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Segundo Freud, o artista Dostoievski passou sua vida sem conseguir se libertar desse
sentimento. Além de marcar sua personalidade com tais sentimentos,
esses [...] também determinaram sua atitude nas duas outras esferas em que a
relação paterna constitui o fator decisivo, ou seja, sua atitude para com a
autoridade do Estado e para com a crença em Deus. Na primeira delas, findou pela
completa submissão a seu Paizinho, o Czar, que outrora desempenhara com ele, na
realidade, a comédia de matar que suas crises tão freqüentemente haviam
representado em brincadeira. Aqui, a penitência levou a melhor. Na esfera
religiosa, ele reteve mais liberdade: de acordo com relatórios aparentemente
fidedignos, oscilou, até o último momento de sua vida, entre a fé e o ateísmo. Seu
grande intelecto tornava-lhe impossível desprezar qualquer das dificuldades
intelectuais a que a fé conduz. Através de uma recapitulação individual de um
desenvolvimento da história mundial, esperou descobrir uma saída e uma
libertação da culpa no ideal cristão e, mesmo, fazer uso de seus sofrimentos como
reivindicação de estar representando um papel semelhante ao de Cristo. Se, em
geral, não conseguiu a liberdade, tendo-se tornado um reacionário, isso se deveu
ao fato de a culpa filial, que se acha presente nos seres humanos em geral e sobre a
qual o sentimento religioso e construído, ter atingido nele uma intensidade
superindividual e permanecido insuperável inclusive à sua grande inteligência
.
(FREUD, 1928, p. 216).
A vivência de Dostoievski com seu pai decidiu, assim, também o material de seus escritos e,
especialmente, do romance que Freud tanto admirava. Assim, ele descreveu uma cena do romance
que mais lhe chamou a atenção devido a seu conteúdo revelador:
No decorrer de sua conversa com Dimitri, o Padre Zossima reconhece que aquele
está preparado para cometer parricídio e se ajoelha a seus pés. É impossível que
isso pode ser entendido como expressão de admiração; tem de significar que o
santo homem está rejeitando a tentação a desprezar ou detestar o assassino e, por
isso, se humilha perante ele. A simpatia de Dostoievski pelo criminoso é, de fato,
ilimitada; vai muito além da piedade a que o infeliz tem direito e nos faz lembrar
do ‘temor sagrado’ com que os epilépticos e os lunáticos eram encarados no
passado. Um criminoso, para ele, é quase um Redentor, que tomou sobre si
próprio a culpa que, em outro caso, deveria ter sido carregada pelos outros. Não há
mais necessidade de que alguém mate, visto que ele já matou, e há que ser-lhe
grato; não fosse ele, ver-nos-íamos obrigados a matar. Isso não é apenas piedade
bondosa, mas uma identificação com base em impulsos assassinos semelhantes –
na realidade, um narcisismo ligeiramente deslocado (FREUD, 1928, p. 218).
Foi também nesse sentimento de culpa que Freud localizou a fonte da compulsão pelo jogo
de Dostoievski. Esta tinha como fundamento a sua necessidade de autopunição. Inclusive, Freud
analisou que “quando o sentimento de culpa dele ficava satisfeito pelos castigos que se havia