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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
Mestrado em Música
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
O DISCURSO POLIFÔNICO EM CANÇÕES TROPICALISTAS
EDUARDO LARSON
CAMPINAS
2006
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EDUARDO LARSON
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
O DISCURSO POLIFÔNICO EM CANÇÕES TROPICALISTAS
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Música do Instituto de Artes
da UNICAMP como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Música sob
a orientação do Prof. Dr. José Roberto Zan.
CAMPINAS
2006
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Bibliotecário: Liliane Forner – CRB-8
ª
/ 6244
Título em inglês: “The polyphonic discourse in tropicalistic songs”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Music – Song – Tropicalism(Music)-Brazil
Semiotics
Titulação: Mestrado em Música
Banca examinadora:
Prof. Dr. José Roberto Zan
Prof. Dr. Ana Cristina Fricke Matte
Prof. Dr. Antônio Rafael dos Santos
Data da defesa: 24 de Fevereiro de 2006
Larson, Eduardo.
L329d Desafinando o coro dos contentes: o discurso polifônico em
canções tropicalistas. / Eduardo Larson. – Campinas, SP: [s.n.],
2006.
Orientador: José Roberto Zan.
Dissertação(mestrado) - Universidade Estadual de
Campinas.
Instituto de Artes.
1. Música. 2. Canção. 3. Tropicalismo(Música) – Brasil.
4. Semiótica. I. Zan, José Roberto. II. Universidade Estadual
de Campinas.Instituto de Artes. III. Título.
v
vii
Para Bella
Para Laura
Para meus pais
ix
Agradeço ao professor José Roberto Zan pela paciência e confiança depositadas em
mim. Seu vasto conhecimento nas áreas humanas, seu rigor na conduta do pensamento e
sua permanente abertura ao conhecimento independente das “escolas” possibilitaram a
realização deste trabalho, além de despertar em mim o prazer pela pesquisa.
Agradeço também, em especial, à professora Ana Cristina Fricke Matte pela
paciência, pela atenção despendida e pelas valiosas contribuições. Com apenas algumas
intervenções ela foi capaz de abrir um “mundo de perspectivas diante de mim. Ela se
mostrou uma pessoa aberta e comprometida com a propagação do conhecimento, exemplo
que pretendo levar adiante.
xi
RESUMO
O trabalho que aqui se apresenta tem como fio condutor a verificação de como se
a construção do sentido através de procedimentos polifônicos na canção popular. Polifonia
entendida não por sua acepção musicológica, mas pela noção advinda dos estudos da
linguagem: as muitas “vozes” que contribuem para a formação do sentido no processo
enunciativo.
Estamos considerando a canção como uma forma híbrida de linguagem cujo texto se
configura verbal e musicalmente, por isso, tentamos verificar o fenômeno da polifonia tanto
em seus aspectos lingüísticos quanto nos musicais, e principalmente na interação entre
ambos. Para tanto, além da reflexão sobre os conceitos de polifonia, intertextualidade,
interdiscursividade e suas implicações no campo cancional e musical, nos propomos a
analisar os fonogramas de “Enquanto seu Lobo não vem” e “Não Identificado” produzidos
no período tropicalista de Caetano Veloso.
Nosso objetivo, portanto, teve uma dupla orientação: por um lado, mobilizar um
conjunto teórico a respeito da questão da polifonia, estendendo-a ao universo da canção, e
por outro lado a análise de um corpus fonográfico escolhido por apresentar, ao menos
intuitivamente, afinidade com o tema que acabou por corroborar nossas proposições e
sugerir novas possibilidades de investigação.
Palavras-chave: música, canção, semiótica, dialogismo, polifonia, tropicalismo.
xiii
ABSTRACT
The main focus of the present work is to verify how the construction of meaning is
established via polyphonic procedures in popular Brazilian songs. The term “polyphony”
will be used not as usually intended by Musicology, but as it is applied in Linguistics: the
discursive “voices” that interplay in an enunciation and contributes to build its sense.
We are considering songs as a hybrid semiotic whose text configures verbally and
musically, so we try to verify the polyphony phenomenon in the linguistic and musical
aspects of songs, and mostly in their interactions. In order to accomplish this, besides
presenting considerations of the concepts of polyphony and intertextuality, and their
implications in the study of music and songs, we propose the analysis of two phonograms
produced by Caetano Veloso during his “tropicalistic” period: “Enquanto seu Lobo não
vem” (“Meanwhile, before ‘Big Bad Wolf’ comes”) and “Não Identificado”
(“Unidentified”).
Our purpose, therefore, had a dual orientation: to mobilize a theoretical framework
around the concept of polyphony, extending it to the study of music and songs, and to
examine a phonographic corpus chosen by its empathy to our premise that, in the end,
happened to corroborate our propositions and suggest new ways of investigation.
Key words: music, song, semiotics, dialogism, polyphony, Tropicalism.
xv
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
I. POLIFONIA 5
1.
A
DISSOLUÇÃO DO SUJEITO
:
P
OLIFONIA SEGUNDO
D
UCROT
6
2.
M
ELODIA
13
3.
M
ELODIA E ACOMPANHAMENTO
20
4.
A
COMPANHAMENTO E VOZES
27
II. AS VOZES DOS OUTROS 33
1.
I
NTERTEXTUALIDADE
35
2.
P
OLIFONIA TEXTUAL E POLIFONIA DISCURSIVA
41
3.
I
NTERTEXTUALIDADE E CANÇÃO
43
III. ANÁLISES 55
1.
E
NQUANTO
S
EU
L
OBO NÃO VEM
56
2.
N
ÃO IDENTIFICADO
76
3.
C
ONSIDERAÇÕES SOBRE AS ANÁLISES
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS 101
REFERÊNCIAS 105
D
ISCOGRAFIA
109
BIBLIOGRAFIA 111
INTRODUÇÃO
1
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende desenvolver o conceito de polifonia (como entendido pela
Lingüística) no estudo de canções e, mais especificamente, canções tropicalistas. A idéia de
polifonia deriva do princípio de dialogismo desenvolvido por Bahktin. Tal preceito trabalha
com a noção de que o enunciado, o discurso e/ou o texto não se constrói sobre o “mesmo”,
mas sempre tendo em vista o “outro”, seja quando este perpassa ou quando condiciona o
discurso do “eu” (Fiorin, 1994). Este conceito acarreta em pelo menos duas abordagens: (1)
a interação entre o “eu” e o “tu”, ou o “eu” e o “outro”, na extensão do texto, e (2) o
“diálogo entre os muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o
define” (Barros, 1994: 4).
Ducrot (1987) irá se apropriar dessas noções para, em sua teoria da polifonia,
trabalhar com o sentido do enunciado através da descrição das “vozes” discursivas ou dos
“pontos-de-vista” de sujeitos discursivos que dialogam, se confrontam ou se entrecruzam
na enunciação. Para este autor, o sentido de um enunciado é uma representação
(teatralmente entendido) de sua enunciação, e neste “espetáculo” o sujeito da enunciação se
desdobra em diversos “personagens” discursivos. Esta será nossa principal acepção ao
tratar da polifonia no primeiro capítulo, no segundo capítulo abordaremos mais
especificamente o processo de incorporação de textos e discursos disseminados na cultura.
O tropicalismo tem sido objeto de estudo privilegiado em diversos trabalhos sobre a
música popular do Brasil desde os primeiros artigos reunidos no Balanço da Bossa de
Augusto de Campos (1993). Em pelo menos dois dos mais importantes o conceito de
dialogismo orienta suas abordagens: Tropicália: alegoria, alegria de Celso Favaretto
(1979) e A desinvenção do som: leituras dialógicas do tropicalismo de Paulo Eduardo
Lopes (1999). Favaretto, além de ser um dos precursores, tem o mérito de não se afixar a
uma determinada característica da estética tropicalista. O autor transita entre os vários
elementos que compõem a “cena tropicalista” para descrever as relações dialógicas internas
(entre as canções e seus elementos) ao Tropicália ou Panis et Circensis, mas também entre
este disco e os contextos evocados através das paródias, alusões, alegorização e inversões
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
2
carnavalescas. Já o trabalho de Lopes, bastante recente, enfoca as relações discursivas entre
o tropicalismo e as outras “tendências musicais” sincrônicas (definidas pelo autor como a
Jovem Guarda, a MPB “nostálgica” e a MPB “apostólica”). Assim, o autor mostra como a
“identidade” do tropicalismo se constrói a partir, principalmente, do “diálogo” polêmico
entre essas tendências e conclui que o principal projeto tropicalista pode ser caracterizado
como uma busca pela “desinvenção” da música popular que se fazia na época.
Apesar de muito valiosos, ambos os trabalhos demonstram uma certa “carência” no
que se refere ao tratamento das características estritamente musicais de canções, o que
reflete antes um descompasso entre os avanços teóricos de outras áreas do conhecimento
em relação à musicologia (principalmente no que diz respeito ao estudo da significação em
música) do que falta de interesse em tal abordagem. Definitivamente, não podemos dizer
que o trabalho que aqui se apresenta irá resolver essa defasagem, mas gostaríamos de poder
progredir, ao menos mais um pouco, na direção de uma maior compreensão do fenômeno
musical.
No primeiro capítulo, trataremos da polifonia interna à enunciação, quer dizer, das
relações entre os elementos que compõem a enunciação cancional. Para tanto, definimos
como nosso objeto de estudo o nosso texto o fonograma, ou seja, o registro sonoro de
uma determinada performance musical. Primeiro esboçaremos os principais pontos da
teoria polifônica de Ducrot para, em seguida, tentar estender estas noções ao universo da
canção, levando sempre em conta suas peculiaridades enquanto forma híbrida e sincrética
de linguagem. Trataremos, portanto, das relações entre melodia e letra desenvolvidas pela
Semiótica da Canção de Tatit (1986, 1994, 1996), mas também abordaremos o
acompanhamento e os elementos propriamente musicais presentes na enunciação cancional.
O segundo capítulo abordará a polifonia que ocorre em relação exterior à
enunciação, quer dizer, os mecanismos de apropriação de textos e discursos de “outros”
(mas que se manifestam, obviamente, no texto). São os casos de intertextualidade e
interdiscursividade que serão aprofundados e discretizados. Também estenderemos essas
noções ao caso da canção, apontando diversas canções tropicalistas como exemplo.
Em ambos os capítulos estaremos utilizando e sempre retomando, como uma
INTRODUÇÃO
3
espécie de “macro” exemplo, a canção “Sampa” de Caetano Veloso. Não por acreditarmos
haver alguma correspondência entre esta canção e o tropicalismo, mas simplesmente
porque esta canção se mostrou como bom exemplo para várias das indagações manifestas
durante nossa dissertação.
O terceiro capítulo pretende praticar analiticamente os conceitos desenvolvidos em
dois casos específicos, agora sim, tropicalistas: Enquanto seu Lobo não vem” e “Não
identificado”, compostas e interpretadas por Caetano Veloso. Apesar de insuficientes para
chegar a alguma conclusão genérica a respeito do tropicalismo, devido ao corpus reduzido
quantitativamente, gostaríamos de contribuir, com nossos exames, para um melhor
entendimento do que foi esse fenômeno musical. A metodologia de análise adotada segue
prioritariamente a Semiótica da Canção desenvolvida por Tatit (1986, 1994, 1996), mas
também algumas noções da semiótica da música (ou música popular) proposta por Tagg
(1982, 1987, 1999) e também mencionadas em Middleton (1990). Ambas as canções são
confrontadas ao final das análises com o intuito de verificar quais foram as manobras
adotadas – particulares e/ou genéricas – para se constituírem textos cancionais polifônicos.
Finalmente, em nossas últimas considerações faremos um balanço do que
consideramos os principais avanços deste trabalho e apontaremos sugestões para novas
abordagens ou possíveis desdobramentos do assunto.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
4
POLIFONIA
5
I. POLIFONIA
O conceito de polifonia
1
foi empregado pela primeira vez, nas ciências da
linguagem, por Mikhail Bakhtin, sendo derivado diretamente de seus estudos sobre a
natureza dialógica da linguagem. Para o autor soviético, o dialogismo “é princípio
constitutivo da linguagem e condição do sentido do discurso” (Barros, 2003: 2). O conceito
diz respeito ao princípio de que “o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas se elabora
em vista do outro. Em outras palavras, o outro perpassa, atravessa, condiciona o discurso do
eu” (Fiorin, 2003: 29).
A partir desta noção, Bakhtin aprofunda diversos conceitos (literatura carnavalesca,
romance polifônico, a palavra bivocal, deslocamento do conceito de sujeito, etc.) que, além
de influenciar outros campos do conhecimento, acabaram por antecipar várias indagações
da Lingüística e Semiótica recentes.
Ao analisar a obra de Dostoievski
2
, Bakhtin (1997) chama a atenção para a
necessidade de se reconhecer no procedimento narrativo desse autor, e de toda uma
categoria de textos, uma multiplicidade de “vozes” que soam simultaneamente sem que
haja uma hierarquia entre elas, ou, fazendo outra analogia, um jogo de encenação que o
narrador promove ao assumir diversas “máscaras” (o que leva Bakhtin a qualificar estes
textos, também, de literatura mascarada ou carnavalesca) (Ducrot, 1987: 161-163). Para
Bakhtin, a particularidade fundamental dos romances de Dostoievski
“não está na multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo
objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus
romances; é precisamente a multiplicidade de consciências eqüipolentes
3
1
O termo é originário da musicologia. Designa uma técnica de composição musical onde duas ou mais vozes
melódicas são apresentadas simultaneamente sem perder sua individualidade relativa. Bakhtin se utiliza desta
analogia para ressaltar as características de sua teoria.
2
Autor russo que viveu entre 1821 e 1881.
3
Eqüipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em de absoluta
igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem o seu SER enquanto vozes e consciências autônomas” (N.
do T. em Bakhtin, 1981: 4).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
6
e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento,
mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoievski,
suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do
discurso do autor mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente
significante” (Bakhtin, 1997: 4).
Em síntese, e de forma generalizada, a noção de polifonia em Lingüística pode ser
definida como a presença de “vozes” (ou “perspectivas”, “pontos-de-vista”, ) de
“falantes” ou “figuras discursivas” (Koch, 1991: 535) diferentes do autor ou locutor do
enunciado no processo discursivo. Para tanto, faz-se necessário a dissolução da idéia de
sujeito único, autor responsável por um enunciado.
1. A DISSOLUÇÃO DO SUJEITO: POLIFONIA SEGUNDO DUCROT
Com o intuito de contestar e substituir o postulado de que para cada enunciado
existe apenas um sujeito, o qual é responsável por aquilo que é afirmado, Oswald Ducrot
desenvolve uma teoria, dentro do que ele chama pragmática lingüística ou pragmática
semântica, denominada polifonia. Tal concepção apresenta-se como uma extensão da noção
de polifonia desenvolvida por Bakhtin.
Para Ducrot, a noção de unicidade do sujeito de um enunciado torna-se
explicitamente crítica nos casos de retomada de asserções, quando, por exemplo, as marcas
de primeira pessoa contidas numa sentença são assimiladas a outro sujeito que não o
falante. Como no exemplo: se João me diz “Pedro disse: eu fui à aula”, o pronome eu de
‘eu fui à aula’ não pode ser assimilado ao sujeito falante do enunciado (João), pois se refere
a Pedro. Para suprir esse tipo de dificuldade, Ducrot promove a distinção entre sujeito
falante, locutores
4
e enunciadores.
O locutor, por definição, é aquele que no sentido do enunciado é apresentado como
seu “responsável”, ou seja, é “alguém a quem se deve imputar a responsabilidade deste
4
Ducrot distingue dois tipos de locutor, o locutor “enquanto tal” e o locutor “enquanto sujeito do mundo”.
Tal distinção será exposta de modo mais detalhado posteriormente.
POLIFONIA
7
enunciado” (Ducrot, 1987: 182). Numa analogia à produção literária romanesca, para
Ducrot, o locutor difere do sujeito falante da mesma forma que o narrador opõe-se ao
romancista. Enquanto o sujeito falante (empírico) é “um elemento da experiência”, o
locutor é “ficção discursiva” ou, ainda, “um ser de discurso” (Ducrot, 1987: 187). No
exemplo utilizado acima, fica clara a presença de dois sujeitos: João, assimilado à
expressão “Pedro disse” (o sujeito falante) e Pedro de “eu fui à aula”. O locutor L1,
associado a João, representando o sujeito falante empírico, insere em seu relato o relato do
locutor L2, associado à fala de Pedro. Como num romance onde o narrador principal vale-
se do relato de um narrador secundário.
Inclusive, para Ducrot, o locutor não pode diferir do sujeito falante como
enunciados que não veiculam indicações que atribuam a algum sujeito a responsabilidade
de sua enunciação, ou seja, “não aparecem como o produto de uma subjetividade
individual, (…) não que o sentido destes enunciados atribui a origem de sua enunciação a
alguma subjetividade superindividual, mas simplesmente que ele não diz nada sobre sua
origem, que não exibe nenhum autor de sua fala, [pois] a existência de uma fonte e de um
alvo estão entre as qualificações que o sentido atribui (ou não) à enunciação” (grifo nosso.
Ducrot, 1987: 183-184). Como no exemplo: “A esquadra britânica possuiria armas
nucleares”. Neste caso, tipicamente jornalístico, o locutor exime-se da responsabilidade de
sua asserção, atribuindo-a a outro que não é identificável. Consegue, com isso, manter um
maior distanciamento com relação à asserção (“não sou eu que o digo”) (Koch, 1987: 146-
147). Neste exemplo, o locutor assimila o ponto de vista manifestado, como explicaremos
adiante, de um enunciador genérico.
Devemos esclarecer que, para Ducrot, o termo “sentido” é usado para caracterizar
semanticamente o enunciado, enquanto que para a caracterização semântica da frase, ele
fala de sua “significação” (Ducrot, 1987: 169). Para o autor, a “frase” é um objeto teórico,
invenção da Gramática, que permite ao lingüista dar conta dos “enunciados”, ocorrências
particulares daquela. Se uma mesma frase é dita por duas pessoas diferentes ou pela mesma
pessoa em momentos diferentes, encontramo-nos com dois enunciados, dois observáveis
diferentes (Ducrot, 1987: 164). A significação de uma frase serve, para Ducrot, como “um
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conjunto de instruções dadas às pessoas que têm que interpretar os enunciados da frase,
instruções que especificam que manobras realizar para associar um sentido a estes
enunciados” (Ducrot, 1987: 170).
De acordo com Koch, cada ato de linguagem é constituído de três atos: falar, dizer e
mostrar. A produção de frases o falar é decorrente da “capacidade do falante de
produzir determinados sons de acordo com determinadas regras gramaticais” (1987: 30),
pertencendo ao nível gramatical. Quando a frase significa, ela se atualiza em enunciado. A
produção de enunciados, referente ao dizer, estabelece relações entre “uma seqüência de
sons e um estado de coisas” (idem, ibidem), ou seja, dá-se pela relação entre a linguagem e
o mundo e pertence ao nível semântico. o mostrar liga-se à enunciação (é quando o
enunciado passa a ter um sentido), “que incorpora o processo de significação e mostra a
direção para a qual o enunciado aponta, o seu futuro discursivo” (idem, ibidem),
distinguindo-se como a relação entre a linguagem e o homem: objeto de estudo da
Pragmática.
A realização de um enunciado, portanto, é um acontecimento histórico: algo que
não havia e, num determinado momento, passa a existir, e que, passado este momento, não
existirá mais. À aparição momentânea de um enunciado, Ducrot chama de “enunciação”.
Segundo Ducrot, o trabalho do lingüista consiste em descrever a enunciação a fim de
chegar ao sentido de um enunciado. Para ele, “o que o sujeito falante comunica através de
seu enunciado é uma qualificação da enunciação deste enunciado” (1987: 172).
Um fragmento de discurso pode ser considerado um enunciado desde que, sob a
noção de “autonomia relativa”, satisfaça duas condições simultaneamente: a de coesão e a
de independência (Ducrot, 1987: 164). Existe coesão num segmento quando cada um de
seus constituintes é escolhido de acordo com o conjunto. Um exemplo tirado de Ducrot:
“Quando, para incitar à temperança uma pessoa muito gulosa, se lhe
recomenda Coma para viver!’, o coma não constitui um enunciado,
porque é escolhido somente para produzir a mensagem global: o sujeito
falante não deu primeiro o conselho ‘coma!’ ao qual teria acrescentado
em seguida a especificação ‘para viver’. Mas se a mesma seqüência serve
para aconselhar a um doente sem apetite a comer pelo menos alguma
coisa, o coma deve ser compreendido como um enunciado, assumido pelo
sujeito falante, e reforçado em seguida por um segundo enunciado que
POLIFONIA
9
traz um argumento para apoiar o conselho dado” (Ducrot, 1987: 165).
Por outro lado, uma seqüência é independente quando sua escolha não é imposta
pela escolha de um conjunto mais amplo da qual faz parte. Outro exemplo de Ducrot:
“A: O Pedro, a gente não tem visto muito.
B: Mas como! Eu o vi esta manhã. A propósito, ele acaba de comprar
um carro.
A: Eu acho que Pedro está com problemas de dinheiro neste momento.
B: Mas como! Eu o vi esta manhã. Ele acaba de comprar um carro.
No primeiro diálogo, o ‘Eu o vi esta manhã’ atende à condição de
independência. Não se pode admitir que B tenha primeiro procurado dar
a conhecer que ele tinha encontrado Pedro, mensagem que tem uma
função por si só, que foi suficiente replicar ao que dissera A. No
segundo diálogo, ao contrário, o segmento ‘Eu o vi esta manhã’ é dado só
como uma preparação destinada a tornar mais confiável a informação
que vem em seguida, e escolhida em virtude da decisão de fornecer esta
informação” (Ducrot, 1987: 165).
Retomando a questão da dissolução da noção de sujeito único, Ducrot aponta que
em certos enunciados, faz-se necessário, além da distinção entre locutor e sujeito falante, a
divisão do locutor em dois tipos: locutor (L) “enquanto tal” e locutor (l) “enquanto ser do
mundo”. Ambos “seres de discurso” mas, enquanto L é considerado como tendo
unicamente a propriedade de ser responsável pelo enunciado, l possui, entre outras
propriedades, a de ser a origem do enunciado.
Nos casos de interjeição (ex: Ai de mim!), se a fala é triste, ela o é na medida em
que o é na própria enunciação. Neste caso, o ser a quem é atribuído o sentimento é L, “o
locutor visto em seu engajamento enunciativo” (Ducrot, 1987: 188). No caso de enunciados
declarativos (ex: Estou muito triste.), o sentimento aparece exterior à enunciação, como
objeto dela. Este tipo de enunciado não surge como efeito imediato do sentimento, como na
interjeição; surge para atribuir a alguém um sentimento, no caso, l, “ser do mundo que,
entre outras propriedades, tem a de enunciar sua tristeza” (Ducrot, 1987: 188). Onde a
distinção entre L e l pode ficar mais clara é, por exemplo, na retórica. O orador, no intuito
de persuadir ou seduzir o ouvinte, de si uma imagem favorável pelo modo como exerce
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
10
sua atividade oratória. Para Ducrot:
“Não se trata de afirmações auto-elogiosas que ele pode fazer de sua
própria pessoa no conteúdo de seu discurso, afirmações que podem ao
contrário chocar o ouvinte, mas da aparência que lhe confere a fluência,
a entonação, calorosa ou severa, a escolha das palavras, os argumentos
(…). Na minha terminologia, direi que o ethos está ligado a L, o locutor
enquanto tal: é enquanto fonte da enunciação que ele se dotado de
certos caracteres que, por contraponto, torna esta enunciação aceitável
ou desagradável. O que o orador poderia dizer de si, enquanto objeto da
enunciação, diz, em contrapartida, respeito a l, o ser do mundo, e não é
este que está em questão na parte da retórica de que falo (a distância
entre estes dois aspectos do locutor é particularmente sensível quando L
ganha a benevolência de seu público pelo próprio modo como humilha l:
virtude da autocrítica)” (Ducrot, 1987: 189).
