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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Título em ingles: “Speech, Harmony and Ficinian Platonism in the Dramatic
Monodies of the Seconda Pratica.”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Seconda pratica ; Monteverdi ; Peri ;
Plato ; Ficino ; Platonism ; Speech.
Titulação: Doutor em Música.
Banca examinadora:
Profª. Dra. Helena Jank.
Profª. Dra. Lia Tomas.
Profª. Dra. Monica Lucas.
Profª. Dra. Sara Lopes.
Prof. Dr. Tristan Torriani.
Profª. Dra. Silvana Scarinci.
Prof. Dr. Eduardo Augusto Ostergren.
Data da defesa: 19-02-2009
Programa de Pós-Graduação: Música.
Stasi, Marcello.
St28p Palavra, Harmonia e o Platonismo Ficiniano na
Monodia Dramática da Seconda Pratica. / Marcello
Stasi. – Campinas, SP: [s.n.], 2009.
Orientador: Profª. Dra. Helena Jank.
Tese(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.
1. Seconda pratica. 2. Monteverdi. 3. Peri. 4. Platão.
5. Ficino. 6. Platonismo. 7. Discurso. I. Jank, Helena.
II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes.
III. Título.
(em/ia)
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vii
à memória de Raffaele Stasi
a Marilia, Yeda, Raffaele e Giacomo
ix
AGRADECIMENTOS
à CAPES que financiou o início desta pesquisa;
à Prof. Dra. Helena Jank pela orientação firme e compreensiva;
ao Prof. Dr. Paulo Kühl pelas aulas que geraram em mim o desejo de seguir com
este projeto;
a Marilia Vidigal da Costa Souza pelo apoio e pela ajuda na revisão;
ao Dr. Michael Allen pelo trabalho, pela disponibilidade e pelos livros enviados;
ao Pe. José Raimundo Vidigal pela ajuda na tradução de alguns termos latinos;
ao Prof. Dr. Luis Antonio Alves Eva pela disponibilidade e paciência em tantas
conversas;
ao Dr. Frans Wiering por manter a versão online do Thesaurus Musicarum
Italicarum;
ao Center for the History of Music Theory and Literature da Indiana University que
mantém acesso aos Saggi Musicali IItaliani
à Fondazione Centro Studi Rinascimento Musicale pelos livros enviados;
a Ana Luiza Feres pelo apoio no início do trabalho;
e aos colegas Dra. Monica Lucas, Dra. Silvana Scarinci, Dr. Alberto Pacheco,
Teresa Cristina Rodrigues, Cassiano Barros, Katia Justi e Paulo Justi pela críticas,
sugestões, indicações bibliográficas, empréstimo e doação de livros.
xi
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou sayst,
"Beauty is truth, truth beauty," - that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.
Extraído de Ode to a Grecian Urn
John Keats, 1819
xiii
RESUMO
Esta pesquisa teve por finalidade investigar a relação entre palavra e
harmonia no repertório das monodias dramáticas da seconda pratica. Após
considerar a alternativa da aplicação da doutrina do ethos associado ao modo, e
examinar as implicações dos conceitos de pathos, mutatio e hexachordum, este
trabalho situa a importância do platonismo ficiniano no contexto cultural que
circundava surgimento da seconda pratica. Buscou-se então extrair diretamente
da tradução latina da obra de Platão, indicada pelos cultores da seconda pratica
como fonte de inspiração, a definição e as atribuições dos conceitos de melodia e
suas partes constituintes: oratio, harmonia e rhythmus. A partir dos resultados
desta investigação, que apontam para a importância da dialética na constituição
do conceito platônico da oratio, relacionou-se este conceito à prática harmônica do
repertório em questão tal como revelada pelo trabalho de Eric Chaffe. Tomando a
specierum coppula como possível elemento constituinte comum entre a oratio e a
harmonia, são analisados cinco exemplos de monodias dramáticas da seconda
pratica, extraídos das obras de Jacopo Peri e Claudio Monteverdi baseadas no
mito de Orfeu e Eurídice. Os resultados das análises sustentam a possibilidade de
que estes compositores tenham buscado, através de elaborados encadeamentos
harmônicos, dar forma material à relação entre as idéias expressas no texto
poético, verdadeira essência do discurso para o pensamento platônico. Para tal
efeito teriam tomado como pressuposto o princípio que considera contíguas duas
tríades separadas por um intervalo de quinta gerando assim uma polarização do
espectro harmônico sobre o eixo bemol-sustenido. O resultado dessa pesquisa
aponta para um aumento da nossa percepção em relação à extensão e
importância da influência do platonismo no movimento da seconda pratica.
Palavras-chave: seconda pratica, Monteverdi, Peri, Platão, Ficino, platonismo,
discurso, harmonia, análise, dialética, monodia, Orfeu, Eurídice, Renascimento,
drama musical.
xv
ABSTRACT
This research aimed to investigate the relationship between speech and
harmony in the repertoire of dramatic monodies of the seconda pratica. After
considering the alternative of applying the ethos doctrine associated to the modes
and examining the implications of the concepts of pathos, mutatio, and
hexachordum, it locates the importance of the platonic thought as advocated by
Marisilius Ficino in the cultural context that surrounded the emergence of the
seconda pratica. Consequently, this research aimed to extract directly from the
source of inspiration indicated by the followers of the seconda pratica, the Latin
translation of Plato’s work, the definition and attributes of the concepts of melodia
and its constituent parts: oratio, harmonia and rhythmus. Considering the results of
this investigation which pointed towards the importance of dialectics in the
constitution of the platonic concept of oratio, this works sought to relate this
concept to the harmonic practice of the repertoire examined as revealed by the
work of Eric Chaffe. Taking the specierum copula as a possible common
denominator between oratio and harmonia, five examples of dramatic monodies of
the seconda pratica extracted from Jacopo Peri’s and Claudio Monteverdi’s works
based on the myth of Orpheus and Eurydice are analyzed. The results of the
analyses support the possibility that these composers have aimed, by means of
well elaborated harmonic progressions, to give material form to the relationship
between the ideas expressed by the text, the true essence of speech according to
platonic thought. This was accomplished presuming that two triads separated by a
fifth are considered contiguous, generating therefore a polarization of the harmonic
spectrum over the flat/sharp axis. The outcome of this research points towards an
increase of our perception over the extension and significance of the influence of
Platonism in the seconda pratica movement.
Key Words: seconda pratica, Monteverdi, Peri, Plato, Ficino, platonism, speech,
harmony, analysis, dialectic, monody, Orpheus, Eurydice, renaissance, musical
drama.
xvii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................1
1. CAPÍTULO I - O PROBLEMA...........................................................................9
1.1. Momento de ruptura .............................................................................................................10
1.1.1. A inaplicabilidade das regras então estabelecidas......................................................10
1.1.2. A oração como senhora que liberta.............................................................................13
1.2. Estabelecimento de fontes válidas para a base teórica .......................................................14
1.2.1. Dois tratados prometidos.............................................................................................14
1.2.2. Documentos da controvérsia como principal fonte primária........................................18
1.2.3. Zarlino e Platão como referências para as posições adotadas na controvérsia .........22
1.2.4. A tradução latina de Marsilius Ficino, corrigida e indexada por Simon Grynaeus ......24
1.3. O que permanece em aberto e algumas possíveis soluções...............................................28
1.3.1. Modos e Afetos ............................................................................................................31
1.3.2. Ethos, Pathos, Mutatio e Hexachordum ......................................................................42
2. CAPÍTULO II - VISÃO MUSICOLÓGICA........................................................57
3. CAPÍTULO III - A HIPÓTESE .........................................................................63
3.1. O Platonismo Renascentista como contexto cultural para a seconda pratica .....................63
3.2. Em busca do Ideal de Música de Platão ..............................................................................71
3.2.1. Melodia.........................................................................................................................77
3.2.2. Harmonia......................................................................................................................81
3.2.3. Rhythmus.....................................................................................................................84
3.2.4. Oratio ...........................................................................................................................86
3.3. Visão platônica do mundo ....................................................................................................90
3.3.1. O nível ético: a função dialética...................................................................................92
3.3.2. O nível estético ............................................................................................................94
3.4. A dialética platônica e seus mecanismos.............................................................................96
4. CAPÍTULO IV - DIALÉTICA E HARMONIA ..................................................101
4.1. Relacionando a dialética platônica com a harmônia..........................................................101
4.2. Disposição do campo harmônico em quintas.....................................................................107
xix
5. CAPÍTULO V - ANÁLISES............................................................................113
5.1. Orfeu no surgimento do melodrama renascentista e sua importância para o platonismo.115
5.2. Tu se’ morta........................................................................................................................123
5.3. Non piango e non sospiro...................................................................................................133
5.4. Ecco l’atra palude ...............................................................................................................141
5.5. In un fiorito prato.................................................................................................................151
5.6. Funeste Piagge...................................................................................................................161
6. EPÍLOGO - UM RAIO DE FOGO COM DOIS PODERES ............................169
7. CONCLUSÕES.............................................................................................173
7.1. Indicações para trabalhos futuros ......................................................................................176
8. REFERÊNCIAS ............................................................................................177
9. ANEXOS.......................................................................................................185
9.1. Transcrições das partituras analisadas..............................................................................187
9.2. Disco de dados contendo arquivos com animações sonorizadas da relação oratio/harmonia
nas partituras analisadas.................................................................................................................207
1
INTRODUÇÃO
No início do culo XVII, o compositor Claudio Monteverdi e o teórico
bolonhês Giovanni Maria Artusi (1540-1613) envolveram-se em uma controvérsia
sobre a perfeição da música moderna. Ao ser acusado de transgredir as regras do
pensamento harmônico tradicional, tal como ensinadas por Gioseffo Zarlino (1517-
1590) no seu tratado Le Instituitione Armoniche (1558), Monteverdi apresenta sua
defesa, auxiliado por seu irmão Giulio Cesare. No prefácio do livro de Scherzi
Musicali publicam uma declaração em que alegam que as trangressões apontadas
se justificam pelas palavras de Platão extraídas de uma passagem da República
(398d). Nesta passagem, Platão descreve a melodia, conceito que não se refere à
idéia de linha melódica, mas sim à canção em seu todo. Esta seria constituída por
três elementos, oração (oratio), harmonia e ritmo, dos quais os dois últimos devem
seguir o primeiro. De acordo com a argumentação apresentada pelos Monteverdi,
a harmonia deveria seguir o que determina a “sua senhora”, a oração, e não as
regras codificadas por Zarlino. Embora Monteverdi houvesse anunciado sua
intenção de publicar um tratado sobre a música composta a partir deste princípio,
à qual passou a denominar seconda pratica, tal documento jamais foi produzido,
ou pelo menos jamais veio a público. Com a não publicação do prometido tratado,
e a ausência de outras fontes que esclareçam como se esta relação entre a
oração e a harmonia, permance uma lacuna teórica que quatro séculos vem
criando desafios a quem queira entender o modo de organização harmônica de
um repertório de importância crucial para a história da música. Nele, não somente
abriu-se caminho ao que mais tarde seria conhecido como ópera, como também
se originou a escrita através da linguagem do baixo cifrado, que por sua vez teve
papel determinante no advento da tonalidade.
O presente trabalho surge como resposta ao desafio de desenvolver
uma ferramenta de análise interpretativa para o repertório da monodia dramática
surgida na Itália no início do século XVII, ferramenta esta que leve em
2
consideração tanto a proclamada premissa da seconda pratica de que a oração é
senhora da harmonia, como a alegação dada por Monteverdi de que seus
compositores não agiam ao acaso, mas seguiam Platão. A primeira questão que
se coloca portanto é o que significava seguir Platão naquele contexto.
Um fato determinante para a resposta é a comprovação de que Platão
era conhecido através tradução latina e comentários interpretativos de Marsilius
Ficino (1433-1499). A partir da publicação desta tradução latina, o platonismo se
difundiu na Itália renascentista como uma alternativa à hegemonia do
escolasticismo baseado em Aristóteles, exercendo forte influência no contexto
sócio-cultural do qual emergem os primeiros exemplos de monodia dramática da
seconda pratica: as cortes dos Medici e dos Gonzaga. A aceitação de Ficino como
fiel e credenciado intérprete de Platão para o mundo renascentista é tão
acentuada que seus comentários chegam a ser citados ao longo da controvérsia
Artusi-Monteverdi como sendo as palavras do próprio Platão. Seguir Platão
significava naquele contexto seguir a tradução e, mais ainda, a interpretação de
Ficino para os textos platônicos. Definido este fato, fomos capazes de determinar,
mais especificamente, que a edição da Platonis Opera usada como referência
pelos irmãos Monteverdi era dotada de um extenso e detalhado índice remissivo
elaborado pelo teólogo e lingüista alemão Simon Gryanaeus (1493-1541).
Tendo em mãos o índice de Gryaneus e os comentários de Ficino é
possível localizar a definição e a interpretação dos conceitos importantes para a
melodia platônica na forma como se encontravam à disposição daqueles que
estivessem empenhados na busca do que Palisca (1994, p. 82) chama de “um
renascimento do ideal de música de Platão”. Por ocuparem uma posição de base
em todas as discussões sobre a seconda pratica, os quatro conceitos referidos na
República (398d), melodia, oração, harmonia e ritmo, merecem ser esclarecidos
com atenção. Diferenças, mesmo que pequenas, em relação à interpretação que
se dá a eles podem condicionar, e de fato vêm condicionando, o rumo das
3
pesquisas sobre este repertório. Nosso trabalho buscou aprofundar-se nestes
conceitos servindo-se da mesma referência usada pelos seguidores da seconda
pratica. Propositalmente não se discutiu o rito ou a correção da interpretação
ficiniana da obra platônica e nem tampouco buscou-se compará-la a outras
interpretações possíveis, interessando ao escopo deste trabalho apenas a
possível utilização por parte dos cultores da seconda pratica de conceitos que dela
pudessem ser extraídos. Os resultados colhidos nesta busca o então
confrontados com a prática musical destes compositores a partir da análise de
exemplos de monodia dramática.
Trilhando os caminhos percorridos em nossa pesquisa, primeiramente
situamos o problema da inexistência de uma fonte teórica que estabeleça os
parâmetros para uma análise deste repertório. Veremos no primeiro capítulo como
o próprio Monteverdi atesta a inaplicabilidade das regras ditadas por Zarlino em
seus tratados, evidenciando que nos vemos diante de um rompimento com
princípios até então estabelecidos. Diante da lacuna deixada pela ausência do
tratado prometido por Monteverdi e considerando a inadequação das regras
ditadas pelos tratados anteriores ou posteriores ao advento da seconda pratica,
veremos que os documentos que integram a controvérsia Artusi-Monteverdi,
embora careçam de um detalhamento mais específico, são uma fonte importante
que indica ao menos sobre quais princípios se baseavam os compositores da
seconda pratica. Fazemos então um mapeamento dos pontos esclarecidos e não
esclarecidos nos documentos oriundos da controvérsia, extraindo a constação de
que, emboram não indiquem como se a relação entre a oratio e a harmonia,
estes documentos apontam para Platão, e a interpretação que dele faz Marsilius
Ficino, como mentor do processo de reformulação ali implantado.
Em seguida, examinamos a solução que ao surgimento da seconda
pratica era apontada pelos teóricos, incluindo Zarlino, como um caminho capaz de
relacionar a oratio à harmonia. Após avaliar as dificuldades da aplicação da
4
chamada doutrina do ethos associado ao modo, veremos como Nicola Vicentino
(1511-1576) indicava que este caminho não era mais capaz de satisfazer as
demandas por uma contemplação mais abrangente dos afetos a serem
considerados, impingindo transformações no tratamento dado à harmonia. Estas
transformações são então revistas sob a ótica revelada por dois estudos
importantes da era moderna, Edward Lowinsky (1961) e Eric Chafe (1992).
No segundo capítulo, procuramos identificar os diversos
posicionamentos tomados pela musicologia teórica e histórica diante das
evidências da importância de Platão como mentor das mudanças implantadas pela
seconda pratica. A partir deste ponto traçamos, no terceiro capítulo, um panorama
dos vários níveis em que o conceito de melodia se insere e interaje com outros
conceitos da doutrina platônica. Procuramos então extrair em cada um deles as
definições e atribuições que possam ter dado subsídio aos seguidores da seconda
pratica. Em especial exploramos a conceituação de cada um dos elementos que
integram a canção: discurso, harmonia e ritmo. Das considerações de Platão
sobre o discurso (oratio) emergem conceitos importantes relacionados à dialética
e seus mecanismos, entre eles a existência do que Ficino denomina “as cinco
classes universais do ser” em torno das quais as idéias se organizam.
Uma vez extraídos os preceitos que regem o discurso segundo o
pensamento platônico, passamos então à investigação dos princípios sobre os
quais a harmonia se organiza. Como será observado no quarto capítulo,
Monteverdi declara que neste ponto considerava inútil, dadas as diferenças de
escalas e terminologia, reconstruir a sica da antiguidade clássica. Sabemos
porém, como demonstra Eric Chafe em seu Monteverdi’s Tonal Language (1992),
que na música de Monteverdi e seus colegas o âmbito tonal, o campo ou espectro
harmônico, se organiza em intervalos de quintas. Este princípio organizacional é
tomado como base para as análises, feitas no quinto capítulo, de trechos
selecionados de Le Musiche Sopra L’Euridice (Peri, 1600) e L'Orfeo - Favola in
5
Musica (Monteverdi, 1607), obras exemplares do esforço depreendido por
compositores e teóricos do Renascimento buscando uma aproximação com a
música dramática descrita pelos filósofos da antiguidade clássica. As análises
revelam que nos exemplos estudados a harmonia seguiu o discurso naquilo que
Platão considera a sua essência (oratio substantia), manifestando a relação entre
as idéias nele presentes na relação existente entre as tríades que acompanham
estas idéias.
Estes princípios extraídos da dialética platônica e utilizados como
referência no processo de análise da relação entre a palavra e a harmonia,
mostraram-se capazes de apontar que os encadeamentos harmônicos, em cada
um dos exemplos estudados, funcionam como um mecanismo que ressalta,
reforça e dá materialidade à relação entre as idéias, revelando conflitos,
ambigüidades e transformações inerentes ao discurso dramático. Como epílogo
ao nosso tabalho, apresentamos evidências de que os mecanismos da dialética
eram um assunto considerado reservado pelos platonistas, não devendo ser
discutido a o ser entre iniciados. Sendo assim não seria recomendada a sua
revelação em um contexto tão aberto como aquele escolhido por Monteverdi para
a sua defesa: o prefácio de um livro de partituras.
A musicologia tem uma respeitável tradição de estudiosos que, ao
focarem seus trabalhos sobre Monteverdi, têm se embrenhado na exploração do
terreno da seconda pratica, sob uma grande diversidade de abordagens.
Tomlinson (1987), por exemplo, parte da estética dos poetas escolhidos por
Monteverdi e da diferenciação entre humanismo e escolasticismo para situar
Monteverdi no contexto do final do Renascimento. Chafe (1992), por sua vez,
investiga a linguagem harmônica de Monteverdi partindo do sistema de
hexacordes e da distinção entre cantus durus e cantus mollis. Gianuario (1993)
foca seu trabalho na estética de Monteverdi a partir de Platão, enquanto Ossi
(2003) examina as mudanças dos propósitos da composição musical ao longo da
6
obra do compositor de Modena, para concluir que este teve que realinhar seu
pensamento e considerar que a música não poderia ser serva do texto. Ao
tomarmos a obra de Platão, traduzida e comentada por Ficino, revista e indexada
por Simon Grynaeus (1493-1541), como referência principal para entender a
seconda pratica, não queremos contradizer nenhuma dessas notáveis
contribuições, assim como o consideramos ter sido a intenção delas negar a
influência de Platão sobre este repertório. Não obstante, um aspecto importante a
ser considerado em nossa pesquisa é que seus resultados sugerem que esta
influência, assumida e publicamente e reafirmada por Monteverdi, talvez tenha
sido ainda mais abrangente e significativa do que a literatura sobre o assunto
tende a mostrar.
Embora aborde conceitos habitualmente discutidos no âmbito da
filosofia ou da filosofia da música, este trabalho o faz exclusivamente como
conseqüência de uma investigação musicológica que, partindo de uma referência
apontada como fonte de inspiração pelos compositores, buscou extrair dos
resultados encontrados elementos capazes de sugerir novas possibilidades de
interpretação e entendimento do repertório das monodias dramáticas da seconda
pratica. Nosso escopo não é o de discutir os conceitos, mas apenas investigar a
possível aplicação de elementos encontrados na tradução ficiniana de Platão que
eventualmente poderiam ter servido como subsídio às mudanças introduzidas na
seconda pratica.
Estudar a seconda pratica nos dias de hoje é de certa forma tentar
resgatar um movimento ocorrido há quatro séculos que, circundado ainda por
mistérios, representa em si mesmo um resgate de valores e conceitos formulados
vinte séculos antes. O risco de imprecisões e imperfeições é inerente a uma
empreitada desta sorte e nesse sentido manifesto desde meus agradecimentos
a todos que quiserem contribuir com o aperfeiçoamento, aprofundamento e a
revisão das idéias aqui apresentadas. Procurando nos servir neste caminho das
7
mesmas referências que teriam orientado os precursores daquele primeiro
resgate, esperamos ter trazido à tona elementos que de alguma forma revelem um
pouco mais da grandeza artística e da importância histórica do repertório monodia
dramática do início do século XVII, situando-o dentro do contexto cultural e
filosófico que o circundava.
Para dar mais fluência à leitura, optamos por apresentar todas as
citações em português, indicando no caso das fontes primárias o texto em língua
original nas notas de rodapé. No caso das citações da obra de Platão considerou-
se como texto original a tradução latina de Ficino, tal como consta da edição da
Platonis Opera (1551). Todas as traduções para o português apresentadas neste
trabalho foram feitas pelo autor. Para as traduções dos textos platônicos, partiu-se
da tradução latina de Ficino editada por Grynaeus, e usou-se como referência
paralela a tradução inglesa de Harold North Fowler. Como ferramenta de apoio à
tradução foi utilizado o software BLITZ LATIN automatic translator version 1.6 de
John F. White, William A. Whitaker.
1.
9
2.
CAPÍTULO I - O PROBLEMA
Surgido no início do século XVII, o termo seconda pratica foi introduzido
para designar um novo estilo de composição e de maneira mais específica o
tratamento dado às dissonâncias e à harmonia no repertório vocal de alguns
compositores ativos na Itália central e do norte durante este período. Segundo a
distinção feita por Giulio Cesare Monteverdi na Dichiaratione publicada no prefácio
do livro de Scherzi musicali a tre voci (1607) de seu irmão Claudio, enquanto a
prima pratica, cujas “regras judiciosíssimas” haviam sido codificadas por Gioseffo
Zarlino (1517-1590), “girava em torno da perfeição da harmonia”, a seconda
pratica colocava o texto como elemento soberano a ser seguido tanto pela
harmonia como pelo ritmo. Tal disposição por sua vez estava baseada, informa-
nos Giulio Cesare, no que determina Platão na República (398d e 400d) nos
seguintes termos: “A canção [melodia] é composta de três elementos: oração,
harmonia e ritmo [...] Ritmo e harmonia seguem a oração, e não a oração segue o
ritmo e a harmonia”
1
. De posse desta informação surge naturalmente, quando nos
deparamos com o repertório das monodias dramáticas da seconda pratica, a
questão de como relacionar o texto ou discurso à harmonia e ao ritmo. De que
forma seria possível relacionar os movimentos harmônicos presentes nas
partituras com elementos indicados no texto poético? Quais elementos ou
características do texto são seguidos por quais elementos ou características
presentes no movimento harmônico?
1
Melodiam ex tribus constare, oratione, harmonia, rhytmo [...] Rhythmus et harmonia orationem
sequuntur, non ipsa oratio rhythmum et harmoniam sequitur.
Nas citações de Platão tomamos como base a tradução latina de Marsilius Ficino, revisada e editada
por Simon Gryanaeus que, como veremos adiante, foi usada como referência por Giulio Cesare
Monteverdi.
10
Considerando o parâmetro que define a supremacia do texto sobre a
harmonia como essência da seconda pratica, qualquer análise musical deste
repertório somente será satisfatoriamente profunda se puder responder a estas
perguntas. Entretanto, a cerca de quatro séculos da composição destas obras,
muitas dificuldades ainda se colocam diante de quem pretenda identificar, por
exemplo, em trechos do Orfeo, favola in musica (1607) de Claudio Monteverdi ou
de Le Musiche sopra l’Euridice (1600) de Jacopo Peri, o modo como o texto
poético é seguido pelo movimento harmônico. Muito provavelmente estas
dificuldades seriam dissipadas caso Monteverdi houvesse cumprido a promessa
feita em 1605 de publicar um tratado sobre a seconda pratica. Embora ainda em
1634, em uma carta endereçada a Giovanni Battista Doni, ele declarasse estar
entretido na escrita de seu tratado, não se tem notícia de alguém que jamais o
tivesse lido, deixando amantes e estudiosos deste repertório com o problema de
tentar esclarecer como se dá a tão proclamada relação de subserviência da
harmonia em relação ao discurso textual, sem o auxílio de uma base teórica. No
presente capítulo, estaremos situando este problema historicamente e colocando-
o na perspectiva do contexto teórico que o envolve. Trataremos também de
identificar quais são as fontes disponíveis na busca por indícios que apontem para
uma possível solução.
2.1. Momento de ruptura
2.1.1. A inaplicabilidade das regras então estabelecidas
Provavelmente a maior dificuldade que se coloca para quem quer
entender e analisar o modo como se organizam os movimentos harmônicos dos
trechos de monodia acompanhada do repertório das favole in musica do início do
século XVII advenha da ausência, ou pelo menos do desconhecimento, de uma
base teórica bem definida que possa ser aplicada ao tratamento dado à harmonia
neste repertório. Embora os ensinamentos do compositor e teórico Gioseffo
Zarlino estivessem longe de serem descartados por completo, as regras que
11
regiam a harmonia modal haviam sido no mínimo flexibilizadas a ponto de
suscitarem acusações de estarem sendo infringidas
2
. Foi o teórico bolonhês
Giovanni Maria Artusi (c.1540-1613) que assumiu a responsabilidade histórica de
apontar publicamente as transgressões que vinham sendo feitas, dando início a
uma controvérsia que se estendeu por cerca de dez anos e na qual teve como
opositores Ercole Bottrigari, Vincenzo Galilei, um terceiro personagem anônimo
que se escondeu sob o pseudônimo de l’Ottuso Academico e principalmente
Claudio Monteverdi, assessorado por seu irmão Giulio Cesare Monteverdi.
No final do ano de 1600, Artusi publica um tratado intitulado L’Artusi,
overo Delle Imperttioni della moderna musica, que em março de 1603 seria
complementado com a publicação da Seconda parte dell’Artusi, overo Delle
imperfettioni della moderna musica. Seu tratado assume a forma de um diálogo
entre dois personagens, um deles, chamado de Signor Luca, fascinado com as
inovações introduzidas na música moderna, e o outro, denominado Signor Vario,
que critica estas inovações na medida em que elas ferem os princípios das boas
regras da condução de vozes. Ao descrever, com exemplos musicais um concerto
que presenciara na noite anterior, Luca pede a Vario que manifeste sua opinião,
ouvindo deste uma crítica às licenças adotadas no tratamento das dissonâncias e
à mistura indiscriminada de vários modos. Embora não cite o nome do compositor
e omita também o texto dos madrigais, os exemplos discutidos eram de autoria de
Claudio Monteverdi.
A reação do compositor criticado viria quando da publicação de dois
dos três madrigais mencionados. Na carta que publicou no prefácio de seu Quinto
Livro de Madrigais (1605), ele não parece, porém, preocupado em negar a
infringência das regras da harmonia modal. Esforça-se, ao contrário, em
estabelecer a admissibilidade de outros parâmetros. De fato, Monteverdi anuncia
2
As objeções levantadas por Artusi giram em torno do uso indiscriminado de dissonâncias e do
rompimento com a unidade do modo.
12
ali sua intenção de escrever um tratado sobre uma nova maneira de compor, por
ele denominada seconda pratica, fazendo a seguinte advertência:
Alguns acharão isto estranho, não acreditando que exista outra prática
para além da ensinada por Zarlino. Mas a esses posso garantir, a respeito
de consonâncias e dissonâncias, que há uma forma de as considerar
diferente dessa determinada, que defende a moderna maneira de
compor com o assentimento da razão e dos sentidos. Quis dizer isto tanto
para que outros não se apropriassem da minha expressão "seconda
pratica" como para que os homens de inteligência pudessem considerar
outras reflexões sobre harmonia.
A leitura dos documentos que compõem a controvérsia Artusi-
Monteverdi indica que ambos os lados concordam com uma coisa: as regras da
harmonia modal, tais quais preconizadas por Zarlino em seus tratados não se
aplicavam a boa parte da música que Monteverdi e outros compositores vinham
escrevendo no início do século XVII. Esta inaplicabilidade se confirma na tentativa
de analisar o movimento harmônico do repertório de monodias dramáticas das
favole per musica do início do século XVII. Comumente somos confrontados neste
repertório com tríades que o encontram explicação dentro da lógica modal. Eric
Chafe (1992, p. xii) descreve esta dificuldade nos seguintes termos:
Na ausência de uma teoria tonal amplamente compreendida para esta
música, as normas do estilo não são claras. Muitos dos momentos mais
surpreendentes como as conhecidas justaposições entre Mi maior e Sol
menor no Orfeo somente podem ser explicados em termos do seu valor
como elemento chocante ou como manifestação da influência de outros
compositores [certamente Chafe refere-se a Jacopo Peri] em cujas obras
sua presença também não chega a ser bem entendida.
Estamos portanto diante de um contexto de ruptura no qual regras que
vinham sendo aceitas não mais podem ser tomadas automaticamente como
parâmetros. Uma nova prática quer se estabelecer em paralelo à prática então
vigente. Sobre esta “outra prática para além da ensinada por Zarlino” pouco nos
foi dito, além de que estaria baseada nos preceitos que Platão anuncia na
República em relação à canção [melodia] e suas partes constituintes.
13
2.1.2. A oração como senhora que liberta.
Em vários trechos da Dichiaratione, Giulio Cesare compara as relações
que se estabelecem entre a oratio e a harmonia, tanto na primeira como na
segunda prática, com a relação entre uma serva e sua patroa. Ao descrever a
prima pratica, ressalta que esta considerava a harmonia “não serva, mas senhora
[signora] da oração”. Afirma também que a intenção de seu irmão “foi (naquele
gênero de sica) fazer que a oração fosse patroa [padrona] da harmonia e não
serva”. Estas imagens podem causar a impressão de que a harmonia, na seconda
pratica, ao deixar de ser senhora e pôr-se na condição de serva, estava perdendo
importância dentro processo de composição musical. O que se deu porém foi que
esta aparente perda de status quo resultou num processo que veio a tornar a
harmonia mais livre, contribuindo para o desmantelamento do sistema modal, o
que por sua vez permitiu o posterior estabelecimento da linguagem tonal.
Enquanto senhora, a harmonia atuava bom que se ressalte) dentro
dos limites bem estabelecidos do contraponto modal. Vale lembrar que as “regras
judiciosíssimas” codificadas por Zarlino haviam sido fruto da sua observação da
prática contrapontística de compositores anteriores à sua geração, em especial da
obra de Adrian Willaert (1490-1562) que representava para ele o ápice de uma
longa tradição. Ao transgredi-las os compositores da seconda pratica rompiam
com esta tradição, como deixa claro Artusi (1603).
O senhor etc. [uma referência a Monteverdi a quem Artusi evitava nomear]
se afasta em certo modo daquelas antigas tradições de muitos músicos
excelentes. Eu respondo serem estes Iosquino [Josquin de Pres], Clemens
non Papa, Mouton, Crequilon, e outros daquela classe, e depois deles em
seqüência o nosso Divino Adriano [Willaert].
3
3
Seconda parte dell'Artusi (1603) - Sig. &c. s'allontana in un certo modo dalle antiche tradittioni di
molti eccellenti Musici. Io rispondo questi essere Iosquino, Clemens non Papa, Mouton, Crequilon, &
altri di quella Classe, & doppo loro poscia il Diuino nostro Adriano.
14
Por outro lado, ao atrelar-se à oração, a harmonia via-se liberada das
regras que ditaram seus limites. Já em 1555, Nicolo Vicentino, em seu L'antica
musica ridotta alla moderna prattica, falava desse processo de libertação ao
afirmar que
O compositor poderá sair para fora [sic] da ordem do Modo, e entrar em
um outro, porque não te obrigação de responder ao tom de nenhum
Coro, mas será apenas obrigado a dar alma àquelas palavras, e com a
Harmonia de demonstrar as suas paixões, quando ásperas, e quando
doces, e quando alegres, e quando tristes, e segundo o seu argumento; e
daqui se extrairá a razão, que qualquer tipo de grau ruim, com
consonância, sobre as palavras se poderá usar, segundo os seus efeitos,
que sobre tais palavras poder-se-á compor toda sorte de graus, e de
harmonias, e ir fora do Tom e reger-se segundo o argumento das palavras
Vulgares, segundo o que acima se disse.
4
Vemos que quase cinco décadas antes de Artusi objetar contra o livre
uso de dissonâncias e falta de unidade em relação à ordem do modo, havia
quem defendesse abertamente esta prática, desde que isso fosse feito para “dar
alma às palavras”. Ao se colocar no papel de serva da oração, a harmonia
ganhava a liberdade para, como disse Vincentino, “sair para fora da ordem do
modo” e explorar assim novas possibilidades de organização interna.
2.2. Estabelecimento de fontes válidas para a base teórica
2.2.1. Dois tratados prometidos
Uma vez que a nova prática declarava abertamente estar
descomprometida com as regras que regiam a harmonia modal, restava uma
4
Il Compositore potrà uscire fuore dell'ordine del Modo, & intrerà in un'altro, perche non haurà obligo
di rispondere al tono, di nissun Choro, ma sarà solamente obligato à dar l'anima, à quelle parole, &
con l'Armonia di mostrare le sue passioni, quando aspre, & quando dolci, & quando allegre, &
quando meste, & secondo il loro suggietto; & da qui si cauerà la ragione, che ogni mal grado, con
cattiua consonanza, sopra le parole si potrà usare, secondo i loro effetti, adunque sopra tali parole si
potrà comporre ogni sorte de gradi, & di armonia, & andar fuore di Tono & reggersi secondo il
suggietto delle parole Volgari, secondo che di sopra s'ha detto. (VICENTINO, 1555, III, Cp. XV)
15
lacuna teórica a ser preenchida. De fato, na primeira vez que vem a público
responder às acusações de Artusi, Monteverdi manifesta sua preocupação em não
deixar a impressão que suas transgressões tivessem sido apenas liberalidades ou
falta de conhecimento. No prefácio do Quinto Livro de Madrigais (1603) ele
anuncia:
escrevi a resposta para dar conhecimento que não faço minhas coisas
ao acaso, e tão logo seja reescrita virá à luz trazendo o nome de seconda
pratica, overo perfetioni della moderna musica.
5
Ao explicar a afirmação acima, a Dichiaratione ressalta que, diferentemente do
que ocorria com a prima pratica, a seconda pratica não operava a partir de um
corpo teórico constituído:
[Meu irmão] disse pratica e [não] teórica, uma vez que pretende versar
suas razões em torno ao modo de empregar as consonâncias e
dissonâncias no ato prático, não disse Instituitioni Melodiche, uma vez que
ele confessa não ser sujeito de tal grande empreitada, mas deixa ao
Cavaglier Ercole Botrigari e ao Reverendo Zarlino a composição de tão
nobres escritos, [e que este último] chamou Instituitioni Armoniche porque
quer ensinar as leis e regras da harmonia, mas meu irmão disse seconda
pratica, ou seja, segundo o uso prático, porque quer servir-se de
considerações sobre este uso, ou seja, de considerações melódicas e as
suas razões, empregando somente aquela parte delas que ele precisa
para defender-se do seu opositor.
6
5
Ho nondimeno scritto la risposta per far conoscere ch’io non faccio le mie cose a caso et tosto che
sia rescritta uscirá in luce portando in fronte il nome di seconda pratica overo perfetioni della
moderna musica.
6
ha detto prattica & [non] Theorica percioche intende versare sue raggioni intorno al modo di
adoperar le conzonanze & dissonanze nel atto prattico, non detto Instituitioni Melodiche,
percioche egli confessa non essere sogetto di cosi grande impresa, ma lascia al Cavaglier ercole
Botrigari & al Reverendo Zerlino il componimento di cosi nobili scritti, che perciò disse Instituitioni
Armoniche perche volle insegnare le leggi & e lê regole del’armonia, ma mio fratello, há detto
seconda prattica, cioè secondo uso pratticale, perche vois servirsi delle considerationi de questo uso,
cioè delle considerationi melodiche, & ragioni sue, adoperando quel tanto di loro solamente, che a lui
apartiene per difendersi dal oppositore.
16
Também existia neste momento uma preocupação com a paternidade
não da prática em si, mas do termo seconda pratica. A paternidade da prática, o
autor da Dichiaratione atribui primariamente a Cipriano da Rore (1515-1546), que,
por sua vez, teria tido como seguidores Carlo Gesualdo (1561-1613), Emilio de
Cavaliere (1550-1602), o Conde Alfonso Fontanella, o Conde de Camerata,
Cavalier Turchi (Giovanni Del Turco 1577-1647), Tomaso Pecci (1576-1604),
Marc’Antonio Ingegneri (1535-1592), Luca Marenzio (1553-1599), Giaches de
Wert (1535-1596), Luzzasco Luzzaschi (1545-1607), Jacopo Peri (1561-1633) e
Giulio Caccini (1551-1618). Concluindo o mesmo prefácio de 1603, Monteverdi
manifesta seu receio de que outros viessem a posar como pais da expressão
seconda pratica non seguintes termos: “E isto eu quis dizer [...] para que o nome
seconda pratica não fosse apropriado por outros”.
A explicação de Giulio Cesare sobre a conclusão da carta de seu irmão
deixa ainda mais patente que Monteverdi ressentia-se do fato de não poder contar
com a força de uma base teórica estabelecida para dar sustentação aos seus
argumentos e por isso apelava para “os fundamentos da verdade”, ou seja, para a
força de sua música junto ao público. Diz a Dichiaratione:
Meu irmão disse isto por último, pois, sabendo que o compor moderno não
observa e nem pode observar, em virtude do comando da oração, as
regras da prima pratica, e mesmo com tal modo de compor vem sendo
acolhido pelo mundo de maneira tal que com justa razão pode-se chamar
de usual, portanto não pode crer, nem jamais crerá, mesmo que seus
argumentos não fossem bons para sustentar a verdade de tal uso, que o
mundo se engane, ainda que o seu opositor o venha a fazer.
7
Vinte anos após a morte de Artusi, Monteverdi declara ainda não ter
abandonado o projeto de escrever o prometido tratado. Aos sessenta e seis anos
7
Questo ha detto il mio fratello ultimamente, perche sapendo che il comporre moderno non osserva
& non può osservare, in virtù del comando del oratione, le regole de la prima pratica, & purre cotal
modo di comporre, vien dal mondo abraciato, in maniera tale che uso com giusta ragione si può
chiamare, perciò non può credere, ne credemai, quando anco le ragione sue, non fossero bone
per sostentamento de la verità di cotal uso, che il mondo s’inganni, ma si bene l’oppositore.
17
de idade o compositor dava sinais da sua preocupação por não ter cumprido sua
promessa e, podemos especular, com a permanência histórica desta lacuna
teórica. Vejamos o que escreve em uma carta endereçada a Giovanni Battista
Doni no ano de 1633:
Prometi, como disse antes, em uma obra minha impressa, fazer saber a
um certo teórico da Prima Pratica que havia uma outra forma
(desconhecida por ele) de considerar a música e a esta eu chamei de
Seconda Pratica. [...] Uma vez que a promessa foi pública, não pude
negligenciá-la, e por essa razão sou impelido a pagar minha dívida. [...] O
título do livro será o seguinte: Melodia, ovvero seconda pratica musicale.
8
Embora ainda lhe restassem dez anos de vida, Monteverdi declara na
mesma carta o seu “temor de que, devido à [sua] debilidade”, falhasse “em
alcançar a desejada conclusão”.
Após a morte de Monteverdi em 1643, houve ainda quem tentasse
preencher a lacuna teórica deixada pela falta de um tratado sobre a seconda
pratica. Envolvido numa celeuma contra o alemão Paul Siefert (1586-1666), o
compositor italiano Marco Scacchi (1600-1662), então mestre do coro da corte
polonesa, defende, em seu Breve discorso sopra la musica moderna (1649), a
coexistência de duas práticas musicais nos seguintes termos:
A música Antiga consiste em uma única prática. [...] Mas a Moderna
consiste em duas práticas, [...] a primeira é, Ut Harmonia sit Domina
orationis; a segunda é, ut Oratio sit Domina harmoniae.
9
8
Promisi, dicco, in istampa di far conoscere ad un certo teorico di prima pratica che ve ne era
un’altra da considerare intorno all’armonia, non conosciuta da lui, da me adimandata seconda; [...] La
promessa publica però non volle che mancassi alla promessa, per loche sforzatamente tendo a
pagar il debito. [...] Il titolo del libro saquesto: Melodia ovvero seconda pratica musicale. Seconda
(intendendo io) considerata in ordine alla moderna, prima in ordine all’antica.
