Download PDF
ads:
Universidade Federal de Juiz de Fora
Pós-Graduação em Ciência da Religião
Mestrado em Ciência da Religião
Patrícia Matos Rodrigues
RELIGIÃO, CIÊNCIA E ARTE COMO RESPOSTAS AO DESAMPARO HUMANO:
A PERSPECTIVA DE SIGMUND FREUD.
Juiz de Fora
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
Patrícia Matos Rodrigues
Religião, ciência e arte como respostas ao desamparo humano:
a perspectiva de Sigmund Freud.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Ciência da Religião, área de
concentração: Filosofia da Religião, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Sidnei Vilmar Noé.
Juiz de Fora
2009
ads:
2
Patrícia Matos Rodrigues
Religião, ciência e arte como respostas ao desamparo humano:
a perspectiva de Sigmund Freud.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Religião, Área de
Concentração em Filosofia da Religião, do
Instituto de Ciências Humanas da Universidade
Federal de Juiz de Fora como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Ciência da
Religião.
Aprovada em 10 de agosto de 2009.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Sidnei Vilmar Noé (Orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Saulo de Freitas Araújo
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dra. Tânia Coelho dos Santos
Universidade Federal do Rio de Janeiro
3
DEDICATÓRIA
Ao meu pai.
Porque, com seu orgulho, nomeou meu desejo de saber.
4
AGRADECIMENTOS
Ao PPCIR
pelo apoio advindo com a bolsa de monitoria.
Aos professores e colegas do PPCIR
pelos ricos anos de aprendizado.
Ao Prof. Dr. Sidnei Vilmar Noé
por sua dedicada e preciosa orientação.
À Ana Paula Corrêa Sartori
testemunha atenta dessa caminhada desde os primeiros passos.
À minha família e amigos
que tornaram essa caminhada menos solitária.
5
RESUMO
A perspectiva da psicanálise freudiana examina a noção de desamparo humano e estabelece
que religião, ciência e arte são formações que se apresentam como respostas para enfrentar essa
problemática estruturante do ser humano. Sendo assim, a presente pesquisa tem como objetivo
sistematizar a concepção de Freud acerca do desamparo humano e fazer a correlação deste com
essas três grandes realizações humanas. A investigação busca também atualizar a dimensão de tais
colaborações para a contemporaneidade. O trabalho aponta, no cenário atual, o enfraquecimento das
respostas científicas e um paralelo reencantamento das religiões, indicando que estas apresentam
uma manifestação utilitária e individualista.
Palavras chave: desamparo, religião, ciência, arte.
6
RÉSUMÉ
La perspective de la psychanalyse freudienne examine la notion de
délaissement humain et établit que la religion, la science et l'art sont des formations qui presentent
comme des réponses pour affronter cette problématique structurelle de l'être humain. Ainsi, cette
recherche vise à systématiser la conception de Freud sur délaissement humain et faire la corrélation
avec les trois grandes réalisations humaines.
La recherche essaie également mettre à jour la dimension de ces contributions pour le
contemporain. Le travail montre, dans le décor actuel, l'affaiblissement des réponses scientifiques,
et un parallèle reenchantement des religions, ce qui indique qu'elles present une manifestation
utilitariste et individualiste.
Mots clés: délaissement, la religion, la science, l'art.
7
“Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste”.
Freud a Jung na chegada a Nova York.
8
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 09
2 O DESAMPARO HUMANO: HILFLOSIGKEIT ............................................ 13
2.1 ORIGENS E SIGNIFICADOS DA HILFLOSIGKEIT ......................................... 14
2.2 A HILFLOSIGKEIT ORGÂNICA ......................................................................... 16
2.3 A HILFLOSIGKEIT PSICOLÓGICA ................................................................... 18
2.4
2.5
A HILFLOSIGKEIT ONTOLÓGICA ....................................................................
Conclusão do Capítulo ............................................................................................
25
27
3 AS RESPOSTAS AO DESAMPARO HUMANO .............................................. 32
3.1 RELIGIÃO E DESAMPARO ................................................................................ 32
3.1.1 Religião como neurose obsessiva ........................................................................... 33
3.1.2 Religião como conseqüência do complexo de édipo .............................................. 34
3.1.3 Religião como ilusão .............................................................................................. 40
3.1.4 Conclusão: Freud, o judeu sem deus ...................................................................... 47
3.2 CIÊNCIA E DESAMPARO ................................................................................... 53
3.2.1 A Weltanschauung científica .................................................................................. 53
3.2.2 A filosofia como ciência ......................................................................................... 61
3.2.3 O interesse científico da psicanálise ....................................................................... 66
3.2.4 Conclusão: Freud, o devoto do deus logos ............................................................. 69
3.3 ARTE E DESAMPARO ......................................................................................... 73
3.3.1 Leonardo da vinci ................................................................................................... 78
3.3.2 O Moisés de Michelangelo ..................................................................................... 80
3.3.3 Dostoievski e o parricídio ....................................................................................... 82
3.3.4 Conclusão: Freud, o destruidor de ilusões .............................................................. 86
4 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 88
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 91
9
1 INTRODUÇÃO
Em psicanálise, ao iniciar uma pesquisa é essencial localizar precisamente onde estão os mestres,
quais são seus significantes e suas noções. Assim, escrever sobre as noções e conceitos da psicanálise só se
torna possível se fizermos um retorno ao seu inventor. Freud marcou toda a história da humanidade e,
especialmente, do universo psicanalítico, ao apresentar suas idéias caracterizadas por uma reflexão teórica
própria e precisa.
A importância do autor consiste no fato de ter mostrado uma dimensão da mente que
determina os caminhos dos sujeitos. Esses caminhos, por sua vez, são movimentados através de um
motor inconsciente que não reflete apenas a espontaneidade interior, mas também as marcas da
tradição e da cultura.
Os conceitos desenvolvidos por ele propõem uma mente não mais unitária, mas dividida e
em conflito consigo mesma. Além disso, nos apresenta uma mente dominada por tendências
eróticas, agressivas e, na sua grande maioria, ocultas, mas que se manifestam nos atos falhos, nos
sonhos, nos chistes e nos lapsos.
O pensamento freudiano tem defensores e críticos, mas sempre servirá como um dos pólos
do debate sobre o psiquismo e como matriz comum para as diversas escolas de psicanálise e para
todas as áreas psíquicas. Freud possui o mérito de ter realizado uma revolução no âmbito humano,
ao trazer à tona a idéia de que somos movidos pelo inconsciente.
É assim que o dito de Freud a Jung, de cuja boca o ouvi, quando, ambos
convidados da Universidade Clark, avistaram o porto de Nova York e a célebre
estátua que ilumina o universo – ‘Eles não sabem que lhes estamos trazendo a
peste’–, é-lhe devolvido como sanção por uma arrogância cuja antífrase e perfídia
não extinguem seu brilho perturbador (LACAN, 1998, p.404).
Por acreditarmos na importância desse “brilho perturbador” ocasionado pela inserção da
“peste”, fazemos, então, esse retorno às origens da psicanálise. A presente pesquisa apresenta o
marco teórico conceitual de Freud que, por sua vez, defendemos ser o fundador da tradição
psicanalítica.
O sentido de um retorno a Freud é um retorno ao sentido de Freud. E o sentido do
que Freud disse pode ser comunicado a qualquer um, porque, mesmo dirigido a
10
todos, cada um estará interessado – e basta uma palavra para fazer senti-lo: a
descoberta de Freud questiona a verdade, e não há ninguém que não seja
pessoalmente afetado pela verdade (LACAN, 1998, p.406)
.
Desse modo, em busca de verdades, o autor dedicou grande parte de suas análises ao estudo
da cultura. No entanto, foi a partir da publicação de O futuro de uma ilusão, em 1927, que ele se
volta com mais vigor para tais temas e eles passam a ocupar, então, seu principal interesse.
Além da afirmação do inconsciente, encontramos a figura da cultura vastamente presente na
obra do autor. Desse modo, o recurso à cultura é ainda uma das alusões essenciais da pesquisa
freudiana. Assim, é por esse caminho que enveredamos junto com o autor: em seus
questionamentos sobre os temas da religião, da ciência e da arte.
A partir disso, então, deslizamos para uma noção maior: o desamparo humano. De acordo
com ele, o desamparo acompanha os sujeitos desde o momento do nascimento, desde o primeiro
grito. Tal sensação inscreve nos seres humanos marcas que jamais serão apagadas e relações com
objetos primordiais que não podem ser resgatadas.
No entanto, ao longo da existência, os sujeitos encontram algumas maneiras de lidar com
seu desamparo: evitá-lo, enfrentá-lo e organizá-lo. De uma maneira geral, Freud as abordou durante
suas obras: religião, ciência e arte. Nosso trabalho, então, foi o de resgatar esses contornos e
sistematizá-los nessa pesquisa.
Para a realização de tal tarefa, no primeiro capítulo buscamos agrupar as orientações
freudianas sobre o desamparo. Ele é primeiramente vivido como algo da ordem biológica e depois
passa a ser apreendido como uma realidade psíquica. Veremos como se dá essa passagem subjetiva
para os sujeitos e como o desamparo instaura marcas específicas na existência humana.
Nesse primeiro capítulo, ainda procuramos trazer as revisitações que a noção alcançou
dentro da teoria psicanalítica. Para isso, partimos em busca de apontamentos de Lacan, psicanalista
que atualizou o pensamento freudiano e que, por essa razão, se faz também importante nessa
investigação. O esforço deste em formalizar o pensamento de Freud é, assim, indicado durante
nossas indagações.
Além disso, nessa primeira divisão, traremos a opinião de alguns teólogos que apontam, na
atualidade, para a questão do esvaziamento de sentido na cultura e na tradição. Sendo assim, eles se
tornam importantes aliados na busca pela verdade que nos afetou desde o momento do encontro
com as primeiras idéias freudianas. Entendemos que Freud, ao abordar a religião, instaurou um
produtivo campo de diálogo com a teologia.
11
Dessa forma, na tentativa de traçar os contornos do cenário contemporâneo, traremos nas
conclusões dos capítulos, as clarificações realizadas por pesquisadores e estudiosos que retratam o
estado atual da pesquisa sobre o desamparo e as formações humanas.
Dividimos esse trabalho em duas partes. A primeira delas, como já dissemos acima, aborda a
noção do desamparo humano e a segunda parte nos levará às respostas para tal sensação. Assim, o
segundo capítulo conta com três subdivisões: religião, ciência e arte.
Na primeira dessas divisões, trataremos das perspectivas freudianas sobre a religião. Elas
são apresentadas em três etapas objetivando organizar o desenvolvimento das idéias nas obras do
autor. Então, abordaremos a religião como neurose obsessiva; a religião como conseqüência do
complexo de Édipo; a religião como uma ilusão.
Vemos, assim, Freud sempre em busca de novos argumentos para completar sua visão
psicanalítica sobre a religião. Seu desejo de saber o levou a fazer entusiasmadas mudanças de seu
ponto de vista, que foram sendo paulatinamente somadas para rechear sua concepção crítica dos
fenômenos religiosos. Grosso modo, podemos dizer que Freud sustentou o ponto de vista de que a
religião é um recurso psicológico para evitar a realidade e contornar as limitações humanas.
Nessa abordagem, também buscamos os comentários de Lacan e Jacques Alain-Miller, que
atualmente é responsável pelas releituras das obras lacanianas no âmbito da psicanálise. Aqui,
teólogos ainda puderam acrescentar suas opiniões aos nossos questionamentos e apresentar uma
visão da religião cada vez mais utilitária e pragmática, apontando para uma religião baseada na
obtenção do bem estar e do prazer individual.
Em seguida, abordamos as noções freudianas a respeito da posição da ciência. Para isso,
percorremos a visão de universo científica e também a influência da filosofia na vida e obra de
Freud. Mostramos como a filosofia, nem sempre de maneira consentida e manifesta, participou da
construção da teoria psicanalítica do autor.
A partir disso, buscamos explicitar o interesse da psicanálise no cenário científico e trazer a
ciência como uma tentativa de enfrentar a realidade de uma maneira bastante peculiar: o
enfrentamento da verdade. Traçamos também a percepção crítica do cenário da constituição da
psicanálise e dos movimentos científicos da época em que Freud viveu, apontando como eles
marcaram as noções e escritos do autor a partir da visão de seu tempo.
A próxima resposta fica a cargo da arte e de seu modo de organizar a busca da verdade na
condição humana. A fim de alcançar essa etapa, trouxemos à tona as afirmações freudianas sobre a
inocuidade da arte para os sujeitos. Pensamos ainda ser importante exemplificar a forma como
12
Freud psicanalizou a obra dos artistas e, para isso, escolhemos a análise dos artífices Leonardo da
Vinci, Michelangelo e Dostoievski.
Posteriormente, apresentamos as releituras lacanianas a respeito da arte enquanto um modo
de organização frente à falta e o vazio da condição humana. Ainda trazemos algumas apreciações
sobre a questão da arte na contemporaneidade, tendo em vista, sem cessar, a relação com a
perspectiva freudiana.
Por fim, concluímos o fechamento dessa investigação ao buscar respostas para o que ainda
fica enigmático na questão das buscas realizadas pelos seres humanos na tentativa de aplacar o
desamparo. Então, na contemporaneidade, entrelaçamos o aumento da busca religiosa e o
esvaecimento da ciência, ressaltando a condição da psicanálise enquanto um modo de responder a
tal questão.
Vimos com Freud que o limite das disciplinas é tênue. Contudo, nosso trabalho aposta na
importância da interlocução. Caminhamos porque entendemos que há motivos para procurar penetrar
no que resta ainda de obscuro em relação a essas questões apresentadas.
Numa época em que os interditos se encontram em falência, podemos nos perguntar sobre a
condição dos desamparados na contemporaneidade. Podemos pensar que o engrandecimento da
falta de sentido nos leva as buscas mais vorazes em relação à religião. Mas que tipo de religião? A
que ela nos responde? Por que as pessoas ainda carregam as cruzes, verdadeiros símbolos
religiosos, em seus pescoços? Por que ainda fazem o sinal da cruz ao cruzarem diante de uma
igreja?
E mais: a arte pode nos responder pelo desamparo de forma análoga? E a psicanálise? Ela
pode ter seu lugar junto à busca de bem estar sentido atualmente nas formações religiosas? A
ciência pode aliviar a angústia ou causar o aumento do mal estar? Os vacilos do otimismo freudiano
já nos apontavam para a possibilidade de tais situações contemporâneas? Será que ele não foi tão
inocentemente afetado pelo otimismo de seu tempo como podemos pensar?
Enfim, essas foram algumas das importantes questões que nos fizeram caminhar ao longo desses
anos de pesquisa. Atrás de respostas, não as definitivas porque as sabemos impossíveis, fizemos nossa
caminhada. Uma verdadeira travessia calcada no entusiasmado desejo de saber o que fazer com o
desamparo que nos acomete na vida cotidiana.
13
2 O DESAMPARO HUMANO: HILFLOSIGKEIT
Nesse primeiro capítulo, guiaremos nosso caminho no sentido de alcançar a noção freudiana de
Hilflosigkeit e constituir a inteireza das idéias do autor. Deste modo, dividimos o capítulo de forma a
sistematizarmos a perspectiva de Freud, apesar de compreendermos que os pensamentos acerca do assunto
estão interligados em suas obras.
Em um primeiro momento, trataremos, então, da origem e dos significados das idéias do autor
quanto ao termo Hilflosigkeit. A seguir, abordaremos a perspectiva freudiana de um desamparo relativo ao
organismo – Hilflosigkeit orgânica. Depois, seguiremos no sentido de demonstrarmos a correlação
psíquica de tal sensação e aprofundar como se dá tal operação na constituição subjetiva dos sujeitos.
Em seguida, orientamos nossa pesquisa no sentido de estabelecer o caráter estruturante da noção
freudiana. Sendo assim, compreendemos como a Hilflosigkeit apresentada nas obras do autor traz a noção
do ser humano como aquele que estabelece, por sua natureza, uma ligação essencial com outras pessoas.
Por fim, na conclusão do capítulo, atualizamos a concepção de Freud com alguns psicanalistas e
teólogos da contemporaneidade que buscaram também nessas idéias a localização para suas proposições.
Iniciaremos, deste modo, uma forma de diálogo, pois, como dissemos na introdução, entendemos que o
autor propiciou tal oportunidade, ao abordar asserções relativas à cultura e à civilização.
14
2. 1 Origens e significados da Hilflosigkeit.
Na teoria psicanalítica de Freud, o termo alemão Hilflosigkeit foi escolhido para definir o
sentimento de desamparo. Sendo assim, Hilflosigkeit é um vocábulo que denota um estado, uma condição
do ser humano que está sem ajuda e desamparado, pois por si só não consegue se desvencilhar de
situações difíceis, necessitando que alguém o ajude.
A palavra Hilflosigkeit é muito significativa, uma vez que é composta do substantivo
“Hilfe”, que quer dizer auxílio, ajuda, proteção, amparo, do sufixo adverbial modal
“losig”, que indica carência, ausência, falta de, e ainda pela terminação “keit”, que
forma substantivos do gênero feminino, cujo correspondente em português é a
terminação “dade”. A palavra Hilflosigkeit significa, portanto, uma experiência na qual o
sujeito se encontra sem ajuda – hilflos – sem recursos, sem proteção, sem amparo. Uma
situação, portanto, de desamparo. (ROCHA, 1999, p. 334).
Desse modo, apesar de Hilflosigkeit ser um termo utilizado na linguagem usual, ele atingiu uma
acepção especial na teoria freudiana. De acordo com ele, o estado de desamparo é um dado de natureza
objetiva, uma vez que remete à impotência na qual se encontra a criança recém-nascida.
Em uma primeira abordagem, em Projeto para uma psicologia científica, o autor empregou
o termo para referenciar os estímulos internos ou externos que afetam os organismos humanos. A
resposta adequada a esses estímulos é uma ação específica
1
, que pode ser motora ou psíquica e que
dá origem a situação de desamparo.
A ação específica visa cessar o estímulo pela satisfação da necessidade ou pela fuga à
situação penosa. Se isso não acontece ou o estímulo excede a capacidade de resposta do organismo,
surge o desamparo, que pode dar origem a defesas inadequadas, ou seja, aos sintomas patológicos.
No entanto, como veremos mais detidamente no decorrer da investigação,
quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no mundo
externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de dispositivos
reflexos, de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária
para remover o estímulo endógeno. A totalidade do evento constitui então a
experiência de satisfação, que tem as conseqüências mais radicais no
desenvolvimento das funções do indivíduo (FREUD, 1895, p. 336).
1
“Termo utilizado por Freud em alguns de seus primeiros escritos para designar o conjunto do processo
necessário à resolução da tensão interna criada pela necessidade: intervenção externa adequada e conjunto
das reações pré-formadas do organismo que permitem a realização do ato”. (LAPLANCHE, 1998, p. 4).
15
Para chegar a tais elaborações, Freud partiu da impressão que lhe trouxe uma anedota cômica
contada por um colega médico. Ele justificou sua teoria na sabedoria popular e não em meras
especulações:
Há muitos anos atrás, numa ocasião em que me encontrava em um restaurante com
diversos outros jovens médicos do hospital, para uma refeição do meio-dia, um médico
assistente do departamento de obstetrícia contou-nos um episódio cômico, acontecido no
último exame para parteiras. Perguntou-se a uma candidata o que significava o
aparecimento de mecônio (excrementos) no nascimento, quando da expulsão das águas,
e ela prontamente respondeu: ‘significa que a criança está com medo’. Ela foi objeto de
risos e foi reprovada no exame. Porém, silenciosamente, tomei o partido dela e comecei
a suspeitar de que essa mulher simples, proveniente das classes mais humildes, tinha
apontado com precisão para uma correlação importante (FREUD, 1916, p. 463).
Posteriormente, a noção freudiana encontrou eco nos estudos de Otto Rank. Este foi um dico
contemporâneo de Freud e estudioso das relações entre mães e filhos, além de outros temas. Freud,
em 1922, teve seu primeiro contato com as idéias de Rank e, por isso, em o Ego e o Id, escrito um ano
depois, ele faz uma referência ao colega.
Assim, percebemos que “esse estado é semelhante àquele que Rank em Das Trauma der Geburt
(1924) descreverá como vivido pelo bebê, o qual após o nascimento é incapaz pelas próprias forças de
remover o excesso de excitação pela via da satisfação e sucumbe à Angst” (HANNS, 1996, p.73).
No entanto, Rank criou sua própria teoria, especialmente no que diz respeito ao trauma ocorrido
no nascimento. Para ele, todos os ataques de angústia posteriores ao nascimento eram “ab-reações”
2
deste
momento primordial. Com isso, ele também justificou a totalidade dos processos neuróticos e propôs uma
técnica terapêutica que estava baseada na subjugação do trauma do nascimento.
Por exemplo, “Rank fez remontar o apego à mãe ao período pré-histórico intra-uterino e indicou
assim o fundamento biológico do complexo de Édipo. Ele diverge do que foi dito [por Freud], derivando a
barreira contra o incesto do efeito traumático da angústia do nascimento” (FREUD, 1905, p. 233). É a
dimensão psíquica que Rank desprezou em sua teoria. Dessa forma, Freud revelou uma opinião que foi
além da estabelecida por Rank e fez uma reconsideração própria.
Assim, nesse ponto, vemos que ele se distanciou de Freud e não alcançou a dimensão de nosso
autor, principalmente no que concerne à função secundária da comunicação, proposta por este. Dessa
2
“Descarga emocional pela qual um sujeito se liberta do afeto ligado à recordação de um acontecimento
traumático, permitindo assim que ele não se torne ou não continue sendo patogênico. A ab-reação, que pode
ser provocada no decorrer da psicoterapia, principalmente sob hipnose, e produzir então um efeito de catarse,
também pode surgir de modo espontâneo, separada do traumatismo inicial por um intervalo mais ou menos
longo”. (LAPLANCHE, 1998, p. 1).
16
forma, a importância da ajuda alheia no momento do estado infantil não é apreciada por ele como fez
Freud. Para este, tal ajuda tem uma função importantíssima e fonte da essência do desenvolvimento
humano. No próximo passo, vamos aprofundar as colocações de Freud acerca da apreensão da
precariedade orgânica do ser humano.
2.2 A Hilflosigkeit orgânica
Seguindo nossa investigação, nos deparamos com a asserção do autor de que o desamparo tem o
caráter de uma invasão de excitação de libido no corpo que o sujeito não consegue representar
psiquicamente. Tal aumento de excitação corpórea estabelece a situação traumática que, por sua vez, lança
os seres humanos ao sentimento de desamparo.
Assim, nos deparamos com compreensões posteriores que retomam a idéia de que o desamparo
humano “é carregado de intensidade, expressa um estado próximo do desespero e do trauma.
Genericamente é um fracasso na descarga desse excesso de estímulos pela via da satisfação que acabaria
então se manifestando como irrupção de medo” (HANNS, 1996, p. 73).
Observamos, então, que o desamparo está referido, primeiramente, à idéia de maturação do
ser humano. A prematuração biológica do bebê tem estreita relação com o estado de desamparo. A
existência intra-uterina do ser humano é relativamente breve, em relação à maioria dos animais. Por
isso, a influência do mundo exterior real se acha reforçada, pois os perigos ganham uma
importância maior e, por essa razão, o bebê precisa de proteção contra eles.
De tal modo, o fator biológico está na origem das primeiras situações de perigo e cria a
necessidade de ser amado, que jamais abandonará o ser humano, como veremos adiante. No
entanto, o desamparo remete primeiramente à idéia de despreparo do organismo humano em face de
certos estímulos do meio. O desamparo indica também a ocorrência de estados subjetivos abordados
com referência ao indivíduo como um organismo físico.
O fator biológico é o longo período de tempo durante o qual o jovem da espécie humana
está em condições de desamparo e dependência. Sua existência intra-uterina parece ser
curta em comparação com a maior parte dos animais, sendo lançado ao mundo num
estado menos acabado. Como resultado, a influência do mundo externo real sobre ele é
17
intensificada e uma diferenciação inicial entre o ego e o id
3
é promovida. Além disso,
os perigos do mundo externo têm maior importância para ele, de modo que o valor do
objeto que pode somente protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida intra-
uterina é enormemente aumentado. O fator biológico, então, estabelece as primeiras
situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a criança
durante o resto de sua vida (FREUD, 1925, p. 179).
Sendo assim, Freud estabeleceu sua compreensão de que a relação com as pessoas que
cuidam do bebê tem uma função de sobrevivência. A importância desse papel, então, cria laços
absolutamente indispensáveis na formação da natureza humana.
Por esse motivo, é em relação a seus semelhantes que o ser humano aprende a
conhecer. Os complexos perceptivos emanados desses seus semelhantes serão,
então, em parte novos e incomparáveis – como, por exemplo, seus traços, na
esfera visual; mas outras percepções coincidirão no sujeito com a lembrança de
impressões visuais muito semelhantes, emanadas de seu próprio corpo,
lembranças que estão associadas a lembranças de movimentos experimentados por
ele mesmo. Outras percepções do objeto também – se, por exemplo, ele der um
grito – evocarão a lembrança do próprio grito e, com isso, de suas próprias
experiências de dor. Desse modo, o complexo do próximo se divide em duas
partes, das quais uma dá a impressão de ser uma estrutura que persiste coerente
como uma coisa enquanto que a outra pode ser compreendida por meio da
atividade da memória – isto é, pode ser reduzida a uma informação sobre o
próprio corpo do sujeito. Essa dissecação de um complexo perceptivo é descrita
como o conhecimento dele; envolve um juízo e chega a seu término uma vez
atingindo esse último objetivo
(FREUD, 19, p. 348).
Como vimos, o autor nomeou tal processo como um complexo do próximo e localizou uma
coerente estrutura da percepção de coisaDing. Esse conjunto de circunstâncias tamm define a
percepção humana do objeto que sustenta os cuidados essenciais dos sujeitos. No entanto,
analisaremos como Freud foi am dessa sua primeira consideração orgânica do desamparo.