No primeiro exemplo mencionado neste texto (“Pedro disse: eu fui à aula”),
encontramos um caso de polifonia onde temos dois locutores responsáveis pelas asserções
contidas em um enunciado, mas casos, bem mais freqüentes segundo Ducrot, em que se
encontra a voz de alguém que não tenha as propriedades atribuídas ao locutor. A estes seres
que se expressam através da enunciação sem que lhes sejam atribuídas palavras Ducrot
denomina “enunciadores”; “se eles ‘falam’ é somente no sentido em que a enunciação é
vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido
material do termo, suas palavras” (Ducrot, 1987: 192). Ou nas palavras de Koch, são
“encenações de pontos de vista, perspectivas diferentes dentro do mesmo enunciado”
(1991: 535).
Numa analogia ao teatro, Ducrot diz que o enunciador está para o locutor como o
personagem está para o autor. Assim como o autor coloca em cena seus personagens,
inclusive podendo se dirigir ao público (seja porque se assimila à fala de algum
personagem, seja porque mostra como significativo os personagens falarem e se
comportarem de tal modo), o locutor existência a enunciadores de quem ele, sendo o
responsável pelo enunciado, organiza os pontos de vista e as atitudes, podendo assimilar-se
a algum dos enunciadores ou não (Ducrot, 1987: 192-193).
Para exemplificar a diferença entre sujeito falante e locutor, mostramos a analogia
feita por Ducrot com o romance, através da distinção entre autor e narrador. O autor, sujeito
POLIFONIA
11
empírico que imagina ou inventa acontecimentos, e o narrador, aquele que relata os
acontecimentos, ser fictício que pode nem existir: “Para escrever é necessário existir, isto
não é necessário para narrar” (Ducrot, 1987: 195). Prosseguindo com esta analogia, e
baseado na teoria da narrativa de Genette
5
, Ducrot distingue o narrador dos “centros de
perspectiva”, seres de cujo ponto de vista são apresentados os acontecimentos num
romance. Para Genette, como citado por Ducrot (1987: 196), o narrador é “quem fala”,
enquanto o centro de perspectiva é “quem
6
”. Existem textos em que “o narrador
apresenta acontecimentos que relatam uma visão que não pode ser nem a sua, no momento
em que narra a história, nem a de um indivíduo designado por eu, ou seja, do ser em que era
no momento em que vivia a história” (Ducrot, 1987: 196). Analogamente ao que se passa
no processo enunciativo:
“O locutor fala no sentido em que o narrador relata, ou seja, ele é dado
como a fonte de um discurso. Mas as atitudes expressas neste discurso
podem ser atribuídas a enunciadores de que se distancia – como os
pontos de vista manifestados na narrativa podem ser sujeitos de
consciência estranhos ao narrador” (Ducrot, 1987: 196).
Para elucidar suas conceitualizações, Ducrot analisa um dos fenômenos de discurso
mais interessantes: a ironia. Inspirado em Sperber e Wilson
7
, Ducrot postula que “um
discurso irônico consiste sempre em fazer dizer, por alguém diferente do locutor, coisas
evidentemente absurdas, a fazer, pois, ouvir uma voz que não é a do locutor e que sustenta
o insustentável” (Ducrot, 1987: 197). É incorporar uma voz julgada como contraditória no
interior de seu discurso e, assim, denunciar o absurdo daquela voz. Ou melhor, nas palavras
de Ducrot segundo sua noção de polifonia:
“Falar de modo irônico é, para um locutor L, apresentar a enunciação
como expressando a posição de um enunciador. Posição de que se sabe
por outro lado que o locutor L não assume a responsabilidade, e, mais
que isso, que ele a considera absurda. Mesmo sendo dado como o
responsável pela enunciação, L não é assimilado a E, origem do ponto de
5
GENETTE, G. Figures III. Paris : Seuil, 1972. apud DUCROT, 1987 : 195-196.
6
Idem, ibidem.
7
SPERBER, D. & WILSON, D. Les ironies comme mentions. In : Poéthique. 1978, no. 36, p. 399-412. apud
DUCROT, 1987: 197.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
12
vista expresso na enunciação” (1987: 198).
Na ironia, o absurdo não é relatado, é expresso diretamente na enunciação. O
locutor, mesmo que indicado no enunciado como responsável, responsabiliza-se pelas
palavras, sendo os pontos de vista manifestados atribuídos a outro: um enunciador E. Como
no exemplo:
“Anunciei-lhes, ontem, que Pedro viria me ver hoje, e vocês se recusaram
a acreditar. Posso hoje, mostrando-lhes Pedro efetivamente presente, lhes
dizer de modo irônico: ‘vocês vêem, Pedro não veio me ver’. Esta
enunciação irônica de que assumo a responsabilidade enquanto locutor
a mim que o me designa), apresento-a como a expressão de um ponto
de vista absurdo, absurdidade de que não sou o enunciador podendo até
mesmo, neste caso, serem vocês esta assimilação do enunciador ao
alocutário que torna esta ironia agressiva): faço-os sustentar, na
presença de Pedro, que Pedro não está presente” (1987: 198-199).
Em outro exemplo, Ducrot analisa a auto-ironia: “Eu lhes havia dito que choveria
hoje, e faz um tempo ótimo, o que me leva a zombar de minha competência meteorológica:
mostrando-lhes o céu azul, observo ‘Vocês vêem bem, está chovendo’” (Ducrot, 1987:
199). Ora, o enunciador ridículo, aqui, pode ser assimilado ao próprio locutor. Para
Ducrot, este exemplo não contradiz sua descrição de ironia se considerarmos a distinção,
feita por ele, de locutor L e locutor l. O enunciador do qual o locutor L, responsável pela
enunciação, tenta ridicularizar, assimila-se ao locutor l, ser do mundo que tentou prever o
tempo sem sucesso.
Apesar de Ducrot trabalhar a noção de polifonia no nível do enunciado, ou seja,
tomando o enunciado como unidade de construção do discurso e tentando captar o
fenômeno polifônico nessa instância de comunicação, é possível verificar sua ocorrência
em outros níveis. Bakhtin já havia trabalhado esta noção no âmbito da estrutura narrativa
romanesca. Outras disciplinas, como a análise da conversação, análise do discurso,
pragmáticas, etc., têm estudado as relações dialógicas e/ou polifônicas na interação verbal
entre sujeitos, nas relações de persuasão e interpretação internas ao texto e nos diálogos
entre os “muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define”
(Barros, 1994: 4).
Devido, em parte, à grande variedade de linhas de pesquisa sob o pensamento
POLIFONIA
13
bakhtiniano, é comum a utilização quase sinonímica dos conceitos de dialogismo e
polifonia. Para efeitos deste trabalho, concordaremos com Barros (1994: 5-6) em considerar
dialogismo como princípio constitutivo da linguagem e de todo discurso. o termo
polifonia será usado para caracterizar aquele texto que deixa entrever as muitas “vozes” que
o constitui, por oposição ao texto monofônico. Segundo Barros: “os textos são dialógicos
porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de
polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia,
quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir” (ibidem: 6).
Os textos polifônicos estão a serviço do “discurso poético”, “que instala
‘internamente’, graças a uma série de mecanismos, o diálogo intertextual, a complexidade e
as contradições dos conflitos sociais” (Barros, 1994: 6); a monofonia favorece o
“discurso autoritário”, aquele “em que se perde a ambigüidade das múltiplas posições, em
que o discurso se cristaliza e se faz discurso da verdade única, absoluta, incontestável”
(idem, ibidem).
2. MELODIA
Ao considerarmos a canção como um texto híbrido, em que a “letra”, a música e o
“gesto” (dança e cena) constituem seu discurso, torna-se necessário a incorporação destes
elementos extraverbais na análise de sua enunciação. Neste trabalho, estaremos
considerando o fonograma
8
como objeto de estudo, por isso, nosso texto configura-se
verbalmente e musicalmente.
Ao incluir a música na verificação do processo enunciativo da canção, deparamo-
nos com alguns problemas.
Primeiro: o que nos é apresentado verbalmente é, na grande maioria dos casos,
8
O termo “fonograma” será empregado aqui para designar o registro sonoro de uma canção, ou seja, uma
“faixa” de um disco.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
14
entoado. Ou seja, a porção verbal da canção comporta uma dupla orientação: lingüística e
musical. Sobre o processo entoativo da canção, Luiz Tatit tem desenvolvido importante
trabalho que gostaríamos de comentar a seguir.
Interrogando-se sobre a possibilidade de toda e qualquer canção popular ter a sua
origem na fala, Tatit postula: “cantar é uma gestualidade oral, ao mesmo tempo contínua,
articulada, tensa e natural, que exige um permanente equilíbrio entre os elementos
melódicos, lingüísticos, os parâmetros musicais e a entoação coloquial” (1996: 9). É no
espaço entre a fala e o canto (musical), ou melhor, instaurando a voz que fala na voz que
canta, e vice-versa, que o cancionista realiza eficazmente suas intenções expressivas e/ou
comunicativas.
Para Tatit, a “melodia” da fala tem propriedade utilitária, portanto é efêmera: “sua
vida sonora é muito breve. Sua função é dar formas instantâneas a conteúdos abstratos e
estes sim devem ser apreendidos. O invólucro fônico é descartável. Por isso, a melodia da
fala não se estabiliza, não se repete e não adquire autonomia” (1996: 15). no canto,
passa-se da “forma fonológica” à “substância fonética”,
“as inflexões caóticas das entoações, dependentes da sintaxe do texto,
ganham periodicidade, sentido próprio e se perpetuam em movimento
cíclico como um ritual. É a estabilização da freqüência e da duração por
leis musicais que passam a interagir com as leis lingüísticas. Aquelas
fixam e ordenam todo o perfil melódico e ainda estabelecem uma
regularidade para o texto, metrificando seus acentos e aliterando sua
sonoridade” (Tatit, 1996: 15).
A fala é o gesto oral corriqueiro que “prenuncia o corpo vivo, o corpo que respira, o
corpo que está ali, na hora do canto” (Tatit, 1996: 16); o canto inscreve conteúdos afetivos
ou estímulos somáticos, “é quando o cancionista ultrapassa a realidade opressora do dia-a-
dia, proporcionando viagens intermitentes aos seus ouvintes” (idem, ibidem). É neste jogo,
entre a voz que canta e a voz que fala, o lugar onde “brotam o efeito de encanto e o sentido
de eficácia da canção popular” (idem, ibidem).
Segundo Tatit, os efeitos de naturalidade, espontaneidade e instantaneidade,
POLIFONIA
15
preciosos ao cancionista por provocar o sentido de inspiração, são atingidos através do
processo de figurativização
9
. Para o autor,
“a naturalidade aloja-se na porção entoativa da melodia, naquela que se
adere com perfeição aos pontos de acentuação do texto”; “pela
figurativização captamos a voz que fala no interior da voz que canta. Pela
figurativização, ainda, o cancionista projeta-se na obra, vinculando o
conteúdo do texto ao momento entoativo de sua execução” (Tatit, 1996:
20-21).
Tatit aponta dois “sintomas” que sugerem o processo de figurativização: os dêiticos
no texto e os tonemas na melodia. Estes são inflexões finais das frases entoativas. Tatit
relaciona a curva da melodia com as oscilações tensivas da voz, que tem três possibilidades
físicas de realização: descendente, ascendente e suspensiva. A voz que inflecte para o grave
tende ao repouso fisiológico, associando-se à asseveração final do conteúdo relatado; a voz
que tende às freqüências mais altas ou que sustenta uma nota, mantendo, assim, uma tensão
do esforço fisiológico, sugere continuidade, prosseguimento. Os dêiticos são elementos
lingüísticos que afirmam o estado enunciativo do “eu” da canção, “são imperativos,
vocativos, demonstrativos, advérbios, etc., que, ao serem pronunciados, entram em fase
com a raiz entoativa da melodia, presentificando o tempo e o espaço da voz que canta”
(Tatit, 1996: 21).
Além do processo de figurativização, descrito por Tatit como a instauração da voz
que fala na voz que canta, permitindo assim o sentido de eficácia, do aqui-e-agora, da
canção popular, o autor verifica um outro processo ligado a uma tensividade obtida na
gestualidade oral do cancionista ao valorizar ora a continuidade ora a segmentação da
melodia.
Segundo o autor, as vogais e as consoantes são os ingredientes mínimos da canção
que exercem um papel fundamental na inteligibilidade do texto e na criação de figuras
9
Tatit nos adverte a não confundir os conceitos que serão abordados aqui (figurativização, tematização e
passionalização) com seus homônimos encontrados na teoria semiótica de análise discursiva de textos. Como
ele explica: “os conceitos lançados aqui foram inspirados naqueles, com os quais ainda mantêm alguns pontos
em comum, entretanto, por força do componente melódico da canção e da própria evolução teórica do
pensamento em diversos trabalhos, suas acepções sofreram muitas mudanças, a ponto de adquirir uma
autonomia de uso específico para o universo da canção popular” (Tatit, 1996: 26).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
16
enunciativas. Ao investir na continuidade melódica, e conseqüentemente no prolongamento
das vogais, o compositor modaliza o percurso da canção com o /ser/ e com os estados
passionais; ao investir nas consoantes, ou seja, na segmentação da melodia, “o autor age
sob a influência do /fazer/, convertendo suas tensões internas em impulsos somáticos
fundados na subdivisão dos valores rítmicos, na marcação dos acentos e na recorrência”
(Tatit, 1996: 22). A estas duas tendências ele chama de passionalização e tematização,
respectivamente.
A tematização melódica propicia as tematizações lingüísticas: a construção de
personagens, valores-objeto ou valores universais. “A tendência à tematização, tanto
melódica como lingüística, satisfaz as necessidades gerais de materialização (lingüístico-
melódico) de uma idéia. Cria-se, então, uma relação motivada entre tal idéia e o tema
melódico erigido pela reiteração” (Tatit, 1996: 23). a passionalização desvia a tensão
para o nível psíquico:
“A ampliação da freqüência e da duração valoriza a sonoridade das
vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua. A tensão de emissão
mais aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma inação.
Sugere, antes, uma vivência introspectiva de seu estado. Daqui nasce a
paixão que, em geral, já vem relatada na narrativa do texto” (Tatit, 1996:
23).
Em resumo, portanto, a canção popular, em seu nível entoativo, articula-se entre
dois eixos: o espaço entre o canto e a fala, aproximando-se desta através do processo de
figurativização, e no revezamento entre as dominâncias da passionalização e da
tematização. Procedimentos que estão a serviço de um projeto narrativo, que organiza
globalmente o sentido de seu texto.
Ora, como este malabarismo de compatibilizações poderá colaborar nas relações
dialógicas em uma canção? Haverá a possibilidade de um jogo polifônico entre as “vozes”
(melodia e letra) que constituem o gesto oral? Será possível diferenciarmos um gesto oral
monofônico de um polifônico?
POLIFONIA
17
Ao analisar a canção “Sampa”
10
de Caetano Veloso, Tatit (1996, 1997) verifica a
presença de duas vozes discursivas em sua ação narrativa. Uma primeira voz pertencente ao
sujeito que chega à cidade de São Paulo e depara-se com uma realidade estranha, e uma
segunda voz de um sujeito onisciente de todo o processo narrado. Para Tatit, “a primeira
voz pertence a um actante em fase passional, com seu vínculo objetal descontinuizado em
razão de uma carência modal: o /saber/ e, por extensão, o /crer/. Falta ao sujeito, que
figurativamente chega a São Paulo, elementos para que possa decifrar os valores positivos
da cidade” (1997: 84). a segunda voz “de posse de um /saber/ pleno, pois que
retrospectivo, a respeito dos fatos narrados, (…) tem condições de reconhecer as pistas que
nortearam a evolução dos acontecimentos, mesmo quando esses são de natureza puramente
subjetiva” (Tatit, 1996: 285).
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo, afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Pois és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Panaméricas de Áfricas utópicas
10
VELOSO, CAETANO. Muito (dentro da estrela azulada). BRPGD7800005. Polygram, 1978. CD.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
18
Túmulo do samba, mas possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa
Por exemplo, no enunciado “é que quando eu cheguei por aqui / eu nada entendi”
ouvimos o enunciador que estranha a cidade, mas também uma voz que diz “agora
entendo” ou, segundo Tatit, “há algo a ser entendido” (1997: 84). Ou no verso “da dura
poesia concreta de tuas esquinas” onde, conforme Tatit, o locutor exibe a “aspereza” e a
“aridez” de seu contato com a cidade, mas nos fornece um dado (“poesia”) de quem já
passou pelo processo de adaptação e é capaz de captar o sensível (ibidem).
Ao analisar os aspectos melódicos em confronto com os lingüísticos, Tatit (1996:
278-298; 1997: 83-86) mostra como a canção parte de uma estrofe predominantemente
passional, favorecendo o estado disjuntivo do enunciador em conflito com a realidade
nova, passa pela segunda estrofe onde há uma maior presença do enunciador onisciente que
se manifesta através de processos de figurativização e chega na terceira estrofe já sob o
domínio do /fazer/, através de tematizações melódicas e lingüísticas, acabando por fundir
figurativamente, ao final da canção, os enunciadores.
Isto foi possível porque a melodia, apesar de predominantemente sob o influxo do
/ser/, possuía certas características, como a recorrência de certos motivos, certos contornos
melódicos e inflexões finais, que possibilitaram um processo de figurativização e de
tematização cada vez maior, favorecendo o enunciador onisciente.
É possível perceber o processo mencionado, em síntese, através da progressiva
transformação do quinto fragmento melódico. Este se caracteriza como a repetição renitente
da nota numa região aguda. Apesar de manter esta mesma característica durante as três
estrofes, este trecho vai recebendo investidas rítmicas e de articulação, pela transformação
da letra, que vão transformando seu sentido.
Em sua primeira versão,
POLIFONIA
19
a sustentação de uma freqüência aguda mais o prolongamento da sílaba Lee, nos dois
primeiros compassos, enfatizam o caráter passional do sentimento de falta vivido pelo
primeiro enunciador (“ainda não havia para mim Rita Lee”).
Nos últimos dois compassos deste trecho, a freqüência rítmica das notas se distende
aumentando consideravelmente ainda mais o esforço de emissão da nota e, portanto,
produzindo alta tensividade afinada com o estado psíquico do enunciador em estado
disjuntivo. Apesar de ser perceptível a presença do enunciador onisciente – através da idéia
subjacente na letra (“Rita Lee existe e traduz São Paulo”) este trecho caracteriza-se pelo
predomínio da passionalização, verificável em toda a primeira estrofe.
Na segunda versão do quinto fragmento
11
,
o locutor mantém a tensividade passional valendo-se da sustentação tensiva da nota e dos
prolongamentos das sílabas coMEço e coNHEço para descrever o ponto-de-vista do sujeito
em estado disjuntivo (“e foste um difícil começo / afasto o que não conheço”). Porém,
verificamos também a subversão da melodia pela letra, o locutor adiciona sílabas de uma
maneira pouco coerente com o ritmo geral da melodia, ou seja, detectamos a fala por trás
do canto denunciando a voz do sujeito do “aqui e agora”.
Este trecho sintetiza a segunda estrofe que é formada basicamente de duas
situações: o primeiro enunciador ao estranhar a cidade passa a rejeitá-la (“e foste um difícil
começo / afasto o que não conheço”) e o enunciador onisciente analisa o “despertar”
daquele ao passar a reconhecer na cidade a “realidade” (“e quem vem de outro sonho feliz
de cidade / aprende depressa a chamar-te de realidade”).
11
Tentamos, nestas transcrições, retratar o mais fielmente possível a divisão rítmica executada por Caetano
Veloso. Porém, algumas nuances se mostraram impossíveis de serem transcritas, como é o caso de “afasto o
que não conheço” onde o cantor antecipa levemente as notas, aproximando-se da fala.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
20
Conforme Tatit (1996, 278-298), a terceira estrofe assume o tempo presente e, de
certa forma, refaz o percurso do enunciador em estado disjuntivo a partir do momento em
que este “entende” a cidade; reconhece seus valores disfóricos (“do povo oprimido nas
ruas, nas vilas, favelas / da força da grana que ergue e destrói coisas belas / da feia fumaça
que sobe apagando as estrelas”), descobre seus valores positivos (“eu vejo surgir teus
poetas de campos e espaços / tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva / panaméricas
de áfricas utópicas túmulo do samba, mas possível novo quilombo de zumbi”) e sugere a
possibilidade atual de integração entre os “baianos”, ao qual o compositor se inclui, e a
cidade de São Paulo (“e os Novos Baianos passeiam na tua garoa / e novos baianos te
podem curtir numa boa”).
Na terceira versão do quinto fragmento,
temos o preenchimento quase que completo dos quatro compassos com semicolcheias de
uma maneira extremamente regular, o que poderia acarretar numa super valorização da
tensão emotiva [correndo o risco de se tornar caricatural, segundo Tatit (1996: 283)], mas,
através da valorização rítmica dos acentos das palavras sua utilização quase percussiva
e o caráter sincopado de execução do trecho, o que ocorre é o momento ápice dos valores
eufóricos enumerados tematicamente pelo locutor.
O interessante é notar que, neste caso, ao investir ora na passionalização ora na
tematização ora na figurativização, o locutor vai evidenciando mais ou menos cada
enunciador da trama polifônica estabelecida na letra.
3. MELODIA E ACOMPANHAMENTO
Outra possível questão a ser levantada sobre o processo enunciativo da canção é a
respeito das relações entre a melodia entoada e os elementos propriamente musicais que
compõem o acompanhamento de uma canção. Às vezes chamado corriqueiramente de
POLIFONIA
21
“arranjo”, as melodias secundárias, contracantos, riffs, grooves, levadas, acordes, etc.,
fazem parte da enunciação da canção, construindo seu sentido.
A definição de melodia enquanto uma “sucessão de sons ‘afinados’ e arranjados
num tempo musical de acordo com convenções culturais
12
(The New Grove, vol 16: 363-
373) é demasiada ampla e necessita de contextualização.
No caso da música popular, algumas características parecem definir, de maneira
consensual no contexto ocidental, a melodia como uma seqüência monódica de notas
reconhecíveis, apropriáveis e reproduzíveis vocalmente em termos de altura, duração e
articulação das notas, além de não ultrapassar a tessitura normal da voz e organizar-se em
frases que ocupam durações semelhantes aos tempos normais ou estendidos da respiração
humana (Tagg, 2000: 2). Segundo explica Tagg:
“Como a maioria das pessoas não toca um instrumento musical, a forma
mais comum de reproduzir melodias é cantando. Talvez por isso, as
melodias não são apenas pequenos motivos reconhecíveis, como riffs
(ostinatos) ou preenchimentos melódicos, mas o mais consistentemente
identificável e cantável ‘fio’ de notas: notas numa tonalidade cantável,
com intervalos cantáveis e numa tessitura cantável. A melodia tende,
também, a ser cantável em termos de tamanho de frase (respiração) e
freqüência tmica de notas (nem muitas notas rápidas, nem uma ou duas
notas muito longas)
13
” (1999: 38).