9
La musica antica consiste in uma prattica sola [...] Ma la moderna cosiste in deu pratiche [...] la
prima è Ut Harmonia sit Domina orationis; la seconda, uta Oratio sit Domina harmoniae (PALISCA,
1994, p. 106).
18
Assim como Monteverdi, Scacchi mostra-se ciente de que os
defensores da prima pratica dispunham de um arsenal teórico construido ao longo
de séculos, enquanto a seconda pratica contava basicamente com a força da sua
música. Vejamos o que diz em duas das conclusões que enumera ao final de seu
discorso:
1. Que este estilo moderno deleita mais, e é melhor que o antigo.
2. Que esta seconda pratica não pode destruir a primeira, nem mesmo
pretende fazê-lo, porque seu fim é diferente, que se chama seconda
pratica, e não de outra forma teórica.
10
Assim como Monteverdi, também, Scacchi promete um novo escrito,
mais aprofundado, que jamais chegou a ser publicado. na introdução de seu
Breve discorso, faz a seguinte advertência: “declaro porém, que o presente
discurso, é um esboço daquele tanto que demonstrarei em outro impresso.”
Com a ausência destes dois tratados, a seconda pratica permaneceu
sem um corpo teórico que lhe servisse de base e os documentos que compõem a
controvérsia com Artusi, ao lado das cartas escritas por Monteverdi, apresentam-
se como as fontes disponíveis mais prováveis para o fornecimento de indícios que
consigam subsidiar a busca por esclarecimentos sobre a natureza da relação
entre a harmonia e a oratio no repertório das monodias dramáticas compostas
pelos compositores engajados neste movimento.
2.2.2. Documentos da controvérsia como principal fonte primária
Embora não constituam em si uma base teórica, os documentos que
compõem a controvérsia entre Artusi e os irmãos Monteverdi apresentam, com a
riqueza de um diálogo no qual dois lados da disputa o defendidos, indícios que
10
1. Che questo stile moderno diletta più, et è meglio, che non è l’antico.
2. Che quasta seconda pratica non può destruggere la prima, meno pretende di far cio, perchè il
suo fine è differentes da essa, che però si nomina seconda pratica, e nopn latrimente Teórica.
(Ibidem, p. 114)
19
nos permitem uma primeira penetração nos significados, razões e impacto da
ruptura representada pela seconda pratica. No centro da discussão encontramos
os seguintes documentos, mostrados no Quadro 1, onde são destacados os
pontos relevantes para a controvérsia levantados em cada um deles.
Ano:
1600
Local:
Veneza
Autor:
Artusi
Documento:
L’Artusi ovvero Delle imperfettioni della moderna
musica.
No secondo ragionamento Luca pede a opinião de Vario sobre nove exemplos extraídos de
madrigais que ouvira na noite anterior. Vario responde criticando o uso indiscriminado de
dissonâncias e a mistura indistinta de modos numa mesma canção que contrariam as regras
codificadas por Zarlino.
As passagens, das quais é omitido o texto, são dos madrigais Cruda Amarilli e O Mirtillo e
Anima mia perdona, de Monteverdi, cujo nome não é citado.
Ano:
anterior
a 1603
Local:
Ferrara?
Autor:
Anônimo
Documento:
Lettere com la sottoscrittione; L'Ottuso Academico
Nestas cartas, conhecidas apenas pelas citações feitas por Artusi em 1603, Monteverdi
(referido como Sr. Etc.) é defendido dos ataques de que fora vítima.
As dissonâncias são apresentadas como conseqüência do movimento das vozes
[modulatione] e justificadas sob o argumento que somente delas pode advir “a novidade da
harmonia” e o novo afeto”, capazes de imitar a natureza dos versos e representar o sentido
verdadeiro do poeta, coisa que o próprio Zarlino admite ser condição necessária para criar a
melodia descrita por Platão.
Sobre a falta de unidade dos modos, L’Ottuso argumenta que não importam as cadências
medianas: o que vale para definir o modo, são as notas do início e do final de uma canção.
Pela primeira vez a expressão seconda pratica é usada em referência aos compositores
modernos que vinham fazendo livre uso de dissonâncias.
20
Ano:
1603
Local:
Veneza
Autor:
Artusi
Documento:
Seconda parte dell’Artusi
Em sua resposta, Artusi sustenta que, se não consonância, não há harmonia, parte
essencial e necessária da melodia em Platão. Também rebate afirmando que não bastam o
início e o final para definir a ordem do modo.
São citados os madrigais Era l’anima mia e Ecco Silvio, ambos do Libro V.
Ano:
1605
Local:
Veneza
Autor:
C. Monteverdi
Documento:
Prefazione dei Madrigali, Libro V
Ao publicar dois dos madrigais criticados, Monteverdi responde brevemente, negando que
esteja “fazendo as coisas ao acaso” e afirmando a existência de uma “outra prática que difere
da ensinada por Zarlino”. Promete também que publicará uma resposta mais longa intitulada
Seconda Pratica overo perfetioni della moderna musica.
Ano:
1606?
Local:
Autor provável:
Artusi
Documento:
Discorso musicale di Antonio Braccino da Todi
Documento de cuja existência temos notícia apenas por menções constantes na seqüência da
controvérsia.
21
Ano:
1607
Local:
Veneza
Autor:
Giulio Cesare
Monteverdi
Documento:
Dichiaratione della lettera stampata
nel quinto libro de suoi madregali publicada ao final
de Scherzi musicali: a tre voci
Explica todas as sentenças colocadas no prefácio de 1605.
Estabelece a distinção entre a prima e seconda pratica com base na relação entre oratio e
armonia.
Defende o conceito de melodia de Platão como parâmetro para julgamento das obras da nova
prática. Cita as passagens da República que definem a perfeição da melodia e sua relação
com os afetos da alma.
Pretende invalidar as críticas de Artusi por não considerarem, e omitirem em seus exemplos, a
oratione, parte necessária e comandante da melodia. Justifica os desvios da ordem do modo
pelo uso histórico de tons mistos (tuoni misti).
Nomeia os cultores da seconda pratica indicando Cipriano da Rore como seu iniciador.
1608 Veneza Autor provável:
Artusi
Discorso secondo musicale di
Antonio Braccino da Todi
Embora admitindo que quando acompanhada da oratione, a harmonia, assim com o ritmo,
tenha mais força, sustenta que se trata uma ciência independente cujo conhecimento não
depende da oratione.
Adverte que Platão se referia à música de seu tempo, que era muito diferente dos madrigais
de Monteverdi nas quais ocorre multiplicidade de partes.
Argumenta que, para a perfeição do todo, ou seja da melodia, é necessária a perfeição das
suas partes constituintes, oratione, ritmo e harmonia, insistindo que a mistura dos modos e as
dissonâncias não preparadas destroem a perfeição deste último elemento.
Tenta dissociar Monteverdi dos demais nomes citados como cultores da seconda pratica,
afirmando que Cipriano e Ingegneri jamais pensaram em seguir as idéias de Monteverdi.
Sustenta que o Ritmo seja a parte comandante da melodia, considerando que a harmonia
resulta da coincidência ou sucessão de intervalos determinados pelo ritmo, e que o ritmo
determina a duração das sílabas na oratione.
Propõe, por fim, que, considerando as diferenças existentes, a seconda pratica, seja na
verdade a quarta prática, pois sucede a prática dos Gregos, a dos Latinos, e por fim aquela
prática codificada por Zarlino e seguida por Adrian Willaert.
Quadro 1 – Cronologia da Controvérsia Artusi-Monteverdi
22
2.2.3. Zarlino e Platão como referências para as posições adotadas na
controvérsia
Ao longo da controvérsia, as partes envolvidas indicam e discutem os
parâmetros usados na defesa de suas posições e naquelas defendidas pelos seus
oponentes. Consistentemente, enquanto o lado que detrata a nova prática se
esforça em estabelecer as regras codificadas por Zarlino em seus tratados como
parâmetros no julgamento do repertório vocal, os que defendem a nova maneira
de compor justificam a infringência dessas regras pela busca do ideal de sica
sugerido por Platão na sua definição do conceito de melodia. Palisca, em seu
estudo sobre a controvérsia (1994, p. 82) descreve esta situação afirmando que
“Giulio Cesare, e podemos supor, Claudio, concebiam a segunda prática como um
renascimento da sica ideal de Platão”, enquanto “Artusi, mais velho uma
geração [do que Monteverdi], defendia os padrões de composição ensinados por
Gioseffo Zarlino, entre cujos seguidores ele era um dos mais eminentes” (Ibid., p.
57). Estamos portanto diante de um debate no qual os lados que se opõem
adotam posições inspiradas em autores não contemporâneos à controvérsia e
separados entre si por quase vinte séculos de história.
A questão do anacronismo dos conceitos usados no debate não passou
despercebida pelos litigantes, que a trazem à tona na tentativa de invalidar as
posições de seus adversários. No texto da Dichiaratione, Giulio Cesare cita o
próprio Zarlino, para tentar circunscrever a aplicabilidade das regras por ele
codificadas apenas à prática de sua época:
23
[...] de outra pratica o Rever. Zarlino não pretende tratar como afirma
dizendo: “Não foi jamais, e nem é minha intenção escrever sobre o uso da
prática segundo o modo dos Antigos, Gregos ou Latinos, se bem que às
vezes perpasse o assunto” [...] Tendo em conta que o próprio Rever.
Zarlino concede não ser a prática por ele ensinada a única e exclusiva
verdade, meu irmão portanto, pretende servir-se das razões ensinadas por
Platão e praticadas pelo divino Cipriano.
Um argumento paralelo é usado pelo autor do Discorso secondo musicale di
Antonio Braccino da Todi na tentativa de, em função das diferenças existentes
entre a música da Grécia Clássica e a música de sua época, restringir a
abrangência da validade das definições de Platão ao contexto histórico em que
foram feitas:
Mas voltemos a Platão, que [o autor da Dichiaratione] age como se dele
fosse possuidor; não trata, nem jamais tratou, e nem acredito que Platão
tivesse jamais pensado em tratar, das melodias ou sicas modernas;
mas creio que discursasse sobre melodias, que ao seu tempo estavam em
flor, e se podia dizer então, que a Oração tivesse maior força que a
Harmonia, e que o Ritmo; porque aquela história, ou fábula que fosse, era
recitada ao som de um só instrumento.
11
Em que pese o fato de que ambos os lados da controvérsia tenham se
usado das palavras de Zarlino e de Platão para defenderem suas posições
conforme as suas conveniências, somos forçados a reconhecer a grande
influência que suas obras exerceram naquela conjuntura. Para um
aprofundamento do estudo sobre a seconda pratica, se quisermos elucidar os
conceitos tratados no seu surgimento e defesa, é necessário que tenhamos
conhecimento do contexto do qual esses conceitos foram extraídos. Sendo assim,
nossa pesquisa avança sobre o território das fontes que teriam servido tanto aos
cultores da seconda pratica como aos seus detratores na sustentação de suas
posições. As obras de Zarlino e Platão, tal como a conheceram Artusi, os
11
Ma ritorniamo à Platone, poi che egli se ne fa tanto possessore; non tratta, ha mai trattato,
credo che Platone habbi hauuto mai pensiero di trattare delle melodie, ò musiche moderne; ma credo
bene che ragionasse di quelle melodie, che a' suoi tempi erano in fiore, & si poteua dire all'hora, che
la Oratione hauesse maggior forza dell'Armonia, & del Rithmo; perche quella Historia, ò Fauola che
si fosse, era recitata al suono di vn solo instromento
24
Monteverdi e l’Ottuso Academico, qualificam-se como prováveis fornecedores de
indícios dos quais poder-se extrair maior profundidade dos elementos
encontrados nos documentos que compõem a controvérsia.
Se é verdade que a seconda pratica não de contar com tratados
musicais que lhe dessem sustentação teórica, também é fato que, ao tomar Platão
como inspirador de suas posições, ela insere em um sistema filosófico com forte
tradição histórica e enorme influência no contexto cultural da Itália renascentista.
2.2.4. A tradução latina de Marsilius Ficino, corrigida e indexada por Simon
Grynaeus
Todas as citações de Platão feitas nos documentos que compõem a
controvérsia com Artusi, bem como nas cartas de Monteverdi, estão em latim. Os
termos usados nestas citações indicam que foram feitas a partir da tradução
realizada pelo filósofo e humanista Marsilius Ficino (1433-1499), sob encomenda
de Cosimo de Medici (1389-1464). Esta tradução, a primeira da Opera Omnia de
Platão, teve sua primeira publicação em Veneza no ano de 1491. Tendo sido
republicada em diversas cidades da Europa nos séculos XVI e XVII, a versão
latina de Platão, acompanhada por extensos comentários de Ficino, alcançou
grande penetração na elite cultural européia e foi fundamental para o
ressurgimento do platonismo no renascimento.
Em 1532, o teólogo e lingüista, Simon Grynaeus, publicou na Basiléia
uma revisão da Platonis Opera Omnia de Ficino, modificando alguns termos da
tradução e realizando um minucioso trabalho de compilação que dotou esta nova
edição de um detalhado índice remissivo (Index in Platonis scripta omnia
locupletissimus). Para determinar se esta edição servira como referência aos
defensores da seconda pratica, comparamos as citações de Platão na
Dichiaratione com o texto de três edições da Platonis Opera Omnia: Veneza 1491,
Veneza 1517 e Basiléia 1551, sendo esta última a única editada por Grynaeus.
25
Constatamos que ao citar um trecho da Republica (400d) a Dichiaratione traz o
seguinte texto quin etiam consonum ipsum et disonum eodem modo,
quandoquidem Rithmus [sic] et Harmonia orationem sequuntur se, non ipsa oratio
Rithmum [sic] et Harmoniam sequitur”. Nesta citação é empregada por duas vezes
a forma passiva do verbo deponente sequi (sequuntur e sequitur). Tal uso é
encontrado somente na edição de Grynaeus como demonstrado no Quadro 2.
26
Título/Local e ano de publicação
Número da página/ Excerto
Scherzi Musicali a ter voci
(Veneza, 1607)
Divini Platonis Opera Omnia
translatus et commentatus per
Marsilem Ficinum
(Veneza, 1491)
Platonis Opera (Veneza, 1517)
Omnia divini Platonis opera,
tralatione Marsilii Ficini,
emendatione et ad graecum
codicum collatione Simonis Grynaei
(Basiléia, 1551)
Quadro 2 – Comparação do texto de edições de Platão com a citação da Dichiaratione
27
A confirmação da utilização da edição de Grynaeus como obra de
referência adotada pelos defensores da seconda pratica traz conseqüências
relevantes à investigação dos preceitos que regiam o modo de entender a música
daqueles que se identificavam com este movimento, incluindo implicações
estéticas e até mesmo éticas. A existência de um extenso índice remissivo revela
que estes tinham acesso fácil às definições platônicas dos conceitos que estavam
em discussão.
Tomemos, por exemplo, a questão dos parâmetros a serem adotados
no julgamento das perfetioni e imperfetioni della moderna musica. No índice da
edição de Grynaeus lemos a seguinte entrada: musica circa quid versetur”
(música, em torno do que esta se gira). Somos então direcionados a uma gina
do início de Górgias (449d) em cuja margem consta a seguinte nota: “musica circa
melodiae perfectionem versatur” (música gira em torno da perfeição da melodia).
Ao lado desta nota, no corpo principal da página, onde está transcrito o diálogo de
Platão, encontramos justamente a passagem citada na Dichiaratione quando esta
justifica o subtítulo escolhido para a prometida resposta de Monteverdi nos
seguintes termos: “chamá-la-á perfetioni della moderna musica movido pela
autoridade de Platão que diz non ne et musica circa perfectionem melodiae
versatur?
12
Mesmo que não tivessem um conhecimento mais extenso e profundo
da obra de Platão, os seguidores da seconda pratica dispunham de uma
ferramenta eficiente para encontrar as definições platônicas de termos como
melodia, harmonia, oratio, imitatio ou outros que lhes interessassem. A
investigação destas definições nos abre a possibilidade de trazer à discussão
sobre este movimento elementos ainda a serem explorados, acrescentando nova
luz sobre um tema que, quatro culos passados, ainda permanece obscuro sob
12
A citação da Dichiratione acrescenta a palavra versatur, constante apenas da nota de margem, à
frase “non ne et musica circa perfectionem melodiae” constante do diálogo.
28
vários aspectos. De especial interesse é a investigação sobre o elemento
dominante da melodia platônica. A partir do conceito de oratio e suas implicações
com a dialética, tal como pode ser entendida através da tradução ficiniana de
Platão, poderemos extrair novos elementos que auxiliem a musicologia histórica e
a teoria musical em suas buscas por uma compreensão mais aprofundada do
repertório da seconda pratica.
2.3. O que permanece em aberto e algumas possíveis soluções.
Em sua tese sobre Cipriano da Rore, apontado na Dichiaratione como o
pioneiro da seconda pratica, Stefano La Via (1991, p. 111) propõe uma análise
sobre a questão do que diferenciaria as duas práticas considerando três diferentes
níveis. O primeiro abrangeria a visão geral sobre a música, “envolvendo
considerações de ordem filosófica (estéticas e éticas)”. Num segundo nível
estariam os “princípios específicos da teoria musical”, enquanto no terceiro estaria
a “prática musical em si”. De fato, os documentos que compõem a controvérsia
trazem elementos para que todos esses níveis sejam abordados em benefício de
uma melhor compreensão sobre a verdadeira natureza deste movimento. La Via
compara a Dichiaratione com os escritos de Mei, Bardi, Galilei, Zarlino, Artusi, e
L’Ottuso Academico, e ressalta que seu autor demonstra profundo conhecimento e
respeito pelas palavras de Zarlino. Lembrando que Zarlino também suporta a
máxima da melodia de Platão, La Via conclui que “somente no terceiro nível,
encontramos diferenças relevantes que nos permitam a distinção entre grupos de
teóricos da prima pratica e da seconda pratica”. Tal conclusão nos parece
precipitada haja vista o apelo de Claudio Monteverdi para que fossem
consideradas “outras reflexões sobre harmonia” que se situavam “para além da
prática ensinada por Zarlino”. Tomando a Dichiaratione de forma isolada, vejamos
o que ela afirma em cada um desses níveis.
29
Do ponto de vista da estética musical, ou seja no primeiro nível de
análise proposto, a Dichiaratione deixa absolutamente claras três premissas, todas
baseadas em citações precisas de Platão:
1.1. A música gira em torno da perfeição da melodia (Górgias, 449c).
1.2. A melodia é composta por três elementos: discurso (oratione),
harmonia e ritmo, sendo que os dois últimos devem seguir o
primeiro (República 398d e 400d).
1.3. A oratio tem força pois segue os afetos da alma
(RepúblicaX400d).
Num segundo nível, da teoria musical, a Dichiaratione faz três considerações,
todas se referindo aos tratados de Zarlino:
2.1. As regras codificadas por Zarlino se referem a uma determinada
prática iniciada com o advento da polifonia, seguida por muitos
compositores e aperfeiçoada por Adrian Willaert.
2.2. Existe uma outra prática que não segue estas regras.
2.3. O que foi considerado falta de unidade do modo pode ser
explicado em função do emprego de tuoni misti(tons mistos),
prática descrita no capítulo 14 do livro das Instituitioni Musicali de
Zarlino.
13
Finalmente, no que se refere à prática musical, a Dichiaratione considera que:
3.1. A seconda pratica segue os preceitos ditados por Platão, a saber
(1.1, 1.2 e 1.3)
3.2. Ela não é, como diz Artusi, a escória (feccia) da primeira.
13
Sobre esta afirmação, que é rebatida de forma contundente e precisa por Artusi no Discorso
secondo musicale di Antonio Braccino da Todi (1608), Palisca (1994, p. 75) sugere que “faltou a
Giulio Cesare a coragem ou a convicção para proclamar o fim da tirania dos modosenquanto La
Via (1991, p. 91) considera que a questão “não era relevante para a [...] teorização da seconda
pratica.”
30
3.3. Seu “primeiro renovador” foi Cipriano da Rore, seguido, entre
outros, por Gesualdo, Cavaliere, Pecci, Ingegneri, Marenzio,
Giaches de Wert, Luzzaschi, Peri e Caccini.
3.4. “Em respeito às suas origens, [por seguir preceitos mais antigos],
poderia ser chamada de primeira”.
La Via (1991, p. 86 e 113) destaca que Monteverdi parece não
reconhecer nos trabalhos de Vincenzo Galilei ou Girolamo Mei um possível
suporte teórico para a seconda pratica, que estes não são jamais citados em
sua defesa. Ao invés disso, Monteverdi prefere prometer sua própria explicação
teórica que, como sabemos, jamais veio à tona.
Percebemos que no nível da teoria musical, a Dichiaratione deixa claro
quais normas não eram seguidas, sem contudo nos informar quais procedimentos
governariam a aplicação dos preceitos ditados por Platão. Temos a afirmação de
um ideal de música bem situado e uma prática que diz tomá-lo como inspiração.
Não temos porém nenhuma palavra que esclareça através de quais
procedimentos a harmonia e o ritmo possam seguir ao que determina o discurso
(oratio), conforme os preceitos que orientam este ideal. Nada podemos concluir
sobre quais seriam as atribuições do discurso a serem seguidas ou quais
atribuições da harmonia e do ritmo estariam seguindo o discurso.
Estaremos adiante considerando e contextualizando alguns caminhos
que se apresentam como virtuais alternativas que permitam relacionar os
procedimentos harmônicos adotados no repertório das monodias dramáticas da
seconda pratica com os preceitos proclamados no seu manifesto mais
significativo, a Dichiaratione de 1607.
31
2.3.1. Modos e Afetos
Os modos musicais diferem essencialmente entre si de tal forma que
quando os escutamos somos afetados de maneira diversa e não temos os
mesmos sentimentos em relação a cada um deles, mas ouvimos com
tristeza e gravidade a alguns, como o chamado Mixolydio, enquanto outros
abrandam a mente, ou ainda, como no caso do Dórico, produzem um
efeito moderador e de equilíbrio, ou inspiram entusiasmo como o Frígio.
Este assunto tem sido tratado com propriedade por aqueles que estudam
este campo da educação sendo que suas teorias estão confirmadas pelos
fatos.
(Aristóteles. Política,1340A)
No século IV AC, Aristóteles já dava como matéria aceita a doutrina que
estabelecia uma associação entre estados de espírito, ou afetos, aos diversos
modos musicais. Aristóteles referia-se provavelmente aos filósofos pré-socráticos
da escola de Damon (Séc. V A.C.) os quais teriam influenciado fortemente Platão,
que na República (398E-399A) nos descreve os efeitos produzidos pelos modos
Mixolydio, Lydio, nio, rico e Frígio. Esta associação entre o modo e um afeto
(pathos ou ethos) é repetida por diversos teóricos tanto na Idade Média, a
começar por Guido D’Arezzo (ca. 1020), como no Renascimento. Entre os teóricos
do Renascimento que associam afetos diferentes a cada um dos modos estão
Gaffurio, Glareanus e Zarlino. Com uma tradição que remonta aos pré-socráticos
esta doutrina é relembrada Johann Matthesson (1681-1764) em Der vollkommene
Capellmeister ainda em 1739, quando o sistema tonal, centrado exclusivamente
nos modos maior e menor, já estava completamente estruturado e em pleno uso.
Vimos anteriormente (Cf. p.29) que a Dichiaratione cita uma passagem
da República (400d) na qual Platão afirma que a oratio segue os afetos da alma
14
.
Ora, se isto se dá, e podemos também relacionar o modo aos diversos afetos,
seria não possível, como também coerente com o pensamento platônico, o
14
oratio non ne animi affectionem sequitur?
32
estabelecimento de um elemento comum que permita à harmonia seguir sua
senhora, a oração. Bastar-nos-ia, para tanto, identificar o afeto sugerido pelo
discurso poético e escolher o modo que melhor o representasse. Esta sugestão
nos Zarlino, no capítulo 32 da quarta parte do seu Le Istitutioni Harmoniche
(1558), quando adverte que o compositor saberá acomodar otimamente a
harmonia às palavras, quando tiver “considerado a natureza do Modo sobre o qual
pretende compor a cantilena”. Considerando a ‘doutrina do ethos’
15
associado aos
modos em seu histórico e, ao mesmo tempo, observando os procedimentos
harmônicos adotados pelos seguidores da seconda pratica, veremos que algumas
dificuldades se colocam diante desta possível solução. Talvez tenha sido em
função destas dificuldades que, embora a ‘doutrina do ethos’ seja mencionada por
Platão na mesma passagem em que este descreve a melodia, ela não é citada no
texto da Dichiaratione.
Em termos lógicos a chamada ‘doutrina do ethos’ associada aos
modos, nos permitiria estabelecer uma relação entre a oração e um modo através
da correspondência que cada um deles estabelece com o afeto. Este
procedimento seria possível em duas etapas principais, a saber, (1) corresponder
o texto a um elemento do conjunto afetos e (2) corresponder este elemento do
conjunto afetos a um elemento do conjunto modos. São necessários portanto: (a)
o texto; (b) um conjunto definido de afetos; (c) uma função que corresponda o
texto a um elemento do conjunto afetos; (d) um conjunto definido de modos e (e)
uma função que corresponda os elementos do conjunto afetos aos elementos do
conjunto modos.
Consideremos primeiramente a questão da constituição de um conjunto
de modos (d). É importante notar que existem, em relação a esta questão,
15
O termo ’doutrina do ethos’ é empregado de maneira difusa na musicologia para designar a
crença na existência de uma relação causal entre certos estados emocionais e certos componentes
musicais (STRUNK, 1998, pg.133).
33
divergências e equívocos históricos. Zarlino nos chama a atenção para este fato
no capítulo 3 da quarta parte de Le Istitutioni Harmoniche (1558), advertindo que
“entre aqueles que fazem alguma menção aos modos vê-se grande variedade em
torno aos seus nomes em geral, [...] assim como em torno a alguns nomes
específicos e em torno ao seu número”
16
. Zarlino prossegue com um
levantamento, em boa parte baseado no trabalho de Glareanus, das divergências
encontradas nas classificações dos modos de diversos autores da antiguidade
grega e latina. Quanto ao número de modos, este poderia variar segundo o
contexto histórico e a opinião do autor, até atingir o número máximo de doze.
Platão menciona (República 398e-399a) a existência de apenas seis modos. Entre
autores do século II, este número seria de três segundo Plutarco, quatro segundo
Lucianus de Samosata, cinco, segundo Lucius Apuleius, ou sete, segundo
Ptolomeu. a tradição gregoriana reconhecia a existência de oito modos
distintos. Rompendo com esta tradição, o monge suíço Henricus Glareanus
publica em 1547 o seu Dodecachordon no qual sustenta a existência histórica de
mais quatro modos, aumentando este número para doze. Esta classificação é
adotada por Zarlino, estranhamente sem citar o nome de Glareanus, e podemos
supor que estes fossem os modos reconhecidos pelos compositores do norte da
Itália no final do século XVI.
Outro ponto de discrepância se refere à nomenclatura adotada na
designação dos diversos modos. entre autores da antiguidade existem
divergências, como ressalta Zarlino ao lembrar que Pollux (séc.II) e Platão
concordam quanto ao número de modos, mas discordam quanto aos seus nomes.
Historicamente, um dos pontos críticos na geração de discrepâncias é a
transposição da nomenclatura adotada na Grécia Clássica e os Modos
Eclesiásticos conhecidos na Idade Média. A tradição gregoriana adotara os nomes
16
Appresso di tutti quelli, che hanno fatto qualche mentione delli Modi, si vede grande uarietà intorno
al loro nome in generale: come hauemo veduto; cosi anco l' istesso intrauiene intorno ad alcuni nomi
particolari; et intorno al numero loro.
34
dos modos gregos, que em sua origem se referem às regiões da península grega
ou aos ethnos que compunham a sua população. Devido a um erro histórico,
conhecido pelos teóricos do Renascimento, a composição intervalar das escalas
que compõem esses modos não foi seguida. Assim por exemplo, o modo que na
denominação eclesiástica é chamado de frígio corresponde ao que os gregos
denominavam dórico. Entretanto, mesmo entre os autores que como Zarlino
reconhecem este equívoco, a descrição do ethos dos modos remetia comumente
a referências que estavam historicamente associadas à versão grega de sua
denominação. Palisca (1983) descreve esta situação na introdução à tradução
inglesa da quarta parte de Le Istitutioni Harmoniche:
A despeito da sua insistência quanto à independência dos modos
eclesiásticos em relação à antiguidade, Zarlino enumera alguns dos
epítetos tradicionais para os seus ethos, que ele cuidadosamente reporta
como opinião de outros. A descrição do Modo I [equivalente ao modo
dórico na tradição gregoriana] como intermediário entre o triste e o alegre,
apropriado para palavras “cheias de gravidadee que lidam com assuntos
“nobres” e “edificantes” lembra a identificação de Glareanus deste modo
como grave, prudente, digno e modesto. Embora um dórico não tivesse
nada a ver com o outro, como Zarlino sabia.
Temos então, no que se refere somente à definição do conjunto de modos (d),
discrepâncias, tanto quanto ao número de seus elementos, como em relação às
suas identidades nominais e também sobre seus atributos (a formação de sua
escala e seu âmbito). Tamanha era a confusão entre os teóricos, mesmo entre
aqueles sabiam das diferenças entre os modos gregos e seus homônimos
litúrgicos, que Jacques Chailley ao analisar a situação cunhou a expressão
“L'imbroglio des modes”.
Mesmo quando tratamos de autores que concordam em relação à
composição do conjunto de modos (d), não existe consenso em relação à função
que realiza a correspondência entre um modo e um afeto (e). É o que vemos
comparando, por exemplo, as atribuições (Quadro 3) feitas por cinco teóricos da
35
idade dia que tomavam como pressuposto a classificação dos modos
estabelecida com a tradição gregoriana.
Guido
ca. 1020
Contractus
1013
Cotton
ca. 1125
Jacques de Liége
Séc. XIV
Cod. Basil.
ca. 1310
1. in modo historiae
recto et tranquillus
gravis vel nobilis
morosa et
curialis vagatio
morosa et
terminalis vagatio
as iocundus
2. (tristis) suavis rauca gravitas praeceps et
obscure
gravitas
as senes
3. anfractis saltibus
delectetur
incitatus
vel saltans
severe et quase
indignans persulatio
severa et indignans
persulatio
ad severos
4. (blandus) modestus vel
morosus
adulatorius mulceus et
adulatorius
as blandos
5. (laetus) voluptuosus molesta petulantia peyulans lascívia ?
6. voluptuosus lamentabilis lacrimosus dulcis querimonia
amantium
ad tristes
7. garrulus garrulus mimicos saltus
facien
líberos saltus
iocundi faciens
ad versutos
8. suavis iocundus vel
exultans
decen et quase
intonalis
seriousus ad
honestos
Quadro 3 – Associação de afetos aos modos
Fonte: Meyer (1952)
Em seu trabalho sobre os aspectos retóricos dos modos da Renascença, Meier
(1990, pg.182) reconhece, a despeito de tais discrepâncias, a existência de uma
tendência:
Os modos eram considerados, como de fato foram na Idade Média, não
apenas fenômenos puramente musicais, definidos por critérios melódicos,
mas também veículos para qualidades de afetos distintas. De maneira
simplista podemos dizer que os modos autênticos eram considerados
‘entre alegres e moderados’ e os modos plagais ‘entre moderados e
pesarosos’.
Outro aspecto a ser considerado são os riscos envolvidos em uma
eventual rígida aplicação de uma destas doutrinas. Meier (1990, pg.82) nos alerta
que, para Tinctoris (1476) e Glareanus (1547), um compositor habilidoso seria
capaz de transformar o efeito produzido por qualquer dos modos. Mattheson
colocaria, mais tarde, a questão da seguinte forma: “nenhuma tonalidade pode ser
tão triste ou alegre em si mesma a ponto de que não se possa compor o oposto
17
.
A essa discordância quanto à correspondência (e) entre a identidade nominal dos
17
MATTHESON, 1739, I.9.48.
36
elementos do conjunto modo (d) e um elemento do conjunto afeto (b), somemos o
fato de que vários autores, como por exemplo, Gaffurio (1518), relacionaram de
maneira inapropriada os afetos gregos aos modos eclesiásticos, ou seja, fizeram a
correspondência, mas confundiram a identidade nominal dos elementos de um
dos conjuntos.
Mesmo não havendo um consenso sobre como corresponder um modo
a um afeto, seria possível a um compositor adotar um único trabalho teórico, uma
única doutrina, como por exemplo as Dimostrationi Harmoniche (1558) de Zarlino,
como referência. O Quadro 4 representa a associação que Zarlino faz entre os
doze modos que reconhece e as palavras ou matérias que melhor acomodariam.
Nota-se que a correspondência entre os afetos e os modos o é uma
correspondência unívoca, pois às vezes a um mesmo modo correspondem mais
de um afeto, e em alguns casos, afetos aparentemente opostos. Este é o caso do
XII modo que serve tanto para acomodar palavras cheias de lamento como para
fazer alegres cantilene. também casos em que o mesmo afeto é relacionado a
diversos modos, como no caso das referências a prantos e matérias cheias de
lágrimas associados aos modos II, III, VI, e possivelmente X.
I Tem um certo efeito mediano entre o triste
e o alegre. [...] Podemos acomodar a este
modo [...] palavras cheias de gravidade e
que tratam de coisas elevadas e solenes.
hà vn certo mezano effetto tra il mesto, & lo
allegro; [...] potremo ad esso accommodare
ottimamente quelle parole, le quali saranno
piene di grauità, & che trattaranno di cose alte,
& sententiose
II Muito apto às palavras que representam o
pranto, a tristeza, solicitude, o cárcere, a
calamidade e todo tipo de miséria.
[Comparado com o sexto] é especialmente
fúnebre e calamitoso.
Modo atto alle parole, Che rapresentano pianto,
mestitia, solicitudine, cattiuità, calamità, & ogni
generatione di miseria; & si troua molto in vso
ne i loro canti;
III Acomoda-se [...] às palavras dignas de
pranto e cheias de lamentos.
alcuni hanno hauuto parere, Che habbia natura
di commouere al pianto; la onde gli
accommodarono volentieri quelle parole, che
sono lagrimeuoli, & piene di lamenti.
IV Acomoda-se [...] às palavras [...] cheias de
lamento, que contém tristeza, ou
lamentações cheias de súplica, como são
as matérias amorosas e aquelas que
Questo medesimamente, secondo la loro
opinione, si accommoda marauigliosamente a
parole, o materie lamenteuoli, che contengono
tristezza, ouero lamentatione supplicheuole;
37
significam o ócio, a quietude, tranqüilidade,
adulação, fraude e detração. [...] Chamam-
no de Modo Adulatório.
come sono materie amorose, & quelle, che
significano otio, quiete, tranquillità, adulatione,
fraude, & detrattione; il perche dallo effetto
alcuni lo chiamarono Modo adulatorio.
V [Produz] modéstia, deleite e solevamento
dos ânimos, Os antigos o usaram para
acomodar palavras [...] que tratassem de
vitória. [...] Chamado de jucundo, modesto
e aprazível.
Alcuni vogliono, Che nel cantare, questo Modo
arrechi modestia, letitia, & solleuatione a gli
animi dalle cure noiose. Però gli Antichi vsarono
di accommodarlo alle parole, o materie, che
contenessero alcuna vittoria: onde da tal cose
alcuni lo dimandarono Modo giocundo,
modesto, & diletteuole.
VI Dizem não ser muito alegre nem elegante.
Usaram-no nas canções graves e devotas,
que contém comiseração. [...] Chamaram-
no de Modo devoto e lacrimoso.
Dicono non esser molto allegro, ne molto
elegante; & però lo vsarono nelle cantilene
graui, & deuote, che contengono
commiseratione; & lo accompagnarono a quelle
materie, che contengono lagrime. Dimaniera
che lo chiamarono Modo deuoto, & lagrimeuole;
a differenza del Secondo, ilquale è più tosto
funebre, & calamitoso, che altro.
VII A este modo convêm palavras ou matéria
lascivas, [...] que sejam alegres, ditas com
modéstia; e aquelas que signifiquem
ameaças, perturbações e ira.
a questo (secondo che dicono) si conuiene
parole, o materie, che siano lasciue; o che
trattino di lasciuia; le quali siano allegre, dette
con modestia; & quelle, che significano
minaccie, perturbationi, & ira.
VIII Dizem os práticos que este modo contém
uma certa suavidade natural e doçura
abundante que enche de alegria os ânimos
dos ouvintes, com suma jucundidade e
suavidade mista. [...] longe da lascívia e do
vício.
dicono li Prattici, che questo Modo hà natura di
contenere in se vna certa naturale soauità, &
dolcezza abondante, che riempe di allegrezza
gli animi de gli ascoltanti, con somma
giocondità, & soauità mista; & vogliono, che sia
al tutto lontano dalla lasciuia, & da ogni vitio.
IX Muito apto aos versos líricos [...] acomodar
palavras que contenham matérias alegres,
doces, suaves e sonoras [...] tem em si
uma grata severidade, misturada com uma
certa alegria e doce suavidade.
attissimo a i versi lirici; la onde se li potranno
accommodar quelle parole, che contengono
materie allegre, dolci, soaui, & sonore: essendo
che (come dicono) hà in sè vna grata seuerità,
mescolata con vna certa allegrezza, & dolce
soauità oltra modo.
X Podemos dizer que a natureza deste modo
não seja muito distante daquela do
segundo e do quarto.
Potemo dire, che la natura di questo Modo sia
non molto lontana da quella del Secondo, & del
Quarto
XI Este é por natureza muito apto às danças e
aos bailados. Alguns o chamaram de Modo
lascivo.
Questo è di sua natura molto atto alle danze, &
a i balli: [...] alcuni lo dimandarono Modo
lasciuo.
38
XII Este modo é apto às coisas amatórias, que
contenham coisas cheias de lamento. [...]
Tem algo de tristeza; todavia todo
compositor que quer fazer uma cantilena
que seja alegre não consegue separar-se
dele.
Questo Modo, è atto alle cose amatorie, che
contengono cose lamenteuoli: perche è nelli
Canti fermi Modo lamenteuole, & hà alquanto di
mestitia, secondo il loro parere; tuttauia
ciascuno compositore, che desidera di fare
alcuna cantilena, che sia allegra, non si sa
partire da lui.
Quadro 4 – Correspondência entre Modos e Afetos segundo Zarlino (1558)
Fonte: Zarlino (1558)
Outro aspecto a ser notado, através da leitura do original em italiano, é
a maneira com que Zarlino prefere atribuir a uma indeterminada terceira pessoa
do plural a responsabilidade pelas correspondências que menciona em seu
tratado. Expressões como ‘dizem os práticos’ ou simplesmente ‘dizem’ reforçam
uma impressão de imprecisão que circunda a tradicional ‘doutrina do ethos’. Tem-
se a sensação de que tantas são as fontes, e tão díspares, que a longevidade da
‘doutrina do ethos’ associada ao modo finda por tornar-se um obstáculo à sua
aplicação.
Talvez uma parte considerável do problema pudesse ser afastada ao
isolarmos a questão, investigando somente as fontes que remetessem à
antiguidade. Ou seja, relacionar as afirmações estéticas dos filósofos da
antiguidade à música daquele mesmo período. Este esforço foi depreendido, de
maneira mais notável, por dois pesquisadores associados ao contexto da
camerata fiorentina, no qual podemos identificar as origens da monodia dramática
da seconda pratica: Girolamo Mei e Vincenzo Galilei. A correspondência entre
eles, trazida à tona e analisada por Palisca (Mei, 1960), mostra que a ‘doutrina do
ethos’ associada aos modos tenha sido considerada um caminho para uma
possível associação entre a oratio e a harmonia, dentro do contexto das
investigações que faziam da música da antiguidade. As conclusões de Mei
evidenciaram que a despeito de adotarem a mesma nomenclatura, existiam
enorme diferenças entre os modos eclesiásticos contemporâneos e os modos
39
gregos, tanto na distribuição de tons inteiros e semitons quanto nos sistemas de
afinação adotados. Outra conclusão importante dizia respeito a uso da polifonia.
Segundo Palisca (1954, pg.4),
Mei almejava desde o início convencer seu correspondente principalmente
de duas coisas: que a música dos gregos tinha sempre sido monódica e
por esta virtude teria sido capaz de tanto efeitos maravilhosos; e que a
afinação daquela época não era o syntonon diatônico de Ptolomeu, como
alegavam Zarlino e Galilei, mas o ditoniaon diatônico, ou afinação
pitagórica.
Deste primeiro ponto resultou o direcionamento de uma significativa produção
dramático-musical na qual Cavalieri, Peri, Caccini e, mais tarde Monteverdi, em
suas favole in musica, fixaram a monodia acompanhada como meio de expressão.