A situação traumática de sentir falta da mãe difere num aspecto importante da situação
traumática de nascimento. No nascimento não existia qualquer objeto e dessa forma não
se podia sentir falta alguma deste. A [angústia] era a única reação que ocorria. Desde
então, repetidas situações de satisfação criaram um objeto da mãe e esse objeto, sempre
que a criança sente uma necessidade, recebe uma intensa catexia que pode ser descrita
como de ‘anseio’. A dor é assim a reação real à perda de objeto, enquanto a [angústia] é
a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por um deslocamento ulterior, uma reação
ao perigo da perda do próprio objeto. (FREUD, 1925, p. 197).
3
Ego significa o eu, que está em relação com o id, o pólo pulsional da personalidade [Nota da autora].
18
Freud, contudo, não abandonou o evento traumático objetivo e concreto do nascimento, porém ele
fez uma correlação deste com ocorrências psíquicas, como abordaremos a seguir. Para ele, há uma trama
psíquica a partir do desamparo infantil que faz com que o estado primordial seja um protótipo estruturante
para os seres humanos.
2.3 A Hilflosigkeit psicológica
No decorrer dessa pesquisa percebemos que mesmo que Freud não tenha feito uma abordagem
mais sistemática do conceito de desamparo, este tem uma importância fundamental em suas obras. Além
disso, ele se relaciona com outros conceitos que, por sua vez, também são centrais, como a angústia e o
inconsciente.
De acordo com a concepção freudiana, duas descobertas fizeram os seres humanos
modificarem sua relação com o mundo. Descobrir que as pulsões sexuais não poderiam ser
domadas e que os processos mentais são inconscientes e nossas percepções, por isso, incompletas e
insuficientes deixou os sujeitos mais próximos do sentimento de desamparo. “Juntas, representam o
terceiro golpe no amor próprio do homem, o que posso chamar de golpe psicológico” (FREUD,
1917, p.178).
Assim, a noção de que o ser humano não tinha consciência da totalidade de seus processos
mentais traz uma nova compreensão da natureza humana. A própria articulação de que há algo fora
da percepção humana e, portanto, inalcançável, está presente no conceito do inconsciente freudiano.
Por seu caráter original e pelas posteriores construções freudianas, o conceito de inconsciente é
fundamental na teoria psicanalítica e nos levará a entender a noção apresentada no presente
capítulo.
A psicanálise tem apenas a vantagem de não haver afirmado essas duas propostas
tão penosas para o narcisismo – a importância psíquica da sexualidade e a
inconsciência da vida mental – sobre uma base abstrata, mas demonstrou-as em
questões que tocam pessoalmente cada indivíduo e o forçam a assumir alguma
atitude em relação a esses problemas (FREUD, 1917, p. 179).
Assim, na tentativa de contornar suas necessidades e demandas, os seres humanos mantêm
relações entre si que servem para a constituição dos processos inconscientes de cada sujeito. Com
19
isso, eles instauram marcas na condição humana que são primárias e estabelecidas na relação com o
desejo dos outros.
No entanto, vimos que a primeira apreensão freudiana de que o desamparo tem como
contorno a situação biológica na qual se encontra o recém-nascido traz à tona também a dimensão
psíquica do processo. É seu quadro de imaturidade motora e psíquica que o coloca numa posição de
desamparo.
Com isso, localizamos, em Projeto para uma psicologia científica, a noção freudiana de que
o ser humano mantém estreita relação com seus semelhantes, especialmente com quem cuida dele, a
figura materna, na qual ele se liga como coisa. Esse conceito utilizado por Freud – coisa – funda a
percepção da diferença entre o exterior e o interior e do objeto totalmente alheio ao sujeito, o
absolutamente outro.
Esse primeiro conhecimento da realidade pelo sujeito – a apreensão do objeto materno – tem
um aspecto duplo: por um lado, o sujeito se depara como separado da mãe, porém, por outro lado,
ele permanece coeso a ela, como coisa. Em seu aspecto de separação, o objeto lhe aparece sob a
forma do estranho ou exterior.
A partir dessa experiência, o sujeito tentará reencontrar o fundamento de todos os seus
anseios e desejos. Funda-se, assim, uma relação de espera e busca pelo outro absoluto do sujeito. O
que o sujeito realmente procura, posteriormente em outros objetos, é esse objeto primordial da
experiência fundamental.
Após essa abordagem é possível continuar a percorrer a correlação que Freud faz entre a
motorische Hilflosigkeit ou desamparo motor com a psychische Hilflosigkeit, o desamparo psíquico.
A transição da dor física para a mental corresponde a uma mudança da catexia narcísica
para a catexia de objeto. Uma representação de objeto que esteja altamente catexizada
pela necessidade [pulsional] desempenha o mesmo papel que uma parte do corpo
catexizada por um aumento de estímulo. A natureza contínua do processo catexial e a
impossibilidade de inibi-lo produzem o mesmo estado de desamparo mental (FREUD,
1925, p. 197).
Assim, a impotência do recém-nascido gera, do ponto de vista econômico, um acúmulo de tensão
relativa às necessidades. O organismo humano, por ser ainda prematuro, não consegue suportar esse
aumento, ocasionando a sensação de abandono e de desprazer. Essa sensação psíquica de aflição, que, por
sua vez, dá origem a uma situação traumática, Freud a correlacionou com o sentimento de angústia.
O determinante fundamental da angústia “[e] a essência disto é uma experiência de desamparo por
parte do ego em face de um acúmulo de excitação, quer de origem externa quer interna, com que não se
20
pode lidar” (FREUD, 1925, p. 197). Nesse caso, Freud estabeleceu que o primeiro grande estado de angústia
é o próprio ato do nascimento.
De acordo com o autor, o ato de nascer é a primeira experiência angustiante de todas as pessoas,
sendo assim, a fonte e o protótipo da sensação de angústia. Assim, tal afeto surge como uma primeira
manifestação do estado de desamparo. Desse modo, podemos afirmar que o nascimento é tratado por
Freud como a experiência original do afeto de angústia e da condição de desamparo que marcará
essencialmente os sujeitos.
Na primeira vez que o autor se estendeu na relação da angústia e do nascimento, ele exprimiu uma
alusão ao desamparo humano frente aos perigos.
O próprio ato de nascimento é o perigo de que [o filho] foi salvo pelos esforços da mãe.
O nascimento é tanto o primeiro de todos os perigos de sua vida, como o protótipo de
todos os subseqüentes que nos levam a sentir [angústia], e a experiência do nascimento,
provavelmente, nos legou a expressão de afeto que chamamos de [angústia]” (FREUD,
1910, p. 156).
É, portanto, no ato de nascença que as sensações desprazerosas se revelam aos seres humanos e,
por sua vez, fundam esse caráter aflitivo e angustiante. Segundo ele, “o enorme aumento de estimulação
devido à interrupção da renovação de sangue (respiração interna) foi, na época, a causa da experiência da
[angústia]; a primeira [angústia] foi, assim, uma [angústia] tóxica” (FREUD, 1916, p. 462).
Como conseqüência, o autor apontou que o conhecimento que nos foi transmitido pelos sentidos é,
então, incorporado ao organismo de tal forma que não é possível a qualquer ser humano livrar-se do afeto
de angústia, mesmo que “ele tenha sido expulso do útero materno fora de tempo e, portanto, não tenha
experimentado o ato do nascimento” (FREUD, 1916, p. 463).
Para ressaltar a importância das colocações do autor precisamos recorrer a uma afirmação de
Freud: “quando tivermos conseguido descrever um processo psíquico em seus aspectos dinâmico,
topográfico e econômico, passaremos a nos referir a isso como uma apresentação metapsicológica”
(FREUD, 1915, p. 208).
Assim, diante da argumentação de que o desamparo origina-se de sensações físicas e liga-se
a vivências inconscientes, a partir do momento em que se dá na relação com o desejo dos outros,
podemos então estabelecer que Freud fez uma abordagem metapsicológica da noção de desamparo.
Dentro dessa abordagem, podemos aprofundar o movimento econômico e dinâmico, ao
analisarmos mais detidamente a relação do conceito de desamparo com a concepção freudiana de
21
angústia. Essa análise possibilita o entendimento maior da importância e a implicação da noção de
desamparo nas obras de Freud.
Sendo assim, podemos asserir que Hilflosigkeit é um termo que apresenta uma correlação estreita
com o vocábulo Angst.
Angst deriva-se da raiz indo-européia angh-, que se refere a ‘apertado’, ‘apertar’,
‘pressionar’, ‘amarrar’ (no alemão atual eng significa apertado). Ligadas à mesma raiz
estão as palavras ágchein do grego (estrangular), angina do latim (sensação de
sufocamento, aperto), e mais tarde angustia no latim (aperto) e ámhas- no antigo
indiano (medo, angústia). No antigo alto-alemão assume a forma angust e no médio
alto-alemão angest (HANNS, 1996, p. 63).
O termo Angst apresenta uma dificuldade quanto a sua tradução. O termo alemão significa medo,
porém ele “é traduzido para o português como ‘ansiedade’ (seguindo a vertente da tradução inglesa,
anxiety) ou como ‘angústia’ (de acordo com a tendência francesa, angoisse)” (HANNS, 1996, p. 62). No
presente trabalho, o termo será traduzido de acordo com a disposição francesa – angústia – uma vez que
essa tradução ressalta, ao nosso entender, o caráter do sofrimento humano.
No entanto, a escolha não exclui os simultâneos sentidos que o termo adquire ao longo da obra
freudiana: “o sentido de algo antecipatório (neste sentido, semelhante a ‘ansiedade’); algo que produz
sofrimento (neste sentido, semelhante a ‘angústia’); um fenômeno de caráter intenso, altamente reativo
(neste sentido, significando ‘medo’); algo que se vincula ao perigo e muitas vezes aproxima-se da fobia e
do pavor (neste sentido, assemelhando-se a pânico)” (HANNS, 1996, p. 74).
Freud fez várias elaborações sobre a angústia e inclusive estabeleceu duas teorias – a primeira e a
segunda teoria freudiana da angústia – que se entrelaçam. Porém, a atenção para a pluralidade de sentidos
é mantida mesmo com as mudanças teóricas que ocorrem nos textos freudianos.
Para alcançar essas modificações, é preciso analisar as duas noções que Freud estabeleceu quanto
ao desamparo: uma no plano genético ou motor e a outra no plano psíquico ou dinâmico. Com relação à
primeira concepção, o autor nos coloca em contato com a experiência humana de precocidade, como
vimos.
Assim sendo, podemos recapitular que o trauma do nascimento foi tratado pelo autor como a
angústia originária.
O perigo do nascimento não tem ainda qualquer conteúdo psíquico. Não podemos
possivelmente supor que o feto tenha qualquer espécie de conhecimento de que existe a
possibilidade de sua vida ser destruída. Ele somente pode estar cônscio de alguma
grande perturbação na economia de sua libido narcísica (FREUD, 1925, p. 161).
22
Como uma espécie de defesa dessa angústia original de desamparo ocorre a angústia-sinal. Esta,
por sua vez, é uma angústia que se repete nas situações traumáticas e deixa o ser humano
desamparadamente exposto a uma situação de perigo mais antiga e original.
Quando a criança houver descoberto pela experiência que um objeto externo perceptível
pode pôr termo à situação de perigo que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo que
ela teme é deslocado da situação econômica para a condição que determinou essa
situação, a saber, a perda de objeto. É a ausência da mãe que agora constitui o perigo, e
logo que surge esse perigo a criança dá o sinal da [angústia], antes que a temida
sensação econômica se estabeleça. Essa mudança constitui o primeiro grande passo à
frente na providência adotada pela criança para a sua autopreservação, representando ao
mesmo tempo uma transição do novo aparecimento automático e involuntário da
[angústia] para a reprodução intencional da [angústia] como um sinal de perigo.
(FREUD, 1925, p. 100).
Além disso, o ser humano passa pela angústia do real que é aquela pulsional e que culmina com a
elaboração do desamparo psíquico. “Quer o ego esteja sofrendo de uma dor que não pára ou
experimentando um acúmulo de necessidades [pulsionais] que não podem obter satisfação, a situação
econômica é a mesma, e o desamparo motor do ego encontra expressão no desamparo psíquico” (FREUD,
1925, p. 193). O desamparo, assim, consiste na condição estruturante da subjetividade humana, uma vez
que é marcado por vivências motoras e psíquicas.
Com isso, Freud formulou ainda que onde existe angústia deve haver algo que se teme. De acordo
com o autor, o estado de apreensão na criança é algo muito comum e que denota o caráter angustiado do
ser humano. O ato de nascimento também representa para a criança a primeira separação psíquica da mãe.
A impressionante coincidência como a [angústia] do bebê recém-nascido e a [angústia]
da criança de colo são condicionadas pela separação da mãe não precisa ser explicada
em moldes psicológicos. Essa explicação pode ser apresentada simples e
suficientemente de forma biológica, porquanto, da mesma maneira que a mãe
originalmente satisfez todas as necessidades do feto através do aparelho do próprio
corpo dela, assim agora, após o nascimento daquele, ela continua a fazê-lo, embora
parcialmente por outros meios. Há muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a
primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito
acreditar. O que acontece é que a situação biológica da criança como feto é substituída
para ela por uma relação de objeto psíquica quanto a sua mãe. (FREUD, 1925, p. 162).
Assim, como analisamos acima, o bebê, ao nascer, é ainda inteiramente impotente para satisfazer
suas próprias necessidades de maneira coordenada e eficaz. Inicialmente, o organismo humano é incapaz
de alcançar por si mesmo uma satisfação no mundo externo e, por isso, ele necessita da ajuda alheia.
23
Assim, a saída é “atrair a atenção da pessoa que auxilia (geralmente o próprio objeto de desejo) para o
estado de anseio e aflição da criança” (FREUD, 1895, p 380).
A emergência no mundo se dá através do choro e do grito que escapam ao recém-nascido, a única
forma de comunicação e que é carregada do apelo à sobrevivência. Tal situação marca a entrada no
desconhecido, revelando o trauma do nascimento e o desamparo original dos seres humanos. Porém, tais
ocorrências têm um vínculo muito preciso com as vivências psíquicas, como Freud salientou:
O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se
efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um
estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Por exemplo, pelo grito
da criança. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da
comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os
motivos morais.
(FREUD, 1895, p 336).
Tais colocações do autor nos conduzem a concluir que a relação de necessidade biológica
conduz, consequentemente, a uma dependência de amor diante de seus pares. Seria, então, a
dimensão psíquica entrando em cena como protagonista da existência humana. Portanto, além da
prematuridade biológica e das descargas pulsionais, o desamparo está recheado de ocorrências
psíquicas.
Dessa forma, a marca da alteridade na noção do desamparo humano também foi ressaltada pelo
autor. Ao dizer que a falta de amparo é a primeira fonte de todos os motivos morais, ele estabeleceu a
relação de dependência essencial do bebê com sua mãe – ou com um substituto desta – para a realização
de uma experiência de satisfação.
A sujeição, na qual se encontra o bebê, demonstra, por outro lado, a onipotência da mãe. Essa
relação, fundamental para a constituição subjetiva do psiquismo do ser humano, já revela a necessidade
humana incessante de amor e proteção, além da absoluta importância da relação humana com o desejo de
outras pessoas.
Desse modo, o sujeito, em situações de perigo, recorre a um objeto e estabelece com ele a
necessidade contínua de laços de proteção e amor. Posteriormente, ao longo das vivências de cada
sujeito, essa experiência original e primária será revivida e repetida psiquicamente, fato este que
marca essencialmente a relação dos sujeitos com suas necessidades, demandas e desejos.
A fim de estabelecer essa ocorrência dinâmica, vemos, com Freud, que existe em todos os
sujeitos uma pulsão de autopreservação que ele denominou de narcisismo. Segundo ele, o ego dos
24
seres humanos é desenvolvido através das pulsões auto-eróticas que estão presentes desde o começo
da vida humana. É preciso que haja uma passagem dessa relação narcísica para que o indivíduo se
ligue a seus objetos, com os quais ele cria seus laços de amor.
Os laços de amor derivam dessas experiências de satisfação humana presentes desde o
momento do nascimento e são tentativas de reencontrar o objeto primordial. A prematuridade cria
uma relação de dependência deste com a mãe para que esta oriente primeiramente a satisfação das
necessidades do bebê. “As primeiras satisfações sexuais auto-eróticas são experimentadas em
relação com as funções vitais que servem à finalidade de autopreservação” (FREUD, 1914, p. 103).
Essa relação é registrada pelas palavras e nomeações que são proferidas por quem cuida do
recém-nascido. Elas são dirigidas a este e proporcionam, assim, as condições para a constituição do
sujeito. Desse modo, as necessidades do bebê se transformam em demandas endereçadas e que têm
como objetivo final o surgimento do desejo da relação amorosa como garantia de sobrevivência.
Assim sendo, os primeiros objetos de amor de uma criança são aquelas pessoas que a
alimentam, cuidam e protegem. A esse tipo de escolha objetal Freud deu o nome de anaclítico ou
ligação. É um tipo de ligação que caminha ao lado da relação humana do narcisismo primário, no
qual a libido é dirigida para o próprio ego.
É, então, a partir dessa relação primordial de um sujeito com o objeto que surgirá uma
relação de apoio que tem como fim o reencontro com um modelo de funcionamento anteriormente
experimentado nas experiências de autopreservação. Essa relação narcísica, no entanto, perde seu
caráter de exclusividade ao longo do desenvolvimento humano, mas ela marca estruturalmente os
sujeitos e cria neles o que Freud denominou de ego ideal.
Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (self-love) desfrutado na
infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a
esse novo ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda
perfeição de valor. Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma
vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que
outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua
infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e
pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter
aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele
projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de
sua infância na qual ele era o seu próprio ideal. (FREUD, 1917, p. 111)
4
.
4
Não encontramos em Freud uma distinção conceitual entre ego ideal e ideal do ego. Porém, depois dele,
alguns autores retomaram esses termos e diferenciaram duas formações psíquicas diferentes. O ego ideal ou
eu ideal é “uma formação intrapsíquica que certos autores, diferenciando-a do ideal do ego, definem como
um ideal narcísico de onipotência forjado a partir do modelo do narcisismo infantil”. (LAPLANCHE, 1998,
25
A fim de concluir para enveredarmos para o próximo passo, inteiramos a noção freudiana de
desamparo tanto do ponto de vista biológico quanto psíquico. Seguiremos, então, para estabelecer que tais
idéias nos levam a determinar que o desamparo é uma experiência comum e inerente a todos e a cada um
dos seres humanos.
2.4 A Hilflosigkeit ontológica
Na intenção de apresentar a proposição ontológica da noção freudiana, sintetizaremos
novamente as principais articulações do autor. Assim, vimos que a realidade da incapacidade
biológica é um fato estruturante da condição humana, desde o nascimento. Dessa forma, entregue
ao desejo de seus pais, o bebê não tem recursos próprios para garantir sua sobrevivência, ou seja,
ele é hilflos.
Freud tratou das primeiras experiências de satisfação e as vinculou com a relação do sujeito
com o próximo. Desse modo, é através de um outro ser humano semelhante que se dá à primeira
apreensão da realidade para o sujeito e seu processo de constituição.
Portanto, não é somente por pura referência à condição biológica que o sujeito se constitui.
A referência ao outro é decisiva para ele e marcará suas relações vida afora. O desamparo não se
refere apenas ao fato do recém-nascido ser fisicamente frágil ou a sua total incapacidade de
sobreviver sem ajuda.
Então, conseqüentemente, essa relação marcará de forma estruturante também a posição do
sujeito quanto à formação de suas idéias e ilusões. Com isso, ao longo da vida, existir em sociedade
se torna um processo que depende dos conteúdos psíquicos registrados na essência humana. Tal
p. 139). O ideal do ego ou ideal do eu é uma “expressão utilizada por Freud no quadro de sua segunda teoria
do aparelho psíquico. Instância da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do
ego) e das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos. Enquanto instância
diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-se”. (LAPLANCHE,
1998, p. 222).
26
experiência é inaugurada teoricamente por Freud e ela nos põe em contato com um novo tipo de
laço social, que é o do sujeito com seus objetos e desejos.
Freud expõe claramente essa constituição psíquica e afirma ainda que as primeiras relações
humanas já têm como objetivo o sentimento de amor, que apresentamos acima como marca
primordial que acompanha os seres humanos durante a vida.
O núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é isso que
comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no amor sexual, com a
união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso – que, em qualquer caso, tem
sua parte no nome ‘amor’ –, por um lado, o amor próprio, e, por outro, o amor
pelos pais e pelos filhos, a amizade e o amor pela humanidade em geral, bem
como a devoção a objetos concretos e a idéias abstratas (FREUD, 1921, p. 116).
Esse amor, no sentido amplo, estabelece os laços essenciais entre as pessoas e coincide com
o conceito filosófico de Platão – Eros. São, portanto, os laços emocionais que também unem os
grupos e permitem que as pessoas vivam em sociedade e estabeleçam suas parcerias.
Freud exemplifica tal situação com um grupo artificial: a Igreja. Segundo ele, na Igreja
Católica Apostólica Romana ocorre a ilusão de que Cristo ama a todos de forma equivalente. Dessa
maneira, todas as exigências são feitas em nome de um amor democrático e dos laços libidinais
desenvolvidos entre os indivíduos.
O autor entende que “libido é expressão extraída da teoria das emoções. Damos esse nome à
energia, considerada como uma magnitude quantitativa (embora na realidade não seja
presentemente mensurável), daquelas [pulsões] que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido
sob a palavra ‘amor’”
(FREUD, 1921, p. 115).
Sendo assim, ele entendia que a perda desses laços pode levar o sujeito ao medo e ao pânico,
uma vez que remetem à situação original de desamparo.
A libido se liga à satisfação das grandes necessidades vitais e escolhe como seus
primeiros objetos as pessoas que têm uma parte nesse processo. E, no
desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos
indivíduos, só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a
modificação do egoísmo em altruísmo (FREUD, 1921, p. 130).
Com isso, o autor completa sua noção de que o desamparo é a condição última e estruturante dos
sujeitos. Freud, então, elaborou que, além do nascimento, as necessidades endógenas, como a fome, a
27
respiração e a sexualidade; os medos, os perigos externos e os pulsionais; as perdas, as separações e os
desprazeres seriam situações que conduziriam à vivência da sensação radical de desamparo.
Tais situações traumáticas mudam de acordo com a época da vida. “[Estas], em breves linhas, são
os seguintes: o nascimento, a perda da mãe como um objeto, a perda do pênis, a perda do amor do objeto,
a perda do amor do superego” (FREUD, 1925, p. 100). De acordo com o autor, as exigências da vida são
as condições às quais os seres humanos estão expostos e que os fazem se movimentar para alcançar a
saída do estado de desamparo.
Freud estabeleceu com muita propriedade, em sua teoria da libido, a fixação psíquica infantil. Para
ele, na primeira infância, o filho se sente atraído pela mãe e a filha pelo pai. Essas fantasias incestuosas
precisam ser superadas para que se realize psiquicamente a passagem pela autoridade paterna (FREUD,
1905, p. 234).
Nessa complexa trama edípica, ele afirmou que o medo da perda do amor dos pais justifica as
demandas de amor endereçadas a eles e o sentimento de desamparo frente à falta, pois essa primeira
relação amorosa traz em si um caráter de impossibilidade por ser margeada pela barreira do incesto.
Assim, os pais ensinam os filhos a amar e também lhes apresentam as impossibilidades dessa
condição, mostrando que não se pode ter tudo e ser completo nem mesmo nessa relação primordial.
Vemos, então, que não se tratam simplesmente de elaborações físicas, mas sim de uma abrangente
elaboração psíquica – que Freud denominou de complexo de Édipo – que ocorre desde as primeiras
relações amorosas humanas e determina o caráter ontológico da noção freudiana.
2.5 Conclusão do capítulo
Apresentadas as principais colocações freudianas, podemos fazer um salto que nos leva a Lacan,
analista que revisitou com grande interesse a noção de desamparo. Assim como Freud, ele tamm inicia
seus estudos sobre o tema oferecendo suas compreensões sobre a insuficiência psicomotora do recém-
nascido.
Mas essa relação com a natureza é alterada, no homem, por uma certa deiscência do
organismo em seu seio, por uma Discórdia primordial que é traída pelos sinais de mal-
estar e falta de coordenação motora dos meses neonatais. A noção objetiva do
inacabamento anatômico do sistema piramidal, bem como de certos resíduos humorais
28
do organismo materno, confirma a visão que formulamos como o dado de uma
verdadeira prematuração específica do nascimento no homem. (LACAN, 1998, p. 100).
A prematuração humana deixa marcas que não serão superadas, no entender do autor. Porém, ele
vai além e também ressalta os eventos psíquicos, que marcam a vida de cada sujeito desde o nascimento, e
que instauram uma espécie de vazio ou falta fundamental. “O momento mais decisivo da angústia de que
se trata, a angústia do desmame, não é propriamente que, nesse momento, o seio faça falta à necessidade
do sujeito, mas, antes, que a criança pequena cede o seio a que está apensa como se fosse uma parte dela
mesma” (LACAN, 2005, p. 340).
Com isso, ele interpreta que nenhum cuidado materno pode aplacar o mal-estar que tal perda
ocasiona nos seres humanos. No desmame, há a separação da criança com a mãe que não pode ser
superada. A mãe marca presença enquanto um objeto de satisfação primordial e exterior primeiro do
sujeito, porém, este se torna, a partir do desmame, um objeto perdido; perdido desde sempre.
É na possibilidade de agarrar ou soltar esse seio que se produz o momento de surpresa
mais primitivo, às vezes apreensível na expressão do recém-nascido, na qual passa pela
primeira vez o reflexo – relacionado com esse órgão que é muito mais que um objeto,
que é o próprio sujeito – de algo que serve de suporte, de raiz para o que, num outro
registro, foi chamado de desamparo (LACAN, 2005, p. 340).