Além disso, a melodia é comumente percebida como uma estrutura integral que se
sobressai de um plano ou fundo musical. Ingmar Bengsston citado por Tagg (1999: 38)
descreve a melodia como “uma sucessão de notas caracterizada pela sua aparência, total ou
parcial, de uma Gestalt musical
14
”.
12
“(…) pitched sounds arranged in musical time in accordance with given cultural conventions and
constraints (…)” (The New Grove, vol 16: 363-373)
13
“Since many people play no instrument, the most common way of reproducing melodies is to sing them.
This is perhaps why melodies are not just recognisable little motivic figures like riffs (ostinati) or fillers, but
the most consistently identifiable and singable strings of tone: tones at a singable pitch containing singable
intervals within a singable range. Melody tends also to be singable in terms of phrase length (breathing) and
surface rate tempo (not too many fast notes, not just one or two very long notes)” (Tagg, 1999: 38).
14
“A succession of tones characterised by their total or partial appearance as a musical Gestalt” (Bengsston,
I. apud Tagg, 1999: 38).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
22
Ao considerarmos a melodia como uma sucessão monódica de notas organizadas
como uma estrutura integral que se “destaca” de um “fundo musical” acompanhante e que
sejam reconhecíveis, apropriáveis e reprodutíveis vocalmente, é de se esperar que, no caso
da canção, a melodia seja aquela que incorpora a letra e pertence ao fazer do cantor.
De maneira geral, podemos considerar o acompanhamento como formado pelas
“partes subordinadas de qualquer textura musical feita de elementos de importâncias
variadas
15
(The New Grove, vol 1: 55-56) ou “aquela parte de um continuum musical
geralmente considerado como fornecendo suporte ou fundo musical para um elemento mais
proeminente na mesma música
16
” (Tagg, 2000: 17).
O acompanhamento existe em uma estrutura musical percebida como formada
por diferentes planos com importâncias desiguais. Um coro cantando homofonicamente a
cappela não tem acompanhamento, mas ao introduzir um simples estalar de dedos em
sincronia com seu tempo musical, temos configurado um acompanhamento.
Para Tagg, desde pelo menos o século XVII, o paradigma composicional mais
comum na música ocidental tem sido o dualismo melodia-acompanhamento
17
(1999: 38).
Este modelo parece ter se consolidado junto com o processo de urbanização da Europa, que
anuncia o fim do sistema feudal e cria a necessidade de novas formas de cultura e lazer.
Segundo Tinhorão:
“Uma das exigências da vida social nos grandes aglomerados humanos
das cidades modernas era a da criação de formas de lazer não apenas
coletivas (…), mas que se dirigissem agora a grupos distintos de público
(representações ao ar livre, touradas, etc.), ou finalmente, à diversão em
pequena sociedade (danças de salão, teatro em casa) e ainda ao prazer
pessoal (como logo seria o caso da canção para interpretação e
acompanhamento individual)” (Tinhorão, 1997:34).
15
“(…) the subordinate parts of any musical texture made up of strands of differing importance” (The New
Grove, vol 1: 55-56).
16
“(…) that part of a musical continuum generally regarded as providing support for, or the background to, a
more prominent strand in the same music” (Tagg, 2000: 17).
17
Tagg (1999: 38) prevê um possível esgotamento deste modelo nos tempos atuais, através da música
eletrônica para discoteca e festas rave, especialmente através da música techno.
POLIFONIA
23
Conforme Tagg (1999), a tendência em valorizar o princípio dualista de melodia-
acompanhamento durante o início da Era Moderna encontra certa correspondência na arte
pictórica. A partir do Renascimento, os pintores passam a valorizar a noção de figura/fundo
através de técnicas de perspectiva centralizada em substituição aos trabalhos
“policêntricos” de artistas medievais como Bosch ou Breughel (Tagg, 1999: 39). Ambos os
princípios composicionais (melodia-acompanhamento na música e figura-fundo na pintura)
parecem relacionar-se em paralelo à ascensão dos ideais individualistas da nova classe
burguesa. Para Tagg, “visto dessa forma, como uma homologia estrutural em relação a uma
(então) nova concepção de personalidade humana, o dualismo melodia-acompanhamento
(…) pode carregar sentido em si mesmo
18
” (1999: 39).
A subordinação do acompanhamento em relação à melodia pode ser comparada
com as contraposições entre a noções generalizadas de “fundo” ou “ambiente”
acústico/musical e a “figura” da melodia, ou também entre “generalidade” e
“particularidade” (Tagg, 1999: 39; 2000: 17-18).
De fato, estes princípios parecem estar refletidos na utilização corriqueira de termos
como “backing vocals” (vocais de apoio) em relação a “lead vocal” (voz principal ou
primeira voz) (Tagg, 2000: 17) ou “cozinha”, referindo-se à banda de apoio rítmico-
harmônico (bateria/percussão, baixo e piano/guitarra), em distinção aos instrumentos ou
grupos de instrumentos solistas de um conjunto musical.
Também podemos verificar este dualismo nas técnicas de mixagem
19
onde a voz
principal ou os instrumentos responsáveis pela melodia principal são “misturados” com um
volume um pouco mais alto em relação aos acompanhantes. A localização panorâmica dos
instrumentos na mixagem também obedece a uma hierarquização: as vozes e instrumentos
principais costumam se localizar na região central e um pouco mais “na frente”, enquanto
18
“Seen in this light as a structural homology for a (then) new concept of human personality, the melody-
accompaniment dualism (…) can be said to carry meaning itself” (Tagg, 1999: 39).
19
O termo mixagem refere-se a uma etapa do processo de produção fonográfica. É quando se acertam os
níveis de volume, a panorâmica e a equalização de cada pista de uma gravação, assim como a aplicação de
efeitos especiais aos instrumentos.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
24
os acompanhantes são distribuídos no semicírculo acústico atrás e aos lados do ponto focal
da melodia principal. Lembremos com Tagg a forma mais comum de disposição espacial
em situações performáticas onde o intérprete/solista/condutor localiza-se à frente e no
centro do palco enquanto os músicos acompanhantes são dispostos mais atrás e/ou nas
laterais do palco (1999: 38-39; 2000: 18).
Área consagrada de “atração” de foco numa situação performática (Tagg,
1999: 39).
A relação de subordinação entre melodia e acompanhamento de maneira alguma é
estática no decorrer de uma música. Um violão desempenhando um papel de suporte
harmônico pode, em algum momento, tornar-se foco principal ao apresentar um solo ou um
improviso, assim como a voz principal pode passar a desempenhar uma função de
contracanto para o solo de algum instrumento.
Normalmente esses deslocamentos são acompanhados por mudanças na percepção
de onde está o “foco” da música. Por exemplo: durante uma mixagem, quando uma guitarra
inicia um solo importante, é normal elevar-se um pouco o volume do instrumento (ou na
“mesa de som” ou no próprio instrumento) ou aplicar um efeito especial durante o solo
(delay ou distorção, por exemplo); numa apresentação de uma big band, é comum o
instrumentista se levantar ao improvisar, tomando, assim, para si o foco das atenções do
público; ou, ainda, nas apresentações veiculadas videograficamente pela televisão, quando
os planos fechados, zooms e outros recursos de edição tentam valorizar as performances
individuais ao aproximar ou recortar a imagem daquele que detêm o foco de atenção (Tagg,
2000: 18-19).
Apesar de haver uma relação de subordinação entre melodia e acompanhamento,
POLIFONIA
25
gostaríamos de ressaltar que esta não é hierarquicamente definida, como do tipo mais
importante X menos importante, mas de partes (particularidade/generalidade, figura/fundo,
sujeito/contexto, etc.) que constituem a totalidade do texto fonográfico.
Existem muitos casos em que o acompanhamento acaba ganhando uma função tão
importante, se não mais importante, quanto a melodia principal. Veja, por exemplo, como
um trecho do arranjo de “Aquarela do Brasil” acabou por tornar-se quase símbolo de
brasilidade, talvez mais lembrada que a própria melodia principal desta canção de Ary
Barroso. Ou o caso de “Samba de uma nota só” de Tom Jobim em que, sendo a melodia da
parte A feita da variação rítmica de uma nota só, a progressão harmônica é que fornece o
sentido de contorno e direção tensiva.
É ainda possível, e isto se torna também evidente no caso da canção popular,
estabelecer outro nível de subordinação no interior do próprio acompanhamento.
Para Tagg, além da relação primária entre melodia e acompanhamento, uma
relação subsidiária entre baixo/bateria e outras partes do acompanhamento (1982: 12). Isto
porque, além das principais funções exercidas pelo acompanhamento, como proporcionar
uma “moldura” cinética e periódica, servir de referência tonal, criar o sentido de direção e
expectativa harmônica e construir um fundo de timbres e texturas à melodia (Tagg, 2000:
19), o acompanhamento pode contribuir com melodias secundárias, contracantos, motivos,
etc., que podem chegar a concorrer significantemente com a própria melodia principal.
Veja, por exemplo, Jimmy Hendrix. É praticamente indissociável sua voz de sua
guitarra. Os riffs, preenchimentos e melodias secundárias, além de seus solos, executados
através de sua guitarra são, muitas vezes, mais memorizáveis e reprodutíveis, e
provavelmente mais significativas, do que a melodia principal cantada. Sem dúvida uma
relação de subordinação entre, neste caso, a dupla baixo/bateria (função de suporte ou
“base”) e a guitarra (função variável; suporta e dialoga com a melodia)
20
. Outro exemplo de
distinção entre a base e melodias “secundárias” no interior do acompanhamento pode ser
20
A relação de complementaridade entre voz e guitarra pode ser verificada, também, na relação de volumes
na mixagem. A voz de Hendrix parece, muitas vezes, um pouco mais baixa e mais atrás da guitarra.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
26
verificado nos arranjos “clássicos” da bossa nova: bateria/baixo/violão (“base”), voz
(melodia principal) e “arranjo” de cordas/madeiras, por exemplo, criando melodias
introdutórias, contracantos ou texturas harmônicas. Os arranjos de Rogério Duprat para o
disco “Tropicália” também exemplificam o poder de interferência semântica que a música
pode, e neste caso quer, exercer sobre a canção através de intervenções instrumentais, além
da função básica de criar um suporte para a melodia principal.
A partir das noções apresentadas, podemos criar um modelo de estrutura dos planos
de elementos significantes apresentados sincronicamente num fonograma:
Modelo
21
de relações pragmáticas entre os elementos constituintes da
estrutura enunciativa de um fonograma.
Sendo a melodia principal de uma canção aquela que incorpora a letra e diz respeito
ao fazer do cantor, esta será considerada um primeiro plano: a melodia principal ou
entoada. O acompanhamento será considerado como plano subordinado à melodia entoada
e conterá dois outros planos: a base, que corresponde aos elementos que desempenham
funções de suporte rítmico-harmônico, e o plano das intervenções melódicas, que fornecem
melodias secundárias que se “destacam” melodicamente em relação à base.
Lembramos que este modelo não é estático (durante uma mesma canção os
elementos podem variar suas funções) e nem absoluto (a análise do objeto é que dirá quais
funções estão sendo estabelecidas e quem exerce qual). Apesar de o modelo melodia-
acompanhamento ser o mais comum na canção popular, ele não é obrigatório.
21
Este modelo foi inspirado no modelo de análise inter-musemática em “amontoados de musemas” (analysis
of museme stacks) de Tagg (1982: 13). No nosso caso adaptamos o modelo para a canção e estamos usando-o
para definir relações pragmáticas entre os elementos que constituem um evento musical, não necessariamente
de relações entre musemas.
POLIFONIA
27
4. ACOMPANHAMENTO E VOZES
A partir do modelo apresentado de estruturação dos planos de elementos que
constituem significantemente a enunciação na canção nos perguntamos se não haverá a
possibilidade de um jogo dialógico e, conseqüentemente, polifônico ou monofônico, entre
esses elementos. Partamos da distinção entre locutores e enunciadores promovida por
Ducrot.
Para Ducrot (1987), o locutor é aquele que, no sentido do enunciado, é apresentado
como seu responsável, como responsável pelas “palavras” expressas no enunciado. os
enunciadores são os responsáveis pelos “pontos-de-vista” expressos no enunciado.
Em outras palavras, o locutor é aquele “ser de discurso” que existe lingüisticamente
e os enunciadores são manifestações estritamente discursivas.
Lembremos que Ducrot trabalha a noção de polifonia no âmbito do enunciado
enquanto unidade discursiva. A noção de enunciado utilizada pelo lingüista tem
implicações problemáticas na música porque: (1) o sentido na música pode construir-se
pela apresentação sincrônica de planos significantes diferentes (por exemplo, no modelo
estrutural apresentado acima) e (2) a noção de “unidade” significante em música necessita
de definições mais específicas; a noção de “autonomia relativa” apontada por Ducrot parece
não atender satisfatoriamente nosso caso.
Em relação a (1), o que ocorre é que, além das relações dialógicas internas à letra da
canção – âmbito em que se daria de maneira estrita a polifonia ducrotiana – e à entoação da
melodia principal (como no exemplo de “Sampa” anteriormente apresentado), as relações
com o acompanhamento também exercem uma importante influência na construção do
sentido geral da canção. Daí se considerar as relações entre esses elementos.
Uma possível abordagem é considerar os “enunciados” musicais como pontos-de-
vista de enunciadores em diálogo numa trama que tece o sentido geral da canção. Se o
locutor é um ser discursivo que se manifesta (ou que existe) lingüisticamente então o
encontraremos na melodia principal, aquela que assume a letra e pertence ao fazer do
cantor. os enunciadores (seres discursivos por excelência) podem manifestar seus
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
28
pontos-de-vista na melodia principal, quando o locutor os coloca em cena, ou musicalmente
em todos os níveis da estrutura enunciativa da canção.
Sobre a noção de “unidade” (2) em música, gostaríamos de fazer alguns
comentários. Segundo Middleton, é comum em análises musicais a segmentação do
discurso musical de forma intuitivamente relacionada à linguagem verbal: por exemplo,
“frases” musicais em relação a frases verbais, células ou motivos em relação a palavras ou
morfemas e notas em relação a fonemas (1990: 178). Mas, de acordo com Tagg (1999), se
levarmos em conta os ouvintes, quer dizer, o lado da recepção do processo comunicativo
musical, o discurso musical se muito mais através das noções gerais de “sons” ou
“sonoridades”, “levadas” ou “ritmos”, etc. Isso quer dizer que a segmentação que ocorre no
lado do “produtor” não necessariamente corresponde àquilo que o “receptor” entende por
unidade.
Adotaremos o conceito de “musema”, segundo Tagg (1982, 1999, 2004), como
unidade do discurso musical. Tagg, citado por Middleton (1990: 189), postula que o
musema é “a unidade básica de expressão musical que, no âmbito de determinado sistema
musical, não é divisível sem destruição de seu sentido
22
”. Segundo Middleton, o musema
corresponderia analogamente ao morfema, porém, enquanto o morfema é formado por
unidades fonéticas (os fonemas), o musema é constituído não apenas de unidades
estruturais, mas também de parâmetros de expressão musical. Por exemplo, se duas notas
em determinada melodia correspondem a um musema, o apenas a alteração de uma
dessas notas afetará seu sentido, mas outros parâmetros como timbre, acentuação,
características eletro-acústicas, intensidade, etc., também alterarão, em maior ou menor
grau, o seu sentido.
Ao adotarmos a noção de musema como unidade do discurso musical, estamos
flexibilizando a noção de “enunciado” musical: não apenas estruturas musicais
22
“The basic unit of musical expression which in the framework of one given musical system is not further
divisible without destruction of meaning” (TAGG, P. Kojak 50 seconds of Television Music. Towards the
Analysis of Affekt in Popular Music. Gothenberg, 1979 apud MIDDLETON, 1990: 189.).
POLIFONIA
29
sintagmaticamente definidas, mas também parâmetros de expressão musical
paradigmaticamente reconhecíveis. Isso quer dizer que tanto uma frase musical situada no
acompanhamento pode vir a ser considerada como um enunciado que expressa o ponto-de-
vista de um enunciador, como um parâmetro musical específico em determinado elemento
do acompanhamento também pode ser considerado como portador de um ponto-de-vista
(por exemplo, a utilização de guitarras elétricas tinha conotações importantes no contexto
da música popular brasileira nos anos sessenta: “modernidade”, “alienação política”,
“provocação”, etc.).
Retomemos o exemplo de “Sampa”. Nesta canção, temos uma configuração
bastante estática e baseada fortemente na noção dualista de melodia-acompanhamento.
A melodia principal é assumida plenamente pelo fazer do cantor e mantém-se
destacada do acompanhamento durante toda a canção, exceto pela ligeira introdução
instrumental de quatro compassos. Sua intensidade na mixagem é consideravelmente maior
que o acompanhamento, o que valoriza bastante a “individualidade” do locutor/cantor. Da
mesma maneira, a não presença ou pouca presença de ambiência acústica (reverberação),
aumenta o caráter intimista da melodia principal. Estas características servem bem ao
projeto de figurativização mencionado anteriormente e valorizam extremamente o sujeito
desta canção no seu estado enunciativo.
O acompanhamento também se mantém uniforme durante toda a canção. Ele é
constituído de pandeiro, violão de sete cordas, violão de cordas de aço e violão de base.
Suas funções são estabelecidas desde o início e não sofrem nenhuma modificação. O
pandeiro e o violão de base fornecem a base rítmica e harmônica enquanto o violão de sete
cordas e o violão de cordas de aço desenham contracantos e preenchimentos melódicos;
aquele com desempenho na região grave e este na região aguda.
A instrumentação escolhida para o acompanhamento nos fornece um primeiro dado:
a semelhança com os chamados conjuntos regionais. O trio formado por pandeiro, violão
de sete cordas e bandolim sintetiza a base de todo regional que tradicionalmente é
constituído de dois violões – um fazendo a base harmônica e outro de sete cordas fazendo a
“baixaria” um cavaquinho (base harmônica), um pandeiro (base rítmica) e um ou mais
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
30
solistas (os mais comuns: bandolim, clarineta e flauta). No caso de “Sampa”, o bandolim é
substituído pelo violão de cordas de aço que, apesar de ser um instrumento diferente, tem
um timbre parecido (pelo fato de ter cordas de metal) e está sendo executado de maneira
muito próxima ao bandolim.
Os regionais foram um tipo de conjunto musical extremamente popular na música
popular brasileira até, pelo menos, a década de quarenta. Mais ou menos como a banda de
rock (duas guitarras um base e uma solo um baixo e uma bateria) foi no contexto do
gênero rock n’ roll, principalmente a partir do início dos anos sessenta. A relação entre os
regionais e certos gêneros musicais como o samba, o samba-canção e o choro, além de sua
associação com um tipo de música “antiga” ou “tradicional”, se faz importante no caso de
“Sampa”.
Mas não é apenas pela instrumentação que essa associação se estabelece. Toda a
execução volta-se aos gêneros tradicionais de samba. De fato esta canção é um samba lento
( = 56-58) acompanhado pela marcação contínua no pandeiro através da célula:
O violão de sete cordas desempenha sua função usual que é a de criar as “baixarias”
as marcações das notas fundamentais da harmonia com ornamentações e o violão de
cordas de aço funciona como seria um bandolim, criando principalmente ornamentações e
preenchimentos melódicos. A harmonia, solidamente tonal, possui arcaísmos como o uso
de acordes diminutos de passagem (G7G#°Am7), a valorização do VIm e a utilização
do substituto da dominante da dominante
23
(G#7G7C) que aumentam ainda mais o
caráter “antigo” ou “tradicional” da canção.
Feita esta análise rápida e superficial sobre o acompanhamento desta canção, pois
não caberia agora neste trabalho uma abordagem extensa sobre a relação desta canção com
o gênero musical a que está associada, concluímos que, além do suporte estritamente
23
Este com especial função referencial que será abordada posteriormente.
POLIFONIA
31
musical, o acompanhamento fornece um suporte explicitamente contextualizador de gênero
e das associações decorrentes com a tradição musical paulistana.
Em resumo, portanto, temos a melodia principal bastante destacada do
acompanhamento e com caráter acústico intimista (ambiente acústico realista, talvez), o que
acaba por valorizar tanto o processo de figurativização favorável ao enunciador/locutor
retrospectivo quanto a “individualidade” do sujeito no processo de passionalização vivido
em sua manifestação como enunciador em estado disjuntivo; ao valorizar o indivíduo,
valoriza-se os estados do /ser/.
o acompanhamento insere este indivíduo numa conjuntura musicalmente
“tradicional”, quero dizer, o locutor encontra-se em conjunção com um contexto de valores
da tradição musical paulistana. Este fato aparentemente contraditório, pois os valores
eufóricos apresentados na letra são aqueles relacionados ao que São Paulo teria de mais
moderno ou de vanguarda (Rita Lee, poesia concreta, Mutantes, Teatro Oficina e de
Arena), contribui para valorizar o locutor/enunciador retrospectivo, totalmente adaptado à
realidade paulistana. Realidade esta apresentada contraditoriamente (e que de certa maneira
faz jus ao “avesso do avesso”) por valores musicais tradicionalistas e por referências
modernistas através da letra.
A aproximação desta canção com a tradição musical paulistana também se dá,
polifonicamente, através de uma referência feita à canção “Ronda” de Paulo Vanzolini.
Porém, isto é assunto para o próximo capítulo.
AS VOZES DOS OUTROS
33
II. AS VOZES DOS OUTROS
Considerando o discurso polifônico como uma manifestação da linguagem
possibilitada pela sua natureza dialógica, em que diversas “vozes” ou “pontos-de-vista” são
expressos na busca do sentido, vamos especificar duas possibilidades de revelação dessas
“vozes”: a intertextualidade e a interdiscursividade.
Segundo Fávero e Koch (1985)
1
, o conceito de intertextualidade abrange as várias
formas pelas quais a produção e a recepção de um texto estão sujeitos ao conhecimento de
outros textos, isto é, “diz respeito aos fatores que tornam a utilização de um texto
dependente de um ou mais textos previamente existentes” (Fávero & Koch, 1985: 28) por
parte dos interlocutores de uma determinada situação comunicativa.
Sentindo a necessidade de ampliar este conceito, Koch (1986) sugere a divisão da
noção de intertextualidade em um sentido amplo e em um sentido restrito.
Para Koch, “em sentido amplo, é lícito afirmar que a intertextualidade se faz
presente em todo e qualquer texto” (1986: 40). A autora (Koch, 1998: 46) apóia-se em
Barthes, que diz:
“O texto redistribui a língua. Uma das vias dessa reconstrução é a de
permutar textos, fragmentos de textos, que existiram ou existem ao redor
do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto é um
intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob
1
Fávero e Koch (1985) baseiam-se nos critérios de textualidade padrões que tentam estabelecer fronteiras
entre textos e não-textos - apresentados por Beaugrande e Dressler (BEAUGRANDE, R. de & DRESSLER,
W.V. 1981. Einführung in die Textlinguistik. Tübingen, Max Niemeyer Verlag.). São dois critérios centrados
no texto a coesão e a coerência que se referem aos modos como “as palavras que ouvimos ou vemos,
estão ligados entre si dentro de uma seqüência” e aos modos como “os conceitos e as relações subjacentes ao
texto de superfície, se unem numa configuração de maneira reciprocamente acessível e relevante”,
respectivamente (Fávero & Koch, 1985: 18). E cinco critérios centrados no usuário: intencionalidade e
aceitabilidade, que trata-se da intenção do emissor em produzir e do receptor em aceitar uma manifestação
lingüística como um texto coesiva e coerente (Fávero & Koch, 1985: 26-27); informatividade, que “designa
em que medida os materiais lingüísticos apresentados no texto são esperados/não esperados,
conhecidos/desconhecidos da parte dos receptores” (Fávero & Koch, 1985: 27); situacionalidade, que é
“atribuída aos fatores que tornam um texto adequado a dada situação de ocorrência” (Fávero & Koch, 1985:
27); e intertextualidade, que “compreende as diversas maneiras pelas quais a produção e recepção de dado
texto depende do conhecimento de outros textos” (Fávero & Koch, 1985: 28).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
34
formas mais ou menos reconhecíveis
2
”.