Podemos especular que as diferenças entre o sistema de afinação da
antiguidade e aqueles adotados ao final do século XVI, tanto no que se refere aos
modos, como no que se refere à afinação, teria provavelmente desestimulado o
percurso do caminho da utilização da ‘doutrina do ethos’ associada aos modos,
por aqueles que no Renascimento desejavam criar uma música que seguisse os
preceitos da melodia platônica. Vejamos a impressão deixada em Monteverdi
pelos escritos de Galilei, relatada em uma carta a Giovanni Battista Doni datada
de 2 de Fevereiro de 1634:
Vi porém não pouco, vinte anos, o Galilei onde este menciona
aquela pouca pratica antiga: apreciei então tê-lo visto por ter visto nesta
parte como operavam os antigos os seus sinais práticos à diferença dos
nossos, não tentando avançar mais por entender que me resultariam cifras
obscuríssimas e pior, me encontraria perdido em todo aquele modo prático
antigo.
18
18
Ho però visto non prima d’ora, anzi, venti anni fa il Galilei colà ove nota quella poca pratica antica.
Mi fu caro all’ora l’averla vista, per aver visto in questa parte come che adoperavano gli antichi gli
loro segni praticali a differenza de’ nostri, non cercando di avanzarmi più oltre ne lo intenderli,
essendo sicuro che mi sarebbero riusciti come oscurissime zifere, e peggio, essendo perso in tutto
quel modo praticale antico.
40
Na mesma carta ele declara também o ter tido objetivo de recriar
uma música que, seguisse em sua harmonia a prática dos gregos, mas que fosse
inspirada em sua estética na visão dos filósofos da antiguidade:
Mantenho-me distante, na minha escrita, daquele modo adotado pelos
gregos com suas palavras e sinais, empregando os termos e os caracteres
que usamos na nossa prática; porque a minha intenção é mostrar, por
meio da nossa prática, quanto pude extrair da mente daqueles filósofos a
serviço da boa arte, e não aos princípios da primeira prática, somente
harmônica.
19
Outro ponto a ser considerado na aplicação da ‘doutrina do ethos’ diz
respeito a gama de afetos a serem representados. Tomemos por exemplo os
afetos mencionados por Zarlino: amor, pranto, lamento, tristeza, gravidade,
devoção, comiseração, adulação, alegria, tranqüilidade, doçura (suavidade),
deleite (prazer), lascívia e ira. Seriam estes afetos capazes de representar toda a
gama de afetos humanos? Qual subsídio poderia ser extraído das fontes clássicas
para responder a esta questão? Platão não faz em seus diálogos uma
classificação dos afetos. a tradução latina da Retórica de Aristóteles feita por
Carlo Sigonio (1524-1584) traz a seguinte definição: “afetos [(affectus)] são as
causas que transformam o julgamento e são seguidos do prazer e da dor, tais
como a ira, a misericórdia, o medo, e outros similares, e os seus contrários
20
. A
seguir são definidos os seguintes afetos: ira, lenitas (calma), amor, odium (ódio),
metus (medo), fidentia (confiança), pudorem (pudor), impudentia (impudência),
gratia (graça), misericordia (misericórdia), stomachatione (desprezo), invidia
(inveja), aemulatione (emulação). Mesmo considerando que Aristóteles não
pretendesse tratar ali de todos os afetos, mas apenas daqueles que, no contexto
19
Lassio lontano nel mio scrivere quel modo tenuto da’ greci con parole e segni loro, adoperando le
voci e li carateri che usiamo nela nostra pratica; perché la mia intenzione è di mostrare, con il mezzo
dela nostra pratica, quanto ho potuto trarre da la mente de quefilosofi a servizio dela bona arte, e
non a principii dela prima pratica, armonica solamente.
20
affectus autem sunt, propter quos immutati in iudicationibus dissident; quos
quidem molestia, voluptas quom consequitur: vi ira, misericordia, metus, et omnes
eiusmodi; atque his contrarii (pg.107).
41
da retórica, afetam a capacidade de julgamento, podemos ver, comparando estes
afetos com a lista extraída de Zarlino, que muitos afetos não encontrariam
representação nos modos. Dos treze ou catorze afetos listados por Aristóteles,
apenas cinco (ira, calma, amor, graça e misericórdia) parecem estar contemplados
por Zarlino
21
.
A tarefa de relacionar a oratio à harmonia através da correspondência
possível que tanto o texto como o modo fazem com os afetos encontrou, como
vimos acima, as seguintes dificuldades:
a) divergência entre os sistemas de afinação da antiguidade e os
contemporâneos.
b) divergências quanto à formação intervalar e o âmbito dos modos.
c) equívocos em relação à identidade nominal dos modos.
d) divergências quanto à correspondência entre o modo e o afeto.
e) limitações em relação à gama de afetos que encontram
correspondência nos modos.
Além das dificuldades acima listadas, a aplicação da ‘doutrina do ethos’
no estabelecimento de uma possível relação entre a harmonia e o discurso poético
dentro do contexto da monodia dramática da seconda pratica apresenta ainda
outro empecilho. Embora seja possível associar um estado de ânimo tanto à
escolha de um modo como ao conteúdo afetivo revelado por um discurso poético,
para dar cabo a tal associação seria necessário que, ao longo de uma aria, tanto a
música se mantivesse no âmbito de um mesmo modo como o estado de ânimo se
21
A tradução latina de Sigonio (ARISTOTELES, 1577) não chega a nomear o afeto (desprezo) que
seria oposto à gratia (graça, benevolência).
42
mantivesse inalterado. O que se observa neste repertório é porém outra
realidade. O componente dramático das favole per musica impinge na maioria das
arie uma acentuada oscilação de estados de ânimo, criando dificuldades para o
compositor que intentasse acompanhar estas mudanças mantendo-se no âmbito
de um único modo. De fato, como vimos anteriormente (Cf. p. 14) fez-se
necessária a extrapolação dos âmbitos então fixados para os modos, efetivamente
infringindo, como sugere Artusi, as regras que determinam a unidade da sua
ordem. Se de um lado Zarlino (1558, Parte III, Cap. 26) estabelece como quinta
condição necessária para uma composição que ela “seja ordenada sob uma
prescrita e determinada Harmonia, ou Modo, ou Tom”
22
, de outro Vicentino (1555)
proclamava que sobre as palavras “poder-se-á compor toda sorte de graus, e de
harmonias, e ir fora do Tom “.
Finalmente, além das dificuldades operacionais que apresenta e de não
encontrar correspondência no repertório da monodia dramática da seconda
pratica, a aplicação da ‘doutrina do ethos’ como possível solução para estabelecer
a relação entre oratio e harmonia, representaria uma incoerência em relação a
uma das posturas mais fortes assumidas nas declarações de Monteverdi. Embora
a ‘doutrina do ethos’ seja sustentada por Platão, este caminho em nada se
contraporia às “regras judiciosíssimas” codificadas por Zarlino, e estaria, portanto,
em clara contradição com o apelo de Monteverdi a “que os homens de inteligência
pudessem considerar outras reflexões sobre harmonia”.
2.3.2. Ethos, Pathos, Mutatio e Hexachordum
Uma das imperfettioni della moderna musica apontada por Artusi dizia
respeito à pratica de alguns compositores de não observarem a ordem do modo.
Antes mesmo da publicação das críticas de Artusi, Vicentino (1555) já admitia esta
prática justificando-a, como depois fizeram os Monteverdi, pela necessidade de
22
Cf. citação p. 43
43
acomodar a harmonia às palavras. Curiosamente, tanto o princípio que baseia a
justificativa da transgressão, como a regra transgredida, são citados por Zarlino
quando este, no capítulo intitulado quel che si ricerca in ogni compositione (aquilo
que se procura em todas composições), enumera seis condições para uma boa
composição (1558, III, Cap. 26):
Em toda boa Composição buscam-se muitas coisas, das quais se uma
faltasse poderia-se dizer que fosse imperfeita [...] A Quinta é que a
cantilena seja ordenada sob uma prescrita e determinada Harmonia, ou
Modo, ou Tom, como queiramos chamar; e que não seja desordenada. E a
Sexta, e última (entre outras que poderiam ser acrescentadas) é que a
harmonia, que nela se contém, seja de tal forma acomodada à Oratione,
ou seja às Palavras, que nas matérias alegres, a harmonia não seja flébil,
e pelo contrário, nas [matérias] flébeis, a harmonia não seja alegre.
23
Se tomassem como referência este capítulo do tratado de Zarlino, os
interlocutores da controvérsia poderiam dizer que a quinta condição estava sendo
negligenciada em prol da sexta. Entretanto o havia para Zarlino, quando este
codificou as regras adotadas pela prática polifônica de Willaert, a menor ameaça
de contradição entre essas duas condições. Lembremos que Zarlino cita e
defende a máxima da melodia platônica tanto quanto o fazem os Monteverdi. O
que teria mudado para fazer com que se passasse a alegar algum tipo de
dificuldade ou inconveniência na compatibilidade entre aquelas duas condições?
Um fator a ser considerado é o interesse maior, tanto do poetas criadores da
oratione, como dos compositores encarregados de tratá-la musicalmente, na
contemplação de uma gama mais ampla de afetos.
Ao longo dos seus tratados Zarlino se refere aos afetos usando
basicamente três denominações, affeti ou affettioni, costumi ou habiti, e passioni.
23
in ogn'altra buona Compositione si ricercano molte cose, delle quali se vna ne mancasse, si
potrebbe dire, che fosse imperfetta [...] La Quinta è, che la cantilena sia ordinata sotto vna prescritta,
& determinata Harmonia, o Modo, o Tuono, che vogliam dire; & che non sia disordinata: Et la Sesta,
& vltima (oltra l'altre, che si potrebbeno aggiungere) è, che l'harmonia, che si contiene in essa, sia
talmente accommodata alla Oratione, cioè alle Parole, che nelle materie allegre, l'harmonia non sia
flebile; & per il contrario, nelle flebili, l'harmonia non sia allegra.
44
Estes dois últimos são claramente traduções para o italiano dos vocábulos gregos
ethos e pathos, enquanto o primeiro é um termo geral que engloba os outros dois.
Vejamos a diferença entre estes termos, de acordo com explicação que nos
Quintiliano em Institutio Oratoria (vi.2.7-10). Após estabelecer que os afetos
(adfetcus) são “alma e vida” do ofício do orador, Quintiliano distingue o que em
grego denomina-se pathos, “que chamamos corretamente adfectum”, do ethos,
“cujo nome, no meu entendimento, não encontra equivalência em latim, e é
chamado mores [hábito, costume, moral]”
24
. Na distinção que faz, esclarece:
o primeiro tipo [pathos] indica alterações mais violentas e veementes,
enquanto o segundo, mais suaves e calmas; o primeiro quer comandar e
comover, o outro persuadir e induzir à benevolência; acrescentam alguns
que o ethos é contínuo, enquanto o pathos é momentâneo
25
.
Zarlino conhecia bem esta distinção e sustenta (1558, II, Cap. 8) que a melodia
tem uma função ética, ou seja, é capaz de induzir ao bem através do hábito
(ethos).
A Melodia pode mudar os costumes do ânimo: uma vez que, sem
nenhuma dúvida (segundo a doutrina do Filósofo
26
) as Virtudes morais e
os Vícios não são nascidos em s, mas geram-se por muitos hábitos
bons ou tristes exercitados, de maneira que alguém por tocar ou escrever
muitas vezes algo mal, se torna um triste tocador ou escritor; ou pelo
contrário, exercitando muitas vezes algo bom, torna-se bom e excelente.
Da mesma forma nas virtudes morais, aquele que exercita freqüentemente
a injustiça torna-se injusto. [...] De maneira que, quais sejam as operações,
tais são os hábitos. [...] Sendo então as harmonias e os ritmos similares às
paixões do ânimo e aos diversos hábitos morais, como afirma Aristóteles,
podemos dizer que o habituar-se às harmonias e aos números não seja
24
Horum autem, sicut antiquitus traditum accepimus, duae sunt species: alteram Graeci pathos
vocant, quod nos vertentes recte ac proprie adfectum dicimus, alteram ethos, cuius nomine, ut ego
quidem sentio, caret sermo Romanus: mores appellantur, atque inde pars quoque illa philosophiae
ethike moralis est dicta.
25
in altero vehementes motus, in altero lenes, denique hos imperare, illos persuadere, hos ad
perturbationem, illos ad benivolentiam praevalere. Adiciunt quidam , pathos temporale esse. Quod ut
accidere frequentius fateor, ita nonnullas credo esse materias quae continuum desiderent adfectum.
26
Zarlino refere-se Ética a Nicômaco (Livro II) de Aristóteles.
45
outra coisa senão habituar-se às diversas passioni, hábitos morais e
costumes do ânimo.
27
Os ethoi eram portanto afetos que, através da harmonia e ritmo, podiam ser
induzidos por semelhança. Seu caráter mais estável e contínuo (ethos perpetuum,
segundo Quintiliano) se adequava, ao menos potencialmente, a uma
representação numa cantilena que fosse “ordenada sob uma prescrita e
determinada Harmonia, ou Modo, ou Tom”. O que Zarlino chama de a ‘doutrina do
Filósofo’, era uma crença, também sustentada por Platão na República, de que
hábitos bons e contínuos eram preferíveis aos afetos maus e passageiros e
deveriam ser estimulados e exercitados através das manifestações artísticas.
Baseado nesta premissa, o Sócrates da República chega a sugerir que sejam
banidos da sua cidade ideal os flautistas e fazedores de flautas (399d), os modos
musicais com exceção do dórico e do frígio (398e-399a) e a tragédia (568b). A
inconveniência da representação de certos afetos era uma crença difundida,
aceita, mas também questionada no contexto que circundou o surgimento da
seconda pratica.
Num discurso proferido na Academia degli Alterati em 1586, Lorenzo
Giacomini discute a purgação dos afetos na tragédia, reiterando a conveniência de
que estes fossem ali representados em toda a sua gama. Entre Gli Alterati,
incluíam-se alguns dos homens que tiveram participação ativa, direta e decisiva no
surgimento das favole in musica do início do século XVII. Giovanni de Bardi (1534-
27
la Melodia può mutar li costumi dell'animo: percioche indubitatamente (secondo la dottrina del
Filosofo) le Virtù morali, et li Vitij non nascono con esso noi: ma si generano per molti habiti buoni, o
tristi frequentati, nel modo che vno per sonare, o scriuere spesse fiate male, diuenta tristo Sonatore,
o Scrittore: Over per il contrario, essercitandosi spesse volte bene, diuenta buono & eccellente.
Similmente nelle virtù morali, colui che spesso essercita la Iniustitia per tal modo diuenta Iniusto; &
colui che essercita la Iustitia diuenta Iusto, nel modo che colui, che si vsa a temere i pericoli diuenta
timido, & non li stimando diuiene audace. Di maniera che, quali sono le operationi, tali sono gli habiti;
Et dalle buone sono li buoni, & dalle triste li tristi nascono. Essendo adunque le Harmonie, & li
Numeri simili alle passioni dell'animo, come afferma Aristotele, potemo dire, che lo assuefarsi alle
Harmonie, & alli Numeri non sia altro, che vno assuefarsi, & disporsi a diuerse passioni, & diuersi
habiti morali, & costumi dell'animo.
46
1612), Conde de Vernio, principal incentivador e anfitrião da Camerata, fora
admitido como membro dos Alterati em 1574. Girolamo Mei, autor do Discorso
sopra la musica antica e moderna, foi agraciado como membro não-residente, pois
estava estabelecido em Roma, em 1585, enquanto o poeta Ottavio Rinuccini
(1562-1621), autor de L’Euridice, posta in música por Jacopo Peri e por Giulio
Caccini, junta-se aos Alterati no mesmo ano de 1586 em que Giacomini faz seu
discurso. O discurso é sintomático tanto da difusa aceitação da doutrina ecoada
por Zarlino, como do processo de questionamento desta doutrina. Vejamos
algumas frases extraídas do discurso:
Precisamos relembrar que os afetos por si próprios o são nem bons,
nem réus, nem louváveis, nem criticáveis.
Apoiando-se na doutrina dos estóicos, Marco Tullio interpretou “pathos”
como perturbação e chamou-o de movimento turvo, indisposição,
enfermidade e peste do ânimo, certamente com muita inconveniência.
Não os chamaremos então perturbações, mas afetos e movimentos do
espírito (para usar a palavra de Dante) e operações da alma.
Nem se concede que caracterize costume vil ou lamentável o exemplo
daqueles que, na tragédia, vemos gemer e chorar, porque excitar grande
pranto e grande condolência de grandes infortúnios não é coisa a ser
recriminada nem fora do decoro.
28
O ponto central do discurso é a interpretação a ser dada do conceito de purgação
ou katharsis que Aristóteles inclui na seguinte definição que faz da tragédia
(Poética 1449b):
28
È da rammemorarsi gli affetti in se stessi non essere buoni rei laudevoli biasimevoli
[...] A la dottrina de' quali [stoici] accostandosi Marco Tullio interpretò “pathos” perturbazione e lo
chiamò torbido movimento, malore, infermità e peste de l'animo, certamente con molta
sconvenevolezza. [...]Non gli diremo dunque perturbazioni, ma affetti e spiritali movimenti (per usare
la parola di Dante) et operazioni de l'anima. [...] si concede che imprima costume vile e
rammarichevole l'esempio di coloro che ne la tragedia veggiamo lagnarsi e piagnere, perché di
grandi infortuni eccitare gran pianto e gran cordoglio non è disdicevole né fuor del decoro.
47
A tragédia é a imitação de uma ação heróica elevada e de uma certa
magnitude, completa em si mesma; enriquecida em sua linguagem por
adornos artísticos adequados para as diversas partes da obras,
apresentada de forma dramática, não como narração, mas como
incidentes que excitam piedade e temor, mediante os quais realiza-se a
catarse de tais emoções.
Como expõe Giacomini, Aristóteles também menciona a catarse quando fala da
música (Política, 8.1341b) prometendo uma explanação mais detalhada sobre o
termo que seria dada em um trecho perdido da Poética. Segundo Aristóteles, a
catarse se dá o na tragédia, mas também na sica que “serve aos
propósitos tanto da educação como da purgação”. Lembrando que, embora a
tenha banido da República, Platão admite nas Leis (817a-817e) a tragédia sob
algumas condições, Giacomini conclui sustentando que o político deve “aceitar a
tragédia como benéfica à cidade, se convenientemente e a tempo e com medida
[seja] utilizada; porque o uso demasiado freqüente ou não purgaria ou faria uma
purgação nem útil nem necessária”
29
.
O discurso de Giacomini proferido na Academia degli Alterati, é prova
de que a ampliação da gama de afetos a serem instigados foi tema de reflexão
entre aqueles que decidiram engajar-se diretamente no esforço de criação ou
renascimento do drama musical inspirado nos moldes do que seria a
representação da tragédia grega. Tanto a oratione que compõe a tragédia, como a
música e, de um modo especial, a música que declama aquela oratione dramática,
deveriam contemplar uma gama de afetos muito mais ampla do que a simples
divisão entre “matérias alegres” e “matérias flébeis” sugerida por Zarlino na sexta
condição para uma boa composição (Cf. citação p. 43). Entre estes afetos
estavam aqueles mais veementes e transitórios, os pathoi, que pela sua maior
movimentação, apresentavam potencialmente uma dificuldade maior de
29
Apparisce dunque dovere il politico accettare la tragedia come giovevole a la città, se
convenevolmente et a tempo e con misura è adoperata; perché il troppo frequente uso o non
purgherebbe o farebbe purgazione non utile né necessaria.
48
acomodação a limites determinados pela prescrição da ordem de um modo. Numa
generalização algo simplista poderíamos dizer que na ‘doutrina do ethos’, no que
diz respeito ao modo, procurava-se relacionar, através de uma correspondência
direta calcada na tradição, um afeto a um modo, sendo que ambos deviam
manter-se inalterados no decorrer de cada cantilena. Ao tentar abraçar uma gama
de afetos mais abrangente, que incluía as freqüentes alterações de pathos, os
compositores sentiram naturalmente a necessidade de mais espaço para que se
produzisse uma movimentação harmônica que acompanhasse as alterações de
afeto sugeridas pela oratione.
Um exemplo que ilustra bem essa busca por mais espaço, que, sem
aludir ao sistema tonal, poderia ser referida como uma ampliação do campo
harmônico, é a aria Non piango e non sospiro de Le Musiche sopra l’Euridice
(1600) de Jacopo Peri e Ottavio Rinnucini. A oratione sugere três estados de
espírito para Orfeo ao longo da aria. Num primeiro momento temos um Orfeo
catatônico, sugerido pelas expressões “non piango e non sospiro” e “cadavero
infelice”. Em seguida, temos um Orfeo condoído pela perda de Eurídice, o que é
indicado pela repetição da expressão “ohime”. E finalmente um Orfeo resoluto,
disposto a buscar sua amada nos campos da morte indicado pelos versos
“invanno non chiamaste il tuo consorte” e “io vengo, oh cara vita, oh cara morte”. A
música de Peri inicia-se sobre uma tríade de menor e tem a sua cadência final
sobre uma tríade de maior. Peri não demonstra a menor preocupação em
manter-se fiel a alguma unidade em relação ao modo, nem mesmo àquela
sugerida por l’Ottuso quando este diz que das notas iniciais, e depois das finais,
se deve julgar o tom, e não das cadências intermediárias”.
30
Por outro lado, as
alterações de afeto, do ‘catatônico’ ao ‘resoluto passando pelo ‘condolente’,
encontram correspondência na movimentação harmônica com início em Lá, final
30
che dalle prime, & poscia dalle finali corde si deve dare giudicio del tuono, & non delle medie
cadenze.
49
em Fá, e cadências intermediárias com início ou final em Sol. A tríade e o afeto
não se relacionam por alguma função de correspondência entre estes elementos,
o que ocorre é que existe uma similaridade e simultaneidade na movimentação
dos afetos e na movimentação harmônica. Veremos adiante as implicações
existentes entre esta opção de representação da movimentação dos afetos e
maneira que a oratio era entendida dentro do contexto da dialética platônica
interpretada por Ficino.
A adoção de uma prática em que a sucessão das tríades deixa de ser
regida por uma coerência própria da harmonia, a ordem do modo, e passa a ser
determinada pelas alterações de afeto instigadas pela oratione, é um fenômeno
que se deu em uma parte considerável do repertório dos compositores que na
Dichiaratione são apontados como os primeiros seguidores da seconda pratica.
Em Tonality and Atonality in Sixteenth-Century Music Lowinsky (1961, pg.39)
descreve esse repertório da segunda metade do século XVI nos seguintes termos:
encontramos fenômenos que não podem ser entendidos em termos da
velha harmonia modal ou nos termos da emergente tonalidade, fenômenos
que são melhor descritos com “atonalidade triádica”. Aqui temos uma
música na qual extremo cromatismo e modulação constante dentro de
uma textura triádica erodem qualquer percepção de um centro tonal
estável.
Entre as causas que contribuíram para esta prática Lowinsky (1961, pg.38) cita “o
crescente anseio por uma expressão vívida da paixão humana” e o surgimento de
uma “ala radical [de compositores] apoiados na autoridade reverenciada da
música grega, conhecida através de escritos teóricos, e liderados por Nicola
Vicentino”. Essas ‘modulações constantes’ referidas por Lowinsky encontram
correspondência e simultaneidade, tal como ocorre no exemplo de Peri
considerado anteriormente, com o que poderíamos chamar de mutações de afetos
sugeridas pela oratione.
50
Em Sopplimenti Musicali (1588) Zarlino aborda conceito que em sua
essência corresponde à idéia de mutações de afeto. O sétimo livro deste tratado
cuja publicação foi motivada pelas críticas e questionamentos que Zarlino
recebera de seu ex-discípulo Vincenzo Galilei, é dedicado ao tema das mutationi.
No primeiro capítulo é estabelecida a existência de quatro tipos de mutationi, a
saber, de gênero (entre os gêneros diatônico, cromático e enharmônico), de
constituição (através da mudança de tetracorde), de tom ou modo, e de Melopeia.
Sobre este último Zarlino esclarece:
Faz-se por fim a Quarta espécie ou maneira de Mutatione na Melopeia;
coisa que em nossa época diz respeito mais ao Poeta que ao Músico;
quando do afeto Intervalar se passa ou ao Restriro ou ao Quieto; ou pelo
contrário, quando deste se passa a um dos outros dois; uma vez que são
três os referidos Gêneros, os quais se em em prática em torno aos
Afetos ou Costumes de ânimo.
31
No capítulo II, “Dos Afetos ou Costumes do ânimo”, Zarlino detalha a diferenciação
dos gêneros de afetos citados:
Faz-se necessário então saber que os Afetos ou Costumes foram
chamados pelos antigos Ethoi, pois por meio deles se vinha a direcionar e
conhecer as Constituições humanas ou Qualidades, que se alguém
quisesse chamar de Passioni dell’Animo não poderia ser recriminado.
Eram, como disse, três os seus gêneros. O primeiro era aquele que
chamavam Sustaltikon, ou seja Intervalar, no qual pela fala se recitava e
demonstrava, com ânimo forte e viril, alguma coisa dita ou feita
magnificamente, como eram as coisas ditas ou feitas pelos heróis, em
torno do qual se ocupa sobretudo a Tragédia [...] O segundo, chamado
Hesuchastikon, ou seja restrito ou contraído, era aquele no qual, narrando
algum fato presente ou ocorrido, se demonstrava o ânimo reduzido ou
recolhido na humildade, submetendo-se de forma afeminada a alguma
paixão ou afeto. Era descrito como pouco viril e sem nenhum nervo, por
esta razão em tal gênero se demonstravam as enfermidades e a paixões
amorosas como são os lamentos, os prantos, os gemidos, os suspiros e
outras coisas similares [...] Mas o terceiro, que chamavam Hexukastikon,
31
Si ultimamente la Quarta specie, ò maniera di Mutatione nella Melopeia; cosa ch'à nostri tempi
piu s'appartiene al Poeta che al Musico; quando dall'affetto Interuallare si passa ò nel Ristretto ò nel
Quieto; ò per il contrario, quando da questo si passa all'uno de gli altri due; percioche sono tre cotali
Generi, iquali pratticano intorno gli Affetti ò Costumi dell'animo.
51
ou quieto, era aquele no qual acomodavam coisas quietas e livres, e as
disposições do ânimo pacíficas, com a moderação da mente. A este
pertenciam os hinos, os himeneus, as odes, os conselhos e outras coisas
similares que eram todas feitas pelo Melopeo e compositor segundo os
seus propósitos em um dos tons ou modos, dórico, ou frígio, ou lídio o em
qual se deseje dos outros citados.
32
Massimo Ossi (2003, pg.54) destaca que a classificação de Zarlino não se refere
aos afetos em si, mas aos “meios pelos quais as emoções podem ser dirigidas e
conhecidas”, e sugere uma proximidade desta classificação com os estilos da
oratória descritos por Cícero. Na mesma passagem Ossi lembra que “para
Monteverdi, [...] os afetos eram emoções reais, estados psicológicos a serem
evocados, e não meramente categorias estilísticas”. Mantendo-se a ressalva feita
por Ossi, é interessante considerar o conceito de modulação ou mutatione de
afeto, ou do estilo pelo qual ele é acomodado, discutido por Zarlino. Embora este
conceito não seja citado nem por Artusi e nem no texto da Dichiaratione, ele vem à
tona no contexto de uma outra controvérsia que antecedeu a disputa envolvendo
Monteverdi, na qual Zarlino pretendeu restabelecer, no confronto com Vincenzo
Galilei, sua autoridade e no que se refere à música da antiguidade. A idéia, ainda
32
Si dè adunque sapere, che le Affettioni ò Costumi sono stati da gli Antichi chiamati Ethoi;
percioche col mezo loro si ueniua ad indricciare & conoscer le humane Costitutioni ò Qualità; lequali
se ben le uolessimo chiamar Passioni dell'Animo, non sarebbe per questo mal detto, de i quali erano
(come dissi) Tre i Generi loro; & il Primo era quello, che chiamauano Sustaltikon. ouer l'Interuallare,
nelquale col mezo del Parlare si recitaua & dimostraua in esso alcuna cosa detta ò fatta
magnificamente con animo forte & uirile; com'erano le cose dette & fatte da gli Heroi; intorno alquale
s'affatica sopr'ogn'altra cosa la Tragedia, come uediamo essere osseruato da i più nobili & migliori
Poeti, c'habbiano scritto in questa sorte di Poema; come Euripide, Soffocle & Eschilo, con molti altri
Greci, & Seneca tra i Latini; de i quali niun'altro per hora mi souuiene. Il Secondo nominauano
Hesuchastikon: cioè, Ristretto ò Contratto, & era quello, nelquale narrando alcun fatto presente, ò già
accaduto, si dimostraua l'animo ridotto & ritirato nella humiltà, & sottoponendosi effeminatamente ad
alcuna passione ò affettione, lo dipingeuano poco uirile, & senza neruo alcuno: percioche in cotal
Genere si dimostrano l'infirmità & passioni amorose, come sono le Nenie, i Lamenti, i Pianti, i Gemiti,
i Sospiri, & altre cose simili, delche ne sia essempio il Quarto dell'Eneida di Virgilio intorno à quello
ch'ei recita di Didone. Ma il Terzo, che chiamauano Hexukastikon, ò Quieto, era quello, nel quale
accommodauano cose quiete & libere, & le pacifiche dispositioni dell'animo, con la moderanza della
mente. Onde à questo s'apparteneuano gli Hinni, gli Himenei, gli Essodij, le Lodi, i Consigli, & altre
cose simili, ch'erano tutte fatte dal Melopeo & compositore secondo 'l proposito in uno de i Tuoni ò
Modi, Dorio, ò Frigio, ò Lydio, ò in qual si uoglia de gli altri commemorati
52
que considerada genericamente e em teoria, de que além de uma mutatione de
tons ou modos e uma mutatione de tetracordes, existe também uma mutatione de
afetos, encontra no repertório da monodia dramática da seconda prática uma
correspondência muito mais significativa do que uma composição de forças na
qual modo e afeto se mantêm ao longo de uma ária. Além disso, mesmo que não
se estabeleça uma relação entre afetos e acordes, ou entre afetos e modos, é
possível estabelecer uma similaridade e uma simultaneidade entre mutationi
ocorridas na oratione no plano dos afetos e mutationi no nível da harmonia. Nesta
configuração, torna-se necessário considerar os tipos de mutationi, ou mutationes
em latim, relativas à harmonia que sob esta designação foram incorporadas ao
vocabulário musical no contexto que circundou o surgimento da seconda pratica.
Zarlino conta da existência de dois tipos de mutationi in torno al
tuono. Segundo a distinção feita por Ptolomeu e reproduzida por Zarlino nos
Sopplimenti Musicali (1589), uma delas seria a mudança na composição intervalar
da escala, enquanto a outra designa uma transposição na espécie de oitava. Além
destas duas, Zarlino menciona anteriormente a Mutatione nella Costitutione que se
através da mudança do tetracorde. Em sua investigação sobre os
procedimentos harmônicos adotados por Monteverdi, Eric Chafe (1992) toma
como um dos pontos de partida para o que denomina “modal-hexachordal system”
a utilização destes dois tipos de mutação. Sem citar Ptolomeu ou Zarlino, Chafe
segue a terminologia usada por uma fonte posterior a Monteverdi, Athanasius
Kircher (1650) que designa mutatio modi o primeiro tipo descrito acima e mutatio
toni o segundo. Chafe lembra que “uma dada composição ou passagem musical
podia fazer qualquer um dos tipos de mudança separadamente ou ambas
simultaneamente” (pg.23). Em suas análises Chafe considera que na música de
Monteverdi as alterações intervalares, mutationes modorum, ocorriam através de
dois mecanismos. Um deles é a alteração de sistema indicando cantus mollis
(armadura com um bemol), ou cantus durus (armadura sem bemóis ou
sustenidos). E o outro representa uma mudança do hexacorde. O resultado da
53
combinação das diferentes mutationes observada na música de Monteverdi leva
Chafe a sustentar a tese de que “hexacorde concebido harmonicamente era a
idéia que controlava o espectro tonal ordenado em quintas” (pág.26). Neste
espectro cada faixa correspondia ao acréscimo ou retirada de um sustenido ou
bemol. O resultado é um espectro harmônico delimitado (não circular) e polarizado
na antítese entre bemóis e sustenidos.
A idéia do hexacorde concebido harmonicamente não tem, como Chafe
admite em sua introdução, base em registro histórico
33
. Trate-se, para usar os
seus termos, de uma “interpretação” primeiramente proposta por Dahlhaus (1961),
na qual, tomando-se as notas de um dos hexacordes conhecidos e usados no
solfejo (durus, naturalis ou mollis), admite-se a formação de tríades sobre cada
uma de suas notas. Assim por exemplo, partindo-se do hexachordum durum
admite-se, sem a necessidade de uma mutatio, as tríades de Sol, Lá, Si, Dó, Ré e
Mi. Uma tríade de somente seria possível se houvesse uma mutatio para outro
hexacorde, provavelmente o contíguo hexacordum naturalis (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol,
Lá). Chafe (Ibid., p. 29) reconhece neste sistema três níveis de âmbitos
harmônicos. O primeiro engloba tríades sobre notas de um mesmo hexacorde. O
segundo abrange hexacordes de um mesmo sistema (cantus mollis ou cantus
durus). E o terceiro hexacordes de sistemas diferentes. Colocando nos termos das
mutationes referidas por Zarlino e Kicher, teríamos como mais drástica a mudança
de sistema, mutatio modi através da signatio, seguida pela mudança de hexacorde
que Zarlino, falando de tetracordes chama de mutatione nella costitutione, e
finalmente uma simples progressão entre tríades sobre notas de um mesmo
hexacorde.
Em seu estudo sobre as técnicas de modulação da música do século
XVII, Eva Linfield considera que quando Kircher (1650) define as mutationes,
33
I have therefore set forth what I call a “modal-hexachordal” system (more precisely, a framework of
two systems) in which I believe Monteverdi´s music to be rooted (pg.xiii).
54
estas estavam associadas a mudanças de afeto. Linfield (1993, p.203) ressalta
que o capítulo qua ratione instituenda melhothesi, ut datum quemuis affectum
moveat
34
traz como exemplo uma passagem de Jephte em que Carissimi espelha
com uma abrupta mutatio toni a mais dramática mudança de afeto do oratório.
Nesta passagem a comemoração da vitória triunfante de Jepthe é justaposta com
sua dor pela constatação de que, pela promessa que fizera de sacrificar, em caso
de vitória, a primeira pessoa que encontrasse ao desembarcar, teria que matar
sua própria filha. O estabelecimento de uma correspondência entre mudanças de
afeto e as mutationes no plano harmônico está também embutida na concepção
apresentada por Chafe uma vez que este considera indispensável, em sua análise
comparativa com conteúdo expressivo do texto, o aferimento da relativa
sharpness(tendência ao lado sustenido do espectro) ou flatness(tendência ao
lado bemol) da música, que por sua vez é o resultado das mutationes de
hexacorde. Embora as alterações de afeto sejam consideradas nas análises de
Chafe, estas não são os únicos elementos da oratione que encontram
representação na antítese bemol/sustenido. Na análise que faz da estrutura tonal
de Orfeo (1607), Chafe reconhece também a existência de uma bem construída
alegoria tonal onde o dualismo entre o lado bemol e o lado sustenido do espectro
é capaz de representar diversas justaposições, essenciais ao drama de Orfeo, que
emergem no desenrolar do discurso poético. Isto se quando o texto nos remete
a dicotomias, que não propriamente caracterizam algum pathos ou ethos. É o caso
das oposições entre o humano e o divino, entre passado e o presente, e entre a
vida e a morte contextualizadas pelo sombrio mundo dos mortos que se contrapõe
ao ensolarado e pastoral mundo dos vivos. A estas se somam as contraposições
de afetos como a alegria e a tristeza, a esperança e desesperança, e a crueldade
dos eventos e um pleito de piedade.
34
dos princípios pelos quais a música se constitui para mover os afetos.
55
Em sua proposta de fazer uma “descrição do estilo tonal de Monteverdi
a partir de um ponto de referência derivado da teoria e da análise combinadas”
35
,
Chafe apresenta uma solução que encontra correspondência nos exemplos
musicais abordados e ao mesmo tempo é capaz de relacionar a oratione à
harmonia. Seu esforço em propor uma conformação teórica para a questão da
harmonia está fortemente baseado na transposição de um conceito originário do
ensino e da prática musical (os hexacordes usados no solfejo) para o campo da
teoria harmônica. A maior força de sua abordagem reside na profundidade e
extensão com que os procedimentos harmônicos adotados por Monteverdi são
descritos e relacionados a elementos propostos pela oratione. Baseando-se na
descrição da prática harmônica de Monteverdi apresentada por Chafe, nosso
trabalho avança sobre o desafio de investigar a relação entre os movimentos
harmônicos encontrados na monodia dramática da seconda pratica e o platonismo
renascentista, em especial no tocante à dialética. Para tanto, dirigimos nossa
pesquisa no esforço de identificar na obra de Platão interpretada por Ficino, as
bases sobre as quais a oratio, considerada o elemento dominante da canção, era
entendida e abordada. Assim fazendo, acreditamos poder aprofundar o
conhecimento sobre a conexão entre a concepção musical de Monteverdi e Peri e
o contexto cultural e filosófico do Renascimento no norte da Itália, no qual o
platonismo exercia grande influência.
35
(CHAFE, 1990, pg.xvi)
57
3.
CAPÍTULO II - VISÃO MUSICOLÓGICA
Antes mesmo da primeira resposta de Monteverdi aos ataques de
Artusi, o conceito de melodia de Platão havia sido inserido na controvérsia
sobre a seconda pratica. As cartas assinadas sob o pseudônimo l’Ottuso
Academico o colocavam no centro da discussão afirmando que somente das
novas harmonias podiam surgir novos afetos “para imitar a natureza dos versos”
de onde então nasceria a melodia. Na Dichiaratione são citadas quatro passagens
de Platão: a que define a formação tríplice da melodia (República 398d); a que
estabelece a primazia da oratio nesta formação (República 400d); a que afirma
que a oratio segue os afetos da anima (República 400d) e a que estabelece que a
música gira em torno da perfeição da melodia (Górgias 449d). Além disto é citada
como sendo de Platão uma passagem do capítulo 30 dos Comentários [de Ficino]
sobre o Timeus, inserida para justificar que somente a melodia, em seu composto
com oração comandante, e não a harmonia sozinha, seria capaz de mover os
afetos da alma. A intenção de associar a seconda pratica ao conceito platônico de
melodia é tão forte na Dichiaratione que a expressão perfetione della melodia
aparece oito vezes, chegando a ser usada como sinônimo de seconda pratica
36
. O
mesmo sentido é depois repetido de forma ainda mais sucinta por Monteverdi na
carta a Giovanni Battista Doni de 23 de outubro de 1633 que diz que o título de
seu livro seria Melodia, overo Seconda Pratica Musicale”. Note-se ainda que o
nome de Platão, citado cinco vezes na Dichiaratione, é mencionado pela primeira
vez neste documento quando Giulio Cesare explica o que Claudio quisera dizer
quando afirmara “eu não faço minhas coisas ao acaso”. A Dichiaratione cumpre a
sua função, por definição a de tornar publico algo que ainda não está claro,
justamente ao afirmar e querer fazer crer que os compositores da moderna musica
adotavam uma prática que tomava a melodia de Platão como um princípio estético
inspirador.
36
seconde cose, cioé cose versanti in torno alla seconda prattica overo allá perfettione della melodia.
58
Como reagir diante desta declaração tão contundente? A primeira
reação conhecida foi a do autor do Secondo Discoroso Musicale di Antonio
Braccino da Todi que, percebendo que o autor da Dichiaratione “se faz[ia] como se
[de Platão] fosse possuidor”
37
, considerou que as palavras do filósofo estavam
sendo usadas como “um manto para cobrir os erros de Monteverdi
38
”. Entre esta
reação e a possibilidade de considerar que os cultores da seconda pratica
estivessem plenamente engajados no platonismo ficiniano que a partir da
Academia Platônica de Florença exerceu forte influência sobre a elite cultural do
norte da Itália renascentista, existem vários graus de posicionamento que
encontram representação na musicologia moderna.
Embora a resposta pública dos irmãos Monteverdi aponte para Platão
como o mentor das transformações que estavam em debate, uma parte
considerável dos estudos musicológicos tende a diminuir ou menosprezar esta
influência. Esta tendência se manifesta no que poderia ser denominada de a
‘teoria do escudo’ segundo a qual se sugere que as palavras de Platão teriam
servido aos defensores da seconda pratica mais como argumento retórico e
deferência à sua autoridade do que como verdadeira fonte de inspiração. Mesmo
não considerando “erros” as transgressões e ousadias de Monteverdi, como fizera
o autor do Secondo Discorso, a declaração do engajamento com os princípios da
melodia platônica é recebida com descrédito. Chega a ser sintomático que no
artigo dedicado às bases estéticas e teóricas das obras de Monteverdi, publicado
no The New Grove Dictionary of Music and Musicians, leia-se que “seu apelo a
Platão pode ter sido não mais do que um adorno retórico convencional para o seu
argumento
39
. Outra referência a Platão no mesmo artigo diz que Monteverdi e
Artusi “se contentavam em condescender à autoridade de Platão e ao seu
37
ma ritorniamo a Platone, poi che egli se ne fa tanto possessore.