Sendo assim, no primeiro momento, a mãe e a criança participam na cena como um só corpo. O
bebê sobrevive a partir do desejo da mãe ou de quem deseja por ele e aprende a decodificar seus gritos e
choros, numa verdadeira experiência de assujeitamento. Somente em um momento posterior, quando a
experiência de satisfação é extinta, a falta se inscreve no sujeito de maneira radical. Tal falta traz para o
centro da discussão lacaniana a dimensão psíquica do desamparo.
Lacan toma a noção freudiana de coisa, abordado acima, e faz sua releitura criando um conceito
importante em seus escritos, das Ding – A Coisa. Essa Coisa, da qual todas as formas criadas pelo homem
pertencem ao registro da sublimação, será sempre representada por um vazio.
Dessa forma, Lacan lembra ainda que Winnicott observara tal experiência na infância, quando cria
o termo objeto transicional para tratar dos objetos que visam substituir a mãe, um objeto natural. “Trata-se
de um pedacinho arrancado de alguma coisa, quase sempre uma fralda, e é bem visível o suporte que o
sujeito encontra nele. O sujeito não se desfaz desse objeto, fortifica-se nele” (LACAN, 2005, p. 341).
De acordo com Lacan, portanto, também a angústia é um sinal da condição do desamparo. Este
sentimento, por sua vez, representa uma especificidade estruturante na vida psíquica dos sujeitos. O que
29
Lacan nos apresenta de novo é que a dimensão do vazio está desde sempre na marca humana e esse
reencontro não pode se dar, na medida em que não há como alcançar essa relação primitiva e original.
Com ele, podemos afirmar que é da natureza do objeto estar perdido e ele jamais será
reencontrado. Essa tentativa de reencontro do outro absoluto é sempre e por si só frustrada. Assim,
estabelecemos com a releitura lacaniana que o vazio e a falta estão presentes de maneira radical e decisiva.
No entanto, em torno desse vazio é preciso que os sujeitos encontrem, cada qual com sua peculiaridade,
modos de organização psíquica.
No cenário contemporâneo, procuramos alguns psicanalistas e teólogos que têm revisado a noção
de desamparo e encontramos apontamentos que nos levam a considerações relevantes sobre a
potencialização dessa falta estruturalmente humana.
Primeiramente, nos deparamos, então, com psicanalistas que partem das idéias freudianas e as
tomam por base para leituras atuais que tratam do esvaziamento de sentido em relação à vida humana.
Localizamos com facilidade, em nosso cotidiano, desamparados de todas as ordens
deixando-se seduzir facilmente por promessas de restauração, filosófica, teológica,
psicológica, política ou de qualquer outra ordem, criando suas próprias idealizações de
valor, unidade, fraternidade, caridade, em processo de identificação com seres, pessoas
ou instituições que forneçam um campo projetivo suficientemente capaz de sustentar
suas aspirações pulsionais e racionais de toda ordem de significados (RUPRECHT;
SOUZA, 2006, p. 158).
Tal fato apresenta como umas das conseqüências um aumento da sensação que Freud nomeou de
desamparo. Com isso, o desamparo está presente das mais variadas formas e são revelados por diversas
nuanças:
[...] Sinais desse desamparo atual estão nas ilusões dos enormes progressos no campo da
tecnologia e do desenvolvimento econômico (só acessível às minorias privilegiadas), na
poluição e destruição da natureza, na monstruosidade da desigualdade social, na
indústria de morte pelas armas e pelas drogas, na decepção com as ideologias e utopias
sociais que fracassaram em suas bandeiras de humanização, na instrumentalização das
pessoas a serviço das grandes corporações multinacionais e no fracasso dos projetos
pessoais para uma melhor qualidade de vida em função das aquisições materiais e
culturais (RUPRECHT; SOUZA, 2006, p. 158).
Psicanalistas percebem, assim, o esvaziamento dos valores morais, a decadência dos ideais
culturais e o surgimento de sujeitos cada vez mais precários subjetivamente. Com isso, os apontamentos
caminham na seguinte direção:
30
[a] possibilidade de instituirmos um caminho sem retorno ao nos apresentarmos
passivos frente à tendência ao esvaziamento do universo simbólico e da tradição. As
conseqüências diretas desta complacência determinariam um mundo em que reinaria o
individualismo absoluto, assim como o descrédito frente ao próximo, a falência da
autoridade constituída, o desrespeito à lei, o aumento da violência e da intolerância
(PAOLI, 2006, p. 289).
Por sua vez, teólogos tamm apontam na mesma direção e alertam como a cultura
contemporânea tem servido para aumentar o sentimento de desamparo humano e de insuficiência.
O modo cultural hedonista de viver mina a racionalidade funcional, os valores de
utilidade e produtividade que sustentam a ordem econômica. O gigantismo burocrático
afoga o indivíduo. O pluralismo da sociedade e o relativismo das cosmovisões
produzem o sentimento de abandono, solidão, perda de lar e de sentido (LIBANIO,
1998, p. 65).
Tal situação é vista pela teologia como um processo que vem sendo desenvolvido desde os séculos
passados e que culmina hoje com um aumento generalizado de descrenças.
Em nome da paz e da felicidade humana, no século XX a modernidade promoveu
guerras, genocídios, massacres, destruição material e moral de povos inteiros, sempre
em nome de uma ideologia de felicidade. Daí uma descrença generalizada em todos os
sistemas e todas as promessas. Cada um busca a sua felicidade por si mesmo sem
recebê-la de partido, movimento, ideologia (COMBLIN, 1998, p. 147).
Concluído esse primeiro percurso no qual desvendamos a noção freudiana de desamparo, as
releituras posteriores e as colocações pós-modernas, acreditamos no caráter extremamente relevante da
noção freudiana e apostamos na atualidade de suas elaborações a respeito do tema.
A partir disso, emergem questões que embasam e justificam o presente trabalho. Duas delas se
revelam essenciais e guiam as visitações dessa pesquisa. Assim, acreditamos que é preciso ir ao mestre e
fundador da psicanálise, pois somente uma volta às origens pode render respostas precisas que, por sua
vez, nos permitam ir além e construir algo novo.
Desse modo, nos perguntamos, então, quais seriam as saídas propostas por Freud para o estado de
desamparo no qual o ser humano constitucionalmente se encontra? Encontrando a resposta para a primeira
pergunta, precisamos apresentar a relevância dessas saídas e nos indagar: em que medida elas ainda nos
servem para analisar o cenário contemporâneo?
Nas pistas de Freud, encontramos em O mal estar na civilização, a citação de dois versos de
Goethe, a partir dos quais este analisa a relação entre a ciência, a arte e a religião. Os versos citados diziam
31
que “aquele que tem ciência e arte, tem também a religião: o que não tem nenhuma delas, que tenha
religião” (FREUD, 1929, p.93).
A partir de tal citação, Freud elaborou que essas seriam as três grandes realizações dos seres
humanos e, portanto, as três saídas humanas significativas para o estado de desamparo. Em função de tal
elaboração, essas três respostas possíveis para a problemática do desamparo serviram de norte para as
investigações freudianas e, consequentemente, para o desenvolvimento da presente pesquisa.
De acordo com Freud, tais saídas podem conviver mutuamente e funcionam como medidas
paliativas que aliviam a aridez da vida. Em função dessa afirmação freudiana, o presente trabalho busca
analisar, a partir de então, cada uma dessas realizações e a possível ligação que estas apresentam com a
noção do desamparo humano.
32
3 AS RESPOSTAS AO DESAMPARO HUMANO
3.1 Religião e Desamparo
Com o objetivo de alcançar o presente estudo são utilizados os textos de Freud relativos à
questão da religião, especialmente Atos obsessivos, Totem e tabu, O futuro de uma ilusão, O mal-
estar na civilização e Moisés e o monoteísmo. Os escritos percorrem as noções do autor sobre
religião e expõem suas mudanças de posicionamento ao longo de suas obras.
No começo, ele traz a idéia de que a religião é uma espécie de neurose obsessiva, que se
origina do sentimento de culpa do ser humano. Será, por isso, analisado o artigo Atos obsessivos e
práticas religiosas, a incursão inicial do autor na psicologia da religião, que compara as práticas
religiosas com os atos obsessivos, ambos geradores de culpa, angústia e produtores de neurose
compulsiva na humanidade.
No passo seguinte, ele traz uma nova chave interpretativa, que é baseada em sua noção de
complexo de Édipo, que remete à figura do pai e à origem da religião. No texto Totem e tabu, a
religião é abordada como uma projeção da imagem do pai para uma figura simbólica mais
abrangente e idealizada: Deus.
Por fim, Freud trata a religião como uma ilusão desenvolvida pelo ser humano para
amenizar sua impotência frente às forças da natureza. Nesse ponto, será analisado, essencialmente,
o trabalho de S. Freud em O futuro de uma ilusão e O mal-estar na civilização.
Em Moisés e o monoteísmo, visualiza-se ainda as relações do desamparo com a perda da
totalidade do grupo e da figura do pai.
5
No entanto, em todas as abordagens faz-se o trabalho de
vincular a noção de desamparo com as concepções do autor sobre a religião.
5
A divisão adotada no presente trabalho é proposta por J.H. Barros de Oliveira em seu texto citado nas referências.
33
3.1.1 Religião como neurose obsessiva
Em 1907, Freud deu o primeiro passo para a sua vasta pesquisa sobre a psicologia da
religião. A primeira vez que ele tratou do tema foi em seu texto Atos obsessivos e práticas
religiosas. Nesse escrito, ele compara as práticas religiosas com os sintomas obsessivos, naquela
época ainda pouco estudados e conhecidos.
Da observação feita pelo autor das semelhanças e diferenças existentes entre os cerimoniais
de devoção dos crentes e os rituais obsessivos surgiu sua primeira importante afirmação sobre o
assunto:
É fácil perceber onde se encontram as semelhanças entre cerimoniais neuróticos e
atos sagrados do ritual religioso: nos escrúpulos de consciência que a negligência
dos mesmos acarreta, na completa exclusão de todos os outros atos (revelada na
proibição de interrupções) e na extrema consciência com que são executados em
todas as minúcias. Mas as diferenças são igualmente óbvias, e algumas tão
gritantes que tornam qualquer comparação um sacrilégio: a grande diversidade
individual dos atos cerimoniais [neuróticos] em oposição ao caráter estereotipado
dos rituais (as orações, o curvar-se para o leste, etc.), o caráter privado dos
primeiros em oposição ao caráter público e comunitário das práticas religiosas, e
acima de tudo o fato de que, enquanto todas as minúcias do cerimonial religioso
são significativas e possuem um sentido simbólico, as dos neuróticos parecem
tolas e absurdas. Sob esse aspecto a neurose obsessiva parece uma caricatura, ao
mesmo tempo cômica e triste, de uma religião particular, mas é justamente essa
diferença decisiva entre o cerimonial neurótico e o religioso que desaparece
quando penetramos, com o auxílio da técnica psicanalítica de investigação, no
verdadeiro significado dos atos obsessivos (FREUD, 1907, p.110).
O autor seguiu desvendando o mecanismo de funcionamento da neurose obsessiva, porém
sempre atento em compará-lo com a situação religiosa. Ele defendeu ainda que existia uma espécie
de defesa que funcionava como uma medida protetora, no caso dos cerimoniais.
Ele comparou ainda que:
[O] sentimento de culpa dos neuróticos obsessivos corresponde à convicção dos
indivíduos piedosos de serem, no íntimo, apenas miseráveis pecadores; e as
práticas devotas (tais como orações, invocações, etc.) com que tais indivíduos
precedem cada ato cotidiano, especialmente os empreendimentos não habituais,
parecem ter o valor de medidas protetoras ou de defesa (FREUD, 1907, p. 115).
34
Essas medidas, na verdade, são supressões de pulsões
6
. No caso da religião, Freud analisou
que não são exclusivamente, como na neurose, supressões das pulsões sexuais, mas sim de pulsões
egoístas e socialmente perigosas que se realizam num processo inadequado e interminável.
Sendo assim, já nessa primeira apresentação das idéias freudianas, é possível verificar a
relação que o autor apontou entre as práticas religiosas e o sentimento de desamparo. As exigências
éticas que eclodem na convivência social estabelecem desde o início um lugar preciso na teoria de
Freud.
Desse modo, ele apresentou a idéia do ser humano fragilizado e capaz de suprimir suas
próprias pulsões a fim de obter proteção e estabelecer sólidos laços emocionais que o ampare. Em
psicanálise, o autor nos apresentou, assim, a idéia de uma nova forma de inserção do laço social,
permeada por exigências éticas que objetivam a garantia de laços amorosos.
Diante das observações do autor, podemos ressaltar ainda que, na primeira abordagem
freudiana, a neurose obsessiva foi apresentada como o correspondente patológico da formação de
uma religião.
Freud concluiu que “podemos atrever-nos a considerar a neurose obsessiva como o correlato
patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma religiosidade individual
e a religião como uma neurose obsessiva universal” (FREUD, 1907, p.130). Então, entendemos,
com ele, que a religião tem o objetivo de substituir a renúncia ao impulso sexual e a neurose
acontece sob o fardo dos deveres, que são sempre imperativos e categóricos.
3.1.2 Religião como conseqüência do Complexo de Édipo
Na continuidade de suas pesquisas, o autor amplia seu pensamento sobre a origem da
religião e da moralidade, ao buscar explicações históricas para o desenvolvimento destas,
atualizando, assim, sua leitura acerca do assunto.
6
Trieb, tal qual usado em alemão, entrelaça [três] momentos, que conduzem do geral ao singular. Abarca um princípio
maior que rege os seres viventes e que se manifesta como força que coloca em ação os seres de cada espécie; que
aparece fisiologicamente ‘no’ corpo somático do sujeito como se brotasse dele e o aguilhoasse; e, por fim, que se
manifesta ‘para’ o sujeito, fazendo-se representar ao nível interno e íntimo, como se fosse sua vontade ou um
imperativo pessoal. No texto freudiano também, a palavra mantém estas características de uso” (HANNS, 1996, p.338).
35
Em 1912, com Totem e tabu, ele recorreu ao estado de natureza da horda humana primitiva,
descrita por Charles Darwin, na qual aconteceu um movimento natural das espécies, para tentar
ilustrar a ocorrência da passagem mítica para o estado cultural.
Essa tentativa baseia-se numa hipótese de Charles Darwin sobre o estado social
dos homens primitivos. Deduziu ele dos hábitos dos símios superiores, que
também o homem vivia originalmente em grupos ou hordas relativamente
pequenos, dentro dos quais o ciúme do macho mais velho e mais forte impedia a
promiscuidade sexual (FREUD, 1912a, p. 152).
A tal afirmação, Freud somou também seus conhecimentos adquiridos através dos estudos
sobre a antropologia social, e supôs que houve uma horda, com uma estrutura de poder
hierarquizada, na qual o poder teria sido exercido por um homem forte, onipotente e pai de todos.
A onipotência do pai se concretizava porque ele detinha o privilégio exclusivo do gozo
sexual, uma vez que todas as mulheres do grupo estavam submetidas a ele. Seu poder seria, então,
tirânico e opressivo, com a punição, pela morte ou pela expulsão da tribo, daqueles que se
rebelassem.
A insatisfação com este monopólio do prazer foi o que levou os demais homens, os filhos, a
se unirem para pôr fim ao despotismo do chefe. Todos juntos tiveram mais força e o resultado dessa
associação foi o assassinato do pai.
Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e
devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a
coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer
individualmente. (Algum avanço cultural, talvez o domínio de uma nova arma,
proporcionou-lhes um senso de força superior). Selvagens canibais como eram,
não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima. O
violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do
grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada
um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o
mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição e uma
comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas
coisas: da organização social, das restrições morais e da religião (FREUD, 1912a,
p. 170).
Depois de tal ato, os filhos ficaram entregues ao sentimento de culpa e de angústia, na
medida em que, se tal fato fosse continuamente repetido, o resultado seria a extinção contínua da
espécie. Segundo o autor, essa relação conflituosa entre filho e pai passou a ser um fator que gerava
um denso sentimento de culpa nos filhos. Este sentimento estava recheado pelo desejo inconsciente
36
de extinguir o pai rival e castrador que, por sua vez, leva a uma conseqüente sensação de desamparo
por causa da perda dos laços de amor e união.
Com isso, houve a necessidade de que fossem criados dois interditos para a proteção da vida
em comum e para livrar os filhos do estado de desamparo. Deste mito, Freud deduz a universalidade
de dois desejos recalcados: o incesto e o desejo de matar o Pai, cuja expressão se apresenta na teoria
freudiana como complexo de Édipo, como dissemos no primeiro capítulo. Surgem, então, em
contrapartida, os tabus do incesto e da exogamia.
Tal situação também acaba transformando o pai eliminado em símbolo de adoração, na
medida em que a intensa culpa produz nos filhos uma necessidade constante de reparação. Esta
necessidade também se manifesta nos mitos e ritos religiosos, no entender de Freud:
Por muito tempo depois, os sentimentos fraternais sociais, que constituíram a base
de toda a transformação, continuaram a exercer uma profunda influência no
desenvolvimento da sociedade. Encontraram expressão na santificação do laço de
sangue, na ênfase dada à solidariedade por toda a vida dentro do mesmo clã.
Garantindo assim a vida uns dos outros, os irmãos estavam declarando que
nenhum deles devia ser tratado por outro como o pai fora tratado por todos em
conjunto. Estavam evitando a possibilidade de uma repetição do destino do pai. À
proibição, baseada na religião, contra a morte do totem juntou-se então à proibição
socialmente fundamentada contra o fratricídio. Foi somente muito depois que a
proibição deixou de limitar-se aos membros do clã e assumiu a forma simples:
‘Não matarás’. A horda patriarcal foi substituída, em primeira instância, pela
horda fraterna, cuja existência era assegurada pelo laço consangüíneo. A
sociedade estava agora baseada na cumplicidade do crime comum; a religião
baseava-se no sentimento de culpa e no remorso a ele ligado; enquanto a
moralidade fundamentava-se parte nas exigências dessa sociedade e parte na
penitência exigida pelo sentimento de culpa (FREUD, 1912a, p. 174).
Então, seria neste parricídio original que estaria a origem da vida social igualitária deduzida
por Freud. Daí o seu aspecto sagrado, que pode ser identificado nos seus produtos: os interditos que
levam à proibição da morte e do incesto. A hipótese da horda primeva e do assassinato do pai
levaram o autor a elaborar sua teoria sobre a origem da totalidade das instituições culturais e
sociais.
Foram assim criadas características que daí por diante continuaram a ter uma
influência determinante sobre a natureza da religião. A religião totêmica surgiu do
sentimento filial de culpa, num esforço para mitigar esse sentimento e apaziguar o
pai por uma obediência a que ele fora adiada. Todas as religiões posteriores são
vistas como tentativas de solucionar o mesmo problema. Variam de acordo com o
estágio de civilização em que surgiram e com os métodos que adotam; mas todas
têm o mesmo fim em vista e constituem reações ao mesmo grande acontecimento
37
com que a civilização começou e que, desde que ocorreu, não mais concedeu à
humanidade um momento de descanso (FREUD, 1912a, p. 173).
Assim, a psicanálise, ao revelar que o animal totêmico é um substituto do pai e estabelecer
que esse sistema totêmico fosse o produto das condições em jogo do que Freud denominou de
complexo de Édipo, demarca a importância da relação dos seres humanos com o pai, ao longo do
desenvolvimento histórico da humanidade.
Seja o que for, descobrimos que a ambivalência implícita no complexo-pai
persiste geralmente no totemismo e nas religiões. A religião totêmica não apenas
compreendia expressão de remorso e tentativas de expiação, mas também servia
como recordação do triunfo sobre o pai. A satisfação por esse triunfo levou à
instituição do festival rememorativo da refeição totêmica, no qual as restrições da
obediência adiada não mais se mantêm. Assim, tornou-se um dever repetir o crime
do parricídio muitas vezes, através do sacrifício do animal totêmico, sempre que,
em conseqüência das condições mutantes da vida, o fruto acalentado do crime – a
apropriação dos atributos paternos – ameaçava desaparecer. Não nos surpreenderá
descobrir que o elemento de rebeldia filial também surge nos produtos posteriores
da religião, frequentemente sob os mais estranhos disfarces e transformações
(FREUD, 1912a, p. 174).
De acordo com Freud, essa relação dos sujeitos com o pai traçou ainda a criação do conceito
de Deus que, por sua vez, assume o controle de toda a vida religiosa. Para ele, a relação de cada
pessoa com Deus depende da relação com o pai de carne e osso, na medida em que ele defendeu
que Deus é um pai glorificado. “Assim, embora o totem possa ser a primeira forma de representante
paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai reconquistou sua aparência humana”
(FREUD, 1912a, p. 176).
Então, o autor nomeia tal situação de saudade do pai e conclama que tal afeto está na raiz de
toda forma de religião.
Em conseqüência de mudanças culturais decisivas, a igualdade democrática
original que havia predominado entre os membros do clã tornou-se insustentável e
desenvolveu-se ao mesmo tempo uma inclinação, baseada na veneração sentida
por determinados seres humanos, a reviver o antigo ideal através da criação de
deuses (FREUD, 1912a, p. 177).
Desse modo, o conceito de Deus foi sendo de tal forma exaltado que as pessoas somente
podiam acessá-lo através do sacerdote, que tem, por sua vez, o papel de intermediário. Juntamente
com isso, os reis divinos passaram a existir na estrutura social e criaram o sistema patriarcal no
Estado. Tais deslocamentos trouxeram o domínio da autoridade ao seu ponto máximo e a negação
38
do grande crime que originou o começo da sociedade e do sentimento de culpa (FREUD, 1912a, p.
178).
Porém, para Freud, no decorrer do desenvolvimento histórico das religiões, o sentimento de
culpa e a rebeldia do filho nunca deixaram de existir como pano de fundo. Assim, ele analisou a
divindade-filho que teria um sucesso permanente: Cristo. Este, ao ser morto, redimiu todos os seres
humanos do parricídio original, sacrificando a própria vida, tirando de seus irmãos a culpa do
pecado primordial e repetindo, assim, a eliminação do pai.
Sendo assim, a crucificação de Jesus é a punição da morte anterior, que é a morte do pai. De
acordo com Freud, “na doutrina cristã, assim, os homens estavam reconhecendo da maneira mais
indisfarçada o ato primevo culpado, uma vez que encontraram a mais plena expiação para ele no
sacrifício desse filho único” (FREUD, 1912a, p. 157).
No entanto, na perspectiva freudiana, a ambivalência não desaparece, uma vez que, ao
mesmo tempo em que oferece a expiação ao pai, também opõe a ele a realização de seus desejos, ao
assumir o lugar deste pai. Neste exemplo analisado por Freud, o filho almeja o lugar do pai,
deslocando a religião paterna e promovendo uma nova refeição totêmica, que passa a ser a carne e o
sangue da eucaristia cristã. Dessa forma, a eucaristia cristã pode ser vista como uma repetição do
ato de eliminar o pai.
Tal repetição da comunhão – sangue e carne de Cristo – é, por analogia, a mesma ocorrência
da refeição totêmica, já que anualmente os membros do clã do totem matavam e devoravam esse
totem em um acontecimento de festim. Esses rompimentos dos laços sociais que mantinham o
grupo coeso apontam para um caráter ambivalente que permeia a relação com o pai e a lei e que
Freud, posteriormente, analisou que permanece na religião.
Além disso, o autor acrescenta ainda que as religiões não desprezam o papel desempenhado
pelo sentimento de culpa na civilização:
[Elas] alegam redimir a humanidade desse sentimento de culpa, a que chamam de
pecado. Da maneira pela qual, no cristianismo, essa redenção é conseguida – pela
morte sacrificial de uma pessoa isolada, que, desse modo, toma sobre si mesma a
culpa comum a todos –, conseguimos inferir qual pode ter sido a primeira ocasião
em que essa culpa primária, que constitui também o primórdio da civilização, foi
adquirida (FREUD, 1929, p. 138).
Dessa forma, Freud indagou qual a relação existente entre o totemismo e a religião:
39
Qual é o lugar da religião com relação a isso? Penso que estamos completamente
justificados em encarar o totemismo, com sua adoração de um substituto paterno,
com sua ambivalência, demonstrada pela refeição totêmica, com sua instituição de
festivais comemorativos e de proibições cuja infração era punida pela morte,
estamos justificados, dizia eu, em encarar o totemismo como a primeira forma em
que a religião se manifestou na história humana, e em confirmar o fato de ele ter
sido vinculado, desde o início, aos regulamentos sociais e às obrigações morais.
Aqui, só podemos fornecer o levantamento mais resumido dos outros
desenvolvimentos da religião. Eles, sem dúvida, progrediram paralelamente com
os avanços culturais da raça humana e com as modificações na estrutura das
comunidades humanas (FREUD, 1938a, p. 102).
Ainda que Freud estivesse atento na complexidade dos fenômenos em questão, ele afirmou
esse novo fator às fontes da religião ao defender que a relação de desamparo que se estabelece entre
os seres humanos e o pai está na base da origem da religião, da moral, da sociedade e da arte
(FREUD, 1912a, p. 186).
De acordo com ele, se em algum momento existiu uma ordem na qual o pai tinha a
totalidade na organização do grupo social, depois, quando os filhos se rebelam contra essa
autoridade e derrotam o pai, houve uma significativa perda dos laços emocionais que instaurou a
situação de desamparo na humanidade.
Como apresentamos, para Freud, a religião monoteísta tem como seu núcleo o pai. O pai
que, em Totem e tabu, foi considerado morto e instaurou uma série de tabus que, por conseqüência,
cristalizaram leis que possibilitaram a civilização. Porém, de acordo com o autor, é a partir da
sensação de desamparo que os filhos podem novamente criar condições de organização que os
levam a instituir regras morais, justas e que funcionam como garantia dos laços libidinais e
emocionais.
Dessa forma, podemos demarcar que, para Freud, o desamparo e o complexo de Édipo estão
na base das organizações sociais humanas. Desde o mito inaugural da horda primitiva no qual o ato
do assassinato do pai e a culpa daí decorrente permitem a identificação com sua figura e a
internalização das suas leis, ou seja, a eliminação do absolutismo no poder e dos assassinatos –
incesto e morte.