Segundo Kristeva (1974), baseando-se na noção de dialogismo de Bakhtin, a
“palavra literária” encontra-se numa intersecção tridimensional, num “cruzamento de
superfícies textuais”, três dimensões que correspondem ao sujeito da escritura, ao
destinatário e aos textos exteriores. Enquanto que horizontalmente a palavra no texto
pertence simultaneamente ao sujeito da escritura e ao destinatário, verticalmente ela está
“direcionada para o corpus literário anterior ou sincrônico” (idem: 62-63). Portanto, para a
autora, “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto” (idem, ibidem).
Para Orlandi (1987), um texto relaciona-se com outros textos dos quais nasce (estes
funcionando como matéria-prima) e outros textos para os quais aponta (seu futuro
discursivo), o que caracteriza todo texto como necessariamente “incompleto”.
“Incompletude” atestada tanto pela correspondência de um texto com outros textos, quanto
pela sua relação com a experiência do leitor em relação à linguagem, seu conhecimento de
mundo, à sua ideologia, etc.
É no sentido de que todo e qualquer discurso faz parte de uma história de discursos
que Koch (1986: 40) cita Maingueneau: “um discurso não vem ao mundo numa inocente
solitude, mas constrói-se através de um já-dito em relação ao qual ele toma posição
3
”. Ou
quando a autora (idem, ibidem) menciona Pêcheux:
“Assim, tal discurso envia a tal outro, frente ao qual é uma resposta
direta ou indireta, ou do qual ele ‘orquestra’ os termos principais ou
cujos argumentos destrói. Assim é que o processo discursivo não tem, de
direito, um início: o discurso se estabelece sempre sobre um discurso
prévio
4
”.
Para Ducrot, apesar da necessidade de todo discurso “pôr em cena outro discurso”
2
BARTHES, R. Verbete “texte”. Encyclopaedia Universalis, 1974. apud KOCH, 1998 : 46.
3
MAINGUENEAU, D. Initation aux métodes de l’analyse du discourse. Paris: Hachette, 1976. apud KOCH,
1986 : 40.
4
PÊCHEUX, M. Analyse automatique du discours. Paris: Dunod, 1969. apud KOCH, 1986: 40.
AS VOZES DOS OUTROS
35
(1987: 159), é importante ressaltar que “mesmo quando retoma um discurso anterior, não
consiste em mero relato. Ele cria uma realidade original: pelo fato mesmo de dizer que
alguma coisa já foi dita, diz-se alguma coisa de novo” (idem, ibidem).
As noções apresentadas sobre intertextualidade (numa perspectiva ampla) decorrem
de tentativas de operacionalização do conceito de dialogismo. Segundo Fiorin, a partir dos
anos 60, “à rica e multifacetada concepção do dialogismo em Bakhtin se opôs o conceito
redutor, pobre e, ao mesmo tempo, vago e impreciso de intertextualidade” (2003, 29).
Vago, principalmente, pela não precisão das noções de texto e discurso. Como possível
forma de resolver a questão, Koch tenta definir de forma estrita o conceito de
intertextualidade.
1. INTERTEXTUALIDADE
Para Koch, a intertextualidade stricto sensu, ou em sentido restrito, se dá quando
a relação de um texto com outros textos previamente e efetivamente produzidos, ou seja,
“quando, em um texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido”
(1997: 108). A autora (Koch, 1998: 48) respalda-se em Jenny, quando este tenta delimitar o
âmbito de identificação da intertextualidade: “propomo-nos a falar de intertextualidade
desde que se possa encontrar num texto elementos anteriormente estruturados, para além do
lexema, naturalmente, mas seja qual for seu nível de estruturação
5
”.
Geralmente os textos-fonte são trechos de obras literárias bem conhecidas, textos de
ampla divulgação na mídia, trechos de músicas populares, bordões de programas de
televisão, textos bem conhecidos que fazem parte da memória coletiva de uma comunidade.
casos em que são usados ditos populares, frases feitas ou provérbios, onde sua fonte é
um enunciador genérico, representante da opinião e sabedoria popular (“vox populi”)
(Koch, 1997: 109).
5
JENNY, L. A estratégia da forma. In: Intertextualidade. Coimbra: Almedina, 1979. apud KOCH, 1998: 48.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
36
Mas casos em que a decodificação do intertexto não é imediata trechos de
textos literários ou jornalísticos, por exemplo fazendo com que a depreensão do texto-
fonte dependa da amplitude dos conhecimentos do leitor/ouvinte, o que, segundo Koch,
caso este não chegue a acionar o texto-fonte em sua memória, pode levar a um
empobrecimento ou até à impossibilidade de construção do sentido visado pelo locutor
(1997: 109-110). É o que leva Sant’Anna (2000) a dizer que os efeitos
6
obtidos pela
intertextualidade são relativos ao leitor:
“São recursos percebidos por um leitor mais informado. É preciso um
repertório ou memória cultural e literária para decodificar os textos
superpostos. E, à medida que esses efeitos são muito usados pelos autores
modernos, configura-se que a leitura de suas obras requer certa
especialização” (Sant’Anna, 2000: 26).
Como no exemplo encontrado em Sant’Anna (2000). O autor compara o poema “A
canção do exílio” de Gonçalves Dias com variações sobre ele feitas por poetas modernistas:
Texto original de Gonçalves Dias:
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá,
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como
“Um dia depois do outro” de Cassiano Ricardo:
Esta saudade que fere
mais do que as outras quiçá,
sem exílio nem palmeira
onde cante um sabiá…
“Canto de regresso à pátria” de Oswald de Andrade:
Minha terra tem palmares
onde gorjeia o mar
os passarinhos daqui
não cantam como os de lá.
Para Sant’Anna, o texto de Cassiano Ricardo promove um jogo de diferenciação em
6
Sant’Anna trabalha com os conceitos de paródia, paráfrase, estilização e apropriação como efeitos de
sentido definidos através do jogo intertextual.
AS VOZES DOS OUTROS
37
relação ao texto-fonte, porém sem trair seu significado original. Este texto ganha um
sentido especial se o texto original for ativado na memória do leitor (principalmente pela
negativa: “sem exílio nem palmeira/ onde cante um sabiá”), mas, caso isso não ocorra, não
há comprometimento com seu significado.
Já no caso do texto de Oswald de Andrade, a leitura se faz em duas vozes: “uma em
presença (texto moderno, parodístico) e outra em ausência (texto romântico, parodiado)”
(Sant’Anna, 2000: 26). O texto de Oswald promove uma inversão total no sentido do texto-
fonte, e, através da intertextualidade, “contrapõe a estética modernista à estética romântica,
contrasta a alienação social à denúncia histórica e transforma o discurso do branco na
afirmação do preto” (ibidem: 25). Segundo Sant’Anna (ibidem), o leitor sem a referência ao
texto de Gonçalves Dias provavelmente acabará por achar o texto de Oswald uma série de
absurdos, prática de puro nonsense.
Conforme Koch, a intertextualidade, numa perspectiva estrita, pode se apresentar
implicitamente ou explicitamente.
Quando citação expressa da fonte do intertexto ou no próprio texto, como nas
citações, referências; ou nos resumos, resenhas, traduções; ou em situações de interação
face-a-face como nas retomadas do texto do parceiro num diálogo; etc. – a intertextualidade
é explícita (Koch, 1991: 533).
A intertextualidade ocorre de forma implícita quando a inserção de um intertexto
ocorre sem citação expressa da fonte, competindo ao interlocutor recuperá-la valendo-se
de sua “memória enciclopédica” para construir o sentido do texto (Koch, 1997: 109).
Aqui, a ativação do texto-fonte na memória do leitor/ouvinte se faz relevante para a
construção do sentido do novo texto. Pode-se dizer que o produtor do texto espera que seu
interlocutor seja capaz de reconhecer o intertexto e que seja capaz de ativá-lo em sua
“memória enciclopédica”. Interessante se faz pensar o plágio como um caso extremo de
paráfrase onde o produtor do texto não espera (ou não deseja) que seu interlocutor seja
capaz de ativar em sua memória o intertexto e sua fonte, tentando, muitas vezes, camuflá-lo
de formas diversas (Koch, 1997: 108-109).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
38
Tratando da questão da paródia (sem se limitar à literatura, propondo uma
abordagem semiológica do assunto), Sant’Anna (2000) aponta que ela se define,
modernamente, através de um jogo intertextual. Para o autor, a paródia deve ser estudada
não ao lado da estilização
7
, mas também da paráfrase e da apropriação, sendo estes
quatro conceitos agrupados em dois conjuntos: conjunto das similaridades e conjunto das
diferenças.
No conjunto das similaridades, ou a intertextualidade das semelhanças, fazem parte
os textos que incorporam um intertexto com o intuito de seguir-lhe a orientação
argumentativa ou “como modo de transmitir valores ou manter a vigência ideológica de
uma linguagem” (Sant’Anna, 2000: 22). Neste grupo encontra-se a paráfrase enquanto
grau mínimo de alteração do texto original e a estilização como desvio tolerável ou como
“um jogo de diferenciação em relação ao texto original sem que, contudo, haja traição ao
seu significado primeiro” (idem, ibidem: 24).
No conjunto das diferenças, ou intertextualidade das diferenças, estão os textos que
incorporam intertextos para ridicularizar, refutar, colocar em questão o texto original, ou
seja, argumentar num sentido diferente ou “contra-ideológico”. Neste grupo, encontramos a
paródia como exemplo de inversão do significado original e a apropriação como caso
extremo de subversão do texto original, “uma paródia levada ao paroxismo ou exagero
máximo” (idem, ibidem: 46).
Em relação à apropriação, Sant’Anna refere-se ao tipo de técnica artística
inaugurada pelas artes plásticas onde objetos do cotidiano eram apropriados e expostos em
museus ou galerias como objetos de arte. Identifica-se com a colagem, o readymade, a pop
art e as artes conceituais de maneira geral. Segundo o autor:
7
Este termo refere-se ao usado por Tynianov (1919) e Bakhtin (1928). Estes autores foram os primeiros
teóricos a ampliar o conceito de paródia antes relacionado com o burlesco e considerado um sub-gênero
literário e, ao estudá-lo lado a lado com o conceito de estilização, promovem a distinção entre discurso
bivocal com função polêmica (paródia) e com função contratual em relação ao texto-fonte (estilização)
(Sant’Anna, 2000).
AS VOZES DOS OUTROS
39
“Enquanto, na paráfrase e na paródia, podem-se localizar,
respectivamente, um pró-estilo e um contra-estilo, na apropriação o autor
não ‘escreve’, apenas articula, agrupa, faz bricolagem do texto alheio.
Ele não escreve, ele trans-creve, colocando os significados de cabeça
para baixo. A transcrição parcial é uma paráfrase. A transcrição total,
sem qualquer referência, é um plágio. o artista da apropriação
contesta, inclusive, o conceito de propriedade dos textos e objetos.
Desvincula-se um texto-objeto de seus sujeitos anteriores, sujeitando-o a
uma nova leitura. Se o autor da paródia é um estilizador desrespeitoso, o
da apropriação é o parodiador que chegou ao seu paroxismo”
(Sant’Anna, 2000: 46).
Em resumo, portanto, a intertextualidade sticto sensu pode ser considerada como
um caso de polifonia em que se coloca, pela incorporação de um intertexto, o ponto-de-
vista de um segundo texto e, com isso, cria-se uma espécie de tensão contratual ou
polêmica entre os discursos contidos nesses textos.
A incorporação de um texto em outro se dá, segundo Fiorin (1994), através de três
processos: a citação, a alusão e a estilização
8
. Todos com possibilidade de alterar ou
confirmar o sentido do texto-fonte.
A citação é, literalmente, a incorporação de trechos de textos. Veja um caso de
citação com função de alteração de sentido no exemplo apresentado por Fiorin (ibidem:
30):
Poema “Satélite” de Manuel Bandeira:
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de sismas,
O astro dos loucos e enamorados,
Mas tão somente
Satélite.
Poema-fonte “Plenilúnio” de Raimundo Correia:
Há tantos olhos nela arroubados,
No magnetismo do seu fulgor!
Lua dos tristes enamorados,
Golfão de sismas fascinador.
8
O termo estilização é usado por Fiorin enquanto processo de intertextualização e não como efeito de sentido
como fora utilizado por Sant’Anna acima.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
40
A alusão é quando se reproduz sintaticamente trechos de textos, alterando-se certas
figuras por outras. Outro exemplo de Fiorin (ibidem: 31):
Trecho de “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias (texto-fonte):
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
Trecho de “Canção do Exílio” de Murilo Mendes (texto paródia):
Minha terra tem macieiras da Califórnia
Onde cantam gaturanos de Veneza
A estilização compreende a reprodução do conjunto dos procedimentos que
compõem o estilo de outro. Estilo, aqui, entendido como “o conjunto de recorrências
formais tanto no plano da expressão quanto no plano do conteúdo (manifestado, é claro)
que produzem um efeito de sentido de individualização” (Fiorin, 1994: 31). Fiorin (ibidem:
31-32) cita como exemplo a “Carta pras Icamiabas” do livro “Macunaíma” de Mário de
Andrade:
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta
missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudade e muito
amor com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São
Paulo a maior do universo no dizer de seus prolixos habitantes não
sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, senão que pelo apelativo
de Amazonas; e de vós se afirma cavalgardes belígeros ginetes e virdes
da Hélade clássica (…).
Segundo o autor, este caso trata-se de uma estilização, com função polêmica, dos
textos à moda de Olavo Bilac ou Coelho Neto, ou seja, da literatura anterior ao
modernismo. Esse processo se pela recorrência de procedimentos formais como, entre
outros, o tratamento na segunda pessoa do plural, o uso do plural majestático e o uso de um
léxico preciosista e arcaizante. Com isso, “Mário de Andrade ridiculariza a literatura
brasileira do período anterior do modernismo e, por conseguinte, toda a cultura brasileira,
que esse estilo correspondia ao gosto dominante na época” (idem, ibidem: 32).
AS VOZES DOS OUTROS
41
2. POLIFONIA TEXTUAL E POLIFONIA DISCURSIVA
À noção de intertextualidade em sentido amplo, Koch prefere reservar a idéia de
interdiscursividade, sendo esta condição de existência do próprio discurso. Como explica:
“(…) se é verdade que, do ponto de vista da construção do sentido, todo
texto evoca outros textos e é perpassado por vozes de diferentes
enunciadores, ora consoantes, ora dissonantes, não se pode deixar de
caracterizar o fenômeno da linguagem humana como essencialmente
polifônico, tomando-se, agora, polifonia como sinônimo de
intertextualidade em sentido amplo, ou ainda, de interdiscursividade, em
que a heterogeneidade é constitutiva da própria possibilidade do
discurso” (Koch, 1991: 539-540).
Segundo Fiorin (1994: 29-36), o conceito de intertextualidade diz respeito aos
processos de construção, reprodução ou transformação do sentido. Para o autor, e em
conformidade com a semiótica chamada greimasiana, o processo de geração do sentido
percorre um caminho onde se distingue a imanência (que diz respeito ao plano do
conteúdo) da manifestação (lugar de encontro entre o plano de conteúdo com um ou vários
planos de expressão). No nível da imanência encontram-se os seguintes patamares: o
fundamental, o narrativo e o discursivo. Conforme Fiorin, o discurso é o patamar em que o
enunciador “assume as estruturas narrativas e, por meio de mecanismos de enunciação,
actorializa-as, especializa-as, temporaliza-as e reveste-as de temas e/ou figuras” (idem,
ibidem: 30). Diferencia-se do texto, que é unidade de manifestação, “é o lugar em que os
diferentes níveis (fundamentais, narrativo e discursivo) do agenciamento do sentido se
manifestam e se dão a ler” (idem, ibidem: 30).
Ao explicitar a distinção entre texto e discurso, Fiorin acusa, também, a diferença
entre intertextualidade e interdiscursividade. Para o autor, a incorporação de “percursos
temáticos e/ou percursos figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro” (ibidem:
32), define a interdiscursividade. Estas retomadas podem se dar de maneira contratual ou
polêmica através da citação repetição de “idéias” contidas em discursos de outros e
através da alusão, quando a incorporação de temas e/ou figuras de um discurso que
servem para a compreensão do contexto que foi incorporado.
Como exemplo, Fiorin (ibidem: 32) menciona as recorrências temáticas nos
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
42
discursos do poder durante o período militar: a nação estava à beira do abismo; o
movimento militar de 1964 não foi um golpe de Estado, mas uma revolução; o país estava
em guerra com o comunismo, etc. Os discursos giravam em torno de temas como
modernização, moralização, manutenção da ordem, etc. Aqueles que repetiam esses temas
pertenciam à mesma formação discursiva, já aqueles que negavam ou afirmavam seu
inverso eram considerados oponentes.
Sobre o processo de alusão, Fiorin usa o exemplo:
“Assim, quando Lula disse a Collor: ‘Eu sabia que você era collorido por
fora e caiado por dentro’, fazia alusão ao discurso de propaganda de
Collor e ao discurso de Ronaldo Caiado. Esses discursos ressoam sob a
frase de Lula, servindo de contexto para entender collorido como
progressista, maneira como Collor gostava de se apresentar, e caiado
como de extrema-direita” (Fiorin, 1994: 34).
Segundo Fiorin, a intertextualidade é, estritamente, o processo de incorporação de
um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo
(1994: 30). O texto não depende da intertextualidade para sua constituição, ao contrário da
interdiscursividade que é inerente ao caráter heterogêneo do discurso. “A
interdiscursividade não implica a intertextualidade, embora o contrário seja verdadeiro,
pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao discurso que ele
manifesta” (idem, ibidem: 35).
Em síntese, consideraremos o conceito de intertextualidade, enquanto manifestação
polifônica do discurso, nos casos stricto sensu, ou seja, quando forem utilizados textos
previamente e efetivamente existentes. À noção de intertextualidade em sentido amplo,
adotaremos a postura de considerá-la como sinônimo de interdiscursividade. Serão os casos
onde figuras e temas discursivos são reaproveitados polifonicamente para a criação de
novos textos e discursos.
Poderemos falar, portanto, de polifonia textual diferentemente de polifonia
discursiva.
Considerando o texto como um objeto de significação e/ou de comunicação não
necessariamente verbal, serão avaliados quaisquer casos de retomada lingüística e/ou
AS VOZES DOS OUTROS
43
musical como intertextos. Também serão contemplados os casos onde se retomam estilos
ou gêneros lítero-musicais, ou seja, quando o texto produzido dialoga não com textos
efetivamente pré-existentes, mas com um arquitexto representado por seus arquétipos.
As retomadas intertextuais poderão se dar através da citação, da alusão ou da
estilização ou da combinação destes elementos e o processo interdiscursivo poderá ser
reconhecido através da citação ou da alusão, em conformidade com Fiorin (1994). Todos os
casos podem ser distinguidos por suas finalidades contratuais ou polêmicas, ou seja, com o
intuito de manter, confirmar ou reproduzir o sentido original ou transformá-lo, negá-lo ou
ironizá-lo.
Quando a retomada intertextual tiver uma orientação ideológica no mesmo sentido
do texto-fonte, estaremos tratando de intertextualidade da semelhança e, quando for o caso,
explicitaremos os casos de paráfrase e estilização; quando apresentar um viés “contra-
ideológico”, o consideraremos como um caso de intertextualidade da diferença e
apontaremos, se for necessário, os casos de paródia e apropriação.
3. INTERTEXTUALIDADE E CANÇÃO
De acordo com Aragão, Trotta e Ulhôa (2001), sabemos que certas músicas,
fragmentos musicais ou musemas, por vezes estereotipados, acabam fazendo parte da
memória coletiva de uma comunidade e que funcionam como indicadores de determinados
gêneros culturais, estilos musicais, de práticas sociais e/ou de repertórios específicos. Como
evidencia Aragão, Trotta & Ulhôa:
“Um exemplo antológico do poder de evocação que têm determinados
clichês musicais pode ser ouvido na gravação do show Seis e Meia,
quando Sivuca apresentou o frevo ‘Vassourinhas’ como se fora tocado
por um chinês, russo, árabe ou argentino. (…) As modificações
consistiam em alteração de alguns elementos: uma ‘levada’ rítmica de
tango, uma escala pentatônica, a citação de ‘Olhos negros’, uma
modificação de andamento (…)” (2001: 350).
A citação de fragmentos musicais, a utilização de clichês e a “releitura” de músicas
e canções são alguns exemplos freqüentes de retomada musical que redistribuem seus
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
44
significados na sociedade.
Tais retomadas ganham uma configuração semelhante à intertextualidade, como nos
casos de citações de fragmentos musicais e “releituras” de músicas, onde trabalha-se com
os significados adquiridos pela música-fonte em nova música, dotada de novos sentidos. Os
casos de utilização de clichês e musemas disseminados na memória coletiva podem ser
equiparados à noção de interdiscursividade, onde temas e/ou figuras discursivas são
reaproveitadas para a criação de novos “textos” musicais. Todos esses casos apontam a um
procedimento dialógico comum na atividade musical: a reordenação dos “códigos”
musicais como manutenção ou construção de novos sentidos na música popular.
Teoricamente, na melodia principal ou entoada, temos três possibilidades de
retomada devido à sua dupla configuração: retomada lingüística, melódica e lingüístico-
melódica (simultaneamente). Antes de nos adiantarmos, gostaria de abrir um parêntese e
levantar algumas questões a este respeito.
Comparemos três trechos de poemas, dois mencionados nesta dissertação e um
bastante conhecido em nosso cancioneiro popular.
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
Minha terra tem macieiras da Califórnia
Onde cantam gaturanos de Veneza
Batatinha quando nasce
Se esparrama pelo chão
comentamos a relação intertextual presente entre os dois primeiros exemplos.
Relação que se dá de maneira alusiva através da estrutura sintática retomada, onde se
mantêm o primeiro sujeito “minha terra” e o núcleo do segundo predicado “cantam”
substituindo as figuras “palmeiras” por macieiras da Califórnia” e “sabiá” por “gaturanos
de Veneza” (Fiorin, 1994: 31). É uma relação intertextual considerada bastante óbvia.
A relação entre o primeiro poema e o terceiro, por outro lado, parece não guardar
semelhanças. Porém, se considerarmos os aspectos prosódicos desses poemas, quer dizer,
suas características métricas e rítmicas sua “melodia” veremos que são bastante
AS VOZES DOS OUTROS
45
semelhantes. Ambos possuem versos de sete sílabas com acento na terceira e sétima sílabas
de cada verso:
1 2 3 4 5 6 7
Mi/nha/ter/ra/tem/pal/mei/ras
8 9 10 11 12 13 14
On/de/can/ta o/sa/bi/á
1 2 3 4 5 6 7
Ba/ta/ti/nha/quan/do/nas/ce
8 9 10 11 12 13 14
Se es/par/ra/ma/pe/lo/chão
Inclusive, algumas sílabas que recorrem nos acentos (acima sublinhados) guardam
semelhança sonora bastante pertinente: “terra” e batatinha” (consoante “t” com vogais
semi-abertas); “canta” e “esparrama” (“a” anasalado). Provavelmente, se partíssemos para a
“melodização” destes trechos, desde que compromissados com seus aspectos entoativos,
evidentemente, chegaríamos a um contorno melódico bastante semelhante em ambos os
poemas: ascensão melódica nas sílabas 3, 7 e 10; resolução descendente nas sílabas finais
(14); etc. Algo como
9
:
Sem desconsiderar a possibilidade de, em determinado contexto bastante específico,
a Batatinha ser reconhecida como intertexto de a Canção do exílio de Gonçalves Dias, ou
9
Como este é um exemplo suposto, nos interessa apenas ressaltar os prováveis lugares de valorização
melódica do texto lingüístico, não as suas implicações tonais.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
46
vice-versa, nos parece evidente que a retomada num nível apenas prosódico não caracteriza
um intertexto. No máximo poderíamos dizer, de maneira bastante genérica, que ambos
pertencem a um certo universo estilístico, ou a um “tipo” de texto.
