55
A situação colonial
Aproveitando a explicação de Novais (op.cit.), durante o
descobrimento e nos séculos seguintes, na Europa, ocor-
ria a transição do feudalismo ao capitalismo, sendo este
processo, o mercantilismo, marcado por alguns aspectos
fundamentais para a compreensão do que ocorria no Novo
Mundo em relação à vida pública e privada:
1 - No mundo colonial predomina o trabalho escravo até o
século XIX, que convive, contraditoriamente, com o abur-
guesamento e o racionalismo crescente de valores, no que
tange às práticas comerciais e às relações internacionais;
2 - No Brasil, as esferas públicas e privadas apresentam-
se invertidas, gerando práticas sociais ilegítimas, contra-
ditórias e paradoxais, as quais ocorrem tanto na esfera
pública, como na esfera privada (intimidade e cotidiani-
dade);
3 - Nas Colônias, extensões das metrópoles, além da ques-
tão da formação do Estado, também apresenta-se o pro-
cesso de gestação de uma nacionalidade. No Brasil, essa
contradição, às vezes aproximadora, às vezes conflituosa,
embaralha ainda mais as esferas públicas e privadas, ge-
rando uma sensação de perplexidade e insegurança nos
atores históricos por sua falta de coerência lógica e moral;
4 - E, na medida em que as Colônias são vistas como ex-
tensões das Metrópoles, no antigo sistema colonial, a pri-
vacidade contrapõe formação do Estado à gestação da
nacionalidade (favorecendo a confusão e a inversão das
esferas públicas e privadas), estabelecendo esta correla-
ção ambígua, contraditória e paradoxal entre as estrutu-
ras da colonização e as manifestações da intimidade. Con-
tudo, imperava na sociedade essa ilusão ideológica que
transforma a Colônia em réplica perfeita da Metrópole: esta
encenação, distante da realidade, é denunciada constan-
temente e já aparece nos primeiros traços e representa-
ções das manifestações da intimidade, as quais têm como
tônica permanente a necessidade imperiosa de recriação
dos significados frente à ambigüidade social dada. Novais
(op.cit) esclarece citando os versos do poeta bahiano Gre-
gório de Mattos, os quais criticam a conduta e os hábitos
das pessoas na sociedade soteropolitana do séc. XVII ao
desfilar a impáfia metropolitana no calorento mundo tro-
pical: “Por fóra, bela viola/Por dentro, anjo bento”.
Segundo Leandro Konder (2), nos tempos da Colônia, as
ordens da Metrópole eram acatadas, mas nem sempre era
possível praticá-las na situação brasileira. Um estado inép-
to para controlar tamanho território, dissolvia-se entre a
indiferença e a corrupção — onde a pirataria na costa e a
ocupação territorial comandada por degredados e merce-
nários davam a tônica da colonização: massacre de índios
e trabalho compulsório nas
plantations
e nas minas. O
resto do país ia à reboque, e vivia no isolamento da explo-
ração predatória itinerante e das atividades de subsistên-
cia, nas vastas florestas e campos, e nos raros e incipien-
tes povoados e núcleos urbanos. O poder da coroa nunca
foi levado muito a sério, e era desafiado continuamente
por abusos, farsas, roubos, negociatas e desmandos, e,
por isso, sempre foi motivo de chacota e zombaria; o que
divertia e também atemorizava a população.
A natureza indomável e liberta do nativo brasileiro, fruto
de sua estrutura social igualitária, associada à presença
perversa do invasor — não apenas em astúcia e violência,
mas principalmente pela introdução das doenças contagi-
osas d’além-mar — custaram à humanidade a extinção de
alguns tesouros antropológicos e, muitos desapareceram
sem deixar vestígios ou traços. Na versão de Darcy Ribei-
ro (3), o início da ocupação portuguesa contou com gran-
de apoio dos aborígenes, os quais, majoritariamente, per-
tenciam à matriz Tupi-Guarani, e estavam presentes do
Rio da Prata até os afluentes do Amazonas.
Os povos do tronco Tupi-Guarani já haviam realizado a
revolução agrícola ao domesticar diversas plantas, e ti-
nham nível evolutivo superior ao dos outros povos brasi-
leiros. Nas primeiras décadas da ocupação, o convívio
entre nativos e europeus foi cooperativo e pacífico, esta-
belecendo relações simbióticas: “…estes novos núcleos
humanos só puderam surgir, sobreviver e crescer em con-
dições tão inviáveis e em meio tão diverso do europeu,
porque aprenderam com o índio a dominar a natureza tro-
pical; fazendo deles seus mestres, seus guias, seus remei-
ros, seus lenhadores, seus caçadores, pescadores, arte-
sões e, sobretudo, fazendo das índias suas mulheres, em
quem geraram uma vasta prole mestiça que viria a ser,
depois, a gente da terra.” (op. cit. pp. 245). É deste contato
que surge o primeiro “povo-novo” do Brasil, o mamelu-
co, fruto da miscigenação do índio com o europeu, antes
da chegada do negro africano.