Assim sendo, podemos perceber um fio condutor em relação aos mitos freudianos. Tanto no
mito do pai primevo, como em Édipo e em Moisés, o pai, uma vez morto, instaura uma lei moral
que encontra seu auge no poder de Deus (CASTRO 2005, p. 14).
40
No entanto, ainda precisamos percorrer mais uma forma freudiana de abordar a religião para
que possamos alcançar a totalidade da percepção do autor sobre o assunto. Veremos como ele trata
ainda a religião enquanto uma ilusão baseada nos desejos humanos.
3.1.3 Religião como ilusão.
Em O futuro de uma ilusão, em 1927, Freud coloca a religião como uma ilusão de grande
valor para os seres humanos. Ela foi traduzida por ele como o conforto para a miserável banalidade
da vida, já que o progresso da civilização e as forças da natureza impõem aos sujeitos uma série de
privações e sofrimentos.
Sendo assim, foi nesse artigo que o autor deflagrou a natureza da religião e a proposta desta
para os indivíduos. Ele estabeleceu que uma das maneiras que o sujeito utiliza para se defender é
criando uma ilusão de que tudo é ordenado pela Vontade Divina. Dessa forma, o indivíduo se sente
menos indefeso e desamparado. Ele analisou que:
Se a própria morte não for algo espontâneo, mas o ato violento de uma Vontade
maligna, se tudo na natureza forem Seres à nossa volta, do mesmo tipo que
conhecemos em nossa própria sociedade, então poderemos respirar livremente,
sentir-nos em casa no sobrenatural e lidar com nossa insensata [angústia] através
de meios psíquicos. Talvez ainda nos achemos indefesos, mas não mais
desamparadamente paralisados; pelo menos, podemos reagir (FREUD, 1927, p.
25).
De acordo com o autor, esse alívio provocado pela religião está diretamente associado ao
fato de que existe um protótipo infantil de desamparo humano que exige consolo. Então, a seu ver,
as idéias religiosas têm um modelo infantil que objetiva proteger as pessoas contra os perigos e os
sofrimentos e tornar a vida mais tolerável.
A criança desamparada encontra-se sem a proteção paterna e entregue ao desamparo das
suas próprias pulsões, do amor, do desejo dos outros e da destruição, conforme apresentamos no
primeiro capítulo. No entanto, para Freud, essa sensação do bebê desamparado permanecerá no
humano adulto.
Ainda segundo ele, “a origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito
claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por trás disso, mas,
41
presentemente, ainda está envolto em obscuridade” (FREUD, 1929, p. 81). Nesse caso, esta é a
essência da perspectiva freudiana: os seres humanos buscam um projeto mais elevado para suas
vidas na tentativa de se livrarem do desamparo.
Porém, Freud explicou o que pode ser nomeado como uma ilusão:
Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro. [...] O que é característico das
ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. [...] Podemos, portanto, chamar
uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente
em sua motivação e, assim, procedendo, desprezamos suas relações com a
realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação (FREUD, 1927, p.
39).
De acordo com o autor, a força das ilusões leva a deduzir que o desamparo precisa ser
analisado como o fundamento último das idéias religiosas. A ilusão se configura urgente e, com
isso, o sujeito despreza a verificação e a relação com a realidade. Para Freud, esta é a verdadeira
fonte das necessidades religiosas, e ele defendeu que:
Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o
homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das
lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana.
Pode-se perceber claramente que a posse dessas idéias o protege em dois sentidos:
contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por
parte da própria sociedade humana. Reside aqui a essência da questão (FREUD,
1927, p. 27).
Em O mal estar na civilização, Freud expôs também a questão do desamparo. Ele
fundamentou a idéia de que o sujeito precisa criar a ilusão de alcançar a união com o cosmos, que
foi intitulada de sensação do sentimento oceânico, a fim de evitar a experiência de desamparo.
Tal sensação foi descrita e assim nomeada por Romain Rolland em uma carta endereçada a
Freud em resposta a leitura de O futuro de uma ilusão. Rolland descreve esse sentimento como uma
sensação subjetiva de eternidade e de algo ilimitado e sem fronteiras, por isso, oceânico. Para este,
seria essa noção a verdadeira fonte da energia religiosa.
Porém, Freud rejeitou a existência do sentimento oceânico e defendeu que não há um
passado perdido para o qual retornar, combatendo, assim, a possibilidade de restauração da
harmonia e do retorno à segurança paterna.
Assim, o “sentimento oceânico” descrito por Romain Rolland a Freud foi objeto de análise
deste. Ao sentimento de algo ilimitado e indissolúvel com o mundo externo, o primeiro localiza a
42
fonte de toda religiosidade. Por sua vez, Freud argumenta que essa é a impressão de todo bebê
recém nascido que ainda não diferencia o seu ego do mundo externo.
[...] originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um
mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas
um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo – na verdade,
totalmente abrangente –, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e
o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em cuja vida mental esse
sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas
ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente seu. Nesse caso, o
conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de
um vínculo com o universo – as mesmas idéias com que meu amigo elucidou o
sentimento ‘oceânico’ (FREUD, 1929, p. 86).
Assim, para Freud, a vinculação do sentimento oceânico com a religião é algo que acontece
a posteriori. A rejeição do perigo externo por parte do ego seria um primeiro caminho para a busca
do consolo religioso. De tal modo, estabelece-se um conforto que tem em sua essência o desamparo
infantil e seu conseqüente anseio pela proteção paterna.
A sensação de desamparo foi também ampliada para a esfera da civilização, sugerindo a
concepção do desamparo da civilização moderna diante de seu próprio projeto de conhecimento e
dominação da natureza. Para o autor, a religião, enquanto criação da cultura, serve ao homem como
uma opção para lidar com o desamparo, as incertezas e a imprevisibilidade da vida.
Dessa forma, Freud elaborou a questão do desamparo e extraiu as conseqüências
fundamentais para a psicopatologia, a cultura e a religião. Para ele, “a auto-estima do homem,
seriamente ameaçada, exige consolação” (FREUD, 1927, p. 27). O ser humano, frente ao
desamparo, cai naturalmente em um estado de angústia, que o leva a um processo de ativar
mecanismos de defesas na tentativa de se resguardar. O aparelho psíquico não tolera o desprazer e
necessita desviá-lo a todo custo.
No entanto, o autor também sustentava a idéia de que “o programa de tornar-se feliz, que o
princípio do prazer nos impõe, não pode ser realizado; contudo, não devemos – na verdade, não
podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra.”
(FREUD, 1929, p. 90).
Por isso, no que se refere ao perigo externo, o indivíduo insistentemente pode afastar-se
durante algum tempo através de fuga e evitamento da situação de perigo, ficar suficientemente forte
para impedir a ameaça, alterando ativamente a realidade.
43
Os mecanismos de defesa servem ao propósito de manter afastados os perigos. Há um
dispêndio dinâmico necessário para mantê-los e eles, por sua vez, não são abandonados após se
passar pelas dificuldades. Os homens os tornam reguladores de suas reações, as quais são repetidas
durante a vida, sempre que ocorrer uma situação semelhante à original, o que proporciona um
caráter infantil.
Esse processo se inicia a partir do momento em que o ego do adulto, com sua força
aumentada, continua a se defender contra os perigos que não mais existem na realidade; na verdade,
vê-se compelido a buscar na realidade as situações que possam servir como substitutos aproximados
do perigo original.
Com isso, podemos entender que o sentimento de desamparo seria o motor da ilusão. Como
esse desamparo tem o caráter infantil, teremos como resultado a criação de um pai divino. Sendo
assim, a religião, para o autor, aparece como a evitação do desamparo e a busca pela proteção de
um pai: o pai da infância.
A religião, que é vista por Freud como uma das saídas do ser humano frente à sensação de
desamparo, tem a seguinte definição: “o sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam
os enigmas deste mundo com perfeição invejável, e que, por outro, lhe garantem que uma Providência
cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha
experimentado aqui” (FREUD, 1929, p. 92).
De acordo com o autor, de uma maneira geral, os seres humanos sentem também o peso das
renúncias que precisam operar para viver na vida comunitária. Porém, nem mesmo todo o trabalho de
civilização foi capaz de fazer com que os seres humanos fugissem da percepção do desamparo. “Ninguém,
no entanto, alimenta a ilusão de que a natureza já foi vencida, e poucos se atrevem a ter esperanças de que
um dia ela se submeta inteiramente ao homem” (FREUD, 1927, p. 26).
Por isso, Freud defendeu a relevância do desamparo humano e apresentou a religião como um
protótipo infantil:
Já uma vez, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de
tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razões para temê-los, especialmente
nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que
conhecíamos. [...] Do mesmo modo, um homem transforma as forças da natureza não
simplesmente em pessoas com quem pode associar-se como com seus iguais – pois isso
não faria justiça à impressão esmagadora que essas forças causam nela -, mas lhes
concede o caráter de um pai. Transforma-as em deuses, seguindo nisso, como já tentei
demonstrar, não apenas um protótipo infantil, mas um protótipo filogenético. (FREUD,
1927, p. 28).
44
Assim, o desejo dos seres humanos pelos deuses se justifica, para Freud, nessa manobra infantil de
evitação do desamparo humano. Os deuses têm então uma tripla função: “exorcizar os terrores da
natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na
morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs”
(FREUD, 1927, p. 29).
No entanto, de acordo com o autor, a função moral foi sendo cada vez mais valorizada pelos
sujeitos, uma vez que a natureza adquiria sua própria autonomia.
Ficou sendo então tarefa dos deuses nivelar os defeitos e os males da civilização, assistir
os sofrimentos que os homens infligem uns aos outros em sua vida em conjunto e vigiar
o cumprimento dos preceitos da civilização, a que os homens obedecem de modo tão
imperfeito. Esses próprios preceitos foram creditados com uma origem divina; foram
elevados além da sociedade humana e estendidos à natureza e ao universo. (FREUD,
1927, p. 30).
Sendo assim, a origem das idéias religiosas consiste na missão humana de tornar suportável esse
desamparo. Essa construção das idéias tem como conteúdo as reminiscências do sentimento infantil. A
religião seria uma representação mental que visaria à proteção contra os perigos da natureza e do destino,
além das ameaças que a convivência humana em sociedade suscita. Ela tem o caráter de defesa contra as
deficiências inerentes à sociedade. Por isso, as idéias religiosas são vistas como um bem tão precioso na
civilização, no entender de Freud.
As relações entre os seres humanos são contornadas por exigências éticas que, por sua vez,
têm como origem a necessidade humana de amor e proteção. É o medo da perda do amor do outro
que faz com que as pessoas contenham a inclinação natural para a agressividade.
Além disso, a ética baseada na religião, a seu ver, postergava a satisfação com promessas de
uma vida melhor somente após a morte, desconsiderando a virtude da Terra. A negação que a
religião faz aos seres humanos, ao apostar em tais satisfações futuras, não considerava o propósito
de que a pulsão deve alcançar alguma satisfação direta na vida.
Para Freud, foi a partir desses sentimentos que as religiões, especialmente o cristianismo,
traçaram seus preceitos.
Da maneira pela qual, no cristianismo, essa redenção é conseguida – pela morte
sacrificial de uma pessoa isolada, que, desse modo, toma sobre si mesma a culpa
comum a todos –, conseguimos inferir qual pode ter sido a primeira ocasião em
que essa culpa primária, que constitui também o primórdio da civilização, foi
adquirida (FREUD, 1929, p. 160).
45
No entanto, trata-se de um processo que o autor localiza antes mesmo da religião ser
institucionalizada. “Os animais totêmicos tornam-se os animais sagrados dos deuses, e as mais antigas,
mais fundamentais restrições morais – as proibições contra o assassinato e o incesto – originam-se do
totemismo” (FREUD, 1927, p. 35). Assim, o totemismo, como dissemos anteriormente, já apresentava sua
vinculação com as posteriores religiões de deuses. Todavia, o maior vínculo estava, para o autor, na
relação entre o complexo paterno e a necessidade de proteção do ser humano desamparado.
[...] a mãe, que satisfaz a fome da criança, torna-se seu primeiro objeto amoroso e,
certamente, também sua primeira proteção contra todos os perigos indefinidos que a
ameaçam no mundo externo – sua primeira proteção contra a [angústia] podemos dizer.
Nessa função de proteção, a mãe é logo substituída pelo pai mais forte, que retém essa
posição pelo resto da infância. Mas a atitude da criança para com o pai é matizada por
uma ambivalência peculiar. O próprio pai constitui um perigo para a criança, talvez por
causa do relacionamento anterior dela com a mãe. Assim, ela o teme tanto quanto anseia
por ele e o admira. As indicações dessa ambivalência na atitude para com o pai estão
profundamente impressas em toda religião [...]. Quando o indivíduo em crescimento
descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá
passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as
características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a
quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu
anseio por um pai constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as
conseqüências de sua debilidade humana. É a defesa contra o desamparo infantil que
empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de
reconhecer – reação que é, exatamente, a formação da religião. (FREUD, 1927, p. 36).
A necessidade do laço de amor é o que sustenta essa ilusão, na medida em que o desamparo é
estrutural e, por isso, faz com que o sujeito se aferre a um pai poderoso. Vemos assim, como há uma
conexão direta entre a necessidade de proteção frente à impressão aterrorizante do desamparo e a ilusão
das garantias paternas. Foram essas as mais contundentes afirmações do autor para o surgimento das idéias
religiosas.
Assim o governo benevolente de uma Providência divina mitiga nosso temor dos
perigos da vida; o estabelecimento de uma ordem moral mundial assegura a realização
das exigências de justiça, que com tanta freqüência permaneceram irrealizadas na
civilização humana; e o prolongamento da existência terrena numa vida futura fornece a
estrutura local e temporal em que essas realizações de desejo se efetuarão. As respostas
aos enigmas que tentam a curiosidade do homem, tais como a maneira pela qual o
universo começou ou a relação entre corpo e mente, são desenvolvidas em
conformidade com as suposições subjacentes a esse sistema. Constitui alívio enorme
para a psique individual se os conflitos de sua infância, que surgem do complexo
paterno – conflitos que nunca superou inteiramente -, são dela retirados e levados a uma
solução universalmente aceita (FREUD, 1927, p. 43).
46
As ilusões humanas também têm como fundamento a necessidade da felicidade. Segundo
Freud, o desejo de felicidade é o que impulsiona as vidas humanas. Porém, para ele, a partir da
constituição humana, existem três grandes fontes de infelicidade, que são: o corpo, o mundo externo
e o relacionamento com outros seres humanos. As ilusões entram igualmente como tentativas de
aplacar esses sofrimentos.
Freud entendia que “as regiões onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação; na
época em que o desenvolvimento do senso da realidade se efetuou, essa região foi expressamente
isentada das exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de
serem levados a termo (FREUD, 1929, p. 99). Sendo assim, as doutrinas religiosas têm origem nos
desejos humanos e não são passíveis de prova.
Ainda, para ele, a sensação de desamparo muitas vezes foi confundida com uma atitude
religiosa.
Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente religioso’ qualquer um
que admita uma sensação de insignificância ou impotência do homem diante do
universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa
sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O
homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que
os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário,
irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra (FREUD, 1927, p. 46).
De acordo com ele, a religião mascara as possibilidades de felicidade na medida em que
indica um único caminho para todas as pessoas. Assim, ele argumentou que a religião pode até
poupar os sujeitos de uma neurose individual, porém sua essência é delirante e aponta para a
universalidade:
A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente
a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra
o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o
quadro do mundo real de maneira delirante – maneira que pressupõe uma
intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de
infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião
consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém,
algo mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à
felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda
segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o
crente se vê obrigado a falar dos ‘desígnios inescrutáveis’ de Deus, está admitindo
que tudo que lhe sobrou, como último consolo e fonte de prazer possíveis em seu
sofrimento, foi uma submissão incondicional. E, se está preparado para isso,
provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou (FREUD, 1929, p.
104).
47
No entanto, apesar de afirmar o poder psíquico das idéias religiosas, Freud por muitas vezes
apostou que elas sucumbiriam frente à razão, como veremos adiante. Segundo ele (FREUD, 1927, p. 42),
“os contos de fada da religião” deveriam revelar sua falta de autenticidade. Todavia, ele não desconsiderou
a origem psíquica do conjunto de pensamentos humanos que ele nomeou de ilusões, pois sabia que estas
são baseadas nos desejos mais antigos e urgentes de toda a humanidade.
3.1.4 Conclusão: Freud, o judeu sem Deus
7
.
Desse modo, podemos agora percorrer os posicionamentos críticos aos quais as obras
freudianas sobre a religião foram submetidas, tanto na teologia quanto na psicanálise.
Primeiramente, vemos que Freud a combateu como a neurose obsessiva da humanidade e como
uma espécie de delírio compartilhado. Com isso, ele apresentou seus aspectos infantis combinados
com os desejos de proteção e amor paterno. Porém, em outros momentos, ele aponta um lado
positivo da religião, reconhecendo o seu papel de laço social e Deus como um significante que
veicula valores éticos de respeito e amor ao próximo.
Todavia, a maior e mais conhecida oposição de Freud, ainda em vida, foi com o pastor
Oskar Pfister. Eles traçaram um embate considerado amigável com seus textos O futuro de uma
ilusão e A ilusão de um futuro – resposta de Pfister ao seu amigo pessoal. Pfister defendia que a
psicologia da religião era a base para analisar a doutrina religiosa, na medida em que acreditava que
nada devia ser colocado entre Deus e as pessoas, nem mesmo a igreja, com seus dogmas e ritos.
Na busca pela totalidade do sujeito, encontramos um ponto de aproximação entre ele e
Freud.
Com a teoria psicanalítica das pulsões, Pfister vê meios de clarificar a deformação
do amor. Os destinos do amor no individual e no coletivo são destinos da pulsão,
matéria-prima da psicanálise. Como a religião consiste, em Pfister, em amar a
Deus, amar a si e amar aos outros, a psicanálise será instrumentou privilegiado de
tratar as distorções da religiosidade (WONDRACECK, 2003, p. 181).
7
Essas definições utilizadas no final de cada subdivisão do capítulo foram extraídas a partir da leitura do livro de Peter
Gay citado na bibliografia desta pesquisa.
48
Freud, por sua vez, qualificou o trabalho do amigo pastor como uma grande contradição de
termos: um psicanalista convicto e cavalheiro dos clérigos (GAY, 1992, p. 88). Ele o admirava por
isso, porém, não participou das tentativas de conciliação entre a psicanálise e a teologia realizadas
por Pfister. Este, por sua vez, viu no pensamento protestante e nas teorias freudianas pontos em
comum, especialmente a celebração do amor. Em função de tal semelhança, ele definiu Freud:
“Jamais existiu melhor cristão” (GAY, 1992, p. 90).
No entanto,
[...] depois da morte de Freud, o pastor Pfister permaneceu, apesar de tudo, sendo
exceção. Na verdade, poucos teólogos demonstraram atitude amistosa para com a
psicanálise. Nas melhores abordagens, tentavam mostrar afinidades entre
psicanálise e religião, para assim recusar a Freud toda e qualquer originalidade
(DAVID, 2003, p. 50).
Assim, podemos falar em manobras teológicas que tentaram, cada qual a seu modo,
domesticar a psicanálise para diminuir o seu valor. No atual contexto teológico, alcançamos a
opinião de teólogos que ressaltam que o sentimento de desamparo modifica a relação que os
sujeitos mantêm com sua religião. Assim, na atualidade, vemos como eles apontam para uma
espécie de desinstitucionalização e privatização religiosa.
Esta afanosa busca de experiências de salvação, libertação, felicidade, revela que a
sociedade contemporânea gera muita incerteza e insegurança. Uma sociedade –
como a atual – carregada de violência e competitividade, cheia de apelos e
seduções que incentivam o consumo (gerando insatisfação mais do que saciá-la),
não pode deixar de produzir, também no campo religioso, uma procura de
respostas práticas, utilitárias, imediatas. Não é a busca de Deus ou da verdade que
anima estas experiências religiosas; é a satisfação de necessidades pessoais
(
ANTONIAZZI
, 1998, p. 11).
O crescente pluralismo religioso é visto como o reflexo do atual império neoliberal. Este,
por sua vez, apresenta como resultado a perda de força das instituições religiosas enquanto sistema
de significações para o ser humano.
Esse surto religioso carece de tônus crítico-social. Por isso, não questiona nem
afeta o sistema vigente. Antes, favorece-o, ao desempenhar papel terapêutico,
tranqüilizando e harmonizando as pessoas por dentro. As angústias, que o modelo
vigente produz por seu corte materialista, consumista, sem valores
transcendentais, sem ética, competitivo, são aliviadas pelas formas religiosas
49
oferecidas. Elas devolvem ânimo às pessoas para que superem a decepção e o
ceticismo, tão presentes na pós-modernidade (LIBÂNIO, 1998, p. 63).
O caráter terapêutico da religião na pós-modernidade é algo que instiga discussões
teológicas e traz à tona o discurso crítico da situação. Essa espécie de privatização reflete a maneira
utilitária e consumista com a qual os sujeitos se relacionam na busca por Deus. Um verdadeiro
refúgio na intimidade da vida pessoal sem que haja uma adesão aos dogmas e preceitos da religião.
Permanece uma inquietação diante da morte, do sofrimento, dos conflitos e da
dificuldade da paz. Os divertimentos incessantes procuram o esquecimento desses
aspectos negativos da existência, mas não se pode fazer desaparecer toda esta
realidade. Ela cria um mal-estar, porém mal-estar não desemboca habitualmente
na adesão a uma religião institucional. Daí a multiplicação das terapias de toda
espécie, materiais ou psicológicas. Muitas vezes não aparece claramente a
distinção entre terapia e religiosidade. Em tudo os homens e mulheres de hoje
buscam mais bem-estar, felicidade, tranqüilidade, harmonia, saúde total. A
religião que interessa é aquela que funciona como terapia (COMBLIN
, 1998,
p.148).
Em psicanálise, podemos citar a relação de Freud com Erich Fromm como uma tentativa de
aproximação, por volta da década de 20. Porém, esta também não foi bem sucedida, na medida em
que “após desenvolver uma psicologia sociológica própria, e tornar-se cada vez mais cético em
relação à pessoa de Freud e a seu trabalho, sua ênfase mudou. [...] Empregando uma retórica que
lembra muito de perto a de Pfister, ele definiu a psicanálise como um instrumento para a cura das
almas” (GAY, 1992, p. 105).
Ainda no cenário psicanalítico, é preciso que façamos um salto ao momento contemporâneo.
Nesse sentido, as considerações lacanianas apontam questões e caminhos muito particulares. Para
Lacan (2005b, p. 65), a religião é inquebrantável e triunfará sobre todas as coisas. Ele aponta que
cada vez mais estamos num mundo no qual aumenta aquilo que não funciona – a falta de sentido –
e, com isso, a angústia dos sujeitos. Por isso, a religião tem muitas razões para apaziguar os
desamparados corações humanos e isso, de acordo com ele, explica o seu fabuloso fervilhar.
São capazes de dar um sentido realmente a qualquer coisa. Um sentido à vida
humana, por exemplo. São formados nisso. Desde o começo, tudo o que é religião
consiste em dar um sentido às coisas que outrora eram as coisas naturais. [...] E a
religião vai dar um sentido às experiências mais curiosas, aquelas pelas quais os
próprios cientistas começam a sentir uma ponta de angústia. A religião vai
50
encontrar para isso sentidos truculentos. É só ver o andar da carruagem, como eles
estão se atualizando (LACAN, 2005b, p. 65).
Assim, ele faz uma nova aposta, diferente da freudiana, e defende ainda que a verdadeira
religião é a romana – a religião cristã. “Lacan se refere ao cristianismo e especialmente ao
catolicismo romano como a religião que mantém aberto o registro da verdade na forma de mistério
(a trindade, por exemplo)” (LO BIANCO; COSTA-MOURA, 2006, p. 179). Para ele, essa religião
tem recursos para encontrar sentido para tudo e fazer as correspondências necessárias para
apaziguar a angústia humana. Sua função é, a seu ver, curar os homens para que não percebam o
que não funciona (LACAN, 2005b, p. 72).
Em psicanálise, foi Jacques-Alain Miller quem deu um passo ainda mais além de Lacan.
Reinterpretando as considerações deste, Miller, em seu seminário Um esforço de poesia, coloca que
a psicanálise não tem como forçar lanças letais na religião hoje e defende que seria mediocridade
colocar uma contra a outra, como apontamos na introdução desta pesquisa.
Ele relembra a experiência que teve com o colega Régis Debray que, por sua vez, observou
que seus mais heróicos companheiros da revolução ostentavam cruzes em seus pescoços. A partir
daí, eles puderam se interrogar sobre o que ainda perdura de uma religião da qual Freud
prognosticou como vencida. Assim, ele conclui, assim como os teólogos, que, hoje, a religião
tornou-se algo da ordem de uma experiência privatizada.
O religioso é a transcendência como aquilo que advém ao sujeito sob a forma de
uma experiência emocional, sensível. É o efeito, próprio à nossa época, sofrido
pela religião, que é a transformação de qualquer discurso, de qualquer prática,
talvez se possa mesmo dizer de qualquer coisa, em uma experiência subjetiva,
vivida, privatizada, apreendida por esse viés. Nada escapa a isso (MILLER, 2003)
8
.
De acordo com Miller (2003), essa afirmativa não é muito diferente da que Freud ofereceu
quando comparou a religião ao ritual da neurose obsessiva:
Fundamentado no cerimonial, na atividade rígida, tipificada, de um ou de todos,
Freud pode então apresentar a neurose como ‘a caricatura meio-cômica, meio-
8
“Le religieux, c’est la transcendance comme ce qui advient au sujet sous la forme d’une expérience émotionnelle,
sensible. Le religieux, c’est l’effet de ce que la religion subit, un effet qui est propre à notre temps, et qui est la
transformation de tout discours, de toute pratique, peut-être même peut-on dire de toute chose, en une expérience
subjective vécue, privatisée. Saisi par ce biais, il n’y a rien qui n’y échappe”.