Essa questão parece transpor-se ao universo da canção. Especificamente no nível da
melodia entoada, enquanto que os intertextos lingüísticos são comuns e tratados com certa
naturalidade, os intertextos melódicos ou lingüístico-melódicos são mais raros e
problemáticos. Isto porque por um lado não são reconhecidos como intertextos de textos
específicos relacionando-se mais com uma idéia de arquitexto e por outro lado porque
parecem ferir a noção de autoria da canção (o que fortalece ainda mais a noção de que a
melodia entoada é o núcleo significante da canção
10
).
Nas letras de canções os processos de intertextualização são mais claros. Os
exemplos nas canções tropicalistas são fartos. Veja alguns exemplos de intertextos
extraídos de Favaretto (1979: 108-110) sobre “Geléia Geral”
11
de Gilberto Gil e Torquato
Neto:
“Minha terra é onde o sol é mais limpo”
(alusão à “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias)
“Salve o lindo pendão dos seus olhos”
(citação do “Hino à Bandeira”)
“a alegria é a prova dos nove”
“roteiro do sexto sentido”
“Pindorama – país do futuro”
(citações do “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade)
Ou em “Tropicália”
12
de Caetano Veloso:
“A cabeleira esconde atrás da verde mata
o luar do sertão”
(citação de “O luar do sertão” de Catulo da Paixão Cearense)
10
De acordo com Tatit (1986).
11
Tropicália ou Panis et Circensis. Philips / Polygram, 1968. CD. 512 089-2.
12
VELOSO, C. Caetano Veloso. Philips / Polygram, 1968. CD. 838 557-2.
AS VOZES DOS OUTROS
47
“Não disse nada do modelo do meu terno
e que tudo mais vá pro inferno
meu bem”
(citação de “Quero que vá tudo pro inferno” de Roberto Carlos e Erasmo
Carlos)
Outro exemplo pode ser verificado na letra de “Parque Industrial”
13
de Tom Zé:
(…)
Pois temos o sorriso
Engarrafado
Já vem pronto e tabelado
É somente requentar e usar
É somente requentar e usar
Porque é made made made
Made in Brasil
(…)
Aqui, o discurso publicitário sofre deboche pela incorporação da figura “sorriso”
que traz consigo, pela alusão, tanto os temas da “alegria” e “amabilidade” quanto da
“ironia” e “zombaria”, além da figura humana tratada como objeto. Ao incorporar o texto
publicitário e introduzir um elemento estranho (no caso, um ato humano) ao discurso que
esse texto representa, esta letra critica o processo de industrialização cultural vivenciado de
maneira insólita a partir dos anos sessenta no Brasil.
Para mais casos, existem dois trabalhos que vasculham a obra de Caetano Veloso
atrás de intertextos lingüísticos: Schmiti (1989) e Portela (1999).
Embora mais raros também são possíveis os casos de intertextualidade na melodia
entoada, manifestando-se simultaneamente na letra e na melodia. Em “Sampa” temos um
exemplo claro de intertexto. O verso “que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João”
cita melodicamente e lingüisticamente o verso “cena de sangue num bar da avenida São
João” da canção “Ronda” de Paulo Vanzolini:
13
Tropicália ou Panis et Circensis. Philips / Polygram, 1968. CD. 512 089-2.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
48
Trecho de “Sampa”
Trecho de “Ronda”
Esta citação serve ao projeto de contextualização mencionado anteriormente sobre
seu acompanhamento. Ao citar “Ronda”, canção freqüentemente mencionada como uma
das principais “representantes” do samba paulista, “Sampa” tenta vincular-se ao contexto
musical e cultural do samba de Paulo Vanzolini.
É um caso aproximado do que Tagg (1999: 26-27) chama de sinédoque de gênero
14
.
De maneira simplificada, para o autor, a sinédoque de gênero é um tipo de signo musical
que, inserido em determinado estilo musical, refere-se a outro estilo e, com isso, ao gênero
cultural a que este pertence. Aqui, as noções de estilo e gênero são restritas: “um estilo
musical define-se por um conjunto de regras de estruturação musical enquanto que um
gênero musical é um conjunto mais amplo de normas culturais que pode incluir um estilo
musical como um subgrupo
15
” (Tagg, 1999: 27).
Por exemplo, em “Tuareg
16
(canção de Jorge Ben que, na interpretação de Gal
Costa, pode ser considerado como pertencendo estilisticamente ao rock, ao pop e/ou ao
14
Genre synecdoche” (Tagg, 1999: 23).
15
“A musical style is a set of musical-structural rules while a musical genre is a larger set of cultural rules
that may include musical style as a subset” (Tagg, 1999: 27).
16
COSTA, G. Gal. Universal Music / Mercury Records, 1969. CD. 514 993-2.
AS VOZES DOS OUTROS
49
samba-rock) o uso da escala menor harmônica uma quinta abaixo (no caso, menor
harmônica de Ré, sendo a tonalidade da música em Lá) nas melodias executadas pelo oboé
no acompanhamento e os “bends”
17
executados pelo violão solista, além de outros signos
musicais, remetem a um tipo de sonoridade “oriental” ou “árabe” compatível com o
universo cultural (ou pelo menos o que nós entendemos por) do tuaregue
18
descrito pela
letra da canção.
No caso de “Sampa”, apesar de a citação de “Ronda” não servir como referência a
um estilo estranho, quer dizer, ela reforça o samba paulista caracterizado musicalmente
na melodia e no acompanhamento, o poder de referência metonímica que este tipo de
citação tem nos permite considerá-lo uma sinédoque de gênero ao invés de um simples
indicador de estilo.
É possível que a polêmica desencadeada por “Sampa” se ela seria uma
homenagem ao compositor e à música paulista, segundo Caetano Veloso, ou um plágio de
“Ronda”, segundo Paulo Vanzolini deve-se à utilização redundante ou de reforço
estilístico da citação melódica. De qualquer forma, é interessante notar como esse tipo de
intertexto parece “ferir” mais efetivamente a noção de autoria do texto.
Outro caso que serve de exemplo de intertexto na porção entoativa da canção pode
ser verificado, de maneira mais sutil ou mais alusiva do que citada, em “Irene”
19
de
Caetano Veloso. Nesta canção encontramos uma alusão à canção de domínio público
“Marinheiro só” que, inclusive, aparece “relida” em outra faixa do mesmo disco
20
.
17
Bend (do inglês: curvar; dobrar) é quando se puxa a corda do instrumento ao pressioná-la, conseguindo,
assim, notas fora do temperamento do instrumento.
18
Os tuaregues são uma população nômade de raça berbere que vive no Saara (Houaiss & Koogan, 1996).
19
VELOSO, C. Caetano Veloso. Philips / Polygram, 1969. CD. 838 556-2.
20
Idem, ibidem.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
50
Trecho de “Irene”:
Eu quero ir minha gente
Eu não sou daqui
Eu não tenho nada
Quero ver Irene rir
Quero ver Irene dar sua risada
Trecho de “Marinheiro só”:
Eu não sou daqui (marinheiro só)
Eu não tenho amor (marinheiro só)
Eu sou da Bahia (marinheiro só)
De São Salvador (marinheiro só)
Além da citação claramente exposta na letra, algumas características musicais em
“Irene” remetem a “Marinheiro só”. Ambas possuem uma harmonia baseada na alternância
dos acordes IV/V/I fazendo com que as melodias tenham um caráter tonal bem semelhante.
Irene
21
:
//E /A /B /E /A /B /A /
/B /A /B /E //
Marinheiro só:
//E /E /A /A /E /E /B /
/B /E /E //
Além das características tonais semelhantes encontradas nos trechos melódicos em
ambas as canções, podemos perceber, nos fragmentos mencionados, a recorrência de
determinados contornos melódicos
22
. Embora não correspondam exatamente aos trechos
lingüísticos citados, ao considerarmos todo o segmento fica evidente a correspondência
intertextual.
21
A canção Irene foi transposta um semitom abaixo para melhor comparação com Marinheiro só (FE).
22
Ambos os trechos das melodias aqui transcritas têm como nota mais alta um Dó# (na tonalidade de Mi
maior).
AS VOZES DOS OUTROS
51
Trechos melódicos de “Irene” e “Marinheiro só”, respectivamente, com as
recorrências motívicas ressaltadas.
Uma nota: os motivos assinalados favorecem a constituição gradativa na acepção
de Tatit (1994: 94-128) da estrutura melódica nas duas canções, aproximando-as
textualmente. Porém, enquanto em Irene” uma gradação ascendente com resolução
final, em “Marinheiro só” encontramos uma gradação de tipo oscilatório que se inicia
ascendentemente, desce e eleva-se novamente para, quando repetida toda a estrutura (o que
acontece de fato), iniciar um novo ciclo (…).
“Gesto” melódico em Irene.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
52
“Gesto” melódico em Marinheiro só.
O tipo de estruturação melódica de “Marinheiro só” é bastante compatível com as
chamadas canções “de roda”, praticadas coletivamente, e que muitas vezes se dão na forma
de “pergunta” e “resposta”; lembremos da “resposta” em coro “marinheiro só” na canção
em questão. De fato, Middleton (1990: 172-247) sugere uma possível correspondência
entre “gestos” melódicos do tipo resolutivo ou direcionados a uma resolução e gêneros
culturais de sociedades industrializadas, enquanto que os “gestos” melódicos de caráter
cíclico, repetitivo ou “em aberto” (“open-ended”) são valorizados por manifestações
culturais de aspecto coletivo de sociedades pré-industriais.
De toda forma, a correspondência textual entre “Irene” e “Marinheiro só” se
através da citação dos dois versos já mencionados (“eu não sou daqui / eu não tenho nada”)
e dos motivos descendentes de quatro notas em relação gradativa, reforçado pelo caráter
tonal, ou se preferir, jônico das melodias. A partir desta alusão, estabelece-se uma relação
de reciprocidade entre ambas as canções, o que acaba por projetar os significados de
“Marinheiro só” no sentido trabalhado em “Irene”. O tema da disjunção com o lugar de
inserção do locutor (“eu não sou daqui / eu não tenho nada”) e a vontade de conjunção com
um lugar idílico (“eu quero ir, minha gente”) ganha maior especificidade pela evocação do
distanciamento da terra natal (“eu sou da Bahia / de São Salvador”) e pela relação
paradigmática estabelecida entre “eu não tenho nada” e “eu não tenho amor”. A relação
contratual estabelecida entre os locutores dessas canções é reforçada melodicamente ao
colocá-los num mesmo “espaço” tonal.
Além do caso de intertexto na melodia entoada que ocorre ao mesmo tempo
lingüisticamente e melodicamente, é também possível que aconteça apenas melodicamente,
ou seja, assim como percebemos a intertextualidade apenas na porção lingüística da
AS VOZES DOS OUTROS
53
melodia entoada, ela poderá surgir apenas na porção melódica.
Como já mencionamos, são casos bem mais raros e problemáticos, mas, como
exemplo, podemos nos referir a “Épico” de Caetano Veloso onde a melodia entoada cita
trecho de “Desafinado” de Tom Jobim e Newton Mendonça:
Trechos de “Épico” e “Desafinado”, respectivamente.
É de se notar o caráter sutil e frágil desse tipo de intertexto, o que normalmente
despende a necessidade de se reforçar a citação através de outros recursos como, no caso, a
alusão a João Gilberto grande ícone da bossa-nova e intérprete que imortalizou a canção
mencionada através de “João” e a mesma citação repetida e estendia pela flauta no final
da gravação.
Citação de “Desafinado” pela flauta em “Épico”.
Além do que, é saliente o tratamento melismático do trecho, o que promove a quase
liquidação do texto lingüístico em favor do melódico.
A não ser nos casos de paródia explícitos em que humoristas trocam a letra de uma
canção com o intuito de fazer deboche, os limites entre intertextualidade,
interdiscursividade e estilização (num sentido amplo) na porção musical da melodia
entoada tornam-se, na maioria das vezes, bastante tênue. Isso porque, sem a referência
lingüística, os textos melódicos parecem dialogar não com textos específicos, mas com um
“arquitexto”, ou seja, um conjunto de arquétipos que definem um tipo de texto musical que
pode estar atrelado a um estilo ou um gênero (idioletal, social ou cultural).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
54
Daí surgem os casos de estilização na melodia entoada. Esses são bastante
freqüentes, tanto quando uma função contratual, servindo para inserir a canção em um
determinado gênero ou estilo, como quando polemização servindo para efeitos de
sentido paródicos. Podemos mencionar os seguintes casos: quando Caetano Veloso canta “à
maneira de” Orlando Silva (ou como os cantores de rádio pré-Bossa Nova) em Paisagem
útil e Onde andarás
23
, ou “à maneira de” Roberto Carlos em Alfômega
24
. São casos em que
se retomam características timbrísticas ou interpretativas com o intuito paródico.
23
VELOSO, C. Caetano Veloso. Philips / Polygram, 1968. CD. 838 557-2.
24
VELOSO, C. Caetano Veloso. Philips / Polygram, 1969. CD. 838 556-2.
ANÁLISES
55
III. ANÁLISES
A década de 1960 é conhecida, no Brasil e no mundo, como um dos períodos mais
fecundos e agitados politicamente e culturalmente do século passado. Foi uma época de
intenso debate onde os artistas e intelectuais discutiam abertamente suas tendências
políticas e estéticas (ao menos até o recrudescimento da repressão pela ditadura militar, no
caso brasileiro). Dentre as várias correntes estéticas manifestadas nas diversas áreas
artísticas (Violão de Rua, Cinema Novo, Neoconcretismo, Grupo Opinião, Teatro de Arena
e Oficina, etc.), surge o Tropicalismo, espécie de movimento-moda que teve na música
popular sua principal vertente.
Segundo Favaretto (1979), o Tropicalismo musical, liderado por Caetano Veloso e
Gilberto Gil, propunha o deslocamento das discussões que giravam em torno da oposição
entre arte alienada e arte engajada, das origens nacionais, da internacionalização da cultura,
etc., para questões como tática cultural, estética e relacionamento com o público
consumidor. Rompiam com o discurso explicitamente político em favor de uma estética
que assumisse as contradições sócio-culturais em seu discurso.
Tal posicionamento criou obras que, além de outras características, privilegiavam a
justaposição de elementos contraditórios da cultura nacional e mundial, produzindo um
discurso fragmentado feito de colagens, recheado de paródias e alusões. A noção
vanguardística de bricolagem manifestou-se não nas “letras” das canções, mas também
na música, nos arranjos, nas roupas, na performance, ou seja, na “cena tropicalista”
(Favaretto, 1979).
Musicalmente, isto se deu através da fusão de gêneros e estilos musicais, da citação
de fragmentos musicais, da alusão a repertórios ou obras específicas e da “releitura” de
canções. Todos estes elementos eram agrupados de maneira a criar uma tensão interna ao
seu discurso, resultando em efeitos críticos, ora irônicos ora tragicômicos.
Nossas análises se deterão sobre duas canções tropicalistas: “Enquanto seu Lobo
não vem” e “Não Identificado”, ambas de autoria de Caetano Veloso. Tentaremos traçar um
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
56
mesmo percurso cognoscível ao abordá-las. Esse trajeto se dará inicialmente pela
delimitação de um campo contextual, ou seja, faremos uma descrição geral das
características sócio-culturais do momento em que a canção es inserida, e que sejam
pertinentes à nossa análise. Em seguida analisaremos o conteúdo da letra e as manobras que
a melodia e o acompanhamento desenvolvem no intuito de se construir um texto polifônico.
Não nos atrevemos a querer chegar a conclusões gerais sobre a estética tropicalista
seria necessário um trabalho empírico muito mais extenso mas gostaríamos de
contribuir com mais informações neste sentido. Nosso principal objetivo, portanto, é
praticar analiticamente os conceitos desenvolvidos até aqui nesta dissertação.
1. ENQUANTO SEU LOBO NÃO VEM
1. Esta canção faz parte de Tropicália ou Panis et Circensis
1
, produção coletiva de
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Torquato Neto, Capinam, Mutantes, Rogério
Duprat, Tom Zé e Nara Leão lançado em agosto de 1968. Considerado como o “LP-
manifesto” do “grupo baiano”, este disco “integra e atualiza o projeto estético e o exercício
de linguagem tropicalistas” (Favaretto, 1979: 78).
Nele encontramos uma tentativa clara de criação de um “objeto-disco” onde todos
os elementos (musicais, literários e gráficos) são escolhidos e agrupados de maneira a criar
uma espécie de “mosaico” significante. Cada canção, arranjo, citação, fotografia, etc., são
apresentados como parte constituinte e ao mesmo tempo crítica de uma grande “alegoria do
Brasil” (Favaretto, 1979). Criada sob o olhar prismático do que se convencionou chamar de
“tropicalismo”, essa alegoria não é construída monofonicamente, ou seja, formulada a partir
de um único ponto-de-vista exterior ao objeto, mas das múltiplas vozes sócio-culturais que
o compõem.
1
Tropicália ou Panis et Circensis. Philips / Polygram, 1968. CD. 512 089-2.
ANÁLISES
57
Segundo Favaretto:
“A fala tropicalista não se interessa em fazer adequação de uma forma de
expressão a um conteúdo prévio, mas em desconstruir, trabalhando na
virtualidade da linguagem. Donde uma produção que afirma dois
sentidos simultâneos: designa o contexto e desconstrói as linguagens que
o pressupõem enquanto interpretação totalizante” (1979: 86).
O discurso polifônico parece servir exatamente a esse propósito na produção
tropicalista: se apropriar de um discurso para desmontá-lo ideologicamente.
Por ser um disco que se pretende síntese de um movimento artístico que vinha se
esquadrinhando pelos cancionistas acima mencionados, mas principalmente por Caetano
Veloso e Gilberto Gil, e que tomou força e forma através da mídia e da crítica
especializada, é de se esperar que encontremos neste disco exemplos mais objetivos dos
principais procedimentos estéticos desenvolvidos pelos tropicalistas.
A principal característica estética deste disco é, sem dúvida, a radicalização das
relações dialógicas entre texto e contexto. Quer dizer, se o discurso tropicalista pode ser
considerado como polifônico de uma maneira geral, neste disco a intertextualidade
(estritamente falando) ganha uma importância maior. Isso é de certa forma coerente ao fato
de ser um produto que pretende consolidar um movimento musical com características de
vanguarda artística e, portanto, acaba por ser um momento extremamente “intelectualizado”
de criação.
É flagrante a quantidade de intertextos encontrados. Eles passam por citações
literárias de autores como Oswald de Andrade (principal intelectual associado ao
tropicalismo), Gonçalves Dias (talvez o poeta brasileiro mais parodiado de todos os
tempos), Coelho Neto, Décio Pignatari, etc.; por alusões ao Sargent Peppers Lonely Hearts
Club Band (famoso LP do The Beatles) e ao “urinol” de Duchamp na fotografia que
compõe a capa do disco; pelas apropriações (no sentido dado por Sant’Anna, 2000) de
“Coração materno” de Vicente Celestino (canção considerada como suma kitsch), do “Hino
ao Senhor do Bonfim” (hino tradicional popular-religioso da Bahia) e de “Três Caravelas”
(de Alguero e Moreu com versão em português de João de Barro); pelas alusões a
entonações que conotam figuras estereotipadas da sociedade brasileira como a figura do
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
58
“político” em “Geléia Geral”; e até por citações de trechos de músicas e canções como em
“Baby” (citação de “Diana” de Paul Anka), em “Geléia Geral” (citações de “O Guarani” de
Carlos Gomes e “All the way” de Frank Sinatra), em “Parque Industrial” (citação do “Hino
Nacional Brasileiro”) e, finalmente, as citações musicais em “Enquanto seu Lobo não
vem”, canção que será analisada aqui.
2. “Enquanto seu Lobo não vem” insere-se e trata de comentar um período da história
do Brasil marcado por crises políticas – entre a renúncia de Jânio Quadros, o golpe militar e
o Ato Institucional n°5 e pelo aumento das reivindicações sociais, lideradas
principalmente pelos movimentos sindicalista, campesino e estudantil
(Napolitano&Villaça, 2005). A violência exercida pela repressão militar e o surgimento dos
grupos de resistência, inclusive armados, faziam parte do cotidiano brasileiro durante o ano
de 1968.
Para enumerar alguns fatos importantes ocorridos durante 1968 mencionemos a
criação da Aliança Libertadora Nacional (a ALN foi um dos mais importantes e atuantes
grupo de guerrilha no Brasil); os episódios da morte do estudante Edson Luis durante
manifestação no restaurante “Calabouço” e o protesto estudantil que terminou na morte de
quatro pessoas, além de dezenas de feridos e presos, que ficou conhecido como “Sexta-feira
sangrenta” (fatos que tiveram grande repercussão não apenas na classe estudantil); a
“Passeata dos Cem Mil” (conhecida manifestação no Rio de Janeiro em reação à violência
da polícia com presença em massa da classe artística); e as greves de Contagem em Minas
Gerais e Osasco em São Paulo (Napolitano&Villaça, 2005).
Neste contexto, a simples evocação da fábula do “chapeuzinho vermelho” através
da alusão, no título da canção, à cantiga infantil Vamos passear na floresta / Enquanto seu
Lobo não vem”, já instaura uma expectativa em relação ao tema da /opressão/ versus
/transgressão/ (Lopes, 1999): o “passeio” (caminhada com finalidade lúdica) na “floresta”
ANÁLISES
59
(espaço labiríntico
2
) sob o perigo iminente do “Lobo mau” (violência, repressão).
Vamos passear na floresta escondida, meu amor
Vamos passear na avenida
Vamos passear nas veredas, no alto, meu amor
Há uma cordilheira sob o asfalto
A Estação Primeira de Mangueira passa em ruas largas
Passa por debaixo da avenida Presidente Vargas
Presidente Vargas
Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Vamos passear escondidos
Vamos desfilar pelas ruas onde Mangueira passou
Vamos por debaixo das ruas
Debaixo das bombas, das bandeiras, debaixo das botas
Debaixo das rosas dos jardins, debaixo da lama
Debaixo da cama
3. De acordo com Lopes (1999), a canção exibe um locutor que propõem a um
narratário o ato de passear (“vamos passear” “meu amor”) que se por dois caminhos
antagônicos: um espaço aberto (“na avenida”, “nas veredas, no alto”, “em ruas largas”,
“nos Estados Unidos do Brasil”, “pelas ruas onde Mangueira passou”) e um fechado
(“floresta escondida”, “sob o asfalto”, “por debaixo da avenida Presidente Vargas”,
“escondidos”, “por debaixo das ruas”, “debaixo das bombas, das bandeiras”, “debaixo das
botas”, “debaixo das rosas dos jardins”, “debaixo da lama”).