38
un mantello per coprire gli errori del Monteverdi.
39
Chew, G. Monteverdi, Claudio §4: Theoretical and aesthetic basis of works. In: The New Grove
Dictionary of Music and Musicians, 2001 (2nd Edition).
59
commonplace requirement de que a música deveria ser subserviente ao texto”.
Silke Leopold (1991, p. 50), segue esta mesma linha ao afirmar que Monteverdi e
Artusi “estavam preocupados menos em entender a fonte do que em dar suporte
às próprias idéias através da referência a uma autoridade da antiguidade, mesmo
correndo o risco de moldá-la para que se encaixasse”.
Podemos ver esta tendência de descrédito quanto ao papel de Platão
como inspirador da seconda pratica refletida, mesmo quando ela não se manifesta
de forma explícita. Chama a atenção que, a despeito do tom contundente da
Dichiaratione, Platão seja tão poucas vezes citado em trabalhos considerados
importantes no estudo da obra de Monteverdi. Este é o caso do The New
Monteverdi Companion (1985) em cujo conjunto de dez artigos, o nome de Platão
aparece apenas no trabalho em que Claude Palisca discute a controvérsia com
Artusi. O mesmo pode ser observado no trabalho de Eric Chafe (1992) em cujas
440 páginas dedicadas ao estudo da linguagem harmônica de Monteverdi e sua
relação com texto, o nome de Platão, após ser citado uma vez no capítulo
introdutório, somente vem à tona na discussão do prefácio do VIII livro de
Madrigais, publicado em 1638, que se refere ao elemento rítmico, e não
harmônico, na criação do stilo concitato. Mais de três décadas da produção
monteverdiana são discutidas neste livro sem nenhuma referência a Platão ou
algum aprofundamento sobre o conceito de melodia.
Embora as cartas de Monteverdi indiquem que este usara Platão como
referência em questões envolvendo temas tão específicos como a instrumentação,
ou tão amplos como o conceito de imitatione, muitos são os estudiosos que têm
preferido abordar a influência de Platão na seconda pratica como um fenômeno,
senão apenas superficial, restrito exclusivamente a aplicação do conceito de
melodia exposto na República. Massimo Ossi considera a relação entre texto e
música, extraída deste conceito, essencial em sua análise das mudanças
estilísticas encontradas ao longo da obra de Monteverdi, mas atribui ao compositor
60
uma suposta “falta de preparação humanística” chegando a afirmar que ele “não
era um ‘humanista’ no sentido que o termo se aplicava a Zarlino ou mesmo a
Artusi” (2003, p. 251). Independentemente de qual teria sido a “preparação
humanísticade Monteverdi e das outras figuras associadas como o surgimento
da seconda pratica, e incluímos nomes como Rinnucini, Mei, Vincenzo Galilei,
Giovanni Bardi, Nicolo Vicentino e Jacopo Peri, importa estabelecer com qual grau
de aprofundamento e rigor estamos supondo que os cultores desta prática tenham
penetrado na investigação do pensamento platônico. Um posicionamento neste
sentido de ser fator determinante nos rumos de qualquer investigação sobre a
música desta prática.
Ao supor um envolvimento apenas superficial ou genérico torna-se
natural que os conceitos em discussão possam ser tomados de forma vaga ou
imprecisa. Isto acontece, por exemplo, quando o que era armonia, para Giulio
Cesare Monteverdi, é tomado pelo conceito de música em seu todo. Ossi (2003, p.
21) comete um lapso neste sentido ao distorcer as palavras de Giulio Cesare,
citando uma passagem da Dichiaratione em que este teria dito: “que a música [e
não a harmonia, como no original] seja a serva do texto, e o texto é a sua senhora
[sic]”. Chafe (1992, p. xii) vai na mesma direção ao afirmar que “o ideal principal
da seconda pratica, pela definição de Monteverdi [era] que a sica fosse
dominada pela oratio”.
Sobre o conceito de oratio, Chafe nos esclarece tê-lo interpretado “num
sentido amplo como significado extra-musical ou alegoria musical”. a tradução
das cartas de Monteverdi por Denis Stevens, reproduzida por Ossi (2003),
substitui oratione por word-setting (arranjo ou disposição das palavras).
Num movimento contrário à tendência de descrédito às afirmações da
Dichiaratione, Anibale Gianuario (1993) afirma que “a Camerata, Monteverdi, e
todos os cultores da Seconda Pratica seguem a concepção estética de Platão com
61
absoluta segurança”, e se debruça sobre quatro cartas do compositor para
investigar seu engajamento com uma estética platônico-ficiniana. Em especial,
seu trabalho destaca as implicações estéticas do conceito platônico de imitação,
que Monteverdi aborda em duas cartas (outubro de 1633 e fevereiro de 1634) a
Giovanni Battista Doni, sobre a concepção de melodia advinda da República
(398D). Gianuario observa como este conceito da canção se inseria, num plano
mais amplo, na estética, na ética e na visão de mundo reveladas por Platão. Outro
autor a dar destaque à influência de Platão foi Claude Palisca (1994, p. 82)
segundo o qual “Giulio Cesare e, podemos pressupor Claudio [Monteverdi],
concebiam a segunda prática como um renascimento do ideal de música de
Platão”.
Diante do dado indisputável de que a Dichiaratione afirma que a
seconda pratica seguia Platão e pode ser entendida como sinônimo do seu
conceito de melodia, nos são colocadas as seguintes possibilidades de
posicionamento:
a) Ignorá-lo, não manifestando nenhuma posição.
b) Não dar importância ao fato. Considerando as afirmações da
Dichiaratione apenas um artifício retórico.
c) Considerar que apenas a xima que estabelecia a supremacia
da oratio sobre a harmonia e ritmo estava sendo seguida
d) Considerar que a melodia de Platão representava um ideal de
música a ser alcançado.
e) Admitindo a hipótese anterior, considerar ainda que a busca por
este ideal de música se inseria dentro de um contexto mais
amplo de um engajamento com o platonismo em seu todo.
Uma busca na obra de Platão por elementos que pudessem ter
fornecido indícios que permitissem alcançar este ideal platônico de música, e a
verificação de uma eventual aplicação destes elementos no repertório da seconda
62
pratica pode dar-nos subsídios que permitam admitir ou pelo contrário rechaçar a
última hipótese acima levantada. A necessidade desta busca é apontada com
veemência por Anfuso e Gianuario (1971, p. 9) que, após lembrarem-nos da
adesão de Monteverdi à tese estética e ética de Platão fazem a seguinte pergunta
retórica: mas quantos realmente estudaram Platão, realmente meditaram sobre
as suas propostas e tentaram realizar seus postulados?
Os frutos a serem colhidos nesta busca podem ser capazes, ao menos
potencialmente, de revelar aspectos do processo composicional daqueles que
declaravam estar buscando a melodia de Platão. Com este fim, estaremos no
próximo capítulo contextualizando o conceito de melodia dentro da interpretação
ficiniana da dialética platônica e investigando como cada um dos seus elementos
constituintes – oratio, harmonia, e rhythmus – são definidos e entendidos.
63
4.
CAPÍTULO III - A HIPÓTESE
4.1. O Platonismo Renascentista como contexto cultural para a seconda pratica
Segundo Hankins (1996, p. 363) Petrarca (1304-1374) foi o primeiro
humanista a descreditar a fixação escolástica em Aristóteles e sustentar Platão
como alternativa. A frase “Platão é louvado pelos maiores, Aristóteles pelo maior
número”
40
, inserida em seu em seu De sui ipsius et multorum ignorantia, expõe o
domínio com que a doutrina escolástica institucionalizara como única verdade a
verdade aristotélica. Para Estep (1986, p. 26) “no século XIV, escolasticismo e
aristotelismo eram praticamente sinônimos”. Queixando-se de ter sido tratado
como se blasfemasse por não se contentar com a autoridade de Aristóteles
41
,
Petrarca chama a atenção para a excessiva valorização das coisas da ciência em
detrimento dos valores humanos. Em sua opinião esta valorização decorria da
hegemonia do pensamento aristotélico e o do pequeno espaço que a doutrina
escolástica dedicava a filósofos preocupados com as questões espirituais do
homem como Platão.
Mesmo se quisessem, os contemporâneos de Petrarca teriam tido
enorme dificuldade para louvar Platão, pois sua obra, com exceção de dois
diálogos e versões incompletas de outros dois, era acessível a quem
dominasse o grego. Segundo Celenza (2007, p. 73) estavam disponíveis em latim
apenas versões incompletas do Timeus, traduzidas por Cícero e Calcidius
(Séc.IV), o Fedo e Meno nas traduções de Sicilian Henricus Aristippus (Séc. XII) e
a parte de Parmênides que fora transcrita nos comentários de Proclus que haviam
recebido a tradução de William of Moerbeke (c.1215-1286). Outra maneira para
40
A maioribus Plato, Aristotiles laudatur a pluribus.
41
Stupere illi, et taciti subirasci, et blasphemum velut aspicere, cui ad finem rerum aliud quam viri
illius autoritas quereretur.
64
conhecer Platão era através da tradução latina, feita no século IX, da obra que se
atribuía a Dionysius Areopagita, a qual inclui vários comentários sobre sua obra.
Somente em 1396, por iniciativa Collucio Salutati (1331-1406), então Cancelliere
di Firenze, Niccolo de Niccoli (1364-1437), e outros humanistas que percebiam a
importância de transpor a barreira da língua para estimular o estudo de Platão, foi
instituída em Florença a primeira cadeira de língua grega em uma universidade
italiana, cujo ocupante foi Manuel (ou Emmanuel) Chrysoloras (c. 1355-1415). Foi
ele o responsável pela publicação em 1404 da primeira tradução da República
para o latim. Entre seus pupilos estava o jovem Leonardo Bruni (1370-1444) que
entre 1405 e 1437 viria a traduzir o Fédon, a Apologia de Sócrates, o Críton,
Górgias, partes do dro e das Cartas, além do discurso de Alcebíades no
Banquete. Segundo Hankins (1990, p. 47) Bruni, que não tinha formação filosófica
e advogava a conveniência da tradução do estilo e do sentido sobre a tradução
literal, tornou os diálogos que traduziu mais ceis de serem lidos porém não mais
inteligíveis ao leitor do Renascimento. Isto somente viria a ocorrer com a
publicação dos comentários de Ficino, cerca de cinqüenta anos mais tarde. Até os
primeiros anos da década de 1440 viriam mais duas traduções da República, a
primeira de Pier Candido Decembrio (1392-1477) e segunda de Antonio Cassarino
(m. 1447). As Leis e Parmênides viriam na década seguinte na tradução de
George de Trebizond (1395-1486). Até a década de setenta, os poetas
humanistas Lorenzo Lippi da Colle e Angelo Poliziano (1454-1494), membros do
círculo de Lorenzo de Medici (1449-1492), haviam traduzido respectivamente o
Íon que trata da poesia e o diálogo ético Cármides. A atividade de tradução dos
humanistas culmina quando, atendendo uma encomenda que recebera vinte anos
antes de Cosimo de Medici (1389-1464), Marsilius Ficino publica em 1484 sua
tradução dos 36 diálogos que compunham a obra completa de Platão segundo o
cânone estabelecido por Thrasyllus no século I a.C. Todos os diálogos vinham
acompanhados de notas de introdução e em alguns casos de extensos
comentários. Em edições sucessivas mais diálogos foram contemplados com
comentários, que além de sua função didática, até hoje são importantes
65
referências na interpretação da obra platônica. Pouco mais de cem anos após o
apelo de Petrarca, os humanistas italianos conseguiram tornar a opera omnia de
Platão disponível em latim e ainda prover uma referência que ajudava a sua
interpretação.
A partir de 1531 o estudo da obra de Platão, onde os conceitos se
estendem através dos diálogos e não se encontram organizados e sistematizados
como em um tratado, seria facilitado com a publicação da edição da tradução de
Ficino, contendo o Index in Platonis scripta omnia locupletissimus compilado por
Simon Grynaeus. Este índice remetia o leitor às passagens específicas dos
diálogos onde o definidos e discutidos cerca de cinco mil conceitos indexados
em trinta e sete páginas. Entre os livros em que Ficino figura como autor também
é possível encontrar o Liber de Platonis Definitionibus, um verdadeiro glossário
contendo a definição platônica de um número bem menor de conceitos, mas
colocados de forma direta, sem referência a passagens dos diálogos. Este
trabalho de organização dos conceitos representa de certa a forma uma segunda
tradução, desta vez não de idioma, mas de formato, que somada aos comentários
de Ficino se constituem no que Celenza (2007, p. 74) chama de ‘tradução cultural’,
que seria de fundamental importância para difusão e aceitação do pensamento
platônico num contexto então dominado pelo silogismo aristotélico.
Um fato histórico determinante para a difusão do platonismo na Itália
renascentista foi a realização do Concílio de Ferrara-Firenze (1438-39) convocado
num esforço para, após a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos,
reunificar a igreja grega e a igreja de Roma. Os teóricos e clérigos bizantinos, não
suportavam os debates intermináveis nos quais “o nome de Aristóteles era ouvido
com mais freqüência do que o de Cristo” chegando, segundo relatos históricos, a
provocar o seguinte rompante em um dos delegados: “o que é todo este
‘Aristóteles, Aristóteles’? São Pedro, o Paulo, São Basílio, Gregório o Teólogo,
66
estes sim estão bem. Um figo para o vosso ‘Aristóteles, Aristóteles’”
42
. O fracasso
do conselho tornou evidente a necessidade de, no mínimo, pluralizar as
influências filosóficas no pensamento ocidental. Entre os participantes do concílio
estava o filósofo neo-platônico grego Gemistos Pletho (c.1355-1452) que, em
palestras realizadas fora das atividades oficiais, reunia humanistas e outros
interessados e advogava a superioridade de Platão em questões de cunho
espiritual.
43
Entre os que as freqüentaram estava o entusiasmado Cosimo de’
Medici, il vechio, a quem Pletho presenteou com manuscritos em grego de obras
platônicas. Conforme o próprio Ficino esclarece no prefácio de sua tradução da
obra do neo-platônico Plotinus (c.204-270), Cosimo concebera o projeto de
ressuscitar Platão para a cultura ocidental após o seu contato com Pletho no
concílio, e mais tarde encomendou a Ficino que traduzisse não apenas a obra de
Platão como também o Corpus Hermeticum de Hermes Trismegistus, e obras de
Neoplatonistas importantes como Iamblichus e Plotinus. A capacidade do
pensamento platônico de conciliar-se com parte das premissas fundamentais da
doutrina cristã foi um dos apelos explorados por Pletho. Esta proximidade,
baseada na crença comum tanto na imortalidade da alma humana como na
punição e recompensa pós-morte pela conduta na vida terrestre, torna-se
fundamental para Ficino, cuja obra filosófica teve papel decisivo na reconciliação
renascentista entre o platonismo e a doutrina cristã. Celenza (2007, p. 74) situa a
importância de Ficino com as seguintes palavras:
A história [story] do Platonismo no Renascimento é a história deste
processo de interpretação, desde a recuperação das obras de Platão, até
a controvérsia que a sucedeu, e finalmente, até a figura angular de
Marsilius Ficino que consolidou e transformou esta herança num modo que
ramificou e ecoou pelos séculos seguintes.
Segundo Hankins (1990, p. 3), os estudos recentes mostrando a ainda
crescente influência do pensamento aristotélico no Renascimento inviabilizam
42
J. Gill. The Council of Florence. Citado por Hankins (1996, p.365)
43
O conteúdo destas palestras foi preservado no seu De differentiis Platonis et Aristotelis.
67
qualquer tentativa de manter, como fora sustentado, a generalização simplista
que sugere que a Idade Média teria sido uma Era de Aristóteles enquanto o
Renascimento teria sido uma Era de Platão. Ao mesmo tempo é importante situar
que incorporação do Platonismo à cultura ocidental, ainda que não de forma
dominante, como ocorrera com o Aristotelismo, foi parte importante nas
transformações ocorridas no Renascimento. Sem a necessidade de negar outras
influências importantes, a penetração do que muitos estudiosos chamam de
‘Platonismo Cristianizado’ tanto sobre a elite política como sobre artistas da Itália
renascentista era um fenômeno consolidado e aceito no contexto cultural das
cidades do norte da Itália na segunda metade do século XVI, quando do
surgimento da seconda pratica. Para Kristeller (1980, p. 90-91) o platonismo
renascentista “não se opunha à religião cristã ou à ciência aristotélica da época, e
nem tentou substituí-las”, mas preenchia “uma profunda lacuna intelectual entre a
teologia dogmática, baseada na , e o escolasticismo aristotélico que então era
fortemente limitado à lógica e à física”. Sua identificação com as famílias que
exerciam o poder nas cidades italianas era tão forte que, segundo Hankins (in
KRAYE, 1996, p. 124), “alguns estudiosos chegaram a sugerir que o renascimento
de Platão fora uma estratégia consciente patrocinada pelos Medici que teriam
usado o platonismo como ferramenta ideológica para justificar o seu regime”.
44
Mesmo que não fossem estas as razões, o fato é que desde Cosimo il Vechio, as
sucessivas gerações da família Medici receberam uma educação na qual o
platonismo ocupava um lugar de destaque. Entre os tutores que se encarregaram
desta tarefa estavam as maiores autoridades no assunto em seus tempos,
incluindo entre outros Poliziano, e o próprio Ficino. A influência desta educação se
estendia pela Europa na medida em que os membros da família exerciam o poder
fora e dentro de Florença. Entre os descendentes de Cosimo incluem-se dois
papas, Leão X e Clemente VII, e ainda duas rainhas e regentes da França,
Catarina (1519-1589) e Maria (1573-1642).
44
uma investigação aprofundada das implicações políticas da difusão do platonismo na Renascença
pode ser encontrada em Alison Brown (1986).
68
Nas cortes dos Gonzaga em Mantua, onde seria encenada pela a
primeira vez Orfeo, favola in musica de Monteverdi, o platonismo também exercia
forte influência. Lembremos que Bartolomeo Sacchi, detto il Platina (1421-1480),
que teria iniciado o próprio Ficino ao platonismo, servira ali como preceptor, e o
escritor Baldassare Castiglione (1478-1528), também estivera a serviços da
família Gonzaga. Em Il Cortegiano, obra que teve grande influência em toda a
Europa, Castiglione descreve discussões filosóficas e políticas que teriam tido
lugar na residência de Elisabetta Gonzaga (1471-1526), nas quais Pietro Bembo
(1470-1547), freqüentador habitual dessas reuniões, sustenta, com a anuência e
eventual disputa dos demais participantes, suas concepções platônicas sobre a
elevação espiritual bem como a versão ficiniana do amor platônico descrito no
Banquete. Christine Raffini (1988, p. 1) destaca a importância de Bembo e
Castiglione afirmando que “tomados juntos, os escritos de Marsilio Ficino, Pietro
Bembo e Baldassare Castiglione, revelam as ramificações filosóficas, estéticas e
práticas do Platonismo Renascentista.” O estreito envolvimento destes dois
últimos com a família Gonzaga, assim como o do mentor de Ficino, denota a
penetração do Platonismo nas cortes onde esta família exercia o poder.
Segundo Estep (1986, p. 27) “a devoção a Platão [no contexto das
cidades sob o regime das signorie cittadine] era genuína e encontrou expressão
na literatura e na arte”. Como exemplo da expressão deste ambiente platonista
nas artes vale citar o caso de dois dos mais notáveis artistas do Renascimento.
Gombrich (1945) nos mostra o papel decisivo que, Ficino enquanto mentor
espiritual de Lorenzo de Medici, teria exercido em algumas das obras-primas que
Sandro Boticcelli (1445-1510) executara sob sua encomenda, entre elas a
Primavera e o Nascimento de Vênus. O contato com Lorenzo de Medici também
teria sido decisivo para o que Estep caracteriza como “a obsessão de toda uma
vida” de Michelangelo Buonarotti (1475-1564) com o platonismo. Panofsky
demonstra através da análise das obras de Michelangelo a profundidade com que
este acolhia os ensinamentos de Platão e afirma (1939, p180):
69
Michelangelo [...] adotara o Neo-Platonismo não em certos aspectos mas
na sua integridade, não como um sistema filosófico convincente, menos
ainda como um modismo de época, mas como uma justificação metafísica
do seu próprio self.
Hulme (1914, p. 97) descreve a devoção ao platonismo na corte dos Medici nos
seguintes termos:
Se os florentinos foram suplantados no seu conhecimento de Platão por
estudiosos mais recentes, ninguém mais o amou tanto. Eles acreditavam
que nenhum outro filósofo havia expressado as verdades eternas em
discurso de tal consumada beleza. [...] Este culto Platônico exerceu uma
enorme influência sobre a literatura, a arte e a cultura da época.
A influência do pensamento platônico nas artes plásticas, naquele contexto
geográfico e histórico cultural onde viriam a florescer também as obras dos
compositores que a Dichiaratione indica como cultores da seconda pratica, era de
tal forma difusa que Panofsky (1939, p. 180) chega a afirmar que “com um artista
italiano do século XVI é mais fácil contar com a presença de influências neo-
platônicas do que com a sua ausência.”
Considerando o posicionamento geográfico, o núcleo de onde o
platonismo renascentista expande sua influência por toda a Europa ocidental se
situa exatamente onde é estabelecido o impulso gerador do surgimento da
monodia dramática da seconda pratica. Na mesma Florença, onde Pletho e
Cosimo de Medici se encontram, onde este último funda a Academia platônica
liderada por Ficino, e onde enfim Lorenzo o Magnífico estimula a criação de obras
de arte com forte inspiração platônica, surge anos mais tarde a Camerata.
Conhecida hoje como a Camerata Fiorentina, este grupo de humanistas, membros
da nobreza, músicos, poetas e intelectuais reunia-se nas décadas de 1570 e 1580
na casa do conde Giovanni de’ Bardi onde constituiu-se o núcleo de onde a
monodia dramática do renascimento nasce como fruto de discussões e
investigações sobre a música da Grécia clássica e de experimentos criativos
depreendidos de forma colaborativa. É sintomático que após o que Peri chama de
70
uma primeira “tentativa daquilo que pudesse o canto em nossa era”
45
, a versão do
que seria uma tragédia grega realizada com “aquilo que possa extrair-se da nossa
música para acomodar-se à nossa fábula”
46
, tenha sido apresentada no Palazzo
Pitti por ocasião das celebrações do casamento de Maria Medici, a quem é
dedicada, com o rei da França. Por sua vez, a gênesis de l’Orfeo favola in musica
(1607) de Monteverdi relaciona-se a outra signoria onde o platonismo também
tivera uma penetração marcante, tendo sido dedicada e encomendada pelo
Príncipe de Mantua, Francesco Gonzaga.
Do ponto de vista histórico, o momento em que surge a monodia
dramática da seconda pratica corresponde a um período no qual tanto a fase de
recuperação da obra de Platão através da publicação de traduções latinas e
edições comentadas, como a fase de disputas e polêmicas em torno da aceitação
do platonismo, das quais a mais famosa envolveu George of Trebizond e o
Basilios Bessarion (1403-1472), haviam sido muito superadas. Não
surpreende portanto que, em nenhum momento ao longo da controvérsia entre
Artusi e Monteverdi, ou mesmo entre Zarlino e Galilei, as discussões cheguem a
girar em torno de uma defesa de uma posição polarizada entre o pensamento
platônico e o pensamento aristotélico. Ambos os lados aceitam a melodia de
Platão sem questionar a validade dos princípios por ela estabelecidos. O ponto da
discórdia surge quando os lados consideram se a música que a Dichiaratione
associa à prima pratica corresponde de maneira eficiente a estes princípios ou se
seria então chegado o momento de transformações no modo de organização do
discurso musical para que estes princípios fossem de fato observados.
É possível interpretar como fez parte da musicologia, seja de forma
explícita ou implícita, que a invocação de Platão feita por ocasião do surgimento
da seconda pratica se justifica pela conveniência em recorrer a uma autoridade
45
una semplice prova di quel che potesse il canto dell’età nostra (PERI , 1600, Prefácio).
46
quello, che solo possa donarcisi dalla nostra Musica, per accomodarsi alla nostra favella. (Ibidem)
71
que gozava de grande aceitação naquele contexto cultural. Outra maneira de
considerar esta invocação é supor que os cultores da seconda pratica se
empenharam em transformar a música para que esta, como ocorrera com a
literatura e a pintura, pudesse de alguma forma manifestar coerência com a uma
visão filosófica que ao menos acolhesse a influência deste platonismo. Entre as
hipóteses aventadas por Panofsky (ver citação na p. 43) como possíveis razões
para um engajamento com o platonismo naquele contexto cultural simples
modismo, convicção filosófica, ou revelação espiritual − nenhuma delas exclui
necessariamente a possibilidade de uma investigação, por parte dos criadores que
afirmam este engajamento, de elementos na obra platônica que pudessem trazer
subsídios às suas criações. Tendo procurado situar o platonismo no contexto
cultural que circunda o surgimento da monodia dramática da seconda pratica,
prosseguiremos com a investigação de quais seriam os elementos disponíveis na
obra de Platão que pudessem ser determinantes na composição da melodia, e de
como estes elementos se inserem na totalidade do pensamento platônico tal qual
interpretado por Ficino.
4.2. Em busca do Ideal de Música de Platão
Palisca (1994, p. 82) afirma que “Giulio Cesare e, podemos supor
Claudio, concebiam a segunda prática [second practice] como um renascimento
[revival] do ideal de música de Platão”. Como vimos anteriormente, tanto Claudio,
como Giulio Cesare tomam a melodia platônica como sinônimo de seconda
pratica. Sabemos, através das citações que fazem, que os irmãos Monteverdi,
assim como provavelmente outros cultores da seconda pratica
47
, tinham às os
uma das versões da edição de Grynaeus para a Platonis Opera traduzida e
comentada por Marsilius Ficino. Esta edição é equipada com um extenso e bem
preparado índice remissivo que lhe confere extrema facilidade no manuseio e
47
Hankins (1990) destaca a grande popularidade que a edição de Grynaues alcançou desde de sua
primeira publicação em 1531, considerando a freqüência amiúde das suas sucessivas reimpressões.
72
grande capacidade de penetração. As citações precisas da Dichiaratione de
trechos de diálogos distintos, que se relacionam entre si através do seu conteúdo,
sugerem fortemente que o índice de Grynaeus tenha servido como um mapa na
busca por indícios que apontassem caminhos para alcançar este ideal de sica.
A mera possibilidade de que isto tenha de fato ocorrido, torna ainda mais
promissora a perspectiva de utilização deste mesmo mapa como ferramenta de
investigação. Mesmo que ele não tivesse servido aos cultores da seconda pratica,
sua operacionalidade é capaz ainda hoje de ser um fator determinante na
transposição dos desafios que se apresentam a quem quer aprofundar-se no
estudo da obra platônica.
Uma das características da obra de Platão é que os conceitos não são
apresentados de forma esquemática, como em um tratado, mas sim discutidos ao
longo de diálogos nos quais suas definições vêm à tona na medida em que se
tornam necessárias para a argumentação de um dos interlocutores. Cada conceito
discutido nos remete, via de regra, a outros conceitos, seja dos elementos que o
constituem, seja de conceitos que com ele interagem, ou mesmo de algum
conceito mais amplo no qual este conceito original está inserido. Comumente
estes outros conceitos aos quais somos remetidos não se encontram definidos na
mesma passagem, ou até no mesmo diálogo, em que encontramos o primeiro
conceito. Em função desta disposição, e do fato de que, ao tomar a forma de
diálogos, a doutrina platônica
48
necessariamente se espalha entre as idéias dos
interlocutores, é comum, em muitos estudiosos de sua obra, a utilização da
imagem de um quebra-cabeça como analogia tanto da maneira como os conceitos
se encontram dispostos como do desafio que se apresenta a quem pretende se
aprofundar na sua discussão. Esta forma de apresentação das idéias seria
resultado, como sustentam por exemplo Harte (2002), McCabe (2006), e Byrd
(2007), de uma coerência inerente entre forma e conteúdo uma vez que a relação
48
Permita-se o uso da expressão ‘doutrina platônica’ apenas como sinônimo de crença na visão
filosófica revelada através de suas obras.
73
entre o todo e suas partes, um tema recorrente para Platão
49
, é considerada por
este como sendo essencial para a utilização da dialética como instrumento de
revelação da verdadeira essência das coisas. O estudioso de Platão, provocado a
solucionar um determinado problema, vê-se levado a procurar, ao longo de sua
obra, por peças que possam ajudá-lo a encontrar uma solução, um procedimento
similar ao descrito por Seung (1996, p. xiv) ao falar de sua metodologia: “reúno
vinte e dois diálogos, como peças de um quebra-cabeça, compondo-os em torno
ao [meu] tema central”.
Se os conceitos que estão inseridos em um discurso que se espalha
através de diálogos parecem não estarem dispostos de maneira a facilitar o seu
acesso, é importante ressaltar que, por outro lado, a maneira pela qual eles se
encaixam através de seu conteúdo, demonstra uma organização estruturada de
forma clara e coerente. No Teeteto (207b) Platão destaca que “não se pode falar
de conhecimento de alguma coisa, da qual se tenha opinião verdadeira, antes de
enumerar seus elementos componentes”. Este princípio, repetido em várias outras
passagens de seus diálogos, manifesta-se de forma pronunciada na organização
interna dos conceitos abordados em sua obra. Sobre um conceito mais amplo,
somos informados de outros conceitos que entram em sua composição, e assim
sucessivamente com cada um destes elementos componentes. O resultado é um
encadeamento de conceitos em uma estrutura com níveis claramente definidos.
Levando-se em conta a existência desta estrutura gica, torna-se possível, em
teoria, tentar avaliar a abrangência da influência do pensamento platônico na
seconda pratica pela identificação de evidências desta influência ao longo dos
vários níveis em que o conceito de melodia se insere dentro da obra de Platão.
Certamente as citações e referências a Platão, feitas pelos irmãos Monteverdi,
podem ser consideradas como evidências de tangibilidade imediata.
49
Plato assidue circa unum et multa laborat (FICINO, Commentaria in Philebum, Cap. XV).
74
Fazendo o caminho inverso àquele que possivelmente tenha sido
percorrido por Giulio Cesare Monteverdi, confrontamos as citações feitas na
Dichiaratione com as entradas do índice de Grynaeus. Os trechos citados estão
apontados no índice através das seguintes entradas: (a) musica circa quid
versatur (em torno de que gira a sica); (b) melodiam ex tribus constare (a
melodia constitui-se a partir de três elementos), (c) oratio animi affectionem sequi
debet (a oração deve seguir os afetos do ânimo), (d) consonantia quom definiator
(consonância enquanto definida). Estas peças do quebra-cabeça, efetivamente
dispostas na Dichiaratione, mostram-se conectadas pelo conteúdo extraído das
passagens apontadas dos diálogos. Segue-se uma linha que, partindo da idéia de
que “a música gira em torno à perfeição da melodia”, investiga então que esta é
constituída pela oração, harmonia e ritmo, estabelecendo também uma hierarquia
entre estes elementos, e em seguida confere uma atribuição a um dos seus
elementos constituintes (a oração), bem como a definição de um conceito
(consonância) afeito a outro desses elementos (a harmonia). Estas citações
apontam portanto para quatro níveis distintos nos quais a obra de Platão está
sendo usada como referência: o primeiro envolve questões mais abrangentes
concernentes à música (a) ; o segundo discute a organização interna desta música
(b); o terceiro nível define ou confere atribuições em separado aos seus elementos
constituintes (c); enquanto o quarto (d) se concentra em conceitos que têm efeito
na composição interna dos elementos constituintes tratados no terceiro nível. O
procedimento que investiga em separado os elementos constituintes da melodia
seria trilhado também, segundo afirma o próprio Monteverdi, no tratado no qual
prometera se aprofundar sobre a seconda pratica. Na carta que escreveu a
Giovanni Battista Doni, datada de 23 de outubro de 1633, o compositor descreve
as divisões do livro que estava preparando, o deixando dúvidas que cada um
desses elementos tenha sido objeto de seu estudo:
O título do livro será o seguinte: Melodia, overo La Seconda Pratica
Musicale [...] Divido o livro em três partes correspondendo aos três
75
aspectos da Melodia. Na primeira eu discorro sobre a oração, na segunda
sobre a harmonia, e na terceira sobre a parte rítmica.
50
Na mesma carta, Monteverdi torna explícito que em seu entendimento a
melodia, enquanto ideal de música tomada pela seconda pratica, se insere no
contexto mais amplo que gira em torno ao conceito platônico de imitação:
Acredito que o livro [melodia, ovvero seconda pratica] não se sem
apreço do mundo, pois provei na prática que, quando estava para escrever
o pranto da Arianna, não encontrando livro que me abrisse o caminho
natural à imitação, nem sequer que me iluminasse quanto ao que devesse
ser o imitador, a não ser em Platão por meio de uma obscura chama que
me fazia apenas entrever com minha frágil visão aquele pouco que me
mostrava; provei, digo, com grande fadiga o que preciso para ser capaz de
fazer o pouco que fiz de imitação.
51
Ao abordar o conceito de imitação, Monteverdi inclui Platão como referência
também em uma questão que se situa em um nível mais genérico do que aquele
que discutia questões envolvendo a música. A discussão avança sobre a função
da arte como um todo. Ademais, o conceito de imitação remete no caso de Platão,
à sua cosmogonia, e está essencialmente entrelaçado ao que os comentaristas de
sua obra designam como a sua “Teoria das Formas”, que se constitui na parte
mais fundamental de sua doutrina.
As citações feitas pela Dichiaratione e cartas de Monteverdi indicam
que a busca pelo ideal de música de Platão a que se refere Palisca
52
, englobou
outros níveis além daquele que estabelece a supremacia da oração sobre os
50
II titolo del libro sarà questo: Melodia, ovvero seconda pratica musicale [...] Divido il libro in tre parti
rispondenti alle tre parti della Melodia nella prima discorro intorno al oratione, nella seconda intorno a
l'armonia, nella terza intorno alla parte Rithmica.
51
Vado credendo che non sarà discaro al mondo posciache ho provato in pratica che quando fui per
scrivere il pianto di Arianna, non trovando libro che mi aprisse la via naturale alla imitatione ne meno
che mi illuminasse che dovessi essere imitatore, altri che Platone per via di un suo lume rinchiuso
così che appena potevo scoregere di lontano con la mia debil vista quel poco che mi mostrasse; ho
provato dicco la gran fatica che sia bisogno fare in far quel poco ch'io feci d' immitatione
52
Cf. p. Erro! Indicador não definido.
76
outros elementos da melodia. Ela se deu também, a despeito do que alguns
estudos têm tendido a fazer crer
53
, tanto no nível que trata em separado cada um
dos elementos constituintes da melodia, como em um nível mais amplo que
discute a função da arte no contexto da visão platônica do mundo. É possível
inferir que ao tomar a melodia como sinônimo da seconda pratica, Monteverdi
estivesse indicando que, a exemplo do que ocorrera com as belas artes, a
música movia-se em direção a um alinhamento com o pensamento platônico nos
vários níveis da sua estrutura. Na Figura 1, vemos uma representação
esquemática dos desdobramentos da definição de melodia e de seus elementos
constituintes - oratio, harmonia e rhythmus - nos vários níveis em que estes
interagem com a dialética e, em conseqüência com a visão do mundo segundo o
pensamento platônico.
Visão Platônica do Mundo – “Teoria das Formas”
Melodia
Oratio
Nível Estético - Imitatio
Nível Ético – Função dialética
Harmonia Rhythmus
paradigma
da harmonia
specierum copula
Figura 1 - Inserção do conceito de melodia no pensamento platônico
53
Cf. Cap. 3
77
Para o entendimento mais aprofundado do que seria este ideal
platônico de música almejado pelos cultores da seconda pratica, vamos nos
confrontar, servindo-nos da mesma ferramenta que estes dispunham (a edição da
Platonis Opera Omnia traduzida por Ficino e indiciada por Grynaeus), com os
conceitos e definições que compõem cada um dos níveis em que ele se insere e
se manifesta. Mesmo quando as definições que emergem desta investigação
sugerem uma abrangência apenas parcial ou contextual de um conceito, nosso
propósito será apenas de trazer à tona as passagens que poderiam ter sido
extraídas desta edição da obra de Platão e eventualmente servido como subsídio
aos compositores empenhados na busca do renascimento de um ideal de música
que nesta obra teria se inspirado. O escopo desta investigação não está na
discussão filosófica em torno destes conceitos, mas sim na verificação da
possibilidade da sua utilização pelos cultores da seconda pratica.
4.2.1. Melodia
Iniciaremos nossa investigação, examinando o que podemos extrair das
definições e atribuições feitas por Platão em torno da música e da relação que se
estabelece entre os elementos constituintes da melodia.
A indicação musica circa quid versetur (em torno do que gira a música)
nos remete à passagem do Górgias (449d), citada na Dichiaratione, que diz “non
ne et musica circa perfectionem melodiae? sane.” (E a música não está em torno à
perfeição da melodia? Com certeza.) Esta passagem é adotada como princípio
pelos defensores da seconda pratica, e deste princípio iniciaremos nossa
investigação que prosseguirá procurando indicações que esclareçam algo sobre a
perfeição da melodia. Antes porém vejamos outra indicação, musica unde dicatur
(música de onde a designamos), que nos remete a uma passagem de Alcebíades
I (108c) onde há uma definição da música como sendo “a arte que engloba
78
conjuntamente as artes de cantar, tocar e dançar” que recebe das musas seu
nome pois delas são engendradas.
54
Passemos então a investigar aquele conceito em torno de cuja
perfeição a música está centrada. São duas as entradas nas quais a melodia
aparece como referência no índice de Grynaeus. A primeira, melodiam
pulcherrimam cur per ineptissimum Poetam deus cecinerit, remete a uma
passagem do Íon (534e) na qual Sócrates sustenta que Deus, para nos lembrar
que o poeta quando possuído pelo furor é apenas Seu intérprete (poetae autem
nihil aliud sint, quam deorum interpretes), canta as mais belas canções (melodiae)
através dos poetas mais ineptos. Como veremos adiante, não apenas a beleza da
melodia é considerada uma dádiva divina por Platão, mas também os seus
componentes, harmonia e ritmo são referidos como dons que o homem recebe de
Deus.
A outra entrada melodia ex tribus constare remete à famosa passagem
da República (398d), também citada na Dichiaratione, que indica a oração, a
harmonia e o ritmo como os três elementos constituintes da melodia e em seguida
estabelece que os dois últimos devem seguir o primeiro.
O papel de destaque que Platão confere à música na formação do
homem pode ser extraído seguindo a indicação musica utilitas no índice de
Grynaeus, que nos remete à seguinte descrição dos benefícios de uma educação
musical (República 401d):
Glauco - Este projeto educativo é certamente excepcional. Sócrates E
nele a música é parte principal, porque o ritmo e a harmonia têm o grande
54
So. Age igitur et tu. decet enim te quoque recta disserere. Dic primum quae ars est, ad quam
pertinet recte canere, sonare, saltare universa haec ars quomodo nuncupatur ? nondum potes
exprimere ? Al. Nondum. So. Verum sic enitere quaenam huius artis deae? Al. Musas ne, o
Socrates, ais ? So. Equidem. inspice jam quod ab iis cognomentum ars illa nanciscitur. Al. Musicam
dicere mihi videris.
79
poder de penetrar na alma e tocá-la fortemente, enchendo-a de graça, pois
a graça e a beleza advêm a quem foi corretamente instruído em música. E
de outra forma, se dá o contrário, pois o jovem a quem é dada a educação
como convém, sente muito vivamente a imperfeição e a feiúra nas obras
da arte ou da natureza e experimenta justamente desagrado. Louva as
coisas belas, recebe-as alegremente no espírito, para fazer delas o seu
alimento, e torna-se assim nobre e bom; ao contrário, censura justamente
as coisas feias, odeia-as logo na infância, antes de estar de posse da
razão e, quando adquire esta, acolhe-a com ternura e reconhece-a como
um parente, tanto melhor quanto mais tiver sido preparado para isso pela
educação. Glauco - Tais são as vantagens que se esperam da educação
pela música.
55
Nesta passagem somos informados da capacidade de dois dos elementos
constituintes da melodia, o ritmo e a harmonia, de penetrar no ânimo e mover a
alma (rhythmus et harmonia interiora animi penetrant, pulsantque vehementissime
animum). Lembremos que a relação entre o terceiro elemento, a oratio, e o ânimo
é descrita de forma bem diferente na seguinte passagem da República (XX),
citada na Dichiaratione e também referida no índice: quid veri loquendi modus
ipsaque oratio; non ne animi affectionem sequitur? Orationem vero caetera quoque
sequuntur.(qual seja a maneira que falemos, a oração o segue os afetos do
ânimo? a estes ele realmente segue).