51
trágica, de uma religião privada’. Apresentou a neurose obsessiva como uma
religião caricatural transportada para a esfera privada do sujeito
9
.
Porém, isso não o deixa livre de poder atualizar o pensamento freudiano com as noções
contemporâneas, assim como Lacan realizou anteriormente. Até porque ele afirma que tal
concepção da religião como neurose obsessiva não esgota a análise freudiana.
Quando Lacan diz que o resultado de Freud ultrapassa tudo o que uma crítica
tradicional poderia lhe objetar, deixa lugar para que uma crítica não tradicional
pudesse fazê-lo. E deve-se constatar que, validando inteiramente a tese freudiana,
Lacan certamente lhe acrescentou retificações que não cessaram de ritmar seu
próprio progresso em sua elaboração teórica e clínica. Seria errôneo pensar que
Freud reduziu a religião ao cerimonial (MILLER, 2003)
10
.
Miller (2003) retoma ainda a posição de Lacan para, a seguir, se interrogar sobre as
condições do cenário contemporâneo.
Entre recusar essa experiência como uma ilusão ou validá-la em sua verdade,
Lacan propõe uma outra coisa: examiná-la sem autentificar sua verdade, tendo
como pano de fundo o que se opõe ao que se pode chamar de otimismo
cientificista freudiano, um pessimismo radical. Isto significa que Lacan não
pensou de forma alguma que a psicanálise nem a ciência pudessem vencer a
religião
11
.
Assim, ele passa a se questionar sobre o nosso tempo. Para ele, podemos perceber uma
espécie de “terapização da religião” que, então, aproxima a religião e psicanálise. Posição esta
diferente da concepção freudiana de psicanalizar a religião. “Seremos ainda tão sensíveis a isso
hoje em dia, quando esta diferença talvez tenda a se esvanecer? O que não significa que ela não
exista. Mas é preciso observar que a religião, a crença é hoje considerada em si mesma como uma
9
“C’est sur le fondement du cérémonial, de l’activité rigide, typifiée, ou de l’un ou de tous, que Freud a pu alors
présenter la névrose comme « la caricature mi-comique mi-tragique d’une religion privée ». Il a présenté la névrose
obsessionnelle comme une religion caricaturale, transportée dans la sphère privée du sujet”.
10
“Quand Lacan dit que le résultat de Freud dépasse tout ce que pourrait y objecter une critique traditionnelle, il réserve
la place de ce qu’une critique non traditionnelle pourrait y apporter d’objection. On doit constater que, tout en validant
la thèse freudienne, Lacan, certainement, y a apporté des correctifs qui n’ont pas cessé de rythmer son propre progrès
dans son élaboration théorique et clinique. Il serait erroné de penser que Freud a réduit la religion au cérémonial”.
11
“Entre refuser cette expérience comme une illusion ou la valider dans sa vérité, Lacan propose autre chose,
l’examiner sans authentifier sa vérité et sur le fond de ce qui s’oppose à ce qu’on peut appeler l’optimisme scientiste
freudien, sur le fond d’un pessimisme radical. Lacan n’a pas du tout eu l’idée que la psychanalyse ni la science
pourraient venir à bout de la religion”.
52
terapia, ou seja, é considerada menos válida pela verdade que transmite do que por seus efeitos de
bem-estar” (MILLER, 2003)
12
.
Então, podemos estabelecer que na época de Freud havia uma posição dos interditos que
ecoava para todos. A renúncia às pulsões em nome da emergência do amor, então, tinha um sentido
precioso nas considerações freudianas e podemos mesmo afirmar que esteve no cerne de sua teoria.
Hoje, podemos tratar de dificuldades nas operações desses interditos, como inteiramente
testemunhamos, e da instauração de permissões de toda ordem em nossa sociedade.
Tais comparações fazem com que os psicanalistas que dialogam com nosso contexto
contemporâneo afirmem a precariedade das buscas religiosas que “se encontram atreladas às
características da sociedade de consumo, no sentido de estarem baseadas na tendência de realização
imediata do desejo, pois dramas e angústias não precisam esperar por uma resposta mais elaborada,
e a fome de felicidade e bem-estar pode ser saciada mediante o consumo de bens” (RUPRECHT;
SOUZA, 2006, p.157).
Outros apontamentos nos levam para a falta de sentido e de verdades estruturantes para os
sujeitos. Elas justificam também em tais fatos o ressurgimento religioso.
Podemos afirmar que assistimos a um ressurgimento e fortalecimento das religiões
de uma forma geral no panorama cultural contemporâneo. Acreditamos que seja
uma conseqüência da situação de desamparo do homem frente ao significante, da
necessidade de eleger alguém a quem se endereçar que constitua um campo de
exceção e credibilidade em um horizonte de verdades transitórias e circunstanciais
(
PAOLI, 2006, p.289).
Veremos ainda no próximo item como o movimento científico de desencantamento da razão
moderna contribui para essa visão utilitarista e pragmática da religião, que, por sua vez, não perdeu
seu lugar na cultura, apontando que a ilusão tem um futuro. Além disso, abordaremos também a
proposta psicanalítica para a emergência do sujeito diante do novo panorama, desde o tempo do seu
fundador até o atual momento, sem nos entregarmos ao sentimento de nostalgia.
12
“Est-on encore si sensibles à cela aujourd’hui alors que c’est peut-être une différence qui tend à s’obscurcir ? Je ne
veux pas dire qu’elle n’existe pas, mais on doit remarquer que la religion, la croyance, est aujourd’hui considérée en
elle-même comme une thérapie, c’est-à-dire qu’elle est moins considérée comme valant par la vérité qu’elle
répercuterait que validée par ses effets de bien-être”.
53
3.2 Ciência e desamparo
Para tratar da relação entre ciência e desamparo vamos, primeiramente, percorrer as
considerações freudianas sobre a questão da ciência. Freud, ao redefinir o conceito de inconsciente
e batizar suas descobertas com o nome de psicanálise, instaurou um novo campo de saber e
conhecimento.
Tal fato tem um caráter subversivo, na medida em que funda uma nova lógica do
funcionamento humano. Sabemos que ele foi um médico que se especializou em neurologia e,
portanto, participou de toda uma formação científica. Sendo assim, a ciência, para ele, tinha um
lugar central na construção de sua visão do universo.
Para abarcar, então, suas colocações sobre o tema, buscamos analisar alguns textos escritos
por ele. No primeiro momento, avaliaremos as opiniões freudianas sobre a Weltanschauung
científica e, para isso, analisamos, especialmente, as indicações oferecidas por ele em sua
Conferência XXXV.
Depois, buscamos suas colocações a respeito da relação da filosofia com a psicanálise. Além
disso, situamos também a disciplina como uma outra forma de visão de mundo proposta por Freud.
Objetivamos ainda determinar a importância de tal disciplina dentro da teoria psicanalítica e extrair
considerações sobre a forma como a filosofia se propõe a aplacar o desamparo humano.
Em seguida, buscamos delinear o interesse científico da psicanálise e estabelecer como ela
responde de maneira peculiar a questão sobre o desamparo. Com isso, localizamos sua maneira de
defrontar os seres humanos com o vazio e a falta.
E, por fim, analisamos criticamente as colocações freudianas e localizamos o contexto em
que ele esteve inserido durante a invenção da psicanálise. Pretendemos mostrar como tal contexto
marca de maneira decisiva sua teoria, inclusive o caráter biológico da noção de desamparo.
3.2.1 A Weltanschauung científica.
Para Freud, a expressão alemã Weltanschauung corresponde a uma visão de mundo e tem
como significado preciso:
54
Uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência,
uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por
conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos
interessa encontra seu lugar fixo. Facilmente se compreenderá que a posse de uma
Weltanschauung desse tipo situa-se entre os desejos ideais dos seres humanos.
Acreditando-se nela, pode-se sentir com segurança na vida, pode-se saber o que se
procura alcançar e como se pode lidar com as emoções e interesses próprios da
maneira mais apropriada (FREUD, 1932b, p. 193).
Assim, de acordo com o autor, as respostas científicas têm uma peculiaridade, pois a ciência,
através da pesquisa, rejeita outras formas de conhecimento, como a revelação, a intuição, a
adivinhação ou a emoção, próprias do modo religioso de pensar o mundo.
No entanto, Freud entendia que “a ciência apercebe-se do fato de que a mente do homem
cria tais exigências e está pronta a examinar suas origens, mas não tem o mais leve motivo para
considerá-las justificadas” (FREUD, 1932b, p. 195). De acordo com ele, esses desejos humanos se
materializam nos produtos da arte, da religião e da filosofia, porém não podem englobar o campo do
conhecimento científico.
Segundo o autor, a Weltanschauung científica não tolera conciliações com outras visões e
possui maior valor crítico. “Não é lícito declarar que a ciência é um campo da atividade mental
humana, e que a religião e a filosofia são outros campos, de valor pelo menos igual, e que a ciência
não tem por que interferir nelas” (FREUD, 1932b, p. 195).
Todavia, na medida em que a ciência rejeita as ilusões, ela responde ao desamparo humano
de uma maneira bastante particular. Isso porque, para ele,
[a] Weltanschauung erigida sobre a ciência possui, excetuada a sua ênfase no
mundo externo real, principalmente traços negativos, tais como a submissão à
verdade e a rejeição às ilusões. Todo semelhante nosso que está insatisfeito com
essa situação, que exige mais do que isso para seu consolo momentâneo, haverá de
procurá-lo onde o possa encontrar. Não o levaremos a mal, não podemos ajudá-lo,
mas nem podemos, por causa disso, pensar de modo diferente (FREUD, 1932b, p.
220).
Assim, Freud defendeu que o desamparo humano não pode ser aplacado com base em
ilusões, ainda que ele considerasse as limitações da ciência. Para ele, esta, todavia, também encarna
preceitos éticos que orientam as condutas de vida, na medida em que estabelece que “aqueles que
desprezam suas lições, assim ela nos diz, expõem-se a dano” (FREUD, 1932b, p. 198).
55
É a partir dessa postura que a ciência questiona criticamente a sua única séria adversária, que
é a religião. A crítica ocorre inclusive quanto à dimensão ética da religião, uma vez que “de modo
algum se verifica a regra segundo a qual a virtude é recompensada e o mal é punido” (FREUD,
1932b, p. 203).
Freud justificou seu posicionamento crítico ressaltando que o que ele pôs em xeque foi a
invasão da religião no pensamento científico, na medida em que ela não permite uma investigação
por parte deste. O autor concluiu o julgamento da ciência sobre a visão de mundo religiosa
apresentando uma concepção evolucionista que pode ser apresentada da seguinte forma:
A religião é uma tentativa de obter domínio do mundo perceptível no qual nos
situamos, através do mundo dos desejos que desenvolvemos dentro de nós em
conseqüência de necessidades biológicas e psicológicas. Mas a religião não pode
conseguir isso. Suas doutrinas conservam a marca dos tempos em que surgiram,
dos tempos de ignorância da infância da humanidade. Seu consolo não merece fé.
A experiência nos ensina que o mundo não é um aposento de crianças. As
exigências éticas, sobre as quais a religião procura apoiar-se, acentuam, antes, a
necessidade de lhe serem dadas outras bases; pois são elas indispensáveis à
sociedade humana, e é perigoso vincular à fé religiosa à obediência aos princípios
éticos. Se tentarmos situar o lugar da religião na evolução da humanidade, ela
aparece não como uma aquisição permanente, mas sim como um equivalente da
neurose pela qual o homem civilizado, individualmente, teve de passar, em sua
transição da infância à maturidade (FREUD, 1932b, p. 204).
Desse modo, para ele, a ciência tem como objetivo a verdade: “chegar à correspondência
com a realidade – ou seja, com aquilo que existe fora de nós e independentemente de nós, e,
segundo nos ensinou a experiência, é decisivo para a satisfação ou a decepção de nossos desejos. A
essa correspondência com o mundo externo real chamamos de ‘verdade’” (FREUD, 1932b, p. 207).
Sendo assim, o autor defendeu que a civilização teria melhor destino caso abandonasse a
atitude para com a religião. Em substituição a esta, ele indicou o caminho do espírito científico.
A civilização pouco tem a temer das pessoas instruídas e dos que trabalham com o
cérebro. Neles, a substituição dos motivos religiosos para o comportamento
civilizado por outros motivos, seculares, se daria discretamente; ademais, essas
pessoas são em grande parte, elas próprias, veículos de civilização (FREUD, 1927,
p. 52).
O abandono da idéia de Deus foi também um importante argumento freudiano na relação da
ciência com a religião. Para ele, esse processo seria essencial para a evolução e o desenvolvimento
civilizatório.
56
Visto ser tarefa difícil isolar aquilo que o próprio Deus exigiu, daquilo que pode
ter sua origem remontada à autoridade de um parlamento todo-poderoso ou de um
alto judiciário, constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus
inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de
todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa
santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e
imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para
dominá-las, mas, pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma
atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam
unicamente a sua melhoria. Isso constituiria um importante avanço no caminho
que leva à reconciliação com o fardo da civilização (FREUD, 1927, p. 55).
De acordo com ele, essa mudança seria também parte de um processo de amadurecimento da
própria civilização. Apesar das idéias religiosas se constituírem de importantes reminiscências
históricas, elas, assim como as neuroses, seriam superadas no caminho do crescimento.
Como vimos, ao tratar a religião, ele assinalou que esta seria a neurose obsessiva universal
da humanidade. Assim, ele defendeu que:
[...] tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo,
do relacionamento com o pai. A ser correta essa conceituação, o afastamento da
religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de
crescimento, e nos encontramos exatamente nesse junção, no meio dessa fase de
desenvolvimento (FREUD, 1927, p. 57).
Porém, o autor apontou com precisão que essas analogias não tinham como objetivo abarcar
toda a natureza da religião. Apesar de tratar os ensinamentos religiosos como relíquias neuróticas,
ele sabia que as semelhanças com as patologias humanas não eram correspondentes essencialmente
verdadeiros. “As verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e
sistematicamente disfarçadas, que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade”
(FREUD, 1927, p. 59).
De acordo com ele, era preciso ultrapassar o modo delirante oferecido pelas religiões para
ler o mundo e caminhar para uma forma de percepção científica, pois para ele:
[A] tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o
sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em
comum por um considerável número de pessoas. As religiões da humanidade
devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário
dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal
(FREUD, 1929, p. 100).
57
No entanto, ele insistiu na afirmação da possibilidade de que os seres humanos
conseguissem conviver com seu próprio desamparo de maneira saudável, numa espécie de educação
para a realidade amparada pelo conhecimento científico.
Os homens não podem permanecer crianças para sempre; têm de, por fim, sair
para a ‘vida hostil’. Podemos chamar isso de ‘educação para a realidade’. [...] Já é
alguma coisa, de qualquer modo, alguém saber que está entregue a seus próprios
recursos: aprende a fazer um emprego correto deles. E os homens não estão
completamente sem assistência. Seu conhecimento científico lhes ensinou muito,
desde os dias do Dilúvio, e aumentará seu poder ainda mais. E quanto às grandes
necessidades do Destino, contra as quais não há remédio, aprenderão a suportá-las
com resignação (FREUD, 1927, p. 64).
Para isso, ele acreditava que o desenvolvimento do intelecto e da razão seriam requisitos
essenciais e que nada poderia resistir a esses fatores e aos progressos científicos. Sendo que estes
seriam, a seu ver, questão de tempo. “Nosso Deus, [Logos], atenderá todos esses desejos que a
natureza a nós externa permita, mas fa-lo-á de modo muito gradativo, somente num futuro
imprevisível e para uma nova geração de homens” (FREUD, 1927, p. 68).
Pois nem mesmo o fato do ser humano ter se tornado uma espécie de “Deus de prótese” é
algo que o autor acreditava que poderia aplacar seu desamparo. Para ele:
[As] épocas futuras trarão com elas novos e provavelmente inimagináveis grandes
avanços nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a semelhança do
homem com Deus. No interesse de nossa investigação, contudo, não
esqueceremos que atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de
semelhante a Deus (FREUD, 1929, p. 112).
Seria, ao ver de Freud, então, o trabalho científico que daria aos sujeitos o conhecimento da
realidade e isso, por sua vez, os tornariam menos desamparados e mais poderosos frente à
organização da vida. Para ele, “ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar,
podemos conseguir em outro lugar” (FREUD, 1927, p. 71).
Com isso, Freud apostou que a razão tinha o poder de unir os seres humanos e garantir
alguns caminhos como nenhum outro conhecimento poderia realizar:
Nossa maior esperança para o futuro é que o intelecto – o espírito científico, a
razão – possa, com o decorrer do tempo, estabelecer seu domínio sobre a vida
mental do homem. A natureza da razão é uma garantia de que, depois, ela não
deixará de dar aos impulsos emocionais do homem, e àquilo que estes
determinam, a posição que merecem. A compulsão comum exercida por um tal
domínio da razão, contudo, provará ser o mais forte elo de união entre os homens
58
e mostrará o caminho para uniões subseqüentes. Tudo aquilo que, à semelhança
das proibições da religião contra o pensamento, se opõe a uma evolução nesse
sentido, é um perigo para o futuro da humanidade (FREUD, 1927, p. 208).
Apesar disso, Freud não desconsiderou as limitações que são inerentes a ciência:
É verdade que a ciência nos pode ensinar como evitar determinados perigos e
mostrar-nos existirem determinados sofrimentos que ela é capaz de combater com
êxito; seria muito injusto negar que ela é um poderoso auxiliar do homem; há,
contudo, muitas situações em que se vê obrigada a deixar o homem entregue ao
sofrimento e apenas pode aconselhá-lo a resignar-se (FREUD, 1932b, p. 197).
Assim, em outros momentos, vemos Freud vacilar em sua defesa da ciência, pois sabia que
“as criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram,
também podem ser utilizadas para sua aniquilação” (FREUD, 1927, p. 16). O autor ainda asseverou
que “os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não
teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí
que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua [angústia]” (FREUD,
1929, p. 170).
No entanto, ele acreditava que as críticas advindas à ciência eram exageradas. Para ele, a
ciência se desenvolveu tardiamente e era ainda muito nova. O autor justificou que “via de regra, [o
cientista] trabalha como um escultor no seu modelo de argila, o qual, incansável, modifica o esboço
primitivo, remove, acrescenta, até chegar àquilo que sente ser um satisfatório grau de semelhança
com o objeto que vê ou imagina” (FREUD, 1932b, p. 211).
Além disso, de acordo com o autor, havia somente uma saída. “Os enigmas do universo só
lentamente se revelam à nossa investigação; existem muitas questões a que a ciência atualmente não
pode dar resposta. Mas o trabalho científico constitui a única estrada que nos pode levar a um
conhecimento da realidade externa a nós mesmos” (FREUD, 1927, p. 45).
De acordo com ele, a ciência era a única cosmovisão que não estava acompanhada pelas
ilusões humanas e seu caráter jovem ainda deveria ser considerado antes de submetê-la a crítica. Ele
sabia dos inúmeros julgamentos sobre ela,
[mas] a ciência, através de seus numerosos e importantes sucessos, já nos deu
provas de não ser uma ilusão. Ela conta com muitos inimigos manifestos, e muitos
outros secretos, entre aqueles que não podem perdoá-la por ter enfraquecido a fé
religiosa e por ameaçar derrubá-la. É censurada pela pequenez do que nos ensinou
e pelo campo incomparavelmente maior que deixou na obscuridade. Nisso, porém,
59
as pessoas se esquecem de quão jovem ela é, quão difíceis foram seus primórdios
e quão infinitesimalmente pequeno foi o período de tempo que decorreu desde que
o intelecto humano ficou suficientemente forte para as tarefas que ela estabelece
(FREUD, 1927, p. 69).
Desse modo, o autor estabeleceu uma diferença radical entre o conhecimento produzido pela
ciência, obtido rigorosamente dentro dos limites do princípio da realidade e todas aquelas outras
produções que são confundidas com o conhecimento, mas que não passam de ilusões decorrentes da
realização de desejo, baseadas que são no princípio do prazer.
O conhecimento científico era, para ele, fruto de observação e pesquisa da realidade e
produzido num interminável processo de tentativa e erro, correção, descrição e reprodução das
situações analisadas. “Só a pesquisa científica não deve possuir presunções. Em qualquer outra
espécie de pensamento, a escolha de um ponto de vista não pode ser evitada e, naturalmente,
existem muitos deles” (FREUD, 1928, p. 227). Já as ilusões e revelações são dados que a religião
oferece baseados nas emoções e, por isso, devem ser acatados sem maiores questionamentos.
Para ele, a ciência dimensionava as origens das ilusões advindas do desejo humano, mas não
deveria com isso aceitar a veracidade de tais devaneios. “Pelo contrário, vê isto como advertência
no sentido de cuidadosamente separar do conhecimento tudo o que é ilusão e o que é resultado de
exigências emocionais como estas” (FREUD, 1932b, p. 156). De acordo com o autor, diferentes
visões de mundo têm como resultado diversas formas de conhecimento. Ele defende que dos três
poderes que disputam a posição de saber com a ciência – a religião, a arte e a filosofia – somente a
religião deve ser cuidadosamente considerada.
Freud reconheceu que aquilo que a ciência oferece para a humanidade é pouco e severo se
comparado com as onipotentes ofertas das ilusões religiosas. Frente às dificuldades da condição
humana, com seu desamparo e sua fragilidade, especialmente frente à morte, a religião oferece
todas as respostas desejadas, pois acolhe as emoções humanas. A ciência, pelo contrário, trabalha
com o desconhecido e nem sempre pode aplacar o sofrimento dos seres humanos.
A ciência não pode competir com a religião quando esta acalma o medo que o
homem sente em relação aos perigos e vicissitudes da vida, quando lhe garante um
fim feliz e lhe oferece conforto na desventura. É verdade que a ciência nos pode
ensinar como evitar determinados perigos e mostra-nos existirem determinados
sofrimentos que ela é capaz de combater com êxito; seria muito injusto negar que
ela é um poderoso auxiliar do homem; há, contudo, muitas situações em que se vê
60
obrigada a deixar o homem entregue ao sofrimento e apenas pode aconselhá-lo a
resignar-se (FREUD, 1932b, p. 158).
A religião atende aos mais profundos e regressivos anseios inconscientes de proteção e
amor, enquanto a ciência mostra o infantil e o regressivo deste desejo e conclama o sujeito para
lutar com suas próprias forças e superar os dilemas que são próprios da vida.
Dessa forma, as diferentes visões de mundo têm ocupado o lugar de defesa frente à angústia
decorrente do desamparo humano. Elas são estruturas simbólicas que possibilitam a representação
de um mundo arranjado, no qual é possível o ser humano situar-se e agir de modo funcional.
Enfim, na perspectiva freudiana, ciência e religião podem ser consideradas contrárias
enquanto modos de acesso ao conhecimento. Desde que a ciência surgiu como uma força intelectual
e moral, Freud acreditava que havia tensão e debate entre essas duas visões de mundo.
A compreensão de ciência e religião em lados opostos supõe que a primeira é baseada em
fatos, constatações, comprovações, enquanto a segunda se pauta fortemente por dogmas, que não
podem ser explicados, mas devem ser aceitos cegamente por aqueles que têm fé. Freud, do início ao
fim de suas pesquisas, propôs visões da origem do homem e de sua natureza que foram
essencialmente contrárias à religião. Especialmente, ao tratar das explanações bíblicas da criação do
homem e da natureza da moralidade humana.
Em contraposição, ofereceu a ciência como o caminho saudável para os humanos, incluindo
a sua psicanálise, que está dentro dessa forma científica de ver o mundo, como veremos mais
adiante. Sendo a ciência, a saída por excelência, apresentada por ele, para aplacar a impotência
humana frente ao sofrimento e a força da natureza.
A título de conclusão, podemos reafirmar que essas são algumas considerações que podem
ser atribuídas a Freud em sua vasta análise da cultura. Os assuntos culturais sempre o interessaram e
podem ser facilmente localizados em suas obras. Com isso, o autor trouxe à tona temas
fundamentais para a discussão: a impossibilidade da consonância entre os interesses do sujeito e da
civilização e o desamparo como condição da existência humana.
61
3.2.2 A filosofia como ciência.
Freud analisou a Weltanschauung religiosa, a científica, a artística e a filosófica. Sendo
assim, enveredaremos agora em suas considerações sobre a visão filosófica. A filosofia, segundo
ele, caminha próximo da Weltanschauung científica, porém ela comete o engano de valorizar
excessivamente o poder de suas formulações racionais, o que a faz incidir em erros.
Além disso, para ele, “a filosofia, no entanto, não exerce influência direta na grande massa
da humanidade; é objeto do interesse de apenas um pequeno número de pessoas da camada superior
de intelectuais, e dificilmente é compreensível para alguém mais” (FREUD, 1932b, p. 158).
Apesar de tais afirmações, Freud dizia que estava “tão despreparado como poucas pessoas
estiveram” (FREUD, 1932b, p. 212) para analisar a posição da filosofia no cenário científico. Em
seu relato autobiográfico, ele falou de sua “incapacidade constitucional” (FREUD, 1924b, p. 75) e
de seu desejo de manter a mente desobstruída, fatos que o afastaram da filosofia.
Assim, ele fez a seguinte afirmação:
Li Schopenhauer muito tarde em minha vida. Nietzsche, outro filósofo cujas
conjecturas e intuições amiúde concordam, da forma mais surpreendente, com os
laboriosos achados da psicanálise, por muito tempo foi evitado por mim,
justamente por isso mesmo; eu estava menos preocupado com a questão da
prioridade do que em manter minha mente desimpedida (FREUD, 1924b, p. 76).
Apesar das declarações, ele não se poupou de realizar uma série de referências sobre esse
assunto. De acordo com o psicanalista Joel Birman:
Antes de mais nada, é preciso dizer que se Freud não era um erudito em filosofia,
não era tampouco um incauto. Ele acompanhou alguns cursos ministrados por
Brentano, na Universidade de Viena, no tempo em que era estudante de medicina.