O locutor assume dicotomicamente ora o ponto-de-vista de um enunciador (Eo)
comprometido com o passeio no espaço aberto, ora com um enunciador (Et) comprometido
com o percurso no espaço fechado.
No espaço aberto desenvolvem-se figuras com valores disfóricos relacionados ao
tema geral da /opressão/: as “veredas
3
”, “bombas”, “botas”, “bandeiras”, “lama”, mas
também “presidente Vargas”, “Estados Unidos do Brasil” e “Mangueira”, referências claras
2
FLORESTA s.f. Grande extensão de terreno plantada de árvores; mata. / Fig. Grande número. / Fig.
Labirinto, confusão (Houaiss & Koogan, 1996).
3
VEREDA s.f. Caminho estreito, atalho, senda. / Fig. Via moral: as veredas da salvação. (…).(Houaiss &
Koogan, 1996).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
60
ao governo ditatorial de Getúlio Vargas, ao imperialismo norte-americano e à
institucionalização do carnaval. O percurso no espaço fechado é vislumbrado “por debaixo”
do primeiro, ou seja, acontece em paralelo, de forma marginal, como possibilidade de
transgressão do espaço aberto. Não são apresentadas figuras ligadas ao espaço fechado com
valores claramente eufóricos a euforia está mais na idéia de caminhar num “espaço
utópico” (Lopes, 1999: 179) porém o enunciado “há uma cordilheira sob o asfalto” traz,
interdiscursivamente, um traço figurativo euforizante. Segundo Jeszensky & Zan (2000), na
época, a imagem da “cordilheira” era associada à Revolução Cubana, que foi na
cordilheira de Sierra Maestra que se formou o grupo guerrilheiro que tomou o poder em
1959. O caso cubano era o mais recente e bem sucedido exemplo de revolução para a
esquerda brasileira.
No primeiro chorus os enunciadores se manifestam equilibradamente; para cada
enunciado é apresentado logo em seguida o seu contrário.
Et: vamos passear na floresta escondida, meu amor
Eo: vamos passear na avenida
Eo: vamos passear nas veredas, no alto, meu amor
Et: há uma cordilheira sob o asfalto
Eo: a Estação Primeira de Mangueira passa em ruas largas
Et: passa por debaixo da avenida presidente Vargas
no segundo chorus a predominância progressiva da voz do enunciador
transgressor (Et), criando, assim, uma espécie de desenvolvimento narrativo que vai
valorizando cada vez mais seu ponto-de-vista.
Eo: vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Et: vamos passear escondidos
Eo: vamos desfilar pelas ruas onde Mangueira passou
Et: vamos por debaixo das ruas
Et: debaixo das bombas, das bandeiras, debaixo das botas
Et: debaixo das rosas dos jardins, debaixo da lama
Subvertendo as expectativas, o último verso (“debaixo da cama”) oferece um ponto-
de-vista totalmente novo que apresenta explicitamente o tema do /medo/
4
, criando um
4
A expressão “debaixo da cama” é bastante popular no Brasil referindo-se a “estar com medo”.
ANÁLISES
61
efeito auto-irônico bastante contundente. Segundo Favaretto, com esse verso “a proposta
subversiva é relativizada ao máximo, des-heroicizada, desmascarando-se” (1979: 101).
Podemos dizer que esse verso expressa o ponto-de-vista de um enunciador irônico (Ei) que
se encontra numa posição de distanciamento crítico, lugar privilegiado para o sujeito
tropicalista, que busca o tempo todo desconstruir os discursos alheios.
O último verso só encontra seu sentido pleno através do desenvolvimento melódico,
como pretendemos demonstrar adiante.
4. A melodia de “Enquanto seu Lobo não vem” é divisível em quatro: frase 1, frase 1’,
frase 2 e frase 3.
Frase 1
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
62
Frase 1’:
Frase 2:
Frase 3:
As frases 1 e 1’ formam o núcleo temático da parte A ([1 + 1’] + [1 + 1’]). Cada
frase principia de um mesmo motivo ascendente que parte da nota sol e sobe por graus
ANÁLISES
63
conjuntos até , o qual chamaremos tema 1 (T1)
5
. A frase 1 desdobra-se a partir de T1
descendentemente partindo de em direção a e traçando um final suspensivo em mi, o
que continuidade à frase 1’ que, partindo de T1, também desdobra-se descendentemente
em direção a , porém partindo de si e caminhando por salto, como que “queimando”
etapas.
Frase 1:
Frase 1’:
Está claro que a frase 1’ é uma versão resumida e conclusiva de 1.
A frase 2, sozinha, forma a parte B da canção (2+2). Nela podemos notar a retomada
de T1, porém com finalização na nota mi, portanto, esse motivo será chamado de T1’. O
desenvolvimento da frase 2 se principalmente pela reiteração do musema que constitui
T1’ (ascendência em mi) mais uma resolução descendente em .
5
Adotaremos o termo “tema”, provavelmente musicologicamente inadequado neste caso, para aproximarmos
esta análise melódica à semiótica da canção, que faz uma distinção entre “tematização” processo onde
“formam-se núcleos localizados, fundados na recorrência, que contribuem diretamente para a fixação mnésica
das obras” (Tatit, 1994: 77) e “desdobramento”, processo de evolução melódica “que, a todo instante,
fratura o núcleo temático em função do devenir propriamente musical” (idem, ibidem).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
64
Frase 2:
O fato da reiteração da ascendência em mi traz uma dupla possibilidade de
realização na letra. Se por um lado a reiteração do musema dirige a canção a um processo
de tematização, por outro lado a valorização da altura mi, tanto pela mesma reiteração
quanto pelo salto que antecede a nota (note que em T1’ temos uma seqüência de
movimentos conjuntos mi e na reiteração a seqüência das duas primeiras notas é
invertida dó – lá – mi), possibilita uma exploração da tensividade passional.
A frase 3 é mais simples. Mais uma vez retoma-se T1 e altera-se a última nota para
um pouco mais acima, desta vez realizando um intervalo de oitava (sol) em relação à
primeira nota. Não desdobramento nem desenvolvimento, apenas a repetição do que
chamaremos de T1’’. Assim temos a parte C da canção (3+3+3+3).
Frase 3:
Aqui a tendência à tematização ou a um refrão se torna mais explícita, pois temos a
repetição literal do mesmo trecho melódico, por outro lado, o movimento de ascendência
torna-se ainda mais acentuada e parece confirmar a idéia de uma tensividade no plano das
alturas.
O que pudemos notar até aqui é que a melodia traça dois caminhos.
Horizontalmente a melodia tende à concentração, tanto pela aproximação cada vez mais
freqüente dos temas erigidos (T1, T1’ e T1’’) quanto pela própria diminuição do tamanho
dos núcleos temáticos em proporção aritmética. Repare que a parte A forma-se pela
repetição das frases 1 e 1que somam oito compassos, a frase 2 que estabelece a parte B
ANÁLISES
65
tem quatro compassos e a frase 3 tem dois compassos.
Por outro lado, numa perspectiva vertical a melodia tende à extensão. Busca-se cada
vez mais tensionar as alturas numa posição mais aguda, verificável tanto pela evolução de
T1 em T1’ e em T1’’, quanto pela tessitura explorada numa região cada vez mais aguda em
cada parte.
Isso significa que a melodia tende a negar a velocidade no eixo horizontal, pela
valorização do tempo mnésico, enquanto que no eixo vertical existe a disposição em negar
a duração através da valorização das distâncias tonais. A primeira tendência manifesta-se
num nível intenso, entre relações próximas, a segunda está projetada num nível extenso,
faz parte do projeto geral da melodia.
Podemos dizer de maneira genérica que horizontalmente a melodia predispõem a
canção à tematização enquanto que verticalmente ela tenderia à passionalização. Vejamos
como a letra se comporta com a melodia.
5. O primeiro verso sintetiza o projeto narrativo da canção. Temos o mote “vamos
passear” (manifestado por T1), que será reiterado em quase todas as frases 1 e 1’ (a única
exceção é “há uma cordilheira sob o asfalto”), a caracterização do espaço da “caminhada”
pelo desdobramento melódico e a figurativização
6
propiciada pelo dêitico “meu amor” com
tonema prossecutivo. O segundo verso também parte do mesmo mote, porém, precipita-se
num tonema de caráter asseverativo, como que querendo afirmar logo o ponto-de-vista
contrário.
6
Segundo o conceito desenvolvido por Tatit (1986, 1996).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
66
Segmento I (Frases 1 e 1’)
Segmento II (frases 1 e 1’)
É interessante notar que apenas nos dois versos iniciais Et se manifesta antes de Eo.
Em todos os outros, primeiro afirma-se Eo para depois contradizê-lo com Et. Na nossa
opinião, isso demonstra o poder de asseveração da frase 1’ e a tendência narrativa de se
valorizar Et. Se o locutor optou por apresentar Et logo no primeiro verso, foi para definir
imediatamente o projeto da canção, nas frases seguintes a opção se fez pelo poder da
asseveração.
No próximo segmento, o mote “vamos passear” é abandonado, mas o ato do
“passeio” se mantém, propiciado pela recorrência temática do musema que constitui T1’. O
projeto enunciativo da canção permanece modalizado pelo /fazer/.
ANÁLISES
67
Segmento III (frase 2)
Porém, é inegável a percepção de uma primeira investida no campo da tensão
passional. A evolução de T1 em T1’ e a opção pelo salto intervalar nas recorrências
musemáticas (em suma, a valorização da nota mi), modaliza, ao menos virtualmente, o
percurso da canção pelo /ser/, o que levaria a uma valorização dos estados do sujeito.
Segmento III (frase 2)
Os saltos estão representados pelas setas e a nota mi pelos círculos.
De fato, podemos perceber uma mudança no sujeito do ato de “caminhar”. Quem
“passa” agora é a “Estação Primeira de Mangueira” que é capaz de transitar “em ruas
largas” por “debaixo da avenida presidente Vargas”. O locutor evoca a figura da
“Mangueira” como exemplo de realização de seu próprio projeto, marcando, assim, seu
próprio estágio de programa a se realizar. Com isso, ressalta-se o estado disjuntivo do
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
68
sujeito principal em relação ao seu plano /transgressor/, além de criar uma expectativa
maior em relação à sua possibilidade de realização. Isto corresponde aos valores
remissivos
7
assumidos melodicamente.
No segmento seguinte temos a repetição das últimas palavras do trecho anterior
“presidente Vargas” sobre T’’. Através da repetição insistente do trecho, que é derivado
tematicamente dos segmentos anteriores, o nome da avenida passa a designar seu
verdadeiro objeto de representação, figura ligada ao tema da /opressão/.
Segmento IV (frase 3)
Esse verso parece aproximar-se daquilo que Tatit chamou de “iconização” (1996:
266-273) ao analisar a obra de Caetano Veloso. Para o autor: “as formações icônicas são
unidades de sentido indecomponíveis que reclamam uma captação em bloco pelos órgãos
sensoriais” (ibidem: 267). Opõe-se de certa maneira à idéia de “narratividade”.
7
O nível missivo, conceito erigido pelo modelo semiótico de Zilberberg, é apresentado por Tatit (1994) como
uma etapa anterior ao percurso gerativo de sentido consagrado pela semiótica greimasiana. É neste momento
que o sujeito da enunciação opera com valores abstratos antes de se submeter às leis de um sistema de
significação específico (Lopes, 1999: 31). Segundo Tatit: “os valores emissivos são objetos dos programas
melódicos eufóricos responsáveis pela reconstituição da duração perdida. Esse processo é correlato à
reconstituição do elo entre sujeito e objeto de valor” (Tatit, 1994: 181). “Os valores remissivos são objetos do
anti-programa melódico que indicam a presença inevitável das forças antagonistas no plano musical. Ao
mesmo tempo que respondem pelo progresso melódico, tanto no eixo horizontal como no eixo vertical,
através de desdobramentos do material musical e de expansões bruscas do campo de tessitura, os elementos
remissivos decompõem o núcleo melódico, precipitando a passagem para outros itinerários e outras regiões de
altura” (idem, ibidem). De uma maneira geral, os valores emissivos se atualizam melodicamente pela
valorização do movimento conjunto e da tematização num nível intenso e das gradações e do refrão num nível
extenso. Os valores remissivos correspondem aos movimentos disjuntos e desdobramentos melódicos num
nível intenso e pela transposição e “segundas partes” num nível extenso (idem, 1994).
ANÁLISES
69
Neste caso, a figura de “Vargas” é apresentada como um “objeto” de significação,
de maneira direta, sem valores imediatamente definidos pelo locutor. O valor que essa
figura terá depende de uma compreensão global do texto a partir da audição do ouvinte.
Como Tatit afirma: “compondo ícones desse tipo, Caetano transfere a experiência vivida
para dentro da canção, transformando-a em experiência a ser vivida a partir da escuta”
(ibidem: 268).
No início do segundo chorus temos a retomada dos mesmos procedimentos
adotados no primeiro chorus. Os segmentos V e VI voltam a adotar o mote “vamos
passear”, confirmando sua força temática. A frase 1’, com seu caráter asseverativo, passa a
assumir interinamente o ponto-de-vista de Et. No segmento VI, o locutor reforça a
evocação de “Mangueira” como exemplo bem sucedido. Toda esta parte se faz sob a
influência do /fazer/.
Segmentos V e VI (frases 1 e 1’)
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
70
no segmento VII, a investida na tensão passional realiza-se na letra de forma um
pouco mais clara. O sujeito deixa o mote “vamos passear” e passa a descrever a “visão” de
Et do espaço aberto. Deixa-se de lado a caminhada e volta-se para o estado do sujeito.
Segmento VII (frase 2)
Os saltos estão representados pelas setas.
Porém, não uma descrição, estritamente falando, do estado do sujeito, mas uma
exposição das figuras de valor disfórico pertencentes ao espaço aberto. Isso é interessante
porque mantém a tematização num nível intenso enquanto se esboça, melodicamente, o
anti-programa enquanto perspectiva. Quer dizer, nesse momento, os valores remissivos
apresentados melodicamente não são suficientes para alterar os rumos da canção, porém
instauram uma expectativa cada vez maior nessa direção. Por tudo isto, é um momento
bastante tenso da canção.
O que acontece no próximo segmento surpreende pelo efeito auto-irônico. Toda a
expectativa em torno de uma alteração no percurso da canção encontra uma resolução
insólita pela evocação de caráter também icônico de “debaixo da cama”. A imagem
propiciada por este enunciado desmonta o plano heróico de Et.
ANÁLISES
71
Segmento VIII (frase 3)
Ao assumir paulatinamente valores remissivos no eixo vertical da melodia ao
mesmo tempo em que o locutor identifica-se cada vez mais com o enunciador transgressor
(Et), o sujeito enunciativo desta canção instaura uma tensão tamanha que mostra-se sem
resolução, implicando na reclusão do locutor no espaço fechado “da cama”. O que era lugar
eufórico relacionado ao tema da /transgressão/ torna-se disfórico quando o locutor assume o
/medo/ pela /opressão/.
Ou seja, o que o sujeito tropicalista parece querer denunciar aqui é a incapacidade
do enunciador transgressor (Et) de superar seu estado de oprimido. Essa incapacidade é
transmitida, principalmente, melodicamente. Não há uma superação do programa melódico,
há apenas uma extensão gradativa no eixo vertical que aumenta cada vez mais a expectativa
em relação à superação, além de reforçar a disjunção afetiva entre o sujeito e o valor geral
da /transgressão/.
6. Sobre o acompanhamento podemos dizer que ele se estrutura claramente por uma
base (formada por baixo, violão e percussão: woodblock, agogô e surdo) e por intervenções
melódicas executadas pelo trompete, trompa, flauta, flautim, caixa clara, além do trecho
entoado repetidamente pela voz de Gal Costa.
A escolha dos instrumentos demonstra claramente uma tentativa de caracterizar um
conjunto de samba responsável pela base e uma formação típica de banda marcial
responsável pelas intervenções melódicas.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
72
A base tem por função essencial a repetição de um padrão de um compasso,
garantindo uma “moldura” cinética e harmônica (C
6
9
/ F
6
) bastante estática, o que reforça o
caráter involutivo da canção.
Apesar de ritmicamente associado ao samba, principalmente pelas figuras realizadas
pelo agogô, podemos dizer que é um samba bastante “quadrado”, mais ligado a uma idéia
de “parada” ou desfile do que de uma exacerbação somática de uma festa popular. A
harmonia repete uma progressão (tônica subdominante) que também não oferece
expectativas de desenvolvimento. Mantém constantemente o movimento binário subjacente
à base que pode ser sintetizado na linha do contrabaixo (dó/fá/dó/fá/…).
Porém, o movimento extensivo parece já estar sugestionado na construção gradual
da base pela superposição gradual dos instrumentos na introdução.
Introdução: superposição gradual dos instrumentos.
Das intervenções melódicas destacaremos as chiamatas
8
realizadas pelo trompete.
As articulações em staccato sobre notas repetidas, às vezes com figuras tercinadas, a
utilização dos intervalos de quarta e quinta justa, além da própria utilização do trompete,
aproximam estes enunciados musicais aos toques militares de clarim.
8
CHIAMATA. “Um termo que indica um chamado homofônico no trompete ou trompa, ou sua imitação em
outros instrumentos, normalmente nas cordas” (The New Grove, vol 5: 594).
ANÁLISES
73
Chiamatas executadas pelo trompete:
Uma característica interessante destas chiamatas é a escolha das notas. Ao invés de
utilizar a tríade de maior (mi sol), que seria o mais óbvio e próximo à linguagem
dos sinais militares, Duprat preferiu criar os chamados sobre notas um pouco mais distantes
da tonalidade (inversão da tríade de ré menor: lá – ré – ). Quer dizer, apesar de não serem
notas totalmente dissonantes, elas criam um efeito de distanciamento harmônico que se
reflete na própria relação entre a base e as intervenções melódicas. Esse efeito de
distanciamento fortalece, na minha opinião, o caráter figurativo desses enunciados
musicais, ajudando a colocá-los num mesmo plano imagético que as “botas”, “bombas”,
“bandeiras”, etc.
Outro dado interessante é a proximidade entre os temas erigidos na melodia entoada
e a forma tradicional da chiamata. É bastante comum esta se estruturar a partir da tríade
maior (quase sempre em ) e evoluir em direção ao quinto grau (sol), reforçando a última
nota. Veja alguns exemplos
9
:
9
Em The New Grove, vol 5: 594.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
74
C. Bendinelli: ‘Chiamata’ before the alarm signal ‘al ordine’ (Tutta l’arte
della trombetta, fol. 4)
G. Fantini: ‘Prima Chiamata di Guerra’ (Mod per imparare, p. 12)
J.S. Bach: Christmas Oratorio, Aria ‘Grosser Herr, o starker König’ (n°8),
Tromba in D part, bars 15-18
Os temas melódicos usados nesta canção parecem estar orientados por essa
sonoridade. A extensão que eles promovem verticalmente se apóia exatamente sobre a
tríade maior de apresentada ascendentemente.
A aproximação dos temas melódicos aos perfis de chamados ou sinais melódicos
não nos parece mera coincidência, mas reflexo da principal performance do sujeito desta
canção que é o “caminhar”, ou melhor, da incitação ao “passeio” (lembremos do mote
“vamos passear” que é expresso por T1).
Também são importantes as citações do “Hino da Internacional Comunista” e do
“Hino à Bandeira” realizadas pelo trompete, trompa e flauta.
Citações do “Hino da Internacional Comunista” e do “Hino à Bandeira”,
respectivamente.
ANÁLISES
75
Essas citações funcionam como figuras discursivas ligadas ao contexto bélico
caracterizado pelo acompanhamento assim como as chiamatas, porém conotam sentidos
bem mais específicos por serem intertextos. O “Hino à Bandeira” claramente está atrelado
ao tema da /opressão/. O símbolo nacional é denotativo do “espírito cívico” e, logo, da
manutenção da ordem. O “Hino da Internacional Comunista” faz referência explícita aos
movimentos revolucionários de esquerda, logo à desestabilização da ordem, à
/transgressão/.
O interessante é que essas referências são apresentadas dentro da mesma temática
/bélica/; o “Hino da Internacional” não deixa de ser um hino, marcial e, nesse sentido,
atrelado à idéia de “ordem”. No contexto enunciativo desta canção, ele faz parte das figuras
disfóricas apresentadas no espaço aberto assim como as “botas”, “bombas”, “bandeiras”,
chiamatas e rufos de caixa clara. No nosso entendimento, a citação do “Hino da
Internacional” antecipa a crítica à proposta subversiva explicitada no verso “debaixo da
cama”, mas também aponta sua crítica para um sujeito discursivo específico: aquele que
mantém valores ligados à /ordem/ e ao /marcial/. Mencionemos, por fim, o trecho entoado
por Gal Costa. Este se caracteriza como a citação de um trecho de Dora” de Dorival
Caymmi.
Dora
Rainha do frevo e do maracatu
Dora
Rainha cafuza de um maracatu
(…)
Os clarins da banda militar
Tocam para anunciar
Sua Dora agora vai passar
Venham ver o que é bom
(…)
A citação é clara, pois mantém o mesmo contorno melódico original.
Ao contrário do samba de Caymmi, em que os instrumentos saúdam o desfilar da
“rainha”, aclamando-lhe a desenvoltura, em “Enquanto seu Lobo não vem”, os “clarins”
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
76
somam-se ao contexto de repressão militar. Segundo Schimiti (1989), a inserção deste
trecho evidencia a intenção parodística do compositor, que tira proveito da possibilidade
ambígua de realização semântico-pragmática do verso; “é que à presença da banda militar
pode-se associar seja o clima eufórico das comemorações populares, seja aquele revestido
de seriedade, evocador da presença da ‘autoridade’” (ibidem: 235).
O verso nesse novo contexto perde suas características espirituosas e é apresentado
numa região aguda, repetidamente, como um “sinal”. O verso não anuncia, denuncia os
valores disfóricos da /opressão/.
2. NÃO IDENTIFICADO
1. Esta canção faz parte do disco homônimo de Caetano Veloso também conhecido
como seu “álbum branco” – lançado em 1969
10
.
Em dezembro de 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos por
“subversão” e passaram dois meses na Vila Militar da cidade do Rio de Janeiro. Passado
esse período de prisão, foram despachados num avião da FAB para a Bahia. ficaram
durante quatro meses não podiam sair do estado até conseguirem negociar com as
autoridades o exílio na Europa (Maciel, 1996: 205-218).
Durante o curto período em que ficaram na Bahia, os compositores gravaram um
disco cada. Na verdade, gravaram parte de um disco. Pela impossibilidade de sair da Bahia,
ambos gravaram voz e violão num estúdio pequeno de Salvador e a fita com esse registro
foi levada para São Paulo por Rogério Duprat para que ele terminasse a produção
introduzindo toda a instrumentação restante. Como confirmam os depoimentos de Rogério
Duprat e Caetano Veloso:
“Eles foram proibidos de sair da Bahia. Gil e Caetano não sabiam que
iam ser expulsos do país, achavam que iriam voltar à vida normal. (…)
Neste momento, acabei sendo uma espécie de ‘escriba musical’ deles.
10
VELOSO, C. Caetano Veloso. Philips / Polygram, 1969. CD. 838 556-2.
ANÁLISES
77
Deixaram o material para que eu realizasse os discos e foram embora”
(entrevista cedida por Rogério Duprat em Gaúna, 2002: 137).
“Gil e eu fizemos, cada um de nós, um disco nesse meio tempo. Como não
podíamos ir ao Rio ou a São Paulo, fizemos as gravações num estúdio
pequeno de Salvador (acho que se chamava Estúdio J.S.) apenas com o
violão. As fitas foram enviadas para São Paulo ou Rio para que Rogério
Duprat adicionasse baixo, bateria e orquestra” (Veloso, 1997: 417).