Temos então a música definida como arte que engloba conjuntamente o
cantar o tocar e o dançar. Esta música gira em torno da perfeição da melodia que,
por sua vez, está apoiada no tripé formado pelos elementos, oração, harmonia e
ritmo. Sabemos também que o primeiro segue os afetos do ânimo enquanto os
55
Gla. Egregie admodum isto pacto nutrirentur. So. Ob hanc igitur causam, Ob hanc igitur causam,
ex ipsa principali secundum musicam nutritione rhythmus et harmonia interiora animi penetrant,
pulsantque vehementissime animum, decoram quandam figuram ferentia, per quam decorus et
pulcher efficitur, quisquis recte in musica eruditur: contra vero, si contra quis fuerit educatus. Et
quoniam rursus deficientia neque recte fabricata aut non bene orta acutissime sentiet, qui illie,
quemadmodum oportet, nutritus fuerit: merito aegre haec ferens, pulchra quidem laudabit, eaque
amans avideque arripiens ipsis aletur ac bonus inde efficietur et pulcher. Turpia vero jure vituperabit
oderitque, etiam in ea aetate in qua rationem nondum susceperit. adventantem denique rationem, qui
ita nutritus erit libenter amplectetur, eam ex ipsa propinquitate familiaritateque prorsus agnoscens.
Gla. Mihi quoque harum rerum gratia in musica nutriendi videntur.
80
outros dois são capazes de movê-lo. A estes cabe, como verificamos, seguir
àquele. Note-se que a oratio segue os ânimos de quem fala, enquanto harmonia e
ritmo movem os ânimos de quem ouve. Isto significa que a perfeição da melodia
está associada à sua capacidade de mover o ânimo do ouvinte em direção aos
afetos do ânimo do orador, seja ele o poeta ou, no caso da poesia dramática, o
personagem que faz a oração. Na oratio o afeto do orador se revela. A harmonia e
o ritmo devem então seguir a este afeto revelado, para depois mover o ânimo dos
ouvintes.
Esta concepção na qual harmonia e ritmo têm o papel de indutores do
afeto revelado pela oratio, é sustentada em passagem, citada por Palisca, de
autoria do então Bispo Jacopo Sadoleto (1477-1577) que servindo ao lado de
Pietro Bembo como secretário do Papa Leo X, Giovanni de Médici, teve grande
influência na contra-reforma. Mostrando-se preocupado com o que Palisca chama
de “falta de persuasão da música do seu tempo”, Sadoleto faz as seguintes
considerações em seu diálogo De liberis recete instituendis liber publicado em
1535 (apud PALISCA, 1994, p. 83):
Se nos inquerimos sob qual forma a música deve ser mantida, creio que
todas devem observar o seguinte. Um coro consiste de três elementos,
sentença, ritmo (que chamamos de mero) e os tons. A sentença é o
primeiro e mais importante destes, sendo a base e o fundamento dos
outros dois. Por si mesma, a sentença não tem o mínimo poder de
persuadir ou conter o ânimo. Quando porém movida pelo ritmo, penetra de
forma aguda. Quando posta em sica em tons e canto, toma posse dos
sentimentos internos e do homem no seu todo.
56
56
Quod si quaeratur qui modus sit in musica tenendus, haec ego omnia attenda esse puto: cum
constet chorus ex tribus, sententia, rhythmo (hic enim números nobis est) & voce, primum quidem
omnium & potissimum sententiam esse, utpote quae si sedes & fundamentum reliquorum, & per se
ipsa valeat non minimum ad suadendum animo vel dissuadendum: numeris autem modisque
contorta penetret multo acrius; si vero etiam cantu & voce fuerit modulata, iam omnis intus sensus &
hominem totum possideat.
81
Mas, de que maneira devem as palavras se acomodar em tons a este
afeto por revelado pela oração? Já vimos que, embora Platão manifeste sua
adesão à doutrina do ethos associado ao modo, a possibilidade de usar esta
doutrina para atribuir um afeto ao elemento harmonia não encontrou, por algumas
das possíveis razões que aventamos, correspondência naquela seconda pratica
57
.
Ainda na busca de uma resposta para esta pergunta, nosso próximo passo será
examinar a composição, a definição e as atribuições conferidas a cada um desses
elementos que constituem a matéria prima daquilo que os cultores da seconda
pratica almejavam restabelecer. Vimos anteriormente que Monteverdi, em carta
escrita a Giovanni Battista Doni, descreve a organização do seu livro indicando
que a cada dos elementos constituintes da melodia será dedicada uma parte.
Enquanto examinamos estes elementos em separado, vamos coletando mais
informações que estavam disponíveis àqueles que afirmavam querer reavivar o
espírito da melodia platônica, para que, à luz dessas informações, consigamos
montar um quadro mais completo sobre este ideal de música e confrontá-lo com
exemplos da monodia dramática da seconda pratica.
4.2.2. Harmonia
Passando do nível que trata da canção como um todo, para o nível que
aborda os seus elementos constituintes, investiguemos o que pode ser extraído
sobre a harmonia da versão latina de Ficino para a obra de Platão.
A definição platônica de harmonia apontada pelo índice de Grynaeus
(harmoniae definitio) informa que “à ordem [...] nos sons, quando o agudo e o
grave se misturam em simultaneidade, chamamos de harmonia, isto é, concentus
(Leis, 665a)
58
. O conceito de harmonia como a ciência ou a arte que define a
combinação dos sons segundo sua altura aparece também aparece na passagem
57
Cf. p.41
58
Ordinis autem qui in motu conspicitur nomem Rhythmus, id est números esse potest; sed eius qui
in vocem, acuto et gravi simul contemperato, Harmonia, id est, concentus.
82
apontada através da indicação Harmonia quomodo constatur (harmonia tal como é
conhecida). Vejamos a passagem indicada, tal qual ela aparece no Filebo (17d):
Quando, meu amigo, tiveres compreendido o número e a qualidade dos
intervalos do som em relação aos graves e aos agudos, e os limites dos
intervalos, e todas as combinações deles derivadas, que os homens de
antigamente descobriram e entregaram a nós, seus sucessores,
chamando-as segundo a tradição de harmonia, [...] levando sempre em
conta que esta é maneira correta de lidar com o problema do ‘um-e-os-
muitos’, então, quando tiveres captado tudo isso, é que serás capaz de
um entendimento verdadeiro, e qualquer que seja o ‘um’ que tenhas
escolhido investigar, esta é maneira de revelá-lo.
59
Nesta segunda definição, a harmonia é apresentada, assim como no Teeteto
(206b) e no Sofista (253b), como um paradigma da capacidade distinguir as idéias
por gêneros conforme a possibilidade que estas apresentam de se combinarem ou
não entre si. Para explicar esta capacidade, chamada no Sofista (253d) de
capacidade dialética, e considerada essencial para o processo do conhecimento,
Platão usa os exemplos da harmonia, que determina como os sons se combinam,
e da ortografia que determina como as letras se combinam. Segundo Rosen
(1983, p. 251), “os paradigmas da ortografia e da música têm a intenção de ilustrar
um único processo pelo qual elementos formais se combinam em estruturas
inteligentes”. Esta capacidade dialética se entrelaça de maneira ainda mais
marcante com o conceito de oratio que será examinado a seguir.
A definição de harmonia, como a área do conhecimento humano que
determina como os sons podem ou não se combinar em relação à sua altura,
mostra-se ampla o suficiente para abarcar o modo como o termo foi entendido em
diversos contextos históricos e culturais. À luz deste conceito, as diferenças sobre
59
Sed postquam, o amice, acceperis, quot intervalla vocis numero sunt circa grave atque acutum, et
qualia, nec no n intervallorum termini, et quotcunque ex his compositiones proveniunt. Quae maiores
nostri conspicientes, nobis eorum sectatoribus, ut huiusmodi quaedam harmonias appellaremus,
tradiderunt. [...] Nam quando ista sic accipis, sapiens tunc evadis. cum vero et aliud quicquam ita
comprehendis, sapiens rursus circa illud efficieris. Infinita autem singulorum et in singulis multitudo,
vagum te incertumque, et rationis ac numeri reddit expertem, utpote in numerum nullum cuiusque
terminum respicientem.
83
como a harmonia foi considerada se manifestariam sobretudo no estabelecimento
das regras que devem reger essa combinação dos sons em relação às suas
alturas. Estas regras, e não o conceito de harmonia em si, é que variaram ao
longo da história, sendo determinadas por princípios diferentes seja na harmonia
modal, na harmonia tonal, ou até mesmo no dodecafonismo.
Outro aspecto importante da harmonia musical no pensamento
platônico é a sua capacidade de interagir com a alma conferindo-lhe harmonia
interior. Atribuindo sua existência à dádiva divina, Platão ressalta no Timeus (47c)
este aspecto que poderíamos chamar de terapêutico:
No que concerne o som e a escuta, afirmo também que foram conferidos
pelos deuses […] A sica também, que utiliza o som, nos foi dada em
função da harmonia. E a harmonia, que tem movimentos similares às
revoluções da alma dentro de nós, foi dada aos homens que fazem
prudente uso das Musas, não como auxílio ao prazer sem razão, como se
supõe hoje, mas para que quando a alma se agitar em dissonância, possa
recompor a ordem e a concordância com si própria.
60
Outras considerações de caráter mais técnico sobre a harmonia,
abordando, entre outras coisas, o sistema de afinação adotado e a verdadeira
composição intervalar dos modos foram objeto dos estudos de Vincenzo Galilei e
Girolamo Mei. É preciso ter em mente porém que, embora estivesse engajado na
reconstrução do ideal platônico de música, Monteverdi declara de maneira
inequívoca que seu objetivo o incluía o restabelecimento das regras que regiam
a harmonia dos antigos, no que se referiam aos seus aspectos puramente
musicais. Lembremos que em sua carta a Doni de 2 de Fevereiro de 1634, ele
deixa claro que considerava este tipo de transposição, senão inexeqüível, ao
menos muito difícil, mas que esperava ser capaz de mostrar o que pudera
60
Vocem quoque auditumque ejusdem rei gratia Deos dedisse nobis existimo [...] onmisque musica
vocis usus harmonia gratia est tributus. atqui et harmonia, quae motiones habet animaee nostrae
discursionibus congruas atque cognatas, homini prudenter Musis utenti non ad voluptatem rationis
expertem, ut nunc videtur, est utilis: sed a Musis ideo data est, ut per eam dissonantem circuitum
animae componamus et ad concentum sibi congruum redigamus.
84
apreender com “aqueles filósofos” através da prática moderna
61
. Este também
parece ser o mesmo posicionamento adotado por Peri, que no prefácio da sua Le
musiche sopra l’Euridice, faz a seguinte advertência:
Como não ousaria afirmar ser este o canto usado nas bulas gregas e
romanas, assim quis acreditar ser aquele que apenas possa ser obtido da
nossa música, para acomodar-se á nossa fábula.
62
Agrupando o que fomos capazes de extrair sobre a harmonia até este
ponto, é possível dizer que esta era a arte ou ciência, conferida ao homem por
uma dádiva divina, que é capaz de determinar como os sons podem ou não se
combinar em relação à sua altura, e cuja operação tem grande poder de mover o
ânimo do ouvinte. A ela cabe seguir a oratio. Para Platão, do mesmo modo que ao
músico cabe através da harmonia reconhecer quais intervalos devem ou não ser
combinados, cabe ao filósofo através da dialética identificar como as idéias se
combinam um discurso (oratio).
4.2.3. Rhythmus
Mesmo sem pretender se aprofundar em detalhes sobre a discussão
desse elemento, uma vez que o escopo do presente trabalho é investigar a
relação entre oração e harmonia na monodia dramática da seconda pratica,
estaremos considerando o ritmo, elemento constituinte da melodia platônica, com
o objetivo específico de situar a abrangência da busca pelo ideal platônico de
música.
Segundo Platão (Leis 655a), ritmo é “a ordem que se observa no
movimento e é resultado do número”.
63
Seguindo as indicações do índice de
61
Cf. citação na p. 41.
62
Si como non ardirei affermare questo essere il canto nelle Greche, e nelle Romane favole usato,
cosi ho creduto esser quello, che solo possa donarcisi dalla nostra Musica, per accomodarsi alla
nostra favella.
85
Grynaeus, encontramos também referência a uma passagem da República (400b)
na qual crates menciona a classificação rítmica que teria ouvido de Damon
onde cinco tipos distintos de s (pedum) são referidos: bellicosum, dactylum,
heroicum, jambum, trochaeum. Além disso, o ritmo, assim como a harmonia, é
referido como um presente dado pelos deuses “para que controlemos a desordem
e falta de graça que é comum entre nós” (Timeus 47e)
64
.
O ritmo não é tratado como objeto de controvérsia nas discussões entre
Artusi e os irmãos Monteverdi. Virá porém a assumir um papel de destaque com a
publicação do oitavo livro de madrigais, Madrigali Guerrieri et Amorosi, em 1638.
No prefácio desta publicação, Monteverdi anuncia que encontrando em Platão a
descrição do gênero concitato, para o qual não encontrou exemplo em
composições musicais, dedicou-se “com não pouco estudo e fatiga a reencontrá-
lo”. Reinventá-lo, teria sido talvez a expressão mais exata. Em seu estudo sobre a
terminologia empregada por Monteverdi na classificação que faz dos três gêneros
(concitato, molle, e temperato), Barbara Russano Hanning (In Baker e Hanning,
1992), conclui que o compositor parte da descrição dos ritmos pírrico e
espondaico feita por Platão (Leis 816B) e a sobrepõe à classificação Byzantina de
Ethos (Boethius, Cleonides, Aristides Quintilianus, e Manuel Bryennius), que
designa três espécies; dialstático (excitante), hesychástico (moderado) systáltico
(deprimente). Ainda segundo Hanning, Monteverdi provavelmente tomou
conhecimento desta última classificação através dos escritos de Giorgio Valla
(1447-1500). Oliver Strunk (1998) aponta também uma referência à classificação
de melodia de Aristóteles, ou à sua revisão pela escola de Aristoxenus, que indica
três gêneros: concitato, molle e temperato. Desta confluência Monteverdi teria
criado o seu genero concitato.
63
Ordinis autem qui in motu conspicitur, nomen Rhythmus, id est numerus esse potest.
64
Rhythmus quoque ad hoc videtur esse tributus, ut habitum in nobis immoderatum gratiaque
carentem aptissime temperemus.
86
Mesmo tendo usado outras fontes para a terminologia empregada na
gênesis do genero concitato, o princípio usado para sua operação foi, nas
palavras do seu criador, a oposição rítmica entre o “tempo piricchio, que é tempo
veloz no qual todos os melhores filósofos afirmam [Platão, Leis 816b] tenham sido
usadas as saltações bélicas, concitate; e o tempo spondeo, tempo tardio, [no qual
se usavam] as contrárias”. Ao primeiro Monteverdi atribui o valor de semicolcheias
e ao segundo de semibreves.
Mais de trinta anos após o debate com Artusi, o compositor, que
afirmava estar dedicando exclusivamente ao ritmo uma das três partes de seu livro
sobre a seconda pratica, apresenta nos Madrigali guerrieri et amorosi, uma
resposta musical que estende também sobre este elemento a sua busca pelo ideal
platônico de música. No capítulo que dedica ao genere concitato, Ossi (2003)
afirma que “no prefácio aos Madrigali guerrieri et amorosi, Monteverdi sentia que
as emoções poderiam ser representadas apenas quando todos os componentes
da melos de Platão estivessem presentes”. Como premissa fundamental estava a
máxima platônica de que o ritmo, assim como a harmonia, devesse seguir a
oração (República 400a).
4.2.4. Oratio
Investiguemos agora, a partir da tradução ficiniana, o que vem a ser,
segundo Platão, o elemento que deve assumir o papel de líder na composição da
melodia. O índice remissivo de Grynaeus apresenta várias entradas que se
mostram de auxílio nesta tarefa. Duas delas, oratio quid (qual oração) e oratio
graecis quo dicatur (oração em grego como é dita), remetem à seguinte passagem
do Teeteto (206d):
Diga-me agora que significado atribuímos a este   (Logos).
Primeiramente considero ser exprimir pela voz seu pensamento por verbos
87
e nomes, mostrando a própria opinião em palavra, como num espelho e na
água. Acaso não te parece isto uma oração?
65
Ficino deixa transparente no texto de sua tradução que o termo oratio está sendo
empregado como tradução latina do logos grego. A sua definição como sendo a
expressão, ou a manifestação do pensamento também pode ser extraída da
seguinte passagem do Sofista (264a), apontada no índice pelas entradas orationis
definitio qua separatur a cogitatione (definição de oração em distinção ao
pensamento) e oratio quomodo a cogitatione per os effluit (oração em forma de
pensamento que flui pela boca):
Não são o pensamento e a oração a mesma coisa? A não ser por
chamarmos de pensamento aquela conversação interior e silenciosa, que
dirigimos à nossa própria alma. [...] Mas àquele que flui pronunciando-se
pela boca chamamos de oração.
66
Os verbos e os nomes são as unidades que declaram a essência de
uma idéia. A distinção entre eles é estabelecida em uma passagem do Sofista
(262a) que no índice é apontada tanto através da palavra ‘nome’ como através da
palavra ‘verbo’:
Dois são os gêneros das declarações que se dão pela voz em torno da
essência [...] À declaração que significa uma ação chamamos de verbo [...]
enquanto ao signo vocal que impõe o agente, nome.
67
Em outras passagens o termo nomen é tomado como signo da menor
unidade de expressão vocal da idéia em uma oração, englobando também o
65
Dic age, quid   nobis hic significet.[…] Primum esse arbitror, cogitationem suam voce per
verba nominaque exprimere, opinionem propriam in voce, perinde ac in speculo et aqua,
monstrantem. Nonne tale quiddam oratio tibi esse videtur?
66
Nonne cogitatio et oratio idem? Nisi quod cogitatio dicitur illa ipsa sine strepitu vocis interior
collocutio, qua sese animus noster alloquitor [...] Sed per os effluxus prolationis ab illa oratio
nuncupatur.
67
Duo nanque sunt genera declarationum earum quae circa essentia voce fiunt [...] Declarationem,
qua actiones significantur, verbum dicimus. [...] Signum autem vocis agentibus ipsis impositum,
nomen.
88
verbo. Duas indicações destacam o papel que o nome, entendido como palavra,
exerce na composição interna da oratio. A indicação Orationis substantia remete a
uma passagem do Teeteto (202b) que afirma que a “copulação [no sentido de
combinação] de nomes é evidentemente a substância da oração”
68
. Seguindo a
indicação orationis pars mínima que, somos remetidos à seguinte passagem do
Crátilo (385c): “Existe portanto, na oração, algo que seja menor que o nome? De
modo algum: esta é realmente a menor parte”
69
. Pouco adiante, na mesma
discussão, Sócrates define, em uma passagem indicada por uma nota de margem,
a função do nome e faz uma analogia para melhor ilustrar seu papel na
composição do discurso lógico. -se no Crátilo (388c) “O nome portanto é um
instrumento para ensinar e distinguir a substância das coisas, como o pente e a
vara na urdidura de um tecido.
70
Na seqüência da mesma passagem, o dialético é
apontado como o especialista no emprego deste instrumento, tal como o
navegador em relação ao navio e o citarista em relação à sua lira. Do
entrelaçamento dos nomes surge o textus (tecido em latim) que compõe a oratio.
Em carta endereçada a Alessandro Striggio, datada de 7 de maio de
1627, Monteverdi demonstra sua preocupação com a manifestação da parte
mínima da oratio no processo de imitatione que ocorre no momento que a idéia
toma voz na interpretação do cantor. Monteverdi pede que seja feita a seguinte
recomendação à cantora que iria interpretar o papel principal em La finta pazza
Licori, obra, baseada em poema de Giulio Strozzi, que jamais foi concluída:
Devendo a imitação estar apoiada sobre a palavra e o sobre o sentido
da frase, quando então falará de guerra, precisará imitar a guerra, quando
de paz a paz, quando de morte a morte, e assim seguindo, e porque as
transformações se farão em espaço brevíssimo, e as imitações; a quem
então couber tal parte principal que move ao riso e à compaixão, será
68
Nominum quipppe copulationem orationis esse substantiam.
69
Habes orationis partem aliquam minorem nominem? Nequaquam: haec enim pars minima.
70
Nomen itaque rerum substantias docendi discernendique instrumentum est, sic ut pecten et radius
ipse telae.
89
necessário que tal mulher deixe de lado qualquer outra Imitação além da
momentânea que lhe indicará a palavra que terá que dizer
71
.
Vemos que, a esta altura, Monteverdi concebia que cada idéia declarada pela
oração encontrasse representação no canto. Estamos portanto muito distantes da
concepção sugerida pela doutrina do ethos associado ao modo, e que seria mais
tarde retomada pela retórica proposta pela Affektenlehre, que estabelece que ao
longo de uma oração tomada em seu todo, um único afeto deve ser representado.
Ao contrário, a imitatione deveria ocorrer não em relação ao todo de uma oração,
mas às suas partis minima, os nominum, de modo a revelar a urdidura que resulta
do seu entrelaçamento.
A função de elemento mínimo que, entrelaçado aos seus pares,
constitui uma estrutura maior, é atribuída tanto ao nome como também à idéia,
uma vez que se entende o pensamento (cogitatio) como uma oratio interior e
silenciosa, e o nome como o signo (signum agentibus) que representa a idéia. No
Sofista (259e) é afirmado que “o discurso [oratio] deve sua existência à
combinação e mistura das idéias [species]”
72
. A importância para a oração dessa
participação das idéias é tão fundamental que, na mesma passagem do Sofista, o
Estrangeiro afirma categoricamente: “aniquilamos completamente o discurso
[oratio] se segregamos cada coisa do todo”. A identificação e análise do specierum
copula, o modo como as idéias se relacionam, o ou do nominum copulatio, como
os nomes se relacionam, constitui-se na chave capaz de revelar a essência da
oração (orationis substantia). Esta função é descrita e atribuída à dialética na
seguinte passagem do no Sofista (253d):
71
la imitatione dovendo aver il suo appoggiamento sopra alla parola et non sopra al senso della
clausula, quando dunque parlerà di guerra bisognerà imitar di guerra, quando di pace pace, quando
di morte di morte, et va seguitando, et perchè le transformationi si faranno in brevissimo spatio, et le
immitationi; chi dunque averà da dire tal principalissima parte che move al riso et alla compassione,
sarà necessario che tal Donna lassi da parte ogni altra Immitatione che la presentanea che gli
somministrerà la parola che haverà da dire.
72
Ominis penitus oratio deletur si unumquodque ab omnibus segregatur. Nam propter mutuam
specierum compulam oratio constitit.
90
Dividir por gêneros e não tomar uma espécie por outra, e o inverso não
diremos ser esse, precisamente, o ofício da dialética? [...] Então, quem for
capaz de distinguir uma idéia única numa multidão de idéias
independentes, ou um sem-número de idéias diferentes entre si, porém
abrangidas por outra mais ampla, e, de novo, uma idéia apenas que se
estende por muitas outras e todas elas ligadas a uma unidade, e também
muitas inteiramente isoladas ou separadas: eis o que se chama a arte de
distinguir os neros, conforme a capacidade de se combinarem ou de
não combinarem [...] Porém não atribuirás essa capacidade dialética
senão a quem souber filosofar com pureza e justiça.
73
A dialética, tal como podia ser entendida através da tradução ficiniana
de Platão, se constitui portanto em ferramenta necessária e imprescindível para
revelar a essência da oração. Veremos mais adiante que esta capacidade
desempenha no platonismo um papel da mais alta importância, não apenas no
que diz respeito à organização do discurso. Em função da maneira como Platão
relaciona o mundo material às idéias, a dialética assume uma posição axial para o
ser humano. Para podermos compreender melhor a importância desta função, faz-
se necessário que a este ponto nos familiarizemos com alguns conceitos
fundamentais que de uma maneira ampla determinam a visão platônica do mundo.
4.3. Visão platônica do mundo
Um conceito fundamental para Platão é a maneira como este relaciona
o mundo material às idéias. Para ele, as formas (idéias), e o o mundo mutável
que conhecemos através dos sentidos, possuem o tipo mais fundamental de
realidade. O que os sentidos nos revelam é apenas uma imitação (sombras)
dessas formas reais. Esta concepção que permeia toda a sua obra é representada
73
Per genera dividere, et neque eandem speciem alteram putare neque alteram eandem rursus
esse, nonne dialecticae officium esse dicemus? [...] Quicunque hoc agere potest, unam ideam per
multa, unoquoque seorsum posito, passim porrectam acute presentit: et multas quae diversae interse
sunt; extrinsecus sub una comprehendas, et unam rursus per tota ilia quae multa sunt in unuo
copulatam, et multas seorsum undique distinctas. Hoc autem est scire per genus discernere qua
singula communicare vicissim possunt et qua non possunt. [...] At vero dialecticum opus haud alteri
dabis, ut arbritor, quam pure legitimeque philosophanti.
91
na chamada ‘alegoria da caverna’ na Republica (514a–520a) e aparece de forma
mais direta e sucinta no Timeus (29b):
Ao ter sido criado, o mundo toma forma a partir daquilo que é apreendido
pela razão e pela mente e que é imutável e, admitindo isto, será
necessariamente a cópia de algo.
74
De acordo com esta concepção a matéria em si não possui forma ou qualidade.
Estas lhe são emprestadas pelas idéias, divinas ou humanas, que no meio
material são copiadas. A indicação no índice de Grynaues simulacra rerum
verarum esse quae in materia fiunt (simulacros das coisas verdadeiras são o que
se torna a matéria) aponta para a seguinte passagem (Timeus 50c) que é
acompanhada com a nota de margem materia est informis (a matéria é informe):
Aquilo que se apresenta e se esvai são simulacros das coisas que sempre
existiram, moldadas de forma maravilhosa e difícil de explicar [...] A
mesma linha se estabelece entre o que gera e o que é gerado, pois
daquele derivam as semelhanças que este carrega. É apropriado
comparar quem herda com a mãe e com o pai, da média das suas
qualidades sendo a prole engendrada . Também convém que entendamos
que uma vez que as cópias das coisas devem assumir formas de
variedades distintas, não poderão tomar estas novas formas, mesmo que
o ventre que as gerem seja bem preparado, a menos que se apresentem
informes, carecendo daquelas formas que irão receber.
75
Tal concepção, chamada pelos estudiosos de Platão de ‘Teoria das
Formas’ irá refletir na definição de outros conceitos importantes e significativos
como ocorre na conceituação de conhecimento assim expressa no Teeteto (186b)
e encontrada através da indicação sensum non posse (?) [caracteres ilegíveis]
74
sic igitur generatus ad id est effectus, quod ratione et sapientia sola comprehendi potest et
immutabile permanet. ex quo efficitur, ut necesse sit hunc mundum ali cujus simulacrum esse
75
quae vero ingrediuntur et exeunt, vere ac semper exsistentium rerum simulacra sunt, mire et vix
explicabili modo ab ipsis rebus, quae vere sunt, figurata, tria in praesenti genera sumenda sunt:
unum, quod gignitur: aliud, in quo gignitur: aliud, a quo similitudinem trahit, quod nascitur. idcirco
comparare haec ita decet: quod recipit, matri: unde recipit, patri: naturam istorum mediam proli. sed
ita intelligendum est, quod cum esse debeat effigies rerum omni formarum varietate distincta,
nunquam illud ipsum formationis huius gremium bene erit praeparatum, nisi informe sit et suapte
natura omnibus formis, quae recepturum est, careat.
92
veritatem percipere rei (as coisas não podem ser percebidas verdadeiramente
pelos sentidos) :
O conhecimento não está no que sentimos, mas no processo de reflexão
sobre as sensações; pois certamente é possível apreender o ser e a
verdade pela razão, e não pelos sentidos. [...] Convém que neguemos a
verdade da percepção, uma vez que não nos assegura a essência. Nem
tão pouco as ciências irão então adquiri-la.
76
É fundamental situarmos esta concepção platônica do mundo uma vez
que dela decorrem tanto o seu conceito de imitatione que, segundo o próprio
Monteverdi afirma em uma carta de 1634, foi objeto de sua investigação, como a
sua concepção da dialética como instrumento revelador da essência da oratio.
4.3.1. O nível ético: a função dialética
Para Platão, o grande desafio do homem é ser capaz de apreender o
mundo imutável das formas que se esconde atrás da sucessão de sensações que
percebemos. Como já vimos (Cf. p. 92), em sua concepção o conhecimento
advém do exercício da razão sobre as sensações percebidas, e neste contexto a
dialética tem um papel preponderante como ferramenta reveladora da verdadeira
natureza das coisas, assumindo assim uma função eminentemente ética descrita
da seguinte forma no Fedro (249c):
O ser humano precisa entender a concepção geral formada pela reunião
em unidade através da razão das várias percepções dos sentidos; e esta é
uma lembrança daquelas coisas que nossa alma incorporava, quando
prosseguia com Deus.
77
76
In passionibus igitur scientia nequaquam inest: in ratiocinatione tamen, quae circa illas versatur,
inesse videtur. essentiam quippe veritatem-que hac attingire possumus, illis vero nequaquam. [...]
Huic veritatis perceptionem convenire negavimus, cum essentiam non percipiat. Neque scientiae
igitur compos erit.
77
Oportet vero hominem intelligere secundum speciem, ex multis procedentem sensibus in unum
ratiocinatione conceptum. Hoc autem est recordatio illorum, quae olim vidit anima nostra cum Deo
perfetca.
93
Para o Sócrates da República (534e) a dialética ocupa o lugar mais
alto entre todas as disciplinas (doctrinis omnibus dialectica velut apex esse
praeposita). Esta supremacia advém da sua capacidade de revelar a essência das
coisas, libertando o ser humano, como na ‘alegoria da caverna’, do
aprisionamento que lhe impede de enxergar para além daquilo que até então lhe
parece ser o mundo real. No índice de Grynaeus a indicação dialeticam
philosopho esse necessariam nos remete à seguinte passagem da República
(532a):
Eis que quando alguém, discernindo o pelos sentidos, mas por meio da
razão, tenta alcançar a essência de cada coisa e não se detém antes de
ter apreendido apenas pela inteligência a essência do bem, e atinge o
limite do inteligível, como aquele que [na parábola da caverna] subia ao
limite do visível [...] Não chamamos tal procedimento de dialética?
78
A entrada dialectica quam sit necessaria iis qui magnas artes attingunt
(dialética o quanto é necessária aos que professam ofícios nobres) leva-nos ao
Fédro (269e) onde lemos que “todos os ofícios nobres demandam o exercício da
dialética e da contemplação do sublime na natureza das coisas.”
79
A dialética
portanto é uma ferramenta não apenas do filósofo, mas também de outros ofícios
valorizados por Platão. De fato, a função dialética do homem, vista como sua mais
nobre capacidade, se faz presente tanto na função de imitação a ser exercida pela
arte, como veremos mais adiante, como no processo de entendimento do
componente mais importante da melodia platônica, a oratio.
78
Haud secus cum quis ad disserendum se confert absque sensibus, ratione duntaxat ad ipsum,
quod est, quodlibet nititur: qui si non destiterit prius, quam ipsum, quod est bonum, intelligentia ipsa
perceperit, tunc demum ad finem intelligibilis ipsius ita pervenit, ut ille alter ad visibilis finem ascendit.
[...] nonne dialecticam hanc progressiones vocas?
79
Magnae quaelibet artes exercitatione dialectica, contemplationesque sublimium in natura rerum
indigent.
94
4.3.2. O nível estético
Num mundo onde a percepção através dos sentidos esconde a
verdadeira natureza das coisas enquanto formas ou idéias, a arte tem de
desempenhar, ela também, uma função dialética. O ideal artístico passa a ser a
imitação das formas eternas da beleza e do bem. O artista deve ser capaz de
perceber e imitar essas formas e não apenas confundir o homem num mundo de
sensações; deve, em outras palavras, aproximar-nos do original, induzindo-nos
em direção aos valores eternos, e não representar uma cópia do que é em si
mesmo uma cópia. Após a descrição dos benefícios da educação musical (Cf.
p.78), temos na República (402b) a seguinte declaração da necessidade da
aquisição da capacidade de dialética aos músicos e outros artistas:
Podemos além disso conceber que as letras que se mostram seja na água
ou no espelho, não serão por nós conhecidas de fato a não ser que nos
familiarizemos com as letras em si, e tal conhecimento pertence aos
mesmos ofícios [música, poesia e arte] e práticas [...] E por qual curso o
afirmamos? Não é pela mesma razão que consideramos que jamais
seremos sicos, nem s, nem os guardiões a quem queremos educar,
até que sejamos capazes de concordar as formas da firmeza, da
liberalidade e da magnificência, e conhecer as suas irmãs de criação, e as
formas contrárias, e todas as combinações que delas resultam e
percebermos as suas imagens onde quer que as encontremos, sem
pressupô-las como algo pequeno ou de grande importância, atribuindo isto
de fato a estes ofícios e estudos?
80
Este artista que busca a imitação das formas eternas é apresentado, na
República, como paradigma na comparação com aqueles empenhados na
construção de uma sociedade ideal, evidenciando a intrínseca relação existente
80
Imagines praeterea litterarum sicubi vel in aquis vel in speculis appareant, non prius cognoscemus,
quam ipsas litteras noverimus. est enim hoc artis et exercitationis eiusdem. [...] Quorsum haec
inquam? nempe eadem ratione neque musici prius erimus, vel nos vel ipsi quos ad urbis custodiam
erudimus, quam temperantiae species et fortitudinis et liberatitatis et magnificentiae, et quaecunque
harum sorores sunt, ipsisque contraria cognoverimus, ubicunque insint: ita ut et haec et ipsorum
imagines, quibuscunque insunt, persentiamus; neque in parvis neque in magnis contempserimus,
sed eiusdem esse putaverimus et artis et studii?
95
entre a ética e a estética no pensamento platônico. Na conclusão desta analogia,
Sócrates afirma que “uma cidade será feliz na medida em que seu plano for
traçado por artistas que se baseiam em modelos divinos.” (República, 500e).
81
A questão sobre como ser capaz de representar ou, para usar um termo
mais platônico, imitar, a verdadeira essência das coisas, ganha para o artista
então uma importância fundamental. Lembremos novamente que na carta
endereçada a Giovanni Battista Doni, datada de 22 de outubro de 1633,
Monteverdi descreve seus esforços na elaboração de um tratado sobre a seconda
pratica sinalizando o papel central que o tema da conceituação platônica de
imitação exerce para este movimento. Para Monteverdi a aceitação do livro se
daria em função da capacidade que seu autor havia demonstrado possuir de fazer
a imitação que lhe teria sido revelada por Platão “por meio de uma obscura
chama”
82
. Sua busca por uma luz “quanto ao que devesse ser o imitador” pode tê-
lo levado a seguir a indicação Imitatores neque res ipsas intelligunt ne que faciunt
(imitadores nem compreendem a coisas em si e nem as criam) que remete à
seguinte passagem dos comentários de Ficino sobre o décimo livro da República.
Dentro de um contexto que fala da arte poética e o juízo que Platão faz de
Homero, Ficino explica a doutrina platônica fazendo as seguintes considerações:
Além disso, [Platão] demonstra que a perícia na imitação é, como
narramos, extremamente perigosa e ao mesmo tempo de grande utilidade
e serventia. Os imitadores nem compreendem as coisas em si, nem as
fazem. Seguem as formas comumente perceptíveis pelos sentidos, sendo
tomados por estas opiniões, referindo-se a uma certa imagem, e afetados
pelas perturbações dos sentidos, sem nenhuma razão em seus juízos.
83
81
non aliter civitatem fore beatam, quam si eamn, pictores forment qui divino utuntur exemplo.
82
Cf. p. 75
83
Probat autem imitandi peritiam esse, ut narravimus valde periculosam praeterea servilem atque
utilissimam. Siquidem imitatores neque res ipsas intelligunt neque faciunt, sed apparentes sensibus
rerum formas sequuti, vulgaresque; de his opiniones ancupati, et imagines quasdam referunt, et
sensibus perturbationibusque obsequuntur, nulla rationis habita ratione.
96
As palavras cautelosas com que Monteverdi se refere à sua capacidade de
entender e pôr em prática o conceito de imitação apreendido de Platão, parecem
estar em sintonia com estas admoestações quanto aos perigos eminentes à
imitação mal feita. As referências às dificuldades encontradas na apreensão do
conceito e utilização da imitação platônica evidenciam que Monteverdi não
tratasse de outro tipo de imitação, a não ser aquela que busca manifestar as
formas eternas que, através da dialética podem ser apreendidas.
Investigaremos a seguir os mecanismos através dos quais a dialética
opera como ferramenta na revelação da essência seja das coisas em si, como das
idéias contidas na oratio, elemento dominante da nossa melodia.
4.4. A dialética platônica e seus mecanismos
Seguindo a indicação dialecticae officium quod (qual o ofício da
dialética) somos levados à seguinte passagem já citada do Sofista (253d):
Dividir por gêneros e não tomar a mesma espécie por espécies diferentes,
e o inverso, espécies diferentes pela mesma: não dizemos ser essa a
função da dialética?[...] Então, quem for capaz de distinguir uma idéia
única em muitas espalhadas, e muitas diferentes entre si, porém
abrangidas por outra mais ampla, e, de novo, uma idéia apenas que se
estende por muitas outras, todas elas ligadas a uma unidade; e também
muitas inteiramente isoladas ou separadas: eis o que se chama a arte de
distinguir os neros, conforme a capacidade de se combinarem ou de
não combinarem. [...] Porém tenho certeza de que não atribuirás essa
capacidade dialética senão a quem souber filosofar com pureza e
legitimidade.
84
84
Per genera dividere, et neque eandem speciem alteram putare neque alteram rursus eandem
esse, none dialecticae officium esse dicemus? [...] Quicunque hoc agere potest, unam ideam per
multa, unoquoque seorsum posito, passim porrectam acute persentit: et multas quae diversae interse
sunt extrinsecus sub comprehensas: et unam rursus per tota illa, quae multa sunt, ad unam
copulatam, et multas seorsum undique distinctas. Hoc autem est per genus discernere qua singula
communicare vicissim possunt et qua non possunt. [...] At vero dialecticum opus haud alteri dabis, ut
arbitror, quam pure legitimeque philosophanti.
97
Essa descrição aponta para a existência de dois processos que estariam na base
do processo dialético: o da síntese e o da análise aplicados ao raciocínio e à
própria percepção das coisas. Estes processos o assim descritos no Fedro
(265d):
O primeiro [princípio] é aquele pelo qual agrupamos em uma única forma o
que se encontra espalhado em uma pluralidade. [...] O outro princípio é,
pelo contrário, aquele que nos permitir dividir em formas, seguindo
objetivamente as articulações, não tentando quebrar qualquer pedaço
como faria um mau cozinheiro.
85
Lembremos que através do índice de Grynaeus chegamos à concepção
que estabelece que “a copulação [combinação] de nomes é evidentemente a
substância da oração”
86
. No Sofista (259e) esta idéia é reforçada com a seguinte
afirmação:
Aniquilamos completamente o discurso se segregamos cada coisa do
todo. O discurso se constitui na copulação [combinação] das espécies [ou
idéias].
87
Se quisermos revelar portanto a essência da oratio, faz-se necessário que
sejamos capazes de identificar o modo pelo qual se essa de specierum copula,
ou modo como as idéias se relacionam. O trecho do Sofista (254c a 259e) que
segue à definição do ofício da dialética indica o modus operandi dessa
combinação das idéias, a partir de uma investigação apenas das idéias mais
fundamentais assim proposta:
vamos prosseguir nossa discussão investigando, não todas as formas ou
idéias, para que não nos confundamos em sua multiplicidade, mas apenas
algumas, selecionado-as entre que são consideradas mais importantes.
88
85
Ut in unam ideam conspiciens, passim dispersa conducat: quo singula definiens, manifestum
reddat semper id, de quo agitur [...] Ut rursus secundum species articulatim pro rerum natura incidat:
neque imperiti coqui ritu ulla membra confringat.
86
Nominum quippe copulationem orationis esse substantiam. (Teetetus 206d)
87
Omnis penitus oratio deletur, si unumquodque ab omnibus segregetur. Nam propter mutuam
specierum copulam oratio constitit.
98
Somos então informados que as idéias se combinam através de cinco idéias
primordiais, assim designadas por Ficino no capítulo 34 de seu Commentaria in
Platonis Sophistam (ALLEN, 1989, p. 255)
89
:
As predicações [...] são agrupadas em cinco classes mais universais
conhecidas apenas pelos platonistas: essência, movimento, repouso, o
mesmo, e o outro (ou identidade e alteridade). São chamadas de
elementos e classes universais do ser: elementos pois o ser primaz ou
qualquer outro ser é por elas produzido; classes porque são atribuídas de
maneira geral a todas coisas.
90
Em seu estudo The Five Classes of Being, Michael Allen (1987, p. 54-
55) esclarece que na tradição neo-platônica,
as classes [universais] não são Idéias Platônicas [...], ao invés disso
parecem ser modos de relacionamento que concernem todas Idéias que
coletivamente constituem o âmbito da Mente e, portanto, modos de
relacionamento entre cada uma e todas as Idéias. Elas nos permitem
compreender como as Idéias estão associadas mutuamente e como cada
uma existe no que diz respeito tanto a si mesma quanto às outras
91
.