Além disso, dedicou-se à prática da tradução para se sustentar, ainda quando
estudante. Traduziu então alguns textos filosóficos, como os de Stuart Mill.
Portanto, Freud não era absolutamente ignorante no que concerne à filosofia,
tendo, pois, uma boa educação de base (BIRMAN, 2003, p. 49).
No entanto, a relação entre psicanálise e filosofia é também vista por Freud como a de forças
que não cedem uma a outra. Segundo ele, “da filosofia nada podemos esperar, exceto que uma vez
mais nos salientará orgulhosamente a inferioridade intelectual do objeto de nosso estudo” (FREUD,
62
1915c, p. 121). Outras críticas freudianas podem ser somadas a essas para entendermos a concepção
do autor em relação à filosofia.
De acordo com ele, esta tinha como característica a realização de desejos humanos que não
têm compromisso com a realidade e, por isso, não poderia ser encarada como uma esfera de
conhecimento científico. “Pois isto equivaleria a deixar abertos os caminhos que levam à psicose,
seja psicose individual, seja grupal, e retiraria valiosas somas de energia de empreendimentos
voltados para a realidade, com a finalidade de, na medida do possível, nela encontrar satisfação para
os desejos e para as necessidades” (FREUD, 1932b, p. 195).
Em seu texto Totem e tabu, Freud estabeleceu que a compreensão das neuroses era fator
importante para entender o desenvolvimento civilizatório. Com isso, ele interpretou que as neuroses
apresentavam pontos consonantes com as instituições sociais, entre elas a filosofia, a religião e a
arte. Por outro lado, elas eram vistas por ele como reproduções deformadas.
Poder-se-ia sustentar que um caso de histeria é a caricatura de uma obra de arte,
que uma neurose obsessiva é a caricatura de uma religião e que um delírio
paranóico é a caricatura de um sistema filosófico. A divergência reduz-se, em
última análise, ao fato de as neuroses serem estruturas associais; esforçam-se por
conseguir, por meios particulares, o que na sociedade se efetua através do esforço
coletivo (FREUD, 1912a, p. 95).
Assim, ele afirmou que a filosofia apresentava esse viés delirante e, dois anos mais tarde, em
O inconsciente, ele voltou a abordar a disciplina como uma forma de operação da esquizofrenia.
“Assim, o delírio e o discurso filosófico funcionariam de maneira similar, pois em ambos a
subjetividade manejaria sempre as palavras como se fossem coisas, não tendo, então, a devida
exigência de submeter o discurso ao imperativo do teste da realidade” (BIRMAN, 2003, p.11).
Dessa forma, podemos entender, com Freud, que a filosofia, enquanto discurso, se aproxima
de um distúrbio de julgamento, uma vez que conduz a totalidade dos elementos a um sistema
imoderado. Ela apresentava, para ele, as características de uma certeza paranóica, com suas
suspeitas e ambições excessivas.
Segundo o autor, a filosofia se distancia da ciência, na medida em que pretende apresentar a
visão de um universo coeso. Com isso, ele acreditava que a filosofia superestimava o valor da
lógica e da intuição.
A filosofia não se opõe à ciência, comporta-se como uma ciência e, em parte,
trabalha com os mesmos métodos; diverge, porém, da ciência, apegando-se à
ilusão de ser capaz de apresentar um quadro do universo que seja sem falhas e
63
coerente, embora tal quadro esteja fadado a ruir ante cada novo avanço em nosso
conhecimento (FREUD, 1932b, p. 196).
Para ilustrar essa dificuldade da posição dos filósofos, Freud citou os versos preferidos do
poeta romântico alemão Heine: “Com seus barretes de dormir e com os trapos de seu roupão de
noite ele remenda as falhas do edifício do universo” (FREUD, 1932b, p. 196). Em uma outra
passagem, ele analisou o chiste de um filósofo como forma de exemplificar sua reprovação pela
filosofia e localizar o caráter de excesso no discurso desta:
‘Há mais coisas no céu e na terrra do que sonha vossa filosofia’, disse o Príncipe
Hamlet desdenhosamente. Lichtenberg sabia que essa condenação não era ainda
severa o bastante pois não levava em conta todas as objeções que podiam ser feitas
à filosofia. Acrescentou, portanto, o que faltava: ‘Mas há também na filosofia
muita coisa que não é encontrada no céu ou na terra’. Seu acréscimo de fato
enfatiza a maneira pela qual a filosofia nos compensa da insuficiência que Hamlet
censura. Tal compensação, porém, implica uma outra reprovação ainda maior.
(FREUD, 1905b, p. 90).
Com isso, o autor foi, de uma maneira geral, criticado por sua visão inflexível. “Uma leitura
radical, portanto, da filosofia e de sua diferença absoluta com a psicanálise foi enunciada então por
Freud, permeada pela oposição aguda entre os discursos de ciência e da filosofia” (BIRMAN, 2003,
p. 9).
Porém, a questão central na interlocução entre filosofia e psicanálise foi delineada em torno
do conceito de inconsciente. Para Freud, “nosso inconsciente não é inteiramente a mesma coisa que
o dos filósofos e, além disso, a maioria dos filósofos não ouvirá falar de ‘processos mentais
inconscientes’” (FREUD, 1903, p. 276).
Segundo ele, o inconsciente foi visto por estudiosos da filosofia como “algo místico,
intangível e indemonstrável, cuja relação com a mente permaneceu obscura, ou identificaram o
mental com o consciente e passaram a deduzir dessa definição que aquilo que é inconsciente não
pode ser mental nem assunto da psicologia” (FREUD, 1913, p. 213).
A partir disso, a relação entre psicanálise e misticismo, feita pelo senso comum, incomodava
Freud. Em 1921, ele afirmou que “a psicanálise é encarada como cheirando a misticismo e o seu
inconsciente é olhado como uma daquelas coisas existentes entre o céu e a terra com que a filosofia
se recusa a sonhar” (FREUD, 1921, p. 218).
Portanto, havia uma distinção entre o que é mental para os filósofos e para psicanalistas.
Para os primeiros, “o mundo da consciência coincide com a esfera do que é mental. Tudo o mais
64
que possa se realizar na ‘mente’ - entidade tão difícil de apreender -, é por eles relegado aos
determinantes orgânicos de processos mentais ou a processos paralelos aos mentais” (FREUD,
1924a, p. 268).
Os psicanalistas, por sua vez, apostaram na existência de atos mentais precisamente
inconscientes. Para Freud, “por mais que filosofia possa ignorar o abismo entre o físico e o mental,
ele ainda existe para a nossa experiência imediata e ainda mais para os nossos empreendimentos
práticos” (FREUD, 1926, p. 279).
Desse modo, afirmamos que ele oscilou entre considerações extremamente críticas e outras
mais respeitosas. Ele manteve uma relação mais amistosa com o filósofo alemão Theodor Lipps que
“afirmou muito explicitamente que o psíquico é, em si mesmo, inconsciente e que o inconsciente é
o verdadeiro psíquico” (FREUD, 1938c, p. 321). Apesar disso, para Freud, foi a psicanálise que se
apoderou do conceito e o fortificou com um novo conteúdo.
No entanto, a filosofia, nem sempre de maneira manifesta, permeou variados momentos do
discurso psicanalítico. “A fundação da psicanálise como saber é o que estará sempre em pauta no
campo tenso dessa interlocução, estando Freud constantemente impulsionado por razões
epistemológicas, nas suas diferentes tomadas de posição no que concerne a filosofia” (BIRMAN,
2003, p. 13).
Na verdade, Freud viu na disputa entre filosofia e psicanálise uma questão além da simples
definição de conceitos. A visão de que o psíquico é inconsciente em si mesmo, segundo ele,
[...] capacitou a Psicologia a assumir seu lugar entre as ciências naturais como
uma ciência. Os processos em que está interessada são, em si próprios, tão
incognoscíveis quanto aqueles de que tratam as outras ciências, a Química ou a
Física, por exemplo; mas é possível estabelecer as leis a que obedecem e seguir
suas relações mútuas e interdependentes ininterruptas através de longos trechos
(FREUD, 1938b, p. 183).
O autor foi um grande defensor de que a psicanálise não restringia seu conhecimento a um
só campo. Assim, para ele, “a psicanálise segue o seu próprio método específico. A aplicação desse
método não está de modo algum confinada ao campo dos distúrbios psicológicos, mas estende-se
também à solução de problemas da arte, da filosofia e da religião” (FREUD, 1918, p. 219).
A psicanálise estaria, segundo ele, vinculada com outros saberes, como a filosofia, com os
quais poderia contribuir. “No trabalho da psicanálise formam-se vínculos com numerosas outras
ciências mentais, cuja investigação promete resultados do mais elevado valor: vínculos com a
65
mitologia e a filosofia, com o folclore, com a psicologia social e com a teoria da religião” (FREUD,
1915b, p. 200).
Em relação à filosofia, Freud era claro em assumir que a psicanálise estava no lugar de
doadora para aquela.
Em particular, o estabelecimento da hipótese de atividades mentais inconscientes
deve compelir a filosofia a decidir por um lado ou outro e, se aceitar a idéia,
modificar suas próprias opiniões sobre a relação da mente com o corpo, de
maneira a se poderem conformar ao novo conhecimento (FREUD, 1913, p. 214).
O sentimento ambivalente de Freud com a questão da filosofia é algo que perpassa vários
momentos das obras freudianas.
Encontramos um Freud epistolar que até os 41 anos de idade reconhece e assume
claramente sua vocação originária: a Filosofia. Com a virada do século, assistimos
a uma reviravolta da postura freudiana. Desejoso de dar um status científico à
psicanálise, Freud torna-se ‘a-filósofo’, no sentido que renuncia à sua primeira
vocação em favor de um credo científico e, algumas vezes, apresenta-se até como
‘anti-filósofo’, quando se trata de defender dos filósofos profissionais o filho
predileto de seu parto científico: o inconsciente. A crítica do consciencialismo e a
recusa de Weltanschauung são os dois motivos principais que levaram Freud a
distanciar-se e romper com a filosofia acadêmica (DI MATTEO, 1983, p. 35).
Dessa forma, p
odemos asseverar que o autor esteve sempre em contato com a filosofia de seu
tempo e de seus antepassados, mas era difícil, para ele, encontrar uma resposta para as questões
existenciais em tal disciplina, na medida em que ele estava à frente de consolidar a sua própria
disciplina como um discurso que pudesse ser ventilado para seus contemporâneos. Assim sendo,
podemos ainda sintetizar as influências filosóficas nas obras freudianas da seguinte forma:
Conhecemos a desconfiança de Freud em relação à filosofia. Com exceção de
Platão, devido a Eros, de Aristóteles, devido ao sonho e algumas categorias que
lhe toma emprestado, e de Empédocles, ao qual faz rapidamente homenagem por
sua invenção de um ciclo cósmico do Amor e do Ódio, Freud quase não se inspira
nos filósofos. Em pouco tempo, percorreríamos todos. Nada sobre Descartes (a
não ser a recusa a explicar alguns de seus sonhos submetidos ao seu exame pelos
surrealistas); nada sobre Leibniz nem Spinoza; muito pouco sobre Kant e, apenas
para relacionar o imperativo categórico com o supereu, assim como algumas
alusões às formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo, sob a condição de
fazer delas uma projeção interior do psiquismo; nada, até onde eu sei, sobre Hegel,
Fichte, Schelling; uma homenagem constante a Schopenhauer e uma leve
admiração para com Nietzsche (
REGNAULT, 2001, p. 59).
66
A partir, então, da perspectiva freudiana, podemos analisar que o autor não considerava a
filosofia uma forma de resposta salutar para o desamparo humano. Para ele, poucas pessoas teriam
acesso a esse tipo de manifestação de raciocínio. Além disso, os sujeitos que encontrassem tal
discurso veriam nele um caráter tão totalizante e extremo que se afastariam de atribuir importância
e significado a ele.
Todavia, estabelecemos, nesse percurso, que Freud não manteve relações tão amistosas com
os filósofos, porém contemplamos também como as tentativas de diálogo com a disciplina filosófica
foram determinantes para a própria constituição do pensamento psicanalítico e de seus conceitos
fundamentais.
3.2.3 O interesse científico da psicanálise
De acordo com Freud, a psicanálise não parte de verdades reveladas e tem uma hipótese
básica referente ao funcionamento psíquico, no qual tem um papel preponderante a concepção do
inconsciente. Essa hipótese explica o funcionamento normal e patológico do psiquismo,
possibilitando uma compreensão do ser humano até então inexistente.
Porém, as proposições psicanalíticas estão longe de se fecharem a um único exame. Na
verdade, elas abrem um campo novo de conhecimento, sem presunções totalizantes. Essas
incertezas são próprias de qualquer conhecimento científico. A ciência não pode pleitear toda a
verdade. Para Freud, como estabelecemos anteriormente, somente a religião pretende ter a verdade,
assim como certezas inabaláveis e inquestionáveis.
Em função disso, para ele, a psicanálise:
[...] não precisa de uma Weltanschauung; faz parte da ciência e pode aderir à
Weltanschauung científica. Esta, porém, dificilmente merece um nome tão
grandiloqüente, pois não é capaz de abranger tudo, é muito incompleta e não
pretende ser auto-suficiente e construir sistemas. O pensamento científico ainda é
muito novo entre os seres humanos; ainda são muitos os grandes problemas que
até agora não conseguiu solucionar (FREUD, 1932b, p. 177).
67
Freud defendeu, assim, que a psicanálise, enquanto uma psicologia profunda, estava inserida
na visão de mundo científica e não tinha a pretensão de construir uma cosmovisão própria a ela.
“Na qualidade de ciência especializada, ramo da psicologia – psicologia profunda, ou psicologia do
inconsciente –, ela é praticamente incapaz de construir por si mesma uma Weltanschauung: tem de
aceitar uma Weltanschauung científica” (FREUD, 1932b, p. 194).
De acordo com o autor, a contribuição da psicanálise pode ser localizada na pesquisa da área
mental, sem a qual, para ele, a ciência estaria incompleta. Com isso, ele apontou que, com sua
criação da psicanálise, a ciência não poderia ser acusada de não se ocupar do mental na
compreensão do universo.
No entanto, sabemos que Freud colocou sua disciplina entre a medicina e a filosofia na
tentativa de dar a ela um valor científico. Porém, a psicanálise, para ele, vai além das pretensões
filosóficas, como ele tantas vezes proferiu, e dialogava com a medicina sem, contudo, tomar como
verdade absoluta a visão de mundo desta:
É verdade que Freud atribui à psicanálise uma posição intermediária entre a
medicina e a filosofia por necessitar de um fundamento científico e de uma
exigência especulativa, mas isso não quer dizer que a psicanálise seja uma síntese
de filosofia e medicina, uma fusão de especulação e empirismo. A psicanálise na
mente de Freud é fundamentalmente uma ciência da natureza. A metapsicologia
não pode, nem deve ser confundida com uma metafísica. (DI MATTEO, 1983, p.
35).
Sendo assim, mesmo Freud tendo ressaltado o caráter investigativo da psicanálise nas
criações culturais, ele afirmou que ela pretendia ser o elo entre a psiquiatria e os demais ramos da
ciência mental. Tal fato era possível à psicanálise por ela trabalhar com duas grandes pedras
angulares: o inconsciente e o complexo de Édipo.
Qualquer estimativa da psicanálise estaria incompleta se deixasse de tornar claro
que, sozinha entre as disciplinas médicas, ela possui as mais amplas relações com
as ciências mentais e se encontra em posição de desempenhar um papel da mesma
importância nos estudos da história religiosa e cultural e nas ciências da mitologia
e da literatura que na psiquiatria. Isso pode parecer estranho quando refletimos
que originalmente seu único objetivo era a compreensão e a melhoria dos sintomas
neuróticos. Mas é fácil indicar o ponto de partida da ponte que conduz às ciências
mentais. A análise dos sonhos forneceu-nos uma compreensão dos processos
inconscientes da mente e demonstrou-nos que os mecanismos produtores dos
sintomas patológicos operam também na mente normal.
(FREUD, 1922, p.
306).
68
A psicanálise, para Freud, era “realmente um método terapêutico como os demais. Tem seus
triunfos e suas derrotas, suas dificuldades, suas limitações, suas indicações” (FREUD, 1932a, p.
186). Ele sabia que não poderia competir com outros campos de saber e arrastar multidões, como
sua mais respeitada adversária, a religião. “E aqui gostaria de acrescentar que não penso poderem as
nossas curas competir com as que se verificam em Lourdes. São muito mais numerosas as pessoas
que crêem nos milagres da Santa Virgem, do que aquelas que acreditam na existência do
inconsciente” (FREUD, 1932a, p. 186).
O autor situou ainda o limite de sua psicologia profunda na relação com outras disciplinas e
na função de psicanalizar as formações humanas. Para ele:
[...] só se pode caracterizar como simplório o temor às vezes expresso de que
todos os mais elevados bens da humanidade, como são chamados — a pesquisa, a
arte, o amor, o senso ético e social — perderão seu valor ou sua dignidade porque
a psicanálise se encontra em posição de demonstrar sua origem em impulsos
[pulsionais] elementares e animais (FREUD, 1922, p. 305).
Para ele, a psicanálise deixa sempre seu caminho aberto para as mudanças e novas
compreensões dos fenômenos, pois tem um caráter de incompletude e aposta em revisitações
futuras. Assim, segundo Freud, a psicanálise é uma ciência empírica e,
[...] não é, como as filosofias, um sistema que parta de alguns conceitos básicos
nitidamente definidos, procurando apreender todo o universo com o auxílio deles,
e, uma vez completo, não possui mais lugar para novas descobertas ou uma
melhor compreensão. Pelo contrário, ela se atém aos fatos de seu campo de
estudo, procura resolver os problemas imediatos da observação, sonda o caminho
à frente com o auxílio da experiência, acha-se sempre incompleta e sempre pronta
a corrigir ou a modificar suas teorias. Não há incongruência (não mais que no caso
da física ou da química) se a seus conceitos mais gerais falta clareza e seus
postulados são provisórios; ela deixa a definição mais precisa deles aos resultados
do trabalho futuro
(FREUD, 1922, p. 306).
A partir dessa contextualização, podemos dissertar sobre a psicanálise enquanto resposta
para a questão do desamparo. Para a psicanálise, a constituição humana é permeada pela falta e pelo
vazio que marcam sua condição de sujeitos desejantes e falantes. Ela propõe, então, a aceitação
desses limites – a falta, o vazio, a falha, a inexistência de garantias – como dados de realidade com
os quais se aprenda a lidar rumo à maturidade subjetiva.
“Para a psicanálise, uma das formas pelas quais o sujeito pode dar conta de sua
divisão e natureza cindidas, em busca de uma existência menos conflituosa, é a
69
articulação de uma subjetividade tanto capaz de suportar a falha e a falta, oriundas
dessa cisão, sem que estas ameacem demasiadamente sua estrutura psíquica,
quanto de administrar seus conflitos em direção à maturidade” (RUPRECHT;
SOUZA, 2006, 152).
O confronto da realidade tal qual ela se apresenta – ou seja, a verdade – é a direção do
discurso psicanalítico. A psicanálise sabe ser incapaz de dominar completamente a realidade severa
e dura. Por isso, não pretende engessar a realidade com propostas totalizantes. Além disso, ela
localiza que a busca pelo objeto primordial é vã e fracassada e que, desse modo, os sujeitos estão
estruturalmente desamparados.
A proposta da psicanálise para esse sujeito cindido é a aceitação dos seus limites,
que incluem a falta e a falha, a articulação de uma metodologia de análise de
realidade capaz de integrar essa alteridade e o investimento num processo de
elaboração de uma singularidade que possa suportar a saída do ideal narcísico
(RUPRECHT; SOUZA, 2006, 159).
3.2.4 Conclusão: Freud, o devoto do deus Logos
Penso haver uma estreita relação entre as interpretações dadas aos termos
estudados – ciência, religião, desamparo, ilusão – e o sistema filosófico que
embasa o modelo científico adotado. Freud, desde as primeiras idéias, insere a
psicanálise no projeto do Iluminismo, tratando de dar-lhe estatuto científico,
prometendo que ela forneceria ‘corretivos’ para retificar os processos danosos da
civilização. Paulatinamente, porém, volta-se para outros referentes para embasar-
se – como a mitologia e a literatura. Em 1912, escreve Totem e tabu, em 1915, os
textos da metapsicologia, onde cada vez mais o conflito entre as pulsões e as
exigências do mundo externo mostram-se insolúveis. A partir da teorização da
pulsão de morte – talvez uma herança dos tempos da Primeira Guerra – o sujeito
vai perdendo o brilho iluminista e vai sendo tingido com as cores sombrias do
desamparo (WONDRACEK, 2003, p. 194).
A partir dessa afirmação, abrimos as cortinas para uma perspectiva crítica das obras
freudianas. Tal perspectiva, no entanto, tem como objetivo situar historicamente o pensamento do
autor para nos dar ferramentas de alcançar as revisões teóricas. O pensamento freudiano, então, foi
profundamente marcado por três correntes: o Romantismo, o Positivismo e o Evolucionismo.
Pode-se ver o empirismo inglês como uma das bases mais fortes: a tradução do
Ensaio de Locke, em 1700, invadiu o continente europeu e provocou uma revirada: a
70
partir de então, a razão não é mais sinônimo de pensamentos ideais, mas é vista
como a capacidade de combinar sensações provindas dos órgãos dos sentidos com
reflexões (WONDRACEK, 2003, p. 169).
Sendo assim, nas obras do autor localizamos passagens como esta: “o problema da natureza
do mundo sem levar em consideração nosso aparelho psíquico perceptivo não passa de uma
abstração vazia, despida de interesse prático” (FREUD, 1927, p. 71).
Além disso, Freud também recebeu influência do Romantismo, que prosperou no final do
século XVIII e durante o século XIX. “A idéia de que a realidade é racionalidade e perfeição; a
razão, como princípio e força infinito; o providencialismo histórico, com reconhecimento da
bondade em cada etapa” (WONDRACEK, 2003, p. 170) são pontos que marcam de maneira
decisiva as abordagens freudianas.
O positivismo surge no século XIX e tem em seu auge o pensamento de Augusto Comte. Tal
pensamento marca profundamente a noção freudiana, especialmente as idéias sobre a religião.
O ápice deste posicionamento é alcançado com o pensamento de Augusto Comte
(1798-1857) que pretende estabelecer uma filosofia da história sob a perspectiva
de um desenvolvimento progressivo. Teoriza que a humanidade atravessa três
estados sucessivos e excludentes: o teológico ou fictício; o metafísico ou abstrato;
o positivo ou real (WONDRACEK, 2003, p. 171).
Assim, localizamos em Freud a noção de maturidade humana em sua proposta de
desaparecimento da religião, na qual uma etapa iria substituir a outra. Pontuamos que o autor
nomeou essas fases de animista, religiosa e científica. De acordo com ele, ocorreria um caminho
evolutivo que iria dos pensamentos mágicos em direção a uma concepção científica da vida. Dentro
da abordagem freudiana seria, então, a passagem do princípio de prazer para o de realidade.
No positivismo, havia uma idéia romântica da ciência:
A única manifestação legítima do Infinito, dando-lhe conotações quase religiosas,
constituindo-se em alternativa às religiões tradicionais, e em fundamento último
das normas éticas. Como conseqüência, todo sobrenatural, visto como oponente ao
científico, é considerado inimigo do humano e deve ser eliminado
(WONDRACEK, 2003, p. 170).
Tal noção pode ser localizada com facilidade nos argumentos freudianos a respeito do poder
da ciência e do esvaescimento religioso. Assim vemos que sua exclamação no final de O futuro de
uma ilusão tem esse caráter taxativo: “Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar
71
que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar” (FREUD, 1927, p.
71). Para ele, a ciência alcança um lugar bastante elevado e tal apreensão é algo que fazia parte da
cosmovisão da época, e não uma criação exclusiva da psicanálise.
Ainda podemos determinar outras influências no pensamento freudiano, como a de
Brentano, Brücke e Helmholtz.
De Franz Brentano tomará as bases para entender a psicologia como ciência
empírica, e o amor-ódio como estrutura fundamental da consciência, assim como
o prazer-desprazer. Brücke, entre outros aspectos, o influencia com o solene
juramento da Escola Médica de Helmholtz de dar vigor à verdade de que não
existem no organismo outras forças ativas do que as físicas e químicas
(WONDRACEK, 2003, p. 171).
Ele foi influenciado, então, pelo materialismo médico (GAY, 1992, p. 54), no qual estavam
inseridos os cientistas positivistas, ou seja, seus professores na Escola de Medicina, que levaram o
programa do Iluminismo para o laboratório de química e para o auditório de anatomia. Por causa de
seu estilo iluminista – um bom filho do Iluminismo – Peter Gay qualifica Freud como o último
filósofo (GAY, 1992, p. 53).
Freud ainda que não pensasse em sua ciência como uma religião substitutiva,
gostava de ver no Iluminismo seu antecessor intelectual. É significativo o fato de
ter escolhido justamente O futuro de uma ilusão, seu mais pesado ataque contra a
religião, para nele declarar a renúncia de qualquer originalidade em sua crítica. Ele
reconhecia, e disso extraía novas forças, sua dívida para com as mentes iluministas
do passado (GAY, 1992, p. 54).
Essas influências, assim, marcam decisivamente a psicanálise e as obras freudianas. Dessa
forma, nos deparamos com Freud mergulhado no universo cultural de seu tempo. Com isso, sua
própria maneira de pensar tinha essa localização precisa. A psicanálise, enquanto uma nova teoria,
esteve desde o começo enlaçada no cenário apresentado acima.
Como podemos deduzir, então, o olhar de Freud para o futuro e as ilusões é profundamente
marcado por essas compreensões que dão ênfase à razão e desconsideram a legitimidade de
processos espirituais e religiosos.