Apesar dessa situação ser atípica
11
, ela explicita o caráter estratificado da produção
de um fonograma. Assim como na indústria cinematográfica, a produção fonográfica
depende do trabalho integrado de diversas pessoas com especialidades distintas: músicos
instrumentistas, arranjadores, técnicos, produtores, etc. Normalmente estas funções são
desempenhadas e coordenadas de maneira a criar um texto fonográfico coeso e a eliminar
12
as “arestas” da união de diversas personalidades em prol de uma “figura” ou de um
“sujeito” do discurso, encarnado pelo “cantor”. No caso tropicalista, percebe-se a opção por
se valorizar e ressaltar o papel do “arranjador”, esteticamente falando. Quer dizer, os
arranjos elaborados para as canções tropicalistas principalmente os de Rogério Duprat
não funcionam apenas como acompanhamento (estritamente falando), mas como elemento
ativo no processo enunciativo cancional. Como pudemos observar em “Enquanto seu Lobo
não vem”.
2. No final de 1968 as discussões em torno da oposição entre “MPB” e “tropicalismo”
11
Na verdade, esta situação é atípica no chamado meio “artístico” ou “autoral”, ou seja, nos trabalhos onde
uma preocupação estética no processo global de produção e, portanto, onde uma certa centralização
desse processo na mão do “artista”. Em trabalhos mais “comerciais” a estratificação costuma ser maior,
ficando a cargo do produtor musical a direção de todo o processo assim como a arregimentação e designação
das funções de arranjador, instrumentistas, técnicos, etc. Muitas vezes o “artista” – aquele que vai estampado
na capa do disco – só tem uma visão geral do produto na hora de gravar a voz ou na fase de pós-produção.
No cinema também existe uma tendência em diferenciar filmes “autorais” de “comerciais”, àqueles
tendemos a relacionar a autoria ao diretor ou diretor-roteirista. Dizemos “ontem fui ver um filme do Woody
Allen”, quando na verdade Woody Allen não fez o filme sozinho, apenas (não quero dizer que é pouco!)
dirigiu ou, por vezes, escreveu o roteiro do filme.
12
Neste mesmo disco, em “Irene”, temos uma interessante “denúncia” do trabalho de produção de um
fonograma pela incorporação de um erro de gravação: Gil erra um acorde e a gravação tem que ser retomada.
Duprat mantém o erro e os comentários ocorridos durante a gravação no produto final, além de tratá-lo de
maneira concretista evidenciando a mídia – a fita magnética – em que a música foi gravada.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
78
estavam estabelecidas. De um lado os artistas que buscavam desenvolver, a partir das
formas tradicionais, uma música “autenticamente brasileira” e de outro os tropicalistas que
assumiam uma postura “antropofágica” em relação à contemporaneidade e o passado.
Como explica Napolitano:
“O que estava em jogo, eram duas idéias-força, lançadas pelo
modernismo dos anos 20: uma evolução que corresponderia a um
aprimoramento da própria capacidade de sintetizar as bases culturais da
‘nacionalidade’, inscrita nas falas populares mais isoladas, sendo o
artista o formulador privilegiado desta consciência (inspirada em Mario
de Andrade); uma evolução que seria a deglutição, voluntária e seletiva,
da massa de informações disponíveis no mundo contemporâneo
(inspirada em Oswald de Andrade), sendo o artista o sintetizador de
novas propostas orgânicas” (1997).
Essas duas linhas tinham como principal palco de embate os festivais de canção. Os
dois principais festivais de 1968 foram o “III Festival Internacional da Canção” (durante o
mês de setembro) e o “IV Festival de MPB” (durantes os meses de novembro e dezembro).
Aquele foi o mais polêmico e conflituoso, tanto pela radicalização adotada na performance
dos tropicalistas, quanto pela “recepção” do público comprometido com a “canção de
protesto”.
O fato mais importante foi a apresentação de “É proibido proibir” onde Caetano
Veloso proferiu seu famoso “discurso
13
”. É certo que a ala comprometida com a chamada
13
“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir este ano
uma música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado; são a mesma juventude que vai
sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada,
nada, absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa! Eu hoje vim dizer aqui que quem teve coragem de
assumir a estrutura do festival, não com o medo que Sr. Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve
essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. Vocês estão por fora!
Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa, que juventude é essa? Vocês jamais conterão
ninguém! Vocês são iguais sabe a quem? São iguais sabe a quem? - tem som no microfone? - Àqueles que
foram ao Roda Viva e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada! E
por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido em dar esse ‘viva’
aqui, não tem nada a ver com vocês. O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música
brasileira! O Maranhão apresentou esse ano uma música com arranjo de charleston, sabem o que foi? Foi a
Gabriela do ano passado que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar, por ser americana. Mas eu
e Gil abrimos o caminho, o que é que vocês querem? Eu vim aqui pra acabar com isso. Eu quero dizer ao
júri: me desclassifique! Eu não tenho nada a ver com isso! Nada a ver com isso! Gilberto Gil! Gilberto Gil
está comigo pra acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com isso
tudo de uma vez! Nós só entramos em festival pra isso, não é Gil? Não fingimos, não fingimos que
ANÁLISES
79
“linha dura” da MPB estava de prontidão para uma vaia organizada, porém, a
performance de Caetano e os Mutantes, que se aproximava da idéia de um happening pelo
comportamento cênico e plástico, se mostrou muito mais provocativa e a reação do público
foi dura. O evento logo se transformou num caos, inclusive incorporado musicalmente
pelos Mutantes, e serviu de pano-de-fundo para um discurso improvisado de Caetano que
de certa forma marca o início do esgotamento do movimento:
“Gilberto Gil está comigo pra acabarmos com o festival e com toda a
imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com isso tudo de uma vez! Nós
entramos em festival pra isso, não é Gil? (…) Nós, eu e ele, tivemos a
coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas, e vocês?”
(trecho do discurso)
no IV Festival de MPB, o “tropicalismo” passa a ser encarado como “gênero”
concorrente com a MPB, dando sinais de uma certa estagnação do movimento e de sua
decadência enquanto vanguarda artística no sentido de sua incorporação ao “senso
comum”. Em uma das reportagens que saiu na época sobre o festival se diz: “Pela primeira
eliminatória (...) percebe-se que o festival deste ano vai ser nitidamente tropicalista, com a
maior parte dos candidatos seguindo abertamente a linha lançada por Caetano Veloso no
festival passado” (OESP, 19/11/68: 21, citado em Napolitano, 1997). É interessante que o
resultado final deste festival tenha dado a Tom com “São São Paulo Meu Amor” o
primeiro lugar, pelo júri especial, e o primeiro lugar no júri popular tenha sido concedido a
“Benvinda” de Chico Buarque.
Lançada num momento em que o tropicalismo do “período heróico” (Favaretto,
1979: 41) se esgotara, tanto pela exaustão natural dos movimentos de vanguarda quanto
pela prisão de Caetano e Gil, “Não Identificado” evoca esse contexto de maneira bastante
especial.
desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Sabe como é? Nós - eu e ele -
tivemos a coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas, e vocês? E vocês? Se vocês em política
forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com Gil! Junto com ele, tá entendendo.
O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! (Canta trecho de É proibido Proibir) Fora do
tom, sem melodia. Como é júri? Não aceitaram? Desqualificaram a melodia de Gilberto Gil e ficaram por
fora! Juro que o Gil fundiu a cuca de vocês. Chega!”
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
80
3.
Eu vou fazer uma canção pra ela
Uma canção singela, brasileira
Para lançar depois do carnaval
Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico
Um anticomputador sentimental
Eu vou fazer uma canção de amor
Para gravar num disco voador
Uma canção dizendo tudo a ela
Que ainda estou sozinho, apaixonado
Para lançar no espaço sideral
Minha paixão há de brilhar na noite
No céu de uma cidade do interior
Como um objeto não identificado
Nesta canção constatamos um locutor envolvido com um projeto geral explicitado
logo no primeiro verso: “eu vou fazer uma canção pra ela”. Este mote vai guiar todo o
desenvolvimento narrativo da letra que se ocupa em dar detalhes de como será e pra quê
servirá essa “canção”.
Em conformidade com Lopes (1999: 262-263), nesse processo verificamos a
presença de dois programas complementares: um que aborda o objeto “canção” do ponto de
vista de sua produção (“eu vou fazer”) e outro sob a perspectiva de sua função de
comunicação: a “canção” servirá para compartilhar os sentimentos do locutor para com a
“amada”.
Ainda de acordo com Lopes (ibidem), a primeira ação faz presumir que o locutor
esteja em conjunção com um valor “amor” e necessite produzir um objeto capaz de
exprimir esse sentimento. Já no segundo programa, o sujeito vive uma disjunção com o
objeto-valor “amada”; o “amor” é vivido como falta que precisa ser comunicada à amada e
a letra trata de “exteriorizar” através da “canção” o “interior” do sujeito, ou seja, seu estado
passional.
No jargão da semiótica, podemos dizer que a letra orienta-se por um regime
emissivo de ordem intensa (produção) ao procurar manter a conjunção com o valor “amor”
através da produção do objeto “cançãoe remissivo de ordem extensa (comunicação) ao
buscar a reparação do sentimento de falta do objeto-valor “amada” (Lopes, 1999: 262-263).
ANÁLISES
81
Podemos observar que o primeiro chorus aborda principalmente o programa de
construção do objeto “canção”, sendo o estado do locutor sugerido através de
características do objeto: “pra ela”, “romântico”, “sentimental”, “de amor”. No segundo
chorus o locutor passa a abordar mais diretamente o objeto (“uma canção dizendo tudo a
ela”) e, a partir daí, seu próprio estado (“que ainda estou sozinho, apaixonado”), processo
que acaba por transformar o objeto “canção” em sua própria “paixão”, explicitando o
processo de “exteriorização” do “interior” do sujeito mencionado por Lopes. No final da
letra podemos dizer que a conjunção entre o valor “amor” e o objeto “canção” se concretiza
na forma de sua “paixão” que se manifestará como um “objeto não identificado” brilhando
“no céu de uma cidade do interior”.
4. A melodia de “Não Identificado” é divisível em cinco frases
14
.
Frase 1
14
As transcrições aqui apresentadas foram feitas a partir da escuta da primeira apresentação da canção.
Decidimos não transcrever literalmente sua repetição por considerarmos de um preciosismo desnecessário.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
82
Frase 2
Frase 3
Frase 4
Frase 5
A canção se estrutura por um chorus, formado pelas partes A, A’ e B ou refrão, que
se repete duas vezes completando a letra. Toda a canção é repetida duas vezes durante a
gravação. A parte A é constituída pelas frases 1, 2 e 3. A parte A’ é formada pelas frases 1 e
4; e o refrão discorre sobre a frase 5.
ANÁLISES
83
A frase 1 tece os primeiros motivos que servirão de material temático durante toda a
melodia. São pequenos trechos de três notas, e alguns de duas notas, ligadas por movimento
conjunto. Esses motivos são repetidos um a um e vão ligando toda a parte A:
A parte A’ mantém a mesma característica, porém desenhando um final suspensivo:
apesar de terminar na nota mi a harmonia caminha para uma modulação em direção a uma
quarta acima onde será o refrão.
Apesar de A e A’ serem todos “costurados” por motivos, não pra dizer que a
canção resultará absolutamente temática. Isso porque a melodia está sempre percorrendo o
espaço tonal, quer dizer, ela está sempre ocupando uma região diferente da tessitura numa
configuração próxima a que Middleton chamaria de melodia por “plataformas
15
(1990:
207). Cada altura conquistada é valorizada por prolongações nas notas e o andamento lento
favorece o tratamento tonalizado
16
da melodia.
15
“terraced melodies” (Middleton, 1990: 207).
16
Este termo é empregado por Tatit (1994) no “sentido de valorização dos ‘tons’, das ‘alturas’, das ‘notas’”
(1994: 97).
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
84
De qualquer forma, a tendência à tematização, na partes A e A’ se mostra como
possibilidade geral mais concreta; a melodia não demonstra uma configuração exacerbada
num plano passional. Inclusive, a ocupação do espaço tonal é feita de maneira gradativa,
não há saltos marcantes. Se analisarmos sua “gestualidade” verificaremos que ela traça uma
linha que oscila sempre gradativamente em direção ou em torno de mi, centro tonal desta
música:
A frase 5, que constitui o refrão, já promove uma ruptura. Se na sua estrutura
interna ela mantém resquícios do material temático,
a transposição da tessitura, tanto para uma região mais aguda quanto para a tonalidade da
subdominante, e o esforço de emissão aplicado à nota ,
fazem com que o refrão seja o lugar privilegiado para as manifestações de caráter passional.
Vejamos como a letra se comporta com a melodia.
5. Como já mencionamos, o primeiro chorus ocupa-se principalmente em “construir”
o objeto “canção”. O programa de produção é colocado em primeiro plano e vale-se dos
motivos melódicos para erigir as relações entre sujeito (“eu vou fazer”) e objeto (“uma
canção”), e objeto e valores eufóricos (“singela”, “brasileira”, “depois do carnaval
17
”,
17
No Brasil das décadas de 30 e 40, ou na chamada “Era de Ouro” do rádio (e que de certa forma perdura até
os dias atuais) era comum a diferenciação entre música de carnaval e música de meio de ano, aquelas sendo
destinadas à dança e à festa, e estas mais “românticas”. Como coloca Tatit (1990: 44): “Naquele tempo, duas
fases de criação eram nitidamente estabelecidas: a fase de produção de tensividade somática, durante o
período carnavalesco, e a fase restante de trabalho com a tensividade passional, com as chamadas canções de
ANÁLISES
85
“romântico”, “sentimental”).
Na frase 1 de A temos a construção do mote lingüístico e melódico “eu vou fazer
uma canção” reiterado em A’.
Mas temos também a primeira revelação do projeto de comunicação em “pra ela” –
igualmente embutido em “romântico” que ocorre ao mesmo tempo melodicamente pela
ruptura no movimento ascendente proposto pelos dois primeiros motivos e pela ênfase nas
notas lá-sol, sensivelmente mais aguda na tessitura adotada até aqui.
meio de ano”. Portanto, num primeiro momento, podemos dizer que a expressão “para lançar depois do
carnaval” aproxima-se às figuras ligadas à temática /romântica/.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
86
As saliências melódicas encontradas em “pra ela” e “romântico”, no entanto, são
logo incorporadas ao percurso melódico tanto pela reiteração do motivo quanto pelo
posterior movimento descendente recuperando, assim, a opção pelo movimento
conjuntivo e agregando os motivos melódicos que vão servindo para caracterizar o objeto
“canção”.
O movimento de gradação caracteriza de maneira geral a parte A e mesmo os saltos
esboçados em “singela” e “brasileira” estão a serviço dessa gradação ao ligar seus “picos”
numa progressão descendente.
ANÁLISES
87
A frase 3 direciona novamente a melodia ascendentemente, numa sucessão
reiterativa de um pequeno motivo de duas notas, mas logo retoma o material temático para
finalizar a parte A.
O enunciado “para lançar depois do carnaval” tem uma dupla conotação: ao mesmo
tempo em que faz parte das figuras relacionadas ao tema /romântico/ (como já
mencionamos), estrutura-se de acordo com o projeto de comunicação. A idéia de “lançar” a
“canção” num tempo “depois do carnaval” irá se moldar com o projeto de comunicação
mais claramente no segundo chorus.
A parte A’ praticamente repete os mesmos procedimentos de A, porém com
diferenças no nível discursivo que se mostrarão pertinentes no adiantar de nossa análise.
Por enquanto, ressaltaremos somente suas características narrativas que mantém o mesmo
tratamento. A frase 1 retoma o mote, apenas muda as figuras discursivas (“eu vou fazer um
iê-iê-iê romântico”) e a frase 4 mantém a caracterização do objeto a produzir (“um
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
88
anticomputador sentimental”), porém alterando seu perfil melódico que desdobra-se num
movimento de suspensão que sugere um desenvolvimento na canção: sustentação da nota
mi sobre a progressão harmônica modulatória F#7Bsus7/B7Esus7/E7.
A preponderância de valores emissivos nas partes A e A’ do primeiro chorus pode
ser verificado também na necessidade constante de retomada no plano da expressão da letra
no que diz respeito à estrutura de rimas, o que não acontece no segundo chorus:
Eu vou fazer uma canção pra ela
Uma canção singela
Brasileira
Para lançar depois do carnaval
Eu vou fazer
Um iê-iê-romântico
Um anticomputador sentimental
E o desenvolvimento da canção a partir de A’ se dá pela transposição
18
da melodia
na parte B ou, se preferir, refrão. Segundo Tatit, “a transposição regula a relação melódica
entre primeira e segunda parte em inúmeras canções desaceleradas, ampliando suas
18
O conceito de “transposição” tem na Semiótica da canção o sentido estrito de mudança brusca no registro
de tessitura de uma melodia, “nada tem a ver, portanto, com a transposição harmônica (…) nem com a
transposição técnica realizada por músicos que precisam converter as notas emitidas por seus instrumentos
para chegar aos tons escritos nas partituras” (Tatit, 1994: 109). A transposição harmônica realizada aqui não
define a transposição melódica no sentido semiótico, porém, sem dúvida, ajuda a marcar a ruptura com o
programa melódico que vinha se desenvolvendo.
ANÁLISES
89
extensões verticais e acentuando, do ponto de vista tensivo, o processo de passionalização”
(1994: 128).
Além da relação de transposição entre as partes da canção, a melodia do refrão
contrasta por basear-se muito mais em movimentos disjuntivos, além de outro fator
importante que é a aceleração do andamento. A canção vinha numa média de 102 bpm e
sobe para mais ou menos 118 bpm no refrão, uma diferença suficiente para “somatizar” a
tensividade da canção.
Segundo Tatit (1994), o refrão funciona como manifestação extensa da necessidade
de cristalização de uma idéia. Assim como na tematização constrói-se uma “relação
motivada entre tal idéia (…) e o tema melódico erigido pela reiteração” (idem, 1996: 23), o
refrão, “núcleo amplo, também fundado na recorrência, de onde saem e para onde
convergem todas as outras partes de uma composição” (idem, 1994: 77), funciona como
ponto de força centrípeta na cadeia das partes de uma canção.
No caso de “Não Identificado”, a aceleração no tempo cinemático e a recorrência da
frase 5, que vão definir a idéia de um refrão, servem para a cristalização do projeto geral da
canção. E o projeto de produção é retomado de maneira direta: “eu vou fazer uma canção
de amor”. o projeto de comunicação sofre uma sensível alteração temática; a “canção”
será para “gravar num disco voador”. Apesar desta nova temática já ter sido sugerida na
figura do “anticomputador”, agora ela faz parte do projeto principal da canção e irá guiar
toda a discursivização do segundo chorus. Nós trataremos mais especificamente disto
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
90
adiante, por enquanto vamos nos concentrar no projeto narrativo.
Portanto, temos um refrão que, ao mesmo tempo, cristaliza o projeto narrativo da
canção e marca, através da transposição, o regime remissivo que orienta o programa de
comunicação, agora contagiado pela figura do “disco voador”.
Segundo Tatit, “à mudança de registro, ou seja, à transformação brusca do
movimento conjuntivo em movimento disjuntivo, está associada a alteração de valor, a
prova decisiva que instaura a espera de um retorno ao material melódico original em novas
bases ideológicas” (1994: 127). De fato, ao retornar para o segundo chorus, o sujeito da
canção, como que “contaminado” pelos valores remissivos do antiprograma melódico,
passa a descrever a “canção” enquanto objeto de comunicação e, logo, seu estado passional.
Logo na frase 1 temos a incorporação dos principais temas melódicos pelo
programa de comunicação; o objeto passa a ser sujeito da comunicação.
A partir daí o locutor deixa explícito seu estado passional: “que ainda estou sozinho,
apaixonado”. O cantor passa a se valer do andamento lento após o refrão a canção volta
aos 100 bpm para intensificar o tratamento tonalizado da melodia. Podemos perceber um
maior prolongamento das notas, a utilização de tercinas e o atraso no ataque das notas como
principais recursos utilizados.
ANÁLISES
91
A frase 3 retoma seu correspondente do primeiro chorus alterando o “carnaval” pela
figura do “espaço sideral”. O teor remissivo da frase melódica é atualizado sob a nova
perspectiva temática ligada ao “disco voador”.
Podemos perceber uma apropriação cada vez maior dos valores remissivos
apresentados melodicamente pelo projeto de comunicação agora atrelado à temática ligada
ao “disco voador”. Por sua vez os temas melódicos vão sendo usados no processo de
conjunção da “cançãocom o valor “amor”. Isso pode ser observado de maneira sintética
pela evolução da frase 1 durante os chorus: “eu vou fazer uma canção pra ela” “eu vou
fazer um iê-iê-iê romântico “uma canção dizendo tudo a ela” “minha paixão há de
brilhar na noite”.
Daí o último A’ resumir o programa de comunicação, que agora se mostra
claramente como o programa principal da canção, na construção icônica da “paixão” do
locutor como um objeto que “brilha na noite, no céu de uma cidade do interior”. Quer dizer,
a preocupação em compartilhar seus sentimentos com a “amada” vai dando lugar, no
entanto sem substituir, a um desejo de comunicar seus sentimentos num espaço longínquo
(“sideral”), que atinja muitos (“no céu de uma cidade”), que rompa barreiras (“brilhar na
noite”), ou seja, o próprio ato de “comunicar” parece ser a principal preocupação do locutor.
E então o refrão, com toda a sua carga remissiva devido à transposição, vem
cristalizar o principal desejo do locutor: que sua “canção”, identificada como sendo sua
própria “paixão”, possa comunicar sem limites “como um objeto não identificado”. É
possível uma dupla leitura deste enunciado, uma sendo a atualização da figura do “disco
voador” e outra literal, a canção sendo um objeto “sem igual” ou “não reconhecível”.
6. Como vimos, ao analisarmos o processo de discursivização nesta canção
encontramos algumas questões que nos levam a novas constatações e que transcendem sua
estrutura narrativa. Vejamos.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
92
Para Lopes (1999: 262-267), o primeiro problema encontrado está na descrição que
o locutor faz do objeto “canção” que ele pretende produzir. O locutor nos coloca como
valores eufóricos que a canção deverá ser “singela”, “brasileira”, um “iê-iê-iê romântico”,
um “anticomputador sentimental”, uma canção “de amor”, etc. Sugere-nos ainda que a
canção será sua própria “paixão” que de brilhar no céu “como um objeto não
identificado”. Esta última figura, mais a idéia de um “anticomputador sentimental”,
indicam como portadores de valores disfóricos as figuras do “computador” e do “objeto
identificado”, ou seja, a “canção” pretende ser feita de certa maneira a negar os valores
representados por estas figuras (ibidem: 264).
Ora, o que de comum entre os traços eufóricos apontados e os disfóricos
representados pelas figuras do “computador” e do “objeto identificado”? Segundo Lopes
(1999), que se baseia numa análise comparativa entre várias letras tropicalistas, apesar de
num primeiro momento parecer que o que está sendo estabelecido é uma relação do tipo
/sentimental/ versus /racional/, o que ocorre é a retomada de um discurso recorrente do
sujeito tropicalista que é o da “problematização da quotidianidade e a “afirmação da
liberdade do indivíduo” (idem, ibidem: 264-265). O “anticomputador” seria a negação, não
da /racionalidade/, mas do que ele representa de automatismo e massificação, “é a figura
emblemática da instância que identifica todos os objetos da vida social” e, “para fazer-lhe
face, mesmo uma ‘canção’ concebida como um objeto não identificado(idem, ibidem:
265). Em última análise, o “computador” e o “objeto identificado” o figuras que
correspondem aos “intermediadores sociais” ou “instrumentos controladores e rotuladores
de todo tipo que vêm até o sujeito para lhe dizer quem ele é, como deve se comportar, o que
deve e o que não deve saber, etc” (idem, ibidem: 265-266). Estão atualizando, mais uma
vez, a temática geral da /opressão/, e o desejo do locutor é superá-la.
Gostaríamos de observar esta canção segundo a noção de interdiscursividade. É
possível identificar pelo menos três traços temáticos entrecruzados que denominaremos
como /romântico/, o da /indústria da canção/ e o da /ficção científica/ ou /sci-fi/.
O tema /romântico/ atualiza as relações entre destinador e destinatário. A “canção”
será “pra ela”, “de amor” e dirá “tudo”, que o locutor está “sozinho, apaixonado”. É a
ANÁLISES
93
temática de base, quer dizer, a disjunção entre o locutor e sua amada compõe o cenário no
qual a canção discorre. D a canção identificar-se, de maneira geral, com o gênero
romântico.
O tema da /indústria da canção/ atualiza, em certos momentos do primeiro chorus, o
programa de produção da “canção” e utiliza um discurso externo definido pelos padrões da
indústria da canção ou por “rótulos” do meio musical. O objeto será um “iê-iê-iê
romântico”, uma canção “brasileira
19
”, “para lançar depois do carnaval” e até a expressão
“canção de amor” confunde-se entre o que o locutor sente (indivíduo) com o gênero de
mercado a que está associado (coletividade).
o tema /sci-fi/ é mais complexo. Do ponto de vista do programa de produção do
objeto ele aponta os anti-valores disfóricos (“anticomputador sentimental” e “objeto não
identificado”) e, ao abordar o programa de comunicação, ele surge como uma espécie de
oposição às figuras do discurso sedimentado da indústria da canção. Podemos perceber isso
pelo tratamento paródico dado ao discurso da /indústria da canção/. Isto é claramente
explicitado pelos seguintes détournements
20
:
1. “Para gravar num disco voador”: “disco” substituído por “disco
voador”.
2. “Para lançar no espaço sideral”: “para lançar (no mercado, na
indústria, na mídia, etc.)” substituído por “no espaço sideral”.
Para Lopes (1999), as imagens insólitas associadas ao “disco voador”, mais do que
atualizar um discurso que certamente era veiculado maciçamente pela mídia devido à
corrida espacial americano-soviética, denunciam um lugar de possível transgressão do
locutor. Ou seja, verificamos um sujeito submetido a uma espécie de força opressora “que
pode exprimir-se num lugar sonhado, longínquo um ‘espaço sideral’” (idem, ibidem:
19
O que é uma canção “brasileira” senão uma figura socialmente e culturalmente construída, às vezes por
uma determinação mercadológica?
20
O termo détournement é utilizado pela Lingüística Textual nos casos de alteração de enunciados
proverbiais, jogando com a sonoridade das palavras, com o intuito de satirizá-los (Koch, 1997). Como
estamos considerando esses enunciados enquanto clichês de um discurso, parece-nos aplicável este conceito
também nestes exemplos.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
94
266).
Em resumo, portanto, temos uma oposição fundamental entre os valores disfóricos
representados pela /opressão/ e os eufóricos da /transgressão/. Aquela manifestada pela
temática da /indústria da canção/ e esta pela temática /sci-fi/. Denominaremos esta oposição
como pertencendo ao projeto interdiscursivo ou extrínseco desta canção, sendo que ele
surge através da incorporação de figuras de discursos alheios, enquanto que o primeiro
projeto seria intrínseco e manifestado pela temática /romântica/.
Também é possível verificar no projeto extrínseco um regime emissivo de ordem
intensa (a produção do objeto segundo as convenções da /indústria da canção/) e remissivo
de ordem extensa (a busca de uma “canção” livre das “amarras” sociais para concretizar seu
projeto de comunicação). Acontece que temos aí uma contradição devido a uma inversão de
valores. Se no projeto intrínseco os valores eleitos para o objeto “canção” (para concretizar
o programa de comunicação entre destinador e destinatário) são vistos euforicamente, no
projeto extrínseco alguns desses mesmos valores poderão ser vistos disforicamente por
representar os instrumentos de “identificação” dos mediadores sociais.
Ora, temos aí uma das características mais marcantes da produção tropicalista: a
incorporação de “vozes” alheias aparentemente contraditórias e, a partir de uma “distância
crítica” (Lopes, 1999: 283), a sua dessacralização. Para Lopes,
“trata-se de um procedimento característico dos textos tropicalistas, que
é o de criar uma certa polifonia interna ao enunciado, de forma a
quebrar a linearidade da voz do ‘outro’ e instaurar isotopias
metadiscursivas. Como bom Bricoleur, o tropicalista ‘usa as vozes
alheias (isto é, segmentos discursivos estereotipados e facilmente
reconhecíveis como pertencentes a tal ou qual socioleto ou idioleto) como
materiais construtivos, do mesmo modo que outros empregam palavras
para formar fases” (1999: 283).
A contradição não se estabelece internamente ao discurso desta canção, mas em
relação aos sujeitos dos discursos evocados. Ou seja, o sujeito tropicalista, no projeto
extrínseco, como disfórico não o que essas figuras discursivas representam, mas sim a
forma “rotuladora” de utilização dessas figuras por determinados sujeitos sociais.
Quando o locutor nos diz “eu vou fazer uma canção brasileira”, ouvimos “brasileira,
ANÁLISES
95
sim!”; quando diz “um iê-iê-iê romântico” ouvimos um “por quê não?”. Ou sob outra
perspectiva, o locutor diz que irá fazer uma canção “brasileira”, um “iê-iê-iê” ou “de
amor”, não importa, desde que diga “tudo” o que está sentindo para além das
“identificações”.
7. Devemos, por último, ressaltar as características do acompanhamento. Este é
constituído por uma base formada de bateria, baixo, órgão e violão. Excetuando-se o
violão, temos uma banda de rock executando um rock. Os instrumentos utilizados, por si
só, funcionam como figuras relacionadas ao iê-iê-iê e ao pop contribuindo para atualizar
o tema já mencionado da /indústria da canção/.
Também temos uma guitarra elétrica contribuindo melodicamente e um órgão que
intervém de vez em quando numa tentativa clara de caracterizar o som de um disco voador
(ao menos como os filmes e seriados de TV da época achavam que deveria ser) atualizando
a temática /sci-fi/.
É notável a preocupação do acompanhamento em executar as partes A e A’ de uma
maneira bastante contida e suave (como a utilização do aro da caixa na levada da bateria)
em relação ao refrão, quando a banda intensifica o volume e a densidade de notas. Este
dualismo é intensificado pela guitarra elétrica que transita constantemente entre
sonoridades leves, comprometidas com harmonizações e sutis ornamentações, e a
sonoridade berrante dos solos, onde o timbre ruidoso da distorção e as deformações
provocadas pelo uso exagerado do “tremolo
21
” são predominantes.
É possível dizer que a base e, sobretudo, a guitarra elétrica atualizam a oposição
fundamental entre /opressão/ e /transgressão/ através do contraste entre os momentos de
“suavidade” e de “estridência” ou, como decorrência, entre /som musical/ e /ruído/.
As reflexões sobre a relação entre som e ruído em Tatit (1994) e Wisnik (1989)
21
Dispositivo (uma barra) da guitarra elétrica que afrouxa as cordas e, com isso, serve para se conseguir um
efeito de vibrato.
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
96
giram em torno do caráter de “instabilidade” ou de “descontinuidade” do ruído e de
“estabilidade” ou de “continuidade” do som musical. Para Wisnik,
“a natureza oferece dois grandes modos de experiência do som:
freqüências regulares, constantes, estáveis, como aquelas que produzem o
som afinado, com altura definida, e freqüências irregulares, inconstantes,
instáveis, como aquelas que produzem barulhos, manchas, rabiscos
sonoros, ruídos” (…) “Ao fazer música, as culturas trabalharão nessa
faixa em que som e ruído se opõem e se misturam. Descreve-se a sica
originariamente como a própria extração do som ordenado e periódico
do meio turbulento dos ruídos” (1989: 24).
Segundo Tatit, a decorrência da idéia de “ordenação” pela música do “caos” sonoro
representado pelo ruído ganha implicações sócio-políticas em Attali. Para este autor, citado
por Tatit (1994: 238-239), a música é considerada como rito em que se sacrifica as forças
antagonistas do ruído ao impor-se como ordem:
“O ruído é uma arma e a música é, originalmente, a formalização, a
domesticação, a ritualização do uso desta arma num simulacro de morte
ritual”.
“De um lado, o ruído é violência: ele incomoda. Produzir ruído é romper
uma transmissão, desligar, matar. É um simulacro de morte. De outro, a
música é canalização de ruído e, portanto, simulacro de sacrifício. Ela é
pois sublimação, exacerbação do imaginário, ao mesmo tempo que é
criação de ordem social e de integração política
22
”.
Fica claro que som musical e ruído fazem parte do mesmo processo de significação,
para Wisnik, “os sons afinados pela cultura, que fazem a música, estarão sempre
dialogando com o ruído, a instabilidade, a dissonância. Aliás, uma das graças da música é
justamente essa: juntar, num tecido muito fino e intrincado, padrões de recorrência e
constância com acidentes que os desequilibram e instabilizam” (1989: 25).
Em Tatit (1994: 239), esse dualismo é abordado sob a perspectiva da “missividade”.
Se o som musical está comprometido com a estabilização, a continuidade e, portanto, a
involução, e o ruído instaura a desestabilização, a descontinuidade e, logo, promove a
22
ATTALI, J. Bruit. Essai sur l’économie politique de la musique. Paris: PUF, 1977. apud TATIT, 1994:
238-239.
ANÁLISES
97
evolução, aquele amolda-se aos valores emissivos enquanto que este é agente de valores
remissivos.
O ruído em “Não Identificado” está ligado diretamente aos valores remissivos que
regem o sentimento de falta vivido pelo locutor tanto pela “amada” quanto pela “liberdade”
sonhada. A “estridência” é vista como elemento eufórico e permite ao sujeito desta canção
um “distanciamento crítico” (Lopes, 1999: 283) em relação às figuras mencionadas na letra,
sublinhando o programa principal da canção, que é o de criar uma canção sem rótulos, não
identificada.
3. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ANÁLISES
Muito aquém de poder chegar a qualquer conclusão genérica a respeito da canção
tropicalista, devido ao número reduzido de textos analisados, nos deteremos sobre algumas
questões levantadas nas análises destas duas canções em particular.
Ambas as canções possuem letras que podem ser consideradas polifônicas. Em
“Enquanto seu Lobo não vem” a polifonia se deu explicitamente pela alternância de
enunciados com sentidos antagônicos. Essa estrutura, do tipo sim/não, possibilitou um
desenvolvimento no sentido de criar uma expectativa de /transgressão/ dos valores da
/opressão/ que acabou por lograr a intenção irônica do locutor.
Em “Não Identificado” a polifonia surge mais especificamente através da
interdiscursivização. A partir de um programa narrativo determinado a priori por uma
relação entre um sujeito e sua “amada”, intermediada pela construção de um objeto
“canção”, o locutor vai se apropriando de figuras de discurso com temáticas que, em
confronto, acabaram por estabelecer nova oposição fundamental entre /opressão/ e
/transgressão/, esta vista euforicamente e aquela como disfórica.
Tratando-se da melodia entoada, as canções conceberam, sob determinado prisma,
resoluções díspares para trabalhar com o sentido polifonicamente construído na letra. Em
“Enquanto seu Lobo não vem” pudemos perceber uma dupla orientação dentro de um
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
98
projeto global de tensão gradual: acirramento da tematização (eixo horizontal) e a
aproximação do sujeito com os objetos disfóricos (bombas, botas, bandeiras, etc.), e
extensão da tessitura (eixo vertical) concomitante à adoção da perspectiva do enunciador
transgressor pelo locutor. Como vimos, esta configuração, levada ao extremo da
irresolução, acabou por servir ao lance auto-irônico (em relação ao locutor) que se mostrou
bastante contundente.
em “Não Identificado”, como o efeito polifônico se estruturou a partir da
interferência de “vozes” que instauravam uma nova relação fundamental entre /opressão/ e
/transgressão/, o contraste entre a primeira parte e o refrão foi fundamental para a
organização dos valores emissivos relativos ao programa de produção do objeto “canção” e
remissivos responsáveis pelo programa de comunicação. Como vimos, no programa de
comunicação havia uma compatibilidade entre o que denominamos projetos extrínseco e
intrínseco, no programa de produção havia uma certa incompatibilidade de valores.
Algumas das figuras que tinham valor eufórico para o projeto intrínseco podiam ser
consideradas como disfóricas segundo o projeto interdiscursivo. Essa contradição não era
vista como interna à canção a melodia tratava-os igualmente mas externa, em relação
aos sujeitos dos discursos que as tomam como disfóricas.
Uma questão interessante a ser pensada é a respeito da relação entre melodia
entoada e acompanhamento. No acompanhamento das duas canções existe uma
preocupação evidente em se atualizar aquilo que, digamos, o cantor está dizendo. Em “Não
Identificado”, isto se reforça pelo caráter metalingüístico da canção. O locutor diz que quer
fazer uma canção fazendo uma canção. E enquanto ele narra como será essa canção, a
música (o acompanhamento) que ouvimos vai contrastando ou não com sua descrição. As
figuras “romântico”, “singela”, etc., entram em sincronia com o que ouvimos, mas as
“brasileira” e sobretudo “de amor”, no momento em que irrompe o refrão, soam
extremamente conflitantes.
em “Enquanto seu Lobo não vem” a relação entre melodia entoada e
acompanhamento aproxima-se bastante da idéia de figura e fundo. O acompanhamento tem
a função de praticamente criar uma “paisagem sonora”; quase que é possível “ver” o sujeito
ANÁLISES
99
imerso entre os toques de caixa e clarim passeando-desfilando-marchando. Mas não é um
cenário calmo e distante, e sim sufocante, próximo e ativo. As intervenções melódicas são
usadas quase que semanticamente, as citações parecem ser decorrência natural dessa
necessidade. A força com que o acompanhamento se impõe enquanto ambiente opressor e
ameaçador contribui sobremaneira na frustração do projeto transgressivo do locutor e na
conseqüente reclusão de nosso herói no espaço “debaixo da cama”.
Ou seja, os acompanhamentos não servem apenas como atualização musical
(harmonia, ritmo, gênero) da melodia entoada, nem de elementos dos extratos mais
profundos do sentido (missividade, direcionalidade, tensão, etc.). Eles tentam dialogar
também em níveis mais superficiais como nas questões narrativas e discursivas, inclusive
como “formador de enunciados” como em “Enquanto seu Lobo não vem”.
Uma das constatações mais interessantes talvez tenha sido o fato de ambas as
canções tratarem de uma forma ou de outra o tema da /transgressão/ versus o da /opressão/.
Se em “Enquanto seu Lobo não vem” o debate surge atrelado à política, em “Não
Identificado” ele se mostra como um embate estético em sua essência. Porém, não para
negar que exista um mesmo fundo ideológico. E essa tendência à transgressão é
perfeitamente compatível com as vanguardas artísticas, que praticam no terreno estético as
“batalhas” que a sociedade trava no dia-a-dia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O principal objetivo deste trabalho foi a reflexão sobre a possibilidade de se
trabalhar com o conceito de polifonia no âmbito da canção e da música. Esse objetivo
nasceu da necessidade, cada vez mais recorrente entre quem tem como objeto de estudo a
música popular, de se incluir os elementos propriamente musicais no estudo de sua
significação. Apesar de termos apenas tocado a superfície do problema, acreditamos que
algumas possibilidades de desenvolvimento do assunto foram abertas.
Inicialmente, partimos da definição do que seria polifonia. Nos deparamos com o
trabalho de Ducrot (1987) e logo nos identificamos. Sua descrição da enunciação como um
“espetáculo” em que o locutor “dirige” as “vozes” ou “pontos-de-vista” de enunciadores
“encenando” o sentido da enunciação agiu imediatamente sobre nossa imaginação e
vislumbramos a possibilidade de a música participar dessa encenação no caso da canção. A
noção de intertextualidade surgiu como decorrência dos estudos sobre polifonia e se
mostrou como possível forma de abordar o tema.
A partir dessa noção “teatral” da enunciação, passamos a enxergar também uma
possível “encenação” por trás do texto fonográfico. E o esqueleto principal disto era a
relação melodia-acompanhamento. Nas reflexões sobre este dualismo em Tagg (1999,
2000) encontramos fundamentos para considerar a melodia principal de uma canção, que
acabamos optando por chamar de melodia entoada, como “sujeito”, “figura” ou
“particularidade”, e o acompanhamento como “contexto”, “fundo” ou “generalidade”. Para
usar os termos de Ducrot, o locutor manifestar-se-ia pela melodia entoada, mas o
acompanhamento também poderia ser fonte de enunciadores. Podemos dizer que a partir
daí sabíamos como “olhar” para o fonograma, mas ainda não sabíamos como “ler” o
fonograma.
Para “ler” a melodia entoada logo nos veio a Semiótica da Canção proposta por
Tatit (1986, 1994, 1996). Com um modelo teórico originalmente baseado na Semiótica da
vertente chamada greimasiana, mas que se desenvolveu independentemente em direção ao
estudo da canção, a Semiótica da Canção permite a abordagem do núcleo significante da
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
102
canção que é a melodia entoada. Nosso “sujeito”, portanto, poderia ser descrito através
desse arsenal. Mas outra implicação importante teve o contato com a semiótica por nós
[que se deu também através dos trabalhos de Barros (1994, 2001, 2003) e Fiorin (1994,
2000)]. A noção de “percurso gerativo” do sentido transformou nossa concepção
bidimensional (locutores/enunciadores; melodia/acompanhamento) ao introduzir uma
dimensão “profunda”.
Para a Semiótica, o sentido de um texto pode ser construído, num simulacro
metodológico, a partir de um percurso que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo
e concreto. Esse percurso é divido em níveis e cada nível tem sua sintaxe e seus
investimentos semânticos próprios. Não nos compete querer descrever toda a complexidade
da teoria semiótica (mesmo porque ainda não a dominamos), mas gostaríamos de ressaltar
as implicações que a simples noção de uma “terceira dimensão” teve em nosso trabalho.
Por exemplo, a noção de discurso como o patamar mais complexo e concreto do
percurso de geração de sentido e texto como manifestação do sentido foi fundamental para
“clarear” as noções que giravam em torno das concepções sobre intertextualidade. Também
em decorrência da semiótica, a nossa “leitura” do fonograma passava a considerar não
apenas as relações entre enunciadores e entre melodia e acompanhamento, mas também as
relações estabelecidas em veis diferentes de abstração. Isso acabou por se mostrar
importantíssimo em nossas análises.
A partir daí pudemos perceber que, se por um lado a Semiótica da Canção tem
mecanismos de análise apurados para os extratos mais profundos de significação,
principalmente no que diz respeito às relações entre melodia e letra (mas também na análise
melódica), quando necessitamos abordar elementos mais concretos da música para tratar,
por exemplo, de interdiscursividade musical – nos deparamos com uma imensa lacuna.
Acreditamos que um dos trabalhos que mais tem desenvolvido o conhecimento no
sentido de preencher este vazio é o proposto por Tagg (1982, 1987, 1999). Ao traçar o
“caminho inverso” do percurso gerativo, ou seja, partindo da identificação de estruturas e
parâmetros musicais de superfície que recorrem em determinado contexto cultural, o
pesquisador tem identificado relações entre determinadas “figuras” de discurso musical,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
103
que o autor denomina musema”, e certas associações paramusicais. Ou seja, sua
metodologia parte de uma configuração intertextual para definir certas estruturas
discursivas recorrentes e, através de associações lógicas ou, segundo Tagg, por uma
“correspondência hermenêutica”, embutir-lhes valores.
Acho que seria interessante, e uma possível decorrência de nosso trabalho, a
incorporação do modelo de investigação proposto por Tagg nos estudos interdiscursivos
e/ou intertextuais. Quem sabe não é uma forma de progredir na direção de se unir as duas
pontas do sentido musical?
Uma outra questão suscitada neste trabalho é a respeito da possibilidade de todo
texto cancional ser polifônico, quer dizer, existirão canções monofônicas? No primeiro
capítulo mencionamos a distinção entre textos polifônicos aqueles que deixam “entrever”
as “vozes” que os constituem e textos monofônicos aqueles que tentam “esconder”
essas “vozes” (Barros, 1994). Em nossas análises acreditamos ter demonstrado que o texto
fonográfico polifônico é possível e que os elementos musicais participam ativamente deste
processo. Mas, sendo a canção (tomando o fonograma como texto) um sistema significante
complexo e sincrético onde sua própria estrutura depende de planos diversos (melodia /
acompanhamento / base / intervenções melódicas), será possível que algumas canções se
apresentem a serviço do “discurso autoritário” (Barros, 1994)?
Essa questão parece derivar da intricada distinção entre dialogismo e polifonia.
Lopes (1999: 58-61) nos adverte que Ducrot não faz distinção entre dialogismo e polifonia,
reduzindo tudo a esta última. Analisando a teoria de Ducrot, o autor afirma:
“uma vez que todo enunciado ‘representa’ sua enunciação, e uma vez que
a enunciação é o lugar que ‘garante’ o enunciado, que o torna
ilocutoriamente efetivo, todo texto é ‘dialógico’ (como também afirmam
Kristeva e Bakhtin); por outro lado, uma vez que todo texto ‘contém’ sua
enunciação, uma vez que ele ‘é’ sua enunciação, segue-se que não existe
texto ‘monológico’, ou seja, não senão textos polifônicos: basta saber
‘escutar-lhes as vozes’” (idem, ibidem).
Em seguida o autor propõe que o “enunciador” em Ducrot pode ser visto como um
ser discursivo definido intra ou interdiscursivamente. Ou seja,
“é preciso saber em que sentido afirmamos esse caráter sincrético (eis a
DESAFINANDO O CORO DOS CONTENTES
104
versão ducrotiana, segundo nossa leitura, da ‘heterogeneidade’ bakhtino-
kristeviana) do enunciador’: é, do lado interdiscursivo, sua
‘reconhecibilidade’, ou seja, sua ‘estilização’, sua estereotipia (um
‘sotaque’, uma ‘visão de mundo’, uma ‘ideologia’); do lado
intradiscursivo, é seu ‘poder ilocutório’, seu papel argumentativo, como
diz Ducrot, mas também sua função organizadora dos agenciamentos
cognitivos do enunciado” (idem, ibidem).
Em suma, nos parece que ao considerarmos o lado intradiscursivo, segundo Lopes,
ou seja, as relações entre enunciadores internas aos enunciados, à enunciação e/ou ao texto,
toda canção, assim como qualquer texto, será polifônico (no sentido ducrotiano). Ao
considerarmos, porém, o lado interdiscursivo dos textos, sua “visão do mundo” como
coloca Lopes, os textos poderão se mostrar “polifônicos” ou “monofônicos”, propagadores
de discursos “poéticos” ou “autoritários” (Barros, 1994).
Aparte os embaraços terminológicos, e também conceituais, seria interessante
observar, se é que é realmente possível, a constituição de textos fonográficos monofônicos.
Este trabalho poderia ajudar a precisar melhor todas as questões mencionadas.
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