São portanto as cinco classes universais que nos tornam capazes de “não tomar a
mesma espécie por espécies diferentes, e o inverso, espécies diferentes pela
mesma”. Através delas, enquanto forças que atuam sobre a specierum copula,
podemos “distinguir uma idéia única em muitas espalhadas, e muitas diferentes
entre si, porém abrangidas por outra mais ampla”, realizando um dos processos
da função dialética, a síntese. Graças a elas, também somos capazes de separar,
88
Non de omnibus species inquam, ne multitudine confundamur, verum quasdam ex maximis
eligentes.
89
As classes são apresentadas e discutidas por Platão no Sofista entre 254c e 259e. Ao longo deste
trecho, as cinco classes são consideradas em separada e em pares. Optamos por apresentá-las
através dos comentários de Ficino, em função da dificuldade em extrair do texto platônico uma
passagem que com brevidade pudesse nos servir como referência quanto à sua conceituação.
90
Praedicamenta [...] in amplíssima quinque genera solis nota Platonicis coliguntur: essentia
videlicet, motum, statum, idem, alterum (sive identitatem atque alteritatem) [...] Appellantur haec
elementa universi entis atque genera: elementa quidem quoniam genera ens primum et quodlibet
ens ex his conflatur; genera vero quoniam generatim de omnibus praedicantur.
91
ALLEN. The Five Classes of Being. pp. 54-55.
99
em processo analítico, as idéias que se distinguem, “seguindo objetivamente as
articulações”. Estão portanto as cinco classes universais na base dos processos
pelos quais a dialética opera. São elas que estabelecem o modo como as idéias
se associam mutuamente e o papel que cada uma exerce no todo de uma oração.
Vimos que o modo como as idéias se combinam num discurso (oratio)
foi comparado por Platão em três diálogos cronologicamente próximos, Teeteto,
Filebo e Sofista, à maneira como os sons se combinam através da harmonia.
Todas essas comparações revelam basicamente um mesmo sentido que pode ser
resumido nas afirmações do Estrangeiro de Eléia no Sofista para quem o
pensamento (cogitatio) ou discurso (oratio) “deve sua existência à combinação e
mistura das idéias” (259e), portanto o filosofo, através do domínio da dialética,
deve “saber distinguir, através das classes, de que forma cada uma e as várias
existentes podem ou não se combinar” (253e), assim como “possuir a arte de
reconhecer os sons que podem ou não se combinar é o métier do sico” (253e).
Ainda que esta comparação se apenas como uma analogia, estas passagens
indicam a combinação, entre as idéias no discurso, e entre os sons na harmonia,
como elemento comum a estes dois componentes da melodia platônica.
Nas análises musicais que apresentamos a seguir, as cinco classes
universais o usadas para revelar o modo de organização das idéias no discurso
poético dos trechos selecionados de monodia dramática da seconda pratica. Essa
combinação de idéias, specierum copula, é em seguida sobreposta à progressão
das tríades tal qual se dá na composição musical dos mesmos trechos.
101
5.
CAPÍTULO IV - DIALÉTICA E HARMONIA
5.1. Relacionando a dialética platônica com a harmônia
A necessidade de buscar fora da própria harmonia o sentido que a
impulsione é discutida na Dichiaratione para além dos argumentos que remetiam a
Platão. Para tanto, seu autor cita o mesmo Zarlino cujas regras Artusi acusa
Monteverdi de infringir:
o reverendo Zarlino concede com estas palavras: “se pegarmos a simples
harmonia sem acrescentar-lhe nenhuma outra coisa, não terá poder algum
de fazer algum efeito extrínseco”, acrescentando mais abaixo, “dispõe, a
um certo modo, intrinsecamente à alegria, ou também à tristeza, mas não
induz, porém, a exprimir algum efeito extrínseco”.
Em outro momento de sua argumentação ele considera que, se separadas da
palavra, as obras musicais “cuja harmonia serve exatamente à sua oração, [...]
ficariam como corpos sem alma”. Ambas as considerações, ao mesmo tempo em
que atestam a crença na força da palavra, apontam também para uma diferença
fundamental entre oração e harmonia. Enquanto as palavras possuem significados
explícitos e se referem a uma infinidade de idéias, a harmonia é aparentemente
desprovida de significados e auto-referente. Vimos que a palavra, como parte
mínima da oração, é o signo de uma idéia. Não pode portanto fugir à função de
significar. Por outro lado, qual poder de significar pode ser atribuído à harmonia ou
aos seus elementos? O que pode significar a altura de um som? O que pode
significar um determinado acorde? Como então relacionar a oratio à harmonia
através do significado?
A doutrina do ethos associado ao modo tenta, como vimos, fazer uma
associação entre o significado e a harmonia, não de forma direta, mas através de
da correspondência com o afeto. O significado das palavras revela um afeto que,
de acordo com a tradição, está representado na organização dos acordes em
torno da ordem do modo. Um aspecto importante desta doutrina é que ela procura,
102
através da correspondência comum a um terceiro elemento, relacionar um todo da
oração a um todo da harmonia. A identificação deste todo da harmonia se
através de um conjunto de regras pré-determinadas baseadas sobretudo na
tradição. Da mesma maneira, também a correspondência entre este todo e o afeto
se baseia na tradição. Em relação à oração, para que esta estabeleça uma
correspondência com um afeto, deve-se designar um único afeto que se
correspondido à oração considerada no seu todo.
A dialética platônica por outro lado, sustenta que a essência da oração
não está em um todo e nem tão pouco no isolamento de suas partes, mas sim nas
relações que se estabelecem entre as partes entre si e entre elas e o todo. Ao
explicar a doutrina platônica expressa no Sofista, Ficino deixa claro (ALLEN, 1989,
p. 255) que não apenas o discurso, mas quodlibet ens (todo e qualquer ser) toma
forma pela combinação dos quinque genera entis (cinco classes do ser), o que
inclui portanto a harmonia. Mais do que apenas ser incluída, a harmonia musical,
enquanto resultado da combinação dos sons em relação à sua altura, é citada
como paradigma do tipo de relação existente entre as partes na constituão daquilo
que é. As cinco classes do ser atuam portanto na composição seja da oratio, seja
da harmonia.
Sabemos que na oratio o que se combinam são as idéias, ou espécies,
que são representadas pelos nomes, considerados como suas partes mínimas. Na
harmonia, este papel de parte mínima pode ser atribuído às alturas
92
. Da
combinação de sons simultâneos resulta o que chamaremos de acorde
93
.
92
Entendem-se alturas como sons que possuem alturas definidas. Este conceito, equivalente ao
tone ou pitch em inglês, não possue termo próprio na língua portuguesa.
93
Tradicionalmente entende-se por acorde a simultaneidade de ao menos três alturas. Poderíamos
usar o termo consonância, que designa inclusive a simultaneidade de apenas duas alturas, mas no
contexto em que estamos aplicando, convém reservar este termo para ser aplicado como antônimo
de dissonância. Entenda-se então acorde como sendo o resultado da combinação simultânea de
dois ou mais sons com alturas definidas.
103
A principal característica de um acorde, justamente resultante da combinação de
suas partes mínimas, é o grau de consonância ou dissonância que se estabelece
entre as alturas nele representadas. Esta propriedade é determinada pelas
relações matemáticas existentes entre a freqüência destas alturas. Pela doutrina
platônica, a movimentação das consonâncias e dissonâncias tinha forte poder de
mover, por similaridade, o ânimo. Ficino, assim como Platão, destaca esta
capacidade da harmonia em diversas passagens de sua obra. Em uma carta
endereçada a Domenico Beniveni (traduzida para o italiano por Melis), Ficino
descreve os efeitos no ânimo produzidos por cada intervalo. Se tentarmos
associar a oração à harmonia através de suas partes mínimas, a saber, associar
as palavras às alturas (combinadas em acordes), nos colocamos porém diante de
um obstáculo. As palavras se sucedem na oração em uma linha temporal em que
cada elemento é apresentado a cada momento sem admitir simultaneidade. Este
ponto foi de grande importância nas críticas que fizeram Galilei e Mei à polifonia, e
que tiveram forte influência no ressurgimento da monodia dentro do contexto da
seconda pratica. Se associarmos uma altura a uma palavra, não será possível
combinar duas alturas sem que tenhamos duas palavras ocorrendo
simultaneamente na linha temporal na qual a oratio se desenrola. Por outro lado é
bom que se lembre que embora Platão estabeleça o nome como pars minima da
oração, ao exemplificar a maneira como as idéias se associam, nos coloca como
paradigma não a harmonia, como também a ortografia, que determina como as
letras se agrupam nos nomes. Sob este ponto de vista, podemos também
considerar que as letras são a parte mínima do nome e o nome a parte mínima do
discurso, da mesma forma que as alturas são a parte mínima do acorde, enquanto
os acordes são a parte mínima do discurso harmônico
94
. Mais importante do que
considerar qual a parte mínima, é considerar que, do mesmo modo que as alturas
94
Embora os termos italianos concento (consonância) e armonia (harmonia) sejam usados muitas
vezes como sinônimos, existe uma diferença segundo à qual poderia-se dizer que as alturas
compõem o concento, enquanto os acordes a harmonia. Esta distinção aparece por exemplo quando
Artusi afirma que sem concento não há harmonia, e sem harmonia não há melodia.
104
se associam na formação dos acordes, os acordes se associam em um
encadeamento harmônico. Este encadeamento harmônico segue, tal como a
palavra no discurso, uma unicidade temporal. Assim como o discurso pressupõe
que as palavras sejam verbalizadas uma de cada vez, também o encadeamento
harmônico não admite dois acordes simultâneos, a não ser quando do advento da
politonalidade. Dentro desta perspectiva, é significativo que o advento da monodia
dramática da seconda pratica tenha gerado também o surgimento da escrita do
discurso harmônico através da linguagem do baixo cifrado, na qual a sucessão
das tríades é tomada como base para a sua codificação.
Consideremos então como se manifestam no encadeamento harmônico
as cinco classes universais descritas por Platão no Sofista. É cil perceber que
movimento (motus), repouso (status), identidade e alteridade são condições
necessárias ao encadeamento harmônico. Para que haja encadeamento é preciso
que haja algum movimento, movimento este que se necessariamente uma
expressão da diferenciação (alteridade) existente entre dois acordes que se
sucedem. Quando não movimento, repouso. É também possível perceber o
papel importante que tem a identidade no discurso harmônico, quando por
exemplo se conclui uma cadência sobre um acorde idêntico ao que havia iniciado
o período. Além disso, existem inerentes ao encadeamento, relações de
proximidade e distanciamento entre certos acordes, que permitem a existência de
diferentes tipos de movimento. Do mesmo modo, o movimento que ocorre quando
se abandona uma idéia e se atinge outra, será diferente de outro que ocorre
quando da primeira idéia se atinge uma terceira idéia, a depender de como as
classes de identidade e alteridade se manifestam nas relações que existem entre
estas três idéias. Estaremos mais adiante examinando como a proximidade e o
distanciamento no encadeamento harmônico eram entendidos e tomavam forma
no contexto que circunda o surgimento da monodia dramática da seconda pratica.
Para o momento, é importante reconhecer que o encadeamento harmônico
mostra-se em teoria capaz de manifestar a riqueza e complexidade das relações
105
que se estabelecem entre as idéias (specierum copula) a partir da atuação
combinada das classes universais.
A este ponto é importante examinarmos em separado como a essentia
(essência) se manifesta na consideração que fazemos em torno da atuação das
cinco classes universais no encadeamento harmônico. Primeiramente lembremos
que o acorde foi tomado como elemento que se combina com seus pares e a partir
de cuja combinação se o encadeamento harmônico, em outras palavras, que o
acorde assumiu no encadeamento o papel que no discurso coube ao nome.
Entendamos então essência a partir da sua etimologia latina significando a
capacidade de ser (esse). Podemos dizer que um acorde manifesta o que ele é,
sem considerar a maneira como ele interage com os outros acordes, de duas
maneiras: a primeira é pela maneira peculiar que as consonâncias e dissonâncias
se manifestam na combinação das alturas que o compõem, e a segunda diz
respeito ao valor absoluto dessas alturas. Em outras palavras, a essência de um
acorde está tanto na sua composição intervalar, como na altura dos sons que o
compõem. Ao nos referirmos a tríades, como será o caso do acompanhamento
harmônico na monodia dramática, escrito na linguagem do baixo cifrado, podemos
falar por exemplo que a essência de uma tríade de Sol menor está tanto na sua
composição intervalar, que permite que designemos o acorde como menor, como
na altura de sua fundamental, que permite que a designemos como sendo uma
tríade de sol. Veremos adiante o papel que estes dois planos, nos quais a
essência de uma acorde se manifesta, têm na relação que se estabelece entre
oração e harmonia na monodia dramática da seconda pratica.
A dissonância ou consonância de um acorde foi, como sabemos, um
dos pontos geradores da controvérsia em torno da seconda pratica. Não restam
dúvidas que este tenha sido um recurso expressivo usado na seconda pratica
como forma de representação do conteúdo das palavras que se manifestam pela
música. Como propunha Vicentino, o compositor deve “dar alma àquelas
106
palavras, e com a Harmonia demonstrar as suas paixões, quando ásperas, e
quando doces, e quando alegres, e quando tristes, e segundo o seu argumento”.
Neste contexto, a dissonância era usada como expressão da aspereza, dureza ou
amargueza de certas palavras. O caso emblemático, amplamente discutido em
sua época, do uso de dissonâncias no Madrigal Cruda Amarilli demonstra
exemplarmente este uso. Em defesa de Monteverdi, L’Ottuso Academico
(ARTUSI, 1603) sustenta o uso de sétimas no lugar de oitavas como um recurso
expressivo a ser usado sobre palavras que efetivamente o justifiquem e pontua
quatro passagens deste uso em Il nono libro de madrigale a 5 (Veneza, 1599) de
Luca Marenzio, todas elas diretamente relacionadas às palavras que as
acompanham.
95
A resposta de Artusi a esta defesa do uso metafórico da
dissonância aponta contra o excessivo contraste empregado em tal uso, mas
admite que a dissonância era vista como expressão da amargueza:
Não é boa a comparação, devia comparar a oitava à quinta, ou desta a
uma [uníssono ?], ou a outra sexta, ou terça, e similares, que são o
mesmo sobre o mesmo filão de consonâncias; e não da mais perfeita
consonância que há, a uma dissonância, sua contrária; Não se faz
comparação do negro ao branco; do doce ao amargo; mas de uma coisa
doce a uma outra que seja mais o menos doce; e de uma amarga, a uma
outra que seja mais o menos amarga.
96
95
cosi in uece di settima ui ponghi l'ottaua, che ne la trarrà facilissima; & che cotal maniera di
comporre sij vsata da Moderni, per non empire il foglio eccouene l'essempio del Sig. Luca Marencio,
il quale secondo il solito suo, non uolendo restare ne confini poco meno, che prescritti di tal facoltà,
come che ciò alla grandezza del uiuacissimo suo intelletto fosse poco conueneuole, nell'ultimo suo
libro à cinque nel madrigale, che incomincia. E sò come in un punto; nella parola, Per le guancie [A
frase completa diz: e depois se espalhou sobre as bochechas o sangue] ; & nell'istesso madrigale
nella parola, Ascoso Langue, & nell'istesso libro ancora nel madrigale che incomincia. E cosi nel mio
parlare; sopra la parola, maggior durezza, et nella seconda parte, da i colpi mortali.
96
Non è buona comparatione douea far la comparatione dall'ottaua alla quinta, ò da questa all'una, ò
all'altra sesta, ouer terza, e simili, che sono sotto l'istesso capo di consonanze; e non dalla più
perfetta consonanza che ci sia, ad una dissonanza, sua contraria; Non si fa comparatione dal nero al
bianco; dal dolce all'amaro; ma da una cosa dolce ad un'altra, che sia, più ò meno dolce; & da una
amara, ad un'altra, che sia più, ò meno amara. (ARTUSI, 1603)
107
Ao situarmos as dissonâncias e consonâncias no nível da essência de
cada acorde, estamos sugerindo que o seu uso tenha sido um recurso empregado
nos casos em que estas qualidades pudessem expressar algum elemento
presente na essência da palavra que ao acorde está sendo associada. Também
estamos propondo dessa maneira que não tenha sido sob o plano das
consonâncias e dissonâncias que o specierum copula, constituidor da essência da
oratio, tenha encontrado manifestação no discurso harmônico.
Após considerarmos como as tríades se organizam na linguagem
harmônica da seconda pratica, veremos através de análises musicais de trechos
selecionados de monodia dramática da seconda pratica como esta dialética
platônica é capaz de revelar uma estrutura comum entre a organização do
discurso poético e o encadeamento das tríades indicadas pela linha de baixo
cifrado.
5.2. Disposição do campo harmônico em quintas
Vimos (Cf. p. 39) que Monteverdi não tinha a intenção de restabelecer
os princípios que regiam a harmonia da época de Platão. Pelo contrário, afirma
claramente que sua intenção de mostrar o que aprendera com os filósofos da
antiguidade se daria “por meio da nossa prática”. Também Peri (Cf. p. 84) diz
apresentar em sua Euridice “o que possa ser obtido da nossa música, para
acomodar-se à nossa fábula.” Se quisermos estabelecer um tipo de relação entre
a harmonia e a dialética platônica na seconda pratica, devemos, seguindo estas
indicações, procurar por parâmetros em relação à harmonia na própria prática
associada a este movimento.
Um dos aspectos importantes que devem ser considerados era a
conotação atribuída aos acidentes. Em um capítulo intitulado “Em qual maneira as
Harmonias se acomodam às respectivas palavras”, Zarlino (1558, IV, Cap. 32),
após considerações sobre a consonância dos intervalos, nos revela uma maneira
108
de considerar sinais de acidentes atribuindo-lhes certos valores expressivos per
se, independente de quais intervalos (harmônicos ou melódicos) estes venham a
acarretar no contexto em que estão inseridos.
Deve-se advertir que o motivo de exprimir tais efeitos não se atribui
somente às referidas consonâncias colocadas em tal maneira; mas se
atribui também aos Movimentos que fazem cantando as partes; os quais
são de dois tipos: Naturais e Acidentais. Os movimentos naturais são
aqueles que se fazem entre as cordas naturais da cantilena, onde não
intervém nenhum sinal, ou corda acidental; estes movimentos têm mais do
viril do que aqueles que se fazem por meio das cordas acidentais,
sinalizadas com tais sinais, as quais são verdadeiramente acidentais e têm
algo de lânguido; das quais nascem similarmente uma classe de intervalos
chamados Acidentais. Devemos notar que os primeiros movimentos
tornam a cantilena consideravelmente mais sonora e viril; e os segundos
mais doces e consideravelmente mais lânguidos. Por isto poderão os
primeiros servir aos primeiros efeitos e os segundos movimentos aos
outros; de maneira que, acompanhando os intervalos das consonâncias
maiores e menores, com os movimentos naturais e acidentais que fazem
as partes, e fazendo-se uso do juízo, imitar-se-ão as palavras com a bem
coordenada harmonia.
97
Este modo de pensar os acidentes, em sua essência mais absoluto do
que relativo, pode surpreender a quem por razões históricas se acostumou a
entender o campo harmônico como um ciclo de quintas que se encerra em si
mesmo cobrindo todas as tonalidades. Para Monteverdi e seus contemporâneos
entretanto, as extremidades do campo harmônico jamais se encontravam e
raramente ultrapassavam três bemóis de um lado e quatro sustenidos do outro. A
97
Si debbe auertire, che la cagione di esprimere simili effetti non si attribuisce solamente alle
predette consonanze poste in tal maniera: ma si attribuisce etiandio alli Mouimenti, che fanno
cantando le parti; li quali mouimenti sono di due sorti, cioè Naturali, et Accidentali. Li Naturali sono
quelli, che si fanno tra le chorde naturali della cantilena, oue non intrauiene alcun segno, o chorda
accidentale; et questi mouimenti hanno più del virile, che quelli, che si fanno col mezo delle chorde
accidentali, segnate con tali segni, i quali sono veramente accidentali, & hanno alquanto del
languido; da i quali nasce similmente vna sorte di interualli, chiamati Accidentali: ma dalli primi
nascono quelli interualli, che si chiamano Naturali. La onde douemo notare, che li primi mouimenti
fanno la cantilena alquanto piùsonora, & virile; & li secondi più dolce, & alquanto più languida. Per il
che li primi potranno seruire ad esprimere li primi effetti; & li secondi mouimenti potranno seruire a
gli altri; di maniera che accompagnando gli interualli delle maggiori, & delle minori consonanze, con
li mouimenti naturali, & accidentali, che fanno le parti, con qualche giuditio; si verrà ad imitare le
parole con la bene intesa harmonia. (In qual maniera le Harmonie si accommodino alle soggette
Parole. Cap. 32)
109
música, em sua quase totalidade, era escrita em apenas duas armaduras
possíveis: sem acidentes, chamada cantus durus, ou com um bemol, chamada
cantus mollis. Outros acidentes quando presentes eram designados por sinais
antecedendo as notas.
O fato de que esta terminologia daria origem às designações usadas
em alemão para os modos maior (dur) e menor (moll) não deve porém ser
interpretado como indicação de que os compositores polarizavam sua escrita
entre os modos iônico e eólio em detrimento dos demais. Segundo um estudo de
Dahlhaus (apud CHAFE, 1992, p. 23) sobre o significado dos termos moll e dur,
a relação lógica entre modo e transposição era inversa: até o século XVII a
transposição representava o gênero (Tongeschlechter), enquanto os
modos representavam as espécies (Tonarten). Desde então tratamos os
modos como gênero (o modo iônico como maior, e o lio como menor) e
a transposição como espécie.
A conseqüência do que Dahlhaus descreve é que, na prática, havia pouca
variação entre armaduras ou signatio (apenas acrescentava-se ou retirava-se um
bemol) e uma grande variedade de gêneros expressivos que eram obtidos através
da variação das finalis.
A relação entre alterações de sinais e alterações de afeto se torna mais
clara quando se considera outro aspecto importante da prática harmônica da
seconda pratica. Maria Rika Maniates (1979) e depois dela Eric Chafe apontam
para a existência no repertório associado a este movimento de um “espectro tonal
ordenado em quintas” (CHAFE, 1992, p. 26). Esta disposição em quintas pode ser
entendida como causa ou conseqüência de uma alteração (mutatio) que em ultima
análise significava a retirada ou acréscimo de um bemol ou um sustenido. Para
Maniates (1979, p. 184),
As “áreas tonais” sugeridas são, é claro o resultado do comportamento
natural da mutação do hexacorde. Todavia qualquer aluno de harmonia
barroca reconhece o esquema como equivalente à modulação através do
ciclo-das-quintas. Não importa que os teóricos do século XVI não falem em
110
modulação no sentido moderno. Ela existe na prática e os escritores [da
época] abordam esta realidade através da única ferramenta teórica que
lhes era disponível: a mutação do hexacorde. [...] As modulações por
quintas não podem operar na restrita moldura [framework] da modalidade.
Seu impulso harmônico pouco comum era claramente entendido pelos
músicos do século XVI como uma novidade na sonoridade.
Sobre esta novidade na sonoridade, um fator importante a ser levado em
consideração é que os sistemas de afinação de temperamento desigual, adotados
na época, implicavam numa real diferença intervalar entre por exemplo uma tríade
maior sobre Sol, e outra sobre de Mi bemol, ou ainda outra sobre Mi. Se no
temperamento igual podemos dizer que em relação à série harmônica todas as
quintas e terças maiores o igualmente desafinadas, nos sistemas de
temperamento desigual temos uma ‘região central’ na qual estes intervalos são
considerados puros ou mais puros por corresponderem à série harmônica. Ao nos
afastarmos dessa região a discrepância em relação à série harmônica se acentua
cada vez mais.
98
Não se admira então que explorar estas regiões tivesse para
estes compositores alguma conotação expressiva, como descreve Zarlino.
Para estabelecer uma relação entre o modo como na monodia
dramática da seconda pratica as palavras se associam na oratio e a escolha das
tríades a elas associadas por simples sincronicidade, nosso trabalho toma como
premissa as conclusões extraídas por Chafe e Maniates que apontam com
segurança para a existência neste repertório de uma organização do espectro em
torno de uma disposição em quintas. É a partir desta premissa que estabelecemos
a relativa proximidade entre duas tríades. Note-se que nesta consideração não
levamos em conta a concepção característica da harmonia tonal que implica uma
correspondência entre uma tríade e a sua relativa. Lembremos que este é um
conceito estranho à musica da época que estamos considerando. Desta forma, o
que é considerado para determinar a relativa proximidade de duas tríades é a
98
Maniates faz uma discussão aprofundada sobre as implicações dos sistemas de temperamento na
música do século XVI (Cf. MANIATES, 1979, Cap. IX, p. 133)
111
distância que se percorre entre as suas fundamentais através de uma sucessão
de quintas. Tomando-se um exemplo prático, entre palavras uma tríade maior
sobre Sol e outra menor sobre Mi, que na harmonia tonal seriam consideradas
relativas, consideramos que existe uma separação de dois acordes (Sol-Ré-Lá-
Mi). Por outro lado uma tríade maior e outra menor sobre a mesma fundamental
ocupam a mesma posição no espectro de acordes, embora possamos, sobretudo
quando esta mudança estiver acompanhada de uma alteração de signatio, atribuir
a esta alteração alguma implicação de caráter expressivo. Em termos da relação
que fazemos entre tríades e as cinco classes universais da dialética platônica (Cf.
p. 108) altera-se neste caso a essência do acorde, sem que se altere a relação
que este estabelece com seus pares. É bom lembrarmos que a escolha entre a
terça maior ou menor de uma tríade, a não ser quando a terça estivesse
representada na linha melódica ou especificamente indicada na cifra, era
considerada uma atribuição sobretudo do intérprete a quem cabia a realização do
baixo cifrado.
99
Baseados nas premissas aqui apresentadas e nos servindo do que
pudemos extrair sobre como a dialética platônica considera a oração,
prosseguiremos com a análise de trechos extraídos deste repertório.
99
(Cf. AGAZZARI, Del Sonare Sopra’l Basso, 1607)
113
6.
CAPÍTULO V - ANÁLISES
A escolha de Le Musiche Sopra L’Euridice (Peri , 1600) e L'Orfeo
Favola in Musica (Monteverdi, 1607) como objetos de nossa análise se explica
pelo que estas obras têm de exemplar do esforço de aproximação com a música
presumida das tragédias gregas, sobre as quais tratadistas e compositores do
Renascimento leram nas obras dos filósofos da antiguidade. Ao tratarem de um
mesmo tema, os autores dos libretos, Otavio Rinuccini e Alessandro Striggio
encontraram fórmulas distintas para organizarem seus discursos. Estaremos
investigando se essas fórmulas foram da alguma maneira seguidas na
organização harmônica dos respectivos trechos musicais. Antes porém é
importante investigar a escolha do tema de Orfeu, comum a essas duas obras, e
sua relação com o platonismo renascentista.
115
6.1. Orfeu no surgimento do melodrama renascentista e sua importância para o
platonismo
O interesse na redescoberta da cultura da Grécia Antiga foi uma das
forças que impulsionaram as transformações culturais que ocorreram na Europa
durante o Renascimento. Tal como o resgate do Platonismo fora fruto do esforço
de muitos humanistas que, através de traduções e comentários, tornaram a obra
de seus pensadores acessível aos cidadãos cultos da época, também houve, no
que tange à música, um processo de investigação das fontes disponíveis sobre a
prática musical e artística dos antigos gregos e romanos. A utilização da monodia
dramática como veículo para representação de histórias encenadas foi um
fenômeno surgido como conseqüência deste processo de investigação. Um grupo
formado por intelectuais e nobres que se reuniam na casa do conde Giovanni de’
Bardi em Florença teve um papel decisivo neste processo. Fomentados pelo
anfitrião, a quem Giulio Caccini dedica a publicação de sua L’Euridice composta in
musica (1600), vários membros da Camerata, como o grupo se denominava, se
mobilizaram seja na pesquisa das fontes antigas, seja na experimentação de uma
nova maneira de fazer música que se aproximasse àquela dos antigos. Entre eles
estava Vincenzo Galilei que, com a ajuda vinda de Roma de Girolamo Mei,
fornecia aos demais membros subsídios que pudessem orientá-los na
redescoberta ao menos parcial desta música dos antigos. Segundo Pietro Bardi,
filho do fomentador da Camerata,
[Galilei] via que um dos principais escopos desta academia fosse, com o
reencontro da musica antiga, na medida em que fosse possível se tratando
de matéria tão obscura, melhorar aquela moderna e levá-la a algum lugar
do estado miserável, no qual lhe haviam colocado principalmente os godos
[provavelmente uma referência ao estilo polifônico da escola franco-
flamenga], depois da perda dessa e de artes e ciências mais nobres.
100
100
vedeva questo grande ingegno che uno dei principali scopi di questa accademia era, col ritrovare
l'antica musica, quanto però fosse possibile in materia oscura, di migliorare la musica moderna, e
levarla in qualche parte dal misero stato, nel quale l'avevano messa principalmente i goti, dopo la
116
Assim como faz Peri (Cf. 84), também Otavvio Rinuccini, membro da
Camerata, deixa claro na dedicatória a Maria de Medici transcrita na primeira
edição do texto de sua Euridice (1600) que esta monodia dramática surge como
tentativa de produzir com a música moderna algo que se aproximasse à música
que presumiam estar presente na encenação das tragédias na antiguidade:
Foi opinião de muitos, Cristianíssima Rainha, que os antigos gregos e
romanos cantassem em cena as tragédias inteiras, mas tal nobre maneira
de recitar ainda que não renovada, nem mesmo que eu saiba tenha sido
até aqui tentada por alguém, acreditando eu que tal se devesse por defeito
da sica moderna mui largamente inferior à antiga. Tal pensamento feito
arrancou-me-o do ânimo o Sr. Jacopo Peri, que quando ouvira a intenção
do Sr. Iacopo Corsi [também membro da Camerata] e minha pôs com
tanta graça em notas a fábula de Dafne (por mim composta apenas para
fazer uma simples experiência daquilo que pudesse o canto da nossa
época) que agradou incrivelmente àqueles poucos que a ouviram.
101
Rinuccini nos relata ainda que, após esta bem sucedida primeira experiência,
juntou-se novamente a Peri no desafio de trazer à cena em um evento público, na
presença de “príncipes e signori da Itália e da França”, a fábula de Orfeu e
Eurídice posta em música. Sobre os mesmos versos de Rinuccini, Giulio Caccini
fez nova versão musical da fábula de Orfeu e Eurídice imprimindo-a antes do que
a versão de Peri fosse impressa, mas representando-a somente no ano seguinte.
Sete anos mais tarde, sempre a mesma fábula de Orfeu, contada agora nos
versos de Alessandro Striggio, seria o objeto da primeira incursão de Claudio
Monteverdi no gênero melodramático.
perdita di essa, e delle altre scienze e arti più nobili. (Lettera a Giovan Battista Doni. In SOLERTI,
1903, p.144.)
101
E stata opinione di molti, Cristianissima Regina, che gli antichi Greci e Romani cantassero sulle
scene le tragedie intere; ma nobil maniera di recitare nonché rinnovata, ma ne pur, che io sappia,
fin qui era stata tentata da alcuno, e ciò mi credev'io per difetto della musica moderna,di gran lunga
all'antica inferiore. Ma pensiero si fatto mi tolse interamente dall'animo M. Jacopo Peri : quando,
udito l' intenzione del signor Jacopo Corsi e mia, mise con tanta grazia sotto le note la favola di
Dafne (composta da me, solo per fare una semplice prova di quello che potesse il canto dell'età
nostra) che incredibilmente piacque a quei pochi che l'udirono.
117
Parece natural que, considerando a fama de excelente poeta e músico
deste personagem, os autores das primeiras obras neste gênero tenham sido
unânimes na decisão de, na expressão usada por Peri, fazer “ouvir o seu canto
através da pessoa de Orfeu”
102
. Existem ainda tanto na fábula narrada como no
próprio personagem, uma série de significações que devem ser consideradas se
quisermos entender com mais profundidade o que a escolha deste tema
representa. No que diz respeito à fabula, que se notar a existência de uma
longa tradição, estabelecida por Fulgentius no culo VI
103
e depois repetida por
diversos autores incluindo Giovanni Boccaccio (séc. XIV)
104
, que dá uma
interpretação alegórica ao movimento depreendido por Orfeu na busca e resgate
de sua amada das profundezas do reino dos mortos, a chamada catábase.
Segundo esta linha interpretativa baseada na etimologia dos nomes dos
personagens, Eurídice (Eur dike) representa na fábula o julgamento profundo
(profunda diiudicatio), enquanto Orfeu (Orea fone) significaria a voz excelente
(optima vox). Como exemplo do que seria esta sabedoria mais profunda a ser
resgatada, Fulgentius explica que em todas as artes ou ciências existem dois
estágios: assim como as crianças primeiramente aprendem o abecedário e depois
aprendem a ler, na oratória primeiro vem a oratória e depois a dialética, e na
música, primeiro a música, depois a influência dos astros (apotelemastice uma
referência à sica das esferas). Fulgentius segue sua explicação distinguindo a
retórica da dialética nos seguintes termos: “uma coisa é ser capaz da eloqüência
livre e desimpedida, outra é impor um controle rigoroso e constrito sobre a
investigação da verdade”
105
. A recuperação de Eurídice é entendida portanto
como a alegoria de um resgate de uma sabedoria não disponível no nível da
superfície, mas encontrada por aqueles que, tal como na catábase de Orfeu, a
102
udire il mio canto sotto la persona d’Orfeo. (PERI, 1600, Prefácio)
103
FULGENTIUS. Mythologiae. 3, 10.
104
BOCCACCIO. Genealogia Deorum. 5, 12.
105
aput rethores uero aliud est profusa et libero cursu effrenata loquacitas, aliud constricta
ueritatisque indagandae curiosa nexilitas.
118
buscam num nível mais profundo. Um resgate com o qual certamente aqueles que
se empenharam na redescoberta, e posterior difusão, da cultura da antiguidade
clássica podiam se identificar. Essa identificação é feita de forma explícita pelo
autor da mais importante versão da fábula de Orfeu a ser escrita no século XV.
Angelo Poliziano, ele mesmo tradutor de Platão para o latim, faz uso desta
alegoria para analtecer aquele que teria sido o principal responsável pelo
renascimento de uma parte importente desta cultura. Ao falar de Ficino, Poliziano
faz a seguinte imagem:
[Sua lira] resgatou das profundezas, com mais sucesso do que a lira de
Orfeu da Trácia, aquela que é, se não me engano, a verdadeira Eurídice,
isto é a sabedoria platônica com sua amplíssima capacidade de
entendimento.
106
Poliziano o foi o único autor a fazer esta associação entre Ficino e
Orfeu. Lorenzo de Medici, o Magnífico, descreve em seu poema De summo bonno
um encontro com Ficino com o qual trava discussões em torno da felicidade e da
ilusão de uma vida pastoral, dizendo-nos que ao ouvir sua voz e sua harmonia
quando fazia um passeio pelo campo pensara “que Orfeu ao mundo
retornasse”
107
. Para Warden (1982, p. 86),
a identificação entre Ficino e Orfeu poderia ser desqualificada como um
mero elogio literário [...] se não fosse tão recorrente em uma ampla
variedade de formas literárias e de contextos.
Warden cita ainda, entre outros exemplos, o busto de Ficino esculpido por Andrea
Ferruci disposto na igreja Santa Maria dei Fiori em Florença (Figura 2), na qual o
filósofo e latinista é retratado segurando um volume da obra de Platão tal como se
106
Longe felicior quam Thraciensis Orphei chitara veram (ni fallor) Eurydicen hoc est amplissimi
iudicii Platonicam sapietiam revocabit ab inferis. (Poliziano. apud WARDEN, 1982, p 86).
107
Erano gli orecchi alle parole intesi,/ quando una nuova voce a gli trasse,/ da più dolce armonia
legati et presi./ Pensai che Orpheo al mondo ritornasse.
119
tocasse uma lira, sobre cuja imagem Naldo Naldi escreveu: “Eu sou o Orfeu que
moveu com seu canto as florestas”.
108
Figura 2 - Andrea Ferruci, Busto de Ficino.
Igreja Santa Maria dei Fiori em Florença.
O mesmo Naldo Naldi que participou dos encontros da Academia promovidos por
Ficino e Cosimo Medici, é autor de um poema, referido por Warden, que traça uma
linha de reencarnações da alma de Orfeu na qual Homero teria herdado seus
dotes na canção, Pitágoras os ensinamentos éticos, Ennius a piedade, somente
encontrando novamente em Ficino a representação completa de todos estes
atributos em um único ser. Ficino, que traduziu uma série de hinos cuja autoria na
Grécia antiga era atribuída ao próprio Orfeu, os chamados Hinos Órficos, de fato
tocava uma lira e segundo relatos de seus companheiros da Academia deleitava
108
Orpheus hic ego sum, movi qui carmine silvas. (Naldo Naldi apud WARDEN, 1982, p. 87)
120
seus ouvintes com improvisações musicais sobre estes hinos aos quais atribuía
poderes místicos. Para Voss (in ALLEN, 2002, p. 232),
Nos hinos órficos Ficino encontrou veículos para o que ele denominou
magia natural, um processo que buscava trazer a alma humana ao
alinhamento com as harmonias celestes e em última estância com o
próprio Deus, embora dificilmente ele pudesse tornar isto explícito.
Esta utilização dos hinos órficos, cuja tradução Ficino jamais quis publicar, estava
em perfeita sintonia com a função, senão mágica, ao menos terapêutica que
Platão atribuía à harmonia musical (Cf. p. 83). Para a tradição neoplatônica a
importância de Orfeu era porém ainda maior do que faz supor esta revitalização
não apenas simbólica levada adiante por Ficino.
Um dos mais importantes pensadores do neoplatonismo, Proclus (Séc.
V) afirma na sua Theologia Platonica que “toda a filosofia grega é descendente da
iniciação mística de Orfeu”
109
. Para ele, os ensinamentos órficos teriam inspirado
Aglaophemus, que os teria repassado a Pitágoras, de quem Platão os teria
herdado. De fato, Platão cita Orfeu diretamente catorze vezes em seus diálogos e
em outras cinco vezes cita uma sabedoria dos antigos que parece condizer com
os escritos órficos. A crença numa linhagem de teólogos e pensadores que
ensinaram uma mesma verdade ou sabedoria mais profunda é retomada, segundo
Godwin (2007, p. 2), por Gemisthos Pletho, e depois repetida por Ficino em
diversas passagens. Numa delas (De christiana religione, 22) Ficino usa o termo
prisca theologia (teologia antiga ou primordial) para referir-se a esta linha
sucessória. Nas palavras de Celenza (in ALLEN, 2002, p. 85),
A prisca theologia de Ficino era a sua filosofia. Ele a via como sendo
guiada pela divina providência, um desdobramento gradual de uma visão
unitária que Deus escolheu revelar à humanidade para nosso benefício.
Embora houvesse alguma variação quanto aos nomes listados na composição
desta linhagem, o seguinte núcleo de pensadores da era pré-cristã sempre se
fazia presente: Hermes Trimegistus, Orfeu, Pitágoras e Platão. Algumas vezes,
109
Proclus Theologia Platonica (1, 5) citado em ALLEN. 1998, p. 120.
121
antes destes nomes eram citados Zoroastro e Moisés. Juntos eles haviam
estabelecido uma base de pensamento monoteísta que proclamava a imortalidade
da alma, e que seria reafirmada na encarnação do verbo manifestada pela vinda
do Cristo. Segundo Walker (1953, p.119),
os escritos órficos foram de suma importância [para os neo-platônicos] não
pelo seu contexto ou conteúdo mas porque reforçaram a crença na prisca
theologia que confirma a compatibilidade do Platonismo com o
Cristianismo. [...] Orfeu era um membro de especial eminência na
seqüência dos prisci theologi, pois seus outros aspectos, legendários e
históricos, aumentavam sua autoridade como teólogo e o conectavam a
atividades altamente valorizadas pelos Platonistas da Renascença.
Walker (Ibidem) faz uma avaliação da importância histórica da crença na prisca
theologia considerando que esta:
i) induziu a um tipo de Cristandade extremamente liberal, a uma ênfase
nas similaridades ao invés das diferenças entre as religiões [...]
ii) possibilitou que a filosofia pagã fosse aceita como parte histórica da
tradição cristã [...]
iii) ajudou a sobrevivência de formas inócuas dos deuses e heróis pagãos;
Ficino e Pico [della Mirandola] podiam com a consciência tranqüila cantar
hinos órficos a Urano ou Apolo.
iv) Influenciou fortemente a interpretação renascentista de Platão e dos
neoplatonistas. Em termos históricos Platão era considerado como
derivando de Moisés, e em termos teleológicos como levando-nos ao
caminho da revelação cristã. Este ponto de vista, não importa quanto
errôneo hoje nos pareça, proveu um enquadramento inteligível no qual um
dos mais enigmáticos e profundos de todos os filósofos [referindo-se a
Platão] podia ser encaixado.
As conclusões de Walker evidenciam tanto a importância da prisca theologia para
a aceitação e difusão do pensamento platônico como o papel destacado que Orfeu
nela exercia.
Ao investigarmos o surgimento da monodia dramática da seconda
pratica e sua relação com o platonismo renascentista, há que se considerar o que
o tema e o personagem de Orfeu significavam para os platonistas do
Renascimento. Estes identificavam em Orfeu, escolhido como motivo e porta voz
122
das primeiras obras nesta forma de expressão artística, um dos precursores de
uma linha pensamento da qual Platão se torna herdeiro e aperfeiçoador. Ao
mesmo tempo, na fábula que narra o resgate de Eurídice, podiam identificar a si
mesmos resgatando uma sabedoria mais profunda que por tantos anos estivera
como que soterrada e que tinha no próprio Orfeu um expoente.
123
6.2. Tu se’ morta
A transcrição desta ária, com os compassos numerados para mais fácil
referência, encontra-se no anexo (p. 189). Após a leitura desta análise,
recomenda-se a consulta ao arquivo com a animação sonorizada da relação
oratio/harmonia disponível no disco de dados (10.2, p. 207).
Iniciaremos nossas análises examinando a cena do segundo ato de
L’Orfeo: Favola in Musica (1607) de Monteverdi e Striggio que representa a reação
de Orfeo ao saber da morte de Euridice. Primeiramente consideraremos o texto
poético de Alessandro Striggio em sua disposição tal qual impressa na edição do
libreto publicada em 1607 e as indicações de signatio tais quais se encontram na
editio princeps da partitura (Quadro 5).
A cena corresponde ao momento que sucede o relato em que Silvia,
companheira de Euridice, narra a Orfeo os fatos que resultaram na morte de sua
amada. São as primeiras palavras de Orfeo, com exceção da expressão Ohime
exclamada durante o relato de Silvia, após receber a notícia. No texto de Striggio
a reação de Orfeo é de primeiramente confrontar-se com sua amada morta, para
em seguida afirmar sua intenção de buscá-la de volta e finalmente despedir-se
deste mundo. A mudança de atitude entre confrontar-se com sua amada morta e
engajar-se na sua recuperação corresponde à mudança de signatio indicada na
partitura, que curiosamente ocorre no meio da frase musical que manifesta a
terceira linha do poema.
124
Signatio Linhas Texto original / Texto em português
Mollis
*Durus
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Tu se' morta mia vita, ed io respiro?
Tu se' da me partita
Per mai più *non tornare, ed io rimango?
Nò, che se i versi alcuna cosa ponno,
N'andrò sicuro a' più profondi abissi
E, intenerito il cor del re de l'ombre,
Meco trarròtti a riveder le stelle:
O se ciò negherammi empio destino,
Rimarrò teco in compagnia di morte.
A dio terra, à dio cielo, e sole, à dio.
Mollis
Durus
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Tu estás morta minha vida e eu respiro?
Tu partiste de mim
Para não mais voltar, e eu permaneço?
Não, pois se os versos podem algo,
Vou com certeza aos mais profundos abismos,
E, enternecido o coração do rei das sombras,
Trar-te-ei comigo a rever as estrelas.
Ou se tal me negar o impiedoso destino,
Ficarei contigo na companhia da morte.
Adeus Terra, adeus céu, e Sol, adeus.
Quadro 5 – Tu se morta de Alessandro Striggio extraído de L’Orfeo (MONTEVERDI, 1607)
A opção poética de Striggio foi de enfatizar o contraste entre Orfeo vivo
e Euridice morta. Na oração de Orfeo as idéias se associam sobretudo através da
alteritatem (diferenciação) entre elas. Na primeira linha são estabelecidas duas
comparações. A primeira contrasta o estado de Euridice à sua importância para
Orfeo, que lhe confere as atribuições Morta e mia vita. Na segunda comparação,
Orfeo compara o estado de Euridice ao seu próprio (sei morta ed io respiro). A
segunda sentença (linhas 2 e 3) combina três verbos que indicam movimento ou
sua ausência: partir, voltar e permanecer. A oposição se estabelece entre os dois
verbos atribuídos a Euridice (partir e não voltar) e o verbo atribuído a Orfeo
125
(permanecer). Na partitura, a mudança de cantus mollis para cantus durus ocorre
no momento em que Orfeo, confrontado com esta situação, quando repete as
palavras mai piu e depois conclui mai piu non tornare (não mais voltar, linha 3), se
nega a aceitar a idéia de que Euridice não voltaria. Resolve-se então pela
empreitada de outros movimentos: primeiramente ir (linha 5) aos abismos
profundos, para então ou trazê-la de volta (linha 7), ou ficar com ela (linha 9) na
companhia da morte. O ponto decisivo entre estas duas opções será definido pela
alternativa entre o coração enternecido de Plutão (linha 6) e o destino impiedoso
(linha 8). A idéia de oposição domina o discurso no contraste entre os abismos
profundos de onde Orfeo irá resgatar sua amada (linha 5) e a perspectiva de
trazê-la de volta para rever as estrelas (linha 7). Também são opostas as idéias de
sol (linha 10) e sombras (linha 6), além de terra e céu (linha 10), e finalmente vida
(linha 1) e morte (linha 9).
Alessandro Striggio cria para Orfeo um discurso no qual as idéias estão
encadeadas através da oposição, alteritatem em sua forma mais pronunciada.
Existe uma forte percepção de simetria que se revela tanto no uso freqüentes de
antônimos ou idéias opostas, como na seqüência de apresentação dos verbos que
indicam o movimento. Esta seqüência é em si mesmo um movimento que
apresenta uma série de simetrias entre a situação vivida pela perda de Euridice e
o movimento de catábase a ser empreendido por Orfeo em seu resgate. Estas
simetrias podem ser visualizadas na seguinte representação gráfica (Quadro 6).
126
Sujeito Euridice Orfeo Orfeo Ambos
Verbos
1. partir
2. não voltar
3. ficar
4. Ir
5. voltar
6. ficar
Tempo
passado
para
sempre
presente
futuro
opção 1
futuro
opção 2
para
sempre
Situação Perda de Euridice
decisão de Orfeo
ponto de simetria
Catábase
Quadro 6 − Simetria dos verbos de movimento no texto da ária Tu sei morta.
Lembrando a imagem usada por Platão, esta seqüência de verbos indicados
parece funcionar como a urdidura de um tecido através da qual são entrelaçadas
as varias oposições dos nomes.
Passemos então a examinar que leitura pode ser feita do
encadeamento das tríades escolhidas por Monteverdi para acompanhar o texto de
Striggio. Para conhecermos a organização harmônica do trecho a ser analisado é
preciso identificar tanto as partes (tríades) que se relacionam entre si, como o todo
que elas formam (o espectro harmônico explorado). Assim, tomando como
pressuposto a organização do espectro harmônico a partir de seqüências de
quintas, determinamos sua extensão, examinando por onde caminha o baixo,
gerador das tríades. O todo resultante das partes é um espectro que tem como
limites, de um lado Si bemol, e do outro Mi, e percorre todos as notas entre estes
extremos (Si bemol, Fá, Dó, Sol, Ré, Lá, Mi). O centro desse espectro situa-se,
portanto, sobre Sol, e corresponde à primeira tríade do trecho. Em referência a
primeira tríade, portanto uma perfeita simetria no espectro que corresponde a
mais três acordes contíguos tanto na direção de quintas ascendentes (sustenidos)
como na direção de quintas descentes (bemóis).
127
Monteverdi parte do centro do espectro que vai utilizar (Sol) e progride
em quintas ascendentes em direção à extremidade sustenido do espectro (Mi)
enquanto Orfeo pronuncia as palavras Tu se’ morta mia vita. (compassos 1-4) Em
oposição a esta idéia, ed io respiro leva o baixo ao outro extremo (Si bemol,
compasso 5-6)) simetricamente oposto em relação ao centro. A mesma oposição
entre extremos se faz presente entre a idéia expressa com as palavras mai piu
non tornare (compasso 9) e sua posterior negação (no, no, compasso 10). Antes
disso, também as frases sei da me partita e io rimango são apresentadas em
lados opostos do espectro (Lá, compasso 8, e Dó, compasso 10), embora sem
uma simetria perfeita.
128
Figura 3 − Tu se’morta − Fácsimile da editio princeps
Fonte: MONTEVERDI, 1607.
129
Um movimento descendente do baixo e da voz acompanha a
determinação de Orfeo em buscar sua amada nos “abismos profundos”. Este
movimento (compasso 12), que indica o início da catábase, parte de Sol, a
referência inicial da cena, e, indo em direção ao lado bemol do espectro, atinge
(duas quintas além). É portanto um movimento simétrico àquele anteriormente
empreendido sobre as palavras sei da me partita, que do mesmo Sol, partira para
o lado oposto atingindo Lá (também duas quintas além).
A disposição de Orfeo a, se for preciso, permanecer com Euridice nos
reinos dos mortos é marcada por uma cadência que se conclui em (compasso
19). Sobre esta mesma tríade Orfeo concluíra a sua pergunta ed io rimango
(compasso 10). Duas idéias da mesma species, que indicam o sentido de
permanecer, são representadas por cadências que concluem sobre a mesma
tríade. À identitatem entre as idéias corresponde a identitatem entre as tríades.
Os últimos quatro compassos apresentam três cadências marcadas por
um movimento (motum) oscilatório entre os dois lados do espectro que marcam as
três despedidas de Orfeo. Estes movimentos cujo desenho pode ser observado na
Figura 4, parecem sugerir a hesitação de Orfeo que, decidido a partir para
resgatar Euridice, sente-se ainda atraído pelas forças que o prendem à vida na
terra. Observe-se que as duas primeiras despedidas, adio terra e adio cielo,
perfazem um movimento idêntico, porém partindo de notas diferentes. Este
mesmo desenho é repetido na última frase para o último adeus de Orfeo antes de
abandonar o mundo dos vivos.
130
Figura 4 – Relação entre tríades e texto na ária Tu sei morta.
Comparando as relações entre as palavras encontradas no texto de
Striggio com a relação entre as tríades apresentada na partitura de Monteverdi
(Figura 4), vemos que há uma marcada correspondência entre estas. Ao ordenar
as tríades em uma sucessão de quintas e representar as palavras que lhes
correspondem em uma tabela, temos como resultado um quadro que é capaz de
representar graficamente o specierum copula que se constitui, segundo Platão na
essência da oração. Tanto as relações de alteritatem entre as palavras como as
relações entre as indicações de movimentos sugeridos pelos verbos do poema
encontraram manifestação na disposição das tríades. A significados antônimos,
Monteverdi atribuiu tades simetricamente opostas em relação ao centro do
espectro harmônico por ele utilizado. Através de progressões em quintas
ascendentes ou descendentes representou alguns dos movimentos, sobretudo a
partida de Euridice e a catábase de Orfeo, sugeridos pelo texto. O encadeamento
131
das tríades exerceu uma função de representar, não o significado das idéias que
compõe a oração, mas a forma como essas idéias relacionam-se entre si e com o
todo do discurso. Este encadeamento está de tal forma conectado às relações
existentes entre as idéias do texto poético que, sem as palavras, ficaria “como
corpos sem alma”, como sugere o texto da Dichiaratione.
133
6.3. Non piango e non sospiro
A transcrição desta ária, com os compassos numerados para mais fácil
referência, encontra-se no anexo (p. 191). Após a leitura desta análise,
recomenda-se a consulta ao arquivo com a animação sonorizada da relação
oratio/harmonia disponível no disco de dados (10.2, p. 207).
As árias Non piango e non sospiro de Jacopo Peri e Tu sei morta de
Claudio Monteverdi correspondem ao mesmo momento dramático na trama de
Orfeo no qual está representada a sua reação à notícia da morte de Euridice. A
solução poética que Rinuccini apresenta é porém bastante distinta daquela
adotada anos mais tarde por Striggio.
Figura 5 – Texto da ária Non Piango e non sospiro
Fonte: RINUCCINI, 1600.
A editio princeps do libreto de Ottavio Rinuccini dispõe o texto da ária
Non piano e non sospiro em onzes linhas sem nenhuma divisão de estrofes. A
partitura de Peri indica uma mudança de signatio de cantus durus para cantus
mollis antes da oitava linha.
134
Signatio Linhas Texto original / Texto em português
Durus
Mollis
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
Non piango, e non sospiro
O mia cara Euridice
Che sospirar, che lagrimar non posso,
Cadavero infelice,
O mio core, o mia speme, o pace, o vita,
Ohimè chi mi t'ha tolto
Chi mi t'ha tolto, ohimè dove se' gita?
Tosto vedrai, ch'invano
Non chiamasti morendo il tuo consorte,
Non son, non son lontano
Io vengo, o cara vita, o cara morte.
Durus
Mollis
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
Não choro e não suspiro,
Oh minha cara Eurídice,
Pois suspirar, pois lagrimar não posso
Cadáver infeliz
Oh meu coração, minha esperança, oh paz, oh vida.
Oh infeliz, quem te tirou de mim?
Quem te tirou de mim, oh infeliz, por onde vagaste?
Logo verás que em vão
Não chamaste morrendo o teu consorte
Não, não estou longe
Eu venho, oh cara vida, oh cara morte.
Quadro 7 Non piango e non sospiro de Ottavio Rinuccini (RINUCCINI, 1607)
No poema de Rinuccini, a reação de Orfeo é a de identificar-se com o
corpo inanimado de Euridice, exatamente o contrário da solução de Striggio na
qual Orfeo vivo se contrasta com Euridice morta. Primeiramente, Orfeo descreve a
si mesmo como um cadáver infeliz (linha 4), incapaz de suspirar ou chorar (linha
1), pois se encontra destituído de sua amada. Em seguida, Orfeo sinais de sair
do estado de catatonia em que estava imerso (linhas 5 a 7). Esta mudança
(motus) é sinalizada pela diferenciação (alteritatem) entre o uso das expressões
non piango e non sospiro (linha 1) e a repetição da interjeição ohime (linhas 5 e 7)
135
que aponta para um estado de autocomiseração e inconformismo. A linha 6 que
separa estes dois estados é o momento em que Orfeo atribui a Eurídice os
seguintes vocativos “meu coração, minha esperança” “paz” e “vidasinalizando a
sua importância para ele. O primeiro sinal de inconformismo se demarca pela
repetição da indagação chi mi t’ha tolto (quem te tirou de mim, linhas 6 e 7). Nesta
indagação temos pela primeira vez um verbo que indica movimento, tirar ou
arrancar. Outra indagação, dove sei gita (por onde vagaste?, Linha 7), também
indica o movimento que representa a separação entre Euridice e Orfeo.
A partir deste ponto Orfeo decide-se por atender ao apelo de sua
amada e empreender a catábase em sua busca (linhas 8 a 11). O movimento de
catábase é indicado pelo uso da expressão verbal io vengo na última linha.
Curioso notar que ao invés de despedir-se, como na solução que seria depois
adotada por Striggio, Orfeo anuncia sua chegada eminente ao reino dos mortos
dirigindo-se a Euridice, o cara vita, e à cara morte como se sugerindo que lhe
aguardassem pois, como afirmara antes, não estava longe (non son lontano, linha
10).
Podemos perceber no poema de Rinuccini a indicação de três estados
de espírito ou afetos distintos que são atribuídos a Orfeo: um Orfeo catatônico;
que se sucede por um Orfeo dolente e inconformado; e finalmente um Orfeo
risoluto. Numa imagem cuja beleza reside na exploração de um paradoxo,
Rinuccini nos apresenta uma transformação (mutatio) na qual um cadáver infeliz
(linha 4) se ergue e se move decidido a abraçar sua cara morte (linha 11).
Passemos então a considerar a maneira pela qual Jacopo Peri
representa esta cena em termos do encadeamento das tríades que acompanha as
palavras de Orfeo.
136
Figura 6 - Non Piango e Non Sospiro.
Cena de Le Musiche Sopra l’Euridice de Jacopo Peri e Ottavio Rinuccini.
Fac-símile da primeira edição (Florença, 1600)
137
Assim como Monteverdi viria a fazer na ária Tu sei morta, Peri explora
um espectro harmônico que alcança de um lado Si bemol e no outro extremo Mi.
Note-se porém que a faixa central deste espectro, corresponde a Sol, não inicia e
nem conclui a ária, sendo porém bastante explorada em sua seção central. A
única mudança de signatio na partitura indica a passagem de cantus duris para
cantus mollis no compasso 18 que corresponde à linha 8 do poema na qual Orfeo
abandona o estado dolente e declara sua resolução de recuperar sua Euridice
empreendendo-se no movimento de catábase.
A habilidade de “discernir claramente uma forma espalhada em muitas,
e formas diferentes contidas numa forma maior” descrita no Sofista (253d) é
manifestada por Peri nas atribuições de tríades que faz às palavras ao longo da
ária. Logo em seu início, as expressões non piango e non sospiro são mantidas
sobre a mesma tríade de (compassos 1 e 2), ambas tomadas como indicação
do mesmo estado catatônico de Orfeo. Sob outra tríade de Lá, porém na primeira
inversão, inicia-se a palavra cadavero (compasso 6) que encerra o mesmo
sentido. A identitatem entre estas idéias marcada pelo uso da mesma região do
espectro delineia de forma clara o primeiro estado de ânimo demonstrado por
Orfeo. O mesmo recurso é empregado para delinear o seu segundo estado de
espírito ou afeto. As duas aparições da interjeição ohime, assim como a palavra
infelice são acompanhadas por tríades sobre Sol (compassos 10, 14 e 7,
respectivamente). Em ambas as interjeições ohime, temos a tríade de Sol menor
mostrando uma essência mais piedosa de autocomiseração, normalmente
associadas ao lado mollis de espectro. sobre a palavra infelice temos a
representação de Sol maior, sugerindo uma conotação mais dura ou dolorida.
Duas menções importantes a Euridice são relacionadas à faixa do
espectro sobre Ré: na primeira vez que seu nome é invocado (compasso 3, sobre
as palavras cara Euridice); e como ponto de partida para a pergunta dove sei gita
(por onde vagaste, compasso 15). Este movimento de afastamento de Euridice
138
progride em quintas ascendentes e conclui-se em Mi, (compasso 17) no extremo
sustenido do espectro, faixa sobre a qual ouvíramos anteriormente Orfeo chamá-la
de mio cor, mio speme, pace e vita (compassos 8 e 9). Temos então duas faixas
ocupadas por menções a Eurídice, e Mi. A progressão entre estas duas faixas
indicando o seu afastamento sugere como o lugar que Euridice ocupava ao
lado de Orfeo (centrado em Sol) e Mi como o lugar distante para onde ela teria ido.
A impressão de um lugar inalcançável é reforçada pelo fato de que a única
incursão de Orfeo nesse território (Mi) vem acompanhada das palavras non posso
(compasso 6).
Embora a sica não se inicie e nem conclua no centro do espectro
harmônico (em Sol), esta região adquire importância a partir da saída de Orfeo do
estado de cadavero que se encontrava anteriormente. Ali não apenas surgem
expressões de auto-piedade ohime mas também deste ponto se inicia uma
progressão de quintas descendentes consecutivas que indicam a resolução de
Orfeo de empreender a catábase para resgatar sua amada (compasso 18). Sobre
Sol se conclui também a cadência (compasso 22) em que Orfeo declara não estar
longe (non son lontano). A última tríade sobre Sol é ouvida quando Orfeo se
pronuncia como sujeito do verbo ir conjugado no tempo presente confirmando o
movimento de catábase e indicando a sua partida (io vengo, quarto tempo do
compasso 22).
Na Figura 6 estão dispostas todas as palavras do poema de Rinnucini
segundo a atribuição das tríades conferidas por Peri. Associando, através da
identitatem, as palavras colocadas em uma mesma coluna podemos observar a
diferenciação (alteritatem) estabelecida entre as regiões de Sol, , Lá e Mi,
conforme descrevemos há pouco. A região do espectro que cobre as faixas entre
Dó e Si bemol é explorada para indicar o movimento de catábase de Orfeo. A faixa
que corresponde a aparece como o destino final onde Orfeo, atendendo ao
139
chamado de sua amada irá reencontrar Euridice, sua vida, encontrando sua
própria morte.
Figura 7 – Relação entre tríades e texto na ária Non piango e non sospiro.
Analisando a ária de Peri em seu todo podemos afirmar que a escolha das tríades
estabeleceu uma série de relações de identidade entre as palavras que se
mostram coerentes com os seus significados. Ao fazê-lo, manifestou de forma
clara as duas principais mudanças de afeto sugeridas pelo poema: do Orfeo
catatônico, para o Orfeo centrado em sua dor e perda, e deste para o Orfeo
decidido e engajado no movimento de resgate de sua amada. Os encadeamentos
em seqüências de quintas foram usados para representar os movimentos
sugeridos pela idéia de afastamento de Eurídice e pela determinação de Orfeo
recuperá-la no reino dos mortos.
140
Comparando a organização harmônica das duas árias analisadas
vemos que cada uma delas esteve baseada em princípios diferentes. Na ária de
Monteverdi foi a alteridade entre as idéias que exerceu o papel de principal força
geradora da organização dos discursos poético e harmônico. Na ária de Peri este
papel foi exercido pela identidade entre as idéias que caracterizando diferentes
afetos revelou a mutação entre os afetos manifestados. Esta diferença de
abordagem foi coerente em ambos os casos com o modo em que os respectivos
discursos poéticos estavam organizados. Em ambas as árias houve a
representação dos movimentos sugeridos pelos verbos empregados no texto
poético.
Ambas, porém, seguiram as identificações e diferenciações das idéias,
bem como os movimentos dos estados de ânimo, conforme estes elementos eram
sugeridos pelo texto. Ao reforçar ou acrescentar identificações, diferenciações,
movimentos e repousos a essas idéias, a harmonia funcionou como um mapa de
relações entre elas, revelando a estrutura do discurso segundo a dialética
platônica baseada nas cinco classes universais. Dando materialidade a estas
relações, foi capaz de conduzir os ouvintes pelo percurso das concepções
artísticas elaboradas pelos compositores para a interpretação dos textos poéticos
que lhes serviram de inspiração. Se, como sustenta Zarlino e nos lembra Giulio
Cesare Monteverdi, a harmonia sozinhao é capaz de nenhum efeito extrínseco,
vemos aqui que, agindo como veículo para as possibilidades de combinação entre
as idéias emprestadas do texto, tem poder notável em termos da sua significação.
141
6.4. Ecco l’atra palude
A transcrição desta ária, com os compassos numerados para mais fácil
referência, encontra-se no anexo (p. 193). Após a leitura desta análise,
recomenda-se a consulta ao arquivo com a animação sonorizada da relação
oratio/harmonia disponível no disco de dados (10.2, p. 207).
O início do terceiro ato de L’Orfeo favola in musica de Monteverdi
representa, na versão da fábula de Orfeo contada por Striggio, a cena da entrada
do herói no reino dos mortos. Striggio usa o recurso de trazer junto a Orfeo e
como sua guia a Esperança (Speranza). Numa citação de grande efeito dramático
do canto III da Divina Comédia de Dante Alighieri, Speranza a lei inscrita sobre
a porta do palácio de Plutão que proíbe sua entrada com as seguintes palavras:
Lasciate ogni speranza voi chentrate
110
. Em obediência a esta lei, Speranza indica
a Orfeo que prossiga sozinho sem mais poder contar com a sua companhia. Este
é o contexto da ária Ecco l’atra palude cuja relação texto/harmonia passamos a
investigar.
O texto aparece na partitura com duas divergências em relação à editio
princeps do libreto. Na segunda linha o libreto diz spirti ignudi em ordem inversa
àquela da partitura, transcrita no Quadro 8, onde lemos ignudi spirti. Além disso
Monteverdi repete a linha na qual Speranza para Orfeo a lei que proíbe sua
entrada. Entre a primeira e a segunda leitura desta lei a partitura indica a mudança
de signatio de cantus mollis para cantus durus. A partitura da primeira edição traz
um erro de impressão deixando de assinalar um bemol na armadura no início do
último sistema. Tanto o contexto musical, no qual Si natural seria um corpo
estranho, como a mudança de signatio indicando cantus durus para a linha do
baixo mais adiante no mesmo sistema, indicam com segurança que se trata de um
erro de impressão e não uma real alteração de cantus.
110
Deixai toda esperança vós que entrais. (Canto III, linha 9)
142
Signatio Linhas Texto original / Texto em português
Mollis
Durus
Mollis
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
Ecco l'atra palude, ecco il nocchiero
Che trahe l'ignudi spirti a l'altra riva,
Dove ha Pluton de l'ombre il vasto impero.
Oltre quel nero stagn', oltre quel fiume,
In quei campi di pianto e di dolore,
Destin crudele ogni tuo ben t'asconde.
Hor d’uopo é d'un gran core e d'un bel canto.
Io fin qui t'ho condotto, or più non lice
Teco venir, ch'amara legge il vieta,
Legge iscritta col ferro in duro sasso
De l'ima reggia in su l'orribil soglia,
Che in queste note il fiero senso esprime:
"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate."
"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate."
Dunque, se stabilito hai pur nel core
Di porre il piè nella citta dolente,
Da te men fuggo e torno
A l'usato soggiorno.
Mollis
Durus
Mollis
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
Eis os pântanos tenebrosos, eis o timoneiro
que leva os espíritos desnudos à outra margem,
Onde Plutão tem das sombras o vasto império.
Para além daquele negro lago, além daquele rio,
Naqueles campos de pranto e de dor,
O destino cruel te esconde todos teus bens.
Agora te valem um grande coração e belo canto.
Eu até aqui te conduzi, agora não mais é lícito
Contigo vir, pois que a amarga lei o proíbe,
Lei inscrita com ferro em dura pedra
Do palácio profundo sobre a horrível soleira,
Que nestas letras exprime o sentido feroz:
“Deixai toda esperança, vós que entrais.”
“Deixai toda esperança, vós que entrais.”
Portanto, se tens certo no coração
De por os pés sobre a cidade dolente,
De ti me afasto e retorno
Ao costumaz retiro.
Quadro 8 Ecco l’atra palude de Alessandro Striggio (MONTEVERDI, 1607)
143
Considerando a função dramática do texto, podemos dividi-lo em cinco
partes distintas. A primeira delas corresponde à primeira sentença (linhas 1 a 3) e
tem a função de situar os personagens à margem do Aqueronte de onde o
barqueiro Caronte transporta os espíritos desencarnados ao outro lado. A segunda
parte (linhas 4 a 6), exprime a segunda sentença que descreve o que espera por
Orfeo do outro lado. Existe na construção dos versos uma simetria que reforça o
sentido destas funções e é indicada pela repetição na primeira linha da palavra
Ecco (eis) e pela repetição na quarta linha da palavra oltre (além). A terceira
sentença (linha 7) representa um conselho de Speranza a Orfeo: que ao chegar
ao reino de Plutão faça uso de um grande coração e de seus dotes musicais. A
quarta parte (linhas 8 a 14) corresponde à descrição do veto de entrada imposto à
Speranza. E a última parte (versos 15 a 17) indica a separação dos personagens
com o avanço de Orfeo em direção à citta dolente
111
.
Analisando a função de cada palavra dentro do sentido dramático da
cena, observamos que os verbos de movimento assim como outras palavras que
indicam algum tipo de referência espacial configuram uma estrutura sobre a qual o
texto se constrói.
112
Vejamos quais são estas palavras e verbos na ordem de suas
aparições: eis (linha 1), leva (linha 2), outra (linha 2), onde (linha 3), além (linha 4),
daquele (linha 4), naqueles (linha 5), aqui (linha 8), conduzi (linha 8), vir (linha 9),
deixai (linhas 13 e 14), entrais (linhas 13 e 14), por (linha 16), afasto (linha 17) e
retorno (linha 18). O resultado do emprego destas palavras no discurso é a
construção de um cenário espacialmente bem definido sobre o qual Speranza
indica os movimentos a serem e não serem realizados pelos personagens.
111
O uso desta expressão é também uma citação da Divina Coméida (Canto III, linha 1).
112
Calcagno (2003) chama a atenção para a importância dada a estas palavras, chamadas de
Zeigwörter (palavras que indicam) pelo lingüista Karl Bühler (1879-1963), pelos compositores e
poetas engajados no renascimento da tragédia cantada, e analise alguns exemplos do seu uso
extraídos do Orfeo (MONTEVERDI, 1607).
144
Figura 8 − Ecco l’atra palude − Fácsimile da editio princeps
Fonte: MONTEVERDI, 1607.
145
Vejamos então como esta cena se constrói no encadeamento
harmônico composto por Monteverdi. O espectro usado nesta ária vai de Mi bemol
a Mi natural. A ária se inicia e termina sobre Si bemol. No extremo moliis do
espectro (sobre Mi bemol) estão representadas a menção aos espíritos desnudos
que são trazidos pelo barqueiro Caronte (linha 2, compassos 3 e 4), a menção ao
grande coração de Orfeo que segundo Speranza lhe servirá em sua missão (linha
7, compasso 14 e 15), e a palavra dolente usada em referência ao reino dos
mortos (linha 16, compasso 31). No outro extremo, correspondente a Mi natural,
temos apenas a cadência que representa a segunda leitura da proibição de
entrada de Speranza (compassos 26-28). Monteverdi mantém-se sobre
durante a primeira linha do texto na qual Speranza mostra a Orfeo que ali estão o
pântano e barqueiro. Esta ausência de movimento reforça a idéia de indicação
espacial próxima sugerida pelo uso do vocábulo Ecco (eis). Ao falar do
movimento do barqueiro levando os espíritos à outra margem, temos um
movimento em forma de ziguezague de pequeno percurso, partindo de Si bemol,
alcançando a faixa contígua de Mi bemol, e retornando a Si bemol (compassos 3 e
4). A mudança para Dó assinala “onde Plutão tem [... seu] império” (compasso 5).
Ao falar da vastidão destes domínios, temos uma rápida seqüência de quintas
ascendentes (Dó, Sol, Ré, Lá, compassos 5 e 6) que chega quase ao limite do
espectro usado nesta ária, sugerindo que o “império” de “Plutão” (estas duas
palavras estão sobre tríades de maior) apenas se inicia naquele ponto se
estendendo amplamente na direção do extremo sustenido do espectro. Ao apontar
(além daquele rio, naqueles campos, compassos 7-9) em direção ao reino dos
mortos a harmonia se mantém como no início sobre um mesmo acorde, porém na
faixa seguinte em direção àquela que havia sido indicada como os domínios de
Plutão (Fá, contíguo ao Si bemol inicial na direção de Dó). Ao falar do pranto
daqueles que habitam (compasso 9) uma inflexão da melodia sobre um
baixo que se mantém em Fá, atingindo a notas de bemol e Si bemol, como
para reforçar o sentido lânguido deste pranto através da afetação dos intervalos
146
acidentais, tal como descreve Zarlino (Cf. p. 108). O verso que corresponde à
linha 5 (naqueles campos de pranto e dor) se conclui sobre Dó, dentro portanto
dos domínios de Plutão (compasso 10). Desta tríade há então um salto para Lá,
que sob a palavra destino aponta para o extremo sustenido do espectro como
direção a ser seguida por aqueles que adentram o reino dos mortos (compasso
11). O retorno a situa no império de Plutão o local onde os bens são
escondidos (linha 6, compasso 13).
Até este ponto, vemos que as palavras que indicam referências
espacias (eis, onde, além) situam-se no espectro harmônico mostrando uma
disposição coerente. A entrada do império de Plutão está situada sobre a faixa
correspondente a , além dos pântanos e campos (Fá) para quem se encontra
na margem anterior do Rio Aqueronte (Si bemol). O movimento de entrada no
reino dos mortos é apontado portanto no sentido do bemol ao sustenido, o mesmo
que aponta como o destino a ser seguido. A posição de limite atribuída a é
reforçada quando sobre este acorde Speranza se refere à “lei amarga que
proíbe”(compassos 17 e 18), à “soleira” (compasso 21) e às “letras que com
sentido feroz” (compassos 21 e 22) estabelecem a proibição de sua entrada.
Sobre também se conclui a frase a“até aqui eu te conduzi” (compasso 16)
cuja direção do movimento (bemol-sustenido) mostra-se coerente com a indicação
de como ponto de destino do caminho que Orfeo deve percorrer seguindo os
passos de Euridice. A frase non lice teco venir (não é lícito vir contigo, compassos
16 e 17) aponta para o sentido oposto (sustenido-bemol) indicando a direção do
caminho de volta a ser seguido por Speranza.
Temos então as duas leituras daquele que provavelmente é o verso
mais citado e conhecido da Divina Comédia, a lei escrita na porta do inferno:
“deixai toda esperança vós que entrais”. Esta frase está composta de dois verbos
que indicam movimento. O verbo deixar indica o afastamento de Speranza,
enquanto o verbo entrar indica o movimento daqueles que chegam ao reino dos
147
mortos. A escolha das tríades feita por Monteverdi inicia a primeira leitura da lei
(compassos 23 -25) sobre Ré, e indo diretamente a Si bemol, pulando portanto
sobre duas faixas do espectro, aponta com veemência a direção do afastamento
exigido de Speranza (sustenido-bemol), como se sugerindo o tom imperativo
indicado na conjugação verbal. A frase é concluída no sentido oposto (bemol-
sustenido) atingindo sobre a sílaba forte da palavra entrate. O efeito dramático
desta separação composta de dois movimentos de sentidos opostos é repetido
exatamente sobre o mesmo desenho harmônico porém partindo e concluindo em
Mi, o ponto extremo do espectro usado nesta ária (compassos 26-28). A volta de
Speranza a seu retiro costumaz (torno al’usato soggiorno) percorre o caminho de
Dó, da onde esta se afasta (da te me fuggo) em direção a Si bemol (compassos
32-24) onde a cena se iniciara (Ecco l’atra palude, compasso 1 ) .
Observando a relação entre as tríades usadas para acompanhar as
palavras, tomando como pressuposto que duas tríades separadas por uma quinta
são contíguas, podemos visualizar (Figura 8) a forma coerente como os as
palavras que indicam referência espacial e os movimentos, tanto do afastamento
de Speranza como da entrada no reino dos mortos, foram dispostos no
encadeamento harmônico.
148
Figura 9 - Relação entre tríades e texto na ária Ecco l’atra palude.
É interessante ressaltar a maneira como discurso harmônico funciona
como veículo da expressão do discurso poético. A partir de uma associação
baseada na simples sincronicidade entre uma indicação espacial e uma tríade
ouvida, recurso usado na primeira palavra pronunciada por Speranza, vão se
estabelecendo referências que, pela sua interação com outras referências
estabelecidas, vão progressivamente atribuindo significação ao discurso. Isto se
dá de tal modo que podemos falar em um único discurso, onde as palavras
ganham oralidade na harmonia, que adquire materialidade quando pronunciado,
sendo esta manifestação material uma leitura dialética feita pelo compositor que é
expressa entre outras coisas na relação entre as tríades. Se na primeira ária
analisada a alteridade (alteritatem) teve papel preponderante (Cf. 6.2) e em Non
149
piango e non sospiro a identificação (identitatem) entre Eurídice morta e o estado
de espírito de Orfeo serviu como ponto de partida para estabelecer as mudanças
(mutationis) de afetos do personagem (Cf. 6.3), em Ecco l’atra palude foram as
referências espaciais que serviram de apoio a construção de uma cena que indica
o momento de entrada do herói no reino dos mortos e a separação entre o herói e
aquela que lhe havia servido como guia, Speranza.
151
6.5. In un fiorito prato
A transcrição desta ária, com os compassos numerados para mais fácil
referência, encontra-se no anexo (p. 197Erro! Indicador o definido.). Após a
leitura desta análise, recomenda-se a consulta ao arquivo com a animação
sonorizada da relação oratio/harmonia disponível no disco de dados (10.2, p. 207).
Esta ária corresponde ao relato que Silvia faz a Orfeo dos
acontecimentos em torno da morte de Euridice. O texto aparece disposto na
edição do libreto em vinte linhas ( Quadro 9). Na partitura não nenhuma
alteração de signatio, permanecendo a indicação de cantus durus ao longo de
todo o trecho. Trata-se de um discurso narrativo em que os eventos são
apresentados por Silvia em ordem cronológica.
Podemos identificar sete momentos distintos neste relato, a saber: (1) o
que fazia Euridice (Linhas 1 a 4); (2) a picada que lhe desferiu uma cobra (linhas 5
a 7); (3) a reação fisiológica de Euridice ao veneno da picada (linhas 8 a 10); (4)
as inócuas tentativas de Silvia e suas companheiras no sentido de reanimá-la
(linhas 11 a 15); (5) o chamado final de Euridice a Orfeo (linhas 16 e 17); (6) sua
morte (linhas 18 e 19) e finalmente (7) a reação emocional de Silvia (linhas 19 e
20).
Ao longo de todo o relato o nome de Euridice não é mencionado. Ela
porém aparece como sujeito oculto das orações (indicado apenas pela conjugação
dos verbos na terceira pessoa do singular) em três eventos distintos: (1)
passeando para colher flores, (5) chamando pelo nome de Orfeo, e (6) morrendo.
Se por um lado Silvia parece evitar uma menção ao nome de sua amiga recém
falecida, por outro faz várias menções a partes de seu corpo: cabelos (linha 4)
113
,
113
Há nesta menção uma discrepância entre o texto impresso no libreto e aquele que consta da
partitura. O primeiro traz tue chiome (teus cabelos, cabelos portanto de Orfeo) enquanto o segundo
traz sue chiome (seus cabelos, cabelos de Euridice).
152
(linha 7), rosto (linha 9) e olhos (linhas 9 e 16). Somando-se estas menções às
referências ao dente da serpente (linha 7) e aos braços (linha 19) e coração (linha
20) da própria Silvia, o relato totaliza oito menções a partes do corpo.
Signatio Linhas Texto original / Texto em português
Durus
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
In un fiorito prato
con l'altre sue compagne
giva cogliendo fiori
per farne una ghirlanda a le tue chiome,
quando angue insidioso
ch'era fra l'erbe ascoso
le punse un piè con velenoso dente,
ed ecco immantinente
scolorirsi il bel viso e ne' suoi lumi
sparir que' lampi, ond'ella al sol fea scorno.
Allor noi tutte sbigottite e meste
le fummo intorno, richiamar tentando
gli spirti in lei smarriti
con l'onda fresca e coi possenti carmi;
ma nulla valse, ahi lassa,
ch'ella i languidi lumi alquanto aprendo,
e te chiamando Orfeo,
dopo un grave sospiro
spirò fra queste braccia, ed io rimasi
pieno il cor di pietade e di spavento.
Durus
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
Em um prado florido
Com suas outras companheiras
Caminhava colhendo flores
Para fazer uma guirlanda aos teus cabelos
Quando uma serpente insidiosa
Que estava na relva escondida
Picou-lhe um pé, com dente venenoso,
Então, imediatamente
Seu belo rosto se descoloriu, e de seus olhos
Desapareceram os raios que ao sol humilhavam.
Então, nós todas apavoradas e tristes
Pusemos-nos ao seu redor, tentando invocar
Os espíritos nela esvaídos
Com água fresca e poderosos encantos;
Mas tudo em vão, oh pobre,
Pois entreabrindo os olhos lânguidos,
E te chamando, Orfeo,
Após um grave suspiro,
Expirou nestes braços e eu fiquei
Tomado o coração de piedade e de espanto.
Quadro 9 – In un fiorito prato de Alessandro Striggio (MONTEVERDI, 1607)
153
Três verbos com sentido próximo, descolorir (linha 9), desaparecer
(linha 10) e esvair (linha 13), são usados para indicar o processo que, a despeito
dos esforços contrários de Silvia e demais companheiras, culmina na morte de
Euridice. Em constraste com esta idéia de desparecer e esvair, aparece o verbo
rimanere (ficar, permanecer, linha 19) tendo Silvia como sujeito. A ausência de
uma menção ao nome de Euridice, a profusão de referências a partes do corpo, e
o contraste entre o desvanecimento do espírito no corpo de Euridice e a
permanência de Silvia se combinam para criar no ouvinte do relato uma imagem
na qual Euridice se foi e o que permaneceu com Silvia e suas companheiras foi
apenas o seu corpo e o sentimento de piedade.
Considerando cada um dos sete momentos descritos no relato de
Silvia, os sujeitos das ações são os seguintes: Eurídice e as companheiras (seção
1), Euridice (5 e 6), a serpente (2), o rosto e o brilho dos olhos de Euridice (3),
Silvia e as companheiras (4) e Silvia (7). A Euridice são atribuídas a condição de
miséria (ahi lassa) e gravidade (dopo um grave sospiro). A serpente por sua vez é
referida como sendo insidiosa e venenosa (com velenoso dente). as
companheiras são descritas como apavoradas e tristes (linha 11), enquanto Silvia
declara ter ficado com o coração cheio de piedade e de espanto (linha 20).
Vejamos como o encadeamento harmônico escrito por Monteverdi relaciona os
sujeitos, as ações e os atributos que compõem este discurso narrativo.
O âmbito harmônico explorado na ária vai de Mi bemol a Si e contém
tríades sobre todas as outras sete notas que separam estes extremos. A ária se
inicia e se conclui sobre uma tríade de Ré. Esta é a região do espectro que é
explorada com maior freqüência nas referências a Euridice. Ali a música
permanece ao longo de todo o primeiro momento do relato (Euridice colhendo
flores, linhas 1 a 4,, compassos 1-6), desviando-se apenas brevemente para a
faixa contígua de Sol quando se menciona a palavra guirlanda. Em outros
momentos da ária Monteverdi retorna a sempre para referir-se a Euridice: na
154
exclamação de piedade proferida por Silvia em relação a sua amiga (ahi lassa,
linha 19), durante o seu suspiro final (linha 18, compasso 25), e no momento de
sua morte (spiro, linha 19, copasso 25). Ainda sobre se coloca a conclusão da
cadência que descreve o brilho que seus olhos costumavam ter (compasso 14) e
também o verbo que descreve a ação de entreabrir os olhos (aprendo, linha 16,
final do compasso 21) antes do chamado a Orfeo. A parte do relato que descreve
a picada da serpente (2) está, por sua vez, claramente centrada sobre Mi. Ao
mencionar a cobra insidiosa, a harmonia que aentão estava apoiada sobre Ré,
move-se com um salto, sem passar por Lá, para a região de Mi em torno da qual
premanece ao longo desta sessão (compasso 7). No início do relato as
companheiras e a noiva de Orfeo são mencionadas sobre uma tríade de Ré,
quando todas estavam envolvidas na mesma ação de colher flores (compassos 3
e 4). Após a picada, quando aquelas se engajam no esforço de tentar reanimar
Euridice, encontramos as expressões “nós, todas apavoradas” (noi tutte sbigottite,
linha 11, compasso 15) e “nos pusemos ao seu redor” (le fummo intorno, linha 12,
compasso 16), em referência a Silvia e as demais companheiras, dispostas sobre
uma tríade de Sol. Também sobre Sol, ao centro do espectro utilizado, estão os
braços de Silvia que acolhem Euridice na hora de sua morte (tra queste braccia,
linha 19,, final do compasso 25). Ao acompanhar as menções às companheiras
com tríades sobre Sol, Monteverdi as posiciona ao lado de Euridice (Ré contíguo a
Sol), exatamente como diz o texto “nos pusemos ao seu redor”. Note-se que as
referências à cobra que desfere a picada e às companheiras que se põem ao lado
da tima envenenada para tentar salvá-la encontram-se dispostas em lados
opostos do espectro em relação a Euridice (Mi e Sol opostos entre si em relação a
Ré). Esta mesma oposição se confirma sobre os extremos do espectro harmônico
com a presença de duas idéias contrárias representadas simetricamente, no lado
mollis pela palavra piedade (linha 20, Mi bemol no compasso 28) e no lado durus
pela palavra venenoso (linha 7, Si com baixo de Fá# no compasso 9).
155
A contigüidade entre Sol, sobre cuja tríade Silvia pronuncia as palavras
noi tutte sbigotite (nós todas apavoradas) e Ré, a região identificada com Euridice,
mostra coerência entre as escolhas das tríades e as indicações do texto (nos
pusemos ao seu redor), assim como o faz a disposição da serpente e das
companheiras em lados opostos do espectro em relação ao posicionamento de
Euridice. A coerência desta disposição se confirma quando Silvia relata o
momento exato da morte de Euridice. Na cadência que acompanha a frase spiro
tra queste braccia (expirou entre estes braços, compoasso 25), o verbo expirou
vem acompanhado por uma tríade de(região de Euridice) e a expressão ‘entre
estes braços’ com uma tríade de Sol (região de Silvia e companheiras).
Analisando alguns pares de idéias e considerando outras idéias que se
colocam entre estas duas é possível perceber a coerência entre a escolha das
tríades e as relações que estabelecem entre as idéias do discurso. Peguemos o
par formado por veneno (Si) e Euridice (Ré). Entre estas idéias se colocam
necessariamente o dente (Mi, compasso 9) e a picada (punse, sobre Lá no
compasso 8), exatamente como ocorre no encadeamento das tríades que
acompanham estas palavras (Entre Si e Ré, temos Mi e Lá). Peguemos o par
formado pelo sentimento de piedade (Mi bemol) e o veneno (Si). A relação entre
as duas idéias se estabelece através de Euridice (Ré), vítima da picada que, em
função disso, se torna objeto de piedade, e de Silvia e as companheiras (Sol) que
ao ver sua amiga sofrendo e depois morrendo são movidas por este sentimento.
Em outras palavras, o veneno (Si) atinge Eudice (Ré), cujo estado miserável (ahi
lassa), inspira em suas companheiras (Sol) o sentimento de piedade (Mi bemol).
Lembremos que na concepção platônica os sentimentos, assim como as idéias
têm uma existência que precede a sua manifestação no mundo material. Tal como
o veneno existe na cobra antes de chegar ao dente que, através da picada, o
insere no corpo de Euridice, também o sentimento de piedade tem uma pré-
existência e se manifesta em Silvia (e podemos supor nas companheiras), e
materializa-se na vocalização da interjeição de piedade ahi lassa. O diagrama
156
abaixo (Figura 10) permite uma visualização de como esta relação entre as idéias,
esta specierum copula, encontra manifestação na relação entre as tríades que
acompanham as suas vocalizações.
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
Figura 10 - Relação entre tríades e texto na ária In um fiorito prato.
Em termos dos movimentos em seqüência, podemos observar que
uma contrariedade de sentidos nos encadeamentos que acompanham as idéias
que descrevem o processo de morte de Euridice (partindo do sustenido em
157
direção ao bemol) e aqueles que acompanham os processos que se opõem à sua
partida (saindo do bemol em direção ao sustenido). Uma seqüência de quintas em
direção ao lado bemol do espectro (Sol-Dó-Fá-Si bemol, nos compassos 10, 11 e
12) é usada no trecho que corresponde às transformações decorridas da picada,
scolorir il bel viso (linha 9) e sparir quei lampi (linha 10). Também o suspiro final e
a morte de Euridice (grave sospiro, spiro tra queste braccia) aparecem como uma
seqüência de quintas neste mesmo sentido (Lá-Ré-Sol nos compassos 24 e 25).
No sentido contrário (bemol-sustenido), encontramos uma seqüência de segundas
ascendentes (Siibemol-Dó-Ré-Mi nos compassos 21 a 23) usada no momento que
narra como Euridice chamou pelo auxílio de Orfeo antes de sua morte (lumi
alquanto aprendo, e te chiamando Orfeo, Orfeo). Por sua vez, os esforços inócuos
das companheiras para tentar salvar Euridice aparecem sobre uma série de
movimentos não organizados em ambos os sentidos (compassos 15-20).
Finalmente, para acompanhar a forma verbal io rimase (eu fiquei) Monteverdi
mantém tanto o canto como o baixo sobre a mesma nota (Ré, na linha vocal sobre
a tríade de Si bemol nos compassos 26 e 27), reforçando pela ausência de
movimento o sentido de permanência expresso por Silvia.
A última frase do relato na qual Silvia descreve seu estado emocional
como um misto de piedade e de espanto (compassos 28 e 29) é representada
harmonicamente por uma cadência que parte de Mi bemol sobre a palavra
piedade e atinge maior sobre a palavra espanto, antes de resolver-se
concluindo a ária sobre uma tríade de Ré. A tríade de maior inserida num
contexto de Mi bemol soa de fato inesperada, sugerindo a idéia de espanto e
ressaltando a diferença entre sentimentos que embora não sejam opostos,
certamente são bastante contrastantes.
Vejamos agora como a escolha das tríades se relaciona às menções a
partes do corpo constantes do relato de Silvia. As duas menções, feitas em
momentos distintos do relato, aos olhos de Euridice (linha 9, compasso 12, e linha
158
16 compasso 21) estão acompanhadas de tríades sobre o mesmo Si bemol.
Simetricamente oposta a estas referências aos seus olhos, a uma distância
correspondente a seis faixas do espectro (sobre Mi), está a menção ao seu
(compasso 9), que por sua vez aparece na mesma faixa do espectro que
acompanha a menção ao dente da serpente, indicando o encontro entre estes. Os
braços de Silvia, como já vimos, aparecem sobre Sol, ao lado de Euridice e
acolhendo-a em sua morte. Finalmente, na frase il cor pieno di pietade e di
spavento (linha 20, compasso 27) a menção ao coração de Silvia é acompanhada
por uma tríade sobre a faixa do espectro onde se concentram as referências a sua
amiga morta (Ré).
Ao final do relato Sivia pronuncia o pronome pessoal Io (Eu, compasso
26) sobre uma tríade de Si bemol, sendo que anteriormente havia pronunciado o
pronome pessoal Noi (Nós, compasso 15 como antencipação) sobre uma tríade
de Sol. Esta mudança se após a morte de Eurídice, quando Silivia se diz
tomada pelo sentimento de piedade. Da mesma forma como as companheiras
após a picada colocam-se apavoradas ao lado de Eurídice para tentar salvá-la
(saindo de e posicionando-se em Sol), Silvia, após a morte de sua amiga,
quando qualquer esforço no sentido de socorrê-la seria em vão, se deixa tomar
pelo sentimento de piedade. Esta mudança de estado de ânimo é indicada por
uma mudança de posicionamento no espectro harmônico, saindo de Sol e
posicionando-se em Si bemol, na faixa contígua à menção da palavra piedade.
Para acompanhar este relato da série de eventos em torno da morte de
Euridice, Monteverdi cria um encademento harmônico no qual os extremos do
espectro utilizado são atingidos no momento que se manifestam de um lado a
idéia de piedade e do outro a idéia do veneno. Identificando uma mesma tríade a
várias referências a um mesmo sujeito, estabelecem-se faixas diferentes para os
personagens presentes no momento dos fatos ocorridos. O posicionamento dos
personagens (Euridice ao centro tendo a serpente do lado do veneno e as
159
companheiras do lado da piedade) bem como as alteraçôes neste posicionamento
mostram coerência seja com as indicações do texto, seja com a polarização do
espectro harmônico no eixo piedade-veneno. A oposição entre os lados do
espectro (bemol e sustenido) também é usada na diferenciação de partes do
corpo distantes entre si (olhos e pé), e de forças que se opõem mutuamente (a
morte de Euridice e os movimentos para evitá-la). Finalmente, chama a atenção a
forma como a posição relativa no espectro harmônico das idéias indicadas na
oratio representa a forma como estas idéias se relacionam entre si - lembremos
aqui o caso da relação entre as tríades que acompanham as idéias do veneno, do
dente da serpente, da picada e de Euridice. O encadeamento torna-se um veículo
expressivo capaz ressaltar os sentidos que resultam do intrelaçamento das idéias
às quais ele acompanha. Graças a habilidade de Monteverdi, a riqueza com que
se a specierum copula, essência que é da oração, encontra manifestação na
harmonia. Novamente, a relação entre as idéias (specierum copula) encontra
manifestação no encadeamento harmônico.
161
6.6. Funeste Piagge
A transcrição desta ária, com os compassos numerados para mais fácil
referência, encontra-se no anexo (p. 201). Após a leitura desta análise,
recomenda-se a consulta ao arquivo com a animação sonorizada da relação
oratio/harmonia disponível no disco de dados (10.2, p. 207).
Esta ária de Le Musiche sopra l’Euridice de Peri, corresponde ao
momento do drama em que, após penetrar o inferno, Orfeo se dirige aos seus
campos e aos espíritos desencarnados que ali habitam, pedindo-lhes que se
condoam com o seu pranto. O texto em versos rimados está disposto no libreto
em 30 linhas divididas em três estrofes. O refrão “Lagrimai ao meu pranto sombras
do inferno” sinaliza o final de cada estrofe (Quadro 10, linhas 10, 18 e 30).
Na primeira estrofe, Orfeo canta aos campos do inferno, descrevendo-
os como um lugar sem luz, pedindo-lhes que ressoem suas palavras e que os
espíritos se compadeçam do seu martírio (linhas 1 a 10). Na segunda estrofe, o
herói lamenta como a Morte apagou a luz que o aquecia deixando-o e com frio
(linhas 11 a 18). Na estrofe final, dirige-se a Euridice, imaginando como esta se
encontra e pedindo-lhe que se aqueça com o ardor dos seus lamentos.
Ao longo das três estrofes o discurso de Orfeo explora as idéias da
ausência e da presença de luz e calor. Na primeira estrofe (linhas 1 a 3) o inferno
é descrito como um lugar sombrio onde não alcança a luz do sol e das estrelas.
Na segunda estrofe, Orfeo compara a morte de Euridice no dia de seu casamento
a um crepúsculo que ocorre no momento da alvorada (linhas 11 e 12) e que, ao
apagar a chama que o aquecia, deixou-o frio e (linhas 14 e 15) como uma
serpente no inverno (linha 17). Chamando sua amada de luz dos seus olhos (linha
20), Orfeo faz na terceira estrofe uma analogia entre a vida e a chama de uma
brasa, ao desejar que, caso a chama de Euridice ainda não tenha se apagado por
162
completo (se scintilla ancor, linha 25), o ardor de seus lamentos venha a aquecer
o seio de sua amada (linha 26).
Signatio Linhas Texto original / Texto em português
Mollis
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Funeste piagge, ombrosi orridi campi,
Che di stelle o di sole
Non vedeste giammai scintille o lampi
Rimbombate dolenti
Al suon delle angosciose mie parole
Mentre con mesti accenti
Il perduto mio ben con voi sospiro.
E voi, deh, per pietà del mio martiro,
Che nel misero cor dimora eterno,
Lagrimate al mio pianto, ombre d'Inferno
Durus 11
12
13
14
15
16
17
18
Ohimè, Che sull'aurora
Giunse all'occaso il sol degli occhi miei.
Misero, e in su quell'ora
Che scaldarmi ai bei raggi io mi credei,
Morte spense il bel lume, e freddo e solo
Restai fra il pianto e il duolo,
Come angue suol in fredda piaggia il verno.
Lagrimate al mio pianto, ombre d'Inferno.
Durus 19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
E tu, mentre al Ciel piacque,
Luce di questi lumi,
Fatti al tuo dipartir fontane e fiumi,
Che fai per entro i tenebrosi orrori?
Forse t'affliggi e piagni
L’acerbo fato e gli infelici amori.
Deh, se scintilla ancora
Ti scalda il sen di quei sì cari ardori,
Senti mia vita, senti
Quai pianti e quai lamenti
Versa il tuo caro Orfeo dal cor interno
Lagrimate al mio pianto, ombre d'Inferno.
163
Mollis
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Oh praias funestas, campos sombrios e medonhos,
Que de estrelas ou sol,
Não víreis jamais centelhas ou brilho.
Ressoai dolentes
Ao som de minhas agoniadas palavras
Enquanto com acentos tristes
O meu bem perdido com vós suspiro.
E vós, por piedade do meu martírio,
Que no coração miserável reside eterno,
Lagrimai ao meu pranto, sombras do Inferno.
Durus 11
12
13
14
15
16
17
18
Ai de mim, que na aurora
Alcançou o ocaso o sol dos olhos meus.
Oh pobre, naquel’hora
Em que julgara aquecer-me aos belos raios
Morte apagou a bela chama, e frio e só
Fiquei entre o pranto e o sofrer,
Como a serpente sói em fria praia o inverno
Lagrimai ao meu pranto, sombras do Inferno.
Durus 19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
E tu, enquanto o Céu o quis,
Luz destes olhos,
Que se fizeram fontes e rios à sua partida,
Que fazes por entre tenebrosos horrores?
Talvez te aflijas e chores
O evento atroz e os amores infelizes.
Ah, se ainda centelha
Esquenta-te o peito com estes caros ardores.
Ouve mia vida, ouve
Quais prantos e quais lamentos
Derrama teu caro Orfeo do coração interno
Lagrimai ao meu pranto, sombras do Inferno.
Quadro 10 – Funeste piagge de Otavvio Rinuccini (RINUCCINI, 1600)
164
O encadeamento harmônico composto por Peri para acompanhar os
versos de Rinnucini cobre um espectro que vai de a Si, sendo que todas as
três estrofes iniciam-se e concluem-se sobre Sol. A sica inicia-se sob a
indicação de cantus mollis, passando a cantus durus no início da segunda estrofe.
O início da terceira estrofe, embora não indique nenhuma alteração de signatio, é
marcado por uma interrupção nas linhas do pentagrama e repetição das claves
reiterando a indicação de cantus durus.
A escolha das tríades sobre as quais as palavras são dispostas
estabelece em Sol uma região que concentra as idéias de ausência de luz e de
calor. Alí, nas praias funestas e campos sombrios (linha 1) do inferno, que jamais
viram a luz do sol ou das estrelas (linha 2), a cena se passa. A tríade de Sol
menor é mantida ao longo dos quatro primeiros compassos e até o compasso
nove a harmonia se afasta de Sol apenas brevemente (compassos 5, 6 e 9)
quando o baixo repete um movimento que se move para Lá e retorna a Sol
levando a harmonia para faixa contígua de (segunda inversão com sétima)
apenas quando Orfeo pronuncia as palavras scintille (centelhas), dolenti (dolentes)
e parole (palavras). Após cada uma destas breves incursões sobre a faixa
contígua em direção ao lado durus do espectro, a harmonia retorna a Sol, mas
sempre sobre uma tríade maior que é logo em seguida sucedida por outra de Sol
menor. Este movimento que cria uma breve aparição das notas sustenido
(como terça da tríade de Ré) e Si natural (como terça da tríade de Sol maior)
sugere dentro de um contexto em que a tríade Sol menor fora associada à idéia de
escuridão, um brilho que, tal como uma centelha, tem breve duração.
Primeiramente este movimento é associado à palavra centelha. Ao ser repetido,
para acompanhar os conceitos de dolenti (dolentes) e parole (palavras),
estabelece-se uma identificação entre estas três idéias. De fato, o texto revela o
desejo de Orfeo de que suas palavras ajam pela retórica como centelhas que aos
poucos venham a aquecer e iluminar pelo sentimento (de condolência) o frio e
escuro ambiente dos campos do inferno habitados pelas sombras. Ao apresentar
165
estas centelhas sobre uma tríade de Ré, Peri as situa justamente numa posição
intermediária entre a idéia dos escuros e frios campos do inferno (Sol) e a idéia do
calor e dos raios de sol que, como veremos, são apresentadas sobre Lá. Este
posicionamento de como região limítrofe entre a escuridão e a claridade é
confirmado pela escolha desta tríade para acompanhar a palavra aurora (linha 11,
compasso 23).
Figura 11- Relação entre tríades e texto na ária Funeste Piagge.
166
Ao dar voz a um discurso no qual a intenção de Orfeo é induzir por
simpatia, no sentido de participação em um mesmo pathos lembremos o refrão
“lagrimai ao meu pranto” e a expressão “ressoai dolentes” Peri opta por uma
disposição das idéias sobre as tríades que, ao invés de posicionar a escuridão e a
luz em extremos distantes no espectro harmônico, distingue-as separando-as
apenas por uma faixa intermediária na qual o limite entre a escuridão e a luz é
transpassado ou definido. O encadeamento harmônico que acompanha o refrão
(compassos 17-20, 38-41 e 67-70) mostra-se coerente com a intenção retórica de
Orfeo: lacrimate e pianto aparecem sobre uma mesma faixa (Ré) criando uma
identificação entre pranto de Orfeo e o verbo imperativo lagrimai; Orfeo
mencionado pelo pronome possessivo mio se situa sobre (região da luz); do
lado oposto (sobre ) aparecem as sombras (ombre) cujo sentimento de
condolência Orfeo prentende inspirar; enquanto a palavra inferno aparece sobre
Sol (região da escuridão).
Na segunda estrofe, além da menção à palavra aurora, temos também
sobre um encadeamento em que uma tríade de menor sucede
imediatamente outra de maior quando Orfeo pronuncia a palavra spense
(apagou, compasso 32). Nesta passagem Ré aparece novamente como limite
entre a luz e a escuridão sendo que o movimento de apagar é acompanhado na
harmonia pelo abaixamento da terça (Fá # para Fá, ou seja, do durus para o mollis
que no contexto estabelecido nesta ária indicam o sentido que parte da luz para a
escuridão). A palavra ocaso (compasso 24) não está disposta sobre a região onde
aparecem as outras idéias associadas a um limite entre a luz e a escuridão (Ré).
Ao invés disto, Peri a posiciona sobre Sol, região sombria do inferno, associando
em seguida o ocaso à idéia de morte, palavra que acompanha a próxima tríade
nesta região (compasso 31).
Podemos perceber o uso de regiões diferentes do espectro harmônico
para ressaltar as associações que existem entre as idéias que nelas se
167
manifestam. Sobre temos referências que se associam pela idéia de luz e
calor: sol dos olhos meus (linha 12, compasso 25, como antecipação), os raios
(linha 14, compasso 30), chama (linha 15, compasso 32), esquentar o seio (linha
26, compasso 58) e a sílaba forte da palavra ardores (linha 26, compasso 60).
Estas idéias se contrapõem às idéias de escuridão e frio concentradas sobre Sol:
sombrios (linha 1, compasso 2), o ver centelha ou brilho (linha 3, compasso 4),
fria (linha 17, compasso 37) e a resolução da cadência sobre a palavra inverno
(linha 17, compasso 38). Entre estas duas regiões (sobre Ré) temos, como
vimos, algumas idéias que se associam pela indicação de situações que exploram
o limite entre a luz e a escuridão: centelhas (linha 3), aurora (linha 11) e apagar
(linha 15). A região de Mi, por sua vez, concentra referências que indicam o
momento da morte de Euridice: in quell’ora (linha 13, compasso 28), tuo dipartir
(linha 21, compasso 46), e acerbo fatto (linha 24, compasso 52). Em relação aos
afetos, a região de Sol é usada para ressaltar a identificação entre as seguintes
idéias: funestas (linha 1, compasso 1), medonhos (orridi, linha 1, compasso 2),
agoniadas (angosciose, linha 5, compasso 9) e tristes (mesti, linha 6, compasso
10). a região de reúne e reforça a identidade entre as idéias de suspirar
(linha 7, compasso 12), pranto e lagrimar (no refrão, linhas 10, 18 e 30),
associando a estas também as idéias de dolente (linha 4, compasso 6) e martírio
(linha 8, compasso 14).
Em relação aos personagens, os versos de Rinuccini seguem uma
organização de acordo com as estrofes. A primeira estrofe foca o discurso em
torno do lugar onde a cena se passa o que é indicado pelo primeiro verso funeste
piagge ombrosi orridi campi”. A segunda estrofe centra-se em torno do próprio
Orfeo, conforme indica a interjeição ohime. Já a terceira, dirige-se a Euridice
chamando-a pelo pronome pessoal tu. Conforme dissemos todas as estrofes se
iniciam e concluem sobre Sol. Na primeira estrofe, não há movimento algum
durante quatro compassos e todas as cadências internas resolvem-se sobre Sol.
Na segunda estrofe, no primeiro compasso a música explora o lado durus do
168
espectro, atingindo Mi nas duas interjeições de autopiedade de Orfeo, ohime e
misero (compassos 21 e 27). Contrabalançando este movimento, a última estrofe
se inicia com um movimento em direção ao lado mollis do espectro atingindo
logo após Orfeo se referir a Euridice (compasso 43). Além de criar um equilíbrio de
movimentos, esta solução coloca os campos do inferno entre Orfeo e Euridice,
exatamente como ocorre neste momento do drama.
Ao mesmo tempo em que organiza as idéias do discurso de forma a
ressaltar as alterações e oposições que o texto manifesta nas constantes
referências às idéias da presença ou ausência de luz e calor, o encadeamento
harmônico composto por Peri é também capaz de realçar dois outros aspectos
importantes nos versos escritos por Rinuccini: a caracterização do ambiente onde
a cena se passa e a intenção retórica de Orfeo de sensibilizar aqueles que ali
habitam. O primeiro efeito é conseguido sobretudo por uma dosagem lenta e
gradual do movimento harmônico, que acompanhado pela recorrência de
cadências sobre uma mesma tríade, reforçam no ouvinte a idéia de inferno tal
como Dante o descreve usando a expressão l’eterno dolore
114
. Após associar Sol
ao verso funeste piagge, ombrosi orridi campia música permanece nesta região
do espectro por um longo período, para depois iniciar três breves incursões sobre
a faixa contígua, que soam mais como inflexões do que uma mudança de tríade, e
somente então realiza uma verdadeira passagem para a região de onde se
inicia o refrão que sempre nos conduz de volta a Sol. Mesmo quando, na segunda
e terceira estrofes, começa a afastar-se mais desta região a harmonia parte de Sol
e sobre esta região conclui também estas estrofes. Por outro lado, a solução
encontrada por Peri para o encadeamento que acompanha o refrão e a
associação feita na primeira estrofe entre as centelhas e as palavras de Orfeo dão
clara manifestação harmônica à intenção retórica do discurso do amante de
Euridice.
114
La Divina Comedia (III, 2).
169
7.
EPÍLOGO - UM RAIO DE FOGO COM DOIS PODERES
Até o presente momento o foram encontrados documentos
relacionados à seconda pratica que façam referências explícitas às cinco classes
universais descritas por Platão no Sofista. Tal fato pode ser um indício de que os
seguidores desta prática jamais tenham se aprofundado no estudo da dialética
platônica a ponto de se depararem com estes conceitos. Também é possível
considerar a hipótese de que tais documentos tenham existido, mas estariam
perdidos. Finalmente, pode ter ocorrido que, embora tivessem conhecimento da
importância das cinco classes universais como elemento ordenador da
organização das idéias na oratio, os cultores da seconda pratica tenham preferido
não revelar este conhecimento ou não registrá-lo. Neste último caso seria razoável
supor que houvesse algum motivo para que este conhecimento fosse mantido
reservado. A seguir veremos que existem elementos que justificariam uma
possível omissão premeditada desse tema.
115
Em seus comentários sobre o Sofista, Ficino esclarece que as cinco
classes universais são “conhecidas apenas pelos platonistas”
116
. Esta referência
alude a uma tradição que considera que o conhecimento dos mecanismos da
dialética deve ser adquirido paulatinamente. Nos diálogos de Platão existem várias
passagens que advertem quanto ao perigo de se expor este conhecimento
perante aqueles que não estão ainda capacitados para enxergar a sua verdade.
Uma dessas passagens encontra-se no trecho da República que apresenta a
alegoria da caverna. Como vimos anteriormente (Cf. p. 93) neste trecho crates
associa a dialética com o limite do visível alcançado pelo fugitivo da caverna.
Vejamos o que ele diz sobre o que ocorreria ao fugitivo se voltasse à caverna para
relatar o que vira:
115
Michael Allen (1998, p. 149-193) traz uma uma discussão aprofundada sobre este tema.
116
Quinque genera solis nota Platonicis colliguntur. (Cap. 34)
170
E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não
se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda
sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois
habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não faria que os
outros se rissem à sua custa e disessem que, tendo ido acima, voltou
com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a
alguém tentasse libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o
mataria, se pudesse fazê-lo? (República 517a)
117
Muitos comentadores enxergam nesta referência “uma óbvia alusão ao destino de
Sócrates”
118
. Sua morte estaria então associada para Platão à revelação incauta
dos segredos da dialética e seus mecanismos.
No Sofista (253d), quando descreve a combinação das idéias no
discurso, o Estrangeiro de Eléia faz a seguinte advertência: “não atribuirás essa
capacidade dialética senão a quem souber filosofar com pureza e legitimidade”
119
.
Em outra passagem da República (539a), fica claro que há precauções a serem
tomadas antes de expor alguém às revelações da dialética:
Sócrates Não é preciso que tomemos todas as precauções possíveis
antes de os consagrarmos à dialética? Glauco Com certeza. Sócrates
Bem, não é uma precaução importante impedi-los de tomar gosto à
dialética enquanto são novos? Deves ter percebido, penso, que os
adolescentes, depois de terem experimentado uma vez a dialética,
abusam e fazem dela um jogo. Utilizam-se dela para contestar a todo
momento e, imitando os que os refutam, por sua vez refutam os outros e
sentem prazer, como cãezinhos, em assediar e dilacerar com argumentos
todos os que deles se acercam.
120
117
Ac si umbras illas discernere oporteat, deque ipsis disceptare cure illis, qui perpetuis vinculis
pressi sunt, proferendaque sententia sit eo ipso in tempore, quo oculi ipsius hallucinantur, antequam
acies expurgetur, quod quidem non brevi fiet, an non risum concitabit? eique ab omnibus dedecori
dabitur. quod, postquam sursum ascendit, corruptis reversus est oculis? diceturque nunquam ad
supera contendendum esse, et eum, qui solvere tentet et sursum dacere, si deprehendatur, protinus
occidendum?
118
Notas do editor (PLATO e FOWLER, 1939).
119
At vero dialecticum opus haud alteri dabis, ut arbritor, quam pure legitimeque philosophanti.
120
An non haec prudens cautio est, ut eas videlicet juniores homines non attingant? neque enim te
latet, ut arbitror, quod, cum primum adolescentuli disputationis artificium gustant, eo protinus quasi
171
Esta recomendação de restringir a dialética apenas aos que tiverem maturidade
para fazerem bom uso dela é lembrada por Ficino no seu Comentário sobre
Parmênides (Cap. 35), logo após estender-se sobre a importância do seu
conhecimento: “Tanto no Philebus como na República, Platão nega-se a admitir o
acesso à dialética à turba de adolescentes, receoso de que se tornem mais
insolentes.
121
Os segredos da dialética estão associados, na tradição platônica, ao
fogo de Prometeus. No Filebo (16c), Sócrates fala do caminho seguido por Filebo
com as seguintes palavras:
Até onde o compreendo, trata-se de uma dádiva dos deuses para os
homens, jogada aqui para baixo por intermediário de algum Prometeu,
juntamente com um fogo de muito brilho. Os antigos, que eram melhores
do que nós e viviam mais perto dos deuses, nos conservaram essa
tradição: que tudo o que se diz existir provém do uno e do múltiplo e traz
consigo, por natureza, o finito e o infinito. Uma vez que tudo está
coordenado dessa maneira, precisamos procurar em todas as coisas sua
idéia peculiar, pois sem dúvida nenhuma a encontraremos. Depois dessa
primeira idéia, teremos de procurar mais duas, se houver duas, ou mais
três, ou qualquer outro número, procedendo assim com todas, até
chegarmos a saber o apenas que a unidade primitiva é una e ltipla e
infinita, como também quantas espécies ela contém. Não devemos aplicar
a pluralidade a idéia do infinito sem primeiro precisar quantos meros ela
abrange, desde o infinito até à unidade; então soltaremos a unidade de
cada coisa, para que se perca livremente no infinito. Conforme disse,
foram os deuses que nos mimosearam com essa arte de investigar e
aprender e de nos instruirmos uns com os outros. Mas os bios de nosso
tempo assentam ao acaso o uno e o múltiplo com mais pressa ou lentidão
do que fora necessário, saltando indevidamente da unidade para o infinito,
com o que lhes escapam os números intermediários. Esse, o caráter
fundamental que permite distinguir se, em nossas discussões, procedemos
como verdadeiros dialéticos ou como simples disputadores.
122
ludo quodam ad refellendum utuntur, cosque, qui confuttant alios, studiose sectantes et ipsi alios
quoque redarguunt, ac distrahendis lacerandisque proximis catulorum more assidue delectantur.
121
Plato vero, cum nec in Philebo, nec in Republica turbam adolescentum ad dialectica libenter
admittat, ne forsan insolentiores efficiantur. (Ficino, Apud Allen, 1998, p. 173)
122
Donum profecto deorum ad homines, ut mihi videtur, per Prometheum quendam una cum
lucidissimo quodam igne descendit. etenim prisci nobis praestantiores, diisque propinquiores, haec
172
Em seu comentário sobre esta passagem (Cap. 26), Ficino fala da
dialética ressaltando que “Platão acrescenta que estes dons foram conferidos com
o fogo mais.brilhante [...] O raio de um fogo tem dois poderes: um queima, o outro
ilumina”.
123
Ao considerar um tratado, um documento, ou uma referência que por
alguma razão não subsistiu aos nossos dias, ou sobre a qual não podemos sequer
confirmar a existência, o estudioso vê-se limitado à condição de fazer mais
perguntas do que afirmações. Diante de uma tradição que, para dizer o mínimo,
recomenda cautela ao tratar do assunto da dialética, podemos apenas afirmar que
seria uma demonstração de coerência e engajamento com o platonismo que este
assunto tivesse sido evitado em manifestações de caráter público, como por
exemplo, a Dichiaratione publicada no prefácio do livro de Scherzi Musicali. Neste
contexto não chega a ser um despropósito que nos coloquemos as seguinte
pergunta: poderia ter sido esta a razão para que o tratado prometido por
Monteverdi jamais tivesse vindo a público?
nobis oracula tradiderunt: quod cum ex uno et multis constent universa, quae semper esse dicuntur,
terminumque et infinitum innatum habeant, oportere nos in his sic se habentibus unam semper ideam
de quolibet generatim ponentes inquirere: eam insitam inventuros. quam si comprehendamus, post
unam, si quo modo duae sint, perscrutari: sin minus id pateat, tres, aut allium numerum quaerere: et
quodlibet eorum quae sunt unum, rursus eodem pacto dividere, quousque ipsum in principio unum,
non modo quod unum multaque et infinita sit, verum etiam quot sit, aliquis noscat: infiniti autem
ideam non prius ad multitudinem adhibere, quam quis numerum omnem, inter infinitum et unum
medium cadentem, percipit: tunc demum unum quodlibet omnium abeuntium in infinitum dimittere. Dii
ergo, ut diximus, sic nobis investigare, discere, et alterutrum docere dederunt. Qui vero nunc exstant
ex hominibus sapientes, unum quidem ac multa, utcunque contingit, velocius atque tardius quam
decet, inducunt, et post unum infinita continuo: media vero illos effugiunt. Quibus disputandi ratio,
tum dialectica, tum etiam litigiosa, disctern est.
123
Addit Plato dona haec simul cum lucidissimo igni fuisse tradita [...] Ingnis radius duas habet vires:
uma urit, illuminat altera.
173
8.
CONCLUSÕES
As análises dos exemplos de monodia dramática da seconda pratica
investigados mostram que é possível identificar uma relação entre a oratio e a
harmonia em que esta última segue a primeira. Esta relação não se estabelece
através do significado individual das idéias contidas no discurso que por razões
inerentes à natureza abstrata da própria harmonia não encontra expressão nos
acordes. Os resultados das análises indicam que nestes exemplos a harmonia
segue a oratio nas relações que se estabelecem entre as idéias nela contidas. A
identidade, oposição, e os diversos graus de proximidade entre duas ou mais
idéias encontram manifestação nos encadeamentos harmônicos quando
consideramos que a proximidade entre duas tríades se em termos da distância
que separa as suas fundamentais em uma seqüência de quintas. Este mesmo
princípio permite também, como vimos nos exemplos estudados, que os
movimentos indicados no discurso encontrem manifestação nos encadeamentos
harmônicos.
As fontes primárias que tratam do surgimento da seconda pratica
apontam de maneira inequívoca para o conceito de melodia definido por Platão
como elemento inspirador dos princípios que regem este movimento. Investigando
na obra de Platão as definições e atributos de cada um dos elementos que
constituem a sua melodia vimos, entre outras coisas, que este considera que a
essência da oratio é a relação que se estabelece entre as suas partes mínimas, as
palavras (verbos e nomes) que a compõe. Estas por sua vez o consideradas os
signos vocais (signum vocis) das idéias. Vimos que segundo o pensamento
platônico, a relação entre as idéias se através do que Ficino chama de “cinco
classes universais”, a saber, identidade, alteridade, movimento, repouso e
essência.
Este trabalho apontou a existência de uma forte coerência entre a
maneira como a harmonia seguiu a oratio nos exemplos de monodia dramática
174
analisados e os princípios estabelecidos pela dialética platônica. A harmonia
seguiu o discurso justamente naquilo que Platão define como sendo a sua
substantia: a relação entre as idéias. A maneira como o fez corresponde à
maneira como, segundo Platão, as idéias estabelecem relações entre si.
Entendendo o espectro harmônico como um campo onde as tríades se relacionam
entre si através de movimentos, repousos, identidades, proximidades,
distanciamentos e oposições, este se torna capaz de manifestar este mesmo tipo
de relações entre as idéias do discurso, associando pela simples simultaneidade
uma palavra, signo de uma idéia, a uma determinada tríade. A harmonia seguiu
portanto, nos exemplos analisados, não a essência das palavras do discurso (seus
significados), mas o que no platonismo é considerado a essência do discurso.
Os resultados de nossa pesquisa sugerem que ao fazer a harmonia
seguir a essência do discurso a seconda pratica atingiu um ponto determinante na
divergência em relação ao caminho seguido pela prima pratica. Como vimos, a
base teórica então estabelecida (prima pratica) defendia os preceitos sugeridos
pela melodia de Platão. Considerava satisfatória uma associação que, baseada na
tradição, relacionava um único afeto extraído do discurso, a um modo musical
construído a partir de regras pré-determinadas. Esta solução não mais satisfazia
os precursores da seconda pratica, especialmente quando estes passaram a
explorar o aspecto dramático presente nos discursos. A relação entre a palavra e
a harmonia a partir da doutrina do ethos associado ao modo pressupunha a
eliminação dos conflitos e ambigüidades que se manifestam no homem e em seus
dramas. Isto ocorria uma vez que este tipo de solução forçosamente obrigava que
o discurso fosse considerado exclusivamente em seu todo, sem nenhuma atenção
às relações entre as suas partes ou entre estas e o todo. A solução revelada pelos
exemplos analisados nesta pesquisa, pelo contrário, tomam a dialética como
premissa fundamental, e a partir das relações entre as partes do discurso constrói
um todo que revela a sua essência.
175
Até a presente data não foram encontrados documentos relacionados
ao surgimento da seconda pratica que mencionem de forma direta as cinco
classes universais descritas no Sofista. Sendo assim, não podemos provar que
Monteverdi ou Peri tivessem conhecimento da sua existência, assim como
também não podemos excluir esta possibilidade. Esta pesquisa trouxe entretanto
resultados que apontam que esta possibilidade apresenta-se marcadamente
coerente com o que afirmam os cultores da seconda pratica, na medida em que
reitera o engajamento destes com um ideal de música representado pela melodia
de Platão. Adicionalmente, podemos constatar que esta possibilidade encontra
também correspondência em exemplos musicais da monodia dramática deste
movimento. Além de mostrar-se coerente e encontrar correspondência na
realidade do repertório, esta possibilidade mostra-se útil, do ponto de vista
pragmático, na medida em que funciona como uma ferramenta de análise capaz
de revelar intrigantes possibilidades de interpretação. Há de se considerar também
que a probabilidade de um aprofundamento por parte dos cultores da seconda
pratica no entendimento dos conceitos fundamentais incluídos na dialética de
Platão torna-se elevada quando levamos em conta que, com a edição de
Grynaeus nas os, bastava-lhes uma consulta ao índice temático para serem
remetidos a trechos onde estes conceitos aparecem em discussão. Por fim cabe
lembrar que a ausência de documentos que mencionem as classes fundamentais
no contexto da seconda pratica pode ser considerada um indício de coerência com
a tradição do platonismo que as considera um conhecimento que não deve ser
revelado de maneira pública e indiscriminada, mas somente àqueles se
aprofundem na vivência e estudo da doutrina platônica.
Admitindo-se como verdadeira a hipótese do emprego dos preceitos e
mecanismos da dialética platônica no estabelecimento da relação entre palavra e
harmonia na seconda pratica, seremos então forçados a considerar que, longe de
ter sido adotada como um modismo ou subterfúgio retórico para que esta prática
se justificasse frente aos ataques de que fora vítima, a influência do platonismo no
176
surgimento deste movimento deu-se em nível bastante profundo que denota um
sério engajamento com a doutrina platônica.
8.1. Indicações para trabalhos futuros
O presente trabalho limitou-se a analisar a relação entre palavra e
harmonia baseada nos preceitos da dialética platônica em apenas duas obras do
repertório de monodia dramática da seconda pratica. É necessário aprofundar-se
no caminho aqui trilhado seja (1) analisando outras obras deste repertório como
(2) investigando todas as ramificações dos conceitos aqui abordados. Além desta
necessidade mais urgente, apontamos as seguintes sugestões para trabalhos
futuros e aplicações que possam fazer uso do que foi possível extrair em nossa
pesquisa: (3) adaptar a presente metodologia de análise visando uma possível
aplicação no repertório dos madrigais da seconda pratica; (4) utilizar o
encadeamento harmônico do repertório de monodias dramáticas da seconda
pratica como guia seja para soluções cênicas como para a interpretação dramática
ou musical; e (5) reutilizar este mecanismo que relaciona palavra e harmonia com
base na dialética em novas composições musicais.
As pesquisas e aplicações na área de práticas interpretativas dos
repertórios do barroco, do classicismo, e do Renascimento têm sido grandemente
beneficiadas por estudos que investigam a relação da música destes períodos
com os preceitos da retórica. Por outro lado, embora a dialética seja uma
ferramenta cujo escopo é sobretudo analítico, esta disciplina têm merecido neste
contexto uma atenção consideravelmente menor. Queremos crer que a presente
investigação tenha contribuído de alguma forma para que a dialética venha a ser
mais usada como ferramenta interpretativa e analítica do repertório musical tal
com sua irmã, a retórica, há muito vem fazendo.
177
9.
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185
10.
ANEXOS
187
10.1. Transcrições das partituras analisadas
189
191
193
195
197
199
201
203
205
207
10.2. Disco de dados (DVD) contendo arquivos com animações sonorizadas da
relação oratio/harmonia nas partituras analisadas.
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