[...] Miller nos remete à influência que Freud esteve sujeito quando a psicanálise
foi inventada no final do século XIX e início do século XX. O paradigma teórico
então dominante era o positivismo [...]. Trata-se de um positivismo ainda
‘naturalista’ (Miller), que na época dos primórdios da psicanálise já se distanciava
72
do original de Comte, por meio de uma segunda geração representada por autores
como Spencer e Stuart Mill. Mas, não era ainda o chamado positivismo lógico,
que só viria a surgir, nos anos 20, com Carnap e o ‘Círculo de Viena’ [...]
(OLIVEIRA, 2000, p.2).
Sendo assim, a psicanálise foi marcada por esse contexto:
As ciências humanas e sociais, ou as ciências do espírito (as velhas
Geisteswissenschaften’, como Dilthey as chamou) eram vistas como
‘metafísicas’, como excessivamente discursivas, especulativas, vagas e abstratas.
Devendo, portanto, ser reformadas (ou mesmo criadas) sob o paradigma das
ciências físicas e naturais, como a única via para alcançar a cientificidade nas suas
áreas (OLIVEIRA, 2000, p.3).
Diante disso, algumas conclusões emergem:
Freud partiu do positivismo, fato que, como indica Miller, lhe criou um problema.
Ele inventou uma nova disciplina que tomou como objeto o homem como sujeito,
como falante, naquilo que o distingue dos outros animais. Assim, situou a
psicanálise, que não é propriamente uma ciência, no campo das ciências humanas.
Mas, o fez inicialmente ao estilo positivista da época, segundo uma referência ou
modelo das ciências físicas e da natureza, especialmente a biologia e a
termodinâmica, então recente ramo da física (OLIVEIRA, 2000, p. 5).
Como conseqüência dessa influência, entendemos que Freud criou sua teoria com base no
biologismo da época. Assim, o próprio conceito de desamparo exibe esse caráter biologista, como
apontamos inicialmente.
No entanto, ao longo do tempo, aparecem sinais de que a concepção otimista de Freud
começa a ser posta em xeque. Indicações nas quais ele passa a se questionar sobre as possibilidades
humanas passam a fazer parte de seus textos com apresentações menos taxativas e positivas:
Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua
ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último
homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de
sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que os outros dois
‘Poderes Celestes’, o eterno Eros, desdobre suas forças para poder se afirmar na
luta contra seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que
sucesso e com que resultado? (FREUD, 1929, p. 170).
Sendo assim, a compreensão do futuro civilizatório não é a mesma em toda obra freudiana.
Ao longo dos escritos há uma revisão da própria teoria. Em suas últimas obras, ele passou a
73
produzir textos questionadores do futuro da civilização. Vemos, então, Freud menos confiante e
normativo: “[...] um dos problemas que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal
acomodação [entre as reivindicações do indivíduo e as do grupo cultural] pode ser alcançada por
meio de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito é irreconciliável” (FREUD,
1929, p. 116).
Os apontamentos críticos sobre esse processo indicam que:
Os descaminhos se tornam manifestos com a Primeira Guerra Mundial. Por isso
ataca o prognóstico otimista de Freud com uma saraivada de dúvidas: questiona o
poder da ciência de domesticar as paixões e colocá-las a serviço da cultura;
questiona a felicidade oriunda do desenvolvimento científico (WONDRACEK,
2003, p. 175).
Saltando para o cenário contemporâneo, nos deparamos com revisitações ao pensamento de
Freud. Uma delas, especialmente, nos aponta a importância da compreensão freudiana como
instrumento de análise dos fenômenos atuais. Ao localizar um certo elogio da lucidez na obra
freudiana, o filósofo Luc Ferry afirma que “além do simples interesse histórico, que não pode ser
negligenciado, trata-se de compreender a significação de tais promessas, talvez não para ceder
ingenuamente a elas, mas para medir de que modo e, sobretudo, por que elas ainda nos falam nos
dias atuais” (FERRY, 2004, p. 163).
Assim, continuaremos nossa caminhada, sem a tentação da ingenuidade, mas sempre com a
atenção dirigida para o objetivo de encontrar a significação apontada pelo filósofo. Para isso, nesse
momento, precisamos percorrer ainda a concepção freudiana sobre a arte e estabelecer como esta
serve ao ser humano e seu desamparo.
3.3 Arte e desamparo
No presente item, analisamos a questão da arte e como ela se conecta com a psicanálise e
sua noção de desamparo. Freud também examinou com minúcias as obras de alguns artistas. Ele
tratava a arte como expressão da subjetividade e da atividade psíquica. Assim, escolhemos algumas
análises que ele realiza a fim de ilustrar as construções de Freud sobre a atividade artística.
74
A arte e a psicanálise são dois produtos culturais que denunciam o espírito da época. Apesar
disso, Freud fez suas referências em relação aos artistas clássicos, como por exemplo,
Michelangelo, Leonardo da Vinci, Dostoievski e não se aproximou das vanguardas artísticas e
literárias da Viena de sua época.
Freud via a arte como uma importante fonte de satisfação para os seres humanos. Porém, ele
deixou claras as limitações de sua disciplina frente à arte ao dizer que “a psicanálise esclarece
satisfatoriamente alguns dos problemas referentes às artes e aos artistas, embora outros lhe escapem
inteiramente” (FREUD, 1913, p. 222).
A descoberta freudiana do inconsciente marca a tendência de que a criação artística seja
marcada por essa liberdade oposta ao que é consciente ou racional e tal fato assinala a importância e
a justificativa da relação entre as duas disciplinas.
De fato, a busca de uma pureza artística, de se retomar a arte em suas origens –
ingênuas, loucas ou primitivas – integra em seu ideal revolucionário a noção de
inconsciente como o que se oporia ao intencional, consciente ou racional,
ponderado, e permitiria portanto uma irradiação de imagens supostamente livres
das amarras das convenções e exigências estéticas (RIVERA , 2005, p. 11).
A arte representava, para o autor, a sublimação para o desamparo psíquico, pois ela “oferece
satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renúncias culturais, e,
por esse motivo, ela serve como nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios
que tem de fazer em benefício da civilização” (FREUD, 1927, p. 25).
O autor, como já apontamos, realizou analogias entre as neuroses e as criações artísticas e
também entre os sintomas neuróticos e as obras de arte. Para ele, as forças pulsionais que
participam da criação artística são as mesmas que instalam a neurose e as formações da civilização.
As forças motivadoras dos artistas são os mesmos conflitos que impulsionam
outras pessoas à neurose e incentivaram a sociedade a construir suas instituições.
De onde o artista retira sua capacidade criadora não constitui questão para a
psicologia. O objetivo primário do artista é libertar-se e, através da comunicação
de sua obra a outras pessoas que sofram dos mesmos desejos sofreados, oferecer-
lhes a mesma libertação (FREUD, 1913, p. 222).
Além disso, as criações artísticas desempenhavam, na visão do autor, a partilha de
experiências emocionais em função do sentimento de identificação de toda a unidade cultural. Freud
ressaltava que a arte é capaz de reconciliar os sujeitos com a cultura, na medida em que reforça os
laços de pertencimento.
75
Apesar de defender que a arte permanecia inacessível às massas em função do trabalho
exaustivo e da pouca educação pessoal, ele acreditava na importância da partilha de experiências
emocionais advindas de tal realização cultural. “E quando essas criações retratam as realizações de
sua cultura específica e lhe trazem à mente os ideais dela de maneira impressiva, contribuem
também para sua satisfação narcísica” (FREUD, 1927, p. 25).
Assim sendo, Freud denunciava que a arte se encaixa entre a realidade e o mundo imaginário
e, por isso, ela poderia ser encarada como uma das ilusões da civilização. Porém, ela seria uma
ilusão inofensiva por não apresentar a pretensão de explicar a realidade. “A arte quase sempre é
inócua e benéfica; não procura ser nada mais que uma ilusão. Excetuando algumas pessoas que se
diz serem ‘possessas’ pela arte, esta não tenta invadir o reino da realidade” (FREUD, 1932b, p.
196).
Desse modo, a criação artística seria, de acordo com ele, uma saída para o conflito entre a
pulsão e a realidade que se opõe à sua satisfação. A arte seria, a seu ver, uma das grandes
realizações humanas que tentam apaziguar a angústia, apesar da dureza da realidade, e libertar os
indivíduos de forma prazerosa.
A proposta apresentada pelo autor consistiu na reorientação dos objetivos pulsionais na
tentativa de se esquivar com habilidade das frustrações do mundo externo. “A psicanálise não tem
dificuldade em ressaltar, juntamente com a parte manifesta do prazer artístico, uma outra que é
latente, embora muito mais poderosa, derivada das fontes ocultas da libertação [pulsional]”
(FREUD, 1913, p. 223).
De tal forma, o termo sublimação é utilizado por Freud para se referir a esse processo de
deslocamento, no qual ocorre uma substituição da pulsão sexual por outros objetos ainda mais
valorizados socialmente, como são os produtos da criação artística.
A sublimação [da pulsão] constitui um aspecto particularmente evidente do
desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas
superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão
importante na vida civilizada. Se nos rendêssemos a uma primeira impressão,
diríamos que a sublimação constitui uma vicissitude que foi imposta [às pulsões]
de forma total pela civilização (FREUD, 1929, p. 118).
Assim, frente ao antagonismo das exigências internas da satisfação pulsional e as instâncias
da civilização, Freud apontou a sublimação como uma das saídas possíveis. O outro caminho seria o
da formação dos sintomas, caso a pulsão seja recalcada. Dessa forma, podemos caracterizar a
76
sublimação como algo que oferece ao sujeito uma saída que não seja a da formação de sintoma, a
angústia e a inibição.
Desse modo, seria uma criação que passa do singular para o coletivo e que possibilita
também a manutenção de laços sociais. Tal aspecto da sublimação operada através da arte é
essencial para entendermos como a atividade artística auxilia os sujeitos na tentativa de organizar
sua sensação de desamparo.
Segundo Freud, o processo de criação artística ocorre, na medida em que o artista
“representa suas fantasias mais pessoais plenas de desejo como realizadas; mas elas só se tornam
obra de arte quando passaram por uma transformação que atenua o que nelas é ofensivo, oculta sua
origem pessoal e, obedecendo às leis da beleza, seduz outras pessoas com uma gratificação
prazerosa” (FREUD, 1913, p. 222).
No entanto, o autor percebeu um ponto fraco em tal mecanismo, uma vez que, além da arte
não ser acessível a muitas pessoas, ela ainda depende dos dotes e disposições especiais para sua
execução e apreciação. E ainda assim, ela também não pode pretender uma proteção completa
contra o sofrimento, padecendo, assim, com suas limitações.
Porém, mesmo que as criações artísticas sejam apenas ilusões que aquietam os sujeitos, “as
satisfações substitutas, tal como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade;
nem por isso, contudo se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia
assumiu na vida mental” (FREUD, 1929, p. 93).
Desse modo, a capacidade humana de fantasiar a realidade com suas ilusões estava, para ele,
localizada na vida da imaginação. Tal região, de acordo com Freud, ficou isenta das exigências da
realidade e a serviço dos desejos e satisfações refinadas e altamente valorizadas.
À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de
arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles
que não são criadores. As pessoas receptivas à influência da arte não lhe podem
atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e consolação na vida. Não
obstante, a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um
afastamento passageiro das pressões das necessidades vitais, não sendo
suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição real. (FREUD, 1929, p.
100).
Freud, desde o Projeto para uma psicologia cientifica, como vimos no primeiro capítulo,
tratou da experiência primordial de satisfação humana, quando o bebê é alimentado e saciado. Tal
experiência que acontece como tentativa de aplacar o desamparo humano marca o ser humano em
77
sua existência. As marcas são, no entanto, fundamentais para a constituição do psiquismo de cada
sujeito.
Como sabemos, em virtude da precariedade psicomotora, ocorre uma primeira experiência
de satisfação e esta, por sua vez, traz consigo a marca da inscrição do objeto primordial que
propicia a satisfação e que, por não ser onipotente, instaura no aparelho psíquico uma espécie de
vazio.
Através das satisfações oriundas da criação artística, no entanto, tal perda ou vazio pode ser
organizado e deixar de causar angústia. É uma espécie de rearranjamento que funciona como uma
tentativa de reencontro desse objeto perdido desde sempre.
A arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graças à ilusão artística,
os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte
constitui um meio-caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o mundo
de desejos realizados da imaginação – uma região em que, por assim dizer, os
esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor
(FREUD, 1913, p. 223).
Dessa forma, Freud nos atentou para o fato de que a arte não se originou de um puro amor a
arte. Assim, ainda segundo ele:
Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de
pensamentos e esse campo é o da arte. Somente na arte acontece ainda que um
homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses
desejos e o que faça com um sentido lúdico produza efeitos emocionais – graças à
ilusão artística – como se fosse algo real. As pessoas falam com justiça da ‘magia
da arte’ e comparam os artistas aos mágicos. Mas a comparação talvez seja mais
significativa do que pretende ser. Não pode haver dúvida de que a arte não
começou como arte por amor a arte. Ela funcionou originalmente a serviço de
impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles podemos
suspeitar da presença de muitos intuitos mágicos
(FREUD, 1912a, p. 113).
No entanto, Freud alertou com precisão, como veremos no exemplo de Leonardo da Vinci,
que a atividade artística tem seu caráter sublimatório, mas não aplaca completamente as marcas de
sofrimento, na medida em que despreza a fonte direta de satisfação sexual. Passemos agora, então,
para a análise freudiana do artista Leonardo da Vinci, que servirá de exemplo para desvendarmos
melhor essa insuficiência e o sentido da criação artística na vida desse prestigiado artista.
78
3.3.1 Leonardo da Vinci
Freud analisou várias obras de arte clássicas e psicanalizou a vida de artistas, como
Leonardo da Vinci. Ele tinha um grande interesse por esse tipo de estudo. De acordo com ele, “a
conexão entre as impressões da infância do artista e a história de sua vida, por um lado, e suas obras
como reações a essas impressões, por outro, constitui um dos temas mais atraentes de estudo
analítico” (FREUD, 1913, p. 223).
Com isso, podemos ver que Freud analisou a biografia de Leonardo da Vinci com o objetivo
de explicar primeiramente as inibições na vida do artista. “Mesmo que a psicanálise não esclareça o
poder artístico de Leonardo, pelo menos torna, para nós, mais compreensíveis suas manifestações e
suas limitações” (FREUD, 1910a, p. 123). Com isso, ele permeia também a função da arte na vida
do artista e localiza esta como uma das saídas possíveis para o desamparo dele.
O autor retrata a resistência que permeou toda a trajetória de da Vinci. Ele analisou que este
sofreu com um conflito entre o ofício de pesquisador e o de artista: “o pesquisador que nele existia
nunca libertou totalmente o artista durante todo o curso de seu desenvolvimento, limitando-o muitas
vezes e talvez, mesmo, chegando a eliminá-lo” (FREUD, 1910a, p. 59).
A partir disso, Freud passou a se perguntar o que impediu que a personalidade de Leonardo
fosse compreendida por seus contemporâneos. Da Vinci fez uma passagem de sua dedicação das
artes para a ciência. É nesse ponto de grande inconstância que o autor se detém para explicar a
incompreensão dos contemporâneos do artista para com suas realizações artísticas.
Freud analisou ainda que Leonardo possuía uma forte característica defensiva, na medida em
que usava do conhecimento e da atividade intelectual como a forma predominante de tratar seus
próprios sentimentos. Com isso, Freud chegou à análise da esfera da vida sexual do artista, que era,
por sua vez, atrofiada em função de seu grande investimento na intelectualidade.
Assim, ele diz que “a essência e o segredo de sua natureza parecem derivar do fato que,
depois de sua curiosidade ter sido ativada, na infância, a serviço de interesses sexuais, conseguiu
sublimar a maior parte da sua libido em sua ânsia pela pesquisa” (FREUD, 1910a, p. 74).
Além da inconstância relatada por Freud, ele trabalhou em seu artigo ainda a vida familiar
de Leonardo. Ele passou os primeiros anos de sua vida com sua mãe gentil e carinhosa e com a
ausência do pai. Esse fato foi, segundo o autor, decisivo para a formação mental dele, pois “numa
79
terna idade tornou-se um pesquisador atormentado pela grande pergunta – saber de onde vêm os
bebês e o que tem a ver o pai com sua origem” (FREUD, 1910a, p. 85).
A questão sobre o pai foi algo que, segundo o autor, marca definitivamente a vida de da
Vinci, pois este “criava a obra de arte e depois dela se desinteressava, do mesmo modo que seu pai
se desinteressara por ele” (FREUD, 1910a, p. 111). Por outro lado, a experiência paternal foi
também determinante para que ele se rebelasse e se voltasse para o campo da pesquisa científica.
Com isso, ele foi considerado o primeiro cientista natural moderno.
Leonardo não desmentia, inclusive, a versão de Freud sobre a origem da religião.
Biologicamente falando, o sentimento religioso origina-se na longa dependência e
necessidade de ajuda da criança; e, mais tarde, quando percebe como é realmente
frágil e desprotegida diante das grandes forças da vida, volta a sentir-se como na
infância e procura então negar a sua própria dependência, por meio de uma
regressiva renovação das forças que a protegiam na infância (FREUD, 1910a, p.
113).
Desse modo, o artista foi acusado de herege, pois abandonou a fé cristã e voltou-se
totalmente para seu trabalho de pesquisa. Em sua arte, ele “despiu as sagradas figuras de todos os
vestígios de sua ligação com a Igreja, tornando-as humanas, para nelas representar grandes e belas
emoções humanas” (FREUD, 1910a, p. 114).
Assim, Freud afirma que as condições da infância do artista tiveram um efeito perturbador e
que causou um caminho de fracasso por uma falta de vontade perante a vida. Porém, para ele, são
fatos que não devem diminuir a grandeza do artista.
Como vimos, o talento artístico estava, para Freud, completamente ligado à sublimação das
pulsões sexuais. Assim, ele defendeu que “devemos contentar-nos em enfatizar o fato de que
dificilmente se pode duvidar – de que a criação do artista proporciona também uma válvula de
escape para seu desejo sexual” (FREUD, 1910a, p. 123).
Posteriormente, nos deparamos com estudos de tal mecanismo de sublimação operado por
da Vinci que reafirmam a percepção de Freud: “Sublimação de excelência, do tipo mais raro e
perfeito, encontrou Freud em Leonardo da Vinci, que criou uma escrita através do desenho,
culminada em uma assinatura cifrada do seu nome próprio. Na solidão do seu saber fazer, da Vinci
sublimou sua vida sexual atrás do apetite do olhar” (ANTELO, 2008, p. 204).
Além disso, podemos ver que Freud deu ênfase particular para a análise do sorriso de Mona
Lisa. Tal fato aponta para o sorriso da mãe e para a busca de uma felicidade para sempre perdida.
Freud aponta, então, a nostalgia de um objeto primordial e absoluto que guia a atividade desejante.
80
“[...] o sorriso de Mona Lisa del Giocondo havia despertado nele, já homem feito,
a lembrança da mãe que tivera em sua primeira infância. Dessa época em diante,
as madonas e as senhoras aristocráticas dos quadros italianos passaram a ser
pintadas com a humilde inclinação da cabeça e sorrindo o estranho e bem-
aventurado sorriso de Caterina, a pobre camponesa que dera à luz o magnífico
filho cujo destino seria pintar, pesquisar e sofrer” (FREUD, 1910a, p. 104).
Assim sendo, essa análise freudiana foi escolhida para exemplificar como Freud via nas
criações artísticas uma estreita relação com as satisfações pulsionais que os sujeitos almejam. Tal
análise também nos remete a essa tentativa de reencontrar o objeto primordial e a importância das
relações parentais frente ao sentimento de falta de amparo que tem um peso determinante na relação
de desejo e criação humana.
Na tentativa de ampliar nossa compreensão, passaremos agora para mais uma análise
realizada por Freud: o Moisés de Michelangelo. Essa investigação freudiana foi escolhida também
para exemplificar como o autor aplicou as noções psicanalíticas ao processo artístico e criativo de
pessoas que exibiram suas habilidades especiais.
3.3.2 O Moisés de Michelangelo
A pesar de Freud se considerar um leigo no mundo das artes, ele não escondia que as obras
de arte exerciam sobre ele uma grande impressão, especialmente a literatura e a escultura. Assim, o
objetivo do autor, ao se enveredar pelo caminho das artes, foi o de analisar, através de palavras, as
obras que o causavam admiração, assim como fazia com qualquer outra atividade mental (FREUD,
1938a, p. 253).
Para isso, ele utilizou a psicanálise e apostou que a interpretação da obra de arte alcançava a
emoção do espectador. Freud, então, interpretou a estátua de mármore de Moisés, esculpida por
Michelangelo, e situada na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma. Ele afirmou: “nunca uma
peça de estatuária me causou impressão mais forte do que ela” (FREUD, 1938a, p. 255).
Segundo ele, não havia a menor dúvida de que a estátua representava Moisés, o legislador
dos judeus, segurando as tábuas dos dez mandamentos. Assim, ele analisou a obra a fim de explicar
porque foi tão fortemente afetado por ela, conforme ele descreveu:
81
Quantas vezes subi os íngremes degraus que levam do desgracioso Corso Cavour
à solitária piazza em que se ergue a igreja abandonada e tentei suportar o irado
desprezo do olhar do herói! Às vezes saí tímida e cuidadosamente da semi-
obscuridade do interior como se eu próprio pertencesse à turba sobre a qual seus
olhos estão voltados – a turba que não pode prender-se a nenhuma convicção, que
não tem nem fé nem paciência e que se rejubila ao reconquistar seus ilusórios
ídolos (FREUD, 1938a, p. 255).
Vemos, então, Freud arrebatado pela impressão que a obra de Michelangelo lhe causava. Ainda de
acordo com ele, a expressão facial de Moisés denunciava uma mistura de ira, dor e desprezo: “ira
em suas sobrancelhas ameaçadoramente contraídas, dor no olhar e desprezo no lábio inferior
saliente e nos cantos da boca, voltados para baixo” (FREUD, 1938a, p. 257).
Dessa forma, o autor insistiu que havia um contraste entre a calma exterior e a emoção
interior demonstrada na estátua de Moisés. Assim sendo, ele se dedicou a interpretar o estado de
espírito do herói. Após realizar uma análise minuciosa da expressão de Moisés, Freud defendeu que
Michelangelo retratou esse herói como um homem que controlou sua ira e conteve a satisfação de
seus sentimentos.
O que vemos diante de nós não é o início de uma ação violenta, mas os restos de
um movimento já efetuado. Em seu primeiro transporte de fúria, Moisés desejou
agir, levantar-se, vingar-se e esquecer as Tábuas; mas dominou a tentação e
permanecerá sentado e quieto, com sua ira congelada e seu sofrimento mesclado
de desprezo. Tampouco atira fora as Tábuas, de maneira a que se quebrem sobre
as pedras, pois foi por sua causa especial que controlou a ira; foi para preservá-las
que manteve contida sua paixão. Ao dar expressão à sua cólera e indignação, teve
de abandonar as Tábuas e a mão que a retinha foi afastada. Elas começaram a
deslizar e ficaram em perigo de se quebrarem. Isso o trouxe a si. Lembrou-se de
sua missão e, por causa dela, renunciou à satisfação de seus sentimentos. Sua mão
retornou e salvou as Tábuas desapoiadas antes que caíssem realmente ao solo.
Nessa atitude permaneceu imobilizado e foi nela que Michelangelo o retratou
como guardião do túmulo (FREUD, 1938a, p. 272).
Assim, observamos como Freud indagou fortemente o momento que Michelangelo capturou
para esculpir sua obra de arte. O autor, no entanto, contradiz a maioria de seus contemporâneos que
analisaram que Moisés estaria a ponto de mostrar sua cólera e destruir as Tábuas. Para ele,
Michelangelo alterou o texto das escrituras sagradas e o caráter de Moisés, humanizando o herói.
O Moisés da lenda e da tradição tinha um temperamento impetuoso e era sujeito a
crises de paixão. [...] Mas Michelangelo colocou um Moisés diferente na tumba do
Papa, um Moisés superior ao histórico ou tradicional. Modificou o tema das
Tábuas quebradas; não permite que Moisés as quebre em sua ira, mas faz que ele
seja influenciado pelo perigo de que se quebrem e o faz acalmar essa ira, ou, pelo
82
menos, impedi-la de transformar-se em ato. Dessa maneira, acrescentou algo de
novo e mais humano à figura de Moisés; de modo que a estrutura gigantesca, com
a sua tremenda força física, torna-se apenas uma expressão concreta da mais alta
realização mental que é possível a um homem, ou seja, combater com êxito uma
paixão interior pelo amor de uma causa a que se devotou.
(FREUD, 1938a, p.
274).
A fim de concluir, encontramos nessa interpretação freudiana uma consideração
inteiramente própria do autor. Situamos algumas explicações para a perspectiva de Freud, como a
de Ernest Jones, que localizou nos movimentos dissidentes de Adler e Jung a modificação da
análise que o autor fez sobre os sentimentos retratados na estátua. (FREUD, 1938a, p. 272).
Porém, podemos reconsiderar sobre o tema em questão na presente pesquisa e ressaltar a
dimensão ética na interpretação freudiana, uma vez que ele sugeriu, com a análise de Moisés, que
os seres humanos são capazes das maiores renúncias pulsionais para reafirmar seus laços amorosos,
fugir da sensação de desamparo e, com isso, alimentar as produções da civilização.
Concluímos, assim, que para Freud, a arte serve aos sujeitos como forma de organizar as
renúncias impostas às pulsões pela civilização a fim de que eles não caiam na rede do desamparo.
Seguiremos ainda com um último exemplo, o de Dostoievski, para abarcar a dimensão da
perspectiva freudiana sobre a relação entre a arte e o desamparo humano.
