande Sertão: Veredas na perspectiva apresentada pressupõe uma
leitura baseada em conceitos de alquimia, filosofia, psicanálise e outros ramos do
conhecimento. Contudo, é bom esclarecermos que nesta pesquisa, tais conceitos
serão usados em favor de um estudo da gênese da narrativa de Riobaldo, tomando
como referência a crítica sobre a obra de Guimarães Rosa, bem como os conceitos
teóricos sobre a narrativa, o romance e a interação entre os quatro elementos. No
caso dessa interação entre os quatro elementos a referência principal para nosso
trabalho será a obra de Gaston Bachelard. Não haverá, portanto, aqui, um
aprofundamento dos conceitos de alquimia, filosofia e psicanálise, por exemplo, de
modo a escurecer o brilho do objetivo que esta pesquisa tem de ser uma pesquisa
de literatura e não de outro ramo do conhecimento.
Alguns termos serão arbitrariamente criados para descrever as relações do
narrador com as metáforas do narrado. O termo metáforas elementares será o mais
constante. A ele, atribuímos o efeito metafórico da ação de um dos quatro elementos
ou da interação dos mesmos. Bachelard sugere o termo casamento quando se
refere à união de dois elementos e afirma que não é possível um triângulo de
1
O termo “casamento” entre os quatro elementos foi sugerido por Gaston Bachelard.
2
Termo sugerido por Walnice Nogueira Galvão.
relacionamento entre eles. Entretanto, acreditamos que nesses casamentos há,
quase sempre, a intervenção de um elemento intruso que enriquece a complexidade
da relação entre os elementos. Os termos em itálico neste parágrafo serão os mais
constantemente empregados no desenvolvimento desta pesquisa.
1.2.Objetivos
Os objetivos desta pesquisa trilham pelo interesse em apresentar uma
releitura da obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, tomando como
ponto de partida a epígrafe no entendimento dos quatro elementos primordiais da
natureza como quatro vozes que são os desdobramentos da voz do personagem-
narrador, Riobaldo, em sua travessia no sertão da linguagem e, como cunhou a
crítica, seu “monodiálogo” com o senhor leitor.
Tentaremos comprovar que essas vozes distintas e ao mesmo tempo
sobrepostas que dialogam entre si ou falando todas ao mesmo tempo –, com o
herói, com o mundo, com as personagens, com os fatos narrados e com o leitor, têm
como objetivo criar atmosferas, equilibrar e harmonizar a relação entre o sujeito e o
mundo, proporcionando a ele, personagem da ficção, um melhor entendimento
acerca dos fatos vividos e da própria realidade mítica que o cerca. Ao mesmo tempo
em que o distintas, essas vozes também se misturam numa interação polifônica
que representa os diversos pontos de tensão presentes nessa forma de narrativa.
Esta pesquisa bibliográfica e de orientação analítico-interpretativa quer se
colocar entre as que amplificam a importância de se ler, reler, estudar e divulgar a
obra de Rosa para os seus futuros leitores. Como foi esclarecido, não nela o
desejo de trazer uma solução nova (e fechada) para a leitura da obra de Rosa,
sabemos que isso não é possível, pois a grande arte da obra literária está no seu
mostrar/esconder, nos seus jogos de enganos, na complexidade de sua trama, na
sua perspectiva performática e no seu trabalho de elaboração de linguagem tão
especialmente verdadeiro para a obra de João Guimarães Rosa.
Portanto, nela não haverá respostas definitivas para as perguntas mais
intrigantes sobre o Grande Sertão: Veredas, mas com ela, pretende-se propor novas
perguntas à cerca da força desse romance universal do médico e diplomata mineiro,
sabendo que todo texto sobre Guimarães Rosa nos remete a outros textos sobre a
obra do autor numa infindável rede de estudos.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1: Dos casos do sertão e das presenças do diabo: a cena de abertura
2.1.1.Considerações iniciais
Na leitura de Grande Sertão: Veredas, o romance de Guimarães Rosa, podemos,
segundo toda a crítica escrita sobre o livro, encontrar um universo de possibilidades.
Desde o óbvio até o mais intrigante argumento interpretativo, muito se debateu e
discutiu sobre a obra.
O que pretendemos aqui, é propor uma releitura do texto, recortando passagens que
nos respondam a pergunta que abre essa dissertação: os quatro elementos terra, água,
fogo e ar – podem ser identificados na obra como gênese da narrativa de Riobaldo?
Tentaremos responder a essa pergunta relendo e analisando o livro do começo ao fim, mas
focalizando partes significativas que serão recortadas e analisadas mais cuidadosamente.
Neste primeiro capítulo, tomaremos como ponto de partida o título, o subtítulo e o que
chamamos de “Do sertão, dos casos do sertão e das presenças do diabo: a cena de
abertura,” presente nas primeiras páginas do livro.
2.1.2.Do título
As três palavras do título, Grande Sertão: Veredas, bem como a seqüência delas já
parece provocar estranhamento no leitor. A amplitude, simplicidade e a imagem bem lugar
comum” trazida pelo adjetivo “Grande”, amplifica ainda mais a vastidão do substantivo
“Sertão”. Sendo a grandeza uma entidade suscetível de medida, a expressão Grande Sertão
carrega consigo duas grandezas que podem representar em si, já um desejo (mesmo que
frustrado) de se tentar encontrar uma medida para o sertão. Desejo este expresso na
primeira página do livro.
Essa medida pode ter como unidade métrica subjetiva as Veredas. Apesar de querer
encontrar uma medida para o sertão, o personagem-narrador Riobaldo sabe que não é
capaz de medi-lo nos seus quilômetros/metros (“veredas/veredazinhas”), ele mesmo diz
saber pouco do sertão. A seqüência das três palavras do título sugeriria e anteciparia essas
dúvidas e estranhezas experimentadas pelo leitor através da fala do narrador. A ordem
invertida Grande Sertão com o adjetivo vindo primeiro e o substantivo vindo depois, ao invés
de Sertão Grande com o substantivo seguido pelo adjetivo, tonifica a estranheza do termo.
Podemos dizer que ali já se pressupõe o “estranho” na própria forma da obra.
O sinal dos dois pontos após o termo, segundo Paulo Rónai, “teria valor adversativo,
estabelecendo a oposição entre a imensa realidade inabrangível e suas mínimas parcelas
acessíveis, ou, noutras palavras, entre o intuível e o conhecível” (RONAI, 1958, p.151 e
158). Já de acordo com Francis Utéza, “os dois pontos que separam-ligam a trindade
inscrita no frontispício lembram aqueles que se correspondem no Tai Ki, símbolo chinês do
Tao”, os dois pontos do yin/yang, sendo um branco (o yang no corpo do yin) e o outro preto
(o yin no corpo do yang), podendo representar a “Água das veredas e [a] Terra do sertão
(UTÉZA, 1994, p.56). Esses dois pontos podem representar também uma tentativa de dizer
que as grandezas são constituídas de coisas pequenas: as veredas são como células do
Grande Sertão. O sertão é um grande caminho formado por caminhos estreitos que se
encontram com ele; sendo assim, o sertão é como o Rio São Francisco que, partindo o
centro-oeste, o centro e o grande norte de Minas Gerais no meio, faz de si a espinha dorsal
e, ao mesmo tempo, o coração do estado com suas veias/veredas de ar, terra e água.
Sendo um casamento do elemento terra com o elemento água, o título Grande
Sertão: Veredas”, nos impele a reflexões sobre a matéria, no que se refere à grandiosidade
da terra como o espaço sertão e a assimetria de seus veios de água, afluentes de afluentes
que levam até um rio maior que corre em direção ao mar.
O “Grande Sertão” surge, entretanto, como espaço sico vasto e ermo, com
geografia mais ou menos definida, podendo ser traçada em mapa, demarcando o grande
norte de Minas Gerais, um pequeno fragmento do interior oeste da Bahia e outro do leste de
Goiás. Ao mesmo tempo, surge como espaço metafísico sem limites, sem medida, adornado
de possibilidades infinitas que vão além de suas fronteiras geográficas.
Em seu espaço físico, encontramos um variado conjunto de matéria dura e mole.
Desde as pedras à lama, contando com tudo que caminha, arrasta ou está fixo na terra,
podemos encontrar de tudo nele: minerais, metais, animais e vegetais de todas as formas,
densidades e pesos. Todas essas formas interagem umas com as outras ao interagirem
com o sertão. Combinadas, essas formas, se duras, amolecem, se moles, endurecem,
assumindo a forma da forma que quer lhes dar outra configuração. A grandiosidade desse
“Sertão” consistiria justamente nessa poderosa capacidade de repetir e variar
incessantemente, sem se tornar repetitivo e homogêneo. Queremos acreditar ainda que, até
quando homogêneas, as formas, por maiores ou mais densas que sejam, aparecem, no
livro, diversificadas e, surpreendentemente, unidas a outros elementos. Nesse caso, temos
o gigantismo da terra – espaço físico, sertão – com a sutileza das “Veredas”, endurecendo o
mole, amolecendo o duro.
No espaço metafísico desse sertão, encontramos, principalmente, a narrativa de
Riobaldo. A narrativa de Riobaldo abraçaria toda a bruteza e sutileza, força e delicadeza da
materialidade e da imaterialidade do “Sertão” para criar sua voz. Queremos entender que a
voz do “Sertão” pode ser a gênese da voz de Riobaldo. Nesse sentido, o “Sertão” fala
através dele, e ele fala através do “Sertão”. No nosso entendimento, o “Grande” se sustenta
do pequeno, vive graças a ele, enquanto o pequeno e, nesse caso, o pequeno são as
“Veredas” esparrama-se no “Grande” como se, com isso, sustentasse toda uma sede de
vontades que ainda nos parece obscura.
Mas nos parece mais obscura se fecharmos os olhos a um olhar mais atento dirigido
a essas “Veredas”. As “Veredas” são como pequenos vasos sanguíneos
3
nesse “Grande
Sertão”. Elas levam a água doce aos ermos bárbaros. Água doce que, segundo Bachelard,
sugere a pureza da virgindade. Tornamos testemunhas desse casamento entre a terra e a
água se pudermos perceber a presença sutilmente virginal e feminina das “Veredas”,
amolecendo a dureza do Sertão”. O casamento bem sucedido desses dois elementos
presentes no título do romance de Guimarães Rosa harmoniza e equilibra a narrativa. Isso
pode estar nos dizendo que o narrador, ao intercambiar suas experiências, preocupa-se
com os eventos e as coisas grandes que não têm muita sutileza e com os eventos e as
coisas pequenas que são de extrema importância.
2.1.3.Do subtítulo ou epígrafe
Apresentando-se como um casamento do elemento terra com o elemento ar, o
subtítulo (ou epígrafe segundo alguns críticos) O diabo na rua, no meio do redemunho...
3
Esse termo não foi intencional, mas a capa da edição comemorativa dos cinquenta anos da primeira
publicação de Grande Sertão: Veredas é branca com o título bordado com linhas vermelhas soltas
nas pontas das palavras lembrando o sangue derramado nas batalhas narradas por Riobaldo.
vem para ampliar o jogo impelindo-nos a refletir sobre a matéria e o movimento. Mas eis que
surge um problema: no casamento da terra com o ar, encontramos a intervenção do “diabo”
representando o fogo.
Esse terceiro elemento intruso interfere nessa união, agindo como o cerne da
desordem e, no Grande Sertão: Veredas, muita coisa está comprometida com a ordem e a
desordem. O “diabo”, nesse caso, pode vir para adulterar essa harmonia entre a terra,
representada pelo “na rua” e pelo “redemunho”, e o ar, representado pelo próprio movimento
do vórtice que se no cruzamento de ventos formando esse redemoinho. A expressão “no
meio do” pode querer nos sugerir uma antecipação de toda essa ordem/desordem ou
confusão que encontraremos no decorrer dos conflitos vividos pelo protagonista do livro.
Nesse sentido, a frase “O diabo na rua no meio do redemunho...” pode ser vista como uma
epígrafe do romance de Rosa, por antecipar toda uma rede de conflitos que serão narrados
por Riobaldo conflitos esses que terão, na imagem do diabo, uma de suas maiores
referências.
2.1.4.Bala-palavra: nonada, a fala e o movimento
Em Grande Sertão: Veredas, a narrativa, no começo, parece-nos impulsionada pelo
casamento do elemento ar com o elemento água. Ao abrir o livro, o leitor tem logo uma
experiência de estranhamento com o primeiro parágrafo que se abre com um travessão que
mais parece um trampolim para um mergulho no desconhecido. Esse desconhecido começa
logo a se fazer conhecer, acreditamos, como uma das metáforas do ar. Com o termo
“Nonada”, depois do travessão, Implicando o fôlego e a fala do narrador, ou seja, o ar dos
pulmões e a fonte de quido da boca falante cheia de saliva, atirando palavras, com o fogo
dos tiros, os “tiros que o senhor ouviu” (ROSA, 1986, p.1), sobre a terra, que nesse caso,
pode fazer o papel de um elemento intruso que acaba tomando de assalto parte do assunto
e sugando a água e o fôlego do enunciador. Ali naquela página, apesar das presenças do
elemento fogo, parece ser a terra, espaço geográfico e cultural do sertão, um dos problemas
levantados pelo narrador. Mais importante, pois, é tentar determinar seus limites físicos e
metafísicos.
Após o diabo na rua no meio do redemunho..., esse travessão, indicando o discurso
direto, abre a fala de Riobaldo que domina a narrativa de Grande Sertão: Veredas do
começo ao fim. A primeira frase, reduzida a uma palavra, é mais do que o suficiente para
provocar estranhamento no leitor. Isso porque o Nonadanão é somente um não-nada,
uma dupla negativa; ele pode ser visto também como um primeiro sopro no vórtice da obra.
Essa expressão sai das margens indo direto para o centro do turbilhão sonoro das palavras
em mergulho vertiginoso.
Nessa visão, deparamos com uma breve reflexão sobre o caráter aéreo do som.
O som viaja no ar. Sendo representado, por exemplo, pela fala ou por um
instrumento de sopro, ele provém, dentre outras coisas, do fôlego de quem o emite.
Contudo, não é somente nesses exemplos que podemos verificar o caráter aéreo do som.
Outro deles está no roçar de galhos de uma árvore acariciada por uma brisa leve. muito
erotismo nessa imagem poética, pois a árvore retribui em si mesma os afagos da brisa e o
som desse roçar de galhos é arrastado como os movimentos de uma amante lânguida de
prazer. Outro exemplo pode ser o do tiro de arma de fogo. Nesse caso o som viaja no ar
como um mensageiro que chega atrasado para enviar recado de morte, pois o projétil
sempre chega na frente.
Nem sempre o som é simultâneo a sua emissão, o que significa que nem sempre
captamos sua essência de imediato; precisamos lê-lo no ar e, muitas vezes, senti-lo,
absorvê-lo para que possamos distingui-lo. Nisso o ar / espaço tem importante função: sua
“arquitetura” é que dita os rumos da leitura que se faz do som. A função fática da linguagem
na relação do emissor com o receptor e o meio / referente talvez possa nos explicar
juntamente com a Acústica, parte da Física que estuda o som, o seu caráter aéreo. Todo um
agrupamento de contextos tem que ser reconhecido para que se entenda a relação do ar
com o som: o contexto social, o cultural, o psicológico, o circunstancial, o afetivo, o espacial.
Todos eles estão no jogo, funcionando como uma clave que o tom da mensagem que é
substância da função poética, responsável pelo carrossel de metáforas que unem a luz e o
som à idéia de leveza e subida reta para as alturas. Segundo Bachelard: “é a síntese da luz,
da sonoridade e da leveza que determina uma ascensão reta” (BACHELARD, 2001, p. 52).
Em Bachelard vimos também que “o diáfano, o ligeiro e o sonoro determinam uma espécie
de reflexo condicionado da imaginação. São esses reflexos condicionados, ligando
qualidades imaginárias, que especificam os diferentes temperamentos poéticos”
(BACHELARD, 2001, p. 53), o que também pretendemos verificar na voz de Guimarães
Rosa através da fala de seu personagem-narrador Riobaldo, protagonista de Grande Sertão:
Veredas, que apresenta, na sua estrutura romanesca de monólogo-diálogo, uma ênfase à
sonoridade do falar sertanejo poetizado pelo autor.
As figuras que nos acompanharam até este momento do texto devem ser entendidas
como consequências de um estudo sobre a imaginação do movimento ascensional, ou seja,
um estudo sobre o ar e suas metáforas que são as peças importantes do jogo na linguagem
literária.
Podemos dizer que o ato de sonhar acordado, de dia ou de noite, pode ser
denominado como um exercício de imaginação do movimento ascensional que nos abre um
leque de possibilidades para podermos criar metáforas aéreas. E que, embora a metáfora
não seja essencial ou obrigatória quando se usa a imaginação, ambas, metáfora e
imaginação, podem se aproximar ou distanciar-se com naturalidade de acordo com as
razões do contexto. Podemos dizer também que “o sono encerra uma dinâmica vertical”
(BACHELARD, 2001, p. 56) por nele, percebermos os vários picos: tipos de queda para
cima ou para baixo que não somente representam os seus vários estágios, mas também a
intensidade do sonho na imaginação do sonhador. O caráter aéreo do sono e do sonho,
diurno ou noturno, dormindo ou acordado, é comprovado pelo dinamismo imagético e
metafórico que verificamos quando analisamos esses efeitos em textos literários como o de
Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas.
A fala e o poder encantatório das palavras, nesse contexto, têm uma posição central.
A palavra falada é, segundo a imaginação literária, um movimento criado no ar que não
representa a ação, mas também o pensamento, a memória, ou, como escreve Bachelard:
“admite associações de movimentos assim como associações de idéias.” (BACHELARD,
2001, p. 99).
Como mimese da natureza, a fala reproduz as cores, as formas e os sons do mundo,
dos seres e dos objetos, dando-lhes movimento, fôlego e voz, o que lhes proporciona,
também, o poder aéreo da palavra falada. Segundo Bachelard, “Tudo fala no universo, mas
é o homem, o grande falante, quem diz as primeiras palavras.” (BACHELARD, 2001, p. 99),
é ele quem tem o poder de abrir um mundo com sua palavra indutora”, como Riobaldo em
Grande Sertão: Veredas, abrindo seu discurso com “– Nonada.e, no vazio do ar que essa
palavra expressa, criando esse mundo grande que é o sertão universal de Rosa.
Essa abertura de que falamos no parágrafo anterior não se constrói através da
imagem de um abismo que se abre aos nossos pés, como se a terra quisesse nos devorar.
Não é ao elemento terra que ela se vincula. Ela é regida pelo ar e é para o ar que se
direciona, ou seja, ela despenca no abismo num movimento que se acelera na medida em
que se cai, mas se precipita, nessa queda imaginária, para o alto e não para baixo. Num
desejo imenso de subir ao céu, ascender-se, purificar-se e se tornar parte do céu azul, o ser
cai para o alto, abraçando o ar na tentativa de agarrar cada palavra que voa, cada pequeno
mito que voa como quem nada na imensidão de um oceano. Essa queda ascensional, pode
ser mais que uma abertura, pode ser a cópula do ser e de toda a sua jornada com o
vazio do ar.
O céu, se pudermos vê-lo como um abismo invertido, apresenta-se nessa lógica de
forma espelhada, barrocamente antitética, por estruturar-se num movimento contrário ao de
sua concepção: enquanto nós o abraçamos na queda/voo, ele nos devora. A presença do
abismo de Nietzsche nessa imagem não veio por coincidência; segundo Bachelard,
Nietzsche nos mostra “que a profundidade está em cima” (BACHELARD, 2001, p. 107), o
que para nós, serve de confirmação da força das imagens da queda para o alto.
Metaforicamente, os braços nessa queda invertida se abrem, giram como uma espiral ou
como um corpo que baila e crescem proporcionalmente ao contato do corpo da queda com
o céu. Na medida em que o movimento se acelera, cria-se o ser do ar; desacelerando-se o
movimento, temos o ser terrestre, isso nos leva a crer que, na dinâmica do movimento,
temos dois elementos, duas matérias num só ato. Sobre essa questão Bachelard diz que
“somos o traço de união da natureza e dos deuses, ou, para ser mais fiel à
imaginação pura, somos o mais forte dos traços de união entre a terra e o
ar: somos duas matérias num único ato. (...) A terra e o ar, para o ser
dinamizado, estão indissoluvelmente ligados.” (BACHELARD, 2001, p. 109)
Analisando os efeitos de nonada, podemos perceber que o estranhamento que essa
palavra sugere está principalmente na presença do nadae no caráter volátil que adquire
quando se acrescenta a ele o no(contração de preposição mais artigo) que nos lança a
idéia de um no nada”, que numa justaposição se transforma em nonada”. Esse começo
sem chão que abre o discurso início ao turbilhão narrativo do Grande Sertão: Veredas
que, com o constante movimento das ações relatadas pelo narrador, vai crescendo,
tomando corpo e forma. Um corpo e uma forma de ar misturado aos outros elementos: a
água, o fogo e a terra.
Na crítica sobre Guimarães Rosa muito já se escreveu sobre o termo nonada, esse
lugar feito de ar que sai dos pulmões do sertão, dos pulmões de Riobaldo e se faz voz e fala
no turbilhão de linguagem de uma narração que se equilibra e se biparte “ao redor de um
centro ideal” e pode ser “delimitada por uma palavra-margem, também dúplice, duvidosa,
como todas as fronteiras” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p.62). O crítico Ettore Finazzi-Agrò, no
seu livro Um lugar do tamanho do mundo: tempos e espaços da ficção em João Guimarães
Rosa, observa que em nonada temos
“dois termos negativos (não é nada) e que tem, por isso, um duplo
estatuto semântico (negativo e afirmativo, ao mesmo tempo) e uma dupla
função: aquela de indicar os confins do texto, fechando-o, por um lado, na
sua organicidade estrutural, mas abrindo-o, pelo outro, para aquela
realidade discursiva que o rodeia e o atravessa” (FINAZZI-AGRÒ, 2001,
p.62).
A presença dessa afirmativa, apontada pelo crítico, no centro dessa dupla negativa
só reforça a idéia de conflito, contradição e instabilidade presentes na narrativa de Riobaldo.
Esse conflito, essa contradição e instabilidade representam o elemento ar que está
fisicamente ligado ao movimento e à fala. O claro do ar”, expressão usada por Guimarães
Rosa em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras pode ser um lugar nada,
um nonada que assopra, anima e movimenta a terra e o fogo no redemoinho que abre o
discurso do narrador.
O espaço mudo, surdo e vazio do antes da fala parte do termo nonada, da mesma
forma, essa palavra também representa uma suposta primeira resposta a uma dúvida
expressa através de uma pergunta que é feita pelo senhor vindo da cidade para o sertão
para conhecê-lo. Sobre esse vazio, o silêncio e a ausência que essa palavra pode sugerir,
Finazzi-Agrò escreve que
(...) o murmúrio, quase imperceptível, daquilo que “não é nada
retumba no vazio imenso da totalidade, ao passo que o Todo, para se tornar
compreensível, deve passar pelo limiar do nada que não é”, deve afundar
no nada” (que fica outra possível leitura desta palavra), deve transitar,
enfim, pelo Silêncio, pela informidade da Ausência para adquirir a
eventualidade de uma forma e de uma voz (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p.62 e
63).
O que nos leva a crer que fundada no vazio do nada (– Nonada.), a narrativa de Riobaldo
deve fazer que seu ouvinte/leitor se afunde no nada, atravessando seus silêncios e
ausências, para, enfim, compreender a forma e a voz da obra. Isso, porque, logo depois da
primeira resposta do personagem-narrador ao seu ouvinte, vem a resposta completa: “Tiros
que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no
quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em
minha mocidade.” (ROSA, 1988, p.1). Decerto que a resposta completa está na leitura de
todo o Grande Sertão: Veredas e em todas as melhores perguntas que o narrador ensina o
ouvinte a fazer, mas o que se pode ler aqui parece uma cena de abertura, como aponta o
estudo de João Adolfo Hansen (2000) sobre o “nonada” em Grande Sertão: Veredas.
No segundo capítulo, A Fala Agônica, de seu livro o O: A ficção da literatura em
Grande Sertão: Veredas, o crítico descreve a expressão inicial do romance rosiano como
uma “cena” que “se abre”, talvez, num palco vazio. Para Hansen, “marca-se”, nessa cena, “o
movimento de um ato, que não tem sua razão de ser no que o antecede” (HANSEN, 2000,
p. 43). Nela o narrador/ator já está presente e se faz voz, talvez só voz, mas vai tomando
corpo logo depois de confirmar que houve “tiros”, mas não os de “briga de homem” para um
outro ator que lhe empresta o ouvido (o senhor) e alguns escassos movimentos como em
que o senhor ouviu” e supostas perguntas e respostas sobre o que lhe é exposto e
questionado. O silêncio foi quebrado pelo som de tiros: o fogo vazando o ar que o atiçou, o
fogo na cólera da bala. A ausência foi preenchida pelo som dos tiros e abriu a fala, viajando
no “claro do ar” à procura do ouvido. Para Hansen, “nonada” é
“a coisa nada, declarando-se pelo avesso um dispositivo de linguagem,
máquina de expressão” podendo ser traduzida morfológica e sintaticamente
“como se o signo fosse um nome: ‘o nada’, ‘coisa alguma’; como um
pronome substantivo: ‘nada’; como um advérbio: ‘em nenhum lugar’, ‘em
parte alguma’, ‘no nada’; como uma predicação: ‘algo não é coisa alguma’,
‘isso é nada’, ‘algo é no nada’, ‘algo é nada’” (HANSEN, 2000, p. 43).
Expressão “que fende o ar numa mímica muda” (HANSEN, 2000, p. 43),
ela seria a
representação da gênese de uma narrativa que fala daquilo que é e não é, começando por
não ser, daquilo que existe, daquilo que não existe e daquilo que existe não existindo. Ela é
a representação de Deus e o Diabo na rua no meio do redemoinho, girando tudo,
misturando tudo, revirando os vazios do sertão.
Se pudermos dizer que a fala é um fenômeno biológico e físico e seus sons são
produzidos pelo concurso dos órgãos do aparelho fonador, acabamos por pensar na
presença do elemento ar movimentando tudo isso para produzir um som ou uma seqüência
de sons. Se falar funda-se em usar o ar e o corpo para expressar num contexto uma idéia,
então, “– Nonada. pode ser visto como a fundação de um contexto para um extenso ato de
fala a narrativa de Riobaldo que pode ter no elemento ar sua primeira estruturação, sua
primeira chance de existir. Para Hansen, “‘nonada’ é uma fala como produção.” (HANSEN,
2000, p. 44)
“falando a partir de ‘nada’, o narrador é alguém em luta com a
linguagem, na travessia dos signos. Na cena de seu discurso, cena como
reivindicação/apropriação de um lugar de fala, a ele será possível dizer o
interdito e o entredito nos signos que ‘nonada põe em movimento,
utilizando-se da língua como se de uma matéria” (HANSEN, 2000, p. 44 e
45).
Uma matéria sutil (o ar) que atiça uma que flui (a água) e que quer subir ao ser
evaporada pelo calor do fogo, elevar-se de forma circular e de forma a representar os
conflitos do discurso épico, representado pelos “tiros que o senhor ouviu”. Hansen (2000)
observa que Riobaldo, “no presente contínuo de sua enunciação”, usa seu próprio eu “como
fundamento do narrado”, articulando na fala pontos simultaneamente estáticos e dinâmicos
que fazem parte do caráter digressivo da narrativa em Grande Sertão: Veredas. Digressões
essas que estão no contexto do discurso de Riobaldo que questiona sobre Deus e a
existência do Diabo. Essas pequenas “fugas” do assunto principal são como ciscos de
poeira que giram no redemoinho. Elas preenchem o colorido do corpo de ar da narrativa de
Riobaldo indo em direção ao centro do assunto, ao meio de tudo: a própria alma do
personagem-narrador. Hansen (2000) escreve que esses pontos simultaneamente estáticos
e dinâmicos são
“Estáticos, pois o efeito de sua fala se sobredeterminará
imaginariamente como origem que insiste como fundação em toda a sua
enunciação; e dinâmicos, pois ele também moverá a fala em todos os
sentidos, inventando sempre outras formas no verbo para dizer o mesmo de
um efeito” (HANSEN, 2000, p. 45).
Esse caráter movente e circular faz que o personagem-narrador, no seu referencial de
enunciação, (re)tome outras falas/vozes, “outras enunciações, outras representações, outros
imaginários fazendo-os convergir em sua estruturação” (HANSEN, 2000, p. 45).
Essa voz que diz “– Nonada.” responde a um suposto ato anterior de fala de um
senhor talvez preocupado, com medo ou simplesmente curioso, que quer saber se os tiros
que ele ouviu “foram de briga de homem”. “Nonadapode muito bem não passar disso, mas
seu conflito interior é movimentado e caminha em concordância ao que Guimarães Rosa
disse em sua entrevista a Günter Lorenz: (...) “quero voltar cada dia à origem da ngua,
onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha
imagem” (COUTINHO, 1991, p. 84); nonada” é o claro/escuro ar da fala/da voz e “tiros que
o senhor ouviu” é o lume do fogo abrindo o caminho para o ouvido. Nesse movimento da
boca de um ao ouvido de outro, viaja, no espaço, o som que conecta um ao outro, em que
esse um transmite por um canal físico suas dúvidas, angústias e medos a esse outro; ou
seu veneno tal como a palavra de chumbo de Maria Mutema
4
, que matou o marido e o
Padre Ponte no episódio que tem o mesmo nome dessa mulher misteriosa. A função fática
da linguagem aqui quase só tem uma via: a de Riobaldo em direção ao ouvido do senhor.
A via do senhor, silenciada pelo narrador que monopoliza a fala, revela
fragmentos de sua existência. Ela não se faz voz, mas mesmo assim é voz. Sendo uma voz
mais auditiva que falante, ela representa a humildade do bom senso diante dos
ensinamentos do senso comum.
As cinco primeiras frases do narrador podem até nos levar a crer que o fogo na
narrativa de Riobaldo pode ser o elemento intruso que adultera a relação sugerida por
nonada no casamento do ar com a água, nessa primeira página, o que de todo não é falso.
Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não,
Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por
meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade.
(ROSA, 1956, p.1)
Mas não é ele quem domina toda a página. A nosso ver, o fôlego/ar casado com a água,
tendo o fogo como elemento intruso, abrem a narrativa de Riobaldo com a presença de tiros
de armas de fogo, do diabo na imagem do bezerro defeituoso e as armas de fogo cedidas
para matá-lo.
Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco,
erroso, os olhos de nem ser se viu –; e com máscara de cachorro. Me
disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu,
arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara
de cão: determinaram era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele
nem sei quem for. Vieram emprestar minha armas, cedi. Não tenho
abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade,
primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente depois, então, se vai
ver se deu mortos. (ROSA, 1956, p.1)
4
Maria Mutema mata o marido jogando chumbo derretido no ouvido dele enquanto ele dormia e mata
o Padre Ponte envenenando-o com a lascívia de suas palavras sedutoras e mentirosas.
No entanto, esse intruso logo é substituído por outro; no caso, a terra espaço sertão, que
domina enfaticamente todo o restante da página.
No nada vem o ar/fôlego, o sopro de vida da narrativa. O fogo que o narrador atiça
vem com os tiros de suas armas que estão antes e depois de “– Nonada”. Nesse segundo
caso, temos a busca constante do narrador em querer saber das coisas. Riobaldo diz ao
senhor de fora que alveja mira “em árvores” “no quintal, no baixo do córrego”, ou seja, com o
“pau-de-fogo” ele mira em árvores (terra/ar) num terreno (terra) rebaixado perto de um curso
d'água. Por que ele treina tiro ao alvo desde a mocidade? Acreditamos que isso ocorre pela
sua necessidade de ser alto e alcançar/conquistar sua verticalidade.
Impulsionado muitas vezes pela ambição, pelo orgulho, pelo desejo de ascensão e
glória eterna, o homem, com seu “sentimento de verticalidade” é sempre impelido a
conquistar sua “altura”. Bachelard escreve que “esse sentimento de verticalidade é dinâmico
no sentido em que impele o homem a conquistar incessantemente a verticalidade, a
estender-se em altura. O homem é animado pela necessidade de parecer grande, de elevar
a fronte(BACHELARD, 2001, p. 58) uma forma de se manter com a cabeça erguida, um
gosto, um orgulho; daí o fato de Aquiles, da Ilíada de Homero, preferir morrer jovem e em
glória do que ser um homem comum que seria esquecido pelos netos e bisnetos. O
esquecimento vem como o maior medo dos heróis e dos poetas e em tudo eles veem a
necessidade de um registro de eternidade, de imortalidade. Ninguém, na verdade, quer ver
suas palavras apagadas com o vento; quer vê-las antes elevadas, se possível escritas e
imortalizadas na memória dos outros, preenchendo o vazio do ar, a folha em branco e as
almas dos vivos e dos mortos, criando outras metáforas no universo de possibilidades
expressivas que chamamos literatura.
O “elevar a fronte” é antes de tudo um ato de dignidade e orgulho no qual todos nós
temos o direito ao voo conquistado; isso independe da condição do visionário que pode ser
desde um poeta a um sertanejo que mal foi alfabetizado, mas que carrega consigo toda uma
cultura calcada na tradição de contar estórias. Essa conquista pode estar no simples ato de
se dar o direito de falar ou usufruir do direito de falar, de se fazer voz.
Armado do que Bachelard chama de “palavra indutora” (BACHELARD, 2001, p. 59), o
escritor lança, no vento, uma galeria de imagens que passam no ar como se pertencessem
a cauda de um cometa que é a representação da imagem primeira. Como conclui
Bachelard, “as formas poéticas são desposadas pelos movimentos imaginários”
(BACHELARD, 2001, p. 59) e não pela idéia inerte de uma quietude contemplativa.
Nesse jogo de movimento ascensional, o trânsito de metáforas se torna mais intenso,
porém flui com naturalidade, principalmente se o texto apresentar uma tendência à
oralidade, buscando, em sua estrutura imitar ou recriar artisticamente os valores, os
costumes e os falares de um grupo social, representando metaforicamente o fôlego dessa
cultura. Nesse contexto, a “palavra indutora” de Bachelard pode representar o impulso
dessa voz e o caráter impulsivo dessa voz no seu dizer e no seu querer dizer e re-significar
a natureza.
Em Grande Sertão: Veredas, a palavra “– Nonada.” pode ser considerada essa
“palavra indutora”, que lança a primeira imagem no ar para cortar ou preencher o vazio das
idéias que partem de uma representação gráfica de oralidade, no caso, o parágrafo e o
travessão. Essa bala-palavra corta o ar e como uma semente que cresce e se transforma
em uma árvore frutífera, ela se transmuta, por exemplo, em uma narrativa romanesca
munida de um paiol de balas-palavra que servem para armar um arsenal de metáforas. Mas
não devemos nos iludir com esse jogo que aparentemente pode nos remeter a imagens
fugidias, vagas, transportadas de um significado para outro, acreditando ser essa lógica
alternativa, a que vai definir os rumos de nossa análise. As imagens do ar provocadas por
essa palavra indutora” no início do Grande Sertão: Veredas não são passageiras como se
fossem resultantes de visões efêmeras; ao contrário, elas irão contaminar todo o texto do
começo ao fim, levando-nos a promover constantes remissões a imagens apresentadas pelo
narrador. Isso justifica o nosso constante ir e vir na leitura do texto como se estivéssemos
presos em uma estrada circular e infinita muito mencionada na crítica sobre Guimarães
Rosa e, de alguma forma, por ele mesmo sugerida no uso do símbolo do infinito.
“Tiros” no plural é a primeira palavra depois da “palavra indutora” no início do
romance; a ela, estão associadas as armas de Riobaldo. As armas podem representar o
lado impessoal do fogo, pois matam o inimigo muitas vezes sem encará-lo.
Arma de fogo é toda aquela que funciona mediante a deflagração de uma carga
propelente, explosiva ou não, pela qual é lançado no ar um projétil. As armas de fogo
também são feitas de metal/ferro forjado, unindo, artesanal ou industrialmente, à madeira ou
outros materiais. Há milhares de modelos e calibres diferentes desde a invenção da arma de
fogo até os nossos dias: revólver, clavina (um tipo de carabina), espingarda, fuzil reiúno,
trabuco, clavinote, rifle, fuzil, cartucheira, escopeta, metralhadora e máuser são alguns
exemplos. Todos esses “paus-de-fogo” atravessam o ar e queimam a vida dos oponentes.
Símbolo de poder, essas armas aumentam a autoconfiança e a coragem dos homens; por
isso são perigosas, pois incitam a violência e os atos de bravura pela sensação ilusória de
poder e força que elas oferecem a quem as porta. Decerto que, por trás de uma arma de
fogo, um homem com paixão ou frieza ou coragem ou medo, suficiente para puxar o
gatilho; esses sentimentos, dependendo do contexto e do grau de subjetividade de quem os
contempla, podem remeter metaforicamente ao elemento fogo. Um disparo à distância ou à
queima-roupa com uma arma de fogo pode até definir o poder de fogo de um atirador e de
sua arma, mas é a paixão que define se ele vai ou não vai acertar o alvo. Paixão que
também é fogo.
Toda essa subjetividade é para explicar que o fogo bélico é estimulado pela paixão
(fogo) gerada pela divergência de idéias e combatido com outro fogo bélico, o fogo do
adversário.
Os homens e as armas de fogo podem ser manipulados ou governados para
produzirem dois tipos de fogo belicoso. Um está associado à justiça, à luz, à paz e à glória;
o outro, à injustiça, à treva, à guerra e à ruína. Em ambos, verificamos a temática universal
do desacerto do mundo. O primeiro pune e purifica o injusto; o segundo tortura e destrói os
justos e os injustos. Nos dois fogos devemos observar o caráter subjetivo da justiça dos
homens, sejam eles bons ou maus, pois até a definição do que é bom e do que é mal é
subjetiva. O real é que o fogo belicoso mata, tira de um homem tudo o que ele foi, é e
poderia ser, tira o fogo de sua existência e de suas paixões. É por isso que, no final de toda
batalha, vencedor e vencido saem castigados, doloridos e purificados; na verdade ninguém
vence, pois todos perdem para o fogo, por terem lutado movidos por uma paixão ígnea que
os incinerou.
Outra arma poderosa e de fogo é a fala. Na fala, o fogo é como a bala-palavra,
projétil da arma do discurso metafórico inflamado, gerador de mais metáforas, mais dúvidas,
mais subjetividade e intermináveis reflexões. O fogo da fala é único; sem os recursos
tecnológicos audiovisuais ou apenas de áudio para gravá-la, ela se perde no tempo e no
espaço. A escrita sozinha não conta de reproduzi-la, e é essa a falha que encontramos
nos textos que reproduzem ou tentam reproduzir a fala na escrita: a fidelidade na
reprodução. Quando alguém um texto-reprodução de fala em voz alta, não repete a fala
do original. Essa reprodução de fala que parte de uma fala reproduzida em forma de texto
pode mudar rapidamente o contexto da fala original, pois, quando se fala, o ato está
vinculado a contextos específicos de, por exemplo, entonação, tempo, espaço, valores,
cultura, memória e origem do falante, que não podem ser reproduzidos em outra situação e
por outro falante. Ao reproduzir, na escrita, um monólogo espontâneo de um falante, por
exemplo, não se pode crer que o leitor dessa reprodução interpretará o monólogo tal como
ele foi proferido no ato de fala de quem o produziu falando, discursando, por uma questão
de contexto e entonação. O subjetivo fogo daquele ato de fala se apagou, suas palavras
viajaram rápido no tempo-espaço como uma bala-palavra, projétil do discurso que se não
testemunhamos, perdemos muito dele de vista.
O ar é um dos impulsionadores desse fogo. É como quando sopramos as brasas na
parte baixa de uma fogueira para acender e aumentar o poder do fogo e as labaredas e a
fuligem sobe com o sopro. Isso pode significar que quem fala pode subir como o ar e o fogo
e com o ar/fôlego e o fogo de seus argumentos – metaforicamente, labaredas e fuligem e,
com isso, provocar mudanças, edificando ainda mais o poder universal da palavra,
transmitindo experiência e conhecimento.
Quando Riobaldo diz que alveja “mira em árvores”, encaramos outro problema do
casamento e do intruso na relação dos elementos. A árvore une a terra com o céu (ar) e
representa a harmonia desses dois elementos; de seus dois extremos ela colhe tudo aquilo
de que precisa para viver e doar vida. Com as raízes na terra e com as folhas nas pontas
dos galhos, nos cimos, ela ainda pode ser vista como o ser que harmoniza a convivência
dos quatro elementos.
A árvore age muitas vezes como uma ponte que conduz da terra ao céu. Sua parte
baixa é fixa na terra pelas raízes, a outra extremidade, os cimos, está entregue à força do
vento. Segundo Bachelard, a “árvore ereta é uma força evidente que conduz uma vida
terrestre ao céu azul.” (BACHELARD, 2001, p. 208), por isso, a metáfora aérea envolve
também a árvore e ela pode ser talvez um dos subelementos mais significativos pelo seu
caráter duplo de ser da terra e do ar ao mesmo tempo.
A verticalidade da árvore talvez seja o caráter mais importante no que se refere ao
vínculo desta com o elemento ar. Ela salta da terra ao céu e furta com sua copa boa parte
da paisagem celeste se estamos debaixo de sua sombra. Mesmo se imaginarmos uma
árvore de tronco retorcido típica do cerrado brasileiro, imaginaremos seus galhos e suas
folhas fazendo o que todos os galhos e folhas de árvores fazem: rendem-se aos gostos do
vento. O que não a destitui (muito pelo contrário) do que Bachelard chama de constância
vertical, porque “só a árvore mantém firmemente, para a imaginação dinâmica, a constância
vertical.” (BACHELARD, 2001, p. 211), o que para nós significa que, mesmo derrubada por
um trator, ela sempre vai estar de na imaginação literária, numa psicológica sensação
mais ou menos semelhante a de um amputado que ainda coça. A verticalidade à
árvore, no nosso entendimento, o caráter aéreo que nos permite imaginar uma “árvore
aérea” com seus cimos eternamente embalados pelo vento.
Como se estivesse entregue ao vento, resignadamente, estoicamente o sonhador
pode se tornar uma metáfora quando é contemplado “docemente encostado à árvore”.
Metáfora de abrigo, balanço, embalo e berço, a árvore não é somente o pouso dos pássaros
e insetos, ela pode ser também o abraço e o encosto e, ainda, o afago, a segurança e o
alimento. Tudo isso nos permite talvez dizer que a árvore pode ser também maternal,
berço/útero de onde se vê surgir o sonhador e para onde se vai com ele.
Acreditamos que tais metáforas querem sugerir que estamos quase sempre embaixo
de árvores e cercados pelos pássaros quando nos encontramos ao lado desse sonhador e
que somente ele pode nos transportar de uma realidade para outra como quem atravessa a
neblina (ou a nuvem) nos braços/asas de uma grande mãe. A árvore abraça a tudo e a
todos. Nem o céu azul (o claro do ar) escapa de seu abraço maternal. No azul entre as
folhas e os galhos podemos ver esse abraço e com ele o céu. Os homens e os pássaros se
confraternizam na árvore e podemos reconhecer talvez, por meio das metáforas geradas por
esse encontro, que esses dois últimos são irmãos por serem filhos de uma mesma mãe.
Encostado à árvore o homem pode ser visto como um pássaro pousado em lugar seguro,
procurando a segurança da copa, procurando a segurança do ninho e atraindo outros
pássaros, outros animais e o homem.
Nessa verticalidade segura de árvore é que tudo se ordena; segundo Bachelard “o
homem, como a árvore, é um ser em quem forças confusas vêm ficar de pé. A imaginação
dinâmica não exige mais para começar seus sonhos aéreos. Tudo se ordena em seguida
nessa verticalidade segura.” (BACHELARD, 2001, p. 213). Mencionada anteriormente como
ponte que conduz a imaginação da terra para o céu, a árvore pode funcionar também como
metáfora de metáfora na medida em que transporta os sentidos de um lado para o outro em
movimentos bilaterais constantes, que tem como referência a linguagem conotativa do texto
literário. Sobre isso, Bachelard escreve que
“a árvore une o infernal ao celeste, o ar à terra; oscila do dia para a noite e
da noite para o dia. Seu balanço também exagera a tempestade: o cimo se
inclina até o prado! E depois, de imediato, com que força o habitante ideal
da ramagem é restituído ao céu azul!” (BACHELARD, 2001, p. 215).
Esbarramos aqui, com o perigo de se usar o ar livre como alicerce. Na árvore, o
ninho não inspira a segurança sólida de uma caverna ou mesmo uma casa, pois é sojigado
pelos caprichos do vento e apoiado na fragilidade dos submissos galhos dançantes que se
entregam a mais leve brisa. Por isso, para Bachelard “a vida na árvore é assim um refúgio e
um perigo” (BACHELARD, 2001, p. 217), porque não se pode confiar no temperamento da
mão movimentada que a embala: o vento. As árvores embaladas pelo vento fazem de uma
floresta um verdadeiro berçário em que os perigos do viver surgem mesmo antes do Ser sair
do ovo em que ele ainda se encontra guardado.
A árvore pode ser vista como o ser que harmoniza a convivência dos quatro
elementos. Na terra, suas raízes potencializam os nutrientes com a água da chuva. Tal
ocorrência para nós simboliza a harmonia dos elementos de baixo. No ar, suas folhas
retiram a energia da luz do sol (o fogo) que as ilumina, o que simboliza a harmonia dos
elementos de cima. Em Grande Sertão: Veredas, não acreditamos que nenhuma palavra foi
escolhida e colocada ao sabor do momento e “árvore”, para nós, é como a conciliadora dos
elementos, é uma palavra essencial em sua carga metafórica na gênese da narrativa de
Riobaldo.
O narrador está em casa (no quintal) e os tempos não são de guerra; no entanto ele
treina tiro ao alvo atirando nas árvores, o que para nós pode representar sua vontade de
atiçar os elementos que funcionam como gênese de seu próprio desejo de intercambiar
suas experiências de exímio atirador que atira, por seu acerto, estando “no quintal, no baixo
do córrego” (ROSA, 1986, p. 1). Entre a terra e a água, ele busca com o fogo dos tiros
encontrar/acertar um alvo/ponto de fusão na tentativa de se reconciliar com um Ser que
pode representar o encontro dele consigo mesmo. Vemos, com isso, o elemento fogo
associado ao verbo acertar” indicando o desejo de ascensão do narrador. Isso, no entanto,
de ato positivo de Riobaldo passa a ato negativo, pois acertar é buscar o certo (no caso, o
alvo), e o querer buscar o muito certo já é por si estar indo de encontro ao errado. Aqui,
nesse jogo de enganos do Grande Sertão: Veredas, o fogo, de elemento superior e de
ascensão, passa a elemento de queda e danação, pois é cúmplice do homem em ajudá-lo a
repetir, mesmo que inconscientemente, sempre (“todo dia”) o mesmo erro. Digo
inconscientemente, porque Riobaldo acredita ter se livrado dessa pedra de Sísifos”, no
seu Inferno pessoal, mas ele não se livrou. O querer reviver tudo contando, narrando,
falando, é o querer entender, acertar, consertar o que está errado, mal-entendido, mal-visto,
indefinido desde a mocidade do narrador.
Junto a essas imagens de ar, água, fogo e terra, casadas de diversas formas e
sempre com uma terceira imagem adulterando a pureza da união entre duas delas, temos
uma imagem estranha de um bezerro deformado que, segundo o narrador, para o povo da
região, era o demo encarnado.
Essa figura do diabo nos remete ao fogo e ao seu caráter bilateral, pois, associado à
terra, o fogo vem de baixo e associado ao ar ele vem de cima. A imagem do diabo está,
entretanto, associada ao inferno e as coisas que vêm de baixo, portanto, ao casamento do
fogo com a terra. Mas, com o Pai da Mentira”, tudo pode se dispor de forma inesperada
como comprova a epígrafe d'“o diabo na rua no meio do redemoinho”, em que o
demônio/fogo invade a união do ar com a terra para, na nossa interpretação, instaurar a
confusão, a desordem que podem estar apenas na imagem do vórtice, mas que, com a
presença do mal, adquire outros significados. Esse bezerro branco deformado, erroso”,
“com máscara de cachorro”, “arrebitado de beiços” que “figurava rindo feito pessoa” com
“cara de gente, cara de cão” (ROSA, 1986, p.1) e que para o povo “era o demo” pode
representar essa confusão.
Acreditamos, em primeiro lugar, que isso ocorra por sua cor. Ele é branco”, o que
aparentemente não sugere nada de sombrio, obscuro. Sua deformação, representada
também pelo adjetivo “erroso”, criado por Rosa, também não garante seu caráter
demoníaco; no entanto, ao ser descrito como um ser que tem “máscara de cachorro”, somos
persuadidos a crer que se trata realmente de um animal estranho, tanto no plano físico
quanto no metafísico. Sendo que nesse último, a “máscara de cachorro”, caráter
ambíguo à forma física do primeiro, o bezerro, que acaba ficando dentro (embaixo/atrás) das
outras formas que lhe são atribuídas. A máscara é uma fantasia desse bezerro, é uma de
suas formas transitórias mais significativas? Por que primeiro uma “máscara de cachorro”?
Em todo caso, é uma forma transitória, mas que é a que vem primeiro depois da imagem do
bezerro como uma gradação o bezerro, o cão, depois o homem como se quisesse aos
poucos se parecer/aparentar com o humano, arrebitando os “beiços” e “rindo feito pessoa”.
Com “cara de gente” e “de cão” e existência associada à presença do diabo, esse ser misto
representa, na nossa interpretação das cenas primeiras de Grande Sertão: Veredas, as
confusões do elemento fogo e de suas associações e intervenções.
As imagens originárias dessas metáforas da relação do fogo com os outros três
elementos, apesar de sua subjetividade, podem explicar, objetivamente, os conflitos do fogo
com a natureza que lhe serve de alimento. Por não ser fixo e imóvel, ao contrário disso, ser
a essência da mudança e do movimento, o fogo não poderia mesmo ter uma relação inerte
e passiva com os demais elementos. Sua interação com o meio tinha mesmo que ser
contraditória, incerta e recheada de possibilidades. Ao observarmos as ações do fogo,
acreditamos que um estudo objetivo desse elemento, quando tenta desfazer as metáforas
originárias de seus mitos, acaba tendo que recorrer a outros que nos levam a crer que uma
rede de metáforas governa a simbologia do fogo na tradição e na cultura popular. Por isso,
acreditamos que todas as imagens vinculadas metaforicamente a ele são instáveis como a
desse bezerro deformado, descrito por Riobaldo na cena que abre sua narrativa.
2.1.5.O sertão
Outra questão que levantamos no início desse capítulo é a da terra espaço sertão,
que domina enfaticamente todo o restante da primeira página do livro, mas se associa a
água do rio Urucuia a noroeste de Minas Gerais.
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que
situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de
rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do
Curvelo, então o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se
divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez,
quinze léguas, sem topar com casa de morador; e criminoso vive seu cristo-
jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões
oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá fazendões de fazendas,
almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de
mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas há. O
gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o
que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O
sertão está em toda parte (ROSA, 1956, p.1).
Aqui, novamente, podemos falar das unidades métricas subjetivas do sertão. Na
nossa interpretação é ele o maior representante físico e metafísico do elemento terra. Por
que na voz de Riobaldo, uns querem que” o sertão “não seja” e o empurram para “os
campos-gerais” mais ao norte na região do rio Urucuia? Por que o narrador quer que “o
aqui” seja o “dito sertão”? Acreditamos que os primeiros querem distância do sertão para se
sentirem mais próximos do moderno e projetam-no às margens de um rio, pois sempre
imaginam o trabalho com a massa, no caso, a terra e a água, transportando-nos às imagens
da lama, da argila, até chegarmos a tecnologia da argamassa, do concreto e dos tijolos.
Esses primeiros pensam na construção das cidades e na desconstrução do sertão. o
narrador, parece valorizar o fato de o sertão ainda continuar sendo o lugar do lavor na terra,
enxergando, nesse lavor todo, o produtivo feito pelas mãos do homem e pela própria
natureza como o cerne de toda aquela cultura, porque “O gerais corre em volta.” (ROSA,
1986, p.1). Por conservar costumes antigos e estar ligado espiritual e afetivamente ao meio,
o narrador parece guardar a imagem de que “O sertão”, apesar das divergências de opinião,
vai para além dos limites geográficos e “está em toda parte”.
2.1.6.O diabo
Depois do impacto dessa primeira página de Grande Sertão: Veredas, em que o
narrador apresenta ao leitor/ouvinte a sua cena primeira que se abre no ar e na água,
seguida depois pelo elemento fogo projetado como intruso, em primeiro lugar, na união da
terra com o ar e, em segundo, na união da terra com a água, acreditamos na possibilidade
de sintetizar a gênese da narrativa de Riobaldo. Na nossa interpretação, essa aparente
confusão provocada por essas adulterações entre os elementos segue um certo padrão:
dois deles se casam e logo são intimamente invadidos por um terceiro. Há, no entanto, uma
necessidade de cuidado quanto a essa colocação, pois, num estudo de Grande Sertão:
Veredas, as regras e os padrões são perigosos e a arbitrariedade de algumas colocações
tem que ser claramente definida. A preocupação nossa é não reduzir a obra de Rosa a
algumas definições cabais, pois não queremos simplificar suas diversas possibilidades a
uma visão única e hermética do texto. Contudo, acreditamos na possibilidade de se estudar
a narrativa de Riobaldo tomando como gênese dela a presença dos quatro elementos.
Na nossa visão, esse terceiro elemento intruso remete quase sempre a presença do
diabo no meio das coisas. O narrador não quer falar, no entanto, como escreveu João
Adolfo Hansen, “quanto mais Riobaldo o nega enquanto conteúdo, quanto mais afirma que
ele não é, mais ele insiste em sua fala e o assombra” (HANSEN, 2000, p. 61). Desde o início
da narrativa, Riobaldo nega falar/cantar sobre o demônio, mas segue dali adiante falando
quase o tempo todo nele:
“Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso
receio, desfalam no nome dele dizem só: o Que-Diga. Vote! não... Quem
muito se evita, se convive” (ROSA, 1956, p. 2).
Quem muito se evita se convive é frase que traz em seu meio a presença de
Riobaldo/Diabo como um diabo na rua no meio do redemoinho”. Ela ecoa por todo o
romance e, havendo o diabo ou não, Ele faz sua presença no discurso do velho ex-jagunço,
nesse início do livro, nos casos de Aristides e Jisé Simplício (p.2), no de “Um Moço de fora”
e suas peripécias de fazer uma viagem a cavalo de um dia e meio ficar sendo de “uns vinte
minutos” (p.2 e 3), no de um “rapaz seminarista” que foi ajudar um padre num exorcismo
(p.3) e nas figuras sombrias e malévolas de alguns jagunços cujos nomes evocam a
imagem do diabo: “Rincha-Mãe, Sangue-d'Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-
Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes...” (ROSA, 1986, p.3).
Riobaldo usa a imagem da matéria terra e água na tentativa de explicar a relativa
materialidade do diabo.
“O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenuncio. Essas
melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é
barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome
essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio
muito perigoso...” (ROSA, 1986, p.3)
Nessa passagem, o elemento terra se apresenta pela figura do “barranco de chão”, a
água vem sobre ele. Fazendo uma analogia ao existir-não-existindo do diabo, Riobaldo
explica que para a cachoeira existir é preciso que haja o barranco e a água. Ele usa a
imagem da matéria para explicar a materialidade do diabo que, segundo o que
interpretamos, precisa de um outro para existir. “No Spleen de Paris, disse Baudelaire que
“a mais bela artimanha do diabo é persuadir que não existe” (CÂNDIDO, 1964, p. 307), isto
é, o seu poder consiste no fato de que poucos aceitam, ou acreditam na existência dele, na
permanência dele dentro do homem como um demônio adormecido, disposto a acordar e
dormir novamente quantas vezes for necessário.
O homem, essa criatura vinda do barro resultante da união da terra com a água,
pode ser essa água vertical, essa terra alta de barranco ou, mais precisamente, essa
cachoeira em que a mesma água nunca despenca uma outra vez se pudermos pensar no
filósofo Heráclito. O diabo pode ser a queda ou aquela parte obscura das ações do homem.
Ele se materializa na cólera/ira/raiva fria ou quente da queda. Essa queda, vista de baixo
para cima, por um observador que se posiciona na parte baixa da cachoeira, perde a
perspectiva da queda em si para se tornar um voo, um desejo de subir em busca de poder.
Segundo o narrador, “o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos
homens. Até: nas crianças” (ROSA, 1986, p.4). Assim, na nossa interpretação, ele adquire
forma de se ver, adulterando, interferindo, perturbando com o intento de testar o seu próprio
poder como num jogo. Em nosso estudo, acreditamos que as possíveis presenças do diabo,
sustentadas mais pelo caráter místico e supersticioso do narrador, interferem em muitas
ações e conflitos narrados por Riobaldo. Misturada em tudo, essa figura intrusa parece estar
no meio de todas as coisas, ou como diz o ex-jagunço, “nos usos, nas plantas, nas águas,
na terra, no vento... Estrumes. ... O diabo na rua, no meio do redemunho...” (ROSA, 1986,
p.4).
Aqui novamente nos encontramos com essa epígrafe/subtítulo, frase sem verbo que
nos parece representação de que o diabo viaja no meio do nada formado pelo cruzamento
de ventos. O fato de ela não possuir verbo pode ser um artifício do autor para nos sugerir
que o diabo não se faz ver, pois só age de forma indireta. Ele não está “na rua”, ele não está
“no meio do redemunho”, mas se encontra naquela e viaja neste como um parasita invisível.
Contudo, como no Grande Sertão: Veredas tudo pode ser relativizado, nem sempre o
diabo na narrativa de Riobaldo poderá ser representado por um elemento que interfere na
união entre outros dois elementos, mas como o elemento fogo interferindo na autonomia de
outro elemento. Algumas vezes o diabo/fogo terá autonomia para subverter a ordem das
coisas, como no caso da “mandioca mansa” (ROSA, 1986. p.4) que fica brava e da
mandioca-brava “que às vezes pode ficar mansa” (ROSA, 1986, p.4) e da “feiúra de ódio
franzido” (ROSA, 1986, p.4) da “cobra cascavel” (ROSA, 1986, p.4). A terra sozinha parece
ser trabalhada pelo diabo/fogo, no interior do solo, onde a mandioca cresce, e na superfície,
por onde a cobra se arrasta, desliza. Segundo Bachelard,
“O trabalho é no próprio fundo das substâncias uma Gênese.
Recria imaginativamente, mediante as imagens materiais que o animam, a
própria matéria que se opõe a seus esforços.” (BACHELARD, 2001, p.26),
O que significaria que o diabo, como um homo faber (BACHELARD, 2001, p.26),
reconfigura a realidade com o seu trabalho/interferência como quem sabe e aproveita a
maleabilidade da matéria trabalhada. Nesse caso, ele é a terra e, ao mesmo tempo, o fogo,
no trabalho simbólico da reconfiguração de seus frutos.
Na imagem do porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e
engolir por sua suja comodidade o mundo todo” (ROSA, 1986, p.4), retornamos novamente
na interferência do diabo numa união que, nesse caso, é a da terra com a água que,
sustentadas pela figura do porco, formam a lama. Mas saímos dela, quando o maligno
interfere também nas imagens do elemento ar, com seu fogo/diabo mesclando-se à figura
aérea do “gavião” (ROSA, 1986, p.4) que, com seu bico afiado como uma quicé, “na
precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar” (ROSA, 1986, p.4) ações naturais
dessa ave de rapina –, adquirem o status de um “ruim desejo” (ROSA, 1986, p.4), regido
pelo diabo/fogo na visão extravagante do narrador.
Outro instante da narrativa de Riobaldo nessa abertura do narrador fala da
interferência do fogo/diabo na união dos elementos terra (dura/pedra) e água.
“Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas estragam
mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas
dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é assim o significado dum
azougue maligno tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para
campear?! Arre, ele está misturado em tudo.” (ROSA, 1986, p.4)
Dentro da água, a matéria mole que flui, encontra-se a matéria dura inerte e, dentro
desta, a movimentada inquietude do fogo maligno, envenenando e corrompendo as duas. A
água pode simbolizar a fertilidade feminina, o que nos faz enxergá-la como uma mãe. A
pedra, matéria dura, resguarda como um ovo, o diabo/fogo dentro, que libera suas ações
malignas mostrando o quanto “ele está misturado em tudo”. Tentando desvendar essas
metáforas com outras metáforas, podemos crer que essa mãe-água choca esses ovos
(pedras) e que a terra no fundo do poço é o ninho. algo de ruim nesses ovos (pedras)
que corrompe a natureza daquela que os gesta, no caso, a água. Mas esse mal vem da
água ou da terra no fundo do poço? Parece-nos ser da parte ígnea que sai do fundo do solo
a origem bizarra da natureza dessas pedras que, um dia, foram rochas derretidas no interior
da terra numa lava/esperma que se solidificou. O que nos leva a crer que é o fogo/diabo
disfarçado na solidez desses ovos (pedras) que interfere em suas ações de envenenar a
água. Todo esse conjunto de figurações nos leva a refletir sobre o que já muito bem apontou
Walnice Nogueira Galvão em seu texto “O certo no incerto: o pactário”, sugerindo a questão
d'“a imagem da coisa dentro da outra(GALVÃO, 1972, p.121). Em seu texto, enxergamos
uma possibilidade de confirmação de nossos argumentos quando afirmamos que, em quase
toda a relação entre dois elementos, a presença de um elemento intruso, adulterando as
relações desses entre si e com o meio. Segundo Galvão (1972),
“As imagens da coisa dentro da outra funcionam como um padrão
que se repete analogicamente em todos os veis da natureza, que nossa
experiência e tradição cultural estão habituadas a separar: nos homens, nos
animais, nos elementos naturais, nos seres inanimados. Logicamente, o
padrão reiterado em todos os níveis da natureza revela a analogia imanente
a todos eles e se traduz em panteísmo. Literariamente, o padrão é um
operador que veicula, mostrando e sugerindo sensivelmente”, essa
analogia e esse panteísmo.
Se por um lado tudo é Deus, por outro lado nenhum domínio é
defeso ao Diabo. Assim como a alma dos homens, todo o reino da criação
pode ser penetrado pelo demônio e ser sujeitado a ele, tornando-se seu
instrumento.” (GALVÃO, 1972, p.128).
E essa parece ser a essência da fusão mística do sujeito com o objeto às avessas,
pois aqui o homem pode ser também o objeto e não necessariamente o sujeito. Mas nos
casos em que o homem for realmente o objeto como sugerimos, quem será aquele que lhe
põe sela? Para Riobaldo, nas más ações é o Diabo, pois o restante parece ser com Deus.
Em sua narrativa, as veredas no meio do grande sertão, o diabo na rua no meio do
redemoinho, a epígrafe entre o título e o princípio da narrativa são alguns exemplos dessas
interferências que surgem desde a cena de abertura do romance até o cabo, nos dizendo,
ou querendo nos dizer, que dentro de tudo uma força contrária que pode nos impelir à
danação.
A nossa facilidade em querer desfazer padrões quase sempre nos livra de uma visão
apurada dos fenômenos sensíveis. Nem sempre esses fenômenos são obscuros; ao
contrário, eles se apresentam a nós como efeitos de um processo natural de equilíbrio,
como efeitos de uma rotina, uma lógica que sai do discurso científico e entra no místico e
deste retorna àquele como se entre ambos nunca houvesse divergência.
Acreditamos que, nas quatro primeiras páginas de Grande Sertão: Veredas, podemos
recolher elementos suficientes para defender o argumento de que a cena de abertura do
romance serve como porta de entrada em que o título é a maçaneta, a epígrafe a fechadura,
nonada é o segredo da chave que nos permite entrar in media res na narrativa de Riobaldo
e, de alguma forma, nos tornarmos parte dela. Dessa forma, queremos, a partir de então,
tentar defender o argumento de que a gênese da narrativa de Riobaldo se expõe
metaforicamente no casamento de dois elementos, com harmonia ou não entre os dois,
com interferências ou não de outros elementos no meio deles –, sendo que os quatro
elementos estão envolvidos no jogo e seus movimentos são quase sempre de abertura de
acontecimentos, que são os episódios narrados pelo protagonista.
2.2: Dos casos do sertão e das presenças do diabo: as maldades
2.2.1.Proposição
Neste segundo capítulo, as maldades do diabo acobertadas nas ações dos homens
descritas e narradas por Riobaldo serão o assunto principal, bem como os disfarces aéreos,
terrestres e ígneos do demônio que, na nossa interpretação da fala do narrador, usa os
elementos para dissimular seus atos. Para afastar esses malefícios de seu caminho,
Riobaldo usa a pureza religiosa da água, elemento que também estudaremos neste
capítulo, juntamente com o estudo do caráter punitivo do fogo e a intervenção do ar nas
ações do fogo, provocando alterações no comportamento deste. Procuraremos, também, na
análise de uma passagem do romance, buscar entender o fogo como luz para a busca do
estímulo às novas idéias, à memória e ao saber. Além disso, tentaremos comprovar a
influência dos elementos no assombramento do narrador diante as existências de Deus e do
Diabo. O fogo erótico associado ao amor e ao pecado, o caráter obscuro das metáforas
aéreas da “neblina”, bem como a necessidade de alívio e leveza de Riobaldo e sua
necessidade de expurgar sua alma de tudo aquilo que possa enquadrá-la no jogo de
maldades do diabo fará parte do fechamento deste capítulo em que tentaremos entender a
influência das metáforas elementares no que narra o velho fazendeiro e ex-jagunço.
O termo metáforas elementares servirá, de agora em diante em nosso estudo,
arbitrariamente, para nomear as metafóricas ações dos quatro elementos na narrativa de
Riobaldo.
2.2.2.Nuvens: o jogo do mostrar/esconder
Depois de entrarmos no Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, na quinta
página do livro
5
, mergulhados na fala de Riobaldo, percebemos que o diabo/fogo como um
tumor maligno corrói a alma do narrador: “o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o
razoável sofrer.” (ROSA, 1986, p.5). Para o narrador, o mundo é cheio de lobos em peles de
5
A edição do romance utilizada em nossa pesquisa é a da Editora Nova Fronteira – 36ª edição, 1986.
cordeiros, e isso parece escapar ao seu entendimento: “Quase todo mais grave criminoso
feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei
desses. que tem os depois e Deus junto.” (ROSA, 1986, p.5). Ele sabe “desses”, mas
parece não os compreender ou os compreende, porém não parece aceitar. O paradoxo de
ser bom e mau e as misturas em que vemos bons a maus interagindo num mesmo espaço
parece ser inaceitável para Riobaldo. Ele queria desmisturar o mundo misturado para
colocar cada coisa em seu devido lugar, tentando combater o desacerto do mundo. Em todo
caso, uma imagem turva sua visão do céu claro de suas idéias, e essa imagem, na nossa
interpretação está em “Vi muitas nuvens” (ROSA, 1986, p.5).
Na construção de toda trama temos a questão do sonhador e do sonhado, e, nos
dois podemos encontrar as metáforas das nuvens. A nuvem, de acordo com a imaginação
literária, pode simbolizar a mudança, a inconsistência, a inconstância ou a transformação.
Suas metáforas se estendem na construção de fantasias gratuitas e fugazes que
representam o que Bachelard chama de “onirismo do pleno dia” (BACHELARD, 2001, p.
189), que é um se dar ao direito de sonhar, mergulhar no devaneio diurno em pleno “horário
comercial”, o que pode configurar tal fuga a um “devaneio sem responsabilidade”
(BACHELARD, 2001, p. 189) que se deixa cair na ociosidade do “jogo fácil das formas”
(BACHELARD, 2001, p. 189), em que as nuvens se tornam matéria-prima para um sonhador
preguiçoso ou para um que deseja se entregar, mesmo que por alguns instantes e por pura
vadiagem, à tarefa de esculpir, com a imaginação, formas vaporosas.
O fato é que, na grande literatura, crer ingenuamente nessa inconsistência pode
fazer que o leitor se jogue numa rede de equívocos. As nuvens podem representar o “jogo
fácil das formas” como aponta Bachelard, mas também podem representar o complexo jogo
da literatura, principalmente no que se refere ao movimento do mostrar e do esconder como
na imagem do lobo na pele do cordeiro. A nuvem (ou a neblina), vapor em movimento e
mutação constante, pode a um tempo ocultar e a outro mostrar o que estava escondido no
céu azul ou no céu noturno. Frágeis, fugazes, inconstantes, mas com o poder de
esconderem o sol, o céu azul, as estrelas e a lua, as nuvens podem representar uma força
maior do que elas próprias. Elas barram nossa visão e, se nos deixarmos levar por suas
formas, nos veremos crianças, imaginando o zoomorfismo das nuvens.
O zoomorfismo diurno se encontra “em constante transformação na nuvem”
(BACHELARD, 2001, p. 190), segundo Bachelard. A nuvem se mostra como agitadora,
animadora que nos impulsiona a sonhar com a transformação. Esse sonho trabalha com o
olho, o olhar, como um escultor trabalha com barro ou argila. A essência desse sonho pode
nos conduzir ou nos trazer luzes que iluminam as íntimas relações da vontade e da
imaginação, segundo Bachelard, que ainda afirma: a vontade de ver, supera a passividade
da visão” (BACHELARD, 2001, p. 190), que, para nós, pode significar que essa
imaginação-vontade, vê, na nuvem, por exemplo, o trabalho-mutação que é feito em
função de atender as necessidades da imaginação, em que os olhos trabalham como as
mãos, no lugar delas, criando formas fugazes no espaço limpo do ar, no claro do ar. Esses
olhos podem representar metaforicamente uma mão imensa que alcança as maiores
distâncias da paisagem do céu diurno até na linha-fronteira com o horizonte (a terra);
personificados, eles podem parecer especialistas do elemento aéreo e seus movimentos
são metáforas lançadas ao ar.
Sobre isso, Bachelard escreve que “É verdadeiramente por um manuseio suave e
lento que se constituem as imagens” [poéticas]; “elas convidam o leitor a constituí-las por
sua vez, sem aceitar os dados prontos da visão” (BACHELARD, 2001, p. 191) e é cultuando
cenas diversas que, cinematográfica, a poesia, desde muito tempo e através da
hipotipose, antecipou o cinema quando fez de seus leitores pessoas capazes de criar o
próprio filme, tomando como referência para essa criação a imagem literária.
O poeta e o prosador, como fiandeiras, fiam com seus textos e suas metáforas o
sonho da vida e da morte na busca pelo sentido da vida como no sombrio trabalho das
Parcas/Moiras. Esse fiar pode ser a representação de inúmeras imagens fugidias para a
memória como são os seres de nuvem identificados por uma criança que se distrai olhando
para o jogo das formas no céu azul. Se deseja que todas, ao primeiro lance do olhar se
mantenham intactas, ao mesmo tempo ela se dispersa com uma nova imagem e se esquece
do apego supostamente incondicional que, instantes atrás, tinha pela anterior. A suposta
estabilidade noturna das imagens constelares não funciona, como vimos, na contemplação
do céu azul (o céu diurno). O céu azul permite que o olhar lance seus elementos no vazio do
ar, à espera de materializações imagéticas próprias de um poeta, que quer brincar com as
palavras-imagens ou de uma criança que só quer brincar com as imagens.
Os pássaros podem ser imaginados como metáforas aéreas vivas que tecem com
seus vôos fios invisíveis no céu. Eles são a essência do movimento alado, criando com seus
vôos formas/contornos fugidios no espaço do vazio do ar. Todo pássaro é um tecelão que
tece imagens constantemente aproveitadas pela imaginação literária. As metáforas
constantes da presença dos pássaros na paisagem, na literatura brasileira, datam,
principalmente, do Romantismo, embora já se tenham algumas referências metafóricas
dessas no Arcadismo, como por exemplo, em Glaura (1799), de Silva Alvarenga. “Minha
terra tem palmeiras / onde canta o sabiá”, é o que cantou Gonçalves Dias na Canção do
Exílio, mostrando-nos as imagens da palmeira, do canto e do sabiá, o poeta nos transporta,
mesmo que sem a malícia da intencionalidade, a um universo de metáforas aéreas que nos
levou a crer que esses dois versos poderiam figurar muito bem neste exemplo e nos dizer
sobre a influência dos pássaros no caráter aéreo de um texto literário.
Evanescente e, em constante mutação, as nuvens num céu azul atravessado de
voos de pássaros podem se tornar o estímulo mais do que necessário para um artista da
literatura construir um mundo de sons, imagens e movimentos. A imaginação do leitor
depois desse estímulo, pode se sentir mais desperta de desejos e necessidades do que
quando o artista jogava com elementos/formas imóveis. As formas ou os elementos quando
imóveis podem causar mais estranhamento do que quando elas começam a se mover. O
movimento gera ação/conflito e talvez seja por isso que ele cause menos estranhamento,
pois estamos mais acostumados com a ordem caótica do que com o alinhamento simétrico
e bem alinhavado de tudo aquilo que ouvimos, contamos ou lemos. Nesse raciocínio,
analisando o tema da nuvem como uma das metáforas do elemento ar em Grande Sertão:
Veredas, podemos talvez acreditar no caráter mensageiro da nuvem que carrega consigo
cantos, recados, imagens e formas num leque múltiplo de figuras metafóricas.
Segundo Bachelard, “a nuvem pode transportar tudo: a mágoa, o metal e o grito” (...)
“a nuvem é tomada também como um mensageiro” (BACHELARD, 2001, p. 195), ela
transporta presságios, mensagens ou recados que, muitas vezes, decidem o destino das
personagens das ficções. Atrativas a um momento e assustadoras em outro, as nuvens
podem se fazer portadoras de boas ou más notícias. Podem trazer chuva providencial
findando longo período de seca ou podem fechar o céu em negra tempestade como no
episódio do Gigante Adamastor nOs Lusíadas, de Camões. Nesse último caso, não é
preciso muitas nuvens tenebrosas para fazer pesar a desgraça sobre todo um universo,
segundo Bachelard. Metáfora da densidade atmosférica dos dramas de uma trama, a nuvem
de mau presságio pode não ser nítida, mas é justamente no seu caráter discreto que se
encontram os males necessários ao desequilíbrio. Esse desequilíbrio é, na verdade, o
equilíbrio dos eventos de ação/conflito numa narrativa de ficção e sua função pode ser a de
equilibrar os acontecimentos narrados na ordem lógica da imaginação literária.
As nuvens podem ser sentidas como um mal que vem do céu para destruir os
sonhos e o sonhador. Elas são capazes de esconder o sol, o céu azul, a lua e as estrelas,
escondem até o voo do pássaro que voa mais alto que as nuvens, não conseguem
esconder seu mau humor. Carregadas, densas e pesadas, as nuvens descarregam sua
ira/tempestade sobre nosso mundo e, muitas vezes, não o que possamos fazer para nos
protegermos da ira dos céus quando essa vem das nuvens. Originárias, em nossa cultura,
da figura de Zeus na mitologia grega, tais metáforas quase sempre estão presentes no
imaginário dos poetas e prosadores.
Em narrativas que representam de um modo universal a luta entre o bem e o mal ou
o desejo que o homem tem de se não puder superar os deuses, pelo menos se igualar a
eles, essas metáforas que ilustram a nuvem como um mal que vem do céu podem ser mais
facilmente observadas. Nelas o caráter alegórico/moralizante é muito marcante, de modo
que podemos talvez notar a presença desse mal como algo necessário, que vem para
moralizar, corrigir, punir o orgulho, a vaidade e a petulância.
Outro fato importante que pode ser questionado tomando como referência a imagem
da nuvem é a de seu caráter de dissolução. Sobre isso Bachelard escreve que
“O devaneio normal segue a nuvem como uma elevação substancial
que culmina na mais alta sublimação, numa dissolução do zênite do céu
azul. As verdadeiras nuvens, as pequenas nuvens, se dissolvem na altura.”
(BACHELARD, 2001, p. 196)
Isso pode significar que o sonho do sonhador da imaginação literária pode ter a
mesma essência fugaz e evanescente que o do jovem sonhador comum. Tudo se dissipa
para se recompor em outras formas. O texto está escrito, mas a escrita se recompõe a cada
leitura e a cada leitor diferente. As perturbações, desejos, angústias e idealizações são as
mesmas no universal da arte, mas as maneiras de enfrentar esses desafios parecem ficar
diferentes para cada época. As imagens se dissolvem para serem vistas novamente em
outras realidades. Metalingüisticamente, a nuvem pode ser uma metáfora dessa mudança
de curso, dessa nova maneira de enxergar o mundo e os problemas universais; quanto mais
alta no céu, mais sua fugacidade se faz útil ao artista da literatura na construção de novas
leituras e novas perspectivas de interpretação e análise de um mesmo texto.
2.2.3.As maldades: o Aleixo
Quando Riobaldo afirma que viu muitas nuvens, na nossa interpretação, parece que
diante de tudo o que viu e viveu o narrador não pôde ver o completo de tudo. Ele reconhece
que sua maneira de entender as coisas é limitada. A função dessas metafóricas barreiras
aéreas pode ser a de representar a dificuldade que ele tem em alcançar a luz plena do
entendimento acerca dos acontecimentos. Para tanto, o narrador na tentativa de entender o
nublado das coisas, recapitula alguns casos com o intuito de analisar e, quem sabe,
entender o lado obscuro das ações do homem.
O primeiro deles é o do Aleixo (ROSA, 1986, p.5 e 6), um homem de “ruindades
calmas” (ROSA, 1986, p. 5) que matou um velho mendigo sem nenhum motivo e depois
disso viu os quatro filhos pequenos contraírem um sarampo forte e terem como sequelas da
doença, a mais completa cegueira. Esse Aleixo é descrito por Riobaldo como um homem
mal residente a légua do Passo do Pubo, no da-Areia” e que tinha um açudinho, entre as
palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes” (ROSA, 1986, p. 5). O que na nossa
interpretação significa que o Aleixo mora para além de um desfiladeiro (Passo) de difícil e
confusa (confusão = Pubo) descida.
Poderia ser igual aos desfiladeiros do inferno descritos por Dante na Divina
Comédia? As imagens seguintes parecem nos remeter a essa possibilidade.
Esse Aleixo mora num lugar chamado da-Areia”, nome de lugar que pode remeter
ao elemento terra, sendo a areia a parte mais mutável desse elemento pelas ações do ar. O
Aleixo pode ser, com isso, da terra se pudermos associá-lo ao nome de lugar onde reside
(“da-Areia”), mais ainda por sua ação hostil, áspera, de executar, sem razão nenhuma, um
velhinho pobre, somente porque lhe deu vontade de matar. Contudo, o castigo que o
transformou, veio do ar na forma de uma doença contagiosa que atacou seus quatro filhos
amados, tirando-lhes a visão. O que resulta na imagem do vento/ar mudando a face das
areias. O castigo não veio diretamente para o Aleixo, mas para as suas crianças inocentes o
que muito perturbou Riobaldo. Porém, logo ouviu conselho de seu compadre Quelemém,
dizendo “que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais
malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar.” (ROSA, 1986,
p.6), o que parece estar de acordo com as teorias do kardecismo seguidas pelo conselheiro
espiritual de Riobaldo; parece estar também de acordo com as aproximações que propomos
anteriormente, quando citamos os desfiladeiros do inferno de Dante. Como demônios do
mesmo caldeirão de lugar.” (ROSA, 1986, p.6), pai e filhos vivem e sofrem aquilo que já lhes
foi determinado de acordo com as leis do karma, porque pertencem a uma mesma “massa e
peça” (ROSA, 1986, p.6). Símbolo também da união da terra com a água, a massa sugere,
como aponta Bachelard, um devaneio mesomorfo” (BACHELARD, 2001, p. 61) que pode
nos dar a idéia de algo inacabado, que ainda precisa ser amassado, sovado, como as almas
condenadas do Aleixo e de seus filhos.
No décimo segundo canto d’A Divina Comédia de Dante Alighieri, deparamos com
Dante e Virgílio, seu guia, descendo o desfiladeiro de difícil acesso do sétimo círculo
infernal. Ali, naquele lugar horrível guardado pelo monstro mitológico Minotauro, padecem
as almas daqueles que praticaram violência contra o próximo. O castigo deles é o de
permanecerem mergulhados até os olhos” (ALIGHIERI, 2004, p.47) em um “vasto fosso”
(ALIGHIERI, 2004, p.46) de sangue fervente sem poderem sair, pois podiam ser com isso,
alvejados pelas flechas certeiras dos vários centauros que vigiavam o lugar.
O Aleixo, como já mencionamos, morava na parte baixa de um desfiladeiro de difícil
descida e tinha em suas terras um açude (vasto fosso) “com traíras, pra-almas de enormes”
(ROSA, 1986, p. 5). Após praticar um ato fatal de violência contra o velho que pedia
esmolas ele manchou de sangue sua imagem e, por sugestão nossa, as águas do seu
açude. As traíras “pra-almas de enormes” sugerem, em nossa interpretação, a antecipação
da imagem do sofrimento que as almas do Aleixo e de seus filhos irão enfrentar.
Transportando essas imagens do caso do Aleixo para às do Inferno de Dante a
flecha do centauro que viaja no ar seria o vírus do sarampo que atacou a prole do
assassino. O ferimento de flecha, inclusive, pode ser resumido à imagem de um ponto de
sangue na epiderme da vítima, o que nos remete as manchas vermelhas características da
doença que se espalham pelo corpo do enfermo. O momento mais grave da doença para os
filhos do Aleixo foi o das sequelas. A doença atacou “até os olhos” dos filhos do assassino,
que viu/viveu seu sofrimento no sofrimento dos filhos.
Tentamos, com isso, sugerir uma aproximação entre o desfiladeiro infernal e o Passo
do Pubo perto das terras do Aleixo, o fosso de sangue fervente com o açude do assassino,
as almas dos violentos com as traíras, as flechas que viajam no ar com o vírus do sarampo
e o ferimento dessas flechas com as manchas características dessa doença, bem como
aproximar a imagem dos pecadores submersos até os olhos no lago de sangue com os
efeitos devastadores da doença na visão dos filhos do frio e violento criminoso de morte.
2.2.4.As maldades: o Valtei
Nesse caso do Aleixo, a maldade do pai pegou os filhos; no segundo caso, contado
por Riobaldo, o mal seguiu o caminho inverso. O caso em questão é o de Pedro Pindó e seu
menino Valtei. Esse Valtei é descrito pelo narrador como um “pedido madrasto, azedo
queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza” (ROSA,
1986, p.6) que gostava e via enorme prazer em maltratar com esmero de crueldade toda
criação que podia pegar. Mas o que nos chamou atenção no caso do Valtei foi a maneira
como Riobaldo reagiu quando esse menino disse a ele que gostava de matar, o que resultou
nesta imagem: “Abriu em mim um susto; porque passarinho que se debruça o voo já está
pronto!” (ROSA, 1986, p.6). Nelas, as palavras “abriu”, “debruça” e voo” nos despertou
especial interesse, principalmente pelo fato de que sua sequência nos remeteu ao início do
livro com a abertura do parágrafo, o travessão debruçado e o voo no nada. Porém, mais que
isso, elas nos atentam ao caráter rapineiro do menino Valtei que nasceu pronto para
matar. Seu voo fácil ensinou os pais a voarem. Seu sadismo contra as criações se voltou
contra ele mesmo e seus pais passaram a torturá-lo depois de acostumarem a usar de
violência para corrigirem suas maldades sem fim. No caso do Valtei, a maldade do filho
atingiu e contaminou as almas dos pais que aprenderam a voar o voo do menino que
quando sofria suas torturas parecia até como “se fosse um menino bonzinho” (ROSA,
1986, p.7). O que em nossa visão remete a imagem anterior da mandioca brava que fica
mansa e, no caso dos pais dele, a da mandioca mansa que fica brava.
2.2.5.Água de todo rio
Esses dois casos, perturbam a paz de Riobaldo que diz navegar mal “nessas altas
idéias” (ROSA, 1986, p.7) e encontra alívio na religião: “Aproveito de todas. Bebo água
de todo rio...” (ROSA, 1986, p.8), ou seja, afoga-se em religião por navegar mal nas grandes
idéias que refletem sobre as nuances mais obscuras das ações humanas. A referência ao
elemento água nas duas imagens nos leva a uma reflexão sobre a pureza e a impureza, o
bem e o mal e mesmo o caráter religioso do elemento.
Segundo Bachelard, “A água se oferece pois como um símbolo natural da pureza;
ela sentidos precisos a uma psicologia prolixa da purificação.” (BACHELARD, 2001,
p.139) e como tal parece satisfazer o gosto imagético de Riobaldo que não somente usa
suas imagens de elemento puro como também as de fluidez e as de movimento. Nesse
último, temos o caso do verbo “navegar”, nos dois primeiros as imagens partem da ideia de
movimento para a de fluidez com a palavra “rio” e depois para a de pureza com a própria
palavra “água”, parecendo ter sido empregada por ele com a intenção de sugerir “clareza”
possivelmente no sentido de “entendimento”. Isso, na nossa interpretação, faz de “Bebo
água de todo rio...” (ROSA, 1986, p.8), algo semelhante a busco a clareza / o entendimento
em todas as religiões. Bachelard mesmo aponta, que “A água clara é uma tentação
constante para o simbolismo fácil da pureza.” (BACHELARD, 2001, p.140), o que nos leva a
associar as afirmações de Riobaldo a isso parece ser justamente aquilo que o narrador quer
alcançar ao procurar essa clareza de espírito, esse entendimento das grandes ideias: a
pureza. Sobre isso inclusive, Bachelard chama atenção para o drama da pureza e da
impureza da água” (BACHELARD, 2001, p.143), o que nos levou a pensar na força da
parcela de sujeira moral/espiritual que pode corromper a água pura, demonstrando que sua
pureza parece não passar de “uma pureza em perigo” (BACHELARD, 2001, p.144) como se
sempre houvesse um mal à espreita para macular sua perfeição. Sobre a impureza da água
Bachelard escreveu que
(...) “a impureza, aos olhos do inconsciente, é sempre múltipla,
sempre abundante; tem uma nocividade polivalente. Por isso se
compreenderá que a água impura possa ser acusada de todos os
malefícios. Se para a mente consciente ela é aceita como mero símbolo do
mal, como símbolo externo, para o inconsciente ela é o objeto de uma
simbolização ativa, totalmente interna, totalmente substancial. A água
impura, para o inconsciente, é um receptáculo do mal, um receptáculo
aberto a todos os males; é uma substância do mal.”(BACHELARD, 2001,
p.145)
O que nos leva a crer que Riobaldo quando diz simbolicamente que bebe água de todo rio,
parece querer sugerir que essa água tem que estar, acima de tudo, limpa. Mas como são as
águas das veredas e dos rios e lagos da vida de Riobaldo? Nossa experiência de leitura nos
leva a crer que algumas são turvas, o que lhes confere um grave aspecto de impureza, mas
nos parece que a maioria é pura. Sobre isso Bachelard escreve que
“o maniqueísmo da água pura e da água impura não é um maniqueísmo
equilibrado. A balança moral pende incontestavelmente para o lado da
pureza, para o lado do bem. A água tende ao bem. (...) É uma substância
do bem.” (BACHELARD, 2001, p.146 e 147),
o que não podemos é acreditar que ela, apesar disso, não poderá ser contaminada por
grandes ou ínfimas parcelas de impureza de outros elementos. Há, em Bachelard, uma
interessante colocação sobre essa questão em seu livro A Água e os Sonhos em que ele
escreve: “para a imaginação material, a substância valorizada pode agir, mesmo em
quantidade ínfima, sobre uma grande massa de outras substâncias.(BACHELARD, 2001,
p.149), o que nos leva a acreditar que, apesar de predominar, um elemento pode não
dominar totalmente uma relação/casamento entre dois elementos da mesma forma que um
elemento pode também não ter total domínio sobre si mesmo como no caso da água. Sobre
ela, Bachelard ainda escreve que “uma gota de água pura basta para purificar um oceano;
uma gota de água impura basta para macular um universo.” (BACHELARD, 2001, p.149), o
que para nós significa que muito pouca água é preciso para purificar na água, mas pouca
água é mais que o necessário para macular o ar. Bachelard relativiza essas ideias em seu
texto quando escreve que
“Tudo depende do sentido moral da ação escolhida pela imaginação
material: se ela sonha o mal, saberá propagar a impureza, saberá fazer
eclodir o germe diabólico; se sonha o bem, terá confiança numa gota da
substância pura, saberá fazer irradiar sua pureza benfazeja. A ação da
substância é sonhada como um devir substancial desejado na intimidade da
substância. É, no fundo, o devir de uma pessoa.” (BACHELARD, 2001,
p.149)
O que pode significar na fala de Riobaldo, que ele bebe água de todo rio porque crê no
poder purificador da substância. Sutil, essa água pura se faz vontade e ela, bem como sua
oposição, é pensada como uma força.
Riobaldo se faz um espírito elementar através de sua fala e, segundo Bachelard, “Os
espíritos elementares são atraídos pelos elementos.” (BACHELARD, 2001, p.150), o que
talvez nos permita dizer que sua narrativa se funda na união harmônica e, ao mesmo tempo,
caótica dos elementos. Com sua fala também de fogo, Riobaldo aquece a água, mais
agitação a ela, evapora-a e depois de líquida novamente, congela-a na forma original com o
intuito de separar as impurezas desse elemento, na busca de compreendê-lo melhor ou
comandá-lo. Em Bachelard podemos ver que “Para comandar os espíritos, basta
transformar-se num hábil destilador.” (BACHELARD, 2001, p.151) e parece ser exatamente
isso que Riobaldo faz ao associar sua busca pela salvação ao elemento água, pois quer ter
somente a água pura no côncavo de suas mãos. E se “A água fresca restitui as chamas ao
olhar.” (BACHELARD, 2001, p.152), tudo pode começar de novo, pois Riobaldo fala de tudo
o que viu no lume do olhar apesar do pó, das nuvens e da neblina, apesar de ter visto e
entendido “as coisas dum seu modo” (ROSA, 1986, p.9); entendeu que “Querer o bem com
demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar.”
(ROSA, 1986, p.9). Esse novo começo, esse novo processo de destilação é, na verdade, um
novo mergulho na água para tratá-la e ser tratado por ela que, segundo Bachelard, “nos
ajuda a nos sentir enérgicos (...), [ela] não é unicamente periférica. Tem um componente
central. Desperta os centros nervosos. Tem um componente moral. Desperta o homem para
a vida enérgica.” (BACHELARD, 2001, p.153); Riobaldo sabe que a “alma pecadora é já
uma água má” (BACHELARD, 2001, p.155) e, por isso, busca no seio da Terra uma
verdadeira água essencial, uma água substancialmente religiosa” (BACHELARD, 2001,
p.155) que possa cuidar da purificação de sua alma, e o kardecista Quelemém, o metodista
Matias e as beatas Maria Leôncia e Izina Calanga
6
podem ser essa água personificada
encontrada nos fundos das terras do sertão do ex-jagunço.
Depois dessa pequena reflexão sobre o drama da pureza e da impureza da água, o
seu papel na luta universal do bem contra o mal e o seu caráter religioso, parece ser
importante entender que “A água, em seu simbolismo, sabe tudo reunir” (BACHELARD,
2001, p.155), seja por decantação, seja por destilação ou seja pela mística das rezas, ela se
une a terra, ao fogo e ao céu. O que pode nos levar a crer que sua maleabilidade simbólica
amplifica o poder de suas relações com os outros elementos e com o narrador de Grande
Sertão: Veredas, cujo nome remete a uma das imagens mais simbólicas da água: o rio.
2.2.6.As maldades: um tal Jazevedão
As perturbações provocadas pelos casos do Aleixo e de Pedro Pindó e seu filho
Valtei assombram Riobaldo, mas o próprio narrador relativiza esse assombramento quando
reflete que o mal, às vezes, se corrige com o mal. Não é do veneno da cobra que se faz o
antídoto? E, pensando na resposta, acreditamos que Riobaldo, em sua fala, c na
existência de um equilíbrio como nessa passagem que antecede seu conhecimento com um
tal Jazevedão:
“Deus não se comparece com refe, não arrocha o regulamento. Pra
quê? Deixa: bobo com bobo um dia, algum estala e aprende: esperta. Só
que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de
pimenta...” (ROSA, 1986, p. 10).
Seria o Jazevedão um exemplo desse “pingado de pimenta”? Na nossa forma de ver, ele
representa muito mais que essa “pimenta”. As ações brutais do Jazevedão contra os
bandidos que caem em suas mãos representam a essência de um fogo que pune.
Bachelard, em seu livro A Psicanálise do Fogo, escreve que o fogo “É prazer para a
criança sentada ajuizadamente junto à lareira” (BACHELARD, 1994, p.12), o que nos leva a
6
Personagens citadas nas páginas 8 e 9 de Grande Sertão: Veredas, 1986, da Ed. Nova Fronteira.
entender que “o fogo é muito mais um ser social do que um ser natural” (BACHELARD,
1994, p.15), pois ele pode unir as pessoas em laços afetivos como se na imagem da
criança diante da lareira, provando que o respeito ao fogo é um respeito ensinado”
(BACHELARD, 1994, p.16) e que, quando ela é desobediente e tenta tocar nas chamas, é
por ele castigada sem ser queimada, pois “O fogo castiga sem necessidade de queimar”
(BACHELARD, 1994, p.16-17). Isso porque, antes de estender o braço para tocar no fogo, a
criança recebe um leve tapa na mão ou escuta o tom de voz mais caloroso do pai advertindo
do erro antes de ele acontecer. O que nos leva a concordar com Bachelard quando ele
escreve que “a interdição social é nosso primeiro conhecimento geral sobre o fogo”
(BACHELARD, 1994, p.17). Os outros conhecimentos sobre o elemento ígneo vão se
acumulando com a maturidade e variam de acordo com nosso berço, nossa memória
cultural.
O Jazevedão é “um moço (...), delegado profissional”, descrito pelo ex-jagunço
Riobaldo quando este recorda uma viagem que fez de trem a Sete Lagoas com o objetivo de
consultar um médico. O narrador descreve o delegado como um homem ruim:
“nunca vi cara de homem fornecida de bruteza e maldade mais, do que
nesse. Como que era urco, trouxo de atarracado, reluzia um cru nos olhos
pequenos, e armava um queixo de pedra, sobrancelhonas; não demedia
nem testa.” (ROSA, 1986, p. 10);
Como um demônio, a maldade do Jazevedão ultrapassa o conceito metafísico de
mal e explora a imagem do mal, pintando um diabo feio e abrutalhado no lugar do delegado,
para intensificar o caráter punitivo do fogo/castigo que ele representa. Seu “queixo de pedra”
pode ser a representação do caráter duro do elemento terra estampado nas suas feições. O
que de terra em Jazevedão pode ser duro. O sutil nele pode ser a presença da presa
de lobo-guará e do elemento ar, mas sutileza não parece ser a característica mais adequada
ao delegado. “Arre, e bufava, um poucadinho.” (ROSA, 1986, p.10) é o que Riobaldo
observa e o emprego do verbo “bufar”, parece nos dizer que o ar que o moço respirava era o
de um cotidiano de violência e brutalidade, pois “Vinha reolhando, historiando a papelada
uma a uma as folhas com retratos e com os pretos dos dedos de jagunços, ladrões de
cavalos e criminosos de morte.” (ROSA, 1986, p.10), o que nos leva a concluir que o ar
respirado por esse homem era dos piores e só servia para amplificar sua maldade.
Riobaldo teve raiva do Jazevedão e de seu secretário, ambos maus e empenhados,
o primeiro, a cumprir o que tinha de ser cumprido e o outro a servir, cumprindo as ordens do
primeiro. O que eles cumpriam era o de se não narrar, as mais fortes brutalidades contra
homens e mulheres que nem Deus pode ficar sabendo, pois o “sertão é onde manda quem
é forte, com as astúcias” e, muitas vezes, parece não haver espaço para fraqueza ou,
surpreendentemente, para a fé, quando, nessas horas de violência, quem parece reger
aquele “simples universozinho” (ROSA, 1986, p.11) é a mão de fogo do diabo. No sertão,
“Deus mesmo quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...”
(ROSA, 1986, p.11) que não limites e vai aonde quer ir. Riobaldo sabia que um
Jazevedão era necessário para por ordem no sertão, pois “couro ruim é que chama ferrão
de ponta” (ROSA, 1986, p.11), e jagunço bravo nenhum iria parar de jaguncear tão
facilmente por pura necessidade de mudar de profissão. Parece-nos que, na visão de
Riobaldo, de haver um mal para combater outro mal, e esse ciclo parece nunca se
quebrar, pelo menos enquanto houver karma. Esse termo, “Karma”, é o que faz as coisas
parecerem estar vinculadas a um círculo de acontecimentos oriundos de ações passadas;
como se os erros de um momento anterior da vida viessem a ser cobrados num momento
atual. Mas nesse jogo nem sempre o combate é de fogo contra fogo como no caso de
Jazevedão versus os jagunços; muitas vezes outros elementos entram na arena; e as
uniões são transformadas em rivalidades. Como no caso do Joé Cazuzo que, no meio do
fogo de um combate entrega- se aos berros a uma visão no claro do ar, no alto céu, da
Virgem santa. Depois disso, o jagunço mudou os rumos de sua existência e passou de
bandido a “pacificioso” e “fabricador de azeite e sacristão” (ROSA, 1986, p.13). O ar, nesse
caso, usou o fogo para mudar os rumos do Joé Cazuzo; o ar na verdade apagou o fogo mal
de dentro dele e usou o fogo bom do lume do sentido da visão para despertar, em sua idéia,
a possibilidade de um novo caminho. Todos respeitaram “o assopro daquele Joé Cazuzo”
(ROSA, 1986, p.13).
2.2.7.Um pensamento alado e as rápidas mudanças provocadas pelo fogo
No contar da mudança do Joé Cazuzo, Riobaldo fala de sua fuga no meio do tiroteio
enquanto testemunhava “o assopro” do jagunço e, é nesse momento, que ele cita, pela
primeira vez em sua narrativa, o nome Diadorim. Esse nome vem como um pensamento
“Conforme pensei em Diadorim.” (ROSA, 1986, p.13) seguido da imagem aérea de um
joão-de-barro cantando e do sentimento do narrador “que ia-voava reto para ele...” (ROSA,
1986, p.13); depois, Riobaldo espanta essa lembrança, no ato de contá-la ao seu ouvinte (o
senhor), em meio ao caso místico do jagunço Joé Cazuzo, porque tal lembrança se trata
apenas de uma digressão e não faz parte desta mudança de Joé. Diadorim, no entanto,
surge na obra como um pássaro que passa voando e vai embora, para depois ressurgir de
novo três páginas adiante.
Em nossa leitura do Grande Sertão: Veredas, a primeira impressão que tivemos
dessa personagem foi a de que ela pertencia, em primeiro plano, ao elemento ar, em função
de sua primeira aparição ter nos parecido predominantemente aérea. O amor de Diadorim
pelos pássaros, principalmente, o Manuelzinho-da-croa, apesar de visto com estranheza por
Riobaldo, é o que reforça ainda mais essa característica aérea como atributo do amigo de
Tatarana. Diadorim inicia Riobaldo no costume de observar e admirar os pássaros desde o
primeiro encontro dos dois no porto do De-Janeiro. Riobaldo parece, com isso, desenvolver
também o gosto de admirar e observar a natureza e as coisas do mundo em andanças sem
fim no propósito de conhecer o tamanho do mundo.
Um detalhe nos chamou atenção na sequência das imagens narradas por Riobaldo
quando este declara seu gosto por pensar na vida e por viajar de trem-de-ferro. “Por tudo,
réis-coado, fico pensando. Gosto. Melhor, para a idéia se bem abrir, é viajando em trem-de-
ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo, dentro dele.” (ROSA, 1986, p.13) Isto nos leva
a crer que Riobaldo, esse homem de água, cujo pensamento flui como água, também usa o
elemento fogo que move o trem-de-ferro para mover seus pensamentos adiante. Muitas
vezes esse fogo vem na dor de um marcador-de-ferro como o narrador sugere quando diz
que “Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio.”
(ROSA, 1986, p.13). O que na verdade importa, parece-nos ser o fato de que o fogo move,
modifica, agita e estimula. Essas suas representações podem justificar seu caráter de
elemento em eterno e veloz movimento, que pode servir de argumento literário para explicar
os anseios humanos e mudar tudo, conforme escreveu Bachelard:
O fogo e o calor fornecem meios de explicação nos domínios mais
variados porque são, para nós, a ocasião de lembranças imperecíveis, de
experiências pessoais simples e decisivas. O fogo é, assim, um fenômeno
privilegiado capaz de explicar tudo. Se tudo o que muda lentamente se
explica pela vida, tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo. O fogo
é o ultravivo. (BACHELARD, 1994, p.11)
A vivacidade desse fogo está, para nós, na essência de tudo aquilo que acreditamos
ser ele capaz de explicar, de dar luz e fazer compreender, bem como de mudar, transformar.
Essa rápida mudança se dá, por exemplo, quando, em períodos secos, o cerrado arde em
chamas de combustões espontâneas, ou provocadas pelo homem. As tonalidades
douradas, avermelhadas, ou alaranjadas com alguns poucos tons verdes do cerrado, nos
tempos secos de inverno, convertem-se, com as chamas dessa queimada, em cenários
cinzas ou pretos e esfumaçados. As cinzas desse cenário são convertidas, pela água da
chuva e pelo fogo solar que antes queimou tudo, numa resistente vegetação de vários tons
de verde. Todo ano esse fenômeno se repete transformando o cenário do cerrado. Quando
ocorre de forma natural, ele representa bem a ação modificadora do fogo na natureza, que
é, em todo caso, devastadora e contraditoriamente modificadora e re-criadora. O fogo
parece impulsionar as correntes/vagões de pensamento do narrador e dar curso e
dinamismo a elas nesse turbilhão narrativo que é o Grande Sertão: Veredas.
2.2.8.Deus e o Diabo
Assombrado pelas presenças de Deus e o Diabo na sua vida, Riobaldo relembra um
episódio curioso que ele testemunhou com uma faca de uso pessoal. Era uma faca de cabo
de chifre de galheiro que caiu numa água de curtume.
“A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu
dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei.
'Amanhã eu tiro...' falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não
disputava. Ah, então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava
sido roído, quase por metade, por aquela agüinha escura, toda quieta.
Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma
da tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo... O cabo – por não ser de frio
metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus...” (ROSA, 1986. p. 15)
O metal dessa faca foi corroído pelo escuro quieto dessa água parada. Sem as
metáforas sabemos que houve ali uma reação química nada sobrenatural, mas, na visão do
narrador, o fenômeno parece ser um milagre. A lâmina dessa faca, seu metal, foi forjada no
fogo e a água cuidou de dissolver e deixou o chifre de galheiro. O que significa para nós
um indício de que a água pode ser entendida também como um elemento agenciador de
mudanças lentas, enquanto o fogo opera mudanças bruscas como afirma Riobaldo quando
diz que “o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro” (ROSA, 1986, p.15) mais no início do
parágrafo nessa página do romance.
O narrador atribui o fenômeno de a faca ser devorada pela água no tanque do
curtume a uma ação divina ou compara as ações divinas ao fenômeno. Com isso, ele busca
explicar seus pensamentos sobre as ações de Deus, que, segundo as crenças do ex-
jagunço, age sempre lento e silencioso como uma água parada.
2.2.9.No fogo-e-ferro
Talvez com receio de parecer fraco diante daquele que o escuta, Riobaldo muda os
rumos de sua conversa sobre as ações misteriosas de Deus, advertindo ao ouvinte a não
achar “que religião afraca” (ROSA, 1986, p.15), parecendo querer que o tal senhor acredite
que ele, apesar de velho, ainda não estava de fogo-morto nos engenhos de suas
capacidades bélicas:
“não nem por isso não dou por baixa minha competência, num fogo-
e-ferro. A ver. Chegassem viessem aqui com guerra em mim, com más
partes, com outras leis, ou com sobejos olhares, e eu ainda sorteio de
acender esta zona, ai, se, se! É na boca do trabuco: é no té-retê-retém...”
(ROSA, 1986, p.15).
O caráter ígneo desse assunto de valentias com as expressões “fogo-e-ferro”,
“acender” e “boca do trabuco” explora o fato de que Riobaldo, esse homem de água e
também de terra, tem domínio do fogo e, por isso, pode acendê-lo quando necessário.
Esparramou faíscas/brasas desse fogo de jagunços por suas terras “Deixo terra com eles”
(ROSA, 1986, p.16) e evita o que se deve evitar sem perder a disposição e astúcia para a
guerra. No meio dessa lembrança de todo fogo, Riobaldo recorda a batalha do Tamanduá-
tão em que ele, o personagem Fafafa e os outros jagunços limparam “o vento de quem não
tinha ordem de respirar, e antes esses desrodeamos...” (ROSA, 1986, p.16), o que nos
remete a imagem de um redemoinho de vento parado pelo tiro de uma boa bala bem nos
peitos do diabo, fazendo “desrodear” o que roda no meio do vórtice. Na nossa interpretação,
esse “papo” de valentia é a prosa do diabo que põe entrelinhas na fala de Riobaldo e parece
fazê-lo negar também muita algazarra como se, com isso, pudesse se disfarçar no seu jogo
de existo-não-existo: “Também, não pensando em dobro. Queremos é trabalhar, propor
sossego.” (ROSA, 1986, p.16). O fogo belicoso petrifica o magma e amolece o coração do
bravo com a feminilidade da terra.
2.2.10.O fogo e os jogos eróticos
No amor, o fogo é a essência da contradição do que arde sem se verde Camões.
Seu caráter metafórico e contraditório no amor é amplificado pela voz de inúmeros poetas.
Ele ilumina e aquece os corpos dos amantes, queimando e umedecendo ao mesmo tempo,
mas também pode castigá-los, quando representa aquilo que os faz queimar na fogueira da
moral que arde contra o pecado. No amor, o fogo pode ser entendido como a metáfora da
mais significativa mudança. Com seus jogos de enganos, esse fogo erótico é sofisticado na
arte do mostrar/esconder, pois esconde, no profundo do sujeito, a sua chama que é a
própria essência do reconhecimento e peripécia de um amor que nasce de uma grande
amizade, por exemplo, ou do reconhecimento e peripécia do que representa um amor
proibido, oculto no interior daquele que ama, mas não pode se revelar. Sobre o fogo e o
erotismo, Bachelard escreveu que
“Se a conquista do fogo é, primitivamente uma ‘conquista’ sexual,
não devemos nos surpreender com que o fogo tenha permanecido
sexualizado, por tanto tempo e tão vigorosamente. nisso um tema de
valorização que perturba profundamente as pesquisas objetivas sobre o
fogo” (BACHELARD, 1994, p. 65).
Sobre a relação do fogo com o amor e a sexualidade, Bachelard escreveu ainda: “O
que o fogo acariciou, amou, adorou, guarda lembranças e perde a inocência. Em gíria,
flambé (chamuscado) é sinônimo de perdido, para não empregar uma palavra grosseira
carregada de sexualidade. Pelo fogo tudo muda. Quando se quer que tudo mude, chama-se
o fogo” (BACHELARD, 1994, p.86). O fogo erótico, sexualizado, arde, mas não pode ser
visto como o fogo das queimadas no cerrado. Pode-se senti-lo, tocá-lo, até vê-lo, mas na
pele dos amantes, nas suas trocas de carícias e olhares, nos seus gestos e sons, na paixão
que emana de seus corpos. Sua natureza é conotativa, subjetiva e vem das abstrações
metafóricas dos amantes e poetas. A ciência é capaz de explicá-lo na biologia e na química
da libido; porém, é na arte que seu lume tem mais força, sustância e variedade de
argumento pelo fato de estar associado aos temas universais do amor platônico e,
principalmente, do amor carnal, erótico que são cantados desde a Antigüidade até os
nossos dias.
Camões foi um desses artistas que cantou o fogo do amor no primeiro verso de um
de seus sonetos mais célebres: “Amor é um fogo que arde sem se ver,” (CAMÕES, 1997, p.
41). Não se porque ele está na alma do amante, muitas vezes no interior mais recôndito
dessa alma, oculto nela, sendo, portanto, e, em alguns casos, um amor proibido, um fogo
proibido, mas que encontra sempre uma forma de manter acesa sua chama. Sendo fogo,
ele ilumina e aquece quando se tem a aproximação dos corpos. Sua luz própria revela aos
amantes um caminho que só eles sabem seguir. Essa imagem de luz que ilumina os
caminhos é extremamente subjetiva e pode ter respaldo na arte literária, pois somente a
expressão artisticamente trabalhada pode dar conta dessa metáfora luminosamente erótica
do fogo. O mesmo é percebido quando se escreve que esse fogo aquece, porém com
ressalvas, porque é de nosso conhecimento que também pode haver uma explicação para
esse fenômeno na ciência no estudo da libido, pois os hormônios sexuais são agentes
químicos que fazem parte de nossa fisiologia. As “queimaduras” provocadas na pele por
esse fogo interior são sem dor, mas as mudanças fisiológicas que elas provocam são
visualmente identificadas na face enrubescida dos amantes. A umidade provocada por esse
fogo assemelha-se a um paradoxal “degelo incandescente” que representa os suores e
outras secreções liberadas pelo corpo durante as carícias dos amantes que atiçam suas
chamas interiores.
Esse mesmo fogo interior que ilumina, aquece, afaga, conforta, acaricia e umedece,
pode também castigar o adultério, os atentados contra a natureza do sexo, a promiscuidade
e a perversão dos amantes. Atuando como interventor social que busca “corrigir o que pode
estar errado” e o que está errado”, esse fogo assemelha-se à consciência do sujeito, ou a
um superego: guardião e regulador dos valores morais e religiosos. Quando castiga, queima
primeiro o nome, depois a honra do sujeito, estigmatizando para sempre sua reputação.
Podendo ser visto como a metáfora da mais significativa mudança, esse fogo é a
representação de um amplo processo re-configurador do ser no mundo. Ninguém continua o
mesmo depois de ser batizado por ele. Como luz, ele não revela o corpo, mas o interior
do sujeito no que ele pensa e sente. Ambíguo como todo fogo, ele pode levar a perdição ou
ao reencontro do ser consigo mesmo. Leva a perdição quando, associado ao tema universal
do desacerto do mundo, acende as chamas do vício e da corrupção, que são fraquezas
humanas inadmissíveis, por exemplo, para um herói épico típico da tradição literária. Leva
ao reencontro quando, associado ao tema universal do amor, acende a luz que mostra o
caminho para os amantes descobrirem a si mesmos e um ao outro. As contradições, as
ambigüidades desse fogo reforçam suas próprias metáforas. Fica, com isso, inevitável
escrever sobre ele sem também utilizar essas metáforas. O que se pretende, sobretudo,
aqui é tentar fazer que entendamos que toda essa linguagem figurativa empregada para
explicar esse fogo serve para chamarmos a atenção para a natureza de seu caráter
ambíguo e paradoxal.
O mostrar/esconder desse fogo revela um jogo sofisticado e movimentado de virtuose
literária de muitos poetas e prosadores que com seus “jogos eróticos” se aprofundam no
tema, dando cada vez mais força a ele na tradição. Na imaginação literária, na ficção, o
revelar, aos poucos, um amor escondido no interior de um protagonista, por exemplo, faz
parte desse jogo erótico, que pode ser estimulante ou angustiante tanto para o leitor quanto
para a própria personagem. Os amores proibidos ou impossíveis são os que mais entram
como exemplo na ficção literária desde muito antes do amor proibido de Romeu e Julieta, de
Shakespeare passando pelo amor mascarado em amizade de Riobaldo e Diadorim, até
chegarmos ao amor incestuoso de André e Ana, na Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar.
Esses amores movimentados, desencontrados e trágicos revelam a instabilidade do
fogo que os governa com a inquietude de suas labaredas e a falsa quietude de suas brasas,
metáforas essas inevitáveis na descrição desse jogo. Aliás, a linguagem puramente
conotativa é quem comanda essas imagens extraídas das fantasias e devaneios dos poetas.
Nesse jogo em que o fogo ora mostra, ora esconde sua face, podemos ver, num panorama
superficial, o baile de máscaras de Shakespeare, a personagem Diadorim do Grande
Sertão: Veredas e a dança de Ana de Raduan Nassar, por exemplo, e o efeito dessas
imagens nos protagonistas dessas histórias.
Oculto no interior daquele que ama, esse fogo, quando descoberto por meio do
reconhecimento, pode ser a fonte da razão ou da loucura que promove peripécias, em todo
caso, alicerçadas numa dúvida angustiante muitas vezes atribuída, de maneira
supersticiosa, a uma interferência diabólica, como vemos, no caso de Riobaldo e Diadorim,
de Grande Sertão: Veredas. Depois de considerar seu passado, Riobaldo diz também
pensar em Diadorim e para isso recorre à outra metáfora aérea: “Em Diadorim, penso
também – mas Diadorim é a minha neblina...” (ROSA, 1986, p.16).
A neblina, sutil, apresenta-se como algo evanescente e sua imagem nos proporciona
uma visão impressionista, muitas vezes distorcida e desfocada da realidade.
A densidade da nuvem propõe diretamente a dificuldade da visão; não podemos ver
através dela, só podemos ver o que está atrás da nuvem se esta se move, caso contrário só
nos resta a curiosidade. A neblina mais do que a nuvem, mergulha e nos faz mergulhar no
jogo de enganos da literatura. Ela nos seduz fazendo crer numa possibilidade de visão do
outro lado, mas o que nos é mostrado não pode ser lido denotativamente, pois tudo, nesse
caso, é muito subjetivo. Atrás da neblina, as formas são imprecisas, vagas, indefinidas. Isso
aumenta a curiosidade e o desejo, amplifica o trânsito de metáforas e tonifica a poesia das
imagens literárias que se colocam no mesmo itinerário vaporoso do simbolismo que elas
evocam. A neblina é o oculto que está ainda por descobrir, a espera de ser
lido/visto/despido e desvendado. Ela é a revelação essencial. As metáforas originárias
desse fenômeno elevam os contextos a um alto grau de subjetividade. A frase “Diadorim é a
minha neblina.(ROSA, 1986, p. 16), na nossa interpretação, tem caráter anafórico, pois
parece querer antecipar algumas informações sobre a personagem, uma personagem que
anaforicamente se constrói à medida que a narrativa avança.
O que está do outro lado da neblina é o ser que ainda está se construindo, é ele
quem transporta as metáforas do outro lado para o nosso lado, mas quando não
estivermos mergulhados na névoa da subjetividade, o que veremos talvez seja a áspera
realidade. A realidade criada a partir daquilo que está por trás da neblina é a mais pura
ficção literária: é aquela que nos assusta por nos fazer enxergar a nós mesmos do outro
lado da neblina.
Não nos foi possível desassociar os elementos da paisagem do estudo do elemento
ar pelo simples fato de que na verdade eles estão estreitamente conectados. Por essa
razão, o céu azul, as nuvens e neblinas e tudo aquilo que elas ora mostram, ora escondem,
fazem parte do que arbitrariamente resolvemos chamar de subelementos do elemento ar por
seu caráter evanescente, vaporoso, visionário e onírico.
Acreditamos ser mais que simples sequência de idéias quando depois de se referir a
Diadorim, Riobaldo segue falando em pacto com o diabo. A nosso ver, isso revela a
intenção do narrador em associar o suposto pacto com o diabo ao destino de Diadorim.
Riobaldo nega que possa ter havido de fato um pacto, pois quer acreditar que alma não é
coisa vendável e para desacreditar-se ainda mais disso associa a negociação de uma alma
a de uma terra alheia, porque não se pode vender uma terra assim sem o consentimento do
dono. O elemento terra, neste sentido, funciona, de acordo com os valores sertanejos, como
símbolo de irrevogável posse como parece ser também a alma na visão do narrador: Se
tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira.”
(ROSA, 1986, p.17). Se um dia ele intencionou se dar em erro, será que se lume de
responsabilidades? Se sonha; já fez...” (ROSA, 1986, p.17), então é tudo tão simples assim?
É e não é. Não acreditamos que seja simples a análise metafísica de Riobaldo e de suas
ações, bem como a consequência delas no destino do jagunço. Seu temor pelo pacto não
pode significar que ele o fez. O que na verdade se percebe em tudo isso é a sua forte
necessidade de alívio, de busca por leveza de pensamento e negação de culpa. Ele vai
encontrar tudo isso quando usar, principalmente, as metáforas aéreas, essas mais do que
quaisquer outras lhe trarão paz, mesmo que seja muito temporária.
2.2.11.A necessidade de “alívio”
Segundo o que interpretamos da leitura de Bachelard, o caráter aéreo, luminoso,
sonoro e de algo que está em constante movimento, identificado no estudo das imagens
aéreas funciona como “um produto da impressão íntima de alívio(BACHELARD, 2001, p.
60) conquistado, percebida apenas pelo ser em sua leitura interior e de si mesmo. “É uma
conquista de um ser outrora pesado e confuso e que, pelo movimento imaginário,
executando as lições da imaginação aérea, se fez leve claro e vibrante.” (BACHELARD,
2001, p. 60/61). Não conseguimos desviar do nosso caminho, as idéias que remetem ao
estudo de Walter Benjamin sobre o narrador, em que este é visto como um ser capaz de
intercambiar experiências: A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que
recorreram todos os narradores.” (BENJAMIN, 1987, p. 198). Essa idéia pode, a nosso ver,
encontrar-se vinculada à imagem de alívio, descrita por Bachelard, em que o narrador se
na necessidade de intercambiar suas experiências exteriores e, principalmente, interiores,
porque ele não pode ou não consegue purgar sozinho suas angústias e dúvidas e, por isso,
divide-as com os outros.
Quando alcança o diálogo pretendido com o seu leitor/ouvinte, torna-se aéreo, leve,
claro e vibrante, mas, na medida em que vai narrando sua travessia, vai se tornando, de
novo, profundo e pesado, porque mesmo o desenlaçar dos conflitos não lhe promove o
alívio total e definitivo, pois suas perturbações são de alma e, portanto, sem solução. O que
prevalece é o constante desejo de vôo e o próprio vôo alcançado nas palavras por ele
repetidas, toda vez que um novo leitor/ouvinte abre o livro ou o ouvido para, na angústia
alheia, tentar compreender suas próprias angústias.
Essa busca pelo alívio do peso se torna algo contínuo e infindável e passa a fazer
parte do sentido da vida do narrador como parte constituinte de seu temperamento e da
formação de seu imaginário. Esse narrador, Riobaldo, transporta em sua palavra primeira e
indutora – nonada – a poética das asas que já trás em si o devaneio do vôo e sua
racionalização – o sentido da travessia. Racionalizado, esse vôo nos remete a presença das
asas, o que nos levou a concordar com Bachelard quando ele escreve que “a asa é
uma racionalização” (BACHELARD, 2001, p. 27) do vôo, pois é possível voar quando se
tem asas. Para a imaginação aérea e dinâmica, segundo Bachelard,
“o primeiro ser que voa num sonho é o próprio sonhador. Se alguém
o acompanha em seu o, é antes o silfo ou a sílfide, uma nuvem, uma
sombra; é um véu, uma forma aérea envolvida, envolvente, feliz por ser
vaga, por viver no limite do visível e do invisível” (BACHELARD, 2001, p. 73)
e viver também no limite do real e do imaginário. Tais afirmações nos levam a refletir sobre
a interação narrador e leitor/ouvinte, quando ambos caminham lado a lado na travessia pela
busca da compreensão de suas angústias e o esclarecimento de suas dúvidas.
As imagens mais próximas dessas afirmações, para o nosso estudo, estão na
interação do narrador (Riobaldo) com o ouvinte (o senhor que veio da cidade), sendo o
primeiro “o sonhador” e o segundo “o silfo, a nuvem ou sombra” que vive entre o mundo real
e o imaginário como que pairando, num vôo parado entre duas culturas, duas formas de ver,
fingindo, talvez, impassibilidade, mas buscando alívio para suas angústias na angústia do
outro. Esse ser que vive no umbral da porta entre o mundo do sonhador e o mundo
verossímil pode nos dizer muito sobre esse alívio alcançado. Ao ler/escutar a narrativa do
sonhador, o leitor/ouvinte mescla-se com a trama e passa a fazer parte das paisagens e
conflitos descritos pela imaginação literária como um pássaro azul pode se mesclar com o
céu limpo. Essa interação recheada de metáforas pode ter um forte temperamento aéreo
quando pensamos no caráter cromático do elemento ar e sua capacidade de se fundir com a
paisagem, criando sempre novas formas de sonho e, portanto, novas possibilidades.
Uma delas pode estar na oposição das imagens aéreas que representam o devaneio
diurno do pássaro azul e do sonho noturno do pássaro negro, que, na verdade, não é
pássaro, mas a figura de um ser soturno, assustador e de forma feia para a sensibilidade
poética carregada de impressões e superstições. Sobre esse ser, o morcego, cuja figura no
episódio do pacto com o diabo parece assombrar Riobaldo, Bachelard escreve que “é a
realização de um vôo mau, de um vôo mudo, de um vôo negro, de um vôo baixo (...)
Condenado a bater as asas, ele não conhece o repouso dinâmico do vôo planado.”
(BACHELARD, 2001, p. 74) E completa, afirmando que “Nele”, ou seja, no morcego, diz
Jules Michelet (L'oiseau, p. 39),
“vê-se que a natureza procura a asa e não encontra mais que uma
membrana aveludada, medonha, que todavia já cumpre a sua função. (...) O
morcego é, na cosmologia alada de Victor Hugo, o ser maldito que
personifica o ateísmo (...) Está no extremo inferior da escala, abaixo do
mocho, do corvo, do abutre, da águia (Victor Hugo, Dieu).” (BACHELARD,
2001, p. 74 e 75)
E, por isso, pode ser considerado o avoante noturno dos avoantes noturnos. Como
representação diabólica, esse ser parece figurar a dinâmica viva da escuridão, com sua asa
negra igual a uma lúgubre extensão lutuosa, um manto de pesar, ele parece querer abraçar
a noite e aumentar as trevas e seu próprio tamanho. Suas asas são, antes de tudo,
membranas aveludadas e medonhas e que na verdade não são asas, mas uma extensão de
seus dedos que funciona como uma espécie de nadadeira aérea. Essa aparência sinistra
amplia o tamanho do morcego, o que torna ainda mais possível a transfiguração metafórica
de sua imagem como algo diabólico no imaginário popular, bem como na imaginação
literária que o transforma num possível intermediário de pactos ou possessões demoníacas.
Na análise crítica do possível pacto de Riobaldo, o desejado alívio total do peso pode
ocorrer com a metáfora aérea encontrada na passagem em que Riobaldo agradece a
resposta de seu ouvinte sobre o assunto e emenda declarando: “Sua companhia me
altos prazeres.” (ROSA, 1986, p.17), o que para nós significa leveza e, portanto, alívio. A
presença dele traz tanto alívio a Riobaldo que o velho ex-jagunço não o deixa partir “o
senhor fica” (ROSA, 1986, p.17) –, pois que com a partida do visitante ele parece que cairá
no vazio da falta como revelam suas próprias palavras: Depois, quinta de-manhã-cedo, o
senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua falta.” (ROSA, 1986, p.17).
Essa falta que, na nossa interpretação, pode ser um princípio de queda ou um mergulho
na dolorida realidade de um amor desencontrado e na culpa de ter fechado um pacto com o
diabo no intento de usar o mal contra o mal.
Riobaldo, dominado por essa culpa de um suposto pacto, parece ainda temer por sua
alma. Quer desacreditar no diabo, mas reconhece a existência dele nas ações dos homens.
No interior dos homens e no entorno deles, Riobaldo que o diabo usa os elementos para
dissimular, disfarçar seu jogo e provocar a desordem. Para tanto, o ex-jagunço busca
refúgio na religião, metaforizada pela pureza da água, e busca a leveza do alívio no ato de
intercambiar suas experiências com um ouvinte vindo da cidade, sendo esse último ato
metaforizado pelo elemento ar. Isso, porque ele abomina a idéia de fazer parte do jogo
kármico e diabólico punitivo do fogo, mas acredita que sem esse mal (representado pela
figura do Jazevedão), o mal (representado pelas figuras dos criminosos) não pode ter fim.
Aliás, Riobaldo nos mostrou que o fogo metaforiza também a mudança quando aliado
ao ar e tem também face dupla quando, erotizado, simboliza os caminhos do amor e do
pecado. Contudo, das metáforas elementares apresentadas por Riobaldo até o momento, a
nosso ver a que mais parece se destacar em mistério e obscuridade é a aérea pelas
imagens das nuvens” e da “neblina”. A primeira demonstrou esconder a metáfora de uma
tempestade de crueldade; a segunda escondeu o espectro de uma personagem que aos
poucos vai criando forma e que é Diadorim. Na nossa interpretação, todas essas metáforas
são de abertura e representam a gênese daquilo que, a partir delas, é narrado.
2.3: O Liso da Memória
2.3.1.Proposta inicial
Os temas universais da passagem do tempo, da mudança e da brevidade, aliados
aos elementos, marcam suas presenças constantemente no curso da obra, bem como o
tema da travessia. A nosso ver, todos estão vinculados à memória que parece ser
despertada pela ação das metáforas elementares que se alternam tão dinamicamente que
nos parece impossível separá-las nessa massa primordial que é a narrativa de Riobaldo.
Dando sequência em nossa leitura do Grande Sertão: Veredas, perceberemos, de
agora em diante, Riobaldo no foco dessas questões. A passagem do tempo, a mudança e a
brevidade, as lembranças do sertão a terra –, das águas passadas e dos ventos fazem
parte do primeiro lance do jogo de memória de Riobaldo. Ele seria, se não fossem as
limitações da idade, até guia do senhor da cidade pelo sertão afora em expedições de
reconhecimento só para matar a saudade dos velhos tempos.
Outra cartada desse jogo de memória vincula-se, principalmente, às metáforas da
água e do ar entremeadas das metáforas da terra e do fogo e das imagens do chefe
Medeiro Vaz e de Diadorim, seguidas das de Nhorinhá, prostituta dos gerais que representa
o fogo, o ar e a terra e a mãe desta, Ana Duzuza, representante da terra e do ar. Nesse
jogo, Riobaldo relembra o plano fracassado de Medeiro Vaz de atravessar o Liso do
Suçuarão como parte da estratégia dos Vaz-Ramiro de acabar com os Judas, epíteto usado
para se referir aos bandos do Hermógenes e do Ricardão, traidores de Joca Ramiro o chefe
supremo de todos. O resumo desse plano era atravessar o Liso e sequestrar a mulher do
Hermógenes em sua fazenda, obrigando-o a vir direto para o combate.
Desentendimentos, revelações, mostras de amizade fiel entre Riobaldo e Diadorim e
o retorno ao tema do temor de ser pactário permeiam também a narração desses episódios
que, junto à fugidia lembrança da mãe do narrador, nos levam a primeira e malfadada
travessia do Liso do Suçuarão a ser empreendida sob a liderança de Medeiro Vaz. Neste
capítulo, tentaremos analisar a influência das metáforas elementares na narrativa de
Riobaldo nessa parte da obra.
2.3.2.O tempo muda tudo
No meio da narrativa de Riobaldo, o ouvinte de suas aventuras parece expressar a
necessidade de ir embora para campear pelo sertão afora “para sortimento de conferir o que
existe” (ROSA, 1986, p.17), mas é logo persuadido pelo narrador a ficar por três dias. Na
nossa visão, esses três dias de travessia pelo sertão, na fala de um sertanejo, representam
um movimento ternário que imprime em sua narrativa um caráter épico, haja vista que a
enumeração ternária de ações é tópica na tradição clássica da epopéia. Isso, na nossa
interpretação, pode significar uma necessidade do narrador em repetir, na voz de sua
narrativa, as experiências do passado na tentativa de se purificar e, quem sabe, ver-se
destituído do peso da culpa de pactário. “O número três, de acordo com os parâmetros da
numerologia, é o número da perfeição e exprime uma ordem intelectual e também
espiritual.” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1988, p. 899), lembra também a trindade Pai,
Filho e Espírito Santo e pode representar o nascimento, a vida e a morte; o começo, o meio
e o fim; o passado, o presente e o futuro.
Após convencer seu ouvinte a ficar, o narrador explica que não mais a se ver
como o que já se viu nos velhos tempos. O tempo esculpiu uma nova realidade que diverge
da que Riobaldo testemunhou. Os “Tempos foram, os costumes demudaram” (ROSA, 1986,
p.17) e, para o narrador, nada parece ser como antes, pois os jagunços antigos pedem
esmola e vaqueiro acha “que traje de gibão é feio e capiau” (ROSA, 1986, p.17) e parecem
ter vergonha de usá-lo quando vão para a cidade. Para Riobaldo, até o gado mudou com o
tempo, de bravo antes ficou manso hoje. O tempo, na voz do narrador, parece um escultor
que deu novas formas aos costumes da terra. Pegando emprestado a fluidez da água, a
lima paciente do vento e a brutalidade destruidora do fogo, o tempo tudo leva, tudo vem a
polir e tudo destrói. Age como um amassador eterno e sua ação nessa passagem recairia
sobre tudo o que diretamente está vinculado ao elemento terra, mas parece não agir sobre
toda a extensão do grande sertão. Acreditamos nisso, pelo conselho que Riobaldo ao
seu ouvinte para empreender viagem mais dilatada” (ROSA, 1986, p.17) se deseja ver
ainda uma “safra razoável de bizarrices” (ROSA, 1986, p.17) pelo interior afora, o que nos
leva a crer que ainda, no presente da narrativa do ex-jagunço, um sertão do Brasil ainda
cheio de costumes e valores velhos, regidos por leis antigas e ainda não totalmente tocado
pelas mãos do tempo.
Na sua lembrança dos velhos tempos, o narrador utiliza inúmeras metáforas
elementares que transitam dinamicamente de um elemento a outro, dando-nos a idéia de
que o sertão, como suas memórias, gira no meio de um redemoinho de ar, água e terra. A
primeira dessas metáforas parece ser a do elemento ar nos “altos claros das Almas” (ROSA,
1986, p.17), unida a do elemento água. Parece que nesse lugar tem uma cachoeira tão alta
que a água ali não vem de um barranco, mas dos altos claros daquele sertão. Nesses altos,
“na Serra do Tatu”, Riobaldo fala das onças-pretas no cio para depois referir-se às imagens
leves e luminosas que antecedem a lembrança de Diadorim como a pessoa responsável por
ensiná-lo “a apreciar essas belezas sem dono” (ROSA, 1986, p.18). Tais imagens são as do
brilho da garoa na região dos-Confins e do céu branco pela neblina “que chamam de
xererém” (ROSA, 1986, p.18). Ambas representariam o casamento dos elementos ar e
água, ou seja, a união de Diadorim e Riobaldo.
A personagem Diadorim aparece mais uma vez associada à imagem da neblina, mas
agora vem na forma de uma lembrança como gratidão de Riobaldo pelo amigo lhe ter
ensinado a ver mais atenciosamente a natureza. Vem também acompanhada de uma
imagem de caráter feminino associada à de ferocidade pela referência ao cio das onças o
que, na nossa interpretação, pode significar um traço violento e beligerante do elemento
água. A água pode ser vista como um símbolo de fertilidade. Acreditamos que, quando se
associa isso à imagem selvagem de uma fera no cio, pode-se pensar numa água violenta. O
que nos faz pensar que a presença de Diadorim promove um trânsito agitado de metáforas
elementares na narração poética de Riobaldo, indo de um elemento a outro, sendo esse um
exemplo da conversão de metáforas aéreas para as hídricas.
Dando curso a essas metáforas, Riobaldo descreve, em meio a sua narrativa, o
cenário de suas saudades recheadas de metáforas elementares que o levam do elemento
terra ao ar, indo de volta a terra numa queda leve do pisar da “canguçu” e subindo
novamente para o ar numa queda onírica para cima “A da-Raizama, onde até os pássaros
calculam o giro da lua se diz e canguçu monstra pisa em volta. Lua de com ela se
cunhar dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo.” (ROSA, 1986, p.18); a
imagem “da-Raizama” nos sugere a terra e o salto desta para o ar no voo dos pássaros e no
“giro da lua”, mas como todo salto implica um retorno a terra, vê-se a imagem da pata da
onça pisando leve na terra. Outro salto sugere agora uma queda para cima como um voo
nos rumos da lua, seguida de uma sugestão de sonho.
Essas metáforas do voo e da poética das asas trazem em si o domínio do vazio do
ar. Com elas, aquele que voa pode voar porque sonha e sua queda letárgica no mundo
onírico do sono é, na verdade, um ruflar de asas. Essa queda para cima, na verdade uma
ascensão, faz do ser voante uma personificação de poder e distinção. Segundo Bachelard,
esse Ser deve tomar “consciência de ser uma reserva de graça, de ser um poder de voo”
(BACHELARD, 2001, p. 20), deve assumir seu papel como o dominador ativo e superior
voando. E Voando, a volúpia é bela. O sonho de voo é o sonho de um sedutor fascinante.
Sobre esse tema se acumulam o amor e suas imagens” (BACHELARD, 2001, p. 21) e se as
conhecermos bem, entenderemos que o amor produz imagens que podem, em alguns
casos, remeter à simbólica afeição das asas maternas e das asas eróticas, sendo essas
duas formas de afeições oriundas, edipicamente, da figura da mãe ou da mulher protetora.
2.3.3.O sonho de voo
Outra questão importante na nossa forma de ver pode ser a do sonho de voo.
Segundo Bachelard, “O sonho de voo está submetido à dialética da leveza e do peso”
(BACHELARD, 2001, p. 22), o que nos remete a duas naturezas de voo: o leve e o pesado.
Bachelard explica que em torno desses dois acumulam-se todas as dialéticas da alegria e
da dor, da exaltação e da fadiga, da atividade e da passividade, da esperança e do
desalento, do bem e do mal” (BACHELARD, 2001, p. 22). O voo leve então seria o de um
sonhador sem culpa, desapegado dos vícios terrenos, apaixonado e vivendo um amor
sublime que distingue o ser amado pela alma e não pelo corpo. O voo pesado é o do
sonhador que carrega a culpa que se afunda no colchão e no travesseiro, que é apegado
aos vícios da terra e distingue o ser amado pelo sexo e pelo corpo. Acreditamos que o
estado psicológico do sonhador será muito importante para definir as imagens visuais de
seu voo, pois “o sonho de voo aparece sob a dependência absoluta das imagens visuais”
(BACHELARD, 2001, p. 22); entretanto, acreditamos também na possibilidade de um voo
leve de um sonhador carregado que buscou alívio na fala/desabafo de suas angústias. Além
de suas implicações eróticas e de seus traços confessionais, o caráter noturno desse vôo
não pode ser ignorado quando este é apresentado como um “sonho de voo”, resultante de
uma noite de sono. Porém, na imaginação literária, que é dominada pelas metáforas
elementares, as imagens oníricas, por mais noturnas que possam ser, podem também
transitar à luz do dia.
No voo do pensamento das personagens ou na descrição de um cenário habitado
por pássaros e seres que voam de dia, muito que se pensar sobre um sonho diurno de
voo. Sobre isso, Bachelard diz que “O sonho de voo deixa a lembrança de uma aptidão para
voar com tanta facilidade que ficamos admirados de não poder voar durante o dia”
(BACHELARD, 2001, p. 23) quando, na verdade, voamos. Voamos com asas emprestadas
do pensamento, emprestadas dos pássaros e dos outros seres que voam como eles e é
com isso que se voa durante o dia. Isso, porque o voo sem asas é alegoricamente
carregado de impossibilidade e inverossimilhança. Precisamos de asas para precisarmos o
voo e limparmos o pitoresco e o metafórico excessivo do movimento aéreo nas imagens
poéticas e oníricas da ficção literária. Por essa razão somos levados a concordar com
Bachelard quando ele escreve que a asa é uma racionalização (BACHELARD, 2001, p.
27), da mesma forma que concordamos quando ele explicou que “no mundo do sonho não
se voa porque se tem asas, mas acredita-se ter asas porque se voa. As asas são
conseqüências.” (BACHELARD, 2001, p. 28). Em todo caso, na presença ou na falta, as
asas são o vôo e não podem ser dele desassociadas; daí o uso, neste estudo, das palavras
“alado (os) / alada (as)” referindo-se ao voo ou às viagens aéreas.
Tão surpreendente quanto à experiência de voo noturno, a experiência de voo diurno
pode ser lida como a que tem caráter de aprendizado. O voo noturno pode ser visto como
uma assimilação de nossas “viagens aladas”. Essas metáforas são para que possamos
fazer entender bem o caráter fabuloso de algo que passa desapercebido por nós em nosso
cotidiano à luz do dia. Bachelard escreve que “uma convicção formada na vida noturna, na
vida inconsciente espantosamente homogênea do sonho, busca confirmações na vida à luz
do dia. Para algumas almas, ébrias de onirismo, os dias são feitos para explicar as noites”
(BACHELARD, 2001, p. 29). Essas “viagens aladas”, que podem ser lidas como a
representação metafórica de nossa busca do conhecimento, alegoricamente simbolizam
também o constante movimento de nossos pensamentos inquietos em busca de uma
ascensão espiritual ou de uma colocação no meio social como forma de reconhecimento.
Bachelard pondera que não podemos tomar o vôo onírico, diurno ou noturno, somente
“como um meio para se chegar a um fim” (BACHELARD, 2001, p. 24), pois “ele é realmente
‘a viagem em si’, ‘a viagem imaginária’ mais real de todas” (BACHELARD, 2001, p. 24) e
que pode se transformar na essência da formação psicológica de uma personagem da
ficção que tem como gênese de sua voz a substância dos quatro elementos.
Segundo Bachelard “a imaginação do elemento aéreo é (...) fraca e mascarada”
(BACHELARD, 2001, p. 29). Ao contrário da imaginação do elemento terrestre que é
poderosa e universal, a imaginação aérea é antes o movimento de algo sublimado, muito
leve ou alado que se desloca no ar / espaço. Nesse estado, a imaginação flui com mais
facilidade e leveza, deixando um céu aberto de possibilidades que fazem parte da essência
de uma vida instintiva. Nesse jogo é fácil pensar em retomar um voo inacabado como quem
retoma a leitura do capítulo de um romance fantástico. Para nós essa fraqueza foi entendida
quando observamos a matéria subjetiva e alegórica do elemento ar. Suas possibilidades são
muito variadas e sua lógica, muitas vezes, é exclusiva, individual, o que dificulta uma leitura
que se mostra eficaz na capacidade de limar as metáforas, sem construir novas metáforas.
As máscaras desse elemento sustentam, incansavelmente, o seu caráter lúdico que, na
realidade, tem razão de existir, pois é no jogo que se percebe “o mostrar-esconder” próprio
da linguagem literária.
A questão das asas anteriormente abordada serve para exemplificar esse caráter
imprevisto do elemento ar. De acordo com Bachelard, a não ser por contaminação
imaginária especial, nenhum sonhador vive o sonho das asas batendo. Muitas vezes o
sonho das asas batendo não passa de um sonho de queda. Defendemo-nos contra a
vertigem, agitando os braços, e essa dinâmica pode suscitar asas nos ombros”
(BACHELARD, 2001, p. 30) o que não pode significar que o voo é ritmado, é antes
“impulso”, “criação rápida de um instante dinamizado” (BACHELARD, 2001, p. 30). As asas
oníricas”, de acordo com Bachelard, estão no pé, mais precisamente no calcanhar. Segundo
Bachelard, “é no que residem, para o homem que sonha, as forças voantes”
(BACHELARD, 2001, p. 31). Impossível aqui, não associar essa imagem à figura do deus
Hermes / Mercúrio, o mensageiro dos deuses greco-romanos que viaja no ar com seus pés
alados dando também ao vento uma conotação de mensageiro.
O caduceu, bastão com duas serpentes enroscadas e com duas asas na
extremidade superior, é a insígnia de Hermes / Mercúrio e símbolo da medicina. Sua forma
vertical, levemente cônica e circular, com duas serpentes enroscadas e as asas na
extremidade superior, sugere seu caráter aéreo de redemoinho. É como se Hermes /
Mercúrio, ao trazer seu caduceu, trouxesse também um redemoinho de mensagens do céu
(as asas) e da terra (as serpentes enroscadas que, por arrastarem na terra, tornam-se a sua
representação). Esse duplo caráter de suas mensagens reflete um pouco da natureza dos
conflitos humanos ascensionais e espirituais; para Bachelard, “as asas de Mercúrio são as
asas do vôo humano” (BACHELARD, 2001, p. 34) e nada mais humano do que o desejo de
sentir nos pés a leveza do voo, o que pode significar um alcançar o que é bom sem sentir /
reconhecer as dificuldades do caminho. Bachelard acredita que “se vivermos corretamente a
frequente ligação da queda com o vôo em nossos sonhos, veremos como um medo pode
mudar-se em alegria” (BACHELARD, 2001, p. 35); por isso é importante sermos conscientes
de nossa verticalidade. Precisamos nos manter em pé, da mesma forma que, no vôo,
precisamos nos manter no ar. Um dos primeiros medos é justamente o medo de cair. Se
nesse medo nos mantemos corajosos e de o tempo todo, o terror se transforma em
alegria e a nossa condição vertical, em constante desafio.
A leveza é própria do movimento aéreo. Nela estão as inconstantes formas das
nuvens, a dança nos cimos das árvores, o voo dos pássaros, a poeira e, entre outras coisas,
a fumaça. Nenhuma dessas coisas, entretanto, é mais poderosa que o desejo humano de
levitar, de flutuar numa espécie de “barca aérea”, de ser leve em seu estado de vertical
ascensão que não reconhece a lei da gravidade. Segundo Bachelard, o poeta inglês Shelley
“subiu muitas vezes na barca aérea. Viveu realmente no berço do vento(BACHELARD,
2001, p. 43). “Para certos sonhadores”, como Shelley, “a barca do sonho que se balançava
sobre as águas deixa insensivelmente a água pelo céu. (...) O princípio da continuidade das
imagens dinâmicas da água e do ar nada mais é que o vôo onírico(BACHELARD, 2001, p.
43). Na água nos sentimos leves, capazes de flutuar e, se estamos sobre as águas numa
canoa ou numa barca, voamos sem sentir o peso do corpo ou da própria água. Nisso,
“a viagem aérea aparece como uma transcendência fácil da viagem sobre
as águas: o ser embalado em seu berço, contra a terra, é agora embalado
pelos braços maternos. Realiza ele o superlativo da felicidade embalada: a
felicidade transportada” (BACHELARD, 2001, p. 43)
que o mudará fazendo dele um ser mais confiante, ainda que não de todo destituído dos
tormentos do medo.
Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo embalado nesse sonho do voo, nessa viagem
aérea das águas de seu ser até o profundo das coisas que o cercam, descreve para seu
ouvinte um universo sortido de imagens e metáforas elementares unidas a impressões
sensoriais. Na nossa visão, o elemento ar domina essas imagens que, nesta passagem,
terminam na água como um pássaro que pousa depois de um voo.
Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a cigarrinha, roxa, e a
nhiíca e a escova, amarelinhas... Isto no Saririnhém. Cigarras dão bando.
Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! geia até em costas de
boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão depois dali tem uma
terra quase azul. Que não que o céu: esse é u-azul vivoso, igual um ovo
de macuco. Ventos de não deixar se formar orvalho... um punhado quente
de vento, passante entre duas palmas de palmeira... Lembro, deslembro.
Ou o senhor vai no soposo: de chuva-chuva. um córrego com
passagem, ou um rio em turvação.” (ROSA, 1986, p.18)
Na nossa interpretação, o elemento ar nessa passagem domina, entre outras coisas,
a sombra do tamarindo, a “terra quase azul” que parece o céu, o ovo do macuco, o vento
que não deixa “se formar orvalho” e o céu-azul vivoso”. Em tudo isso, o que nos chamou
mais atenção foi o cromatismo dessa passagem e sua repetição de imagens em tons de
azul. A forte presença do céu azul e todo o seu cromatismo serve de canal para o trânsito de
inúmeras metáforas aéreas no Grande Sertão: Veredas. Bachelard observa que as
metáforas aéreas, relacionadas com tudo aquilo que fere a integridade do ar, fere “um
universo que gostaria de guardar a unidade da simples cor, a unidade de uma leveza de ser
de que tem necessidade a simplicidade.” (BACHELARD, 2001, p. 167). Para ele, esse
devaneio tem em si a idéia de que nada pode perturbar ou complicar o céu azul. No entanto,
como diz Riobaldo, viver é muito perigosoe o céu claro num azul incorruptível e, como diz
Bachelard, “pobre de formas” (BACHELARD, 2001, p. 171), acaba se tornando um convite à
profundidade, um convite à construção de inúmeras imagens recheadas, se possível, de
tumultos emocionais e conflitos existenciais sem solução, que nascem, primeiro, de um
nada (nonada), estendem-se para um nada profundo para, depois, seguir seu curso rumo a
profundidade azul, abrindo, no efêmero vazio, o caminho das imagens e das metáforas.
Nem o céu azul e nem uma página em branco podem se manter neutros e vazios em tempo
integral
7
, um pássaro em vôo ou uma palavra pronunciada/escrita, a qualquer momento,
vem perturbar esse breve e lúcido sossego. A lucidez do céu azul pode ser quebrada com
pouco e logo perdemos a felicidade de sermos claros, concisos e objetivos em nossos
sentimentos, atos e pensamentos; logo o narciso aéreo sugerido por Bachelard, vê-se
refletido num espelho que não lhe mostra um rosto assimétrico, mas um caráter
deformado. “O azul do céu”, escreve Bachelard, “é antes de tudo o espaço onde não
mais nada a imaginar. Mas, quando a imaginação aérea se anima, então o fundo se torna
ativo.” (BACHELARD, 2001, p. 175), ou seja, torna-se dinâmico e preenchido de metáforas
que representam o desassossego natural da imaginação literária.
Esse desassossego leva o pouso do sonhador à água da chuva em córregos “com
má passagem” ou em rios de águas turvas. Essas águas que antes faziam parte das
perturbações do céu azul metaforizadas pelas nuvens de chuva, agora parecem fazer parte
de um peso e uma turvação de temperamento. Bachelard, em seu estudo d'“Água Pesada
no Devaneio de Edgar Allan Poe” escreve que “toda água clara (...) é uma água que deve
escurecer, uma água que vai absorver o negro sofrimento.” (BACHELARD, 2002, p.49);
nesse caso, na nossa visão, esse sofrimento pode ser a saudade de ter passado as longas
distâncias do grande sertão na companhia de Diadorim. A metáfora elementar usada pelo
narrador para representar esse vazio é novamente aérea “Já tenteou sofrido o ar que é
saudade?” (ROSA, 1986, p.18). Isso pareceria mais uma confirmação do argumento de que
Diadorim pode ser considerada uma personagem do ar. Aliás, associar a imagem de
Diadorim às ações elementares da água para o ar e daí para os outros elementos parece,
na nossa interpretação, o caminho mais pertinente para uma análise dessa personagem em
nosso estudo.
2.3.4.Os elementos na memória
7
Na verdade não há espaços vazios no ar, mas matéria invisível a olho nu.
As lembranças dos trovões na Serra do Cafundó, das voltas do rio Urucuia e do
vapor de enxofre que brota do chão numa encosta fazendo muito barulho e assustando o
gado dão continuidade a esse jogo de memória de Riobaldo. Os quatro elementos parecem
estar rodando no turbilhão dessas imagens. A serra metaforizaria a fixidez e, ao mesmo
tempo, a mutabilidade dos estados da terra com suas retas, curvas e pontas. Nessa lógica,
o caráter sinuoso do Urucuia dialoga com os estados da terra na geografia das serras que
transportam suas águas até seu destino de afluente; enquanto os trovões lembram o fogo
do céu, resultante do temperamento atmosférico ou do que podemos chamar de o humor do
ar. Humor que parece ser ali, o mesmo da terra quando esta libera um vapor de enxofre
“com estúrdio barulhão” (ROSA, 1986, p.18), o que poderia ser também o resultado da união
do elemento terra com o elemento fogo que sai de suas entranhas.
Na terra e debaixo dela, em suas crateras mais profundas, o fogo tradicionalmente
serve ao Diabo. Vem do Hades ou Tártaro ou Inferno, vem da lava incandescente do vulcão.
Está no subjetivo e obscuro interior do homem, iluminando sua treva interior. Esse fogo
diabólico também está no interior de tudo e de todos. A luz que provém desse fogo é
ambígua. Lúcifer é o anjo da luz, mas vive nas trevas, nas profundezas do mundo de baixo
e, quando vem para a superfície, de acordo com a cultura popular, viaja no vento, no
turbilhão. De acordo com Luis da Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore
Brasileiro, “Quando se produz um redemoinho de vento, a que o povo da Beira Alta [em
Portugal] e noutras partes chama borborinho, acredita-se que então anda no ar o diabo”
(CASCUDO, 1979, p.666) que pode ser visto como uma metáfora do fogo no meio do
redemoinho, viajando no ar como um raio ou como o projétil de uma arma de fogo:
prenúncio relâmpago de desgraças. Mas também podemos ver esse diabo/fogo como uma
metáfora do conflito humano no compreender a si mesmo, na tentativa de compreender o
bem e o mal e no desejo de ascensão intelectual e espiritual.
O problema é que todas essas idéias sobre o fogo e, principalmente, sobre o
misticismo do fogo são carregadas de subjetividade, o que pode tornar difícil a compreensão
delas, bem como uma tentativa de explicá-las objetivamente. Para tanto, a melhor forma de
enxergar esse fogo sem suas metáforas é identificá-lo com a ideologia do indivíduo e a
ideologia que está por trás de seus valores, suas crenças e ações, pois são esses três que
nos impulsionam a fazer coisas boas e ruins e que, apesar de estarem definidas nas leis
humanas e divinas, também são conceituadas de forma subjetiva.
A imagem do rio Urucuia retorna na sequência junto às dos rios Carinhanha e
Paracatu. Nesse jogo imagético de águas, pareceu-nos interessante o cromatismo gradativo
empregado por Riobaldo na caracterização desses rios: “o rio Carinhanha é preto, o
Paracatu moreno; meu, em belo, é o Urucuia paz das águas...” (ROSA, 1986, p.19); o
narrador parece sugerir com isso que o rio Urucuia é de águas mais claras ou, pelo menos,
que ele se identifica com o rio.
Riobaldo demonstra sua sensibilidade aprendida na convivência com Diadorim,
ilustrando seu relato com inúmeras metáforas elementares que, vertiginosamente, vão da
imagem de um elemento para outro:
“acho que é do seco ar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes do
Urucuia, ali o povi canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã
no revoredo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a
rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas.” (ROSA,
1986, p.19).
Nesse trecho, o elemento ar também domina, principalmente pela presença
marcante dos pássaros típicos da região. Foi com Diadorim que Riobaldo aprendeu a
observar os pássaros “Eu estava todo o tempo quase com Diadorim” (ROSA, 1986, p.20).
Juntos, eles davam passeios e conversavam numa amizade estreita e incomum no geral
dos costumes do bando de jagunços. No relato desses momentos passados ao lado do
amigo, Riobaldo promove um verdadeiro carrossel de metáforas elementares com sutis
metáforas eróticas, extraídas de algumas imagens fugidias da natureza:
“E estávamos conversando, perto do rego bicame de velha
fazenda, onde o agrião dá flor. Desse lusfús, ia escurecendo. Diadorim
acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas passavam muitas,
por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma
brisbisa. O ianso do vento revinha com o cheiro de alguma chuva perto. E o
chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados. Por mim, só, de tantas
minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca
coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o
rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como
sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no
relume das brasas.” (ROSA, 1986, p.20).
O rego d'água, a pequena fogueira, os sabugos, as mariposas voando entre os dois
representam, na nossa interpretação, esse jogo de metáforas elementares e eróticas. O
rego d'água nesse esquema pode funcionar como símbolo de vulva excitada, os sabugos
podem transportar uma imagem fálica, enquanto que a união destes com a pequena
fogueira acendida por Diadorim pode representar a cópula. As mariposas lembram o monte
de Vênus e pela semelhança também podem lembrar as borboletas que, por conseqüência,
nos levarão à imagem da metamorfose. Aliás, a metamorfose pela qual passa a borboleta
tem feito dela um exemplo de metáfora de transformação e esperança. Ao seu processo de
metamorfose, pode-se fazer a associação de que uma criatura presa aos valores terrenos
possa um dia desfrutar da liberdade dos ventos e do banho de chuva. Ela pode ser
considerada forte símbolo de representação da evolução espiritual do homem e de sua
capacidade de mudar. Pode ser também símbolo de pessoas que estão “à procura de si
mesmas” e que almejam uma mudança em sua vida. E tudo isso nos parece estreitamente
ligado ao contexto do excerto acima em que Riobaldo também confirma os modos de
observar a natureza ensinados a ele por Diadorim.
O narrador, para dizer que aprendeu tudo isso como coisa própria de sua natureza,
recorre a uma metáfora elementar através da imagem dos sapos, animais anfíbios que nos
sugerem uma união da terra com a água. Ele aprendeu tudo isso tanto quanto um sapo
roncador nasceu sabendo roncar. Esses elementos pesados sugeridos pela imagem do
sapo podem servir para provocar a ideia de que Riobaldo aprendeu para mais tarde poder
materializar tudo isso na narrativa de suas experiências de herói épico corroído pela
saudade e pela lembrança.
2.3.5.O fogo de Diadorim e a água de Riobaldo
A recordação de Diadorim no relume das brasas” (ROSA, 1986, p.20) fecha essas
imagens elementares e eróticas com a presença do elemento fogo que surge no começo
com o acender da fogueira, o que, para Bachelard, parece representar uma referência ao
amor. Em sua visão, “O amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do
fogo”. (BACHELARD, 1994, p.37). Acender uma fogueira nesse sentido pode se tornar um
ato impregnado de metáforas eróticas. Acreditamos que o fato de Diadorim ser, na verdade,
uma mulher guerreira travestida de homem faz dela uma fêmea com capacidades
masculinas. Diadorim pode fazer o que os bravos jagunços fazem tão bem quanto qualquer
homem de guerra e, da mesma forma, faz melhor o que os homens não conseguem fazer
direito, como, por exemplo, os trabalhos mais comuns às mulheres numa sociedade
patriarcal. Acender um fogo deve ser tarefa de homem, mas travestida de macho jagunço,
Diadorim tem todas as permissões para subverter a ordem social/sexual das tarefas. Com o
símbolo fálico dos “sabugos”, Riobaldo amplifica o caráter erótico da ação, em que ambos
possuem elementos fortemente sexualizados e dominadores. Porém, para se fazer o fogo,
necessita-se de tempo e paciência; é preciso, como um amante, entender o ritual preliminar
que excita e aquece o objeto que se quer queimar como quem pega um pau e esfrega na
ranhura da madeira num movimento paciente e ritmado.
Isso acaba convertendo essas imagens eróticas iniciais em bélicas, pois parece que
Diadorim não acende o fogo para sua vida amorosa, embora possa se pensar nela também,
mas acende para a vingança contra os judas assassinos de seu pai:
“– Tá que, mas eu quero que esse dia chegue! Diadorim dizia.
Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto
aqueles dois monstros não forem bem acabados...” (ROSA, 1986, p.21).
Enquanto isso Riobaldo parece ter outro espírito. Em meio a essas metáforas
elementares ígneas e eróticas também compartilhadas por ele, somos impelidos à imagem
do rego d'água em: “Perto de muita água, tudo é feliz. Se escutou, banda do rio, uma lontra
por outra: o issilvo de plim, chupante.” (ROSA, 1986, p.21); isso nos leva a crer que,
enquanto Diadorim metaforiza as ações brutas e modificadoras do fogo, Riobaldo metaforiza
o fluir da água como quem espera o tempo do outro com tristeza e desamparo de amizade.
Nessa hora, Riobaldo parecia temer qualquer lume por acreditar ser um mau presságio e
buscava refúgio nas imagens da água materna e confortadora.
“E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; (...) E aquilo forte
que ele sentia, ia se pegando em mim mas não como ódio, mais em mim
virando tristeza. (...) em que eu mais amizade queria, Diadorim falava
nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue manda sangue. Assim nós
dois esperávamos ali, nas cabeceiras da noite, junto em junto. Calados. Me
alembro, ah. Os sapos. Sapo tirava saco de sua voz, vozes de osga, idosas.
Eu olhava para a beira do rego. A ramagem toda do agrião o senhor
conhece às horas de se uma luz, nessas escuridões: folha a folha, um
fosforém agrião acende de si, feito eletricidade. E eu tinha medo. Medo
em alma.” (ROSA, 1986, p.21)
O fogo de Diadorim logo se convertia em belicoso como se o ódio fosse um amor
proibido que resta ao amante lutar ou suspirar por ele. Esse ódio em Riobaldo converte-
se em melancolia e medo. Nessa relação, o fogo de um chocava-se na água do outro e o
que sucumbe parece ser o elemento mais pesado, que de feliz muda para triste. Na nossa
interpretação, metaforicamente o fogo esfria com a água e, na escuridão extrema, gera o
lume sem o calor, provocando a fosforescência do agrião descrita por Riobaldo e que pode
ser entendida como metáfora dessa influência da água sobre o fogo.
Riobaldo ia com o bando de Medeiro Vaz por esse fogo de ódio que dominava
Diadorim. “Remei vida solta.” (ROSA, 1986, p.22) Medeiro Vaz era o chefe, homem solene e
de todos os elementos, mas antes duro como pedra em seus segredos. “O segredo dele era
de pedra.(ROSA, 1986, p.22) A nossa primeira imagem dele pareceu ser a de um homem
que sai da terra para elevar-se em altos valores como um diamante. Riobaldo seguiu este
homem pela amizade de Diadorim, mas admirava a figura de Medeiro Vaz.
2.3.6.Um grande sertão, o céu e suas constelações
Relembrando melhor, o ex-jagunço fala dos efeitos do tempo em tudo aquilo que ele
viu e viveu. Nessa ocasião de sua narrativa, ele sugere ao senhor seu ouvinte, o que
chamamos de movimentada realidade do sertão: “Sertão: estes seus vazios.” (ROSA, 1986,
p.22); a grandeza tem muitos espaços e tudo o que vive dentro dela acredita estar sozinho
ou pelo menos distante de qualquer outro corpo/coisa. Nesse sentido, Riobaldo aconselha
seu visitante a percorrer mais léguas que o normal nessa grandeza para testemunhar
alguma coisa restada dos tempos e seus efeitos – “O senhor vá. Alguma coisa, ainda
encontra. Vaqueiros? Ao antes a um, ao Chapadão do Urucuia aonde tanto boi berra...
Ou o mais longe” (ROSA, 1986, p.22); dos costumes talvez pouca coisa encontre, mas
quem sabe os lugares e os rios? As lendas? No vazio dos ermos cavalo conselho a
cavaleiro e os rios parecem estar como os lugares estão. Deles Riobaldo faz menção ao
Carinhanha, ao Piratinga e ao Urucuia que saem de brejos enfeitados de buritis e com chão
de “um barro colador” (ROSA, 1986, p.22) cheio de cobras sucuris e jacarés.
Nessas descrições em meio à narrativa, Riobaldo espalha um sortimento de
metáforas elementares de ar, terra, água e fogo. O ar, inclusive, nos parece ser a origem de
todas as ações na narrativa de Riobaldo antes das imagens do fogo. O ar faz a vida e os
movimentos se tornarem possíveis.
Na imaginação literária muitos poetas que se guiam por esse elemento,
acreditando ser metaforicamente o sopro do ar o responsável pelo movimento de rotação da
Terra e por tudo o que gira/acontece nela, sobre ela. Shelley é um desses poetas na visão
de Bachelard. Na nossa leitura dos textos de Bachelard, se acreditarmos que “pelo ar, toda
a vida e todos os movimentos são possíveis” e que “é o sopro do ar que faz girar a Terra”
(BACHELARD, 2001, p. 47), podemos acreditar também que esse ar vem no redemoinho
como mistura de vento e terra que giram em seu movimento ascensional fugaz. Com isso, o
sopro do ar não só faz girar o planeta Terra como faz girar os fragmentos (poeira, areia etc.)
da própria terra e girar também tudo o que existe sobre ela. Se esse vórtice for, como em
nossa comparação anterior, o caduceu de Hermes / Mercúrio, então temos um redemoinho
de poeira / areia e vento que traz mensagens desagradáveis porque provém de um meio
turvo, confuso, atormentado, desacertando o mundo por onde passam com seu conteúdo
venenoso. Para Bachelard, Shelley é realmente o poeta feliz do ar e da altura. A poesia de
Shelley é o romantismo do vôo(BACHELARD, 2001, p. 51) e é, no silêncio da “noite”, que
vemos aumentar a “profundidade” dos céus. Esse silêncio e essa profundidade harmonizam
todas as coisas do mundo e “as contradições se apagam, as vozes discordantes se calam”
(BACHELARD, 2001, p. 51) para essa harmonia que faz calar em nós as vozes terrenas
imersas em lamentações.
Na imaginação poética não limites para as metáforas do ar porque não limites
para o céu e o desejo de ascensão. Tudo que viaja no ar é matéria-prima de poesia seja
durante a noite ou à luz da manhã. Na poesia da narrativa de Guimarães Rosa em Grande
Sertão: Veredas podemos encontrar esse mesmo valor de feliz voo nas alturas, nos vazios
do ar. Entretanto, também outros valores em Rosa, pois o claro do ar, o céu azul ou
mesmo a noite estrelada e a lua poderão, em outros momentos, entristecer e cair na
melancolia, na nostalgia da saudade.
O Chapadão do Urucuia, lugar onde “tanto boi berra” (ROSA, 1986, p.22) seu mugir
no vento, nos remete ao casamento de duas metáforas elementares em harmonia, a terra e
a água. Como um altiplano, a chapada se ergue na paisagem sertaneja, reforçando a
imagem imponente do elemento terra. Mas a chapada é antes de tudo uma grande esponja
de terra e pedras que funcionam como o esconderijo da água, pois por fora ela é dura e
seca e por dentro guarda as águas. O rio Urucuia nasce naquelas imediações, num brejo
ornado de buritis. Aliás, o brejo é também símbolo desse casamento da terra com a água.
Essa água de brejo para Riobaldo é cheia das armadilhas infernais propostas por animais
da terra e da água, sendo que a sucuri e o jacaré são animais dos dois elementos, enquanto
que a “piranha serrafina” (ROSA, 1986, p.22) fica sendo o diabo nos internos daquela água.
No alto dessa chapada, o que inferniza são as mutucas e a luz do sol Aquelas
chapadas compridas, cheias de mutucas ferroando a gente. Mutucas! o sol, de onda
forte, que dá, a luz tanta machuca.” (ROSA, 1986, p.23) –; o ar e o fogo parecem ser as
metáforas elementares mais apropriadas para representar essas imagens diurnas que
introduzem o que convencionaremos chamar de metáfora moralizadora da consciência.
Tanto essas imagens diurnas quanto as noturnas perturbam o desassossegado narrador
que parece estar o tempo todo querendo, com sua narrativa, se livrar de sua culpa.
Consideremos as metáforas noturnas do ar sugeridas pela fala de Riobaldo quando
descreve as noites estreladas e sem estrelas no alto da chapada:
“De noite, se é de ser, o céu embola um brilho. Cabeça da gente quase
esbarra nelas. Bonito em muito comparecer, como o céu de estrelas, por
meados de fevereiro! Mas, em deslua, no escuro feito, é um escurão, que
peia e pega. É noite de muito volume. Treva toda do sertão, sempre me fez
mal.” (ROSA, 1986, p.23).
Ao contrário do céu azul, que é a impassibilidade inconscientemente (ou
intencionalmente) à espera da perturbação, temos o céu noturno, que metafórica e
dionisiacamente representa as paixões proibidas, os tumultos emocionais e os conflitos
existenciais.
A lua, governadora das marés, eleva ou decai os devaneios mais espirituosos, é
multifacetada e feminina. Contornada pelos corpos celestes mais distantes, ela só nos
mostra o que ela quer. Seu brilho não ofusca nem ilumina satisfatoriamente; ela é clara,
escura, cheia, minguante, barroca, porosa e contraditória mais do que o suficiente para ser
também romântica. Sua ausência no céu em deslua” nos chama atenção para as
constelações e as trevas; sua presença principalmente, quando cheia, é a metáfora que
evoca a imagem do homem-cão, do homem-lobo, lobisomem: o diabo na consciência do
homem, dentro e fora do homem, nos seus pelos crespos, nos seus pelos bravos de uma
lagarta-de-fogo.
Essas imagens que evocam a figura de Riobaldo ilustram muito bem o que queremos
dizer sobre o céu noturno, a lua, as constelações e as metáforas extraídas de suas
presenças. Segundo Bescherelle citado por Bachelard, as constelações foram criadas “com
o fito de ajudar a memória” (BACHELARD, 2001, p. 179). Para Bachelard, isso consiste
numa grande perda, em que perdemos “o benefício do onirismo estrelado” (BACHELARD,
2001, p. 180), ou seja, perdemos o direito de fazer de “cada noite nova (...) um devaneio
novo, uma cosmogonia renovada” (BACHELARD, 2001, p. 180); o malfeito e o acabado são
extremamente destrutivos para a imaginação literária recheada de sonhos e fantasias. As
constelações em si são uma limitação porque elas ditam imagens prontas querendo não
permitir que as recriemos. Todavia, como arma da transgressão, a poesia pode, se quiser, ir
além dessas formas sugeridas pela tradição e criar a sua própria, diversificada e
constantemente mutável, cosmogonia.
Se o céu azul é o claro, o vazio e a expectativa do pássaro que o fere cortando o ar,
o céu estrelado é o caráter aparentemente inerte das constelações. o caráter
cinematográfico da poesia pode lhe imprimir dinamismo. Os movimentos podem se
cristalizar no céu estrelado. Nele, os heróis estão sempre agindo, imortalizados na
“fotografia” de suas ações. Tudo é regido pelo olhar do poeta que é uma retribuição de um
outro olhar. O artista é a lente e o olho, a obra de arte é o que ele captura. E o que ele
captura é essa “fotografia” do herói no momento exato de sua grande ação. As estrelas
esboçam diversas possibilidades de ação e, se temos liberdade de expressão sobre o que
elas podem representar a cada nova noite, poderemos ter então o “benefício do onirismo
estrelado”, veremos que as ações do herói são metáforas construídas a partir de um outro
olhar: o brilho das estrelas. Segundo Bachelard, “no reino da imaginação, tudo o que brilha é
um olhar” (BACHELARD, 2001, p. 187); é desse olhar ou desses olhares que construímos
seres e mundos possíveis e impossíveis, encontrados somente no campo do imaginário,
porém mais vivos que os vivos e, muitas vezes, mais sábios que os mortos. Acreditamos ser
através da idealização desse contexto aéreo noturno e misterioso que se cria o lado sombrio
de personagens como Diadorim que são vistas de forma completa somente no final da
narrativa.
2.3.7.O fogo bélico
Enquanto Riobaldo temia os mistérios do ar noturno, o escuro da noite no alto do
Chapadão, “Diadorim, não, ele não largava o fogo de gelo daquela idéia; e nunca se
cismava.” (ROSA, 1986, p.23), o medo não esbarrava nos objetivos dele. Queria ser feliz e
ter espaço para outros sentimentos somente depois de matar os inimigos a fogo e ferro.
Nessas intenções de Diadorim podemos ver um exemplo de fogo punitivo, o fogo frio da
vingança que pode ser associado à violência das armas brancas usadas em lutas mortais
com a intenção de punir aqueles que, segundo o senso de justiça do vingador, merecem ser
punidos. Nesse caso, a referência é aos Judas, Hermógenes e Ricardão, alvos do ódio de
Diadorim.
Na guerra, o fogo está na metáfora do olhar cheio de ódio do inimigo, está nas armas
de fogo e nas armas brancas como os punhais, as facas e os facões de aço forjados em
fogo. Essas, quando desembainhadas, expõem seu lume frio no ar, luzindo a raiva sem
pressa dos guerreiros. Aquelas atravessam o ar e queimam mais depressa a vida dos
oponentes. Esse fogo bélico pode ser associado às duas formas básicas do fogo: o que
carrega consigo o castigo, a tortura, a dor e a ruína; e o que carrega consigo o conforto, o
prazer, a luz e a glória.
O mesmo fogo que gera o amor pode gerar o ódio. A ficção literária e a própria vida
servem de respaldo para essa afirmação, tirando-a do senso comum e elevando-a a uma
posição digna de sua condição universal. O fogo conforta e queima, ele é o bem e o mal e é
a luta entre o bem e o mal. Belicosas, as metáforas do fogo estão em muitas armas de
guerra. Desde as primitivas armas brancas às modernas metralhadoras, podemos verificar
as referências ao fogo, seja na sua fabricação ou nos efeitos de seus usos. Nesse caso, o
ato de luzir faca muitas vezes pode estar associado à figura de Diadorim que era jagunço
perito em lutar com facas.
Arma branca é o termo genérico que indica as armas feitas de metal e que causam
danos pela ação de um gume ou ponta, sendo que a força motriz é somente humana.
Contrapõe-se à arma de fogo, que arremessa o projétil impelindo-o por meios artificiais,
usualmente químicos. As armas brancas são feitas a ferro e fogo. um calor abrasivo na
origem delas quando suas lâminas estão sendo forjadas. Esse calor, depois de elas estarem
prontas, transfigura-se num gelo que é o aço frio da lâmina de uma faca, sabre, punhal,
facão ou espada. Esse fogo frio ou “fogo de gelo” (ROSA, 1986, p. 23) pode evocar
inúmeras imagens e metáforas sobre o ódio, a maldade, a punição e a vingança. Hefesto,
deus grego do fogo e dos ofícios e ferreiro fabricante de armas, tem sua imagem
frequentemente evocada nesse caso, por ter sido ele o fabricante das armas de Aquiles na
Ilíada, de Homero, armas essas que foram coadjuvantes em, no nimo, duas tragédias: a
morte de Pátroclo, que lutou com elas e morreu caindo aos pés de Heitor e o suicídio de
Ájax, que disputou a posse delas com Odisseu, após a morte de Aquiles. Observadas as
devidas proporções, todas as narrativas de guerra evocam essas imagens homéricas.
Nelas, podemos verificar os dois fogos: o do castigo, da tortura, da dor e da ruína; e o do
conforto, do prazer, da luz e da glória. Mas, em ambos os casos, o que impera é a dor, pois
todo fogo de glória vem acompanhado da perda de heróis valorosos, de amigos.
Lutar com armas feitas de fogo e ferro resfriado e forjadas é lutar muito próximo ao
fogo dos olhos do inimigo, muito próximo ao fogo do corpo, do ódio e do sangue do inimigo.
Essas metáforas do combate corpo a corpo, muito comuns em narrativas de guerra,
representam a intensidade do elemento fogo no clímax dos combates. As armas brancas
sugerem uma forma mais eficaz de vingança, pois, com elas, o herói mata o inimigo com as
mãos, sujando-as de sangue e não com a impessoalidade de um tiro de flecha ou rifle. Elas
sugerem também a imagem dos extremos de um combate corpo a corpo, quando as armas
de fogo não têm mais munição ou valia e são substituídas por sabres, facas, baionetas,
punhais, facões ou espadas.
O desembainhar de armas brancas é ação geradora de metáforas luminosas e
fálicas. As primeiras são frias e cortantes e representam o fogo frio das vinganças; as
segundas são representativas da supremacia masculina na guerra, em que mesmo quando
mulheres guerreiras, elas devem proceder ou serem como os homens. A masculinização
da mulher nesse caso pode ser representada simplesmente pelo seu ato de travestir-se de
homem. Essa “donzela guerreira” expressão de Walnice Nogueira Galvão ao referir-se a
Diadorim desassocia-se, com suas ações, do modelo convencional e machista de mulher,
esposa submissa, mãe e senhora da casa, pois sua natureza e seus valores são diferentes,
transcendem esses atributos e elevam-se no acréscimo de outros, como o de arma humana
de guerra.
2.3.8.As asas da consciência
Isso tudo incomodava Riobaldo que, perturbado com o fogo frio do ódio de vingança
que emanava de Diadorim, não conseguia dormir facilmente a não ser que tivessem “o que
comer e beber” (ROSA, 1986, p.23), pois seu desassossego era muito grande, o que fica
patente na frase: “Eu tinha uma lua recolhida.” (ROSA, 1986, p.23), o que se poderia
considerar a mais concisa expressão de toda a sua dúvida, medo, culpa e desencontro
amoroso. Essas metáforas do elemento ar parecem martelar sua consciência e, quando o
dia amanhecia, ele escutava o cantar de vários pássaros, sendo o que mais lhe assombrava
era o bem-te-vi.
“Mas mais o bem-te-vi. Atrás e adiante de mim, por toda a parte,
parecia que era um bem-te-vi só. “Gente! Não se acha até que ele é
sempre um, em mesmo?” – perguntei a Diadorim. Ele não aprovou, e estava
incerto de feições. Quando meu amigo ficava assim, eu perdia meu bom
sentir. E permaneci duvidando que seria que era um bem-te-vi, exato,
perseguindo minha vida em vez, me acusando de más-horas que eu ainda
não tinha procedido. Até hoje é assim...” (ROSA, 1986, p.23)
Esse bem-te-vi figura dentro do que anteriormente convencionamos chamar de
metáfora moralizadora da consciência. Ele parece potencializar a idéia contida numa frase
anterior de Riobaldo que diz: “Eu me lembro das coisas antes delas acontecerem...” (ROSA,
1986, p.22), essa frase se aproxima do pensamento extravagante do narrador quando ele
acredita ser esse bem-te-vi o mesmo pássaro bem-te-vi que sempre cantou perto dele, em
diversos momentos de sua vida, acusando-o de maus procedimentos que ele ainda iria dar
curso. Usando uma metáfora aérea, Riobaldo evoca sua consciência e antecipa o receio do
desconcertado caminho de seus atos que o levaram à rápida ascensão e queda. Muitos
elementos na paisagem de ordens de grandeza superiores poderiam ter sido escolhidos
para tal efeito. Entretanto, essa mobilidade, essa metamorfose, ou melhor, esse transporte
de significados a que podemos chamar tratamento metafórico da paisagem no imaginário
poético, não somente acontece com elementos de destaque no espaço como rios, serras e
escampados (naturalmente imóveis em sua geografia), mas também com formas dinâmicas
e menores, muitas vezes, impossíveis de serem retratadas pelo pincel de um pintor
detalhista em decorrência das limitações de proporções e planos de uma tela, mas com um
potencial de efeito conotativo muito grande nas pinturas literárias do cenário e nos reflexos
de sua simbologia na psicologia das personagens. Nesse sentido, Riobaldo sente-se o
tempo todo visto/vigiado e bem visto pelo pássaro cujo nome evoca o próprio efeito de sua
ação na psicologia do narrador que se sente filmado pela ave.
Ao pintar, por exemplo, um pequeno pássaro que voa, pousa e entoa seu canto, o
artista da imaginação literária transpõe as barreiras que limitam o artista plástico e avança
dando mais força e movimento aos elementos aéreos de suas paisagens, ampliando,
inclusive, o caráter sensorial da imagem. Sobre isso Bachelard vai trazer a imagem da
cotovia, ave pequena e, por isso, impossível de ser representada com nitidez numa tela que
apresenta uma paisagem rural, vasta de planos e proporções. Ilimitada no que diz respeito à
construção verbal do espaço, a literatura avança os limites das artes plásticas sem reduzi-
las, mas antes de tudo amplia-as, como quem faz um pastiche de sua forma e seu
cromatismo natural.
A cotovia, nesse contexto, pode ser substituída por qualquer ave pequena e de forma
e canto considerados singulares pela imaginação poética como, por exemplo, o bem-te-vi de
Riobaldo. A questão aérea de seu vôo e de seu canto pode trazer a imagem de muitas
metáforas do ar que talvez escapem ao olhar crítico mais atento e que, por isso, não podem
deixar de ser analisadas. Na frase “O pássaro é o ar livre personificado” (BACHELARD,
2001, p. 78), Bachelard diz em outras palavras
8
, que não metáfora que exemplifique
melhor o ar livre e o voar livre que o do pássaro voando livremente e envolvendo, com seu
8
Bachelard diz isso, ao analisar estes versos de William Blake em seus Livros Proféticos (p. 205):
Um pintarroxo na gaiola / Enfurece o céu inteiro”.
vôo e seu canto, os que o observa. Esses observadores querem, como o pássaro, a
ascensão, mesmo sabendo dos riscos e temendo a queda, pois, de acordo com Bachelard,
“o medo de cair é um medo primitivo” (BACHELARD, 2001, p. 91).
Essa queda imaginária, descrita por Bachelard, apresenta-se dramática e fortemente
abastecida de medos e abismos oníricos e escuros. Para este nosso estudo, esse olhar se
faz pertinente pelo fato de que concentraremos seus argumentos na ascensão do
personagem Riobaldo de jagunço raso a Chefe de jagunços, suposto pactário que fechou
com o diabo um trato: a morte do Hermógenes. A subida de Riobaldo tem caráter ambíguo
de queda pela ligação que teve com o lado trevoso do homem.
Nesse sentido, podemos recorrer à imagem de Lúcifer, o demo, o anjo rebelde e
caído que se fez rei dos infernos. A figura de Lúcifer sempre pode ser usada para descrever
essa queda invertida. Lúcifer é, em John Milton, o símbolo da queda moral” (BACHELARD,
2001, 93), segundo Bachelard, mas uma queda moral que transita, em todos os sentidos”,
indo da metáfora à realidade. A queda para o alto pode ser vista como uma ascensão
apoiada em culpa ou uma subida vertiginosa e sem paralelos na imaginação do sonhador,
subida essa que escapou ao controle do ser que sobe. Escapou do controle dele e o
sepultou em uma queda eterna, impregnada de culpa. Elevado como o rei dos infernos,
esse ser decaído despenca num céu com seus valores todos distorcidos e invertidos, e o
tamanho de seu abismo é proporcional à profundidade da abóbada celeste que se abre
sobre nossas cabeças. Maior do que na verdade é, esse ser percebe o tamanho de sua
queda quando sente o quanto subiu. Numa citação de Thomas de Quincey feita por Arvède
Barine, Bachelard reproduz:
“Parecia-me, cada noite não metaforicamente, mas ao da letra
–, descer em vórtices e abismos sem luz para além de qualquer
profundidade conhecida, sem esperança de poder jamais tornar a subir. E
eu não tinha, ao acordar, o sentimento de ter tornado a subir.”
(BACHELARD, 2001, p. 95).
Escreve ainda, que a queda
“é marcada, mais profundamente, por seu desespero, por seu caráter
substancial e duradouro. Alguma coisa permanece em nós que nos tira a
esperança de 'tornar a subir', que nos deixa para sempre a consciência de
ter caído. O ser 'afunda' em sua culpabilidade” (BACHELARD, 2001, p. 95).
O que pode significar que a subida psicologicamente invertida ou a própria subida
impregnada com o medo da queda e recheada de culpa marcam o corpo e a alma daquele
que voa mais com o peso da queda do que com a leveza da ascensão.
Na essência sofredora de nossa existência é que se deve encontrar a realidade da
queda imaginária, pois é na dor que somos mais autênticos e precisos, destituídos de
metáforas e desejosos de uma rápida solução para os problemas mais complexos. Essa é a
boca enorme do abismo na imaginação literária que, muitas vezes, canta o quão belos
somos quando sofremos, quando temos nossos voos e ascensões interrompidos pelas
aguilhadas da realidade e falta-nos o ar nos pulmões para continuarmos cantando, faltam-
nos as asas para continuarmos voando e sobra-nos a percepção de tudo isso para uma
queda vertiginosa.
O artista da palavra, fabricante de precipícios imaginários por excelência, tem como
seu maior dilema disseminar essa angústia na alma do leitor, antes de fazer girar o carrossel
de imagens palpáveis e objetivas, destruidoras de possibilidades que antes viajavam no ar
num voo livre de qualquer racionalização alada e que, depois, despencam no solo tangível
da realidade. Segundo Bachelard, ele primeiro tem que buscar “comover”, [para] depois
mostrar.” (BACHELARD, 2001, p. 96).
Como elemento natural de todo esse processo da imagem literária da queda,
encontramos a digressão como recurso filosófico e discursivo capaz de suprir a necessidade
que a imaginação literária algumas vezes tem de “comentar suas [próprias] imagens”. Esse
procedimento amplia as possibilidades contempladas na obra, amplificando sua força
expressiva e capacidade de diálogo com o leitor. Sua ação, entretanto, reduz a fabulação
imaginada ao mínimo de uma imagem, quase gravura sintética de todas as imagens ou
recorte maliciosamente intencional de uma figura textual. Em seus usos, não parece haver a
intenção de dar corpo ou consistência aos elementos digressivamente expostos, pois o que
geralmente se quer, antes, é que o leitor caia, distraidamente, nesse turbilhão impreciso.
Os jogos imagéticos deformados do elemento ar necessitam desses procedimentos
quase ritualísticos para que suas metáforas tenham o efeito que se quer proporcionar a elas.
O voo e a queda do ser, que podem ser representados pelo sonho e pelo desmaio,
respectivamente, tornam-se, com isso, os agenciadores desse universo lúdico de metáforas
oníricas, distantes do materialismo terrestre, embora dependentes da imaginação material.
A leveza (alívio) e o peso (culpa) são determinantes nesse processo do voo e da queda. O
ser aqui fica sujeito a um jogo barroco de espelhos que mostra antiteticamente a imagem e
seu oposto: voo / queda; o que moralmente pode significar uma deformação intencional do
ser com o intento de destituí-lo de todo o seu eu terrestre, em prol de favorecer uma
transmutação capaz de fazê-lo mais aéreo, deformável e um pouco mais distante das
formas definidas pelos traços e contornos. Segundo Bachelard, “é essa sensibilidade
aumentada pela diminuição do ser em nós que está submetida, como por uma indução
direta, às influências físicas da palavra.” (BACHELARD, 2001, p. 98). Essas influências,
muito vinculadas ao estrato sonoro, afirmam o caráter aéreo do puro penetrar no mundo das
palavras que foi tão metalingüisticamente cantado em verso e prosa pelos artistas da
imaginação literária. Sobre isso, Bachelard acrescenta que
“a palavra, se for consumida na evocação das imagens visuais, perde parte
de seu poder. Mas a palavra é insinuação e fusão de imagens; não é uma
troca de conceitos solidificados. É um fluido que vem comover nosso ser
fluídico, sopro que vem trabalhar em nós uma matéria aérea quando o
nosso ser 'atenuou' sua terra.” (BACHELARD, 2001, p. 98)
Tais conceitos sobre a palavra não poderiam escapar de nosso olhar neste estudo.
Ver a palavra como fluido capaz de comover um ser (o nosso) formado de fluidos,
trabalhando nossa formação aérea quando deixamos de lado a terra em nós é, em nosso
entendimento, enxergar a palavra como uma essência intangível, evanescente e fugidia.
Essa essência se sustenta no recipiente instável de nossa memória e que nisso se faz mais
inconstante, mutável, enfim, humana, capaz de criar e destruir mundos e possibilidades em
seus dois níveis de significação o denotativo e o conotativo usando apenas da sedução
de seu corpo sonoro. Daí a dificuldade de se abandonar a metáfora na análise dos
movimentos das palavras, movimentos que aqui chamamos de jogos da imaginação
literária, que foram em todas as épocas reinventados pelos poetas. Baseada nos sentidos,
principalmente no da visão e no da audição, essa nossa análise apresenta o lado barroco
cultista e paradoxalmente impressionista das ações/funções do elemento ar no texto
literário.
2.3.9.Nhorinhá e Ana Duzuza
Riobaldo narra, saindo de seu delírio, com a imagem aérea do bem-te-vi, a chegada
na Aroeirinha, lugar onde conhece Nhorinhá “mulher moça, vestida de vermelho (...) ela
quando ria tinha os todos dentes (...) bonita, só.” (ROSA, 1986, p.24). Essa personagem
representa, inicialmente, o casamento do fogo erótico, pela imagem de seus trajes
vermelhos e de sua função de prostituta, com o ar, se tomarmos como referência o relato de
Riobaldo sobre o primeiro contato dos dois: Eu nem tinha começado a conversar com
aquela moça, e a poeira forte que deu no ar ajuntou nós dois, num grosso rojo
avermelhado.” (ROSA, 1986, p.24), mas, como argumentamos neste estudo, um terceiro
elemento interfere nessas imagens, a terra. Isso verificamos na fala de Riobaldo se referindo
a moça: “Ah, a mangaba boa se colhe caída no chão, de baixo... Nhorinhá.” (ROSA,
1986, p.24), referências que nos levariam a crer no temperamento terreno que o narrador
propõe para essa personagem desde o princípio de sua apresentação, pois se nos
ativermos à imagem do ar “rojo avermelhado”, encontraremos a possibilidade de união entre
o ar e a terra roxa-avermelhada da região da Aroeirinha onde mora a meretriz.
Outra figura com quem Riobaldo trava conhecimento na Aroeirinha é com a mãe de
Nhorinhá, Ana Duzuza. Por ser “falada de ser filha de ciganos” (ROSA, 1986, p.24), essa
mulher representa, na nossa interpretação, a terra como o lugar do pouso temporário, mas
mais forte fica a metáfora elementar da terra relacionada a essa personagem se lembrarmos
de que a mangaba fruta associada à Nhorinhá vem da mangabeira, árvore típica do
cerrado mineiro.
2.3.10.Da ideia de atravessar o Liso
Vinda do arrancho do chefe do bando de jagunços, essa mulher, Ana Duzuza, disse a
Riobaldo “vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a
banda o liso do Suçuarão” (ROSA, 1986, p.24), em que o narrador, de imediato, não
acreditou.
“Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Suçuarão, é o mais
longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água não tem.
Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de
se dar volta, sempre. Um é que ali não avança, espia só o começo, só. Ver
o luar alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe
sozinho, na cama daqueles desertos. o tem excrementos. Não tem
pássaros.” (ROSA, 1986, p.25)
Riobaldo não via possibilidades de Medeiro Vaz atravessar o Liso. Em sua primeira
descrição do raso, ele nos revela imagens aéreas e terrestres, depois sutilmente as retira,
sugerindo uma amplificação do caráter de lugar vazio do Liso. Esse vazio abre a imagem
com o diabo no meio como um ar ruim de um lugar distante, ermo e deserto, portanto, sem
água. As metáforas aéreas do luar e do vento no Liso podem ser vistas como fragmentos de
um assombramento que perturba o imaginário popular local sobre o lugar. O ato de um não
avançar ao deparar-se com suas bordas e esbarrar ali, contemplando o céu noturno e
ouvindo/sentindo os ventos do Liso, pode representar nossas limitações humanas diante
das diversas possibilidades do destino.
2.3.11.O fogo e ar das origens e das figuras paternas
Uma página adiante Riobaldo se arrepende “de não ter pedido o resumo
9
à Ana
Duzuza” (ROSA, 1986, p.26), revelando, na sequência, um traço profundamente hídrico de
sua personalidade:
“Eu atravesso as coisas e no meio da travessia não vejo! estava era
entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe:
a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é
num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se
pensou.” (ROSA, 1986, p.26)
Essa imagem nos remete a metáfora líquida do ato de embarcar
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“lugares de
saída e de chegada” sendo que a travessia em si, por ser confusa, pode nos remeter à
imagem de uma navegação em águas turvas distantes da fixa realidade terrena e, por isso,
a pouca visão de tudo no meio da travessia. A segunda imagem, remete-nos ao caráter
movimentado do elemento água, que, no sertão, definiu seu rumo sempre descendo na
direção do mar através do São Francisco.
Os desentendimentos entre Riobaldo e Diadorim em razão do ciúme deste são
seguidos de uma revelação: Diadorim é filho de Joca Ramiro. Depois de esfriados os
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O destino.
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Podemos pensar aqui no porto do rio De-Janeiro, lugar do primeiro encontro de Riobaldo com
Diadorim (o Menino).
ânimos, seguem-se amostras de amizade fiel entre os dois jagunços e o retorno ao tema da
culpa e medo de pactário que assombrava Riobaldo. Nessa retomada, o ex-jagunço reforça
o alívio e a leveza aérea que a opinião de seu ouvinte lhe oferece quando este confirma a
sua não crença na existência do diabo. Depois reflete sobre a possibilidade de o pacto ser
apenas a confirmação de um trato anterior, talvez entre Deus e o Diabo e com o
conhecimento da alma sem que o indivíduo o saiba nesse plano da existência.
Essas recapitulações reflexivas do protagonista terminam com duas frases que nos
chamaram atenção por parecerem confirmar nossos argumentos anteriores. Apoiados em
mitos, muitos poetas se guiam pelas metáforas do elemento ar por acreditarem ser,
metaforicamente, o sopro do ar o responsável pelo movimento de rotação da Terra e por
tudo o que gira/acontece nela: “Os pobres ventos no burro da noite. Deixa o mundo dar seus
giros.” (ROSA, 1986, p.30); entendemos que elas refletem também a temática da passagem
do tempo medido pelo vento e da mudança pelo uso da palavra “giros” com o significado de
movimento constante e, portanto, modificador de opiniões e destinos e reforça, também, a
idéia de “redemoinho”. O desentendimento entre Riobaldo e Diadorim referido no início do
parágrafo anterior é gerado pelo ciúme deste e tem como origem a relação daquele com
Nhorinhá e sua mãe, a feiticeira Ana Duzuza. Esse desentendimento gera a revelação de
que Joca Ramiro era pai de Diadorim. Mas essa revelação parece só se dar pelo fato de que
Diadorim necessitou de argumentos para convencer Riobaldo a lutar pela morte do chefe
supremo do bando de jagunços, haja vista que o amigo criticava a conduta de todos em
relação ao nome de Joca Ramiro e a necessidade, quase religiosa, de se vingar o
assassinato dele.
Joca Ramiro evoca, desde esse momento, a metáfora de um personagem ígneo.
Dele parece emanar uma luz paterna e quase divina que atrai e domina a todos. Perto dele,
todos parecem crianças e jovens, e os outros chefes parecem orbitar seu sistema, sendo
que, a ele, cabe a função solar.
Na infância/juventude, o fogo pode ser visto como metáfora de seu próprio
descobrimento, que entendemos como o seu mítico descobrimento, representando, ora a
criança que respeita e segue o seu sistema, a sua disciplina, o seu brilho e o seu calor
diante de uma lareira num ambiente familiar, ora a que rouba, como um pequeno Prometeu,
os fósforos do pai para ir brincar nos fundos da casa. Nesse jogo de obediência, a primeira
criança parece ser Diadorim e a segunda Riobaldo – “Ser dono definitivo de mim, era o que
eu queria, queria.” (ROSA, 1986, p.28) – que não queria sujeitar-se, num primeiro momento,
aos valores e disciplina instituída pela figura de Joca Ramiro. Diadorim, disciplinado nos
valores do pai, transmite esses valores a Riobaldo e acaba convencendo o amigo, com a
ajuda não das palavras empregadas com muito tato “Tem discórdia não Riobaldo
amigo, se acalme.” (ROSA, 1986, p.30); mas também do contato físico “Tinha tornado a
pôr a mão na minha mão, no começo de falar” (ROSA, 1986, p.30) que fez Tatarana
mudar de idéia e querer matar e morrer por Joca Ramiro. O fogo da figura elevada do chefe
alia-se a uma metáfora aérea que parece ocorrer em função da presença de Diadorim:
“Coração isto é, estes pormenores todos. Foi um esclaro. O amor,
de si, é algum arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de todos
os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e
morria, se bem.” (ROSA, 1986, p.31).
Essa metáfora é seguida da evocação da imagem hídrica e também aérea da mãe
de Riobaldo. Esse assunto da orfandade materna de Diadorim e da paterna de Riobaldo,
aliás, será abordado nessa mesma perspectiva hídrica e aérea:
“–“...Pois a minha eu não conheci...” Diadorim prosseguiu no dizer. E
disse com crueza simples, igual quisesse falar: barra beiras
cabeceiras... (...) Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago
dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas.” (ROSA, 1986, p.31)
A primeira nos remete aos limites de um rio (barra – beiras – cabeceiras) e a
segunda, ao comportamento de aves migratórias cujas vidas dependem do encontro com
“rios e lagoas”, em seu itinerário.
Contudo, quando uma criança nasce, metaforicamente dizemos que sua mãe deu a
luz, o que nos permite pensar também numa conotação ígnea para o nascimento. O fogo
está em nós no nascimento, está na relação mãe/pai e filho e, nesse caminho, poderá
nos impelir a formular a interpretação de que esse fogo é o que nos vida, nos amor,
nos ilumina, aquece, alimenta e conforta. Esse primeiro fogo nos acompanha como um lume
que nos permite descobrir o mundo na escuridão. O seu caráter afetivo e puro nos faz
acreditar apenas em sua bondade e simplicidade. Só trocamos sua chama por outra quando
o que temos que descobrir exige que o descubramos sozinhos ou acompanhados de outra
forma de calor. O homem primitivo, quando descobriu o fogo, teve um relacionamento
semelhante com tal descoberta. A primeira vista, pensa-se numa relação sagrada em que o
fogo aparece como um objeto que vem do céu e representa a luz divina. No segundo olhar,
pensa-se numa relação profana em que o fogo é visto saindo do centro da terra como rocha
derretida ou é produzido na fricção de duas madeiras de espécies diferentes, ação que pode
ser vista por um olhar figurativamente erótico. O que nos permite atribuir tudo isso ao
elemento fogo são as metáforas. a linguagem conotativa da ficção literária pode dar
conta disso sem maiores problemas. Muitas dessas atribuições dadas ao fogo terão
fundamento na linguagem popular e na literária; outras, na filosofia; algumas, na psicanálise.
Em nossa análise sobre o elemento fogo pensamos numa conotação ígnea para o
nascimento e também para a maternidade, baseando-nos na expressão popular que retrata
o parto quando depois de parir se diz que a mãe “deu a luz”. Vimos nessa metáfora popular
e “clichê” que o fogo que ilumina está em nós no nascimento. Veremos agora que além
das metáforas ígneas, as aéreas também fazem parte do processo do nascimento na
observação da relação do ar com o movimento de aspiração. Essa aspiração, como primeira
respiração, é assustadora e traumática, pois “saltamos” do mundo líquido, escuro, quente e
seguro dentro do ventre materno para um mundo hostil que nos exige esforços o tempo todo
para que possamos nele sobreviver. Essas primeiras colocações servem para salientar que
o ar não é movimento externo, ao nosso redor, mas também movimento interior que põe a
máquina do corpo para funcionar. Isso faz da respiração um dos movimentos da máquina do
corpo; nele o combustível que move a máquina é o ar.
Uma das metáforas aéreas do nascimento é a que se origina da expressão “saltar
para dentro da vida” observada, por exemplo, em Morte e Vida Severina, de João Cabral de
Melo Neto, nos versos
“Saltou para dentro da vida
ao dar seu primeiro grito
(...)
– Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor.
(...)
– Foi por ele que a maré
fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau cheiro não voou.
– E a alfazema do sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviada do mar distante.
E a língua seca de esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal”
(MELO NETO, 1997, p. 173),
em que, enviado do mar distante pelo vento, o perfume do sargaço junto com o “vento terral”
vem dar firmeza ao chão lamacento que se pisava. O que queremos, com esses versos, é
apenas mostrar exemplos de metáforas aéreas no nascimento.
O verbo “saltar” pode, em alguns contextos, ser considerado um princípio de voo; a
sua intimidade com o ar é flagrante, pois é difícil pensar no salto, sem pensar no ar como
parte da trajetória daquele que salta. O grito, ação verbal psicologicamente apelativa, é,
antes de tudo, som que viaja no ar. O céu e o canto de louvor podem ser lidos como um
destino certo para um som que viaja no ar, um destino vertical de ar que se comporta e
movimenta como o próprio ar. No idealismo poético, esse ar tem de ser puro, por isso o mau
cheiro não pode voar. pode voar a asséptica alfazema desinfetante do sargaço para não
prejudicar o ar puro daquele que aspira o primeiro ar da vida. Esse primeiro ar tem que ser
seco para enxugar os vestígios do mundo líquido do ventre materno e solidificar o primeiro
contanto do ser com o mundo.
Essas metáforas podem exemplificar bem o que queremos dizer quando falamos do
movimento de aspirar (o ar) no nascimento como o primeiro contato individual nosso com
esse elemento. O nascimento também pode ser visto como um fenômeno aéreo pelas
metáforas e alegorias que os gregos e os romanos, com sua Lex Ciconaria (Lei da
Cegonha), inspiraram na imaginação popular desde a Antiguidade até os nossos dias com
os contos infantis do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805 1875), por
exemplo. A cegonha é também símbolo popular do nascimento e suas penas, suas asas,
seu voo e toda a sua condição de ave fazem dela também uma metáfora aérea da chegada
do “novo”. O porte vertical de ave pernalta é uma sugestão visual e prévia de voo que
podemos notar na figura da cegonha. Os gregos e romanos antigos, por saberem do instinto
maternal/paternal da cegonha tanto com seus filhotes quanto com seus pais idosos, usaram-
na como modelo e inspiração para a criação de uma lei que determinava que os pais
deveriam cuidar bem de seus filhos bebês, crianças e adolescentes da mesma forma que os
filhos deveriam cuidar dos pais idosos. A Lei da Cegonha deveria ser cumprida
corretamente, pois as punições eram severas com aqueles que eram negligentes.
Em Hans Christian Andersen, no conto “As Cegonhas”, está o resultado máximo da
influência que essa lei antiga exerceu sobre a imaginação popular. Nesse conto, além das
referências à função de transportadora de bebês (de vidas novas), podemos ver a
metafórica temática do voo e das asas e sua importância no crescimento. Na relação dessas
questões com os objetivos da personagem Diadorim, entendemos que a Lei da Cegonha se
estende para além da morte e adquire traços de vingança como forma extrema de honrar e
cuidar do nome do pai morto como quem quer pagar, com isso, a obrigação de não ter a
oportunidade de auxiliá-lo como se deve na velhice.
Outra figura paterna importante em Grande Sertão: Veredas nos parece ser a de
Medeiro Vaz. Sua figura elevada pode remeter a todos os elementos. Junto com Joca
Ramiro, ele representa uma quase divindade pelo brilho de sua imagem, a sustância de
suas ações e a força de seu passado de honra e comando. Medeiro Vaz sabia o valor do ar,
não gastava fôlego e não gostava de conversa atravessada nem cantos de glória. Estavam
falando todos juntos? Então Medeiro Vaz não estava lá.” (ROSA, 1986, p.33). Riobaldo
conta que Medeiro Vaz, quando moço, recebera grande fazenda. Mas vieram as guerras e
os desmandos de jagunços” (ROSA, 1986, p.33), provocando as piores desordens e tornou-
se impossível viver no sossego; desde em quando aquele imundo de loucura subiu as
serras e se espraiou nos gerais” (ROSA, 1986, p.33) ele mudou seus rumos. Esse mau voo
e esses maus ventos quando tomaram a terra necessitaram de uma figura oriunda da união
ora harmônica ora conflitante dos elementos, e essa figura é a desse ilustre chefe Medeiro
Vaz que “largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como
que quisesse voltar a seu nascimento” (ROSA, 1986, p.33); na nossa visão, buscou a
leveza do elemento ar e a rápida mutabilidade das coisas provocada pela ação do elemento
fogo, para promover as mudanças mais radicais em seu destino por suas mãos pôs fogo
na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisa espiou até o voejo das
cinzas” (ROSA, 1986, p.34); da casa da família do grande chefe sobrou um nada “lá hoje é
arvoredos” (ROSA, 1986, p.34), o que, a nosso ver, significa que, embora desfeita a
memória, a origem de Medeiro Vaz será lembrada como de fortes raízes na terra e de
elevada disciplina geradora de frutos. Medeiro Vaz propõe, dessa forma, uma morte de si
mesmo, mas, ao mesmo tempo, uma ressurreição, um renascimento das cinzas como uma
Fênix.
Segundo Bachelard, “Os valores dramáticos da raiz se condensam nesta única
contradição: a raiz é um morto vivo.” (BACHELARD, 1990, p.223) e, como um morto que
está vivo, Medeiro Vaz propôs para si mesmo uma anulação. Viver no normal, seguindo os
padrões de seu antigo cotidiano não era prudente. O melhor mesmo era criar um cotidiano
que fosse condizente com as dificuldades do meio. O ato simbólico de queimar a casa natal
como forma mais segura de se livrar dos bens para poder campear pelo mundo pareceria
uma maneira de abandonar a terra que o prende para poder lançar mão de toda a terra,
toda água, todo ar e todo fogo. Na nossa interpretação, Medeiro Vaz criou, com isso, o que
Bachelard chama de “a árvore invertida” (BACHELARD, 1990, p.225), que esconde a parte
boa e expõe a rústica com a mesma nobreza e imponência.
A casa natal sobre a terra, embora sólida, foi reduzida a cinzas e, em seu local,
nasceram árvores. Essa imagem nos faz pensar nas palavras de Bachelard quando diz que
o “verdadeiramente sólido sobre a terra tem, para uma imaginação dinâmica, uma forte raiz”
(BACHELARD, 1990, p.226), e isso, na nossa visão, indica que o alicerce de uma casa é
uma raiz, o que talvez possa explicar o fato de, no lugar da casa natal de Medeiro Vaz, ter
nascido um arvoredo. Esse arvoredo simbolizaria uma vida de terra e ar para o filho que se
tornou o grande pai de todos: “Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em
ginete, com cachos d'armas (...) e saiu por esse rumo em roda, para impor a justiça. (...)
Tenente nos gerais ele era. A gente era os medeiro-vazes” (ROSA, 1986, p.34), seus
filhos no fogo das armas, rodando no vórtice na busca de concertar o mundo.
2.3.12. A primeira travessia do Liso do Suçuarão
A primeira travessia do Liso nos apresentou uma notável quantidade de metáforas
aéreas. Uma dessas metáforas encontramos na figura do bando de araras. A narrativa de
Riobaldo é alada, recheada de imagens de voo e ventanias. No começo de quase tudo que
ele narra uma referência ao elemento ar e as preliminares do primeiro episódio do Liso
não nos pareceram diferentes: "Se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que
pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente"
(ROSA, 1986, p.34 e 35). A descrição do bando de araras, cortando o céu sobre o ar
quente, e das belezas da lagoa e do buritizal que a rodeia são, na verdade, uma mensagem
de paz e serenidade típicas de um locus amoenus. Tudo isso é totalmente paradoxal em
relação ao que se vai desenrolar com a travessia do Liso.
A água limpa e azulada da lagoa metaforizaria a necessidade de purificação e
alegria. Os buritis com suas grandes folhas verdes ao vento e os pássaros que fugiram com
os pulos e risos dos jagunços na lagoa complementam essa necessidade em que a água é
o elemento purificador, o ar é o elemento que imprime alívio e leveza e a terra, ao redor e
embaixo deles, aliada à imagem dos "restos de uma casa" (ROSA, 1986, p.35), o elemento
que remete ao primeiro grande feito decisivo de Medeiro Vaz. Foi a partir dos restos de sua
casa natal que Medeiro Vaz buscou a sua justiça e fez seu nome nos gerais. A tentativa de
atravessar o Liso será seu último feito e não lhe renderá os frutos e as bênçãos da vitória
que pertencerá a Riobaldo, o seu mais alto sucessor. Nenhum dos dois parecia saber disso.
Riobaldo, aliás, parecia estar confuso muitas outras metáforas aéreas emergirão de suas
dúvidas. O vento nas palmas verdes dos buritis evocava, para ele, os olhos de Diadorim.
Isso poderia indicar uma ambígua forma de sentir e pensar, pois ao mesmo tempo que esse
vento verde trazia serenidade, beleza e conforto, trazia morbidez, tristeza e medo. Esse jogo
de emoções contraditórias nos leva a crer que, com Diadorim e perto de um locus amoenus,
Riobaldo parecia se sentir como um pássaro no primeiro voo, decolando de um ninho
elevado no cimo de uma árvore muito alta.
Ao final desses dúbios bons momentos no locus amoenus, Riobaldo narra os
preparativos finais para a partida rumo ao Liso, iniciando o excerto com imagens aéreas -
"moal de aves e pássaros com revôo, e pios e cantos" (ROSA, 1986, p.36) - que muito se
assemelhavam a agitação dos jagunços atarefados. E, finalizando-o com imagens aéreas e
hídricas - "os pássaros todos voltavam do céu, que desciam para seus lugares, em ponto,
nas frescas beiras da lagoa" (ROSA, 1986, p.36) -, sendo que as primeiras podem
metaforicamente representar o retorno ao elemento terra na partida dos jagunços para o
Liso e a necessidade de água que o bando vai passar quando mergulharem naquele raso.
As metáforas do elemento ar, casadas a outros elementos nessas preliminares,
narradas por Riobaldo à travessia no Liso parecem reforçar nossa tese de que os elementos
estão na fala/voz do narrador e que pode ser através deles que ele nos revela a essência da
sua narrativa.
O Liso do Suçuarão ficou na memória de Riobaldo como um lugar silencioso e de
vida própria, que escondia, em si, a complexa maldade humana. Os elementos ali agem
como algozes e torturadores. A água ausente dá espaço à terra seca, dura, mole de
arenosa e quente. Essas qualidades identificam o caráter infernal desse deserto como uma
terra de fogo incandescente que castiga os homens que desejam domar aquele ambiente
hostil. O fogo castiga com o calor e a luz do sol que abrasa a terra e tortura a visão dos que
desviam os olhos do céu, acreditando ser o chão um refúgio da claridade. O ar quente e
seco do Liso pode ser interpretado como a falta de fôlego para se ir até o fim do lugar.
O cenário muda lentamente quando o bando de jagunços, liderado por Medeiro Vaz,
começa a penetrar nas bordas do Liso. O cerrado aos poucos vai se convertendo num
ambiente cheio de espinhos e de uma vegetação baixa – "Os urubus em vasto espaceavam"
(ROSA, 1986, p.37) que nos parece uma sugestão do movimento do vórtice que a
imagem do urubu evoca a do voo em espiral. O voo negro dos urubus também nos leva a
crer na expectativa de queda e de morte que gira em movimento espiralado em torno do
bando de jagunços. Esse voo espiralado pode ser um começo de queda/pouso, pois os
urubus estão tanto para o chão quanto para o ar livre nesse movimento. Com isso, essa
queda/pouso de asas negras se torna figuração de morte lenta e pesada. Essa morte lenta
pode estar também na mudança gradual da vegetação; na medida em que o bando vai
avançando marcha rumo ao Liso, ela faz suas presenças no ar claro como uma neblina
transparente e baixa de aspecto pestilento que mata aos poucos:
"Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato, o mundo se
envelhecendo, no descampante. Acabou o sapé brabo do chapadão. A
gente olhava para trás. Daí, o sol não deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz,
castigo." (ROSA, 1986, p.37)
Todas essas imagens negativas podem ser reunidas numa que parece resumir
todos os conflitos em Grande Sertão: Veredas: o diabo no meio do redemoinho. No meio
dessas imagens, o sol não produz luz, produz castigo. Seu fogo fere os olhos como se
quisesse punir aqueles que desejam pegar, com a visão, as adversidades do meio para
depois relatar a experiência. No céu "Um gavião-andorim: foi o fim de pássaro que a
gente divulgou." (ROSA, 1986, p.37), diz Riobaldo, pois nada parecia sobreviver nem no
espaço aéreo do Liso. Esse último vôo é muito representativo, pois reflete a imagem quase
sempre leve e de alívio que o elemento ar imprime na personagem Riobaldo. Essa leveza e
sensação de alívio parece abandoná-lo nesse momento do voo desse último pássaro.
Completo no processo de mudança, o Liso mostra sua face ao bando: "Era uma terra
diferente, louca, e lagoa de areia" (ROSA, 1986, p.37); e era uma face arenosa, mutável,
que unia o elemento terra ao fogo, para torturar os sentidos dos jagunços: "O sol vertia no
chão, com sal, esfaiscava.(...) As-exalastrava a distância, adiante, um amarelo vapor. E o
fogo começou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente." (ROSA, 1986, p.37). Essa
união também ocorre com fogo e o ar para abafar, sufocar o fôlego do bando que avançava
cada vez mais para o centro do Liso. Todos os elementos ali agem sob a influência de uma
interna maldade que habita o lugar.
Para Riobaldo, essa maldade é mais que humana, é também diabólica. E,
influenciado por essa idéia, ele relembra uma conversa entre os jagunços durante a
travessia no Liso. O tema dessa conversa era o pacto que o Hermógenes teria feito com o
diabo. O resultado disso é uma reflexão moral do narrador que nos remete à imagem do
diabo como um agente moralizador e do inferno como uma câmara de correção por meio de
tortura onde "o prazer trivial de cada um é judiar dos outros" (ROSA, 1986, p.38) e onde o ar
também tortura, pois "até respirar custa dor" (ROSA, 1986, p.38). O elemento que mais se
associa ao inferno, de acordo com a imaginação popular, é o fogo. Na metafísica das
superstições e do misticismo, o fogo é associado à figura de Deus como o elemento que
aquece e ilumina e ao Diabo como fogo que queima e tortura. Essa pode ser considerada a
essência da duplicidade metafísica do fogo.
Observando isso, podemos verificar uma vasta quantidade de metáforas que tentam,
mas de forma subjetiva, explicar o ambíguo fogo divino/diabólico do misticismo. Nas alturas,
ele serve a Deus, vem do Céu, do sol, das estrelas. Está em tudo desde o átomo até a Via-
Láctea. Ele pode ser a desconhecida verdade de Deus e do mundo espiritual e pode ser
visto também nos planos e nas ações nobres dos homens bons, dos homens do alto, de
altos pensamentos. Nos mundos inferiores, ele serve ao demônio e metaforiza, a nosso ver,
todo e qualquer tipo de tortura física e moral. Deus é o juiz que dá a sentença. A intensidade
do fogo estará de acordo com essa sentença. Fogo que ilumina no caso de absolvição ou
fogo que queima no caso de condenação. O diabo é o carrasco que executa as sentenças
nos casos de condenação.
A subjetividade do fogo divino estaria nas várias referências bíblicas ao fogo de Deus
no Gênesis (I, v. 3): “E disse Deus: ‘Haja luz’. E houve luz”; bem como no (XIX, v. 24) do
mesmo livro: “Então o Senhor fez chover enxofre e fogo (...) sobre Sodoma e Gomorra”.
Pode-se dizer que a tradição religiosa quase sempre influencia a imaginação dos poetas e a
bíblia, com suas ricas imagens e mensagens, para muitos é obra de referência e não foi
diferente para Guimarães Rosa. As ações de Deus quase sempre aparecem relacionadas
com a luz e o fogo; as do Diabo, com as trevas e o fogo. O Diabo pode ser visto como a
contradição. "Anjo da Luz", Lúcifer se fez o "Anjo Caído" (significado do nome Satanás) e
vive nas trevas, cercado pelo fogo do inferno e pelo gelo do Cocito. Na imaginação do poeta
Dante Alighieri, por exemplo, que divide o Inferno em nove rculos, com Satã morando no
mais fundo deles, o nono, fogo somente nos oito primeiros. No nono círculo um
grande bloco de gelo ou lago de gelo chamado Cocito. O fundo do Inferno, a morada de
Lúcifer, é gelado e não arde em chamas porque as imensas asas de morcego do Diabo
“Continuamente agitadas,” produzem os três ventos gélidos que mantém o Cocito
enregelado” (DANTE, 2004, p. 121). O fogo ali é o gelo do castigo/vingança contra os
traidores, sendo o próprio Lúcifer o maior carrasco e Judas o que mais padece. Mas, para
Riobaldo, os traidores só parecem padecer no inferno, pois aqui na terra eles são os
agenciadores da dor e do sofrimento.
“Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e
assaz me contaram; e outros - as ruindades de regra que executavam em
tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os
olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças
pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio
vivas, na beira de estragos de sangues... Esses não vieram do inferno?
Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por
empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que
está reinando por debaixo.” (ROSA, 1986, p.38)
As imagens do acampo do Hermógenes nunca abandonaram a imaginação do
narrador. Para ele, o Liso e o acampo da Macaúba pareciam ser verdadeiras maquetes do
inferno. O Liso, com sua terra solta, era uma quase constante areia sem firmeza que depois
se convertia num "duro chão rosado ou cinzento, gretoso e escabro" (ROSA, 1986, p.38),
que confundia os cavalos e os jagunços. As mudanças no chão do Liso inspiraram um
desejo de transformação das coisas nos sonhos de Riobaldo, e na primeira noite de sono
dormido no acampamento, feito no meio do Liso, ele sonhou uma mudança que nos chama
atenção por suas metáforas sutis: "Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: Diadorim
passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele - os gostares..."
(ROSA, 1986, p.39).
O arco-íris é o resultado de um ar úmido de chuva e não tinha chuva nem umidade
no Liso. O jogo cromático de sua aparência parece provocar a alegria e ali no Liso tudo era
a tristeza. Riobaldo já sabia quem era Diadorim em seu gostar, mas como nem sempre pode
se saber com certeza o sexo do pássaro enquanto ele estiver voando, ele ficou sem saber
do resto. O arco-íris evoca, na nossa visão, uma saudável e alegre imagem aérea e o
desejo de Riobaldo de ver Diadorim passando por baixo dele evocaria o mito popular de que
atravessar por baixo do arco-íris leva a mudança de sexo. Essa fantasia do narrador
refletiria o seu temperamento e sua crença em mudanças radicais que seriam, direta ou
indiretamente, regidas pelo fogo. Além do ar e da água, o fogo integra e interfere e é
essencial para a imagem do arco-íris que, sem a luz do sol, não existiria. Esses três
elementos juntos entram no sonho de Riobaldo para confortá-lo no inferno do Liso,
trazendo-lhe esperança em meio ao sofrimento e às más lembranças.
Na manhã seguinte, Riobaldo concluiu, depois de não ouvir canto de pássaro
nenhum, que "o Liso do Suçuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade - feito
pessoa!" (ROSA, 1986, p.40). Na ânsia por água, Riobaldo sente saudade de Otacília na
"Serra dos Gerais - Buritis Altos, cabeceira de vereda - na Fazenda Santa Catarina" (ROSA,
1986, p.40), pois ele provara água pura e remara nestes versos aéreos e molhados -
"Buriti, minha palmeira, / na vereda de lá: / casinha da banda esquerda, / olhos de onda
do mar..." (ROSA, 1986, p.40) – que, no fim, acabam referindo-se não aos olhos da moça da
Santa Catarina, mas aos de Diadorim. Com essa desordem de pensamento, calculamos que
Riobaldo vacilava incomodado com a luz forte produzida pelo contato dos raios de sol com a
terra salina do Liso que tudo embaçava e também com o calor abrasivo e com a falta de
água. Regido pelos elementos no falar e no existir, ele não tinha rumo ali, somente o de
si mesmo e de seu cavalo. Ele estava perdido junto aos do bando sem o bom
funcionamento das coisas que, como ele, existem e agem, regidas também pelos quatro
elementos. "Eu via, queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem movimento, o
chão fresco remexido pela fossura duma anta, o cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo
feito duma arara." (ROSA, 1986, p.41) Acreditamos que essa bela passagem ilustra muito
bem o que queremos expor. Nela, Riobaldo expressa seu desejo de ver um voo parado de
pássaro. Isso reflete o desejo que ele tinha, naquela ocasião, de segurar, com os olhos, a
imagem de um pássaro voando como se esse voo fosse sem movimento. O ex-jagunço
conta que queria a imagem fixa do voo e a movente da terra com a imagem do trabalho
cotidiano da anta. Ele queria ver o resultado desse trabalho de mover o fixo junto ao de se
fixar o móvel. Queria ver também a ordem do móvel se movendo como se deve na agitação
nos cimos das árvores, na alegria das metáforas do ar e nas cores ígneas do voo de uma
arara. Esse pássaro aqui pode ser visto como uma presença simbólica da Fênix que nasce,
morre e renasce do fogo. A união de todas essas metáforas, imagens e anseios que
emanam da fala de Riobaldo corre paralela à sua maior falta: a de água. O elemento ar
ajuda a reforçar ainda mais essa sugestão.
"Eu ambicionava o suíxo manso dum córrego nas lajes - o bom sumiço dum
riacho mato a fundo. E adverti memória dos derradeiros pássaros do
Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam arejo. Gritavam contra a gente,
cada um asia sua sombra num palmo vivo d'água. O melhor de tudo é a
água." (ROSA, 1986, p.41)
O elemento ar surge das imagens dos pássaros habitantes da lagoa de águas azuis
do Bambual do Boi. A união desse elemento com a água pode representar uma extrema
alegria, de acordo com o que notamos em nosso estudo sobre o caráter do narrador no que
se refere a sua reverência aos dois. No Liso, essas faltas, esses desamparos amplificados
pela força negativa do lugar quase levaram Riobaldo a desistir, de súbito, do jaguncismo.
Foi quando Diadorim perguntou sobre a volta, e Medeiro Vaz, derrotado, deu ordem de
retorno. O Liso devorou-lhes as vontades e derrubou o plano do ataque surpresa na fazenda
do Hermógenes.
Com fome, os homens mataram a tiros um macaco, mas quando o estavam
devorando descobriram que o tal primata era um "homem humano, morador, um chamado
José dos Alves" (ROSA, 1986, p.43) e que a "mãe dele veio de aviso, chorando" (ROSA,
1986, p.43), para explicar que ele era doente mental e estava nu por não ter roupas.
Desesperados, os jagunços comeram uma terra especial que um deles, o Jacaré, encontrou
naqueles ermos. O resultado de todas essas adversidades foi que o bando inteiro adoeceu.
A melhor parte da travessia foi o retorno e o encontro com a Lagoa Suçuarana onde os
jagunços pescaram. Nesse trecho de sua narrativa, Riobaldo valoriza os elementos água e
ar junto a uma descrição das veredas e cachoeiras daquele sertão, bem como a influência
dos pássaros na definição da paisagem:
“E seguimos o corgo que tira da Lagoa Suçuarana, e que recebe o
do Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros esse
tem cachoeiras que cantam, e é d’água tão tinto que papagaio voa por cima
e gritam, sem acordo: É verde! É azul! É verde! É verde!... E longe pedra
velha remeleja, vi. Santas águas, de vizinhas.” (ROSA, 1986, p.44)
De volta aos lugares com abundância de água reconstituíram-se, novamente, na
narrativa de Riobaldo, as imagens alegres tanto desse elemento quanto do elemento ar. Foi
com essas imagens que o episódio da primeira travessia no Liso do Suçuarão terminou.
2.3.13.Tiroteios: fogo e mudanças
Mais adiante Medeiro Vaz manda o Santos-Reis para se travar recado de
combinação com os bandos de Candelário e Titão Passos, mas o mensageiro morre no
caminho, segundo o testemunho de alguns tropeiros que se encontraram com o bando.
Nisso, Riobaldo e Sesfredo saem como mensageiros por sugestão do próprio Riobaldo e a
mando de Medeiro Vaz. No caminho encontram João Goanhá que lhes relata as piores
notícias. Dentre elas, a da morte de Candelário “em tiroteiro de combate” (ROSA, 1986,
p.53). Daí para diante, o fogo dos combates dos jagunços com os soldados se torna
constante:
“Mal a gente se tocou, para a Cachoeira do Salto, e esbarramos com tropa
de soldados tenente Plínio. Foi fogo. Fugimos. Fogo no Jacaré Grande
tenente Rosalvo. Fogo no Jatobá Torto Sargento Leandro. Volteamos.”
(ROSA, 1986, p.53)
O fogo constante desses combates pode simbolizar as mudanças propostas para o
sertão. O fogo muda tudo muito violentamente e muitas vezes na velocidade de um tiro de
arma. Ao contrário da sutileza do fogo resfriado das armas brancas, o fogo das armas de
fogo é explosivo. Esse caráter explosivo sugere mudanças severas e a sanha dos soldados
do governo por combate reflete muito bem essa necessidade de mudança.
O governo queria acabar com o costume antigo do jaguncismo para levar paz, mais
recurso e, quem sabe, progresso para o sertão. O fogo desses sucessivos tiroteios agiu
como uma verdadeira queimada provocada pelo homem no cerrado seco. As ações
violentas desses combates relatados por Riobaldo em Grande Sertão: Veredas estão
vinculadas à irritabilidade desse elemento. A inquietude do fogo no meio da quietude do
sertão faz desse elemento uma espécie de complemento apimentado no tempero do
cotidiano dos sertanejos e dos marasmos dos ermos. Como já definimos no primeiro
capítulo deste trabalho, as armas podem representar o lado impessoal do fogo, pois matam
o inimigo muitas vezes sem encará-lo e funcionam como um símbolo de poder, pois
aumentam a autoconfiança e a coragem dos homens, amplificando o perigo, ao incitar a
violência e os atos de bravura pela sensação de poder e força que elas oferecem a quem as
porta. O fogo bélico é estimulado pelo fogo da paixão gerado muitas vezes pela divergência
de idéias, e essa é a expressão de ordem política que consideramos uma das mais
relevantes nos conflitos entre os homens no Grande Sertão: Veredas, pois, como disse
Riobaldo, Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um
vê e entende as coisas dum seu modo.” (ROSA, 1986, p.9). O que, para nós, significa que o
fogo ilumina a realidade de forma e intensidade diferentes para cada um dos homens na
narrativa de Riobaldo. Os justos lançam o fogo divino, os injustos as chamas do inferno é
Deus e o Diabo no meio da travessia.
A passagem do tempo e seus efeitos tais como a mudança e a brevidade se alinham
e caminham juntos em toda essa travessia. Medeiro Vaz, por sugestão de Diadorim, quis o
Liso do Suçuarão e um ataque surpresa na fazenda do Hermógenes, mas o destino dispôs o
contrário. Concluir esse plano faria de qualquer jagunço-chefe um grande chefe-jagunço, e o
Liso ficou marcado na memória de Riobaldo a ferro e fogo como um marcador de gado e, ao
mesmo tempo, leve como a doce ilusão do destino cantada na cantiga da baiana que, a
nosso ver, parece uma sátira picante para a travessia não concluída.
Olererê, baiana...
eu ia e não vou mais;
eu faço
que vou
lá dentro, oh baiana!
e volto do meio pra trás... – ? (ROSA, 1986, p.54)
Os medeiro-vazes não desfecharam a travessia. Foram até o meio do Liso e dali
voltaram para trás tão vazios quanto o raso. Riobaldo soube então que vencer a terra
mutante, o fogo e o ar quente do Liso poderia ser o mesmo que vencer o Hermógenes. Ali,
ele pode ter descoberto que, para alcançar essa glória, seria preciso fazer como fez Medeiro
Vaz: deixar a memória de homem raso para trás e ir adiante para o mais profundo e mais
alto se ajagunçar, atravessar seus medos e construir no liso da memória uma nova e sua
história.
2.4: Os Bebelo Vaz-Ramiro
2.4.1.A matéria
A terra traga os homens, os devora de todas as maneiras, seja no trabalho a
que ela os submete ou no desejo de possuí-la, seja no resultado final de toda uma
vida de trabalhos. Unida à água, a terra se faz lamaçal, brejo e pântano, um lugar
onde o sertão engole os homens. Unida ao fogo, a terra nos impele ao desejo de
conhecer a sua matéria vertente, dominar a sua geografia e conhecer suas raízes.
A narrativa de Riobaldo pode ser vista também como uma reflexão sobre os
rumos tomados pelo narrador desde a sua fase de jagunço à de fazendeiro do norte
de Minas, ou seja, uma reflexão sobre sertão que ele conheceu na juventude e
conhece ainda mais na velhice.
O episódio em que Riobaldo, como mensageiro de Medeiro Vaz, passa uns
tempos sobre o comando de João Goanhá, contém um excerto curioso que pode
simbolizar a metáfora de um sertão/terra que engole os homens.
“Os campos-gerais ali também tem. Tombadores. Arre os tremedais;
viu algum? O chão deles consiste duro enxuto, normal que engana; quem
não sabe o resto, vem, pisa, vai avançando, tropa com cavalos, cavalama.
Seja sem espera, quando estão meio no meio, aquilo sucrepa: pega a se
abalar, ronca, treme escapulindo, feito gema de ovo na frigideira. Ei!
Porque, debaixo da crosta seca rebole ocultado um semifundo, de brejão
engolidor...” (ROSA, 1986, p.54)
O sertão seria assim como esse pântano: quem não o sabe, vem, pisa, vai
avançando e depois se afunda, devorado por ele. A terra unida à água nesse trecho
serviu como arma jagunça contra os soldados, homens formados na cidade e que às
brutas queriam dar nova configuração ao sertão. Para eles, a solidez da terra foi
relativa. Isso, na nossa interpretação, representa a inexperiência do governo quando
resolveu por os pés no sertão que durante muito tempo ficou abandonado
socialmente e isolado culturalmente dos interesses da metrópole. A cavalaria dos
praças não se atolou, ela foi devorada pelo pântano como uma estrutura frágil
demais para aquela adversa realidade.
O bando de jagunços se viu livre para campear, mas essa liberdade era
ilusória. Segundo Riobaldo, “O ar todo do campo cheirava a pólvora e a soldados”
(ROSA, 1986, p.56), o fogo castigava, perseguia esses sertanejos como persegue
capim seco no inverno. A tudo o fogo queria mudar, corrigir, moralizar, e as
necessidades desse elemento são as mais imediatas e brutais. Jagunço não tinha
liberdade nem sossego, mas vivia “vida assoprada, vivida por cima” (ROSA, 1986,
p.58), sem reparar a pobreza dos caboclos e a própria pobreza. Eram também filhos
do elemento fogo na sua desatinada justiça, na sua endoidecida raiva/revolta e na
sua bruta ignorância, mas cavalgavam nas idéias do elemento ar, voando alto sobre
o real sentido dos acontecimentos na superficialidade dos fatos da vida com um
onírico olhar sobre a realidade. Por isso, podemos dizer que eles são feitos também
de paixão (fogo) e sonho (ar).
As imagens poéticas que se seguem na narrativa de Riobaldo ilustram
inúmeras metáforas elementares da água com o rio, do ar com a respiração do
cavalo, da água novamente com a presença do rio Urucuia, da terra com o
chapadão, do ar novamente com os ventos de tempestade e, mais uma vez, da
água dessas chuvas e das três lagoas, sendo uma delas de quatro cores e de água
venenosa. Essas metáforas começam e terminam na água.
“Demos no Rio, passamos. (...) Cavalo que ama o dono, até respira
do mesmo jeito. (...) Meu rio de amor é o Urucuia. O chapadão – onde tanto
boi berra. (...) Ar que dá acoite de movimento, o tempo-das-águas de
chegada, trovoada, trovoando. (...) por entre o da-Garapa e o da-Jibóia, ali
tem três lagoas numa, com quatro cores: se diz que a água é venenosa.”
(ROSA, 1986, p.59).
Essa lagoa de quatro cores e de água venenosa nos chamou atenção para a
própria questão dos quatro elementos que sua imagem pode evocar. Essas quatro
cores podem sugerir as cores dos quatro elementos, sendo que as frias e claras
podem simbolizar a água, as impuras e escuras a terra, as cores claras e quentes o
ar e as cores quentes o fogo. A mistura cromática dessa água impura metaforiza sua
própria qualidade: é venenosa. Além disso, ela evoca outra imagem, a da água
envenenada por “tortas raças de pedras” (ROSA, 1986, p.4) em que “o diabo dentro
delas dorme” (ROSA, 1986, p.4) analisadas no primeiro capítulo desta dissertação
como um exemplo da coisa dentro da outra coisa, bem apontada por Walnice
Nogueira Galvão em seu texto “O certo no incerto: o pactário”. Essa água venenosa,
aliás, pode ser aproximada de outra imagem mencionada anteriormente, a dos
brejos devoradores.
Riobaldo, ainda mergulhado nas imagens metafóricas da água, relembra as
veredas, córregos e rios de nomes iguais em que ele já molhou a mão.
“E tanta explicação dou, porque muito ribeirão e vereda, nos
contornados por aí, redobra nome. Quando um ainda não aprendeu se
atrapalha, faz raiva. Preto, molhei mão nuns dez. Verde, uns dez. Do
Pacari, uns cinco. Da Ponte, muitos. Do Boi, ou da Vaca, também. E uns
sete por nome de Formoso. São Pedro, Tamboril, Santa Catarina, uma
porção. O Sertão é do tamanho do mundo. (...) Rio é o São Francisco, o
Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão.” (ROSA, 1986,
p.60)
No final dessa passagem, ele ainda evoca o tema da medida do sertão que
abordamos no primeiro capítulo desta dissertação. Isso representaria o fato de que
as veredas, os córregos, os rios e o rio São Francisco, em especial, podem figurar
metaforicamente como unidades de medida física do grande sertão. Além desses,
temos as superstições que significariam a unidade de medida da metafísica do
Grande Sertão.
Dentre essas superstições a que Riobaldo se refere, na sequência, um
fenômeno fantástico, mas que tem explicação científica, embora seja raro. No
Grande Sertão: Veredas, esse fenômeno pode figurar como um interessante
casamento da água com a terra e do ar com o fogo, com uma ênfase para este
último elemento. Os mitos e o folclore popular, desde a Idade Média, sempre
cuidaram em imprimir ao fogo um caráter sobrenatural, mesmo quando o fenômeno
poderia ser cientificamente explicado. Um exemplo disso está nas superstições que
estão envolvidas com esse fenômeno referido e que é denominado fogo-fátuo ou
“fogo-fá” (ROSA, 1986, p.60) conforme a fala de Riobaldo.
A explicação científica para o fogo-fátuo é que todo corpo orgânico em
decomposição emana o gás metano (CH
4
), que, em concentrações de aproximadamente
25% em mistura com o ar, pode inflamar-se espontaneamente” (Fonte: www.infa.com.br).
O fogo-fátuo envolve o gás metano de origem animal e os gases do
pântano envolvem o gás metano de origem vegetal. No local onde existe a
emanação do metano (muito comum nos cemitérios) quando não está
ventando, o gás começa a se concentrar. Se o tempo estiver relativamente
quente (noites de verão), de repente ocorre a combustão espontânea. Se
houver uma pessoa relativamente perto, ela verá durante um período de
tempo muito curto uma chama azulada de 2 a 3 metros de altura, que emite
luz e calor, e ouvirá o barulho característico de uma pequena explosão
abafada. Se a pessoa estiver no meio dos gases, certamente vai sofrer
queimaduras na hora da combustão. O fenômeno ocorre de dia e de noite,
mas por emitir uma luz de pequena intensidade, só é visível à noite. (...)
registros de muitos incêndios em matas que tiveram início em gases do
pântano. (Fonte: www.infa.com.br)
A imaginação popular atribuiu muita coisa ao fogo-fátuo: uma delas é a de
ser ele uma aparição fantasmagórica. Mas isso pode ser explicado pelo fato de que
algumas pessoas que deparam com o fenômeno tendem a correr assustadas, sem
saber que o deslocamento de ar faz que o fogo-fátuo se mova na direção delas. Por
isso muita gente acredita tratar-se de um fenômeno sobrenatural de espíritos e
fantasmas. No folclore dos indígenas brasileiros, o fogo-fátuo é chamado de Boitatá
(cobra-de-fogo) que corre atrás dos que tentam incendiar o campo. O fogo-fátuo
também é chamado de fogo-corredor, e na narrativa de Riobaldo, está associado à
imagem de outro brejo devorador, esse num tal Riacho Ciz.
“(...) se afundou uma boiada quase inteira, que apodreceu; em
noite, depois, deu para se ver, deitado a fora, se deslambendo em vento, do
cafofo, e perseguindo tudo, um milhão de lavareda azul, de jãdelãfo, fogo-
fá. Gente que não sabia, avistaram, e endoideceram de correr fuga. Pois
essa estória foi espalhada por toda a parte, viajou mais, se duvidar, do que
eu ou o senhor, falavam que era sinal de castigo, que o mundo ia se acabar
naquele ponto, causa de, em épocas, terem castrado um padre, ali perto
umas vinte léguas, por via do padre não ter consentido de casar um filho
com sua própria mãe. A que, até, cantigas rimaram: do Fogo-Azul-do-Fim-
do-Mundo. Hê, hê?...” (ROSA, 1986, p.60, 61)
Esse Riacho Ciz representa o elemento água. O brejo dele figura como a
união de suas águas com a terra. Essa terra faminta parece ter, nas águas do
riacho, a sua baba de fome de seres vivos ou mortos e que a ela também cabe a
função de devoradora de cadáveres. Dessa deglutição, têm-se os gases do que
conotativamente podemos chamar de digestão do brejo. O contato deles com o
elemento ar gera combustão, e o ar se faz chama azulada a que se chama
popularmente de fogo-fátuo e que para o povo da região, Riobaldo diz ser sinal de
castigo por dois crimes: a castração de um padre e o desejo edipiano de um filho de
se casar com a própria mãe.
Nessa narrativa, o elemento fogo se destaca como um mensageiro do fim do
mundo e persegue os supersticiosos destinatários de suas mensagens correndo no
vento como o deus Hermes / Mercúrio da mitologia greco-romana. O seu tom
azulado evoca o céu claro e pode simbolizar sua origem no elemento ar. O fato de
ele brotar do brejo uma falsa idéia de quietude, mas, suspenso no ar para mais
de um metro, ele corre/voa no deslocado ar/vácuo de quem foge dele abruptamente.
Na natureza, o elemento fogo pode ser representado empiricamente pelo sol que
ilumina, lançando sua luz na terra e dando vida e morte a tudo o que dele depende. Esse
fogo é visto como o que aquece e conforta e, inevitavelmente, nos sugere a presença e
interferência divina por provir do céu e, ao mesmo tempo, é o fogo brutal que destrói,
sugerindo a presença e interferência diabólicas por provir do centro da terra. A sua ligação
com a imagem romântica do primeiro contato do homem primitivo com o fogo é muito
estreita; por isso o seu caráter de algo que está constantemente sendo descoberto tem em
si validade na tradição e no devaneio artístico. Suas constantes transformações amplificam
esse traço de eterna novidade. Agindo, ora em favor ora em desfavor do homem, esse fogo
não ilumina, aquece e a vida às plantas, mas também cega, queima, seca e traz a
morte dos desertos. Se vier do céu, é duplo: de acordo com a tradição religiosa ora conforta,
ora castiga como a mão de Deus. Vindo do centro da terra, vem contaminado com os gases
e calores abrasivos dos vulcões que podem representar metaforicamente a fúria traiçoeira
dos elementos de baixo. Aliado, assim, à terra, suas ações são brutais e traiçoeiras a ponto
de nos devorar em chamas ou lamas frias ou “lamas incandescentes” – suas lavas.
O fogo pode gerar luz, e essa luz pode ser lida filosófica e metaforicamente como um
indicativo, um orientador no caminho para o saber, o conhecimento. O contrário disso é o
engano das sombras no fundo da Caverna de Platão ou a treva absoluta ou, ainda, a
atrevida ignorância. Mais forte fica a luz gerada por esse fogo, se mais intenso é o desejo
daquele que é sem-luz em alcançá-la e daquele que a tem, parcialmente, em transmiti-la.
Aquele que chega a essa luz fica sabendo e saber gera também um sofrimento, uma
angústia, uma ansiedade, uma preocupação que aqueles que são sem-luz ainda não têm e
desconhecem.
As metáforas da luz do fogo, muitas vezes, evocam o caminho para o saber; outras
tantas vezes evocam o próprio saber, e isso nos permite associá-las à paixão pelo
conhecimento, ao desejo de ascensão intelectual. um fogo iluminando o caminho e o fim
do caminho daquele que quer saber, mas também um fogo/paixão dentro daquele que
quer saber. Estamos, com isso, refletindo sobre o fogo na infância/juventude. O desejo de
saber, aprender, conhecer, constrói o conceito subjetivo de eterna juventude para aquele
que sempre deseja ascender intelectualmente.
Sobre isso, comentamos o que Bachelard escreve a respeito do fogo quando o autor
toma como referência a personagem Prometeu da tragédia Prometeu Acorrentado, de
Ésquilo: “A criança quer fazer como seu pai, longe de seu pai, e, qual um pequeno
Prometeu, rouba fósforos” (BACHELARD, 1994, p.17) para ser, tanto quanto os pais e mais
que os próprios pais, da mesma forma que o aprendiz quer ser tanto quanto o seu mestre e
mais que o seu mestre. A esse comportamento Bachelard dará o nome de Complexo de
Prometeu” que são
“todas as tendências que nos impelem a saber (...) manipular o objeto, (...)
aperfeiçoar nosso conhecimento objetivo (...) e esperar situar-nos mais
claramente no nível intelectual que admiramos em nossos pais e em nossos
mestres” (BACHELARD, 1994, p.18-19).
que o jogo é muito perigoso e as punições são severas e impiedosas, pois nem
sempre são os pais quem as administram contra os filhos, mas a própria realidade objetiva
do mundo que a rege com mão impassível e muitas vezes brutal. A essa realidade
pertencem às leis dos homens, os costumes, as crenças e os valores humanos. Essas leis
são as escritas e as não escritas, baseadas somente em costumes locais, e tradições e
essas crenças são os valores morais religiosos muito significativos para a cultura cristã, e
que regem, de alguma forma, os valores humanos que criam os costumes, as leis escritas e
não escritas. Esse círculo é a essência da punição contra aqueles que desejaram ser mais
que eles mesmos e seus pais e mestres.
2.4.2.Zé Bebelo
Todas essas nossas reflexões sobre o fogo nos remetem a uma importante figura no
Grande Sertão: Veredas e a sua significativa relação com o protagonista Riobaldo. Trata-se
da personagem Bebelo cuja personalidade é uma das mais marcantes no romance.
Regido principalmente pelos elementos fogo e ar, Bebelo era agitado e agitador,
inteligente, corajoso, honrado, altaneiro e a tudo propunha mudança e melhoria, queria
concertar o mundo na força superior da lei nem que fosse à bala. Zé Bebelo é o fogo da bala
de arma nas idéias e no proceder, e Riobaldo assim o caracteriza:
“Zé Bebelo ah. Se o senhor não conheceu esse homem, deixou
de certificar que qualidade de cabeça de gente a natureza dá, raro de vez
em quando. Aquele queria saber tudo, dispor de tudo, poder tudo, tudo
alterar. Não esbarrava quieto. Seguro nasceu assim, zureta, arvoado,
criatura de confusão. Trepava de ser o mais honesto de todos, ou o mais
danado, no tremeluz, conforme as quantas. Soava no que falava, artes que
falava diferente na autoridade, mas com uma autoridade muito veloz.”
(ROSA, 1986, p.62)
Essa caracterização seria uma das mais ígneas do Grande Sertão: Veredas. O fogo
tudo queima, tudo altera, não se aquieta e apresenta-se quase sempre como elemento de
confusão, agitação e excitação. Bebelo era assim, um desesperado por realizações,
conclusões, feitos de glória e alcance de objetivo. Sua gana de querer saber de tudo o
qualifica como portador do fogo da vontade de conhecimento. Seu poder de decisão no
matar e viver reflete, na nossa interpretação, o fogo de sua justiça e de seu espírito
beligerante. Riobaldo admirava a inteligência e valentia de Zé Bebelo e sua intuição:
“Zé Bebelo era inteligente e valente. Um homem consegue intrujar
de tudo; de ser inteligente e valente é que muito não pode. E Zé Bebelo
pegava no ar as pessoas. Chegou um brabo, cabra da Zagaia,
recomendado. “Tua sombra me espinha, juazeiro! Bebelo a faro
saudou. E mandou amarrar o sujeito, sentar nele uma surra de peia. Atual, o
cabra confessou: que tinha querido vir drede para trair, em empreita
encoberta. Bebelo apontou nos cachos dele a máuser: estampido que
espatifa as miolagens foram se grudar longe e perto.” (ROSA, 1986, p.62,
63)
Nada escapava aos sentidos de Bebelo; ele queria saber das coisas antes de
elas acontecerem; era homem escorreito no agir e no pensar, tinha altos objetivos e a
vontade de dar conta de tudo ao seu redor. O elemento ar rege seu caráter sonhador de
querer e considerar melhorias, progresso e ordem para o sertão. Rege também o seu desejo
de ser deputado e instituir a lei e a paz nem que seja a muitos tiros de bala de arma de fogo.
Elevado nos valores e caracteres dos elementos de cima, Zé Bebelo preza a água e a terra,
mas com as reservas necessárias, pois não pertence a esses elementos, reconhecendo-os
apenas como peças importantes dessa força maior que é o sertão.
Bebelo nos leva a refletir sobre o fogo do conhecimento e enxergar a chama do
saber representada por metáforas cheias de luz, ou que expressam o desejo de alcançá-la
como na própria etimologia da palavra “aluno”, que seria o sem-luz. Bebelo estava o
tempo todo na busca constante de combater a ignorância. Sua pressa desatinada em tudo
também tem uma simbologia. Homem do sertão e da cidade, Zé Bebelo quer levar a
agitação ígnea e iluminada das metrópoles para os ermos trevosos de ignorância do sertão
como quem vai cavalgando no vento e no fogo no cerrado. Bebelo sendo do ar
“assoviava musical” (ROSA, 1986, p.63) e considerava também os préstimos da boa água e
do brilho alto do sol: “choveu, louvava a chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol”
(ROSA, 1986, p.63) e via tudo com agrado e entusiasmo, o que configura uma
personalidade forte, cheia de calor e luz. Belicoso e muito corajoso, gostava de uma boa
guerra, era como se ninguém pudesse com o fogo de sua demasiada justiça:
“Acabando um combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão,
perseguindo quem achasse, só aos brados: “Viva a lei! Viva a lei!...” e
era o pipoco-paco. Ou: “Paz! Paz!” gritava também; e bala: se
entregaram mais dois.” (ROSA, 1986, p.63)
A figura de Bebelo aparece no início da narrativa do romance como a de um
homem admirado por Riobaldo que por alguma razão, ainda não claramente exposta, esteve
fora e que no presente dessa narrativa, com a morte de Joca Ramiro, está de volta. Bebelo
vem para chefiar o bando no lugar do, também falecido, Medeiro Vaz.
2.4.3.A morte de Medeiro Vaz
Depois de apresentar Bebelo, Riobaldo retoma os rumos de sua narrativa do
ponto onde parou. Ao retomar seu relato, o narrador conta que ele e o Sesfredo, como
mensageiros, encontram-se com o bando chefiado por João Goanhá. Esse chefe
atravessava o sertão na empreitada de reunir mais gente para dar caça aos Judas. No
entanto, Riobaldo e Sesfredo têm de se separar do bando em função da perseguição
maciça dos soldados. Com isso, eles se encontram com o comerciante alemão Vupes e
ajudam-no a atravessar o sertão em guerra. No final desse episódio, os dois jagunços
reencontram o bando e Medeiro Vaz no Marcavão
11
.
Reencontrar o bando de Medeiro Vaz se torna para o narrador um ritual de morte
regido pelos elementos terra e água, sendo esse último, o elemento que marca a passagem
(morte) do chefe. Os outros elementos também fazem suas presenças nessa passagem (o
ar e o fogo), haja vista que Medeiro Vaz, a nosso ver, é homem dos quatro elementos.
11
A estrutura ziguezagueante da narrativa de Riobaldo faz do Grande Sertão: Veredas um romance
episódico elaborado de forma a imitar o fluxo de memória de um narrador cujas lembranças surgem
fragmentadas. Há, entretanto, sequências cronológicas em meio às retrospectivas feitas pelo
narrador que refletem sua boa memória e capacidade de jagunço letrado.
“A ser que, de campinas a campos, por morros, areiões e varjas, o
Sesfredo e eu chegamos no Marcavão. Antes de lá, inchou o tempo, para
chover. Chuva de desenraizar todo pau, tromba: chuvão que come terra, a
gente vendo. Quem mede e pesa esses demais d’água? Rios foram se
enchendo. (...) Muito chovido de noite – as árvores esponjadas. Mesmo
dava um frio vento, com umidades. Para agasalhar Medeiro Vaz, tinham
levantado um boi o senhor sabe: um couro só, espetado numa estaca, por
resguardar a pessoa do rumo donde vem o vento o bafe-bafe.
Acampávamos debaixo de grandes árvores. O barulhim do rio era de bicho
em bicheira. (...) Uma chuva de arrobas de peso. Era quase sonoite.
Reunidos em volta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos, para
proteger a morte dele. Medeiro Vaz o rei dos gerais –; como era que um
daquele podia se acabar?! A água caía, as despejadas, escorria nas caras
da gente, em fios pingos. (...) E Medeiro Vaz, se governando mesmo no
remar a agonia, travou com esforço o ronco que puxava gosma de sua
goela, e gaguejou: “Quem vai ficar em meu lugar? Quem capitaneia?...”
Com a estrampeação da chuva, os poucos ouviram. (...) “Quem
capitaneia...” Vi meu nome no lume dele. E ele quis levantar a mão para me
apontar. As veias da mão... Com que luz eu via? Mas não pôde. A morte
pôde mais. Rolou os olhos; que ralava, no sarrido. Foi dormir em rede
branca. Deu venta. (...) Quando estiou a chuva, procuramos a que acender.
Só se trouxe uma vela de carnaúba, o toco, e um brandão de tocha.”
(ROSA, 1986, p.64,65)
Riobaldo chega como que saindo da terra com Sesfredo, ambos sujos de sertão. Ali
juntos com o bando testemunham uma chuva forte de expor as raízes do fundo da terra e de
devorar a terra. Medeiro Vaz embarca nas águas dessa chuva e os couros de boi esticados
seriam as velas de sua embarcação movida pela força do vento. O bando de jagunços
estava acampado debaixo de grandes árvores que, na nossa interpretação, evocam a
imagem dos arvoredos que figuram no local onde era a casa natal de Medeiro Vaz
12
. Isso
nos parece um retorno do moribundo ao lugar de origem, a casa que foi de seus
antepassados. Dali, ele saiu pelo fogo que reduziu as cinzas de tudo à condição de adubo
da terra de onde brotou o arvoredo. Na sua morte, metaforicamente, ele retorna ao lugar de
origem pela água torrencial da chuva forte e passa navegando em embarcação movida a
vento nas velas de couro de boi.
A morte de Medeiro Vaz em hora de forte chuva e embaixo de um arvoredo pode ser
também um retorno ao útero materno por meio da união dos elementos terra na imagem
das árvores e suas raízes –, e água – na imagem da própria chuva que caía torrencialmente
12
As referências à história de Medeiro Vaz estão expostas no capítulo anterior.
molhando tudo e complementando os quadros que simbolizam a fertilidade e a proteção que
vem da figura materna.
A morte de Medeiro Vaz deixa o bando mais uma vez sem liderança
13
, mas por
sugestão de Riobaldo, Marcelino Pampa assume a responsabilidade de chefia por ser o
mais velho entre os jagunços. A chefia de Marcelino Pampa dura pouco, pois a notícia da
morte de Joca Ramiro chega até Goiás de onde vem Bebelo com um bando de cinco
urucuianos de seu mando para vingar a morte do ilustre chefe de jagunços. Bebelo
chegou guerreando, sua chegada é marcada pela ação dos elementos que melhor o
representam, o fogo e o ar, mas também pela interferência do elemento água.
2.4.4.Fogo: o retorno de Zé Bebelo
A chegada de Bebelo, descendo o rio Paracatu, tirou o ar dos sertanejos. Um
vaqueirinho testemunhou sua batalha com um grupo de mais de trinta homens, sendo que
Bebelo estava apenas com um grupo de cinco urucuianos e a pé.
“O vaqueirinho não devia de ter mais de uns quinze anos (...) Afe,
por fim, bebeu gole de ar, e soluceou: (...) “Ah, é um homem... Ele desceu o
Rio Paracatu, numa balsa de buriti...” (...) “Deu fogo... O homem, com mais
cinco homens... Avançaram do mato, deram fogo contra os outros. (...) Ele e
seus cinco deram fogo feito feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse:
vai remexer o mundo! (...) Nem cavalo eles não têm...” (ROSA, 1986,
p.72,73)
A rapidez das ações de combate de Bebelo era demais para o ritmo lento do
sertão e dos sertanejos. Seu ataque surpresa junto com os urucuianos tirou o fôlego/ar do
vaqueirinho que testemunhou a ação e mal pode descrevê-la. A nosso ver, Bebelo vem
como um vento de mudança ou um redemoinho para “remexer o mundo” (ROSA, 1986,
p.73), e esse vento de tão rápido e forte tira o ar de todos. O fato de ele vir sobre uma balsa
de buriti amplifica o caráter aéreo de sua chegada e, na nossa interpretação, o uso do verbo
“descer” fortalece a imagem do pouso. Apesar de estar vinculado à terra, o buriti seria a
árvore mais aérea do Grande Sertão: Veredas: seus troncos usados como base de uma
balsa nos levam a crer que Bebelo chega navegando sobre as águas do Paracatu como
13
Medeiro Vaz seria o segundo em liderança depois de Joca Ramiro, o grande chefe do bando.
quem voa no vento e pousa leve e sorrateiro igual a uma ave rapineira, o que permitiu
surpreender a todos durante o ataque.
A rapidez e a fúria desse ataque evoca o elemento fogo na forma bélica e
agenciadora de mudanças bruscas. O fogo surpreende, excita, queima, tortura e castiga,
inflama, ilumina e conforta, fermenta, cozinha e alimenta, assusta, movimenta e modifica
tudo aquilo que lhe serve de alimento, pois todas as coisas podem ser por ele consumidas.
As ações do fogo estão mais ligadas às coisas que estão acima da superfície da terra, mas
sua incandescência não se limita somente a essa condição. No mundo subterrâneo, ele é
rocha derretida, lava quente e chamas que esculpiram o planeta Terra através das eras
geológicas, é o magma “massa natural, fluida, ígnea, situada em camadas profundas da
terra” (AURÉLIO, 2005, 529) e que também é título do primeiro livro de poemas de Rosa.
Na mitologia desses subterrâneos, ele é o Inferno de Dante, o Tártaro, o Hades que
tortura e castiga os condenados. União da luz com as trevas, o fogo, com seu caráter
contraditório, pode fazer-nos duvidar até da autenticidade da luta entre o bem e o mal,
levando-nos a crer não na rivalidade dos dois, mas numa dissimulada parceria em que o
homem pode ser visto como o peão do jogo. Zé Bebelo mudou de lado e queria punir os que
mataram Joca Ramiro e honrar o nome de Medeiro Vaz; por isso saiu dos ermos de Goiás
de volta a Minas Gerais para a vingança, não saiu das entranhas da terra, veio do fogo que
viaja no vento igual fogo de queimada no sertão.
O antagonismo entre o fogo e a água também é duvidoso, pois, em determinados
contextos, um pode ser como o “superego” do outro. A água apaga, controla, barra o fogo,
mas também pode ser transformada por ele pela evaporação gerada pelo calor, por
exemplo, de uma fervura. Por serem contrários eles não vão se unir, mas um sempre vai
fazer o outro ser lembrado, e isso os aproxima. Entretanto, é o ar/vento o mais ambíguo
elemento a se relacionar com o fogo. Ele pode apagar a chama de uma vela da mesma
forma como pode atiçar a brasa de uma fogueira. Na natureza, por exemplo, o vento é
parceiro do fogo numa queimada no cerrado seco e adversário de uma pequena fogueira
isolada na areia de uma praia. Bebelo parecia ter os dois ventos na sustância de sua
pessoa e queria mais que mudar os costumes do sertão; ele queria reformar, reduzindo tudo
às cinzas e, ainda, almejando que, com a chama forte de suas intenções, esses costumes
renascessem como uma Fênix – a ave de fogo, cinzas e vento.
Riobaldo estava perturbado com o que viria com a chefia de Bebelo. Diadorim
estava em festa por sentir próxima a sua vingança. O que Riobaldo pondera é que Vingar
(...): é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais.” (ROSA, 1986, p.78), sendo isto o
que pode produzir um queimado de tristeza. Receoso dos perigos do viver e com um certo
peso de consciência, ele relembra a figura daquele bem-te-vi que supostamente sempre o
seguia: E, de manhã, os pássaros, que bem-me-viam todo tal tempo.” (ROSA, 1986, p.78),
porque ele gostava de Diadorim “dum jeito condenado” (ROSA, 1986, p.78) e nada podia
fazer para mudar os rumos disso. Segundo Bachelard, referindo-se ao fogo, ele “materializa
a festa dos homens” (BACHELARD, 1994, p.24), e Diadorim estava em festa no alegre da
vingança, por saber que o fogo de combate com os Judas logo iria se dar a contento com a
liderança de Bebelo. Esse era o fogo e o ar, e seus diversos talentos eram cantiga para
jagunço. Sobre isso, vimos em Bachelard que o fogo “fala e voa, ele canta” (BACHELARD,
1986, p.23) e, com isso, aproxima-se mais de Bebelo que assume outro sobrenome
depois de tomar posse da chefia do bando: Meu nome d'ora por diante vai ser ah-oh-ah o
de Bebelo Vaz Ramiro!(ROSA, 1986, 78), o que parece jogar mais lenha na fogueira
das imagens ígneas que compõem sua personagem, haja vista que Medeiro Vaz e Joca
Ramiro também são personagens vinculadas à presença do elemento fogo pela luz própria
que emana de suas personagens.
2.4.5.A chefia de Zé Bebelo Vaz-Ramiro
Nem a água da chuva que caía e nem a lama fizeram Bebelo querer cumprir a
regra de esperar o bom tempo. Isso significaria que a água e a terra se uniram para impedir
o avanço do bando de jagunços liderados por Bebelo Vaz-Ramiro, mas como
representante do fogo bélico e do vento em redemoinho, ele não se entregou aos caprichos
dos elementos de baixo e subiu em suas idéias fortes. O resultado disso está no que
Riobaldo conta:
“De manhã, de três lados, demos fogo.
Bebelo tinha meditado tudo como um ato, de desenho.
(ROSA, 1986, p.79).
Em ataque triangular, o bando liderado por Bebelo arrasa um pessoal do
Hermógenes. O movimento ternário realça a perfeição simétrica do ataque que Riobaldo
descreve como peça ensaiada ou desenho traçado por Bebelo. Houve mais dois ataques
ganhos contra os Judas: o primeiro, de emboscada numa cava entre os rochedos do Oi-Mãe
e o segundo, na fazenda São Serafim. O que Riobaldo mais admirava era a percepção que
Zé Bebelo tinha dos assuntos de guerra, fogo e combate.
“Ele cheirava até o ar. Sonso parecia um gato. Se vendo que, no inteiro
mesmo de sua cabeça, ele antes tudo traçava e guerreava.” (ROSA, 1986,
p.80)
E rápido numa cavalgada aparentemente desgovernada, os jagunços iam no
comando de Bebelo: ora todos juntos, ora em grupos espalhados como o vento que, em
alguns instantes, ajunta-se em redemoinho. Riobaldo, quase como um expectador, observa
e age segundo as regras do chefe, questionando suas ações “Como era que Bebelo
sabia?” (ROSA, 1986, p.80) e, ao mesmo tempo, aquecendo-se no fogo amigo de
Bebelo, aprendendo com as astúcias dele: “Ainda por suma vantagem disso, demos um
tiroteio ganho, na fazenda São Serafim, dos diabos!” (ROSA, 1986, p.81). Isso nos remete à
imagem poética do Complexo de Empédocles analisada por Bachelard:
“O fogo, para o homem que o contempla, é um exemplo de pronto
devir e um exemplo de devir circunstanciado. Menos abstrato e menos
monótono do que a água que flui, mais rápido inclusive em crescimento e
mudança do que o pássaro no ninho vigiado a cada dia nas moitas, o fogo
sugere o desejo de mudar, de apressar o tempo, de levar a vida a seu
termo, a seu além. Então, o devaneio é realmente arrebatador e dramático;
amplifica o destino humano; une o pequeno ao grande, a lareira ao vulcão,
a vida de uma lenha à vida de um mundo. O ser fascinado ouve o apelo da
fogueira. Para ele, a destruição é mais do que uma mudança, é uma
renovação. (...) Esse devaneio muito especial, no entanto bastante geral,
determina um verdadeiro complexo em que se unem o amor e o respeito ao
fogo, o instinto de viver e o instinto de morrer” (BACHELARD, 1994, p.25)
Durante esse curto período de glória de chefia de Bebelo, Riobaldo, fascinado
pelas façanhas do amigo, parece-se com o ser que ouve o apelo da fogueira. Destruir a
regra de desordem antiga proposta pelos Judas é mais que mudar os rumos do sertão, é
renovar seus caminhos. Riobaldo se entrega a esse apelo e acaba sorvendo uma centelha
do fogo de Zé Bebelo.
Remexendo o passado com seus fantasmas e suas angústias, o ex-jagunço
Riobaldo relembra e antecipa, em sua narrativa, o lugar do pacto com o diabo, as “veredas
mortas” (ROSA, 1986, p.81) e os desfechos da batalha do Paredão – “Aquele arraial tem um
arruado só: é a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho...(ROSA, 1986,
p.81,82). Essas antecipações nos levam a crer que, para o narrador, falar de Bebelo é
agitar-se, tornar-se alado e levantar voo a uma altura de onde se pode de um ponto avistar,
com pouca nitidez, o que está ainda por vir. Na nossa visão, esse é o momento de o fogo
querer se alastrar na narrativa com a ajuda do vento/ar, mas esse ímpeto é logo barrado por
Riobaldo que resolve fazer uma retrospectiva ainda maior, mudando os rumos do jogo de
metáforas elementares.
Vimos nesse jogo que a terra do sertão traga os homens porque unida à água faz
lamaçal. Joca Ramiro e Medeiro Vaz mesmo sendo quase entes supremos, elevados no ar
e no fogo da luz divina, naufragaram nela como anjos caídos. Zé Bebelo ainda nos parece o
único que se elevou, mas não caiu; união do fogo com o ar, ele quer conhecer tudo sobre
todas as coisas e sobre a terra e o sertão para dominar a matéria vertente, dominar a sua
geografia e conhecer suas raízes. Acreditamos que foi por isso que ele assumiu os
sobrenomes dos dois grandes e ilustres chefes anteriores, pois, das raízes que estes
deixaram na terra, logo teria que brotar uma árvore de fogo (fogueira) e uma aérea
(redemoinho) para revirar o sertão.
Riobaldo reflete, em sua narrativa, sobre os rumos do grande sertão. Remexe seu
passado desde os tempos em que era jagunço aos de fazendeiro do norte de Minas numa
busca mística com o intento de poder entender a si mesmo e as razões das coisas e de
seus medos.
“Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando
não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente.
Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para
fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más
ações estranhas é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e
não sabe, não sabe, não sabe!” (ROSA, 1986, p.83,84)
Tudo é um crescente no interior de Riobaldo. Essa vastidão interna parece
atravessada, o tempo todo, pela ação dos quatro elementos em sua fala amarrada às vozes
e aos silêncios da natureza e das pessoas que conheceu. Bebelo Vaz-Ramiro era uma fonte
de inspiração que ele precisava superar, pois um homem precisa ser mais que três para
alcançar a perfeição de seus feitos.
O movimento ternário que esses nomes inspiram está conectado aos feitos desses
três grandes homens que Riobaldo quer entender e superar. Para isso, ele precisará
ordenar sua longa travessia. Os quatro elementos têm papel fundamental no que se
processa de agora em diante na narrativa de Riobaldo. Tentaremos ordenar, enumerar e
sintetizar as principais etapas desse processo que acreditamos ter a regência dos quatro
elementos e estar na gênese da narrativa de Riobaldo, bem como de seu crescimento
14
.
14
A ascensão e a queda de Riobaldo revivida em sua narrativa simbolizariam seu crescimento e seu
aprendizado.
2.5: As Travessias
2.5.1.O primeiro encontro com Diadorim
Nos quatro primeiros capítulos desta dissertação tentamos analisar os primeiros
episódios de Grande Sertão: Veredas, segundo o argumento de que a narrativa de Riobaldo
tem como gênese a ação dos quatro elementos. Essa opção foi arbitrária, mas está em
pleno acordo com nossa proposta, pois acreditamos ser essa parte a que apresenta um
redemoinho de imagens misturadas às metáforas elementares que, a nosso ver, têm função
de abertura da estória narrada por Riobaldo. Ela começa com o parágrafo, seguido do
travessão e a palavra “Nonada”, na primeira página e vai até o momento da narrativa de
Riobaldo em que ele revela querer decifrar as coisas que são importantes” (ROSA, 1986,
p.83,84) e que “o que induz a gente para más ações estranhas é que a gente está pertinho
do que é nosso, por direito, e não sabe” (ROSA, 1986, p.83,84). Daí em diante, o narrador
busca ordenar suas experiências e contá-las de forma mais ou menos cronológica, e isso
começa com o episódio do primeiro encontro de Riobaldo com Diadorim (o Menino, o
Reinaldo), no porto do rio De-Janeiro, quando os dois ainda eram meninos.
Neste capítulo, pretendemos analisar, de forma mais concisa, não somente esse
episódio, que acreditamos ser muito importante para o nosso trabalho, como também outros
que o seguem e que enumeraremos conforme a circunstância.
Sobre o trânsito das metáforas aéreas estudadas nesta parte do trabalho, achamos
pertinente colocar uma delas em questão por ser esta de um caráter duplo interessante para
o contexto, até o presente momento, desenvolvido no corpo desta dissertação. O trânsito de
que falamos, refere-se ao “do nado ao voo”.
A imagem do sonho do nado nos leva a uma linha de pensamento de mão única que
nos faz acreditar apenas na lógica do voo do nado iniciado na água e continuado no ar,
pensando que um caminho inverso a esse não seria pertinente ao que propomos em nosso
trabalho
15
. Sobre essa questão Bachelard escreveu que
15
Apesar de arbitrária, essa linha de pensamento se adapta à nossa proposta de estudo.
“para certos tipos de imaginação, continuidade do nado ao vôo no
sentido do nado ao vôo, mas não continuidade do vôo ao nado. A asa é
essencialmente aérea. Nada-se no ar, mas não se voa na água. A
imaginação pode continuar no ar os seus sonhos da água, mas não pode
em seguida viver a transcendência imaginária inversa.” (BACHELARD,
2001, p. 76).
O personagem da imaginação literária ou o narrador podem sair de um sonho de vôo
na água e ascenderem aos céus. O retorno provável para eles pode estar na queda
d'água (a cachoeira) vista de baixo para cima sem a perspectiva da queda em si, mas na
perspectiva de um olhar que vai de baixo para cima ou na geografia de um rio que vai do sul
ao norte, também de baixo para cima, um rio de aspecto geográfico vertical como o São
Francisco. Aliás, esse aspecto vertical do rio São Francisco não nos remete a essa
ascensão pela água como também nos pode revelar a força da lei de um possível eterno
retorno em Grande Sertão: Veredas. Pretendemos comprovar a coerência dessa idéia,
tomando como ponto de partida o encontro e o passeio de canoa de Riobaldo com Diadorim
do de-Janeiro ao São Francisco. Esse rio-serpente rasteja como um réptil com seus “modos
moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo” (ROSA, 1986, p. 88), mas o seu fim-
começo pode representar o triunfo do ser rastejante em seu voo onírico. A metáfora de um
rio que nasce e percorre o mundo e deságua onde nasceu caberia na explicação dessa
imagem de um rio com um fim-começo (pai-filho), que de ser rastejante que devora a própria
cauda, passa a forma paradoxal de um réptil que voa e não mais se arrasta na terra.
No início do episódio do primeiro encontro de Riobaldo com Diadorim, o narrador se
propõe a falar, com mais clareza de memória, das coisas que mais o marcaram. A isso, ele
mescla as metáforas elementares da terra e da água numa remissão ao título do livro o que
sugeriria uma nova abertura para a obra, como se fosse ali o verdadeiro começo.
“Antes conto as coisas que formaram para mim com mais pertença.
Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que o sei. Um grande sertão! Não
sei. Ninguém ainda não sabe. umas raríssimas pessoas e essas
poucas veredas, veredazinhas. (...)
Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro.” (ROSA, 1986,
p.84)
Ao mesmo tempo, ele evoca imagens do elemento água através das figuras dos rios de-
Janeiro e São Francisco, sendo o primeiro, afluente do segundo.
“O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem reto ele
vai, formam uma esquadria. (...) O São Francisco represa o de-Janeiro, alto
em grosso, às vezes em suas primeiras águas de novembro. Dezembro
dando, é certo.” (ROSA, 1986, p. 84)
E Riobaldo estava ali no porto do de-Janeiro esmolando para cumprir promessa feita por
sua mãe por ele ter se curado de uma doença quando de repente viu “um menino,
encostado numa árvore, pitando cigarro.” (ROSA, 1986, p. 85). Essa primeira imagem de
Diadorim Menino nos sugere o vínculo com a terra na raiz da árvore, o vínculo com o ar na
evocação da figura dos cimos onde pousam os pássaros e com o fogo e o ar, pelo cigarro
aceso e sua fumaça. Esse menino tinha bom aspecto na visão do narrador, era um menino
bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes” (ROSA, 1986, p.86) que
muito atraíram a atenção do narrador. Riobaldo, com isso, logo aceitou o convite do Menino
desconhecido para um passeio em canoa pelo rio de-Janeiro:
“nós escolhemos a melhor das outras, quase sem água nem lama nenhuma
no fundo. Sentei dentro, de pinto em ovo. (...) Notei que a canoa se
equilibrava mal, balançando no estado do rio.” (ROSA, 1986, p.87).
Assim sobre as águas, numa canoa frágil, Riobaldo se sentiu como um filhote de ave
que ainda não nasceu; encolheu-se o mais que pode na sua pequenina existência e no seu
medo. Eles ainda estavam na beira do barranco na margem, e o estado do interior da canoa
com um pouco de lama e água no fundo metaforizaria essa transição da terra para a água,
principalmente pela imagem da lama. Essa transição foi agenciada pelo Menino que tinha
dado a mão a Riobaldo para ajudá-lo a descer o barranco “Era uma mão bonita, macia e
quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado (ROSA, 1986, p.87). Riobaldo olhava os
olhos do Menino, uns “esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas,
luziam um efeito de calma” (ROSA, 1986, p.87) que pareciam hipnotizá-lo, até que ele se
lembrou de que “não sabia nadar” (ROSA, 1986, p.87). Nesse fogo do brilho dos olhos
verdes do Menino, Riobaldo seguia a esmo como quem caminha na escuridão levado pelo
lume de uma candeia. Viu que o de-Janeiro é de águas claras e que um outro menino ia de
remador. Nisso, o Menino dos olhos verdes chamou sua atenção para as flores e os
pássaros.
“Um pássaro cantou. Nhambu? E periquitos, bandos, passavam voando por
cima de nós. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele Menino, como
eu ia poder deslembrar? Um papagaio vermelho: “Arara for?” ele me
disse. E – quê-quê-quê?o araçari perguntava.” (ROSA, 1986, p.87).
Essas metáforas remetem todas ao elemento ar na temática da poética das asas.
Navegando na frágil canoa sobre as águas do rio de-Janeiro ele aprendeu a apreciar o voo
dos pássaros, o que representaria seu primeiro passo para um primeiro voo em que
Riobaldo sai da água e decola para outras realidades. Seu nome, Riobaldo (rio + baldo),
remete à imagem de um rio frustrado cujas águas não levam diretamente ao mar, mas a
outro rio maior; elas baldeiam de um lado para outro como as águas do de-Janeiro ou do
Urucuia que deságuam no São Francisco. Segundo a crítica Ana Maria Machado em seu
livro “Recado do Nome”,
“O Nome Riobaldo evoca, em primeiro lugar, por sua sonoridade, os
Nomes dos brilhantes guerreiros germânicos. Mais que isso, Nome
inventado, com sua etimologia, introduz imediatamente os aspectos de Rio
e baldo (frustrado), marcando as tantas mudanças de curso de um
personagem que não se fixa num caminho e que, em seu permanente
fluir, toma o rio por modelo. Como o rio, Riobaldo corre incessantemente. E,
como o rio Urucuia, ele nunca chega ao mar, frustrado em sua vida de
jagunço” (MACHADO, 1991, p.35)
As águas do rio de-Janeiro e do Urucuia, afluentes do rio São Francisco, são claras e
puras na visão do narrador e sugerem sua pureza quando foi batizado no primeiro e toma o
segundo como seu rio de amor. Elas evocam a figura da mãe de Riobaldo e a virgindade de
seus amores. Essa pureza, após o ritual de passagem, parece ser maculada com as águas
turvas do São Francisco que representariam seu processo de aprendizagem e maturidade
que se estende para a marcante descoberta da necessidade de se ter coragem para viver.
O Menino parecia voar sobre a situação, pois “Se via que estava apreciando o ar do
tempo, calado e sabido, e tudo nele era segurança em si” (ROSA, 1986, p.87) e seu estado
aéreo, crescido nas alturas, contrastava com a condição de ave em ovo de Riobaldo. Para o
narrador, aquele momento foi o mais intenso, pois foi ali que surgiu o rio São Francisco. Ele
navegava na pureza do de-Janeiro com a sua inocência e o “do-Chico” (ROSA, 1986, p.87)
veio num repente para sua relativa calma se esquentar de medo.
“O senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura:
imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho,
e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiúra com
que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para
si o de-Janeiro, quase só um rego verde só. (...) O canoeiro, sem seguir
resolução, varejava ali, na barra, entre duas águas, menos fundas,
brincando de rodar mansinho, com a canoa passeada.” (ROSA, 1986,
p.87,88)
Bachelard escreve em seu livro “A Água e os Sonhos” que a água é “o elemento
transitório” (BACHELARD, 2002, p.7) que passa constantemente por bruscas mudanças de
temperamento, ou seja, ela nasce, corre, desce e, em algumas vezes, sobe, resfria-se,
solidifica-se para, mais tarde depois de reaquecida –, se liquefazer novamente; evapora-
se, desce novamente, deságua e morre, e, sendo assim, metaforiza o ciclo da própria vida
em toda a sua inquietude e em toda a sua capacidade de assumir a forma de seus
recipientes tal como a alma pode ser vista como a forma do corpo. Segundo suas
colocações, “A água é objeto de uma das maiores valorizações do pensamento humano: a
valorização da pureza. (...) A água acolhe todas as imagens da pureza” (BACHELARD,
2002, p.15), e essa pureza, associada ao desassossego, evocaria o amor ao trabalho que
se reflete no conceito de casamento ou mistura do elemento água com os outros elementos.
Nisso, temos o rio São Francisco como um exemplo de que a água está em constante e
eterno trânsito em suas descidas, quedas e subidas rumo ao oceano; temos também o fato
de que suas águas barrentas e vermelhas refletem seu poder de rio e de água que parece
liquefazer parte da terra por onde percorre, levando essa parte para o mar. Ali, no bruto do
encontro dos rios, os meninos se viram “entre duas águas” (ROSA, 1986, p.88) como quem
se surpreende entre dois mundos ou duas possibilidades.
Riobaldo mais que o outro era quem passava pelo processo de iniciação e, como o
de-Janeiro, viu ali sua pureza ser devorada pelo São Francisco. Quando o Menino dos olhos
verdes ordenou ao canoeiro para atravessar, Riobaldo teve que aprender, de imediato, a
dominar o temperamento violento de seu medo refletido na brutalidade do encontro com o
rio. Sobre isso, vimos em Bachelard a questão da água violenta e de nossa necessidade de
dominar e enfrentar suas bruscas mudanças de temperamento como se fossem nossas
mudanças de temperamento:
“A princípio, em sua violência, a água assume uma cólera
específica, ou seja, a água recebe facilmente todas as características
psicológicas de um tipo de cólera. Essa cólera, o homem se gaba
rapidamente de domá-la. Por isso, a água violenta é logo em seguida a
água que violentamos. Um duelo de maldade tem início entre o homem e as
ondas. A água assume um rancor, muda de sexo. Tornando-se má, torna-se
masculina.” (BACHELARD, 2002, p.16)
Riobaldo, sobre as águas violentas do São Francisco, teve que aprender rapidamente
a dominar seu medo.
“Tive medo. Sabe? (...) A aguagem bruta, traiçoeira o rio é cheio
de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo. (...)
Não me lembrei do Caboclo-d'Água, não me lembrei do perigo que é a
“onça-d'água, se diz – a ariranha – essas desmergulham, em bando, e
becam a gente: rodeando e então fazendo a canoa virar, de estudo.”
(ROSA, 1986, p.88)
O Menino e o rio São Francisco em suas vozes distintas logo ensinaram para ele a
não ter medo e a entender que se “Carece de ter coragem...” (ROSA, 1986, p.89) e,
pasmado com tudo, Riobaldo foi lentamente se entregando ao ritmo da canoa nos modos
moles do rio. “Aí o bambalango das águas, a avançação enorme roda-a-roda o que até
hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia.” (ROSA, 1986, p.89)
E, espantando seus medos, deixou-se levar pelo redemoinho das imagens em roda do nado
circular ao redor da canoa praticado pela ariranha e da roda-a-roda do movimento
agigantado e mole das águas do São Francisco. Nessa travessia, Riobaldo escuta os apelos
do rio através de seus sussurros de desamparo e, na nossa visão, parece aprender, com
isso, a lidar com os aspectos líquidos da fala, principalmente no ato de reproduzir
experiências, pois a simples presença do Menino ali com ele naquela aventura não o deixou
esquecer (“deslembrar”) de nada em diante que fosse importante.
Bachelard escreve sobre essa questão das vozes das águas e seu papel didático na
vida dos homens e dos pássaros, bem como os aspectos líquidos de sua sustância
comunicativa.
“(...) a linguagem das águas é uma realidade poética direta, que os
regatos e os rios sonorizam com estranha fidelidade às paisagens mudas,
que as águas ruidosas ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar,
a repetir, e que , em suma, uma continuidade entre a palavra da água e a
palavra humana. (...) organicamente a linguagem humana tem uma liquidez,
um caudal no conjunto, uma água nas consoantes. (...) essa liquidez
uma excitação psíquica especial, uma excitação que evoca as imagens
da água.” (BACHELARD, 2002, p.17)
Os elementos significativos da travessia de Riobaldo com o Menino e o canoeirozinho
seriam as águas mudas do de-Janeiro e as ruidosas do São Francisco e o próprio Riobaldo
que, depois de muitos anos, relata o ocorrido, sugerindo que tal evento deu início a uma
longa rede de eventos que o levaram a colher todas as suas experiências. Na nossa
interpretação, se o travessão que começo à fala de Riobaldo no início do romance pode
ser visto também como um trampolim, este episódio da travessia de canoa do de-Janeiro ao
do-Chico pode ser visto como um mergulho na obra. Igualmente a Riobaldo, como leitores,
acabamos no “desejado, arribamos na outra beira, a de lá” (ROSA, 1986, p.90), para nunca
mais retornarmos e se retornamos, voltamos mudados como que também transformados
pelo batismo das duas águas, a clara e a turva, com a pureza e a impureza necessárias
para combater o fato de que viver é muito perigoso.
Esse perigo de viver faz parte da segunda lição de Riobaldo no seu processo de
aprendizado, pois, depois de aprender a dominar a água, precisamos aprender a lidar com o
fogo solar, o fogo erotizado e o fogo belicoso, mesmo que seja na mais sutil das
oportunidades. Riobaldo teve uma dessas oportunidades quando, na outra margem do São
Francisco, ele e o Menino depararam com um rapaz estranho, mulato vindo de outras partes
que acabou parando ali naquele ermo no acaso de topar com os dois meninos. Na travessia
de Riobaldo até ali, o fogo solar pareceu funcionar como um símbolo do que, para o
narrador, significava uma contradição, pois o medo não combina com a luz do dia e sentir
medo em plena luz do dia é contraditório como se esse sentimento fosse algo exclusivo da
noite escura.
Esse fogo solar é também o que pode caracterizar culturas e raças quando define, ou
deixa de definir, a cor da pele dando um tom moreno ou avermelhado aos corpos das
personagens da imaginação literária na busca dessa pela imitação da natureza. Na figura
desse intruso, o medo adquire cor e seu tom de pele é mulato. Esse medo-mulato alia-se às
intenções licenciosas de um erotismo que quer ir contra as leis da natureza, mas acaba
sendo moralizado no fogo frio da virtude do ferro.
As metáforas da linguagem literária permitem atribuir uma grande quantidade de
funções a esse fogo que representa a cor local no discurso, o sinuoso erotismo e o caráter
animoso e traiçoeiro de uma arma branca. Aliado ao ar, esse fogo até o tom, a forma e a
intensidade da fala. Ao aquecer e avermelhar a pele e encher o ambiente de calor e luz
quando faz elevar a temperatura e umedecer o ar evaporando a água, esse fogo torna-se a
representação figurativa do exótico. Era dessa forma que Riobaldo via o Menino e o mulato.
O Menino, num primeiro olhar do narrador, não tinha semelhança com nenhuma pessoa
conhecida e ostentava belos e grandes olhos verdes.
“Ele, o menino, era dessemelhante, disse, não dava minúcia de pessoa
outra nenhuma.” (ROSA, 1986, p.87)
O mulato com suas feições abrutalhadas, sua alta estatura e sua cor de pele
amorenada ilustrava o exotismo da miscigenação racial típica do sertão. Esse último
acreditou que os meninos estavam ali por intenções eróticas o que aborreceu Riobaldo e
provocou uma surpreende reação no Menino. “Você, meu nego? Está certo, chega aqui...”
A fala, o jeito dele, imitavam de mulher. Então, era aquilo?” (ROSA, 1986, p.91) Ele agiu
como se realmente estivesse querendo se entregar ao fogo erotizado e lascivo do mulato,
mas, quando este se aproximou, conheceu o fogo da virtude do ferro na coxa:
“O menino abanava a faquinha nua na mão, e nem se ria. Tinha embebido
ferro na coxa do mulato, a ponta rasgando fundo. A lâmina estava escorrida
de sangue ruim.” (ROSA, 1986, p.91)
Nisso o medo de Riobaldo aumentou na pressa de sair dali enquanto o fogo frio do
Menino cresceu de vagaroso. “– Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem...”
ele me moderou, tão gentil.” (ROSA, 1986, p.91) Esse ritual de batismo na travessia dessas
duas águas pela qual Riobaldo passou, completou-se, a nosso ver, com o fogo da quicé do
Menino e o fogo que chamamos lava do sangue ruim do mulato. Ali, Riobaldo aprendeu
a necessidade de se ter coragem para o viver perigoso da vida. Nisso, pra entender melhor
ele perguntou ao Menino:
“– “Você é valente sempre?” em hora eu perguntei. O menino
estava molhando as mãos na água vermelha, esteve tempo pensando.
Dando fim, sem me encarar, declarou assim: “– Sou diferente de todo
mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente...” E
eu não tinha medo mais. (...) Só uma transformação pesável.” (ROSA, 1986,
p.92)
Durante a pergunta de Riobaldo, o Menino parecia brincar com as mãos na água
vermelha do rio ou lavá-las de algum sangue do mulato. Isso reforçaria ainda mais o papel
do Menino como o agenciador do ritual de passagem de Riobaldo. Ao narrar o ato de o
amigo molhar as mãos na água vermelha, Riobaldo parece estar chamando atenção para o
fato de que, de agora em diante em sua vida, a água vai ter também essa cor rubra. A
clareza das águas do de-Janeiro ficou para trás, e o aspecto turvo da água do São
Francisco na ida se converteu na púrpura da volta. Riobaldo enfrentou o medo, conheceu o
que é coragem e viu o sangue ser derramado. Dali em diante ele estaria pronto para o
segundo passo.
Segundo Bachelard,
“Na água, a vitória é mais rara, mais perigosa, mais meritória que no
vento. O nadador conquista um elemento mais estranho à sua natureza. O
jovem nadador é um herói precoce. (...) Os primeiros exercícios do nado
ensejam um medo superado. A marcha não tem esse umbral de heroísmo.
A esse medo do elemento novo associa-se, aliás, um certo temor com
relação ao instrutor de natação, que muitas vezes precipita seu aluno na
água profunda. Não admira, portanto, que um leve complexo edipiano se
manifeste, em que o instrutor de natação desempenha o papel do pai.”
(BACHELARD, 2002, p.169)
O Menino, na nossa leitura, seria simbolicamente uma conexão às imagens da mãe
16
e do pai
17
de Riobaldo nesse singular episódio da travessia de canoa. Daí talvez se tenha
uma referência à razão do espanto e atração do narrador em relação à figura desse Menino,
que ensinou Riobaldo o que é ter a capacidade de superar seus limites e ter coragem.
O elemento água levou o menino Riobaldo para a sua mãe, ela o aguardava no porto
do De-Janeiro. “Minha mãe estava no porto, por mim. Tive de ir com ela, nem pude me
despedir direito do menino.” (ROSA, 1986, p.92) A água da chuva logo em seguida leva a
mãe de Riobaldo para o mundo dos mortos. “Adiante? Conto. O seguinte é simples. Minha
mãe morreu apenas a Bigri, era como ela se chamava. Morreu, num dezembro chovedor,
foi grande a minha tristeza.” (ROSA, 1986, p.93) A água marca o ritual de passagem de
Riobaldo juntamente com o ar que o ergue em si, embalando-o e elevando-o a outro
patamar de sua condição e com o fogo que, como num bote de urutu, ensina a ele as
astúcias da coragem.
16
A Bigri seria associada ao rio De-Janeiro.
17
Selorico Mendes seria associado ao rio São Francisco.
O próximo passo parece ser a maturidade de aprender a sofrer as perdas. Essa
maturidade é tristemente alcançada com a morte da mãe. “Ela morreu, como a minha vida
mudou para uma segunda parte.” (ROSA, 1986, p.93). Segundo Bachelard em seu livro A
Água e os Sonhos, a “água é um leite quando é cantada com fervor, quando o sentimento
de adoração pela maternidade das águas é apaixonado e sincero” (BACHELARD, 2002,
p.123). A água “embala como uma mãe” (BACHELARD, 2002, p.136), ela é o leite da terra e
esta, a Grande Mãe. A Bigri era a vida fixa e passiva do menino Riobaldo, sendo terra e
água, era ela quem administrava seus contornos e limites de rio:
“A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a
justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios,
querer-bem às minhas alegrias.” (ROSA, 1986, p.31)
Com ela, Riobaldo viveu vida fechada “na tapera do sítio do Caramujo” e, como
aponta Márcia Marques de Morais, em seu livro A Travessia de Fantasmas, é patente a
negação de qualquer par para a mãe, na primeira infância de Riobaldo, o que implica (...) a
chamada relação fusional entre mãe e filho” (MORAIS, 2001, p.51,52). Essa relação foi
quebrada bruscamente com a morte de Bigri. Com ela fora dessa fusão, Riobaldo conhece
Selorico Mendes, o padrinho que, na verdade, era seu pai biológico. Segundo Morais
(2001), “a travessia do São Francisco aponta para o menino Riobaldo um caminho outro em
sua vida” (MORAIS, 2001, p.42), e que desaguaria na casa do pai. O que nos leva a
imaginar os rios dessa travessia como metáforas da figura da mãe e do pai, sendo elas,
respectivamente, o de-Janeiro e o São Francisco.
2.5.2.O primeiro encontro com os jagunços e o menino/moço
Outro fragmento que consideramos importante para nosso estudo das metáforas
elementares como gênese da narrativa de Riobaldo está no contexto do primeiro encontro
dele com os jagunços ainda na Fazenda São Gregório, de Selorico Mendes e é o trecho em
que o ex-jagunço conhece a Cantiga de Siruiz.
Riobaldo foi escalado por Selorico para acompanhar os jagunços, guiá-los até um
lugar chamado Cambaubal, onde iriam repousar de horas de viagem. Com isso, ele vai
conhecer os chefes Joca Ramiro, Ricardão e Hermógenes, bem como alguns jagunços do
bando. As metáforas elementares se alternam e se unem na Cantiga de Siruiz, antes e
depois dela. “Presumi que estavam muito contentes de ganhar o repouso de horas, pois
tinham navegado na sela a noite toda.” (ROSA, 1986, p.100,101) aqui ele parece
comparar o dançado da sela no lombo do cavalo quando anda ao balanço de uma canoa
sobre as águas, enquanto “Um falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino: – “Siruiz, cadê a
moça virgem?(ROSA, 1986, p.101). Riobaldo parece influenciado pelo capim molhado de
orvalho que lavava seus pés, pois, quando eles largaram a estrada, sua imaginação fluía
como água. Foi nesse momento que aquele Siruiz cantou, e as metáforas elementares
saíram de sua boca para se fixarem nos ouvidos e na memória de Riobaldo.
A primeira delas está na imagem do nome da “vila alta, mais idosa do sertão” (ROSA,
1986, p.101) que é “Urubu”, pássaro negro e carniceiro que se nutre dos efeitos da morte e
é a representação da metáfora aérea constante na canção. Outra pode estar na sugestão da
imagem do vento em “Corro os dias nesses verdes” (ROSA, 1986, p.101) que remeteria à
figura aérea do “buriti” em sua parte superior, as suas palmas verdes e seus movimentos no
ar. Apesar disso, na nossa interpretação, não é o elemento ar que domina a cantiga, mas a
água. O elemento água está antes, durante e depois da cantiga querendo dominar as
imagens acerca dela como sugerimos anteriormente. A imagem do buriti dessa forma pode
ter duas faces, a de ar e a de água, sendo a de água a lida no verso “buriti água azulada”
(ROSA, 1986, p.101) que remete às imagens da lagoa azul ornada de buritis no Bambual do
Boi antes da primeira travessia no Liso (ROSA, 1986, p.35) e também do poço azul no Buriti
das Três Fileiras (ROSA, 1986, p.49) entre outras. Uma outra imagem de água nos pareceu
remeter à forte presença do rio São Francisco na vida desses sertanejos e está no verso
“Remanso de rio largo” (ROSA, 1986, p.101).
Essas imagens de ar e água se completam com a de fogo bélico nos versos finais da
cantiga: “quando vou p'ra dar batalha, / convido meu coração...” (ROSA, 1986, p.101), o
que, em nossa interpretação, significa ser o elemento fogo essencial para dar mais cadência
e movimento às imagens da cantiga regidas por metáforas aéreas e hídricas. Terminada a
cantiga, o narrador nos apresenta outras imagens de água, fogo e ar: “Dia de maio, com
orvalho
18
(...) O dia estava clareando
19
completo. Meu coração restava cheio de coisas
movimentadas
20
.” (ROSA, 1986, p.101) e que, mais adiante, representariam o efeito
principal da cantiga na vida de Riobaldo: “Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha
idéia.” (ROSA, 1986, p.103), ou seja, a Cantiga de Siruiz parece ter inspirado Riobaldo a
18
O elemento água.
19
O elemento fogo.
20
O casamento do fogo com o ar.
seguir seu caminho. Isso logo se concretizou, pois, dias depois da partida dos jagunços, ele
descobriu que Selorico Mendes era seu pai e fugiu da São Gregório.
Após fugir da casa do pai, trabalhar como professor de Bebelo e fugir também
dessa empreitada, Riobaldo vai parar a seu esmo no curso do “Rio das Velhas, à vista da
barra do Córrego Batistério” (ROSA, 1986, p.116), onde dorme com uma mulher casada
que, no outro dia, recomenda-lhe que até a casa de um tal Malinácio. Na casa desse
Malinácio ele iria pernoitar, mas, logo no jantar, após dormir de tarde, ele trava
conhecimento com um grupo de três jagunços disfarçados de tropeiros. Esses homens
começaram a lhe fazer perguntas diversas depois que Malinácio resumiu a conversa que
teve com Riobaldo mais cedo. O clima que ia ficando tenso foi logo desfeito de tensões
quando um quarto homem entra “na soleira da porta” (ROSA, 1986, p.117), e o fogo tenso
do interrogatório se converte em fogo alto de alegria.
“Aguentei aquele nos meus olhos, e recebi um estremecer, em susto
desfechado. Mas era um susto de coração alto, parecia a maior alegria.
Soflagrante, conheci. O mo, tão variado e vistoso, era, pois sabe o
senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim,
aquele do porto do de-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atravessou o
rio comigo, numa bamba canoa, toda a vida. E ele se chegou, eu do banco
levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas
pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho.” (ROSA, 1986,
p.117,118)
Ao ver o moço vistoso de olhos verdes, Riobaldo logo se lembrou do Menino do porto
do de-Janeiro e reconheceu o amigo de travessia, agenciador de seu primeiro ritual de
passagem - o nome dele era Reinaldo. No narrar esse acontecimento a seu ouvinte,
Riobaldo divaga refletindo sobre o real, o destino e o amor. Para ele o real roda e põe
diante” (ROSA, 1986, p.118) tudo aquilo que parece sonho, fantasia ou ficção. Esse rodar
remeteria à imagem do redemoinho que abriga em si os elementos ar, terra
21
e fogo
22
, de
acordo com o contexto da epígrafe do romance. Se nos permitirmos um ir além dessa
imagem, poderemos associar o redemoinho também ao elemento água. Como um
sorvedouro que tudo mergulha e mantém em seu profundo silencioso “Que fosse como
sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo ajunta e amortece –
21
A terra estaria representada no redemoinho pela poeira que este levanta com seu movimento
circular de ventos cruzados.
22
Esse elemento é representado pela figura do diabo no meio do redemoinho, segundo o imaginário
popular.
rara vez se consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: peixinho pediu.”
(ROSA, 1986, p.118) Nisso, ele reflete sobre o destino e as razões de uma miúda coisa
acontecida aqui repercutir tempestuosa adiante como um furação, como se, de pequeninos,
pudéssemos nos agigantar em nossos desejos de sorte que, de repente, nos tornamos
incapazes de nos reconhecer e tememos a nós mesmos:
“Se, uma vez: no Tamanduá-tão, no barulho da guerra, eu vencendo,
estremeci num relance claro de medo medo só de mim, que eu mais não
me reconhecia. Eu era alto, maior do que eu mesmo; e, de mim mesmo eu
rindo, gargalhadas dava.” (ROSA, 1986, p.119)
Isso nos traz de volta a imagem do redemoinho no contexto da epígrafe em que “alto,
maior do que eu mesmo” pode ser o diabo na rua, no meio do redemoinho, rindo,
gargalhando, vencendo na guerra, impondo medo tão forte nos outros que esse medo recai
sobre si mesmo e falando / rindo tão bravo que “Ventava
23
em todas as árvores
24
. Mas
[seus] olhos viam o alto tremer da poeira
25
(ROSA, 1986, p.119), mescla de metáfora
aérea e terrena que pode representar o livre campear do demônio nos medos do narrador.
Nesse contexto, ele uniu o real e o destino ao tema universal do amor, questionando a
origem de seu fogo, se de Deus ou do Diabo. Pondera que do demo só vem, se mesmo
vem, é o fogo de amor tormento
26
e de Deus o fogo do amor dos anjos que lhe transporta à
imagem aérea e terrena de Otacília.
“Ah e Otacília? Otacília o senhor verá, quando eu lhe contar ela
eu conheci em conjuntos suaves, tudo dado e clareado, suspendendo, se
diz: quando os anjos e vôo em volta, quase, quase. A Fazenda Santa
Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda. Otacília, estilo dela, era
toda exata, criatura de belezas.” (ROSA, 1986, p.119)
Otacília, nesse excerto, a nosso ver, é revelada por Riobaldo como uma personagem
cercada de metáforas aéreas, talvez por sua sublime capacidade de amar, e terrenas, por
seu caráter fixo, imutável no estilo e na beleza. Alta no amor, ela mora na Santa Catarina,
23
Metáfora aérea.
24
Metáfora terrena e aérea.
25
Metáfora terrena.
26
Obviamente essa imagem, associa-se a figura de Reinaldo Diadorim.
nos Buritis-Altos, lugar que fica na altura de um córrego
27
ou cabeceira de vereda. Sua
imagem nos remete à lentidão ou fixidez do elemento terra, que, aliada à imagem de água,
mostra-se como uma escultura de argila nos moldes simétricos de uma beleza de donzela,
ao contrário de seu terceiro objeto de amor dotado de beleza romântica e sertaneja,
Nhorinhá. Ao lembrar desse terceiro amor, Riobaldo revelaria um ponto que consideramos
muito importante para a composição das metáforas ígneas que também amalgamam sua
personagem: ele muda constantemente “No passado, eu, digo e sei, sou assim:
relembrando minha vida para trás, eu gosto de todos, curtindo desprezo e desgosto por
minha mesma antiga pessoa.” (ROSA, 1986, p.120) As suas constantes mudanças fizeram
com que ele reunisse um grande número de desafetos, sendo todos eles ele mesmo,
Riobaldo, fincado no passado como mourão de sucupira em cercas que cercam os outros
Riobaldos que ficaram para trás em cada hora que foi sua experiência.
O ex-jagunço relembra que Medeiro Vaz pôs fogo em sua própria casa antes de sair
como justiceiro no sertão e que, como o grande chefe, ele, Riobaldo, ao retornar de sua vida
jagunça também teve que queimar muitas casas que, a nosso ver, trancafiavam, em seu
interior as muitas pessoas que foi a legião que foi: o rapazinho “Baldo” (ROSA, 1986,
p.96), o moço Professor(ROSA, 1986, p.73), o jagunço Cerzidor(ROSA, 1986, p.140), o
jagunço Tatarana, lagarta-de-fogo” (ROSA, 1986, p.140), o jagunço “Tatarana, pêlos
bravos” (ROSA, 1986, p.217), o “Cobra voadeira...” (ROSA, 1986, p.296) e o chefe jagunço
Urutu Branco(ROSA, 1986, p.296). Segundo Ana Maria Machado, “nenhum Nome se fixa
nele, pois nunca é o mesmo, está sempre em transformação” (MACHADO, 1991, p.33),
porque, apesar de ter a água como elemento predominante no nome, Riobaldo é também
regido pelo caráter constantemente modificador do elemento fogo e, por isso, não se fixa
numa forma, pegando sempre, como uma água ígnea, magma do Grande Sertão, a
forma do recipiente/nome que nele colocam.
Saindo dessa digressão sobre o real, o destino e o amor, Riobaldo relata que rumou
para “perto do Arraial do Bró” (ROSA, 1986, p.142) com o bando sob comando do chefe
Titão Passos no transporte da munição que os jagunços faziam disfarçados de tropeiros. No
caminho, Riobaldo relembra que se não fosse a mulher casada e Malinácio, ele não teria
reencontrado o Menino. Ficou alegre e triste ao mesmo tempo e, depois disso, colocou em
seu narrar essas belas imagens extraídas de metáforas elementares e que remetem à figura
brumosa do Menino, Reinaldo, Diadorim
28
: “Eu vi a neblina encher o vulto do rio, e se estalar
da outra banda a barra da madrugada. Assaz as seriemas para trás cantaram.” (ROSA,
27
Ela vive num lugar perto de uma nascente de córrego ou rio.
28
“Diadorim é a minha neblina...” (ROSA, 1986, p.16)
1986, p.121). Nessas metáforas elementares, o ar e a água se casam para representar, na
segunda travessia de Riobaldo com o Menino, os eventos que marcaram a primeira, do de-
Janeiro ao São Francisco na margem de lá. Nessa imagem, o elemento ar domina a água
com a neblina enchendo o vulto do rio como se navegasse por sobre suas águas para a
outra banda. O canto das seriemas é forte e alto e, na nossa interpretação, exalta a poesia
da imagem, reforçando o caráter aéreo e abrindo caminho para outras imagens aéreas que
estão no momento em que, de pouso no sitiozinho de “um preto” (ROSA, 1986, p.121),
Reinaldo e Riobaldo se oferecem para ficar de sentinela perto do rio e de todos os pássaros.
“O rio, objeto assim a gente observou, com uma croa de areia
amarela, e uma praia larga: manhãzando, ali estava re-cheio em instância
de pássaros. O Reinaldo, mesmo chamou minha atenção. O comum: essas
garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato-verde, o pato-preto,
topetudo; marrequinhos dançantes; martim-pescador; mergulhão; e até uns
urubus, com aquele triste preto que mancha. Mas, melhor de todos
conforme o Reinaldo disse o que é o passarim mais bonito e
engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-
croa. (ROSA, 1986, p.122)
Esse rio, na nossa visão, funciona como metáfora hídrica de vida e morte e faz de
sua “croa de areia amarela” a canoa de uma espécie de barqueiro Caronte que leva as
almas para o lado de lá. Essas almas seriam os pássaros almas penadas com suas
penas do voar, sem pena de condenação, mas uma leveza e alívio extraordinários. Elas não
vão ao inferno, mas ao paraíso. Apresentadas numa gradação cromática – da brancura das
garças ao negrume lutuoso dos urubus –, elas ali são contempladas pelos dois jagunços,
Reinaldo e Riobaldo. O Reinaldo reinava, regia o rumo dos olhos e o sentimento de
Riobaldo, plantando nele novas maneiras de ver o mundo a seu redor como um mestre de
todos os pássaros ou um Virgílio do sertão, encarregado de mostrar ao Dante Riobaldo, as
delicadezas que podem ser vistas transitando do inferno para o purgatório e deste para
paraíso, como se esses três mundos fossem um só em sua travessia.
Desses pássaros-alma, o mais querido pelo Reinaldo era um que tinha nome de
homem, o manuelzinho-da-croa. Diminutivo de Manuel cuja variante pode ser Emanuel,
esse pássaro simbolizaria uma figura divina que vive na faixa de terra cercada de água que
é a croa (pequena lha de areia no meio dos rios). Riobaldo fica admirado com a visão de
mundo do amigo Reinaldo e achava tudo muito diverso do convencional.
“Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar
apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu
começar e descomeçar dos vôos e pousação. Aquilo era para se pegar a
espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: É formoso próprio...” ele
me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. P'ra e p'ra, os bandos de
patos se cruzavam. “Vigia como são esses...” Eu olhava e me sossegava
mais. O sol dava dentro do rio, as ilhas estando claras. “É aquele lá:
lindo!” Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por cima da areia
lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras,
desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para
comer alimentação. Machozinho e fêmea às vezes davam beijos de
biquinquim a galinholagem deles. “É preciso olhar para esses com um
todo carinho...” o Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim, botava surpresa.
E a macieza da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser e tudo
num homem-d'armas, brabo bem jagunço eu não entendia! (...) De todos,
o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-croa.”
(ROSA, 1986, p.122,123)
O amigo era um brabo jagunço em armas e estado de guerras; para Riobaldo isso
soava como uma estranha contradição, mas como Reinaldo reinava, ele se deixava seguir o
rastro daquela nova ordem, em perspectiva e temperamento contemplativo e de alma
entregue ao sossego. As metáforas aéreas reforçariam essa entrega de Riobaldo, pois as
imagens de alívio e leveza que voam nas asas e nos modos desses pássaros são um
convite a uma resignação semelhante à de um corpo que apenas plana no ar.
2.5.3.Riobaldo Tatarana
Dali em diante, Riobaldo narra o transporte da munição que o bando liderado por
Titão Passos tem que entregar num dos esconderijos de armas de Joca Ramiro. Nisso
tiveram que passar uma temporada no acampo do Hermógenes na Macaúba. os bandos
reunidos admiraram logo de começo a mira perfeita do novo jagunço Riobaldo e o
chamaram Cerzidor e depois Tatarana.
“E pois, conforme dizia, por meu tiro me respeitavam, quiseram pôr
apelido em mim: primeiro, Cerzidor, depois Tatarana, lagarta-de-fogo. Mas
firme não pegou. Em mim, apelido quase que não pegava. Será: eu nunca
esbarro pelo quieto, num feitio?” (ROSA, 1986, p.140)
Homem de água, Riobaldo passa desde esse ponto ao caráter de homem de terra na
figura do Cerzidor que, como uma serpente, vai ziguezagueando com o ventre no chão para
fechar buracos ou morar neles. E ao caráter de homem de fogo, simbolizado por uma
“taturana” Tatarana –, lagarta de pelos que queimam como o fogo e que depois de se
fechar em crisálida (casulo), transforma-se em um ser multicores aéreo, a borboleta
símbolo de transformação, metamorfose. O elemento fogo muito se relaciona com Riobaldo
pelo seu poder de fogo bélico, pelo fogo de sua disposição para amar e pela sua luz de
sabedoria na eterna busca pelo esclarecimento de suas dúvidas existenciais, morais e
religiosas. Sua inquietude muito o aproxima de seu grande mestre e amigo Bebelo que
muito aprendeu com ele e muito ensinou a Riobaldo.
Outras referências ígneas para Riobaldo estão nas figuras de Medeiro Vaz, Joca
Ramiro e Candelário, grandes chefes não pelo poder de liderança, mas também pelo
caráter singular de suas resoluções e postura nobre. O fogo deles vem do céu, vem de
forças ígneas superiores, quase divinas. Medeiro Vaz, a mais alta luz de todos, fixou suas
raízes na terra, como mencionamos, mas correu o sertão como um Diógenes à procura
de uma luz que pudesse clarear seus breus de noites trevosas, e Joca Ramiro foi o seu sol.
Esse Ramiro, amarrado aos valores de fortes amizades e amparado em sua alta nobreza de
alma, acreditou poder manter o sertão na ordem antiga das tochas, candeias e fogueiras,
mas o sertão que ele queria iluminar queria o cinza do chumbo e o negro da pólvora no
estampido de um fogo de destruição e morte. Candelário era o mais compreensível de
todos na visão de Riobaldo; em sua loucura, impaciência e inquietude, ele tinha um motivo e
campeava a morte na tentativa de adiantar seus prazos, pois acreditava estar com lepra:
“Sendo que queria morrer, dava resultado que mandava mortes, e
matava. Doido, era? Quem não é, mesmo eu ou o senhor? Mas, aquele
homem, eu estimava. Porque, ao menos, ele, possuía o sabido motivo.”
(ROSA, 1986, 212)
Em toda a sua loucura, ainda pode ser mbolo ígneo de razão, segundo Ana Maria
Machado, quando se presta atenção ao nome Candelário, “que evoca o fogo, lembrando
ainda a luz da razão que sempre marca suas ações sensatas” (MACHADO, 1991, 33), uma
delas quando impede o Hermógenes de matar um rapaz baiano feito prisioneiro,
favorecendo “perdão a ele, por causa de sua mocidade.” (ROSA, 1986, 210)
Voltando ao fogo bélico de Tatarana, a imagem da lagarta-de-fogo vai se concretizar
no seu batismo definitivo de jagunço num ataque sorrateiro organizado pelo Hermógenes
aos soldados e homens de Bebelo, quando a guerra dos jagunços era com o governo.
No minuto que antecede o tiroteio de guerra, Riobaldo se entrega à regência do fogo
luciferiano do Hermógenes, que o preza por Tatarana como os outros e atira.
“Eu não campeava a morte. Seguro nasci, sou feito. D'o
Hermógenes ali junto estar, naquela hora, digo ao senhor, gostei.
“Riobaldo, Tatarana! É o é...” ele me governou, de repente. Aceitei.
Desamarrei mão, de vez pronta: eu já tinha resumido pontaria: eu tive
consolo duma coisa, que era que aquele homem alto não podia ser
Bebelo... Não tremi, e escutei meu tiro, e o do Hermógenes; e o homem alto
caiu certo morto, rolou na má poeira. Me deu uma raiva, dele, deles todos. E
em toda a parte, a sobre, o tiroteio tinha começado.
Estrondou. Falavam os rifles e outros manlixa, granadeira e
comblém. Festa de guerra.
(...) Atirei, minhas vezes. Aí, tomei ar. (...) Demais é que se está:
muito no meio do nada. (...) Agora era gritar ódio, caso quisesse, e o ar
estragou, trançado de assovios de ferro metal.” (ROSA, 1986, p.182)
Fuzilado o primeiro homem rola morto na poeira, ação que nos sugere a
imagem bíblica que do pó ele veio e ao voltará. Sugere também a idéia de que
chão que cai homem morto em guerra fica maldito, de terra e de poeira. Isso
reforça a imagem do elemento terra como um elemento devorador de tudo o que
vive e morre sobre ele. O tiroteio também rola com muito barulho das armas e uma
necessidade de fôlego de Riobaldo, porque o bem atirar requer instantes sem
respiração. É nesse instante que, em sua narrativa, Riobaldo faz uma reflexão que
pareceu remeter ao início do romance, pois “Nonada parece dialogar muito
estreitamente com “Demais é que se está: muito no meio do nada.” (ROSA, 1986,
182), cuja função simbólica nos leva à imagem da metáfora aérea rasgada pelas
muitas sementes ígneas de ferro metal que podem ser os tiros que o senhor ouviu.
Isso tudo parece funcionar como uma afirmação do elemento fogo como a metáfora
elementar que rege o batismo de fogo de Riobaldo Tatarana auxiliada por sutis
imagens de terra e ar que lembram a epígrafe o diabo (fogo) na rua (terra/poeira), no
meio (do nada) do redemunho (ar, terra e fogo), como vimos acentuando.
Essa imagem, inclusive, acaba sendo, mais tarde, questionada pelo narrador,
contestada. Ele, aliás, vai até impor um valor e um desejo baseados nessa
problemática que foi muito brilhantemente debatida pela crítica da obra de
Guimarães Rosa
29
:
“Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o
bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o
branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da
tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este
mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo
do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...”
(ROSA, 1986, p. 191/192).
As misturas no Grande Sertão: Veredas são o que, na verdade, definiu os
rumos de nosso trabalho, pois não acreditamos ser possível um estudo separado de
cada um dos quatro elementos, haja vista que as metáforas elementares se casam,
unem-se e adulteram uniões num jogo de dois ou três, sendo o terceiro,
frequentemente, o elemento intruso. Se pensarmos que cada elemento, nessa
relação, representa uma visão diferente, uma forma diferente de narrar à
experiência, o casamento e a influência de um terceiro elemento nessa união,
representaria a mistura dos modos de dizer que marca a realidade plural da cultura
brasileira. As antíteses apresentadas pelo narrador “preto” e “branco”, “feio” e
“bonito”, “alegria” e “tristeza” deságuam numa fixa necessidade de separação
30
,
representada, metaforicamente, por uma imagem de terra “Quero os todos pastos
demarcados”, que é o elemento fixo que nos leva às fantasias da vontade e às
reflexões do repouso, conforme aponta Bachelard, em seus livros, A Terra e os
Devaneios da Vontade e A Terra e os Devaneios do Repouso.
Mais adiante, travando conhecimento com Sô Candelário no É-Já, Riobaldo
reafirma o fogo e o ar/vento como os elementos que, casados, regem essa
personagem. Reafirma também sua admiração por esse chefe que era visto pelo
narrador como o de loucuras mais sensatas pelo fato de que ele, como mais
ninguém naquela confusão, tinha o mais acertado motivo.
29
Davi Arrigucci Jr., em um momento de seu ensaio de interpretação do Grande Sertão: Veredas,
intitulado “O Mundo Misturado”, associa as misturas do mundo mítico-metafísico de Riobaldo,
metaforicamente apresentadas, à “mistura das formas narrativas utilizada para representar de que
nos fala” (ARRIGUCCI JR., 1994, p.10) o narrador. Márcia Marques de Morais, baseando-se nas
colocações de Arrigucci, sublinhou “o argumento de que a travessia da narrativa de Riobaldo seria
um verdadeiro processo de esclarecimento”, defendendo a causa “de que o mito, em seu incessante
movimento de sempre propor enigmas, é instância a que retorna o sujeito, angustiado, na busca de
conhecer(-se).” (MORAIS, 2001, p.10)
30
O narrador sabe que essa separação é impossível, mas gostaria muito de que ela ocorresse. Seu
conhecimento disso, inclusive, também faz parte de seu processo de aprendizado e
autoconhecimento.
“Sô Candelário galopava em frente de todos. Se ia feito o rei dos
ventos.” (ROSA, 1986, p.210) Candelário (...) olhava para os horizontes,
sem paciência neles, parecia querer mesmo: guerra, a guerra, muita guerra.
Donde ele era, donde vindo? Me disseram: desses desertos da Bahia. (...)
“Riobaldo, Tatarana, eu sei...” ele falou “Tu atira bem, tem o adestro
d'armas...” E foi andando, acho que dele ainda ouvi:...“amizade nas
festas...”? Conseguia nem ficar parado. (...) Que Candelário caçava era
a morte. E bebia, quase constantemente, sua forte cachaça. Por quê? Digo
ao senhor: ele tinha medo de estar com o mal-de-lázaro. (...) Vivia em fogo
de idéia.” (ROSA, 1986, p.211)
Riobaldo não perde oportunidade de também se reafirmar como um representante do
elemento fogo na força de sua alcunha de Tatarana, como também não deixa de dizer que
Candelário, sendo do ar e do fogo, bebia uma cachaça forte, representando que ele
bebia fogo e cuspia fogo em sua sanha de guerrear, matar e morrer. mesmo um alto
poder de fogo para parar esse homem chamado Candelário, segundo o que descreveu
João Goanhá, quando disse ter sido aquele “Morto em tiroteio de combate” (ROSA, 1986,
p.53) por metralhadoras que serraram o corpo dele de esguelha, acima da cintura.
Ainda no É-Já e sob o comando de Candelário, Riobaldo, Diadorim e o Caçanje
vão campear notícias de guerra. O movimento do ar/vento vem como um mau presságio no
curso das imagens aéreas que se seguem, quando os três jagunços saem por notícias. A
epígrafe do romance novamente é evocada nessa ocasião:
“Mas, ai meu cavalo f'losofou: refugou baixo e refugou alto, se
puxando para a beira da mão esquerda da estrada, por pouco não deu
comigo no chão. E o que era, que estava assombrando o animal, era uma
folha seca esvoaçada, que sobre se viu quase nos olhos e nas orelhas dele.
Do vento. Do vento que vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe a
briga de ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, o doido
espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no alto, o ponto às
voltas, folharada, e ramaredo quebrado, no estalar de pios assovios, se
torcendo turvo, esbugalhando. Senti meu cavalo como meu corpo. Aquilo
passou, embora, o ró-ró. (...) O demônio se vertia ali, dentro viajava.”
(ROSA, 1986, p.213)
Riobaldo quase foi ao chão com o refugo do cavalo assombrado por uma folha que
rodopiava nos ventos encontrados do vórtice. O papel desse vento cruzado, quando
assombra o cavalo de Riobaldo seria o de jogar o jagunço no chão para fixá-lo na idéia de
que o regente de tudo o que de mal campeava livre naquele sertão era o diabo. O diabo,
conforme o imaginário popular, viaja no redemoinho como mencionamos, e essa imagem
surge no exato momento em que Riobaldo, com os outros dois jagunços, sai procurando o
certo (as notícias) no incerto (no/do sertão) tal como muito bem apontou Galvão (1972).
Galvão ainda escreve que “O Diabo, algo concretizado e corporificado no meio de algo
móvel e envolvente como o redemoinho, é a imagem-mor do certo no incerto.” (GALVÃO,
1972, p.129), o que carrega, com mais força, a idéia de dúvida constante que Riobaldo tem
em relação ao seu pacto e em relação ao que vem depois – os resultados.
Duvidamos também de tudo que afirmamos no curso deste estudo, campeamos
nossas idéias tentando levar a um plural resultado que se abre em diversas perguntas
nossas sobre os conceitos que nós mesmos criamos, pois como Riobaldo, não temos as
respostas, mas a boa vontade de tentar impor uma incerteza menor para as nossas
perguntas. E de onde vem a nobreza ígnea e aérea de Joca Ramiro é uma de nossas
maiores dúvidas.
Na nossa leitura, ela vem do céu para a terra. Mas isso é um conceito arbitrário que
conforta nossos caminhos rumo ao objetivo desta dissertação. Um conceito arbitrário que,
apesar de tudo, tomaremos como possibilidade interpretativa do Grande Sertão: Veredas.
Joca Ramiro é um poder, uma lei quase divina que vem do mesmo mundo de Medeiro Vaz e
traz consigo o elétrico Candelário como quem carrega um raio, aliás, primeiro vem o raio
e depois o trovão. Primeiro, vem Candelário (o raio), depois, Joca Ramiro (o trovão).
Como um alto som que vem do céu e faz tremer toda a terra, mas que ninguém pode
segurar muito nos olhos, Joca Ramiro chega no É-Já.
“E, no abre-vento, a toda cavaleirama chegando, empiquetados,
com ferragem de cascos no pedregulho. (...) Era ele, num cavalo branco
cavalo que me olha de todos os altos. (...) Joca Ramiro veio de lá, em
alargados vagarosos passos, queria correr o acampamento, saudar um e
outro, a palavrinha que fosse, um dito de apreço e apraz. O andar dele vi
certo: alteado e imponente, como o de ninguém.” (ROSA, 1986, p.215,216)
Com seu cavalo de cor e altura de nuvem, ele chega e quer saudar a todos. Seu
andar vagaroso de nuvem percorre todo o acampamento e, como um vento, saúda todo
mundo e anda como ninguém, como se não existisse e fosse um conceito, um desejo e
uma forte vontade de impor ordem regular. Sua imagem era tão inefável que Riobaldo nem
tomou tento de sua estada ali, a não ser pelo fato de que Ramiro o presenteou com um rifle
reiúno.
“Eles estavam indo de saída. Montado no cavalo branco, Joca
Ramiro deu uma despedida. Vi que ele com os olhos caçou Diadorim.
Candelário gritou: “Viva Jesus, em rotas e vantagens!E, num bufúrdio,
todos esporaram, andaram, ao assaz. A alta poeira, que demorava. Aquilo
parecia uma música tocando.” (ROSA, 1986, p.217)
Candelário grita como se louvasse Joca Ramiro ao invés do Cristo. A presença
dos dois grandes chefes jagunços desassossega a terra (o sertão) que, através da poeira,
demora a voltar a seu estado de repouso, sono e devaneio. A imagem de lentidão depois da
pressa com o ar, embalando a terra através da poeira, na visão do narrador, era como se
fosse música o que reforçaria ainda mais a metáfora aérea que rege a partida dos dois
chefes rumo ao ponto decisivo da batalha contra Zé Bebelo e os soldados do governo.
2.5.4.O julgamento de Zé Bebelo
Bebelo perde de forma inusitada e cai nas mãos dos jagunços com a ajuda de
Riobaldo que, na loucura do fogo de combate, grita ordem inventada de que Joca Ramiro o
queria vivo, arrependendo-se depois em contra-ordem, esquecendo-se, depois do fato, de
que ao usar o nome de Joca Ramiro, a ordem primeira fica sendo a única. Esse
arrependimento vem da lembrança da possibilidade de Bebelo ser morto na desonra,
igual a um porco escolhido para o abate. Isso para Riobaldo não podia ser, pois o amigo era
um homem de grande valia.
Esses eventos deságuam no carnavalizado julgamento de Bebelo que funcionaria
como peça fundamental para nossas impressões sobre o caráter ígneo e aéreo dessa
personagem.
Bebelo era a lei da cidade, e Joca Ramiro, a do sertão. Para o primeiro, o
segundo é a desordem e o crime, mas, na fabulosa peça do julgamento, é este quem julga
aquele. Isso “...É, é o mundo à revelia!...” (ROSA, 1986, p.222), como exclama o próprio
Bebelo que ironiza o evento. Riobaldo parece não entender o que está acontecendo:
“Também o que eu não entendia possível era Zé Bebelo preso. Ele
não era criatura que se prende, pessoa coisa de se haver às mãos.
Azougue vapor...” (ROSA, 1986, p.222);
Isso talvez se deva ao fato de que Tatarana reconhecia como definitiva a
superioridade de Bebelo em relação a toda aquela gente. O caráter aéreo de Bebelo
sempre marcou Riobaldo que observou ser Bebelo capaz de pegar “no ar as pessoas”
(ROSA, 1986, 63) e, segundo Tatarana, homem com essas qualidades era como um
azougue vapor que não se pode guardar/pegar de fechado nas mãos.
Para a crítica Kathrin Holzermayr Rosenfield, a palavra “‘Azougue’ significa o ser ou
a qualidade do mercúrio, isto é, da “matéria vertente” por excelência, da coisa fugidia que se
subtrai a todo domínio, a todo controle e limite racional.” (ROSENFIELD, 2006, p.218) Na
nossa interpretação, Riobaldo, quando compara Bebelo a um azougue e ainda
acrescenta a imagem do vapor, imprime no amigo a figura de um líquido metálico que
evapora. Isso pode desembocar na imagem ígnea e aérea de Bebelo com seu fogo /
temperatura / temperamento e seus voos sem asas. As reticências, após a expressão
“Azougue vapor...”, reforçam o caráter vaporoso /aéreo dessa imagem. Por tudo isso,
também acreditamos que entender Bebelo, para Riobaldo, é entender um pouco do que
o próprio narrador chama de “matéria vertente” que, de líquida, evapora-se, para liquefazer
novamente e solidifica-se, para depois evaporar, saindo mais uma vez do líquido que antes
foi sólido numa infinita sublimação. Isso estaria estreitamente relacionado com a busca pelo
conhecimento, pelo saber das coisas que muitos tanto ignoram, como na fala de Joca
Ramiro a Zé Bebelo e a resposta deste na hora do julgamento:
“– “Adianta querer saber muita coisa? (...) Sabença aprendida não
adiantou para nada... Serviu algum?”
– Sempre serve, chefe” (ROSA, 1986, p.226)
Para Bebelo, o saber é de muita serventia e nunca deve ser ignorado. Da sua forma,
Bebelo também queria entender da matéria vertente, queria, se possível, bebê-la,
possibilidade essa que pode unir-se às diversas interpretações de seu nome apontadas por
Ana Maria Machado, tais como “o caráter duplamente bélico” (MACHADO, 1991, p.49) em
Rebêlo
31
e o eco “com o ruído das balas (...) de mistura com Bem-Bem” (MACHADO, 1991,
31
Versão original de seu sobrenome. O nome completo e verdadeiro de Bebelo é José Rebêlo
Adro Antunes e seu local de nascimento é na vila do Carmo da Confusão. Ainda sobre seu nome e
local de origem Ana Maria Machado escreve: Carmo e Confusão na sua origem, religião e guerra no
Nome de sua vila natal e no seu Nome, a lembrar com o Adro a entrada para a igreja, (...) com o
Antunes a predestinação para uma vida andarilha e nômade. (...) Bebelo é uma variante do
sobrenome materno, Rebêlo. E é ele o único dos jagunços que pode se considerado como rebelde,
mais que revoltado, o único a misturar a luta com a política” (MACHADO, 1991, 49)
p.50) de seu Joãozinho Bem-Bem, citado por Riobaldo e personagem do conto A hora e vez
de Augusto Matraga, de Sagarana.
Num trecho de debate entre Joca Ramiro e Bebelo, durante o julgamento, temos
uma boa evidência, se nos permite o tanto, de que o réu era governado pela inquietude dos
elementos superiores, fogo e ar.
– “O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos
de seu costume velho de lei...”
“Velho é, o que já está de si desencaminhado. O velho valeu
enquanto foi novo...”
– “O senhor não é do sertão. Não é da terra...”
“Sou do fogo? Sou do ar? Da terra é é a minhoca que galinha
come e cata: esgaravata!” (ROSA, 1986, p.227)
Quando pensa na possibilidade de ser do fogo e do ar, Bebelo descarta seu
vínculo com a terra de forma pejorativa, anunciando que quem pertence a esse elemento
são os vermes como as minhocas.
Antes de qualquer ponderação, o apressado Sô Candelário parte para o resultado de
condenação do preso com as impaciências da regência do fogo belicoso que o excita sem
parar. O fogo evocado por ele dessa vez é o de gelo das frias armas brancas que está mais
no fogo dos internos de quem as porta do que nelas próprias.
“Sô Candelário (...) Sobrava fala: “Com efeito! Com efeito!...”
falou. Vai, vai, forteou mais a voz: quero pergunta: se ele convém em
nós dois resolvermos isto à faca! Pergunto para briga de duelo... É o que
acho! Carece mais de discussão não... Zé Bebelo e eu – nós dois, na
faca!...” (ROSA, 1986, p.231)
Depois das ponderações de Joca Ramiro, tentando acalmar os ânimos de
Candelário, os outros chefes deram suas opiniões, sendo a do Hermógenes e a do Ricardão
as de morte para Bebelo e as de Titão Passos, Candelário, João Goanhá e do raso
jagunço Riobaldo as de preservação da vida de Bebelo. O julgamento transcorre de forma
muito jocosamente particular na Fazenda Sempre-Verde com o Hermógenes confundindo
sentença final com acusação.
– “Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar este cujo
feito porco. O sangrante... Ou então botar atravessado no chão, a gente
todos passava a cavalo por riba dele a ver se vida sobrava, para não
sobrar!” (ROSA, 1986, p.229)
E Sô Candelário propondo continuidade na guerra depois de achar por bem perdoar e soltar
Zé Bebelo como se tudo não passasse de um jogo de coragem e honra.
– “... Pois, sendo assim, o que acho é que se deve de tornar a soltar
este homem, com o compromisso de ir juntar outra vez seu pessoal dele e
voltar aqui no Norte, para a guerra poder continuar mais, perfeita,
diversificada...” (ROSA, 1986, p.232)
Há, na postura dos dois chefes, uma sutil divergência que vai além de uma simples
opinião diferente sobre o destino de Bebelo. Riobaldo foi o único que soube captar isso:
para ele, “Sô Candelário não gostava do Hermógenes” (ROSA, 1986, 232) e, para nós, esse
não gostar é representação do antagonismo existente entre o fogo da luz divina
32
e o fogo
do magma infernal
33
. Esses dois fogos figuram em todo o romance de Rosa como uma clara
presença do tema universal da eterna luta entre o bem e o mal.
Terminado o julgamento, temos como saldo final que as mais sensatas palavras de
toda essa peça teatral
34
foram as fixas e terrenas do Ricardão, que giraram em torno da
palavra fechada do bando de jagunços com os coronéis locais e as perdas financeiras
provocadas pela guerra, e as do próprio Riobaldo, que, aéreas e ígneas superiores, giraram
em torno dos temas da fama, da glória, da honra e do poder dos chefes jagunços
vencedores, além do valor e do brilho de Bebelo como homem. Daí o que se deu foi a
sentença final de Joca Ramiro que definiu para Bebelo o exílio sem volta para Minas
Gerais e Bahia até quando Joca Ramiro “vivo for” ou dar “contra-ordem”.
O chefe Joca Ramiro, em toda a sua humildade de real grandeza, fez julgamento
sentado no chão. Essa sua permanência e proximidade com o elemento terra gerou, em
32
De Sô Candelário.
33
Do Hermógenes.
34
Este termo, peça teatral, usado por nós, funda-se na visão de Willi Bolle em seu livro
“grandesertão.br”: “O julgamento de Zé Bebelo é a peça-chave de uma representação, teatral,
retórica e mascarada, em que o sistema jagunço fala de si mesmo.” (BOLLE, 2004, p.126).
nossa interpretação, uma mescla mesmo que temporária do elemento terra com os
elementos superiores que estão envolvidos na personagem, no caso, o fogo e o ar:
“Joca Ramiro disse, em final. E se levantou, num repente. Ah,
quando ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia as pessoas, o
chão, as árvores desencontradas. E todos também, ao em um tempo feito
um boi só, ou um gado em círculos, ou um relincho de cavalo. Levantaram
campo.” (ROSA, 1986, p.245)
Quando Joca Ramiro se levanta, tudo também se ergue com ele as pessoas, o
chão, as árvores como num panteísmo, as coisas a ele se misturam, a terra se levanta
com o ar e o fogo da figura desse grande chefe, como se naquele momento fizesse parte de
uma indumentária ígnea e aérea que veste o corpo dele como um manto. No Grande
Sertão: Veredas, na visão do crítico Davi Arrigucci Júnior., tudo é muito misturado e, a nosso
ver, os quatro elementos não ficam de fora dessa questão. Joca Ramiro e o outro grande
chefe Medeiro Vaz além de Riobaldo como chefe Urutu-Branco são personagens que
agenciam as misturas entre os quatro elementos ora em casamentos com intervenções
35
,
ora em misturas de dois pares
36
. É importante, em todo caso, entendermos que a crença em
padrões de interpretação numa leitura do Grande Sertão: Veredas pode ser equivocada,
portanto, toda a referência a eles é arbitrária e, muitas vezes, pode servir apenas a uma
forma específica de ler o romance de Rosa.
Tendo terminado o julgamento e despachado Bebelo, os jagunços se reuniram
para comer e beber, pois todos estavam cansados de toda aquela diversa novidade e
com fome. Talvez em festa de glória.
“Daí, estávamos todos pegando o que comer, que eram essas
grandes abundâncias. Angu e couve, abóbora-moranga cozida, torresmos,
e em toda fogueira assavam mantas de carnes. Quem quisesse sopa, era
35
O casamento entre elementos pode se dar, por exemplo, de forma a unir o fogo com o ar, ou a água
com a terra; nesse caso, respectivamente, superior com superior e inferior com inferior. Ainda pode
haver casamentos do ar com a água e do fogo com a terra, ou do ar com a terra e do fogo com a
água; as intervenções, nesse caso, podem ser de qualquer elemento, ou seja, qualquer um pode ser
o terceiro numa união entre dois elementos; por exemplo, na união do fogo com o ar, a água ou a
terra podem agir como intrusos. A essas uniões convencionamos chamar de “casamentos com
intervenções”.
36
Essas misturas podem estar no acúmulo de metáforas elementares que propõe a união do fogo
com o ar em uma imagem e da terra com a água na imagem seguinte simultaneamente, ou a união
do fogo com a terra e da água com o ar, no mesmo esquema e na união do fogo com a água e da
terra com o ar. A essas uniões convencionamos chamar de “misturas de dois pares”.
ir se aquinhoar na porta-da-cozinha. A quantidade de pratos era que
faltava. E assaz muita cachaça se tomou, que Joca Ramiro mandou
satisfazer goles a todos extraordinária de boa. O senhor havia de gostar
de ver aquela ajuntação de povo, as coisas que falavam e faziam, o jeito
como podiam se rir, na vadiação, todos bem comidos, entalagados.”
(ROSA, 1986, 246,247)
Era ao redor do fogo de uma fogueira que o homem antigo intercambiava suas
experiências, seus aprendizados. Até os dias de hoje gostamos de contar histórias em volta
de fogueiras. Ali o fogo aquece nossos corpos, ensina-nos a pensar e a trocar experiências,
ilumina as trevas e prepara nossos alimentos. Na gastronomia ele aquece para cozinhar,
fritar, assar, preparar o alimento para o homem comer. Além de representar a fermentação
do fogo dionisíaco do álcool que acende os outros fogos no interior do homem.
Segundo Bachelard, “a carne cozida representa, antes de tudo, a putrefação vencida.
Juntamente com a bebida fermentada, ela é o princípio do banquete” (BACHELARD, 1994,
p. 151) e, portanto, o princípio do prazer e da satisfação. O alimento cozido não deu mais
força ao homem, deu, antes, sabor, festa, prazer e satisfação. Mas, para obtermos essas
delícias, precisamos saber, antes de tudo, controlar o fogo, saber administrá-lo, saber definir
seu momento, seu tempo e sua intensidade. Metaforicamente podemos dizer que o fogo
está em tudo o que se tem para aprender. que se ter conhecimento ou, pelo menos,
experiência, para lidar com o fogo nos trabalhos de cozinha, pois o fogo ali, não está
somente no fogão, no forno ou na fogueira, está também na picância dos temperos. A
pimenta, por exemplo, é muito usada na culinária brasileira e o fogo contido nela vai
depender da receita ou do tipo de pimenta usados.
O caráter festivo do fogo que cozinha está na união e confraternização entre os
homens. Esse fogo une os homens, pacifica-os, alegra-os e lhes proporciona bons
momentos de prazer. Nas orgias romanas da Antiguidade, por exemplo, homens e mulheres
uniam-se para satisfazer os prazeres da carne com três tipos diferentes de fogo: o
sexualizado, o alcoólico e o do fogão. O primeiro é o que está relacionado com o amor e a
paixão erótica. O segundo é o fogo gastronômico que sempre foi sinônimo de prazer e
festividade, porque “o que o fogo lambe tem outro gosto na boca dos homens”
(BACHELARD, 1994, p. 85), já que o fogo muda tudo e esse gosto, nas cozinhas e
fogueiras, é familiar e agradável, o que justifica o fato de ele ser parte essencial da cultura.
O terceiro nos faz crer que pensar numa garrafa de aguardente é imaginar “uma grande
potência num pequeno volume” (BACHELARD, 1994, p. 124). Uma dose de seu conteúdo já
queima o peito e atiça as idéias, as coragens e as alegrias. Segundo Bachelard, “a
aguardente é a água de fogo. É uma água que queima a língua e se inflama à menor faísca.
(...) De todas as matérias do mundo, a aguardente é a única tão próxima da matéria do fogo”
(BACHELARD, 1994, p. 123/124). A aguardente “é o álcool que arde; tem a marca do signo
qualitativo, masculino, do fogo” (BACHELARD, 1994, p. 134). Esse fogo dionisíaco, orgíaco
e sexualizado, acende quase todos os outros fogos no interior do homem, dando-lhe desejo,
coragem, prazer, embriaguez e descontração para dizer o que pensa e sente, quase
sempre, sem analisar as conseqüências. Duplo, esse fogo pode representar o vinho do
milagre e da comunhão, como também o vinho da orgia e do vício, servindo a Deus e ao
Diabo.
Os jagunços em Grande Sertão: Veredas estão quase sempre comendo pratos
típicos da culinária mineira e baiana e bebendo cachaça em seus acampamentos. Nessas
ocasiões, o elemento fogo é manipulado pelas mãos dos homens para produzir calor e
aquecer os alimentos. O bem comer, beber e dormir eram bastante valorizados pelos
jagunços que, apesar do constante desconforto de seus pontos de parada, faziam questão
dessas regalias. Eram eles mesmos quem administravam o de comer; dentre eles, o
personagem do jagunço Jacaré era o que mais se prestava aos serviços de culinária,
quando não estava dando fogo de combate em guerra
37
.
Joca Ramiro e os outros chefes sempre buscaram ponderar o fato de que andar pelo
sertão com os bandos de cavaleiros todos reunidos no levantar alta poeira não era prudente
pela despesa que os muitos davam e a exposição do bando em sua real quantidade e
paradeiro. Por isso, quase sempre eles andavam em grupos sortidos pelo sertão em rumos
diversos, mas que, de quando em quando, se cruzavam para atendimento de necessidades
ou troca de informações, instruções e ordens vindas da cúpula jagunça
38
. Parados eles não
podiam ficar por muito tempo em um lugar por causa da constante perseguição dos
soldados do governo que caçavam os jagunços pelo sertão. Mas era tempo de recesso, eles
tinham derrotado a forte empresa de Bebelo e desestruturado o esquema de limpeza do
sertão, proposto pelos que o patrocinavam de acabar com o jaguncismo no interior de Minas
Gerais e Bahia; portanto, podia-se campear assim em bando reduzido com algum vigiado
sossego.
Seguindo o bando liderado por Titão Passos e junto com Diadorim, Riobaldo vai em
direção, segundo a crítica, a um locus amoenus do romance de Rosa, a Guararavacã do
Guaicuí, em recesso de guerra e ele tem a revelação de que seu “destino” é “traçado”. No
37
O personagem Jacaré participa da batalha do cerco na Casa dos Tucanos: “o Jacaré mesmo
combatia também, às vezes em que não estava cozinhando, e vinha atirar, da beira duma janela, com
o Mijafogo.” (ROSA, 1986, p.304)
38
Chamamos cúpula jagunça os chefes Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Candelário, Titão Passos,
Hermógenes e Ricardão.
caminho, o narrador relata o trajeto e descreve um cenário de belezas num discurso regido
por metáforas elementares que se unem e se cruzam poeticamente em prol da criação de
um clima de tranquilidade que propicia ao narrador e leitor o jogo de especular idéias.
“Mas saímos, saímos. Subimos. Ao quando um belo dia, a gente
parava em macias terras, agradáveis. As muitas águas. Os verdes
estavam se gastando. (...) O manuelzinho-da-croa! Diadorim, comigo. As
garças, elas em asas. O rio desmazelado, livre rolador.” (ROSA, 1986,
p.250)
As imagens aéreas são as primeiras, e elas nos levam a entender que os jagunços
subiam serras, terras altas rumo a um lugar de descanso seguro. O adjetivo, “macias”,
proporciona um caráter feminino às terras” a que os jagunços chegaram; essas terras
macias representariam, metaforicamente, o descanso de guerra de que os bravos iriam dali
em diante desfrutar. A terra macia pode ser vista como metáfora de trabalho leve, cotidiano,
fora dos duros e árduos labores de guerra ou servidão debaixo de ordens severas e
obrigações.
O caminho também era ornado de muitas águas e muito verde. Aliás, no Grande
Sertão: Veredas, perto de muita água quase sempre muito verde acreditamos numa
associação da cor da água à palma de buriti, aos olhos de Diadorim e ao vento conforme se
em Morais (2001), atribuindo essa associação ao turbilhão de reminiscência que
transportava Riobaldo ao passado e a outros lugares: as imagens do Chapadão do Urucuia
e a imagem dos olhos verdes envelhecidos de Diadorim que o transportava aos olhos de
velhice da mãe. Para MORAIS (2001), que se baseou no ensaio Trilhas no Grande Sertão
de M. Cavalcanti Proença
39
, “O verde é o do rio, o do buriti, o da ‘vereda em capim tem-te
que verde’ (ROSA, 1986, p.253), e o vento, que, segundo o narrador, ‘é verde’
40
(ROSA,
1986, p.253). A esse verde, por sua vez, associa-se o rio que passava no sítio do Caramujo”
(MORAIS, 2001, p.19) que foi local de morada de Riobaldo na infância. O nome desse rio,
afluente do Paracatu, é rio Verde.
Apesar da presença marcante do elemento água, o elemento ar parece querer
predominar no ambiente e na memória do narrador que logo traz a imagem do manuelzinho-
da-croa em suas lembranças. Junto a ela vem a das asas brancas de paz das garças e a
39
Proença vê o vento, a chapada e o buritizal como personagens importantes do “plano mítico” do
Grande Sertão: Veredas, conforme observou Morais (2001).
40
Morais (2001) observa que na frase “O vento é verde”, Rosa copia o 2º verso do poema de LORCA,
1989, p.147: “Verde viento. Verdes ramas”.
liberdade dessas associa-se à imagem seguinte do rolar desmazelado do rio, que nos faz
mergulhar novamente nas metáforas do elemento água. Na nossa interpretação, isso pode
ser um indício de que ali, naquele lugar ameno, o tempo vai rolar despreocupado, permitindo
a Riobaldo o pensar e repensar do jogo de especular idéia, na tentativa de encontrar seus
caminhos. O rio ali vai funcionar como um clépsidra desregulado, rolando, fluindo suas
águas abaixo, levando o tempo consigo.
2.5.5.Na Guararavacã do Guaicuí
Os elementos água e ar concorrem, na narrativa de Riobaldo, na sua chegada na
Tapera Nhã, “perto da Guararavacã do Guaicuí” (ROSA, 1986, p.250), de forma
harmoniosa. O ar ainda se junta ao fogo para o dia se esquentar, mas a abundância da
água rouba a cena mais uma vez, com a ajuda da necessidade do gado de se refrescar e
pastar bom capim em ilha comprida no meio do rio. Fora dessa imagem, cena poética e
atraente da imaginação literária, há, nas sutilezas da narrativa de Riobaldo, uma reflexão
sobre o não-saber e o querer-saber, que surge dominada por metáforas aéreas.
“Gavião dava gritos, até o dia muito se esquentar. então aquelas
fileiras de reses caminhavam para a beira do rio, enchiam a praia, parados,
ou refrescavam dentro d'água. Às vezes chegavam a nado até em cima
duma ilha comprida, onde o capim era lindo verdejo. O que é paz, cresce
por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia de tudo só ser o
passado no futuro. Imaginei esses sonhos. Me lembrei do não-saber. E eu
não tinha notícia de ninguém, de coisa nenhuma deste mundo” (ROSA,
1986, p.250,251)
O vento, sendo verde, sopra o berro do boi que come capim verde. Mal viajados no
espaço, os sons dos ermos pintam de verdes, os pensamentos de Riobaldo que põe o
passado no futuro em sonhos/voos capazes de transportar suas idéias ao eterno
questionamento do não-saber e querer-saber, ter notícia correta e real de todos e de tudo,
ser como ave que voa alto e tudo sabe sobre o que vê. Segundo Riobaldo, o “sertão sendo
do sol e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam, às imensidões, por sobre” (ROSA,
1986, p.479), é matéria de domínio das aves, pois elas tudo sabem dele por estarem por
cima, o que nos leva a crer que o elemento ar pode também ser visto como o principal
responsável pelo fôlego/movimento e pela ação/narração em Grande Sertão: Veredas:
“Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião,
gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com
pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas...”
(ROSA, 1986, p.508)
Riobaldo, num dia, dentre os vários que o bando ficou de parada ali naquele lugar,
sem saber o que ainda estava para acontecer e querendo apalpar os ares feito quem voa
numa sela sem estribos, montou em seu cavalo e saiu à procura de gente diferente, mas “o
mundo estava vazio”; ele atravessou “um ribeirão verde” e, de repente, “tinha culpa de tudo”
sem saber como não podia ter. Esbarrou num corguinho, “um riachim à-toa de branquinho”
que lhe disse “Não...”, e ele teve que obedecer, abandonando a vontade de ir adiante. Ele
“vinha tão afogado” que dormiu: “Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é
bonito é absurdo” (ROSA, 1986, p.251,252). Na busca de si mesmo, mas sempre sem as
respostas definitivas, Riobaldo navegava na sela de seu cavalo à procura de novos rostos,
novas verdades, talvez porque ele não só queria saber, mas também porque ele queria não-
saber para aliviar o sofrimento. Entretanto, todo alívio alcançado por Riobaldo no Grande
Sertão: Veredas é efêmero, ou seja, nenhuma conquista desse alívio é definitiva, pois sua
personagem também carrega em si o peso da água.
As metáforas elementares aéreas e hídricas ilustram essa busca com ares de fuga
como se Riobaldo quisesse nos dizer, com elas, que entender o que lhe estava
acontecendo, naquele momento, era como reter o vazio do ar ou a fluidez da água com as
mãos. Afogado, ele dormiu nos ventos como pássaro que alça voo da água para o céu. Na
visão de Bachelard, em seu livro O Ar e os Sonhos, A imaginação pode continuar no ar os
seus sonhos da água, mas não pode em seguida viver a transcendência imaginária inversa”
(BACHELARD, 2001, p.76) como argumentamos anteriormente. O nado de braçadas,
entretanto, pode transportar à imagem de um voo dentro d'água como se os braços fossem
asas, e toda vez que, depois de muito penar em longas marchas, os jagunços encontram
um remanso de rio, uma cachoeira ou uma lagoa, a liberdade de alegria e o clima de festa
perto da água superam as amarguras do trajeto, o que nos leva a enxergar no Grande
Sertão: Veredas uma possível quebra na ordem do nado ao voo e a pensar na possibilidade
do voo no nado já que “Perto de muita água, tudo é feliz” (ROSA, 1986, p.21). Essa
relativização, no entanto, não desfaz o argumento primeiro que colocamos pelo fato de que
ele, a nosso ver, parece ser o mais pertinente.
Voltando à questão dos prazos que Riobaldo teve em se auto-analisar na
Guararavacã, passado, presente e futuro não tiveram ordem de se separar e afetaram, em
alguns momentos, a própria referência do jagunço Riobaldo no espaço, transportando-o a
várias outras realidades, à infância e aos afetos de sua mãe como escreveu Morais
(2001).
“O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o
verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares
ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice,
muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não para
se entender e acho que é por isso que a gente morre.” (ROSA, 1986,
p.252)
O clima ameno representado pelo calor, que abrandava ali na volta do dia, remeteria
à imagem de um fogo familiar. Na narrativa de Riobaldo, esse fogo nos transporta para
defronte de uma confortável fogueira, cuja intensidade das labaredas do brando fogo aceso
faz mudar, com frequência, o verde dos olhos de Diadorim como a luz do sol muda a cor da
água dos rios, no jogo neobarroco de claro/escuro, com as sombras das árvores que os
ornam. O verde na cultura popular pode ser visto como a cor da esperança, e Riobaldo
parecia ter uma impossível e triste esperança nessa cor. Associado a terra, esse verde
“arenoso” parece dotado de uma antiga sabedoria que transporta o narrador aos olhos de
velhice da mãe, conforme colocamos anteriormente.
Isso nos remete ao episódio da travessia de canoa de Riobaldo com o Menino
(Reinaldo/Diadorim), do De-Janeiro ao São Francisco e na possibilidade de a turvação de
quase todos os rios do Grande Sertão: Veredas ser o resultado do jogo neobarroco de luz
do sol e sombra de árvores que, com uma certa frequência, esverdeia suas águas com
vários tons mesclados de verde. Acrescente-se, a esses tons, o verde “arenoso” a que
Riobaldo se refere quando pensa nos olhos de Diadorim que sempre o fascinou desde a
travessia na canoa. Ali, Riobaldo, menino e “herói precoce” (BACHELARD, 2002, p.169),
teve que domar o medo para dominar o elemento água. Domou também as pancadas do
olhar do Menino (Reinaldo/Diadorim) “eu aguentei o aque do olhar dele” (ROSA, 1986,
p.89,90) – seu possível instrutor de nado/navegação/travessia, que, de forma edipiana,
sempre o transportou para a imagem do olhar materno em sua sábia e afetiva velhice. Sábia
velhice cheia de coisas para contar com os olhos a alguém que quer saber o não-sabido.
Na Guararavacã do Guaicuí, Riobaldo tem o sossego de se deixar rodar/rolar no
turbilhão de reminiscências de características oníricas que o lugar lhe proporciona,
descrevendo aquele meio como lugar de encontro de ventos ou coisas que vêm no ar.
“A Guararavacã do Guaic(...) Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei
sabendo que gostava de Diadorim de amor mesmo amor, mal encoberto
em amizade.” (ROSA, 1986, p.252)
Em um de seus voos oníricos de quem dorme acordado nos ventos, ele imagina a
possibilidade de fazer de si mesmo um Eros de Fogo.
“Ao perto de mim, minhas armas. Com aquelas, reluzentes nos
canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a morte em outros, com a
distância de tantas braças. Como é que, dum mesmo jeito, se podia mandar
o amor?” (ROSA, 1986, p.253)
O elemento fogo, erotizado, funciona aqui, convertido, de uma imagem literária
mitológica de origem greco-romana
41
, a uma regional de Guimarães Rosa, pois um
Eros/Cupido jagunço alveja o seu alvo de amor com um rifle e não com um arco e flecha.
Esse fogo erotizado pode ser também bélico, uma vez que o amor e a guerra são
representados por ele com a mesma intensidade. Bélico e erotizado, esse fogo de amor
encontra a morte.
O amor e a morte, tema romântico por excelência, circula nos vórtices da narrativa de
Riobaldo praticamente com a mesma frequência que o tema da guerra. O amor e a guerra
também podem matar com a mesma força um coração confuso pelo que é e o que não é
das coisas paradas fora de seu conhecimento. O amor por Nhorinhá e Otacília eram duas
certezas e duas oposições, mas Diadorim no meio desses dois amores era, para ele, um
assunto complexo e brumoso como algo circundado por uma neblina. Sobre esses três
amores, Luiz Roncari escreve em seu livro O Brasil de Rosa, que Riobaldo buscava
“demarcar uma fronteira muito nítida entre os três amores: o carnal, de
Nhorinhá, o aparente homossexual, erótico e incestuoso, de Diadorim, e o
41
Essa imagem mitogica a que nos referimos é a do Amor, o deus Eros (gregos) ou Cupido (romanos).
elevado, de Otacília, porém cada um parecia ser vivido por ele como um
complemento dos demais.” (RONCARI, 2004, p.205).
Sendo o amor dele por Diadorim o que ele repelia e, ao mesmo tempo, admitia como
um sentimento “mal encoberto em amizade” (ROSA, 1986, p.252). Esse amor errado seria o
que carrega em si a carga ígnea mais densa, por representar o ardente do desejo e, ao
mesmo tempo, o ardente da punição do pecado. Ali, na Guararavacã, Riobaldo verbaliza a
existência desse amor e junto com essa “descoberta” vem um torvelinho de imagens aéreas
que remetem à personagem Diadorim como parte do vento, dos pássaros, das palmas de
buriti e do verde dessas palmas, além de remeter à metáfora quando vincula os olhos
verdes dessa personagem à cor do vento.
“O rancho era na borda-da-mata. De tarde, como estava sendo,
esfriava um pouco, por pejo de vento o que vem da Serra do Espinhaço
um vento com todas almas. Arrepio que fuxicava as folhagens ali, e ia,
adiante longe, na baixada do rio, balançar esfiapado o pendão branco das
canabravas. Por lá, nas beiras, cantava era o joão-pobre, pardo, banhador.
Me deu saudade de algum buritizal, na ida duma vereda em capim tem-te
que verde, termo da chapada. Saudades, dessas que respondem ao vento;
saudade dos Gerais. O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis
todos quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é
verde. (...) Os quem-quem, aos casais, corriam, cantavam, permeio às
reses, no liso do campo claro. Mas, nas árvores, pica-pau bate e grita. E
escutei o barulho, vindo do dentro do mato, de um macuco – sempre
solerte.” (ROSA, 1986, p.253)
As palavras “vento” (cinco vezes), “balançar”, “joão-pobre”, “buritizal”, “palmas”,
“buritis”, “tempestade”, “quem-quem”, “campo claro”, “árvores”, “pica-pau” e “macuco”
reforçam as referências aéreas contidas nesse excerto, de forma a nos levar a crer que as
metáforas elementares do ar podem ser tidas como essenciais para a reconstrução do
passado de Riobaldo e, portanto, essenciais como gênese de sua narrativa. A expressão
“Alguém esquece isso?” serviria como confirmação do que acreditamos; por ser um bravo
jagunço, Riobaldo parece não crer que esses detalhes tão singulares da vida e da natureza
podem ser esquecidos por alguém, se ele, com toda a sua bizarria, não os esqueceu em
seu relato e faz deles, muitas vezes, matéria-prima de suas reflexões sobre o passado.
A presença constante de aves no meio de seus relatos sobre sua amizade-amor por
Diadorim amplifica a imagem aérea dessa personagem que, como a crítica já muito bem
apontou e nós mencionamos, carrega em si as imagens da neblina, do verde e do vento, da
palma de buriti, do voo dos pássaros e da delicadeza do manuelzinho-da-croa.
Na visão de Riobaldo, tudo o que se viveu não pode ser esquecido nem em seus
detalhes mais insignificantes como o efeito do vento nas palmas de buritis ameaçando
tempestade, pois é na “viragem dos climas
42
(dos ventos ou dos ares) que as grandes
coisas”
43
acontecem. O narrador em Grande Sertão: Veredas fica no ar como gavião que
tudo-sabe e quer-saber sobre si mesmo e o grande sertão e fala de tudo o que viu e ouviu
em cada movimento, como se esse movimento fosse o de suas asas. Segundo Walter
Benjamin, em seu texto O narrador na obra Magia e Técnica, Arte e Política,
“o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não
para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o
sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que o
inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência
alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe
por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la
inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua
narração consumir completamente a mecha de sua vida.” (BENJAMIN,
1994, p.221)
Riobaldo, como narrador, se faz o homem que ilumina com sua narração o caminho
eterno de seu infinito retorno, pois não nada que defina os acontecimentos narrados por
ele de forma cabal e sem abertura para questionamentos, porque o que interessa a ele não
é só a sua vida de jagunço, mas a matéria vertente, que poderia ser aquilo que não se pode
segurar com as mãos e, por isso, mais trabalho às mãos por fluir incessantemente. Ele
narra o que viu e o que ouviu dizer, experimentando, constante e concretamente, com seu
interlocutor virtual, a sua “faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994,
p.198). Ali na Guararavacã, ele, ao relembrar suas experiências, afirma: “foi nesse lugar, no
tempo dito, que meus destinos foram fechados.” (ROSA, 1986, p.252) o que significa que
Riobaldo chegou a um ponto sem retorno de sua existência, e dali em diante sua travessia
tomará outro rumo e outro corpo, como se, antes, tudo fosse ao ritmo lento e misterioso do
De-Janeiro para depois cair na fluência apressada das águas turvas e turbulentas do
encontro com o São Francisco. Nessas velhas águas novas, ele vai conhecer o fogo
molhado do amor e o fogo de gelo da vingança, porque, depois de descobrir que amava
Diadorim “de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade” (ROSA, 1986, p.252), ele,
42
Expressão tirada do conto A hora e vez de Augusto Matraga, (ROSA, 2001, p.410).
43
Outra expressão tirada do conto A hora e vez de Augusto Matraga, (ROSA, 2001, p.410).
junto com os outros jagunços, vai cair na obrigação de vingar com Diadorim no fogo do
front a morte do grande chefe Joca Ramiro, morto à traição pelos judas, o Hermógenes e
o Ricardão.
“Segundo digo, (ROSA, 1986, p.255) (...) O Gavião-Cujo levantou
um braço, pedindo prazo. À fé, quase gritou:
– “Mataram Joca Ramiro!...”
“Aí estralasse tudo no meio ouvi um uivo doido de Diadorim –:
todos os homens se encostavam nas armas. Aí, ei, feras! Que no céu, vi
tudo quieto, um moído de nuvens. Se gritava o araral.” (ROSA, 1986,
p.258)
A queda seria o movimento que circula os bastidores do episódio da Guararavacã.
Ali, Riobaldo cai no sentir e rola a deriva de um sistema que, por estar entre jagunços,
deveria seguir.
Esse sentir era de Diadorim, e essa deriva era de entrar em estado de guerra na
obrigação de vingança e lei de punir os judas em memória a Joca Ramiro.
Diadorim era uma idéia fixa que Riobaldo repelia e abraçava.
“Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome
de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem.” (ROSA, 1986,
p.31)
O desejo vinha de todos os elementos e todas as dimensões. Riobaldo idealiza um
Diadorim para ele e esse outro Diadorim, desmisturado, fantasma, não se vincula à
realidade, mas ao aspecto ígneo do mel como se fosse uma lama doce feita por abelhas.
Essa imagem poética nos serve aqui para entendermos, se possível, que Riobaldo não
consegue desmisturar do mundo o seu Diadorim por ser este o resultado da junção
irreversível dos quatro elementos que estão, inclusive, na essência daquele, pois, na
substância de Riobaldo, há também essa mistura.
“O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me
abracei com ele. Mel se sente é todo lambente “Diadorim, meu amor...”
Como era que eu podia dizer aquilo? Explico ao senhor: como se drede
fosse para eu não ter vergonha maior, o pensamento dele que em mim
escorreu figurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por fantasma,
apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as
outras pessoas como quando a chuva entre-onde-os-campos. Um
Diadorim para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com
minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim que não era
de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar essas coisas.”
(ROSA, 1986, p.254)
Os vestígios do nome Diadorim entranharam em Riobaldo como algo que transcende
os limites do corpo e avança até a alma de forma semelhante a uma possessão diá(bólica),
pois como apontou Ana Maria Machado, “Trata-se de uma forma riquíssima em camadas
semânticas e reverberações sonoras” (MACHADO, 1991, p.39), que permite várias direções
de significado que se quer dar no jogo dos significantes. Unido a esse nome do passado e
transportando-o para o presente, Riobaldo o como o “mel” pois se trata de algo doce e
pegajoso que eroticamente se lambe. Tudo isso ao mesmo tempo em que questiona sua
forma de pensar na época diante de tamanha loucura e torto desejo. O verbo “escorreu”
reforça a imagem desse mel, ao mesmo tempo em que remete ao tema do desejo de
entender a matéria vertente que constantemente escorre dos pensamentos de Riobaldo.
Além disso, esse verbo líquido” parece querer nos transportar a uma dimensão alternativa
que o narrador criou para justificar seus pensamentos, desejos e palavras dirigidas em seu
íntimo e não exteriorizadas a Diadorim naqueles tempos na Guararavacã. Essa
dimensão sugerida pela imaginação do narrador cria um Diadorim fantasma que é o
resultado do afã de Riobaldo em desmisturar o amigo de todas as outras coisas e pessoas
do mundo. A imagem que, a nosso ver, melhor descreve essa dimensão é a contida no
fragmento “como quando a chuva entre-onde-os-campos” (ROSA, 1986, p.254). Ela,
acreditamos, contém a união dos elementos água e terra com a intervenção do elemento ar.
Os dois primeiros estão representados respectivamente pelas palavras “chuva” e “campos”,
o terceiro que intervém na união dos outros, o ar, estaria na expressão “entre-onde” que
pode representar o vazio do ar ou o espaço entre as nuvens de chuva e o chão
44
. Na nossa
interpretação, nessa dimensão úmida e aérea, Riobaldo imagina um Diadorim para si
como se soubesse, no seu íntimo, que isso era possível; como se, instintivamente,
percebesse que o amigo era, na verdade, uma mulher travestida de homem, no meio da
brutalidade do sertão.
44
buscamos anteriormente relativizar essa ideia do vazio do ar e do espaço entre as nuvens de
chuva e o chão, haja vista que a imagem desse espaço deve ser entendida apenas como uma
figuração, porque na verdade ele é preenchido por uma densa quantidade de matéria invisível a olho
nu.
Os pensamentos eróticos de Riobaldo não se dissipam facilmente. Sem entender o
que acontecia no viver e sem entender o que aconteceu no narrar e no reviver o já vivido,
narrando, ele despenca em uma cena que tem uma serpente e um passarinho como
elementos simbólicos que representam, respectivamente, a terra e o ar.
“Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto
cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas de dentro
de mim: uma serepente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum
modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me
importava.” (ROSA, 1986, p.254)
Essa união de terra com céu funcionaria como uma tentativa de representar a
excitação da queda a que Riobaldo se permitia progressivamente. Os verbos
“transformava”, “fazia crescer”, “doía” e “prazia” podem representar uma ereção num
momento de devaneio. O fato de “morrer” sem se importar naquela hora pode ser uma
referência ao orgasmo, chamado, em francês, “pequena morte” (petite mort).
“Acertei minha idéia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato
daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de
mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro:
acabar comigo! com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimo
punha barra em tudo.” (ROSA, 1986, p.255)
Ele, homem de mulheres e para mulheres, macho e bravo jagunço, não podia admitir
tamanho sentimento desencaminhado; por isso repeliu tais emoções e desejos com a idéia
extrema do suicídio, pondo fogo em seus pensamentos com a explosão de um tiro de bala
no crânio. O elemento fogo aqui vem para ajudá-lo a acabar com aquele estranho desejo e
aquelas idéias absurdas sobre Diadorim, daí o tiro sem necessidade no mato. Esse tiro
funcionaria como uma tentativa de Riobaldo em por um ponto final em seus sentimentos e
idéias desajustadas sobre sua amizade com Diadorim.
“Aperrei o nagã, precisei de dar um tiro no mato um tiraço que
ribombou. “Ao que foi?” me gritaram pergunta, sempre riam do tiro tolo
dado. – “Acho que um macaquinho miúdo, que acho que errei...” – eu
expendi. Tanto também, fiz de conta estivesse olhando Diadorim,
encarando, para duro, calado comigo, me dizer: “Nego que gosto de você,
no mal. Gosto, mas só como amigo!...” Assaz mesmo me disse. (...) E eu
mesmo acreditei. Ah, meu senhor! – como se o obedecer do amor não fosse
sempre o contrário...” (ROSA, 1986, p.255)
Sua vergonha era tanta que a imagem que ele encontra para representar sua
angústia interior e seu desejo/sentimento escondido vem dos elementos de baixo, no caso,
a terra e a água. Com esta correndo em vertentes subterrâneas em profundos salões
embaixo daquela.
“O senhor vê, no Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido
no chão, se escuta barulho de fortes águas, que o rolando debaixo da
terra. O senhor dorme em sobre um rio?” (ROSA, 1986, p.255)
Mais uma vez o verbo líquido “escorrer” surge; que aqui ele vem diluído nas
imagens hídricas “de fortes águas” que escorrem, “vão rolando” debaixo de metáforas
elementares terrenas, debaixo de muito segredo guardado e muito sentimento sufocado,
não no fofo dum costume, mas na dureza pétrea da negação. Isso significaria que, de início,
Riobaldo, na Guararavacã, na tranquilidade do locus amoenus, deixou-se levar por um
sentimento estranho em relação a Diadorim, acostumou-se com esse novo sentir e logo o
repeliu por ser algo que vai contra a natureza.
Além dessa confusão de sentimentos pelo amigo Diadorim, na Guararavacã,
Riobaldo se viu preso e, ao mesmo tempo, à deriva no sistema jagunço quando, junto com o
bando então liderado por Titão Passos, fica sabendo do assassinato de Joca Ramiro
executado pelos chefes traidores Hermógenes e Ricardão.
No início do parágrafo anterior ao parágrafo da chegada do jagunço Gavião-Cujo, no
romance, um fato narrado por Riobaldo nos chama atenção. Tatarana relata o ribombar de
trovões, o voo de algumas tanajuras e o cair de forte chuva.
“Daí, deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. As tanajuras
revoavam. Bateu o primeiro toró de chuva.” (ROSA, 1986, p.257)
A tanajura é um inseto pesado que logo perde a força em seu voo, despenca para a
terra e perde as suas asas. A referência ao seu voo na narrativa de Riobaldo ocorre duas
vezes no romance. A primeira delas está antes da chegada do jagunço Gavião-Cujo que
traz a trágica notícia da morte de Joca Ramiro. A segunda está antes do episódio da batalha
do Tamanduá-tão em que Riobaldo, como o chefe Urutu-Branco, derrota os jagunços
traidores liderados por Ricardão e mata esse chefe com um tiro de revólver. Nos dois casos
em que referências ao voo de tanajuras, também, na sequência, uma ocorrência
importante na narrativa de Riobaldo. Isso nos leva a crer que o voo das tanajuras funciona
como presságio de grandes acontecimentos. Outra coisa que esse voo anuncia é a chuva
forte. Tudo isso representaria uma união dos elementos ar, água e terra numa mistura tão
profunda e intrincada que não conseguimos distinguir qual dos elementos é o interventor.
As metáforas elementares aqui estão no voo breve das tanajuras, na queda e
necessidade de cavar a terra para se esconder dos predadores e na água da chuva forte
que cai logo após a impossibilidade desses insetos de continuar voando por terem perdido
as asas:
“na hora, deu de dar, diante, um desvôo de tanajuras, que pelas grandes
quantidades delas, desabelhadas, foi coisa muito valente, para mim foi o
visto nunca visto: em riscos zunindo como enchiam o ar, caintes então,
porque a lei delas é essa, como porque o corpo traseiro pesa tão bojudo,
ovado, bichão maduro, elas não agüentam o arco de voar, iam semeando
palmos de chão, de preto em acobreadas, e tudo mesmo cheirava à
natureza delas, cheiro cujo que de limão ruivo que se assasse na chapa.
Bagos dessas, muito mundialmente... Caso que os cavalos se espantavam,
uns na cisma até refugando. (...) Mas o esbagoar estirante das tanajuras
vinha para toda parte, mesmo no meio da gente, chume-chume, fantasiado
duma chuva de pedras, e elas em tudo caíam, e perturbavam, nos ombros
dos homens, e no pêlo dos animais. (...) Içá, savitu: já ouvi dizer que
homem faminto como frita com farinhas essa imundície... E os pássaros,
eles sim, gaviãozinho, que no campo esmeirinhavam, havendo com o que
encher os papos. Mas bem porém que cada tanajura, mal ia dando com o
chão, no desabe, sabia que tinha de furar um buraco ligeirinho e se sumir
desaparecida na terra, sem escolha de sorte, privas de suas asas, que elas
mesmas de si picavam desfolhadas, feito papelzinho. (...) Formou muita
chuva.” (ROSA, 1986, p.472,473)
Mais detalhada que a primeira referência de voo de tanajuras, a segunda parece
oferecer-nos mais elementos que confirmam a presença e união das metáforas elementares
que mencionamos e que estão relacionadas ao ar, à terra e à água. Os dois casos em que
esse fenômeno, vinculam-se a acontecimentos influenciados pela rápida mudança no
rumo dos eventos o que leva a crer na presença do elemento fogo, pois Joca Ramiro foi
morto a tiros e muitos tiros com arma de fogo se deram pelo sertão, após a morte do grande
chefe, principalmente, na batalha do Tamanduá-tão. O voo das tanajuras, torna-se um
fenômeno sutil, mas de importância simbólica considerável em Grande Sertão: Veredas,
porque mistura, em tão simples ocorrência, o ar no voo malfadado desses insetos, a terra na
necessidade que esses bichos têm de cavar para se esconder, a água na chuva forte que
cai logo depois e o fogo raivoso e modificador anunciado nesse voo-queda, que tem como
resultado a tragédia e a guerra. Essa sequência de eventos estaria vinculada às imagens do
movimento (ar), do trabalho (terra), da fluência (água) e da mudança (fogo), que mantém
estreita relação com as ações narradas na fala ininterrupta de Riobaldo.
No anúncio da morte de Joca Ramiro encontramos não uma referência aérea
nesse voo de tanajuras, mas também no nome do portador do recado, o Gavião-Cujo, e nos
fatos seguintes narrados por Riobaldo que unem o ar com os outros elementos:
“Era um brabo nosso, um cafuz pardo, de sonome o Gavião-Cujo,
que de mais norte chegava. Ele tinha tomado muitas chuvas, que tudo era
lamas, dos copos do freio à boca da bota, e pelos vazios do cavalo. (...) O
Gavião-Cujo abriu os queixos, mas palavra logo não saiu, ele gaguejou ar e
demorou – decerto porque a notícia era urgente ou enorme.
– “Mataram Joca Ramiro!...”
“(...) Diadorim tinha caído quase no chão, meio amparado a tempo
por João Vaqueiro. (...) Titão Passos mandava, o Gavião-Cujo falava. Assim
os companheiros num estupor. Ao que não havia mais chão, nem razão, o
mundo nas juntas se desgovernava.
(...)
– “Ai, chefe, ai, chefe: que mataram Joca Ramiro...”
(...) Tudo tinha vindo por cima de nós, feito um relâmpago em fato.”
(ROSA, 1986, p.257,258)
A chegada do Gavião-Cujo do norte representa, em nossa interpretação, um nervoso
deslocamento de terra como um terremoto, pois ele veio do norte e trouxe o norte consigo já
que tomou muitas chuvas no caminho e estava todo sujo de lama. A lama que dominava a
figura do Gavião-Cujo também tomou os vazios do cavalo montado por ele, o que pode
significar que até o ar/fôlego do cavalo ficou tomado pelo barro vindo de mais adentro na
terra. Cavaleiro e cavalo passaram muitos trabalhos para vencer todas essas terras do
trajeto a fim de trazer a notícia que iria atolar Riobaldo e o bando de jagunços ainda mais,
nas partes diversificadas do sertão, numa lama feita também com sangue. Embriagado de
ar no nome, no trajeto e na voz, o Gavião-Cujo gaguejou para dizer que mataram Joca
Ramiro num ato de traição. Isso foi como um tiro no voo de Diadorim que, quando ouviu a
notícia, uivou e caiu no chão como se voltasse para a terra numa necessidade de se ver
fixo, que suas asas quase foram cortadas com as cargas pesadas das palavras do
Gavião-Cujo. Mas não pareceu haver mais chão para os jagunços ali reunidos na
Guararavacã quando essa notícia veio à luz, pois tudo parecia estar desgovernado,
desajustado no meio do sertão e, para eles, era como se o mundo acabasse em seu
recomeço. Alvejados por um fogo superior, um novo traçado quase divino dita o destino
de Riobaldo, Diadorim e o restante do bando de jagunços como se das nuvens do céu Joca
Ramiro tivesse lhes dado a primeira ordem depois de morto: eles tinham que honrar seu
nome pelo sertão adentro. As metáforas elementares que destacamos neste parágrafo
ainda não explicam o que queremos expor. Contudo, podemos crer que elas juntas nos
podem dizer que, no episódio da notícia da morte de Joca Ramiro, o elemento ar quer
representar um lançar por terra todos os altos valores instituídos pela figura elevada do
grande chefe morto e que, mesmo depois de sua morte, ele – no lume de um raio que cai de
cima determina o novo destino de seus bravos e o novo caminho que eles devem, dali em
diante, seguir como “o decreto de uma lei nova”. (ROSA, 1986, p.260)
2.5.6.Um ritual de purificação para os ramiros
O bando liderado por Titão Passos saiu da Guararavacã para se encontrar com o
bando liderado por João Goanhá no Alto do Amoipira para, dali em diante, rodarem o sertão
na caça aos judas, enfrentando, também, o empecilho da perseguição dos soldados do
governo que queriam vingar Zé Bebelo. O fogo belicoso das batalhas que vão ocorrer desse
ponto em diante age como parte do que chamamos um ritual de purificação pelo qual os
jagunços, fiéis a Joca Ramiro, terão de passar. O primeiro deles é o do fogo na luta contra
as diversas tropas de soldados do governo.
“Os soldados, soldadesca, tantas tropas. Surgiram de todos os
lados, de supetão, e agatanhavam, naquela sanha, é ver cachorrada
caçante. Soldados do Tenente Plínio companhia de guerra. Tenente Reis
Leme, outra. E veio depois, com muitos mais outros, um capitão Carvalhais,
maior da marca, esse bebia café em cuité e cuspia pimenta com pólvora.
Sofremos, rolamos por aqui, se rolou. A vida é vez de injustiças assim,
quando o demo leva o estandarte. (ROSA, 1986, p.264)
Temperados a pólvora e pimenta, os jagunços atravessavam o sertão na caça dos
judas e sendo caçados pelos soldados do governo. Riobaldo narra que os jagunços, debaixo
do fogo desses praças, rolaram pelo sertão sofrendo as piores perseguições. O verbo “rolar”
remeteria à imagem do movimento do redemoinho na epígrafe do romance o diabo na
rua, no meio do redemunho...” – principalmente pelo fato de que o narrador faz referência ao
demônio quando apresenta uma explicação para os sofrimentos a que o bando ficou sujeito
durante aqueles tempos.
Outra parte do que chamamos ritual de purificação do bando se na travessia de
muitas águas de rios, lagoas, riachos e veredas que os jagunços tiveram que fazer,
atravessando ou contornando, para se livrarem da perseguição dos soldados e seguirem o
rastro dos judas.
“E então se deu que tínhamos esbarrado em frente da Lagoa Clara.
Já era o do Chico – o poder dele – largas águas, seu destino. A ver, o porto-
de-balsa, que distava pouco. Travessia, ali, podia ser perigosa, com tantos
soldados vizinhantes.” (ROSA, 1986, p.266)
Depois de atravessar o São Francisco da margem leste para oeste e seguir rumo ao
norte, eles se ajuntam no Urucuia, para seguir o caminho que levava ao acampo de Medeiro
Vaz. No Urucuia, Riobaldo parecia encontrar seu norte e exaltava a clareza daquelas águas
pelo fato de que o rio vinha de mais oeste para se encontrar com o sol e o rio São
Francisco.
“Ah, o meu Urucuia, as águas dele são claras certas. (...) Rios
bonitos são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente em
caminho para se encontrar com o sol.” (ROSA, 1986, p.267,268)
O elogio ao Urucuia e ao São Francisco ocorre, a nosso ver, pelo fato de que, para
Riobaldo, esses dois rios são sua memória viva. O primeiro lembra sua travessia de canoa
com o Menino e o segundo é seu rio de amor.
Modificados e purificados pelo fogo e purificados pela água, os jagunços encontram,
na narrativa de Riobaldo, com o bando liderado pelo grande chefe Medeiro Vaz que se
encontrava acampado “no Bom-Buriti” (ROSA, 1986, p.269). Na nossa interpretação, para
estarem com Medeiro Vaz, “o rei dos Gerais” (ROSA, 1986, p.263), Riobaldo, Diadorim e os
outros jagunços precisavam passar por esse processo como se o chefe fosse uma
divindade elevada e plena em toda a sua justiça. Medeiro Vaz, na narrativa de Riobaldo,
parece ter as asas para subir alto no sertão bravo. O elemento ar toma conta de sua
presença no romance como se o grande chefe fosse o sol do sertão.
“Subindo em esperança, de saímos, para chão e sertão. Sertão
bravo: as araras. O só que Medeiro Vaz comandou foi isto: “Aleluia!
(ROSA, 1986, p.269)
Até este ponto de nosso estudo, em se tratando do caráter de verticalidade do
elemento aéreo, acreditamos ter desenvolvido a idéia de que se é possível sonhá-lo numa
via de mão dupla o sonhar caindo e o sonhar subindo. É pertinente imaginá-lo justaposto
ou, até mesmo, mesclado à dinâmica da conjunção da terra com o ar: o encontro da terra
com o céu ou deste com a terra. As metáforas elementares, nesse sentido, são
transportadas do ar à terra como num voo rasante de araras bravas que, como todos os
pássaros, sabem do sertão em distâncias (subindo) e aproximações (caindo) mais que o
narrador. Medeiro Vaz representaria a ressurreição da postura alta e honrada de Joca
Ramiro que os jagunços deverão tomar como exemplo de valor; daí seu comando se
resumir em um simbólico “– Aleluia!” expressão que carregaria em si um lance de força e
olhar místico para o céu e a Deus.
2.5.7.Um devaneio
Riobaldo, depois de contar tudo num turbilhão de estórias ao senhor vindo da cidade,
pensou poder por fim em seu relato, deixando o restante a cargo da capacidade intelectual
de seu ouvinte. O narrador parecia ter receio de avançar nos profundos detalhes de seu
relato e descobrir mais coisas que seu ser suporta ficar sabendo. “Eu quero ver essas
águas, a lume de lua...” (ROSA, 1986, p.270), ele conclui, e isso, na nossa interpretação, é a
representação de que Riobaldo quer saber das coisas, mas os grandes segredos ele quer
deixar resguardados no fundo das águas. Essas águas o representariam mesmo
metaforicamente rio frustrado, afluente que não chega ao termo, ao mar. Ele quer saber
de si mesmo, mas parece não desejar saber muito. Largo e profundo como um rio grande,
Riobaldo tem o costume de ir matos adentro nos assuntos por ele desenvolvidos em sua
narrativa, mas parece não querer adentrar em si mesmo, o que, na nossa interpretação,
parece remeter ao ditado proferido pelo narrador no começo do romance “Quem muito se
evita, se convive.” (ROSA, 1986, p.2) principalmente pelo fato de que o ex-jagunço se
referia ao diabo quando proferiu aquelas palavras. Isso nos leva a crer que Riobaldo teme
encontrar o demônio que há em seu interior porque para ele “o diabo vige dentro do homem,
os crespos do homem ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos” (ROSA, 1986,
p.3), o que explicaria o fato de Tatarana desejar rever a vida que fluiu, o passado, na
obscuridade de um lume de lua nas suas águas passadas
45
.
Ainda no desenvolvimento dessas idéias, segundo Morais (2001), “Depois da
Guararavacã, fecha-se um ciclo. Depois da Guararavacã, abre-se um outro ciclo. É
exatamente isso que demonstram narrador e autor” (MORAIS, 2001, p.65) e, como já
colocamos no início do parágrafo anterior, aquele propõe finalizar sua narrativa, acreditando
na capacidade de seu ouvinte em emendar o restante da estória “como faz o próprio
narrador do romance contemporâneo, no afã de quebrar a ‘distância estética’ que o separa
do leitor” (MORAIS, 2001, p.65). Depois disso, o que parece ser exatamente o contrário
dos desejos do narrador em fugir de si mesmo, querendo retirar-se da narrativa: um delírio
“onírico” de Riobaldo com uma sobreposição de imagens que Morais (2001) chama de
“discurso do devaneio” (MORAIS, 2001, p.65).
As metáforas elementares aéreas pontuam esse “discurso do devaneio” desde o
início com as imagens lúgubres do Urubu (como nome de lugar) e do esvoaçar negro e
noturno dos morcegos. O caráter lutuoso dessas metáforas aéreas amplificam, na nossa
visão, o onirismo do discurso de Riobaldo e a aproximação desse turbilhão de imagens com
o das imagens satânicas do pacto, principalmente, na figura do morcego. Entendemos esse
caráter onírico como um voo noturno de um Riobaldo que dorme e sonha, pois nos parece
difícil alguém ficar falando e um outro suposto ouvindo durante três dias, sem dormir pelo
menos uma noite se excluirmos disso as diversificadas possibilidades da imaginação
literária. Nesse sonho, Riobaldo, o narrador, mistura as muito misturadas imagens, cenas
e símbolos de sua narrativa, numa sobreposição de imagens barrocamente dispostas,
sendo algumas mais claras que as outras.
45
O Clepsidra, relógio que usa o fluir da água para medir o tempo, é uma imagem que aproxima
dessa idéia, haja vista que, na essência dessa parte do discurso do narrador, o elemento água
parece funcionar também como uma metáfora do tempo passado.
“Urubu? Um lugar, um baiano lugar, com as ruas e as igrejas,
antiquíssimo – para morarem famílias de gente. (...) Os morcegos não
escolheram de ser tão feios tão frios bastou que tivessem escolhido de
esvoaçar na sombra da noite e chupar sangue.” (ROSA, 1986, p.270)
O urubu sendo um pássaro negro que voa alto e come cadáveres parece-nos uma
metáfora aérea bastante significativa. Sua função na natureza é a de devorar o que ninguém
quer ver e cheirar, se possível, escondido debaixo de suas asas pretas. O mau agouro e a
morte estão sempre presentes nas imagens evocadas pela figura do urubu em Grande
Sertão: Veredas. Um lugar com o nome de Urubu não parece transportar boas imagens, e
isso fica mais forte quando essa localidade parece ser apresentada como um arraial
fantasma ou arraial abandonado, sem famílias de gente, que parece evocar o arraial do
Paredão. No entanto, tal lugar evoca a Cantiga de Siruiz que sempre molhava a idéia de
Riobaldo e enchia-o de inspiração.
Acreditamos que a aproximação do urubu com o morcego na imaginação literária
ocorre pela igualdade de cores de ambos os animais e pelo caráter de mau agouro dos dois.
O morcego é um mamífero que voa, mas não come carne apodrecida. Algumas poucas
espécies são hematófagas as várias outras comem insetos e frutas.
Os morcegos
46
hematófagos sempre serviram de fonte de inspirações lúgubres e
supersticiosas à imaginação literária e, em Grande Sertão: Veredas, parece-nos sempre
indicação de ocorrências funestas.
O morcego, para Bachelard, “é a realização de um vôo mau, de um vôo mudo, de um
vôo negro, de um vôo baixo (...) Condenado a bater as asas, ele não conhece o repouso
dinâmico do vôo planado” (BACHELARD, 2001, p. 74), e sua asa não é asa, mas membrana
negra como uma túnica sustentada pela medonha extensão de seus dedos. Riobaldo nos
parece muito semelhante ao morcego, pois sem os prazos, sem o sossego, ele está sempre
condenado à inquietude do movimento (ar), do trabalho (terra), da fluência (água) e da
mudança (fogo) constante. Essa condenação recai sobre os morcegos que são obrigados
46
Como representação simbólica e diabólica, o morcego pode representar a dinâmica viva da
escuridão. Com sua asa preta igual a uma lúgubre extensão lutuosa de um manto de pesar, ele
parece abraçar a noite e aumentar a escuridão junto com seu próprio tamanho. Suas asas são, na
verdade, membranas aveludadas e sombrias que o são asas, mas uma extensão de seus dedos
que funciona como uma espécie de nadadeira aérea. Essa aparência monstruosa amplia o tamanho
do morcego, o que torna ainda mais possível o transporte metafórico de sua imagem como algo
malévolo no imaginário popular, bem como na imaginação literária que o transforma num possível
agenciador de pactos com o diabo ou possessões demoníacas.
pela natureza a voar de noite, sem poder parar de bater as asas, tendo que cavar/furar a
pele de outros animais como quem cava a terra para sorver deles, como alimento, o
líquido fogo rubro do sangue e mudar sua forma quando pousa, recobrindo “os bois com
lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras.” (ROSA, 1986, p.81) que são sua forma
quando chupam sangue.
O suposto sonho de Riobaldo segue em frente com seu turbilhão de imagens
diversas embaladas pelas metáforas elementares que se misturam e se alternam na fluência
líquida do sorvedouro. Misturam-se nele as figuras de Diadorim, os rios verdes e azulados e
os buritizais, formando um circulo de metáforas hídricas que mescla as imagens citadas à
figura mítica de Narciso.
“Travessias... Diadorim, os rios verdes. (...) Buriti quer todo azul, e
não se aparta de sua água – carece de espelho.” (ROSA, 1986, p.270,271)
Outra imagem que surge no devaneio do narrador é a do rio São Francisco. Sobre
ele Riobaldo declara: “O São Francisco partiu minha vida em duas partes.” (ROSA, 1986,
p.271). Isso está vinculado à primeira travessia de Riobaldo no rio, num passeio de canoa
com Diadorim, quando os dois eram meninos. O rio do Chico nasce no centro-oeste de
Minas e corre para o norte, dividindo Minas Gerais, tendo, em sua margem esquerda, o
noroeste e, na direita o nordeste do estado. Riobaldo o rio São Francisco com o mesmo
respeito que muitos navegadores épicos têm ao mar. Para ele, o rio é completo em sua
substanciosa existência, porque nasce, atravessa o sertão firme, abraçado a seus afluentes
e só para quando chega ao mar. Entretanto, a água do Chico para Riobaldo é sempre turva,
incerta e guardadora de perigos “o São Francisco puxa, se moendo todo barrento
vermelho” (ROSA, 1986, p.88) e cheio de ariranhas que fazem canoas virar por simples
curiosidade.
Do início ao fim do romance, o narrador reforça suas imagens sobre o São Francisco
de modo a exaltá-lo, pelo fato de ser um rio que corre do centro-oeste de Minas, para o
norte do estado e o nordeste do Brasil em busca do mar e conclui sua jornada, apesar de
todos os obstáculos, impostos pela hostilidade selvagem do sertão. O rio São Francisco
parece representar “um esquema de coragem” sugerido por Bachelard em que o nadador
orgulhoso “sonha com sua própria proeza” (BACHELARD, 2002, p.175), que consiste em
dominar as adversidades do elemento água em toda a sua violência e obscuridade, no
corpo do rio.
Mas Riobaldo não teve somente as adversidades do elemento água rolando no rio
para segurar, em vão, no côncavo de suas mãos; ele tinha Zé Bebelo, que não era da água,
mas do fogo e do ar e não assumia a forma de um recipiente, porque já nasceu formado em
sua personalidade inquieta de constates mudanças e em seu querer apenas o primeiro lugar
ou a chefia de todos os homens. No sonho de Riobaldo, Zé Bebelo surge como o sol que vai
e volta trazendo sempre a luz do dia, o fogo do calor, o vento e a eletricidade que corre no
ar entre o céu e a terra.
“Zé Bebelo me alumiou. Zé Bebelo ia e voltava, como um vivo
demais de fogo e vento, zás de raio veloz como o pensamento da idéia
mas a água e o chão não queriam saber dele.” (ROSA, 1986, p.271)
Alto e honrado, Bebelo voava no pensamento de Riobaldo como um homem de
vento e fogo que cavalgava no ar e tinha o relâmpago como cavalo. Para o narrador, Bebelo
era a constante mudança, a inteligência maior no meio de tanta brutalidade e a grande
coragem de querer mudar o que de muito velho se petrificou e desgastou-se com as
águas do tempo. Por isso, “a água e o chão não queriam saber dele”, porque ele queria
mudar os costumes da terra e, com sua política, interferir com o tempo até na forma de nela
se trabalhar.
Bebelo contribuiu também com mudanças no próprio Riobaldo, ensinando-lhe a
ser alto/ousado e a perceber que no claro das coisas é que está a mais recôndita escuridão.
“De dentro das águas mais clareadas, tem um sapo roncador.
Nonada!” (ROSA, 1986, p.271)
As águas claras são símbolo de pureza virginal e purificação. Para Bachelard, elas
“fornecem imagens fugidias e fáceis” (BACHELARD, 2002, p.12) que fazem delas “elemento
da imaginação materializante” (BACHELARD, 2002, p.12), capaz de assumir com extrema
facilidade, a forma do recipiente ou o aspecto que mais condiz com a estação do ano. Os
sapos acasalam no início da primavera essa estação pode ser considerada a que está
mais vinculada às metáforas da fertilidade, tão fáceis de serem associadas ao elemento
água em sua forma mais comum que parece ser a da água clara. O acasalamento do sapo,
de um modo geral, se na água limpa, nos ermos, no meio do nada onde cabe a palavra
“nonada” que parece funcionar, nesse caso, como uma dupla negação, na tentativa de
esconder um sentimento que ronca dentro do narrador. Essa imagem do sapo roncando
dentro da água clara remete a cena em que Riobaldo e Diadorim foram “apanhar água num
poço” (ROSA, 1986, p.49) e viram um bicho brusca, feiosa: botando bolhas, que à lisa
cacheavam” (ROSA, 1986, p.50). Essas bolhas são os ovos dela que iriam virar girinos;
portanto, elas podem funcionar como símbolo de contato físico, acasalamento e fertilização.
O elemento água funciona, aqui, como a morada ou o lugar de todo o desenrolar do
processo que cria essas metáforas hídricas da origem da vida e seus ciclos.
Diadorim vem e volta nos sonhos de Riobaldo em diversas imagens. Uma delas está
na presença aérea dos pássaros, principalmente, na do pássaro manuelzinho-da-croa, que
vincula a sua imagem aérea aos elementos água e terra que essa ave singular traz no
nome, pois croa é pequena ilha de areia no meio do rio.
“Ao que aquelas croas de areia e as ilhas do rio, que a gente avista
e vai guardando para trás. Diadorim vivia um sentimento de cada vez.
Mistério que a vida me emprestou: tonteei de alturas. Antes, eu percebi a
beleza daqueles pássaros, no Rio das Velhas percebi para sempre. O
manuelzinho-da-croa.” (ROSA, 1986, p.272)
Diadorim era ódio e amor e não poderia sentir e cultivar os dois sentimentos ao
mesmo tempo, porque tinha necessidade de empreender todo o seu tempo e abraçar, com
seu coração e mente, um sentimento de cada vez, como se o fato de vivenciar os dois fosse
o mesmo que cometer uma traição. Entretanto, sua personagem acaba, algumas vezes,
cedendo às fraquezas do sexo e se revelando para Riobaldo como um jagunço diferente dos
outros em seus gostos e ações.
Enquanto isso, Riobaldo era todo sentimento, embora quisesse repreender quase o
tempo todo seu amor mal encoberto em amizade que lhe foi revelado no tempo passado na
Guararavacã do Guaicuí. Em seu devaneio, ele apresenta a ideia de que o sentir forte de
cada um pode ser capaz de produzir ventos, pois, a nosso ver, tudo na fala do narrador
Riobaldo está estreitamente vinculado à imagem de um fôlego quase sobrenatural.
“Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente o que
produz os ventos.” (ROSA, 1986, p.272)
Daí a possibilidade de se fazer vento com a força do sentir em face de todos os
acontecimentos que giram num crescente como reza a ordem vertical do elemento ar.
Nesse redemoinho de vida É preciso negar que o ‘Que-Diga’ existe.” (ROSA, 1986, p.273)
E perguntar nos caminhos dos ventos o “Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais
enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças” (ROSA,
1986, p.273), porque tudo gira num vórtice de ventos que metaforizam acontecimentos e
acontecimentos que geram fortes ventanias que esboçam o corpo inflado do Grande Sertão:
Veredas. O vento diz coisas e traz coisas no imaginário do narrador, antecipa grandes
acontecimentos e tragédias, muitas ocorrências estão atribuídas ao temperamento do
elemento ar no romance – “O senhor escute o buritizal” (ROSA, 1986, p.273) e ficará
sabendo que, no sertão, lutam Deus e o Diabo pelas almas dos homens.
2.6:Uma travessia nos quatro elementos
2.6.1.A casa dos Tucanos
Na segunda parte de sua narrativa, Riobaldo retoma o ponto onde Bebelo retorna
de Goiás para Minas Gerais, após ficar sabendo da morte de Joca Ramiro, para assumir a
chefia do bando e lutar em vingança contra os judas. Logo quando assume a chefia do
bando Bebelo lidera os jagunços em batalhas que provocaram consideráveis prejuízos
aos bandos de Hermógenes e Ricardão, mas não levou o bando a uma grande batalha final.
A confiança de Riobaldo em Bebelo, como o homem capaz de liderar o bando nessa
vingança míngua após o episódio da Casa dos Tucanos, em que além de colocar o bando
no erro de cair numa tocaia, usa de sua influência política para arrasar os judas, escrevendo
cartas suspeitas para os soldados do governo, convocando-os a um ataque contra a
retaguarda dos hermógenes, mas que para o narrador poderia ser também contra os próprio
jagunços fiéis a Joca Ramiro.
Antes de chegar a Casa dos Tucanos, o narrador segue sua narrativa com várias
imagens terrenas, aéreas e líquidas. O verbo “voltar” em “Vemos voltemos” parece funcionar
como uma espécie de clave do discurso narrativo mais dinâmico adotado pelo narrador, pois
voltar, no caso, não é somente dar sequência à narrativa, mas recontá-la novamente como
quem revê os sucedidos com outra opinião.
“Vemos voltemos. O Buriti-Pintado, o Oi-Mãe, o rio Soninho, a
Fazenda São Serafim; com outros, mal esquecidos, seja. (...) quando
muito vento abriu o céu, (...) no quase liso de altas terras, (...) com
Bebelo de bota-fogo. Assim expresso, chapadão voante. (...) O sol. O céu
de não se querer ver. As duras areias. (...) A diversos que passavam
abandoados de araras araral conversantes. Aviavam vir os periquitos,
com o canto-clim. Ali chovia? Chove – e não encharca poça, não rola
enxurrada, o produz lama: a chuva inteira se soverte em minuto terra a
fundo, feito um azeitezinho entrador. O chão endurecia cedo, esse
rareamento de águas.” (ROSA, 1986, p.274)
As referências à travessia de Riobaldo nesse caso começam no ar, na terra e na
água com a imagem do Buriti-Pintado e se transportam para as águas do Oi-mãe e do rio
Soninho, terminando na São Serafim que, apesar de ser uma fazenda – imagem que evoca
o elemento terra é referência aérea evocada no nome “Serafim” que transporta à imagem
de um anjo de asas exuberantes. As outras referências aéreas unem-se às terrestres, às
ígneas e às líquidas que terminam sorvidas por figuras terrestres duras juntamente com a
água que também é consumida pela terra ou usa a terra como esconderijo, servindo de
exemplo para o tema da “coisa dentro da outra”, sugerido e comentado por Galvão (1972).
Essas referências caminham lado a lado com a figura de Bebelo, que alto, vai de
bota-fogo como quem tem o domínio desse elemento e o poder de provocar mudanças por
onde passa. Riobaldo parece querer que essas referências aos elementos em sua narrativa
tenham algum sentido no fio condutor dos fatos narrados como se a rede de acontecimentos
fosse tecida pela ação expressa através das metáforas elementares. Depois de sutilmente
desafiar a chefia de Bebelo no episódio da Casa dos Tucanos, Riobaldo apresenta o
resultado de sua ousadia e perspicácia quando comenta o tratamento de Bebelo para
com ele depois do ocorrido. Nesse momento ele revela a transição de seu caráter de
jagunço servo a jagunço líder, sai da condição de apenas um bom atirador para entrar na
condição de líder intelectual que sempre esteve em seu interior.
“E Bebelo, revindo, me gabou: “Tu é tudo, Riobaldo Tatarana!
Cobra voadeira...” (...) “Ah: o Urutu Branco: assim é que você devia se
chamar... E amigos somos.” (ROSA, 1986, p.296)
Riobaldo passa da condição ígnea de lagarta de fogo, Tatarana, para a terrestre e
aérea de cobra voadeira, Urutu-Branco, condição esta que logo será assumida no episódio
que narra a sua posse da chefia do bando de jagunços que ocorre após o pacto com o
diabo.
A expressão de Bebelo, “Tu é tudo” indicaria a pluralidade de caráter que essa
personagem em Riobaldo e aponta também para a personalidade repleta de
temperamentos que refletem à presença e ação dos elementos no narrador como se todos
estivessem nele, dentro dele, ou ele no interior de cada um como sugere Galvão (1972) em
sua leitura da coisa dentro da outra em Grande Sertão: Veredas. Essa sugestão de Galvão
nos leva também a reflexão sobre o fato de que o narrador em Grande Sertão: Veredas “se
move entre dois pólos, narrando o vivido ou vivendo o narrado” (GALVÃO, 1972, p.12),
nesses dois pólos a presença do fenômeno da coisa dentro da outra sugerido por Galvão.
Narrando o vivido, Riobaldo se desloca de seu eu no presente para penetrar no seu
eu do passado. Dentro desse eu, resultado de suas experiências, ele se divide em vários
sem se deslocar de seu núcleo como numa divisão celular. No cerne dessa divisão, temos
um menino sertanejo pobre e sem pai que logo fica órfão de mãe e se torna herdeiro de um
padrinho que, na verdade, é seu progenitor, para depois se tornar um moço professor e daí
em diante jagunço letrado e chefe de chefes de jagunços. Esse ser que vai se formando no
curso da narrativa deságua na figura de um fazendeiro que pôs seus cabras de confiança
para tomar conta das terras ao redor de sua fazenda, garantindo a soberania de seus
domínios. Procedendo dessa forma, ele se coloca fisicamente no passado de sua vida de
chefe jagunço ao mesmo tempo em que se eleva a condição de senhor feudal, que será o
resultado final de seu processo de amadurecimento. Esse resultado final, entretanto, é
relativo a partir do momento em que esse senhor feudal narra todas essas experiências a
um desconhecido que veio de um meio distinto do vivido pelo narrador.
Vivendo o narrado, Riobaldo reproduz em seus sentimentos no presente o vivido e
sentido no passado. Ele lança sobre os fatos revividos pela narrativa seu olhar maduro,
tecendo reflexões que antes não teceu por não possuir os prazos para refletir e armar-se
diante dos acontecimentos. Vivendo o narrado, Riobaldo buscaria a influência primitiva dos
elementos da natureza para avivar sua memória; narrando o vivido, ele busca a influência
dos elementos para tecer sua narrativa. Essas duas formas de vivência caminhariam
paralelas, encontram-se mas não se chocam, antes se abraçam para formar o que
acreditamos ser, em linhas gerais, a matriz formal da narrativa falada de Riobaldo.
Na segunda parte de sua narrativa, Riobaldo narra à volta de Zé Bebelo, os acertos e
erros de Bebelo como chefe e sua possível disposição para trair a todos se não fosse a vigia
atenta e perspicaz de Tatarana no episódio do cerco na Casa dos Tucanos. Após esse
episódio dramático, Riobaldo narra o inusitado encontro do bando liderado por Bebelo com
os catrumanos que viviam próximos ao povoado do Sucruiú.
2.6.2.Os catrumanos
Os catrumanos eram homens
“Que viviam tapados de Deus, assim nos ocos. Nem não saíam dos
solapos, segundo refleti, dando cria feito bichos, em socavas. (ROSA, 1986,
p.338)
Nessa condição primitiva, eles construíam suas casas que eram, na verdade,
Cafuas levantadas nas burguéias, em dobras de serra ou no chão das
baixadas, beira de brejos; às vezes formando mesmo arruados.
plantavam suas rocinhas, às vezes não tinham gordura nem sal.” (ROSA,
1986, p.338)
O encontro dos jagunços liderados por Bebelo com esses seres marginalizados e
primitivos é marcado por constantes referências do narrador às metáforas elementares
terrenas e líquidas. Os catrumanos eram seres da terra, nascidos nela, eles eram e
barro, areia e pedra, viviam em solapos e socavas distantes de todo e qualquer conforto que
não lhes cabia por serem mais que sertanejos, serem homens dos mais ocultos espaços do
sertão. Encravados ali como um castigo ou maldição e impedindo o bando de seguirem
adiante por causa da bexiga preta do Sucruiú, eles se assemelham a uma paródia de um
Gigante Adamastor de pedra, que foi quebrado em pedaços e teve suas partículas de pedra
jogadas no sertão longe do mar, do sal e de todos. As baixadas e os brejos eram a moradia
desses homens monstruosos que pareciam render ali, suas oferendas aos elementos de
baixo, a terra e a água, com seus costumes obscuros que aguçaram a imaginação do
narrador que pensou num mundo dominado por esses seres de baixo.
A voz desses homens também evocava os elementos baixos, principalmente, a terra.
Quando falavam, suas vozes pareciam sair de cavernas escuras e saiam como rugidos
surdos provenientes das entranhas da terra.
“Dos-Anjos (...) era o falador; (...) e aquela voz que o homem
guardava nos baixos peitos” (ROSA, 1986, p.338)
Morando em malocas de barro, cavernas, grutas e plantando suas rocinhas esses
homens representam o trabalho exigido pelo elemento terra na sua relação com o homem. A
cava, a redra, o lavrar, o semear e o colher, o trabalho com a terra quanto mais manual mais
intenso, íntimo e primitivo. O lado humano vai calcificando, petrificando com essa rotina de
trabalho bruto no sol a sol e os sentimentos, as emoções e a capacidade de entender as
coisas por meio de símbolos que o homem civilizado tem é deixada para trás na medida em
que se avança terra adentro. O catrumano fica, nessa condição, mais próximo do tatu que
do homem. Sua sustância terrena domina sua imagem e sua rústica psicologia. Riobaldo os
vê como um mau presságio. Assim, era como se ele soubesse que dali em diante ele iria se
perder num caminho sem volta rumo à danação, à glória, à tragédia e ao pesar.
2.6.3.O pacto
Depois do encontro com os catrumanos e a passagem pelo Sucruiú, os jagunços
param num lugar chamado Veredas-Mortas, nome que evocaria o lugar do vazio, um Limbo,
onde nada de fato parece estar vivo e existir, pois até o nome do lugar mais tarde deixará de
ser o mesmo, passando a Veredas-Altas no final do romance. Ali, Riobaldo cria a coragem
que já lhe martelava o coração e a mente na sanha de se fazer existir e resolve dar corpo ao
suceder indo fazer um pacto com o diabo para liquidar com o Hermógenes.
Influenciados pelas observações de Machado (1991) que analisa o nome Riobaldo,
explicando que ele se “dilacera (...) se divide, se desagrega, se reintegra, e com ele seu
Nome, em diferentes anagramas, debatendo-se entre os pólos de Deus e do Diabo”
(MACHADO, 1991, p.37), percebemos que se pudermos partir da vogal tônica do nome do
protagonista, duplicando-a em razão de sua força sonora, teremos no nome RIOBALDO a
frase LAR (d)O DIABO, o que sugere a ideia de que o protagonista seria o próprio lar do
diabo – corpo passivo para a possessão demoníaca.
Disposto a isso e de corpo aberto, os quatro elementos parecem guiá-lo para o local
da negociação com o demônio, todos eles são expressos no episódio do pacto. O primeiro
deles é o ar que se preenche de estopas de caborés e ramos voantes.
“Adjaz o campo (...) Eu caminhei para as Veredas-Mortas. (...) Ali
esvoaçavam as estopas eram uns caborés. (...) de ramos muito voantes”
(ROSA, 1986, p.368)
Acompanhadas dessas imagens aéreas vem às imagens satânicas vinculadas ao
elemento terra. Indiretamente elas se conectam ao fogo na referência ao diabo que é tão
ausente de cabelos quanto o chão ao redor da “capa-rosa” é de qualquer fio de capim.
“Ainda melhor era a capa-rosa – porque no chão bem debaixo dela é
que o Careca dança, e por isso ali fica um círculo de terra limpa, em que
não cresce nem um fio de capim” (ROSA, 1986, p.368)
As ausências provocadas pela presença do diabo podem estar relacionadas com a
ideia do pacto, no que diz respeito à quitação da dívida, pois, de um modo geral, na
imaginação literária o pactário ganha o que não tem, para depois perder o que tem de mais
precioso. Com Riobaldo não foi diferente. Fazer o pacto foi fácil, o difícil foi entender antes
de vender a alma que a alma que se vende é sempre exterior e quase sempre es
associada ao que amamos. O demônio confunde o pactário que vende aquilo que não lhe
pertence, julgando vender o que é de sua inteira posse.
As metáforas aéreas e terrestres dominam parte do relato de Riobaldo quando,
procurando o lugar do pacto, ele caminha para o ambiente sombrio de uma encruzilhada,
lugar em que se realiza esse ritual, segundo a imaginação popular.
“Cheguei lá, a escuridão deu. Talentos de lua escondida. (...) Destes
meus olhos esbarrarem num ror de nada. (...) Arre, quem copia o riso da
coruja, o gritado. Arrepia os cabelos das carnes. (...) Chão de encruzilhada
é posse dele, espojeiro de bestas na poeira rolarem. (...) Feito o Bode-
Preto? O Morcegão? O Xu? E de um lugar tão longe e perto de mim, das
reformas do Inferno ele já devia de estar me vigiando, o cão que me
fareja.” (ROSA, 1986, p.369)
A escuridão, a lua escondida e o ror de nada aliados à imagem do riso assombroso
da coruja formam um conjunto de figuras sombrias aéreas que se encarregam de criar o
clima de mistério que cerca o episódio do pacto. Ali, o narrador personagem e o leitor ficam
sem compreender o que realmente está acontecendo, os dois parecem não ter acesso à
camada mais profunda dos acontecimentos. Riobaldo vive uma espera enorme perdido no
breu do sertão para afundar a sua alma na escura proposta de dar cabo do Hermógenes,
outro pactário que batiza Riobaldo no fogo do combate e leva o jagunço à danação do pacto
com o diabo, depois de se tornar um obstáculo para as suas realizações. Em sua visão,
para vencer o Hermógenes, ele tinha que deixar entrar em si o mesmo mal que habita o
interior do inimigo: o diabo. Isso nos leva a pensar novamente na imagem da coisa dentro
da outra proposta por Galvão (1972) e na possibilidade de unir essa imagem com a dos
elementos dentro da narrativa de Riobaldo. Em sua narrativa, esses elementos funcionam,
nesse sentido, como criadores de atmosferas, climas e cenários sertanejos que acabam
influenciando no estado de alma do narrador, quando este narra o vivido e vive o narrado. A
escuridão simboliza o sentido do pacto, a cor do pacto e a dúvida entorno de sua conclusão,
pois não se sabe ao certo o onde foi que ele chegou quando disse que chegou e a
escuridão se deu. A lua escondida ou recolhida citada na sequência simboliza o segredo
que Riobaldo guarda de um amor proibido e ao mesmo tempo o segredo do próprio pacto,
assunto somente dele e do demônio. O ror de nada simbolizaria a presença diabólica
voando no ar, num voo silencioso entorno de Riobaldo, testando sua paciência, seu desejo
de ser pactário, sua crença na própria existência do diabo como o negociador; o ror de nada
também evocaria à imagem do redemoinho e d'o diabo na rua, no meio do redemoinho...,
essa imagem abre o ciclo de referências ao elemento ar no episódio do pacto.
O chão de encruzilhada, referido por Riobaldo, associado à poeira e às imagens do
inferno e do cão farejador refletem à presença do elemento terra como parte da figura do
redemoinho de vento e areia que transporta o diabo em seu interior. O chão de encruzilhada
pode representar o encontro de quatro cantos ou terras que se cruzam. Essa encruzilhada
evoca também o encontro dos quatro ventos que se cruzam para formar o redemoinho com
o diabo dentro viajando. Ponto de parada do demônio, a encruzilhada é o lugar do pacto,
segundo a crença popular.
A figura do diabo se materializa nas figuras escuras do Bode-Preto ou do Morcegão.
A imagem do Xu, ou Exu, que remete à cultura afro descendente, representa as entidades
místicas que agem como sentinelas contra forças negativas. Contudo, incompreendidas pela
cultura popular que as define como entidades diabólicas, principalmente pelo fato de
estarem associadas ao elemento fogo que, de acordo com a cultura judaico-cristã, é a
ferramenta do diabo para fazer arder às almas pecadoras no inferno. Essas entidades
sempre estão associadas à imagem de Lúcifer em pactos e a trabalhos malignos contra
inimigos de morte. Invocar, nesse caso, o Bode-Preto ou o Morcegão pode simbolizar a
solicitação da presença do Exu Capa Preta das Encruzilhadas que parece mesclar as duas
imagens referidas com sua barba e sua longa capa preta, conforme sua descrição no
imaginário popular.
Ígneo e terreno, Riobaldo decidido e com todas as coragens para dar corpo aos seus
objetivos, procurou cumprir de ficar ali sem arredar o pé do lugar esperando ser atendido por
aquele que no caminho até a encruzilhada o farejava como um cão de caça fareja a
presa.
“A já que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele.
Nós dois, e tornopio de pé-de-vento – o ró-ró girado mundo a fora, no
dobrar, funil de final, desses redemoinhos: ... o Diabo, na rua, no meio do
redemunho... Ah, ri; ele não. Ah eu, eu, eu! “Deus ou o Demo para o
Jagunço Riobaldo!A firmado. Eu esperava, eh! (...) fôlego de fôlego de
fôlego da mais-força, de maior-coragem (...) eu espantava qualquer
pássaro.” (ROSA, 1986, p.371)
Assombrado com as ausências sufocantes do que ele mais desejava e assombroso
em suas malignas intenções, Riobaldo como uma árvore entregou suas raízes ao substrato
terreno da encruzilhada e seu corpo ao torvelinho de vento afunilado, tornando-se o próprio
diabo na rua no meio do redemoinho. Sentindo-se mais de si mesmo que de qualquer outra
essência que de alguma forma poderia se apoderar dele; paradoxalmente se transformou
num perfeito ponto de pouso para energias positivas ou negativas. “A firmado”, esperou
ansioso por fôlego, porque pareceu estar enterrado na terra e, nessa condição, nenhum ser
do ar poderia compartilhar sua presença assustadora.
“Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia,
e a hora em vão passava. (...) eu estava bêbado de meu. (...) Remordi o ar.”
(ROSA, 1986, p.371)
Riobaldo sapateia como quem quer se livrar da terra e do que o impregnava. A
posse de si mesmo o levou até o lugar do pacto e é ela quem vai entregá-lo a danação.
Vendo que nada acontecia e nada vinha ao seu encontro, ele morde o ar como se desejasse
subir sem asas para o ponto mais alto da noite onde no arfar do desespero ele grita:
– “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengolindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só (...)
– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!...”
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras.”
(ROSA, 1986, p.371)
Ali parece se iniciar a possessão demoníaca ou o pacto. Ao gritar o primeiro nome
do diabo, Lúcifer o anjo da luz, Riobaldo sente a voz se estragar ou mudar para um tom
rasgado de silvo de cobra que evoca o horror sugerido, também, pela figura de Satanás.
O elemento ar está no fôlego que o narrador regurgita ao repetir no narrado o vivido
em desespero, está também no vazio do nada que dominou aquela noite estranha e
também na voz gutural sugerida pelo som do ronco-silvo-rosnado de cobra furiosa.
Dominado por uma força desconhecida ou por uma vontade muito grande que o levou ao
delírio que lhe privou dos sentidos, empurrando-o nos braços de um pesadelo, Riobaldo fez
um pacto com uma ideia fixa de matar, a qualquer custo, o Hermógenes ou um pacto com
alguma força maligna que o ajudaria em tal empreitada. Em todo caso, essa experiência
converteu seus sentimentos aos da imagem paterna, como se o Hermógenes fosse um
castrador, um obstáculo, que deveria ser retirado do caminho para que o herói pudesse
seguir adiante, somando esse trabalho à sua glória.
“Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas.
Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo.” (ROSA, 1986, p.372)
A imagem do rio transbordado de enchente que invade a casa do pai vai ainda nos
remeter à do próprio pai de Riobaldo, Selorico Mendes, que cuidou do narrador quando este
era adolescente e jovem. O rio invadindo a casa paterna é como uma essência fluvial densa
invadindo o corpo que a invocou. O ver as asas sugere um pouso, que pelo contexto, parece
ser o de uma imagem fixa na mente de Riobaldo: a imagem padronizada do diabo como um
monstro de asas, chifre, rabo e pés de bode. Atropelado por esse pouso-queda, Riobaldo
parece ter sentido uma força muito grande atravessando seu corpo e alma como se fosse
um tiro de rifle no meio do peito, tirando de si mesmo tudo o que era de seu poder.
“Desentendi os cantos com que piam, os passarinhos na
madrugança. Eu jazi mole no chato, no folhiço, feito se um morcegão-caiana
me tivesse chupado.” (ROSA, 1986, p.373)
As imagens aéreas perduram até o final do ritual diabólico dessa ideia fixa que
sugere a conclusão desse suposto pacto. Riobaldo ascendeu e caiu durante seu delírio.
Nessa ascensão, ele perdeu o entendimento que tinha sobre os pássaros porque se tornou
lama ou verme “mole no chato” do chão entre as folhas caídas, exangue e derrotado como
se todas as suas energias tivessem sido sugadas pela figura negra e voadora de um
morcegão-caiana o dono das asas. Terreno, ele pareceu se sentir como o barro mole e
passivo, aberto a toda e qualquer má influência de energias ou entrâncias diabólicas. Nesse
dilema, sobrenatural ou apenas simbólico, Riobaldo selou mesmo um pacto, mas foi com os
quatro elementos, unindo o ciclo da água no nome Riobaldo com o do fogo em Tatarana, do
ar em Cobra voadeira e da terra em Urutu-Branco quando assume a chefia do bando de
jagunços, tomando o posto de Zé Bebelo.
2.6.4.A chefia
A autoconfiança e a força de decisão de Riobaldo acabou encaminhando-o à chefia
do bando num golpe descrito pelo narrador como um ato aparentemente casual e
displicente. com um certo desprezo pelos feitos, os ditos e os repetidos de Bebelo e
sua conversa enfadonha, Riobaldo se compara novamente ao rio Urucuia. Vem das
montanhas e se encarrega de levar as águas dos brejos e veredas e suas areias para um rio
maior e para o mar. Silencioso em sua humildade de rio sertanejo, esse rio parece se
conformar com seu lugar no sertão. Riobaldo finge também se conformar com essa vida de
servir, mas sabe que quem deseja liderar, precisa saber servir. Finge se contentar com o
limitado espaço do rio, mas quer o que está além do chapadão.
“O Urucuia é um rio, o rio das montanhas. Recebe o encharcar dos
brejos, verde a verde, veredas, marimbus, a sombra separada dos
buritizais, ele. Recolhe e semeia areias. Fui cativo, para ser solto? Um
buraquinho d'água mata minha sede, uma palmeira me minha casa.
Casinha que eu fiz, pequena – ô gente! – para o sereno remolhar. O
Urucuia, o chapadão derredor dele. Estas árvores: essas árvores.
Conversa, Bebelo: conversa, com as marrecas chocas, no meio das
varas do juncal.” (ROSA, 1986, p.383)
Esse suposto contentamento pode estar nas imagens líquidas que são marcantes
nesse trecho da narrativa. Elas sugerem a ideia de que o jagunço como a água toma a
forma de seu recipiente que é o sistema a que ele se sujeitado. Entretanto, também
imagens terrenas que além de evocar imagens de força e superioridade, evocam mudanças
provocadas pela passagem do tempo representada pela fluidez da água que “semeia areias”
por onde passa.
Riobaldo perguntou como quem deseja apenas uma informação, mas na pergunta
dele muitos jagunços perceberam a virada dos ventos e o peso da atmosfera que
Guimarães Rosa muito se refere quando está na iminência de narrar uma forte mudança em
suas narrativas de jagunços, mudança essa regida pela violência do elemento fogo presente
nas armas e na coragem ou maldade de quem as porta.
“Não exclamei, não pronunciei; só disse.
“Ah, agora quem aqui é que é o Chefe?” (ROSA, 1986, p.383)
Assumir a chefia do bando se tornou inevitável. Riobaldo muitas vezes nega ter
competência para tamanha responsabilidade, mas depois de sua experiência solitária no
meio da noite, que lhe rendeu a ideia do pacto com o diabo, o jagunço se viu transformado
numa grande potência e força de liderança.
– “Quem é qu'...”
“E foi esse Rasga-em-Baixo (...) oculto inimigo meu que buliu em
suas armas... Sanha aos crespos, luziu faca, no a-golpe... Meu revólver
falou, bala justa, o Rasga-em-Baixo se fartou no chão, semeado, já sem
ação e sem alma nenhuma dentro. E o irmão dele, José Félix: ele tremeu
muito lateral; livrou o ar de sua pessoa; outro tiro eu também tinha dado...
– “...é o Chefe?!...” (ROSA, 1986, p.384)
A violência expressa pelas ações do elemento fogo falam através do revólver de
Riobaldo que de forma brutal barra o protesto de dois jagunços irmãos que eram contrários
à sua chefia do bando. Riobaldo rouba o fogo de chefia de Bebelo e de João Goanhá
que, separado dos outros, havia acabado de chegar com seus bravos para se unir ao
bando. O fogo com o fogo logo se entenderam e não ouve contenda nem disputa entre
Bebelo e Riobaldo, ao contrário, triste e feliz, o ex-chefe logo quis reconhecer o poder de
opinião de Tatarana e o empossou de chefe do bando todo. Sempre sem concordar com a
chefia em pares ou a vice-chefia, Bebelo em seguida declara sua desilusão de ser
jagunço e chefe de bravos guerreiros como quem crê que tal cargo deve ser ocupado por
um grande homem como se esse fosse o sol dos outros inferiores e dependentes dele
por viverem em sua órbita de comando. A natureza solar de Bebelo sempre esteve
também em Riobaldo. Sua aversão ao cargo de chefia era somente uma opção sensata de
saber a hora certa de dar o bote e foi reparando esse comportamento prudente de Tatarana
que, na ocasião, Bebelo o apelidou com o nome de Urutu-Branco, que seria sua alcunha
de chefe dali em diante. Ciente de que dois sóis não convivem num mesmo sistema,
Bebelo se retira.
2.6.5.A segunda travessia do Liso do Suçuarão
Nas altas potências de sua chefia, Riobaldo segue ao encontro com o seu destino de
acabar com os hermógenes e os ricardões. O plano de Medeiro Vaz de atravessar o Liso do
Suçuarão sugerido por Diadorim, mas não concretizado, passa a ser de Riobaldo que
pretende atravessar aquele deserto para alcançar os fundos da fazenda do Hermógenes e
sequestrar-lhe a mulher. Entretanto, algo estranho não parecia querer facilitar as coisas para
o novo chefe. A representação alegórica de toda força antagônica aos seus objetivos
Riobaldo chama de diabo. E é esta figura enigmática e terrível quem parece tentar contra o
Urutu-Branco no meio da segunda travessia no Liso. O destino de Riobaldo não poderia ter
um itinerário ameno. Tudo era oposição que vinha de dentro de grandes e pequenas coisas
e pessoas.
O narrador diz, nesse contexto, que foi um caso de possessão que levou o Treciziano
a tentar matá-lo quando o bando atravessava o inferno do Liso. Era como se o diabo
ajudasse ofertando vantagens com a mão direita e retirando-as com a esquerda como se
isso fizesse parte natural de sua forma suja de jogar. Derrubava os obstáculos para escolher
outros a seu gosto como reza a trama da maldade tecida por seu prazer destruidor e seu
desejo por tudo o que pode ser considerado doloroso e desgraçado.
Um Treciziano na segunda travessia do Liso Vi: ele o chapéu que
não quebrava bem, o punhal que sobressaía muito na cintura, o monho, o
mudar das caras... Ele era o demo, de mim diante... O Demo!... Fez uma
careta, que sei que brilhava. Era o Demo, por escarnir, próprio pessoa!
E ele endireitou pontudo para sobre mim, jogou o cavalo... O demo?
Em mim, danou-se! (...) Esse luz-luziu a faca, afiafe, e urrou de ódio de
enfiar e cravar, se debruçando, para diante todo. Tirou uma estocada.
Cerrei com ele... A ponta daquela pegou, por um mau movimento, nas
coisas e trens que eu tinha na cintura e a tiracol: se prendeu ali, um mero.
Às asas que eu com a minha quicé, a lambe leal pajeuzeira em dura
mão, peguei por baixo o outro, encortei-recortei desde o princípio da nuca
ferro ringiu rodeando em ossos, deu o assovião esguinchado, no se lesar o
cano-do-ar, e mijou alto o sangue dele. Cortei por cima do adão... Ele Outro
caiu do cavalo, já veio antes do chão com os olhos duros apagados...
Morreu maldito, morreu com a goela roncando na garganta! (...) Ah-oh!
Aoh!, mas ninguém não vê o demônio morto... O defunto, que estava ali, era
mesmo o do Treciziano!” (ROSA, 1986, p.452)
As imagens ígneas do ataque do Treciziano a Riobaldo são narradas com riquezas
de detalhes e requintes de brutalidade e violência. A careta que brilha e o luz-luzir da faca
do agressor serviram para alertar o agredido que logo preparou o contra-ataque motivado
pela sorte de que a estocada do agressor atingiu os pertences e não a epiderme de
Riobaldo. Num contra-ataque brutal, Riobaldo atravessa a faca no pescoço do
diabo/Treciziano que cai sem vida no chão salino do Liso. Para o Urutu-Branco o que
jazia no chão era o que havia sido o jagunço Treciziano, mas quem o atacou foi o demônio
entrado no corpo morto do rapaz. A cara do diabo naquele luzir de faca do jagunço revoltado
era a cara do próprio Treciziano, pois o diabo, como a água, assume a forma de seu
recipiente, mesmo quando suas ações estão relacionadas às rápidas e brutais mudanças
executadas pelo elemento fogo.
A coisa bruta que estava dentro do Treciziano era a mesma que se manifestava
astuta dentro do chefe Urutu-Branco. No primeiro, mostrava-se como um animal selvagem e
feroz, no segundo, como um jogador de xadrez que gostava de riscos. O diabo sempre
assume a forma do recipiente
47
que ele utiliza.
De volta para Minas Gerais e após a captura bem sucedida da mulher do
Hermógenes com o intento de assim forçá-lo a dar combate cara a cara, Riobaldo sente no
clima e na atmosfera os perigos de viver nas mãos do que pode estar escrito nas linhas do
destino. Os elementos mesclam-se poligamicamente num turbilhão de imagens elementares
sugerindo que os acontecimentos na vida do jagunço chefe Urutu-Branco estavam muito
tempo escritos, mas poderiam ser mudados, reformados em função de que nada que se
vincule aos elementos fogo, ar e água pode amarrar-se a coisas fixas.
“E piorou um tico o tempo, em Minas entramos, serra-acima, com os
cavalos esticados. (...) o ladeirão, ruim rampa, mas pegamos a ponta da
chapada. Foi ver, que com o vento nas orelhas, o vento que o vareia de
músicas. (...) espaço de chuva (...) fazia rio, por debaixo, entre as pernas de
meu cavalo. Sertão velho de idades. (...) Sertão sendo do sol e os pássaros:
urubu, gavião que sempre voam, às imensidões, por sobre... Travessia
perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. (...) as curvas
dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento.
Com trovôo. Trovoadão nos Gerais, a ror, a rodo... (...) Bambas asa,
me não sei. Bambas asas... (...) Lei é asada é para as estrelas. Quem sabe,
tudo o que está escrito tem constante reforma mas que a gente não
47
Entende-se por “recipiente” o corpo daquele que foi possuído.
sabe em que rumo está – em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?”
(ROSA, 1986, p.479)
As metáforas elementares aéreas que vem depois das terrenas e líquidas são
representadas por um pássaro carniceiro e um pássaro predador que voam sobre o sertão,
dando notícia de tudo o que se vive e morre no chão. Os cavalos subindo a serra debaixo de
chuva parecem ser os únicos que conseguem vencer o rio que desce a ladeira. A volta a
Minas Gerais é descrita por Riobaldo como um retorno, uma revisão das imagens
elementares experimentadas pelo narrador em suas andanças pelo sertão. A imagem aérea
do trovão aparece associada à do redemoinho com a palavra “ror” e a expressão “a rodo...”
que mais adiante no texto são seguidas da expressão “Bambas asas” que, em nossa
interpretação, significam asas voando sem rumo e fracas na própria sustância de se manter
no voo em função da força atrativa da terra. Essa força parece querer que tudo fique no
chão quando determina que somente as estrelas podem ficar nas alturas, sabendo tudo
sobre aqueles que ficam no chão e sendo, por eles, admiradas. Se as estrelas e as
constelações foram, como escreve Bachelard, criadas para ajudar a memória e para impor
um caráter fixo às formas da imaginação, determinando a quantidade e a natureza das
estórias criadas sobre elas, então todas as estrelas são simbolicamente cadentes, pois se
não nos levam e elevam ao caráter onírico celeste, despencam e precipitam-nos de suas
alturas em abismos cujos limites são a terra e suas formas relativamente fixas. O que
significa que sua fixidez pode ser relativa porque todas as leis e esculturas da imaginação,
bem como quase tudo na vida pode ser reformado, modificado, pois temos o direito à
escolha, mas não sabemos o que escolher e quando escolher. Essa visão dos fatos vividos
e narrados por Riobaldo são metalinguísticamente refletidos pelo narrador que demonstra
que, como as aves dominam tudo o que elas veem no céu do sertão, ele, Tatarana, entende
a natureza do narrado escrito em toda a sua fixidez e relativa fixidez. Isso porque tudo o que
se escreve oferece mais argumentos para memória e não deixa escapar nada que fique
omisso, haja vista que o omisso na escrita pode ser mais tarde o explícito na escrita ou em
outra escrita que retoma o mesmo tema.
A retomada consiste num exercício constante de revisão textual, leitura e releitura,
escrita e reescrita constante. Esse exercício deságua num notável trabalho de linguagem e
de metalinguagem, em que o narrador reflete não somente sobre os acontecimentos
reproduzidos pela prosa narrativa escrita, mas também sobre a natureza cultural desses
acontecimentos no universo coloquial e oral do estilo de Rosa. Em João Guimarães Rosa,
esse trabalho de metalinguagem se mescla com uma profunda reflexão do ser em seu estar
no mundo, tendo em vista que o humano é metafisicamente feito de imaginação e
linguagem. Riobaldo reflete barrocamente sobre os efeitos do escrito à moda estoicista ao
mesmo tempo que questiona os rumos do destino no que supostamente já está escrito.
2.6.6.O Tamanduá-tão
A batalha do Tamanduá-tão foi decisiva para o destino do bando de Urutu-Branco.
Regada a fogo e ar, ela afoga Riobaldo em si mesmo e nos altos de sua forte chefia. Besta-
fera mestre, pactário endemoniado, ele, feito chefe Urutu-Branco, viu com clareza quase
sobrenatural as unhas do demônio na força do ferro-e-fogo jagunço. A antítese tipicamente
barroca do clima da batalha dita o temperamento contraditório daquela força sobrenatural
que supostamente dominava Riobaldo e tudo ao seu redor. Com os pés na fornalha do
diabo, Riobaldo não viu o chão do campo, mas o farejou como um cão danado fareja o
ninho de sua presa. O amarelo massal desse chão é o ouro que será todo conquistado ao
término da batalha que toma o campo palmo a palmo e termina com a glória de Riobaldo,
chefe Urutu-Branco.
O ataque se desenvolve a partir da forma de ataque de cobra que quer passarinho
que come sementes no capim, ou seja, de surpresa, mas gradativamente vai se
agigantando conforme o ego do chefe que de tamanduá-mirim sobe a condição de
tamanduá-bandeira quando finca a bandeira da ordem de Joca Ramiro no todo do campo de
batalha, dando, em nossa visão, um novo significado ao nome do lugar.
“Vi o que guerreia é o bicho, não é o homem. O capinzal repartia
tudo diverso: abafo do ar e o fresco de lugar de grota frio e calor, lado
dum doutro, nas finas folhas mesmo da folhagem. Mas o calor vinha
subindo era pernas acima, no meu corpo: o que os meus pés, de tão
quentes, suavam. E eu o enxergava o chão; mas o cheiro do lugar ali era
de barro amarelo massal. Suspensos no parar, mesmo, a gente se
embalançava na sela, banda para banda, na suavidade essa conforme
temperação, de que o espírito necessitava. Sendo o mundo quieto, para não
assustar os pássaros que comem sementes no capim, porque o revôo deles
havia de dar ao inimigo alto aviso no ar.” (ROSA, 1986, p.487)
Depois de destruir a tiros o bando liderado pelo chefe jagunço Ricardão e matar esse
chefe com um tiro de bala em vias de proteger Diadorim, Riobaldo descansa na sela a ideia
de dar caça ao Hermógenes.
Após cercar o Ricardão numa cafua, Riobaldo mata esse chefe com um tiro quando
vê que Diadorim queria brigar de faca com o traidor. Quando viu o amigo desembainhando a
faca para chamar Ricardão para o duelo, Riobaldo tratou logo de executar o chefe traidor
para não querer por Diadorim em risco de morte.
2.6.7.A batalha do Paredão: o diabo na rua, no meio do redemunho...
Morto o Ricardão, no recesso entre a batalha do Tamanduá-tão e a batalha da vila do
Paredão, Riobaldo curtindo glória apertada, encontra tempo para o amor de Otacília quando
fica sabendo que uma moça solteira vinha de trânsito acompanhada por um velho como se
fossem a noiva de Urutu-Branco. Onde estaria essa moça e o velho? Onde estaria o
endemoniado do Hermógenes com seu bando de malfeitores? A moça e o velho não
poderiam se encontrar nesse perigoso caminho do sertão com o diabo em pessoa que por
ali vagava a caça de guerra e desordem. A vila do Paredão era o melhor lugar para atrair o
bando do Hermógenes para a batalha e tirá-lo do campo por onde trilhava a moça e o velho.
Riobaldo desorientado põe dois de seus jagunços de maior confiança, o Alaripe e o
Quipes, na busca e escolta da moça se esta for mesmo a Otacília e deseja saber do sertão
tudo o que as aves sabem.
“Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião,
gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com
pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas...”
(ROSA, 1986, p.508)
O sertão sendo da terra e de seus muitos cursos de água torna-se também do ar e,
deste, mais que dos outros, quando na perspectiva vertical do voo, somos capazes de
perceber a proporção quase exata de tudo o que vive e sofre dentro de seus limites. Dos
quatro elementos que estudamos como gênese da narrativa de Riobaldo no Grande Sertão:
Veredas, o ar parece ser o que mais conhece o sertão. Os muitos olhos e asas de todos os
seres que cruzam o céu, o vento, as nuvens, as estrelas, a lua e o sol, a chuva caindo e a
neblina dão conta de tudo o que passa no sertão da terra ou da superfície de suas águas
até as alturas longínquas do firmamento.
A natureza vertical do sertão começa no primeiro salto de crescimento de uma
árvore, mesmo sendo esta típica do cerrado, com raízes longas terra adentro e verticalidade
tortuosa terra acima. A verticalidade tortuosa do cerrado, aliás, sugere a natureza barroca e,
portanto, assimétrica de tudo o que habita o espaço sertão. Sugere também o caráter
tortuoso da vida e da forma rústica de filosofar ou matutar dos sertanejos. A vida e o
sofrimento caminha ao lado desse constante matutar do sertanejo que somente as
metáforas elementares aéreas parecem dar conta de transportar para significados mais
claros, embora ainda constituídos de mistério.
Sujeito aos caprichos do destino, Riobaldo, Tatarana, o lagarta de fogo, o Urutu-
Branco, o cobra voadeira se vê diante da principal batalha de sua vida de chefe jagunço. Os
elementos como num turbilhão se misturam de forma quase desordenada na representação
da imagem do diabo na rua no meio do redemoinho, que de início começa sutil, para
gradativamente ir se agigantando em toda a sua brutalidade.
“Alteado se podia nadar no sol. Aí, quase que não se passavam
mais os bandos de pássaros. (...) O calor fortalecia, e logo ia se secando o
chão, umas poças de lama e as árvores com gotejos” (ROSA, 1986, p.512)
Daí tornou-se possível nadar no fogo do sol, secar o ar com a ausência de pássaros
e queimá-lo na intensidade do elemento fogo, secando o chão, a lama e toda a umidade da
atmosfera. Tudo na narrativa de Riobaldo parece estar estreitamente envolvido com a
criação de um clima perfeito para o relato de algum acontecimento. Esse clima seria pintado
com as tintas e os pincéis das metáforas elementares
48
. Elas parecem ser as principais
peças da construção de todos os climas na narrativa de Riobaldo e como o clima se faz
elemento muito importante da estrutura da narrativa como recurso encantatório, sedutor e
envolvente, enxergamos sua presença e seus efeitos como parte da gênese ou a própria
gênese do narrado
49
.
A brutalidade evocada pela figura grotesca do diabo intensifica-se na medida em que
os argumentos saem somente dos canos das armas. As ações bruscas do elemento fogo
48
Essa pintura seria a do texto descritivo.
49
Consideramos que as descrições podem sustentar os detalhes da ação, criando climas ou
atmosferas capazes de transportar o leitor para além dos acontecimentos. Em meio ao texto
narrativo, quando ricamente detalhadas, essas descrições criam climas eficientes para a construção
de todos os conflitos e sentimentos de caráter universal que emanam da prosa poética de Guimarães
Rosa.
provocadoras de mudanças radicais mais uma vez se fazem presentes e reforçam ainda
mais a imagem ígnea que sustenta a força da alcunha de Tatarana atribuída a Riobaldo
desde o início do romance.
“E o demo me disse? Disse; mas foi assim: tiros!” (ROSA, 1986,
p.512)
Nada mais interessava, somente o fim de tudo e de todo o bando dos judas. Riobaldo
estava onde o diabo queria que estivesse para lhe cobrar a vida contraída no suposto
pacto. O importante ali era dar corpo a todos os seus horrores e medos e matar e morrer,
cedendo a carne ao fogo das armas e a alma à danação infernal. A brutalidade do fogo
reconfigura o mundo desses jagunços na medida em que os empurra a uma guerra interna e
a autodestruição para cumprir uma obrigação de vingança. Eles promovem ao mesmo
tempo a punição e o sacrifício e com isso se tornam herois no ferro de suas armas de fogo e
suas armas brancas.
“A carabina, em mãos, coisa mexedora. A gente disparava dentro
dos quintais, avançávamos. E de detrás das casas. E guardávamos o
emboque da rua. Diz que lê; diz-que escreve! Tiro ali era máquina. Aos
tantos, juntos, relando – cinco deles, cinco dedos, cinco mãos. A gente tinha
de caber em buracos escavacados. (...) Eu dizia: fré! e botava bililica na
agulha amanso! (...) Urutu-Branco: mas tinha de ser o cerzidor, Tatarana,
o que em ponto melhor alvejava.” (ROSA, 1986, p.514)
O desassossego da guerra aparece obviamente somado aos efeitos da regência do
fogo. A arma como cano quente nas mãos parece não querer parar quieta. O fogo avança
como se estivesse queimando mato seco para cercar o avanço do outro fogo. O encontro
desses dois fogos representa a mudança brusca de rumo que a vida de Riobaldo tomará
após o desfecho da batalha do Paredão. O bando de Riobaldo usou o fogo para cercar,
queimar e forçar a recuada dos hermógenes que avançavam. A metalinguagem lúdica usa a
fala do narrador para dar corpo à presença sutil do escritor no tempo real da composição do
texto quando sugere a analogia entre o som da máquina de escrever e os tiros disparados
na batalha. No calor da guerra, a tentativa de guardar o emboque da rua acaba frustrada
quando no clímax da batalha, em uma quase dança de roda, dança macabra de morte, os
valentões se atracam para reduzir uns aos outros a cadáveres, porque o diabo, viajando no
vento e na poeira grossa do redemoinho toma as rédeas das vontades do chefe e do destino
de Diadorim e Hermógenes.
“Diadorim a vir do topo da rua, punhal em mão, avançar
correndo amouco... (...) O Hermógenes: desumano, dronho nos cabelões
da barba... Diadorim foi nele... Negaceou, com uma quebra de corpo,
gambetou... (...) Trecheio, aquilo rodou, encarniçados, roldão de tal,
dobravam para fora e para dentro, com braços e pernas rodejando, como
quem corre, nas entortações. ...O diabo na rua, no meio do redemunho...
Sangue.” (ROSA, 1986, p.526)
O ferro e fogo das carabinas são substituídos pelo ferro e fogo de gelo das armas
brancas. Diadorim vem do topo da rua com desejo de sangue e vai viajando no ar para ir ter
com o Hermógenes a tão esperada vingança. O que se nessa passagem é um conjunto
de palavras que evocam a imagem do redemoinho de vento e poeira que a cultura popular
descreve como o meio de transporte do diabo: “Negaceou”, “gambetou”, “rodou”, “roldão”,
“dobravam”, “rodejando”, “corre”, “entortações”. Diadorim e Hermógenes rodam, viajam no
calor do ar quente desse redemoinho enquanto o diabo toma posse das ações de chefia de
Riobaldo, plantando uma desordem circular e aérea no meio das estratégias de guerra de
Urutu-Branco, desorganizando seus pensamentos e sentidos. Sobre essa imagem do diabo
na rua no meio do redemoinho no clímax da narrativa de Riobaldo, Galvão (1972) escreve
que se trata da
“imagem que ocorre ao narrador quando, no final, relata o duelo
entre Diadorim e Hermógenes, em que Diadorim mata Hermógenes e é
morto, enquanto Riobaldo a tudo assiste, do alto da janela de um sobrado,
sem poder intervir porque está sob possessão demoníaca. (GALVÃO, 1972,
p.129)
O que nos leva a crer que Riobaldo transporta a imagem externa do redemoinho no
meio da rua para dentro de si como se o diabo que ali viajava, tivesse entrado em seu corpo
e tomado posse de sua alma, impedindo-o de tomar uma atitude contra o negro destino que
havia sido traçado para o jagunço e seu grande amor, Diadorim. Se houve mesmo um pacto
com o diabo e o pagamento desse pacto seria a alma de Riobaldo, o diabo a levou naquele
dia da batalha do Paredão quando Diadorim morreu, pois Diadorim sendo, no fundo, o amor
de Riobaldo, era o mesmo que se fosse sua alma. E isso justificaria a possessão demoníaca
apontada por Galvão (1972). Essa possessão parece um recurso do diabo para imobilizar o
corpo de Riobaldo enquanto leva sua alma. Segundo Galvão, “a descrição do duelo a faca
no meio da rua por seu uso insistente de vocábulos que dão conta de movimento confuso e
rodopiante (pé-de-vento, baralharam, rodou, roldão, rodejando, remando)(GALVÃO, 1972,
p.128) criam a impressão e confirmam a ideia de que a imagem que ocorre ao narrador
quando testemunha o duelo entre Diadorim e Hermógenes é mesmo a do diabo na rua, no
meio do redemoinho.
Os elementos da natureza terra, ar, fogo e água podem ser considerados o
alicerce do universo, pois toda a existência gira em torno dessas essências e sem uma
delas não é possível criar a trama que compõem o microcosmo. Neste último capítulo desta
dissertação, procuramos sintetizar a travessia de Riobaldo por esses quatro elementos,
investigando a possibilidade de que eles possam vir a ser entendidos como gênese que
corpo, alma e memória à essência de toda a ação narrada pelo velho ex-jagunço.
O universo criado por Guimarães Rosa através da fala/narrativa de Riobaldo ergue-
se também nas bases desse alicerce que seria a sua origem. O microcosmo sertão é muito
mais que o espaço da narrativa, pois sua metafísica transcende os limites do pensamento e
toma a forma física do lugar como se tratasse de uma possessão. Espaço vivo, o sertão é
uma personagem com personalidade tão forte quanto a de Riobaldo e o instiga à reflexão
existencial e moral. Ali, o certo e o errado ou o bem e o mal se justapõe na mesma ordem e
o que pesa parece ser o eudaimonismo moral de Sócrates, porque o eu (Riobaldo) parece
fazer tudo para no final alcançar seu bem viver consigo mesmo e com a pólis, sendo que,
para isto, ele busca as respostas em si mesmo. Fazendo monólogo do diálogo de Riobaldo,
Rosa colabora para o fato de que possamos fazer essa interpretação. É com isso, que
acreditamos que Riobaldo busca as respostas em si mesmo e encontra dúvidas na
travessia que quer se orientar para a ação virtuosa. Ele não alcança o completo bem viver,
não fica em paz com a pólis e nem consigo mesmo porque quase todos os seus planos são
dramaticamente modificados pelas ações brutais do fogo e suas influências no
comportamento dos outros elementos.
A figura alegórica do diabo funcionaria como uma forma estendida dos infortúnios
experimentados pelo chefe Urutu-Branco a partir do clímax da batalha do Paredão. Ali, a
tesoura de Átropo definiu os destinos de seu amor e de seu temor, levando, na garupa da
sela de vento e poeira do redemoinho do diabo, as vidas de Diadorim e Hermógenes. Esses
dois, entortados pelo vento nas palavras tortas de Riobaldo lutaram por sangue e morte nas
facas de ferro e fogo, girando como o diabo na rua, no meio do redemoinho.
O chefe antes de ser Urutu-Branco era Riobaldo. Nome de água, rio mais
baldo era o rio Urucuia que não conclui viagem para o mar e deságua em rio muito
maior que é o São Francisco. Baldo, entre outras coisas que apontamos neste
trabalho, pode se ligar ao verbo “baldear” que significa mudar um líquido de um
recipiente para outro ou, em linguagem popular, seguir uma travessia e no meio do
caminho parar em um ponto do trajeto para mudar o curso da viagem. Isso é o que
acontece com o Urucuia quando deságua no São Francisco, suas águas passam a
fazer parte de outra travessia e deixam de ser somente suas, pois se misturam às do
rio do-Chico e às de seus outros afluentes.
Tudo isso, imprime na imagem de Riobaldo uma forte ligação com o elemento
líquido que, no fogo dos calores da batalha do Paredão, domina sua capacidade de
falar e de dar voz de comando e estratégias de guerra, fazendo com que ele perca o
domínio dos acontecimentos ao seu redor e o domínio de si mesmo. Com a boca
cheia de saliva, o chefe, dominado pelo lado malévolo do elemento água, desanda a
babar e seus sentidos navegam também no redemoinho dos movimentos circulares
de luta de Diadorim e Hermógenes que o tragam para dentro de uma confusão
mental como um sorvedouro. Dentro desse sorvedouro e cheio de nomes como um
demônio, Riobaldo nunca deixa de ser Riobaldo mesmo sendo o grande chefe
Urutu-Branco e cai no chão como um branco e sinuoso relâmpago que se parte
como a língua bifurcada de uma cobra.
Duas considerações são importantes de serem abordadas sobre a imagem
final do redemoinho em Grande Sertão: Veredas e ambas estão, respectivamente,
na critica de Galvão (1972) e Hansen (2000).
Na leitura de Galvão, como apontamos anteriormente, há a “imagem da
coisa dentro da outra” que focaliza, dentre outras coisas, a presença do diabo no
interior dos seres vivos e inanimados, fortalecendo a ideia de possessão demoníaca.
“Se por um lado tudo é Deus, por outro lado nenhum domínio é
defeso ao Diabo. Assim como a alma dos homens, todo o reino da criação
pode ser penetrado pelo demônio e ser sujeitado a êle, tornando-se seu
instrumento.” (GALVÃO, 1972, p.128)
A esse reino pertencem os quatro elementos da natureza que acabam por se
transformar em instrumentos tanto de Deus quanto do Diabo na temática universal
da eterna luta entre o bem e o mal. Nessa luta, o diabo é o lado malévolo, brutal e
radical do elemento fogo que tenta a todo tempo influenciar, modificar e desvirtuar
as ações dos outros elementos. Sua força preta escurece as ações de homens,
mulheres e até crianças e influenciam os objetos, as plantas, as águas, a terra e o
vento como uma nódoa negra e deletéria.
“O diabo na rua no meio do redemoinho, epígrafe do livro, ritornelo
que surge e ressurge a intervalos no seio do texto, texto-súmula que o
narrador compôs para si mesmo como um extrato (tanto no sentido de
“tirado de” como de concentrado”) de toda a sua experiência de vida, é a
imagem-mor que fixa essa concepção, por um lado, e por outro todas as
imagens da coisa dentro da outra.” (GALVÃO, 1972, p.129)
A água presente no nome de Riobaldo funciona no romance como um rio que
desce caminhos tortuosos rumo ao ponto onde deságua. A rua parece ser esse
outro rio, mas um rio seco, de terra dura e poeira que tem na figura de Riobaldo o
seu afluente. O vento/ar cruzado desce a rua como Diadorim e corre rumo ao inferno
enquanto o Hermógenes sai de sua toca na terra e sobe a rua rumo ao encontro
com os olhos verdes e angelicais de Diadorim na representação da luta do bem
contra o mal. O vento dos dois se encontra e ergue-se o redemoinho por onde o
diabo/fogo viaja. A imagem é vista por Riobaldo do alto da janela do sobrado e
interiorizada por ele que parece quase o ver a dança de roda sangrenta dos dois
jagunços em duelo, mas a desordenada passagem do diabo pela rua do Paredão
com seu fogo brutalmente modificador que atropela no caminho os sentidos do
grande chefe. Entregue a essa imagem da rua como um afluente que entrega suas
águas ao curso de outro rio, Riobaldo percebe que sua vida tomou outro rumo
depois dos desfechos da batalha. O diabo entrou dentro dele para levá-lo para
dentro de outra realidade: para a infernal realidade de um mundo vazio sem seu
grande amor e seu grande ódio.
A luta entre o bem e o mal em Grande Sertão: Veredas consiste não somente
no fato de os defensores do nome de Joca Ramiro vencerem os judas. Através da
fala/narrativa de Riobaldo essa luta parece ser mais intensa no campo metafísico e
espiritual que no plano físico. Sobre essas idéias, expostas na fala de Riobaldo,
Galvão (1972) explica que
“Na concepção do narrador, o diabo vige dentro do homem, mas
também vige dentro de todos os seres da natureza até mesmo os
inanimados, como o vento e a pedra. Tudo se passa como se o cosmo
fosse Deus, princípio positivo, mas admitindo a existência de um princípio
negativo que leva o nome de Diabo. Da permanente disputa entre ambos
nasce a frase: “Viver é muito perigoso” mote de que o livro inteiro é glosa.
Deus é tudo o que existe, menos o Diabo: e este disputa a primazia
daquele. (GALVÃO, 1972, p.129)
As coisas do mundo são tidas como criação de Deus. A essência dele está
em tudo o que existe de acordo com a crença em sua existência. Como princípio
negativo, o diabo disputa com Deus a posse do homem e de todas as coisas vivas e
inanimadas, dentre elas a dinâmica dos quatro elementos. Na narrativa de Riobaldo
em Grande Sertão: Veredas, essa luta entre o positivo e o negativo, ou o bem e o
mal, é representada em episódios que exemplificam a regra de que viver nesse
mundo de adversidades e feracidade bizarras é muito perigoso. Com isso, as
metáforas elementares casadas ou transformadas gerando, em todo caso,
mudanças significativas nos rumos desse jogo, ocupam-se em ilustrar a conspiração
cósmica que em torno dos episódios narrados por Riobaldo que mais
representam o fato de que viver é muito perigoso.
Sobre essas questões em Grande Sertão: Veredas, Galvão (1972) recorre ao
princípio de que o caos é que sentido, rumo às coisas, portanto, é nele que se
pode encontrar o harmonioso acerto do mundo.
“A essência da vida é o movimento e a mudança. Esse o sentido
dela: o de um processo dinâmico, sem pressa, constante na sua
inconstância. (...) Querer ter alguma certeza no seio do movimento e da
mudança é atentar contra a desordem natural das coisas, que é a sua
ordem recôndita.” (GALVÃO, 1972, p.130)
O movimento e a mudança estariam como afirmamos anteriormente,
vinculados aos elementos água, ar e fogo. O movimento está no fluir da água e na
verticalidade do vento e a mudança na vivacidade do fogo com seu forte caráter
modificador. O perigo de viver de que Riobaldo tanto fala está justamente nessa
inconstância e instabilidade representada metaforicamente através da dinâmica
desses elementos que se manifestam em sua fala/narrativa como parte essencial do
jogo cósmico que define o destino do narrador.
Na leitura de João Adolfo Hansen (2000), o crítico aponta a epígrafe “o diabo na rua,
no meio do redemoinho...” como um dos marcos iniciais de sua enunciação, pois foi a partir
do episódio clímax da história de jagunço de Riobaldo, a batalha do Paredão, que ele
parece ter contemplado o fato de ter vivido uma experiência narrável.
“Sua fala avança como um bordado sob o qual se trama, no texto, a
captação de um invisível fio indizível, o sentido como insistência, e que já se
deu, naquela rua, e que é a condição mesma do começo de sua enunciação
para que se dê, pois foi ali, e depois dali, que o herói-jagunço Riobaldo se
transformou/transformará no narrador-Riobaldo. Daí, também, volta-e-meia,
a frase-epígrafe” (HANSEN, 2000, 151).
Para Hansen (2000), a epígrafe se repete no romance na forma de “ecos” que
atravessam a obra antecipando o episódio do duelo entre o filho do assassinado e o
assassino, quase como um refrão de uma longa música épica. A vendetta é de Diadorim e
sobre isso Hansen (2000) explica que por “convenção romanesca ou dramática, o filho do
assassinado deve matar o assassino” (HANSEN, 2000, 151) e ninguém mais deve cumprir
essa sina. Para isso, Rosa jogou o protagonista na vertiginosa posição no alto do sobrado,
de onde, inerte, ele assiste ao duelo circular de facas de Diadorim e Hermógenes, delirando
com as imagens do diabo na rua, rodando no meio do redemoinho.
“A posição donde Riobaldo vê – o alto do sobrado metaforiza, pelo
avesso, seu impoder na cena, na vertigem que o acomete; na rua, por sua
vez, são duas polaridades que avançam para engalfinhar-se, destruir-se”
(HANSEN, 2000, p.152)
O caráter aéreo dessa posição de Riobaldo no momento do duelo de facas, havendo
possessão demoníaca como sugere Galvão (1972) ou apenas uma vertigem, resultado de
uma tensão de véspera ou ataque de nervos, como sugere Hansen (2000), parece ser o que
sutilmente dita os rumos dos acontecimentos. A rua que sobe e desce, o alto do sobrado e o
redemoinho juntos formam um instigante jogo de metáforas elementares aéreas, verticais e
vertiginosas que levam Riobaldo a uma queda premeditada pelo destino em direção a sua
condição presente de narrador. Tudo aconteceu daquela forma trágica para que ele
pudesse, mais tarde, vir a ser o narrador de sua própria história. Seu voo malfadado lhe
trouxe a experiência de conhecer os limites do sertão que, ele, Riobaldo, testemunhou
participando ativamente dos conflitos gerados pelo amor proibido, a traição, a dor, o ódio e a
vingança. A tudo isso, Riobaldo deu outra vida falando/narrando e revivendo no presente as
experiências registradas na memória. Para Hansen,
“Esse momento e, mais, esse lugar, a rua é momento mítico,
pois condição da gênese de uma cosmogonia, que é a fala de Riobaldo:
figuralmente, corresponde a uma origem em que se constitui um saber
como fonte da memória. É, aí, nesse lugar, que uma significação irrevelada
se evidencia; aí também as misturas da coisa que mal afloram na linguagem
vão unir-se, sobrepor-se e sumir, orientando o sentido é a partir desse
momento que Riobaldo memora. O acontecimento, o duelo, dá-se como um
espaço-tempo de vertigem, vórtice, redemoinho em que a linguagem se
ausenta; nele, o sentido se efetua como acontecimento vazio, nonsense:
Riobaldo vê o Diabo” (HANSEN, 2000, p.152).
E mesmo quando quis rezar conseguiu proferir a frase que é o movimento, a
imagem e a forma de sua angústia: o diabo na rua, no meio do redemoinho... O passado e o
presente parecem se fundir no momento em que Riobaldo profere novamente essa frase
quando narra sua experiência de testemunha desse duelo para seu ouvinte. Nessa
frase/epígrafe gira todo o passado narrado, o passado do narrado, o presente do narrado e
o futuro que é a abertura para uma infinita investigação sobre tudo o que foi narrado. Essa
investigação pode partir desse lugar, a rua, que figura como espaço mítico e espaço de
referência para a gênese de toda a cosmogonia inventada por Guimarães Rosa através da
fala de Riobaldo que, em nossa leitura, sustenta-se no concurso de metáforas elementares
que se misturam e separam-se para dar movimento e novas formas ao que passa a existir a
partir da narrativa do protagonista.
Riobaldo resume a cena do duelo na imagem do diabo na rua, no meio do
redemoinho porque lhe faltam palavras para descrever, reviver o vivido da mesma forma
que lhe faltou naquele dia à força e o domínio de si mesmo para tomar uma atitude
enquanto a tragédia se desenlaçava na rua e diante de seus olhos em vertigem. Sua
posição no alto do sobrado amplia a aérea sugestão de verticalidade e vertigem em que a
rua, ao invés de amenizar, com sua fixidez provavelmente sugerida pela proximidade com o
elemento terra, somatiza por ser levemente íngreme e também aparecer somada às
imagens de movimento que estão vinculadas ao encontro de Diadorim com o Hermógenes.
Esse encontro parece também um fenômeno vertical sugerido pela vertiginosa sensação de
voo e queda. Para Hansen (2000), Riobaldo “tem a vertigem de ver o ‘diabo’ Hermógenes
que sobe desumano e o ‘diabo’ Diadorim, mimese que desce” (HANSEN, 2000, p.153) como
quem também cai nos nublados abismos do resultado de uma vingança que acaba em
tragédia com a morte do amigo. Esse resultado esvazia o ver de Riobaldo que parece estar
mal influenciado pelo silêncio de depois de tudo. Esse não-ver tira de seu campo de visão a
figura de Diadorim como se este tivesse se dissipado no ar ou nas nuvens como se
dissipam os redemoinhos de vento e poeira. Sobre esses vazios sugeridos pela fala de
Riobaldo quando narra o duelo e seu resultado final, Hansen (2000) escreve que
“O final, aqui, é o pressuposto temático do início da narração de
modo que o significado vem pronto, quando Riobaldo começa sua fala
“nonada”. O que se dá, contudo, é o contrário: nonada, o significado é
sempre efeito do significante, da mesma maneira como o passado é
produzido pela enunciação presente.” (HANSEN, 2000, p.154).
O redemoinho é o nada feito ar e poeira, a terra é a cor de sua carne sem carne, pois
o vazio é sua principal constituição. Nonada” abre a fala de Riobaldo para desaguar ou
pousar na imagem final d'“o diabo na rua, no meio do redemoinho...porque é no primeiro
que se o segundo e nos resultados funestos do duelo o vazio se concretiza e, por que
não dizer, materializa-se na dor de Riobaldo. Falar do passado é possível no presente,
mas só se corporifica o passado quando se tem no presente uma visão ampla de tudo o que
se vai reconstruir na fala de quem narra ou uma visão ampla do que se narra: o início, o
meio e o fim da estória. Mas como o fim é relativo em Grande Sertão: Veredas porque
deságua em um novo começo sugerido pelo símbolo do infinito impresso no final do livro,
ele, o fim, abre-se para uma nova perspectiva, para um novo início, pois tudo são travessias,
percursos que passam, muitas vezes, pelos mesmo lugares. Diadorim e Hermógenes
podem ser considerados dois pontos de passagem constante na memória de Riobaldo, pois
é a eles que está vinculada a imagem d'o diabo na rua, no meio do redemoinho tão
importante na narrativa do ex-jagunço. Sobre essa questão, Hansen (2000) escreve que
“(...) Diadorim e o Hermógenes como princípios opostos, quando se
relacionam na rua e por ela, espacializam-se como lugares – também meios
a partir dos quais o discurso efetua a rememoração. Assim, no lugar
vazio, rua, um vazio, Diadorim, junta-se num vazio, o Hermógenes:
representação, o vazio gera a memória. E “O Diabo”, (não)-ser, nonsense,
indeterminação, nonada, linguagem, “na rua”, vazio em que algo se , “no
meio do redemoinho”, na fronteira nue entre designação e significação,
nas voltas do texto sobre si mesmo.” (HANSEN, 2000, p.154)
As imagens misturadas de Diadorim, Hermógenes e a rua criam a perspectiva de um
espaço mítico essencial que acaba se tornando a gênese de toda a narrativa de Riobaldo
em Grande Sertão: Veredas. Nesse espaço mítico essencial, Diadorim é metáfora aérea, o
vento que vem de cima e ergue a poeira. O Hermógenes, que vem de baixo, é metáfora
terrena porque vem do chão/terra da rua. Diadorim vem do vazio de cima, o Hermógenes
vem do vazio de baixo e ambos se encontram no vazio do meio, no meio desse vazio onde
Riobaldo o diabo rodando tudo com um poder de autoridade sobre os acontecimentos
que foram capazes de deixar o chefe inerte no clímax da batalha. Essa inércia seria parte da
ordem das coisas? O destino de Diadorim e Hermógenes estava fechado no uso calmo do
fogo frio da faca. O de Diadorim parece estar marcado a partir do episódio do mulato na
travessia de canoas no São Francisco, o de Hermógenes vem desde o gosto por sangrar, a
faca, inimigos feitos prisioneiros. O autor nos pistas desse funesto encontro que se
sustenta num círculo de metáforas elementares aéreas, terrenas e ígneas que no seco da
rua estancaram a fluidez da metáfora líquida da figura de Riobaldo. A água do narrador não
fluiu ali, ficou parada, transbordando sem destino, presa no sem sentido dos
acontecimentos.
“Querer mil gritar, e não pude, desmim de mim-mesmo, me
tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela rua, para encurralar
comprido... Tiraram minha voz. (...) Arrepele que não prestava para
tramandar uma ordem, gritar conselho. (...) Boca se encheu de cuspes.
Babei... Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro,
bramavam, se investiram... Ao que fechou o fim e se fizeram.” (ROSA,
1986, p.526)
Riobaldo quando narra esse clímax acaba caindo novamente nas voltas do
texto sobre si mesmo sugeridas por Hansen (2000) como quem roda de novo na
roda da dança da morte de Diadorim e Hermógenes. Cai como quem rodopia no
desenho do símbolo do infinito no inferno de repetir no ato de narrar o vivido sem
nada poder modificar o desfecho. Esse desfecho protagonizado pelas imagens
misturadas de Diadorim, Hermógenes e a rua, apresenta o espaço mítico essencial
da gênese de toda a narrativa de Riobaldo. Esse espaço simbólico seria a rua,
vereda urbana e reta que contradiz com as tortuosas trilhas e veredas do grande
sertão primitivo que morreu com Diadorim, Hermógenes e o chefe Urutu-Branco que
voltou a ser Riobaldo.
A rua como espaço simbólico seria o vazio e é nesse vazio que a memória de
Riobaldo atua. Para Hansen,
“(...) a linha incorporal é a rua, lugar do lugar, que encena o sentido
como designação do acontecimento, duelo. A rua, porém, é principalmente
o neutro, nonada, produção da enunciação do aquém-língua, heteróclito
sertão, e do além-língua, significação metafísica. Mallarmaicamente, a rua é
nonada.” (HANSEN, 2000, p.154-155)
Lugar onde tudo parece ter um fim-começo, a rua simboliza o ponto de maior
referência para o começo-fim de toda a estória de Riobaldo. Nonada seria o que
vem antes e o que vem depois do corpo nu da narrativa do ex-jagunço. Nonada é o
que não há, não existe. É um não-acontecimento e um não-lugar das coisas, mas é
também que se constitui o começo de uma explosão que fala e faz as coisas
serem, existirem, acontecerem e fazerem-se travessia.
“Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não
existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos
somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem
humano. Travessia.” (ROSA, 1986, p.538)
Nesse espaço de travessia, no meio do nada preenchido com a matéria
vertente da fala escrita de um ex-chefe de jagunços, teríamos a necessidade de que
um vazio, uma dúvida, fique na certeza de ser vazio e de não existir. Esse vazio é o
diabo. Sobre ele, Riobaldo quer ter a certeza da não existência e confia essa certeza
na suposta confirmação de seu misterioso ouvinte. Riobaldo quer acreditar que tudo
o que viveu e tudo o que reviveu narrando, não sofreu a influencia maléfica do diabo,
mas a força de opinião de homens muito humanos em todos os seus erros e
acertos. Quer acreditar que no espaço vazio do nada, nonada, tudo são pó, ar e
imaginação. Quer acreditar também que a imaginação pinta de preto ou branco tudo
o que vem de escuros buracos a consciência sem que tenhamos sempre o
domínio do resultado dos quadros. Sua fala nos fala no ar do lego infinito, flui nos
líquidos de sua forma que assume a forma de tudo o que fala, arrasta-se e ergue-se
na poeira do chão e corre dentro dos limites dessa terra sertão, onde o fogo está nas
mãos e nos corações dos homens. Nesse espaço de travessia, no meio do nada, a
matéria vertente da fala escrita desse ex-chefe de jagunços, compõe-se, finalmente,
de todo um conjunto de sugestões extraídas de nossas relações materiais e
metafísicas com os quatro elementos da natureza que, juntos, compõe a gênese de
toda a cosmogonia criada por Guimarães Rosa através da narrativa de Riobaldo
com todo o seu universo de possibilidades.
3. CONCLUSÃO
A leitura que fizemos de Grande Sertão: Veredas nesta pesquisa bibliográfica de
orientação analítico-interpretativa nos levou a concluir que os quatro elementos da natureza
não podem reger o discurso narrativo de Riobaldo como também o discurso descritivo,
responsável pela criação das atmosferas nos momentos mais dramáticos do romance.
Consideramos que numa narrativa, a descrição pode ser de grande valor para
sustentar os detalhes da ação, criando climas ou atmosferas capazes de transportar o leitor
para além dos acontecimentos. Guimarães Rosa já foi lido várias vezes nesse aspecto e em
toda a sua obra podemos encontrar um apreço pela descrição de comportamentos,
cenários, biodiversidade, ambientes rústicos que, quando ricamente detalhados em meio ao
texto narrativo
50
, criam climas eficientes para a construção de todos os conflitos e
sentimentos de caráter universal que emanam de sua prosa poética.
No começo dessa dissertação focalizamos a presença dos elementos no título e na
epígrafe do romance de Rosa. Desde o início investigamos o caráter narrativo mesclado ao
descritivo, analisando se era possível identificar os quatro elementos como gênese da
narrativa de Riobaldo. Parece que fomos um pouco além, mas sem a pretensão de trilhar o
caminho de uma leitura que fosse adiante de nossas expectativas. Deparamos, a nosso ver,
com o óbvio para uma leitura que analisa a gênese de uma narrativa do porte de Grande
Sertão: Veredas, ou seja, fizemos a leitura do livro investigando a presença dos quatro
elementos da natureza como gênese da narrativa de Riobaldo e encontramos no meio
dessa travessia a presença de uma rica quantidade de passagens atmosféricas que
barrocamente ornamentaram o discurso do protagonista narrador de maneira a intensificar a
carga dramática e poética de seu relato. Esses ornamentos abrem, compõe também o
desenvolvimento dos episódios e encarregam-se de desfechá-los, sendo esses desfechos a
ponte para outros acontecimentos narrados pelo ex-jagunço, representando, ao longo da
estória, o símbolo do infinito () que vem impresso no final do texto. Esse movimento, de
uma estória se iniciar a partir do final de outra, é constante no relato de Riobaldo e pode ser
considerado parte de um movimento ainda maior que se focaliza no drama do ex-jagunço
que revive no contar, suas lutas, raivas, angústias, seus dramas, desesperos e
desencontros. O narrar, em Grande Sertão: Veredas é como seguir a trilha de um lápis que
50
Não se pode, neste sentido, desmisturar narração de descrição e vise versa.
desenha o símbolo do infinito no papel repetindo as voltas em cima do traço sem parar. O
papel não desgasta, o lápis não para e o movimento se repete por toda eternidade que
exala das páginas intrigantes desse romance universal marcado pela presença do elemento
terra e água no título, como já foi explicitado no início dessa dissertação.
Composta pela sutileza líquida das Veredas, a narrativa desse Grande Sertão nos
seduziu aos encantos dos jogos de enganos da literatura. Nos fez acreditar que essas
intervenções descritivas no meio da ação narrada por Riobaldo foram arquitetadas para nos
fazer enxergar com os olhos limitados do narrador de primeira pessoa que a melhor
descrição para o evento clímax da narrativa seria a da visão d’o diabo na rua, no meio do
redemoinho em toda a idéia de confusão que emana dessa imagem. Mergulhados na
profundidade desse livro, confiamos nessa crença sem receio de investigar a natureza
desse labirinto poético, pois desde o início deste trabalho não tivemos a pretensão de
buscar respostas fechadas para nosso principal questionamento.
A possibilidade de se ler o romance de Rosa identificando a presença dos quatro
elementos como gênese da narrativa de Riobaldo era prevista desde o início deste estudo, o
que não prevíamos era o que iríamos encontrar na travessia de nossa investigação que
acabou por nos remeter a uma possível análise hierárquica do discurso narrativo e do
descritivo do protagonista. Aquele reproduz os conflitos vividos pelo protagonista este
sugere a luz, a cor, o tema do cenário e sonoplastia do relato, dando corpo físico e
metafísico à estória, dando vida a pluralidade atmosférica do livro.
A capacidade de encarcerar o leitor em suas páginas faz de um livro grande um
grande livro, e isto é possível se seu autor for um exímio criador de climas, atmosferas,
que sejam fortes o suficiente para ir além de uma forjada estratégia para chamar atenção,
mas um poder quase sobrenatural de encantar através do trabalho com a linguagem, da
aproximação da filosofia erudita com a natureza do sujeito rústico e, daquilo que chamamos,
natural espírito de Sherazade, ou seja, a natureza de contador de estórias. Tudo isso, o
Grande Sertão: Veredas e seu autor, Guimarães Rosa tem. Acreditamos que isso ocorre
graças às referências discursivas à interação dos quatro elementos da natureza na gênese
da fala/narrativa de Riobaldo nutrida por uma talentosa capacidade do autor de retratar
tipos, climas e cenários.
Tentamos não forçar a aproximação da fortuna crítica de Guimarães Rosa e de
outros textos de referência no desenvolvimento deste trabalho em função de não querermos
desenvolver um estudo científico tendencioso e mecânico. Mas, por se tratar de uma
dissertação de mestrado, não pudemos abolir nosso diálogo, embora ministrado com
parcimônia, com a crítica e outros autores acadêmicos que nos foram de extremo valor.
Acreditamos que o nosso diálogo com esses autores serviu para que pudéssemos ilustrar
nossos argumentos acerca do tema proposto.
Novas linhas de estudo podem ser desenvolvidas a partir deste trabalho se for
possível imaginar um estudo isolado e profundo de cada um dos quatro elementos da
natureza em Grande Sertão: Veredas. A grandiosidade do tema por nós proposto para essa
pesquisa certamente pode ser a maior razão para essa abertura natural que nosso trabalho
adquiriu. Vimo-nos limitados a recortes tanto de nossa leitura do Grande Sertão: Veredas
quanto de sua fortuna crítica em função do tamanho e da profundidade que nosso trabalho
poderia adquirir, soando, com isso, desproporcional às limitações de uma dissertação de
mestrado. Isso, contudo, não nos parece de todo ruim, haja vista que podemos visualizar
este trabalho como uma abertura para estudos mais profundos, embora que ainda
recortados, sobre o tema dos quatro elementos como gênese da narrativa no romance.
Esta pesquisa bibliográfica de orientação analítico-interpretativa nos levou, portanto,
a visão de que os quatro elementos da natureza não regem o discurso narrativo de
Riobaldo como também o discurso descritivo, que dá corpo físico e metafísico as atmosferas
e climas dramáticos do romance narrado/falado por um ex-chefe de jagunços mineiros que
viveu experiências sem par, temperadas por acontecimentos administrados pela dinâmica
dos elementos fogo, ar, terra e água em meio ao ambiente universal, natural e subjetivo do
sertão, aprendendo com essas experiências sobre si mesmo, sobre o amor e a vida.
4. REFERÊNCIAS
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