3.3.3 Dostoievski e o parricídio
Freud considerava Dostoievski um dos grandes escritores de seu tempo. Em função disso,
ele afirmou que o romance Os irmãos Karamassovi foi seu mais grandioso trabalho. Freud
qualificou Dostoievski de romancista dominado pelo sentimento de culpa:
Não há dúvida de que essa simpatia por identificação constitui valor decisivo na
determinação da escolha de material de Dostoievski. Ele tratou primeiramente do
criminoso comum (cujos motivos são egoístas) e do criminoso político e religioso,
sendo somente ao fim de sua vida que retornou ao criminoso primevo, ao
parricida, e utilizou-o, numa obra de arte, para efetuar sua confissão (FREUD,
1928, p. 219).
Assim, Freud afirmou que tal sentimento de culpa fundamentou o material da criação do
artista e marcou sua personalidade:
83
Depois das mais violentas lutas para reconciliar as exigências [pulsionais] do
indivíduo com as reivindicações da comunidade, veio a cair na posição retrógrada
de submissão à autoridade temporal e à espiritual, de veneração pelo czar e pelo
Deus dos cristãos, e de um estreito nacionalismo russo – posição a que mentes
inferiores chegaram com menor esforço. Esse é o ponto fraco dessa grande
personalidade. Dostoievski jogou fora a oportunidade de se tornar mestre e
libertador da humanidade e se uniu a seus carcereiros. (FREUD, 1928, p. 205).
Freud analisou que as pulsões destrutivas de Dostoievski foram dirigidas a sua própria
pessoa, transformando-se, assim, em masoquismo e sentimento de culpa. Para ele, o fato dele ter
dirigido as pulsões para si evitaram, no entanto, que ele se tornasse um criminoso na vida real. O
autor acrescentou à sua primeira análise, o fato de Dostoievski ser um neurótico que apresentava
como sintoma, expressão de sua vida mental, um quadro de epilepsia.
Ele supôs, porém, que era uma epilepsia afetiva, sem uma causa orgânica. “A suposição
mais provável é a de que as crises remontavam muito atrás em sua infância, que seu lugar foi
ocupado, de início, por sintomas mais brandos e que não assumiram forma epiléptica até depois da
experiência dilaceradora de seu décimo oitavo ano de vida: o assassinato de seu pai” (FREUD,
1928, p. 210).
Desse modo, o assassinato do pai de Dostoievski levou Freud a fazer uma analogia com o
homicídio do pai no romance Os irmãos Karamassovi. Assim, para ele, “somos tentados a ver nesse
acontecimento o trauma mais severo e a encarar a reação de Dostoievski a ele como um ponto
decisivo de sua neurose” (FREUD, 1928, p. 210).
Antes mesmo da incidência da epilepsia, nos primeiros anos de sua vida, Dostoievski
apresentava crises cujo teor era o temor da morte e que o colocavam em estado letárgico. Essa
situação levou Freud a analisar o significado dessas crises e sua sensação de que iria morrer.
Significam uma identificação com uma pessoa morta, seja com alguém que está
realmente morto ou com alguém que ainda está vivo e que o indivíduo deseja que
morra. O último caso é o mais significativo. A crise possui então o valor de uma
punição. Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra pessoa
e estamos mortos. Nesse ponto, a teoria psicanalítica introduz a afirmação de que,
para um menino, essa outra pessoa geralmente é o pai, e de que a crise
(denominada de histérica) constitui assim uma autopunição por um desejo de
morte contra um pai odiado. (FREUD, 1928, p. 211).
Como vimos anteriormente, em Totem e tabu, Freud mostrou que o parricídio teria sido o
crime primevo da humanidade e constitui, por isso, o núcleo da fantasia de cada sujeito. Nesse
84
sentido, o autor ressaltou a causa do sentimento de culpa do artista como uma necessidade de
expiação por seu desejo inconsciente de matar o pai.
Uma grande necessidade de punição se desenvolve no ego, que em parte se
oferece como vítima ao destino e em parte encontra satisfação nos maus tratos que
lhe são dados pelo superego (isto é, no sentimento de culpa), pois toda punição é,
em última análise, uma castração, e, como tal, realização da antiga atitude passiva
para com o pai. Mesmo o Destino, em última instância, não passa de uma projeção
tardia do pai (FREUD, 1928, p. 213).
De acordo com Freud, quando o pai é na vida real especialmente severo, o desejo
inconsciente torna-se ampliado. O pai de Dostoievski foi de temperamento violento e, por isso, tão
temido.
O que torna inaceitável o ódio pelo pai é o temor a este; a castração é terrível, seja
como punição ou como preço do amor. Dos dois fatores que reprimem o ódio pelo
pai, o primeiro, ou seja, o medo direto da punição e da castração, pode ser
chamado de anormal; sua intensificação patogênica só parece surgir com o
acréscimo do segundo fator, o temor à atitude feminina. Dessa maneira, uma forte
disposição bissexual inata se torna uma das pré-condições ou reforços da neurose.
(FREUD, 1928, p. 212).
Assim, Freud concluiu que a vida mental de Dostoievski podia ser sintetizada da seguinte
forma: “uma pessoa com uma disposição bissexual inata especialmente intensa, que pode defender-
se com intensidade especial contra a dependência de um pai especialmente severo” (FREUD, 1928,
p. 214).
Como conseqüência dessa atividade mental, para o autor, “as crises de Dostoievski
assumiram então um caráter epiléptico; ainda, indubitavelmente, significavam uma identificação
com o pai como punição, mas se tinham tornado terríveis, tais como a própria morte assustadora do
pai” (FREUD, 1928, p. 215).
O sentimento inconsciente de culpa do artista, na concepção de Freud, foi o que o levou a
aceitar alguns episódios em sua vida, assim como justificou sua bondade exagerada.
A condenação de Dostoievski como prisioneiro político foi injusta e ele deve ter
sabido disso, mas aceitou o imerecido castigo das mãos do Paizinho, do Czar,
como um substituto da punição que merecia por seu pecado contra o pai real. Em
vez de se punir a si mesmo, conseguiu fazer-se punir pelo representante paterno
(FREUD, 1928, p. 215).
85
Segundo Freud, o artista Dostoievski passou sua vida sem conseguir se libertar desse
sentimento. Além de marcar sua personalidade com tais sentimentos,
esses [...] também determinaram sua atitude nas duas outras esferas em que a
relação paterna constitui o fator decisivo, ou seja, sua atitude para com a
autoridade do Estado e para com a crença em Deus. Na primeira delas, findou pela
completa submissão a seu Paizinho, o Czar, que outrora desempenhara com ele, na
realidade, a comédia de matar que suas crises tão freqüentemente haviam
representado em brincadeira. Aqui, a penitência levou a melhor. Na esfera
religiosa, ele reteve mais liberdade: de acordo com relatórios aparentemente
fidedignos, oscilou, até o último momento de sua vida, entre a fé e o ateísmo. Seu
grande intelecto tornava-lhe impossível desprezar qualquer das dificuldades
intelectuais a que a fé conduz. Através de uma recapitulação individual de um
desenvolvimento da história mundial, esperou descobrir uma saída e uma
libertação da culpa no ideal cristão e, mesmo, fazer uso de seus sofrimentos como
reivindicação de estar representando um papel semelhante ao de Cristo. Se, em
geral, não conseguiu a liberdade, tendo-se tornado um reacionário, isso se deveu
ao fato de a culpa filial, que se acha presente nos seres humanos em geral e sobre a
qual o sentimento religioso e construído, ter atingido nele uma intensidade
superindividual e permanecido insuperável inclusive à sua grande inteligência
.
(FREUD, 1928, p. 216).
A vivência de Dostoievski com seu pai decidiu, assim, também o material de seus escritos e,
especialmente, do romance que Freud tanto admirava. Assim, ele descreveu uma cena do romance
que mais lhe chamou a atenção devido a seu conteúdo revelador:
No decorrer de sua conversa com Dimitri, o Padre Zossima reconhece que aquele
está preparado para cometer parricídio e se ajoelha a seus pés. É impossível que
isso pode ser entendido como expressão de admiração; tem de significar que o
santo homem está rejeitando a tentação a desprezar ou detestar o assassino e, por
isso, se humilha perante ele. A simpatia de Dostoievski pelo criminoso é, de fato,
ilimitada; vai muito além da piedade a que o infeliz tem direito e nos faz lembrar
do ‘temor sagrado’ com que os epilépticos e os lunáticos eram encarados no
passado. Um criminoso, para ele, é quase um Redentor, que tomou sobre si
próprio a culpa que, em outro caso, deveria ter sido carregada pelos outros. Não há
mais necessidade de que alguém mate, visto que ele já matou, e há que ser-lhe
grato; não fosse ele, ver-nos-íamos obrigados a matar. Isso não é apenas piedade
bondosa, mas uma identificação com base em impulsos assassinos semelhantes –
na realidade, um narcisismo ligeiramente deslocado (FREUD, 1928, p. 218).
Foi também nesse sentimento de culpa que Freud localizou a fonte da compulsão pelo jogo
de Dostoievski. Esta tinha como fundamento a sua necessidade de autopunição. Inclusive, Freud
analisou que “quando o sentimento de culpa dele ficava satisfeito pelos castigos que se havia
86
infligido, a inibição incidente sobre seu trabalho se tornava menos grave e ele se permitia dar alguns
passos ao longo da estrada do sucesso” (FREUD, 1928, p. 220).
Concluímos, então, através da análise que Freud fez da vida e obra de Dostoievski que a
relação deste com o pai foi determinante em sua personalidade e em suas criações. “Considere seu
espantoso desamparo frente às manifestações do amor. Tudo de que realmente tomamos
conhecimento são o desejo bruto e [pulsional], a submissão masoquista e o amor por piedade”
(FREUD, 1928, p. 226).
Sendo assim, vemos como o desamparo de sua construção da fantasia edípica e em suas
relações familiares o conduziu a uma existência cuja vida mental foi considerada anormal por
Freud, apesar de admirar o trabalho do artista. O desamparo na vida familiar contaminou grande
parte do material da obra de Dostoievski, conforme a análise freudiana nos aponta.
Percorrido esse trajeto, iremos, a partir de então, realizar um salto para as compreensões
críticas e as apreensões acerca do trabalho de Freud, além das reconsiderações empreendidas, tendo
ainda como norte o ponto de vista psicanalítico.
3.3.4 Conclusão: Freud, o destruidor de ilusões.
Posteriormente a Freud, Lacan vem apresentar a sua significação do lugar da arte. Para ele,
há um vazio determinante que situa os seres humanos em suas existências. Assim, toda a arte se
caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio.
Apesar de termos visto, que há uma procura vã pelo objeto primordial e perdido desde
sempre e que jamais iremos reencontrar, a busca permanece e uma das formas dela se dar é a
através da criação artística. A experiência de busca acontece na relação do sujeito com seus objetos
e desejos através de mecanismos sublimatórios.
Apontamos que Freud levou sua psicanálise até o processo de criação e para a psicologia do
artista. De uma maneira nem sempre facilmente percebida, porém diferente da posição freudiana,
“Lacan, portanto, não aplicará a psicanálise à arte nem ao artista. Mas aplicará a arte à psicanálise,
pensando que, porquanto o artista preceda o psicólogo, sua arte deve fazer avançar a teoria
psicanalítica” (REGNAULT, 2001, p.20).
87
Assim, a arte organiza com suas ferramentas imaginárias esse vazio, tornando-o
simbolicamente estruturado. Assim, podemos depreender que “a arte, então, não se contenta com
adornar, ilustrar; ela realmente organiza” (REGNAULT, 2001, p.22).
No cenário contemporâneo, podemos verificar que a arte ainda é vista como essa atividade
que organiza a falta e o vazio. “Através de inúmeros objetos, a arte organiza o vazio, a partir do
impossível de imaginar e de pensar. E, assim, ela inscreve no Outro da cultura o despertar de novas
possibilidades, sempre contrariando a tradição, escandalizando o burguês, fazendo o belo que
contesta o belo, tensão do sublime” (ANTELO, 2008, p. 205).
Além disso, atualmente são feitos outros apontamentos no que tange a relação das duas
disciplinas. A partir do século XX, o sujeito teria perdido seu lugar fixo na arte contemporânea e na
psicanálise. O ponto de encontro delas tem sido questionado da seguinte forma: “não há mais
lugares marcados entre arte e psicanálise, mas ambas continuam se esbarrando de maneira
imprevisível, incerta, talvez em um corpo que não tem lugar, sem as norteadoras esperanças do
surrealismo nem as certezas da aplicação interpretativa da psicanálise às obras de arte” (RIVERA,
2005, p. 67).
No entanto, há apostas na direção de que a psicanálise possa se aproximar da arte, na medida
em que opere com a questão do desejo do sujeito, abrindo possibilidades para que este se
presentifique através das criações artísticas.
Para a teoria da arte, que assiste hoje, tanto no mundo anglo-saxão quanto no
francês, a uma tendência paralela de aproximação da psicanálise, gerando uma
incorporação de noções lacanianas e freudianas, a ênfase da psicanálise na questão
do desejo talvez seja, da mesma forma, um convite à deriva, ao movimento, posto
que o desejo não se localiza ou nomeia, mas se esquiva sempre e ressurge em
outra parte (RIVERA, 2005, p. 68).
Nesse momento, no qual realizamos uma grande travessia em torno das questões
apresentadas desde o início dessa pesquisa, podemos pôr fim a essa questão da arte e do desamparo
humano. Sendo assim, podemos agora partir para ajustar as considerações finais na conclusão de
nossa caminhada.
88
4 CONCLUSÃO
É tempo de caminhar para a conclusão da presente pesquisa. Nesse momento, fica ainda
mais claro que é preciso nos servir de Freud como um verdadeiro mestre que aponta para novas
compreensões significantes. Estas, por sua vez, nos abrem as portas para as questões acerca do
desejo, da lei, do pai, da arte, da religião, das ilusões, da ciência e da felicidade. Necessitamos nos
munir com suas ferramentas e sua permissão para ir além. Porém, apesar de tal pretensão, jamais
seria possível descartar suas preciosas apreciações teóricas.
O desamparo humano é uma experiência que persiste no cenário contemporâneo, pois,
como estabelecemos, ele é originário e inaugural. Os sinais e as expressões dessa sensação parecem
ainda mais potencializados e podem ser encontrados facilmente em nosso cotidiano, como
descrevemos nas proposições críticas apresentadas no primeiro capítulo.
Em paralelo com esse quadro, temos uma espécie de enfraquecimento ou falência das
respostas científicas. Podemos caracterizar tal momento como o do desencanto da razão moderna,
de seus ideais e valores. Tal processo é ainda margeado por um enfraquecimento da função do pai
na própria estrutura social. Assistimos, então, uma sociedade na qual o ideal de privação de gozo
em nome da coletividade se encontra em declínio.
Além disso, acompanhamos, com Freud, que ele já se questionava sobre os limites do
conhecimento e da razão. Sua visão otimista foi sendo, aos poucos, abalada e, por isso, não
podemos afirmar que Freud foi inflexível, pois apresentamos alguns de seus vacilos frente à aposta
na racionalidade humana. Paulatinamente, vemos suas obras sendo preenchidas pelo assentimento
ao desamparo humano originário.
Para completar tal quadro, Lacan recapitula os conhecimentos freudianos e vem nos dizer
que a ciência pode produzir ainda mais angústia frente às aberrações oriundas de seu próprio
desenvolvimento. Desse modo, sabemos que a ciência não alcançou a pretensão positivista que
recolhemos de Freud e, com isso, nos mostra sua ineficiência de aplacar o mal-estar dos sujeitos na
civilização.
No entanto, nos deparamos com a vida e seus sujeitos que continuam as buscas por
referências e por lugares no mundo. Com isso, conseqüentemente, assistimos uma espécie de
reencantamento das religiões. Diferentemente do que previu Freud, as práticas religiosas
atualmente continuam operando como tentativas de reconciliar os indivíduos com suas existências.
89
Estamos certos, todavia, que Freud também já nos havia apontado para a força da religião
como consolo das ilusões. Ele dizia que a religião poupava os sujeitos de suas próprias neuroses, de
se haverem com o imperativo do inconsciente e com a inconsistência de suas vivências.
Vimos como a religião na contemporaneidade fala às pessoas através das promessas
individuais, muito mais do que por seus movimentos coletivos, institucionalizados e dogmáticos.
Assim, assistimos com espanto o aumento das crenças fundamentalistas que revelam atos religiosos
extremos e solitários.
Nesse contexto, precisamos pensar ainda o lugar da arte. Sabemos que, enquanto expressão
da subjetividade, ela ainda se apresenta para poucos, na medida em que o acesso a esse tipo de
expressão é muito limitado. Seu modo característico de organização da falta e do vazio se encontra
restrito a uma minoria, até porque Freud mesmo nos advertiu que ela exige qualidades naturais
específicas. Assim, ela não arrasta multidões, como vemos acontecer no processo religioso. Na
verdade, também lembramos que Freud somente considerou a religião como a séria adversária da
ciência.
Desse modo, também nos deparamos com as limitações da psicanálise, a arte específica de
curar os sujeitos e fazê-los mais felizes. Contudo, foi seu próprio inventor que nos alertou que a
psicanálise, juntamente com o ofício de educar e de governar, é uma prática impossível, na medida
em que seus resultados são sempre parciais e insatisfatórios (FREUD, 1937, p. 282).
A psicanálise também tem seus limites, suas insuficiências e, assim como a arte, não
pretende atrair multidões. Ela lida com o paradigma de que não há nada que garanta a felicidade
plena e eterna. Apesar disso, estabelecemos que ela tem suas ferramentas de enfretamento da
realidade para aqueles que a buscam. Mas não nos deixemos enganar: estes também não são
muitos.
Além disso, podemos utilizar a própria chave de leitura freudiana para concluirmos que,
com a reafirmação do inconsciente e, portanto, dessa elevação de que o inconsciente é algo
desconhecido para o sujeito, encontramos um ponto que não se pode ultrapassar. Ou seja, o ser
humano não é completamente dono de suas próprias ações e esperar isso dele é não considerar a
importância do inconsciente, da realidade psíquica e do desamparo para a psicanálise. Portanto, a
forma de operar da psicanálise não deve ser a de se desfazer dos recursos da cultura. Até porque
aprendemos com Freud, no decorrer dessa pesquisa, que os bens da civilização não perdem seu
valor porque foram interpretados pela psicanálise.
90
Se a psicanálise faz uma teoria do sujeito, da ideologia, da fé e da religião é para
reconhecer que essa dimensão da subjetividade é uma realidade não erradicável e
não para combatê-la. Para ser fiel à sua inserção na Weltanschauung científica, a
psicanálise precisa reconhecer a fonte e as origens da fé no desamparo do homem,
bem como a impossibilidade de destruí-la. O discurso analítico tem em comum
com a ciência a consideração pelo real. Por isso não exclui o sujeito do desejo,
não expulsa nem a crença, nem o mito, nem as pulsões. Por isso nos obriga a
reconhecer que o sintoma é um equipamento necessário e não uma prótese
psicopatológica dispensável. (SANTOS, 2001, p.119).
Podemos pensar ainda se a aproximação da psicanálise com a religião acontece a partir do
momento em que elas operam com o mal-estar e objetivam a vizinhança com a felicidade.
Da religião à ciência, não se trata talvez do fim das ilusões, mas sim de uma
flexibilização do universo da crença, bem como da sua regulação pelo encontro
com o que não dá certo, não funciona, não responde a expectativas. O primeiro
argumento em favor dessa idéia é a afirmação freudiana: ‘o desamparo é a fonte
de todos os motivos morais’ (SANTOS, 2001, p.150).
Assim, ao final da pesquisa, fica claro que é preciso acreditar naquilo que a psicanálise
ecoa. É preciso tornar o desamparo digno de crédito e, a partir disso, relançar perguntas: a força da
religião se ancora justamente em suas proposições que mantém viva a esperança do encontro com o
objeto primordial e do consolo do desamparo? Será que, por questão de tempo e por todo contexto
em que viveu Freud, ele não pôde chegar a essa compreensão?
No entanto, é preciso tempo para um novo passo porque sabemos que a incidência de um
significante não é imediata. E, ao final, também nos defrontamos com a impossibilidade de ter a
última palavra.
Encontramos, porém, em Freud um sinal que nos entusiasma a continuar essa caminhada.
Frente aos questionamentos, uma resposta nos permite concluir. “Nossa resposta assemelha-se à
resposta dada pelo Filósofo ao Caminhante, na fábula de Esopo. Quando o caminhante perguntou
quanto tempo teria de jornada, o Filósofo simplesmente respondeu ‘Caminha!’ e justificou sua
resposta aparentemente inútil, com o pretexto de que precisava saber a amplitude do passo do
Caminhante antes de lhe poder dizer quanto tempo a viagem duraria” (FREUD, 1912b, p. 169).
91
REFERÊNCIAS
Obras de Sigmund Freud (ordenadas pela data de publicação original):
FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. [1895] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.).
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 2. ed. Rio de Janeiro:
Imago, 1987, v. I.
______. O método psicanalítico de Freud. [1903] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1972, v.
VII.
______. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. [1905] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago,
1972, v. VII.
______. Os chistes e sua relação com o inconsciente. [1905] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago,
1969, v. VIII.
______. Atos obsessivos e práticas religiosas [1907] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1.ed. Rio de Janeiro: Imago,
1976, v. IX.
______. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância.[1910] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.).
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro:
Imago, 1970, v. XI.
______. Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (contribuições à psicologia do
amor I) [1910] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1970, v. XI.
______. Totem e tabu. [1912] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de S.Freud. 1.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIII.
______. Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I).
[1912] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de S.Freud. 1.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII.
92
_____. O interesse científico da psicanálise. [1913] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago,
1974, v. XIII.
______. Sobre o narcisismo: uma introdução. [1914] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago,
1974, v. XIV.
______. O inconsciente. [1915] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV.
______. Conferência X. [1915] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XV.
______. Sonhos. [1915] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XV.
______. Conferência XXV [1916] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XVI.
______. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. [1917] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago,
1976, v. XVII.
______. Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. [1918] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.).
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro:
Imago, 1976, v. XVII.
______. Psicologia de grupo e a análise do ego. [1921] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago,
1976, v. XVIII.
______. Psicanálise e Telepatia. [1921] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.
XVIII.
______. Dois verbetes de enciclopédia. [1922] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.
XVIII.
______. As resistências à psicanálise. [1924] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.
XIX.
93
______. Um estudo autobiográfico. [1924] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.
XX.
______. Inibições, sintomas e ansiedade. [1925] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.
XX.
______. A questão da análise leiga. [1926] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.
XX.
______. O futuro de uma ilusão. [1927] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. 1.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI.
______. O Mal-estar na civilização. [1929] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. 1.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v.
XXI.
______. Conferência XXXIV. [1932] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XXII.
______. Conferência XXXV. [1932] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XXII.
_____. Análise terminável e interminável. [1937] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v.
XXIII.
______. Moisés e o monoteísmo. [1938] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v.
XXIII.
______. Esboço de psicanálise. [1938] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v. XXIII.
______. Algumas lições elementares de psicanálise. [1938] In: SALOMÃO, Jayme (Dir.). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S .Freud. 1. ed. Rio de Janeiro: Imago,
1975, v. XXIII.
94
Obras auxiliares:
ANTELO, Marcela. A suposta felicidade da sublimação. In: Felicidade e sintoma: ensaios para uma
psicanálise no século XXI. FUENTES, Maria Josefina Sota; VERAS, Marcelo (org.) Rio de
Janeiro: EBP; Salvador: Corrupio, 2008.
ANTONIAZZI, Alberto Pe. O Sagrado e as Religiões no limiar do Terceiro Milênio. In: CLETO,
Caliman (org.). A sedução do Sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1998.
BIRMAN, Joel. Freud e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
CASTRO, Sérgio de. Ilusão, verdade e real: Freud, a religião e lembranças do matriarcado.
Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental, Belo Horizonte: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental
de Minas Gerais, n.10, jun. 2005.
COMBLIN, José Pe. O Cristianismo no limiar do Terceiro Milênio. In: CLETO, Caliman (org.). A
sedução do Sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
COSTA-MOURA, Fernanda; LO BIANCO, Anna Carolina. A psicanálise fracassa onde a religião
triunfa: em torno do real e da ciência. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, Sociedade de
Psicanálise Iracy Doyle, v. 38, 2006.
DAVID, Sérgio Nazar. Freud e a religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
DI MATTEO, Vincenzo. A influência filosófica no pensamento freudiano. Revista da UNICAP,
v. 24, n.2, 1983.
FERRY, Luc. O que é uma vida bem sucedida? Rio de Janeiro: DIFEL, 2004.
GAY, Peter. Um judeu sem Deus. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992.
HANNS, Luiz Alberto. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
______. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
______. O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
95
LIBÂNIO, João Batista Pe. O Sagrado na Pós-Modernidade. In: CLETO, Caliman (org.). A sedução
do Sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
MILLER, Jacques-Alain. Um Esforço de Poesia. Disponível em:
<http://www.causefreudienne.net/etudier/le-cours-de-jacques-alain-miller/religion-psychanalyse>.
Acesso em: 03/06/09.
OLIVEIRA, Jaime Araújo. O objeto a e o “positivismo de Freud”. Latusa digital, ano 5, nº 32, mar.
2008.
OLIVEIRA, J. H. Barros de. Psicologia da Religião. Coimbra: Almedina, 2000.
PAOLI, Cynthia. O sujeito precário e o neoliberalismo. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro,
Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, v. 38, 2006.
REGNAULT, François. Em torno do vazio: a arte à luz da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 2001.
RIVERA, Tânia. Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2. ed., 2005.
ROCHA, Zeferino. Desamparo e metapsicologia. Síntese Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v.
26, n. 86, p. 334, set. – dez. 1999.
RUPRECHT, Rubens; SOUZA, Mériti de. Sentimento religioso, psicanálise e cultura:
apontamentos. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, v. 38,
2006.
SANTOS, Tânia Coelho dos. Quem precisa de análise hoje?: o discurso analítico : novos sintomas
e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
WONDRACEK, Karin Hellen Kepler (org.). O futuro e a ilusão: um embate com Freud sobre
psicanálise e religião: Oskar Pfister e autores contemporâneos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo