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JUVENAL SAVIAN FILHO
A metafísica do ser em Boécio
Tese apresentada ao Departamento
de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, sob orientação da Profa.
Dra. Marilena de Souza Chaui, para
obtenção do Doutorado em Filosofia.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Departamento de Filosofia
São Paulo, 21 de outubro de 2005.
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1
“Enquanto ponderava essas coisas, em
silêncio comigo mesmo, e confiava aos
meus manuscritos minhas queixas
lacrimosas, vi aparecer acima de mim
uma mulher que inspirava respeito pelo
seu porte: seus olhos ardiam em brilho
e revelavam uma clarividência sobre-
humana; suas feições tinham cores
vívidas e delas emanava uma força
inexaurível”.
De consolatione philosophiae I, 1.
À Marilena.
Et à Fabrice Bouland.
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2
ÍNDICE
Resumo ............................................................................................. 03
Abreviaturas ...................................................................................... 04
Introdução ......................................................................................... 06
Capítulo 1
Como as substâncias são boas em virtude de serem ............................... 11
Capítulo 2
As posições semânticas de Boécio ...................................................... 114
Capítulo 3
A metafísica boeciana do ser ............................................................. 204
Conclusão ........................................................................................ 318
Anexo 1
Tradução do De hebdomadibus .......................................................... 323
Anexo 2
Tradução dos textos gregos ............................................................... 334
Bibliografia ..................................................................................... 340
3
RESUMO
Este trabalho pretende investigar a metafísica de Boécio, partindo,
fundamentalmente, da sua distinção entre esse e id quod est tal como ela se
encontra formulada no De hebdomadibus. Numa palavra, esse corresponde
ao princípio do ser de cada coisa concreta (e, portanto, equivale à forma
essendi), enquanto id quod est corresponde à coisa concreta ela mesma; a
substância composta. Procura-se interpretar, então, o texto do DH a partir
do conjunto da obra de Boécio, sobretudo seus comentários a Aristóteles e
Porfírio.
ABSTRACT
This work intends to investigate the metaphysics of Boethius, and
starts, basically, by the distinction between esse and id quod est such as it
meets formulated in Boethius’s tractate De hebdomadibus. In a word, esse
corresponds to the principle of the being of each concrete thing (and,
therefore, it is an equivalent to forma essendi), while id quod est
corresponds to the concrete thing; the composed substance. We intend, thus,
to take the set of Boethius’s works as base to interpret the De
hebdomadibus, mainly its commentaries to Aristotle and Porfiry,
emphasizing, at the same time, its undeniable platonic legacy.
4
ABREVIATURAS
Por razões de comodidade, serão empregadas as seguintes abreviaturas
para designar as obras de Boécio citadas nesta tese:
CEN Contra Eutychen et Nestorium
Contra Êutiques e Nestório
CP De consolatione philosophiae
A consolação da filosofia
DH De hebdomadibus
Septenários
DL De diuisione liber
Livro sobre a divisão
DT De sancta Trinitate
A Santa Trindade
FC De fide catholica
A fé católica
HS De hypotheticis syllogismis
Os silogismos hipotéticos
IA Institutio arithmetica
Fundamentos de Aritmética
ICA In Categorias Aristotelis
Comentário às Categorias de Aristóteles
IDI In De interpretatione
Comentário ao De interpretatione de Aristóteles
IPEP In Isagogen Porphyrii Commentorum Editio Prima
Primeira edição dos Comentários à Isagoge de Porfírio
IPES In Isagogen Porphyrii Commentorum Editio Secunda
5
Segunda edição dos Comentários à Isagoge de Porfírio
SC De syllogismo categorico
O silogismo categórico
TC In Topica Ciceronis
Comentário aos Topica de Cícero
TD De topicis differentiis
Os diferentes tópicos
VP Vtrum Pater
Se Pai e Filho e Espírito Santo predicam-se substancialmente
da Divindade
Nas citações, os números romanos indicam, geralmente, os capítulos
(ou o livro, no caso do CP, IA ou IES) e os indo-arábicos, a numeração
interior aos parágrafos. Para as citações do CP acrescenta-se a
especificação “ps.”, a fim de distinguir as poesias das prosas (por exemplo:
CP III, 6 [15]-[20] corresponde a CP, livro III, prosa 6, números 15 a 20;
CP III, ps. 9 corresponde a CP, livro III, poesia 9). Todas as citações
bíblicas deste trabalho, salvo quando houver outra indicação, serão
extraídas da Tradução Ecumênica da Bíblia (São Paulo: Loyola, 1994); as
abreviações dos títulos dos livros bíblicos seguem as normas que também aí
se encontram.
6
INTRODUÇÃO
Costuma-se tomar o tratado De hebdomadibus de Boécio como um
texto emblemático de seu pensamento metafísico. Com efeito, é nesse texto
que se encontra sua célebre fórmula diuersum est esse et id quod est; ipsum
uero esse nondum est, at uero quod est, accepta essendi forma, est atque
consistit, ou seja, “diversos são o ser e isto que é; com efeito, o ser mesmo
ainda não é, mas, por certo, isto que é, recebida a forma de ser, é e
subsiste”
*
.
Para interpretar esse axioma nuclear, em torno do qual gravita toda a
metafísica boeciana, os comentadores, na maioria das vezes, tomam o texto
do DH como única referência, deixando de focalizá-lo a partir do conjunto
da obra de Boécio. Daí não ser raro que esse texto seja classificado, por
exemplo, como estritamente neoplatônico, pois trata da processão das
substâncias a partir do primeiro Bem sem atribuir nenhum caráter pessoal
ou religioso a essa realidade primeira. De uma tal perspectiva, o esse
corresponderia, por exemplo, ao e•nai de Porfírio, ser puro e privado de
forma, tendo em vista que ele “ainda não é”, ao passo que o id quod est,
recebida a forma de ser, é e subsiste. Por conseguinte, a bondade das
criaturas seria uma bondade por participação e isso responderia à questão
de saber como elas são boas sem serem bens substanciais.
Ocorre, entretanto, que já a leitura do DH por ele mesmo também
indica uma série de elementos que permanecem sem explicação caso se
adote uma interpretação de Boécio como neoplatônico estrito. Por outro
lado, o cotejo com suas outras obras revela um trabalho razoavelmente
uniforme de definição de um vocabulário e de um quadro conceitual
metafísico, cuja investigação não apenas auxilia no esclarecimento dessas
*
DH [25].
7
dificuldades, mas também permite supor certa continuidade léxico-
conceitual que se foi impondo, aos poucos, na obra de Boécio e que se
deixa conhecer de maneira razoavelmente explícita no DH e nos últimos
textos por ele escritos.
Com efeito, Boécio contava com aproximadamente 43 anos de idade
quando compôs o DH, de maneira que já haviam passado cerca de 19 anos
desde o seu primeiro comentário à Isagoge de Porfírio. Da mesma época é o
DT, mas, nesses quase vinte anos, ele já havia produzido, além dos outros
Opuscula, os comentários a Aristóteles, um segundo comentário à Isagoge
(com base numa nova tradução feita por ele mesmo), os tratados DL, HS e
SC, e ainda o comentário aos Topica de Cícero. O que se busca, então,
fundamentalmente, na presente tese, é interpretar a metafísica de Boécio a
partir das posições semânticas por ele estabelecidas ao longo de suas obras
anteriores ao emblemático DH. Para tanto, o itinerário aqui proposto
compõe-se de três grandes momentos: (1) uma análise do DH a partir de sua
estrutura interna; (2) uma investigação das principais posições semânticas
de Boécio no tocante aos componentes do discurso ou o ordo orandi; (3) um
cotejo entre as obras nas quais Boécio estabelece seu vocabulário
metafísico, aí destacado principalmente o DH.
O primeiro capítulo, intitulado “Como as substâncias são boas em
virtude de serem”, opera uma análise da estrutura argumentativa do DH,
mostrando a maneira como, nesse texto, não apenas se oferece uma síntese
do pensamento metafísico de Boécio, mas também a resposta às principais
questões subjacentes ao trabalho de determinação do vocabulário do ser,
realizado nas obras anteriores. Investiga-se, ainda, a estratégia
argumentativa de Boécio, chamada aqui de “a hipótese impossível”, para,
por fim, investigarem-se as “fontes” de Boécio, seja do lado greco-romano,
seja do lado alexandrino-bizantino. Esse estudo das fontes acabou por
conduzir a algumas observações a respeito do significado do título medieval
atribuído a esse tratado (De hebdomadibus) e da sua autenticidade. O
núcleo do capítulo, entretanto, está na investigação do modo como Boécio,
8
assumindo a hipótese da não existência do primeiro Bem, chega à
necessidade da afirmação de um primeiro princípio de todas as coisas (ou
da presença necessária do primeiro Bem), sob o risco de, não o fazendo,
tornar ininteligível o próprio mundo sensível. A partir daí, ele responde à
questão da bondade das criaturas, predicando-lhes uma bondade substancial
(não por participação), embora essa bondade substancial não possua o
mesmo caráter da bondade substancial do primeiro Bem, mas corresponda
ao modo próprio de as criaturas serem boas substancialmente.
O segundo capítulo, por sua vez, investiga a concepção boeciana da
linguagem, visando conhecer, no limite, a relação que Boécio identifica
entre as palavras, as noções e as coisas. A propósito, o próprio Boécio, que
inicia identificando como componentes do discurso os nomes, os verbos e
as noções, termina por afirmar que não apenas as palavras (nomes e verbos)
e as noções compõem o ordo orandi, mas também as coisas elas mesmas.
Dessa perspectiva, o que estrutura o segundo capítulo é o estudo da maneira
como Boécio vê nas noções das coisas o verdadeiro representante delas, o
qual, aliás, as torna presentes à linguagem. Daí se extrai, como corolário,
sua concepção das entidades abstratas e dos inexistentes, além de ser
também nesse contexto que aparecem os conceitos de qualitas communis e
qualitas singularis.
Por fim, o terceiro capítulo, operando um cotejo entre as obras de
Boécio do ponto de vista do emprego de seu léxico metafísico, completa o
panorama conceitual que já começara a ser desenhado no capítulo 2, pois as
conclusões a respeito dos elementos do discurso já implicavam uma série de
posições referentes à concepção boeciana do ser. Nesse sentido, procura-se
apontar para a continuidade léxico-conceitual que parece impor-se, aos
poucos, nas obras de Boécio e que se reflete diretamente na metafísica do
DH. Com base nessa continuidade, retoma-se a interpretação desse texto, já
adiantada no capítulo 1, e pretende-se demonstrar que a distinção fundante
entre esse e id quod est remete à distinção entre, de um lado, o ser ou a
forma de ser, e, de outro, o ente ou a substância primeira. Evocando
9
algumas das principais interpretações do DH oferecidas na história da
filosofia, o capítulo termina por propor uma leitura de conjunto do texto,
revendo, ao mesmo tempo, o emprego boeciano da noção de participação.
Por conseguinte, põem-se em questão, enfim, as diversas classificações
de Boécio como um autor neoplatônico, platônico ou aristotélico. Espera-se,
com o itinerário aqui proposto, oferecer uma ocasião de resposta.
Nesta ocasião de apresentação do resultado final de nosso trabalho de
doutoramento, queremos agradecer: à CAPES, pela bolsa fornecida durante
os anos do doutorado e pela bolsa-sanduíche que nos proporcionou um
estágio em Paris, junto ao CNRS e à Bibliothèque Nationale de France; ao
Centre Nationale de la Recherche Scientifique, especificamente o Centre
d´Histoire des Sciences et de Philosophies Arabes et Médiévales (Villejuif),
por nos ter acolhido entre o seu quadro de estagiários; à Mme. Anca
Vasiliu, nossa co-orientadora em Paris, pela rica colaboração e por toda a
simpatia com que nos recebeu em seu grupo de seminários; ao M. Alain
Galonnier, pela cordialidade com que aceitou discutir as principais posições
defendidas nesta tese; ao M. Jean Jolivet, pela gentileza com que nos
recebeu no CNRS; ao Prof. Lambert-Maria De Rijk, pela gentil e pronta
atenção com que reagiu à minha correspondência; aos Profs. Drs. Carlos
Arthur Ribeiro do Nascimento, Francisco Benjamin de Souza Neto e José
Carlos Estêvão, não apenas pela amizade mas também por aceitarem o
convite para compor a banca examinadora junto com Mme. Anca Vasiliu e a
Profa. Dra. Marilena de Souza Chaui; também aos Profs. Drs. Luís Alberto
De Boni, Maria das Graças de Souza, Marcelo Perine, Ernesto Perini,
Lorenzo Mammi e Franklin Leopoldo e Silva.
Um agradecimento especial registramos à Profa. Dra. Marilena de
Souza Chaui, que já há alguns anos nos tem acompanhado em nosso
(tortuoso) itinerário não apenas intelectual, mas também existencial, e cuja
amizade solícita nos fez ter mais segurança ao darmos os primeiros passos
10
que conduziram até aqui. A ela dedico esse trabalho. E também a Fabrice
Bouland. Ambos, para mim, são a prova de que somente numa relação de
confiança pode-se ter criatividade e liberdade.
11
CAPÍTULO 1
COMO AS SUBSTÂNCIAS SÃO BOAS EM VIRTUDE DE SEREM
Boécio, no DH, aborda a questão de saber quomodo substantiae in eo
quod sint bonae sint, cum non sint substantialia bona, isto é, “como as
substâncias, nisto que elas são, são boas, embora não sejam bens
substanciais”. Na maioria dos manuscritos, tal questão consta como título
desse texto que, conforme seu endereçamento, tratava-se de uma carta-
resposta dirigida a João, o Diácono. Parece possível dizer que, em outras
palavras, o problema abordado no DH consiste em saber como todas as
substâncias são boas em virtude de “terem ser” ou de simplesmente
serem”, dificuldade esta que também pode ser definida como a da
predicação que envolve, em primeiro plano, as criaturas, porque importa
saber em que sentido se lhes atribui “bondade”, mas também Deus, porque a
atribuição de sua bondade é implicada diretamente como fonte da bondade
das criaturas.
1. A estrutura do De hebdomadibus.
A estrutura do DH divide-se, fundamentalmente, em cinco momentos:
(1) em primeiro lugar, Boécio compõe um “prólogo”, nos nn. [1]-[15],
apresentando a questão-tema e justificando sua pertinência; (2) em seguida,
nos nn. [15]-[45], estabelece nove axiomas (regulae) ou princípios
(rationes) que definem o horizonte metafísico em cuja direção ele
encaminha a solução do problema; (3) em terceiro lugar, nos nn. [45]-[75],
explicita, sob a forma de uma aporia, as implicações da questão-tema; (4)
12
em seguida, nos nn. [75]-[140], ele articula sua solução; (5) para, por fim,
nos nn. [140]-[160] prever e refutar algumas objeções.
1.1. O “Prólogo”.
O que se poderia chamar de “prólogo” do DH consiste na pequena
introdução que Boécio compõe para apresentar o texto ao seu destinatário,
João, o Diácono, cujo nome, mesmo não aparecendo explicitamente, pode
ser conhecido a partir da inscrição contida na maioria dos manuscritos: item
eiusdem ad eundem, isto é, “igualmente do mesmo para o mesmo”, o que
significa “do mesmo remetente do CEN”, Boécio, “ao mesmo destinatário
do CEN”, João, pois, segundo a cronologia mais aceita, o DH, dentre os
Opuscula sacra, teria sido escrito imediatamente após o CEN (este em 512,
aquele em 519).
Vários intérpretes modernos supuseram, a partir dessa introdução, que
Boécio pretendia, com o DH, esclarecer uma dificuldade encontrada por
João, o Diácono, durante sua leitura de um outro livro de Boécio chamado
Septenários ou Grupo de sete (Hebdomadae, do grego ˜bdom£j), que se teria
perdido
1
. No entanto, excetuando-se a fala de João, transcrita por Boécio no
início do DH (fazendo referência a um certo tipo de “escrito”), não há
nenhuma outra referência, em toda a obra de Boécio, que permita crer na
existência desse livro. Ao contrário, Boécio fala explicitamente dos
Septenários como algo que ele comenta consigo mesmo, guardando-o em
sua memória e evitando torná-lo conhecido “desses cuja leviandade e
impetuosidade não suportam nada do que não seja jocoso e risível”.
1
Cf. a tradução do DH feita por Stewart, Rand & Tester: BOETHIVS. The Theological
Tractates & The Consolation of Philosophy. Trad. de H. F. Stewart, E. K. Rand e S. J.
Tester. Londres: Harvard University Press, 1973, p. 39. Cf., também, a opção de M.
Elsässer: BOETHIVS. Die theologischen Traktate. Trad. de M. Elsässer. Hamburg:
Meiner, 1988, p. 122; e, ainda, CHADWICK, H. Boethius: The Consolations of Music,
Logic, Theology and Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1990, p. 203.
13
Essa menção a um público hostil aparece também em outros dos
Opuscula
2
, mas é muito difícil saber exatamente a quem Boécio estaria
fazendo referência. Tudo indica que esta parece ser uma forma de Boécio
referir-se a algum grupo de hereges, como os arianos e os sabelianos, por
exemplo, ou de falar de pessoas que, não tendo um “coração veraz”, não
acedem às verdades sagradas e necessitam de exposições que não primam
pela concisão
3
. Por fim, pode tratar-se mesmo de uma referência a membros
da Igreja que, passando por doutos, mas ocultando a própria ignorância,
acabam por tratar apressadamente de assuntos que mereceriam não apenas
calma, mas também devoção
4
.
No que se refere à expressão “Septenários”, pode-se pensar que ela
seja uma referência aos sete princípios que se definem no início do DH e
com base nos quais se constrói a solução para o problema da bondade das
criaturas
5
. Na realidade, registram-se nove princípios, mas eles podem ser
reduzidos a sete, pois o primeiro se mostra completamente acessório,
enquanto os de número sete e oito, no limite, são o mesmo. Porém, numa
linha de interpretação completamente diferente, Françoise Hudry
6
interpreta
hebdomas, hebdomada como a designação de um dia, ou, mais
especificamente, a designação de um dia de debate filosófico, de maneira
que Boécio estaria referindo-se a uma discussão tida com João, o Diácono,
durante uma jornada filosófica da qual este teria saído com alguma dúvida.
Essa interpretação bastante engenhosa parece plausível, embora
também o seja aquela que considera as hebdomadae como sendo os sete
princípios fundamentais do DH. Em favor de Hudry haveria o fato de que
2
Cf. FC [25]; CEN [35]-[40]; DT [5]-[15].
3
Cf. FC [90]
4
Cf. CEN [35]-[40].
5
Cf. CHADWICK, H., op. cit., p. 203-204; MERLE, H. “Introduction”. In: BOÈCE. Courts
traités, op. cit., p. 88-91.
6
HUDRY, F. “L’hebdomade et les règles. Survivances du débat scolaire alexandrin”. In:
Documenti e studi sulla tradizione filosofica medievale. Turnhoult: Brepols, Vol.
VIII, Ano 1997, pp.319-337.
14
sua tese permite explicar a variação das formas gramaticais presentes no
mesmo período do texto de Boécio, pois empregam-se alguns verbos
conjugados na primeira pessoa do singular (digeram, monstrem), ao mesmo
tempo em que se usam pronomes pessoais da primeira pessoa do plural
(nostris). Assim, ele diz a João: “tu me pedes que eu dissipe e exponha
mais claramente aquela questão, como provém dos nossos Septenários
(...)”
7
. Dessa perspectiva, os Septenários pertenceriam de fato a ambos, ou
seja, a João e a Boécio, visto serem os dias (ou o dia) em que eles teriam
debatido uma questão filosófica
8
.
1.2. Os princípios.
Procedendo à formulação da questão, Boécio insiste que sua resposta se
há de caracterizar pelas “obscuridades da concisão”, as quais, sendo
“guardiãs fiéis do mistério”, impedirão o acesso àqueles que não forem
dignos dele (trata-se certamente do público hostil mencionado acima). Para
esse fim, Boécio recorre ao modelo matemático e estabelece termos e
axiomas com os quais ele pretende resolver a questão que deu origem ao
DH.
Não se pode negar a originalidade de Boécio ao fundar a resolução de
uma questão de caráter filosófico num tipo de matematização do
procedimento resolutivo que, privilegiando o aspecto lógico e necessário do
qual depende o funcionamento regulador do aparelho proposicional
organizado para a resolução do problema, acaba por resultar numa espécie
de “axiomática” de tipo euclidiano
9
. Assim, o esforço racional, na
7
DH [1] grifo nosso (todos os grifos nas citações do presente trabalho são nossos).
8
Adiante, retomar-se-á o estudo da relação de Boécio com a tradição alexandrina.
9
Cf. GALONNIER, A. “‘Axiomatique’ et théologie dans le De hebdomadibus de Boèce”,
in: DE LIBERA, A. ET ALII. Langages et philosophie. Hommage à Jean Jolivet. Paris:
Vrin, 1997, pp. 311-330; SAVIAN FILHO, J. “Introdução (Boécio e o método
15
abordagem da questão, concentra-se sobre as virtualidades lógicas de um
conjunto de enunciados que, de um lado, constituem princípios
demonstrativos evidentes em si, e, de outro, provêem do estatuto da
autoridade escriturística, cuja posse inicial garante à demonstração seu
valor cognitivo, como M.-D. Chenu
10
, aliás, indica ser também a condição
do exercício teológico no século XIII.
Parece possível dizer que não apenas o DH, mas todos os opuscula de
Boécio (o FC com menos evidência) entrecruzam os elementos da simbólica
do Ser e do Uno, tomando como modelo de procedimento filosófico-
teológico o encaminhamento científico das disciplinas matemáticas. A esse
paradigma matemático
11
de metodologia Boécio une o instrumental lógico
de Aristóteles, e sua originalidade parece consistir justamente na aplicação
sistemática desse recurso à investigação metafísico-teológica. Numa
palavra, Boécio parece inaugurar um tipo de reflexão teológica mais
“acadêmica”, preconizando os futuros currículos teológicos universitários
12
,
e menos voltado para o debate com os “hereges” ou o trabalho de
evangelização, embora ele também se mostrasse instado por esses
movimentos. Seu interesse, no limite, dirigia-se às questões por elas
mesmas, fossem elas mais especificamente filosóficas ou mais
especificamente teológicas (ainda que não pareça conveniente identificar
axiomático)”. In: BOÉCIO. Escritos (Opuscula Sacra). Tradução, estudos e notas de
Juvenal Savian Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 30-32.
10
Cf. CHENU, M.-D. La Théologie comme science au treizième siècle. Paris: Vrin,
1927, p. 68.
11
Para compreender melhor a concepção boeciana do que seja a matemática, lembre-se
que ele escreveu uma Aritmética e uma Geometria, marcadas não por grande
originalidade, mas pelo intento de parafrasear, em cada uma delas, dois autores
importantes como foram, respectivamente, Nicômaco de Gerasa e Euclides, a fim de
torná-los de compreensão mais fácil. Além disso, Boécio escreveu um livro sobre a
Música, tributário de Euclides, Nicômaco e Ptolomeu, e talvez também tenha escrito
uma Astronomia, fundada sobre o Almagesto de Ptolomeu. Apesar de muito utilizados
pelos medievais, esses livros são ditos elementares pelos críticos. Em todo caso, eles
manifestam o objetivo de aplicar a aritmética, a música e a geometria à compreensão da
filosofia aristotélico-platônica.
12
Cf. CONGAR, Y. "Théologie". In: VACANT, A. ET ALII. Dictionnaire de Théologie
Catholique. Paris: Letouzey et Ané, 1930, cols. 364-378.
16
alguma separação entre epistemologia filosófica e epistemologia teológica
em autores antigos como Boécio), de modo que ele se servia do arsenal
lógico-conceitual da tradição anterior para aplicar-se ao estudo dessas
questões. Jean-Yves Guillaumin
13
afirma que, em continuidade com um
certo sentimento de insatisfação com uma “teologia de pecadores”, Boécio
busca constituir sua “teologia” empregando o método axiomático
14
e
inscrevendo-se na tradição que remonta a Nicéia, Éfeso e Calcedônia, com o
fim de oferecer, da maneira mais breve possível, meios que permitissem ao
pensamento cristão mostrar a coerência de suas verdades. Vale lembrar que
esse procedimento axiomático remonta a Euclides, e, no caso de Boécio,
não se pode esquecer que ele leu ainda Proclo e Porfírio
15
.
No que se refere especificamente aos axiomas do DH (que aqui serão
designados também pelo termo geral “princípios”), já uma primeira leitura
de todo o conjunto do tratado mostraria, no entanto, que eles não se
comportam exatamente como axiomas no sentido rigoroso do termo
16
, pois
mais do que princípios ou concepções comuns do espírito a partir dos quais
Boécio deduziria rigorosamente todas as conclusões do DH, esses terminos
regulasque são muito mais amplos, e estabelecem a terminologia e os
princípios de toda a metafísica boeciana, servindo não apenas à discussão
pontual do DH. Em favor dessa interpretação vem o dizer do próprio
13
Cf. GUILLAUMIN, J.-Y. "Introduction". In: BOÈCE. Institution Arithmétique. Trad. de
J.-Y. Guillaumin. Paris: Belles Lettres, 1995, pp. XIXs.
14
A expressão “método axiomático”, aplicada a Boécio, é de Jean-Yves Guillaumin. Cf.
também o artigo de: EVANS, G. R. “More Geometrico: the place of the axiomatic method
in the twelfth century commentaries on Boethius’Opuscula sacra”. In: Archives
Internationales d’Histoire des Sciences. Ano 1977, n. 27, pp. 207-221.
15
Cf. GUILLAUMIN, J.-Y. "Introduction", op. cit., pp. XIXs. É curioso notar que no De
consolatione philosophiae, livro III, 10, Boécio emprega o termo grego porísma (plural
porísmata) para referir-se aos corolários que extrairia de suas conclusões anteriores.
Porísma é o termo que Amônio de Alexandria emprega, em seu comentário ao De
interpretatione, para referir-se aos raciocínios dos geômetras, e que Proclo emprega
também, várias vezes, em sua obra. Cf., ainda, OBERTELLO, L. "Note al testo". In:
BOEZIO. La consolazione della filosofia. Trad. de L. Obertello. Milão: Rusconi, 1996,
p. 254, n. 23.
16
ARISTÓTELES, Segundos Analíticos 72a15ss.
17
Boécio, segundo o qual cada um dos princípios haveria de ser adaptado aos
argumentos pelo intérprete prudente do assunto
17
.
Nas próximas páginas procurar-se-á oferecer uma interpretação desses
princípios segundo os propósitos da presente tese. Os autores modernos que
aqui se tomam como principais interlocutores (porque convergentes para o
mesmo tipo de leitura, embora cada um deles possua sua especificidade) são
H. J. Brosch, S. Vanni-Rovighi, B. Maioli, L.-M. De Rijk, S. MacDonald e
J. Marenbon
18
. Com algumas reservas, pode-se mencionar, ainda, A. de
Libera, mas o diálogo com os intérpretes modernos será feito no terceio
capítulo desta tese.
1.2.1. As concepções comuns do espírito (P1).
A interpretação do primeiro princípio não oferece grandes
dificuldades: Boécio define uma concepção comum do espírito (communis
animi conceptio) como uma enunciação que todos aceitam, tão logo ela seja
ouvida. Mas distingue entre aquelas que são acessíveis a todos os ouvintes e
aquelas às quais apenas os doutos têm acesso. Da perspectiva dessa
distinção e considerando-se que a compreensão de P3 a P8 dependem da
compreensão de P2 (enquanto P9 escapa a essa dependência, fornecendo a
Boécio os pressupostos para definir e resolver o problema da bondade das
criaturas), parece possível dividir os axiomas do DH em dois grupos: um
deles seria composto apenas por P9 e corresponderia ao grupo das
concepções comuns a todos; o outro compor-se-ia por P2 a P8 e seria o
grupo das concepções às quais apenas os sábios têm acesso.
17
Cf. DH [45]. O “assunto” de que fala Boécio é certamente qualquer questão
metafísica, e não apenas o assunto do DH.
18
Para as referências bibliográficas desses autores, cf. Bibliografia.
18
Assim, distinguindo entre as concepções compreensíveis para todos e
aquelas compreensíveis apenas para alguns, Boécio permite concluir que
aquilo que é inteligível em si nem sempre é inteligível para nós (pode ser
ou não)
19
.
1.2.2. “Ser” e “isto que é” (P2).
O segundo princípio é aquele que se costuma tomar como síntese de
toda a metafísica de Boécio, e, com efeito, de sua exegese depende o tipo
de interpretação que se pretenda dar à metafísica boeciana. Antecipar-se-á,
aqui, a interpretação final da presente tese, a fim de que se possa continuar,
nas próximas páginas, com a análise do texto do DH. Adiante, porém, no
capítulo 3, retomar-se-á a investigação desse princípio, principalmente
quando se tratar de proceder ao seu cotejo com a semântica de Boécio
recomposta no capítulo 2.
Assim, o segundo princípio distingue entre esse e id quod est, “ser” e
“isto que é”. “Ser” significa, aqui, a forma imanente que faz uma coisa ser
o que ela é; corresponde ao que o DT chama de “imagem”, porque, sendo
nos corpos, as formas desse tipo imitam (adsimulantur) aquelas Formas
transcendentes que não subsistem unidas à matéria
20
. A forma de Sócrates,
por exemplo, não é a Humanidade, mas a forma individual que, imitando a
Humanidade, faz dele um humano. Vale dizer ainda que, também no DT,
Boécio afirma que todo ser provém da forma (omne esse ex forma est)
21
,
mas isso não representa nenhum problema para a compreensão do DH, pois
o sentido dessa “mudança” no sentido de esse parece muito claro: por
19
Como se sabe, Aristóteles, na Metafísica, também sugere uma distinção entre o que é
inteligível em si e o que é inteligível para nós. Sua distinção, entretanto, parece marcar
mais uma limitação nossa do que uma separação entre o vulgo e o douto. Cf.
ARISTÓTELES, Metafísica 982a4-983a23.
20
Cf. DT II [110].
21
Cf. DT II [80].
19
metonímia (ou sinédoque, como prefere Marenbon
22
), Boécio toma a parte
pelo todo ou o efeito pela causa, pois forma, englobando tanto as formas
imanentes como as Formas transcendentes, e sendo a origem do ser, é um
termo mais extenso do que esse, que, por sua vez, neste tratado, é tomado
como equivalente de forma, mas no sentido de forma imanente. “Isto que é”
significa, ao contrário, o todo concreto (a pessoa de Sócrates, por exemplo),
ou, se se preferir, a substância particular concreta que instancia a forma, e
Boécio pretende, por isso, que um particular concreto seja diferente da
forma instanciada por ele, de maneira que a forma subsiste apenas nos todos
concretos que elas informam. Daí viria o sentido da afirmação segundo a
qual o ser ainda não é (nondum est), ao passo que isto que é, recebida a
forma de ser (recebido o esse, isto é, a forma que o faz ser isto que ele é), é
e subsiste.
1.2.3. Participação acidental (P3).
O terceiro princípio, ao dizer que a participação se dá quando algo já é
e que algo é porque já recebeu o ser, estabelece que a participação
considerada aqui é a participação acidental: ela ocorre quando a coisa
existe, ou seja, depois que ela possui uma forma imanente que a faz ser a
substância que ela é. Por outro lado, ao dizer que isto que é pode participar
de algo ao passo que o ser mesmo não participa de nada, Boécio indica para
o fato de que apenas a substância concreta pode ser substrato de acidentes,
pois o concreto individual possui outras características além do ser, ou seja,
outras características que o fazem ser esta substância que ele é, enquanto a
forma ou o ser não pode nunca possuir acidentes.
22
MARENBON, J., op. cit., p. 89.
20
1.2.4. Propriedades acidentais (P4).
O princípio P4 esclarece o sentido de P3, pois explicita a idéia de que
isto que é pode ter outras propriedades que não o seu ser, enquanto o ser é
apenas o que ele é. Assim, para adiantar os exemplos que aparecerão no
DH, é possível dizer que Sócrates pode ou não ser um homem branco, justo
etc., mas a forma da Humanidade, que o faz ser homem, não tem nenhuma
propriedade exceto a de ser a forma da humanidade.
1.2.5. A substância e o acidente (P5).
O princípio P5 esclarece a distinção entre o acidente e a substância nos
termos de “ser apenas algo” e “ser algo nisto que é”, o que se poderia
também exprimir por “ser meramente algo” e “ser algo em virtude do fato
de ser (ou do fato de ter ser)
23
”. Com P5, Boécio distingue entre
propriedades acidentais e propriedades substanciais, permitindo estender
essa distinção para os predicados segundo categorias acidentais e os
predicados segundo a categoria da substância, pois dizer que x é
meramente F” significa dizer que F caracteriza acidentalmente x, ao passo
que dizer x é F nisto que é” significa dizer que F caracteriza
substancialmente x. Assim, entre duas proposições como “Sócrates é
branco” (a) e “Sócrates é homem” (b), apenas b pode ser associada à forma
mais completa “nisto que é”, ou seja, apenas b pode ser expressa na forma
“Sócrates é homem nisto que é”.
23
Essas últimas propostas de tradução são de MacDonald e Marenbon (cf. MACDONALD,
S., op. cit., p. 249; MARENBON, J., op. cit., p. 89).
21
1.2.6. Participação não-acidental (P6).
O princípio P6, por sua vez, focaliza um outro tipo de participação,
diferente da participação acidental, pois agora é o fato de ser (ou de ter ser)
que é expresso em termos de participação, ou, se se quiser, trata-se do fato
de se ter uma forma imanente, uma forma que faz a coisa existir. Não se
trata de participação acidental porque não são os atributos acidentais que
fazem a coisa existir; ao contrário, Boécio reafirma, com P6, a distinção
entre o ser e o todo concreto, porque o ser (ou a forma imanente) é o
constituinte metafísico que, antes de tudo, faz a coisa ser; os acidentes,
secundariamente, distinguem as coisas entre elas, de modo que, mesmo se
na ordem real somente exista o todo concreto (pois sua forma imanente, que
é reflexo de uma Forma transcendente, não pode existir à parte do todo
concreto), ainda assim, na ordem lógica, podem-se distinguir dois
momentos: um primeiro, em que a coisa recebe o ser, e um segundo, quando
os acidentes, próprios da materialidade, advêm à forma e distinguem os
indivíduos. Dessa perspectiva, assim como há proposições verdadeiras
sobre o que uma coisa é no que ela é, também as há sobre o “que ela apenas
(tantum) é”, ou seja, sobre o que a coisa é acidentalmente, e não em virtude
de ser uma substância.
1.2.7. Simplicidade e composição (P7 e P8).
Os princípios P7 e P8, no limite, compõem duas faces de um mesmo
princípio, pois a formulação de um é a contradição do outro, e vice-versa.
Assim, segundo P7, uma realidade simples não pode ser composta, e,
portanto, a nada do que seja simples se pode aplicar a distinção expressa em
P2. Como corolário, obtém-se, então, que, se por “forma imanente”
entende-se, aqui, a imagem ou a forma imanente à matéria, então uma
realidade simples não pode possuir forma imanente, pois a forma imanente
22
não pode subsistir à parte do todo concreto; ora, se ela não pode possuir
forma imanente, presume-se que ela seja pura forma. Na contrapartida,
segundo P8, para todo ser composto, o “ser” é diferente do que ele mesmo é
(o todo concreto), de maneira que, não havendo distinção entre ser e isto
que é, tem-se uma realidade simples
24
.
1.2.8. Semelhança substancial (P9).
Como se viu acima, Boécio distingue entre as concepções do espírito
que são acessíveis a todos os ouvintes e aquelas às quais apenas os doutos
têm acesso. Ora, da perspectiva dessa distinção, a compreensão de P3 a P8
dependem da compreensão de P2, mas P9 escapa a essa dependência, e com
esse princípio Boécio obtém os pressupostos para definir e resolver o
problema da bondade das criaturas, pois P9 estabelece uma relação de
semelhança substancial (naturaliter) entre aquele que deseja algo e este
algo que é desejado. Assim, ao enunciar P9, Boécio põe-se em
continuidade, como se sabe, com toda uma tradição anterior que se reflete
também, por exemplo, no De Trinitate de Agostinho, quando este afirma
que o desacordo traz o sofrimento, ao passo que a concórdia traz o deleite.
No dizer de Boécio, a semelhança é desejável porque permite conhecer o
que é o mesmo
25
, e é a inclusão das diferenças no universo da semelhança
que permitirá a Boécio desenvolver, adiante, o que subjaz à afirmação
segundo a qual, assim como o semelhante deseja o semelhante e tudo deseja
o seu próprio bem, tudo o que deseja o bem é ele mesmo bem.
24
No capítulo 3 discutir-se-ão as diferentes interpretações de P7 e P8 implicadas nas
leituras de críticos como Pierre Hadot, por exemplo.
25
Cf. TC IV, PL 64, col. 1118.
23
1.2.9. O vocabulário do ser.
A partir, então, dos princípios P1 a P9 e da metafísica fundamental que
eles engendram, vê-se que P2 a P5 retratam distinções entre substâncias e
acidentes, bem como entre o que, em linguagem aristotélica, poder-se-ia
chamar de substância primeira e substância segunda; P6 a P9, por sua vez,
abordam propriedades ligadas à substância das coisas. No que se refere às
diferentes propriedades estabelecidas nos axiomas 2 a 5, pode-se
representar como segue
26
:
SER ISTO QUE É
P2 ainda não é é e passa a ser quando recebe a forma de ser
P3 não participa de nada pode participar de algo
P4 não tem nada de misto pode ter algo além do que ele mesmo é
Figura 1
Essa divisão que se acaba de propor permite estabelecer algumas
correspondências semânticas que conduzem, por sua vez, à possibilidade de
exprimir, em linguagem aristotélica, as definições metafísicas de Boécio.
Isso, porém, não significa pretender que Boécio seja mais aristotélico do
que platônico, e, como se verá adiante, seu projeto de traduzir e comentar
Platão e Aristóteles, com o fim de mostrar que ambos não são
contraditórios, adquire uma significação mais complexa do que a de um
simples projeto de tradução e comentário. Por enquanto, é suficiente marcar
as seguintes equivalências:
26
Cf. MACDONALD, S., op. cit., p. 248; MCINERNY, R. Boethius and Aquinas.
Washington: The Catholic University of America Press, 1990, pp. 185-186. McInerny,
nas páginas dedicadas a Boécio, insiste em dizer que este seria um precursor de Tomás
de Aquino, principalmente no que, em termos tomasianos, se refere à distinção entre o
ente e a essência. Entretanto, sua argumentação é muito mais construída em função dos
textos de Tomás de Aquino do que dos de Boécio.
24
(1) o esse e o ipsum esse parecem corresponder à substância segunda
aristotélica, ou seja, a forma ou essência sem a qual não existiriam
indivíduos concretos que instanciam sua forma;
(2) o id quod est, por sua vez, parece corresponder à substância
primeira ou às coisas particulares que instanciam uma forma;
(3) dizer que “x é F nisto que é” significa dizer que F faz parte do ser
de x, ou, então, que x é substancialmente F.
1.3. Posição da questão.
Elencados os nove princípios e explicitados os fundamentos de sua
metafísica, Boécio passa diretamente a abordar a questão-tema do DH, que
ele apresenta de modo aporético a partir de uma série de construções
silogísticas.
Em primeiro lugar
27
, ele estabelece os pressupostos da discussão,
tomando-os daquilo que dizem os sábios
28
, e esses pressupostos estão
27
Cf. DH [45]-[50].
28
Os sábios, aqui, representam, sem dúvida, a tradição filosófico-literária antiga (da
qual Boécio se serviu amplamente, como prova, sobretudo, o CP), mas também a
tradição judaico-cristã, cujos relatos repetem insistentemente que as realidades criadas
por Deus são boas (Cf. BOEZIO. La consolazione della filosofia & Gli opuscoli
teologici. Trad. de L. Obertello. Milão: Rusconi, 1979, p. 384, nota 13). Agostinho,
cujas sementes, nas palavras de Boécio, já haviam sido lançadas no terreno de seu
espírito (cf. DT Introd. [30]), afirma, mais explicitamente, que a bondade, neste
contexto, não tem significado moral, mas metafísico, pois a bondade das criaturas
coincide com a sua natureza (cf. AGOSTINHO DE HIPONA, De Trinitate VIII, 3, 4). No
que se refere à afirmação de que tudo o que é tende para o bem, vale notar que é
justamente o seu esquecimento que, no CP, causa a infelicidade do prisioneiro Boécio.
A cura proporcionada pela dama Filosofia consistirá em trazê-lo de volta do domínio da
Fortuna para o domínio da razão, abrindo seus olhos para que ele possa enxergar a causa
final que rege o cosmo e à qual nada do que existe pode escapar.
25
contidos no seguinte raciocínio: “as coisas que são, são boas” (d)
29
, pois
“tudo o que é tende para o bem” (a) e “tudo tende para o semelhante” (b).
Com efeito, trata-se de um argumento simples em que as premissas a e b
provam a conclusão antecipada d, por intermédio de uma outra proposição
que consiste em dizer que “todas as coisas que tendem para o bem são elas
mesmas boas” (c).
Representado de outra maneira, esse raciocínio consistiria em:
(d) as coisas que são são boas;
pois
(a) tudo o que é tende para o bem;
e
(b) tudo tende para o semelhante;
com efeito,
(c) todas as coisas que tendem para o bem são elas mesmas boas.
Numa ordem mais direta, ter-se-ia:
(a) tudo o que é tende para o bem;
29
As aspas, aqui, são um mero indicativo proposicional, ou seja, indicam as proposições
de cada silogismo montado por Boécio. Essas proposições também são representadas
pelas letras entre parênteses.
26
(b) tudo tende para o semelhante;
(c) todas as coisas que tendem para o bem são elas mesmas boas;
(d) as coisas que são são boas.
Curiosamente
30
, porém, o teor da conclusão d poderia ser considerado
desinteressante para a articulação dos argumentos de Boécio e mesmo uma
perda conceitual com relação à própria afirmação cuja consistência o DH
visa demonstrar (a afirmação sob forma de questão que dá título ao DH, ou
seja, aquela segundo a qual “as coisas são boas nisto que elas são, ainda
que não sejam bens substanciais” dh), porque, enquanto esta afirmação dh
pretende que as substâncias sejam boas nisto que elas são, ou seja, em
virtude do fato mesmo de elas existirem, d pretende que elas são apenas
boas. Dito de outra maneira, nada obrigaria a afirmar, a partir de d, que as
coisas são boas em virtude de existirem, como pretende a proposição dh.
Além disso, considerando-se também o pressuposto de que Deus é
substancialmente bom, abre-se espaço para outro problema, o de pensar que,
à sua exceção, as outras realidades talvez possam ser boas segundo um
outro modo que não aquele de ser bom em virtude da própria substância.
Porém, se se considerar que a premissa b, registrada acima, é uma
versão do princípio P9, nota-se que o argumento, em seu contexto, não é
menos forte nem menos interessante para a articulação conceitual de
Boécio, pois o advérbio naturaliter, se explicitado em b, afeta também a
conclusão. Assim, o argumento poderia ser reconstruído como segue:
30
Cf. as observações de Scott MacDonald em: MACDONALD, S. “Boethius’s claim that
all substances are Good”. In: Archiv für Geschichte der Philosophie. Berlim: Walter
De Gruyter, 1988, Ano 70, Vol. 3, pp. 250-251, n. 17. Cf., ainda, MARENBON, J.
Boethius. Oxford: Oxford University Press, 2003, pp. 92.
27
(a) tudo o que é tende para o bem;
(b’) tudo tende para aquilo que lhe é naturalmente semelhante;
(c’) todas as coisas que tendem para o bem são elas mesmas
(naturalmente) boas;
(d’) as coisas que são são (naturalmente) boas.
A partir dessa reconstrução e tomando-se o termo naturaliter como um
equivalente de substantialiter, vê-se que, embora d’ não seja idêntico a d,
d’ inviabiliza, entretanto, a objeção de que há substâncias, com exceção de
Deus, que não são substancialmente boas. No limite, o que importa a
Boécio, como se verá adiante, é assegurar que a bondade das coisas não seja
uma qualidade acidental, como seria o caso de uma cor, por exemplo, mas
que seja algo decorrente do fato mesmo de as coisas “serem”, ou, se se
preferir, de elas “possuírem ser”. Assim, mesmo que a proposição x é
bom” possa ser enunciada segundo uma predicação acidental (como quando
se diz x é branco”), importa dizer que essa proposição somente se enuncia
com verdade quando se faz uma predicação substancial, não importando
qual seja o valor de x, como quando se diz, por exemplo, conforme o DT
31
,
que toda qualidade é atribuída a Deus segundo uma predicação substancial.
Ora, o que interessa justamente é determinar o sentido de d, ou seja, saber
como as coisas são boas: por participação ou por substância? Com efeito,
pelo argumento construído a partir das sentenças dos sábios, obtém-se
apenas que todas as coisas são boas, mas não se obtém como elas o são. E,
embora seja formalmente possível operar a correção feita pelo argumento
registrado imediatamente acima, Boécio prefere abordar a questão do DH,
reformulando-a de maneira aporética, certamente para trazer à tona todas as
31
Cf. DT IV.
28
suas implicações e detalhes, sem nada deixar oculto ao seu interlocutor, tal
como este mesmo lhe solicitara
32
. Ademais, é evidente que este seu
interlocutor, fosse ele quem fosse, era capaz de obter d a partir de a e b, por
intermédio de c, mas os meandros por onde se estende o caminho dessa
reflexão são tantos que Boécio parece escolher a forma da aporia não para
desanuviar o itinerário, e, sim, para, segundo suas próprias palavras, expor
mais claramente essa obscuridade mesma da questão. Com efeito, qual a
melhor maneira de se revelar a obscuridade ou a dificuldade de um
problema senão apresentando-o sob a forma da aporia? Por isso, Boécio não
recorre à possibilidade formal de alterar o primeiro argumento, e assume
que há apenas duas possibilidades de resposta à questão sobre o modo como
as substâncias são boas: por participação ou por substância.
A primeira possibilidade de resposta
33
consiste na hipótese de que “as
coisas sejam boas por participação” (e), mas Boécio haverá de concluir que
“as coisas que são boas por participação não tendem para o bem” (g),
afinal, de acordo com P5 e com b’, “tudo tende para aquilo que lhe é
naturalmente semelhante”, ao passo que, “se as coisas são boas por
participação, elas não são boas por si” (f). Com efeito, seu argumento
equipara, sem demais, a bondade por participação com o ser branco por
participação, que é um modo acidental de ser, afinal, praticamente nada se
define por sua cor, e, assim, se as coisas forem boas por participação, o
estatuto de sua bondade será o mesmo das outras qualidades acidentais, de
maneira que elas não poderão tender para o bem como a um semelhante
naturaliter. O desenvolvimento do texto permitirá concluir que, embora se
possa dizer que as coisas “são” (em sentido forte) acidentalmente
34
afinal,
a única realidade que “é” necessariamente trata-se de Deus , elas são boas,
entretanto, necessariamente, pois, uma vez “sendo”, é necessário que elas
sejam boas, porque sua bondade é implicada pelo seu ser mesmo. Se se
32
Cf. DH [1]-[5].
33
Cf. DH [55]-[60].
34
Toma-se “ser”, aqui, como equivalente de “existir”, “ter ser”.
29
aceitar, ao contrário, que a bondade das criaturas pode ser acidental,
produz-se, então, uma contradição insolúvel, porque não haverá como
sustentar que elas tendam para o bem (cujo ser se confunde com a bondade
mesma), se elas não têm propriamente um ser semelhante ao dele. Nesse
momento do texto, o argumento de Boécio revela a seguinte estrutura
35
:
(e) tome-se como hipótese que, para qualquer substância x, x é
bom por participação;
(f) para qualquer propriedade F, se x é F por participação, então
x não é F por substância, isto é, em virtude do fato de
existir;
(b’) (P9) ora, para qualquer substância x, x tende para aquilo que lhe
é naturalmente semelhante;
(g) se, então, x é bom por participação, x não tende para o bem;
(a) mas já foi concedido que, para qualquer substância x, x
tende para o bem;
(h) portanto, não é o caso de, para qualquer substância x, x ser
bom por participação.
Com efeito, Boécio obtém h, isto é, a refutação de sua hipótese
(portanto, ¬e), a partir de um raciocínio como o que se chamará
posteriormente de modus tollens: a partir de e, f e b’ (ou P9), obtém-se g,
de modo que e ? g. Porém, a partir de a, obtém-se ¬g. Ora, a partir de ¬g,
35
Cf. os comentários de Scott MacDonald, in: MACDONALD, S., op. cit., p. 252.
30
nega-se e: [(e ? g)
^
¬g] ? ¬e. Dessa perspectiva, portanto, para manter-se
fidelidade ao pressuposto expresso em a, há que se negar que as coisas
sejam boas por participação.
Resta, então, a segunda possibilidade de resposta
36
, que consiste em
afirmar “a bondade substancial de tudo o que é” (i). Boécio inicia, então,
por extrair do fato de que “isto que as coisas são elas o recebem do que é o
ser
37
(j), a conclusão de que “isto que elas são são bens” (l), dado que “o
ser de todas as coisas é bom” (k). Em seguida, como que extraindo um
corolário a partir desse raciocínio, Boécio obtém que, “nas coisas, é o
mesmo ser e serem boas” (m), de modo que elas são bens substanciais e não
por participação. Dizer, aliás, que, nas coisas, é o mesmo ser e serem boas
explica o sentido do ser substancial, quer dizer, em outras palavras, as
coisas são boas já pelo fato de existirem, diferentemente do ser acidental,
que se predica secundariamente daquilo que é. Ao contrário, como insiste
Boécio
38
, o ser mesmo de todas as coisas é bom, e as coisas são boas nisto
que elas são, insistência essa que revela, ainda, uma aplicação de P5.
Entretanto, um grave problema é implicado nesse raciocínio, pois,
apesar da validade de suas conclusões, é preciso notar que, levadas às
últimas conseqüências, elas podem permitir a outra conclusão segundo a
qual “todas as coisas são Deus” (q), afinal, “sendo o primeiro Bem um bem
36
Cf. DH [60]-[75].
37
Boécio abre o parágrafo dizendo que, “das coisas cuja substância é boa”, isto que elas
são são bens. A expressão posta aqui entre aspas poderia sugerir a existência de alguma
realidade cuja substância não é boa, mas, em absoluto, seu sentido não é este, porque
não apenas a partir do DH, mas também do CEN (cf. CEN I [70]) e dos comentários a
Aristóteles (cf., abaixo, “Capítulo 2. As posições semânticas de Boécio”), pode-se ver
como, para Boécio, tudo o que existe são bens. O “nada”, dessa perspectiva, não seria,
pois, uma natureza, mas apenas um designativo do não-ser. Além disso, as substâncias
que Boécio considera boas são as substâncias primeiras de Aristóteles, ou seja, os
indivíduos concretos, como se pode ler em DH [90]. Esse modo de interpretar a
expressão “das coisas cuja substância é boa” remete, ainda, à distinção entre os entes
concretos e as entidades abstratas, porque estas não possuem, propriamente, uma
substância boa, isto é, não chegam a constituir um bem, pois não existem
concretamente.
38
Cf. DH [65].
31
substancial” (n premissa elíptica), “se as coisas são boas
substancialmente, elas são semelhantes a Deus” (o) e “nada é semelhante a
ele a não ser ele mesmo” (p). Mas “é nefasto dizer que as coisas são Deus
39
(r), o que impõe estabelecer ¬l, ou seja, negar que as coisas sejam bens
substanciais (s), para evitar a conclusão nefasta de que as coisas seriam
Deus: [(l ? q)
^
¬q] ? ¬l. Ora, se é assim, então não haveria nelas um ser
bom e elas não seriam boas nisto que elas são; mas, por outro lado, elas
também não são boas por participação, como se demonstrou anteriormente,
de maneira que elas parecem não ser boas de nenhum modo
40
:
(i) tome-se como hipótese que, para qualquer substância x, x é bom
por substância;
[(n) se o primeiro Bem é um bem substancial];
(o) então x é semelhante ao primeiro Bem no sentido de ser um bem
substancial;
(p) mas nada, no sentido de ser um bem substancial, é semelhante ao
primeiro Bem senão ele mesmo, ou seja, nada é semelhante ao
primeiro Bem sob esse aspecto;
(o) então, ou x é o primeiro Bem;
39
Esse princípio não apenas remete a mais um pressuposto tomado dos sábios, mas
também a uma exigência interna ao próprio pensamento de Boécio (que permanece fiel,
nesse sentido, à tradição grega antiga), segundo a qual é preciso postular a existência de
um primeiro princípio transcendente ao cosmo, ou, dito de outra maneira, um princípio
absoluto, absolutamente distinto das realidades criadas, cuja não-afirmação implicaria o
risco de não se encontrar nenhum fundamento para a inteligibilidade do real (cf., por
exemplo, FC [50]-[55] e a continuação do próprio DH). Além disso, por contraposição,
sabendo que as coisas são compostas (no mínimo, de matéria e forma), Boécio não pode
aceitar nenhuma identificação entre elas e Deus, pois o ser de Deus é absolutamente
simples (cf. a continuação do próprio DH).
40
Cf. os comentários de Scott MacDonald, in: MACDONALD, S., op. cit., p. 252.
32
(s) ou x não é bom por substância;
(r) ora, é um contra-senso dizer que x é o primeiro Bem;
(s) portanto, não é o caso de, para qualquer substância x, x ser bom
por substância.
Monta-se, assim, a aporia relativa à bondade das criaturas: elas não
tenderiam ao bem e não seriam boas de nenhum modo. No entanto, da
resolução dessa aparente aporia depende o núcleo mesmo da metafísica de
Boécio, dada sua insistência na implicância direta do bem pelo ser, ou, se
se quiser, dada sua afirmação de que as coisas são boas em virtude de
serem.
Além disso, embora essa afirmação não se encontre no texto do DH,
pode-se supor que o bem e o ser sejam conversíveis, assim como são o uno
e o ser
41
, pois o próprio ser ou a automanutenção na existência é o primeiro
objeto de desejo de todas as substâncias (e, portanto, o primeiro Bem a ser
desejado)
42
. Como prova desse desejo, Boécio indica o fato de que não
apenas os seres animados o possuem (como, por exemplo, os animais, que,
naturalmente, podendo escolher, escolhem continuar a existir e temem
espontaneamente a morte, ou as plantas, que sempre buscam crescer em
lugares propícios a cada uma delas), mas também os seres inanimados, os
quais revelam um desejo semelhante ao dos seres animados, como quando as
chamas, por exemplo, subindo, buscam um lugar mais apropriado para sua
leveza, ou como as pedras, que aderem tenazmente às suas partes e resistem
à sua separação. Dessa perspectiva, a contradição do ser associa-se,
segundo Boécio, à dispersão, e todo ser persiste enquanto é uno, mas perece
e é destruído quando perde a unidade. No limite, portanto, o um seria
41
Cf. CEN IV [295].
42
Cf. CP III, 11.
33
idêntico ao bem, e, se todas as realidades desejam o um, desejam
automaticamente o bem; ou, ainda, ao desejar o um, desejam o bem, e, ao
desejar o bem, desejam o um: o bem é o fim de todas as coisas.
Entretanto, não se trata de dizer que há um ato da inteligência que
escolhe desejar o bem, pois o bem sempre é desejado, havendo como que
uma “finalidade” inscrita em cada coisa para a qual movem princípios
naturais. A partir daí, Boécio conclui diretamente que o bem é o fim de
todas as coisas. Porém, na contrapartida, dizer que o bem é o fim de todas
as coisas não significa dizer que o desejo do bem, latente nas substâncias,
resolve-se pela autoconservação na existência, ou seja, num plano imanente
em que o bem seja a própria substância ou algo que o valha: a partir desse
primeiro objeto de desejo que se conhece na ordem da Natureza, Boécio
ascende ao Bem, que é o primeiro objeto de desejo na ordem do ser, e o
Bem, dessa perspectiva, passa a ser o objeto supremo tanto do agir (e,
portanto, do desejar), como do conhecer humano; em síntese, o Bem é o fim
de todo ser.
Segundo o vocabulário ético, o primeiro Bem ou Bem supremo é o
objeto da felicidade
43
, pois ele é o único que preenche as condições formais
estabelecidas para a sua obtenção: finalidade, completude e perfeição
trata-se de um bem perfeito, porque não carece de nada; completo, porque
reúne em si todos os bens; último, porque não há nada além dele nem nada
de diferente dele que seja desejável
44
. Ora, ao abordar essa questão no CP,
antes de demonstrar a existência do desejo universal da felicidade (segundo
os argumentos referentes ao desejo do ser, mencionados acima), Boécio
dedica-se a demonstrar a existência real e não quimérica do Bem supremo, o
e o faz fundamentando-se na imperfeição do mundo, pois, se se admite a
existência de uma realidade imperfeita (dado que tudo se renova, mas
também se corrompe, vem a ser, mas também se destrói etc.), há que se
43
Cf. CP III.
44
Cf. CP III, 2.
34
admitir a existência de uma realidade perfeita, por contraposição à qual se
diga o imperfeito, e que se situe na origem deste, pois é impossível que a
realidade imperfeita tenha origem em si mesma
45
. Assim, para Boécio, se,
em qualquer gênero de coisas, há algo imperfeito, deve haver,
necessariamente, também algo perfeito, pois a natureza das coisas não
extrai seu início a partir de realidades diminuídas e incompletas, mas, na
medida em que procede do que é íntegro e perfeito, descende a realidades
extremas, elas sim diminuídas em perfeição. No limite, a possibilidade de
supor a existência de um bem supremo, tal como se falou acima, consiste na
própria possibilidade de intelecção do real, pois, se o bem fosse uma
quimera, não haveria maneira de evitar a contradição implicada na posição
do imperfeito sem o perfeito: o ser seria reconduzido ao nada; mas é
evidente a impossibilidade de se pensar o ser como proveniente do nada.
Trata-se da mesma evidência segundo a qual o menos procede do mais, que
é a sua fonte
46
. Esse “mais” ou essa realidade perfeita consiste na realidade
divina, cuja superioridade e suprema bondade são indiscutíveis.
Ora, se os humanos tornam-se felizes quando obtêm a felicidade, e se a
felicidade é a própria divindade, então os humanos tornam-se felizes
quando obtêm a divindade, e o modo de tal obtenção, como se pode prever,
é o modo da participação, pois, embora, por natureza, Deus seja um, por
participação ele pode ser muitos, de maneira que, assim como o homem se
torna justo adquirindo justiça, e sábio adquirindo sabedoria, também podem
tornar-se deuses aqueles que obtêm a divindade. O Bem é, portanto, a
síntese, o pivô e a causa de todas as coisas desejáveis, pois todas elas se
referem a ele, visto serem desejáveis em função dele (assim como quando
alguém decide andar a cavalo visando a saúde). Assim, se o motivo pelo
qual tudo é desejado é o bem, mas também a felicidade, e se Deus e a
45
Cf. CP III, 10, 1-6.
46
Cf. GHISALBERTI, A. “L’ascesa boeziana a Dio nel libro III della ‘Consolatio’”. In:
OBERTELLO, L. Atti del congresso internazionale di studi boeziani. Roma: Herder,
1981, p. 185.
35
felicidade possuem a mesma substância, esses três nomes designam, então,
a mesma realidade.
Entretanto, essa participação em Deus que torna os humanos felizes
circunscreve-se, se se pode dizer assim, no âmbito da ética, ou seja, no
âmbito do desejo e da ação; trata-se da verdade mesma da ação. É por isso
que, ao falar do “tornar-se deus” como uma possibilidade aberta aos
humanos quando estes possuem a divindade, Boécio evoca os exemplos do
“tornar-se justo” ou “tornar-se sábio” quando se possui a justiça ou a
sabedoria. Tais exemplos, como se vê, evocam características acidentais, e
permitem entender que a verdadeira felicidade, sendo fundamentalmente
individual, somente se pode obter quando a pessoa se volta conscientemente
para Deus e o obtém como objeto de conhecimento e de desejo.
Transpondo-se para o âmbito da ontologia essa presença universal do
Bem no horizonte das substâncias criadas, o que se observa é, de um lado, a
realidade do Bem supremo em função do qual existe tudo o que existe, e, de
outro, a identificação entre cada ser individual com um bem relativo. Ora,
nesse nível, o desejo do Bem e a sua procura não são acidentais, mas
substanciais, ou seja, estão inscritos na natureza mesma de cada realidade,
embora seja acidental o movimento consciente que, segundo a linguagem
ética, conduz à consecução da felicidade. De todo modo, é no nível desse
fundamento do Ser que se dá a identificação entre ser e bem, ou Ser e Bem,
justificando que o ser se nomeie como bem e permitindo compreender, como
se indicou anteriormente, que a bondade das substâncias é uma bondade
ontológica muito antes de ser moral.
36
1.4. A solução.
Para resolver a questão, Boécio recorre a um ato do espírito
47
ao qual
ele já se havia referido nos comentários a Aristóteles e que ele haveria de
retomar também no DT
48
: trata-se de separar, mentalmente, aquilo que está
unido na realidade. Isso lhe permite adotar estrategicamente, na tentativa de
resolução da aporia construída acima, uma hipótese impossível ou um
raciocínio experimental
49
que toma por base as seguintes proposições: “o
primeiro Bem não existe” (a) e “todas as coisas que são são boas” (b).
1.4.1. A hipótese impossível.
Assim, afastando-se “metodologicamente”, pelo espírito, a presença do
primeiro Bem, a compreensão de cada uma das qualidades das substâncias
deve se dar sem nenhuma referência a ele, inclusive no que se refere à
bondade das coisas, pois, considerando-se a presença do primeiro Bem, a
bondade das criaturas mostra-se diretamente decorrente dele (porque
comunicar o ser será comunicar um ser “bom”, no sentido que se indicou
acima), mas, afastando-se essa presença, nenhuma razão se impõe, de saída,
para a distinção entre o estatuto da bondade e o das outras qualidades.
Ora, no caso de se pensar que as diferentes qualidades de uma coisa
pudessem identificar-se com sua substância, produzir-se-ia o contra-senso
de afirmar a identidade dessas qualidades entre si, a ponto de a gravidade
ser o mesmo que a cor, a cor o mesmo que o bem, e o bem o mesmo que a
gravidade. O absurdo, porém, de tal identificação é uma evidência da
47
Cf. DH [75]-[80].
48
Cf., por exemplo, IPES I, 164 167; DT I [50]-[60].
49
Cf. MACDONALD, S., op. cit., pp. 245-279; MARTIN, C. J. “Non-Reductive arguments
from Impossible hypotheses in Boethius and Philoponus”. In: Oxford studies in
Ancient philosophy. Oxford: Oxford University Press, Vol. XVII, 1999, pp. 279-302;
MARENBON, J., op. cit., pp. 90-95. Adiante, retomar-se-á o estudo desse raciocínio que
toma por base uma hipótese impossível (cf., abaixo, seção 2. O método hipotético).
37
Natureza, de modo que, mesmo afastando metodologicamente a presença do
Bem, Boécio vê-se forçado a submeter-se à necessidade de distinguir entre
as qualidades da coisa, admitindo que a bondade não possui o mesmo
caráter da cor, do peso etc. Por conseguinte, obtém ao mesmo tempo que,
para as substâncias, uma coisa será “serem”, outra, “serem boas”, assim
como será diferente “serem” e “serem brancas”, ou “serem” e “serem
pesadas”.
Por outro lado, se se pensar que a bondade é o único atributo das
coisas e que elas não são absolutamente nada além de boas (nem pesadas,
nem coloridas, nem distendidas numa dimensão do espaço etc.), elas, então,
não parecerão ser coisas, mas princípios de coisas, porque elas serão
simples, ou seja, serão como uma forma, a forma do bem, e não coisas
distintas que subsistem como todos concretos. Como nota Boécio, melhor
seria falar de “princípio”, em vez de “princípios” (no plural), porque a
hipótese de que as coisas não sejam nada além de boas resulta na afirmação
de apenas uma única substância boa, e reduz tudo a essa substância, afinal,
há apenas uma realidade que é boa e absolutamente apenas boa
50
.
Implicitamente, Boécio considera que as diferenciações numéricas ocorrem
quando as formas entram em composição com a matéria, a qual proporciona
os acidentes que distinguem os indivíduos. No IDI, para referir-se à
produção dos indivíduos, ele chega a falar de uma qualitas singularis, que
se encontra no indivíduo como a forma única e própria a apenas um
indivíduo, e uma qualitas communis, que é comum a todos os indivíduos
50
Embora Boécio comece o argumento pela hipótese de que não há um primeiro Bem
(a), aqui, na premissa k , ele evoca uma tese que se assemelha também a uma hipótese,
no sentido de dizer que, se houver uma substância que é apenas boa e nada mais (quer
dizer, uma substância cujo ser se confunde com o ser bom), então essa substância será
única, porque, se houver uma outra substância que se lhe assemelhe, ambas terão de
possuir alguma diferença que as distinga, e deixarão, portanto, de ser unicamente boas.
No limite, não se pode pensar que haja um universal de uma realidade como esta. No CP
III, 10, Boécio demonstra por que não pode haver dois sumos bens (ou dois bens
primeiros): deve-se dizer, grosso modo, que a um faltaria o outro ou algo que há no
outro e que o torna distinto, de modo que, faltando-lhe algo, ele deixa de ser o bem
supremo. Cf., também, DT III [120].
38
pertencentes a uma mesma espécie ou a um mesmo gênero
51
. Assim, o todo
concreto é isto que é, e difere de sua forma tomada em si mesma, conforme
ensina P8; mas difere, ainda, dos seres simples, conforme ensina P7, por
sua composição de forma e matéria. Dessa maneira, para as coisas serem
como elas mostram ser, ou seja, para serem coisas dotadas de qualidades
diferentes entre si e diferentes também de sua própria forma substancial,
elas não podem ser apenas boas, pois uma realidade desse tipo será, então,
princípio de outras realidades.
O argumento de Boécio pode ser estruturado como segue
52
:
(a) suponha-se que o primeiro Bem não existe;
(b) todas as coisas que são são boas;
(g) suponha-se que, para uma determinada substância boa x, x,
além de ser bom, é branco, pesado e redondo;
(d) no caso de cada propriedade de x ser o mesmo que a substância
de x, as propriedades de x serão idênticas entre si;
(e) a Natureza não admite a identificação das propriedades de x
entre si;
[(e’) sendo assim, a brancura, o peso, a redondeza e a bondade de x
diferem entre si];
51
Cf. IDI II, 136, 20-24; 139- 6-25. Adiante, no capítulo 2, “As posições semânticas de
Boécio”, retomar-se-á o estudo da qualitas singularis e da qualitas communis.
52
Cf. DH [80]-[105].
39
(z) portanto, a brancura, o peso, a redondeza e a bondade de x
[com todas as outras características juntas] não são o mesmo
que a substância de x;
(h) portanto, o ser de x não é o mesmo que o ser branco, pesado,
redondo ou bom de x;
(q) portanto, o ser de x não é bom;
(i) suponha-se, por outro lado, que, para qualquer substância x, x
não é absolutamente nada além de bom;
(k) ora, há uma e somente uma coisa que é apenas boa e nada mais;
(l) portanto, se x não é nada senão bom, então há apenas uma única
substância boa;
[(m) mas a Natureza não admite que haja apenas uma única
substância boa];
(n) portanto, não é o caso de x não ser nada além de bom;
(x) portanto, para qualquer substância x, o ser de x não é o mesmo
que o ser bom de x.
A conclusão desse argumento (x) é essencialmente negativa
53
, mas, por
seu conteúdo, ela corresponde exatamente, de um lado, a s (“não é o caso
de, para qualquer substância x, x ser bom por substância”), e, de outro, a
¬d’, ou seja, à contradição de as coisas que são são naturalmente boas”.
De fato, Boécio mesmo assume essa equivalência quando resume o
argumento que se acaba de expor imediatamente acima, dizendo:
53
Cf. MACDONALD, S., op. cit., p. 256.
40
Igitur sublato ab his bono primo mente et cogitatione, ista, licet
essent bona, tamen in eo quod essent, bona esse non possent
54
.
Há, porém, nesse argumento, um problema formal, pois é inválida a
inferência de h, afinal, embora z seja validamente obtido a partir de e, não
se obtém, entretanto, necessariamente h a partir de e e z. Com efeito,
embora se verifique z (a afirmação de que a brancura, o peso, a redondeza e
a bondade de x não são o mesmo que a substância de x), por meio de e (ou
de e, isto é, a evidência mesma de que todas essas propriedades são
diferentes entre si) e d (segundo a qual, no caso de cada propriedade de x
ser o mesmo que a substância de x, então as propriedades de x, por
transitividade de identidade, serão idênticas entre si), não se obtém h a
partir desse mesmo raciocínio, ou seja, não segue daí que nenhuma dessas
propriedades, isoladamente, não possa ser a substância de x. Com efeito, se
uma dessas propriedades fosse idêntica à substância de x, tanto e como z
seriam verificadas, ao passo que h seria falseada, o que demonstra a
invalidade do argumento.
Essa invalidade, entretanto, pode passar desapercebida, porque Boécio,
em seus exemplos, não utiliza senão propriedades acidentais. Com efeito,
ninguém poderia pensar que a brancura, o peso ou a redondeza fossem
características do tipo que se possa tomar pela substância de uma coisa,
afinal, todas essas propriedades são propriedades que afetam substâncias
logicamente independentes
55
, mas, caso Boécio houvesse incluído entre elas
uma propriedade como a de “ser homem”, por exemplo, então a invalidade
da inferência seria mais visível. Seja como for, Boécio parece tomar como
natural que todos os atributos sejam logicamente equivalentes, mas
54
DH [130].
55
Cf. os comentários de MACDONALD, S., op. cit., pp. 257-258, e MARENBON, J., op.
cit., p. 92.
41
permanece aberta a indagação se é justificável o emprego de uma inferência
inválida.
A esse respeito, parece conveniente seguir a leitura de Scott
MacDonald
56
, que inicia por dizer que a Boécio interessava investigar a
propriedade do ser bom das coisas, de modo que lhe importava saber se a
bondade pode ser o mesmo que a substância de uma coisa no sentido em que
“ser homem” parece ser a substância de Sócrates. Dado esse interesse de
Boécio, MacDonald pergunta, em seguida, se se pode falar da bondade como
a essência ou a substância de algo, à qual se anexariam, num segundo
momento, outras propriedades acidentais. Ora, o texto do DH não permite
resposta direta a essa questão, mas alguns elementos dos comentários a
Aristóteles, como o próprio MacDonald elenca bastante bem, possibilitam
fazer duas observações: em primeiro lugar, a bondade pode ser uma
propriedade essencial apenas se “bondade” significar um gênero, uma
espécie ou uma diferença (a espécie é o que nomeia a substância de um
ente, e ela se define pelo gênero e a diferença), mas Boécio afirma que a
bondade é uma propriedade que pertence a todas as substâncias, de onde
segue que, para falar em termos de gênero, “coisa boa” ou “bem” seria um
gênero somente se ele fosse o mais alto entre todos, mas é “substância” que
se pode chamar de o mais alto gênero, não “bem”. Além disso, se todas as
coisas são boas, “bem” também não pode ser uma espécie de um gênero
superior nem uma diferença que distinga uma espécie de outra. Em segundo
lugar, se se toma um caso ordinário do que Boécio considera um bem, vê-se
imediatamente que o discurso não deve prender-se a nenhuma
universalidade. Assim, é um indivíduo humano como Sócrates que Boécio
considera como bem, conforme, aliás, já se mencionou anteriormente, mas
Sócrates é essencialmente um humano e quando se designa sua substância
não se faz nenhuma menção à bondade. Por conseguinte, a partir dessas
duas observações, conclui-se que a bondade não pode ser a essência ou a
56
Cf. MACDONALD, S., op. cit., pp. 257-258.
42
substância de uma realidade individual (à exceção, evidentemente, do
primeiro Bem), de modo que a pergunta feita por MacDonald deve receber
resposta negativa: não parece coerente com o pensamento boeciano
considerar a possibilidade de falar da bondade como essência ou substância
de algo, como se a ela se anexassem, num segundo momento, outras
propriedades acidentais, de onde resulta justificável pensar numa afirmação
como h, ou seja, uma afirmação segundo a qual uma coisa seria a substância
mesma, outra, a sua redondeza, sua cor, sua bondade etc., ainda que, para
chegar a h, Boécio tenha se servido de uma inferência inválida.
Ora, apesar de a inferência de h ser inválida, as premissas a e b
permitem a conclusão de que, na contrapartida de h, qualquer característica
de x pode ser identificada com a essência de x, pois, afastada a presença do
primeiro Bem, todos os atributos mostram-se logicamente equivalentes, a
ponto de não se poder decidir por nenhum dentre eles para tomá-lo como
qualidade substancial. Dessa perspectiva, a invalidade da inferência de h
não afeta o conjunto do argumento de Boécio nem a validade da conclusão
x. Com efeito, a partir de a e b, chega-se à impossibilidade de decidir entre
os atributos de x (o que mantém a validade da conclusão segundo a qual
“ser” e “ser bom” serão distintos nas substâncias, dado que, afastado o
primeiro Bem, nada fundamentaria uma associação entre ambos); e, a partir
de a, b, e i, chega-se a x, ou seja, à distinção, nas coisas, entre “ser” e “ser
bom”, pois, caso contrário, tudo se reduziria a uma única substância.
1.4.2. A presença necessária do primeiro Bem.
O que, entretanto, marca, acima de tudo, a estratégia argumentativa de
Boécio é o fato de que, assumindo-se o pressuposto da inexistência do
primeiro Bem, chega-se ao contra-senso de afirmar que as coisas não são
boas em virtude de serem, ou, em outras palavras, não são boas nisto que
43
elas são. Com efeito, segundo o argumento de Boécio, assumir a implica
aceitar x, mas aceitar x implica contrariar d e d’. Todavia, d e d’ já foram
demonstrados desde o início da posição do problema, o que imporá a
contradição de a e, conseqüentemente, a afirmação necessária da existência
do primeiro Bem: [(a ? x)
^
¬x] ? ¬a.
A partir, então, do reconhecimento da necessidade da presença do
primeiro Bem como condição para que as substâncias sejam boas em razão
de serem, Boécio passa a investigar a relação existente entre as substâncias
e o primeiro Bem, e o faz por um argumento de caráter mais positivo,
registrado num breve parágrafo
57
que, entretanto, contém o princípio de
solução para o problema central do DH. Assim, com base no fato de as
características das coisas não se confundirem com sua substância, e
aplicando os princípios P7 e P8, Boécio chega à formulação de que “as
coisas não são simples” (o) e estabelece uma relação direta entre a
simplicidade do ser e o vir-a-ser (p), porque as coisas compostas, dessa
perspectiva, não podem ser princípio da própria existência, postulando a
existência de uma realidade primeira e simples que tenha desejado a
existência delas
58
. Essa realidade primeira é essencialmente boa e é do seu
querer que procede tudo o que é. Nesse sentido, Boécio estabelece uma
relação direta entre a bondade das criaturas e a sua origem na vontade do
bem, porque, embora empregue o verbo fluere, dizendo que o bem segundo
“flui disto cujo ser mesmo é bom” (o que poderia permitir supor uma
espécie de processão necessária), também emprega o verbo defluere para
explicitar que o ser das coisas procede do querer do primeiro Bem (a boni
uoluntate defluxit
59
). Ora, dada essa relação de origem, as coisas são
corretamente ditas boas nisto que elas são e o parágrafo conclui-se por uma
construção gramatical bastante particular. Diz o texto:
57
Cf. DH [105]-[115].
58
Cf. FC [5]-[20]; [50]-[55]; CP III, 10.
59
Cf. DH [110].
44
Ipsum igitur eorum esse bonum est; tunc enim in eo
60
.
A frase latina, aqui, é especialmente densa, mas nada que não seja
compreensível pela estrutura sintática do Latim: trata-se de dizer que o ser
de todas as coisas é bom, mas bom “no” primeiro Bem, ou seja, enquanto
ligado a ele e dependente dele, segundo o esquema ontológico que Boécio
acaba de descrever: um esquema de processão de tudo a partir do querer do
primeiro Bem. Sendo assim, é por ele (ou nele) que tudo se diz bom.
Alguns manuscritos apresentam uma frase mais desenvolvida e, em vez
de tunc enim in eo, registram tunc enim in eo quod essent non essent bona,
si a primo bono minime defluxisset (“com efeito, então, não seriam boas
nisto que seriam, se não procedessem do primeiro Bem”), mas as melhores
versões mantêm a forma sintética aqui apresentada
61
. Quanto à sua estrutura
formal, o argumento de Boécio pode ser retratado como segue
62
:
(o) para toda substância x, x não é simples;
(p) se x não é simples, então x não pode existir, a menos que o
primeiro Bem, ou seja, isto que é apenas bom, queira que x
exista;
[(r) x, portanto, existe numa relação de dependência-para-ser com o
primeiro Bem];
60
Cf. DH [115].
61
Cf. o aparato crítico da edição Moreschini: BOETHIVS. De consolatione philosophiae
& Opuscula theologica. Munique & Leipzig: K. G. Saur, 2000, p. 191.
62
Cf. a formalização de Scott MacDonald em MACDONALD, S., op. cit., pp. 258.
45
(s) é ele mesmo bom o ser de tudo o que existe numa relação de
dependência-para-ser com aquilo cujo ser mesmo é bom (isto é,
aquilo que é bom em virtude de ser);
(j) portanto, para toda substância x, o ser de x é ele mesmo bom, ou
seja, x é bom em virtude do fato mesmo de ser (de “ter” ser).
A conclusão desse argumento é exatamente a mesma daquela obtida no
primeiro raciocínio (ad ou ad’) construído sobre os pressupostos da posição
da questão
63
: as coisas que são são boas (d) ou as coisas que são são
naturalmente boas (d’). Dito de outra maneira, todas as substâncias são boas
em virtude do fato de serem.
Falando da proposição p, Scott MacDonald não vê razão para Boécio
introduzir a especificação de que as coisas fluem do desejo do primeiro
Bem
64
. Com efeito, do ponto de vista lógico, a insistência reiterada no
querer do primeiro Bem parece inteiramente acessória nesse contexto, mas,
se se atentar para o caráter metafísico da observação, parece possível supor
que Boécio pretendesse marcar uma diferença mais explícita com relação a
seus ascendentes neoplatônicos, pois, embora Plotino, por exemplo,
mencione textualmente uma vontade do Uno
65
, não se pode interpretar essa
vontade em termos de escolha ou deliberação, ao passo que é exatamente
nesse sentido que Boécio parece falar da vontade do primeiro Bem,
sobretudo se se coteja o DH com o FC
66
. Sem entrar, aqui, no teor das
afirmações plotinianas segundo as quais os outros graus de ser procedem do
querer do Uno, vale dizer que, no caso de Boécio, processão não é
63
Cf. DH [45]-[50].
64
Cf. MACDONALD, S., op. cit., pp. 259, nota 29.
65
Cf. PLOTINO, Enéadas VI, 8 (Tratado 39).
66
Cf. FC [50]-[55].
46
emanação
67
, e, além disso, a processão nasce do querer “consciente” do
primeiro Bem.
Para pensar esse aspecto importante do neoplatonismo, vale evocar a
tentativa plotiniana de ultrapassar tanto as unidades múltiplas do mundo
platônico das Idéias como a unidade distributiva da teoria aristotélica da
substância, visando, com essa dupla tentativa, reencontrar a unidade no
plano rigorosamente ontológico onde não apenas não basta uma unidade
lógica ou numérica, mas ainda se exige que a unidade seja no mais alto teor
da realidade, pois é ela que faz com que tudo seja. Essa radicalidade na
posição do princípio, como se sabe, faz com que Plotino conceba o Uno de
maneira até mesmo superior ao ser. Ora, o Uno, segundo Plotino, sendo
absolutamente simples, é razão de ser do complexo e do múltiplo, e a ele se
atribui potência infinita (no sentido de atividade, não de imperfeição), de
modo que ele não é determinado sequer enquanto pensamento, isto é, ele
não se desdobra para pensar-se ou autoconhecer-se. Se é assim, e dado que
sua atividade é livre e autoprodutora, “ser” e “agir” coincidem no absoluto,
sem que a ação possa ser enquadrada em categorias como escolha,
contingência, necessidade, essência etc
68
. Do Uno derivam, então, todas as
coisas em processão, porém, mais difícil do que explicar como derivam é
compreender por que isso ocorre, afinal, dada a sua absoluta auto-
suficiência, por que ele não permanece simplesmente em si mesmo?
Essa é, certamente, a pergunta metafísica fundamental, e deve-se dizer
de saída que a inefabilidade do Uno e a impossibilidade de pensá-lo
determinadamente não permitem uma resposta definida. A tentativa de
67
Razão pela qual, na presente tese, traduziu-se o verbo defluo por “proceder”. No que
se refere ao termo “emanação”, este também não parece ser a melhor opção para referir-
se ao conceito plotiniano que designa a relação entre o Uno e os outros níveis de
desmembramento do inteligível (o Intelecto e a Alma). A relação entre esses três níveis
é mais bem designada pelo termo “processão”.
68
Cf. LEOPOLDO E SILVA, F. “Fontes agostinianas: o pensamento de Plotino”. In:
_________________. História da filosofia medieval. Curso ministrado no Departamento de
Filosofia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1º semestre de 1996. (Anotações de
aula).
47
pensar a questão leva Plotino à formulação de imagens que permitiriam
vislumbrar intuitivamente a relação do Uno com as demais realidades
ontológicas, e, nesse sentido, o que ele tenta representar em todas elas é a
prevalência da unidade e a dependência das demais realidades em relação ao
centro
69
. O centro irradia (luz, calor, odor) e o irradiado tira sua realidade
do centro do qual procede. Essa última característica é importante, porque
faz da dependência ontológica uma aspiração de retorno à unidade primeira
de onde as realidades emanam.
Entretanto, se se buscar em Plotino um modo de entender, ainda que
aproximativamente, como e por que do Uno procedem os demais graus de
ser, verificar-se-á que a absoluta auto-suficiência do Uno, com sua
característica de autoprodução e atividade, indicará dois aspectos de sua
atividade livre autoprodutora: em primeiro lugar, deve-se falar de uma
atividade “do” Uno, no sentido de um genitivo subjetivo, ou seja, de uma
atividade que lhe é imanente como autoprodução e autoposição, pela qual o
Uno é e permanece o que é (trata-se, pois, de uma atividade interna); em
segundo lugar, deve-se falar de uma atividade que deriva “do Uno”, ligada,
porém, à sua atividade interna e fazendo com que outros níveis de realidade
procedam do Uno. E é exatamente aqui que uma imagem pode ser
apropriada para a compreensão intuitiva: pode-se pensar, por exemplo,
numa fonte, de onde procede um rio sem que o movimento da fonte,
enquanto interno e imanente, possa ser entendido apenas em relação a essa
finalidade e sem que a procedência de outra realidade interfira de qualquer
forma na atividade primordial em termos de sua suficiência e quantidade de
força ou realidade e ser presente nela. Também são úteis as imagens do
fogo e das substâncias olorosas: enquanto duram, algo vindo deles se
difunde em torno a eles, sem, entretanto, que eles mesmos se expliquem
apenas em função disso que se difunde. A força de ser que transborda do
69
Cf. PLOTINO, Enéadas IV, 3, 17 (Tratado 27); V, 1, 6 (Tratado 10); V, 4, 2 (Tratado
2) etc.
48
princípio é imanente ao ato produtor que se identifica com o próprio
princípio:
All¦ pîj mšnontoj ™ke…nou g…netai; Enšrgeia ¹ mšn ™sti tÁj oÙs…aj, ¹ d™k
tÁj oÙs…aj ˜k£stou: kaˆ ¹ m•n tÁj oÙs…aj aÙtÒ ™st…n ™nšrgeia ›kaston, ¹ d•
¢p™ke…nhj, ¿n de‹ pantˆ ›pesqai ™x ¢n£gkhj ™tšran oâsan aÙtoà: oŒon kaˆ ™pˆ
toà purÕj ¹ mšn t…j ™sti sumplhroàsa t¾n oÙs…an qermÒthj, ¹ d• ¡p™ke…nhj
½dh ginomšnh ™nergoàntoj ™ke…nou t¾n sÚmfuton tÍ oÙs…v ™n tù mšnein pàr
70
.
Outra imagem particularmente importante será a da luz, pois ela é
especialmente recorrente no ideário cristão:
’´Esti g£r ti oŒon kšntron, ™pˆ d• toÚtJ kÚkloj ¢paÙtoà
™kl£mpwn, ™pˆ d• toÚtoij ¥lloj, fîj ™k fwtÒj: œxwqen d• toÚtwn
oÙkšti fwtÕj kÚkloj ¥lloj, ¢ll¦ deÒmenoj oátoj o„ke…ou fwtÕj
¢por…v aÙgÁj ¢llotr…aj. ’´Estw d• rÒmboj oátoj, m©llon d•
sfa‹ra toiaÚth, ¿ d¾ kom…zetai ¢pÕ tÁj tr…thj prosec¾j g¦r
aÙtÍ Óson ™ke…nh ™naug£zetai
71
.
As imagens do fogo e da luz, indicando aquela força de ser que
transborda do princípio como imanente ao ato produtor que se identifica
com o próprio princípio, não poderiam ser transportas diretamente para o
discurso boeciano, pois, não insistindo na escolha do primeiro princípio no
sentido de criar o mundo, também não enfatizam a concepção de criação em
virtude de uma razão conhecida somente pela divindade
72
. Em outros
70
PLOTINO, Enéadas V, 4, 2 (Tratado 7). Como nota Luc Brisson, após haver
denominado o Uno, de maneira equívoca, como “inteligível”, Plotino renuncia a nomeá-
lo a não ser por meio de formas pronominais (cf. PLOTINO. Traités 7-21. Tradução
dirigida por Luc Brisson e Jean-François Pradeau. Paris: Flammarion, 2003, p. 32, nota
41). Cf. Anexo, Texto 1.
71
PLOTINO, Enéadas IV, 3, 17 (Tratado 27). Cf. Anexo, Texto 2.
72
Cf. FC [50]-[55].
49
termos, o texto de Boécio permite supor uma certa “escolha” da parte do
Uno, categoria esta que não parece poder designar o Uno plotiniano
73
.
A insistência de Boécio na vontade livre e consciente da divina
natureza ao fabricar o mundo fornece a razão de interpretar-se, aqui, fluere
e defluere como “proceder”, pois não se trata de um simples “fluir”, no
sentido de um princípio de movimento necessário, como numa espécie de
“transbordamento”. Trata-se, antes, de uma processão resultante de uma
“escolha” livre da realidade primeira, embora somente se possa falar de
“escolha” num registro analógico, afinal, a realidade à qual se denomina
“substância divina” é, na verdade, uma realidade que está “para além da
substância”
74
. Na mesma medida, há que se afirmar a inefabilidade dessa
realidade suprassubstancial, ou seja, a impossibilidade de se compreender
por que
73
Abrir-se-ia uma longa discussão se se pretendesse, aqui, investigar a possibilidade ou
a impossibilidade de categorias como “contingência”, “necessidade”, “essência” etc.
designarem o Uno plotiniano. Confira-se o que diz George Leroux a respeito da vontade
do Uno em Plotino: Toute problématique de genèse et de production se trouve en
quelque sorte interpretée comme métaphore de la métaphysique de l’acte. Peut-on en
conclure que toute mention de la volonté au sujet du monde intelligible constitue une
expression inférieure ou dégradée (PLOTIN. Traité sur la liberté et la volonté de l’Un
(Ennéades VI, 8). Introdução, texto grego, tradução e comentários de George Leroux.
Paris : Vrin, 1990, p. 65). De toda maneira, querendo-se falar da vontade do Uno
plotiniano, deve-se insistir numa vontade incondicionada: ele é o kýrios, e o seu
senhorio explicaria seu querer livre. Na contrapartida, um sentido para se falar de
“necessidade” teria de referir-se à atividade interna do Uno, sem pretender, entretanto,
que sua vontade seja condicionada. Essa referência a Plotino é de extrema importância
para a tradição aberta por Boécio. Duns Scotus, por exemplo, insistirá na concepção da
primeira causa como inteligente e voluntária, pois as criaturas são contingentes e agem
com vistas a fins que lhe são desconhecidos. Assim, se a causa primeira agisse por
necessidade, então tudo ocorreria com a mesma necessidade; mas, como tudo sucede
contingentemente, é preciso que a primeira causa cause contingentemente. Ora, se a
vontade é a única fonte de atividade contingente, então a primeira causa deve possuir
uma vontade, e, por conseguinte, uma inteligência. O próprio Boécio, no CP, insiste,
como se sabe, numa dimensão da existência constituída pela total contingência o reino
da Fortuna.
74
DT IV [180].
50
ergo diuina ex aeterno natura et in aeternum sine aliqua mutabilitate
perdurans sibi tantum conscia uoluntate sponte mundum uoluit
fabricare
75
.
Essa afirmação de um querer livre e espontâneo corresponde
diretamente à imagem do primeiro Bem traçada no CP
76
, qual seja, a de uma
realidade cuja existência é necessária mas que não se submete, ela mesma, a
necessidade alguma. Os bens segundos, ao contrário, são seres cuja
existência é contingente, e eles somente passam a existir por uma decisão
da realidade primeira, que, aliás, não os tira de sua própria substância, para
que não se creiam divinos por natureza, nem os fabrica a partir de algo
externo, para que também não pareça já haver algo a ajudar a vontade
divina por meio de uma natureza existente independentemente, tampouco
algo que não tenha sido feito por Deus e, ainda assim, seja. Ao contrário, é
pelo Verbo
77
que Deus produz os céus e cria a terra, de tal modo que ele
faz, na celeste habitação, naturezas dignas do céu, e compõe, para a terra, o
que é terreno:
(...) eumque cum omnino non esset fecit ut esset, nec ex sua
substantia protulit, ne diuinus natura crederetur, neque aliunde
molitus est, ne iam exstitisse aliquid quod eius uoluntatem existentiae
propriae naturae iuuaret atque esset quod neque ab ipso factum esset
et tamen esset; sed uerbo produxit caelos, terram creauit, ita ut
caelesti habitatione dignas caelo naturas efficeret ac terrae terrena
componeret
78
.
75
FC [50].
76
Cf. CP III, 10, 1-6.
77
Cf. João 1, 3; Colossenses 1, 15-20. O sentido dessa expressão não admite referência
a uma causalidade instrumental, como acontecia com o demiurgo platônico, mas, ao
contrário, parece fundar-se na concepção da causalidade do Verbo como operante e, ao
mesmo tempo, exemplar, na linha da igualdade, coeternidade e consubstancialidade com
o Pai.
78
FC [50]-[60].
51
A necessidade lógica, poder-se-ia dizer, que leva Boécio a afirmar não
apenas a existência do primeiro Bem, mas também a total
incondicionalidade pela qual ele produz as realidades segundas (ou, se se
preferir, a incondicionalidade da processão destas a partir daquele), permite
concluir que, visto da perspectiva do primeiro Bem, isto é, encarado a partir
da perspectiva do princípio incondicionado de tudo o que se diz ser, o
movimento de processão típico das realidades segundas pode ser chamado,
sem mais, como criação.
1.4.3. A bondade das criaturas.
Mas é ainda possível perguntar-se pelo sentido da afirmação segundo a
qual o bem segundo é ele mesmo também bom por, de um lado, fluir
daquela realidade cujo ser mesmo é bom, e, de outro, porque assim o quis
essa realidade. Isso equivale, conforme a formalização feita acima, à
proposição s: “é ele mesmo bom o ser de tudo o que existe numa relação de
dependência-para-ser com aquilo cujo ser mesmo é bom (isto é, aquilo que é
bom em virtude de ser)”.
A primeira resposta que se pode obter para essa questão consiste
justamente em identificar como condição para o ser bom das coisas a
dependência com relação ao primeiro Bem, de modo que, se elas dependem
do primeiro Bem para existir, então elas são boas em virtude do fato de
terem ser. Assim, o fato de as coisas criadas serem efeitos do primeiro Bem
assegura que elas são boas
79
. No entanto, dizer isso não parece suficiente
para responder à questão do sentido da “bondade” das coisas, porque essa
resposta apenas repete que “ser bom” segue do fato de o primeiro Bem
haver criado coisas boas. Ora, Boécio diz que o bem segundo, porque flui
disto cujo ser mesmo é bom, é, ele mesmo, também bom. Todavia, não se
79
Cf. MACDONALD, S., op. cit., pp. 260.
52
pode pretender que a relação entre o primeiro Bem e os bens segundos,
denotada aqui pela conjunção quoniam, se considere esclarecida pela
afirmação de que as coisas criadas são efeitos do primeiro Bem.
Essa relação continua, então, inexplicada, e não se pode deixar de
assumir que o texto de Boécio não é muito claro no que se refere à natureza
da relação entre o primeiro Bem e a bondade das criaturas. Scott
MacDonald
80
interpreta a relação indicada pelo quoniam concebendo a
bondade enquanto uma propriedade relacional, ou seja, como a
característica das coisas que se mantêm em relação com o primeiro Bem.
Em outras palavras, uma criatura seria boa não em si mesma nem
acidentalmente, mas enquanto seu ser mantém-se numa relação de
dependência para com o primeiro Bem. Assim, a bondade seria uma
propriedade relacional que faria “bons em virtude do próprio fato de serem”
tanto o primeiro Bem como os bens segundos o primeiro Bem seria
necessariamente bom, pelo simples fato de ser, ao passo que os bens
segundos seriam bons por contingência, ou seja, por possuírem uma
propriedade relacional cujo objeto é aquele bem necessário. Dessa
perspectiva, a distinção existente entre a bondade do primeiro Bem e a
bondade dos bens segundos seria uma distinção modal, e o argumento de
Scott MacDonald (por ele chamado de modality’s argument - M) assim se
estruturaria
81
:
(M
1
) não é possível que o primeiro Bem não seja bom em virtude
do fato de ter ser;
80
Cf. idem, pp. 264-270. Essa é, grosso modo, também a interpretação de L.-B. Geiger,
exposta em seu capítulo sobre Boécio em seu clássico: GEIGER, L.-B. La participation
dans la philosophie de S. Thomas d’Aquin. Paris: Vrin, 1953.
81
Cf. idem, pp. 268-269.
53
(M
2
) é possível que os bens segundos não sejam bons em virtude
do fato de que eles têm ser;
(M
3
) as substâncias são boas em virtude do fato de que elas
existem, isto é, em virtude da dependência de seu ser com
relação ao primeiro Bem;
(M
4
) não é o caso que as substâncias sejam boas em virtude do seu
ser, isto é, em virtude de sua substância ou essência;
(M
5
) o primeiro Bem é bom em virtude de seu próprio ser.
A interpretação de Scott MacDonald, no entanto, apresenta dois
aspectos frágeis: em primeiro lugar, concebendo a bondade das criaturas
como uma propriedade relacional, não explica como seria possível pensar a
lógica das categorias, uma vez que a bondade das criaturas é uma
característica substancial, enquanto a categoria de relação indica uma
característica acidental
82
. MacDonald parece supor a necessidade de
transcender o sistema das categorias ao falar da bondade como um atributo
que não é nem substancial nem acidental, mas, à parte essa suposição, sua
interpretação não explica a insistência de Boécio na derivação das criaturas
a partir do querer do primeiro Bem, afinal, se Boécio estivesse satisfeito
com a explicação meramente relacional da bondade das criaturas, ele não
teria insistido, como fez, na concepção da bondade como resultante de um
querer necessariamente bom, nem na afirmação de que as substâncias, em
seu verdadeiro ser, se assemelham à causa de seu ser, ainda que,
evidentemente, isso se dê segundo o seu modo próprio, que é o modo da
contingência das substâncias compostas
83
. Isso tudo, porém, não quer dizer
82
Cf. DT V [295]-[330].
83
Sobre a crítica à posição de MacDonald, cf., ainda, MARENBON, J., op. cit., p. 93 e
AERTSEN, J. “Good as Transcendental and the transcendence of the Good”. In:
54
que a bondade das criaturas não possua um caráter relacional (afinal, elas
só existem porque assim o quer o primeiro Bem), mas a resposta de
MacDonald toma uma parte da resposta de Boécio e a generaliza à natureza
da bondade como tal.
Ora, o modo próprio de as criaturas serem boas é o que constitui o
centro do último parágrafo da solução de Boécio
84
e é curioso notar que ele
introduz esse momento do texto dizendo que “uma questão, porém, há nessa
solução”, sem, todavia, enunciá-la explicitamente. Todavia, pelo
desenvolvimento do parágrafo, observa-se que se trata de assegurar, de um
lado, a diferença existente entre as coisas e o primeiro Bem, e, de outro, a
afirmação de que elas não são bens substanciais. Ora, é exatamente aí que
reside a questão, porque, como se viu, os momentos lógicos anteriores da
solução articulam-se todos a partir do pressuposto da semelhança entre as
coisas e o primeiro Bem, levando, por conseguinte, à conclusão de que as
coisas são boas nisto que elas são. Dizer, porém, agora, que as coisas não
são semelhantes ao primeiro Bem e que elas não são bens substanciais cria
uma dificuldade cuja resolução é de extrema importância para a
argumentação de Boécio, afinal, no limite, corre-se o risco de contradizer
as conclusões anteriores ao mesmo tempo em que dessas afirmações
depende o estabelecimento da diferença radical entre o bem primeiro e os
bens segundos. Como se pode ver, é ainda a questão da bondade das
criaturas que reclama esclarecimento, e, numa linguagem mais escolástica,
poder-se-ia dizer que se trata da polaridade entre a transcendentalidade e a
transcendência do bem.
O argumento fundamental de Boécio consiste no seguinte:
MACDONALD, S. (ed.). Being and goodness. The concept of the Good in metaphysics
and Philosophical theology. Itaca & Londres: Cornell University Press, 1991, pp. 56-
73.
84
Cf. DH [115]-[140].
55
Idcirco enim, licet in eo quod sint bona sint, non sunt tamen similia
primo bono, quoniam non, quoquo modo sint res, ipsum esse earum
bonum est, sed quoniam non potest esse ipsum esse rerum nisi a
primo esse defluxerit, id est bono, idcirco ipsum esse bonum est nec
est simile ei a quo est
85
.
O que se observa nesse argumento é que ser semelhante ao primeiro
Bem implica ser bom em todos os sentidos (t ? u), ou seja, implica dizer-
se bom em não importa qual modo. Dito de outra maneira, ser semelhante ao
primeiro Bem implica ser como ele é: apenas bom e nada mais
86
. Ora, as
coisas são não apenas compostas, mas também derivadas do primeiro Bem
(derivação essa que marca ainda outra diferença, pois o primeiro Bem há de
ser incondicionado, como se obteve anteriormente), de maneira que, por um
raciocínio extremamente simples e estruturalmente idêntico aos raciocínios
anteriores, obtém-se que elas não poderão ser consideradas semelhantes ao
primeiro Bem: [(t ? u)
^
¬ u] ? ¬t.
A relação de derivação, entretanto, parece fornecer a chave de leitura
para esse parágrafo, pois, conforme diz Boécio, o ser mesmo das coisas não
pode ser senão enquanto tenha procedido do primeiro ser, isto é, daquela
realidade cujo ser mesmo é o bem, de maneira que, por essa processão, as
coisas que existem são substancialmente bens (são boas nisto que elas são,
ou seja, são “boas” enquanto “existentes”), mas não ao modo do primeiro
Bem, quer dizer, não como realidades simples cuja essência mesma é o bem.
As coisas são boas, portanto, como substâncias compostas, isto é, como
realidades a cujo ser bom acrescentam-se características secundárias. Por
conseguinte, compreende-se também o modo de elas serem semelhantes ao
primeiro Bem, pois elas se lhe assemelham na medida em que possuem um
ser bom, mas não por serem boas enquanto realidades simples.
85
DH [115]-[125].
86
Cf. DH [105]; [125].
56
Dessa perspectiva, elas se distinguem radicalmente do primeiro Bem,
e, de fato, não podem ser estritamente semelhantes a ele. Considerando-se,
porém, o seu ser bom, não há dúvida de que elas guardam semelhança com o
primeiro Bem. Nessa distinção e aproximação reside, certamente, o motivo
de Boécio não atribuir sequer uma vez às criaturas o predicado
substantialia bona ou substantialiter bona; ele prefere dizer bona in eo
quod sunt. Dessa maneira, a transcendentalidade se combina com a
transcendência do primeiro Bem.
Ora, como se verá adiante, embora as criaturas sejam boas nisto que
elas são, elas não serão brancas nisto que são, porque não derivam de um
ser branco; contudo, o fato de o primeiro Bem ser justo não implicará que
as coisas sejam justas nisto que elas são, porque, nelas, “ser justo” será um
atributo da ordem da ação (dado que elas são substâncias compostas),
diferentemente de “ser bom”, que é da ordem do ser. Boécio insiste, ainda,
que o primeiro Bem não é nada além de bom e que, se o ser das coisas não
existisse a partir do primeiro Bem, ele talvez pudesse ser bom por
participação, ou seja, acidentalmente, mas não seria bom nisto que ele é.
Jan A. Aertsen, em seu artigo sobre o bem como transcendental e ao
criticar a posição de Scott MacDonald (na mesma linha da crítica aqui
desenvolvida)
87
, acaba por apresentar uma interpretação do DH que o toma,
explicitamente, como um texto frágil e exposto a críticas. No seu dizer,
Boécio estabelece uma não-identidade entre ser e ser bom, de maneira que
uma substância não é boa em si mesma, mas é boa porque é derivada do
primeiro Bem. Assim, uma substância seria denominada boa não por uma
bondade inerente a ela mesma, mas por sua relação com um bem extrínseco,
isto é, por uma denominação extrínseca. Aertsen conclui, a partir disso, que
o caráter insatisfatório da conclusão de Boécio seria devido à lacuna
87
Cf. AERTSEN, J. A., op. cit., pp. 63-64.
57
presente em sua argumentação, pois, embora ele tome como pressuposto que
todas as coisas são boas, ele não chega a responder como elas são boas.
Não se pode negar, com efeito, o caráter relacional da bondade das
criaturas, e sobre isso insistem tanto MacDonald como Aertsen. Mas, deve-
se notar, entretanto, que não se trata de uma relação comum, a qual
manteria a bondade das criaturas como algo extrínseco, gerando uma
denominação extrínseca segundo a lógica das categorias
88
. A prova disso é a
afirmação peremptória de Boécio segundo a qual, embora não seja
semelhante àquilo pelo qual é, o ser mesmo das coisas, ainda assim, é bom
(ipsum esse bonum est nec est simile ei a quo est)
89
. No mesmo contexto,
Boécio recorre novamente a essa idéia, e, raciocinando de forma negativa,
diz que, se o ser das coisas não existisse pela realidade primeira (supondo-
se que ele existisse), ele poderia ser bom, mas não “bom nisto que é” (Hoc
autem nisi ab illo esset, bonum fortasse esse posset, sed bonum in eo quod
est esse non posset)
90
. Dessa perspectiva, não parece possível afirmar que
Boécio estabeleça uma não-identidade entre ser e ser bom. Além disso, o
fato de “bondade” não entrar na definição da substância não implica o
caráter acidental da bondade das criaturas, pois mesmo “ser” não entra na
definição delas, sem que por isso se pretenda que “ser” corresponde a um
acidente.
Para Boécio, nada pode existir em ato a não ser que assim o deseje
aquela realidade que é tanto o ser mesmo, como o bem mesmo, como o ser
bom mesmo. As coisas, então, são boas porque recebem o ser a partir dessa
realidade; é ela que as chama à existência, ela que é o próprio ser. Dessa
perspectiva, se as criaturas “têm ser”, isto é, se elas são, é porque
receberam o ser do primeiro Bem, de maneira que sua bondade não pode não
ser substancial, mas substancial ao modo das substâncias compostas, o que,
88
Nesse sentido, as posições de MacDonald e de Aertsen chegam a um mesmo
denominador comum, embora o segundo esteja em aparente desacordo com o primeiro.
89
DH [120]-[125].
90
DH [125].
58
a um só tempo, marca a semelhança e a diferença com o primeiro Bem. No
limite, poder-se-ia dizer que as coisas, procedendo de uma vontade boa,
“contêm”, em si, realmente, a bondade que lhes foi comunicada pelo
primeiro Bem, mas dizer isso não significa afirmar uma identidade essencial
com ele. Esse parece ser o sentido de um trecho como o que segue:
Idcirco enim, licet in eo quod sint bona sint, non sunt tamen similia
primo bono (...); idcirco ipsum esse bonum est nec est simile ei a quo
est. Illud enim quoquo modo sit bonum est in eo quod est; non enim
aliud est praeterquam bonum. Hoc autem nisi ab illo esset, bonum
fortasse esse posset, sed bonum in eo quod est esse non posset. Tunc
enim participaret forsitan bono; ipsum uero esse, quod non haberent a
bono, bonum habere non possent. Igitur sublato ab his bono primo
mente et cogitatione, ista, licet essent bona, tamen in eo quod essent,
bona esse non possent, et quoniam actu non potuere exsistere, nisi
illud ea quod uere bonum est produxisset, idcirco et esse eorum
bonum est et non est simile substantiali bono id quod ab eo fluxit; et
nisi ab eo fluxissent, licet essent bona, tamen, in eo quod sunt, bona
esse non possent, quoniam et praeter bonum et non ex bono essent,
cum illud ipsum bonum primum [est] et ipsum esse sit et ipsum
bonum et ipsum esse bonum(...)
91
.
Note-se que, embora Boécio apresente o ser das coisas como não
semelhante ao bem substancial (porque elas não são boas por essência), ele
afirma, ao mesmo tempo, que as coisas são boas nisto que elas são. “Isto
que elas são” é justamente o todo substancial concreto, ou seja, a existência
atual da coisa, e essa existência se deve ao seu ser, que é recebido do bem
substancial e que, por conseguinte, não pode não ser bom. Com efeito,
sendo o primeiro Bem, como diz Boécio, o ser mesmo, o bem mesmo e o ser
bom mesmo, se as criaturas recebem dele o ser para ser, elas “participam”,
de certo modo, do ser primeiro, pois elas não teriam como não ser boas se é
bom o ser daquela realidade da qual elas procedem. Dizer isso, porém,
significaria rever a noção de participação e relativizar sua associação com a
acidentalidade. Trata-se de “participar nisto que se é”, ou seja,
91
DH [125]-[140]. Adiante retomar-se-á a questão do modo de as coisas serem boas.
59
substancialmente, e, para representar o sentido dessa afirmação, parece
possível pensar que dizer “as coisas são boas nisto que elas são” não possui
o mesmo caráter de “as coisas são brancas nisto que elas são”, pois ser
branco nisto que se é não faria sentido a não ser enquanto significasse algo
como “possuir acidentalmente a qualidade do branco no suporte da
substância”, ao passo que ser bom nisto que se é significa “ser”, “ser um
bem”, ser uma substância enquanto receptora do ser bom.
Quanto à argumentação de Boécio, pode-se dizer que ele retoma e leva
a acabamento sua estratégia argumentativa da hipótese impossível para
mostrar como, não havendo primeiro Bem, resulta acidental a bondade das
criaturas. Porém, uma bondade acidental implicaria diversas contradições,
de maneira que se impõe a conclusão segundo a qual, não podendo existir
em ato sem que fossem produzidas por aquela realidade que é
verdadeiramente boa, as coisas, então, são boas nisto que elas são, mesmo
não sendo estritamente semelhantes ao bem substancial.
Mas uma pergunta ainda é possível aqui: por que Boécio adota essa
estratégia argumentativa
92
, sobretudo se se tem em vista que ela não logra
explicar, com a clareza desejada, o modo como as coisas são boas em
virtude de procederem do primeiro Bem
93
? Por outro lado, sabe-se que,
como se viu acima, não lhe bastaria dizer que as coisas são boas pelo
simples fato de procederem do primeiro Bem.
Para responder a essa questão, parece importante considerar o
significado da expressão “ser algo nisto que é”, ou então, x é F nisto que
é”. Nesse sentido, dizer x é F nisto que é” equivale, em continuidade com
o texto do DH, a x é substancialmente F”, ou, numa possível tradução
moderna, “necessariamente, se x existe, x é F”
94
. Por outro lado, no IPES,
92
Adiante, retomar-se-á o estudo do método hipotético em Boécio.
93
H. Chadwick chega a pensar que a parte final do DH é composta de aforismos cf.
CHADWICK, H., op. cit., pp. 207-208.
94
Sobre essa possibilidade de tradução, cf. MARENBON, J., op. cit., p. 93.
60
Boécio distingue entre o impossível e o inconcebível, pois haveria coisas
concebíveis, mas não possíveis
95
. Assim, embora não seja possível haver um
corvo branco, pode-se, entretanto, imaginar um etíope branco ou um corvo
branco sem que eles deixem de ser um etíope ou um corvo
96
: trata-se de algo
impossível, mas não inconcebível. Ora, segundo a estratégia argumentativa
do DH, é impossível que o primeiro Bem não exista, assim como é
necessário que as criaturas que derivam dele sejam boas ou como é
impossível haver alguma coisa que exista e não seja boa. Na contrapartida,
não parece concebível nem que o primeiro Bem não exista nem que haja
alguma coisa que exista e não seja boa, porque em ambos os casos a
representação altera o ser do representado: o primeiro Bem não pode não
existir e todas as coisas que existem não podem não ser boas.
Parece ser em vista do estabelecimento dessa impossibilidade que
Boécio lança mão da estratégia da hipótese impossível
97
, afinal, apenas com
os recursos ordinários da modalidade (necessário, possível, impossível), ele
não teria podido resolver o problema. Entretanto, parece descabido pensar
que, por seu argumento partir da hipótese da inexistência do primeiro Bem,
ou seja, por tomar a inexistência do primeiro Bem como concebível, então
essa inexistência seria, de fato, concebível, afinal, o concebível, por
oposição ao impossível, designa aquilo que, mesmo não podendo existir na
forma como é concebido (segundo o exemplo do corvo branco), ainda assim
pode ser imaginado sem que se altere a sua essência. Ora, o que faz o
raciocínio fundado na hipótese da inexistência do primeiro Bem é
justamente conduzir a uma conclusão falsa, manifestando, assim, a
impossibilidade do seu ponto de partida. Além disso, o caso da inexistência
do primeiro Bem é inteiramente diferente do caso do corvo branco, porque a
brancura do corvo é acidental, ao passo que a existência do primeiro Bem é
necessária.
95
Adiante, retomar-se-á o estudo dos inexistentes.
96
Cf. IPES IV, 282, 16 283, 4.
97
Cf. MARTIN, C. J., op. cit., pp. 279-302; MARENBON, J., op. cit., p. 94.
61
Dessa perspectiva, parece possível dizer que Boécio se serve do
argumento da hipótese impossível para mostrar que o mesmo ocorre com a
bondade das criaturas, porque, como se tem visto, não se trata de dizer que
as coisas são boas assim como o corvo é branco, pois ainda que seja
possível pensar num corvo branco, não se pode pensar numa coisa não-boa.
Ora, se Boécio não encontra meios de exprimir positivamente o modo como
as coisas são boas nisto que elas são (o que suporia uma intuição do ser das
coisas), ele não deixa de assegurar, negativamente, que elas não podem não
ser substancialmente boas. Por outro lado, dizê-las boas substancialmente
exige uma precisão ulterior, porque, se isso equivaler a uma bondade em
unidade com o ser, então estará implicado o contra-senso da identidade com
o primeiro Bem. Será, então, necessário afirmar que essa bondade
“substancial” consiste na bondade típica das substâncias compostas, ou
seja, numa bondade implicada pelo ser mesmo das coisas enquanto
procedentes do querer do primeiro Bem, mas sem se confundir com a
essência mesma delas. Com efeito, assim como não se pode conceber um
mundo sem o primeiro Bem (salvo se se aceitar uma concepção em que
tanto a essência do mundo como a do primeiro Bem sejam alteradas), assim
também não se pode conceber que as coisas existam e não sejam boas.
Christopher Martin e John Marenbon, entretanto, consideram
concebíveis tanto a inexistência do primeiro Bem como a realidade de uma
coisa que exista mas não seja boa, e tomam como argumento em seu favor o
próprio “raciocínio experimental” de Boécio
98
, mas eles parecem não se dar
conta de que, segundo a estratégia de concepção do inexistente, não se pode
alterar aquilo que a coisa é nela mesma. Ora, tanto no caso do primeiro Bem
como no caso das substâncias compostas, ambos deixam de ser o que são,
pois o primeiro Bem deixará de ser o ser necessário, enquanto as
substâncias compostas não serão boas nisto que elas são, afinal, embora a
bondade não componha a definição das substâncias, ela não pode, de acordo
98
Cf. idem, ibidem. A expressão “raciocínio experimental” é de Martin e Marenbon.
62
com a argumentação do DH, ser extraída do ser das coisas. A última parte
do texto, aliás, mostra a diferença existente entre dizer que algo é bom e
dizer, por exemplo, que algo é branco ou justo.
Assim, considerar como concebível uma substância que existe sem ser
boa significa tomar sua bondade por uma bondade acidental, o que não se
mantém em continuidade com os textos de Boécio, e é exatamente como um
“acidente inseparável” que Christopher Martin e John Marenbon consideram
a bondade das criaturas. Mas não parece possível dizer que as coisas são
boas segundo a mesma necessidade pela qual um corvo é negro.
1.5. Objeções e respostas.
A primeira objeção não se encontra formulada expressamente, mas
consiste em pensar que uma coisa branca possa ser branca nisto que ela é.
Com efeito, Boécio evoca a hipótese de se estabelecer alguma relação entre
a brancura de uma coisa e a vontade do primeiro Bem, assim como se
identifica uma relação de derivação entre esta vontade e a bondade das
criaturas. Mas responde categoricamente que, em absoluto, as coisas não
são brancas nisto que elas são, porque, para elas, “ser” é diferente de
“serem brancas”, afinal, a realidade primeira é certamente boa, mas não
branca.
Essa resposta é muito significativa, porque lança luz sobre a
associação entre a bondade e o ser das substâncias, afinal, Boécio
estabelece uma relação direta entre o fato de, nas coisas, “ser” distinguir-se
de “ser branco” com o fato de ser bom (e não branco) aquele mesmo que fez
todas as coisas. E ele insiste em falar da realidade primeira como aquela
que “(...) fez essas coisas para que fossem (...)
99
”, ou seja, chamou essas
99
Cf. DH [140] e [145].
63
coisas à existência atual. Ao dizer isso, Boécio compõe o primeiro período
desse último momento lógico do DH dizendo não convir que as coisas
brancas sejam brancas nisto que elas são, elas que são brancas porque
fluíram da vontade de Deus para ser:
ut non etiam alba, in eo quod sunt, alba esse oportebit ea quae alba
sunt, quoniam ex uoluntate dei fluxerunt, ut essent
100
.
As coisas, com efeito, não procederam, segundo Boécio, da vontade do
branco, mas do bem, e isso determina, para elas, uma distinção entre o ser e
o ser branco. Na contrapartida, não haveria razão para distinguir-se, nelas,
“ser” e “ser bom”, ainda que a maneira de se identificar “ser” e “ser bom”
não corresponda àquela da realidade primeira. Isso se confirma pelo
princípio P5, segundo o qual “apenas ser algo é diverso de ser algo nisto
que é; aquele significa o acidente, este, a substância”
101
. Ora, Boécio
conclui sua resposta à primeira objeção dizendo justamente que, “porque
aquele que não era branco quis que essas coisas fossem brancas, elas são
apenas brancas; mas, porque quis que elas fossem boas aquele que era bom,
elas são boas nisto que são”
102
. Reforça-se, portanto, a idéia de que a
bondade das criaturas é substancial, e não acidental, diferentemente do que
ocorre com a brancura, que é inteiramente acidental.
Mas não se trata de dizer que bastaria à vontade do primeiro Bem
desejar que as coisas fossem brancas nisto que elas são para que, então, elas
fossem brancas nisto que elas são. É certo que se ele assim desejasse, assim
seria feito, mas não é disso que trata Boécio, pois ele esclarece que, embora
tenha decorrido da vontade do bem que as coisas fossem boas nisto que elas
100
DH [140].
101
DH [35].
102
DH [150].
64
são, uma propriedade como é a de que algo seja branco nisto que é não
decorreu da vontade daquele que não é branco; as coisas, com efeito, não
procederam da vontade do branco
103
. Ao dizer isso, Boécio parece não
deixar dúvida sobre a relação que ele identifica entre a bondade das coisas e
o fato de a realidade primeira ser ela mesma boa: as substâncias são boas
porque a realidade primeira é ela mesma boa; é o bem primeiro.
Compreender, portanto, como as coisas são boas sem serem bens
substanciais implica enfatizar essa relação direta com o primeiro Bem, e,
sem pretender que as coisas contenham, cada qual, uma parte do divino,
deve-se acentuar que o que as faz boas é o fato de elas simplesmente serem,
ou seja, o fato de elas possuírem o ser a partir da realidade que é a fonte de
todo ser e que é eminentemente boa.
Para ensaiar uma outra maneira de compreender o que se acaba de
afirmar, tomem-se as seguintes afirmações: “um, com efeito, é o ser; outro
o ser branco” (f); “quem fez essas coisas, para que fossem, é certamente
bom, mas de modo algum branco” (c). A relação estabelecida entre f e c,
como se pode observar pela continuação do texto, é uma relação de
conseqüência, ou seja, f quoniam c”, ou, então, c ? f. Ora, imagine-se a
hipótese de uma substância criada que não fosse nada além de boa: ela não
seria, está claro, uma substância simples como é simples a realidade
primeira, mas também não seria composta como é composta uma substância
que é branca. Em outras palavras, essa hipótese mostra que a bondade não
se compõe com o ser, como fará a brancura, mas ela mesma é o ser.
No que se refere à segunda objeção, ela nasce exatamente do que
permitiu a Boécio responder à primeira: se o que permitiu dizer que as
coisas não são brancas nisto que elas são foi o fato de dizer que não é
branco aquele que quis que elas fossem, então o fato de esse mesmo que não
é branco ser agora justo implicará que as coisas sejam justas nisto que elas
103
Cf. DH [145].
65
são? Dito de outra maneira, sendo a realidade primeira o próprio justo,
serão justas as substâncias nisto que elas são?
Boécio responde apontando para o equívoco da objeção, porque a
associação entre a justiça e o ser é válida apenas para a realidade primeira,
e não para as substâncias criadas. Com efeito, ser justo é do âmbito da ação,
mas, em Deus, ser e agir são o mesmo, dado que ele é uma substância
simples. Entretanto, nas criaturas, distingue-se o ser do agir (o que não é
difícil de compreender, porque, embora a ação da substância criada possa
manifestar o seu ser, ambos, entretanto, não se confundem se se tem em
vista a composição que as caracteriza)
104
. E Boécio conclui de maneira
ainda mais significativa, dizendo que, para nós, não é o mesmo ser bom e
ser justo, embora, nisto que somos, seja o mesmo, para todos nós, ser
105
.
Assim, se não se pode negar que Boécio não chega a uma formulação
explícita, tal como se desejaria, do modo como as coisas são boas, também
não se pode negar a relação direta que ele identifica entre ser e ser bom.
Daí o fato de sermos todos bons, mas não realidades justas
106
, na mesma
medida em que tudo o que existe, pertencendo ao gênero da substância (que
seria o mais amplo possível), é bom, porque, embora não se fale de um
gênero como o das “coisas boas”, não se pode negar a equivalência do
gênero da substância e com um gênero como seria o do bem. Evidentemente,
a realidade primeira ou primeiro Bem, isto é, a substância divina, escapa
inteiramente a qualquer gênero, e se se lhe atribui o termo “substância” ou
“bem”, isso não resulta senão da maneira humana de falar sobre ela.
104
Assim, se a objeção fosse válida, ela o seria no máximo para os seres humanos,
porque, segundo o texto boeciano, a justiça há de ser um atributo da ação, de modo que,
não havendo ação propriamente dita (no sentido da práxis aristotélica) para os animais,
a associação da justiça ao ser somente seria válida para os humanos. Ao mesmo tempo,
isso fornece uma espécie de contraprova da equivalência entre ser e ser bom, pois essa
equivalência é válida para todas as coisas, ao passo que a justiça não o poderia ser.
105
Cf. DH [155]-[160].
106
A menos que “justiça” fosse um transcendental, mas esse não é o caso aqui. Para
Boécio, justiça é atributo da ação.
66
No que toca, porém, às criaturas, o bem é um atributo geral, ao passo
que a justiça é específica. Assim, como tal, “justiça” não se pode predicar
de todas as coisas, donde a razão de algumas coisas serem “justas”, outras
serem outras coisas, mas todas serem boas. Em suma, todas as substâncias
são boas porque elas são substâncias, ou seja, porque elas são. Mas uma
afirmação desse tipo poderia significar que todas as substâncias são Deus,
impondo, portanto, explicar como elas são boas sem serem bens
substanciais.
A resposta de Boécio inicia por mostrar que a bondade das criaturas
não pode ser acidental nem substancial como é substancial a bondade
divina. Restará a possibilidade de ser uma bondade substancial ao modo das
substâncias compostas, isto é, a bondade típica daquelas realidades que são
boas por receberem o ser do primeiro Bem, possuindo outras características
para além da bondade (para além do ser). No limite, trata-se de dizer que as
coisas possuem o ser sem se confundir com ele, ou, se se quiser, que elas se
originam de uma realidade primeira, comungando de seu ser, sem,
entretanto, consistir em parcelas dessa realidade: elas provêm de Deus e
conservam a bondade divina em si, mas não se confundem com ele nem
retêm uma “parte” dele. Trata-se de dizer que somente há o ser; e o ser não
se explica caso não se postule a existência de uma realidade primeira e
transcendente. Dessa perspectiva, torna-se inclusive aceitável a hipótese de
que a pergunta de João, o Diácono, versando sobre o modo como as coisas
são boas nisto que elas são sem, porém, serem bens substanciais, teria
nascido de uma preocupação em responder ao pensamento maniqueu
107
. Com
efeito, embora não haja grandes evidências em favor dessa hipótese (nem
contra ela), ela não deixa, entretanto, de ser razoável se se considera a
argumentação do DH.
107
Cf. MERLE, H. “Introduction”. In: BOÈCE. Courts Traités de Théologie Opuscula
Sacra. Trad. de Hélène Merle. Paris: Du Cerf, 1991, pp. 88-89.
67
Nessa mesma direção vai o argumento paralelo do CP, quando Boécio
identifica a suprema beatitude com o mais alto bem e daí extrai que, se o
homem é feliz somente quando atinge a suprema beatitude, então isso se dá
quando ele alcança o mais alto bem. Ora, como o mais alto bem é Deus, a
felicidade perfeita consistirá na posse da divindade, ou, melhor dizendo, na
deificação (deos fieri). Mas, como isso é possível se se pressupõe que Deus
é um e não pode dividir-se? A resposta consiste em dizer que, de fato, por
natureza, Deus é apenas um, mas, por participação, ele pode ser muitos
108
.
Essa resposta se obtém como um porísma, ou seja, um corolário
109
extraído
ao modo dos geômetras.
2. Boécio e suas fontes.
Entretanto, a hipótese de que a pergunta-tema do DH tenha nascido da
preocupação em responder aos maniqueus pode não passar de mera
especulação. Uma pesquisa mais segura consistiria em investigar os
antecedentes da discussão do DH, pois, dessa maneira, poder-se-ia
identificar com qual tradição ou com quais tradições Boécio mantém uma
relação de continuidade. Nesse sentido, procurar-se-á, aqui, com o único
objetivo de contribuir para uma melhor compreensão do texto do DH,
fornecer algumas indicações que permitam desenhar, em grandes traços, o
quadro conceitual em que se inscreve a metafísica de Boécio. Isso, porém,
não quer dizer que se pretenda apresentar aqui uma investigação completa
dos seus antecedentes.
108
Cf. CP III, 10.
109
Em grego, por…sma.
68
2.1. Fontes greco-latinas.
A primeira tentativa de enquadrar o DH no pensamento clássico
pertence, sem dúvida, a Pierre Hadot
110
. Outros autores como G. Schrimpf
111
e R. McInerny
112
, por exemplo, dedicaram-se mais à posteridade de Boécio
do que aos seus antecedentes, a ponto de Schrimpf chamar o DH, por
exemplo, de Lehrbuch des Mittelalters. Além disso, o título da obra de
Schrimpf considera o DH como um Axiomenschrift, indicando, de saída, sua
tendência por considerar isoladamente os princípios aí expostos e tomando-
os como axiomas independentes, sem relação com o conjunto da obra de
Boécio. No que se refere à interpretação de Pierre Hadot, adiante se verá
por que a presente tese não a pode abonar, mas é inegável que sua tentativa
de situar Boécio diante de seus precedentes foi a mais importante até agora.
Nos últimos anos, Claudio Micaelli tem se dedicado às pesquisas nessa
mesma direção, e seus resultados se têm mostrado muito mais
satisfatórios
113
.
O que se procurará fazer aqui é seguir, de certa maneira, o método de
Hadot e Micaelli, no sentido de procurar afinidades do pensamento
metafísico do DH com o de algumas obras de autores anteriores,
principalmente no que se refere às concepções (1) do ser, (2) da semelhança
das coisas com o primeiro princípio, e (3) da identificação entre ser e agir
110
Cf. HADOT, P. “La distinction de l’être et de l’étant dans le “De hebdomadibus” de
Boèce”. In: Miscellanea Mediaevalia. Vol. 2. Berlim: De Gruyter, 1963, pp. 147-153.
Cf. também HADOT, P. Porphyre et Victorinus. 2 vols. Paris: Etudes Augustiniennes,
1968.
111
Cf. SCHRIMPF, G. Die Axiomenschrift des Boethius (De hebdomadibus) als
philosophisches Lehrbuch des Mittelalters. Leiden: Brill, 1966.
112
MCINERNY, R. Boethius and Aquinas. Washington: The Catholic University of
America Press, 1990.
113
Cf. MICAELLI, C. “Il De Hebdomadibus di Boezio nel panorama del pensiero tardo-
antico”. In: GALONNIER, A. (ed.). Boèce ou la chaîne des savoirs. Actes du Colloque
International de la Fondation Singer-Polignac. Louvain & Paris: Peeters, 2003, pp.
33-53. Cf., também, MICAELLI, C. Dio nel pensiero di Boezio. Nápoles: M. D'Auria.
1995; __________. Studi sui trattati teologici di Boezio. Nápoles: M. D'Auria, 1988. Vale
dizer que esta seção da presente tese inspirou-se em boa parte das conclusões obtidas pelas
pesquisas de Claudio Micaelli.
69
em Deus. Espera-se, pois, que, por meio dessas três temáticas, se recubra o
conjunto dos conceitos mais importantes ocorrentes no DH.
2.1.1. A concepção do ser.
No que se refere ao primeiro desses três temas, não se pode evitar a
associação entre o princípio P2 do DH com a discussão aristotélica que
recebe a seguinte formulação:
PÒteron d• taÙtÒn ™stin À ›teron tÕ t… Ãn e•nai kaˆ ›kaston,
skeptšon
114
.
Trata-se, pois, de discutir a relação existente entre cada coisa singular
e sua essência. Como se sabe, Aristóteles, ao comentar essa questão, evoca
a doutrina platônica das Idéias e assume uma postura crítica diante dela:
Epˆ d• tîn kaqaØt¦ legomšnwn «r¢n£gkn taÙtÕ e•nai, oŒon e‡
tinej e„sˆn oÙs…ai ïn ›terai m¾ e„sˆn oÙs…ai mhd• fÚseij ›terai
prÒterai, o†aj fasˆ t¦j „dšaj e•nai tinej; e„ g¦r œstai ›teron
aÙtÕ tÕ ¢gaqÕn kaˆ tÕ ¢gaqù e•nai, kaˆ zùon kaˆ tÕ zóJ, kaˆ tÕ
Ônti kaˆ tÕ Ôn, œsontai ¥llai te oÙsiai kaˆ fÚseij kaˆ „dšai
par¦ t¦j legomšnaj, kaˆ prÒterai oÙs…ai ™ke‹nai, e„ tÕ t… Ãn
e•nai oÙs…a ™st…n. kaˆ e„ m•n ¢polelumšnai ¢ll»lwn, tîn m•n
oÙk œstai ™pist»mh, t¦ doÙk œstai Ônta (lšgw d• tÕ
¢polelÚsqai, e„ m»te tù ¢gaqù aÙtù Øp£rcei tÕ e•nai ¢gaqù,
m»te toÚtJ tÕ e•nai ¢gaqÒn): ™pist»mh g¦r ˜k£stou ™stˆn Ótan
t… Ãn ™ke…nJ e•nai gnîmen. kaˆ ™pˆ ¢gaqoà kaˆ tîn ¥llwn
Ðmo…wj œcei: éste e„ mhd• tÕ ¢gaqù e•nai ¢gaqÒn, oÙd• tÕ Ônti
Ôn, oÙd• tÕ ˜nˆ ›n. Ðmo…wj d• p£nta ™stˆn À oÙq•n t¦ t… Ã e•nai:
éste„ mhd• tÕ Ônti Ôn, oÙd• tîn ¥llwn oÙdšn. œti ú m¾ Øp£rcei
¢gaqù e•nai, oÙk ¢gaqÒn. ¢n£gkh ¥ra •n e•nai tÕ ¢gaqÕn kaˆ
¢gaqÒn kaˆ ¢gaqù e•nai kaˆ kalÕn kaˆ kalù e•nai, kaˆ Ósa m¾
kat¥llo lšgetai, ¢ll¦ kaqaØt¦ kaˆ prîta: kaˆ g¦r toàto
ƒkanÕn ™¦n ØparcV, k¨n m¾ Ï e‡dh: m©llon d‡swj k¨n Ï e‡dh.
¤ma d• dÁlon kaˆ Óti e‡per e„sˆn aƒ „dšai o†aj tinšj fasin, oÙk
œstai tÕ Øpoke…kenon ous…a: taÚtaj g¦r oÙs…aj m•n ¢nagka‹on
e•nai, m¾ kaqØpokeimšnou dš: œsontai g¦r kat¦ mšqexin. ’´Ek te
114
ARISTÓTELES, Metafísica 1031a15-16. Cf. Anexo, Texto 3.
70
d¾ toÚtwn tîn lÒgwn •n kaˆ taÙtÕ ou kat¦ sumbebhkÒj aÙtÕ
›kaston kaˆ tÕ t… Ãn e•nai, kaˆ Óti ge tÕ ™p…stasqai ›kaston
toàtÒ ™sti, tÕ t… Ã e•nai ™p…stasqai, éste kaˆ kat¦ t¾n œkqesin
¢nagkh ›n ti e•nai ¥mfw
115
.
Como se afirmou anteriormente, a questão que dá título ao DH,
perguntando quomodo substantiae in eo quod sint bonae sint cum non sint
substantialia bona, parece supor uma problemática análoga à de Aristóteles.
Ela investiga a possibilidade de que, nas substâncias, coincidam os termos
“bom” (¢gaqÒn) e “ser bom” (tÕ ¢gaqùi e•nai), sem que isso implique a
identidade delas com o Bem em si. A questão, tal como formulada por
Aristóteles, reaparece no comentário à Metafísica atribuído a Alexandre de
Afrodísias, onde se pode ler uma resposta que recorre à coincidência entre a
coisa e sua essência:
kaˆ e„pën lšgei Óti taÙtÒn ™stin ›kaston kaˆ tÕ t… Ãn e•nai
˜k£stou: ›kaston g¦r oÙk ¥llo œstˆ tÁj aØtoà oÙs…aj: tÕ d• t…
Ãn e•nai oÙs…a ™st…n: ›kaston ¥ra oÙk ¥llo ™stˆ toà tˆ Ãn e•nai
aÙtoà, ¢ll¦ taÙtÒn. ™pˆ m•n oân tîn kaqaØtÕ legomšnwn taÙtÕn
›kaston kaˆ tÕ t… Ãn e•nai aÙtoà, oŒon ¥nqrwpoj kaˆ tÕ ¢nqrèpJ
e•nai
116
.
No caso, entretanto, de um comentador mais influenciado pela doutrina
platônica como foi Asclépio, a resposta para a relação entre a coisa singular
e sua essência é bastante diferente. Leia-se:
™pˆ g¦r tîn sunqštwn diafšrei tÕ tùde e•nai kaˆ tÒde eŒnai: tÕ
m•n g¦r sÚnqetÒn ™sti tÒde e•nai, toutšstin Ð Swkr£thj, tÕ d•
e•doj toà Swkr£touj toàtÒ ™sti tÕ tùde e•nai [kaˆ tÒde e•nai].
Prîta oân ™sti kaˆ kaqaØt¦ kal¦ kaˆ ¢gaq¦ t¦ ¥ula kaˆ m¾
crainÒmena ØpÕ tÁj Ûlhj. (...)Enteàqen prÕj toÝj t¦j „dšaj
presbeÚontaj ¢pote…netai kaˆ lšgontaj aÙt¦j oÙs…aj e•nai
aÙqupost£touj, e„j §j ¢poblšpwn Ð dhmiourgÕj poie‹. fhsˆn oân
Óti e‡per e„sˆn aƒ „dšai o†aj tinšj fasi, toutšstin oÙs…ai kaˆ m¾
115
ARISTÓTELES, Metafísica 1031a28-1031b22. Cf. Anexo, Texto 4.
116
ALEXANDRE DE AFRODÍSIAS, In Aristotelis Metaphysica commentaria 1031a15s
(Edição Hayduck, p. 479, linha 36, à p. 480, linha 3). Cf. Anexo, Texto 5.
71
lÒgoi, oÙk œstai tÕ Øpoke…menon, toutšsti tÕ sÚnqeton. taÚtaj
g¦r t¦j „dšaj oÙs…aj m•n ¢nagka‹on e•nai, e‡ ge kaˆ prÒterai
Øp£rcousin, oÙ qewroàntai d• ™n ØpokeimšnJ ta‹j sunqštoij
oÙs…aij, ™peˆ oÛtwj œsontai [aƒ] kat¦ mšqexin, aÜlouj d• aÙt¦j
boÚlontai (...) ™k toÚtwn, fhs…, tîn lÒgwn memaq»kamen t¦ kat¦
sÚnqesin æj oÙk œstin •n kaˆ taÙtÕn aÙtÕ ›kaston kaˆ tÕ t… Ãn
e•nai
117
.
Embora Boécio não mencione nominalmente a Asclépio em nenhuma
de suas obras, parece, porém, bastante provável que ele conhecesse algo
desse autor, pois Asclépio fora um dos alunos que redigiram as notas de
aula de Amônio. E, apesar de algumas controvérsias historiográficas, sabe-
se hoje que Boécio certamente teve contato com o pensamento de Amônio,
em virtude de sua formação filosófico-científica de inspiração
alexandrina
118
. Seja como for, não se pode negar a considerável semelhança
entre o texto de Asclépio (fundamentalmente em sua referência às
realidades compostas para as quais uma coisa é ter “esta” essência; outra,
ser “esta” coisa e às realidades simples que são boas e belas “por si”) e
os princípios P7 e P8 do DH.
Essa proximidade conceitual com Asclépio, entretanto, não pode
ofuscar a semelhança entre a linguagem do DH e a do texto de Alexandre de
Afrodísias. Como se verá no terceiro capítulo desta tese, Boécio traduz a
expressão aristotélica tÕ t… Ãn e•nai, no IPEP e no IPES por exemplo, por
id quod est esse, que, no DH, registra-se simplesmente como id quod est.
De uma perspectiva histórica, não há dúvidas de que Boécio lera Alexandre
de Afrodísias: isso se confirma tanto pelas citações nominais feitas por
Boécio, como pelo trabalho dos historiadores modernos
119
.
117
ASCLÉPIO, In Aristotelis Metaphysicorum libros commentaria 1031a30-1031b15.
(Edição Hayduck, p. 393, linha 23, à p. 394, linha 9). Cf. Anexo, Texto 6.
118
Abaixo, retomar-se-á o tema das relações de Boécio com a escola alexandrina (cf.
item “2.2. Herança alexandrina e bizantina”). Cf., também, DE LIBERA, A. L’art des
généralités. Théories de l’abstraction. Paris: Aubier, 1999, pp. 159-174.
119
Cf. DE LIBERA, A. L’art des généralités, op. cit., pp. 159-280.
72
É possível notar, ainda, uma outra semelhança importante de Boécio
com Alexandre no que se refere ao vocabulário metafísico. Como se sabe,
quando Boécio afirma, no DH, que, se as coisas não procedessem do
primeiro Bem, não poderiam ser boas nisto que são, pois não apenas teriam
sido fora do bem como não teriam sido a partir dele, ele esclarece que isso
se dá dessa maneira porque o primeiro Bem é “tanto o ser mesmo, como o
bem mesmo, como o ser bom mesmo”
120
. Ora, encontram-se em Alexandre
de Afrodísias dois pares de expressões praticamente idênticas às do DH:
trata-se de tÕ aÙtoÒn / tÕ aÙtoÒnti e tÕ aÙtoagaqÕn / tÕ aÙtoagaqù
e•nai, permitindo supor que Boécio responde à problemática aristotélica
empregando a mesma linguagem de Aristóteles, embora se mova num
quadro conceitual mais amplo que engloba também aspectos platônicos.
Leia-se:
e‡ tinej oân, fhs…n, e„sˆn oÙs…ai aÙtaˆ kaqaØt¦j kecwrismšnai,
æj Ð Pl£twn ›legen, ïn oÙsiîn m» e„sin ›terai oÙsiai mhd•
fÚseij prÒterai (...), e„ d» e„sin oÙs…ai kaqaØt£j, o†aj fasˆ
t¦j „dšaj tin•j e•nai, «ra ›terÒn ™stin aÙtÕ tÕ ¢gaqÒn, toutšsti
tÕ aÙtoagaqÒn, kaˆ tÕ ¢gaqù e•nai ºtoi tÕ aÙtoagaqù e•nai, À
oÜ; ka… fhsin Óti e„ ›terÒn ™sti tÕ aÙtozùon kaˆ tÕ aÙtozóJ
e•nai, kaˆ aâ tÕ aÙtoagaqÕn kaˆ tÕ aÙtoagaqùi e•nai, kaˆ
aÙtoÕn kaˆ tÕ aÙtoÒnti e•nai, œsontai ¥llai oÙsiai kaˆ fÚseij
kaˆ „dšai par¦ t¦j legomšnaj kaˆ prÒterai, kaˆ m£lista ™ke‹nai
oÙs…ai: e„ g¦r oÙs…a m£list£ ™sti tÕ t… Ãn e•nai, tÕ d• t… Ãn
e•nai tÕ ¢nqrèpJ e•nai: e„ d• toàto, kaˆ toà aÙtoanqrèpou
m£lista œstai oÙs…a tÕ aÙtoanqrèpJ e•nai, Óper, lšgw d¾
aÙtoanqrèpJ e•nai, ™stˆn oÙs…a toà aÙtoanqrèpou kaˆ tÕ t… Ãn
e•nai aÙtoà. toàto doÙ doke‹ to‹j t¦j „dšaj presbeÚousi tÕ
protšraj e•nai oÙsiaj tin¦j tîn oÙsiîn ½toi tîn „deîn
121
.
A partir da leitura desses textos de Alexandre de Afrodísias e
Asclépio, parece possível dizer que Boécio, enquanto leitor de Aristóteles e
Platão, recorre à linguagem de Alexandre de Afrodísias para afirmar de um
120
DH [135]-[140].
121
ALEXANDRE DE AFRODÍSIAS, In Aristotelis Metaphysica commentaria (1031a28ss).
Edição Hayduck, p. 481, linhas 8-22 (grifo nosso). Cf. Anexo, Texto 7.
73
lado, a identidade entre o ser e a idéia do ser, e, de outro, a identidade entre
o Bem e a idéia do Bem. Mas, como se mencionou acima, tal identidade é
válida apenas para as substâncias simples, que, a propósito, devem dizer-se
“substância simples”, no singular, pois, de acordo com a precisão do DT, há
apenas uma única realidade simples, a realidade divina, aquela que, a rigor,
não é propriamente substância, mas está para além da substância
122
. Também
do DT vem a confirmação de que o ser e a idéia do ser são idênticos
somente na realidade divina, pois ela é a única que é forma sem matéria.
Além disso, ela é una e é isto que é, ao passo que todas as outras
substâncias são unas apenas enquanto resultantes da composição de partes;
ademais, elas não são isto que são
123
.
Outra observação que cumpre fazer a partir da leitura dos textos de
Alexandre e Asclépio refere-se ao modo como Boécio se posiciona enquanto
receptor da herança platônico-aristotélica, pois um cotejo do DH com esses
textos permite supor que Boécio não se sinta instado a optar por uma ou
outra tradição. Ao contrário, para ele, Platão e Aristóteles poderiam compor
um todo harmônico; eles não seriam inconciliáveis, pois só o que é
contraditório é inconciliável. O que parece haver nos textos de Boécio,
como se pretende mostrar até o fim da presente tese, é uma tensão constante
entre platonismo e aristotelismo. Se tensão não significa contradição, essa
122
Cf. DT IV [180]. A propósito, vale notar que Boécio fala de outras realidades divinas
(os anjos, por exemplo), às quais se pode atribuir o predicado “fazer”, mas nunca
“sofrer” (cf. CEN I [80]-[85]). Se é assim, deve-se pensar, então, que também essas
outras realidades divinas sejam puras formas, porque, se não é possível predicar-lhes
“sofrer”, então elas não possuem nenhum tipo de vínculo com a materialidade. Dizer
isso, porém (quer dizer, aceitar que haja realidades que sejam puras formas) não
significa admitir que haja mais de uma realidade verdadeiramente simples, ou seja, uma
realidade na qual o ser coincide com a idéia do ser. Apenas a realidade divina pode ser
assim concebida; ela é supra-substancial, enquanto todas as outras são substâncias.
Além disso, embora Boécio não o diga em nenhum momento, é de se deduzir que, para
toda substância proveniente da realidade primeira, não pode ser idêntico o ser e a
forma, a menos que não se queira guardar a diferença radical das criaturas com sua
origem. Assim, ainda que as outras realidades divinas sejam simples, elas não haverão
de ter como idênticos seu ser e sua forma. Como se sabe, Tomás de Aquino exprimirá
essa conclusão, posteriormente, atribuindo às substâncias espirituais uma composição
fundamental de ser e ato de ser (Cf. TOMÁS DE AQUINO, De ente et essentia, cap. IV).
123
Cf. DT II [90].
74
pode ser uma chave-de-leitura apropriada para a interpretação do texto
boeciano.
A essa altura, é inescapável, ainda, a referência a Plotino, pois, no
tratado 39 (ou na Enéada VI, 8, segundo a edição de Porfírio), ele já havia
estabelecido que a simplicidade se reserva como marca específica do Uno
supremo:
T… oân; OÙk œstin Ó ™sti; Toà d• e•nai Ó ™stin ½ toà ™pškeina
e•nai «r£ ge kÚrioj aÙtoj; P£lin g¦r ¹ yuc¾ oÙdšn ti peisqe‹sa
to‹j e„rhmšnoij ¥porÒj ™sti. Lektšon to…nun prÕj taàta ïde, æj
›kastoj m•n ¹mîn kat¦ m•n tÕ sîma pÒrrw ¨n e‡h oÙs…aj, kat¦
d• t¾n yuc¾n kaˆ Ö m£list£ smen metšcomen oÙs…aj ka… ™smšn
tij oÙs…a, toàto dš ™stin oŒon sÚnqetÒn ti ™k diafor©j kaˆ
oÙs…aj. OÜkoun kur…wj oÙs…a oÙdaÙtoous…a: diÕ oÙd• kÚrioi tÁj
aÙtîn oÙs…aj. ’´Allo g£r pwj ¹ oÙs…a kaˆ ¹me‹j ¥llo, kaˆ kÚrioi
oÙc ¹me‹j tÁj aÙtîn oÙs…aj, ¢ll¹ oÙs…a aÙtÕ ¹mîn, e‡per aÛth
kaˆ t¾n diafor¦n prost…qhsin. All™peid¾ Óper kÚrion ¹mîn
¹me‹j pèj ™smen, oÛtw toi oÙd•n Âtton kaˆ ™ntaàqa lego…meqa ¨n
aÙtîn kÚrioi. Oá dš ge pantelîj ™stin Ó ™stin aÙtoous…a, kaˆ
oÙk ¥llo m•n aÙtÒ, ¥llo d• ¹ oÙs…a aÙtoà, ™ntaàqa Óper ™st…,
toÚtou ™stˆ kaˆ kÚrion kaˆ oÙkšti e„j ¥llo, Î œsti kaˆ Î ™stin
oÙs…a
124
.
Isso se confirma pela atribuição de composição a tudo aquilo que se
costuma dizer “ser”:
Orîmen d¾ t¦ legÒmena e•nai p£nta sÚnqeta kaˆ ¡ploàn aÙtîn
oÙde ›n, ¤ te tšcnh ™rg£zetai ›kasta, ¤ te sunšsthke fÚsei
125
.
124
PLOTINO, Enéadas VI, 8, 12 (Tratado 39) Edição Faggin, p. 1315.. Cf. Anexo,
Texto 8.
125
PLOTINO, Enéadas V, 9, 3 (Tratado 5) Edição Brisson, & Pradeau, p. 201. Cf.
Anexo, Texto 9.
75
A semelhança que se pode notar entre as expressões de Boécio e as de
Plotino não deve ofuscar algumas diferenças importantes entre o
pensamento de ambos, ou entre o pensamento de Boécio e o daquele grupo
de filósofos ao qual se poderia chamar de “escola neoplatônica”. Já o
problema da vontade explícita da divindade no ato da criação, por exemplo,
marcaria uma certa diferença, como se indicou anteriormente, mesmo que se
considere a possibilidade de que também nas Enéadas talvez se encontre
algo como a vontade do Uno. Outra diferença importante consistiria na
absoluta inefabilidade do primeiro princípio, sobretudo se se considera um
texto como o de Porfírio, por exemplo:
oÙk œstin d™ toiÒnde Ð qeÒj, ¢ll¦ kaˆ toà e•nai kaˆ toà œstin
™x»llaktai aÙtoà tÕ prooÚsion
126
.
Para Boécio, embora se deva preservar a absoluta transcendência do
primeiro princípio, não deixa de ser possível a construção de um discurso
sobre ele. Esse discurso conta com o auxílio das Escrituras, evidentemente,
mas serve-se também do modo de operar das categorias aristotélicas
127
, sem,
entretanto, pretender dizer, segundo a lógica categorial, a natureza divina
no que ela é em si mesma.
Ao aplicar, por exemplo, a categoria de qualidade a Deus, Boécio
esclarece que o que seriam suas “qualidades” não se trata de algo acidental,
mas substancial, mesmo que “substancial”, aqui, signifique “supra-
substancial”, ou seja, algo inteiramente distinto do modo de ser das
substâncias criadas. Mas essa supra-substancialidade permite algum
conhecimento da parte das criaturas e essa possibilidade é a única razão de
Boécio “definir” a divindade como supra-substancial. De certo modo, sabe-
126
PORFÍRIO, In Parmenides X, 23-25 Edição Hadot, p. 96. Cf. Anexo, Texto 10.
127
Cf. DT IV VI.
76
se já o que Deus não é. Com efeito, é justamente a tentativa de obter algum
conhecimento da realidade divina que move Boécio a “relativizar” a lógica
das categorias. Em outras palavras, o fato de o espírito humano não poder
intuir diretamente o ser divino impede-o de construir um discurso direto
sobre Deus. Dizer isso, porém, não significa aceitar que não se sabe nada
sobre Deus, pois o conhecimento por “imagem” já é uma forma de
conhecimento. Dessa perspectiva, o discurso sobre Deus é um discurso
consciente de que o modo de a realidade divina “ser” aquilo que se diz dela
transcende inteiramente a razão humana, embora essa transcendência não
implique total incognoscibilidade ou inatingibilidade. Não se pode esquecer
ainda que, segundo o pensamento cristão, a própria divindade vem em
auxílio da criatura humana para revelar-se a ela e para lhe infundir um certo
tipo de conhecimento da natureza divina. O apóstolo Paulo o afirma no
capítulo 8 da Carta aos Romanos, e Agostinho assim exprime essa
convicção:
(...) caritas dei diffusa est in cordibus nostris per spiritum sanctum,
qui datus est nobis, per quem uidemus, quia bonum est, quidquid
aliquo modo est: ab illo enim est, qui non aliquo modo est, sed est
est
128
.
Retornando ao tema dos antecedentes da concepção boeciana de ser, é
comum mencionar, ainda, a obra de Mário Vitorino
129
como uma das fontes
de Boécio, mas é preciso notar que, apesar de uma certa semelhança quanto
128
AGOSTINHO DE HIPONA, Confissões XIII, 31, 46.
129
Cf., por exemplo, HADOT, P. Porphyre et Victorinus. 2 vols. Paris: Etudes
Augustiniennes, 1968.
77
ao vocabulário, o quadro conceitual de ambos parece bastante diferente
130
.
Leia-se a epístola de Cândido a Mário Vitorino:
Differt autem exsistentia ab exsistentialitate, quoniam exsistentia iam
in eo est, ut sit ei esse, at uero exsistentialitas potentia est, ut possit
esse, nondum est ipsum esse. Multo autem magis exsistentia a
substantia differt, quoniam exsistentia ipsum esse est et solum esse et
non in alio esse aut subiectum alterius, sed unum et solum ipsum
esse, substantia autem non esse solum habet, sed et quale aliquid
esse. Subiacet enim in se positis qualitatibus et idcirco dicitur
subiectum
131
.
É importante, aqui, conhecer o sentido da expressão ipsum esse
empregada por Cândido. Mário Vitorino a explica no seu tratado Aduersum
Arium:
Quid dicimus esse substantiam? Sicuti sapientes et antiqui
definierunt: “quod subiectum, quod est aliquid, quod est in alio non
esse. Et dant differentiam exsistentiae et substantiae; exsistentiam
quidem et exsistentialitatem, praeexistentem subsistentiam sine
accidentibus, puris et solis ipsis quae sunt in eo quod est solum esse,
quod subsistent ; substantiam autem, subiectum cum his omnibus quae
sunt accidentia in ipsa inseparabiliter exsistentibus
132
.
A interpretação da presente tese para a distinção boeciana entre o esse
e o id quod est será desenvolvida no terceiro capítulo, mas convém adiantar
aqui que Boécio parece associar, entre si, as expressões esse, ipsum esse e
forma essendi, de maneira que duas interpretações podem decorrer daí: (1)
130
No último capítulo desta tese, quando se proceder à crítica da interpretação de Pierre
Hadot, retormar-se-á essa questão.
131
CÂNDIDO O ARIANO, “Candidi Arriani (epistola) ad Marium Victorinum rhetorem de
generatione diuina § 2, 15-23 (1014c)”.
132
MÁRIO VITORINO, Aduersus Arium I, 30, 18-26 (1062c-1063a).
78
ou todas essas expressões designam a forma substancial (e, portanto,
diferem da substância ela mesma, isto é, o conjunto de forma e matéria); (2)
ou esse e ipsum esse associam-se entre si para designar a Forma
transcendente, enquanto forma essendi designaria a forma individual,
imanente a cada substância. De acordo com ambas as interpretações torna-
se compreensível uma afirmação boeciana como aquela segundo a qual “o
ser mesmo (ipsum esse) ainda não é, ao passo que isto que é, recebida a
forma de ser (forma essendi), é e subsiste”. Em todo caso, o esse ou o
ipsum esse de Boécio só pode ter alguma relação com o ipsum esse ou a
exsistentia de Cândido caso este último conceba, sob essas expressões, a
forma que “ainda não é” na substância, ou seja, que possui um status
transcendente com relação a cada coisa particular, mas que seja uma forma.
Nesse caso, a interpretação de Mário Vitorino seria perfeitamente aplicável
ao esse boeciano, pois, de fato, para Boécio, o esse equivale ao fundamento
“inicial”, ou seja, ao fundamento preexistente à coisa ela mesma.
Por “fundamento inicial”, Pierre Hadot traduz o termo subsistentia,
que Mário Vitorino
133
emprega para equiparar a exsistentia e a
exsistentialitas de Cândido sob o mesmo conceito de anterioridade ou
praeexsistens subsistentia. Ora, se subsistentia, nesse contexto, pode ser
interpretada na mesma direção indicada no parágrafo anterior, então ela
possuiria uma relação direta, ainda, com o conceito de subsistentia
apresentado por Boécio no CEN, pois o que ele designa por esse termo é o
mesmo que os gregos designavam por oÙs…wsij, e, então, a subsistência seria
o fundamento mesmo da substância:
Neque enim pensius subtiliusque intuenti idem uidebitur esse
subsistentia quod substantia. Nam quod Graeci oÙs…wsin uel
oÙsioàsqai dicunt, id nos subsistentiam uel subsistere appellamus;
quod uero illi ØpÒstasin uel Øf…stasqai, id nos substantiam uel
substare interpretamur. Subsistit enim quod ipsum accidentibus, ut
133
Cf. idem, p. 275.
79
possit esse non indiget. Substat autem id quod aliis accidentibus
subiectum quoddam, ut esse ualeant, subministrat; sub illis enim stat,
dum subiectum est accidentibus
134
.
Todavia, alguns outros trechos do Aduersus Arium mostram como as
posições de Mário Vitorino são assaz diferentes das de Boécio. Leia-se:
Equidem ratio sic se habet, ut primum esse sit deus. Verum quia
potest accipi esse non aperte quid sit, illud esse, si iam
conprehendibile erit, ón dicitur, id est forma quaedam in notitiam
veniens; quod tale esse iam ón et hýparxis dicitur. Omnis hýparxis
habet quod est esse. Quod autem est esse, non continuo kaì hýparxis
est, neque ón nisi potentialiter, non in manifesto, ut ón dicatur. Est
enim ón figura quadam formatum illud quod est esse. (...) Omne enim
quod est ón, esse est cum forma. Hoc et exsistentia dicitur et
substantia et subsistentia: quod enim ón est, et exsistit et subsistit et
subiectum est
135
.
À parte a variação no emprego dos termos, explicada por Mário
Vitorino como concessão à linguagem corrente
136
, é preciso destacar, aqui,
duas razões que obrigam a distanciar sua metafísica da metafísica boeciana.
Em primeiro lugar, nota-se que uma afirmação como aquela segundo a qual
omne “ón” esse est cum forma distingue, de saída, esse e forma, o que já se
distancia do princípio P2 do DH, caso se tome esse como sinônimo de forma
em Boécio. Porém, ainda que se prefira distingui-los mesmo em Boécio,
isso não significa que, segundo a metafísica boeciana, o ente ou a
substância (tó ón) sejam compostos de “ser” e “forma”, mas de “ser (ou
forma)” e “matéria”. Daí se conclui que o ser, para Mário Vitorino, em
continuidade com seu mestre Porfírio, não apenas é aquele que não
participa de nada e não se mistura a nada, mas também não pode ser sujeito
134
CEN III [205]-[210].
135
MÁRIO VITORINO, Aduersus Arium II, 4, 7-14.30-33 (ed. Hadot, p. 406).
136
Cf. idem, I, 30, 26-30 (ed. Hadot, p. 274).
80
nem predicado. O ente, ao contrário, participaria do ser para ser, isto é,
para subsistir, e subsistiria na medida em que uma forma particular viesse
acrescentar-se ao ser para o determinar.
Além disso, vale lembrar que o conjunto do pensamento de Boécio se
distingue consideravelmente da teologia negativa neoplatônica, pois, como
se afirmou anteriormente, embora o discurso sobre Deus seja um discurso
que exige o ultrapassamento da lógica das categorias, a transcendência
divina, para Boécio, não implica absoluta incognoscibilidade ou
inatingibilidade, diferentemente da “teologia” neoplatônica. Com efeito,
para empregar a mesma linguagem das categorias, Deus, segundo Boécio,
embora supra-substancial, não é totalmente estranho à categoria do quid, ao
passo que, desde Plotino, se afirma a inefabilidade do Uno em função da
sua total estranheza com relação ao t…:
‘`En g£r ti kaˆ tÕ ginèskein: tÕ dš ™stin ¥neu toà tˆ ›n: e„ g¦r tˆ
›n, oÙk ¨n aÙtošn: tÕ g¦r ¢utÕ prÕ toà tˆ. DiÕ kaˆ ¥rrhton tÍ
¢lhqe…v
137
.
Haveria, ainda, uma outra variação nas posições de Mário Vitorino que
se deve mencionar aqui. Trata-se justamente da relação entre a essência da
substância e a substância mesma. Num determinado momento, ele parece
retomar tal e qual a doutrina aristotélica:
Omne autem quod est unicuique suum esse, substantia est
138
.
137
PLOTINO, Enéadas V, 3, 12-13 (Tratado 49) Edição Faggin, p. 845. Cf. Anexo,
Texto 11.
138
MÁRIO VITORINO, Aduersus Arium III, 1, 19-20.
81
Entretanto, a própria continuação do texto reintroduz a dualidade
platônica entre o mundo sensível e o mundo inteligível:
Sed hoc esse quod dicimus, aliud intellegi debet in eo quod est esse,
aliud uero in eo quod est ita esse, ut unum sit substantiae, aliud
qualitatis. Sed ista istic in sensibilibus et in mundo. At in diuinis et
aeternis ista duo unum. Omne enim quod ibi, simplex, et hoc deus,
quod lúmen, quod optimum, quod exsistentia, quod uita, quod
intellegentia
139
.
O que aqui se poderia chamar de uma tensão entre aristotelismo e
platonismo poderia ser tomado como uma semelhança entre Boécio e Mário
Vitorino, mas, de modo geral, as posições de ambos se distanciam. Este
breve panorama das posições precedentes ao DH no que se refere à primeira
temática aventada acima, ou seja, a concepção do ser, permite concluir que
há uma semelhança notável entre a linguagem de Alexandre de Afrodísias e
a linguagem de Boécio na expressão da relação entre a essência da coisa
singular e a coisa ela mesma, embora, do ponto de vista conceitual, pareça
haver maior semelhança entre Boécio e Asclépio, que, enquanto
neoplatônico, mantém a identidade da essência com a coisa para o caso das
substâncias simples, negando-a para o caso das substâncias compostas.
Dessa perspectiva, apenas a realidade primeira possuiria, numa
simplicidade absoluta, o ser idêntico à forma. Essa atribuição de
simplicidade à natureza divina marcaria também uma semelhança entre o
pensamento de Boécio e o de Plotino, com a conseqüente atribuição de
composição a tudo o que se diz “ser”. Entretanto, apesar dessa semelhança,
não se pode negar um certo distanciamento entre o pensamento boeciano e a
teologia negativa neoplatônica, principalmente por causa da insistência
explícita de Boécio na vontade do primeiro Bem ao produzir o mundo
139
MÁRIO VITORINO, Aduersus Arium III, 1, 20-26.
82
sensível, além da sua afirmação da possibilidade de construção de um
discurso teológico a partir da lógica das categorias.
2.1.2. A semelhança entre as coisas e o primeiro princípio.
Quanto ao conceito de semelhança, observou-se anteriormente sua
importância para a solução da questão-tema do DH. Com efeito, um dado
fundamental para a argumentação boeciana é a negação da semelhança
substancial das coisas com o primeiro Bem, pois, caso contrário, elas se
confundiriam com ele
140
. Os termos em que Boécio concebe a bondade das
criaturas são os seguintes:
(...) idcirco quoniam esse eorum a boni uoluntate defluxit, bona esse
dicuntur. (...) Sed ipsum esse omnium rerum ex eo fluxit quod est
primum bonum et quod bonum tale est ut recte dicatur, in eo quod est,
esse bonum. Ipsum igitur eorum esse bonum est; tunc enim in eo
141
.
Trata-se, pois, de dizer que o ser das coisas é bom “no” primeiro Bem,
ou seja, enquanto ligado a ele e enquanto dependente dele, segundo o
esquema ontológico descrito pelo DH. Esse esquema processional não deixa
de remeter a Plotino, embora isso que Boécio parece considerar como a
solução do problema da bondade das criaturas (a afirmação da bondade em
virtude da derivação a partir do primeiro Bem) não seja considerado por
Plotino senão como um dado que não exime ainda de ulterior
esclarecimento:
140
Cf. DH [65]-[70].
141
DH [110]-[115].
83
Alle‡poi tij ¥n, æj ™ntaàqa Ólon e„j tÕ kalîj œxwqen
diafÒrwn Ôntwn tîn perˆ § ¹ t£xij, ™ke‹ d• kaˆ aÙt£. All¦ di¦
t… kaˆ aÙt£; OÙ g¦r Óti ¢p™ke…nou de‹ pisteÚontaj ¢fe‹nai: de‹
m•n g¦r sugcwre‹n ¢p™ke…nou Ônta e•nai t…mia, ¢ll¦ poqe‹ Ð
lÒgoj labe‹n, kat¦ t… tÕ ¢gaqÕn aÙtîn
142
.
Para Boécio, como se indicou anteriormente
143
, a questão de saber em
que consiste a bondade dos seres criados resolve-se no horizonte da
compreensão do bem como o fim de todas as coisas: trata-se de uma
concepção que toma a bondade como sinônimo de “ser” e que justamente
denomina o ser como “bem” por causa de um desejo natural de ser e de
apegar-se ao ser que estaria inscrito em todas as coisas. Porém, tal
concepção poderia permitir um ofuscamento da diferença radical que se
deve afirmar entre a bondade das criaturas (ou a bondade do mundo) e a
bondade da realidade primeira (ou a bondade do primeiro Bem). Uma das
maneiras de Boécio estabelecer essa diferença seria o que acima se chamou
de o modo de as substâncias compostas serem boas; outra, a insistência na
vontade do primeiro Bem, que, por uma razão conhecida apenas dele
mesmo
144
, fabricou o mundo sem o auxílio de nada que fosse preexistente ao
mundo. Assim, Deus teria comunicado o ser ao mundo, sem, entretanto,
confundir-se com ele. O modo como isso terá sido feito não é perscrutável
para a criatura, mas os dados da absoluta iniciativa divina e da diferença
ontológica radical entre Deus e a criação são elementos fundamentais para
Boécio.
Dessa perspectiva, se se deve reconhecer um certo paradigma
neoplatônico para o esquema de processão ontológica registrado no DH,
também não se pode negar certa diferença que distancia Boécio do
neoplatonismo, pois, embora Plotino, por exemplo, já houvesse atribuído ao
142
PLOTINO, Enéadas VI, 7, 18 (Tratado 38) Edição Faggin, pp. 1274 e 1249. Cf.
Anexo, Texto 12.
143
Cf., acima, o final da seção “1.3. Posição da questão”.
144
Cf. FC [50].
84
Uno o amor como potência ativa, ele parecia concebê-lo como amor de si
mesmo, longe de atribuir ao primeiro princípio um amor descendente que o
fizesse voltar-se para aquilo que se originou dele. É certo que o DH também
não fala explicitamente de um amor em direção da criatura (num sentido
providencial, por exemplo), mas o conjunto da obra de Boécio não deixa
dúvida a esse respeito. Vale dizer ainda que, a esse respeito, a processão
plotiniana não é um evento no tempo, e o Noûs também não é um arquétipo
no sentido de que, num determinado momento, segundo seu modelo, o
mundo visível passou a existir. O Noûs contém um infinito poder, e, em
virtude de sua perfeição, ele não pode conhecer alguma alternativa, ou, se
se quiser, alguma “hesitação”, o que introduziria uma carência no primeiro
princípio. Por essa razão, não parece haver nele algo como aquilo que os
humanos designam por “deliberação”
145
. Na antípoda dessa concepção,
Boécio serve-se justamente de termos ligados ao conhecimento prático para
designar a “decisão” divina de criar o mundo
146
.
Poder-se-ia, entretanto, encontrar-se em Proclo uma concepção mais
desenvolvida do amor do primeiro princípio por sua “obra”, afinal, no estilo
dos Elementos de teologia, poder-se-ia pensar que o princípio divino deve
amar os seus efeitos com um amor providencial
147
. O Pseudo-Dionísio, que
foi formado segundo o pensamento de Proclo, assim retrata o pensamento
do mestre:
’´Age d¾ kaˆ paÚtaj p£lin e„j •n sunagagÒntej e‡pwmen, Óti m…a
tij œstin ¡plÁ dÚnamij ¹ aÙtokinhtik¾ prÕj ˜nwtik»n tina
kr©sin ™k t¢gaqoà mšcri toà tîn Ôntwn ™sc£tou kaˆ ¢p™ke…nou
p¢lin ˜xÁj di¦ p£ntwn e„j t¢gaqÕn ™x ˜autÁj kaˆ di˜autÁj kaˆ
145
Cf. PLOTINO, Enéadas III, 2, 1-2; III, 7, 3; III, 7, 5; VI, 7, 1.
146
Cf., por exemplo, o termo uoluntas, que aparece tanto no DH ([110], [140], [145])
como no FC ([50], [55]). A propósito, uoluntas é o mesmo termo empregado por Boécio
para falar da uoluntas peccandi ou da uoluntas peccati no FC ([690], [700], [705],
[720], [725], [730], [745], [750]). Por fim, uoluntas é também o termo que traduz a
petição da oração dominical cujo trecho se registra em CEN VIII [765].
147
Cf. PROCLO, Elementos de teologia, props. 120-122.
85
™f˜autÁj ˜aut¾n ¢nakukloàsa kaˆ e„j ˜aut¾n ¢eˆ taÙtîj
¢nelittomšnh
148
.
Vale lembrar que também em Boécio se encontra a imagem do
movimento circular: ela é atribuída ao criador ou ao conditor que rege o
cosmo
149
. Porém, ao que tudo indica, o lugar e a função (função elevada e
elevante) do amor divino em Proclo pertenceria à ordem noética e
transcendente, porque Proclo se situa no mundo da Gnose, onde não há
espaço para um Deus Criador que ocupe um primeiro plano. Chega-se a
pensar, por exemplo, que, à parte a influência evidente da concepção
platônico-plotiniana de Éros, Proclo tenha dado alguma relevância ao amor
em sua teologia para criar um contraponto com a doutrina cristã do Deus
amor
150
. Em todo caso, porém, a idéia de amor divino não ocupa uma
posição central em seu pensamento.
Um outro pensador de orientação neoplatônica como Siriano, por
exemplo, embora afirme a subsistência de tudo em função de Deus, atenua
em seguida essa posição inviabilizando mesmo a concepção de alguma
semelhança entre o princípio criador e sua obra criada:
Ð tÕ p©n Øfist¦j qeÒj ™sti, p©j qeÕj aÙtù tù e•nai poie‹, p©j
<Ð> aÙtù tù e•nai poiîn Ðmo…wma ˜autoà poie‹: Ð tÕ p©n
Øfist¦j e„kÒna ˜autoà tÕn kÒsmon poie‹: e„ toàto, œcei ™n ˜autù
paradeigmatikîj t¦j a„t…aj toà pantÒj, aátai dš e„sin aƒ „dšai.
(...) oÙ g¦r d»pou aƒ m•n œnnoiai ¹mîn dÚnantai tù kur…wj ‡sù
kaˆ kur…wj Ðmo…J kaˆ p©si to‹j toioÚtoij ™pib£llein, Ð d•
dhmiourgikÕj noàj oÙk œcei ™n ˜autù tÕ aÙto•son kaˆ tÕ
148
PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA, Os nomes divinos IV, 17, 713D Edição Suchla, p.
162. Cf. Anexo, Texto 13.
149
Cf. CP IV, ps. 6.
150
Cf. DE VOGEL, C. J. “Amor quo caelum regitur”. In: Vivarium. A Journal for
mediaeval Philosophy and the intellectual Life of the Middle Ages. Volume I. Van
Gorcum: Royal Van Gorcum, 1963, p. 31; cf. também: __________. “Amor quo caelum
regitur: quel amour et quel Dieu?”. In: OBERTELLO, L. (org.). Atti del congresso
internazionale di studi boeziani. Roma: Herder, 1981, pp. 193ss.
86
aÙtod…kaion kai tÕ aÙtokalÕn kaˆ ¢gaqÒn Ðmo…wj kaˆ p£nta t¦
toiaàta
151
.
Para Boécio, entretanto, as coisas não deixarão de ser semelhantes a
Deus apenas porque ele as transcende. Nesse sentido, pode-se deduzir do
DH que, como se viu acima, embora as coisas não sejam semelhantes stricto
sensu a Deus, elas também não o deixarão de ser em todos os sentidos. Mas
também não o serão por participação, como se sua bondade fosse acidental.
Ao contrário, sua bondade associar-se-á à sua substância, não ao modo de
Deus, que é uma realidade simples, mas ao modo de substâncias criadas,
isto é, compostas. Essa observação impede que a bondade substancial das
criaturas implique sua identificação com o primeiro Bem, e, embora Boécio
não logre formular explicitamente o modo como as substâncias são boas
sem serem bens substanciais, é justamente o puzzle argumentativo do DH
que garante a bondade substancial delas, além de preservar sua distinção
com a realidade primeira, insistindo em algo como aquilo que Agostinho
chamara de uma regio dissimilitudinis
152
, ou que Porfírio, seguindo Platão e
Plotino, denominara o tópos tês anomoiótetos
153
. Vale lembrar que é
justamente num contexto de polêmica antimaniquéia que Agostinho refuta
essa mesma falsa implicação
154
.
No que se refere à idéia de gradação no ser e no bem, isso não
apresenta problemas para o pensamento de Boécio. Ele a assume, na
verdade, e novamente com uma formulação muito próxima àquela dos
Elementos de teologia de Proclo:
151
SIRIANO, Comentário à Metafísica de Aristóteles, 894b35-37; 895a19-23 Edição
Kroll, pp. 109-110. Cf. Anexo, Texto 14.
152
Cf. AGOSTINHO DE HIPONA, Confissões VII, 11, 16.
153
Cf. PORFÍRIO, In Parmenides IV, 24 (ed. Hadot, p. 76). Cf., também, PLATÃO,
Político 273d6; PLOTINO, Enéadas I, 8, 13 (Tratado 51).
154
Cf., por exemplo, o livro VII das Confissões e o Contra epistulam quam uocant fundamenti §
37 (In: _____________. Sancti Aureli Augustini De utilitate credendi etc. Ed. Joseph
Zycha. Viena: F. Tempsky, 1891, p. 242, linhas 22-26).
87
P©n tÕ tù e•nai corhgoàn ¥lloij aÙtÕ prètwj ™stˆ toàto, oá
metad…dwsi to‹j corhgoumšnoij. e„ g¦r aÙtù tù e•nai d…dwsi kaˆ
¢pÕ tÁj ˜autoà oÙs…aj poie‹tai t¾n met£dosin, Ö m•n d…dwsin
Øfeimšnon ™stˆ tÁj ˜autoà oÙs…aj, Ö dš ™sti, meizÒnwj ™stˆ kaˆ
teleiÒteron, e‡per p©n tÕ ØpostatikÒn tinoj kre‹ttÒn ™sti tÁj
toà Øfistamšnou fÚsewj. Toà doqšntoj ¥ra tÕ ™n aÙtù tù
dedwkÒti proup£rcon kreittÒnwj œsti: kaˆ Öper ™ke‹no mšn ™stin,
¢lloÙ taÙtÕn ™ke…nJ: prètwj g¦r œsti, tÕ d• deutšrwj. ¢n£gkh
g¦r À tÕ aÙtÕ e•nai ˜k£teron kaˆ ›na lÒgon ¢mfotšrwn, À mhd•n
e•nai koinÕn mhd• taÙtÕn ™n ¢mfo‹n, À tÕ m•n prètwj e•nai, tÕ d•
deutšrwj. ¢lle„ m•n Ð aÙtÕj lÒgoj, oÙk ¨n œti tÕ m•n a‡tion
e‡h, tÕ d• ¢potšlesma: oÙd¨n tÕ m•n kaqaÙtÒ, tÕ d™n tù
metascÒnti: oÙd• tÕ m•n poioàn, tÕ d• ginÒmenon. e„ d• mhd•n œcoi
taÙtÒn, oÙk ¨n tù e•nai q£teron Øf…stato tÕ loipÒn, mhd•n prÕj
tÕ e•nai tÕ ™ke…nou koinwnoàn. le…petai ¥ra tÕ m•n e•nai prètwj
Ö d…dwsi, tÕ d• deutšrwj Ö tÕ didÒn ™stin, ™n oŒj aÙtù tù e•nai
q£teron ™k qatšrou corhge‹tai
155
.
É curioso notar a proximidade entre a argumentação do DH com as três
hipóteses elencadas aqui por Proclo. Com efeito, também Boécio descarta
como nefasta uma primeira hipótese, segundo a qual haveria identidade
direta entre o ser das coisas e o primeiro Bem; em seguida, ele mostra que
uma segunda hipótese, implicando a bondade acidental das coisas, criaria
uma contradição explícita com os pressupostos da discussão; por fim,
assume uma terceira hipótese, segundo a qual não há semelhança estrita
entre o ser das criaturas e o ser de Deus. Com efeito, também Proclo rejeita
duas teses que supõem alguma identidade entre as coisas e seu princípio,
para assumir, por fim, uma terceira hipótese que nega qualquer
identificação.
Além disso, a afirmação de que naquele que origina (™n tù dedwkÒti)
preexiste o que é originado parece muito familiar a Boécio, principalmente
no que se refere à afirmação de que o ipsum esse das coisas é bom porque
provém do primeiro Bem. Em seu comentário ao Timeu, Proclo afirma que
todas as coisas são “no demiurgo” e “no modo do devir”:
155
PROCLO, Elementos de teologia, prop. 18 Edição Dodds, p. 20. Cf. Anexo, Texto
15.
88
™k d• toÚtwn ¡pantwn sunele‹n r®dion, Óti kaˆ Ð dhmiourgÕj
a„wn…wj poie‹, kaˆ Ð kÒsmoj ¢…diÒthta, kaˆ æj ¢eˆ g…gnetai
tetagmšnoj kaˆ æj ¥fqartoj oÙk œstin ¢e…, g…netai d• ¢eˆ
¢gaqunÒmenoj, ¢lloÙk aÙtÒqen ¢gaqÕj ên, æj Ð genn»saj aÙtÕn
pat»r: p£nta g¦r ™n aÙtù ginomšnwj ™st…n, ¢lloÙk Ôntwj æj ™n
to‹j a„wn…oij
156
.
2.1.3. A identificação entre “ser” e “agir” no primeiro princípio.
Por fim, um último aspecto permitiria estabelecer uma relação
importante entre Boécio e a tradição filosófica: trata-se da identificação
entre ser e agir em Deus. Com efeito, como se viu nas respostas às objeções
registradas no DH, depois de ter esclarecido que os acidentes não compõem
a substância das coisas porque aquele que lhes deu o ser não possui nenhum
acidente
157
, ele enfrenta a questão de saber se a justiça, que compõe a
natureza do primeiro Bem, também faz parte da substância das criaturas.
Sua resposta, porém, consiste em negar essa possibilidade, distinguindo,
nas criaturas, o ser do agir, mas não os distinguindo em Deus, visto que ele
é uma realidade simples cujo ser, portanto, confunde-se com o agir. Diante
de um argumento desse gênero, é quase automático correlacionar a resposta
de Boécio com a identificação porfiriana entre ser e agir, isto é, a
concepção do ser como atualidade transcendente ou pura ação, que Pierre
156
PROCLO, Comentário ao Timeu, 111D (30a) Edição Festugière, p. 226. Cf. Anexo,
Texto 16.
157
Sobre o exemplo da brancura, cf. ARISTÓTELES, Metafísica 1031a19-21.
89
Hadot comentou com tanta ênfase em seu Porphyre et Victorinus
158
. Diz
Porfírio:
‘´Ora d• m¾ kaˆ a„nissomšnJ œoiken Ð Pl£twn, Óti tÕ •n tÕ
™pškeina oÙsiaj kaˆ Ôntoj Ôn m•n oÙk œstin oÙd• oÙs…a oÙd•
™nšrgeia, ™nerge‹ d• m©llon kaˆ aÙtÕ tÕ ™nerge‹n kaqarÒn, éste
kaˆ aÙtÕ tÕ prÕ tî Ôvtoj
159
.
Percebe-se, também no texto de Porfírio, a distinção entre o ser e o
isto que é, mas a única semelhança que parece possível identificar com
Boécio trata-se de uma semelhança terminológica, porque, conforme a
interpretação da presente tese, o significado dos termos é bastante diferente
nos dois autores. No caso específico de Boécio, o fundamento para supor a
coincidência entre ser e agir em Deus é o princípio P7, segundo o qual toda
realidade simples possui, numa unidade, seu ser e isto que é. Ademais,
retorna, no texto de Porfírio, a temática do Uno como o indizível ou aquele
que não pode ser dito segundo a lógica das categorias, o que, como se viu,
não corresponde ao modo como Boécio concebe o falar de Deus.
No caso de Mário Vitorino, formado segundo o pensamento porfiriano,
a identidade entre ser e agir, com base no princípio da preeminência,
explica, de um lado, a distinção entre as pessoas divinas no interior da
Trindade, e, de outro, sua unidade de natureza. Leia-se:
Sed quoniam esse ipsum, quod est moueri et intellegere, hoc est
agere, primum est potentia et constitutiva potentia primum, inquam,
est, necessario igitur ipsum esse praecedit. Ergo et moueri et
intellegere et agere ab eo est, quod est esse. Est autem secundum
quod est in actu esse, hoc est filium esse. Filius ergo et pater idem
ipse et magis istud, quoniam illud ipsum esse, quod est pater, quod
158
Cf. HADOT, P. Porphyre et Victorinus. Vol. I. Paris: Études Augustiniennes, 1968,
pp. 481-493.
159
Cf. PORFÍRIO, In Parmenides XII, 22-27 Edição Hadot, p. 104. Cf. Anexo, Texto 17.
90
est esse, hoc est agere et operari. Non enim aliud ibi esse, aliud
operari. Simplex enim illud unum et unum et solum semper. In patre
igitur filius et in filio pater. (...) Si igitur causa est ipsum esse ad
actionem, generatur agere ab eo quod est esse. Esse autem pater est,
operari ergo filius
160
.
Desses pressupostos, Mário Vitorino extrai a identidade entre ser e
agir em Deus
161
. Em Proclo, a relação entre o bem e o justo é ainda mais
visível:
(...) tÒte d• æj perˆ toà e‡doj tîn ¢gaqîn p£ntwn, Óper e‡wqen
™ponom£zein aÙtoagaqÕn kaˆ sÚstoicon lšgein tù aÙtodikaiJ
kaˆ tù aÙtokalù (kaq£per kaˆ ™n tù Fa…dwni t¦ tr…a sun£ptwn
ºrèthsen, e‡ fhsin Ð Simm…aj e•nai ti dika…ou e•doj kaˆ kaloà
kaˆ ¢gaqoà
162
.
A partir da leitura desses excertos, observa-se uma proximidade
razoavelmente clara da identificação boeciana entre o ser e o agir na
realidade primeira com um certo correspondente neoplatônico vindo,
eminentemente, de Porfírio e Proclo. A Boécio, entretanto, importava
distinguir nas criaturas aquilo que se encontra unido na natureza divina,
afinal, dessa distinção dependia sua compreensão mesma do agir ético, uma
vez que o agir propriamente humano, como tanto insiste a CP, implica a
liberdade e a deliberação.
2.2. Herança alexandrina e bizantina.
Para alargarem-se os horizontes da visão sobre os antecedentes e
interlocutores de Boécio, rumo a geografias diferentes daquelas exploradas
160
MÁRIO VITORINO, Ad Candidum Arrianum § 19; § 20, 16-18 (1030b-1031a).
161
Cf. MÁRIO VITORINO, Aduersus Arium I, 33 (ed. Hadot, p. 286).
162
PROCLO, Comentário à República XI, 1 (504d-509e).
91
até aqui, tomar-se-á, estrategicamente, uma questão bem precisa: o sentido
do termo hebdomas.
Como se disse anteriormente, Françoise Hudry
163
interpreta esse termo
como equivalente a “dia”, ou, mais especificamente, a um dia de debate
filosófico, de maneira que, no texto de Boécio, hebdomas significaria uma
discussão tida com João, o Diácono, durante uma jornada de debates, da
qual este teria saído com alguma dúvida. Essa jornada correspondia,
segundo Hudry, a um exercício escolar obrigatório da escola de Alexandria,
e, ao dizê-lo, ela retoma a antiga tese de Pierre Courcelle
164
, para quem, a
partir da comparação dos comentários às obras de Aristóteles feitos por
Boécio com os comentários feitos pelos autores da escola de Alexandria,
sobretudo Amônio, pode-se concluir que Boécio terá recebido sua formação
intelectual dessa mesma escola.
A tese de Pierre Courcelle, no entanto, não é mais aceita pelos
melhores historiadores
165
, embora se tenha afirmado, durante algum tempo,
que Boécio talvez tivesse estudado (ou mesmo nascido) em Alexandria, se
foi naquela ocasião que seu pai ocupou o cargo de prefeito do Egito. Nesse
sentido, o que a tese de Hudry tem de interessante não é o fato de
“reabilitar” a tese de Courcelle, mas de reforçar o que também B. E. Daley
já indicara em seu artigo de 1984, ou seja, que as aproximações verificáveis
163
HUDRY, F. “L’hebdomade et les règles. Survivances du débat scolaire alexandrin”. In:
Documenti e studi sulla tradizione filosofica medievale. Turnhoult: Brepols, Vol.
VIII, Ano 1997, pp.319-337.
164
Cf. COURCELLE, P. Boèce et l’école d’Alexandrie. Paris: E. de Boccard, 1935.
Grosso modo, pode-se resumir a tese de Courcelle dizendo que Boécio teria aprendido
grego e recebido sua cultura filosófica não em Roma, mas em Alexandria. Com efeito, a
escola pagã de Amônio possuía muitos estudantes estrangeiros, inclusive cristãos, ao
passo que, em Roma, segundo Courcelle, não se encontrava muita evidência de ensino
filosófico na mesma época. Além disso, ainda que Boécio tenha sido um autodidata
(como provavelmente foi em muitos aspectos), teria sido muito difícil, para ele, o
acesso aos cursos de Amônio que tinham sido publicados recentemente, de modo que
tudo levaria a crer que Boécio teria sido formado em Alexandria. Em favor dessa tese
poder-se-ia evocar o CP, que fala da nutrição de Boécio a partir de estudos eleáticos e
acadêmicos, mas essa nutrição ele também pode ter recebido em outros lugares, e não
necessariamente em Alexandria.
165
Cf. KIRKBY, H. “The scholar and his public”. In: GIBSON, M. (org.). Boethius. His
life, thought and influence. Oxford: Basil Blackwell, 1981, pp. 60-61.
92
entre Boécio e os bizantinos do século VI são devidas a uma comunidade de
formação intelectual que poderia provir tanto de Atenas como de
Alexandria
166
. De todo modo, ainda que não se possa, para o momento,
determinar com precisão o teor da influência bizantina sofrida por Boécio,
essas pesquisas confirmam a antiga tradição segundo a qual ele terá mantido
relações importantes com o Oriente. Sabe-se também, por exemplo, que seu
sogro, o patrício Símaco, estando em Constantinopla entre a primavera e o
verão de 520, acompanhou com certo interesse as tentativas de
reconciliação entre a igreja de Roma e aquele patriarcado, pois tratava-se
da adesão ao Credo de Calcedônia, depois do cisma acaciano, da parte de
João II, patriarca de Constantinopla. Naquele contexto, envolvido pelo
clima das discussões teológicas, Boécio chegou a enviar a seu sogro o DT,
sob a forma de carta, e será justamente sua correspondência com outras
personalidades do Oriente que, segundo outra tradição, lhe valerá a
acusação de conspiração contra Teodorico.
Dessa perspectiva, portanto, o DH corresponderia a um debate de
escola havido entre João, o Diácono, e Boécio. Com efeito, Boécio atesta o
entusiasmo com que João tomou parte no debate, e este, por sua vez, insiste
para que Boécio desenvolva um pouco mais o essencial da questão,
principalmente porque nem todos os interessados ou ouvintes estariam a par
daquele tipo de composição
167
. A partir dessa narrativa de Boécio e levando-
se em consideração que, na passagem do século V para o século VI, esse
tipo de debate não era muito conhecido em Roma ou ao menos não era
transcrito e apresentado com freqüência ao público romano, pode-se
concluir que Boécio teria seria um dos introdutores, junto aos latinos, de
um costume comum aos alexandrinos.
166
Cf. DALEY, B. E. “Boethius’ Theological tractates and Early Byzantine
Scholasticism”. In: Mediaeval Studies. Vol. XLVI. Toronto: Pontifical Institute of
Mediaeval Studies, 1984, pp. 158-191. Quem insiste na influência da escola
neoplatônica de Atenas sobre Boécio é J. Shiel: SHIEL, B. Boethius’commentaries on
Aristotle”. In: SORABJI, R. (ed.). Aristotle transformed. The ancient commentators
and their influence. Nova Iorque: Cornell University Press, 1990, pp. 349-372.
167
Cf. DH [1]-[5].
93
Por outro lado, em nenhuma das duas ocorrências do termo hebdomas
(hebdomadibus; hebdomadas
168
), Boécio se vê obrigado a explicá-lo ou a
traduzi-lo, o que leva a pensar tratar-se de uma informação secundária que
não interferia nas reflexões, e, ao mesmo tempo, sem correspondente na
língua latina. Tratava-se, pois, de algo exterior à reflexão, e, além disso,
algo que não constituía um objeto de estudo propriamente dito, mas apenas
um ponto de partida. Dessa perspectiva, não há nada que torne inviável a
concepção de hebdomas como uma jornada de debates, de maneira que se
poderia traduzir diferentemente o prólogo do DH:
Pedes, a partir de nossas jornadas, que eu dissipe a obscuridade
daquela questão que envolve o modo pelo qual as substâncias, nisto
que elas são, são boas, embora não sejam bens substanciais, e
exponha com um pouco mais de clareza; e, dizes, isso deve ser feito
porque o itinerário percorrido nesse tipo de escrito não é conhecido
de todos. De fato, eu mesmo sou testemunha da vivacidade com que
abraçaste essa discussão. De minha parte, na verdade, comento
comigo mesmo essas jornadas e conservo essas especulações em
minha própria memória, em vez de participá-las a um desses cuja
leviandade e impetuosidade não suportam nada do que não seja jocoso
e risível. Por isso, não sejas contrário às obscuridades da concisão, as
quais, sendo guardiãs fiéis do mistério, têm a vantagem de dialogar
somente com aqueles que são dignos. Como, pois, se costuma fazer na
matemática e nas outras disciplinas, preestabeleci definições
nominais e axiomas, com os quais desenvolverei tudo o que segue.
Qual seria o sentido dos termos lasciuia e petulantia, empregados por
Boécio para caracterizar um certo público hostil, e traduzidos aqui por
“leviandade” e “impetuosidade”? Normalmente, traduzir-se-iam diretamente
por “lascívia” e “petulância”, o que denota, de um lado, costumes
licenciosos (lasciuia), e, de outro, um certo orgulho intelectual
(petulantia). Para compreender melhor o sentido desses termos, parece útil
acolher a sugestão de F. Hudry no sentido de comparar o DH com uma obra
chamada Thesaurus philosophorum, que, no seu dizer, é um bom
testemunho do ensino alexandrino tardio. Com efeito, ainda que as
168
Cf., respectivamente, o emprego do termo declinado no ablativo plural e no acusativo
plural em DH [1] e [5].
94
pesquisas de Hudry revelem um caráter altamente especulativo, elas não
deixam de apresentar resultados assaz interessantes para a determinação do
sentido dos termos que são importantes aqui (principalmente hebdomas,
lasciuia e petulantia).
O Thesaurus philosophorum é uma espécie de manual de modo
oponendi et respondendi, composto exatamente para instruir os estudantes
nos debates orais. Trata-se de um texto conservado em dois manuscritos do
século XIII e em um do século XV, cuja edição crítica foi publicada por
Lambert-Maria de Rijk, em 1980
169
. A autoria é de um certo Aganafat,
professor de Alexandria, que se apresenta no Prólogo como proveniente da
cidade “nobre e real do Egito”. A língua é o latim, de modo que essa obra
pode ser tanto uma tradução como uma composição original em língua
latina. O próprio Aganafat, no prólogo, explica que essa obra nasceu do
pedido de mais de sessenta filósofos, alunos seus, para continuar nas “vias
da lógica e das sentenças dos antigos filósofos”
170
; mas, no que se refere à
possibilidade de datação, não há nada que permita algum consenso. De Rijk,
entretanto, toma uma posição nuançada que não descarta a possibilidade de
esse texto pertencer, se não inteiro, ao menos em seu núcleo inicial, à
escola de Alexandria
171
.
Assim, curiosamente, para facilitar o desempenho do oponente (aquele
que levanta questões), Aganafat, no Thesaurus, extrai de Aristóteles regras
de pensamento e de desenvolvimento lógico a partir das quais, segundo ele,
“poder-se-ão fabricar infinitos argumentos para provar ou recusar todo tipo
169
DE RIJK, L.-M. Die mittelalterlichen Traktate De modo opponendi et respondendi.
Münster: Aschendorff, 1980, pp. 106-158.
170
Cf. idem, p. 109.
171
Cf. idem, pp. 68-83. Cf. também: “A note on Aganafat’s Thesaurus philosophorum.
An unknown arab source of the well-known ‘Tractatus de modo opponendi et
respondendi’”. In: Vivarium. A journal of Mediaeval philosophy and the Intellectual
life of the Middle Ages. Assen: Royal VanGorcum, Vol. II, 1973, pp. 105-107;
WEIJERS, O. Le travail intellectuel à la Faculté des arts de Paris : textes et maîtres
(ca. 1200-1500). Vol. I. Turnhoult: Brepols, 1994, pp. 33-34. Vale lembrar que o
Thesaurus, segundo De Rijk e Weijers, é o texto que está na origem do Ars opponendi et
respondendi, obra de origem parisiense e atribuída erroneamente a Alberto Magno.
95
de questão no mundo”
172
. Graças a essa obra, “cada um poderá parecer um
mago em não importa qual tipo de ciência, quando, então, poderá disputar,
sobre toda ciência, durante o espaço de uma hebdomade, perguntando e
respondendo, nunca faltando em argumentos, mas superabundando
incrivelmente em objeções e respostas, segundo este modo admirável e
superior ao intelecto humano”
173
.
-se, pois, no Thesaurus, semelhantemente ao que ocorre no DH, a
presença concomitante da hebdomas com algumas regras de discussão. Mas
há um outro dado muito importante para a presente discussão e que consiste
no caráter tendencioso do debate ensinado por Aganafat. Com efeito,
embora o conjunto do texto seja construído de maneira inteligente, observa-
se um tal abuso e uma tal pobreza de pensamento a ponto de não se poder
evitar a conclusão de que o debate por ele representado marcava-se, às
vezes, por uma certa maldade e por uma grande astúcia na arte de enganar.
É certo que o autor se apóia em regras lógicas tomadas de Aristóteles, mas
sua preocupação maior consiste não em buscar a verdade, mas em triunfar
sobre o adversário. Para esse fim, ele visa, sobretudo, poder destruir as
boas intervenções do respondente, e dizer isso não implica nenhum
escrúpulo de sua parte. Ao contrário, ele diz explicitamente que sua obra
permitirá “contradizer (ou refutar) não importa qual boa resposta dada pelo
respondente”
174
, de maneira que todos os meios são válidos, principalmente
o jogo de sentido das palavras, como mostra o seguinte silogismo:
“nenhuma fala do respondente pode permanecer; ora, a natureza do
172
Cf. AGANAFAT, Thesaurus philosophorum, Prologus, § 4 (ed. De Rijk, pp. 110, 3
111, 4): In <secunda> parte ponemus regulas extractas de Libro Priorum et Topicorum
Aristotilis; ex quibus regulis poterunt fabricari infinita argumenta ad omnem
questionem de mundo probandum et improbandum.
173
Cf. idem, Prologus, § 2 (ed. De Rijk, p. 110, 3-7): Per hoc namque opus in qualibet
scientia magus unusquisque poterit apparere, dum in omni scientia disputare poterit per
unius hebdomade spatium, opponendo et respondendo, numquam in argumentis
deficiens, sed in hoc miro modo et supra intellectum humanum oppositionibus et
responsionibus ineffabiliter superhabundans.
174
Cf. idem, II, § 1 (ed. De Rijk, p. 137, 3-7: Dictum est autem de arte opponendi in
generali, per quam quilibet poterit probare quicquid sibi placuerit in omni scientia siue
arte. Restat igitur nunc de secunda parte aliquid dicere. Per quam quilibet poterit
improbare quamlibet bonam responsionem datam ab ipso respondente.
96
verdadeiro é permanecer; logo, nenhuma fala do respondente pode ser
verdadeira”
175
.
Ora, se essas são recomendações do mestre que compôs o texto, pode-
se então imaginar o ambiente que se criava durante os debates da escola de
Alexandria, provavelmente em sua fase final, quando certamente lasciuia e
petulantia deviam correr a solto. Se se tomam, ainda, esses termos em sua
acepção original de “alegria, espírito de zombetear” e “audácia, prontidão
para o ataque, entusiasmo”, pode-se pensar que o texto de Boécio talvez
visasse os estudantes dos primeiros ciclos, debutantes no trívio e no
quadrívio, cujo espírito, ainda imaturo, era incapaz de aplicar-se aos
estudos sem encontrar neles ocasião de riso e protesto
176
.
De todo modo, esse clima quase leviano faz pensar nas repetidas
menções dos Opuscula sacra
177
a um público indigno da matéria
investigada. Com efeito, Boécio fala explicitamente, por exemplo, dos
hereges, mas também de certas pessoas que “não têm um coração veraz” e,
por isso, não acedem às verdades sagradas, necessitando de exposições que
não primam pela concisão
178
; ou, ainda, de membros mesmos da Igreja que
se faziam passar por doutos, a fim de ocultar a própria ignorância, e
acabavam por tratar apressadamente assuntos que mereceriam não apenas
calma, mas também devoção
179
.
Mário Vitorino, autor bem conhecido de Boécio, explica, em termos
neoplatônicos, no que consistia a anima petulans: trata-se da alma que, por
causa de seu ardor, torna-se potência vivificadora quando olha as coisas
inferiores, isto é, as coisas sensíveis, para fazer viver o mundo e aquilo que
175
Cf. idem, I, § 5 (ed. De Rijk, p. 139, 22 140, 1): Nullum dictum a respondente
potest permanere. Sed natura ueri est permanere. Ergo nullum dictum a respondente
potest esse uerum.
176
Cf. HUDRY, F., op. cit., p. 329; cf. também MARROU, H.-I. Histoire de l’éducation
dans l’Antiquité I. Le monde grec. 6ª ed. Paris: Seuil, 1981, pp. 320-321.
177
Cf. FC [25]; CEN [35]-[40]; DT [5]-[15].
178
Cf. FC [90]
179
Cf. CEN [35]-[40].
97
é no mundo, inclusive as pedras, segundo o modo das pedras
180
. Isso,
entretanto, não é mau em si, porque a alma se volta para aquilo que ela deve
animar; seu apetite por esses objetos torna-se irresistível, de maneira que,
ao mesmo tempo, ela se torna prisioneira dos elementos do mundo, e,
finalmente, pelos laços da carne
181
. Esses entraves não designam, em
primeiro plano, a qualidade da vida moral, mas o apego aos bens sensíveis
por oposição à atração dos inteligíveis, que constituem a outra
possibilidade oferecida à alma. Mutatis mutandis, pode-se imaginar que os
estudantes do triuium e do quadriuium, encontrando-se absorvidos pelas
disciplinas que estudavam o mundo sensível, mostravam-se pouco
preparados para o estudo dos inteligíveis, de maneira que parece bem
provável serem eles a referência dos termos lasciuia e petulantia.
Mas essa menção ao clima quase selvagem dos debates alexandrinos
em sua fase final
182
não constitui a única evidência da ligação de Boécio
com Alexandria. Há também as regras ou axiomas do DH, que possuem algo
muito semelhante, como se viu acima, no Thesaurus de Aganafat, além de
refletirem-se, ainda, como indica F. Hudry, em obras posteriores como o
Liber de naturis superiorum et inferiorum (ou Philosophia), escrito em
Toledo, entre os anos 1175 a 1187 (ou 1200), pelo inglês Daniel de Morley,
que se inspira na ciência antiga, principalmente alexandrina, e que toma
como regras (princípios de evidência que não demandam justificação)
algumas afirmações de Euclides, por exemplo
183
. No que toca à posteridade
do emprego das regras, poder-se-ia mencionar, entre outros, Alain de Lille,
com suas Regulae caelestis iuris, ou ainda Gilberto Porretano. O que se
deduz, em suma, é que a jornada do debate alexandrino supunha uma gama
180
Cf. MÁRIO VITORINO, Aduersus Arium I, 60, 14-17, 1086b (edição de Paul Henry, vol.
I, pp. 376 e 378): MÁRIO VITORINO. Traités théologiques sur la Trinité. 2 vols. Ed. de
Paul Henry. Trad. de Pierre Hadot. Paris: Cerf, 1960).
181
Cf. idem, IV, 11, 16-19, 1121b (ed. Paul Henry, vol. I, p. 532).
182
De Rijk qualifica a obra de Aganafat de gelehrte Spielerei, o que permite pensar num
jogo mentiroso de erudição ou mesmo numa espécie de charlatanismo: DE RIJK, Die
miettelalterlichen Traktate, op. cit., p. 83.
183
Cf. HUDRY, F., op. cit., p. 324.
98
de termos e regras que certamente permitiam à discussão avançar sem
necessidade de longas justificações, e, dessa perspectiva, as regras do DH
seriam regras de argumentação de um debate inicialmente oral. Nos textos
de origem alexandrina há sempre o esclarecimento do emprego de regras.
A originalidade de Boécio estaria no emprego sistemático das regras
ou do método axiomático em filosofia; mais precisamente, no campo da
metafísica e da “teologia”. No DT, por exemplo, sua linguagem ainda evoca
a figura das regras, pois ele diz, por exemplo, ser de máxima verdade o
axioma segundo o qual, nas coisas incorpóreas, há distinções por
diferenças, mas não por lugares
184
. Essa é a regra que fundamenta a
possibilidade de afirmar-se Pai e Filho e Espírito Santo não como três
deuses, mas como um único deus, sem, no entanto, pretender que eles se
confundam entre si, posto que os três são distintos. Do ponto de vista do
conteúdo, não se pode negar, no que tange a esta regra, a influência direta
de Porfírio, pois suas Sentenças sobre os inteligíveis
185
representam
precisamente o esforço por demarcar a distinção entre a ordem do sensível e
a ordem do inteligível, de maneira que sua primeira sentença é praticamente
reproduzida por Boécio no DT. Porém, o que Boécio apresenta de novidade
é a maneira de selecionar, em meio ao seu próprio pensamento e ao
patrimônio filosófico anterior, os princípios que interessam à questão em
debate, organizando-os como regras. Assim, como se afirmou
anteriormente, esse procedimento parece movido mais por um interesse
acadêmico, voltado para a investigação das formulações filosófico-
teológicas em si mesmas, do que por um interesse apologético ou algo que o
valha.
184
Cf. DT V [315].
185
Cf. PORFÍRIO. Sentenze sugli intellegibili. Trad. de Giuseppe Girgenti. Milão:
Rusconi, 1996.
99
Essas conclusões conectam-se diretamente com a tese defendida por
Brian E. Daley, em seu artigo de 1984
186
, que procura relacionar o
pensamento de Boécio com o novo modelo de pensamento surgido durante
as duas primeiras décadas do século VI, justamente em Alexandria e na
Palestina. A essa nova forma de pensamento, Daley denomina “escolástica
bizantina”
187
: trata-se de todo um estilo de reflexão que parece ter nascido
no Oriente grego, durante a segunda metade do século V, no contexto
daquele novo modelo de teologia cristã que foi o debate em torno da
cristologia formulada pelo concílio de Calcedônia. Do ponto de vista da
influência “externa”, não se pode esquecer que a nota dominante era dada
pelas escolas filosóficas dos séculos V e VI, especialmente pelo que Daley
chama de “o aristotelismo neoplatônico” de Alexandria, marcadamente com
Amônio e seus discípulos.
Amônio, como se sabe, encarou sua tarefa de filósofo mais como um
trabalho de comentador e mantenedor da tradição do que de inventor de
novas posições filosóficas. Assim, sua concepção do cosmo é
fundamentalmente neoplatônica, mas a característica principal de seu
trabalho acadêmico (assim como a do conjunto da escola de Alexandria no
século que seguiu à sua morte) foi a especialização na filosofia de
Aristóteles. Com efeito, praticamente todo o magistério público de Amônio
consistiu em comentar as obras de Aristóteles, acima de tudo suas obras
lógicas, tomando a Isagoge de Porfírio como introdução. Isso fez com que a
filosofia escolar de Alexandria assumisse, no século VI, um caráter
eminentemente científico-técnico (as principais discussões referiam-se aos
elementos e corpos celestes, os mecanismos da sensação e do conhecimento,
as regras do argumento etc.) e se distanciasse das especulações
186
Cf. DALEY, B. E. “Boethius’ Theological tractates and Early Byzantine
Scholasticism”. In: Mediaeval Studies. Vol. XLVI. Toronto: Pontifical Institute of
Mediaeval Studies, 1984, pp. 158-191.
187
Na verdade, Daley toma essa expressão de HARNACK, A. Lehrbuch der
Dogmengeschichte. 3 vols. 5ª ed. Tübingen: P. Siebeck, 1931.
100
eminentemente religiosas e místicas sobre Deus e o destino humano, como
se encontram nas obras de filósofos atenienses como Proclo, por exemplo.
Sem pretender, aqui, prolongar essas complexas e controversas
discussões históricas, parece, entretanto, útil evocar a tese segundo a qual
foi a sua característica aristotélica que permitiu à escola de Alexandria
sobreviver tanto sob o governo cristão local e imperial do século VI, como
sob seu sucessor muçulmano
188
. Em nenhum dos dois casos o trabalho
alexandrino pareceu atentar contra a ortodoxia da religião, e parece que
Damásio Diódoco, filósofo ateniense rival de Amônio, sempre se referia ao
“negócio” de um certo mestre alexandrino com o bispo cristão do local que
lhe permitia continuar ensinando
189
. Se isso é verdade, seria possível
imaginar que Amônio tenha feito alguma concessão e alterado algo de seus
cursos? Isso parece pouco provável, mas, de toda maneira, é certo que os
cristãos pareciam sentir-se à vontade para assistir às suas aulas
190
. Além
disso, vale dizer que, embora não haja nenhuma evidência de uma possível
conversão de Amônio ao cristianismo, é bem possível, entretanto, que seus
sucessores, no último quarto do século VI, tenham sido cristãos. A
propósito, João Filopono, que foi seu melhor aluno e o editor de seus
textos, era um monofisista estrito
191
.
A partir desses dados históricos, compreende-se por que um novo
estilo de “teologizar” tenha crescido entre os cristãos que viviam na esfera
cultural da escola de Alexandria (esfera esta que chegava, no mínimo, até
Gaza e as províncias da Palestina). Com efeito, esse estilo, que refletia o
método “científico” da abordagem neoplatônica de Aristóteles, embora não
188
Cf. DALEY, B. E., op. cit., p. 165; SAFFREY, H.-D. “Le chrétien Jean Philopon et la
survivance de l’école d’Alexandrie au VI
e
siècle”. In: Revue des études grecques.
Paris: Leroux, 1954, Número 67, pp. 396-410.
189
É Fócio quem registra essa rivalidade (cf. DALEY, B. E., op. cit., p. 165, nota 24).
190
É Zacarias de Mitilene quem registra um grande número de cristãos entre os alunos
de Amônio (cf. DALEY, B. E., op. cit., p. 165, nota 25).
191
Cf. SAFFREY, H.-D., op. cit., pp. 396-410.
101
fosse exclusivo, tornou-se dominante no mundo de fala grega
192
, e como
exemplos dessa teologia “escolástica” podem citar-se o Teofrasto, de Enéias
de Gaza, e o Amônio, de Zacarias de Mitilene
193
: ainda que ambos pertençam
a um gênero de diálogo apologético, visando refutar o que seus autores
consideravam como o que há de mais objetivamente refutável nas doutrinas
pagãs da escola de Alexandria (a reencarnação, a negação da ressurreição
física, a eternidade do mundo material etc.), sua característica mais
marcante não é o interesse apologético, mas a argumentação lógica. Ambos
refletem, na ortodoxia filosófica de suas posições, a confissão dos
pensadores cristãos posteriores a Calcedônia.
O debate que seguiu a Calcedônia, coincidindo com a publicação do
Henotikón
194
, fez surgirem algumas obras que permitem recompor o quadro
das controvérsias teológicas que aqui interessa mencionar. Com efeito, no
Ocidente latino, o papa Gelásio escreveu, em 480 (ou 490), o tratado De
duabus naturis in Christo, defendendo as mesmas posições de Calcedônia.
No Oriente, as Refutações do Concílio de Calcedônia, do patriarca Timóteo
Aerulus, e os tratados do bispo Filoxeno de Mabog (que também escreveu
contra o concílio) continuam a tradição de Cirilo de Alexandria
195
e
192
O Pseudo-Dionísio, por exemplo, constitui uma exceção, pois seu aparato filosófico
parece marcado mais pelo platonismo de Proclo do que pelo aristotelismo de Amônio.
193
O volume 85 da Patrologia Grega de Migne contém as duas obras: cols. 871-1004
(Teofrasto, de Enéias de Gaza) e 1011-1144 (Amônio, de Zacarias de Mitilene) MIGNE,
J.-P. Patrologiae cursus completus. Series graeca, tomus 85 Basilius et alii.
Reimpressão. Turnhoult: Brepols, 1984.
194
O Henotikón consistia numa fórmula imperial, promulgada em 482 pelo imperador
Zenão, visando restabelecer a ordem perturbada pelos contínuos desacordos quanto às
definições cristológicas. Nesse sentido, Zenão fez o arcebispo de Constantinopla
redigir, em 482, um edito de união (henotikón), e impôs a todas as igrejas do império
que o considerassem como uma profissão de fé. A igreja de Constantinopla, então,
aceitou esse documento, inclusive porque foi o seu bispo que o redigiu, ao passo que a
igreja de Roma o recusou, porque, mesmo doutrinalmente correto, ele representava uma
intromissão do poder nas questões de fé.
195
A cristologia de Cirilo, entretanto, não pode ser considerada, em sua essência, como
oposta à cristologia de Calcedônia. Ele insistia em dizer que a natureza de Cristo
constituía uma natureza diferente, a natureza do Verbo Encarnado, embora as naturezas
humana e divina continuassem no Cristo como “partes” íntegras e inconfusas. Ocorre,
entretanto, que muitos dos opositores de Calcedônia, insistindo sobre a unicidade da
natureza do Verbo Encarnado, acabaram por fazer de Cirilo um autor contrário ao
concílio.
102
Teodoreto de Ciro. Os escritores gregos, entretanto, perplexos com a
aparente inconsistência entre a doutrina calcedoniana e a cristologia
dominante de Cirilo, além de intimidados diante da política imperial de
harmonia forçosa, parecem terem relutado a engajar-se em qualquer debate
técnico como aqueles que precederam Calcedônia. Seu silêncio haveria de
esperar cerca de cinqüenta anos, até que fosse rompido na primeira década
do século VI.
Um fato curioso ocorreu em torno de 450: um grupo de bispos da Nova
Cesaréia, no Ponto, escreveu ao imperador dizendo que eles podiam fazer
sua a fórmula de Calcedônia, considerando sua linguagem e sua intenção
piscatorie, isto é, com senso apostólico, pastoral, de pescadores de homens,
mais do que aristotelice, ou seja, com a exatidão acadêmica de um
dialético
196
, e, com efeito, pode-se compreender que, como bispos, eles
vissem as vantagens da postura de “pescadores” para sua própria
tranqüilidade de consciência e a tranqüilidade da Igreja, embora o
interessante seja notar que os cristãos orientais do século seguinte, por
alguma razão histórica desconhecida
197
, escolheram, sobretudo, a abordagem
aristotélica em vez da abordagem de pescadores. O resultado foi a
imposição do novo modelo de teologia, ou seja, a transformação radical, na
igreja grega dos séculos VI e VII, daquilo que tinha existido até então como
atividade teológica (um conjunto de reflexões escritas depois de serem
pregadas oralmente, ou seja, um registro do kérygma anunciado). O que se
vê nascer agora é uma “disciplina” intelectual nova e cada vez mais
consciente de si e de seus próprios procedimentos lógicos. Em outros
termos, trata-se de um saber que vai se constituindo com um caráter mais
técnico e mais científico, segundo a concepção de ciência platônico-
aristotélica. Bastaria evocar, aqui, como exemplo, a discussão histórica em
torno do emprego dos termos “substância” e “natureza”, ou hypóstasis e
196
Cf. DALEY, B. E., op. cit., p. 168.
197
Cf. idem, ibidem.
103
prósopon, para se determinar o esforço com que os autores gregos se
dedicaram a obter definições mais precisas.
Com efeito, já uma primeira leitura dos trabalhos teológicos dessa
época causa a impressão de que, apesar do contexto apologético em que
muitas delas se originam, o exercício teológico aí registrado trata-se de um
exercício formal. Assim, buscando empregar os termos com consistência e
cuidando para que a linguagem cristológico-trinitária não violasse em nada
o funcionamento da linguagem “natural”, tais obras buscavam, muitas
vezes, demonstrar a inconsistência dos oponentes no debate. Nesse
contexto, reforça-se a figura literária da formula, ou seja, do enunciado que
exprime a compreensão da realidade da fé
198
, pois ela passa a ser vista como
uma espécie de chave da fé correta, um símbolo da ortodoxia. A fim de
provar seu grau de fidelidade na expressão da realidade da fé, as fórmulas
se submetiam a amigos e inimigos, no mais rigoroso exame formal, ou seja,
num exame aristotelice magis quam piscatorie. Leôncio de Bizâncio, por
exemplo, leva ao extremo essa necessidade de consistência e fidelidade ao
dado de fé. Entre suas obras figura também um Contra Eutychen et
Nestorium
199
.
Entretanto, duas observações são importantes aqui: em primeiro lugar,
é preciso dizer que essa apresentação da “escolástica” bizantina não
pretende caracterizá-la como uma espécie de prática racionalista ao modo
da dogmática ocidental do século XVI. Não se trata de encontrar apoio
apropriado, com argumentos, para as sentenças de fé. Aliás, essa seria uma
empresa quase inútil, pois, como insistirão os padres gregos, as sentenças
da fé lançam seus fundamentos firmes, por si mesmos, numa experiência
198
Sobre a importância da formula na cristologia pós-calcedoniana, cf. o artigo de
GRILLMEIER, A. “‘Piscatorie, Aristotelice’: zur Bedeutung der ‘Formel’ in den seit
Chalcedon getrenneten Kirchen”. In: _________. Mit Ihm und in Ihm: christologische
Forschungen und Perspektiven. Friburgo: Herder, 1975, pp. 283-300.
199
As obras de Leôncio de Bizâncio encontram-se distribuídas entre os dois tomos do
volume 86 da Patrologia Grega de Migne: MIGNE, J.-P. Patrologiae cursus completus.
Series graeca, tomus 86 (1) Leontius Byzantinus et alii. Reimpressão. Turnhoult:
Brepols, 1996; _________. Patrologiae cursus completus. Series graeca, tomus 86 (2)
Leontius Byzantinus et alii. Reimpressão. Turnhoult: Brepols, 1984.
104
pessoal de percepção da realidade divina
200
, de modo que pareceria
inteiramente estranho buscar justificativas para a fé no domínio dos
argumentos daquilo que modernamente se chamará de “razão”. Ao
contrário, não se pode esquecer que a herança deixada pelos cristãos dos
primeiros séculos, embora fosse marcada pelo esforço por exprimir a
novidade fundamental do “evento Cristo” (em si mesmo e em suas
conseqüências ética, mística e escatológica), empregando termos coerentes
com a cultura helenística, também fazia, acima de tudo, que a simbólica do
Uno (em cujo interior observa-se o encontro do tema bíblico da unidade
divina com as sabedorias do Uno vindas do médio platonismo, do
neoplatonismo, da gnose etc.) levasse o discurso cristão a apresentar um
encaminhamento a um só tempo apofático e gnóstico, no sentido de buscar
um discurso não apenas zeloso da absoluta transcendência do objeto da fé,
mas também construído sob o signo “intelectualista” do lógos.
A gestação e origem desse ambiente cultural parecem remontar
201
aos
grandes intelectuais do período pré-niceno, sobretudo Clemente de
Alexandria e Orígenes, por cuja obra pode-se dizer que o pensamento
cristão começou a caracterizar-se segundo uma orientação apofática
(visando a união mística com o Uno, o Deus da Escritura) e intelectualista
(de ênfase na atividade do conhecimento). Assim, a união pretendida com o
Uno só parece possível enquanto mediada por elementos de conhecimento,
pois, ao que tudo indica, a união com aquele que está para além da verdade
só se torna possível quando se permanece e se percorre o caminho da
verdade. Isso explica, por outro lado, o papel da caridade no conjunto da
experiência cristã, tal como concebida pelos primeiros cristãos, pois ela se
define como a verdade da ação, e, por conseguinte, se não se subordina, ao
menos se condiciona, no caminho da perfeição cristã, ao elemento
intelectual, à gnose. É nesse sentido que se explica a preocupação da
200
Nesse sentido, não parece casual a afirmação de Boécio contida em DT VI [360].
201
Cf. LAFONT, G. Histoire théologique de l'Église catholique. Itinéraires et formes
de la théologie. Paris: Cerf, 1994, pp. 28ss.
105
teologia em dizer a verdade cristã com exatidão (com orto-doxia”), pois se
pensava que o caminho espiritual podia ser entravado por proposições que
se afastassem da verdade e induzissem ao erro. No limite, uma proposição
equivocada impediria a ascensão da alma e a induziria aos níveis inferiores
do reino da desordem moral. Ao contrário, o reto falar sobre Deus,
determinado pela comunidade de fé, a partir da Escritura e da tradição,
haveria de conduzir à união com ele, por meio da purificação intelectual e
do domínio sobre a matéria, o mal e as paixões
202
.
Por outro lado, a segunda observação que se deve tecer aqui consiste
em esclarecer que a afirmação de uma “escolástica” bizantina não significa
negar, para o Ocidente, a marca do signo intelectualista do lógos
mencionado acima. Ao contrário, não se pode negar que a mesma herança
legada pelo período pré-niceno tenha sido partilhada também com o
Ocidente, e é nesse espírito que se compõe a obra de Boécio, para não
mencionar os grandes nomes que lhe precederam, como Agostinho, por
exemplo. A diferença talvez esteja na maneira de conduzir a reflexão
teológica: em Boécio parece encontrar-se uma reflexão marcada por um
interesse já “acadêmico”, que explora as virtualidades das expressões de fé
por elas mesmas, servindo-se de todo o aparato lógico-conceitual oferecido
por Aristóteles e o platonismo.
Boécio seria, pois, um herdeiro direto, e mesmo um interlocutor,
daquele novo modelo de pensamento surgido durante as duas primeiras
décadas do século VI no Oriente. Uma leitura do CEN, por exemplo, prova
como ele estava mergulhado nos debates em torno de Calcedônia e como ele
conhecia aquele novo modelo de teologia. Além disso, todos os seus
Opuscula, com exceção do FC, revelam a mesma orientação acadêmico-
técnica nascida da preocupação com o método dialético típica dos autores
gregos da época.
202
Cf. idem, ibidem. Cf. também: NELLAS, P. Le vivant divinisé. Anthropologie des
Pères de l´Eglise. Trad. de Jean-Louis Palierne. Paris: Cerf, 1989.
106
3. O método hipotético.
Não se pode deixar de notar, por fim, a curiosidade do argumento
fundado numa hipótese impossível, tal como aparece no DH. Com efeito,
Boécio sabe que uma proposição como a (“suponha-se que o primeiro Bem
não existe”) é falsa, mas ele acredita ser possível examinar as
conseqüências que derivam de uma hipótese falsa. Na verdade, ele extrai
inferências importantes a partir dessa hipótese impossível, o que revela uma
compreensão “aplicada” da argumentação condicional, como que
suspendendo, durante a argumentação, o princípio que posteriormente será
formulado nos termos ex impossibili quodlibet.
O fundamento para a positio impossibilis é um procedimento que
Boécio comenta em diferentes momentos de seus escritos. Trata-se da
possibilidade de separar, na mente, o que é inseparável na coisa. Assim, no
IPES, ele caracteriza as qualidades acidentais como aquelas que vêm e vão
sem a destruição de seu sujeito
203
, de modo que se deve distinguir entre
acidentes separáveis (como o fato de estar dormindo) e inseparáveis (como
a negritude dos corvos). No DT, seguindo o pensamento aristotélico, Boécio
afirma que os matemáticos, considerando os objetos de sua ciência, separam
mentalmente os itens que, de fato, não podem existir separadamente
204
.
Ainda no DT, no contexto de uma discussão sobre a individuação e a
diferenciação, Boécio apela para a separabilidade mental daquilo que de
fato não pode ser separado
205
. Do mesmo modo, é a essa possibilidade de
separação mental que Boécio recorre quando se serve da hipótese da
inexistência do primeiro Bem.
Como já se indicou anteriormente, o que se põe em questão é a
diferença entre o impossível e o inconcebível, ambos não coextensivos.
203
Cf. IPES IV, cap. 17, pp. 280ss.
204
Cf. DT II [65]-[75].
205
Cf. DT I [55]-[60].
107
Assim, por exemplo, os acidentes podem ser removidos ou re-situados
apenas no pensamento, não na ordem das coisas, de modo que um corvo
branco, embora impossível, é perfeitamente concebível, ao passo que, em
contraste, as características substanciais dos corvos serão aquelas sem as
quais eles não podem ser concebidos. O fato, entretanto, de Boécio partir de
uma hipótese impossível não significa que ele aceite simplesmente como
verdadeira a conclusão de uma proposição condicional com não importa
qual tipo de antecedente. Entre os exemplos de condicionais verdadeiras
dados no TD, observam-se: “Se algo é um homem etíope, então é negro”
206
e
“Se algo é humano, então é capaz de rir”. Vê-se que Boécio aceita como
verdadeira uma condicional cujos membros são realmente inseparáveis,
embora conceitualmente separáveis. Na linguagem do TC, Boécio distingue
entre conseqüências substanciais e conseqüências acidentais, como é o caso
da negritude dos corvos
207
, e, com isso, parece fornecer dois critérios de
verdade de uma condicional: ou o conseqüente é real, mas não
conceitualmente inseparável do antecedente, ou há inseparabilidade
conceitual entre ambos. E será à mesma distinção entre separabilidade
estrita e conceitual que Boécio recorrerá ao descrever o procedimento geral
que ele introduz no HS, quando expõe o significado de “hipótese”.
“Hipótese”, com efeito, pode ser tomado em dois sentidos
208
: algo que
é aceito pela significação de uma certa condição; e uma conseqüência
expressa por uma conjunção ou disjunção. Um exemplo do primeiro sentido
ocorre quando se diz que todas as coisas corpóreas subsistem graças ao
concurso da matéria e da forma: assume-se como hipótese algo que não
pode ocorrer, como, por exemplo, a separação (senão efetiva, ao menos
conceitual) entre a forma e a matéria subjacente; como não há nada
corpóreo que sobreviva a essa separação, tem-se como demonstrado que a
substância das coisas corpóreas é constituída da confluência daqueles
206
Cf. TD I (PL 64, 1179A; ed. Stump, p. 27)
207
Cf. TC VI (PL 64, 1165A).
208
Cf. HS I, 2, 5 3, 2.
108
elementos que, uma vez separados, obtêm sua destruição. Quanto ao
segundo sentido, alguns exemplos são: “se é homem, é animal”; “se é trino,
é ímpar”; “se é homem, não é cavalo”; “ou é dia ou é noite”; “ou é homem
ou é cavalo” etc. Tais exemplos indicam uma implicação de natureza, e vê-
se, então, que o primeiro caso pode ser considerado mais como um
procedimento do que uma proposição, enquanto o segundo é claramente
aquele da proposição hipotética.
Mas não se deve associar o procedimento da hipótese impossível
209
com o da redução ao absurdo. Da redução ao absurdo Boécio trata no HS e
no SC, afirmando que se testa a veracidade de um silogismo vendo se uma
impossibilidade segue de premissas tomadas como verdadeiras, pois do
possível não pode provir o impossível. A impossibilidade da assunção das
premissas seria, portanto, provada pela impossibilidade do que segue delas.
No que, porém, se refere ao mecanismo da hipótese impossível, nota-se que
o ponto de partida é outro: aceita-se uma hipótese impossível com vistas a
explorar a necessidade correspondente, ou seja, a extrair todas as suas
conseqüências, e se procede do impossível ao impossível por meio de uma
série de outras impossibilidades. Assim, no caso do primeiro exemplo dado
por Boécio no HS (separação da matéria e a forma), não se pode negar que
ele lembre uma redução ao absurdo, mas deve-se notar que o que Boécio
209
Christopher Martin, comentando o mecanismo lógico de Boécio, denomina-o de
“procedimento eudêmio” (Eudemian procedure cf. MARTIN, C. J., op. cit., p. 285). Na
verdade, ele retoma a expressão de Wehrli e Maróth, para os quais, ao falar desse
mecanismo, Boécio seria um simples transmissor (e um transmissor confuso) da
concepção de Eudemo, antigo aluno de Aristóteles, a respeito da distinção feita pelo
estagirita entre argumentos hipotéticos e provas por redução à impossibilidade (cf.
Primeiros analíticos I, 50a16-50b5). No dizer de Wehrli e Maróth, a referência de
Boécio às condicionais e às disjunções corresponderia ao silogismo hipotético, enquanto
o argumento que se fundamenta numa hipótese concedida equivaleria à redução ao
absurdo (cf. WEHRLI, F. Die Schule des Aristóteles. Vol. VIII (Eudemos von Rhodos).
Basiléia: Zweite, 1969, p. 84; MARÓTH, M. Ibn Sina und die peripatetische
“Aussagenlogik”. Leiden: E. J. Brill, 1989, p. 31). Christopher Martin toma o nome
“procedimento eudêmio” apenas por comodidade, porque ele discorda da intepretação de
Werli e Maróth. No seu dizer, estudando as observações de Boécio (que teriam sido
esquecidas até hoje), podemos conhecer um pouco mais do que pensaram os antigos a
respeito das condicionais com antecedentes impossíveis: eles se compraziam em
introduzir impossibilidades como hipóteses e extrair inferências delas. Para Martin, o
procedimento eudêmio de Boécio corresponde ao que os medievais, no século XII,
chamarão de positio impossibilis.
109
assume não é a contradição do fato, ou seja, que há alguma coisa corpórea
não surgida da combinação de matéria e forma ou que não haja coisas
corpóreas, mas, antes, que simplesmente não há composição de matéria e
forma. A estrutura de seu argumento poderia ser dividida em dois
momentos
210
: (1) assume-se, per impossibile, que não há combinação de
matéria e forma; segue daí que não há corpos (¬A ? ¬B); (2) ora, se se
supõe a aceitação de que o hilemorfismo se limita às substâncias corpóreas
(A ? B), conclui-se que A é equivalente a B, ou seja, que algo é um corpo
se e somente se for uma combinação de matéria e forma. Vê-se, pois, que o
argumento não é uma redução ao absurdo, mas que uma parte dele (1) é um
procedimento por hipótese impossível.
Seria de desejar que Boécio discorresse sobre as formalidades desse
tipo de inferência, e, se a passagem do HS fosse a sua única evidência, não
seria absurdo pensar que Boécio talvez tivesse em mente a redução ao
impossível
211
. No entanto, há pelo menos três outras ocorrências de
raciocínio por hipótese impossível nos seus escritos, e uma delas integra o
objeto do presente trabalho, ou seja, o argumento contido em DH [75]-
[115]. Como se viu acima, os princípios do DH insistem numa distinção,
válida para todas as substâncias criadas, entre as características acidentais
(que “vêm e vão” sem afetar o que a coisa é) e as características
substanciais (que são tidas pela substância em virtude de ela ser o tipo de
substância que ela é), e o problema residirá justamente em explicar como
todas as substâncias criadas, pelo fato de serem substâncias, ou seja, nisto
que elas são, são boas, se “ser boas” não pode ser nem uma característica
acidental nem substancial (no sentido de a bondade derivar do “ser um
determinado tipo de substância”). Boécio, então, por essas duas
alternativas, se dá conta de que o problema cruza com a presença de Deus,
210
Cf. a formalização de C. Martin: MARTIN, C. J., op. cit., p. 286.
211
Em sua tentativa de mostrar como os antigos empregavam inferências a partir de
condicionais cujo antecedente é impossível, C. Martin comenta uma série de argumentos
desse gênero, os quais exercem um papel crucial na crítica de Filopono à física de
Aristóteles: MARTIN, C. J., op. cit., pp. 291-302.
110
e, mesmo sem apresentar nenhuma justificativa, propõe solver a dificuldade
considerando o caráter das substâncias criadas a partir da hipótese de que as
substâncias compostas existam sem Deus.
Ora, mesmo que Boécio não ofereça uma explicação formal explícita
sobre seu método hipotético, observa-se seu reconhecimento de que os
únicos princípios sobre os quais se pode basear a solução para um problema
como esse são aqueles que ele supõe serem conceitualmente necessários.
Desse ponto de vista, a particularidade do método axiomático escolhido
como alicerce de um texto como o DH explicar-se-ia pela necessidade de
empregar o procedimento da hipótese impossível. Pode-se pensar, por isso,
que aquilo que era necessário incluir na situação impossível tomada como
hipótese Boécio o determinava recorrendo às concepções comuns do
espírito.
Assim, tendo tomado como hipótese a não-presença de Deus, Boécio
considera novamente a disjunção que gerou o problema original, e mostra
que, se os seres compostos existissem numa situação em que Deus não
existiria, então, ainda que eles pudessem ser bons, a bondade não seria
implicada por sua existência, mas seria um acidente. A solução de Boécio
para o puzzle do DH mostra que, para cada tipo de substância, ainda que
seja impossível ser sem ser bom, ser bom, entretanto, não se confunde com
isso que é o ser. Ao contrário, a equivalência da bondade e a existência é
garantida pela bondade do ser necessário ao qual todas as criaturas devem
sua existência. Numa situação impossível, portanto, em que elas existissem
sem que Deus existisse, elas poderiam ser boas, mas, se o fossem, sua
bondade seria meramente acidental.
Outras duas ocorrências desse mecanismo lógico em Boécio podem ser
observadas no DT e no CP. No DT, o contexto é aquele em que Boécio
afirma dizer-se o diverso ou segundo o gênero ou segundo a espécie ou
segundo o número, embora seja a variedade dos acidentes que faz a
diferença segundo o número. Assim, três homens não diferem pelo gênero
111
ou pela espécie, mas pelos seus acidentes, pois, mesmo que, em nosso
espírito, separemos deles todos os seus acidentes, ainda o lugar permanece
diverso para cada um, e não podemos, de nenhum modo, figurá-lo apenas
um: dois corpos não ocuparão um único lugar, lugar este que é um acidente.
São, portanto, muitos pelo número, porque são feitos muitos pelos
acidentes
212
. No que se refere ao CP, o contexto em que aparece o
argumento por hipótese impossível é aquele em que a dama Filosofia propõe
a Boécio que eles considerem a conexão entre o conhecimento divino e os
acontecimentos futuros. Ela pretende que o conhecimento do futuro não
imprime necessidade ao evento conhecido, e sua estratégia para chegar a
essa conclusão consiste em tomar como hipótese (positionis gratia) que não
há conhecimento do futuro
213
.
4. Autenticidade do DH.
Retraçar, aqui, o debate em torno da autenticidade do DH conduziria
longe demais. Porém, no sentido de apenas fornecer algumas indicações,
pode-se evocar, por exemplo, o fato de esse texto já ter sido considerado
uma obra neoplatônica, tendo em vista que ele não faz nenhuma menção a
uma divindade pessoal, enquanto, por outro lado, fala de uma “emanação”
(segundo uma tradução direcionada do verbo fluo ou defluo).
Com efeito, não somente a autoria do DH foi posta em questão, mas
também a de todos os outros Opuscula, considerando-se como principal
argumento a diferença de estilo existente entre esses textos e o CP
214
. Essa
controvérsia, no entanto, foi praticamente dissolvida a partir de 1860,
quando Alfred Hölder descobriu alguns fragmentos da obra genealógica de
Cassiodoro, o Ordo generis Cassiodororum (códice Augiense, número 241,
212
Cf. DT I [55]-[60].
213
Cf. CP V, 4.
214
Sobre o debate em torno da autenticidade dos Opuscula, cf. a seção “9. Observações
sobre o texto latino e a tradução”, da Introdução, in: BOÉCIO. Escritos (Opuscula
Sacra). Trad., estudos e notas de Juvenal Savian Filho. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
112
Biblioteca do Grão-ducado de Karlsruhe), pois um desses fragmentos
assegurava a autoria de Boécio. Leia-se:
Boethius dignitatibus summis excelluit. Vtraque lingua peritissimus
orator fuit, qui regem Theodoricum in senatu pro consolatu filiorum
luculenta oratione laudauit. Scripsit librum de Sancta Trinitate et
capita quaedam dogmatica et librum contra Nestorium. Condidit et
carmen bucolicum. Sed in opere artis logicae id est dialecticae
transferendo ac mathematicis disciplinis talis fuit ut antiquos auctores
aut aequipararet aut uinceret
215
.
Os fragmentos de Cassiodoro foram publicados em 1877, por Herman
Usener, em Bonn, sob o título Anecdoton Holderi, e sua autenticidade foi
confirmada por estudiosos das tradições manuscritas, como G. Bosisio, C.
Krieg, A. Hildebrand, J. Draseke, E. Semeria, E. K. Rand. Porém, no que se
refere à autenticidade dos Opuscula de Boécio, o debate foi, de fato,
dissolvido com a publicação do Anecdoton Holderi, porque, no decorrer dos
anos, acabou impondo-se um assentimento aos fragmentos inéditos de
Hölder. Entretanto, Allain Galonnier, traduzindo e comentando,
recentemente, o Anecdoton Holderi
216
, retoma essa problemática e pergunta
se não se supervalorizou o impacto desses fragmentos inéditos. Sua
conclusão é a de que o debate em torno da autenticidade dos Opuscula é
mais nuançado do que se pensa normalmente, de modo que o rico debate
referente a essas obras consideradas como pertencentes a Boécio teria sido
abortado prematuramente.
Sem pretender entrar nessa discussão, parece, no entanto, útil tecer
duas observações. Em primeiro lugar, deve-se dizer que, do ponto de vista
dos testes estilométricos de análise das categorias gramaticais a partir dos
215
CASSIODORO, Fragmento. In: USENER, H. Anecdoton Holderi. Ein Beitrag zur
Geschichte Roms in ostgothischer Zeit. Bonn, 1877, pp. 3-4.
216
Cf. GALONNIER, A. Anecdoton Holderi ou Ordo Generis Cassiodororum. Éléments
pour une étude de l´authenticité boécienne des Opuscula Sacra. Louvain-la-Neuve &
Paris: Institut Supérieur de Philosophie & Peeters, 1997.
113
recursos de informática
217
, o DH distancia-se, é verdade, do estilo dos outros
Opuscula considerados autenticamente boecianos, como é o caso do CEN, o
VP e o DT. Tais escritos, da perspectiva do estilo, constituem um grupo
bastante homogêneo com o CP e os comentários a Aristóteles e Porfírio,
mas, ainda que o DH se distancie deles, ele se aproxima, entretanto,
visivelmente, das traduções feitas por Boécio, por exemplo, para as obras
de Aristóteles. As pesquisas atuais, versando sobre o De interpretatione e
as Categorias, confirmam a mesma conclusão.
É preciso dizer, porém, em segundo lugar, que o interesse por
demonstrar a autenticidade da autoria boeciana do DH tem pouca
significação para a presente tese, porque o que interessa aqui, como se disse
na Introdução, é interpretar esse texto a partir do cotejo com a semântica
empregada por Boécio em suas outras obras, principalmente os comentários
a Aristóteles e a Porfírio, tendo em mente, afinal, a maneira como os
medievais o leram, ou seja, dentro do conjunto da obra de Boécio. Vale
dizer, enfim, que essa perspectiva de conjunto parece ser a que mais pode
causar interesse para as pesquisas em história da filosofia.
217
Esses testes foram aplicados por Michel Lambert e seus resultados encontram-se
expostos em: LAMBERT, M. “Nouveaux éléments pour une étude de l´authenticité
boécienne des Opuscula Sacra”. In: GALONNIER, A. (org.). Boèce ou la chaîne des
savoirs. Actes du Colloque International de la Fondation Singer-Polignac. Louvain-
la-Neuve & Paris: Institut Supérieur de Philosophie & Peeters, 2003, pp. 171-191. Os
testes de Lambert evitam as desvantagens dos testes aplicados por MacInlay, em 1909,
pois estes não se podiam aplicar aos Opuscula, visto serem textos muito curtos cf.
MCKINLAY, A. P. “Stylistic tests and the chronology of the works of Boethius”. In:
Harvard studies in classical philology. Cambridge: Harvard University Press, Vol.
XVIII, 1907, pp. 123-156.
114
CAPÍTULO 2
AS POSIÇÕES SEMÂNTICAS DE BOÉCIO
O conjunto das posições semânticas de Boécio ou aquilo que se poderia
chamar o seu modelo semântico
218
compõe-se, fundamentalmente, de três
elementos: as coisas, as noções e as palavras. As palavras, por sua vez,
dividem-se em nomes e verbos, e os nomes, enfim, podem designar
realidades concretas, realidades abstratas, qualidades e coisas inexistentes.
Os textos a partir dos quais se podem sistematizar as posições
semânticas de Boécio são, fundamentalmente, os seus comentários à
Eisagogé de Porfírio e às Categorías e ao Perì hermeneías de Aristóteles,
nos quais se encontram expressas, ainda, as relações semânticas
estabelecidas por Boécio entre as palavras e as coisas, além da sua
concepção do significado e da verdade das proposições. É a esse conjunto
de dados referentes às relações lingüísticas e aos significados das palavras
que se denomina, aqui, o “modelo semântico” boeciano, sem pretender
compor um seu estudo exaustivo, mas amplo o suficiente para atingir-se o
propósito desta tese, qual seja, o de permitir cotejar as posições semânticas
de Boécio com as distinções metafísicas às quais parece possível chegar a
partir da leitura do De hebdomadibus.
218
Emprega-se aqui o termo “semântica” num sentido genérico de estudo do vocabulário
e da significação das palavras, visando conhecer principalmente as relações das palavras
com os objetos designados por elas. Para uma visão geral da importância de Boécio na
história da semântica, cf. KRETZMANN, N. “Semantics, History of”. In: EDWARDS, P.
(ed.).The encyclopedia of Philosophy. Vol. VII. Nova Iorque: Macmillan Company,
1967, pp.358-406, especificamente as pp. 367-368.
115
1. Os elementos do discurso.
Ao iniciar a segunda edição do seu Comentário ao Perì hermeneías,
Boécio determina, antes de passar à análise do texto aristotélico, os
elementos que compõem o discurso (ordo orandi). São eles: os nomes, os
verbos e as noções. Algumas linhas adiante, ele reúne os nomes e os verbos
num só grupo, e acrescenta um outro, o das coisas:
Quare antequam ad uerba Aristotelis ipsa ueniamus, pauca
communiter de nominibus atque uerbis et de his quae significantur a
uerbis ac nominibus disputemus. Siue enim quaelibet interrogatio sit
atque responsio, siue perpetua cuiuslibet orationis continuatio atque
alterius auditus et intellegentia, siue hic quidem doceat ille uero
discat, tribus his totus orandi ordo perficitur: rebus, intellectibus,
uocibus
219
.
Seria de pensar que os verdadeiros componentes da ordem do discurso
são apenas as palavras (classificadas em nomes e verbos), mas Boécio,
desde as primeiras linhas do trecho citado acima, menciona não somente as
palavras, mas também aquilo que é significado por elas, e explicita,
algumas linhas adiante, que tais componentes são, de um lado, os nomes e
os verbos (as palavras, uoces), e, de outro, as coisas e as noções (res et
intellectus). Com efeito, há uma relação de pertencimento mútuo entre esses
elementos, de maneira que as coisas são concebidas por noções e as noções
são significadas por palavras:
Res enim ab intellectu concipitur, uox uero conceptiones animi
intellectusque significat, ipsi uero intellectus et concipiunt subiectas
res et significantur a uocibus
220
.
219
IDI I, 20, 9-17.
220
IDI I, 20, 17-20.
116
Esse pertencimento mútuo faz com que as coisas mesmas entrem na
ordem do discurso, não apenas por um representante seu, um sinal, mas por
sua presença mesma à noção e à palavra, dado que as três se pertencem
entre si por natureza. Tornando explícito um outro elemento que compõe o
discurso escrito (as letras, litterae), Boécio assim explica a relação entre
letras, palavras, noções e coisas:
Scriptae namque litterae ipsas significant uoces. Quare quattuor ista
sunt, ut litterae quidem significent uoces, uoces uero intellectus,
intellectus autem concipiant res, quae scilicet habent quandam non
confusam neque fortuitam consequentiam, sed terminata naturae suae
ordinatione constant. Res enim semper comitantur eum qui ab ipsis
concipitur intellectum, ipsum uero intellectum uox sequitur, sed
uoces elementa id est litterae. Rebus enim ante propositis et in
propria substantia constitutis intellectus oriuntur. Rerum enim semper
intellectus sunt, quibus iterum constitutis mox significatio uocis
exoritur. Praeter intellectum namque uox penitus nihil designat
221
.
Entretanto, apesar do pertencimento por natureza (terminata naturae
ordinatio) entre as letras, as palavras, as noções e as coisas, é preciso
salientar que os nomes e os verbos significam principalmente noções e
secundariamente coisas, enquanto as noções, por sua vez, referem-se
diretamente às coisas:
Cum igitur haec sint quattuor, litterae, uoces, intellectus, res,
proxime quidem et principaliter litterae uerba nominaque significant.
Haec uero principaliter quidem intellectus, secundo uero loco res
quoque designant. Intellectus uero ipsi nihil aliud nisi rerum
significativi sunt
222
.
221
IDI I, 20, 25 21, 1-5.
222
IDI I, 24, 10-15. Cf.
117
A questão que se impõe a partir da leitura de um texto como esse
consiste em perguntar pelo real significado das palavras e das noções, pois,
se elas possuem uma relação de conseqüência, por natureza, entre si e com
as coisas, resta saber como elas designam as coisas. No seu Comentário ao
Perì hermeneías, Boécio, obedecendo ao mesmo ritmo do texto
aristotélico
223
, aceita que o que se dá na voz é constituído de símbolos de
afecções da alma (passiones animae) e que as notações escritas são
símbolos do que se dá na voz; por outro lado, embora as letras escritas e as
pronunciações não sejam as mesmas para todos, as afecções da alma,
entretanto, das quais as letras e as vozes constituem os sinais, são para
todos as mesmas afecções da alma. Feito isso, Boécio se pergunta pela
significação das palavras e, nesse sentido, reconhece que apenas Porfírio,
entre os comentadores de Aristóteles, ter-se-ia dado conta de que levantar
essa questão significa buscar aquilo que garante à palavra o seu estatuto de
palavra (e, mutatis mutandis poder-se-ia dizer , aquilo que garante à
noção o seu estatuto de noção). Nos termos de Boécio, Porfírio teria visto
que o cerne da questão está em saber o que constitui a uis significationis da
palavra:
Sed Porphyrius ipsam plenius causam originemque sermonis huius
ante oculos conlocauit, qui omnem apud priscos philosophos de
significationis ui contentionem litemque retexuit. Ait namque dubie
apud antiquorum philosophorum sententias constitisse quid esset
proprie quod uocibus significaretur
224
.
Em seguida, Boécio passa a examinar algumas das respostas à questão
sobre o que compõe a uis significationis das palavras, e dedica especial
223
Cf. ARISTÓTELES, Perì Hermeneías 16a5ss; cf. também IDI I, 25, 6ss.
224
IDI I, 26, 17-23.
118
atenção à teoria platônica, que, segundo ele, toma as Formas transcendentes
como o significado propriamente dito das palavras
225
. Ao mesmo tempo em
que a analisa, Boécio já contrapõe a essa posição as opiniões daqueles que
procuraram os significados das palavras nas formas sensitivas ou na
imaginação:
Putabant namque alii res uocibus designari earumque uocabula esse ea
quae sonarent in uocibus arbitrabantur. Alii uero incorporeas quasdam
naturas meditabantur, quarum essent significationes quaecumque
uocibus designarentur: Platonis aliquo modo species incorporeas
aemulati dicentis hoc ipsum homo et hoc ipsum equus non hanc
cuiuslibet subiectam substantiam, sed illum ipsum hominem specialem
et illum ipsum equum, uniuersaliter et incorporaliter cogitantes
incorporales quasdam naturas constituebant, quas ad significandum
primas uenire putabant et cum aliis item rebus in significationibus
posse coniungi, ut ex his aliqua enuntiatio uel oratio conficeretur.
Alii uero sensus, alii imaginationes significari uocibus
arbitrabantur
226
.
Quando expõe a posição que vê nas Formas transcendentes (o “homem
mesmo”, o “cavalo mesmo”) os significados das palavras, Boécio parece ter
em vista o Crátilo de Platão, que fala, por exemplo, da existência de algo
“belo e bom em si” (¢utÕ kalÕn kaˆ ¢gaqÒn)
227
, mas será em Aristóteles
225
Não é possível, aqui, deixar de evocar a expressão platônica, no Crátilo, para se
referir à virtude própria das palavras. Platão fala de uma dÚnamij dos nomes: “Mais
après cela, je te demande encore: quel pouvoir (dÚnamij) ont les mots pour nous? Quel
effet positif pouvons-nous leur attribuer?” (Crátilo 435d. In: PLATÃO. Cratyle. Trad. de
Catherine Dalimier. Paris: Flammarion, 1998, p. 179).
226
IDI I, 26, 23 27, 6.
227
Cf. PLATÃO, Crátilo 439c-d. A afirmação platônica (ainda sob a forma de pergunta) é
mais ampla: “Affirmons-nous oui ou non que le beau en soi existe, que le bon en soi
existe, et de même pour chacun des êtres individuellement?” (PLATÃO, Cratyle 439c-d,
op. cit., p. 136). Vale lembrar que a alusão platônica à teoria das Formas, feita no final
do Crátilo, não é a única a ocorrer no diálogo. Em 389b, por exemplo, Platão fala do
“tear em si” (autò hò kekrís), que deve ser tomado como modelo por quem pretende
construir um tear; e, logo em seguida, em 389d, fala do “nome em si” (autò hò ónoma),
sobre o qual devem fixar-se os olhos daquele que forja os nomes. Com efeito, a doutrina
fundamental das Formas, anunciada no início do Crátilo, reaparece novamente no final,
e isso parece conectá-lo ao que Platão cumprirá, posteriormente, em outros diálogos,
como o Sofista, por exemplo, no qual ele afirmará o repouso e a imutabilidade como
condições necessárias do Intelecto, do conhecimento, e, por conseguinte, da linguagem.
119
que ele encontrará clareza sobre o real significado das palavras
228
: tal
significado, para o estagirita, não seria nem a coisa enquanto tal, nem uma
forma sensitiva, nem uma imaginação, mas as afecções da alma, isto é, as
noções incomplexas (primi intellectus)
229
, que, embora não sejam
simplesmente imaginações, não deixam, porém, de ter uma ligação com
elas. Com efeito, Boécio permanece fiel ao princípio assumido linhas
acima
230
, segundo o qual, na linguagem, embora a letra e a pronúncia não
sejam as mesmas para todos, o que permite haver compreensão é o fato de
que as afecções da alma são para todos as mesmas, e extrai daí, em primeiro
lugar, a conseqüência óbvia da impossibilidade de os significados das
palavras serem realidades sensíveis, uma vez que a sensibilidade é uma
afecção do corpo. Nesse ponto, Boécio assume um outro princípio, segundo
o qual, na natureza, as realidades podem distinguir-se entre inteligíveis e
sensíveis
231
. Ora, se o que garante a compreensão das palavras, isto é, o que
garante a sua significação, não são nem as letras nem a pronúncia, mas as
afecções da alma, então essa significação não poderá ser algo do domínio
do sensível, mas do inteligível. E essa também será a razão de Boécio
Dessa perspectiva, o problema da linguagem, para Platão, parece incluir-se numa
problemática maior, como é a do conhecimento e da ontologia.
228
Cf. IDI I, 27, 6-10.
229
Acolhe-se, aqui, a sugestão de Lambert Maria De Rijk para traduzir primi intellectus
por “noções incomplexas”. Cf. DE RIJK, L.-M. “Boèce logicien et philosophe: ses
positions sémantiques et sa métaphysique de l´être”. In: OBERTELLO, L. (ed.).
Congresso internazionale di studi boeziani. Atti. Roma: Herder, 1981, pp. 141-156;
_______. “On Boethius’s notion of being. A chapter of Boethian semantics”. In:
KRETZMANN, N. (ed.). Meaning and inference in Medieval Philosophy. Dordrecht &
Boston & London: Kluwer Academic Publishers, 1988, pp. 1-29. A presente seção do
presente capítulo desta tese inspira-se, em parte, nas conclusões registradas pelos
artigos do Prof. De Rijk. No caso da tradução de primi intellectus por “noções
incomplexas”, embora o Prof. De Rijk não apresente nenhum argumento em favor dessa
opção, a razão que aqui se impõe para adotá-la consiste no fato de o próprio Boécio, em
IDI I, 28, 7ss, associando-o com a imaginação, distinguir o primus intellectus da
verdade e da falsidade, que implicam, estas sim, composição (conplexio). Ademais, em
português, o termo “incomplexas” mantém a mesma raiz latina de conplexio.
230
Cf. IDI I, 25, 6-14.
231
Boécio cita esse princípio em grego, e o traduz imediatamente em seguida: (...) in
opere de iustitia sic declarat dicens “phýsei gàr euthýs diéiretai tá te noémata kaì tà
aisthémata”, quod interpretari Latine potest hoc modo: natura enim statim diuisa
sunt intellectus et sensus. Differre igitur aliquid arbitratur sensum atque
intellectum IDI I, 27, 13-18.
120
abordar, no mesmo momento de seu comentário, quando extrai a
conseqüência da impossibilidade do caráter físico dos significados das
palavras, a questão de saber se, uma vez que a imaginação (o que os gregos
chamam phantasía
232
) também é uma realidade pertencente à alma, os
significados das palavras não poderiam ser imaginações. Em síntese,
Boécio, evocando a autoridade de Aristóteles, passa a tratar as afecções da
alma como noções incomplexas, e pergunta-se em quê uma noção desse tipo
haveria de diferir da imaginação, uma vez que nem a imaginação nem a
fantasia implicam a composição própria da afirmação e da negação. Por
outro lado, embora as noções incomplexas não sejam imaginações, elas não
existem sem imaginações. E, para explicar isso, Boécio passa a descrever o
processo de produção de tais noções:
Sensus enim atque imaginatio quaedam primae figurae sunt, supra
quas uelut fundamento quodam superueniens intellegentia nitatur.
Nam sicut pictores solent designare lineatim corpus atque substernere
ubi coloribus cuiuslibet exprimant uultum, sic sensus atque
imaginatio naturaliter in animae perceptione substernitur. Nam cum
res aliqua sub sensum uel sub cogitationem cadit, prius eius quaedam
necesse est imaginatio nascatur, post uero plenior superueniat
intellectus cunctas eius explicans partes quae confuse fuerant
imaginatione praesumptae. Quocirca inperfectum quiddam est
imaginatio, nomina uero et uerba non curta quaedam, sed perfecta
significant. Quare recta Aristotelis sententia est: quaecumque in
uerbis nominibusque uersantur, ea neque sensus neque imaginationes,
sed solam significare intellectuum qualitatem
233
.
Isso explica como as noções incomplexas implicam a imaginação, mas
sem se confundir com ela, pois, na ordem da crítica do conhecimento,
percebe-se que o que é confuso no nível da imaginação é “explícito”
(mantendo-se a mesma raiz de explico, -are), manifesto, no nível das
noções (das afecções da alma). Isso não significa que a imaginação, na
232
Cf. IDI I, 29, 1ss.
233
IDI I, 28, 28 29, 16.
121
ordem do conhecimento, constitua um momento de composição ao modo da
afirmação, mas uma composição de dados sensíveis que não produz nem
verdade nem falsidade. Verdade e falsidade serão atributos próprios da
afirmação (adfirmatio, kataphásis
234
) e da negação (negatio, apóphasis),
que, por sua vez, são composições de noções
235
.
Desse ponto de vista, uma “falsa noção” não seria uma noção
propriamente dita, e, na contrapartida, segundo o esquema acima
apresentado, uma “verdadeira noção” (ou, para usar a linguagem da
abstração, a noção “abstrata”) de uma coisa corresponderia à verdadeira
natureza da coisa, sendo-lhe um seu representante e como que a sua
presença sob a forma de conhecimento. Isso possibilita compreensão mais
clara das afirmações feitas acima, segundo as quais as noções mesmas são
significativas das próprias coisas
236
, de maneira que a relação existente
entre coisas, noções e palavras é uma relação de natureza. As próprias
coisas, portanto, junto com as noções e as palavras, comporiam a ordem do
discurso, o que não significa, evidentemente, que as coisas, tais quais,
entrem no ordo orandi, mas que elas aí se façam presentes pela
manifestação de sua natureza por meio das noções.
Dessa perspectiva, portanto, a linguagem diria o ser, e para garantir
essa dicção, fundada na mediação do intellectus como noção “verdadeira”
da natureza das coisas, Boécio recorre à existência de Deus, afirmando que
a natureza das coisas corresponde ao que se encontra sob a forma de
conhecimento no espírito divino. Além disso, pressupondo que o ato de
conhecimento humano possua alguma semelhança com o ato de
conhecimento divino (pois a abstração parece semelhante em Deus e nos
234
Note-se que, em IDI I, 28, 8, Boécio traduz o grego f£sij por adfirmatio. Alhures,
f£sij será traduzido por dictio, indicando um simples nome, um simples verbo ou a
composição dos dois (cf. IDI I, 5, 7; 85, 15ss etc.).
235
Cf. IDI I, 28, 9-10; 43, 26 52, 28.
236
IDI I, 24, 14-15: intellectus uero ipsi nihil aliud nisi rerum significatiui sunt.
122
humanos, ainda que não idêntica para ambos)
237
, Boécio termina por
permitir a conclusão de que os humanos abstraem a mesma noção conhecida
por Deus, afinal, onde há uma coisa, há também a noção dessa coisa (ou ao
menos há a possibilidade de se conhecer essa noção, ainda que tal
possibilidade não se efetive), e se isso não se dá para os humanos, se dá ao
menos para Deus:
Sed si quis ad naturam redeat eamque consideret diligenter, agnoscet
cum res est, eius quoque esse intelectum: quod si non apud homines,
certe apud eum, qui propriae diuinitate substantiae in propria natura
ipsius rei nihil ignorat. Et si est intellectus, et uox est
238
.
Adiante, Boécio explica que a noção se produz no espírito humano
quando este reconhece a forma imanente da coisa contemplada. Há,
certamente, uma diferença entre a forma imanente e a forma abstrata, mas a
forma abstrata provém da forma imanente:
Cum enim quis aliquam rem intellegit, prius imaginatione formam
necesse est intellectae rei proprietatemque suscipiat et fiat uel passio
uel cum passione quadam intellectus perceptio. Hac uero posita atque
in mentis sedibus conlocata fit indicandae ad alterum passionis
uoluntas, cui actus quidam continuandae intellegentiae protinus ex
intimae rationis potestate superuenit, quem scilicet explicat et
effundit oratio nitens ea quae primitus in mente fundata est passione,
siue, quod est uerius, significatione progressa oratione progrediente
simul et significantis se orationis motibus adaequante. Fit uero haec
passio uelut figurae alicuius inpressio, sed ita ut in animo fieri
consueuit. Aliter namque naturaliter inest in re qualibet propria
figura, aliter uero eius ad animum forma transfertur, uelut non eodem
237
Evidentemente, poder-se-iam exigir de Boécio as garantias de validade para uma
afirmação sobre a realidade divina, mas não se pode esquecer o caráter específico do
discurso teológico exposto por ele, por exemplo, no capítulo IV do DT, onde se percebe
a subversão categorial implicada pelo “dizer Deus” ou o “falar de Deus”. Porém, ir
adiante, aqui, com uma investigação sobre os fundamentos desse discurso exigiria um
desvio demasiado longo no itinerário requerido pela presente problemática.
238
IDI I, 22, 6-11.
123
modo cerae uel marmori uel chartis litterae id est uocum signa
mandantur
239
.
Vejam-se ainda os seguintes trechos:
Sed hae passiones animarum ex rerum similitudine procreantur
240
.
Omnis uero imago rei cuius imago est similitudinem tenet: mens
igitur cum intellegit, rerum similitudinem conprehendit
241
.
Similitudinem uero passionem animae uocauit, quod secundum
Aristotelem nihil aliud intellegere nisi cuiuslibet subiectae rei
proprietatem atque imaginationem in animae ipsius reputatione
suscipere (...)
242
.
Interessa aqui notar como, segundo Boécio, é próprio da noção revelar
a natureza da coisa, natureza essa que corresponde ao conhecimento que
dela tem Deus de maneira transcendente. Assim, tendo sua “veracidade”
garantida pela correspondência com o conhecimento divino, o intellectus de
uma coisa não é uma noção qualquer, existente no espírito humano, mas a
“verdadeira” natureza da coisa, imanente a ela como o seu elemento
substancial, e existente no homem sob a forma de conhecimento. Isso
explica, de maneira geral, a relação percebida por Boécio entre as palavras,
as noções e as coisas, constituindo, portanto, aquilo que se poderia chamar
de as bases da sua semântica. Com efeito, as breves afirmações contidas em
IDI I, 22, 8-9, 11 resumem tais fundamentos:
239
IDI I, 34, 2-19.
240
IDI I, 34, 26-27.
241
IDI I, 35, 6-8.
242
IDI I, 43, 12-16.
124
(...) cum res est, eius quoque esse intellectum [agnoscet]; (...) et si
est intellectus, et uox est
243
.
Essas afirmações, lidas a partir do itinerário proposto até aqui,
permitem responder à questão da uis significationis das palavras e do
significado das noções ou afecções da alma: o que dá a virtude significativa
das palavras é o fato de elas veicularem noções ou afecções da alma, e o
significado dessas noções é a natureza mesma das coisas. Com essa
afirmação, Boécio posiciona-se diante de uma problemática que parece
remontar no mínimo a Platão, tal como se pode observar pelas duas teses
que percorrem o Crátilo na tentativa de responder à questão: os nomes
possuem justeza (“correção, exatidão” orthótes
244
) por natureza ou por
convenção? Com efeito, enquanto juiz, Sócrates assume, num primeiro
momento do diálogo, o partido da justeza natural, fundamentando-se no fato
de que tudo possui uma realidade permanente independente de nós, de modo
que quem fixa os nomes, guiado pelo dialético, neles imprime a forma
própria de cada objeto nomeado. Nisso residiria a justeza dos nomes ou a
justa denominação que existe naturalmente para cada um dos seres, pois
eles, os nomes, terão sido dados por alguém (“um fazedor de palavras”,
onomatourgós / demiourgós onomáton
245
) que terá considerado a natureza
das coisas. Os nomes, portanto, devem exprimir essa natureza, e a validade
de sua significação natural (phýsis) se funda sobre sua origem numa sábia
imposição (thésis, títhemi). Essa dinâmica é bem representada, de maneira
negativa, quando Crátilo ri de seu interlocutor, dizendo que “Hermógenes”
243
Cf. IDI I, 22, 8-9, 11.
244
Cf. PLATÃO, Crátilo 384b.
245
Cf. idem 389a; 431e.
125
não é um nome que lhe convém
246
, assim como Krátos fizera com Prometeu,
dizendo que os deuses lhe atribuíram um falso nome ao chamarem-no Pro-
metheus, afinal, ele não soube “calcular antes” as conseqüências do roubo
do fogo
247
.
Num segundo momento do diálogo, porém, Sócrates passa a levantar
algumas questões que relativizam as conclusões obtidas no primeiro
momento, e constata que os nomes não apenas podem ser inexatos, mas
também que o uso dos nomes interfere sobre a sua própria fixação. Além
disso, Sócrates se mostra convencido de que, no conhecimento das coisas, ir
diretamente a elas é melhor do que se deter nos nomes que as designam.
Com efeito, embora as palavras “funcionem”, porque não há dúvida de que
elas “significam”, elas podem, muitas vezes, estar em contradição entre si e
ser claramente mal estabelecidas. Se é assim, os nomes não teriam,
portanto, uma segunda e superior justeza “natural”, um isomorfismo com
relação às coisas, como ocorre com os números
248
, mas somente a justeza
primeira e minimal de um acordo e de uma convenção. Entretanto, como se
sabe, o diálogo não termina por uma adesão a nenhuma das duas posições;
ao contrário, insiste que os nomes, mesmo que se os suponha estabelecidos
por uma convenção, como queria Hermógenes, ou fixados pela natureza,
como pretendia Crátilo, não são sempre justos. Assim, por exemplo, pode
entender-se por que há uma série de nomes como epistéme, bébaios,
246
O nome “Hermógenes” significa “da raça de Hermes”, deus da riqueza, e não conviria
ao interlocutor de Sócrates, porque, ao que consta, ele não disporia de grandes recursos
(nem de dinheiro nem de palavras). Cf. Crátilo 408b.
247
Cf. ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado, vv. 85-87. Pode-se ver na composição do nome
Prometeu a preposição pro, “antes”, tomada como prefixo, e uma variação (metheus) a
partir do substantivo mêtis, “medida”, “conhecimento exato”.
248
Cf. PLATÃO, Crátilo 432b. Cf., também, GAMBARARA, D. “L´origine des noms et du
langage dans la Grèce ancienne”. In: AUROUX, S. (ed.). Histoire des idées
linguistiques. Tome I. Liège & Bruxelas: Pierre Mardaga, 1989, pp. 79-97,
especialmente pp. 86-88.
126
historía, pistós, mnéme, que exprimem movimento, mas que também podem
exprimir repouso
249
.
Essa estrutura do Crátilo, organizada em torno de três concepções
diferentes, pode ser vista reproduzida, ainda, no próprio vocabulário
empregado por Platão, especialmente no que tange ao uso de títhemi e seus
correlatos
250
: (1) na exposição da teoria de Crátilo, para mencionar o acordo
dos nomes com a phýsis, Platão fala de “im-posição” dos nomes, (ho tà
onòmata) thémenos/tithémenos, (he tôn onomáton) thésis; (2) na exposição
de Hermógenes e na crítica final de Sócrates a Crátilo, para indicar
oposição à phýsis, Platão fala de “con-venção”, synthémenoi, (orthótes
onomáton) synthéke, (onómata) sýnthémata; (3) no fim do diálogo, como
que preludiando o Sofista e a teoria das partes do discurso, Platão fala de
“com-posição”, tís synétheken, (onomáton kai rhemáton) sýnthesis.
Com efeito, o pano de fundo da reconstrução platônica da problemática
referente à justeza das palavras parece constituir-se pelo mobilismo
universal de Heráclito e a imobilidade do ser de Parmênides, o primeiro sob
a forma da variação que se observa na fixação dos nomes, o segundo sob a
afirmação de que, para cada objeto, determina-se, naturalmente, um signo e
um nome. É curioso notar que a terceira concepção levantada por Sócrates,
ao dizer que os nomes nem sempre são justos (exprimindo, por exemplo,
movimento, mas podendo também exprimir repouso), faz o conjunto do
Crátilo apresentar uma estrutura (organizada em torno das três posições)
que reproduz, de certa maneira, um ritmo análogo ao apresentado pelo
conjunto formado pelos textos do Crátilo, do Teeteto e do Sofista: o
Crátilo, ao relativizar duplamente a tese da retidão natural dos nomes, dá
certa vantagem a um “convencionalismo”, a uma possibilidade de alteração,
249
Cf. as razões elencadas por Platão em Crátilo 437a-d.
250
Cf. GAMBARARA, D., op. cit., p. 87.
127
e, portanto, ao mobilismo
251
; já o Teeteto
252
, refutando a tese da mobilidade,
privilegia a estabilidade. Caberá, portanto, ao Sofista, como se sabe,
estabelecer no horizonte do ser tanto a mudança como a estabilidade, pois,
ao mesmo tempo em que a imutabilidade será condição necessária do
Intelecto, também o movimento será uma das formas necessárias do ser.
De um lado, portanto, Platão recusa-se a fazer do movimento o único
princípio da realidade, e, de outro, exigindo a estabilidade no ser, admite
que tudo esteja num movimento eterno. Numa palavra, Platão, no Sofista,
fundamenta a veracidade de uma proposição como “o ser é movimento e
repouso”, mostrando que o ser, por não se identificar nem com o movimento
nem com o repouso, tem de ser um tríton ti
253
, um terceiro termo, um
tertium quid que os envolva do exterior. Dessa perspectiva, caberá à
dialética afirmar o ser em cada uma de suas proposições, afirmando também
o não-ser, que se entende, agora, não mais como hipostasiação do negativo,
mas como alteridade, pois afirmar o que uma Idéia é será também afirmar o
que ela não é: uma proposição dialética, portanto, pode assumir tanto a
forma afirmativa como negativa, pois é sempre a Idéia do ser, concebida
como um entrelaçamento (symploké) de relações fundamentais, que, no
limite, lhe dá consistência e alcance ontológico
254
.
O que mais interessa, aqui, entretanto, é notar que o “acabamento” ao
qual chegou o Sofista de Platão parece mais compreensível quando se o
relaciona com o trabalho realizado pelo Crátilo, no sentido de levar à
conclusão segundo a qual não são as palavras que são verdadeiras ou falsas,
251
O que parece difícil de negar é que o Crátilo representa uma mudança no conjunto da
investigação platônica, porque, em busca das realidades, ele deixa a pesquisa
etimológica e anuncia o que estava por vir: “Bah! Savoir comment il faut apprendre ou
découvrir les êtres, peut-être est-ce là trop lourde tâche pour toi et moi ! C´est déjà
beau de reconnaître qu´il ne faut pas partir des noms, et qu´il vaut beaucoup mieux
apprendre et rechercher les choses elles-mêmes en partant d´elles-mêmes qu´en partant
des noms” (Crátilo 439b).
252
Cf. PLATÃO, Teeteto 179c 184b.
253
PLATÃO, Sofista 250c.
254
Cf. LIMA VAZ, H. C. “A dialética das Idéias no Sofista”. In: __________. Ontologia e
história. 2
ª
ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 45.
128
mas que “verdade” e “falsidade” são atributos das frases (“dizer o
verdadeiro”, aletheúein; “dizer o falso”, pseúdesthai
255
). Esse itinerário
platônico, que conduz à teoria das partes do discurso (da frase, tòn lógon),
será continuado, como se sabe, por Aristóteles e os estóicos.
Os estóicos de modo geral
256
, com a prática da etimologia, parecem
identificar, a partir do caráter mimético dos “sons primeiros”, um poder
natural de significação das palavras, e, nesse sentido, eles seguiriam mais a
doutrina do Crátilo de Platão do que o “convencionalismo” aristotélico. No
que se refere, porém, especificamente a Aristóteles, não se pode negar que
ele pareça tender a um certo “convencionalismo” das palavras, mas uma
leitura atenta do Perì hermeneías mostra que a posição aristotélica não
consiste simplesmente em afirmar um mero convencionalismo da linguagem,
e sim numa reestruturação dos elementos componentes do juízo e dos
fundamentos ontológicos e gnoseológicos delineados por Platão
257
, tal como
testemunha principalmente o Sofista, de modo a seguir uma “disciplina”
lingüística
258
que, segundo uma perspectiva aristotélica, “sanaria” inclusive
o emprego dos termos que designam a relação estabelecida entre nomes e
verbos, relação essa que constitui o que hoje se chama de frase verbal.
Assim, por exemplo, o sentido dos termos symploké e sýnthesis irá sofrer
mudanças consideráveis em Aristóteles: symploké, em Platão, remete ao
conceito de complexo, entrelaçamento, e sýnthesis, ao de síntese,
composição (no limite, ambos referiam aquele entrelaçamento de relações
fundamentais que, para Platão, constituíam a Idéia do ser, ocupando,
portanto, um lugar de elevada importância
259
), mas, em Aristóteles,
255
Cf. PLATÃO, Crátilo 431b.
256
Cf. GAMBARARA, D., op. cit., p. 88.
257
Cf. ZADRO, A. “La frase verbale come condizione della formulazione del giudizio”.
In: ARISTÓTELES. De interpretatione. Trad. de Attilio Zadro. Nápoles: Loffredo
Editore, 1999, pp. 39-46.
258
Cf. ZADRO, A., op. cit., p. 40.
259
Cf., respectivamente, PLATÃO, Sofista 262cd e 263d.
129
symploké passa a ser reservado à simples designação do lógos
260
, enquanto
sýnthesis se associa a diaíresis, divisão
261
, para distinguir, no âmbito do
discurso, a afirmação da negação. Essa mudança ou essa maior “disciplina”
aristotélica evitaria aquilo que o estagirita provavelmente considerava como
uma série de incursões metafóricas que permitiam imaginar um “fundir-se”
ou um “misturar-se” dos elementos da frase
262
.
Sem entrar, porém, aqui, na discussão do teor dessa “disciplina”
aristotélica principalmente no sentido de saber se a falta de um correlato
em Platão representaria, de fato, uma falta de “disciplina lingüística” ou
uma disciplina diferente para indicar a inefabilidade da matéria em questão
(e, portanto, a sua “indizibilidade”) , vale notar que Boécio, em seus
comentários a Aristóteles, permanecerá fiel ao vocabulário do estagirita,
elencando, como se verá adiante, entre os objetos do lógos, os tà ónta de
modo geral, inclusive as eíde (o kósmos noetós que delas se compõe) e as
pathémata tês psychês.
Esse vocabulário boeciano, tomado, pois do texto aristotélico, lembra a
distinção fundamental que percorre a obra do estagirita e que marca, de
maneira inconfundível, a sua reorganização da perspectiva platônica sobre o
ser, o pensar e o dizer: trata-se da distinção entre a ordem do lógos-
pensamento e a do lógos-palavra. Para Platão, grosso modo, o plano
lingüístico coincide com o plano noético
263
, e o lógos-pensamento assume o
lógos-palavra, de modo que o lógos verdadeiro será aquele que reproduzir a
coerência entre o plano das coisas e o plano do discurso. Ao contrário,
Aristóteles que, aliás, ao menos na fase inicial da proposição dos temas
264
,
delimita rigorosamente sua pesquisa dentro dos contornos lingüísticos ,
distingue os planos do lógos-pensamento e do lógos-discurso, inclusive do
260
Cf. ARISTÓTELES, Categorias 1a16-17; Perì hermeneías 21a5.
261
Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías 16a12.
262
Cf. PLATÃO, Sofista 262c (keránnymi); 262d (plégma).
263
Cf. PLATÃO, Sofista 263e.
264
Cf. ZADRO, A., op. cit., p. 42.
130
ponto de vista do tratamento dessas duas ordens
265
, as quais se ligam por
uma relação de convenção. É dessa visão do problema que parece nascer um
texto como o que segue (e que será não apenas citado, mas também
parafraseado e assumido por Boécio em seu comentário):
kaˆ ésper oÙd• gr£mmata p©si t¦ aÙt£, oÙd• fwnaˆ aƒ aÙta…:
ïn mšntoi taàta shme‹a prètwn, taÙta p©si paq»mata tÁj
yucÁj, kaˆ ïn taàta Ðmoièmata pr£gmata ½dh taÙt£
266
.
Em outros momentos, o convencionalismo de Aristóteles mostra-se
ainda mais explícito como quando, por exemplo, ele afirma que o nome é
uma voz que tem significado por convenção (synthéken)
267
, mas não se pode
perder de vista o caráter de invariabilidade reservado por ele às paixões da
alma e à natureza das coisas, fundamento a partir do qual Boécio comporá a
sua própria concepção da linguagem.
Um outro momento certamente importante para Boécio
268
nesse
itinerário da história primeira das idéias lingüísticas, é a posição de
Epicuro, que, diferentemente de Aristóteles e dos estóicos, não parece
interessar-se pela articulação da frase em palavras, mas pela origem mesma
da linguagem, pois ela remete ao tema da origem da civilização, que ele
pretendia desvincular de uma relação com os deuses. No seu texto, é o valor
da phýsis que se desloca, pois, deixando o campo do funcionamento
segundo a natureza e passando para o da origem natural, o termo muda de
significação, e a linguagem passa a ser vista como “natural” não mais
enquanto correspondência sincrônica entre palavras e coisas, mas enquanto
265
Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías 16a9.
266
ARISTÓTELES, Perì hermeneías 16a5-8. In: ARISTÓTELES. De interpretatione. Trad.
de Attilio Zadro. Nápoles: Loffredo Editore, 1999. Cf. Anexo, Texto 18.
267
ARISTÓTELES, Perì hermeneías 16a19.
268
Tudo indica que Boécio conhecera o pensamento de Epicuro: cf. CP III, 2 [40]-[45].
131
espontaneidade diacrônica
269
. No que se refere à thésis, desvinculada do
valor de “imposição”, ela assume o valor de estabelecimento convencional,
mesmo na sua forma mais simples, de modo que haveria, então, dois
momentos no estabelecimento dos nomes: de início, uma geração natural;
depois, uma ratificação convencional:
(...) t¾n fÚsin poll¦ kaˆ panto‹a ØpÕ aÙtîn tîn pragm£twn
didacqÁnai te kaˆ ¢nagkasqÁnai: tÕn d• logismÕn t¦ ØpÕ taÚthj
paregguhqšnta Ûsteron ™pakriboàn kaˆ prosexeur…skein ™n mšn
tisi q©tton (...). ‘´Oqen kaˆ t¦ ÑnÒmata ™x ¢rcÁj m¾ qšsei
genšsqai, ¢llaÙt¦j t¦j fÚseij tîn ¢nqrèpwn kaq›kasta œqnh
‡dia pascoÚsaj p£qh kaˆ ‡dia lambanoÚsaj fant£smata „d…wj tÕn
¢šra ™kpšmpein stellÒmenon Øf˜k£stwn tîn paqîn kaˆ tîn
fantasm£twn, æj ¥n pote kaˆ ¹ par¦ toÝj tÒpouj tîn ™qnîn
diafor¦ e‡h: Ûsteron d• koinîj kaq›kasta œqnh t¦ ‡dia teqÁnai
prÕj tÕ t¦j delèseij Âtton ¢mfibÒlouj genšsqai ¢ll»loij kaˆ
suntomwtšrwj dhloumšnaj
270
.
Boécio, por sua vez, mostrando conhecer esse conjunto de posições a
respeito da linguagem e dos significados, afirma o caráter convencional das
palavras e reserva a imutabilidade para a natureza e a noção, razão pela
qual parece possível filiar seu pensamento a uma tradição tanto platônica
como aristotélica, afinal, como se lembrou acima, Aristóteles, mesmo
defendendo um certo caráter convencional da linguagem e não remetendo o
significado das palavras a Formas transcendentes, pretende, porém, que a
forma imanente, o eîdos, não se submete ao movimento.
O fundamento de Boécio, entretanto, como ele mesmo diz, é a
observação das diferentes línguas e o modo como cada uma “põe”
diferentemente seus vocábulos para designar noções idênticas. Leia-se:
269
Cf. GAMBARARA, D., op. cit., p. 88.
270
EPICURO, Carta a Heródoto, §§ 75-76. In: EPICURO. Lettres et Maximes. Trad. de
Marcel Conche. Paris: PUF, 1987, p. 121.
132
Nam cum eadem sit et res et in intellectus hominis, apud diuersos
tamen homines huiusmodi substantia aliter et diuerso nomine
nuncupatur. Quare uoces quoque cum eaedem sint, possunt litterae
esse diuersae, ut in hoc nomine quod est homo: cum unum sit nomen,
diuersis litteris scribi potest. Namque Latinis litteris scribi potest,
potest etiam Graecis, potest aliis nunc primum inuentis litterarum
figuris. Quare quoniam apud quos eaedem res sunt, eosdem intellectus
esse necesse est, apud quos idem intellectus sunt, uoces eaedem non
sunt et apud quos eaedem uoces sunt, non necesse est eadem elementa
constitui, dicendum est res et intellectus, quoniam apud omnes idem
sunt, esse naturaliter constitutos, uoces uero atque litteras, quoniam
diuersis hominum positionibus permutantur, non esse naturaliter, sed
positione. Concludendum est igitur, quoniam apud quos eadem sunt
elementa, apud eos eaedem quoque uoces sunt et apud quos eaedem
uoces sunt, idem sunt intellectus; apud quos autem idem sunt
intellectus, apud eosdem res quoque eaedem subiectae sunt: rursus
apud quos eaedem res sunt, idem quoque sunt intellectus; apud quos
idem intellectus, non eadem uoces; nec apud quos eaedem uoces sunt,
eisdem semper litteris uerba ipsa uel nomina designantur
271
.
A partir de um texto desse gênero, vê-se como, para Boécio, embora as
palavras não possuam uma justeza natural, podendo, ao contrário, variar em
função da língua e das determinações humanas, aquilo, porém, que é
significado por elas não é algo instável e variante, nem dependente de
determinações humanas, mas permanente, fixado pela natureza e inteligível.
Além disso, o fato de o conhecimento dessa realidade ser “o mesmo” para
os humanos e para Deus (guardadas, evidentemente, as devidas proporções)
garante a sua veracidade.
Uma questão, porém, se impõe aqui: a natureza das coisas conhecida
por Deus é certamente a mesma produzida por ele. Teriam, portanto, elas,
as naturezas enquanto formas conhecidas por Deus, a função de formas
exemplares? Mas, de que tipo seriam essas formas exemplares? Haveria uma
forma para cada coisa conhecida por Deus ou todas seriam formas
universais? E, ainda, essas formas desempenhariam algum papel no ato do
conhecimento humano, quer dizer, no processo de abstração? Seriam elas
designadas pelas palavras?
271
IDI I, 22, 19 23, 14.
133
Para responder a essa série de questões, faz-se necessário conhecer o
que Boécio pensa sobre o papel dos nomes e dos verbos, além da designação
das realidades abstratas.
2. Nomes.
Como se viu acima, os elementos que compõem o discurso são as
palavras (os nomes e os verbos), as noções e as coisas. Os nomes, ao lado
dos verbos, são sempre sinais de noções, que, por sua vez, são noções de
coisas. À questão levantada por Alexandre de Afrodísias a respeito do
porquê de Aristóteles dizer que as palavras são sinais de noções, uma vez
que os nomes são sinais de coisas, Boécio responde dizendo ser verdade que
se fale sempre de coisas, mas de coisas enquanto conhecidas por nós:
Sed fortasse quidem ob hoc dictum est, inquit, quod licet uoces rerum
nomina sunt, tamen non idcirco utimur uocibus, ut res significemus,
sed ut eas quae ex rebus nobis innatae sunt animae passiones
272
.
Dessa perspectiva, mesmo as palavras que indicam algo falso ou
inexistente não são palavras vazias, pois quem pensa o falso ou o
inexistente pensa algo, tem uma afecção da alma, ainda que essa afecção
não se possa dizer uma verdadeira intelecção. Essa é a resposta de Boécio a
Aspásio quando este tenta resolver o mesmo problema posto por Alexandre
de Afrodísias. Aspásio dizia que, ao falar de passiones animae, Aristóteles
referir-se-ia apenas às coisas sensíveis, e de forma alguma às realidades
incorpóreas
273
, mas Boécio refuta sua interpretação, insistindo que é
possível haver mesmo a concepção de algo inexistente e, ainda assim, não
272
IDI I, 41, 7-11.
273
Cf. IDI I, 41, 17-19.
134
se ter uma noção verdadeira, uma intelecção propriamente dita, o que prova
que Aristóteles não faria referência apenas às realidades sensíveis:
Quod perfalsum est. Neque enim umquam intellexisse dicetur, qui
fallitur, et fortasse quidem passionem animi habuisse dicetur,
quicumque id quod est bonum non eodem modo quo est, sed aliter
arbitratur, intellexisse uero non dicitur
274
.
Por contraposição, uma noção (intellectus) há de ser a noção da
natureza de uma coisa, enquanto uma noção falsa não será propriamente
uma noção. Em suma, uma noção diz sempre a natureza da coisa, e Boécio
recorre ao exemplo aristotélico para dizer que, quando alguém fala do bem,
tomando-o pelo que ele não é, não tem de modo algum uma intelecção, ao
passo que Aristóteles, quando fala da semelhança do bem (similitudo boni),
fala da noção do bem. Assim, ao se tomar o mal por bem, não se toca na
similitudo boni nem se pode pretender qualquer referência a alguma
substância. Por outro lado, falar do bem, como fazem os juristas, pode
implicar afecções de alma diferentes, afinal, o bem civil (ciuile bonum) e o
direito civil (ciuile ius) são invenções humanas, não naturais (positione est
non natura), ao passo que o bem natural e o justo são os mesmos para todos
os povos. Poder-se-ia dizer que é dessas noções “naturais” que se trata
quando se fala do verdadeiro significado das palavras. O mesmo, segundo
Boécio, aplica-se a Deus:
Et de deo quoque idem: cuius quamuis diuersa cultura sit, idem tamen
cuiusdam eminentissimae naturae est intellectus
275
.
274
IDI I, 41, 19-23.
275
IDI I, 42, 4-6.
135
Garantida, pois, a invariabilidade das noções, não é difícil aceitar que
as palavras que as designam possam variar de acordo com as circunstâncias.
O que importa reter aqui é que as palavras nunca são vazias, elas sempre
designam noções, e o estatuto dos nomes, na semântica boeciana, define-se
exatamente a partir dessa dinâmica de designação de noções.
Um nome, segundo Boécio, sempre significa algo:
(...) eodem quoque modo uerba et nomina non solum uoces sunt, sed
positae ad quandam intellectum significationem Vox enim quae nihil
designat, ut est garalus, licet eam grammatici figuram uocis intuentes
nomen esse contendant, tamen eam nomen philosophia non putabit,
nisi sit posita ut designare animi aliquam conceptionem eoque modo
rerum aliquid possit. Etenim nomen alicuius nomen esse necesse erit;
sed si uox aliqua nihil designat, nullius nomen est; quare si nullius
est, ne nomen quidem esse dicetur
276
.
Em seus Comentários ao Perì hermeneías, às Categorias e à Isagoge,
Boécio fala de coisas individuais e universais, designadas igualmente por
nomes, mas há algumas variantes dessa concepção que precisam ser
registradas, como, por exemplo, o fato de, no Comentário ao Perì
hermeneías, a classe dos nomes não coincidir com a classe das substâncias.
Em todo caso, o ponto de partida para a reconstituição da semântica de
Boécio está, sem dúvida, na investigação das diferentes maneiras de
designar coisas individuais, aquelas que se põem imediatamente diante da
inteligência humana.
No IPES, Boécio chama de individuais aquelas coisas que podem ser
apontadas com o dedo
277
, e acrescenta que elas são significadas
276
IDI I, 32, 15-25.
277
Cf. IPES III, 234, 1: indiuidua quae sub ostensionem indicationemque digiti cadunt.
Dessa perspectiva, mesmo um conjunto de indivíduos pode ser considerado uma coisa
individual desde que tomado enquanto conjunto, como é o caso de um coro, por exemplo
(cf. CEN IV [300]).
136
inequivocamente por meio de uma descrição, mais do que por meio de um
simples nome, afinal, o mesmo nome pode ser imposto a indivíduos
diferentes, sobretudo no caso dos nomes próprios. Assim, se alguém
quisesse referir-se a Sócrates, não deveria dizer “Sócrates”, para evitar que
haja outra pessoa que se chame com o mesmo nome, mas deveria dizer “o
filho de Sofrônico”, se é que existe um único filho de Sofrônico
278
.
Com efeito, por um indicador extra-lingüístico, o indivíduo pode ser
designado com um apontar de dedo, mas, num nível lingüístico, as
propriedades individuais são significadas ou por uma descrição ou por um
nome que permitem identificar um indivíduo. Assim, as propriedades que,
no conjunto, convêm a Sócrates e somente a ele, são as que fazem de
Sócrates um indivíduo:
Indiuidua ergo dicuntur huiusmodi, quoniam ex
proprietatibus consistit unum quodque eorum, quarum
collectio numquam in alio eadem erit. (...)At uero
indiuiduorum proprietas nulli communis est. Socratis enim proprietas,
si fuit caluus, simus, propenso aluo ceterisque corporis lineamentis
aut morum institutione aut forma uocis, non conueniebat in alterum
279
.
No Comentário ao De interpretatione, Boécio retoma esse mesmo tema
das propriedades individuais, chegando a postular dois tipos de qualitas,
uma qualitas singularis, que se encontra nos indivíduos como a forma única
que é própria a apenas um indivíduo, e uma qualitas que poderíamos chamar
de communis, comum a todos os indivíduos pertencentes a uma mesma
espécie ou a um mesmo gênero
280
. Assim, a “platonicidade” seria a
propriedade incomunicável de Platão; a “humanidade”, a qualidade dos
278
Cf. IPES III, 234, 3-6.
279
IPES III, 234, 14-16; 235, 11-14.
280
Cf. IDI II, 136, 20-24. Adiante, retomar-se-á a questão da qualitas singularis e a
qualitas communis.
137
humanos. Isso contribui para a compreensão do papel dos nomes próprios,
pois eles devem designar a qualitas singularis de cada indivíduo, embora o
mesmo nome possa ser atribuído a indivíduos diferentes. Mas, supondo que
não haja ambigüidade, o espírito de quem ouve, por exemplo, “Platão”
remete-se a uma única pessoa por causa da platonicidade que lhe convém.
Dessa maneira, a natureza dos nomes próprios se define a partir da sua
função de significar propriedades individuais. No que se refere à descrição,
embora ela seja mais uma operação do que uma categoria semântica, deve-
se ressaltar a sua vantagem para indicar um certo indivíduo, porque ela
evita a ambigüidade que o nome próprio pode permitir. No DL e no ICA,
Boécio consolida seu uso técnico, por oposição à definição, dizendo que, se
os indivíduos não diferem entre si por diferença específica, e, portanto, não
permitem que se lhe dêem uma definição (a qual se compõe de gênero
próximo e diferença específica), então um indivíduo pode ser designado por
meio de uma descrição que indique uma ou mais de suas propriedades
281
.
Além disso, também um nome de acidente pode significar um indivíduo,
desde que a coleção das propriedades significadas não se encontre em
nenhuma outra coisa
282
.
Identificam-se, portanto, três maneiras de designar uma coisa
individual: a descrição, o nome próprio e o nome de acidente. Mas a
linguagem se serve constantemente de um outro recurso para referir coisas
individuais, empregando um termo que pode remeter tanto a um indivíduo
como ao conjunto de todos indivíduos de uma determinada espécie. É o que
ocorre quando se fala de “homem”, por exemplo, pois se podem indicar, por
esse termo, tanto um homem singular como todos os indivíduos aos quais
ele pode ser atribuído. Como, pois, explicar que um nome designe tanto um
objeto como uma multiplicidade de objetos distintos? Boécio dá ainda um
outro exemplo, referindo-se mesmo a objetos de espécies diferentes:
281
Cf., por exemplo, DL 34, 11ss (886B); ICA I, 166A-B.
282
Cf. IPES III, 234, 6-13.
138
Namque genus ad plures species appellatur, appellatur etiam genus de
his quae sub specie sunt indiuiduis. Nam si homo et equus animal est,
erit etiam Cicero animal et quilibet equus singulariter animal
nominatur
283
.
2.1. Correspondências semânticas.
Em outros termos, importa saber como um termo específico pode
significar indivíduos; segundo quais relações semânticas ele os significa?
Ora, uma dessas relações segundo as quais um termo específico significa
indivíduos singulares é indicada por Boécio como uma nominatio ou uma
uocatio. Vejam-se alguns exemplos referentes ao termo homo:
(1) Unde factum est ut sigillatim omnia prosecutus hominis animus
singulis uocabula rebus aptaret. Et hoc quidem, uerbi gratia, corpus,
hominem uocauit, illud uero, lapidem, aliud lignum, aliud uero
colorem
284
.
(2) Ergo cum dico homo, talem substantiam significo, quae de
pluribus numero differentibus in eo quod quid sit praedicatur, qualem
ergo quamdam substantiam significo, cum hominem dixi, talem
scilicet quae indiuiduis nominetur, idem quoque de genere est
285
.
283
IPEP I, 55, 13-17.
284
ICA I, 159A (negrito nosso).
285
ICA I, 195A (negrito nosso). Roberto Pinzani, que se serve dessa mesma citação
(adaptando-a, porém), interpreta a ocorrência de indiuiduis, aqui, como um ablativo de
limitação. Preferimos, ao contrário, interpretá-la como um simples dativo, pois, caso
Boécio preferisse uma construção com ablativo, ele certamente teria empregado uma
preposição, como se observa pela ocorrência registrada no mesmo período, duas linhas
acima (de pluribus differentibus praedicatur), ou pela ocorrência no período seguinte,
duas linhas abaixo (Nam cum dico animal, talem substantiam significo quae de pluribus
speciebus dicatur ICA I, 195A). Ademais, para justificar sua interpretação, o próprio
Pinzani aventa a possibilidade de que Boécio tenha deixado de empregar a preposição
requerida pelo ablativo, caso se trate efetivamente de um ablativo (cf. PINZANI, R. La
logica di Boezio. Milão: FrancoAngeli, 2003, p. 29, n. 48).
139
(3) Species uero speciebus uniuocae sunt, quae uno atque eodem
genere continentur, ut homo, equus atque bos, his commune genus est
animal, et communi nomine animalia nominantur
286
.
A partir desses exemplos, podem-se extrair algumas conclusões que se
confirmam por outras passagens da obra de Boécio. A primeira delas é que
Boécio usa a voz ativa dos verbos ao referir-se a indivíduos precisos, num
sentido amplo de “falar de”, como se observa no texto (1), acima, e na
seguinte citação de seu ICA:
Nam cum dico Socrates uel Plato uel aliquam indiuiduam substantiam
nomino, hoc aliquid significo (...)
287
.
Por outro lado, a voz passiva, com suas variantes em nominari ad +
acusativo e nominari + dativo, parece reservar-se à designação de um
conjunto de indivíduos, como se observa acima nos textos (2) e (3) e nas
seguintes citações do comentário de Boécio à Isagoge:
Nam si homo et equus animal est, erit etiam Cicero animal et quilibet
equus singulariter animal nominatur
288
.
Genus igitur et ad speciem et ad differentias et ad accidentia et ad
propria et ad indiuidua nominatur
289
.
286
ICA I, 167C (negrito nosso).
287
ICA I, 194D (negrito nosso).
288
IPEP I, 55, 15-17 (negrito nosso).
289
IPEP I, 46, 2-4 (negrito nosso).
140
Parece importante destacar esse uso da voz passiva, principalmente
porque ele indica que o objeto da nominatio não é uma coisa singular entre
outras, mas uma propriedade abstrata significada, assim como o gramático é
dito gramático com referência à qualidade da gramática:
Omnis autem denominatio non est id quod est ea res de qua
nominatur, ut grammaticus, non enim idem est quod grammatica de
qua nominatus est
290
.
A forma nominari significa, portanto, uma relação semântica entre
nomes (aí incluídos os adjetivos, como se vê pelo exemplo do gramático) e
objetos, de modo que ambos se ligam num plano onde o abstrato é o
significado com referência ao qual o concreto é nomeado. E o concreto é
nomeado numa operação que Boécio chama de prima positio de um nome (a
imposição de um nome), distinta da secunda positio: a prima positio é a
atividade caracteristicamente humana de dar nomes às coisas, e não apenas
nomes próprios, mas também comuns:
Vnde factum est ut sigillatim omnia prosecutus hominis animus
singulis uocabula rebus aptaret. Et hoc quidem, uerbi gratia, corpus
hominem uocauit, illud uero, lapidem, aliud lignum, aliud uero
colorem. Et rursus quicunque ex se alium genuisset, patris uocabulo
nuncupauit. Mensuram quoque magnitudinis proprii forma nominis
terminauit, ut diceret bipedale esse, aut tripedale, et in aliis eodem
modo
291
.
A idéia de imposição de nomes às coisas como atividade peculiar do
humano remonta, como se viu acima, ao Crátilo de Platão, para não
290
ICA II, 220B.
291
ICA I, 159AB.
141
mencionar a tradição helenística mais ampla e a tradição judaica
292
. Segundo
Boécio, a prima positio é a denominação das coisas, mas o mesmo
legislador que impõe nomes torna-se, num segundo momento, gramático,
isto é, dá-se conta de que os nomes podem flexionar-se e de que os verbos
podem conjugar-se, criando, portanto, nomes para designar os próprios
nomes (as palavras, enfim). A criação, portanto, daquilo que se poderia
chamar uma metalinguagem seria o que Boécio entende pela secunda
positio:
(...) et est prima positio ut nomina rebus imponerentur, secunda uero
ut aliis nominibus ipsa nomina designarentur
293
.
Na base da semântica boeciana, revela-se, portanto, a pressuposição da
correspondência entre os nomes e as coisas, ou melhor, entre os nomes e a
natureza das coisas, ainda que a materialidade da composição dos nomes
seja variável e contingente, como se viu na primeira parte deste capítulo.
Dessa perspectiva, pode-se conceber a semântica de Boécio como uma
semântica circunscrita num universo de pensamento clássico em que a
inteligência do real se dá pela relação estabelecida entre o real e a
inteligência, diversamente do que acontecerá na modernidade, quando o ato
de conhecimento será sempre referido ao sujeito do conhecimento. Para
evocar, nesse contexto, por exemplo, a questão das relações entre fé e
razão, é preciso dizer que, para Boécio, ambas são encaradas a partir da
própria realidade conhecida, de maneira que elas possuem um fundamento
comum aquilo que é manifestamente o princípio de todas coisas , o qual
as articula em si mesmas e não simplesmente “em nós” ou “para nós”. Essa
observação permite conhecer um pouco melhor o espírito da concepção
292
Cf. Gênesis 19-20.
293
ICA I, 159C.
142
boeciana segundo a qual a linguagem diz o mundo exterior: as palavras,
uma vez cunhadas, dizem as coisas. No dizer de Boécio, a relação da
palavra com a coisa é uma relação de appellatio (denominação, dicção da
coisa):
Nam cum homo uocabulum sit subiectae substantiae, id quod dicitur
homo, nomen est hominis, quod ipsius nominis appellatio est
294
.
No contexto em que fala sobre a definição, Boécio emprega de maneira
aparentemente intercambiável as idéias de designare, monstrare, ostendere,
proferire e demonstrare:
Si quis quod est esse monstrare uoluerit, definitionem dicit. Ergo si
qua definitionis pars fuerit, eius erit pars quae unius cuiusque rei
quid esse sit designet. Definitio est quidem quae quid una quaeque res
sit, ostendit ac profert, demonstraturque quid uni cuique rei sit esse
per definitionis adsignationem
295
.
Porém, uma observação importante deve ser feita a respeito do
emprego dos termos demonstrare e monstrare, porque, no sentido da
correspondência semântica, ambos não consistem apenas no ato de indicar
um objeto, mas de determinar a acepção mesma de um termo:
Nam illud quod multitudinem continet genus, illius multitudinis quam
continet substantiam non demonstrat, sed tantum uno nomine
collectionem populi facit, ut ab alterius generis populo segregetur.
Item illud quod secundum procreationem dictum est, non rei
294
ICA I, 159C.
295
IPES IV, 273, 14 274, 2.
143
procreatae substantiam monstrat, sed tantum quod eius fuerit
procreationis initium. At uero genus id cui supponitur species, ad
speciem accommodatum speciei substantiam informat
296
.
No que se refere, porém, à indicação de uma qualidade abstrata, Boécio
fala de determinatio:
Differentia enim ita substantiam demonstrat, ut circa substantiam
qualitatem determinet, id est substantialem proferat qualitatem.
Também os nomes de substâncias segundas “determinam” uma
qualidade (a espécie “homem”, por exemplo, determina a humanidade), mas
observa-se ainda, no que se refere ao emprego de determinatio, um uso
variável no texto boeciano:
Determinatio uero quoties ipse terminus multa concludit, maior est, et
minor quoties pauciora, quocirca genus plurima colligit, species uero
non tam plurima
297
.
Um possível esquema das relações semânticas fundamentais, expostas
até aqui, seria
298
:
296
IPES II, 180, 7-15.
297
ICA I, 195BC.
298
Esquema proposto por Roberto Pinzani: PINZANI, R., op. cit., p. 31.
144
nominat coisas
Homo determinat propriedades
demonstrat coisas + propriedades
(isto que é o ser:
substância determinada)
Figura 2
Para completar o panorama das relações semânticas aqui esboçado de
acordo com o pensamento de Boécio, vale ainda evocar o emprego dos
termos significare, interpretatio e praedicare. O primeiro indica diferentes
relações, que podem ser esboçadas pelo seguinte quadro
299
:
Nomes (próprios e comuns)
significam
coisas individuais
300
hoc aliquid
301
tale substantiam
302
Coisas individuais são significadas por nomes próprios e
descrições
303
Voces significam coisas (num sentido
geral)
304
Diferenças comuns significam coisas acidentais
305
Verbo significa uma actio ou uma passio
306
Figura 3
299
Quadro proposto por Roberto Pinzani: PINZANI, R., op. cit., p. 34.
300
Cf. ICA I, 194B.
301
Cf. ICA I, 194-195 passim.
302
Cf. ICA I, 195A.
303
Cf. IPES III, 234, 8-9.
304
Cf. ICA I, 159-161 passim; 164BC.
305
Cf. IPES IV, 242, 4-6.
306
Cf. IDI I, 66, 11-16.
145
É importante, notar, entretanto, que significare hoc aliquid não parece
significar exatamente o mesmo que significare indiuiduum, porque Boécio
distingue entre o nomear coisas individuais e o significar um certo isto:
Nam, quemadmodum quantitas quantum significat, et qualitas quale,
sic etiam substantia uidetur hoc aliquid significare. Nam cum dico
Socrates et Plato uel aliquam indiuiduam substantiam nomino, hoc
aliquid significo
307
.
O exemplo dado por esse comentário de Boécio distingue entre o
nomear uma substância individual, chamando-a Sócrates ou Platão, e o
significar um certo isto, que é um “isto” com relação a uma substância
segunda. As substâncias primeiras significariam, portanto, um certo isto,
enquanto as substâncias segundas significariam um certo qual, embora, de
certa maneira, também estas signifiquem um certo isto, conforme diz a
própria citação acima. Isso permite subdividir os nomes de substâncias em
nomes de substâncias primeiras (nomes próprios) e nomes de substâncias
segundas (nomes comuns).
No que se refere à interpretatio, Boécio a chama uox articulata per
seipsam significans
308
, o que permite entender que nem todas as expressões
são interpretationes, dado que algumas partes do discurso são significativas
somente em composição com outras expressões, como é o caso das
conjunções, dos advérbios negativos e da cópula. As conjunções, com
efeito, só possuem significado no composto que elas articulam. Quanto ao
verbo ser, ao mesmo tempo em que ele parece não significar nada, ele
significa, num composto, a própria composição
309
.
307
Cf. ICA I, 194CD.
308
Cf. IDI I, 6, 4-5.
309
Cf. IDI I, 78, 2-8. Adiante retomar-se-á o estudo dos verbos.
146
O significado temporal do verbo é considerado um co-significado, e a
noção mesma de co-significação também é utilizada por Boécio ao falar da
função gramatical das sílabas, que não significam nada quando tomadas
independentemente, mas que contribuem para o significado da expressão na
qual elas ocorrem. Não se encontra, porém, no texto boeciano, explicação
mais detalhada para a semelhança existente entre o verbo ser, a conjunção e
as sílabas no que diz respeito às particularidades semânticas, fato que
permitirá as mais diversas interpretações da parte dos lógicos da baixa
Idade Média
310
.
Enfim, no que se refere ao termo praedicare, deve-se notar, antes de
tudo, que ele pode designar uma relação semântica muito parecida com a
nominatio, pois ele indica uma relação com vários indivíduos, como pode
ser o caso de um gênero e suas espécies ou uma substância e os indivíduos.
Leia-se:
(...) genus ad plurimas species praedicatur, proprium uero ad unam
solam cuius est proprium nominatur
311
.
Ergo, cum dico homo, talem substantiam significo, quae de pluribus
numero differentibus in eo quod quid sit praedicatur, qualem ergo
quamdam substantiam significo, cum hominem dixi, talem scilicet
quae indiuiduis nominetur, idem quoque de genere est
312
.
A partir desses textos sobre a relação de predicação
313
, vê-se que ela
pode apresentar-se tanto como uma relação gramatical entre elementos da
linguagem (as expressões e os significados), como uma predicação “real”
310
Cf. PINZANI, R., op. cit., p. 35.
311
IPEP I, 56, 5-7.
312
ICA I, 195A.
313
Boécio fala de predicação como relação em IPES 182, 22 183, 1.
147
que extrapola o plano lingüístico e chega aos indivíduos concretos,
estabelecendo uma relação entre uma entidade abstrata (a noção) e as coisas
mesmas no mundo sensível.
Alguns textos não deixam dúvida de que os termos da relação
predicativa podem ser uma expressão lingüística, como por exemplo:
Nomen igitur animalis, id est generis, de homine, id est specie,
praedicasti, cum dixeris hominem esse animal. (...) Animal ergo, quod
genus est, dicitur de specie, id est de homine; dicis enim hominem
esse animal
314
.
Outros textos, porém, mostram como essa relação extrapola o nível
lingüístico e chega ao plano “real”, permitindo a representação de um
modelo em que o termo geral se relaciona com as coisas singulares ao modo
de um universal concebido como entidade discreta presente nos indivíduos,
embora isso não esgote, evidentemente, o sentido da relação entre o
universal e as coisas individuais:
Sed quoniam substantia proferri non potest nisi aut uniuersaliter aut
particulariter intelligatur; nam cum dico homo, rem dixi uniuersalem,
idcirco quod nomen hoc de multis indiuiduis praedicatur
315
.
Num outro texto, Boécio fala mais expressamente de res uniuersale
predicada:
314
IPEP I, 41, 2-3; 45, 12-13.
315
ICA I, 169D-170A. Cf., também, 165B.
148
(...) si omnis quod uniuersale significat ad hominem quod idem ipsum
universale est adiungatur, res uniuersalis, quae est homo,
uniuersaliter praedicatur secundum id quod definitio ei adicitur
quantitatis
316
.
É curioso notar como, ao falar da predicação, Boécio emprega,
explicitamente, o termo res para se referir aos gêneros e às espécies:
(...) quaedam res quae ad alia praedicantur, his de quibus
praedicantur, abundant, ut genera et species. Namque animal, quod
genus est, de homine, quod est species, hoc abundat, quod nomen
generis etiam etiam in equum atque bouem atque in alia ualet
aptari
317
.
Adiante se retomará o tema da nomeação de entidades abstratas, o que
há de esclarecer melhor a significação dos nomes quando estes se referem a
gêneros e espécies. Para o momento, é importante compreender o sentido de
dizer que algumas coisas abundant
318
com relação a outras, o que Boécio
caracteriza como uma relatio ou habitudo que o termo geral mantém com
aqueles que lhe são “inferiores” ou com relação aos quais ele é “maior” ou
está “acima”:
Cumque duae sint habitudines et quasi comparationes oppositae, quae
in omnibus generibus speciebusque versentur, una quidem quae ad
superiora respiciat, ut specierum, quae suis generibus supponuntur,
alia uero quae ad inferiora, ut generum, cum speciebus propriis
praeponuntur, generalissima quidem genera unam tantum retinent
habitudinem, eam scilicet quae inferiora complectitur, illam uero
quae ad praeposita comparatur, non habent
319
.
316
IDI II, 138, 16-20.
317
IPEP I, 59, 17-21.
318
Parece possível traduzir-se diretamente por “têm maior extensão”.
319
IPES III, 213, 11-18. Cf., também, IPES II, 182, 20 183, 1.
149
Sunt autem quaedam genera generalissima, ut dictum est, supra quae
aliud genus inueniri non possit. Sunt autem species sub quibus alia
species inueniri non possit, et integra species illa nominatur quae
numquam genus est, id est sub qua species nullae sunt. Nam si sub ea
species essent, ipsa etiam genus esse posset. Species ergo quae uere
species est, alias sub se species non habebit, ut est homo
320
.
O que faz um termo ser considerado “maior” ou “superior” é, pois, sua
continentia, sua extensão. Essa relação de continentia faz que os gêneros
incluam as espécies e que as espécies incluam os indivíduos, permitindo ver
que, para Boécio, com efeito, as correspondências semânticas próprias da
nominatio e da praedicatio extrapolam o plano da linguagem e o conectam
ao plano real, indicando diretamente uma relação entre as palavras e as
coisas concretas, e extraindo dos indivíduos como que a base e o valor de
verdade para as noções e as proposições abstratas.
O sentido do verbo abundant ou supersunt vem justamente da maior
inclusão de elementos sob algumas coisas, do maior “grau” de ser indicado
por algumas coisas e não por outras. Nesse sentido, por exemplo, o termo
animal é mais extenso (maior, superior) do que homo porque “contém” mais
ser em sua extensão. Leia-se:
Omnia genera speciebus suis supersunt et abundant. Abundare autem
genera dicimus speciebus plus habere genera uirtutis quam species.
Homo enim quod est species, solum homo est, animal uero quod este
genus, non solum homo est, sed et equus uel bos uel quod aliud libet
animali supponere
321
.
320
IPEP I, 52, 6-13. Cf., ainda, IPEP I, 51 60 passim; IPES III, 207 passim; ICA I,
186D.
321
IPEP I, 46, 8-12.
150
2.2. Nomes próprios e nomes comuns.
Parece possível dizer, portanto, a partir dos textos comentados na
seção anterior, que, de acordo com o modelo semântico de Boécio, há uma
relação direta das noções e as palavras com as coisas individuais existentes
no mundo sensível. Continua, porém, a exigir resposta a questão de saber
como um nome pode designar tanto um objeto como uma multiplicidade de
objetos distintos. É o que ocorre, por exemplo, quando se fala de “homem”.
Diz Boécio:
Ergo, cum dico homo, talem substantiam significo, quae de pluribus
numero differentibus in eo quod quid sit praedicatur, qualem ergo
quamdam substantiam significo, cum hominem dixi, talem scilicet
quae indiuiduis nominetur, idem quoque de genere est
322
.
No capítulo De subiectis et praedicatis de seu IDI (capítulo 7), Boécio
retoma a questão dos nomes universais e particulares, reafirmando a
ambigüidade do emprego de certos termos quando eles podem denotar uma
entidade abstrata ou um ente individual concreto. Entretanto, para resolver
essa ambigüidade, Boécio sugere a aposição de um signum quantitatis
diante do termo, e, com isso, ele distingue os diferentes tipos de sujeito,
determinando os nomes comuns
323
pela anteposição de um quantificador
universal, diferentemente dos termos próprios, que são precedidos de um
quantificador particular. Leia-se:
(...) cum dicimus homo ambiguum est et dubitari potest utrum de
speciali dictum sit an de aliquo particulari, idcirco quod nomen
322
ICA I, 195A.
323
Ou universais, que são nomes de substâncias segundas, segundo a terminologia do
IDI, por oposição aos nomes próprios ou particulares, que são nomes que designam
substâncias primeiras.
151
hominis et de omnibus dici potest et de singulis quibusque qui sub
una humanitatis specie continentur. Quare indefinitum est, utrum de
omnibus dictum sit id quod diximus homo an de una quacumque
indiuidua hominis et particulari substantia. Hanc igitur qualitatem si
ambiguitate intellectus separare nitamur, determinanda est et aut in
pluralitatem distendenda aut in unitatem numeri colligenda. Nam cum
dicimus homo indefinitum est utrum omnes dicamus an unum, sin uero
additum fuerit omnis, ut sit praedicatio omnis homo, uel quidam, tunc
fit distributio et determinatio uniuersalitatis et nomen quod
uniuersale est id est homo uniuersaliter proferimus dicentes omnis
homo aut particulariter dicentes quidam homo
324
.
-se, pois, que são as expressões sincategoremáticas que determinam
a distribuição do termo universal em modo universal ou particular. Assim,
um universal dito de modo particular é diferente de um singular dito de
modo particular. Com efeito, o significado do termo singular Plato
demonstra uma substância e uma propriedade definidas, que não podem
ocorrer em outro a não ser Platão:
Plato enim unam ac definitam substantiam proprietamque demonstrat,
quae conuenire in alium non potest
325
.
A essa altura do texto boeciano, parece, então, possível encontrar um
apoio para a compreensão da ambigüidade que marca os nomes comuns.
Essa ambigüidade se deve não a algum fator pertencente aos nomes em si
mesmos, mas à relação de abstração que eles e as noções mantêm para com
os indivíduos concretos. Assim, a propriedade significada por um termo
universal, como a humanitas de homo, p. e., é algo que se obtém a partir
dos indivíduos singulares, os humanos tomados singularmente. Isso levaria
a entender por que se costuma empregar o mesmo termo comum para
designar tanto a coleção de todo o universal como um indivíduo pertencente
324
IDI II, 137, 28 138, 15.
325
IDI II, 138, 28-30.
152
a este mesmo universal, pois empregar o universal para designar a coleção
do universal, isto é, empregá-lo precedido do quantificador universal,
significa pretender enfatizar a substância determinada que se predica
essencialmente de coisas distintas, ao passo que empregar o universal para
se referir a um indivíduo, isto é, precedido do quantificador particular,
significa identificar tal indivíduo dentro de um universal, enfatizando,
também agora, a sua substância. Ambos os casos parecem constituir o
mesmo emprego do universal enquanto universal, a distinção fazendo-se
apenas pela distribuição do termo, denotada pelo acréscimo de um
quantificador. Já o emprego de um nome próprio não deixa dúvida de que se
refere a uma substância singular, porém não a fim de identificá-la dentro de
um universal (para o que bastaria empregar o termo universal), mas de
designá-la como aquela que possui determinadas características cujo
conjunto não pode convir a nenhum outro indivíduo. Leiam-se:
Namque humanitas ex singulorum hominum collecta naturis in unam
quodammodo redigitur intellegentiam atque naturam, nomen uero hoc
quod dicimus Plato multis secundum uocabulum fortasse commune
esse uideretur, nulli tamen illa Platonis proprietas conueniret, quae
erat proprietatis aut naturae eius Platonis qui fuit Socratis auditor,
licet eodem uocabulo nuncuparetur. Hoc uero ideo quoniam humanitas
naturalis est, nomen uero proprium positionis. Nec hoc nunc dicitur
quod nomen de pluribus non potest praedicari, sed proprietas
Platonis. Illa enim proprietas naturaliter de pluribus non dicitur, sicut
hominis, et ideo incommunicabilis (ut dictum est) qualitas est ipsa
Platonitas, communicabilis uero qualitas uniuersalis quae et in
pluribus et in singulis est. Vnde fit ut cum dico omnis homo in
numerum propositionem tendam, cum uero dico Socrates aut Plato non
in numerum emittam, sed qualitatem proprietatemque unius in suae
indiuiduae singularisque substantiae unitatem constringam et
praedicem
326
.
Ergo cum dico homo, talem substantiam significo, quae de pluribus
numero differentibus in eo quod quid sit praedicatur, qualem ergo
quamdam substantiam significo, cum hominem dixi, talem scilicet
quae indiuiduis nominetur, idem quoque de genere est. Nam cum dico
326
IDI II, 139, 6-25.
153
animal, talem substantiam significo quae de pluribus speciebus
dicatur
327
.
Explorar, aqui, como ela mereceria, a psicologia do processo abstrativo
exigiria um desvio longo demais, mas parece ser justamente o cruzamento
da semântica entendida como gramática das expressões com a psicologia da
abstração que permite entender a ambigüidade do emprego do universal ou
por que um mesmo termo pode designar tanto um universal como um
particular. O que importa notar é que o espírito humano abstrai dos
singulares algo que é determinado pela natureza, a sua substância, e nessa
extração parece residir o elo entre a linguagem e as coisas, o fundamento
para as relações de nominatio, (de)monstratio, praedicatio etc. Passando
para o domínio da linguagem, a escolha entre o uso do universal como
universal e o uso como particular depende daquilo que se pretende
enfatizar: a substância que se predica de coisas distintas ou um indivíduo
enquanto pertencente a um universal.
Vale notar ainda que a classe dos nomes, no IDI, não coincide com a
classe dos nomes de substância, pois a propriedade de significar algo
definido é partilhada também pelos nomes de qualidade ou de relação. Com
efeito, já no IPEP, IPES e ICA, Boécio se referia aos nomes como
expressões que também podem determinar qualidades. Tais expressões, que
seriam “não-substanciais” (no sentido de indicar não um indivíduo
concreto, mas uma qualidade dos indivíduos), são consideradas por Boécio
em sua análise do próprio, da diferença, do denominativo e da qualidade
328
.
O próprio, de maneira semelhante às substâncias segundas, se diz (segundo
as relações da nominatio) da espécie e dos indivíduos incluídos sob a
espécie. A diferença, tomada como diferença de nomine, é um adjetivo,
como “sensível”, que acrescido a “animado” faz o animal. Boécio distingue,
327
ICA I, 195A.
328
Cf. IPEP I, 46 55 passim; ICA II; cf. também PINZANI, R., op. cit., pp. 23-24.
154
ainda, diferenças comuns, que significam acidentes separáveis (formas
transitórias, como a juventude, por exemplo), e as diferenças substanciais,
que mostram a substância de uma certa coisa (diferenças que integram a
substância de algo, como a sensibilidade, por exemplo, ou a racionalidade e
a mortalidade). Quanto aos adjetivos, eles parecem ser nomes que designam
um tipo especial de realidades substanciais componíveis com as substâncias
segundas. No ICA, os aspectos significados pelos adjetivos são chamados
“quais”:
Quale enim dicimus et ipsam qualitatem, et illam rem quae qualitate
illa participat, ut albedo quidem qualitas est, qui uero participat
albedinem albus dicitur
329
.
Ainda no ICA, Boécio relaciona os nomes de qualidade com expressões
denominativas, como é o caso da qualidade “brancura” e o denominativo
“branco” a denominatio indicaria tanto uma relação gramatical como um
dos termos da relação, isto é, o significado do adjetivo pelo qual se dá a
correspondente forma abstrata. Assim, parece que o significado da
expressão abstrata em relação denominativa com o adjetivo não coincide
com o significado denominativo do adjetivo; todavia, o abstrato e o
concreto ligam-se tanto no plano semântico (o abstrato é o significado com
referência ao qual o concreto é nomeado) como no plano lingüístico
(segundo a definição aristotélica dos parônimos, que são os termos tirados
de um outro, por diferenciação de flexão
330
).
Como se vê, a classe dos nomes, na semântica boeciana, não coincide
com a classe dos nomes das substâncias. “Entidades” abstratas como os
329
ICA III, 239B.
330
Cf. ARISTÓTELES, Categorias 1a.
155
gêneros e as espécies ou os nomes de qualidades ou relações registram-se,
ainda, ao lado de nomes negativos, como “não-homem” e outros. Leia-se:
Cum enim dico Cicero, unam personam unamque substantiam
nominaui et cum dico homo, quod est nomen appellatiuum, definitam
significaui substantiam. Cum uero dico non homo, significo quidem
quiddam, id quod homo non est, sed hoc infinitum. Potest enim et
canis significari et equus et lapis et quicumque homo non fuerit. Et
aequaliter dicitur uel in eo quod est uel in eo quod non est
331
.
Ora, a partir de um texto como esse e das afirmações feitas acima, a
respeito dos gêneros e as espécies enquanto termos da relação predicativa, a
questão mais óbvia que pode surgir consiste em pretender conhecer o
estatuto ontológico dessas “entidades” e dos inexistentes. Que papel eles
exercem no interior da semântica delineada pelos comentários de Boécio à
Isagoge, às Categorias e ao Perí hermeneías?
2.3. Entidades abstratas.
Boécio, no IPEP, pouco antes de iniciar o capítulo sobre a análise do
gênero, tece um comentário que não deixa dúvida sobre a sua maneira de
tomar as “entidades” abstratas como “coisas”:
Nam quando corporalium diuisio per genera in species fit et eorum
propria et differentiae nominantur, haec circa sensibilia, id est
corporalia esse non dubium est, cum uero de incorporalibus rebus
tractatus habetur et per ea ipsa diuiduntur quae corpore carent, circa
incorporalia uersantur
332
.
331
IDI I, 61, 32 62, 8.
332
IPEP I, 30, 8-12.
156
Chamar, porém, como res as realidades abstratas não significa, ainda,
concebê-las como subsistentes; tampouco impõe procurar um
correspondente ontológico para os objetos que formam a base das
“categorias” pelas quais se dividem os incorpóreos. Mas permanece a
questão de saber a que nível de realidade pertencem essas categorias. Para
respondê-la, é sem dúvida necessário conhecer a posição boeciana sobre o
que a tradição consagrou como a querela dos universais ou o problema da
natureza das idéias gerais.
Como se sabe, Boécio aborda diretamente a questão à qual Porfírio
preferiu furtar-se
333
: os gêneros e as espécies são realidades em si mesmas
ou são simples concepções do intelecto? Admitindo-se que sejam realidades
em si mesmas, elas são corpóreas ou incorpóreas? E, se são incorpóreas,
elas existem separadamente ou apenas subsistem nos sensíveis?
Já em sua tradução da Isagoge, Boécio consagra a controvérsia:
Mox, inquit, de generibus ac speciebus illud quidem, siue
subsistunt siue in solis nudisque intellectibus posita sunt
siue subsistentia corporalia sunt an incorporalia et utrum
separata a sensibilibus an in sensibilibus posita et circa
ea constantia dicere recusabo
334
.
Boécio introduz a análise do problema a partir de duas possibilidades,
quais sejam: ou os universais são e subsistem ou são meras elaborações do
intelecto:
333
Cf. PORFÍRIO, Isagoge, Prefácio, 1, 10.
334
IPES I, 159, 3-7.
157
Genera et species aut sunt atque subsistunt aut intellectu et sola
cogitatione formantur, sed genera et species esse non possunt. Hoc
autem ex his intellegitur. Omne enim quod commune est uno tempore
pluribus, id unum esse non poterit; multorum enim est quod commune
est, praesertim cum una eademque res in multis uno tempore tota
sit
335
.
O encaminhamento boeciano possui, portanto, quatro grandes
momentos, delineados já na formulação citada acima. Em primeiro lugar, os
universais não podem subsistir como substâncias, porque o pressuposto
segundo o qual os gêneros e as espécies são comuns a uma pluralidade de
indivíduos impede que se lhes predique individualidade. Além disso, se o
gênero, que é um universal tanto como a espécie, fosse individual, ou seja,
uma substância, criar-se-ia o problema de explicar a possibilidade de ele
dividir-se entre diversas participações, uma vez que ele pertence
inteiramente à espécie, como, p.e., o homem, que é espécie, e possui
inteiramente a animalidade, que é gênero. Em segundo lugar, há a
possibilidade contrária, segundo a qual os universais podem ser meras
elaborações do intelecto e do pensamento (o que equivale à idéia de que
nada corresponderia, na realidade, à noção que se tem dos universais). Mas
essa posição também não parece inteiramente aceitável, porque um
pensamento sem objeto é tão-somente um pensamento vazio, um
pensamento do “nada”, e sequer é um pensamento, mas um contra-senso,
principalmente se se tem em vista que, tomando-se como certas a realidade
e a veracidade dos pensamentos, então tudo o que se considera pensamento
tem um objeto. Isso implicaria que os universais fossem, portanto,
pensamento de alguma coisa. No dizer de Boécio:
Quodsi tantum intellectibus genera et species ceteraque capiuntur,
cum omnis intellectus aut ex re fiat subiecta, ut sese res habet aut ut
sese res non habet nam ex nullo subiecto fieri intellectus non potest
335
IPES I, 161, 14-19.
158
, si generis et speciei ceterorumque intellectus ex re subiecta ueniat,
ita ut sese res ipsa habet quae intellegitur, iam non tantum in
intellectu posita sunt, sed in rerum etiam ueritate consistunt. Et
rursus quaerendum est quae sit eorum natura, quod superior quaestio
uestigabat
336
.
Boécio cria um impasse, portanto, com os dois primeiros aspectos da
questão, qual seja, o de não poder dizer que os universais sejam substâncias
nem meras elaborações do intelecto. Seu encaminhamento supõe, em
terceiro lugar, que os sentidos comunicam as coisas no estado de confusão
ou composição, quer dizer, não transmitem as coisas incorporais
separadamente, dando ocasião ao espírito, que possui a capacidade de
dissociar e recompor esses dados, para distinguir, nos corpos, a fim de
considerá-las à parte, propriedades que se apresentam confusamente
337
. Os
gêneros e as espécies estão nesse caso e o espírito ou os localiza em seres
incorpóreos, e, assim, os encontra abstratos, ou em seres corpóreos, e,
então, dos mesmos corpóreos extrai o que eles têm de incorpóreo, a fim de
considerá-lo à parte, à maneira de algo separado e puro, como quando, por
exemplo, dos indivíduos concretos extraem-se os universais de “homem” e
“animal”. Diz Boécio:
Omnes enim huiusmodi res incorporeas in corporibus esse suum
habentes sensus cum ipsis nobis corporibus tradit, at uero animus, cui
potestas est et disiuncta componere et composita resoluere, quae a
sensibus confusa et corporibus coniuncta traduntur, ita distinguit, ut
incorpoream naturam per se ac sine corporibus in quibus est concreta,
speculetur et uideat. (...) si uero corporalium rerum genera speciesque
perspexerit, aufert, ut solet, a corporibus incorporeorum naturam et
solam puramque ut in se ipsa forma est contuetor. Ita haec cum
accipit animus permixta corporibus, incorporalia diuidens speculatur
atque considerat
338
.
336
IPES I, 163, 6-14.
337
Cf. o capítulo 11 do livro I do IPES: IPES I, 164 167.
338
IPES I, 165, 1-7; 12-16. Cf., também, DH [75]-[80].
159
Boécio prevê ainda uma possível objeção, a de se dizer que essa
atividade do espírito pode pensar o que não é, porque, por ela, as coisas são
conhecidas diversamente daquilo que são na realidade. A isso se deve
responder indicando a inexistência de qualquer tipo de erro quando se
distingue, pelo pensamento, o que é unido na realidade, contanto que se
saiba estar distinguindo algo que é unido, como ocorre, por exemplo,
quando se pensa a linha separadamente da superfície, embora se saiba
existirem somente corpos sólidos. O procedimento contrário é que
constituiria um erro, porque não se pode aceitar que se una no pensamento o
que é separado na realidade, como quando se pensa a união do tronco de um
homem e o corpo de um cavalo. Assim, é inteiramente legítimo pensar à
parte os gêneros e as espécies, ainda que eles não tenham existência
separada, pois, das individualidades concretas e diferentes em número, mas
iguais em substância, o espírito colhe a semelhança, constituindo a espécie.
Nas coisas individuais essa semelhança é apenas sensível, mas nos
conceitos universais ela se torna inteligível. Nas palavras de Boécio:
Quocirca cum genera et species cogitantur, tunc ex singulis in quibus
sunt eorum similitudo colligitur ut ex singulis hominibus inter se
dissimilibus humanitatis similitudo, quae similitudo cogitata animo
ueraciterque perspecta fit species; quarum specierum rursus
diuersarum similitudo considerata, quae nisi in ipsis speciebus aut in
earum indiuiduis esse non potest, efficit genus. Itaque haec sunt
quidem in singularibus, cogitantur uero uniuersalia nihilque aliud
species esse putanda est nisi cogitatio collecta ex indiuiduorum
dissimilium numero substantiali similitudine, genus uero cogitatio
collecta ex specierum similitudine. Sed haec similitudo cum in
singularibus est, fit sensibilis, cum in uniuersalibus, fit intellegibilis,
eodemque modo cum sensibilis est, in singularibus permanet, cum
intellegitur, fit uniuersalis. Subsistunt ergo circa sensibilia,
intelleguntur autem praeter corpora
339
.
339
IPES I, 166, 8-23.
160
Nesse texto se destaca, está claro, o conceito de similitudo
340
, mas
parece possível atribuir-lhe um certo caráter aporético, pois, de uma
perspectiva, ele parece uma espécie mental haja vista o cum genera et
species cogitantur, tunc ex singulis in quibus sunt eorum similitudo
colligitur , enquanto, de outra, a similitudo humanitas, por exemplo,
cogitata animo ueraciterque perspecta, é nos singulares e pode ser
percebida. A citação abaixo, pertencente ao trecho citado imediatamente
acima, encaminha, porém, a solução dessa aparente aporia na direção de
uma similitudo substancial que se encontra nos indivíduos singulares:
(...) nihil aliud species esse putanda est nisi cogitatio collecta ex
indiuiduorum dissimilium numero substantiali similitudine, genus
uero cogitatio collecta ex specierum similitudine
341
.
No final do capítulo 11 do livro I do IPES, Boécio considera resolvida
a questão da natureza dos universais, e faz uma afirmação que permite
entender o motivo de ele chamar os gêneros, as espécies e outras
“entidades” abstratas como res, pois se deve dizer que elas são de algum
modo (ao menos quando, subsistindo nas coisas sensíveis, elas são objetos
de abstração intelectiva
342
), embora o seu “ser res” seja distinto do ser das
substâncias primeiras:
Ipsa enim genera et species subsistunt quidem alio modo,
intelleguntur uero alio, et sunt incorporalia, sed sensibilibus iuncta
340
Abaixo se retomará o tema da similitudo substantialis. Para uma análise bastante
completa do conceito de similitudo em Boécio, cf. DE LIBERA, A. L’art des généralités.
Théories de l’abstraction. Paris: Aubier, 1999, pp. 159-280.
341
IPES I, 166, 16-18.
342
Cf. IPES I, 166, 6-8: Sunt igitur huiusmodi res in corporalibus atque in sensibilibus,
intelleguntur autem praeter sensibilia, ut eorum natura perspici et proprietas ualeat
comprehendi.
161
subsistunt in sensibilibus. Intelleguntur uero ut per semet ipsa
subsistentia ac non in aliis esse suum habentia
343
.
Numa palavra, os universais, para o Boécio dos comentários a
Aristóteles, não possuem existência separada, mas podem ser separados dos
corpos e do sensível, pelo pensamento, a fim de serem por ele considerados
em sua natureza incorpórea ela mesma, ou seja, sem a matéria com a qual
ela se mistura. Esse processo de separação será o que os medievais
chamarão de abstração
344
. Poder-se-ia dizer, ainda, que a conclusão
boeciana filia-se a um pensamento de caráter eminentemente aristotélico,
oposto, inclusive, a uma solução platônica, como Boécio mesmo ratifica ao
dizer:
Sed Plato genera et species ceteraque non modo intellegi uniuersalia,
uerum etiam esse atque praeter corpora subsistere putat, Aristoteles
uero intellegi quidem incorporalia atque uniuersalia, sed subsistere in
sensibilibus putat; quorum diiudicare sententias aptum esse non duxi,
altioris enim est philosophiae. Idcirco uero studiosius Aristotelis
sententiam executi sumus, non quod eam maxime probaremus, sed
quod hic liber ad Praedicamenta conscriptus est, quorum Aristoteles
est auctor
345
.
A filiação a Aristóteles, porém, é relativizada pelo próprio Boécio,
como se vê já pelo final do comentário citado imediatamente acima, quando
ele diz seguir uma solução de caráter aristotélico não porque a aprovasse
em máximo grau, mas porque, naquele momento, ele comentava as
Categorias. Isso, porém, não quer dizer que Boécio se visse forçado a dar
razão a Aristóteles apenas porque compunha um comentário sobre uma de
343
IPES I, 167, 8-12.
344
Cf. DE LIBERA, A. La querelle des universaux. De Platon à la fin du Moyen-Âge.
Paris: Seuil, 1996, p. 130.
345
IPES I, 167, 12-20.
162
suas obras. Certamente seu escopo, ao matizar sua posição, consistia em
deixar entreaberta uma via que a permitisse completar alhures. No que se
refere especificamente à sua filiação a Aristóteles, é preciso notar que, no
CEN quer dizer, num contexto inteiramente diferente daquele dos
comentários , Boécio reapresenta uma tese visivelmente mais aristotélica
do que platônica:
Atque, uti Graeca utar oratione in rebus quae a Graecis agitata Latina
interpretatione translata sunt, aƒ oÙs…ai ™n m•n to‹j kaqÒlou e•nai
dÚnantai: ™n d• to‹j ¢tÒmoij kaˆ kat¦ mšroj mÒnoij Øf…stantai, id
est: essentiae in uniuersalibus quidem esse possunt, in solis uero
indiuiduis et particularibus substant. Intellectus enim uniuersalium
rerum ex particularibus sumptus est. Quocirca cum ipsae subsistentiae
in uniuersalibus quidem sint, in particularibus uero capiant
substantiam, iure subsistentias particulariter substantes Øpost£seij
appellauerunt
346
.
Será no CP que Boécio, elaborando a doutrina dos diferentes modos de
conhecimento, há de apresentar uma posição com nuanças que se poderiam
alinhar numa tradição mais platônica, principalmente no contexto de sua
afirmação de que tudo o que se conhece pode ser conhecido de diferentes
maneiras, quais sejam, pelos sentidos, pela imaginação, pela razão e pela
inteligência. Assim, o sentido conheceria apenas uma figura numa matéria;
a imaginação conheceria a figura sem a matéria; a razão, transcendendo a
figura, conheceria a espécie e o gênero; e a inteligência, própria de Deus,
veria, na única visada de seu pensamento, a forma simples em si mesma.
A sensação, nesse processo, não seria uma paixão sofrida pela alma em
conseqüência de alguma ação do corpo, mas o ato pelo qual a alma, por
meio das formas que nela repousam, julga as paixões sofridas por seu
corpo, ato esse que preserva a soberania da alma sobre o corpo, porque a
346
CEN III [195]-[200].
163
experiência sensível não faz senão despertar as formas que repousam no
interior dela. Não se trata, portanto, de uma submissão ou uma obediência
da alma ao corpo, mas de uma resposta que ela lhe dá quando este a
provoca:
Quodsi in corporibus sentiendis quamuis afficiant instrumenta
sensuum forinsecus obiectae qualitates animique agentis uigorem
passio corporis antecedat quae in se actum mentis prouocet excitetque
interim quiescentes intrinsecus formas si in sentiendis inquam
corporibus animus non passione insignitur sed ex sua ui subiectam
corpori iudicat passionem quanto magis ea quae cunctis corporum
affectionibus absoluta sunt in discernendo non obiecta extrinsecus
sequuntur sed actum suae mentis expediunt
347
.
Como se pode notar, um certo caráter platônico-agostiniano marca a
concepção gnoseológica de Boécio, em detrimento de uma posição que se
poderia chamar aristotélica, segundo a qual a questão do universal se
resolveria pela afirmação de que, embora eles possuam essência, é apenas
nos indivíduos que eles têm substância. Entretanto, o cruzamento dessas
duas tradições não parece contraditório a Boécio. Ao contrário, a partir de
ambas, ele produz uma outra semântica, e, portanto, uma outra ontologia; e
insistir na originalidade dessa semântica (e, portanto, da própria concepção
boeciana do mundo e da expressão deste pela linguagem) não possui, aqui,
nenhum caráter retórico, mas se trata de uma evidência que emerge dos
textos mesmos
348
. Assim, por exemplo, uma leitura atenta do CEN constata
como Boécio reorganiza o vocabulário do ser e articula, a partir desse
vocabulário, uma concepção do real “ao mesmo tempo” platônica e
347
CP V, 5 [1]-[10].
348
Tornou-se já um lugar-comum lembrar que Boécio nutria o projeto de traduzir e
comentar Platão e Aristótles, a fim de mostrar a harmonia que ele identificava entre o
pensamento de ambos (cf. IDI II, 79 80). Esse projeto, aliás, é anterior a Boécio e
encontra-se já em diferentes autores neoplatônicos.
164
aristotélica
349
, afinal, de um lado, seu mundo é um mundo em que somente
os indivíduos são substâncias (filiação aristotélica), e, de outro, é um
mundo em que os gêneros e as espécies são os únicos a serem “apenas
subsistentes” (filiação platônica). Com efeito, a substância, para Boécio, é
o sujeito do qual os acidentes necessitam para ser, enquanto a subsistência é
a propriedade daquilo que não carece de acidentes para poder ser. Se é
assim, então os gêneros e as espécies são “apenas subsistentes” (subsistunt
tantum), e, por isso, ao passo que os indivíduos são, ao mesmo tempo,
subsistentes e substâncias, ou seja, não têm necessidade dos acidentes para
ser (porque, embora os acidentes os distingam, não são eles que os fazem
ser) e oferecem aos acidentes o suporte de que estes necessitam para ser:
Neque enim pensius subtiliusque intuenti idem uidebitur esse
subsistentia quod substantia. Nam quod Graeci oÙs…wsin uel
oÙsioàsqai
350
dicunt, id nos subsistentiam uel subsistere appellamus;
quod uero illi ØpÒstasin uel Øf…stasqai, id nos substantiam uel
substare interpretamur. Subsistit enim quod ipsum accidentibus, ut
possit esse non indiget. Substat autem id quod aliis accidentibus
subiectum quoddam, ut esse ualeant, subministrat; sub illis enim stat,
dum subiectum est accidentibus. Itaque genera uel species subsistunt
tantum; neque enim accidentia generibus speciebusue contingunt.
Indiuidua uero non modo subsistunt uerum etiam substant: nam neque
ipsa indigent accidentibus, ut sint; informata enim sunt iam propriis
et specificis differentiis, et accidentibus, ut esse possint, ministrant,
dum sunt scilicet subiecta
351
.
Essa distinção entre subsistência e substância toca o núcleo mesmo do
vocabulário ontológico (re)organizado por Boécio, e opera aquela fusão de
platonismo e aristotelismo que se mencionou acima porque garante, de um
lado, a subsistência dos gêneros e das espécies, enquanto, de outro, atribui
349
Cf. DE LIBERA, A., La querelle des universaux, op. cit., p. 169.
350
Boécio registra, aqui, a forma oÙsioàsqai, em vez de oÙsiîsqai, que adotará logo
em seguida.
351
CEN III [205]-[220].
165
substancialidade apenas aos indivíduos. Segundo Alain de Libera
352
, o que
Boécio faz é reformular a classificação dos predicáveis de Porfírio a partir
da distinção entre substantia e subsistentia, que são duas noções de origem
diversa: substantia, como se sabe, viria das Categorias de Aristóteles, e
subsistentia seria uma adaptação da noção platônica de Forma, tal como
feita pelos teólogos cristãos do Oriente, de modo que a distinção entre
ambas permitiria a Boécio redefinir ontologicamente os predicáveis de
Porfírio. Além disso, a insistência na substância divina como aquela que
nada ignora em virtude de sua própria natureza marca definitivamente a
originalidade da semântica de Boécio, pois, se os universais possuem
apenas subsistência e se Deus, em virtude de sua natureza mesma, conhece
todas as coisas, então os universais devem, necessariamente, subsistir ao
menos na mente divina.
Isso lembra o capítulo IV do DT, em que Boécio comenta o “falar de
Deus”, isto é, o falar sobre Deus de maneira humana, que consiste em
atribuir-lhe os dez predicamentos legados pela tradição, mas alterando-se o
estatuto mesmo da atribuição desses predicamentos, posto que Deus é a
substância que está para além da substância. Além disso, se Deus não é
nada senão o que ele é (quer dizer, nele não há divisão, e todo o seu ser
coincide com os seus predicados)
353
, e se tudo aquilo que ele conhece deve
existir necessariamente (porque, se houvesse alguma contingência no
conhecimento ele não seria idêntico a si mesmo)
354
, então, sendo os
universais algo conhecido de Deus, eles possuem também alguma forma de
subsistência na natureza divina, que os conhece, porque justamente os
produz e os mantém.
352
Cf. DE LIBERA, La querelle des universaux, op. cit., p. 168.
353
Cf. DT IV [215].
354
Cf. CP V.
166
Dessa perspectiva, parece possível dizer que a realidade
correspondente aos universais é a Forma presente na mente de Deus
355
, mas
a forma é também presente ao espírito humano, como se confirma pelo
excerto do CP citado anteriormente
356
e pela maneira como Boécio fala da
produção da noção no espírito, quando este reconhece a forma imanente da
coisa contemplada
357
. Por fim, deve-se dizer que, se a alma reconhece a
forma imanente da coisa contemplada, então a Forma também está presente
nas coisas, mas, então, não propriamente como Forma, e sim como imagem,
segundo a explicação do DT:
Forma uero quae est sine materia non poterit esse subiectum nec uero
inesse materiae: neque enim esset forma, sed imago. Ex his enim
formis quae praeter materiam sunt, istae formae uenerunt quae sunt in
materia et corpus efficiunt. Nam ceteras quae in corporibus sunt
abutimur formas uocantes, dum imagines sint: adsimulantur enim
formis his quae non sunt in materia constitutae
358
.
Leia-se também:
Sed haec similitudo cum in singularibus est, fit sensibilis, cum in
uniuersalibus, fit intellegibilis, eodemque modo cum sensibilis est, in
singularibus permanet, cum intellegitur, fit uniuersalis. Subsistunt
ergo circa sensibilia, intelleguntur autem praeter corpora. Neque enim
interclusum est ut duae res eodem in subiecto sint ratione diuersae, ut
linea curua atque caua, quae res cum diuersis definitionibus
terminentur diuersusque earum intellectus sit, semper tamen in eodem
subiecto reperiuntur; eadem enim linea caua, eadem curua est. Ita
quoque generibus et speciebus, id est singularitati et uniuersalitati,
unum quidem subiectum est, sed alio modo uniuersale est, cum
355
Cf., especialmente, IDI I, 22, 3-11.
356
Cf. CP V, 5 [1]-[10].
357
Cf. IDI I, 34, 2-19.
358
DT II [110]-[115].
167
cogitatur, alio singulare, cum sentitur in rebus his in quibus esse
suum habet
359
.
Da leitura dos dois textos citados imediatamente acima obtém-se que a
similitudo existente entre as coisas singulares se explica pela presença das
Formas nos indivíduos, não porém como Formas propriamente ditas (estas
são sem matéria), mas como imagens, de maneira que os indivíduos de
mesma natureza formal apresentam uma similitudo substantialis, isto é, uma
semelhança essencial que é percebida pelo espírito e que, portanto, pode ser
chamada, ao mesmo tempo, inteligível (enquanto presente no nível do
pensamento) e sensível (enquanto presente em cada coisa singular). Duas
conclusões parecem possíveis aqui: em primeiro lugar, deve-se notar que as
Formas, enquanto Formas propriamente ditas, são transcendentes, e
“situam-se” na mente divina, isto é, são elementos mesmos daquilo que
humanamente se designa como o pensamento de Deus e que se designa como
as Formas ou os modelos segundo os quais Deus produz e mantém a
criação
360
. Essas Formas se encontram refletidas nas coisas singulares pelas
formas que são o princípio do ser de cada um dos indivíduos, ou, se se
quiser, elas são imitadas pelas formas imanentes, que são mais bem
designadas quando se lhes atribui o nome e o estatuto de imagens, isto é, de
formas que imitam aquelas Formas que não são constituídas na matéria. As
imagens, portanto, não são formas como as Formas transcendentes presentes
na mente divina, mas o seu reflexo, e, como tal, são o princípio mesmo do
ser de cada coisa singular. Além disso, as Formas transcendentes
359
IPES I, 166, 18 167, 7.
360
A respeito da concepção de criação ex nihilo, é hoje consenso que não há motivo de
dúvida na obra de Boécio cf. FC [50]-[60]: Ergo diuina ex aeterno natura et in
aeternum sine aliqua mutabilitate perdurans sibi tantum conscia uoluntate sponte
mundum uoluit fabricare eumque cum omnino non esset fecit ut esset, nec ex sua
substantia protulit, ne diuinus natura crederetur, neque aliunde molitus est, ne iam
exstitisse aliquid quod eius uoluntatem existentiae propriae naturae iuuaret atque esset
quod neque ab ipso factum esset et tamen esset; sed uerbo produxit caelos, terram
creauit, ita ut caelesti habitatione dignas caelo naturas efficeret ac terrae terrena
componeret.
168
encontram-se refletidas também na alma humana, sob a forma de
conhecimento ou de condição de possibilidade de conhecimento, como se
viu acima, de modo que se pode pensar num modelo semântico em que as
Formas designam três realidades: as Formas transcendentes (as Formas
propriamente ditas), as formas imanentes (as imagens ou a semelhança
substancial) e as formas presentes na alma humana (a semelhança inteligida
ou colhida a partir dos indivíduos).
Ora, julgando sobre a experiência sensível, a alma “extrai” do sensível
as imagens das Formas transcendentes, e isso se articula com a segunda
conclusão adiantada acima: as formas imanentes, constituindo a natureza
formal dos indivíduos, são o que proporciona a semelhança essencial entre
eles; esta semelhança (ou a imagem), enquanto captada pelo pensamento, é
inteligível, mas, enquanto princípio imanente (oriundo, está claro, do
princípio transcendente), é sensível. O mesmo sujeito, assim, é sujeito de
singularidade e de universalidade: de certo modo, enquanto pensado, ele
mesmo é universal; mas é também singular, enquanto captado pelos
sentidos. Entretanto, uma dupla possibilidade de angular a semelhança
essencial como é o caso aqui implica o problema de esclarecer como se
pode afirmar uma mesma realidade como universal e particular.
Uma possibilidade de solução talvez esteja em dizer que o mesmo
sujeito pode ser universal ou particular em função justamente da sua
angulação, ou seja, da perspectiva a partir da qual ele é enfocado. Assim,
“pensando-se” um sujeito, isto é, tomando-se um sujeito como cogitatio, ele
há de ser, com efeito, universal, porque, enquanto objeto de pensamento,
ele é despido da matéria e não faz senão manifestar a similitudo
substantialis partilhada com os outros indivíduos de sua espécie, mas,
“sentindo-se” esse mesmo sujeito, isto é, tomando-se-o agora como objeto
dos sentidos, ele passa a ser, então, singular, porque, pela experiência
sensível, captam-se todas as características individuais, eminentemente
169
acidentais, que são próprias da matéria
361
. Assim, a questão da
universalidade e singularidade de um mesmo sujeito seria mais uma questão
metodológica do que relativa à natureza mesma do sujeito, mas o texto de
Boécio não permite grandes especulações em torno dessa que talvez sequer
se constituísse numa questão para ele
362
.
O que há de representar, sim, dificuldade de primeira grandeza na
interpretação do texto boeciano (e que, ao mesmo tempo, completa, aqui, o
quadro conceitual das entidades abstratas significadas pela semântica de
Boécio) é a afirmação da existência de uma Forma para cada coisa
individualmente, forma esta que não admite semelhança com nenhuma outra
forma e que goza, portanto, de total incomunicabilidade. Com efeito,
Boécio fala de dois tipos de qualitates, a qualitas singularis, que se
encontra nos indivíduos como a sua forma própria, e a qualitas communis,
que é comum a vários indivíduos, isto é, aos indivíduos de uma mesma
espécie ou de um mesmo gênero:
Videmus namque alias esse in rebus huiusmodi qualitates, quae in
alium conuenire non possint nisi in unam quamcumque singularem
particularemque substantiam. Alia est enim qualitas singularis, ut
Platonis uel Socratis, alia est quae communicata cum pluribus totam
se singulis et omnibus praebet, ut est ipsa humanitas. Est enim
quaedam huiusmodi qualitas, quae et in singulis tota sit et in omnibus
tota. Quotienscumque enim aliquid tale animo speculamur, non in
unam quamcumque personam per nomen hoc mentis cogitatione
deducimur, sed in omnes eos quicumque humanitatis definitione
participant
363
.
361
Cf. DT II [105].
362
Mas os medievais, como lembra Alain de Libera, reivindicarão, reformularão ou
rejeitarão a tese de que uma mesma coisa pode ser, ao mesmo tempo, singular e
universal, pois ela abre caminho para uma série de paradoxos nos quais o realismo e o
nominalismo encontrarão alimento e razões para divergir cf. DE LIBERA, La querelle
des universaux, op. cit., pp. 131-132.
363
IDI II, 136, 17-28.
170
O final do trecho citado acima permite ver que Boécio distingue as
duas qualitates segundo as diferentes maneiras como concebemos as coisas
concretas, e novamente se evidencia seu cuidado de distinguir o que é
próprio da realidade em questão e o que se deve à nossa maneira de a
conceber e exprimir. Mas, então, o que ele chama de qualitas singularis
seria apenas uma forma de designar a forma universal realizada num
indivíduo, enquanto a qualitas communis seria essa mesma forma enquanto
tomada como universal? Esse não parece ser o sentido do texto, que, aliás,
não fala de uma natureza comum presente nos indivíduos (inclusive porque,
tendo negado o caráter de substância ao universal, seria difícil que Boécio
pensasse o inteligível no sensível como uma forma única participada por
uma pluralidade de indivíduos), mas insiste na individualidade da forma,
chegando a forjar o termo platonitas para designar a forma única e
incomunicável que faz Platão ser o que ele é em sua unicidade:
Vnde fit ut haec quidem sit communis omnibus, illa uero prior
incommunicabilis quidem cunctis, uni tamen propria. Nam si nomen
fingere liceret, illam singularem quandam qualitatem et
incommunicabilem alicui alii subsistentiae suo ficto nomine
nuncuparem, ut clarior fieret forma propositi. Age enim
incommunicabilis Platonis illa proprietas Platonitas appelletur. Eo
enim modo qualitatem hanc Platonitatem ficto uocabulo nuncupare
possimus, quomodo hominis qualitatem dicimus humanitatem. Haec
ergo Platonitas solius unius est hominis et hoc non cuiuslibet, sed
solius Platonis, humanitas uero et Platonis et ceterorum quicumque
hoc uocabulo continentur
364
.
O nome que designa a qualitas singularis possui, portanto, valor
indexical, afinal:
364
IDI II, 136, 28 137, 13.
171
Vnde fit ut, quoniam Platonitas in unum conuenit Platonem, audientis
animus Platonis uocabulum ad unam personam unamque particularem
substantiam referat; cum autem audit hominem, ad plures quosque
intellectum referat quoscumque humanitate contineri nouit
365
.
Assim, do ponto de vista semântico, o nome que designa a qualitas
singularis passa a cumprir uma função semelhante àquela que se atribui aos
nomes próprios e à descrição, pois assim como estes designam uma coisa
individual, que é uma coisa que se pode apontar com o dedo
366
, o nome da
qualitas singularis designa a forma de uma coisa individual. Ele exerce,
portanto, a função de uma “descrição” única
367
, enquanto o nome da qualitas
communis realiza apenas uma descrição que é completa, mas não única, ou
seja, sem o valor indexical que possui a qualitas singularis.
No IPES, Boécio fala de propriedades individuais significadas tanto
por uma descrição como por um nome próprio (“Sócrates”, por exemplo), de
modo que as propriedades que convêm somente a Sócrates fazem dele um
indivíduo. Assim, um indivíduo seria algo constituído por uma coleção de
propriedades que não se encontram em nenhum outro:
Indiuidua ergo dicuntur huiusmodi, quoniam ex
proprietatibus consistit unum quodque eorum, quarum
collectio numquam in alio eadem erit. (...) At uero
indiuiduorum proprietas nulli communis est. Socratis enim proprietas,
si fuit caluus, simus, propenso aluo ceterisque corporis lineamentis
aut morum institutione aut forma uocis, non conueniebat in alterum
368
.
365
IDI II, 137, 13-18.
366
Cf. IPES III, 234, 1: indiuidua quae sub ostensionem indicationemque digiti cadunt.
367
Cf. DE RIJK, L.-M., “Boèce logicien et philosophe”, op. cit., p. 143.
368
IPES III, 234, 14-16; 235, 11-14.
172
Embora os textos de Boécio não permitam especular mais sobre o
assunto, não deixam, entretanto, de permitir supor que, se a natureza das
coisas conhecida por Deus é a mesma produzida por ele, então, para cada
coisa conhecida por Deus (porque produzida por ele) há uma forma, ou seja,
uma qualitas singularis, de maneira que a natureza formal da similitudo
substantialis seria a mesma para os indivíduos de uma espécie, mas ao
mesmo tempo única para cada indivíduo quando acrescida, em cada um
deles, dos acidentes cujo conjunto os distingue entre si. Ademais, segundo
Boécio, as substâncias, por si mesmas, não são gêneros nem espécies, mas
recebem essas denominações apenas quando comparadas entre si, o que,
aliás, vale também para os acidentes, conforme o exemplo de Porfírio:
(...) substantiae ipsae nullo speciei nomine generisue censentur, nisi
quadam ad se inuicem collatione sint comparationeque compositae.
Nam quod animal est, non idcirco est genus, quoniam animal est, sed
idcirco, quod hominis sub se atque equi et ceterorum animantium
species habet. Atque idcirco ait: unde animalis speciem appellamus,
cum animal ipsum genus sit; neque enim homo species diceretur, si
super ipsum animalis appellatio non praedicaretur. Sed ut monstraret
non in unis solis substantiis genera speciesque uersari, sed etiam in
omnium praedicamentorum nuncupationibus esse conexa, non solius
substantiae dedit exemplum, sed etiam eius quod reliquum
remanserat, accidentis. Quid enim ait? Et album coloris speciem: quae
sunt in accidentis diuisione qualitatis
369
.
Se é assim, então das entidades abstratas o que de fato “existe” na
realidade concreta é o princípio do ser de cada coisa individual (a forma de
cada ente), princípio este que é imanente e que toma substância apenas nos
indivíduos. Isso, porém, não quer dizer que os gêneros e as espécies não
possuam nenhum grau de realidade; pelo contrário, como se viu
anteriormente, eles subsistem em si mesmos e, portanto, também “existem”
de certa maneira, mesmo à parte dos indivíduos. A diferença está em que,
369
IPEP 64, 15 65, 4.
173
por si, sua subsistência se dá na mente divina, como se viu acima, e é
apenas quando eles se encontram nas coisas individuais que se pode dizer
que eles tomam substância (substant, capiunt substantiam
370
). Dessa
perspectiva, parece possível atribuir o caráter de exemplaridade às Formas
transcendentes, pois é segundo o seu modelo que se produzem as coisas
criadas; estas, por sua vez, refletem as Formas justamente como suas
imagens. Por outro lado, se as Formas são formas exemplares, então elas
não deixam de desempenhar algum papel no conhecimento humano, pois,
refletidas não apenas nas coisas individuais (como similitudo essentialis),
mas também na própria alma humana (como similitudo intellecta)
371
, são
elas que garantem, no limite, a veracidade ou a falsidade das proposições.
Assim, por exemplo, diz Boécio:
Quando enim dico Socrates non est, esse a Socrate seiunxi et cum
dico Socrates philosophus non est, Socraten ab eo quod est
philosophum esse separaui, quam separationem, quae ad negationem
pertinet, diuisionem uocauit. Ergo manifestum est, quoniam si
simplex in animae passionibus intellectus fuerit, cum ipse intellectus
nullam adhuc ueri falsique retineat naturam, eius quoque prolationem
ab utrisque esse separatam. Sed cum conpositio secundum esse facta
uel etiam diuisio in intellectibus, in quibus principaliter ueritas et
falsitas procreatur, euenerit, quoniam ex intellectibus uoces capiunt
significationem, eas quoque secundum intellectuum qualitatem ueras
uel falsas esse necesse est
372
.
Não se pode, porém, deixar de mencionar aqui certa variação existente
no quadro conceitual montado por Boécio quando se define o indivíduo nos
Opuscula sacra. A propósito, no que se refere aos comentários a
370
Cf. CEN III [195]-[200].
371
A propósito, é com os reflexos das Formas que a alma tem contato; não com as
Formas elas mesmas.
372
IDI 49, 18-32.
174
Aristóteles, M.-Dominique Roland Gosselin
373
lembra que um tratado de
lógica pura, como é o caso desses comentários (de onde, aliás, emerge a
questão da qualitas singularis), não podia deter-se por muito tempo sobre
um ponto de vista metafísico, e isso explicaria a escassez de informações
sobre o que Boécio realmente pensava sobre o estatuto da qualitas
singularis. No caso, porém, dos Opuscula, que são textos eminentemente
metafísicos, há mais informações sobre o estatuto da forma imanente e do
seu papel na “individuação”. Assim, no DT, por exemplo, Boécio fala
explicitamente de “individuação” pelos acidentes:
Idem uero dicitur tribus modis: aut genere, ut idem homo quod equus,
quia idem genus, ut animal; uel specie, ut idem Cato quod Cicero,
quia eadem species, ut homo; uel numero, ut Tullius et Cicero, quia
unus est numero. Quare diuersum etiam uel genere uel specie uel
numero dicitur. Sed numero differentiam accidentium uarietas facit.
Nam tres homines neque genere neque specie, sed suis accidentibus
distant; nam uel si animo cuncta ab his accidentia separemus, tamen
locus cunctis diuersus est, quem unum fingere nullo modo possumus:
duo enim corpora unum locum non obtinebunt, qui est accidens. Atque
ideo sunt numero plures, quoniam accidentibus plures fiunt
374
.
Como se vê, Boécio insiste no acidente do lugar porque ele é o único
que resiste à atividade mental que possibilita separar das coisas as
qualidades que lhe são inerentes na realidade. A esse respeito, outros textos
provenientes também dos comentários lógicos vão na mesma direção da
diferenciação pelos acidentes:
Illa uero quae specie distant manifestum est quod ipsa quoque
differentiis substantialibus discrepant, ut homo atque equus
373
Cf. ROLAND-GOSSELIN, M.-D. Le “De ente et essentia” de S. Thomas d’Aquin.
Texte établi d´après les manuscrits parisiens. Introdução, notas e estudos históricos
de M.-D. R.-Gosselin. Paris: Vrin, 1948, p. 57.
374
DT I [50]-[60].
175
differentiis substantialibus discrepant, rationabilitate atque
inrationabilitate. Ea uero quae indiuidua sunt et solo numero
discrepant, solis accidentibus distant
375
.
O ICA aborda o mesmo problema e estabelece uma relação estreita
entre a quantidade e a substância, além da prioridade do corpo sobre as
qualidades, definindo-se o corpo pelas três dimensões (comprimento,
largura e altura):
Est quoque alia causa cur prius de quantitatis ratione pertractet.
Omne enim corpus ut sit, tribus dimensionibus constat, longitudine,
latitudine, altitudine: ut uero sit corpus cum qualitate, tunc erit aut
album, aut nigrum, aut quolibet aliud; et quoniam prius est esse
corpus, post uero esse corpus album, prius erit corpori tribus constare
dimensionibus quam esse album. Sed tres dimensiones et numero et
continuatione spatii quantitates sunt. Longitudo enim et latitudo et
altitudo in quantitatibus numerantur, album uero qualitatis est (...)
376
.
Como nota M.-D. Roland-Gosselin
377
, Boécio, pouco antes do excerto
citado acima, havia afirmado que a quantidade tem por princípio a
matéria
378
, semelhantemente ao que irá dizer depois, no DT, sobre as
formas:
(...) formae uero subiectae esse non possunt. Nam quod ceterae
formae subiectae accidentibus sunt, ut humanitas, non ita accidentia
suscipit eo quod ipsa est, sed eo quod materia ei subiecta est; dum
enim materia subiecta humanitati suscipit quodlibet accidens, ipsa
hoc suscipere uidetur humanitas. Forma uero quae est sine materia
375
IPES IV, 241, 6-9.
376
ICA II, 202 B-C.
377
Cf. ROLAND-GOSSELIN, M.-D., op. cit., p. 58.
378
Cf. ICA II, 202B: (...) ipsa enim materia sub quantitatis quidem principium cadit.
176
non poterit esse subiectum nec uero inesse materiae: neque enim esset
forma, sed imago
379
.
As formas, portanto, de acordo com o DT, não poderiam ser
subjacentes, e os acidentes, por sua vez, se deveriam à matéria. Falando-se
de Deus, observa-se que ele é pura Forma, e, por isso, não se pode dizer, de
maneira alguma, que ele seja “subjacente”, ao passo que, considerando-se
qualquer outra forma imanente, como “humanidade”, por exemplo, vê-se
que também não é a ela propriamente que se devem os acidentes, mas à
matéria que lhe é subjacente.
Ora, como conciliar uma concepção desse tipo com aquela referente à
qualitas singularis que equivale a uma forma? Segundo a concepção da
qualitas singularis, o conjunto das características que definem o indivíduo,
aí incluídos os acidentes, deve-se à sua forma, mas, segundo os textos dos
Opuscula, com as confirmações vindas dos comentários lógicos de Boécio
(conforme se mencionou acima), os acidentes devem-se sempre à
materialidade. Como conciliar essas duas posições?
Ao que tudo indica, a qualitas singularis corresponde à imagem de que
fala o DT, ou seja, à forma imanente. Porém, na mesma medida em que o
DT insiste que os acidentes se devem à matéria, ele também insiste que a
imagem é uma forma constituída na matéria, diferentemente das Formas
transcendentes. Por essa razão, Boécio insiste também no fato de ser apenas
enquanto unida à matéria que uma imagem pode produzir um corpo. Dessa
perspectiva, a imagem ou a qualitas singularis, identificadas, devem
guardar uma relação direta com o conjunto dos acidentes que distinguem o
indivíduo, porque, embora eles não componham a natureza formal da coisa
379
DT II [105]-[110].
177
(no sentido de determinar sua essência), eles entram na sua definição
380
.
Assim, considerando-se um indivíduo, sua definição não pode ser dada
apenas por referência à sua similitudo substantialis, porque, então, ele não
diferiria da espécie, mas também por referência aos seus acidentes, isto é, à
sua matéria, pois é dessa maneira que ele se distingue de outros indivíduos,
quanto ao número, no interior de sua espécie. A imagem, portanto, ou a
forma imanente e individual, ao refletir a Forma transcendente, dá à coisa o
seu princípio de ser (inclusive porque a imagem provém de uma Forma),
mas, sendo justamente esse princípio que atualiza as virtualidades da
matéria, a imagem não pode ser concebida sem ela.
Por conseguinte, Boécio parece supor uma correspondência entre o que
ele chama, no IDI, de qualitas communis e qualitas singularis com o que
ele chama, no DT, de forma e imago. A qualitas communis corresponderia
às Formas transcendentes, subsistentes na mente divina e equivalentes aos
gêneros e às espécies, com o estatuto de exemplaridade, enquanto a qualitas
communis, por sua vez, seria a forma que não subsiste senão unida à
matéria, “esta” forma “deste” ente em particular, incluindo, portanto,
enquanto definição do indivíduo, suas características acidentais.
Infelizmente, o texto de Boécio, por sua concisão, não permite ir além dessa
hipótese. O importante é notar que o intelecto identifica o universal no
indivíduo, mas, ao mesmo tempo, dá-se conta de que: (1) de um lado, o
universal não pode ser mera abstração ou mero produto seu, pois então, não
haveria propriamente pensamento, ou melhor, verdadeiro pensamento ou
pensamento de algo, mas apenas “pensamento formal”, sem conteúdo; (2) de
outro lado, o universal, tendo fundamento nas próprias coisas, mostra-se
(2.1) indissociável da matéria quando se considera a definição ou a
descrição do indivíduo, mas (2.2) mostra-se subsistente em si mesmo
quando se considera sua exemplaridade na mente divina, posto que nada
380
Cf. IPES III, 234, 14-16; 235, 11-14. É inevitável, aqui, relacionar o esforço de
Boécio por mostrar que os acidentes ou a materialidade também entram na definição do
indivíduo com o capítulo II do De ente et essentia de Tomás de Aquino.
178
escapa ao conhecimento de Deus (o que garante, por conseguinte, que o
universal não seja mero produto do intelecto).
No que se refere ao processo pelo qual a alma extrai o universal das
coisas singulares, observa-se que Boécio nunca o descreve em termos
rígidos que permitam atribuir-lhe uma concepção estritamente aristotélica
da abstração. Nesse sentido, não se pode afirmar que, para ele, a alma
simplesmente extraia o universal ou o abstraia das coisas individuais. Aliás,
seu próprio vocabulário, ao descrever o ato do conhecimento, serve-se de
termos cuja extensão é bastante ampla e fluida: por exemplo, ao falar da
“produção” das Formas na alma, ele emprega o verbo procreare, que
significa, fundamentalmente, “produzir”, mas também “reproduzir”; ou, ao
dizer que a alma intelige, ele afirma que ela conprehendit a semelhança das
coisas, o que pode significar que ela comece a conhecer essa semelhança,
não tendo dela nenhum conhecimento prévio, ou então que ela a compreenda
como que já a possuindo em si e a reconhecendo nas coisas contempladas;
ou, ainda, ao dizer o que é o ato de inteligir segundo Aristóteles, Boécio
afirma que ele não é mais do que acolher, receber, ou mesmo reconhecer
(suscipere) a propriedade e a imaginação da coisa no exame da própria
alma:
(...) quidquid est in uocibus significatiuum, id animae passiones
designat. Sed hae passiones animarum ex rerum similitudine
procreantur. (...) Omnis uero imago rei cuius imago est similitudinem
tenet: mens igitur cum intellegit, rerum similitudinem conprehendit
381
.
Similitudinem uero passionem animae uocauit, quod secundum
Aristotelem nihil aliud intellegere nisi cuiuslibet subiectae rei
proprietatem atque imaginationem in animae ipsius reputatione
suscipere
382
.
381
IDI I, 34, 26-27; 35, 7-8.
382
IDI I, 43, 12-16.
179
Parece, então, necessário, a partir dos textos de Boécio, associar, de
algum modo, as paixões da alma (passiones animae) ou as noções
incomplexas (primi intellectus) com as formae quiescentes, isto é, as
formas que “repousam” na alma. Dessa perspectiva, o caráter próprio da
passio animae não pode ser de mesma natureza que uma passio corporis,
porque, enquanto o corpo sofre uma ação, a alma preserva sua
independência e não se sujeita ao corpo, mesmo quando é uma experiência
sensível que desperta o seu agir, afinal, a experiência sensível provoca a
alma para que esta julgue a experiência sensível mesma.
Etienne Gilson, levando em conta principalmente a prosa 5 do livro V
do CP, não deixa de dar certa vantagem ao “platonismo” de Boécio, embora
conclua mais apropriadamente por uma representação do filósofo como
alguém dividido entre Platão e Aristóteles sem saber para que lado
pender
383
. Se se lê, porém, esse mesmo texto do CP a partir do conjunto da
obra de Boécio, parece carecer de sentido a necessidade de decidir se ele
terá sido um autor platônico ou aristotélico. Com efeito, o estudo de sua
semântica mostra como elementos platônicos combinam-se com elementos
aristotélicos sem produzir contradição, mas também sem resultar num mero
ecletismo.
No que toca às relações entre as coisas, as noções e as palavras, Boécio
parece manter a mesma linha de investigação do real que remonta ao
abandono da etimologia, operado pelo Crátilo, em benefício da ontologia ou
das coisas por elas mesmas, passando pela tentativa aristotélica de
reestruturar e, em parte, “sanar”, com as Categorias e o Perì hermeneías, a
pesquisa platônica. O resultado desse itinerário, na pena de Boécio, parece
ser uma semântica em que tanto as coisas sensíveis como as abstratas são
representadas pelas noções e ditas pelas palavras. Entretanto, no que se
383
GILSON, E. La philosophie au Moyen Âge. Paris: Payot & Rivages, 1999, p. 144.
180
refere especificamente às coisas abstratas, elas são colhidas (colecta)
384
pelo espírito humano a partir de um processo que conduz a elas não como a
um resultado inteiramente inusitado, mas como a um “reconhecimento”. Por
isso, assim como se diz que as formas imanentes são imagens das Formas
transcendentes presentes à mente divina, também parece possível dizer que
as formas presentes à alma são imagens das Formas transcendentes que
subsistem nos indivíduos. A transcendência das Formas, porém, não seria
uma transcendência ao modo “platônico”, como Formas subsistentes à parte
do Bem, porque, segundo Boécio, elas estão na própria natureza divina, sob
a forma de conhecimento
385
. Ora, esse conhecimento, embora possua alguma
semelhança com o conhecimento humano, deve ser, entretanto, de outra
ordem, principalmente porque não se trata de um conhecimento “obtido” a
partir da contemplação das coisas, mas um conhecimento produtor delas e
mantenedor de sua existência
386
.
Compreende-se melhor, assim, por que Boécio vê um pertencimento
natural mútuo entre as palavras, as noções e as coisas, a ponto de chamar
esses três elementos como os componentes mesmos da linguagem (ordo
orandi)
387
. Ao mesmo tempo, percebe-se que a relação direta entre a ordem
do discurso e a ordem do real é garantida pela presença das Formas nas
coisas, na alma e no princípio de todas as coisas.
A presente incursão pela doutrina boeciana dos universais visa, como
se disse anteriormente, apenas identificar a que grau de realidade pertencem
as entidades abstratas que a semântica de Boécio toma como res. O que se
384
Como se disse anteriormente, Boécio chama a espécie de pensamento (re)colhido
(cogitatio colecta) a partir da semelhança (similitudo) substancial de indivíduos
diferentes (dissimiles) quanto ao número; e o gênero ele chama de pensamento
(re)colhido a partir da semelhança de espécies. Cf. IPES I, 166, 15-18.
385
Cf. IDI I, 22, 3-11.
386
Cf. FC [50]; DH [150]-[155].
387
Cf., acima, no presente capítulo, a seção “1. Os elementos do discurso”. Releia-se,
especialmente, IDI I, 20, 25-32: Scriptae namque litterae ipsas significant uoces. Quare
quattuor ista sunt, ut litterae quidem significent uoces, uoces uero intellectus,
intellectus autem concipiant res, quae scilicet habent quandam non confusam neque
fortuitam consequentiam, sed terminata naturae suae ordinatione constant.
181
percebe ao final desse percurso é que, à parte a discussão que pretende
saber se Boécio não desejava ou não queria decidir-se entre Platão e
Aristóteles
388
, ele parece compor um novo modelo semântico a partir,
evidentemente, do pensamento platônico-aristotélico, mas
fundamentalmente diferente dessa dupla filiação, sobretudo porque introduz
a concepção da natureza divina como “sede” dos universais que se refletem
na alma humana e tomam subsistência nas coisas individuais. Ao que tudo
indica, esse é um elemento que escapa inteiramente ao modelo platônico-
aristotélico
389
.
2.4. Inexistentes.
Há, ainda, na semântica de Boécio, um elemento importante para a
determinação das relações entre as palavras, as noções e as coisas: os
inexistentes, ou aquilo que Boécio chama de res non subsistentes
390
.
Aristóteles, com efeito, dissera que um termo como hircoceruus
(designação de um animal que seria metade bode e metade cervo) significa
388
Cf. GILSON, E., op. cit., p. 144; MAIOLI, B. Gli universali. Storia antologica del
problema da Socrate al XII secolo. Roma: Bulzoni, 1974, p. 146, nota 30.
389
Ademais, parece perfeitamente aplicável a toda a obra de Boécio o comentário
perspicaz de Bruno Maioli ao DH e ao DT: Gli assiomi del De hebdomadibus, così come
le tesi ontologiche del De Trinitate, sono un impasto originale di platonismo e di
aristotelismo nello spirito del tipico e mai banale ecletismo boeziano, in cui gli
elementi e gli imprestiti sono talmente fusi che ogni tentativo di ricondurli alle tesi
originarie di questo o di quell’autore (Porfirio, Vittorino, lo stesso Aristotele) oltre
che estremamente difficile a documentarsi, rischia inevitabilmente di forzare o di
tradire per amor di prova l’inconfondibile sapore boeziano (MAIOLI, B. Teoria
dell´essere e dell´esistente e classificazione delle scienze in M. S. Boezio. Una
delucidazione. Roma: Bulzoni, 1978, p. 21). Claudio Micaelli fala do DH como o
resultado do esforço de um platônico em torno de um problema aristotélico (cf.
MICAELLI, C. “Il De hebdomadibus di Boezio”, op. cit., p. 34). Como prova, ainda, da
originalidade do “ecletismo” de Boécio, vale lembrar que, entre os medievais, ao que
tudo indica, não houve um autor sequer que filiasse Boécio a alguma escola filosófica;
ao contrário, ele foi sempre tomado como ponto de partida absoluto (cf. BONNAUD, R.
“L’éducation scientifique de Boèce”. In: Speculum. A Journal of Mediaeval
Philosophy. Cambridge: The Mediaeval Academy of America, 1929, p. 205).
390
Cf. ICA IV, 279C-D.
182
algo, mas não algo verdadeiro ou falso
391
. Esse também seria o sentido da
maneira como Boécio fala de res para entidades inexistentes: malgrado
pareça contraditório falar de uma coisa que não tem subsistência (assim
como falar, em português, de uma “entidade inexistente”), é preciso admitir
a produção de uma significação quando se pensa em algo fictício,
significação que está na base da atribuição do termo res ao inexistente,
pois, afinal, ele “significa”. Leia-se:
Nam cum scientia et scibile relativa sint, antiquius est scibile quam
scientia. Quod uero interposuit, in paucis enim uel nullis hoc quis
perspiciet simul cum scibili scientiam factam, tale est. Quasdam
namque res animus sibi ipse confingit, ut chimeram, uel centaurum,
uel alia huiusmodi, quae tunc sciuntur, cum ea sibi animus finxerit.
Tunc autem esse incipiunt, quando primum in opinione uersantur.
Tunc igitur sciuntur, cum in opinione uersata sint, et haec simul
habent esse et sciri. Nam quoniam in opinione nascuntur, mox esse
incipiunt, sed cum in ratione sunt, tunc eorum scientia capitur
392
.
A questão que se impõe é de saber se as res non subsistentes, pelo fato
de só existirem a partir do momento em que são pensadas, e, portanto, de
não subsistirem nas substâncias, gozam de uma natureza semelhante àquelas
entidades abstratas, como os gêneros e as espécies, que, embora possuam
essência, também não correspondem a substâncias. Todas as entidades
abstratas incluir-se-iam, portanto, no mesmo plano categorial?
Comentando o capítulo 10 do Perì hermeneías, no contexto em que se
analisa a afirmação e a negação, Boécio diz que, se Sócrates não subsiste,
são falsas tanto a afirmação “Sócrates é doente” como “Sócrates é são”, e
serve-se da construção latina com ablativo absoluto para dizer que, “não
subsistindo a coisa”, qualquer composição conceitual em que ela seja
tomada como elemento há de ser falsa:
391
Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías I, 16a15.
392
ICA II, 229B-C.
183
Qui enim omnino non est, neque omino poterit aegrotus esse nec
sanus. Ergo in contrariis subsistente re de qua praedicantur, semper
una praedicatio uera est, alia falsa, in his scilicet contrariis quae
secundum complexionem dicuntur et carent medio. Non subsistente
autem re, contrarietates utraeque sunt falsae
393
.
No IPES, embora Boécio admita, com Alexandre de Afrodísias, que
uma noção (intellectus), quando não reproduz a realidade como ela é, não
implica, necessariamente, falsidade, acaba por afirmar que “falsidade” será
um atributo da opinião (opinio) que compõe aquilo que na ordem da
natureza não é composto:
Non enim necesse esse dicimus omnem intellectum qui ex subiecto
quidem fit, non tamen ut sese ipsum subiectum habet, falsum et
uacuum uideri. In his enim solis falsa opinio ac non potius
intellegentia est quae per compositionem fiunt. Si enim quis
componat atque coniungat intellectu id quod natura iungi non patitur,
illud falsum esse nullus ignorat, ut si quis equum atque hominem
iungat imaginatione atquee effigiet Centaurum
394
.
Assim, o erro estaria, segundo a perspectiva do IPES, em compor
mentalmente o que é distinto na natureza ou em distinguir aquilo que nela é
composto.O que permite ao espírito humano chegar a uma tal opinião é a
mesma capacidade que lhe permite distinguir o que na realidade é unido ou
compor o que na realidade é distinto, como se viu acima a respeito da
extração do universal. Mas o IDI apresenta um elemento complicador para a
concepção dos inexistentes, pois, enquanto o IPES leva à compreensão da
quimera como o resultado de uma composição de partes já conhecidas na
ordem na natureza, mas equivocadamente reunidas pelo espírito
393
ICA 279C.
394
IPES 164, 5-12.
184
(permitindo, então, supor que a quimera não seja uma noção propriamente
dita, mas um composto de noções), o IDI, por sua vez, parece falar da
quimera como uma verdadeira noção, porém sem uma realidade subjacente:
Sunt enim intellectus sine re ulla subiecta, ut quos centauros uel
chimaeras poetae finxerunt. Horum enim sunt intellectus quibus
subiecta nulla substantia est
395
.
Ora, como entender essa afirmação de Boécio à luz de sua asserção,
registrada duas páginas adiante no mesmo comentário, segundo a qual
intellectus uero ipsi nihil aliud nisi rerum significatiui sunt
396
? É verdade
que res, aqui, significa algo concreto, da ordem das coisas sensíveis, mas é
também de se pensar que, aliada à citação feita acima, a afirmação de que a
noção é sempre significativa de uma “coisa” parece típica do emprego
amplo e livre que Boécio faz do termo res, que aparece ao longo de toda sua
obra, com diferentes sentidos, e que configura uma extensão na qual se
incluem tanto entidades existentes como inexistentes. Desse ponto de vista,
portanto, mesmo as noções sem nenhuma coisa subjacente seriam “coisas”,
coisas não subsistentes, está claro, mas coisas presentes ao pensamento, e,
portanto, de algum modo significativas. Ainda no IDI, ao falar de verdade e
falsidade como atributos da predicação e não das noções, diz Boécio:
Igitur ad demonstrandam uim simplicis nominis, quod omni ueritate
careat atque mendacio, tale in exemplo posuit nomen, cu ires nulla
subiecta sit. Quod si quid uerum uel falsum unum nomen significare
posset, nomen quod eam rem designat, quae in rebus non sit, omnino
falsum esset. Sed non est: non igitur ulla ueritas falsitasque in
simplici umquam nomine reperietur
397
.
395
IDI I, 22, 3-6.
396
IDI I, 24, 14-15.
397
IDI I, 50, 11-18.
185
Tal seria o caso do hircocervo, que só indicará falsidade quando, por
exemplo, se disser que ele é. De todo modo, os produtos da fantasia são
chamados res, e Boécio estabelece uma relação muito interessante para o
estudo das correspondências semânticas ao associar a negação de um nome
com a predicação infinita, porque essa negação possuiria, ela mesma, um
significado aberto ao infinito. Leia-se:
(...) quod enim non homo est potest esse et centaurus, potest esse et
equus et alia quae uel sunt uel non sunt atque ideo infinitum nomen
uocatum est: ita quoque etiam in uerbo quod est non currit uel non
laborat infinitum quoque ipsum est, quoniam non solum de eo quod
est uerum est, sed etiam de eo quod non est praedicari potest. Possum
namque dicere homo non currit et id quod aio non currit de ea re quae
est praedico id est de homine, possum rursus dicere Scylla non currit,
sed Scylla non est: igitur hoc quod dico non currit et de ea re quae est
ualet et de ea quae nihil est praedicari. Sed forte aliquis hoc quoque
in uerbis finitis esse contendat. Possum namque dicere equus currit,
hippocentaurus currit et de ea re scilicet quae est et de ea quae non
est
398
.
Boécio considera, ainda, como objeto de opinião (opinabile) aquilo que
não é, mas toma como objeto de ciência (scibile) aquilo que é. Como se viu
acima, porém, a origem do opinável é a própria abstração, de modo que
mesmo a noção que se diz não corresponder a nenhuma coisa subjacente tem
como origem coisas concretas e, portanto, subjacentes, afinal, a noção do
hircocervo, por exemplo, não é uma noção inteiramente inusitada, mas, sim,
composta a partir de duas noções que correspondem a coisas concretas,
como são o bode e o cervo.
O que poderia constituir um problema, segundo Boécio, seria uma
afirmação como “Homero é poeta”, uma vez que se sabe que Homero já
398
IDI I, 69, 33 70, 15.
186
morreu (ou que sequer existiu). Como predicar “poeta” de um sujeito que
não existe, como é o caso de Homero? Boécio propõe uma interpretação
figurada e diz:
(...) non possumus simpliciter dicere esse quod non est. Idcirco enim
opinabile est, quia non est. Scibile enim esset, si per se esset, non
opinabile, sicut Homero idcirco esse dicitur, quia poeta est, non quia
per se est. Vel certe idcirco dicitur Homerus esse poeta, quia poesis
ipsius exstat et permanet, sicut aliquos in filiis suis saepe uiuere
dicimus. Quocirca id quod non est idcirco esse dicitur opinabile,
quoniam ipsius est opinatio, non autem quoniam id quod non est per
se aliquid esse potest
399
.
Essas considerações sobre a significação dos inexistentes completa,
assim, o quadro das relações estabelecidas por Boécio entre os nomes e as
coisas. Porém, como se apontou no início do presente capítulo, os
elementos que, no seu dizer, compõem o discurso (ordo orandi) são os
nomes, os verbos e as noções, o que o próprio Boécio altera,
posteriormente, dizendo que tais elementos são as palavras (os nomes e os
verbos), as noções e as coisas. Para conhecer o conjunto da semântica
boeciana falta, portanto, ao presente itinerário, investigar o sentido dos
verbos.
3. Os verbos.
A abordagem dos verbos deve efetivar-se em dois momentos: a
consideração dos verbos em geral e a consideração específica da cópula.
399
IDI V, 376, 5-15.
187
3.1. Os verbos em geral.
No que diz respeito ao verbo em geral, Boécio o define por
contraposição com o nome, tomando como base a significação temporal que
o nome não possui, para dizer que a função do verbo é indicar ação (actio)
ou paixão (passio):
Neque enim nomen ullum consignificat tempus. Verbi namque est,
cum aut passio significatur aut actio, aliquam quoque secum trahere
uim temporis, qua illud cum uel facere uel pati dicitur proferatur.
Cum enim dico Socrates, nullius est temporis; cum uero lego uel legi
ou legam, tempore non caret. Addito ergo nomini quod sine tempore
esse dicatur, nomen a uerbo disiungitur
400
.
Como se vê, a contraposição com o nome, pela qual Boécio define o
verbo, mostra-se calcada na concepção aristotélica exposta no capítulo 3 do
Perì hermeneías. Mas já na primeira frase daquele capítulo Aristóteles
acrescentava que o verbo significa (semaínei) algo que se diz de outra
coisa
401
. Boécio, por sua vez, explica que esse “dizer-se de outra coisa”
trata-se da propriedade acidental própria do verbo, mas muito próxima, no
entanto, do que significam os nomes mesmos de acidentes:
Sed postquam uerbum consignificare tempus ostendit, id quod supra
iam dixerat uerbum semper de altero praedicari, id nunc memoriter
quemadmodum praedicatur ostendit. Ait enim: et semper eorum quae
de altero dicuntur nota est, ut eorum quae de subiecto uel in subiecto,
hoc scilicet dicens: ita uerbum significat aliquid, ut id quod significat
de altero praedicetur, sed ita ut accidens. Omne namque accidens et in
subiecto est et de subiecta sibi substantia praedicatur. Nam cum dico
currit, id de homine si ita contigit praedico scilicet de subiecto et
ipse cursus in homine est, unde uerbum currit inflexum est
402
.
400
IDI I, 56, 26 57, 1.
401
Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías 3, 16b.
402
IDI I, 68, 1-13.
188
No limite, o verbo, assim como o nome de acidente, desempenharia o
papel de uma descrição, mas a diferença está no fato de o verbo designar o
acidente enquanto presente numa coisa, isto é, implicando um sujeito de
inerência, ao passo que o nome de acidente, considerado em si mesmo,
indica apenas uma forma acidental, sem implicar a referência a algo em que
ele se realiza:
(...) ac si diceret nihil aliud nisi accidentia uerba significare. Omne
enim uerbum aliquod accidens designat. Cum enim dico cursus, ipsum
quidem est accidens, sed non ita dicitur ut id alicui inesse uel non
inesse dicatur. Si autem dixero currit, tunc ipsum accidens in alicuius
actione proponens alicui inesse significo. Et quoniam quod dicimus
currit praeter aliquid subiectum esse non potest (neque enim dici
potest praeter eum qui currit), idcirco dictum est omne uerbum eorum
esse significatiuum quae de altero praedicantur, ut uerbum quod est
currit tale significet quiddam quod de altero id est de currente
praedicetur
403
.
Assim, no caso do nome (cursus), o que é significado é apenas uma
forma tomada em abstrato (corrida), ao passo que o verbo não significa
somente a forma, mas também o substrato no qual ela se encontra. O verbo
indica, então, aquilo que os medievais chamarão de significatum
materiale
404
, a noção formal incluindo o substrato em que ela se realiza;
trata-se, pois, da forma imanente enquanto presente num substrato é a
forma com o substrato ou o substrato enquanto oferecendo suporte à forma.
Ocorre, porém, que, comentando a doutrina aristotélica do verbo,
Boécio se depara com a observação segundo a qual os verbos, fora do
contexto proposicional, podem ter um significado pleno, e afirma, então,
403
IDI I, 67, 9-21.
404
Cf. DE RIJK, L.-M., “Boèce logicien et philosophe”, op. cit., p. 148.
189
que se deve considerar um sujeito implícito e uma posição absoluta dos
verbos. Assim Boécio traduz Aristóteles:
Ipsa quidem secundum se dicta uerba nomina sunt et
significant aliquid. Constituit enim qui dicit intellectum
et qui audit quiescit
405
.
A posse de um significado pleno é certamente a chave para a
compreensão desse texto, pois, malgrado sejam o verbo e o nome, quando
considerados em si mesmos, bastante diferentes entre si, a afirmação et
significant aliquid indica que entre ambos há uma relação de ordem
semântica, ou, se se quiser, que ambos possuem o mesmo valor semântico:
no limite, têm o mesmo significado. Ora, se é assim, então a expressão
uerba secundum se dicta não pode significar “os verbos enquanto verbos”,
ou “os verbos considerados em si mesmos”, ou ainda “os verbos enquanto
tais”, porque, enquanto tais, os verbos são assaz diferentes dos nomes
406
. O
que essa expressão parece querer indicar é a consideração dos verbos
fazendo-se abstração do substrato, tal como ocorre com a função semântica
do nome. Leia-se:
Sed quod omne uerbum per se dictum neque addito de quo illud
praedicatur tale est, ut nomini sit adfine. Nam si dicam Sócrates
ambulat, id quod dixi ambulat totum pertinet ad Socratem, nulla
ipsius intellegentia própria est. At uero cum dico solum ambulat, ita
quidem dixi, tamquam si alicui insit, id est tamquam si quilibet
ambulet, sed tamen per se est propriamque retinens sententiam huius
uerbi significatio est
407
.
405
IDI I, 71, 4-7.
406
Cf. DE RIJK, L.-M., “Boèce logicien et philosophe”, op. cit., p. 148.
407
IDI I, 71, 22-30.
190
O verbo, portanto, tomado sem a referência ao seu substrato, equivale,
do ponto de vista semântico, a um nome, isto é, possui significação mesmo
sem um valor indexical, e, se se considera a composição sintática da
proposição, à qual Boécio liga o secundum se dictum, percebe-se que essa
expressão também pode significar algo como “tomado sem o sujeito da
proposição”. O contexto sintático que permite essa conclusão é justamente o
mesmo sobre a questão da inexistência de verdade ou falsidade fora do
juízo:
Cum enim dico sapit, est quidem quaedam significatio, sed nihil aut
esse aut non esse demonstrat, id est neque adfirmatiuum aliquid nec
negatiuum est. Nam si adfirmatio et negatio in intellectuum
conpositionibus inuenitur, ut supra iam docuit, neque nomina sola
dicta nec uerba aut adfirmationem aut ullam facient negationem.
Pluribus enim modis docuit alias Aristoteles non in rebus, sed in
intellectibus ueritatem falsitatemque esse constitutam. Quod si in
rebus esset ueritas falsitasue, una res sola dicta aut adfirmatio esset
aut quae ei contraria est negatio. Nunc uero quoniam in intellectibus
iunctis ueritas et falsitas ponitur, oratio uero opinionis atque
intellectus passionumque animae interpres est: [quare] sine
conpositione intellectuum uerborumque ueritas et falsitas non uidetur
exsistere. Quocirca praeter aliquam conpositionem nulla adfirmatio
uel negatio est
408
.
Confirmando, assim, a afirmação de que o verbo, mesmo sem a
referência a um sujeito, significa algo, Boécio enfatiza o caráter
essencialmente acidental dessa significação, pois, como o verbo, o acidente,
que também é uma forma dita de um substrato, não deve incluir
necessariamente o substrato. Assim, o verbo sapit, em sentido forte,
“significa”, ou seja, possui um intellectus, ainda que sua significação seja
não-subsistente:
408
IDI I, 75, 5-22.
191
(...) uerba ipsa secundum se dicta nomina esse, idcirco quoniam
cuiusdam rei habeant significationem. Neque enim si talis rei
significationem retinet uerbum, quae semper aut in altero sit aut de
altero praedicetur, idcirco iam nihil omnino significat. Nec si
significat aliquid quod praeter subiectum esse non possit, idcirco iam
etiam illud significat quod subiectum est. Vt cum dico sapit, non
idcirco nihil significat, quoniam hoc ipsum sapit sine eo qui sapere
possit esse non potest. Nec rursus cum dico sapit, illum ipsum qui
sapit significo, sed id quod dico sapit nomen est cuiusdam rei, quae
semper sit in altero et de altero praedicetur. Vnde fit ut intellectus
quoque sit. Nam qui audit sapit, licet per se constantem rem non
audiat (in altero namque semper est et in quo sit dictum non est),
tamen intellegit quiddam et ipsius uerbi significatione nititur et in ea
constituit intellectum et quiescit, ut ad intellegentiam ultra nihil
quaerat omnino, sicut fuit in nomine
409
.
Assim, pois, quem diz “é sábio” (sapit) indica algo (o “ser sábio”), mas
sem indicar o substrato em que se realiza o “ser sábio”, isto é, aquele que
“é sábio”; indica somente a propriedade (forma) não-subsistente de “ser
sábio”, embora essa propriedade só possa existir num substrato. Nessa
direção vai a diferença que Boécio identifica entre o verbo e o nome
propriamente dito: o nome significa algo subsistente (res per se constans),
ao passo que o verbo significa algo que não tem substância em si:
Quemadmodum enim nomen cuiusdam rei significatio propria est per
se constantis, ita quoque uerbum significatio rei est non per se
subsistentis, sed alterius subiecto et quodammodo fundamento
nitentis
410
.
Essa explicação haverá de exercer, a partir do século XIII, papel
importante no desenvolvimento das teorias sobre os diversos modos de
significação (de modis significandi), conforme lembra De Rjik
411
.
409
IDI I, 73, 18 74, 5.
410
IDI I, 74, 5-9.
411
Cf. DE RIJK, L.-M., “Boèce logicien et philosophe”, op. cit., p. 149.
192
Ainda de acordo com De Rjik
412
, é nesse contexto que os antigos
parecem ter pressentido a importante distinção entre descrição (valor
descritivo) e indicação (valor indexical ou indexicalidade). Assim, o
comentador Aspásio, do segundo século, havia proposto e resolvido uma
questão a respeito do que Aristóteles dissera sobre a fixação do pensamento
que é provocada pelo verbo, ou, se se quiser, pela noção veiculada pelo
verbo. Dizia ele que quem ouve apenas legit (“lê”), não toma essa dicção
em repouso, mas continua a perguntar sobre quem é que lê. Segundo
Aspásio, isso ocorre porque a noção veiculada pelo verbo (como por toda
dicção significativa) é uma noção completa em si (por exemplo, “ler”, “ser
sábio” etc.) que dá um “apoio”, um fundamento, ao ouvinte. Na referência
de Boécio, o ouvinte se há de apoiar sobre a compreensão dessa noção:
(...) quilibet audiens cum significatiuam uocem ceperit animo, eius
intellegentia nitetur: ut cum quis audit homo, quid sit hoc ipsum quod
accipit mente conprehendit constituitque animo audisse se animal
rationale mortale. Si quis uero huiusmodi uocem ceperit, quae nihil
omnino designet, animus eius nulla significatione neque intellegentia
roboratus errat ac uertitur nec ullis designationis finibus
conquiescit
413
.
Aspásio terá, portanto, reconhecido a diferença entre descrição
(significare aliquid) e indexicalidade, mas é preciso notar que Aristóteles,
nesse contexto, não fala senão do valor descritivo das palavras (nomes e
verbos).
Vale notar, ainda (dado haver-se mencionado que o verbo possui
significação fundamentalmente acidental, por partilhar com o acidente a
função de referir uma forma dita de um substrato), que “acidente” equivale
a “predicado” e, por isso, pode ser também uma forma essencial. Nesse
412
Cf. idem, pp. 149-150.
413
IDI I, 74, 21-33.
193
caso, o sentido do acidente não será propriamente aquele metafísico, que o
opõe à essência, mas semântico, pelo qual o acidente é o que se diz
secundariamente de algo, diferentemente do que é específico da coisa e,
portanto, dito primariamente dela. Não haveria, por isso, oposição com a
substância, assim como não é acidental que aquilo que é bom seja não-mau;
trata-se de um concomitante necessário à sua natureza essencial:
Sed quod dixit bono accidere, ut malum non sit, non ita intellegendum
est, quemadmodum solemus dicere substantiae aliquid accidere.
Neque enim fieri potest, sed accidere hic intellegendum est secundo
loco dici. Principaliter enim quod est bonum dicitur bonum, secundo
uero loco dicitur non est malum
414
.
Para dar destaque a esse sentido semântico do acidente, De Rjik
415
propõe que se recorra à discussão medieval sobre a falácia de acidente, e
menciona, por exemplo, Pedro de Espanha (Petrus Hispanus Portugalensis),
que, afirma explicitamente ser possível considerar o accidens não em seu
sentido porfiriano, e, portanto, não contradistinto de substantia, mas no
sentido de algo non-necessarium in consequendo, ou seja, não-necessário
(não dito primariamente, se se quiser) ao dizer-se a coisa.
O contexto em que Pedro Hispano fala desse segundo sentido de
accidens é o capítulo De accidente, de seu tratado VII, intitulado De
fallaciis, em que ele examina o seguinte silogismo:
Homo est species.
Sortes est homo.
Ergo Sortes est species.
414
IDI VI, 483, 6-10.
415
Cf. DE RIJK, L.-M., “On Boethius’s notion of being. A chapter of Boethian
semantics”, op. cit., pp. 5-9.
194
O erro desse silogismo, como se pode ver facilmente, está em tomar
homo em dois sentidos diferentes, fazendo, portanto, que o silogismo tenha
quatro e não três termos: homo, na primeira premissa, é o universal
“homem”, a “humanidade”; mas, na segunda premissa, é um indivíduo.
A partir desse exemplo, embora Pedro Hispano não dê uma definição
explícita do que seja o acidente non-necessarium in consequendo, pode-se
supor que ele constitua um componente da essência da coisa, apesar de não
ser dito primariamente dela. Explicando a invalidade do silogismo
transcrito acima, Pedro Hispano fala que o termo species inere a homo e a
Sortes como um acidente inere ao seu sujeito, mas, como se vê, não se trata
de uma inerência contingente ou que se possa extrair da coisa sem alterar
sua essência, afinal a species compõe essencialmente tanto homo como
Sortes, embora não seja ela que se obtém como resposta quando se pergunta
pela substância de ambos. Leia-se:
Hic enim homo est res subiecta et Sortes accidit ei; et species
assignatur inesse utrique et etiam similiter, quia utrique assignatur
inesse ut accidens subiecto suo. Et nota quod ubicumque est sophisma
accidentis, exigitur duplex accidens, unum quod accidit rei subiecte
et aliud quod assignatur rei subiecte et accidenti eius inesse. (...) Et
ideo dicendum quod si querat de illo accidente quod assignatur inesse
utrique, tunc illud accidens non est prout sumitur a Porfirio unum de
quinque predicabilibus, neque secundum quod sumitur ab Aristotile
unum de quatuor predicatis in Topicis neque est accidens quod ex
opposito diuiditur contra substantiam, cum dicimus: “quicquid est,
aut est substantia, aut accidens, aut Creator substantie et accidentis”.
Sed illud accidens est idem quod non-necessarium in consequendo
416
.
416
PEDRO DE ESPANHA (PETRUS HISPANUS PORTUGALENSIS). Tractatus (called
afterwards Summule Logicales). Primeira edição crítica, a partir dos manuscritos, com
uma Introdução de L.-M. De Rijk. Assen: Van Gorcum, 1972, p. 146 (Tractatus VII, nn.
102-103, linhas 9-14; 18-26).
195
Um outro texto que contém um comentário bastante útil à presente
tentativa de aproximação ao que os medievais chamaram de sofisma de
acidente é a Summa sophisticorum elencorum, da primeira metade do século
XII e de autor anônimo
417
, o qual atribui a Tiago de Veneza a explicação
segundo a qual ocorre um paralogismo quando algo é tomado primeiro
coniunctim e depois divisim, ou seja, primeiro conjuntamente e depois
separadamente. O exemplo-base seria o seguinte:
Socrates est albus.
Sed album est color.
Ergo Socrates est color.
A falácia consistiria, portanto, em tomar albus na primeira premissa
pretendendo que a brancura seja inerente a Sócrates, para, depois, na
segunda premissa, pretender que ele signifique a brancura em si mesma, à
parte de sua inerência a Sócrates. Evidencia-se, por isso, novamente, um
sentido do acidente que não é aquele oposto à essência. Leia-se:
Sciendum tamen est quod Magister Iacobus [de Venetia] aliter diffinit
paralogismos qui fiunt secundum accidens, dicens sic: “tunc fit
paralogismus secundum accidens quando aliquid prius accipitur
coniunctim, postea divisim. Ut, cum dico: Socrates est albus; sed
album est color; ergo Socrates est color, dicit
418
quod hoc nomen
‘album’ significat albedinem coniunctam uel coherentem Socrati in
prima propositione; sed cum dico postea: album est color, significat
albedinem per se, idest separatim, ita quod non coniunctam alicui; et
ideo est sophisma secundum accidens. Fit quoque idem in aliis; ut,
cum dico: Socrates est homo; sed homo est species; ergo Socrates est
species, sophisma est secundum accidens secundum illum
419
, quia
‘homo’ in prima propositione significat illam speciem coniunctam illi
indiuiduo, scilicet Socrati; sed postea, cum dico: homo est species,
417
Cf. DE RIJK, L.-M., “On Boethius’s notion of being. A chapter of Boethian
semantics”, op. cit., pp. 6.
418
Leia-se: Tiago de Veneza.
419
Leia-se: Tiago de Veneza.
196
significat illam speciem non ut iunctam alicui indiuiduo, sed seorsum
uel separatim
420
.
O segundo exemplo deixa ainda mais evidente o sentido do acidente
não contraposto à essência. Nele, o ser-homem simpliciter é oposto ao ser
como ser individual específico. Esses textos mostram
421
, ainda, que, com
efeito, não se trata de uma questão sintática (ligada à predicação), como se
se indicasse uma relação entre a qualidade F de um sujeito de inerência x,
relação essa que tornaria possível dizer x é F”, mas de uma relação
semântica (exposta ou não sob a forma S é P”) existente entre o nome
essencial de uma coisa e outros apelativos.
A fonte para essas discussões sobre os sofismas que relevam do
acidente é, sem dúvida, Aristóteles
422
, cujo texto também contém um
emprego do acidente como uma característica essencial ao falar do
conhecido exemplo do triângulo: para o triângulo, ser uma figura (ou um
princípio ou um elemento primeiro) não tem relação direta com a
propriedade de ter os três ângulos iguais a dois retos, pois essa propriedade
pertence ao triângulo enquanto tal (é ela que se diz primariamente ao se
pretender dizer o que é o triângulo), de modo que qualquer outra conclusão
seria estranha.
420
Summa sophisticorum elencorum II, 1, 22
rb
. In: DE RIJK, L.-M. Logica modernorum.
A contribution to the history of Early Terminist logic. Assen: Van Gorcum, 1962, p.
357, linhas 5-23).
421
Cf. DE RIJK, L.-M., “On Boethius’s notion of being. A chapter of Boethian
semantics”, op. cit., pp. 6.
422
Cf. ARISTÓTELES, Refutações sofísticas 6, 168a35-168b5. Cf., também, Categorias 7,
7a, em que Aristóteles, mencionando as correlações que não são propriamente
correlações (quando um dos termos é designado por um nome que designa apenas
acidentalmente o correlativo, e não pelo nome mesmo do correlativo), emprega o verbo
symbaínein (symbebêkota) e fala do ser homem como um acidente do senhor (despotês),
com referência ao escravo.
197
3.2. A cópula.
A cópula, entre os verbos, desempenha um papel lógico-gramatical
muito particular, e Boécio não lhe aplica a definição aristotélica de verbo,
mas parte da consideração de que o particípio ens, predicando-se de modo
equívoco de todas as coisas, per se nihil designat:
(...) sermo hic, quem dicimus est, nullam per se substantiam monstrat,
sed semper aliqua coniunctio est: uel earum rerum quae sunt, si
simpliciter adponatur, uel alterius secundum partecipationem. Nam
cum dico Socrates est, hoc dico: Socrates aliquid eorum est quae sunt
et in rebus his quae sunt Socratem iungo; sin uero dicam Socrates
philosophus est, hoc inquam: Socrates philosophia participat. Rursus
hic quoque Socratem philosophiamque coniungo. Ergo hoc est quod
dico uim coniunctionis cuiusdam optninet, non rei. Quod si
conpositionem aliquam copulationemque promittit, solum dictum nihil
omnino significat. Atque hoc est quod ait: nec si ipsum est purum
dixeris, id est solum: non modo neque ueritatem neque falsitatem
designat, sed omnino nihil est. Et quod secutus est planum fecit:
consignificat, inquit, autem quandam conpositionem, quam
sine compositis non est intellegere. Nam si est uerbum
conpositionis coniunctionisque cuiusdam uim et proprium optinet
locum, purum et sine coniunctione praedicatum nihil significat, sed
eam ipsam conpositionem, quam designat, cum fuerint coniuncta ea
quae conponuntur, significare potest, sine compositis uero quid
significet non est intellegere
423
.
Embora os autores dos séculos XI e XII tenham divergido sobre essa
questão
424
, a leitura de Porfírio feita por Boécio pretende que Porfírio não
tenha tomado est como um termo sem nenhum significado fora do contexto
proposicional, mas que ele não significa nada de verdadeiro ou falso.
Todavia, para Boécio, o verbo ser, sem operar nenhuma conjunção (união),
não significa nada.
Num outro trecho do IDI podem-se encontrar alguns dados a mais. Lá,
por exemplo, Boécio chama o verbo est de terceiro adjacente, porque,
423
IDI I, 77, 14 78, 8.
424
Cf. PINZANI, R., op. cit., p. 27.
198
embora se situe entre os termos do predicado, ele mesmo não é um
predicado como os outros termos, porque ele mesmo não se predica do
sujeito. Assim, na frase homo iustus est, o núcleo do predicado é iustus,
porque é ele que se atribui ao sujeito, e não est, que não passa de um
adjacente a iustus, predicando-se como um “terceiro” que compõe a
proposição como se não fizesse verdadeiramente parte dela, mas, antes,
como um indicativo da qualidade, o que, para Boécio, equivale a uma
espécie de predicação secundária e acidental:
Praedicatum autem dico in ea propositione quae ponit homo iustus est
iustus. Hoc enim praedicatum de homine est, est autem non
praedicatur, sed tertium adiacens praedicatur id est secundo loco et
adiacens iusto, tertium uero in tota propositione praedicatur, non
quasi quaedam pars totius propositionis, sed potius demonstratio
qualitatis. Non enim hoc quod dicimus est constituit propositionem
totam, sed qualis sit id est quoniam est adfirmatiua demonstrat. Atque
ideo non dixit tertium praedicatur tantum, sed tertium adiacens
praedicatur. Non enim positum tertium praedicatur solum, sed
adiacens tertium secundo loco et quodammodo accidenter
praedicatur
425
.
A forma verbal est, portanto, desempenharia, fundamentalmente, a
função de sinal da qualidade afirmativa da proposição, mas algumas linhas
adiante Boécio lhe reconhece uma outra função, própria de quando se
emprega essa forma verbal por si só, sem um outro predicado. Nesse caso,
est significaria existir o que Boécio traduz por uiuit e philosophus seria
um adjunto do sujeito, ou, como explica o texto, um segundo sujeito.
Assim, em português dir-se-ia “Sócrates filósofo é” (“O filósofo Sócrates
existe” ou “Sócrates, que é filósofo, existe”), mas, em latim, a proposição
continua a mesma e a forma est, portanto, deixa de ser adjacente, para ser
empregada de forma absoluta:
425
IDI IV, 265, 22 266, 6.
199
Potest etiam sic intelligi: idcirco dixisse Aristotelem est in his
tertium adiacens praedicari, quoniam possit aliquotiens et per se
praedicari, ut si quis dicat Socrates philosophus est, ut propositio
haec hoc sentiat: Socrates philosophus uiuit. Est enim pro uiuit
positum est. Si quis ergo sic dicat, duo inueniuntur subiecta, est uero
solum praedicatur, non etiam adiacens. Quod enim dicimus Socrates
philosophus utraque subiecta sunt, est autem praedicatur solum
426
.
Entretanto, uma proposição como Socrates philosophus est, por si
mesma, ou seja, isolada de seu contexto significativo, não permite
identificar as diferentes possibilidades de relação entre seus termos, de
modo que, além do sentido segundo o qual ao sujeito composto Socrates
philosophus liga-se o verbo est com o significado de existir ou viver, seria
possível pensar também que Socrates seria sujeito e philosophus est uma
composição predicativa com dois possíveis sentidos: que a Sócrates se
atribui o filosofar (portanto, a frase Socrates philosophus est significaria
“Sócrates filosofa”) ou que a Sócrates se atribui o “ser filósofo” (e a frase
possuiria o sentido forte de “Sócrates ‘é filósofo’”). Em todo caso, a
proposição voltaria a ter apenas um sujeito (Socrates) e dois predicados
(philosophus e est); entretanto, Boécio não logra explicar em que sentido se
deve falar de “dois predicados”, uma vez que est volta a ser um terceiro
adjacente:
Si quis autem dicat sic Socrates philosophus est, ut non iam Socratem
philosophum esse atque uiuere, sed Socratem philosophari et
philosophum esse enuntiatione significet, tunc inuenitur unum
subiectum, duo praedicata. Socrates enim subiectum est, philosophus
autem et est praedicata, quorum philosophus quidem principaliter
praedicatur, est autem adiacens philosopho et ipsum praedicatur, sed
non simpliciter praedicatur, sed adiacens
427
.
426
IDI IV, 266, 7-15.
427
IDI IV, 266, 15-23.
200
4. Significado e verdade das proposições.
A longa tradição de debate e pesquisa em torno do capítulo 9 do De
interpretatione confirma que o comentário feito pelos diferentes autores a
esse texto é um bom “lugar” para se conhecer sua posição em matéria de
verdade da proposição
428
. Com efeito, parafraseando Aristóteles, Boécio
assim define:
(...) si omnis adfirmatio uel negatio uera uel falsa est (...) omne
necesse est esse uel non esse. (...) nam si uerum est dicere, quoniam
album uel non album est, necesse est esse album uel non album, et si
est album uel non album, uerum est uel adfirmare uel negare
429
.
No dizer de Boécio, Aristóteles pretende identificar uma conseqüência
entre as coisas mesmas e as proposições. Leia-se:
Si qua enim propositio de qualibet re dicta uera est, illam rem quam
dixit esse necesse est. Si enim dixerit, quoniam nix alba est, et hoc
uerum est, ueritatem propositionis sequitur necessitas rei. (...)
Amplius quoque et propositiones rerum necessitates sequuntur. Si
enim est aliqua res, uerum est de ea dicere quoniam est, et si non est
aliqua res, uerum est de ea dicere quoniam non est. Ita secundum
ueritatem adfirmationis et negationis necessitas rei substantiam
sequitur et rerum necessitas propositionum comitatur necessitatem
430
.
428
Cf. PINZANI, R., op. cit., p. 47.
429
IDI III, 204, 23-25; 205, 27-30.
430
IDI III, 206, 9-13; 17-23.
201
Boécio insiste, como se vê, numa dupla implicação entre as coisas e as
proposições: dado um certo estado de coisas
431
, a proposição que o enuncia
é verdadeira, e vice-versa, isto é, se uma proposição é verdadeira, então
subsiste o estado de coisas significado por ela. Todavia, Boécio também
insiste que essa dupla implicação não significa que a verdade da proposição
precede, na ordem natural, o fato por ela expresso, mas afirma, ao
contrário, que é a ordem das coisas que produz a verdade da proposição.
-se, assim, como Boécio se mantém em continuidade com a maneira
aristotélica de conceber a conseqüência entre proposições e fatos em termos
de uma relação de causa e efeito; no seu dizer, é o ser da coisa que é
princípio daquilo que se toma como subsistente. Se, portanto a proposição
homo est é verdadeira, então o homem é; e se o homem é, então a
proposição é verdadeira. Mas, como diz Boécio, prius est esse hominem,
posterius uerum de eo esse dictum, o que, entretanto, não contrasta com a
dupla implicação entre as coisas e as proposições, porque a relação de
conseqüência se baseia sobre uma equivalência lógica, enquanto a
prioridade das coisas sobre as proposições se baseia no fato de que aquelas
são a causa do subsistir destas. Ao mesmo tempo, define-se, por essa dupla
implicação, aquilo que se poderia chamar de as condições de verdade e o
significado das partes das expressões enunciativas. No IDI, Boécio fala da
proposição afirmativa a partir de uma relação de inerência entre o
significado do predicado e o do sujeito:
Adfirmatio namque in duobus terminis constans aliquid alicui inesse
significat, totam autem uim ipsius esse aliquid adnuere. Negatio
quoque aliquid alicui non inesse significat, sed tota uis ipsius est
abnuere atque disiungere
432
.
431
A expressão “estado de coisas”, aplicada, aqui, a Boécio, é sugestão de Roberto
Pinzani: Cf. PINZANI, R., op. cit., p. 48.
432
IDI II, 122, 7-11.
202
Curiosamente, o exemplo dado em seguida por Boécio lança mão do
verbo esse em sentido absoluto, não como terceiro adjacente, e consiste em
dies est: uma proposição como essa significaria, portanto, que um dos
termos inere ao outro, ou, então, que o significado de est se aplica ao
significado de dies. Na forma negativa, dies non est, pode-se dizer que,
sintaticamente, o predicado (o verbo) se aplica ao sujeito, mas seu
significado, ao contrário, é separado (tollere, diuidere) do significado do
sujeito. Adiante, Boécio considera diversos tipos de enunciados:
Omnis quidem adfirmatio et negatio inesse aut non inesse demonstrat.
Et quidquid enuntiatur aut de eo quod est esse proponitur, ut Plato
philosophus est (haec enim propositio Platoni philosophiam inesse
constituit), aut de eo quod est non inesse, ut Plato philosophus non
est: a Platone enim philosophiam diuidens eidem philosophiam non
inesse proponit. Ergo quoniam necesse est aut aliquid alicui inesse
dicere aut aliquid alicui non inesse, illud quoque necesse est id cui
inesse aliquid dicimus aut uniuersale esse (ut cum dicimus homo
albus est est albedinem uniuersali rei inesse monstramus id est
homini) aut certe particulare ac singulare, ut si quis dicat Socrates
albus est: albedinem enim Socrati singulari substantiae et proprietati
incommunicabili inesse signauit
433
.
Boécio parece empregar, indistintamente, exemplos como homo est
albus ou homo est animal, e isso faz supor que qualquer expressão em
posição predicativa, nesse contexto, é tomada como um determinativo da
forma abstrata significada como inerente ao sujeito.
Compreender o significado do sujeito, entretanto, não é menos
complicado do que compreender o significado do predicado
434
. Uma
dificuldade estaria em saber como interpretar, do ponto de vista categorial,
o sujeito da expressão homo ambulat, ao que Boécio responde que se trata
de uma espécie de “univocação” em que a proposição será verdadeira ou
433
IDI II, 140, 26 141, 11.
434
Cf. PINZANI, R., op. cit., p. 50.
203
falsa em função de se tomar homo como a espécie ou um indivíduo. Porém,
numa proposição com sujeito quantificado, dizendo, por exemplo, omnis
homo albus est e significando, portanto, uma multiplicidade de homens,
pareceria que na mesma proposição viriam significadas várias coisas. Assim
formula Boécio a questão:
(...) una illa propositio est, quae unam rem in adfirmatione uel
negatione significat. Sed hic quaestio est, quemadmodum uniuersalis
adfirmatio unam rem signicare possit, cum ipsa uniuersalitas non de
uno, sed de pluribus praedicetur. Nam cum dico omnis homo albus
est, singulos homines qui plures sunt significans multa in ipsa
adfirmationis praedicatione designo. Quocirca nulla erit adfirmatio
uel negatio uniuersalis, quae unam rem significare possit, idcirco
quod ipsa uniuersalitas de pluribus (ut dictum est) indiuiduis
praedicatur
435
.
Boécio responde a essa questão dizendo que o universal se diz da
proposição enquanto significa a unidade de uma coleção de expressões e
não os elementos gramaticais singulares. Por isso,
(...) cum dicimus omnis homo iustus est, non tunc singulos
intellegimus, sed ad unam humanitatem quidquid de homine dictum
est dicitur
436
.
Dito de maneira breve, o significado e a verdade da proposição, para
Boécio, define-se como uma relação de inerência fundamentada na
conseqüência existente entre as coisas e a sua dicção.
435
IDI, II, 178, 27 179, 8.
436
IDI II, 179, 12-15.
204
CAPÍTULO 3
A METAFÍSICA BOECIANA DO SER
O itinerário até aqui percorrido pôs em destaque, de início, a estrutura
do texto do DH, apresentando, também, alguns de seus principais
antecedentes histórico-teóricos (capítulo 1), para, em seguida, investigar a
semântica estabelecida por Boécio nos seus comentários a Porfírio e
Aristóteles, principalmente no que se refere ao núcleo lingüístico que ele
mesmo determina quando toma como componentes do discurso as palavras,
as noções e as coisas (capítulo 2). Ora, o objetivo desse percurso, como se
disse na Introdução, não é outro senão o de interpretar o DH a partir da
produção filosófica de Boécio anterior a esse tratado, donde a razão de se
investigar, aqui, a função que Boécio atribui aos componentes do discurso,
pois, conforme ensinam seus textos, a ordem do discurso traduz a ordem do
ser, de maneira que o estudo da significação das palavras e noções permite
conhecer algo da estrutura das coisas, ou, se se quiser, da estrutura dos
entes. Com essa “estrutura” visa-se, aqui, fundamentalmente, estudar a
distinção que sintetiza a metafísica de Boécio, ou seja, a distinção expressa
pelo segundo axioma do DH, segundo a qual são diversos o esse e id quod
est.
Além desse interesse “dogmático”
437
por fazer falar o pensamento
metafísico de Boécio a partir de sua obra ela mesma, uma outra razão que se
poderia dizer histórica consiste em lembrar que, antes de compor os
Opuscula sacra, Boécio havia dedicado cerca de vinte anos de sua vida
intelectual ao estudo, tradução e comentário de Porfírio e Aristóteles, para
437
Toma-se o termo “dogmático”, aqui, na acepção dada por Victor Goldschimidt em:
Goldschimidt, V. “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sitemas
filosóficos”. In: ____________. A religião de Platão. 2
a
ed. Trad. de Ieda e Osvaldo
Porchat Pereira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, pp. 139-147.
205
não mencionar novamente, aqui, Platão e todos os autores já elencados no
primeiro capítulo deste trabalho. Com efeito, se é verdade que o DH fora
escrito em 519 (quando Boécio tinha, portanto, cerca de 44 anos, isto é,
quando faltavam cinco ou seis anos para sua execução), havia, então, pelo
menos dezenove anos entre esse texto e o primeiro comentário de Boécio à
Isagoge (aquele em que se toma por base a tradução de Mário Vitorino). Em
508 ou 509, Boécio traduz ele mesmo a Isagoge e redige um segundo
comentário. Entre 510 e 512, enquanto ainda era cônsul, ele dá a conhecer
sua tradução e comentário das Categorias de Aristóteles, além de sua
tradução do Perì hermeneías, com um primeiro comentário elementar.
Posteriormente, em 515-516, ele publica seu segundo comentário ao Perì
hermeneías, dessa vez com um texto mais maduro e mais crítico do que o
primeiro. Vale dizer ainda que também são anteriores ao DH uma possível
tradução e comentário dos Analíticos (obra que se perdeu), a redação dos
tratados De syllogismo categorico, De diuisione liber e De hypotheticis
syllogismis, além da tradução e comentário dos Topica de Aristóteles (obra
que também não chegou até nós), além, provavelmente, do comentário aos
Topica de Cícero.
Toda essa produção de Boécio testemunha, portanto, um período de
estudos que não pode ser negligenciado na determinação dos conceitos e da
terminologia por ele empregados, embora a maioria dos comentadores
modernos interprete o DH isoladamente ou em cotejo apenas com os outros
Opuscula sacra
438
. Neste capítulo, pretende-se, ao contrário, levar a cabo
uma interpretação que considere o conjunto da obra de Boécio, servindo-se,
essencialmente, das conclusões obtidas nos dois capítulos anteriores. Para
438
Deve-se ao Prof. Lambert-Maria De Rijk a insistência sobre a necessidade de estudar
as posições semânticas de Boécio no conjunto de toda a sua obra e não apenas no
conjunto dos Opuscula. Cf. “Boèce logicien et philosophe: ses positions sémantiques et
sa métaphysique de l´être”. In: OBERTELLO, L. (ed.). Congresso internazionale di studi
boeziani. Atti. Roma: Herder, 1981, pp. 141-156. Cf., também, entre outros, MICAELLI,
C. Studi sui trattati teologici di Boezio. Nápoles: M. D'Auria, 1988; RODRÍGUEZ, J. A.
“Los conceptos esse et id quod est en Boecio”. In: Ciudad de Diós Revista
Agustiniana. El Escorial: Real Monasterio, vol. CCII, n. 1, janeiro-abril de 1989, pp.
613-656.
206
completar aquilo que se poderia chamar a “semântica” de Boécio, uma
primeira seção procurará investigar os conceitos-chave de sua metafísica,
interessando-se, sobretudo, por identificar os termos e expressões com que
ele traduz em latim o vocabulário grego do ser. Por fim, procurar-se-á
estabelecer um debate com os principais comentadores contemporâneos da
distinção boeciana expressa pelo princípio P2. Nesse sentido, o presente
capítulo estrutura-se, basicamente, em três grandes partes: (1) uma
investigação da tradução boeciana do vocabulário grego do ser; (2) uma
proposta de interpretação do princípio P2 registrado no DH; (3) um debate
com os principais comentadores contemporâneos do P2.
1. Os conceitos-chave da metafísica de Boécio.
Nesta primeira seção, procurar-se-á investigar as ocorrências dos
conceitos-chave da metafísica de Boécio, registrando-se principalmente as
opções terminológicas com que ele traduz Aristóteles e Porfírio. Para tanto,
acompanhar-se-á, segundo a ordem histórica de sua composição, cada uma
das obras de Boécio em que aparecem os conceitos que mais interessam
aqui.
1.1. Os comentários à Isagoge de Porfírio.
Em seu primeiro comentário à Isagoge, ao tratar dos gêneros e das
espécies, Boécio afirma que, se ambos podem ser contidos pelo intelecto,
além de poderem dizer-se subsistências, então também podem ser ditos
entes
439
. Aparece, portanto, pela primeira vez e declinado no nominativo
plural, o termo ens, que, na segunda edição de seu comentário (porque na
439
Cf. IPEP I, 74, 11-14.
207
primeira ele se serve da tradução de Mário Vitorino
440
), Boécio emprega
diretamente para traduzir o grego tÕ Òn
441
de Porfírio
442
.
Tanto no primeiro como no segundo comentário, Boécio explica
brevemente a formação desse termo. As formulações são as seguintes:
Flexus enim hic sermo est ab eo quod est esse, et in participii
abusionem tractum est propter angustationem linguae Latinae
compressionemque
443
.
Ab eo autem quod dicimus “est” participium inflectentes Graeco
quidem sermone Òn Latine ens appellauerunt
444
.
Como se vê, Boécio explica a formação de ens como um particípio
contracto do verbo esse, e afirma que essa contração supriria a carência do
particípio presente na língua latina. Nessa explicação observa-se, ainda, o
infinitivo esse propriamente dito, mas, quando Boécio encontra, na Isagoge,
a expressão aristotélica tÕ t… Ãn e•nai, prefere traduzi-la por um
substitutivo de esse, a perífrase id quod est esse. Assim, ao falar da
diferença como aquilo que divide o gênero, Boécio traduz a expressão
440
Sobre a versão de Mário Vitorino, cf.: MONCEAUX, P. “L’Isagoge latine de Marius
Victorinus”. In: Philologie et Linguistique. Mélanges offerts à Louis Havet. Paris:
Hachette, 1909, pp. 291-310.
441
Cf. IPES III, 220, 14.
442
Cf. PORFÍRIO, Isagoge 6, 1 (ed. Busse); 2, 2b6-11 (ed. Bekker); 6, 10, 2-4, p. 12 (ed.
L. Minio-Paluello); II, 10, p. 7 (ed. De Libera). As edições consultadas foram:
PORFÍRIO. Isagoge. Ed. A. Busse. Berlim: G. Reimer, 1887; _________.EIS TAS
KATHGORIAS PORFURIOU EISAGWGH”. In: ARISTÓTELES. Aristotelis opera. Vol. IV. Ed. I.
Bekker. 2ª ed. Berlim: W. de Gruyter, 1961, pp. 1-6; _________. Porphyrii Isagoge.
Translatio Boethii. In: ARISTÓTELES. Aristoteles latinus. Vol. I, 6-7 (Categoriarum
Supplementa). Ed. L. Minio-Paluello & G. Dod. Bruges & Paris: Desclée de Brouwer,
1966, pp. 1-31; _________. Isagoge. Ed. e trad. de Alain de Libera e Philippe Segonds.
Paris: Vrin, 1998, pp. 1-27. Nas citações da edição Busse, o primeiro número indica a
página, o(s) outro(s), a(s) linha(s). No caso da edição Bekker, o primeiro número indica
o parágrafo; o segundo, a página; a letra, a coluna; o(s) último(s) número(s), a(s)
linha(s). Nas citações da edição de Minio-Paluello, os dois primeiros números indicam a
mesma referência da edição Busse; o(s) outro(s) número(s) depois da segunda vírgula
indica(m) a(s) linha(s); o(s) último(s) número(s), a(s) página(s).
443
IPEP I, 74, 15-17.
444
IPES III, 222, 6-7 (negrito nosso). Todos os negritos nas citações são nossos.
208
porfiriana ¢llÓper e„j tÕ e•nai sumb£lletai kaˆ Ö toà t… Ãn e•nai
445
por sed quod ad esse conducit et quod eius quod est esse rei pars est
446
, de
modo que a diferença é aquilo que conduz “a isto que é o ser” da coisa e faz
parte dele.
Adiante, ao responder à questão quid est esse rei?, Boécio responde
dizendo que nihil est aliud nisi definitio
447
. Sobre a definição, diz ele:
Definitio est quidem quae quid una quaeque res sit, ostendit ac
profert, demonstraturque quid uni cuique rei sit esse per definitionis
adsignationem
448
.
Assim, a definição manifesta o ser da coisa, o seu quid (donde a
nomenclatura medieval da “qüididade”), e, desse ponto de vista, se a
diferença é substancial, ela entra na definição da coisa e produz, portanto,
espécies diferentes.
Quanto às expressões gregas tÕ t… ™sti e tÕ ÐpoiÒn t… ™st…n
449
, Boécio
as contrapõe e traduz por id quod quid est e id quod quale est, dizendo, por
exemplo, que a espécie e o gênero são predicados essencialmente do sujeito,
isto é, in eo quod quid est, ao passo que a diferença, embora pertença ao ser
445
PORFÍRIO, Isagoge 12, 1 (ed. Busse); 3, 4a5 (ed. Bekker); III, 13, p. 14 (ed. De
Libera). O texto grego estabelecido por Alain de Libera em sua edição da Isagoge
apresenta uma pequena variação com relação ao texto estabelecido por Bekker. Bekker
registra: ¢llÓper e„j tÕ e•nai sumb£lletai kaˆ e„j tÕ t… Ãn e•nai. As razões para
De Libera registrar tais variações devem-se, no seu dizer, à sua intenção de “aproximar-
se o mais possível” da forma que circulou entre os medievais (cf. ed. De Libera, p.
CXLII).
446
IPES IV, 272, 3-4. Cf. Porphyrii Isagoge. Translatio Boethii 12, 1, 7-8, 19 (ed.
Minio-Paluello); III, 13, p. 14 (ed. De Libera).
447
IPES IV, 273, 13.
448
IPES IV, 273, 17 274, 2.
449
Cf. PORFÍRIO, Isagoge 2, 1a38 e 1b19 (ed. Bekker); I, 5, p. 3 (ed. De Libera). O texto
da Isagoge estabelecido por Alain de Libera omite a expressão tò hopoión ti estín que
ocorre em Bekker 1b19, mas a respectiva tradução de Boécio registra in eo quod quale
quid sit (cf. ed. De Libera, I, 10, p. 4; cf. 3, 5, 3, 8 ed. Minio-Paluello).
209
do sujeito, se diz ao modo de qualidade, ou seja, in eo quod quale est
450
.
Diz Boécio:
Congruunt ergo sibi genus et species, quod genus et species ad
plurima praedicantur et utraque in eo quod quid sit. (...) Distant
autem, quod quamuis utraque ad plurima praedicentur et in eo quod
quid sit, genus praedicatur ad res specie differentes, species uero
dicitur ad res tantum numero differentes. (...) Accidens uero et
differentia eadem quoque una a genere differentia separantur, quod
genus in eo quod quid sit dicitur, differentia uero uel accidentia in
eo quod quale appellantur
451
.
Essa distinção entre uma predicação substancial e uma predicação
qualitativa ou acidental nasce da tentativa de responder às questões quid est
<x>? e qualis est <x>?
452
, pois ambas solicitam respostas diferentes: a
pergunta pelo quid solicita uma resposta construída na forma da predicação
substancial, enquanto a pergunta pelo qualis solicita uma resposta na forma
da predicação qualitativa ou acidental. Leia-se:
Nam cum animal genus sit, homo uero uel equus species, quales
utraeque species sint monstrat differentiae segregatio, ut dicamus
speciem esse hominis rationalem, speciem uero equi inrationalem. Si
enim quis interroget: quid est homo? animal dicitur. Si autem quis
dicat: qualis est homo? Rationalis respondetur. Ita semper differentia
non in eo quod quid sit, sed in eo quod quale sit appellatur. De
accidenti uero non dubium est, cum ipsa qualitas in accidentis
partibus componatur
453
.
Mas as perguntas pelo quid e pelo qualis, na realidade, derivam,
segundo Boécio, de uma pergunta mais fundamental, própria da razão
humana: trata-se de perguntar an sit <x>, além do cur sit <x>. Numa
palavra, o movimento da inteligência leva a perguntar-se:
450
Cf. IPEP I, 53-59.
451
IPEP I, 53, 7-9.12-14; 59, 4-6.
452
Todos os termos e expressões que, no presente capítulo, aparecem entre chaves (<>)
correspondem a acréscimos nossos para facilitar a compreensão do pensamento e das
construções gramaticais de Boécio.
453
IPEP I, 57, 6-14.
210
Aut enim aliquid an sit inquirit aut si esse constiterit, quid sit
addubitat
454
.
Da formulação dessas questões obtém-se outro dado importante para a
fixação da terminologia metafísica de Boécio, pois se observa, agora, um
uso “intransitivo”, absoluto, do infinitivo esse, afinal, perguntar o que é x
(quid sit <x>) é diferente de perguntar se x “é” (an sit <x>).
Essas mesmas perguntas, obedecendo ao ritmo argumentativo do
segundo comentário de Boécio à Isagoge, aplicam-se também àquilo que
Boécio chama de “noções” (intellectus), que, como se viu no capítulo
anterior, correspondem à significação das coisas, e, por sua vez, são
significadas pelas palavras. Fazendo referência à questão do estatuto dos
universais, cabe perguntar se eles são meras conceptiones animi ou se eles
são verdadeiramente res, quer dizer, perguntar se genera et species aut sunt
atque subsistunt aut intellectu et sola cogitatione formantur
455
. Esse tipo de
pergunta é importante, porque é justamente no contexto da sua posição que
aparece, já no primeiro comentário de Boécio à Isagoge, a expressão que
será retomada no princípio P2 do DH, qual seja, a expressão id quod est.
Diz Boécio:
Omne quod intellegit animus aut id quod est in rerum natura
constitutum, intellectu concipit et sibimet ratione describit aut id
quod non est, uacua sibi imaginatione depingit. Ergo intellectus
generis et ceterorum cuiusmodi sit quaeritur, utrumne ita intellegamus
species et genera ut ea quae sunt et ex quibus uerum capimus
intellectum, an nosmet ipsi nos ludimus, cum ea quae non sunt, animi
nobis cassa cogitatione formamus. Quod si esse quidem constiterit et
ab his quae sunt, intellectum concipi dixerimus, tunc alia maior ac
difficilior quaestio dubitationem parit, cum discernendi atque
intellegendi generis ipsius naturam summa difficultas ostenditur
456
.
454
IPES I, 137, 22-23.
455
IPES I, 161, 14-15.
456
IPES I, 160, 3-13.
211
Observa-se, de saída, como Boécio emprega a expressão id quod est
para referir-se a realidades constituídas na natureza das coisas, quer dizer,
realidades que existem realmente e não são apenas quimeras. É certo que,
nessa ocorrência, tem-se uma simples construção gramatical com pronome
relativo, pois o anafórico id equivale ao sujeito do verbo est, ligando-se a
ele pelo pronome relativo quod, mas o que se há de observar é que, no DH,
essa construção evoluirá para uma expressão independente que designa a
substância ou o ente. Para o momento, basta notar que essa construção
designa aquilo que realmente existe e que pode originar uma intelecção; na
contrapartida, aquilo que não existe (id quod non est) não pode originar
nenhuma intelecção, pois carece totalmente de conteúdo (ainda que esse
conteúdo seja quimérico
457
). Essa referência à existência real da substância
é ainda confirmado pelo exemplo da linha, pois, segundo Boécio, “isto que
(a linha) é” deve-se a um corpo, a ponto de, separada deste, ela não
subsistir. Nesse exemplo, Boécio associa, ainda, “isto que (a linha) é” (id
quod est) ao ser da linha, ao seu esse, que, na linguagem do primeiro
comentário à Isagoge, designa tanto o ente como a existência atual. Leia-se:
(...) linea in corpore quidem est aliquid et id quod est, corpori debet,
hoc est esse suum per corpus retinet. Quod docetur ita: si enim
separata sit a corpore, non subsistit; quis enim umquam sensu ullo
separatam a corpore lineam cepit
458
?
Nota-se, por esse exemplo, que, embora a linha não tenha um ser
separado, ela “é” realmente e subsiste num corpo; ela é um ente e pode
proporcionar um uerum intellectum, isto é, uma noção “constituída na
natureza das coisas”.
Mas Boécio também emprega a expressão id quod est para referir-se ao
modo acidental de ser, como no exemplo em que ele se refere a Sócrates:
estando atualmente ou potencialmente sentado, quer dizer, estando
457
A esse respeito, cf. capítulo 2, seção “2.4. Inexistentes”.
458
IPES I, 164, 17-21.
212
realmente sentado ou estando de pé, mas possuindo a capacidade de sentar-
se, Sócrates é um “ser que se senta”, isto é, que participa do “sentar-se”.
Nesse exemplo, “ser” equivale a “ser que senta”, pois “isto que é” Sócrates
é um “ser que senta”. Trata-se, pois, de um ser acidental:
Potest quaelibet illa res id quod est non esse, sed alio modo esse,
alio uero non esse, ut Socrates cum stat, et sedet et non sedet, sedet
quidem potestate, actu uero non sedet. Cum enim stat, manifestum est
eum non agere sessionem, sed potius standi inmobilitatem. Sed rursus
cum stat, sedet, non quia iam sedet, sed quia sedere potest; ita actu
quidem non sedet, potestate uero sedet
459
.
Mas, num outro trecho como o que segue, id quod est refere-se ao ser
substancial:
Dictum est saepius ea quae substantiam formant, nec remissione
contrahi nec intentione produci; uni cuique enim id quod est, unum
atquem idem est. Quodsi differentia specierum substantiam monstret,
species uero indiuiduorum, aequaliter utraque ab intentione et
remissione seiuncta sunt; quo fit ut aequaliter participentur
460
.
Os elementos que formam a substância não podem, pois, na realidade,
ser separados nem unidos por uma atividade cognoscitiva que os disperse
(remissio) ou os reúna (intentio), pois, com efeito, tais elementos não
podem ser “subtraídos por uma remissio nem produzidos por uma intentio”.
O que, porém, interessa aqui é observar o emprego curioso e já bastante
particular da expressão id quod est.
Em primeiro lugar, deve-se notar que o anafórico id, aqui, não tem um
objeto preciso, isto é, não remete diretamente a um sujeito, como nas
ocorrências anteriores. Por outro lado, além de aparecer regendo um dativo
(uni cuique), agora é o conjunto da expressão id quod est que exerce a
459
IPES IV, 264, 6-12.
460
IPES V, 325, 14 326, 1.
213
função de sujeito do verbo est: trata-se de duas ocorrências inéditas nas
quais Boécio afirma que, uni cuique, isto é, para cada substância, id quod
est é um e o mesmo, ou seja, “isto que é” cada substância é um e o mesmo.
Certamente, id quod est, neste exemplo, remete à substância em sua unidade
real, tal como o início do período afirmara, quer dizer, a substância que
operação intelectual alguma pode desfazer ou produzir. Nesse sentido, para
cada substância, id quod est, ou seja, “isto que é” cada uma, é único (um,
uno) e o mesmo. Trata-se, pois, da substância em sua unidade.
O conjunto desses exemplos mostra que, segundo a terminologia do
primeiro comentário de Boécio à Isagoge, a expressão id quod est implica
um aspecto existencial e um outro essencial ou qüiditativo (pois indica um
ente ao dizer, por exemplo, que o ser da linha “é” num corpo, e um algo, ao
dizer que ela é um aliquid), além de designar também o ser acidental ou já a
substância em sua unidade real. Somando-se esses dados com o fato de que
os universais, para Boécio, também são aliquid (enquanto subsistentes na
mente divina e nas coisas particulares, conforme se viu no capítulo
anterior), parece possível concluir que a entidade designada pela expressão
id quod est não seja necessariamente uma prèth oÙs…a, mas também uma
deÚtera oÙs…a.
Assim, a partir do primeiro comentário de Boécio à Isagoge pode-se
estabelecer o seguinte quadro de equivalências
461
:
461
Neste e nos próximos quadros de equivalência, as declinações em latim não
corresponderão sempre às declinações em grego. As razões disso são duas: em primeiro
lugar, porque nem sempre o sistema sintático latino corresponde ao sistema sintático
grego; em segundo lugar, porque se menciona a terminologia de Boécio geralmente no
nominativo (para o caso dos nomes e adjetivos) e no infinitivo (para o caso dos verbos),
ao passo que a terminologia de Porfírio e Aristóteles se mantém tal como ocorre no
texto original.
214
COMENTÁRIO DE BOÉCIO ISAGOGE DE PORFÍRIO SENTIDO
ens
tÕ Ôn
ente
esse
e•nai
sinônimo de ens;
sentido pressuposto em
id quod est esse
esse
e•nai
ser
(sentido absoluto)
id quod est esse
tÕ t… Ãn e•nai
ser
(essência, <qüididade>)
id quod quid est
tÕ t… ™sti
essência
(isto que é o quê,
a natureza)
id quod quale est
tÕ ÐpoiÒn t… ™st…n
qualidade
(isto que é o diferencial)
Figura 4
No que se refere à expressão id quod est, podem identificar-se, já no
primeiro comentário de Boécio à Isagoge, quatro empregos fundamentais,
sendo que o quarto constitui um emprego inteiramente sui generis:
OCORRÊNCIA SENTIDO
IPES I, 160, 3-13 entidade, ser em sentido absoluto
IPES I, 164, 17-21 essência ou <qüididade>
IPES IV, 264, 6-12 ser acidental
IPES V, 325, 14 326, 1 a substância em sua unidade real
Figura 5
A partir desses quadros, vê-se, pois, que Boécio intercambia o termo
esse por id quod est esse, servindo-se dessa perífrase para traduzir a
expressão aristotélica tÕ t… Ãn e•nai. Extrai-se daí que o esse de Boécio é um
esse essentiatum”; é sempre um esse aliquid. Além disso, ele traduz o
Ôn grego pela forma ens, que supre a carência de particípio presente do
verbo esse em latim. Entretanto, para designar de maneira geral a entidade
(a constituição na natureza das coisas, ou seja, a existência real da
substância, seja ela uma prèth oÙs…a, seja uma deÚtera oÙs…a) e a
215
acidentalidade, Boécio emprega outra perífrase, id quod est, que designa
sempre algo real, algo que pode gerar uma verdadeira intelecção. Por fim,
num dos últimos capítulos de seu primeiro comentário à Isagoge, Boécio
emprega essa mesma perífrase com uma particularidade: ela não constitui
uma construção pronominal relativa, mas uma oração subjetiva; trata-se,
pois, de um emprego absoluto para designar a substância em sua unidade
real, e é segundo esse emprego que dela fará uso Boécio no DH.
1.2. O comentário às Categorias de Aristóteles.
O comentário de Boécio às Categorias reitera o emprego de id quod
quid est, id quod quale est e id quod est, lançando mão, ainda, de outras
expressões importantes como ipsum quod est, ipsum esse, esse e essentia.
No que se refere à expressão id quod quid est, Boécio a emprega já nas
primeiras páginas de seu comentário, ao tratar do parágrafo terceiro do
texto de Aristóteles. Como se sabe, Aristóteles, nesse trecho das
Categorias, afirma que aquilo que se predica do predicado também se
predica do sujeito ao qual se atribui esse predicado. Com efeito, “animal”
pode ser predicado de “homem”, e “homem” pode ser predicado deste ou
daquele indivíduo humano. Ora, se “animal” se predica de “homem” e se
“homem” se predica deste indivíduo, então “animal” também se pode
predicar deste indivíduo
462
. Por sua vez, ao reconhecer isso, Boécio emprega
a perífrase id quod quid est, referindo-se, portanto, à predicação substancial
ou à essência do sujeito. Leia-se:
Interrogantibus enim quid sit Socrates, hominem respondemus. At
uero de ipso homine in eo quod quid sit animal dicitur, in substantia
enim hominis animal praedicatur, atque ita fit ut animal quidem de
homine, homo uero de Socrate in eo quod quid sit, ut de subiecto
praedicentur. Ergo quoniam ista consequentia, et animal de Socrate in
462
Cf. ARISTÓTELES, Categorias III, 1b10ss.
216
eo quod quid sit praedicabitur. Potest enim dici interrogantibus quid
est Socrates, animal
463
.
No caso do predicado “branco”, ele pode igualmente ser atribuído a
Sócrates, mas não in eo quod quid sit, pois ele não indica sua substância:
(...) illa prior praedicatio, quae est, Homo albus est, secundum
accidens est, namque accidens, quod est album, de subiecto homine
praedicatur, sed non in eo quod quid sit, nam cum album sit
accidens, homo substantia, accidens de substantia in eo quod quid sit
praedicari non potest, ergo ista praedicatio secundum accidens
dicitur
464
.
A brancura será, pois, um atributo do sujeito segundo o acidente. Mas,
o que pensar da diferença, visto que ela não pode indicar uma característica
acidental, como faz a brancura, por exemplo, nem predicar-se
substancialmente, embora ela também se diga do sujeito, tal como o gênero
e a espécie?
Segundo Boécio, a diferença indica uma característica in eo quod quale
est
465
, sendo um tertium quid entre a substância e o acidente. Ela se predica
de múltiplas realidades “diferentes quanto à espécie”; trata-se, pois, de uma
qualitas substantialis, afinal ela indica uma qualidade que não se pode
separar da substância, embora ela mesma não indique a substância. Por
outro lado, ela também não indica um acidente, de maneira que ela se põe
entre este e a substância:
Concludendum est igitur differentiam, neque solum substantiam esse,
neque solum qualitatem, sed quod ex utrisque conficitur
substantialem qualitatem, quae permanet in natura subiecti, atque
ideo quoniam substantia participat, accidens non est, quoniam
qualitas est, a substantia relinquitur. Sed quoddam medium est inter
substantiam et qualitatem, quae quoniam in subiecto non est et
463
ICA I, 176B.
464
ICA I, 175D-176A.
465
Cf. ICA I, 192B.
217
substantia non est, proprium substantiae non est non esse in
subiecto
466
.
Esses exemplos mostram, portanto, como Boécio ratifica seu emprego
das expressões id quod quid est e id quod quale est. Quanto à expressão id
quod est, ela aparece, no comentário às Categorias, em correlação com as
expressões hoc ipsum quod est e ipsum esse.
A expressão hoc ipsum quod est aparece no contexto do comentário à
afirmação aristotélica segundo a qual a essência (oÙs…a) não admite “mais”
ou “menos”. Com efeito, ao falar das substâncias segundas, Aristóteles
afirma, por exemplo, que a espécie é “mais” substância do que o gênero, ao
mesmo tempo em que as substâncias primeiras são aquelas que se dizem
propriamente substâncias acima de tudo. A razão desse maior grau de ser
consiste, como se sabe, no fato de que aquilo do qual se diz ter “mais” ser
comporta-se como sujeito para outras substâncias. Assim, as substâncias
primeiras são sujeitos para as restantes, e as espécies, por sua vez, também
desempenham o papel de sujeitos para os gêneros
467
. Entretanto, dizer que a
essência não admite gradação significa dizer que uma coisa, seja ela qual
for, não se diz “mais” ou “menos” isto que ela é
468
. Essa afirmação faz
lembrar as expressões empregadas na Metafísica, quando Aristóteles fala
disso que a substância é enquanto coisa precisa (Óper g¦r tÒde t… ™sti tÕ
t… Ãn e•nai
469
): trata-se, por exemplo, no caso do homem e do animal, disso
que é o ser homem e o ser animal (tÕ Óper ¢nqrÒpJ ™•nai À zJJ e•nai
470
).
Nas Categorias, Aristóteles apresenta praticamente a mesma expressão (Óti
˜k£sth oÙs…a toàqÓper ™stˆn oÙ lšgetai m©llon kaˆ Âtton
471
), e
466
ICA I, 192BC.
467
Cf. ARISTÓTELES, Categorias V, 2b7ss.
468
Cf. idem 3b33-34.
469
ARISTÓTELES, Metafísica Z, 4, 1030a3.
470
idem G, 4, 1007a22-23.
471
ARISTÓTELES, Categorias V, 3b36-37.
218
Boécio, por sua vez, traduz toàqÓper ™stˆn por hoc ipsum quod est. Diz
ele:
(...) quoniam unaquaeque substantia, hoc ipsum quod est, non dicitur
magis et minus, ut si est haec substantia, homo, non est magis aut
minus homo, nec ipse seipso, nec alter altero, non est enim alter
altero magis homo, sicut est album alterum altero magis album, et
bonum alterum altero magis bonum
472
.
Neste exemplo, como se vê, a expressão boeciana hoc ipsum quod est é
empregada como sinônimo de oÙs…a, “isto mesmo que <a substância> é”.
Boécio repete essa expressão quando comenta o pensamento aristotélico
sobre a relação (a predicação prÒj t…); porém, nessa ocorrência (que se
trata de uma tradução), observa-se certa variação de sentido:
Ad aliquid uero talia dicuntur, quaecumque hoc ipsum
quod sunt aliorum esse dicuntur, uel quomodolibet aliter
ad aliud, ut maius id quod est alterius dicitur, aliquo
enim maius dicitur, et duplum alterius dicitur hoc ipsum
quod est, alicuius enim duplum dicitur. Similiter autem et
alia quaecumque sunt huiusmodi
473
.
Segundo Aristóteles, uma coisa é chamada relativa quando se diz que
ela é, ela mesma, aquilo que ela é com respeito a uma outra coisa
474
. Por
exemplo, x é dito maior ou duplo com referência a uma outra coisa, como se
ele, x, fosse, ele mesmo (toàqÓper), aquilo que ele é dito ser com relação
à outra coisa. Ao traduzir Aristóteles, Boécio emprega hoc ipsum quod sunt
para dizer aÙt¦ ¤per ™st…n, e id quod est para dizer toàqÓper ™stˆn.
Para compreender melhor o emprego boeciano das expressões hoc
ipsum quod sunt e id quod est é preciso destacar, antes de tudo, que a
predicação relativa, como seu próprio nome indica (prÒj t…; ad aliquid
472
ICA I, 196D.
473
ICA II, 216D.
474
ARISTÓTELES, Categorias VII, 6a36-37.
219
em função de algo”) não é uma predicação substancial, e, como tal, não
manifesta a essência da coisa. Em vez disso, trata-se de uma predicação que
diz o que a substância é em função do advento de algo exterior. No DT, ao
comentar a categoria de relação, Boécio afirma:
Non igitur dici potest praedicationem relatiuam quidquam rei, de qua
dicitur, secundum se uel addere uel minuere uel mutare. Quae tota
non in eo quod est esse consistit, sed in eo quod est in comparatione
aliquo modo se habere, nec semper ad aliud sed aliquotiens ad idem.
Age enim, stet quisquam. Ei igitur si accedam dexter, erit ille sinister
ad me comparatus, non quod ille ipse sinister sit, sed quod ego dexter
accesserim. Rursus ego sinister accedo: item ille fit dexter, non quod
ita sit per se dexter uelut albus ac longus, sed quod me accedente fit
dexter atque id quod est, a me et ex me est, minime uero ex sese.
Quare quae secundum rei alicuius, in eo quod ipsa est, proprietatem
non faciunt praedicationem, nihil alternare uel mutare queunt
nullamque omnino uariare essentiam
475
.
A observação final de Boécio, nesse trecho do DT, mostra-se útil para
a compreensão das expressões hoc ipsum quod sunt e id quod est, pois ela
insiste que a predicação relativa não corresponde a uma “dicção” da
essência, mas à indicação de uma característica que a substância apresenta
enquanto mantém-se em relação com outra substância. Dessa perspectiva, as
perífrases hoc ipsum quod sunt e id quod est não indicam a essência das
coisas que se dizem ad aliquid, mas indicam as coisas elas mesmas,
enquanto substâncias que se põem em relação com outra(s) substância(s).
Não se trata, pois, de interpretar “isto mesmo que <as coisas> são” ou “isto
que <a coisa> é” como dicções da essência, ou seja, como se, ao dizer
“isto”, Boécio se referisse àquilo que a coisa é essencialmente; trata-se, ao
contrário, do “isto” da coisa concreta com relação a outra substância,
aquele “isto” que se pode indicar com um apontar de dedos
476
.
Vale dizer ainda que o emprego da expressão hoc ipsum quod sunt
assemelha-se, indiscutivelmente, ao emprego de id quod sunt no DH, pois,
475
DT V [295]-[305].
476
Cf. IPES III, 234, 1.
220
nesse opusculum, Boécio afirma claramente que id quod sunt, ou seja, “isto
que elas são”, as coisas o devem ao ser. Ora, como já se indicou acima, ao
abordar-se o primeiro e o segundo comentário boeciano à Isagoge, o esse,
para Boécio, é um esse essentiatum”, e, com efeito, ver-se-á adiante que
sua concepção do ser não corresponde à concepção de um ser
indeterminado, como seria, por exemplo, o ser de Porfírio. Então, se é
assim, o ser das coisas determina sua substância, e “isto que <elas> são”,
quer dizer, o ser esta ou aquela substância concretamente, elas o devem ao
ser. Ademais, já no comentário às Categorias Boécio passa a traduzir o
aÙt¦ ¤per ™st…n de Aristóteles por id quod sunt
477
.
Dessa perspectiva, compreende-se também o emprego de id quod est,
pois, segundo Boécio, “o maior se diz <ser> ‘isto que <ele> é’ de outro”,
quer dizer, quando algo é maior do que outro, sua “maioridade” se diz de tal
modo que “isto <mesmo> que <este algo> é” (id quod est) parece ser “maior
em si”, independentemente da relação com o que lhe é menor. Dito de outra
maneira, quando algo é dito “maior”, ele é sempre dito maior com relação a
outro algo que lhe seja, evidentemente, menor; ora, isto que é maior é dito
“ser maior” como se sua “maioridade” fosse uma sua característica própria,
ao passo que, na verdade, ela não é senão um atributo que se lhe predica
quando se o toma em relação com o que lhe é menor.
A respeito, portanto, das expressões hoc ipsum quod sunt e id quod est,
pode-se dizer que ambas remetem à substância individual concreta e não à
essência. Entretanto, deve-se observar a variação de sentido que ocorre com
a expressão hoc ipsum quod sunt, pois, quando Boécio a utiliza,
empregando, porém, o verbo no singular (hoc ipsum quod est), ela se revela
um sinônimo de essência, quer dizer, ela exprime o ser determinado de cada
substância ou ente, mas, quando ele a utiliza, empregando, porém, o verbo
no plural, ele parece adiantar a expressão que ele mesmo há de preferir já
no ICA e, depois, também no DH. Trata-se da perífrase id quod sunt, que
477
Cf. ICA II, 219C: Ad aliquid ergo sunt quaecumque id quod sunt aliorum esse
dicuntur, uel quomodolibet aliter ad aliud, ut mons magnus dicitur ad alium.
221
corresponde a id quod est, com a única diferença da flexão verbal, pois
ambas designam a substância ou o ente.
Adiante, ainda no contexto das discussões sobre a categoria de relação,
Boécio registra uma outra expressão inédita para falar da relação em
sentido em forte, isto é, para falar daqueles casos em que se dá uma relação
no sentido próprio da categoria correspondente. Com efeito, para que isso
ocorra, não basta que uma coisa esteja em relação com outra de qualquer
forma, mas é necessário que em seu ser mesmo ou no que a coisa mesma é
esteja inscrita a relação. No texto de Aristóteles, essa problemática surge da
dificuldade segundo a qual nenhuma substância seria admitida entre os
relativos, e, para escapar a tal dificuldade, é preciso conceber a existência
de coisas para as quais o ser é o mesmo (oŒj tÕ e•nai taÙtÒn) que o fato de
ter uma certa relação com alguma outra coisa
478
. Dito de outra maneira,
trata-se de realidades cujo ser mesmo se reduz a ser numa certa relação com
alguma coisa. No texto de Boécio, encontra-se uma tradução bastante direta
da expressão aristotélica oŒj tÕ e•nai taÙtÒn. Ele a traduz como ipsum
esse:
(...) sed sunt ad aliquid, quibus hoc ipsum esse, est ad
aliquid quodammodo se habere, fortasse aliquid ad ista
dicetur
479
.
Ao comentar esse texto, Boécio emprega novamente as duas expressões
por ele já utilizadas: ele fala de coisas que são ditas <serem> “isto que elas
são” de outras
480
, e, em seguida, dá como exemplo “isto que é” uma cabeça,
pois uma cabeça é dita “cabeça de algo que tem cabeça”. No limite, poder-
se-ia imaginar que, concebida sem relação com um corpo, isto que se chama
de cabeça deveria ser chamado de outra maneira, pois cabeça” implica a
478
Cf. ARISTÓTELES, Categorias VII, 8a28-37.
479
ICA II, 235A.
480
Dito de outra maneira, para toda substância x, x é dito ser “isto que ele é” de outro.
222
relação com um corpo. Seja como for, o que interessa aqui é notar o
emprego das expressões id quod sunt e id quod est, pois a primeira se
mostra como um sinônimo plural de hoc ipsum quod est ou mesmo um
sinônimo de ipsum esse, enquanto a segunda, se não se pode dizer um
sinônimo de substantia, ao menos se pode afirmar que ela é empregada
novamente num contexto de referência a uma substância determinada, como
é o caso de uma cabeça:
(...) si ad aliquid illa sunt, quaecumque id quod sunt aliorum
dicuntur, ut id quod est caput capitati dicitur caput (...)
481
.
Algumas linhas abaixo, Boécio combina numa mesma frase as
expressões id quod sunt e ipsum esse, e o contexto é ainda o mesmo da
questão da predicação relativa segundo o ser da coisa:
(...) nec magis illa esse ad aliquid, quae id quod sunt aliorum
dicuntur, potius quam ea quibus ipsum esse est ad aliquid
quodammodo se habere. (...) nom enim in eo quod est dici, ad aliquid
consideramus, sed in eo quod est esse
482
.
Esse esclarecimento de Boécio mostra como se contrapõem, na questão,
o ser e o dizer, pois, conforme seu texto, não se trata apenas de um
problema de linguagem (dici), mas de ser (esse).
Ora, poder-se-ia pensar que, nesse excerto, Boécio não apenas cruza as
expressões id quod sunt e ipsum esse, mas também id quod est, afinal, essa
construção aparece declinada na perífrase in eo quod est esse. Todavia, se
se interpretar essa perífrase como um emprego declinado de id quod est,
criar-se-á o problema de explicar algo sem sentido como seria uma
expressão do gênero “isto que é ser”, ou ainda, “substância ser”. Tal
481
ICA II, 235B.
482
ICA II, 235B.
223
expressão não seria contraditória apenas com o contexto do pensamento
boeciano (segundo o sentido que aqui se pretende atribuir à perífrase id
quod est), mas também com o da própria afirmação em que ela ocorre no
comentário de Boécio às Categorias. Desse ponto de vista, id quod est,
aqui, não parece senão um designativo do ser no sentido da natureza, da
essência, “disto que é o ser”, por oposição a isto que se diz (in eo quod est
dici), como, aliás, se comprova pela continuação da argumentação de
Boécio, algumas linhas adiante:
Ergo relatiuorum hoc est esse, id est haec eorum natura atque
substantia est, ut id quod sunt ad aliquid referantur, id est non
solum referri dicantur, sed etiam referantur. Atque hoc est quod ait,
sed sunt ad aliquid quibus hoc ipsum esse est ad aliquid quodammodo
se habere, ac si diceret quorum substantia est ad aliquid aliud referri,
et quae ita sunt ut ipsa id quod sunt ad aliud referantur, et esse
eorum sit ad aliquid aliud referri, sed non omnia quae dicuntur ad
aliud, et esse de alio mutuantur
483
.
-se, pois, como Boécio emprega, em correlação direta, os termos
esse, natura e substantia, ligando a eles, ainda, as expressões id quod sunt
e ipsum esse.
Quanto ao termo esse, Boécio continua a empregá-lo em seu
comentário às Categorias, mas num contexto diferente e em correlação com
um outro termo, até então inédito em seu comentário. O termo é essentia e o
contexto é o da análise dos opostos que são a afirmação e a negação. Com
efeito, procurando comprovar a verdade ou a falsidade das proposições
contrárias que têm “Sócrates” como sujeito, tanto no caso em que exista um
Sócrates como no caso em que não exista, Aristóteles emprega o verbo
e•nai em sentido absoluto, quer dizer, existencial, seja na forma participial
Ôntoj Sokr£touj ou m¾ Ôntoj Sokr£touj, seja na forma pessoal e
483
ICA II, 236BC.
224
condicional ™£n te Ï ™£n te m¾ Ï
484
. Boécio traduz essas formas
gramaticais pela construção de cum mais subjuntivo presente:
Sanum namque esse Socratem, ad languere Socratem contrarium est,
sed neque in his necessarium est alterum semper uerum, alterum
autem falsum esse, cum enim Socrates sit, erit illud quidem uerum,
illud uero falsum; cum uero non sit, ambo falsa sunt, neque enim
languere, neque sanum esse, uerum est, cum non sit ipse Socrates
omnino
485
.
O verbo esse (sit), aqui, é claramente empregado num uso absoluto,
quer dizer, “intransitivo”, em sentido existencial, o que se confirma pela
continuidade do comentário de Boécio, quando ele equipara o verbo esse a
uiuere (Socrates uiuit) e subsistere (Socrates subsistit)
486
. E é pela
expressão secundum essentiae consequentiam que Boécio traduzirá a
perífrase aristotélica kat¦ t¾n toà ¢koloÚqhsin para falar do quinto modo
de anterioridade, que é um modo proveniente da causalidade. Assim, tudo o
que, de alguma forma, é causa de outra coisa, se diz, na linguagem
aristotélica, prÒteron e„kÒtwj fÚsei (“anterior por natureza”). Assim, o
uso boeciano de essentia, neste caso, é um uso semelhante ao esse absoluto,
quer dizer, ao esse em sentido existencial, e o exemplo de Boécio considera
o ser como causa da verdade da proposição, de modo que tÕ e•nai
¥nqrwpon será a causa de a proposição “o homem é” ser verdadeira para o
caso de o homem realmente existir.
O plano ontológico seria, portanto, o fundamento do plano lógico-
lingüístico, e, assim, para as coisas reversíveis “segundo a consecução
existencial” (kat¦ t¾n toà e•nai ¢koloÚqhsin), o que é causa da
existência de um outro é-lhe anterior por natureza
487
. Boécio, por sua vez,
empregará novamente o verbo esse em sentido absoluto (falando, por
484
Cf., respectivamente, ARISTÓTELES, Categorias XI, 13b16-17; 25-26; 28.
485
ICA III, 278D-279A.
486
Cf. ICA III, 280CD.
487
Cf. ARISTÓTELES, Categorias XII, 14b12-13.
225
exemplo de “ser homem” e associando esse, em seu comentário, ao termo
subsistentia
488
), mas será pelo termo essentia que ele traduzirá o e•nai de
kat¦ t¾n toà e•nai ¢koloÚqhsin:
Videtur autem praeter eos qui dicti sunt, alter esse prioris modus.
Eorum enim quae conuertuntur secundum essentiae consequentiam,
id quod alterius quolibet modo causa est, digne prius natura dicitur
489
.
Posteriormente, Boécio preferirá o verbo esse ao substantivo essentia
para traduzir a conseqüência ou reversibilidade existencial. Assim, ao tomar
o caso dos gêneros e as espécies, ele diz que os gêneros são sempre
anteriores às espécies, embora eles não se convertam segundo a
reversibilidade existencial implicada, como se viu acima, pela relação
ontológico-lingüística da proposição e o evento real. Ao contrário, não é
porque “ser animal” está implicado em “ser um animal aquático” que se
exige, na contrapartida, que “ser um animal aquático” também esteja
implicado em “ser animal”. Ao dizer isso, Boécio emprega o gerundivo
essendi, que, como se sabe, é uma espécie de declinação do infinitivo.
Neste caso, trata-se do infinitivo esse:
Genera uero semper speciebus priora sunt, neque enim conuertuntur
secundum essendi consequentiam: ut cum sit aliquid aquatile
quidem, est animal; cum uero sit animal, non est necesse ut sit
aquatile
490
.
Entretanto, ao comentar esse mesmo texto, Boécio volta a substituir,
como já fizera anteriormente
491
, o termo esse por subsistentia, empregando a
expressão subsistentiae consequentia:
488
Cf. ICA IV, 286A.
489
ICA IV, 285D.
490
ICA IV, 288C.
491
Cf. ICA IV, 286A.
226
Genera autem semper priora sunt, non enim conuertuntur secundum
subsistentiae consequentiam
492
.
A partir da leitura desses textos, observando-se principalmente a
associação entre esse e subsistentia, pode-se concluir que essentia, para
Boécio, é a substantivação de esse, assim como subsistentia é a
substantivação de subsistere
493
. Será o contexto que permitirá distinguir
entre o emprego existencial ou não do verbo esse. Em todo caso, o sentido
de essentia, nos excertos transcritos acima, não parece ter nenhuma
conotação contraposta ao de esse
494
.
A propósito, vale lembrar aqui que o termo oÙs…a, nos debates
cristológico-trinitários dos primeiros séculos, correspondia a essentia
entendido como natureza, mas, ao ser traduzido em latim, ele recebia como
equivalente o termo substantia, pois essentia conservava, ainda, certa
estranheza para o uso latino. Essa ambigüidade (que, aliás, como se sabe,
possuía um forte antecedente no emprego aristotélico de oÙs…a) tornava
difícil traduzir em latim a oposição teológica entre oÙs…a e ØpÒstasij.
Boécio, por sua vez, bastante consciente da história do vocabulário do ser,
mantém-se fiel ao seu princípio registrado no CEN
495
e reserva o termo
substantia para a tradução do termo oÙs…a mediado pelo que os gregos
passaram a designar, na linguagem filosófico-teológica, como ØpÒstasij,
ou seja, a noção de substrato, que está em continuidade com a oÙs…a
entendida por Aristóteles como Øpoke…menon
496
. Entretanto, para designar
oÙs…a entendida como e•doj, Boécio emprega essentia, reconhecendo-lhe o
sentido, já usual na época, que o consagrará como tradução de oÙs…a. É
492
ICA IV, 288D.
493
Cf. CEN III [205].
494
Lembre-se também que, no DT, essentia é sinônimo de forma cf. DT V [295]-[305].
495
Cf. CEN III [195]-[200]: essentiae in uniuersalibus quidem esse possunt, in solis
uero indiuiduis et particularibus substant.
496
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica H, 1042a13.
227
curioso notar ainda que, nos seus comentários a Aristóteles, Boécio
emprega subiacere em vez de substare, que é o termo preferido no CEN.
Com efeito, subiacere é a tradução literal de Øpoke‹sqai e o uso diferente
talvez possa ser explicado pela distinção introduzida por Boécio, no CEN,
entre subsistentia e substantia, na qual Øf…stasqai e ØpÒstasij referem-
se a substantia (com base na correspondência etimológica), enquanto
oÙsiîsqai e oÙs…wsij correspondem a subsistere. Assim, substantia
assume o significado de subiectum; ØpÒstasij, o de Øpoke…menon. No que
se refere ao termo essentia, é Boécio quem lhe dá direito de cidadania
filosófica, como tradução latina de oÙs…a, depois de um longo percurso que
remonta a Quintiliano e Plauto, passando por Agostinho, Macróbio, Apuleio
e Sêneca. De um modo ou de outro, experimentava-se certa dificuldade nas
traduções, especificamente diante da impotência de ter de exprimir o tÕ Ôn
dos filósofos gregos. Por outro lado, autores como Irineu de Lião, por
exemplo, desconheciam essentia, enquanto Tertuliano a empregara
pouquíssimas vezes e Mário Vitorino a repugnara
497
.
Concluindo a presente incursão pela terminologia do comentário
boeciano às Categorias, é possível estabelecer o seguinte quadro de
equivalências:
COMENTÁRIO DE BOÉCIO
(ICA)
CATEGORIAS DE
ARISTÓTELES
SENTIDO
id quod quid est
tÕ t… ™sti
essência, <qüididade>
id quod quale est
tÕ poiÒn
qualidade, diferença
hoc ipsum quod est
toàqÓper ™stˆn (oÙs…a)
“isto mesmo que <a
essência> é”; essência,
natureza
hoc ipsum quod sunt
aÙt¦ ¤per ™stˆn
“isto mesmo que são”
<as substâncias quando
elas entram em relação
com outra(s)>;
essência, natureza
497
GHELLINCK, J. “L’entrée d’essentia, substantia et autres mots apparentés dans le latin
médiéval”. In: Archivum Latinitatis Medii Aevi. Bruxelas: Sécretariat Administratif
de L’U.A.I., 1942, pp. 77-112.
228
hoc ipsum quod sunt substância (ente)
id quod est
toàqÓper ™stˆn
“isto que é” <uma
substância quando ela
entra em relação com
outra substância>;
substância (ente)
id quod sunt
sinônimo de hoc ipsum
quod sunt; substância,
ente
id quod sunt
sinônimo plural de hoc
ipsum quod est e de
ipsum esse; essência,
natureza
ipsum esse
oŒj tÕ e•nai taÙtÒn
o ser mesmo,
<qüididade>
esse
e•nai; tÕ e•nai taÙtÒn
ser, <qüididade>
esse
Ôntoj Sokr£touj /
m¾ Ôntoj Sokr£touj /
e¥n te à e¥n te m¾ Ã
ser (sentido absoluto),
existir
natura
<e•nai>
natureza; sinônimo de
esse, essência
substantia
<e•nai>
substância; sinônimo de
esse, essência
uiuere
viver; sinônimo de esse;
existir
subsistere
subsistir; sinônimo de
esse; existir
essentia
e•nai
<existência>; sinônimo
de esse, existir
Figura 6
1.3. O segundo comentário ao De interpretatione de Aristóteles.
Seguir-se-á, aqui, o costume dos comentadores modernos de estudar
diretamente o segundo comentário de Boécio ao Perì hermeneías, sem
deter-se na primeira edição, porque não parece haver nenhuma razão
importante que leve a considerá-la em específico. Além disso, o segundo
comentário, mais maduro e mais crítico, retoma a terminologia do primeiro,
ampliando consideravelmente as referências aos autores gregos, a ponto de
ficar conhecido como o segundo e “grande” comentário de Boécio, ao lado
da também segunda e mais ampla edição de seu comentário à Isagoge.
As primeiras expressões que interessa destacar no comentário de
Boécio consistem em hoc quod est e sua negação hoc quod non est. Ambas
229
aparecem em sua tradução do De interpretatione 9, 19b3, quando
Aristóteles afirma não ser necessário que de toda afirmação e negação
contrapostas uma seja verdadeira e outra, falsa. Em sua versão, Boécio
traduz o grego ™pˆ tîn Ôntwn e ™pˆ tîn m¾ Ôntwn por hoc quod est e hoc
quod non est, declinadas no ablativo plural:
Neque enim quemadmodum in his quae sunt, sic se habet
etiam in his quae non sunt, possibilibus tamen esse aut
non esse
498
.
As mesmas expressões aparecem quando Boécio traduz tÕ Ôn e tÕ m¾
Ôn:
Igitur esse quod est, quando est, et non esse quod non
est, quando non est, necesse est
499
.
Essas formas logo derivarão para a perífrase que mais interessa ao
presente trabalho investigar, qual seja, a perífrase id quod est. No final do
tratado, por exemplo, observa-se claramente o seu emprego independente,
tomado, neste caso, como sujeito da oração (sujeito de uma oração
subordinada de acusativo com infinitivo). Diz Boécio:
Nam qui negationem ponit id quod est dicit non esse, qui uero
priuationem id quod non est dicit esse. Cum igitur diuersum initium
et diuersa intentio quodammodo sit propositionum sub eadem
significatione, et quae earum magis uerae propositioni contraria sit et
secundum quem motum animi magis uera propositio perimatur
quaerendum est
500
.
498
IDI III, 249, 9-11.
499
IDI III, 240, 26-27. Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías 14, 19a23.
500
IDI VI, 470, 4-10.
230
Trata-se do momento em que Boécio comenta a contrariedade das
proposições. Com efeito, tomando os exemplos de Aristóteles
501
, Boécio
explica que a negação distingue-se da privação, pois dizer “o homem não é
justo” significa negar a justiça do homem, enquanto, na contrapartida, dizer
“o homem é injusto” equivale a privar o homem da justiça. Na positio
negationis, portanto, diz-se que o predicado não é algo, não é id quod est,
ao passo que, na privação, diz-se ser algo que não é. Assim, “justo” é um id
quod est, mas na negação se diz que “não é justo”; por outro lado, “injusto”
não é algo, ou seja, “é” um id quod non est, e, entretanto, na privação, diz-
se que ele “é”. O sentido, no limite, há de ser o mesmo. A diferença residirá
no enfoque de cada expressão lingüística.
Nessa ocorrência, como se observou acima, tanto a perífrase id quod
est como sua correspondente negativa id quod non est comportam-se como
sujeito acusativo de duas orações construídas com infinitivo. Depara-se,
portanto, com um emprego independente dessa expressão, quer dizer, não
um emprego relativo, típico do anafórico id, mas um emprego em que a
perífrase pratica ou sofre o verbo. Com efeito, pode-se observar como ela
designa a entidade do sujeito da proposição (nesse caso, a qualidade
acidental do sujeito real homem), e, por isso, é ela (id quod est) que “se
diz” não ser.
Esse emprego é confirmado pelo comentário de Boécio ao complexo
trecho do De interpretatione em que Aristóteles investiga a relação entre o
erro e a contrariedade das proposições
502
. Segundo o estagirita, o que torna
contrárias as opiniões não é o fato de elas versarem sobre assuntos
contrários, mas, sim, o fato de elas se comportarem de maneira contrária
sobre um mesmo assunto. Assim, se se toma a opinião (dÒxa) segundo a
qual o bem é bom, ao mesmo tempo em que se considera uma outra opinião,
segundo a qual o bem não é bom, além de uma outra, ainda, segundo a qual
o bem é algo que não pertence à natureza do bem, ver-se-á que, nessas
501
Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías 14, 23a27-23b2.
502
Cf. idem, 23b7-13.
231
condições, não se deve tomar como contrárias à opinião verdadeira nem a
opinião que atribui ao sujeito o que não lhe pertence nem a opinião que se
recusa a atribuir o que lhe pertence, pois somente serão contrárias as
opiniões nas quais reside um erro
503
.
Ao dizer isso, Aristóteles emprega o verbo Øp£rcein para indicar a
inerência do predicado ao sujeito da proposição, de maneira que o
predicado que pertence ao sujeito se diz tÕ Øp£rcon, enquanto aquele que
não pertence se diz tÕ m¾ Øp£rcon. Boécio, em seu comentário, traduz
Øp£rcein diretamente por esse, e tÕ m¾ Øp£rcon por quod non est;
Øp£rcon equivaleria, então, a quod est. Assim traduz Boécio:
Si ergo est, inquit, boni quoniam est bonum opininatio,
quae scilicet uera est, est autem quoniam non bonum est, quae
falsa est ac definita, est uero quoniam aliquid aliud est quod
non est neque potest esse, id est ea quae id esse adscribit quod
non est (...). In quibus est, inquit, fallacia, id est in quibus
principium fallaciae. Principium autem fallaciae unde ducitur? Ex his
ducitur, ex quibus sunt et generationes. Vnde autem sunt
generationes? Ex oppositis
504
.
Observa-se, por esse texto, que a qualidade inerente a um sujeito seria
um quod est, ou seja, “o que <esse sujeito> é”. Trata-se, portanto, de um
emprego relativo que difere do uso absoluto apontado acima para as
expressões sinônimas id quod est e id quod non est. Mas essas próprias
perífrases também possuem, em algumas ocorrências, um sentido relativo,
como mostra o seguinte exemplo:
503
Segundo o esclarecimento de J. Tricot, onde há erro, há contrariedade, porque o
juízo, nesse caso, é contrário à natureza da coisa. Assim, é nos opostos que reside o
erro, pois, segundo a linguagem aristotélica, é nas coisas sujeitas à geração (em toîs
phthartoîs) que se produz o erro, afinal, o erro é a geração de um juízo falso no
espírito. Como a geração se faz entre opostos (ela é um movimento do não-ser ao ser, de
um termo negado a um termo afirmado), é então entre opostos que reside o erro. Daí
resulta que a contrariedade consiste nos opostos da afirmação e da negação de um
mesmo atributo. Cf. ARISTÓTELES. Organon. Vol. I e II Catégories & De
l’interpretation. Nova tradução de J. Tricot. Paris: Vrin, 1989, p. 140, n. 2. Cf.
também o comentário de Attilio Zadro em: ARISTÓTELES. De interpretatione. Trad. de
Attilio Zadro. Nápoles: Loffredo Editore, 1999, pp. 377-381.
504
IDI VI, 477, 19- 24; 478, 10-14.
232
Potest, inquit, esse opinatio quaedam quae id quod est de unaquaque
re esse opinetur. Est etiam alia quae id quod non est rem ullam esse
arbitretur. Est alia quae id quod secum habet res ulla proposita non
eam habere putet. Est rursus alia quae id quod est res ipsa non eam id
esse arbitretur
505
.
Assim, as expressões quod est e quod non est variam como id quod est
e id quod non est em seu sentido equivalente a tÕ Øp£rcon e tÕ m¾
Øp£rcon. Assim, aquilo de que se fala aparece designado pelo substantivo
res, e o enunciado ou predicado que se atribui a essa realidade é
representado pela perífrase id quod est, ou seja, “isto que <a coisa> é”.
Note-se, ainda, a expressão id quod secum habet, que se refere aos
predicados ao modo de concomitantes ou acidentes
506
. Entretanto, um
exemplo como o que segue esclarece melhor o sentido do emprego relativo
de id quod est e seu correlato negativo. Leia-se:
(...) illa [opinio] uero quae id quod bonum est utile esse opinatur per
accidens boni uera est. Quare propinquior naturae bonitatis est ea
quae id quod bonum est bonum esse arbitratur quam ea quae id quod
bonum est utile. (...) id quod est bonum et bonum est et non malum,
sed quod bonum est secundum ipsam rem est, quod uero malum non
est accidit ei. Nam id quod bonum est per naturam bonum est, quod
uero malum non est secundo loco et quasi accidenter est
507
.
A ocorrência das expressões id quod est e id quod non est, nesse
trecho, confirma o emprego relativo de quod est mencionado acima, mas
trata-se de um emprego muito específico, pois ele não consiste numa
simples referência a um termo ou expressão mencionados anteriormente,
como era o caso quando ambos traduziam tÕ Øp£rcon e tÕ m¾ Øp£rcon.
Falava-se então de algo “que não é e não pode ser”, de maneira que a força
da expressão recaía sobre o sujeito explícito aliquid, fazendo de quod non
505
IDI VI, 474, 18-24.
506
A esse respeito, cf. também ICA VI, 476.
507
IDI VI, 480, 3-7; 22-26.
233
est uma construção meramente relativa. O que se vê, porém, no excerto
transcrito imediatamente acima é que, embora quod est e quod non est
também ocorram em sentido relativo, a ênfase da expressão é posta sobre o
anafórico id, que remete a um sujeito cuja ocorrência é posterior ao registro
do próprio pronome. Assim, id quod bonum est remete a “aquilo que o bem
é” (neste caso, à sua essência), e, esse emprego mostra como Boécio faz a
expressão id quod est evoluir para um sentido independente, não meramente
relativo.
Em outras palavras, é evidente que id quod est, sintaticamente, consiste
numa construção relativa, mas a diferença que começa a se pôr em destaque
refere-se à ênfase que se dá ao anafórico id e que faz a perífrase id quod est
assumir uma função independente dentro da oração. Assim, a expressão
quod est, com sua variante negativa, parece desdobrar-se em id quod est,
revelando não apenas um emprego relativo, mas também “absoluto”, que
passa a significar a essência da coisa. Além disso, a variante id quod secum
habet, presente na expressão Est alia quae id quod secum habet res ulla
proposita non eam habere putet
508
, manifesta o que a coisa é secundária ou
acidentalmente
509
. Lembrando-se, portanto, que Boécio exprime, pelo termo
accidens, indiferentemente, tanto aquilo que a substância é acidentalmente
como o concomitante necessário à natureza essencial dela, então a
expressão id quod secum habet equivale a accidens e ambos traduzem o
kat¦ sumbebhkÒj de Aristóteles
510
.
Quanto à expressão id quod est empregada absolutamente, ou melhor,
não como mera construção relativa, pode-se observar sua ocorrência ainda
em outros contextos. Leia-se:
508
Cf. IDI VI, 474, 18-24.
509
Cf. IDI VI, 474-476. A respeito da diferença entre o acidente e o concomitante
necessário à natureza essencial, cf., acima, capítulo 2, seção “3.1. Os verbos em geral”.
510
O texto-base para Boécio falar de um concomitante necessário à natureza essencial da
coisa é o trecho do capítulo 14 do De interpretatione onde Aristóteles afirma que o bem
é bom por si mesmo (kaqaÙtÒ) e não mau por acidente (kat¦ sumbebhkÒj). Cf.
ARISTÓTELES, Perì hermeneías 14, 23b15ss.
234
Nihil ergo contrarium habet esse probum et fieri probum; neque enim
ita contrarium est, ut esse hominem probum et esse hominem turpem.
Quare si nihil habet contrarium, dubium non est quin simul esse
possint. Sed quod fit nondum est adhuc cum fit: quare nondum est
probus qui fit probus. Sed uerum erat dicere cum eo quod est est
probus homo, quoniam fit probus homo
511
.
Trata-se, nesse contexto, de manter com verdade a afirmação e a
negação acerca de um mesmo sujeito que está in fieri. Ora, o que se
encontra no devir, ou aquilo que se faz, é já, de certa maneira, aquilo que
ele devém. Parece possível dizer, portanto, que <id> quod fit é também, de
certa maneira, id quod est. Assim, um homem que se faz honrar é já um
homem honrado, pois possui desde o início, de certo modo, a honradez, e
isto que ele é é um ser honrado. Id quod est, neste caso, designa uma
qualitas acidentalis, mas, ao falar da transformação substancial, afirma que
o que deixa de ser é aquilo mesmo que é (id quod est):
(...) esse et non esse oppositum est. Quod autem non fuit et generatur
et fit ex eo quod non fuit est. Habuit igitur in hoc ad esse et non esse
id est ad opposita cognationem. Sin uero idem ipsum quod est
corrumpatur, ex eo quod fuit non erit. Habebit igitur rursus ad
opposita cognationem
512
.
Nesse texto, a perífrase id quod est, com o pronome declinado no
ablativo e o verbo no particípio perfeito, designa algo que não existia, “isto
que não houve (havia)”, a partir do qual surge algo que se insere no
movimento do cosmo. Na contrapartida, quando se corrompe idem ipsum
quod est, ou seja, aquilo mesmo que é (existe), então ele passa disto que ele
foi (eo quod fuit) ao que ele ainda não é, quer dizer, ao que ele será. Não
parece possível negar que, aqui, quod est e sua variante id quod est
designem a substância primeira de Aristóteles, o que se confirma ainda pelo
511
IDI II, 170, 16-23.
512
IDI III, 247, 19-24.
235
fato de o excerto que se acaba de analisar situar-se no mesmo capítulo 9 do
livro III do IDI, cuja abertura se dá pela tradução que Boécio faz do tÕ Ôn
aristotélico como quod est
513
.
Uma confirmação da equivalência entre id quod est e a substância
primeira de Aristóteles vem ainda de outro contexto, situado no início do
comentário de Boécio
514
, quando ele investiga o nomen infinitum, segundo
sua tradução do aristotélico Ônoma aÔriston. Trata-se de saber o sentido de
uma expressão como “não-homem”, por exemplo. Será ela um nome? Com
efeito, quando se diz “Cícero”, faz-se referência a uma pessoa; quando se
diz “homem”, remete-se a uma substância determinada e separada das
outras. Em ambos os casos, implicar-se-á sempre verdade ou falsidade. Mas,
quando se diz, por exemplo, “não-homem”, inclui-se indefinidamente, na
extensão desse termo, tanto o que não é homem, mas “é” (por exemplo, um
cão, um cavalo, uma pedra), como o que não é homem nem “é” (Sila, por
exemplo). Ao referir-se ao que não é homem, mas “é”, Boécio emprega a
expressão id quod est; ao falar daquilo que não é homem, mas também “não
é”, ele emprega id quod non est. Leia-se:
Cum uero dico non homo, significo quidem quiddam, id quod homo
non est, sed hoc infinitum. Potest enim et canis significari et equus et
lapis et quicumque homo non fuerit. Et aequaliter dicitur uel in eo
quod est uel in eo quod non est. Si quis enim de Scylla quod non est
dicat non homo, significat quiddam quod in substantia atque in rerum
natura non permanet
515
.
O último período do trecho citado reforça a associação entre id quod
est e a substância primeira, porque, na contrapartida, id quod non est pode
dar ocasião inclusive a uma proposição verdadeira (como, por exemplo,
quando se diz “Sila é não-homem”), mas o enunciado versa sobre algo que
não existe como substância, ou, se se quiser, que não permanece na natureza
513
Cf. IDI III, 240, 26-31. Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías 9, 19a23.
514
Cf. IDI I, 61-70.
515
IDI I, 62, 3-10.
236
das coisas. Porém, ainda a partir da leitura desse texto, conclui-se que id
quod est pode designar não apenas uma substância primeira, como Cícero,
por exemplo, mas também uma substância segunda, como “homem”. De
todo modo, trata-se sempre de algo que existe in rerum natura, ao passo
que id quod non est pode designar um ente fictício ou imaginário, que pode
existir enquanto elaboração mental, mas não na ordem das coisas
516
.
Do mesmo modo, assim como há nomes indefinidos, há também verbos
indefinidos, pois “não corre” pode ser predicado tanto de “homem” (id quod
est) como de “centauro” (id quod non est). Como no caso de seu comentário
sobre o nomem infinitum, Boécio toma, aqui, id quod est como equivalente
da substância primeira, res quae est, por oposição a id quod non est, o não-
ente, res quae nihil est. Com efeito, ele traduz Ôntoj e m¾ Ôntoj por id
quod est e id quod non est
517
.
Quanto às noções de res
518
que não existem na ordem das coisas, é
preciso reconhecer, segundo Boécio, que suas noções não implicam verdade
ou falsidade. Estes serão atributos somente dos juízos que associem a tais
noções outras noções como “é” ou “não é”. Trata-se, pois, do verbo esse,
que, unido a um nome, indica a existência de uma substância (alicuius
substantiam constituit
519
). Ora, o emprego “não predicamental” do verbo
esse, quer dizer, o emprego absoluto, somente é válido quando se implica a
substancialidade do sujeito da proposição. Assim, a proposição “Homero é”
será verdadeira quando, de fato, Homero existir como uma substância
definida, o que remete ao comentário feito por Boécio à afirmação com que
Aristóteles conclui o primeiro parágrafo do De interpretatione.
Com efeito, ao recorrer à prova do hircocervo, Aristóteles conclui
dizendo que esse termo significa algo, mas sem nenhuma conotação de
516
Cf., a esse respeito, IDI I, 69, 33 70, 15, e, acima, capítulo 2, seção “2.4.
Inexistentes”.
517
Cf. IDI I, 69, 24 70, 15; ARISTÓTELES, Perì hermeneías 3, 16b6-25.
518
O termo res, aqui, é tomado do comentário de Boécio às Categorias cf. ICA IV,
279C-D.
519
Cf. IDI I, 48, 29 49, 7; ARISTÓTELES, Perì hermeneías 1, 16a9-18.
237
verdade ou falsidade, a menos que se lhe acrescente “ser” ou “não ser”
absolutamente falando (¡plîj) ou segundo uma determinação temporal
(kat¦ crÒnon)
520
. Boécio, por sua vez, ao comentar a conclusão
aristotélica, fala de um sentido intemporal do verbo esse, que se manifesta
nas formas do presente mas que, possuindo um significado sem conotação
temporal, designa o ser substancial:
Quare cum ita dicimus esse ut substantiam designemus, simpliciter est
addimus, cum uero ita ut aliquid praesens significetur, secundum
tempus
521
.
Deduz-se, portanto, a partir desses textos, o mesmo sentido absoluto de
esse que já havia aparecido em ICA e que traduz o grego eînai. Para
completar, porém, a investigação da compreensão boeciana do verbo esse, é
preciso analisar seu comentário às afirmações aristotélicas a respeito dos
verbos tomados em si mesmos (aÙt¦) e por si mesmos (kaqaÙt¦), ou, se
se quiser, os verbos ditos por si mesmos
522
. Grosso modo, segundo
Aristóteles, neles mesmos e por si mesmos, isso que se chama de verbos
são, na realidade, nomes, porque, sendo pronunciados, eles fixam o
pensamento do ouvinte, de maneira que eles significam precisamente
alguma coisa, sem, entretanto, significar que uma coisa é ou não é. “Ser” ou
“não ser” (tÕ e•nai À m¾ e•nai) não são sinais de uma coisa, tampouco
“ente” (tÕ Ôn) quando pronunciado isoladamente. Ao dizer isso, Aristóteles
conclui que, nelas mesmas, essas expressões “não são nada caso não entrem
em composição”. Essa conclusão permitirá a Boécio traduzir o tÕ Ôn
aristotélico por hoc ipsum est, que é uma construção muito singular, pois
tanto permite pensar que apenas a forma verbal est corresponde a tÕ Ôn
como permite supor que haja um quod elíptico, referente a hoc. Assim
traduz Boécio o texto aristotélico:
520
Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías 1, 16a16-18.
521
IDI I, 51, 14-16.
522
Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías 3, 16b19-25.
238
Ipsa quidem secundum se dicta uerba nomina sunt et significant
aliquid. Constituit enim qui dicit intellectum et qui audit quiescit.
Sed si est uel non est, nondum significat; neque enim esse signum est
rei uel non esse, nec si hoc ipsum est purum dixeris. Ipsum quidem
nihil est, consignificat autem quandam conpositionem, quam sine
conpositis non est intellegere
523
.
Adiante, Boécio traduz a expressão aristotélica segundo a qual nem o
verbo “ser” nem o verbo “não ser” constituem um signo de coisa (shme‹on
toà pr£gmatoj
524
) por signum rei e antecipa a conclusão de Aristóteles,
segundo a qual tanto “ser” como “não ser” não significam nada (aÙtÕ m•n
g¦r oÙdšn ™stin):
(...) esse, quod uerbum est, uel non esse, quod infinitum uerbum est,
non est signum rei id est nihil per se significat. Esse enim nisi in
aliqua conpositione non ponitur. Vel certe omne uerbum dictum per se
significat quidem aliquid, sed si est uel non est, nondum significat
525
.
Um modo de interpretar a leitura boeciana de Aristóteles consistiria em
associá-la, diretamente, à leitura que fizeram, por sua vez, Porfírio e
Alexandre de Afrodísias, que são as duas fontes privilegiadas de Boécio
526
.
Numa palavra, a posição desses autores, segundo Boécio, consiste em tomar
e•nai, à diferença dos outros verbos, como desprovido de toda e qualquer
significação real, bem como de todo e qualquer conteúdo significativo, caso
se o considere fora de uma conjunção com um nome. Com efeito, para
Alexandre de Afrodísias, est, ens, esse não significam nada por si mesmos,
pois são equívocos, uma vez que eles se dizem de todos e cada um dos
523
IDI I, 71, 4-12.
524
Cf. ARISTÓTELES, Perì hermeneías 3, 16b22-23.
525
IDI I, 76, 11-17.
526
Cf., por exemplo, a posição de Alain de Libera em: DE LIBERA, A. “Introduction e
Notes”. In: PORFÍRIO. Isagoge. Ed. e trad. de Alain de Libera e Philippe Segonds. Paris:
Vrin, 1998, pp. CXL-CXLII e 31-35; DE LIBERA. L’art des généralités. Théories de
l’abstraction. Paris: Aubier, 1999.
239
predicamentos, sem que os predicamentos possam reunir-se sob um gênero
comum. Para empregar a linguagem de Boécio, omne aequiuocum per se
positum nihil designat. Logo, est, ens e esse nada significam quando não
estão associados a nenhum nome
527
.
Para Porfírio, segundo o comentário de Boécio, a questão é mais
radical, pois ela consiste em dizer que o est, sozinho, não somente não
implica verdade ou falsidade, mas também não significa nada em absoluto
(nihil omnino significat; purum et sine coniunctione praedicatum nihil
significat). Sem outros componentes que sejam reunidos por ele, est não
tem nenhum significado (sine componentis uero quid significet non est
intellegere), de modo que, na contrapartida, sua associação a tais
componentes pode ser uma simples aposição (simpliciter apponere) ou uma
relação de participação (secundum participationem). Neste último caso, est
possui claramente uma função copulativa. Assim, se se diz “Sócrates é
filósofo”, pretende-se que Sócrates participe da filosofia; mas, se se diz
simplesmente “Sócrates é”, significa-se que Sócrates é um ente, ou, nas
palavras de Boécio, Socrates aliquid eorum est quae sunt et in rebus his
quae sunt Socratem iungo
528
.
A breve passagem pelos comentários de Alexandre de Afrodísias e
Porfírio angulados pela leitura de Boécio poderia permitir a conclusão de
que Boécio se manteria em continuidade com o esvaziamento semântico do
verbo esse levado a cabo por esses comentadores. Entretanto, ao concluir o
capítulo 3 do livro I, Boécio marca sua discordância, retomando a
interpretação que ele havia proposto algumas linhas acima, ou seja, a de
associar o verbo esse aos verbos em geral, para dizer que, mesmo tomado
isoladamante, eles apresentam a mesma natureza dos nomes e significam
algo de certa maneira inteligível. Por isso, Boécio interpreta o ¢utÕ m•n
g¦r oÙdšn ™stin de Aristóteles nos seguintes termos:
527
Cf. IDI I, 77, 3-13.
528
Cf. IDI I, 77, 13-23.
240
Vel certe ita intellegendum est quod ait ipsum quidem nihil est, non
quoniam nihil significet, sed quoniam nihil uerum falsumue
demonstret, si purum dictum sit. Cum enim coniungitur, tunc fit
enuntiatio, simpliciter uero dicto uerbo nulla ueri uel falsi
significatio fit. Et sensus quidem totus huiusmodi est: ipsa quidem
uerba per se dicta nomina sunt (nam et qui dicit intellectum constituit
et qui audit quiescit)
529
.
No longo comentário ao capítulo 12 do Perì hermeneías, Boécio
emprega um sinônimo para esse: trata-se de essentia, obtido a partir de uma
substantivação análoga às que ele propõe para os termos necessitas e
possibilitas
530
. Um outro substitutivo freqüente para o verbo esse, no IDI, é
a perífrase id quod est esse. Ela ocorre, por exemplo, quando Boécio
comenta o capítulo 6 do Perì hermeneías e afirma que pode haver um
enunciado tanto sobre o que é o ser, como sobre o que não é o ser:
Est autem enuntiatio de eo quod est aliquid esse uel non esse:
adfirmatio quidem de eo quod est esse, ut Plato philosophus est;
negatio uero de eo quod est non esse, ut Plato philosophus non est
531
.
Trata-se, como se vê, da concepção da afirmação como um enunciado
sobre o ser (de eo quod est esse) e da negação como um enunciado acerca
do “não-ser” (de eo quod est non esse), mas isso não deve fazer pensar que
Boécio atribua alguma consistência ontológica ao não-ser. Pelo contrário,
como a primeira oração desse período permite entender, trata-se de
enunciados sobre o “ser algo” ou o “não ser algo” (de eo quod est aliquid
esse uel non esse).
Dessas ocorrências do vocabulário ontológico boeciano registradas no
IDI, pode-se concluir, segundo os interesses centrais do presente trabalho,
que id quod est designa um ente real, algo que subsiste in rerum natura, ao
529
IDI I, 78, 8-16.
530
Cf. IDI V, 376-414.
531
IDI II, 134, 7-10.
241
passo que id quod non est significa uma quimera, como um centauro, por
exemplo. Além disso, ao mesmo tempo em que a perífrase id quod est pode
significar uma substância concreta e singular (como Cícero, por exemplo),
ela também pode significar a substância segunda (como “homem”, por
exemplo). Por sua vez, o verbo esse, como todo verbo, quando tomado em si
mesmo e por si mesmo, corresponde a um nome, e, nesse caso, manifesta-se
seu conteúdo inteligível, embora se prescinda de qualquer afirmação ou
negação de subsistência. Porém, aplicado em sentido absoluto a um sujeito,
esse indica o caráter substantivo do mesmo. Por isso, numa proposição
como Socrates est, não apenas se estabelece sua substancialidade, mas
também sua existência, de maneira que essa proposição só será verdadeira
se, de fato, Sócrates existir. Além disso, o verbo esse, em função
copulativa, estabelece uma relação de participação do sujeito no predicado,
ou, na linguagem boeciana, uma relação de inerência (inesse). Nesse caso,
est reverte diretamente sobre o sujeito quando enuncia algo essencial, mas
apenas de modo indireto quando o enunciado é algo acidental. Por fim,
essentia continua sendo, como fora já em ICA, a substantivação de esse, e
seu sentido, como o de esse, depende de cada contexto concreto.
Assim, a partir da terminologia do IDI, parece possível estabelecer o
seguinte quadro de equivalências:
COMENTÁRIO DE BOÉCIO
(IDI)
PERÌ HERMENEÍAS DE
ARISTÓTELES
SENTIDO
hoc quod est
™pˆ tîn Ôntwn
isto que é (ente)
hoc quod non est
™pˆ tîn m¾ Ôntwn
isto que não é (não-ente)
esse
Øp£rcein
ser (inerir, pertencer)
esse
e•nai
ser (sentido absoluto),
existir
non esse
m¾ e•nai
não ser
(verbum infinitum)
essentia substantivação de esse
quod est
tÕ Ôn
o que é (ente)
quod est
tÕ Øp£rcon
“o que <x> é”
(indicador de inerência)
242
quod non est
tÕ m¾ Ôn
o que não é (não-ente)
quod non est
tÕ m¾ Øp£rcon
“o que <x> não é”
(indicador de não-
inerência)
id quod est
“isto que <a coisa> é”;
essência, natureza
id quod est
“isto que <a coisa> é”;
qualidade acidental
id quod est
Ôntoj
isto que é; ente
id quod non est
“isto que <a coisa> não
é”; indicador de que
não se trata de uma
determinada essência ou
natureza
id quod non est
m¾ Ôntoj
isto que não é; não-ente
id quod secum habet
kat¦ sumbebhkÒj
sinônimo de accidens
(característica acidental
ou concomitante
essencial)
id quod est esse substitutivo de esse
Figura 7
1.4. Os Opuscula sacra e o De consolatione philosophiae.
Se se considera que Boécio redigiu o primeiro comentário à Isagoge
por volta do ano 500, isto é, com cerca de 25 anos de idade, e que o
segundo comentário ao Perì hermeneías data de 515 ou 516, não se pode
negar, como lembra Juan Acosta Rodriguez
532
, a constância terminológica de
Boécio durante esse período de quinze anos. Como tal, esse tempo
corresponde a um pouco mais da primeira metade do seu período de
produção literária (situa-se, portanto, entre seus 25 e 40 anos). Ao mesmo
período, entretanto, devem-se também obras como o CEN, o DH, o DT, os
tratados SC, DL e HS, além da possível tradução e comentário dos Topica
de Aristóteles (obra que se perdeu) e o comentário aos Topica de Cícero. Na
segunda metade do período total de sua atividade literária (que consiste,
portanto, em cerca de 10 anos, pois sua execução será em 525), Boécio
traduziu o De sophisticis elenchis de Aristóteles e escreveu o TD. Por fim,
532
RODRÍGUEZ, J. A., op. cit., p. 632.
243
em 525, escreveu o CP na prisão, como se sabe, entre duas sessões de
tortura, pois logo após a segunda delas Boécio foi executado.
É importante notar, aqui, a constância terminológica que perpassa as
obras de Boécio, e, para comprová-la, basta analisar o vocabulário
metafísico por ele empregado nos dois períodos. Isso não significa afirmar a
existência de um vocabulário metafísico claramente definido desde a
juventude, por Boécio, mas uma certa constância que se foi explicitando no
decorrer de suas obras, principalmente pela maneira como Boécio parece
evitar certas ambigüidades que ele não pode evitar em alguns de seus
textos. O CEN, desse ponto de vista, contém alguns exemplos de emprego
ambíguo do termo ousía; o comentário às Categorias, do termo esse e da
expressão id quod est, como se viu acima. O DH, porém, representará, ao
que tudo indica, uma obra cujo vocabulário já se mostra mais bem fixado e
definido. Com essa perspectiva, procurar-se-á, então, agora, investigar a
terminologia dos Opuscula (com exceção do DH, ao qual se reserva uma
seção específica adiante) e do CP, destacando-se, no entanto, apenas
aqueles termos que têm relação direta com o presente trabalho
533
.
1.4.1. O De fide catholica.
O FC parece datar de 512 ou 519. De qualquer maneira, ele é
contemporâneo ou posterior ao CEN, que é de 512, ao ICA, que é de 510, ao
IPES, de 508-509, e ao IPEP, de 500. Isso significa que o autor Boécio deve
contar com cerca de 40/45 anos e possuir um vocabulário minimamente
fixado. Assim, do FC interessa destacar o trecho relativo à criação, onde
Boécio emprega esse no sentido absoluto de existir. Ora, pareceria evidente
que, no universo cristão de discurso, o mundo exista desde sempre na mente
533
Para uma investigação mais completa do reordenamento do vocabulário do ser
operado por Boécio, cf. “O debate cristológico-trinitário e o vocabulário do ser”, in:
BOÉCIO. Escritos (Opuscula Sacra). Tradução, estudos e notas de Juvenal Savian Filho.
São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 12-25.
244
divina, mas não é do ser do mundo “em” Deus que fala Boécio, e, sim, do
mundo realizado como distinto de Deus. Leia-se:
Ergo diuina ex aeterno natura et in aeternum sine aliqua mutabilitate
perdurans sibi tantum conscia uoluntate sponte mundum uoluit
fabricare eumque cum omnino non esset fecit ut esset, nec ex sua
substantia protulit, ne diuinus natura crederetur, neque aliunde
molitus est, ne iam exstitisse aliquid quod eius uoluntatem existentiae
propriae naturae iuuaret atque esset quod neque ab ipso factum esset
et tamen esset; sed uerbo produxit caelos, terram creauit, ita ut
caelesti habitatione dignas caelo naturas efficeret ac terrae terrena
componeret
534
.
Trata-se, pois, de conceber o mundo como natureza independente; não
apenas como um pensamento de Deus. Ora, é no CEN que Boécio explicita
sua concepção de natura, identificando quatro sentidos possíveis para esse
termo.
1.4.2. O Contra Eutychen et Nestorium.
Assim Boécio define, no CEN, o termo natura:
Natura igitur aut de solis corporibus dici potest aut de solis
substantiis, id est corporeis atque incorporeis, aut de omnibus rebus
quae quocumque modo esse dicuntur; (...) natura est earum rerum
quae, cum sint, quoquo modo intellectu capi possunt; (...) natura est
uel quod facere uel quod pati possit; (...) natura est motus principium
secundum se, non per accidens; (...) natura est unamquamque rem
informans specifica differentia
535
.
O período que abre o capítulo I do CEN e que se lê no excerto acima,
embora não afirme diretamente o que seja natura, pode, entretanto, ser
considerado já uma primeira definição geral do termo, sobretudo porque,
embora pretenda esclarecer que natura se predica distintamente das
534
FC [50]-[60].
535
CEN I [55]-[60]; [65]; [80]; [95]; [110].
245
substâncias corpóreas e das incorpóreas, acaba por incluir tudo o que se diz
ser, marcando a associação fundante entre a noção de natureza e a de ser
536
.
A propósito, é justamente esta associação que importa destacar aqui, e ela
se explicita na definição segundo a qual “natureza” se diz daquelas coisas
que, por serem, podem ser apreendidas de algum modo pelo intelecto
537
.
Com efeito, por essa definição, natura aplica-se a tudo o que é, e o verbo
“é”, aqui, corresponde ao sentido do “se dizer ser”, “ter ser”. Um dos
sentidos de natura será, portanto, o de tudo que se diz ser e que pode ser
captado pelo intelecto, ou, se se quiser, um sentido que inclui res omnes
quae sunt e que entram na lógica das categorias.
Nessa ampla classificação, porém, situam-se não apenas os seres
corpóreos e incorpóreos, mas também aqueles que, nem corpóreos nem
incorpóreos, possuem uma existência apenas lógica, como é o caso do
“nada”, que, sem ser uma realidade positiva, designa não algo que seja,
mas, antes, o não-ser
538
. Trata-se, pois, de seres que não possuem
consistência ontológica, mas que também não deixam de significar algo no
campo do discurso. Nesse âmbito estão inclusive os acidentes, os quais,
existindo apenas num suporte
539
, não podem, entretanto, ser ditos mera
realidade lógica. Para restringir, portanto, essa definição, Boécio propõe
uma segunda, aquela que associa natura apenas às substâncias e diz:
natureza’ é o que pode fazer ou sofrer”
540
. Com essa definição, ele tudo
aquilo que significa algo sem, porém, existir como ente.
536
Cf. CEN I [60]. A rigor, Boécio anuncia três definições, mas acaba apresentando
quatro, como se pode observar pelo texto transcrito.
537
Segundo Henry Chadwick, essa definição se deve à tradição pitagórica, para a qual “a
filosofia é o conhecimento das coisas que são, pelo fato de que elas existem” (cf.
CHADWICK, H. Boethius: The Consolations of Music, Logic, Theology and
Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1990, p. 191).
538
Cf. CEN I [70]-[75].
539
Cf. CEN III [220].
540
Cf. PLATÃO, Fedro 270d; Sofista 247d. Não se pode esquecer, aqui, a talvez mais
provável influência neoplatônica, sobretudo de Proclo e Porfírio. Proclo, por exemplo,
afirma nos Elementos de teologia, 80: P©n sîma p£scein kaqaØtÒ pšfuke p©n d•
¢sèmaton poie‹n tÕ m•n ¢dran•j Ôn kaqaØtÒ tÕ d• ¢paqšj: P£scei d• kaˆ tÕ
¢sèmaton di¦ t¾n prÕj tÕ sîma koinwn…an:: “Todo corpo, por natureza, é passivo
246
A terceira definição, por sua vez, restringe-se às substâncias corpóreas,
e para excluir, portanto, as incorpóreas, Boécio fala de natura como o
princípio do movimento por si, não por acidente. Ora, ao dizer isso, Boécio
parece conectar-se diretamente ao pensamento aristotélico, pois o
estagirita
541
, após afirmar que “natureza” se diz do que contém em si o
próprio princípio do movimento, conclui que esse princípio é, de fato, a
forma ou a substância da coisa, pois é em virtude da forma que algo se
desenvolve e se torna o que é, de modo que, como na tšcnh, uma coisa
possui sua natureza quando alcança sua forma, perfeita em sua substância
542
.
Numa palavra, a natureza é a forma ou a espécie. Com efeito, essa definição
de orientação aristotélica distingue as substâncias corpóreas das
incorpóreas não porque estas últimas possuam o princípio do movimento
por acidente, mas porque, além de não se submeterem ao movimento, elas
possuem, numa unidade, o seu ser (forma) e a sua substância (ente), de
modo que, mesmo que elas possuíssem movimento, não haveria o que ser
movido numa situação em que a forma se confunde com a realidade.
Em continuidade direta com essa definição Boécio fornece ainda uma
última, pois será esta a que lhe permitirá resolver a controvérsia
cristológica do CEN. Com efeito, após concluir, com Aristóteles, que a
natureza é a forma ou a espécie, Boécio se dá conta que a forma da coisa
pode comportar-se de duas maneiras distintas com referência à produção da
alteridade, pois é capaz de gerar coisas que se diferenciam apenas pelo
número e coisas que se distinguem pela própria essência ou definição.
“Natureza”, portanto, seria a natureza específica que informa cada coisa
543
.
Assim, haveria duas naturezas no Cristo e as mesmas diferenças não
convergiriam para Deus e para o homem.
(lit.: “por natureza sofre” p£scein... pšfuke), todo ser incorpóreo, ao contrário, é
ativo (lit.: “por natureza faz” pšfuke... poie‹n), pois um é incapaz de ação (¢dran•j)
e o outro de passividade (¢paqšj). Porém, o incorpóreo também sofre por meio (di¦
t¾n) e por causa (prÕj) da união com o corpo (t¾n... tÕ sîma koinwn…an).”
541
Cf. ARISTÓTELES. Física, 193b2.
542
Cf. idem, 193a28ss.
543
Cf. idem, 193a; Metafísica, 1015a10-11
247
Num outro contexto do CEN, Boécio afirma que os indivíduos não
necessitam dos acidentes para ser
544
. Dessa perspectiva, o indivíduo, assim
como o gênero e a espécie, seriam, em terminologia aristotélica, choriston,
ou, em termos boecianos, subsistentia. Porém, os gêneros e as espécies,
como se viu no capítulo 2, embora sejam e subsistam, não são sujeitos de
acidentes a não ser por mediação das substâncias individuais, de maneira
que se pode enfatizar a associação entre a individualidade concreta e a
“subjectidade”. Em outras palavras, para que uma substância seja
considerada um ente, ela deve apresentar o fundamento da subjacência
545
e,
desse ponto de vista, o próprio falar de Deus se submete à lógica das
categorias, pois ele também se diz substantia, e, por conseguinte, “estar
sob”, não, porém, como se ele se pusesse sob outras coisas, ao modo de um
sujeito, mas porque ele é fonte de todo ser e porque, como princípio, ele
“está sob” todos os entes, fornecendo-lhes o oÙsiîsqai ou subsistir. Dito
isso, vê-se, ao mesmo tempo, como o ente ou o ser boeciano não se esgota
no ser predicamental, mas solicita a superação mesma da lógica das
categorias:
Est igitur et hominis quidem essentia, id est oÙs…a, et subsistentia, id
est oÙs…wsij, et ØpÒstasij, id est substantia, et prÒswpon, id est
persona; oÙs…a quidem atque essentia quoniam est, oÙs…wsij uero
atque subsistentia quoniam in nullo subiecto est, ØpÒstasij uero
atque substantia, quoniam subest ceteris quae subsistentiae non sunt,
id est oÙsièseij; est prÒswpon atque persona, quoniam est rationabile
indiuiduum. Deus quoque et oÙs…a est et essentia: est enim et maxime
ipse est a quo omnium esse proficiscitur. Est oÙs…wsij, id est
subsistentia (subsistit enim nullo indigens); et Øf…stasqai: substat
enim. Vnde etiam dicimus unam esse oÙs…an uel oÙs…wsin, id est
essentiam uel subsistentiam deitatis, sed tres Øpost£seij, id est tres
substantias. Et quidem secundum hunc modum dixere unam trinitatis
essentiam, tres substantias tresque personas. Nisi enim tres in Deo
substantias ecclesiasticus loquendi usus excluderet, uideretur idcirco
de Deo dici substantia, non quod ipse ceteris rebus quasi subiectum
supponeretur, sed quod idem omnibus, uti praeesset, ita etiam quasi
544
Cf. CEN III [220].
545
É de Jean-François Courtine a expressão subjectité. Cf. COURTINE, J.-F. “Note
complémentaire pour l’histoire du vocabulaire de l’être Les traductions d’OUSIA et la
compréhension romano-stoïcienne de l’être”. In: AUBENQUE, P. Concepts et catégories
dans la pensée antique. Paris: Vrin, 1980, p. 48.
248
principium subesset rebus, dum eis omnibus oÙsioàsqai uel subsistere
subministrat
546
.
Ainda no capítulo terceiro do CEN, Boécio explica que o termo
ØpÒstasij, traduzido por substantia, reservava-se, no âmbito da cultura
grega, às substâncias superiores, mais nobres, não se aplicando, portanto,
aos animais irracionais, a fim de se distinguir, de alguma forma, isto que é
mais excelente (ut aliqua id quod est excellentius discerneretur
547
).
Observa-se, assim, um uso de id quod est como sinônimo de substantia e,
portanto, de persona.
1.4.3. O De Trinitate.
O capítulo segundo DT estrutura-se em torno de dois princípios que se
formulam da seguinte maneira:
Omne namque esse ex forma est. (...) Forma uero quae est sine
materia non poterit esse subiectum nec uero inesse materiae: neque
enim esset forma, sed imago. Ex his enim formis quae praeter
materiam sunt, istae formae uenerunt quae sunt in materia et corpus
efficiunt. Nam ceteras quae in corporibus sunt abutimur formas
uocantes, dum imagines sint: adsimulantur enim formis his quae non
sunt in materia constitutae
548
.
Em outros termos, pode-se resumir que (1) todo ser provém da forma e
(2) as formas materiais são imagens, enquanto as formas propriamente ditas
não podem existir na matéria nem ser sujeitos de nada
549
. Haveria, desse
ponto de vista, um duplo sentido para a causalidade formal da substância
material, pois se afirma uma forma transcendente que é princípio da forma
imanente, e uma forma imanente que, por sua vez, é princípio da substância
546
CEN III [240]-[260].
547
CEN III [235]-[240].
548
DT II [80], [110]-[115].
549
A menos que elas fossem ditas sujeitos de modo análogo àquele como Deus é dito
sujeito, quer dizer, como princípio de outros seres, não como substrato.
249
corpórea. Assim, em cada ente, o ser vem de sua forma imanente, que é
sempre individual e que reflete a forma transcendente, de maneira que uma
estátua, por exemplo, é dita a estátua de um leão não por causa do bronze
mas por causa de sua forma, que é a forma da estátua de um leão, ou seja, a
forma pela qual se gravou no bronze a efígie do animal. Essa forma que se
gravou no bronze, por sua vez, reflete a forma transcendente que lhe
permite, enquanto imagem, existir como forma unida à matéria. De modo
análogo, o bronze não se diz bronze segundo a terra, que é sua matéria, mas
segundo a figura do bronze. Nada, portanto, se diz ser kat¦ t¾n Ûlhn, mas
segundo a forma própria
550
.
Essa ontologia esboçada no DT é importante, aqui, não apenas para a
investigação do vocabulário metafísico de Boécio, mas também para a
própria compreensão da processão das substâncias a partir do primeiro Bem,
tal como expressa no DH (adiante se retornará a ela). Para o momento,
importa ressaltar que, assim como as formas são “mais formas” (quer dizer,
verdadeiramente formas) na medida em que não são na matéria, assim
também elas retêm o ser em si mesmas (quer dizer, “são mais” em si
mesmas) e são fonte de ser para outras coisas na mesma medida em que se
mantêm incorpóreas. Isso se verifica, em grau máximo, na “forma”
551
divina, ou seja, naquela forma que é verdadeiramente forma, não uma
imagem, e que é o ser mesmo e a partir da qual <todo> ser é
552
. Aqui, é
importante concluir, de um lado, que o papel exercido por uma forma
depende de sua imaterialidade, de maneira que algo como um “grau” de ser
dependeria, segundo o pensamento de Boécio, da maior ou menor
550
Cf. DT II [80]-[90].
551
Boécio registra forma diretamente. As aspas, aqui, pretendem indicar que a forma
divina não é do mesmo tipo da forma das substâncias criadas, pois, como se viu
anteriormente, o falar de Deus implica que se transcenda e mesmo que se subverta a
lógica das categorias. Entretanto, não deixa de ser válido atribuir-lhe o termo “forma”
(assim como “substância”, “ser” etc.), porque ele não é absolutamente inatingível e
incompreensível para a inteligência humana. Ao contrário, por mais aproximativo que
seja o conhecimento sobre o ser divino, ele não deixa de ser uma forma de
conhecimento.
552
Cf. DT II [80].
250
imaterialidade. De outro lado, importa notar a correspondência entre esse e
a condição do ente (“existir”), pois Boécio afirma “omne esse ex forma est”.
Nesse mesmo período, portanto, o termo forma e o termo esse conservam
uma ambigüidade cuja análise é de extrema importância aqui: ao dizer que o
estudo da parte teológica do saber especulativo deve proceder de maneira
intelectual
553
, Boécio certamente pensa no saber metafísico ou teológico em
sentido aristotélico. Porém, ao dar exemplos do objeto do saber teológico,
Boécio se refere à substância divina e às coisas divinas, de modo que, além
da forma ou do ser (em sentido segundo), forma pode designar também a
substância divina. Isso, por conseguinte, imprime também uma ambigüidade
ao termo esse, que, na expressão ipsum esse, pode significar também a
realidade divina, mas que, no mesmo período, na expressão ex qua esse est,
significa a substância primeira
554
. Leia-se o trecho inteiro:
(...) in naturalibus igitur rationabiliter, in mathematicis
disciplinabiliter, in diuinis intellectualiter uersari oportebit neque
diduci ad imaginationes, sed potius ipsam inspicere formam, quae
uere forma neque imago est et quae esse ipsum est et ex qua esse
est. Omne namque esse ex forma est
555
.
O parágrafo seguinte àquele em que se encontra essa formulação abre-
se por uma expressão também muito significativa, pois, no dizer de Boécio,
a divina substância é forma sem matéria e justamente por isso é una e é isto
553
Boécio indica um método próprio para cada parte do saber especulativo: para a física,
conhecimento das coisas naturais, reserva-se o método “racional”, aquele cujo olhar
ultrapassa a matéria e investiga as formas nela imanentes; para as matemáticas, o
método da “disciplina” do pensamento, ou seja, o método demonstrativo; e, para a
teologia, o método “intelectual”, aquele que, pelo puro intelecto, contempla o puro ser.
Vale dizer que, na distinção do objeto de cada parte do saber especulativo (cf. II [65]
[75] ), o critério não é metodológico, mas ontológico: trata-se de ver que o objeto da
física e da teologia é existente in re, ao passo que, nas matemáticas, distingue-se o
objeto da ciência (existente apenas na mente) e a realidade a que ele se refere (existente
na matéria).
554
Embora ele não empregue, aqui, o termo ens, o sentido, porém, de esse não parece ser
outro.
555
DT II [75]-[80].
251
que é, ao passo que todas as outras substâncias restantes não são isto que
elas são:
(...) diuina substantia sine materia forma est atque ideo unum est, et
est id quod est: reliqua enim non sunt id quod sunt
556
.
Segundo Boécio, portanto, a substância divina, sendo forma sem
matéria e sendo una, é “isto que é”, enquanto as outras substâncias, pelo
contrário, não são “isto que elas são”, porque não são formas sem matéria e
porque são compostas. Para compreender-se, aqui, o sentido de id quod est,
com seu plural id quod sunt, é útil começar por entender o final da
afirmação transcrita acima, ou seja, o sentido de dizer que as coisas não são
id quod sunt. Ora, comentando a predicação substancial e dizendo, pois, que
ao predicar-se “substância” (ou homem ou Deus, por exemplo), se predica
de tal maneira como se aquilo do que se predica fosse, ele mesmo,
“substância”, ou seja, a substância “homem” ou a substância “Deus”,
Boécio conclui dizendo que há uma distinção, porque o homem não é
inteiramente o próprio homem e, por isso, não é substância, ou seja, o que
ele é, ele o deve a “outros”, e outros que não são o homem, ao passo que
Deus é isto mesmo, Deus: ele não é nada senão o que ele é; e, por isso, ele é
Deus mesmo
557
. Note-se, aqui, o emprego de (id) quod est associado a
ipsum:
(...) homo non integre ipsum homo est ac per hoc nec substantia;
quod enim est, aliis debet, quae non sunt homo
558
.
Observa-se, pois, que o homem concreto não é o “homem mesmo”, ou
seja, sua humanidade, a substância da humanidade, mas ele é “outras
556
DT II [90].
557
Cf. DT IV [200]-[205].
558
DT IV [200].
252
coisas” que não são a humanidade. Dito de outra maneira, não sendo o
homem sua própria essência, outros elementos entram na sua composição,
como é o caso da matéria com suas implicações, quais sejam, os acidentes.
Assim, o homem concreto é sua essência mais os elementos vindos de sua
materialidade, ao passo que Deus não é nada senão o que ele é. Esse excerto
é importante, aqui, por uma dupla razão: ele revela, antes de tudo, o sentido
de id quod est (sunt) empregado em DT II [90] como a substância entendida
enquanto essência, o tò tí ên eînai aristotélico, de maneira que a substância
divina é forma sem matéria e é isto que ela é, ao passo que as substâncias
restantes (ou os entes restantes) não são isto que elas são, porque, enquanto
substâncias compostas
559
, elas são isto que elas são mais os elementos
estranhos à essência e devidos à matéria. Por outro lado, este excerto
mostra ainda a ambigüidade persistente no emprego da expressão (id) quod
est, pois, ao dizer que o homem não é o “homem mesmo”, Boécio conclui
dizendo que “isto que <o homem> é” ele o deve a outros, de onde se conclui
por um emprego de id quod est como a substância concreta, aquela
resultante da forma e a matéria, ou seja, a substância enquanto ente e não
enquanto essência. No limite, a ambigüidade que marca o emprego absoluto
de id quod est parece ser a mesma que marca o emprego de substantia ou
ousía. Mas há, ainda, no texto de Boécio, a agravante de que a construção
id quod est poderia designar também uma condição acidental, como se
observa pelo exemplo dado para o emprego da categoria de relação: estando
alguém numa determinada posição, aquele que chegar à sua esquerda fará
com que ele se encontre à direita, não, porém, como se ele fosse “à direita
por si mesmo”, assim como ele é branco ou alto, mas pela aproximação de
alguém que estabelece, portanto, uma relação com ele. Assim, “isto que ele
é” depende do outro e vem do outro. Leia-se:
559
Cf. a afirmação de Boécio no mesmo parágrafo: Sed haec praedicamenta talia sunt,
ut in quo sint ipsum esse faciant quod dicitur, diuise quidem in ceteris, in Deo uero
coniuncte atque copulate (DT IV [195]-[200]).
253
Non igitur dici potest praedicationem relatiuam quidquam rei, de qua
dicitur, secundum se uel addere uel minuere uel mutare. Quae tota
non in eo quod est esse consistit, sed in eo quod est in comparatione
aliquo modo se habere, nec semper ad aliud sed aliquotiens ad idem.
Age enim, stet quisquam. Ei igitur si accedam dexter, erit ille sinister
ad me comparatus, non quod ille ipse sinister sit, sed quod ego dexter
accesserim. Rursus ego sinister accedo: item ille fit dexter, non quod
ita sit per se dexter uelut albus ac longus, sed quod me accedente fit
dexter atque id quod est, a me et ex me est, minime uero ex sese
560
.
Como se observa nesse texto, a segunda ocorrência de id quod est
possui o sentido de substância primeira, pois “isto que é” a substância, ou
seja, a substância enquanto à direita de alguém que se lhe achega à
esquerda, ela o recebe de outro; não dela mesma. Porém, observa-se ainda,
pela primeira ocorrência, que a construção id quod est esse também aparece
no DT, e, como no IDI e no IPES, ela corresponde a um substitutivo de esse
no sentido da substância segunda.
1.4.4. O De consolatione philosophiae.
Investigar-se-á, agora, o vocabulário metafísico recorrente no CP, e
essa investigação antepõe-se, aqui, ao estudo DH (malgrado o CP seja a
última obra de Boécio e como que o cume de toda sua produção literária),
por uma dupla razão: em primeiro lugar, porque se dedica, adiante, uma
seção específica à comparação do vocabulário do DH com o das outras
obras de Boécio; e, além disso, porque o estudo do CP permitirá julgar da
coerência da interpretação dos termos proposta pela presente tese, uma vez
que, sendo o CP posterior ao DH, poder-se-á observar se suas posições
semânticas confirmam ou negam o sentido que se atribui aqui aos termos e
expressões do DH.
Vale dizer, ainda, que é bastante defensável a hipótese segundo a qual
Boécio não terá escrito o CP inteiramente na prisão, mas talvez tenha se
servido de algum material já produzido anteriormente ou mesmo que a sua
560
DT V [295]-[305].
254
prisão talvez não tenha sido o cárcere propriamente dito, mas uma
residência forçada
561
. Seja como for, parece certo que o vocabulário
metafísico que aparece nos livros III e IV já vinha sendo gestado e testado
em suas obras anteriores.
É curioso notar, de saída, que a perífrase id quod est praticamente não
ocorre no CP, embora a distinção fundamental entre o sujeito substancial e
a forma imanente ou constitutiva do ser possa ser observada num trecho
como o que segue:
(...) nemo dubitat esse fortem cui fortitudinem inesse conspexerit et
cuicumque uelocitas adest manifestum est esse uelocem. Sic musica
quidem musicos, medicina medicos, rhetorica rhetores facit: agit enim
cuiusque rei natura quod proprium est nec contrarium rerum miscetur
effectibus et ultro quae sunt aduersa depellit
562
.
O que mais interessa notar num texto como esse não é o vocabulário de
Boécio em si, mas sua metafísica de base, que mantém a dualidade entre a
forma imanente e o composto concreto. Porém, mesmo a respeito do
vocabulário seria possível notar algumas curiosidades no texto de Boécio,
pois ele escolhe o verbo esse para referir-se ao que é forte (construindo uma
oração de verbo infinitivo com sujeito acusativo), e inesse para referir-se à
fortitudo do que é forte. Assim, propriamente falando, a força não “é”; mas
“é em” algo que lhe serve de sujeito, ou, conforme a linguagem dos
opuscula, “é” nisto que é forte. Esses exemplos, ainda que se refiram a
características acidentais, não deixam de manifestar o mesmo “esquema”
metafísico que estrutura os textos anteriores ao CP. Com efeito, qualquer
um deles poderia ser substituído por uma característica essencial, e, então,
a metafísica boeciana ficaria mais explícita. Por exemplo, se substituir
fortitudo por humanitas e fortis por homo, ter-se-á que uma substância é um
561
Cf. CHADWICK, H., op. cit., pp. 223ss; RODRÍGUEZ, J. A., op. cit., p. 649;
GUILLAUMIN, J.-Y. “Introduction”. In: BOÈCE. La consolation de la philosophie. Trad.
de J.-Y. Guillaumin. Paris: Les Belles Lettres, 2003.
562
CP II, 6, 16-17 [49]-[55].
255
homo em virtude da humanitas que lhe é inerente, assim como algo é forte
em virtude da fortitudo. Isso colocaria em plena evidência a significação
latente sob uma frase como agit enim cuiusque rei natura quod proprium
est.
A propósito, na prosa 10 do mesmo livro III Boécio já havia
estabelecido essa mesma estrutura do ser, porém, sob a forma da sua
negação na substância divina. Leia-se:
Ne hunc rerum omnium patrem illud summum bonum quo plenus esse
perhibetur uel extrinsecus accepisse uel ita naturaliter habere
praesumas quasi habentis dei habitaeque beatitudinis diuersam cogites
esse substantiam. Nam si extrinsecus acceptum putes, praestantius id
quod dederit ab eo quod acceperit existimare possis; sed hunc esse
rerum omnium praecellentissimum dignissime confitemur. Quod si
natura quidem inest sed est ratione diuersum, cum de rerum principe
loquamur deo, fingat qui potest quis haec diuersa coniunxerit.
Postremo, quod a qualibet re diuersum est, id non est illud a quo
intellegitur esse diuersum; quare quod a summo bono diuersum est sui
natura, id summum bonum non est; quod nefas est de eo cogitare, quo
nihil constat praestantius
563
.
Como se vê, do mesmo modo como fizera no DT, Boécio recusa a
distinção, em Deus, entre o sujeito substancial e a forma. Aliás, não parece
casual o emprego do verbo accipio nas linhas 42 e 46 (accepisse;
acceperit), pois se trata do mesmo verbo empregado na formulação do
princípio P2 do DH, segundo o qual as substâncias compostas, recebendo a
forma de ser (accepta essendi forma), são e subsistem. Consoante, ainda, ao
texto do CP que se acaba de citar, aquilo que, mutatis mutandis, poder-se-ia
chamar de uma forma essendi de Deus corresponderia à sua beatitudo, ou
seja, a beatitudo com a qual ele mesmo se confunde. Assim, não seria o
caso de afirmar que Deus, uma vez recebida a forma do bem (o que seria
como uma accepta bonitatis forma”), passa a ser o perfectum bonum
564
,
mas que, diferentemente, sempre tendo tido a beatitudo (habita beatitudo),
563
CP III, 10, 12-15 [40]-[55].
564
Cf. idem, 10 [34].
256
ele simplesmente é o perfectum bonum porque ele possui a bondade, ele se
confunde com ela (habens beatitudinem). É inevitável, aqui, a correlação de
uma tal afirmação com aquela vinda do DT e segundo a qual a substância
divina, por ser forma sem matéria e por ser una, é isto que é, ao passo que
todas as outras substâncias, não sendo forma sem matéria e sendo
compostas, não são isto que são
565
. Em Deus, com efeito, a posse da
bondade não pode ser extrínseca, isto é, não pode advir-lhe do exterior, nem
algo como uma “posse natural” (naturaliter habere; natura inesse), pois,
então, implicar-se-ia a distinção entre sujeito e forma, inadmissível para o
caso de Deus. Como afirmava o princípio P7 do DH, “tudo o que é simples
possui, numa unidade, o seu ser e isto que é”. Dessa maneira, observa-se
que a distinção entre a substância primeira e a substância segunda, apesar
da variação terminológica, mantém-se como o pano de fundo do pensamento
de Boécio exposto no CP.
Ainda no livro III, no início da poesia IX, observa-se como Boécio
associa o ser divino a uma forma, tal como já fizera no DT, a Forma do
sumo bem, inscrita na natureza divina e isenta de inveja:
O qui perpetua mundum ratione gubernas,
terrarum caelique sator, qui tempus ab aevo
ire iubes stabilisque manens das cuncta moueri
quem non externae pepulerunt fingere causae
materiae fluitantis opus, uerum insita summi
forma boni liuore carens
566
.
A forma divina constitui, pois, o sumo Bem, e adiante, na prosa 12,
Boécio explica que a substância de Deus, não consistindo em nada diferente
do sumo Bem, é tal que nem se dispersa nas coisas exteriores nem recebe
em si nada do exterior, mas, como diz Parmênides, é semelhante ao volume
565
Cf. DT II [90].
566
CP III, ps. IX [1]-[6].
257
de uma esfera bem redonda de todos os lados, e faz girar o mundo, sujeito
ao movimento, conservando-se, porém, ela mesma, em total imobilidade
567
.
Essa conclusão permite duas observações importantes: a primeira delas
refere-se à diferença entre Boécio e o pensamento neoplatônico, pois, como
se vê, seu esquema cosmológico não admite uma processão das substâncias
a partir do ser do primeiro Bem. A processão de que fala o DH seria uma
processão no sentido de origem, não de prolongamento ou de diminuição no
ser. Isso marca, portanto, a total diferença entre o ser divino e o ser das
substâncias, embora essa diferença (também numa orientação diversa à do
neoplatonismo) não implique oposição entre o ser do primeiro princípio e o
ser das coisas que dele procedem (as criaturas não são o “não-ser”), nem
total incognoscibilidade da realidade divina, ou seja, a diferença ontológica
entre Deus e as criaturas não implica que não se possa falar sobre Deus,
pois mesmo que não se possa afirmar nada diretamente de sua natureza
(quer dizer, que não se possa submetê-lo à lógica das categorias) e que todo
discurso sobre ele seja um discurso construído segundo a forma humana de
falar dele, também não se pode negar que, de alguma forma, aquilo que se
diz sobre ele possui algum sentido.
De outro lado, outra observação importante que se pode extrair da
afirmação segundo a qual a substância divina, não consistindo em nada
diferente do sumo Bem, é tal que nem se dispersa nas coisas exteriores nem
recebe em si nada do exterior refere-se à correlação que se pode estabelecer
entre essa afirmação e o princípio P4, do DH, segundo o qual, embora a
substância primeira possa ter algo além do que ela mesma é (quer dizer,
algo além de sua essência), o ser mesmo, porém, não tem nada de misto
para além de si. Ora, sendo Deus, numa unidade, sua “essência”
568
e isto que
ele é, então ele não tem nada de misto para além de si, e, portanto, tem de
567
Cf. CP III, 12, 37 [96]-[102].
568
Falar, aqui, de uma “essência” divina não significa supor a existência de um
universal como “Deus”.
258
ser o seu ser mesmo. Daí ser necessário que as criaturas tenham princípio a
partir dele, ou, na linguagem do DH, que o ser delas flua a partir dele.
Dessa perspectiva se vê como a forma essendi de Deus é a forma summi
boni, e, ao mesmo tempo, compreende-se que, procedendo dele, as coisas
possuam o ser como bom, ou, em outras palavras, para tudo o que há, ser e
ser bom será idêntico. Um contra-exemplo viria ainda do CP, onde se lê que
agir mal é caminhar para o nada, porque o mal não é nada. Com efeito,
segundo Boécio, assim como diante de um cadáver se diz dele que é um
homem morto e que não se pode pura e simplesmente chamá-lo de homem,
assim também é possível dizer que os maus sejam repletos de vício, mas
impossível de admitir que eles “sejam”, no sentido forte do termo, afinal,
isso que existe verdadeiramente mantém e conserva sua ordem natural, ao
passo que o que escapa a essa ordem, perde sua existência, que depende de
sua natureza boa. Assim, o poder dos maus viria não de sua força, mas de
sua fraqueza, pois a capacidade de fazer o mal não se lhes adviria caso eles
se tivessem podido preservar a capacidade de fazer o bem, que está inscrito
em sua natureza mesma. Assim:
Quare possibilitas eos euidentius nihil posse demonstrat; nam si, uti
paulo ante collegimus, malum nihil est, cum mala tantummodo
possint, nihil posse improbos liquet
569
.
Uma última ocorrência da terminologia metafísica empregada por
Boécio no CP e que interessa ressaltar aqui pode ser encontrada ainda no
livro III, quando, após haver definido em que consiste o sumo Bem (a
suprema felicidade), ele pergunta se uma tal realidade pode existir na
natureza das coisas:
In quo illud primum arbitror inquirendum, an aliquod huiusmodi
bonum, quale paulo ante definisti, in rerum natura possit exsistere, ne
569
CP IV, 2, 39 [112]-[115].
259
nos praeter rei subiectae ueritatem cassa cogitationis imago decipiat.
Sed quin exsistat sitque hoc ueluti quidam omnium fons bonorum,
negari nequit; omne enim quod imperferctum esse dicitur id
imminutione perfecti imperfectum esse perhibetur
570
.
Boécio lida com uma certa oposição entre a definição do primeiro Bem
e a sua existência in rerum natura, ou seja, sua existência real, ao modo de
substância primeira, como se fosse possível pensar essa oposição para o
caso do primeiro Bem. Com efeito, esse excerto compõe a argumentação do
terceiro livro do CP, exatamente no contexto em que, após haver fornecido
as condições formais para definir a felicidade (trata-se de um bem perfeito,
porque não carece de nada; completo, porque reúne em si todos os bens;
último, porque não há nada além dele nem nada de diferente dele que seja
desejável), Boécio procura saber qual realidade preenche tais condições e se
ela existe ou não na natureza das coisas. Assim, da perspectiva da
argumentação do livro III, a oposição mencionada acima parece legítima,
embora, como se sabe, ela se inviabilize ao atribuir-se ao primeiro Bem.
Quanto ao vocabulário, nota-se o emprego até então inédito do verbo
exsistere, como equivalente a esse ou subsistere.
A continuação do livro III lidará, ainda, com a equivalência entre esse
bonum e esse unum
571
, de maneira que todo ente permanece e subsiste
enquanto é um, mas perece quando sua unidade é dissolvida. Disso decorre
que todo ente também deseje a subsistência (subsistendi appetentia) e
procure se manter nela (manendi intentio). Pode-se concluir, portanto, a
partir do CP, que “é”, em sentido forte, aquilo que existe e possui uma
natureza; aquilo que subsiste na natureza das coisas. Desse tipo de ser
depende a verdade das noções, mencionadas no livro V e das quais se tratou
no capítulo segundo do presente trabalho. À margem disso haveria as coisas
inexistentes ou aquilo que não passa de uma cassa cogitationis imago.
570
CP III, 10, 2-3 [3]-[11].
571
Cf. CP III, 11, 9 [23]-[26].
260
A partir, então, do CP e dos Opuscula de Boécio (com exceção do DH),
parece possível estabelecer o seguinte quadro de relações:
OCORRÊNCIA TERMO OU EXPRESSÃO SENTIDO
FC [55] esse ser (sentido absoluto), existir
CEN I [65]
natura
natureza; “ser” próprio de
tudo aquilo que de algum
modo se diz ser
CEN I [80] natura
natureza; “ser” enquanto
entidade, substância
CEN I [95] natura natureza; forma ou espécie
CEN I [110] natura
natureza; diferença
específica
CEN III [235] id quod est
ØpÒstasij, substância
racional (ente); persona
CEN III [240]-[250] essentia
essência;
tradução de oÙs…a
CEN III [240]-[250] subsistentia
subsistência;
tradução de oÙs…wsij
CEN III [240]-[250] substantia
substância;
tradução de ØpÒstasij
CEN III [240]-[250] persona
pessoa;
tradução de prÒswpon
CEN III [240]-[250] substare
“estar sob”;
tradução de Øf…stasqai
DT II [80]
forma
forma transcendente (Deus
ou as formas existentes no
espírito divino)
DT II [110]
imago
Forma imanente (forma
individual que é princípio do
ser de cada ente individual)
DT II [80] ipsum esse
forma divina, ser mesmo e
princípio absoluto de todo ser
DT II [80] esse existir; ser próprio do ente
DT II [80] esse Ente
DT II [90] id quod est
substância segunda,
essência, forma
DT IV [200] id quod est substância primeira, ente
DT II [90] id quod sunt
plural de id quod est no
sentido de forma
DT II [90] substantia substância primeira, ente
DT IV [200] substantia
substância segunda,
essência, forma
DT V [295] id quod est esse ser (substância segunda)
CP II, 6, 16-17 [49]-[55]
esse fortis/fortitudo,
medecina/medicus etc.
distinção entre a forma e o
composto concreto
“bem perfeito”, expressão cujo
261
CP III, 10, 10 [34]
perfectum bonum
sentido nega, em Deus, a
composição entre sua
substância e sua forma: ele é a
própria bondade ou beatitudo
CP III, ps. 9 [6]
forma summi boni
“form a do sumo bem”,
expressão que associa o ser
divino a uma forma, a forma
do sumo bem
CP III, 10, 2 [6] exsistere
sinônimo de esse,
subsistere
CP IV, 2, 35 [102]-[105] malus
mau, aquele que não “é” no
sentido absoluto do termo
CP IV, 2, 35-39 [102]-[115] <esse = esse bonum>
<ser = ser bom>, corolário
extraído a partir de CP IV, 2, 35
CP III, 11, 9 [23]-[26] esse bonum = esse unum ser bom = ser uno
Figura 8
2. A metafísica do De hebdomadibus.
A partir do itinerário até aqui percorrido parece possível, então,
proceder a uma análise do vocabulário metafísico do DH, visando
encaminhar, portanto, a interpretação que se pretende atribuir, aqui, à
metafísica de Boécio, fundada principalmente na leitura do princípio P2 do
DH.
Esse princípio, como se afirmou anteriormente, sustenta a arquitetônica
conceitual do DH, e nele Boécio axiomatiza a distinção já estabelecida em
seus comentários a Porfírio e a Aristóteles, bem como no texto dos
Opuscula sacra e do CP. Trata-se, pois, de distinguir esse e id quod est,
mas a tarefa que se impõe imediatamente aqui consiste em precisar o
significado de ambos, uma vez que tanto esse como id quod est apresentam
uma variação considerável de sentido no conjunto da obra de Boécio.
No intuito de visualizar melhor essa variação, observem-se os
seguintes quadros:
262
Ocorrências e sentido de ESSE
OCORRÊNCIA
572
CORRESPONDENTE
EM GREGO
SENTIDO
IPEP I, 74, 15-17
e•nai
sinônimo de ens
IPES I, 137, 22-23
e•nai
ser (sentido absoluto),
existir
ICA II, 235A
tÕ e•nai taÙtÒn
ser, <qüididade>
ICA III, 278D-279A
™£n te Ï ™£n te m¾ Ï
ser (sentido absoluto),
existir
IDI VI, 477, 19-24
Øp£rcein
ser, (pertencer)
IDI VI, 478, 10-14
e•nai
ser (sentido absoluto),
existir
FC [55]
ser (sentido absoluto),
existir
DT II [80]
ser (existir), “ser” próprio
do ente
DT II [80] Ente
CP II, 6, 16-17 [49]-[55] Forma
CP IV, 2, 35-39 [102]-[115]
sinônimo de esse bonum,
existir
CP III, 11, 9 [23]-[26]
sinônimo de esse bonum e
esse unum, existir
IPEP I, 74, 15-17
tÕ t… Ãn e•nai
id quod est esse, ser,
essência, <qüididade>
ICA II, 235A
oŒj tÕ e•nai taÙtÒn
ipsum esse, o ser mesmo,
<qüididade>
DT V [295] id quod est esse, ser, ente
Figura 9
Ocorrências e sentido de ID QUOD EST
OCORRÊNCIA
CORRESPONDENTE
EM GREGO
SENTIDO
IPES I, 160, 3-13
entidade, referência à
existência real da substância
IPES I, 164, 17-21
<deÚtera oÙs…a>
essência, <qüididade>
IPES IV, 264, 6-12 ser acidental
IPES V, 325, 14 326, 1
<prèth oÙs…a>
a substância em sua
unidade real
ICA II, 216D
touqÓper est…n
substância, ente
IDI VI, 480, 22-26 essência, <qüididade>
572
Não se há de fornecer, nem neste quadro nem no próximo, todas as ocorrências de
esse e id quod est, mas apenas algumas que servem de exemplo.
263
IDI II, 170, 16-23 qualidade acidental
IDI I, 69, 24-70
Ôntoj
ente
CEN III [235]
substância racional
(persona, hypóstasis)
DT II [90] substância primeira, forma
DT IV [200] substância segunda, ente
ICA II, 235B
id quod sunt, essência,
<qüididade>
DT II [90] id quod sunt, forma
Figura 10
Já uma rápida observação desses dois quadros permite ver a complexa
variação de sentido do termo esse e da perífrase id quod est na obra de
Boécio. Além, evidentemente, do sentido da cópula (que se excluiu, aqui,
por ser um emprego óbvio), esse pode possuir também o sentido absoluto de
existir” ou, ainda, de ente e de forma. Por sua vez, id quod est pode
designar tanto a substância primeira como a substância segunda, além da
forma, da qualidade acidental e da substância tomada em sua unidade real
(por oposição a uma realidade quimérica).
2.1. Os conceitos-chave do De hebdomadibus.
Tomando-se o texto do DH por si mesmo, sem referência aos textos de
Boécio que lhe são anteriores, vê-se que o princípio P7, em conjunção com
P8, são fundamentais para a exegese de P2:
VII. Omne simplex esse suum et id quod est unum habet.
VIII. Omni composito aliud est esse, aliud ipsum est
573
.
De acordo com P7, todo ente simples possui, numa unidade, seu ser
(esse) e isto que ele é (id quod est). No mesmo sentido e sendo como que o
573
DH [40].
264
reverso de P7, P8 afirma que, para todo ente composto, um é o ser, outro,
isto que é. Ora, de acordo com P2, um é o ser (esse), outro, isto que é (id
quod est), de maneira que se obtém, já a partir de P7, P8 e P2 que o
princípio P2 aplica-se apenas aos entes compostos.
Com efeito, Boécio divide os entes em simples e compostos, e, se se
recorre à comparação do DH com outros textos, principalmente o DT (que,
segundo consta, foi redigido na mesma época), confirma-se claramente que
a atribuição de simplicidade se deve somente à realidade divina:
Nihil igitur secundum materiam esse dicitur, sed secundum propriam
formam. Sed diuina substantia sine materia forma est atque ideo unum
est, et est id quod est: reliqua enim non sunt id quod sunt
574
.
Adiante, associando esse a forma, Boécio ratifica a afirmação da
simplicidade divina e repete que, no caso da Trindade, a forma não é outra
coisa senão isto que é:
Non igitur si de Patre ac Filio et Spiritu sancto tertio praedicatur
Deus, idcirco trina praedicatio numerum facit. Hoc enim illis, ut
dictum est, imminet qui inter eos distantiam faciunt meritorum,
catholicis uero nihil in differentia constituentibus ipsamque formam,
ut est, esse ponentibus neque aliud esse quam est ipsum quod est
opinantibus, recte repetitio de eodem, quam enumeratio diuersi
uidetur esse
575
.
Aplicando-se às substâncias compostas a associação entre esse e forma,
bem como a distinção entre esse e id quod est, pode-se supor que esse, no
princípio P2 do DH, designe a forma, enquanto id quod est designa o todo
substancial, pois, considerando o caso da substância divina e falando de seu
ser (sua “forma”) distintamente de sua substância, Boécio emprega id quod
est justamente no sentido da substância, do “ente” divino, operando como
574
DT II [85]-[90].
575
DT III [145]-[155].
265
que uma distinção lógica com relação àquilo que seria a sua forma (o ser
divino), embora, como se sabe, não possa haver nenhuma distinção entre a
“forma” e a “substância” de Deus.
Ainda no DT, Boécio refere-se ao ser divino como aquele que não é
composto “disto ou disto, mas é apenas isto”, de maneira que é
verdadeiramente isto que é”
576
. Ora, ser composto “disto e disto” (ex hoc
atque hoc) é o caso do homem terreno, que, no exemplo do DT, é composto
de corpo e alma, ou seja, elementos que podem ser indicados como
realidades individuais que entram na composição do todo substancial. Deus,
ao contrário, é “apenas isto” (tantum hoc), quer dizer, é uma realidade
simples, isto que ele é: sua forma coincide com sua substância; em outros
termos, ser sua forma é sua substância:
Neque enim subiectum fieri potest: forma enim est, formae uero
subiectae esse non possunt
577
.
A apresentação das substâncias compostas “disto e disto”, quer dizer,
compostas de elementos que podem ser indicados como realidades
individuais que entram na composição do todo substancial permite, por
conseguinte, compreender P4, pois o todo substancial pode ter algo além do
que ele mesmo é, ao passo que o ser mesmo não tem nada de misto para
além de si. Dessa perspectiva, portanto, a afirmação vinda do DT, segundo
a qual todas as substâncias diferentes da substância divina não são id quod
sunt, e a associação direta entre esse e forma, além de confirmarem (e
serem confirmadas, ao mesmo tempo) por P8, também permitem observar
que não há razão para tomar o termo esse e a perífrase id quod est do DH
num sentido diferente daquele que se encontra no DT. Assim, esse seria a
forma em virtude da qual o ente particular se determina substancialmente,
sendo homem, cão ou pedra, enquanto id quod est seria isto que é, ou seja, a
576
Cf. DT II [100].
577
DT II [100]-[105].
266
substância concreta e particular, no sentido daquelas coisas que podem ser
apontadas com o dedo, conforme se mostrou acima, no capítulo 2
578
.
Além disso, a leitura do DH a partir da sua própria lógica interna e do
cotejo com o DT permite resolver uma questão que pode surgir da leitura de
P2, pois, nesse princípio, Boécio não fala apenas de esse e id quod est, mas
também da forma essendi. Haveria uma tríade conceitual em P2? Como
conceber a forma essendi?
Que a forma essendi seja diferente de id quod est é algo evidente, pois
a continuidade do próprio texto o assevera, dizendo que id quod est,
recebida a forma essendi, “é e subsiste”. Contudo, seria ela diferente
também do esse? Aqui pode abrir-se uma possibilidade muito promissora
para uma interpretação de Boécio como neoplatônico estrito, pois ao esse
poder-se-ia atribuir, por exemplo, o sentido do ser indeterminado de
Porfírio, enquanto à forma essendi reservar-se-ia o sentido da forma que se
acrescenta ao esse para produzir id quod est, ou seja, para produzir a
substância individual concreta. Essa posição, entretanto, não parece
harmonizar-se com o conjunto dos textos de Boécio, principalmente se se
tem em vista que esse e forma aparecem associados no DT e que não há
nenhuma relação de precedência entre ambos, afinal, coincidindo com a
forma, o ser, consoante os comentários lógicos de Boécio, seria como um
“ser informado” ou, se se quiser, um esse essentiatum”. Na verdade, a
expressão empregada por Boécio no DT guarda maior força, pois, como se
viu anteriormente, haveria inclusive uma certa distinção lógica que faria a
forma preceder o ser, a menos que na afirmação de Boécio esse seja um
sinônimo de ens: omne namque esse ex forma est
579
. Não é esse, porém, o
caso, pois Boécio, nesse contexto, fala da verdadeira forma que não é
imagem, de onde ele conclui que o ser provém da forma. Assim, se há uma
tríade em P2, ela parece tratar-se de uma tríade lexical, não conceitual, pois
esse, ao que tudo indica, associa-se diretamente à forma essendi. E é
578
Cf. IPES III, 234, 1: indiuidua quae sub ostensionem indicationemque digiti cadunt.
579
DT II [80].
267
curioso notar que P2 é a única ocorrência, em toda a obra de Boécio, da
expressão forma essendi.
Em favor da presente interpretação vem ainda P5, porque, segundo esse
princípio, no ser (no esse), que, de acordo com o DT, é sempre uma forma,
subentende-se um aliquid. Em outras palavras, na ordem da substância, ou
seja, na ordem daquilo que existe realmente como uma unidade concreta,
ser é sempre ser algo, pois o ser substancial equivale a ser algo “nisto que
é”, ao passo que o ser acidental é ser apenas algo. Isso dificultaria a
concepção de um “puro ser” em Boécio, um ser indeterminado ao qual se
acrescentaria uma forma. Leia-se:
V. Diuersum tantum esse aliquid et esse aliquid in eo quod est; illic
enim accidens hic substantia significatur
580
.
Na contrapartida, esse princípio e a interpretação aqui proposta
contribuem para esclarecer também a primeira parte de P6, segundo o qual
tudo o que participa do que é o ser, para ser, também participa de outro, a
fim de ser algo. Nesse princípio, observa-se a mesma expressão id quod est
esse, recorrente no comentário à Isagoge, no comentário ao Perì hermeneías
e no DT, substituindo, como se viu, o verbo esse no sentido da substância
segunda, quer dizer, no sentido segundo o qual Boécio traduz o grego tÕ t…
Ãn e•nai (essência ou <qüididade>). Leia-se:
VI. Omne quod participat, eo quod est esse, ut sit; alio uero
participat, ut aliquid sit. Ac per hoc id quod est participat eo quod est
esse, ut sit; est uero, ut participet alio quolibet
581
.
Parece, portanto, possível dizer que todo ente participa do ser (esse)
para ser aquilo que ele é substancialmente, participando, ainda, de “outro”,
580
DH [35].
581
DH [35]-[40].
268
isto é, de uma outra forma de ser, para ser algo acidentalmente. Assim, toda
substância primeira, ou seja, todo “isto que é”, efetiva uma dupla
participação: uma participação fundamental no ser, sem a qual nada
existiria, e uma participação acidental em qualquer outro tipo de ser. Com
efeito, servindo-se da linguagem dos princípios enunciados acima, a
primeira participação seria uma participação no esse, que equivaleria, no
limite, a um esse aliquid (no sentido de um “ser essenciado”), enquanto a
segunda seria uma participação num aliud quodlibet, um outro qualquer,
uma outra forma qualquer de ser, a fim de ser algo acidentalmente, quer
dizer, a fim de distinguir-se dos outros indivíduos que participam do mesmo
esse aliquid.
Dessa perspectiva, tudo o que é é algo, e, além de ser algo, é algo
individualmente, ou seja, distingue-se numericamente de outros entes que
possuem a mesma forma de ser. Por isso, falar de um esse puro, nas
criaturas, seria uma abstração, uma distinção meramente lógica, porque,
segundo esse modelo ontológico delineado pelos princípios do DH, ser é
sempre “ser algo determinado”. Se é assim, entende-se também, por
conseguinte, a afirmação boeciana de uma qualitas singularis para cada
ente: “ser”, em sentido forte, é “ser algo”, de maneira que inclusive a
definição deste algo não pode deixar de incluir a materialidade que o
compõe
582
.
Na contrapartida, participar do primeiro princípio ou de Deus, que é o
ser propriamente dito, não equivaleria propriamente a participar da natureza
divina, a possuir a mesma natureza de Deus, mas a participar da Forma que
se situa na mente divina ou no espírito de Deus. Isso, por sua vez, não
significa atribuir uma composição ao ser divino, mas preservar, pela
582
As conclusões de H. J. Brosh parecem ir na mesma direção, embora ele proponha
equivalências um pouco diferentes (aliás, difíceis de demonstrar, do ponto de vista do
texto de Boécio): esse seria a essência específica (a humanitas, por exemplo); forma
essendi seria o princípio de existir da coisa concreta; id quod est seria a essência
concreta (a socratitas ou a platonitas). Cf. BROSCH, H. J. Der Seinsbegriff bei
Boethius. Mit besonderer Berücksichtigung der Beziehung von Sosein und Dasein.
Innsbruck: F. Rauch, 1931, p. 65.
269
negação de que as coisas participem da sua natureza, a absoluta diferença
entre o primeiro princípio e as criaturas. Além disso, garante-se, ao mesmo
tempo, a origem divina do ser de todas as coisas.
A partir dessa interpretação resulta também compreensível o princípio
P4, segundo o qual isto que é pode ter algo além do que ele mesmo é, ao
passo que o ser mesmo não tem nada de misto para além de si. Com efeito,
os acidentes não pertencem ao ser, à forma de ser, mas provêm da matéria e
distinguem numericamente os indivíduos de uma mesma espécie. Além
disso, cotejando-se P4 com o DT e o CEN, observa-se que isto que é (id
quod est), sendo uma substância individual, concreta, e, portanto, composta,
pode ter algo além do que ele mesmo é, ao passo que o ser mesmo (ipsum
esse), ou seja, o ser algo substancial que faz a substância ser o que ela é,
não pode ter nada de misto, ou seja, é forma pura, é simples em si e por si.
Com efeito, se se retoma aqui o trecho do CEN que versa sobre a
subsistência das substâncias segundas, vê-se que, enquanto a substância
individual pode ter algo para além do que ela mesma é, o ser mesmo ou a
forma não pode ser um substrato de acidentes. Leia-se:
Substat autem id quod aliis accidentibus subiectum quoddam, ut esse
ualeant, subministrat; sub illis enim stat, dum subiectum est
accidentibus. Itaque genera uel species subsistunt tantum; neque enim
accidentia generibus speciebusue contingunt. Indiuidua uero non
modo subsistunt uerum etiam substant: nam neque ipsa indigent
accidentibus, ut sint; informata enim sunt iam propriis et specificis
differentiis, et accidentibus, ut esse possint, ministrant, dum sunt
scilicet subiecta
583
.
Desse excerto é importante colher duas observações: em primeiro
lugar, a confirmação de que os indivíduos não necessitam dos acidentes
para ser, pois não são pelos acidentes, mas pela forma determinada pela
diferença específica. Por conseguinte, Boécio exprime a prioridade
ontológica da forma, com relação aos acidentes, em termos temporais, pois
583
CEN III [210]-[220].
270
ele diz que os indivíduos não carecem dos acidentes para ser, uma vez que
(iam) foram informados por suas diferenças próprias e específicas. Ao
mesmo tempo, sendo, por certo, sujeitos, os indivíduos também permitem
aos acidentes que eles possam ser.
Essa prioridade que, no limite, é lógica, não cronológica, parece
relacionar-se diretamente com aquela afirmada em P6, segundo a qual a
substância primeira é “antes”, para que possa, “depois”, participar de algo.
O mesmo será confirmado por Boécio no DT:
(...) formae uero subiectae esse non possunt. Nam quod ceterae
formae subiectae accidentibus sunt, ut humanitas, non ita accidentia
suscipit eo quod ipsa est, sed eo quod materia ei subiecta est; dum
enim materia subiecta humanitati suscipit quodlibet accidens, ipsa
hoc suscipere uidetur humanitas
584
.
-se, pois, que a forma substancial humanitas não é suscetível de
acidentes por si mesma. Os acidentes se devem à matéria, que, informada
por uma forma substancial, contribui para a produção de um ente, dando a
impressão de que é a forma mesma que recebe os acidentes. Porém, de
acordo com o texto do DT e com o que se mostrou nos capítulos 1 e 2 do
presente trabalho, os acidentes se devem à matéria e sua razão de ser
consiste em distinguir numericamente os indivíduos de uma mesma
espécie
585
.
Dito de outra maneira, o princípio P4, que afirma, pois, o fato de a
substância primeira possuir “outras coisas” além de seu ser mesmo
(enquanto, na contrapartida, o ser mesmo não tem nada de misto para além
de si), poderia ser expresso em termos de participação, pois, segundo a
linguagem empregada por Boécio nos outros princípios, isto que é poderia
584
DT II [105]-[110].
585
Vale lembrar que, além da forma substancial ou a qualitas communis, Boécio fala de
uma forma individual ou qualitas singularis que fornece a definição de cada ente ou
cada indivíduo. Fazendo-o, a qualitas singularis indica a forma do ente mais as
características individuais que o distinguem de todo outro ente.
271
participar de outras formas de ser para “ser” em sentido diferente daquele
dado por seu ipsum esse, ao passo que seu ser mesmo não poderia participar
de nada, pois ele não é nada além do que é. Com efeito, expresso dessa
maneira, P4 conecta-se diretamente a P3, segundo o qual isto que é pode
participar de algo, ao passo que o ser mesmo não participa, de modo algum,
de algo. Ora, quando se comentava o princípio P6, acima, falava-se de
participação em sentido substancial, pois tratava-se de mencionar a
participação da substância primeira no ser, para ser; agora, porém, no que
se refere ao princípio P3, tem-se uma participação acidental, pois se trata
de falar daquilo que um ente pode ser para além daquilo que ele é enquanto
determinado por sua diferença específica. Leia-se:
III. Quod est participare aliquo potest, sed ipsum esse nullo modo
aliquo participat. Fit enim participatio cum aliquid iam est; est autem
aliquid, cum esse susceperit
586
.
Se se observam atentamente os termos empregados por Boécio na
expressão desse princípio, nota-se que o verbo participo reserva-se à
designação do id quod est quando este participa de uma forma que não é
aquela que determina a sua substancialidade, ou seja, uma forma acidental,
ao passo que, para designar a participação no ser, ou seja, aquela que
determina o que a coisa é, Boécio emprega o verbo suscipio. Assim, as
formas acidentais são participadas por isto que já é algo substancialmente,
enquanto as formas substanciais, ao contrário, são recebidas na matéria e
tornam-se, portanto, segundo a semântica do DT, imagens, sendo ditas
“formas” apenas por uma concessão da linguagem.
A partir da leitura dos princípios do DH feita neste capítulo e no
capítulo 1 do presente trabalho, parece possível defender que não apenas os
princípios P7 e P8 compõem um díptico, mas também P5 e P6, e P3 e P4. O
princípio P9, como se verá adiante, embora também possua um teor
586
DH [25]-[30].
272
manifestamente metafísico, não se refere diretamente à estrutura do ser,
como fazem P2 a P8. Por sua vez, P1 também se distingue desse grupo, pois
mostra-se um princípio mais metodológico do que dogmático. Todavia,
retomando os dípticos indicados acima, vale notar que a compreensão de
todos eles depende daquele princípio fundamental expresso em P2:
II. Diuersum est esse et id quod est; ipsum uero esse nondum est, at
uero quod est, accepta essendi forma, est atque consistit
587
.
Do ponto de vista da formulação dos conceitos, P2 parece compor um
tríptico com P3 e P4, pois todos eles falam especificamente da distinção
entre esse e id quod est. A esse respeito, vale notar que, assim como em P3,
também em P2 há uma certa noção temporal, pois, segundo Boécio, o ser
mesmo “ainda” não é, ao passo que isto que é, recebida a forma de ser, é e
subsiste. Com efeito, em P3, afirmava-se que o ser mesmo não participa de
nada, quer dizer, não é suscetível de acidentes; em P2, diz-se que ele “ainda
não é”. Isso parece confirmar que não faz sentido falar do ser nem como
“ser puro” (indeterminado) nem como pura forma que subsiste por si
mesma. A expressão ipsum esse nondum est parece indicar que as formas,
para Boécio, não possuem existência separada dos singulares, como se
confirma pela leitura do CEN, de capital importância aqui:
Atque, uti Graeca utar oratione in rebus quae a Graecis agitata Latina
interpretatione translata sunt, aƒ oÙs…ai ™n m•n to‹j kaqÒlou e•nai
dÚnantai: ™n d• to‹j ¢tÒmoij kaˆ kat¦ mšroj mÒnoij Øf…stantai, id est:
essentiae in uniuersalibus quidem esse possunt, in solis uero
indiuiduis et particularibus substant. Intellectus enim uniuersalium
rerum ex particularibus sumptus est. Quocirca cum ipsae subsistentiae
in uniuersalibus quidem sint, in particularibus uero capiant
substantiam, iure subsistentias particulariter substantes Øpost£seij
appellauerunt
588
.
587
DH [25].
588
CEN III [190]-[200].
273
Como se sabe
589
, Boécio estabelece a correspondência entre
subsistentia e oÙs…wsij instado pela necessidade de distinguir, com
precisão, substantia e subsistentia, cujas noções se viam implicadas no
termo oÙs…a. Este termo, cujo emprego marcava-se por certa ambigüidade
desde Aristóteles, não deixava de continuar a apresentar dificuldades para
Boécio, pois ele procurava um modo de designar simplesmente a substância,
por oposição aos acidentes, mas oÙs…a permitia ainda certa confusão, ao
incluir também o sentido de ØpÒstasij. Na linguagem do CEN, Boécio
preferirá associar, aos poucos, oÙs…a a essentia, e ØpÒstasij a substantia,
designando, entretanto, por subsistentia o modo de ser daquilo que não
carece de acidentes para ser; ele associará, ainda, subsistentia a esse
(e•nai), opondo-os a Øf…stasqai, “estar sob”
590
.
Dessa perspectiva, as Formas, que correspondem aos gêneros e às
espécies, são subsistências, quer dizer, dizem-se ser de algum modo, mas
independentemente dos acidentes, justamente porque elas não lhes
proporcionam um substrato. Além disso, essa subsistência não significa que
as formas possuam existência separada, porque é apenas nos particulares
que elas têm substância. Por outro lado, como entender essa subsistência
das formas à parte da sua “tomada de substância” nas coisas singulares?
Como entender que elas não sejam formas separadas, mas subsistam, ao
mesmo tempo, enquanto universais e como que “independentemente” dos
indivíduos?
A única maneira de responder a essa questão consiste em evocar aquilo
que se indicou no capítulo 2, ou seja, a existência das Formas, na mente
divina, como Formas exemplares, e o que interessa notar aqui é que a
expressão ipsum esse nondum est parece significar: (1) de um lado, que as
formas não possuem existência separada, ou seja, que as formas das
substâncias compostas são sempre formas imanentes, passando a ter
substância apenas quando se associam a uma porção de matéria; (2) de outro
589
Cf. CEN III [205].
590
Cf. CEN III [205]-[240].
274
lado, fora das coisas singulares, não haveria senão Formas transcendentes
que não “são”, propriamente falando, a não ser enquanto subsistentes no
espírito divino.
Como se viu pelas posições semânticas de Boécio, principalmente no
que se refere a seus conceitos metafísicos, o verbo esse possui uma gama
muito variada de significados, podendo designar o “existir” de maneira
geral, mas também um sentido determinado de subsistência in rerum natura.
Desse ponto vista, o esse, entendido como forma, não pode ser sujeito de
est, ao passo que id quod est, recebida <sua> forma de ser, é e subsiste. Por
outro lado, tomado no sentido geral de “existir”, est pode ser predicado
também de esse, segundo o uso de Boécio no CEN, ao dizer que as
subsistências ou as formas “são” nos universais. Neste caso, não se trataria
de uma subsistência in rerum natura, mas de uma subsistência no espírito
divino, o que permite entender por que o ser “ainda não é”, no sentido do
princípio P2, afinal, aí, “ser” não significa o existir em geral, mas o existir
in rerum natura, isto é, ao modo do id quod est, que “é” e que existe como
substância individual concreta.
2.2. A metafísica do De hebdomadibus.
Essa observação permite, aqui, ensaiar uma síntese dos elementos
obtidos no presente itinerário, na tentativa de esclarecer o núcleo do
pensamento metafísico de Boécio. Não se trata, evidentemente, de oferecer
uma interpretação que uniformize seu vocabulário, cujo emprego, como se
vê, é complexo e sinuoso; menos ainda de se ensaiar uma leitura que o
reduza a posições clara e rigidamente definidas, pois já uma rápida análise
dos quadros propostos nesta tese provaria o absurdo de um tal projeto.
Trata-se, no entanto, de procurar insistir sobre alguns dados que reaparecem
continuamente na obra de Boécio e que permitem, mesmo em meio à
variação de seu vocabulário, delinear os contornos de sua metafísica.
275
Ora, o modo mais indicado de se investigar a metafísica contida no DH
consiste, certamente, em retomar o estudo de sua resposta à questão-tema
desse opusculum, pois isso significa não apenas a adoção do método
imposto pelo texto mesmo, mas também a possibilidade de conhecer a
aplicação do vocabulário metafísico feita pelo próprio Boécio em sua
tentativa de responder à questão segundo a qual quomodo substantiae in eo
quod sint bonae sint cum non sint substantialia bona. Com efeito, é a
estrutura mesma do DH que exige, previamente à abordagem da solução
boeciana para essa questão, o exame de seus conceitos e princípios
metafísicos, pois, como se viu, antes de se dedicar a responder à questão,
Boécio define os princípios que lhe dão fundamento e determina, por
conseguinte, os termos e expressões que haveria de empregar na
continuação do seu texto.
Como se viu no capítulo 1, Boécio distingue entre o Bem supremo e os
bens criados, e essa distinção cobre, de acordo com o texto do DH, tudo
aquilo que existe, ou seja, toda a extensão do ente. Da perspectiva da
interpretação apresentada acima, “isto que é” corresponde aos bens criados
ou à substância primeira, quer dizer, o ente real e individual que subsiste na
natureza das coisas. O Bem primeiro, por sua vez, corresponde àquela
realidade primeira que é fundamento de todas as coisas.
De acordo com o DT, somente por um emprego extensivo se pode
predicar substância de Deus, pois, no limite, ele seria uma realidade
suprassubstancial
591
, ultra substantiam, enquanto, na contrapartida, as
591
Suprassubstancial no sentido de ser uma realidade que pode ser dita segundo a
categoria aristotélica de substância, mas que ao mesmo tempo a transcende. Trata-se da
subversão categorial de que fala Boécio quando afirma: At haec cum quis in diuinam
uerterit praedicationem, cuncta mutantur quae praedicari possunt (DT IV [180]). Com
efeito, a predicação que se emprega para falar dos seres compostos revela-se imprópria
para designar o ser divino, mas, no limite, é preciso admitir a necessidade dessa
linguagem, pois se trata da maneira humana de falar de Deus. Procedendo dele, a
criatura humana vê-se instada a pensá-lo e a falar dele, afinal, eles mantêm alguma
semelhança pela raiz do ser. Nesse sentido, pode-se dizer que, com o DH, Boécio terá
delineado o horizonte ontológico em que se há de mover a teologia, enquanto, com o
DT, haverá determinado os fundamentos lógico-lingüísticos deste tipo de saber, com
base numa teoria geral da predicação (cf. DE LIBERA, A. A filosofia medieval. Trad. de
276
substâncias se dão apenas no mundo material, pois somente pela matéria
uma forma ou essência pode tornar-se sujeito de acidentes. Na
contrapartida, porque a divina substância é forma sem matéria, ela é una e é
isto que é
592
, fato que a distingue radicalmente das substâncias criadas, cuja
existência na ordem das coisas não corresponde à própria forma. Ora, a
“forma” divina não é outra senão o bem, de maneira que Deus é a bondade
mesma, a bondade substancial, ao passo que as criaturas, por não serem sua
forma (mas o resultado da conjunção de sua forma com sua matéria),
embora sejam boas, não podem ser bens substanciais. A questão que se
impõe, portanto, a Boécio consiste em saber como isso se dá, ou melhor,
como se dá que as coisas sejam boas em virtude de sua substancialidade, ou,
se se quiser, de sua entidade, malgrado elas não se confundam com o
primeiro Bem. Com efeito, o bem substancial, o primeiro Bem, é apenas
bom e nada mais, pois, em virtude de ser, ele é bom nisto que é, ao passo
que, no tocante às coisas criadas, não é em virtude de elas serem que elas
são boas nisto que elas são, mas em virtude de elas procederem do primeiro
Bem
593
.
Boécio associa, portanto, a bondade das coisas ao seu próprio ser, não,
porém, sem prevenir que elas não são o bem substancial. Trata-se de notar
que, embora tudo possua sua forma própria e seja o que sua forma lhe
impõe ser, cada coisa é dita ser boa nisto mesmo que ela é. Assim, dizer que
as substâncias são boas equivale a dizer que isto que é é bom, embora a
maneira de ser bom não seja nem substancial em sentido forte, nem
acidental. Ora, é em virtude da forma ou do esse entendido como essência
Nicolás Nyimi Campanário e Yvone Maria de Campos Teixeira da Silva. São Paulo:
Loyola, 1998, p. 255). A transformação mencionada por Boécio será chamada por
Gilberto de Poitiers de “transsumpção”, uma passagem para além do que são as
categorias: aplicadas a Deus, elas se tornam suprassubstanciais. Com isso, no dizer de
H. Merle, Boécio assemelhar-se-ia ao Pseudo-Dionísio e estaria, também, indo mais
longe do que Agostinho, senão no que se refere ao pensamento, ao menos no que toca à
expressão lingüística (cf. BOÈCE. Courts traités de théologie Opuscula Sacra. Trad.
de Hélène Merle. Paris: Du Cerf, 1991, p. 136, nota 29).
592
Cf. DT II [90].
593
Cf. DH [110].
277
que as substâncias são e são o que são, de maneira que, se elas são boas no
que são, e se o que elas são elas o devem ao ser recebido do primeiro Bem
(esse <susceptum>), então o seu ser mesmo é bom. Daí viria a associação,
para as criaturas, entre ser e ser bom, afinal, sua bondade não pode ser
acidental em nenhum modo
594
, nem substancial como é substancial a
bondade divina. No limite, o ser e o bem coincidem; e as coisas são porque
receberam o ser de Deus. Mas não é porque Deus também se diz confundir-
se com o ser que as coisas se dizem Deus ou que o ser delas se diga ser o
mesmo que o ser de Deus. Num certo sentido, trata-se do “mesmo” ser (e,
portanto, da mesma bondade), pois não haveria um “outro” ser a partir do
qual Deus produziria as substâncias, mas, a um só tempo, não se trata
propriamente do mesmo ser divino, pois as criaturas são vistas como
distintas de Deus.
Essa distinção se confirma, ainda, pelo fato de as coisas serem o que
elas são sempre de maneira material, isto é, distintas individualmente por
uma matéria que faz com que a forma se atualize diferentemente em cada
caso concreto. No que se refere a Deus, ele simplesmente é o que ele é,
pois, não sendo ele material, também não há um universal de “Deus”
595
.
-se, pois, que é a distinção axiomática entre a substância e a
essência que constitui o pano de fundo da argumentação do DH. No caso de
uma interpretação que não tome a díade esse / id quod est no sentido da
distinção aristotélica entre a deÚtera oÙs…a e a prèth oÙs…a, corre-se o
risco de se fazer implicar uma série de contradições não apenas internas ao
DH, mas também ao conjunto de toda a obra de Boécio.
Assim, respeitadas as sinuosidades do léxico boeciano e sem querer
aplainar suas variações, esse corresponderia, no interior do DH, à forma
594
Nem mesmo como concomitante no sentido do concomitante necessário, como é o
caso da negritude do corvo, pois, enquanto a bondade das criaturas se deve à sua origem
a partir do primeiro Bem, o mesmo não ocorre com a negritude do corvo: ser negro, para
ele, embora não seja um simples acidente, também não se deve ao fato de ele provir do
primeiro Bem ou de um “primeiro negro”. Trata-se de atributos diferentes, como será
também o caso da brancura e da justiça para o homem.
595
Cf. DT III [120].
278
essendi que constitui a substância concreta como isto que é, ou seja, como
um “isto”, um ente, de maneira que a associação direta entre ser e ser bom
implica a bondade do ente particular como isto que é. Em outras palavras, o
ente é bom em virtude não de seu ser entendido como qüididade, mas de seu
ser enquanto originado no primeiro Bem e enquanto comunicado pelo
primeiro Bem, quer dizer, seu ser de substância concreta, cuja origem não
pode ser outra senão a fonte de todo ser, a bondade mesma.
Observa-se, na argumentação de Boécio, um pressuposto fundamental
que garante a coerência do DH: trata-se do pressuposto da diferença entre o
primeiro Bem e as demais substâncias, as quais são boas não por
participação, mas por substância, sem, entretanto, serem bens substanciais.
Por sua vez, esse pressuposto se fundamenta em duas razões: (1) a
simplicidade absoluta do primeiro Bem, pois, nele, não há nada além de seu
ser bom, ao passo que as substâncias, como se viu, são outras coisas além
do que elas são
596
; (2) e a processão das substâncias a partir do primeiro
Bem
597
. Portanto, não apenas o ser divino, mas também o ser das criaturas é
bom; a diferença residirá no fato de o ipsum esse de Deus ser fontal e
simples, enquanto o ipsum esse das criaturas é recebido, composto e
dependente da vontade divina
598
.
O exemplo da brancura e da justiça contribui, enfim, para explicitar a
interpretação que se pretende dar, aqui, à metafísica de Boécio. Dado que
Deus não é branco, as coisas que são brancas são “apenas brancas”, pois,
em continuidade com o quinto axioma do DH, “apenas ser algo” difere de
“ser algo nisto que é”. Ora, “apenas ser algo” é próprio do acidente,
enquanto “ser algo nisto que é”, ou seja, ser algo como ente, como
substância individual concreta, é próprio da substância primeira. Dessa
perspectiva, as coisas brancas “apenas são brancas”; elas não são brancas
nisto que são, quer dizer, não são brancas em virtude do fato de existirem.
596
Cf. DH [105].
597
Cf. DH [110]-[115]; [120].
598
Cf. DH [110]; [145]-[150].
279
Porém, como Deus não somente é bom, mas é a bondade mesma e nada mais
além de bom, todas as realidades que fluem a partir do seu querer são boas
nisto que são, ou seja, em seu ser substancial, embora, vale lembrar, elas
não sejam bens substanciais e guardem uma dessemelhança radical com o
primeiro Bem (non sunt similia primo bono)
599
. Em outros termos, a
bondade das criaturas não possui o mesmo caráter da brancura das coisas
brancas, mas, ao mesmo tempo, também não constitui o seu ser no sentido
da qüididade, pois elas não são a bondade mesma. Trata-se de uma bondade
associada ao ser enquanto existir, enquanto condição de ente, o esse no
mesmo sentido absoluto com que Boécio traduzia o e•nai do Perì
hermeneías ou das Categorias; aquele mesmo que, na Isagoge, será
empregado diretamente como sinônimo de ens; aquele, enfim, que, no DT,
corresponde ao ser próprio do ente, a existência real.
Assim, as coisas são boas em virtude de existirem, e isso equivale a
dizer que elas são boas porque procederam de uma realidade boa. Elas,
portanto, não são boas porque uma, dentre as várias formas das quais elas
participam, é também a da bondade. Sua bondade está associada ao seu ser,
ao seu ser “essenciado”, de maneira que cada ente participaria do ser divino
participando diretamente da Forma que lhe dá o ser e que reside no espírito
divino. É exatamente nessa participação que parece dar-se a vinculação
entre o ser das criaturas e sua bondade, mas uma tal participação, como se
vê, refere-se à bondade mesma das criaturas, ao seu ser, que participa de
uma Forma transcendente. Se é assim, então poderia haver participação,
pois, à parte o primeiro Bem, todas as outras realidades não existem
necessariamente; elas dependem do querer da realidade primeira a que se
chama primeiro Bem. Porém, uma vez determinada a existência de um ente
(uma vez que a realidade primeira o tenha desejado), implica-se
necessariamente a sua bondade, pois, no limite, o primeiro Bem não pode
produzir o que ele não é (ou o mal, o não-ser). Aqui, então, não há
acidentalidade, mas necessidade, pois nada poderia proceder do ser divino
599
DH [120].
280
sem que fosse bom. Vê-se, por isso, que, num certo sentido, a bondade das
coisas é o seu próprio ser, embora o seu ser não seja a bondade ela mesma
nem se defina como tal. No ICA, Boécio lança mão do termo natura e
afirma que aquilo que é bom é bom por natureza, embora também se possa
dizer “não-mau” secundariamente, como se “não-mau” se tratasse de um
acidente:
Nam id quod bonum est per naturam bonum est, quod uero malum non
est secundo loco et quasi accidenter est
600
.
Isso se confirma pela insistência de Boécio na diferença entre existir
em potência e existir em ato, pois, como se acaba de afirmar, as coisas não
poderiam existir de fato, quer dizer, em ato, caso aquela realidade que é
verdadeiramente boa assim não o desejasse:
Quae quoniam non sunt simplicia, nec esse omnino poterant, nisi ea
id quod solum bonum est esse uoluisset, idcirco quoniam esse eorum a
boni uoluntate defluxit, bona esse dicuntur. (...) Et quoniam actu non
potuere exsistere, nisi illud ea quod uere bonum est produxisset,
idcirco et esse eorum bonum est et non est simile substantiali bono id
quod ab eo fluxit (...)
601
.
Se se tem em mente, aqui, a distinção investigada no capítulo 2 entre
uma coisa quimérica e uma coisa realmente subsistente, pode-se pensar que
uma quimera não apenas não existe em ato como também não existe em
potência, pois ela se trata de um inexistente. Existir em potência, portanto,
não significaria qualquer existência que se imagine, mas apenas aquelas que
se inscrevem no mundo determinado pelas Formas. Na contrapartida, existir
em ato significará passar da possibilidade latente de atualização de uma
Forma à sua atualização de fato, e é nessa atualização que consistirá a
600
ICA 480 24-26.
601
DH [105]-[110]; [130]-[135].
281
bondade ou o ser de cada coisa concreta (embora também não se possa dizer
que uma existência potencial já não seja um bem).
3. Interpretações da metafísica boeciana.
O vocabulário metafísico de Boécio guarda, como se pode ver, certas
ambigüidades que se assemelham às de algumas posições aristotélicas.
Apenas para evocar as duas mais importantes e mais recorrentes neste
trabalho, vale lembrar que tanto o termo esse como a perífrase id quod est
podem designar não apenas a substância primeira, mas também a substância
segunda, embora, dentro dos contornos determinados por essa variação, a
concepção de esse como correspondente ao tÕ t… Ãn e•nai de Aristóteles se
imponha como dominante. Trata-se, pois, de esse como forma. A perífrase
id quod est, por sua vez, também se impõe, aos poucos, como designativo
da substância primeira. Além disso, também o termo essentia (abstrato de
esse) é marcado por uma forte ambigüidade, pois traduz ousía como um “ser
algo” determinado. Lembrar isso é importante porque o actu exsistere do
DH constitui justamente o núcleo da argumentação de alguns comentadores
e intérpretes que identificam a distinção operada em P2 com a distinção
entre a essentia, de um lado, e o esse ou actus essendi de outro.
Entre os intérpretes modernos, por exemplo, Luca Obertello, da
Universidade de Gênova (que dedicou grande parte de seu magistério aos
estudos boecianos e que editou, por exemplo, o De hypotheticis syllogismis,
além de ter traduzido Boécio em italiano e produzido uma série de
importantes textos sobre ele
602
), interpreta, inicialmente, a distinção entre
esse e id quod est como a distinção entre o ser na sua pureza universal,
602
Além das traduções italianas do De consolatione, dos Opuscula sacra e do De
hypotheticis syllogismis, Obertello publicou, em 1974, sua grande monografia intitulada
Severino Boezio, em dois volumes, e, em 1981, os Atti del congresso internazionale di
studi boeziani, que se realizou em 1980: OBERTELLO, L. (org.). Atti del congresso
internazionale di studi boeziani. Roma: Herder, 1981; OBERTELLO, L. “Motivi
dell’estetica di Boezio”. In: Rivista di estetica. 12, 3, 1967, pp. 360-387; ___________.
Severino Boezio. Genova: Accademia Ligure di Scienze e Lettere, 1974, 2 vols.
(Collana di Monografie).
282
absolutamente indeterminada e originária, e o ente, que participa do ser
para ser, isto é, para subsistir, e que subsistiria na medida em que uma
forma particular se viesse acrescentar ao ser para o determinar
603
. Essa
posição corresponde àquela que já havia sido apresentada nos anos 60, por
Pierre Hadot
604
. No congresso de 1980, porém, Obertello defende a mesma
posição, mas com um caráter um pouco diferente, porque ele associa aquilo
que, no seu dizer, Boécio entenderia pelo ser puro (indeterminado e
originário) a um princípio metafísico que entra na estrutura do ente, ao
passo que o id quod est designaria a existência em ato ou o ato de ser das
realidades particulares e determinadas. A partir disso, Obertello associa o
princípio de Boécio à distinção tomasiana entre a essência e o ato de ser,
tomando aquele como precursor desta
605
, pois, no seu dizer, “o ser é
considerado como forma, ou seja, como princípio metafísico; quanto à
substância, essa é princípio cognoscível, natureza ou essência. Posto que
Boécio distingue o ser da substância, segue que o ser não é princípio de
cognoscibilidade. Do quê, então, será ele princípio? Obviamente, de
existência real e, portanto, de atualidade. E voltamos novamente ao ato de
ser de Santo Tomás, àquele quid impossível de definir porque não entra no
âmbito do cognoscível; nem por isso ele é menos real e existente; aliás, ele
é muito mais real e existente, pois é exatamente o princípio da existência
atual”
606
.
Ora, além de um pouco diferente da sua primeira posição, essa segunda
interpretação de Obertello é, por outro lado, assaz audaciosa, porque
contraria frontalmente as conclusões de Pierre Duhem, publicadas pela
primeira vez já em 1917, as de M.-D. Roland-Gosselin, publicadas em 1926
603
Cf. OBERTELLO, L. Severino Boezio, op. cit., pp. 619-656 (“La dottrina
dell’essere”).
604
Cf. HADOT, P. “La distinction de l’être et de l’étant dans le “De hebdomadibus” de
Boèce”. In: Miscellanea Mediaevalia. Vol. 2. Berlim: De Gruyter, 1963, pp. 147-153 ;
_________. Porphyre et Victorinus. 2 vols. Paris: Etudes Augustiniennes, 1968.
605
OBERTELLO, L. (org.). Atti, op. cit., pp. 157-168.
606
Idem, p. 160.
283
também pela primeira vez, e as de H. J. Brosch, publicadas em 1931
607
. Com
efeito, esses três intérpretes apresentam três posições que vão no mesmo
sentido: a distinção entre esse e id quod est, em vez de antecipar a distinção
tomasiana entre essência e ato de ser, remeteria àquela aristotélica entre
substância segunda e substância primeira. Segundo Duhem e Roland-
Gosselin, Boécio ter-se-á inspirado em Aristóteles, via Temístio, para
reconduzir o esse à forma ou essência, dizendo, como se viu acima, que
omne esse ex forma est. Justamente por essa razão, convém acrescentar aqui
que o Aristóteles de Boécio consiste num Aristóteles lido “platonicamente”,
quer dizer, sem uma oposição estrita entre a Academia e o Liceu, de
maneira que Boécio se sente à vontade para fazer o id quod est correspoder
ao tÕde t…, a substância primeira concreta e realmente existente, resultante
da união de matéria e forma, enquanto, por sua vez, o esse corresponderia à
essência ou forma, substância segunda, comum a todas as realidades
pertencentes a uma mesma espécie. Dessa maneira, a distinção entre id quod
est e esse exprimiria a tensão entre concreto e abstrato, ou seja, entre
essência em si e por si, de um lado, e, de outro, a essência individual
(imagem da essência em si) com suas determinações individuais.
O estudo de M.-D. Roland Gosselin enquadra historicamente o axioma
de Boécio e encontra suas raízes, como é de esperar, na distinção entre
essência e existência operada primeiramente por Aristóteles, quando este
afirma que uma ciência pergunta a respeito de seu objeto: ele existe? Qual
sua natureza?
608
. Tais questões, embora versem sobre o mesmo objeto, não
podem ser respondidas pelos mesmos métodos, pois, enquanto a
607
Cf. DUHEM, P. “Digression au sujet d’un axiome de Boèce: l’esse, le quod est, le quo
est”. In: __________. Le Système du Monde de Platon à Copernic. Vol. V. Paris:
Librairie Hermann et Cie., 1917, pp. 285-316 (reimpressão de 1954); ROLAND-
GOSSELIN, M.-D. Le “De ente et essentia” de S. Thomas d’Aquin. Texte établi
d´après les manuscrits parisiens. Introdução, notas e estudos históricos de M.-D. R.-
Gosselin. Lille: Desclée de Brouwer, 1926 (reimpressão de 1948, Paris: Vrin); BROSCH,
H. J. Der Seinsbegriff bei Boethius. Mit besonderer Berücksichtigung der Beziehung
von Sosein und Dasein. Innsbruck: F. Rauch, 1931. (Philosophie und
Grenzwissenschaften).
608
Cf. ARISTÓTELES, Segundos analíticos 89b24ss.
284
demonstração pode estabelecer a existência de uma realidade, somente a
definição permite conhecer sua essência. Haveria, inclusive, do ponto de
vista aristotélico, uma ordem na proposição dessas perguntas, pois se pode
pensar que primeiro é preciso saber o que é a coisa a respeito da qual se
pergunta se ela existe, porque, se não se concebe o que ela é, também não
se pode reconhecer sua existência, mas essa maneira de proceder não
ofereceria senão uma primeira noção ou definição que seria nominal, e,
como tal, não diria nada nem da essência nem da existência da coisa. Uma
definição real, ao contrário, supõe a existência do definido
609
, e, portanto,
antes de conhecer verdadeiramente o que é uma coisa, é preciso saber se ela
existe (inclusive já pelo auxílio de uma propriedade acidental qualquer
610
).
Como lembram os exemplos de Aristóteles, isso não significa dizer que as
definições não impliquem jamais a existência do definido, mas que a
definição nominal é sem objeto. Ora, afirmar a existência de uma realidade
com base na mera presença de uma noção ou de uma proposição ao espírito
seria sofismar, pois se pode pensar o não-ser, sem, porém, poder-se concluir
daí que ele é; ou, então, dizer que “Homero é poeta”, mas sem afirmar, por
isso, que Homero existe
611
.
Essa observação de Aristóteles estaria na base de sua distinção lógica
entre essência e existência, distinção essa que, de acordo com o pensamento
do estagirita, não sugeriria uma distinção real. Ao contrário, a posição de
Aristóteles diante da ciência platônica tê-lo-ia orientado rumo à identidade
entre essência e existência, e mesmo em Platão o estatuto dessa possível
distinção é altamente complexo, pois, como bem lembra R.-Gosselin, Platão
não parecia distingui-las senão quando separava a essência, a fim de lhe
atribuir existência absoluta
612
. Ao discutir o pensamento do mestre,
Aristóteles se pergunta sobre a identidade ou a distinção da essência com a
609
Cf. idem, 92b4-35.
610
Cf. idem, 93a21.
611
Cf. ARISTÓTELES, De sophisticis elenchis 166b37 167a4; De interpretatione 21a18-
28. Cf. o comentário de ROLAND-GOSSELIN, M.-D., op. cit., p. 138.
612
Cf. ROLAND-GOSSELIN, M.-D., op. cit., pp. 138-139.
285
substância primeira individual
613
, mas não diretamente com a existência.
Assim, a forma humana, em Cálias, é distinta de Cálias ou lhe é idêntica?
A resposta de Aristóteles a essa questão distingue, de saída, dois casos,
o da substância e o do acidente, pois a forma substancial da coisa deve ser-
lhe necessariamente idêntica, enquanto a forma acidental deve ser-lhe
distinta. Em Sócrates, por exemplo, a forma humana é idêntica a Sócrates,
mas sua brancura distingue-se dele. De fato, se cada forma acidental se
identificasse com o sujeito, a identidade se faria também entre as formas
acidentais, e seria necessário confundir, num único ser, o ser acidental que
faz de Sócrates um ser branco, com, por exemplo, o ser que faz dele um ser
músico. Em seguida
614
, Aristóteles distingue a substância simples da
substância composta, e afirma que somente na substância perfeitamente
simples pode haver identidade entre a forma e a substância individual; na
substância composta, entretanto, por causa da matéria que é parte essencial
da substância, a forma considerada sozinha não pode ser identificada à
substância individual. Assim, a alma de Sócrates, por exemplo, que é sua
forma, não se identifica com Sócrates ele mesmo, pois ele é essencialmente
alma e corpo. Por isso, somente a substância simples possui unidade
perfeita, mas Aristóteles não quer dizer que falte unidade à substância
composta ou que a unidade lhe advenha do exterior, pois ela vem do ser
mesmo, afinal, se a substância é a causa própria do ser (pelo fato de ela ser
princípio de unidade), ela é una por ela mesma. Isso se explica, finalmente,
apesar da composição da substância, porque matéria e forma são, entre si,
como potência e ato: a matéria é a forma em potência; e a forma, a matéria
em ato
615
.
Além disso, uma outra distinção aristotélica (mais ligada à lógica, mas
não menos à metafísica) que, como indica R.-Gosselin
616
, preparou
613
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica 1031a15ss.
614
Cf. idem, 1037a34-b7; 1043b1-4; De anima 429b10ss.
615
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica 1037b8-27; 1041b6-28; 1045a7-b24; 1003b22-33.
616
Cf. ROLAND-GOSSELIN, M.-D., op. cit., pp. 140-141.
286
historicamente a distinção real entre essência e existência, trata-se da
distinção entre o necessário e o contingente. A contingência tem por
princípio a matéria, e não pode qualificar senão as transformações
acidentais às quais a matéria se presta. Os seres simples, ao contrário, são
necessários. Ora, não havendo nenhuma idéia de criação no pensamento
aristotélico, o ser que existe não tem outra razão de ser do que sua
existência mesma: no caso das substâncias simples, se o ser existe, existe
necessariamente por natureza; no caso das substâncias compostas,
reconhecida sua contingência, essa contingência somente se explicaria,
segundo Gosselin, por uma generalização da idéia de potência
617
. Não é
casual, portanto, que Boécio insista na simplicidade do ser divino e na
composição das criaturas. Entretanto, para ele, como se viu anteriormente,
será necessário recorrer à noção de criação para se poder considerar
inteligível o cosmo.
No que se refere ao seu vocabulário metafísico, Gosselin lembra que,
no DT, Boécio associa a forma ao esse e, para designá-la, ele emprega uma
construção sintática em que o verbo esse rege um dativo: idem est esse Deo
quod justo; idem est enim esse Deo quod magno
618
. Em seguida, Boécio
escreve: [oportebit] inspicere formam quae uere forma nec imago est, et
quae esse ipsum est, et ex qua esse est; omne namque esse ex forma est
619
.
Como adverte Gosselin
620
, uma primeira leitura desses excertos expõe ao
risco de não se atentar para a identificação entre a forma e esse, a qual seria
explícita na construção quae esse ipsum est. Em seguida, incorrendo nesse
equívoco, tem-se a tendência de se dizer o que é a forma a partir das
expressões que seguem à referida construção (ex qua esse est; omne esse ex
forma est). Nesse sentido, a forma não seria o ser, mas o princípio do ser,
ao modo de Aristóteles. Os exemplos, porém, que Boécio dá em seguida
617
Cf. idem, p. 141.
618
Cf. DT IV [190]-[195].
619
Cf. DT II [80].
620
Cf. ROLAND-GOSSELIN, M.-D., op. cit., pp. 142-143.
287
parecem ir numa direção diferente, segundo R.-Gosselin: a estátua é dita
efígie de um animal pela forma impressa no bronze; o bronze é bronze por
sua forma própria e não por causa da terra, que é sua matéria; a terra é terra
não por causa de sua matéria primeira, mas pela sequidão e o peso, de
maneira que nada se diz ser segundo a matéria, mas segundo sua forma
própria. Assim, para Boécio, esse designaria a efígie como tal, o bronze
como tal, ou a terra, e não significa de maneira alguma a sua existência. No
que se refere à substância divina, sendo pura forma, ela é perfeitamente
uma, pois é a forma que a faz ser isto que ela é. As criaturas, ao contrário,
não são isto que elas são, porque o seu esse é composto, como o homem,
por exemplo, que é composto de corpo e alma, e não pode ser dito, portanto,
nem uma nem outra de suas partes isoladas: ele não é corpo nem é alma,
mas corpo e alma. A existência, portanto, segundo Gosselin, não entra na
composição da criatura; trata-se de sua essência mesma, composta, no caso
do homem, de corpo e alma, e a distinção que essa composição produz
refere-se à distinção entre a essência total (id quod est homo) e uma das
partes que a constituem.
No tocante ao DH, Gosselin lembra que esse é empregado para
significar tanto a essência substancial como a essência do acidente. Assim,
a dificuldade do DH (saber como as substâncias são boas) só faz sentido se
se identificar a essência substancial das criaturas com a essência do bem. A
estratégia de solução de Boécio lembrará, então, o texto de Aristóteles
621
: se
cada forma acidental se identifica com a substância, os acidentes de um
mesmo sujeito são idênticos entre si. É nesse nível que permanece o texto
de Boécio. Não se fala aí, portanto, de existência distinta de essência. A
identidade que Boécio identifica em Deus é a identidade da substância e da
forma divina; a distinção que ele identifica nas criaturas é uma distinção
entre a substância primeira e a forma. Segundo Gosselin, Boécio, sob esse
aspecto, teria permanecido inteiramente fiel a Aristóteles.
621
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica 1031a15ss.
288
O estudo de Pierre Duhem, por sua vez, consiste numa vasta pesquisa a
respeito do sentido em que se dizia o princípio corrente entre os medievais,
segundo o qual omne quod est citra primum est compositum ex quod est et
quo est, tal como registra a Summa theologica de Alexandre de Hales
622
, e
aponta Boécio não como quem cria esse princípio, mas como quem organiza
e completa o trabalho de Santo Hilário, que seria o verdadeiro autor da
idéia central desse princípio: em Deus, primeiro princípio, a natureza ou a
essência é, ao mesmo tempo, o próprio princípio de existência. Nesse
sentido, o trabalho de Boécio, segundo Duhem, consistirá em dar às
expressões id quod est, quo est e esse o significado que Hilário de Poitiers
não havia dado, a começar por distinguir nas criaturas o quod est e o esse.
Com efeito, em seu De Trinitate, Hilário afirma, repetidas vezes, que
Deus é o único ser cujo princípio é ele mesmo, quer dizer, Deus é o ser
necessário; ele mesmo é o princípio de sua própria existência. Leiam-se,
por exemplo, os seguintes excertos:
Eius esse in sese est, non aliunde quod est sumens, sed id quod est ex
se atque in se obtinens. (...) habens in se et quod ipse est, et ex quo
ipse subsistit (...) Deo proprium esse id quod est, non ambigens
sensus est: quia id quod est non potest intelligi nec dici non esse
623
.
Segundo a leitura de Pierre Duhem, observa-se que, nesses textos, para
designar Deus, tomado tal como ele é, Hilário emprega a perífrase id quod
est, enquanto, para designar o princípio da existência de Deus, ele emprega
esse. No segundo texto, porém, visando designar o princípio da existência,
aquilo que faz existir, Hilário substitui esse pela expressão ex quo est.
Trata-se do contexto da afirmação segundo a qual, pelo fato mesmo de o
Verbo ser Deus e de Deus estar no Verbo, Deus não está fora do Verbo. Ao
622
Cf. ALEXANDRE DE HALES, Summa theologica, pars II, q. 20, membrum 2, artigo 2.
Apud: DUHEM, P., op. cit., p. 287.
623
HILÁRIO DE POITIERS, De Trinitate II, 6; V, 37; XII, 24. In: MIGNE, J.-P. Patrologiae
cursus completus. Series latina, tomus 10 (2) Sanctus Hilarius Pictaviensis.
Reimpressão. Turnhoult: Brepols, 1991, cols. 55A; 155B-C; 447B.
289
contrário, se ele é Deus e se Deus é nele, isso não provém senão de Deus
mesmo, de maneira que, nele, há tanto isso que ele é, como aquilo pelo qual
ele subsiste. Assim, não haveria distinção entre o ser de Deus e isto que
Deus é, e dizer isso significa, para Hilário, a afirmação necessária da
existência de Deus, uma vez que um ser como ele não poderia não existir.
Importa notar, aqui, o emprego da perífrase id quod est para designar a
existência de Deus tal como ele é, e do infinitivo esse para designar o
princípio de existência. Transpostas essas expressões para o caso das
criaturas, parece possível dizer que id quod est designaria a existência
atual, concreta, diferentemente de esse, que designaria o princípio dessa
existência atual. Como nota Pierre Duhem
624
, embora Hilário de Poitiers
pretendesse exprimir-se com clareza “conceitual” e em continuidade com o
pensamento grego, ele nem sempre recorria ao vocabulário filosófico
clássico, nem fazia alusão à doutrina das diferentes escolas, o que
explicaria sua necessidade de forjar uma expressão como id quod est
625
.
No que toca a Boécio, Duhem o apresenta como um herdeiro direto de
Hilário, se não exatamente no nível conceitual, ao menos no plano das
expressões, e identifica, ainda, a distinção boeciana entre id quod est e esse
com a distinção feita por Temístio
626
entre uma certa água concreta e a
natureza específica da água. Para Boécio, a água concreta seria o id quod
est, enquanto a natureza específica da água, a essência aquosa, é o esse que
os gregos chamam de oÙsia. Em Deus, segundo Boécio, o esse e o quod est
são idênticos, porque Deus é forma pura. Nas criaturas, o id quod est é a
coisa concreta e realmente existente que produz a união da matéria e da
624
Cf. DUHEM, P., op. cit., p. 287.
625
Com efeito, não há notícia de que a perífrase id quod est tenha sido empregada antes
de Hilário de Poitiers. Sêneca propõe traduzir tÕ Ôn por quod est (cf. Carta a Lucílio
58, 5-6), mas a expressão id quod est não parece provir dele.
626
Cf. TEMÍSTIO. In libros Aristotelis de anima paraphrasis III, 5. In: TEMÍSTIO. On
Aristotle’s On the soul. Trad. de Robert B. Todd. Ithaca & Nova Iorque: Cornell
University Press, 1996. Cf., também, DUHEM, P. “La théorie de l´intelligence humaine
Thémistius”. In: __________. Le Système du Monde. Histoire des doctrines
cosmologiques de Platon à Copernic. Vol. IV. Paris: Librairie Hermann et Cie., 1916,
pp. 383-387.
290
forma, enquanto o esse, a essência, é a forma comum a todos os indivíduos
de uma mesma espécie, tal como o peso é a forma específica comum a todos
os corpos pesados.
A partir dessas indicações, pode-se concluir que ser água consiste em
possuir a forma da água. Boécio faz supor, via Temístio, essa associação
entre forma e essência: a forma é o que é verdadeiramente, é o esse mesmo,
e é por ela que o esse existe. Com efeito, todo esse provém da forma. Se
uma estátua é dita a efígie de algum animal, não é por causa da matéria em
que ela está esculpida, mas em virtude da forma que se esculpiu nessa
matéria, de maneira que nada, então, se diz “ser” em virtude da matéria,
mas em virtude da sua forma própria. Assim, segundo Pierre Duhem, a
fórmula diuersum est esse et id quod est de Boécio deve ser entendida da
seguinte maneira: a essência (o esse), que é a forma, não se confunde com a
coisa concreta e realmente existente (o id quod est).
Duhem continua sua investigação, mostrando como os primeiros
filósofos árabes receberam e empregaram a idéia de forma. Abou Masar, diz
ele
627
, empregava o termo “forma” acompanhando o uso comum da época,
pois chamava de forma humana aquela pela qual todo indivíduo de uma
certa espécie é dito homem; ou forma eqüina aquela pela qual algo se diz
cavalo. Ora, a humanidade e a eqüinidade que fazem que um homem seja um
homem e que um cavalo seja um cavalo serão constantemente tomadas por
Avicena como exemplo de essência no sentido da qüididade
628
. Assim, tanto
para Abou Masar como para Boécio, a essência não se distinguiria, segundo
Pierre Duhem, da forma específica
629
.
De todo modo, o que mais interessa ao itinerário desta tese é notar
como são divergentes as primeiras interpretações modernas da metafísica
627
Cf. DUHEM, P., Le système du monde, op. cit., vol. V, pp. 289-290.
628
Cf. idem, ibidem.
629
O texto de Duhem investiga, ainda, a recepção da distinção boeciana por autores
como Anselmo de Cantuária, Gilberto Porretano, Al Gazali, Guilherme de Auxerre,
Guilherme de Auvergne e Tomás de Aquino, mas não vem ao caso, aqui, retomar seu
texto por inteiro, pois isso estenderia demais a presente análise.
291
boeciana. Pareceu, então, importante recompor, aqui, as análises de Pierre
Duhem e M.-D. Roland-Gosselin por estarem ambas na origem das
interpretações oferecidas pelos autores do século XX, mesmo no caso
daqueles que optam por uma posição diferente. Por outro lado, além de seu
valor histórico, essas análises avalizam a interpretação que o presente
trabalho pretende dar à metafísica de Boécio.
Vale dizer, porém, que, embora a leitura de Gosselin seja rigorosa e
válida em sua conclusão, percebe-se que ele pretende uniformizar o
emprego boeciano do substantivo forma e do infinitivo esse, como fica
visível pela sua leitura de um momento do DT (DT II [80]). Como se viu
anteriormente, nesse trecho, os termos forma e esse são marcados por uma
ambigüidade explícita que os faz designar tanto o ser divino como a
essência das coisas ou o ente. De um lado, forma pode ser tanto o ser divino
como a essência das coisas; de outro, esse pode designar tanto o ser divino
como o ente. Dessa perspectiva, portanto, a leitura de Gosselin não
considera a variação semântica sobre a qual se procura insistir aqui, a qual,
porém, é confirmada, de certa maneira, pelo estudo de Duhem, afinal,
embora a perífrase id quod est se imponha, aos poucos, como um
designativo da substância primeira, ela não parece, entretanto, ter sido
composta por Boécio com o fim de traduzir o tÕde t… aristotélico. Ao
contrário, ela terá sido tomada de Hilário de Poitiers; e é a partir dessa
herança “lingüística” que Boécio parece forjar as outras expressões como id
quod est esse, id quod quid est, id quod quale est etc.
A posição de Gosselin e Duhem, entretanto, não é inédita, pois os
precede uma longa tradição que inclui autores como Tomás de Aquino,
Alberto Magno e Gilberto Porretano, entre outros, e que interpreta o axioma
boeciano num sentido metafísico, razão pela qual essa tradição, ela mesma,
poderia ser chamada “metafísica”, pois não interpreta P2 num sentido
teológico que associa, respectivamente, esse e id quod est com o primeiro
Bem e o ente criado, tal como ocorrerá com uma outra tradição que se
evocará adiante. Evidentemente, tais autores não podem ser considerados
292
“intérpretes” de Boécio no mesmo sentido, por exemplo, de Duhem,
Gosselin e Brosch, pois, mais do que interpretar, eles comentaram o texto
boeciano enquanto filósofos de primeira grandeza. Com efeito, a primeira
interpretação metafísica dos axiomas do DH foi proposta, ao que tudo
indica
630
, por Gilberto Porretano, que, embora não negasse a legitimidade de
uma interpretação teológica, optava por uma leitura “natural”, não
teológica, e lia os axiomas à luz de sua concepção do ser enquanto
subsistentia (e forma essendi), ao passo que id quod est equivaleria ao
subsistens. Assim ele traduz o princípio P2 do DH:
Diuersum est esse, idest subsistentia, quae est in subsistente, et id
quod est, idest subsistens in quo est subsistentia: ut corporalitas et
corpus, humanitas et homo
631
.
O caso de Tomás de Aquino é muito particular, pois ele conserva o
vocabulário de Boécio, mas constrói, a partir dele, uma nova metafísica,
marcada, principalmente, pela influência de Avicena
632
. Por exemplo, em
seu comentário ao DH de Boécio, Tomás toma o termo esse no sentido forte
de existir, enquanto, no comentário às Sentenças de Pedro Lombardo
633
, ele
630
Cf. MAIOLI, B. Teoria dell’essere e dell’esistente, op. cit., pp. 18-19.
631
GILBERTO PORRETANO, De hebdomadibus 27-44”. In: HÄRING, N. M. (ed.)
Commentaries on Boethius by Gilbert of Poitiers. Toronto: Pontifical Institute of
Mediaeval Studies, 1966, pp. 193-196.
632
Cf., de Tomás de Aquino, principalmente o De ente et essentia, os comentários ao De
hebdomadibus e ao De Trinitate de Boécio, o comentário às Sentenças de Pedro
Lombardo e a Summa contra gentiles. Cf., também, FABRO, C. “Intorno al fundamento
della metafisica tomista”. In: ________. Tomismo e pensiero moderno. Roma: Pontificia
Università Lateranense, 1969, pp. 163-190; ________. Participation et causalité selon S.
Thomas d’Aquin. Louvain & Paris: Publications Universitaires de Louvain & Editions
Béatrice-Nauwelaerts, 1961; GEIGER, L.-B. La participation dans la philosophie de S.
Thomas d’Aquin. Paris: Vrin, 1953; MCINERNY, R. Boethius and Aquinas.
Washington: The Catholic University of America Press, 1990; ROLAND-GOSSELIN, M.-D.
Le “De ente et essentia” de S. Thomas d’Aquin. Texte établi d´après les manuscrits
parisiens. Introdução, notas e estudos históricos de M.-D. R.-Gosselin. Paris: Vrin,
1948. Cf., ainda, MAIOLI, B. Teoria dell´essere e dell´esistente e classificazione delle
scienze in M. S. Boezio. Una delucidazione. Roma: Bulzoni, 1978.
633
Cf. TOMÁS DE AQUINO, In I Sent., dist. VIII, q. 5, a. 2. In: TOMÁS DE AQUINO.
Commento alle sentenze di Pietro Lombardo e testo integrale di Pietro Lombardo.
293
apresenta, por exemplo, o seguinte emprego de quod est e quo est: quod est
designa, nas substâncias materiais, o substrato mesmo que tem ser; nas
substâncias espirituais, ele designa a forma; quo est, por sua vez, exprime,
nas substâncias materiais, a forma ou a natureza composta de matéria e
forma, ou ainda o ato de ser pelo qual a substância existe, e, nas
substâncias espirituais, ele designa o ato de ser. Aqui residiria a diferença
fundamental entre Tomás de Aquino e Boécio, pois este último, conforme
indicam seus textos, não pensou no ato de ser de acordo com o sentido
tomasiano. Na contrapartida, para Tomás, o ser não pode ser idêntico à
essência, a não ser no caso de um único ser, a realidade primeira, que,
justamente por isso, ou seja, justamente por possuir uma essência idêntica
ao próprio existir, é causa necessária de toda substância composta.
Esse ato de ser ao qual as coisas seriam chamadas pode ser
vislumbrado já na maneira humana mesma de conhecer, pois, segundo
Tomás de Aquino
634
, pensar uma essência significa compreendê-la em tudo o
que ela é, com todas as suas partes. Ora, se uma essência pode ser pensada
sem esta ou aquela “parte”, é porque esta ou aquela parte não pertencem à
essência como tal, de maneira que, se elas lhe são atribuídas, isso se faz a
partir do exterior. Como, portanto, toda essência pode ser pensada sem o
seu ser, o ser é atribuído de fora à essência. A união de ambos forma um
composto, impedindo, por conseguinte, a identificação entre essência e ser.
A prova metafísica desse raciocínio recorre à existência de Deus, pois ele é
o único ser no qual essência e existência não se distinguem (caso contrário,
ele se multiplicaria e se diferenciaria), enquanto em todas as outras
substâncias o ser se distingue da essência. Esse é justamente o mesmo
Libro I. Distinzioni 1-21. Vol. 1. Trad. de Roberto Coggi. Bolonha: Edizioni Studio
Domenicano, 2001, pp. 527-535.
634
Cf. TOMÁS DE AQUINO, In II Sent., dist. I, q. 1, a. 1. In: TOMÁS DE AQUINO.
Commento alle sentenze di Pietro Lombardo e testo integrale di Pietro Lombardo.
Libro II. Distinzioni 1-20. Vol. 3. Trad. de Carmelo Pandolfi e Roberto Coggi.
Bolonha: Edizioni Studio Domenicano, 2000, pp. 27-35. Cf. o comentário de R.-
Gosselin: ROLAND-GOSSELIN, M.-D., op. cit., pp. 187-189.
294
esquema empregado por Avicena para demonstrar que o ser necessário é
único, e que, além dele, toda essência é possível
635
.
Como lembra M.-D. R.-Gosselin
636
, a afirmação do ato de ser em Tomás
de Aquino pode ser obtida, fundamentalmente, a partir de duas
argumentações, aquela que prova a impossibilidade de a realidade primeira
se diferenciar e aquela que mostra como o ser criado não pode ser seu ser:
(1) um ser cuja essência consiste em existir e que é seu ser mesmo
não pode, por si mesmo, ser “diverso”, porque ele
simplesmente é. Além disso, se ele fosse diferenciado a partir
do exterior, isso seria feito ou por uma forma, ou por uma
matéria, ou por um substrato no qual ele seria recebido.
Porém, caso ele fosse determinado por uma forma, ele não
seria mais simplesmente ser, e, no caso de ser recebido numa
matéria ou num substrato, ele não subsistiria em si e não seria
infinito todas opções contraditórias;
(2) por sua vez, um ser criado, como tal, não pode ser seu ser,
porque ele é causado por um outro: o que é causado por um
outro não é, evidentemente, por si, e, então, o ser criado não
subsiste por si, como subsiste necessariamente o ser cuja
essência é existir. Por outro lado, ser causado não convém à
natureza mesma das coisas criadas, pois, se assim fosse, todo
ser seria “essencialmente causado” e não haveria causa
primeira. Se é assim, ser causado (vir a existir) convém às
coisas criadas por uma razão distinta de sua essência.
Essa posição, entretanto, não parece ser, de maneira alguma, a posição
de Boécio, embora este também insista, de um lado, na identificação, em
Deus, entre substância e forma, e, de outro, na necessidade da existência do
635
Cf. AVICENA, Metafísica I, 7, nn. 43-47. In: AVICENA. La métaphysique du Shifa´.
Trad. de Georges C. Anawati. Paris: Vrin, 1978, pp. 118-122.
636
Cf. ROLAND-GOSSELIN, M.-D., op. cit., pp. 188-189.
295
primeiro Bem, por oposição à existência contingente das substâncias
criadas. A identificação em Deus, segundo Boécio, é, portanto, a
identificação entre a substância e a forma; a distinção, porém, que ele
identifica nas criaturas, é a distinção entre a substância primeira e a forma.
Não parece legítimo, portanto, interpretar o esse boeciano no sentido do
actus essendi
637
, ato contingente de ser e de existir, contraposto ao quod est,
concebido como essência possível.
Ao lado dessa tradição metafísica, há também uma tradição teológica
de interpretação do pensamento boeciano. Na verdade, segundo consta,
trata-se da tradição mais antiga, pois a ela pertencem as primeiras
interpretações do DH, ainda sob a forma de glosas. Seus autores são João
Escoto Erígena ou Remígio de Auxerre, que identificavam, respectivamente,
esse e id quod est com o primeiro Bem e o ente criado
638
. Assim, segundo o
texto a eles atribuído, as coisas podem ser ditas Deus antes de virem a
existir como coisas concretas, pois em Deus não pode haver nada além de
Deus
639
, de maneira que o esse seria como uma espécie de esse
simpliciter”, enquanto id quod est seria o ente.
Além de Escoto Erígena e Remígio de Auxerre, também a interpretação
de Teodorico de Chartres tomava esse e forma como próprios de Deus, tanto
porque apenas Deus é o ser e a forma de ser de todas as coisas (forma
637
A esse respeito não se pode deixar de mencionar o clássico de Etienne Gilson:
GILSON, E. L’être et l’essence. Paris: Vrin, 1948.
638
Cf. RAND, E. K. Johannes Scottus. I. Der Kommentar des Johannes Scottus zu den
Opuscula Sacra des Boethius. II. Der Kommentar des Remigius Von Auxerre zu den
Opuscula Sacra des Boethius. Munique: C. H. Beck’Sche Verlagsbuchhandlung, 1906.
Na verdade, a discussão sobre a autoria desses comentários a Boécio é altamente
complexa. Trata-se do primeiro corpo de glosas aos Opuscula sacra, escrito já no século
IX, e, embora E. K. Rand as publique atribuindo uma parte a Escoto Erígena e outra a
Remígio de Auxerre, M. Cappuyns sustenta a unidade do corpo de glosas e o atribui
unicamente a Remígio. Suas pesquisas foram, depois, confirmadas por P. Courcelle:
CAPPUYNS, M. “Les plus ancien commentaire des Opuscula sacra”. In: Recherches de
théologie ancienne et médiévale. Vol. III. Louvain: Abbaye du Mont-César, 1931, pp.
237-272; COURCELLE, P. “Etude critique sur les commentaires de la Consolation de
Boèce”. In : Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen-Age. Paris : Vrin,
Ano 14, 1939, pp. 5-140.
639
Cf. JOÃO ESCOTO ERÍGENA, In Boeth. Hebd (édition E. K. Rand, p. 52, 9-12): Omnes
enim res quaecumque sunt, ante essentiam, id est antequam in formam essendi veniant,
deus sunt (...) quia in deo nihil aliud potest esse nisi deus.
296
essendi omnium rerum), como porque, enquanto Deus não participa nem
pode participar de nada, cada ente “é” enquanto participa da forma de ser de
Deus
640
.
No que se refere, porém, à literatura crítica contemporânea, essa
interpretação teológica praticamente inexiste. Apenas Etienne Gilson tê-la-
ia defendido em seu Le thomisme, mudando, todavia, de posição, em La
philosophie au Moyen Age. Com efeito, nas edições de 1945 e 1965 de Le
thomisme
641
, Gilson afirma que Boécio, incontestavelmente (sic), entende
por esse a existência, mesmo se ele distingue (no dizer de Gilson) entre
Deus e as subtâncias criadas ao se referir à diferença entre esse e id quod
est. Assim, Deus seria o esse, o ipsum esse que não participa de nada, mas
de quem todas as coisas (id quod est) participam enquanto são.
Curiosamente, em La philosophie au Moyen Age
642
, dos anos setenta, Gilson
admite a equiparação do esse à forma e do id quod est ao composto
material, insistindo, inclusive, que Boécio ainda não propunha nitidamente
o problema da relação entre essência e existência, mas o da relação entre a
substância e o princípio de seu ser substancial, isto é, o princípio que a faz
ser como substância.
Salvo, portanto, a primeira leitura de E. Gilson, as interpretações
contemporâneas da metafísica de Boécio inscrevem-se mais na tradição
metafísica do que na tradição teológica. Nesse sentido, Pierre Hadot, em
1963, publicou um artigo
643
que desenvolvia, a um só tempo, duas intuições
importantes para a história da interpretação da metafísica de Boécio: uma,
muito apropriada, sobre a formação intelectual de Boécio e sua influência
neoplatônica; outra, não tão defensável como a primeira, que associava a
concepção boeciana de ser ao e•nai de Porfírio. Com efeito, segundo Hadot,
640
Cf. TEODORICO DE CHARTRES, Abreviatio monacensis: De hebdomadibus 21-49. In:
HÄRING, N. M. (ed.) Commentaries on Boethius by Thierry of Chartres and his
school. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1971, pp. 408-413.
641
Cf. GILSON, E. Le thomisme. Paris: Vrin, 1944, p. 131.
642
Cf. GILSON, E. La philosophie au Moyen Age. Paris: Payot, 1976, p. 149ss.
643
Cf. HADOT, P. “La distinction de l’être et de l’étant dans le “De hebdomadibus” de
Boèce”. In: Miscellanea Mediaevalia. Vol. 2. Berlim: De Gruyter, 1963, pp. 147-153.
297
toda a argumentação do DH, visando falar da bondade dos entes, consiste
em mostrar que o ser dos entes não é uma forma como as outras, mas
anterior a todas as outras, de modo que, para entender o texto de Boécio,
seria indispensável situá-lo diante da fonte grega da qual ele tomou a
distinção entre o ser e o ente. Essa fonte seriam os textos neoplatônicos,
razão pela qual, segundo Pierre Hadot (e ele o confirma em seu Porphyre et
Victorinus
644
), o ipsum esse de Boécio corresponderia ao ser puro e privado
de forma, tendo em vista que ipsum esse nondum est, ou seja, “ainda não é”,
ao passo que o id quod est, recebida a forma de ser, é e subsiste. Ora, essa
distinção designaria o ser, a pureza do ser, e ligaria diretamente o ser de
Boécio ao e•nai de Porfírio, ser que não participa de nada, não se mistura a
nada, esse solum, sem ser sujeito nem predicado, ao passo que o ente
participaria do ser para ser, isto é, para subsistir, e subsistiria na medida em
que uma forma particular se viesse acrescentar ao ser para o determinar.
Numa direção semelhante vai a interpretação de Gangolf Schrimpf
645
,
que publicou uma importante investigação sistemática do DH, analisando,
ainda, sua recepção na Idade Média. Para Schrimpf, o ipsum esse de Boécio
pode designar o ser absoluto que é a plenitude do ser e do qual se diz que
“ainda não é”, ou um momento do ser absoluto, enquanto as infinitas
possibilidades nele contidas se descolam e se realizam, particularizando-se
no espaço e no tempo sem perder nunca seu caráter transcendental. Essa
interpretação, porém, além de dificilmente compreensível (por exemplo,
como conciliar o que Schrimpf chama de “descolamento” das realidades
finitas com o caráter “transcendental” delas?), pretende, ainda, imputar a
Boécio falhas terminológicas
646
e distinções
647
que este não opera. Assim, na
644
Cf. HADOT, P. Porphyre et Victorinus. 2 vols. Paris: Etudes Augustiniennes, 1968.
645
Cf. SCHRIMPF, G. Die Axiomenschrift des Boethius (De hebdomadibus) als
philosophisches Lehrbuch des Mittelalters. Leiden: Brill, 1966. (Studien zur
Problemgeschichte der antiquen und mittelalterlischen Philosophie).
646
Cf. idem, pp. 23-26; 28.
647
Schrimpf pensa que Boécio distingue claramente entre id quod est esse e ipsum esse e
assume em seu livro essa distinção (cf. idem, pp. 16; 21), quando, na verdade, ele não
se dá conta da variação terminológica que caracteriza a obra boeciana.
298
base da interpretação de Schrimpf, apesar de sua engenhosidade, parece
estar um desconhecimento da semântica determinada pelo conjunto da obra
de Boécio. Mais recentemente, também Alain de Libera ofereceu, de
maneira breve, uma interpretação da distinção boeciana entre esse e id quod
est que vai na mesma direção. De maneira geral, ele segue a posição de
Pierre Hadot e denuncia o fato de os medievais não se terem dado conta do
caráter porfiriano do esse de Boécio
648
. Todavia, em seu livro sobre a
abstração ele relativiza de certa maneira sua primeira posição
649
.
Numa direção oposta vai a interpretação de H. J. Brosch
650
, Sofia
Vanni-Rovighi
651
, B. Maioli
652
, L.-M. De Rijk
653
, S. MacDonald
654
, Juan
Acosta Rodríguez
655
e J. Marenbon
656
. De certa maneira, as posições desses
autores, de caráter mais especulativo, confirmam-se pela pesquisa
filológico-semântica do presente trabalho. As posições, entretanto, de
Gilson e Hadot (e, por conseguinte, também a primeira posição de De
Libera) implicam uma série de problemas que parecem insolúveis da
648
Cf. THOMAS D’AQUIN & DIETRICH DE FREIBERG. L’être et l’essence. Le vocabulaire
médiéval de l’ontologie. Trad. de Alain de Libera e Cyrille Michon. Paris: Seuil, 1996,
p. 31ss.
649
Cf. DE LIBERA, A. L’art des généralités. Théories de l’abstraction. Paris: Aubier,
1999, pp. 159-280.
650
Cf. BROSCH, H. J. Der Seinsbegriff bei Boethius, mit besonderer Berücksichtung
der Beziehung von Sosein und Dasein. Innsbruck: Rauch Verlag, 1931. (Philosophie
und Grenzwissenschaften IV.1).
651
Cf. VANNI-ROVIGHI, S. “La filosofia di Gilberto Porretano”. In: Miscellanea del
Centro di studi medievali. Milão, 1955, pp. 8-18.
652
Cf. MAIOLI, B. Teoria dell´essere e dell´esistente e classificazione delle scienze in
M. S. Boezio. Una delucidazione. Roma: Bulzoni, 1978.
653
Cf. DE RIJK, L.-M. “Boèce logicien et philosophe: ses positions sémantiques et sa
métaphysique de l´être”. In: OBERTELLO, L. (ed.). Congresso internazionale di studi
boeziani. Atti. Roma: Herder, 1981, pp. 141-156; _______________. “On Boethius’s
notion of being. A chapter of Boethian semantics”. In: KRETZMANN, N. (ed.). Meaning
and inference in Medieval Philosophy. Dordrecht & Boston & London: Kluwer
Academic Publishers, 1988, pp. 1-29.
654
Cf. MACDONALD, S. “Boethius’s claim that all substances are Good”. In: Archiv für
Geschichte der Philosophie. Berlim: Walter De Gruyter, 1988, Ano 70, Vol. 3, pp. 245-
279.
655
Cf. RODRÍGUEZ, J. A. “Los conceptos esse et id quod est en Boecio”. In: Ciudad de
Diós Revista Agustiniana. El Escorial: Real Monasterio, vol. CCII, n. 1, janeiro-abril
de 1989, pp. 613-656.
656
Cf. MARENBON, J. Boethius. Oxford: Oxford University Press, 2003.
299
perspectiva exatamente da semântica de Boécio. Com efeito, se se atém ao
Gilson de Le thomisme, parecem distanciar-se irremediavelmente o DH e o
DT, uma vez que o primeiro fala do ipsum esse como parte dos seres
compostos, enquanto o segundo fala de ipsum esse como a forma suprema
ou Deus. Além disso, como seria explicável a variação do sentido de esse
nos nove axiomas do DH (por exemplo, nos axiomas segundo e oitavo)? No
caso específico da posição de Hadot, a argumentação do DH parece
fundamentar-se exatamente no contrário do que ele defende, ou seja, na
identificação do ser com o bem, em vez da dissociação de ambos para
chegar ao puro ser. Se não fosse assim, de onde viria a inteligibilidade de
um enunciado como aquele em que Boécio afirma que “o primeiro Bem é
tanto o ser mesmo, como o bem mesmo, como o ser bom mesmo”? No
limite, Hadot interpreta o DH com elementos exteriores ao texto, recorrendo
ao “contexto” neoplatônico, mas sem apontar para elementos visivelmente
neoplatônicos no texto. Em seguida, para provar essa interpretação que ele
adota gratuitamente, Hadot diz ser necessário ir às fontes gregas para
compreendê-la e prová-la. Cria-se, assim, um círculo do qual não parece
possível sair. Numa palavra, Gilson e Hadot não parecem “eriugenizar”
Boécio? Se Gilson escapa a essa interrogação, a Pierre Hadot ela parece
bastante aplicável, pois, como se viu acima, em seu comentário ao DH,
Escoto Erígena (ou Remígio de Auxerre) afirma que omnes enim res
quaecumque sunt, ante essentiam, id est antequam in formam essendi
veniant, deus sunt (...) quia in deo nihil aliud potest esse nisi deus
657
.
Porém, a atribuição de inconsistência à leitura teológica do DH não
significa que a leitura metafísica também não possa implicar problemas
graves de interpretação. E isso é tanto mais verdadeiro se se considera que
ela pode ser contradita pelo capítulo 6 do livro VII (Z) da Metafísica de
Aristóteles
658
, quando este se pergunta pela identidade de cada ser com a
sua qüididade, e elenca uma série de argumentos contra a tese platônica da
657
JOÃO ESCOTO ERÍGENA, In Boeth. Hebd (édition E. K. Rand, op. cit., p. 52, 9-12).
658
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica Z, 6, 1031a15-1032a10.
300
separação das formas, confirmando, por outro lado, sua tese de que, em se
tratando de substâncias primeiras que se dizem por si, a essência da coisa
individual e a coisa individual são uma única e mesma realidade. Desse
ponto de vista, enquanto Boécio fala de uma diversidade entre esse e id
quod est (segundo a interpretação metafísica), Aristóteles falaria da
identidade entre ambos. Por outro lado, Boécio também admite, como se viu
anteriormente, a plena imanência das formas das realidades sensíveis na
matéria, assim como Aristóteles admite a separabilidade mental, e,
portanto, a distinção lógica (não real) entre a forma e isto do que ela é
forma. Porém, a diversidade entre esse e id quod est poder-se-ia reduzir, no
interior do pensamento boeciano, a uma distinção meramente lógica? Além
disso, como a interpretação metafísica assimilaria a variação do vocabulário
aristotélico na Metafísica e nas Categorias? Com efeito, Aristóteles, na
Metafísica, designa a forma chamando-a, mais de uma vez, de “substância
primeira”
659
, ao passo que, nas Categorias, ele reserva essa expressão para
designar o composto.
A resposta a essas questões, entretanto, não parece difícil de ser dada
se se coteja a análise do DH proposta no primeiro capítulo deste trabalho
com a determinação da semântica boeciana levada a cabo no segundo e no
terceiro. Grosso modo, pode-se responder que a filiação aristotélica da
distinção boeciana entre esse e id quod est não implica, porém, um caráter
meramente lógico para essa distinção, pois, como se viu, Boécio chega a
falar de formas transcendentes, presentes no espírito divino, que seriam
imitadas pelas formas imanentes às coisas individuais em composição com a
matéria. Além disso, a variação do vocabulário aristotélico parece
compreensível se se considera, de um lado, o ponto de vista empírico das
Categorias, segundo o qual “substância primeira” é o composto, e, de outro,
o ponto de vista teórico da Metafísica, que por essa expressão entende a
forma ou a essência. Tal variação, em vez de ser um obstáculo para a
interpretação da metafísica boeciana, pode ser, ao contrário, um outro ponto
659
Cf. idem, 1032b1-3; 1037a5-27.
301
de apoio para a identificação do primado da forma, fazendo, por isso,
manifestar-se mais claramente aquela tensão constante e original entre
platonismo e aristotelismo que perpassa a obra de Boécio e que torna
improcedente qualquer tentativa de decidir se sua metafísica é mais
platonizante do que aristotelizante ou vice-versa.
4. A metafísica do ser.
As conclusões a que chega H. J. Brosch consistem em dizer que o
sentido de esse, para Boécio, é oscilante e incerto, podendo significar ora o
que se diz em alemão Sosein, ora o que se diz Dasein, e, portanto, não se
pode decidir por uma interpretação “existencialista” ou “essencialista”,
visto que a ontologia boeciana alternaria entre essas duas posições. Nessa
mesma direção ele é seguido por Lucca Obertello e por V. Schurr
660
, embora
Schurr se dê conta de que a oscilação entre Sosein e Dasein seja
constitutiva do duplo sentido de esse.
Parece, entretanto, mais próximo ao texto de Boécio (como se procurou
mostrar, aqui, pela fixação de suas posições semânticas) falar não de uma
oscilação e de uma alternância entre um sentido existencialista e um
essencialista, mas de uma variação de sentido conforme o contexto, na linha
da mesma variação lexical que se observa já entre os gregos. Além disso,
em seu estilo esotérico e axiomático, Boécio parece empregar o termo esse
como se o seu sentido já fosse conhecido: no caso do DH, tal sentido não
pode não ser um sinônimo de forma ou forma essendi, pois, caso contrário,
uma série de contradições haver-se-iam de introduzir no texto, como se
indicou acima. Ademais, é essa associação de esse e forma que permite
aproximar o DH ao DT e aos outros textos, numa interpretação de conjunto
coerente.
660
Cf. SCHURR, V. Die Trinitätslehre des Boethius, im Lichte der “skythischen
Kontroversen”. Paderborn: Schöningh, 1935. (Forschungen zur christlichen Literatur
und Dogmengeschichte).
302
Com efeito, Boécio insiste que omne esse ex forma est, concluindo que
nihil igitur secundum materiam esse dicitur sed secundum propriam
formam. Assim, esse é sempre o ser de uma forma, e a forma substancial faz
ser em sentido absoluto (esse aliquid in eo quod est), ao passo que as
formas acidentais fazem ser “em outro” (esse aliquid tantum). Assim, como
já se indicou anteriormente, o ser boeciano não é um ser abstrato, universal,
indiferenciado, mas um ser potenciado, esse aliquid. O ser das realidades
finitas é um esse que participa de uma forma, é uma estrutura que faz ser
algo, forma essendi trata-se de uma forma que dá contemporaneamente o
ser em sentido absoluto e o ser algo, sendo, portanto, princípio ontológico
estrutural e existencial ao mesmo tempo. Não faria sentido, segundo
Boécio, pensar em algo que exista e seja indeterminado, pois, segundo o
princípio por ele mesmo assumido no CEN, esse et unum conuertuntur.
Sendo, portanto, princípio de determinação e de existência, a forma faz ser,
determinando e informando a matéria, e constituindo, então, o id quod est,
o concreto existente que est atque consistit.
Para empregar termos tardios, parece possível dizer que o esse
boeciano implica estruturalmente a essência e o ato de ser, porque, para
Boécio, o ato de ser não pode derivar senão da forma. Dessa perspectiva, a
insistência sobre o esse em seu aspecto formal-estrutural não significa
reduzi-lo ao papel de uma pura essência possível que espere o ato de ser.
Dizer o contrário parece equivaler ao erro de ler Boécio à luz da distinção
escolástica entre essência possível e ato de ser
661
.
Vale dizer ainda que, como uma espécie de corolário dessa concepção
da estrutura do ente finito, obtém-se que, na realidade intramundana, não há
“formas puras”; todas as formas, portanto, são imanentes. A única Forma
pura, absolutamente originária e primeira, é Deus; nele subsistem as Formas
puras que são os modelos eternos existentes na mente divina. Por
conseguinte, as formas-imagens, imanentes às criaturas, não existem em si e
661
Cf. VANNI-ROVIGHI, S. “La filosofia di Gilberto Porretano”, op. cit., pp. 9-12.
303
por si, e, quando se unem à matéria para produzir um ente concreto, o fazem
participando do ser primeiro de Deus.
4.1. Participação: susceptio/acceptio e participatio.
Para fundamentar essa estrutura metafísica do ente finito, Boécio
recorre, portanto, a um “esquema” conceitual bastante comum para a sua
filiação filosófica, qual seja, o da participação. Com efeito, após haver
determinado, no princípio P2, a distinção entre esse e id quod est, ele passa
a falar, em P3, da possibilidade da participação como um outro fator que
diferencia o ser e o ente: quod est participare aliquo potest, sed ipsum esse
nullo modo aliquo participat, pois fit enim participatio cum aliquid iam est;
est autem aliquid, cum esse susceperit. A criação, assim, é vista, segundo
um esquema neoplatônico, como um irradiar-se ou uma processão
participativa de formas-imagens a partir da Forma primeira, por meio de
Formas arquetípicas. A propósito, é com participatio e os derivados do
verbo participo que Boécio traduz os termos mšqexij, metous…a e outros
correlatos, tal como empregados por Porfírio
662
. Certamente é a partir da
Isagoge de Porfírio e dos Elementos de teologia de Proclo que Boécio se
põe em continuidade com a tradição neoplatônica, introduzindo, entretanto,
como se viu no primeiro capítulo, mudanças importantes nesse quadro
conceitual, tal como se impunha à sua própria argumentação.
Para tomar como exemplo apenas o caso de Porfírio, vale lembrar que
ele recorre à participação para resolver platonicamente o problema da
relação entre o uno e o múltiplo ou o universal e o particular. No seu dizer,
se a espécie, e sobretudo o gênero, reduzem o múltiplo ao uno (a uma só
662
Cf. PORFÍRIO, Isagoge 6, 21-23; 17, 6-8; 18, 11-14; 19, 5-6; 21, 11; 22, 9-10 (ed.
Busse); II, 12, p. 8; XIV, 2, 21; XV, 1-2, 22; XVII, 1, 23; XXIV, 2, 26; XXVI, 2, 27
(ed. De Libera). Na edição de De Libera, como se sabe, pode-se consultar a tradução
latina de Boécio, nas mesmas páginas. Para consultar o texto crítico estabelecido por L.
M.-Paluello, cf.: ARISTÓTELES. Aristoteles latinus. Vol. I, 6-7 (Categoriarum
Supplementa). Ed. L. Minio-Paluello & G. Dod. Bruges & Paris: Desclée de Brouwer,
1966, pp. 1-31.
304
natureza), as coisas particulares e individuais, ao contrário, fazem o uno
dispersar-se numa multiplicidade. Assim, em virtude de sua participação na
espécie, a multidão dos homens faz-se um só homem, ao passo que, por
causa dos homens particulares, o único e comum homem torna-se múltiplo,
de onde se conclui que tudo o que é individual é sempre fator de divisão,
enquanto aquilo que é comum é fator de compreensão e unificação
663
. Além
disso, Porfírio insiste em dizer que enquanto os indivíduos participam
sempre do mesmo modo do gênero, da espécie, da diferença e do próprio,
eles participam do acidente de modo diverso, pois um indivíduo não pode
ser mais ou menos animal, homem, racional etc., ao passo que pode ser mais
bom do que ruim e vice-versa, além de mais ou menos branco etc.
Dessa perspectiva, vê-se que a participação, aqui, não é uma noção
lógica, mas antes de tudo ontológico-predicamental, pois emerge da teoria
porfiriana a consistência ontológica, unitiva e fundante, da única e idêntica
essência, implicando, por conseguinte, uma concepção dos indivíduos como
variações numéricas da única essência
664
. Entende-se, pois, como, para
Boécio, a criação seria uma processão de formas a partir da Forma primeira.
Tais formas, por imitação das Formas arquetípicas, presentes no espírito
divino, unir-se-iam à matéria para, em composição com esta, produzir os
entes individuais.
Surge, porém, aqui, um problema, pois, se se aceita a correspondência,
no DH, entre esse e forma ou entre esse e forma essendi, então há de se
admitir que o esse participe das Formas transcendentes para ser uma
verdadeira forma imanente ou uma imagem. Mas, como entender que, em
P3, Boécio afirme que sed ipsum esse nullo modo aliquo participat?
Para responder a essa questão é preciso lembrar que a afirmação
segundo a qual o ser não participa de nada é feita por contraposição àquela
663
Cf. PORFÍRIO, Isagoge 6, 21-23 (ed. Busse); II, 12, p. 8 (ed. De Libera).
664
Essa tese porfiriana, por meio dos comentários de Boécio, será a base dos ultra-
realistas medievais para sustentar sua solução do problema dos universais. Cf. MAIOLI,
B. Gli universali. Storia antologica del problema da Socrate al XII secolo. Roma:
Bulzoni, 1974, pp. 187-189.
305
de que o ente pode participar de algo. Para reforçar essa contraposição,
Boécio diz que a participação se dá quando algo já é, e acrescenta,
imediatamente em seguida, que algo já é porque recebeu (susceperit) o ser.
P3 se refere, portanto, à estrutura do ente, e, de acordo com esse princípio,
o ente, enquanto indivíduo composto concreto, pode participar de alguma
coisa a fim de ser algo além daquilo que ele é essencialmente. Porém, como
se lembrou acima, algo só pode participar de alguma outra coisa depois de
ter recebido o ser: a susceptio, portanto, equivalendo à acceptio de P2,
confirma a passividade do ente criado e finito, diante da relação fundante e
constituinte com o esse ou a forma essendi é por causa dessa relação
primeira que o ente é e subsiste (est atque consistit).
Essa recepção do ser, porém, conforme os termos do princípio P6, é
também uma forma de participação, pois a participação em algo (a fim de
ser algo além daquilo que se é essencialmente) é posterior à participação no
ser. Em outros termos, tudo o que é participa do ser para ser, e somente
“depois” participa de outro a fim de ser algo. Assim, considerando-se o ente
concreto apenas em sua individualidade, deve-se dizer que, enquanto um
composto individual, ele pode participar de outras formas a fim de ser
outras coisas além daquilo que ele é essencialmente. No que se refere ao
seu ser, vê-se que, tomado em si mesmo e considerado apenas no contexto
do ente concreto, ele não participa de nada, pois não é senão o princípio da
existência do ente. Considerando-se, porém, o ente do ponto de vista da sua
relação com o seu princípio (sua forma), deve-se falar de um outro tipo de
participação, a participação do ente no seu próprio ser, a fim de ser. Essa
participação, no limite, remete a uma origem no primeiro Bem, afinal, é
apenas participando do primeiro Bem que o ser pode, enquanto unido a uma
matéria, produzir o ente.
Boécio distinguiria, portanto, entre uma primeira e uma segunda
participação: a primeira, que é uma susceptio ou uma acceptio, mais do que
uma simples participação, é aquela relação fundante e constituinte,
substancial, pela qual o ente é e é aquilo que é; a segunda, complementar ou
306
acidental, indica modos secundários de ser. Ambas são ordenadas de modo a
não poder ocorrer a segunda sem a primeira, pois a participação acidental é
possível apenas quando já subsiste o substrato em que há de inerir a
propriedade participada. A rigor, portanto, Boécio não fala, em P3, de
participatio no ser, mas diz que o ser é recebido (susceperit), pois, nesse
axioma, o que está em questão é a participação acidental. Em P6, ao
contrário, tratando da participação substancial do ente no ser, ele não hesita
em atribuir participatio a esse.
-se, portanto, que o ser das realidades intramundanas é sempre um
ser recebido, comunicado. Trata-se de uma imagem das Formas existentes
em Deus, e, como tal, o ser, em sua composição substancial, participa das
Formas transcendentes, participando também, por estas, do primeiro Bem.
Essa relação do ser para com as Formas (expressa, na linguagem
boeciana, em termos de origem e imagem) não parece incorrer nas mesmas
dificuldades em que incorria Platão. Com efeito, sabe-se que a participação
(mšqexij) surge no discurso platônico como uma conseqüência da afirmação
da existência das formas inteligíveis enquanto causas das coisas sensíveis.
E ela apresentaria dois aspectos: haveria não apenas participação das coisas
sensíveis às formas inteligíveis, mas também participação das Formas
inteligíveis entre si. Neste segundo caso, ou seja, no caso da participação
das Formas entre si, Platão afirma uma participação ordenada segundo leis
de combinação e união entre as Idéias. Por conseguinte, como cabe ao
gramático e ao músico determinar, no caso das letras e dos tons, as leis de
combinação e união, caberia também ao filósofo, por meio da ciência
dialética, estudar as leis de combinação das Idéias e revelar a estrutura do
mundo ideal
665
. Porém, no que toca ao primeiro caso, isto é, à participação
das coisas sensíveis às Idéias inteligíveis, a participação é inteiramente
diferente, pois, enquanto as Idéias são universais e possuem sempre o
mesmo nível de universalidade, as coisas sensíveis são particulares e, em
665
Cf. PLATÃO, Sofista 249d-253d. Cf., ainda, Filebo 17a-18e; Timeu 29d-47e;
Parmênides 127d-136e.
307
sua participação às Formas inteligíveis, unidade e universalidade se bi-
implicam (o Homem é um e absolutamente universal). A dificuldade que
surge, então, consiste em dizer que uma Idéia pode ser considerada, a um só
tempo, como uma classe (a forma do Homem, por exemplo) ou como uma
Forma enquanto tal, de maneira que se impõe a questão da autoparticipação,
ou seja, a participação de uma Forma a ela mesma. Por exemplo, é possível
perguntar se, enquanto tal, a Forma do Um participa da Unidade, afinal,
enquanto Forma, ela é una.
Essa questão constitui, no interior do pensamento platônico, uma
dificuldade efetivamente considerável (e já a própria doutrina da
participação, na linguagem platônica, se dizia algo da ordem de uma relação
“particularmente desconcertante e difícil de compreender”
666
). Ademais,
como se sabe, é ela que também fornece a Aristóteles a dificuldade sobre a
qual ele fundamenta sua crítica à hipótese da existência das Formas
platônicas
667
.
Com efeito, para o estagirita, a doutrina da “participação” seria um
modo de evitar, de um lado, as dificuldades implicadas pela afirmação do
“imanentismo” das coisas e das idéias, ou do sensível e do inteligível, tendo
em vista a ausência de uma relação de causalidade claramente definida
668
, e,
de outro, o duplo emprego das Idéias, que podem designar, ao mesmo
tempo, paradigmas e imagens. Em outros termos, a participação ocultaria
666
Cf. PLATÃO, Timeu 51a.
667
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica A, caps. 6 e 9.
668
Em sua leitura da Metafísica, a Profa. Anca Vasiliu nota que entre os capítulos 6 e 9,
nos quais Aristóteles combate a teoria das Idéias, encontra-se, não por azar, um capítulo
dedicado à causalidade. Trata-se do capítulo 7, em que o estagirita aborda as relações
dos sistemas examinados com a sua doutrina das quatro causas. Com efeito, no final do
capítulo 6, Aristóteles afirma que a ruína da teoria das Idéias se deve a uma deficiência
na demonstração causal, porque Platão ter-se-ia apoiado unicamente sobre a causa
formal e a causa material, ignorando as outras duas, as causas eficiente e final (cf.
Metafísica I, 6, 988a8-12). Este trabalho serve-se largamente das conclusões obtidas
pela Profa. Anca Vasiliu e expostas nas páginas 251-262 da versão publicada de sua tese
de doutorado: VASILIU, A. Du Diaphane. Image, milieu, lumière dans la pensée
antique et médiévale. Paris: Vrin, 1997 (cf., especialmente, o capítulo VI: “Avoir la
dissemblance. Récours métaphysique”, pp. 245-275). Cf., também: VERNANT, J.-P.
“Images et apparence dans la théorie platonicienne de la Mimêsis”. In: Religions,
histoires, raisons. Paris: Maspero, 1979, pp.105-137.
308
certas falhas da doutrina platônica, especificamente relativas à m…mhsij
(grosso modo, a teoria do conhecimento pelo princípio de similitude) e à
preeminência das Formas sobre as coisas. Tal preeminência determinar-se-
ia pelo viés dessa inaceitável relação chamada aqui de “participação”, que,
no entanto, não passa de uma “palavra vazia” ou de uma “metáfora
poética”
669
.
Com isso, Aristóteles esvazia de sentido a doutrina metafísica da
participação e desloca o dilema para o terreno da linguagem, falando de
“palavra vazia” e “metáfora poética”. Além disso, ele desconsidera a
complexidade semântica do vocabulário empregado por Platão na tentativa
de dizer essa relação que, no limite, seria como que algo indizível. Para o
estagirita, é a m…mhsij dos números da doutrina pitagórica que se torna, em
Platão, mšqexij, isto é, participação das coisas sensíveis às Idéias. A
propósito, dentre as diferentes expressões platônicas para designar a noção
de participação (met£lhyij, mšqexij, m…xij, koinwn…a, kr¢sij, parous…a,
metalamb¢nein, Ðmo…wsij, m…mhsij etc.), Aristóteles emprega apenas
mšqexij, desconsiderando o caráter quase aporético indicado pelas
diferentes designações da noção platônica.
Não parece, entretanto, ser no nível literário que se dá propriamente a
discordância de Aristóteles. Ele não poderia insurgir-se contra o fato de
Platão introduzir, em seus argumentos, uma “metáfora poética”, sobretudo
porque ele mesmo, Aristóteles, também se vê constrangido, em certos
momentos, a recorrer a ficções operacionais. Além disso, ele bem pode
compreender os diferentes recursos lingüísticos dos quais dispõe um autor
não por acaso ele escreveu um tratado sobre a Poética e outro sobre a
Retórica. Parece, em vez disso, ser contra o sistema mesmo de Platão que
ele se insurge, contra esse nó emblemático que é a doutrina da participação.
Todavia, no sistema platônico, a participação não tem nada de uma
palavra vazia. Ela responde, por exemplo, no Parmênides, ao desafio de
669
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica 991a21-24.
309
demonstrar a existência e a natureza do múltiplo no contexto e a partir da
teoria das Formas: trata-se de afirmar, ao mesmo tempo, o múltiplo e o
Uno, isto é, a multiplicidade das coisas do mundo e a unicidade da
realidade ontológica do uno e da forma predeterminante (arquetipal) de
cada coisa. E ainda, se se considera, por exemplo, o Timeu, vê-se que
“participação” se mostra como um sinônimo de “recepção”, designando,
assim, a mediação do terceiro gênero como receptáculo da marca formal sob
o ângulo de uma dependência no ser com relação ao Uno. Em outras
palavras, a equação ontológica do engendramento dos seres (ou do universo,
segundo a cosmologia do Timeu), ou, se se quiser, a equação do uno e do
múltiplo, do todo e das partes, supõe uma dialética da relação chamada
“participação”. Essa dialética é já representada, como se indicou acima,
pela complexidade semântica dos termos escolhidos por Platão para
designar a noção de participação: de um lado, fixa-se a compreensão de
“tomar parte”, “receber”, “participar de” (metalamb¢nein, met£lhyij); de
outro, “partilhar”, “ter”, “assumir”, “possuir no mesmo grau” (mšqexij,
koinwn…a). Numa palavra, esses valores semânticos poder-se-iam resumir
no sentido de “entregar-se à presença de algo que se dá; abrir-se diante de
uma oferta”
670
, fazer-se disponível à recepção de algo ou a uma presença, e,
dessa perspectiva, a dialética platônica da participação define-se como uma
dialética da recepção-doação.
Entretanto, Aristóteles tem razão, de certa forma, quando aproxima as
noções de participação e m…mhsij, pois a dimensão “receptiva” daquela não
faz sentido fora desta. Com efeito, o mecanismo da participação funciona
inteiramente como que por imagem, como uma pulsação ou vibração
sensível em torno da Forma participada. Trata-se de um jogo de semelhança
que nunca se termina em identidade; uma semelhança dessemelhante situada
na “periferia” (per…, “em torno”) do centro participado. No Parmênides, por
exemplo, Platão se pergunta se é à Forma em sua totalidade ou a uma
“parte” dessa Forma que participa cada coisa que dela participa. Ou haveria
670
Cf. VASILIU, A., op. cit., p. 252.
310
uma outra maneira de participar, além dessas duas? O que interessa notar na
resposta dada por Parmênides é que, se se trata de dizer que a Forma-una,
em sua totalidade, se encontra em cada uma das múltiplas coisas que dela
participam, também será o caso de afirmar que é continuando una e idêntica
que ela se encontra em múltiplas coisas distintas
671
. É interessante notar que
a pergunta feita e respondida por Parmênides possui um certo caráter
retórico, pois a resposta já está contida na sua própria formulação. Isso
indica, talvez, o intuito platônico não de determinar a relação uno/múltiplo
do modelo inteligível e as coisas sensíveis, mas a natureza da relação que
os reúne e que explica, portanto, a existência das coisas por graus de
semelhança, preservando, entretanto, a integridade do modelo. Por
conseguinte, não haveria nenhum outro meio de as coisas subsistirem a não
ser assemelhando-se a uma Forma que se doa, inesgotavelmente, a cada uma
das coisas em sua totalidade. Nessa relação, a coisa que participa recebe a
Forma, tomando parte dela como um receptáculo que se abre continuamente
ao e•doj participado e guarda, incondicionalmente, sua marca, a forma toda
inteira e todavia diferente do modelo participado. Nessa relação de
semelhança-dessemelhança, a imagem não é dita por Platão nem e•doj nem
e„kèn, mas e„kas…a.
Comentando as implicações da questão posta por Parmênides, afirma
Anca Vasiliu que a resposta dada por ele mesmo “salva do esgotamento essa
doação infinita da Forma, pois, mesmo sendo total como doação, essa
doação, ao mesmo tempo, não é substancial não é uma doação
fundamental (material ou substancial), mas unicamente uma doação formal
(...). É isso que salva a teoria platônica de uma reificação efetiva dos
conceitos e de sua relação analógica ou participativa; de uma redução ao
infinito; (...) enfim, de uma reduplicação abissal do argumento do terceiro
homem”
672
.
671
Cf. PLATÃO, Parmênides 131a-b.
672
VASILIU, A., op. cit., pp. 253-254.
311
Vale insistir, aqui, no fato de esse nó emblemático do pensamento
platônico, como é a doutrina da participação, apoiar-se sobre um princípio
de semelhança, e, mais particularmente, sobre seu corolário, ou seja, a
imagem ou a disposição imagética da coisa, pois, dessa perspectiva, a
imagem mesma da coisa, ou a visibilidade determinada de cada ente, seria
já a “prova” da relação de participação em uma Forma; uma prova de
semelhança e dessemelhança. A imagem da coisa, nesse sentido,
despertando a atividade do conhecimento e remetendo à sua Forma, mostra-
se já como uma marca ou um rastro da Forma, e essa passagem obrigatória
pela imagem ou pelo reflexo termina por permitir supor que a imagem
possuía um papel importante no discurso platônico, malgrado a associação
tradicional entre imagem e erro ou entre Forma e verdade
673
. Com efeito,
“participação” será o nome dado para exprimir a relação de dependência no
673
Não apenas no discurso platônico, mas no discurso filosófico em geral a imagem logo
desempenhou um papel importante, entrando, inclusive, posteriormente, no terreno do
debate teológico. Numa palavra, ela representava um desafio ao mesmo tempo lógico e
epistemológico. Aristóteles, por exemplo, no início do segundo livro da Física, permite
aproximar a fÚsij e a tšknh porque o substrato material seria imanente à coisa da qual
ele é a matéria, e isso de maneira essencial, não por acidente, de tal modo que, mesmo
para um objeto fabricado (uma cama ou uma estátua) haveria uma naturalidade ou uma
conaturalidade própria desse objeto com referência ao seu substrato. Assim, todo
processo de produção seria, de um certo ponto de vista, “natural”, e toda obra, uma
espécie de “imagem natural”, pondo fÚsij e tšknh numa relação de imitação e
acabamento. Para os gregos bizantinos, a fÚsij tinha se tornado algo mais preciso do
que uma simples natureza, ou melhor, chegava a designar (evidentemente, num deságio
com relação a oÙs…a) a natureza enquanto fonte de uma operação e em relação direta
com sua função apropriada. A relação exata entre natureza e técnica, portanto, deveria
conduzir o artesão à escolha do material adequado ao exercício de sua capacidade de
desvelar a função essencial que se esconde nesse material. Nesse sentido, a natureza
mesma do objeto conteria a beleza, enquanto a técnica não faria senão revelar o que já
existe. Além disso, a fÚsij não designa apenas a natureza da matéria, mas revela
também a natureza noética do sujeito representado, de maneira que, juntamente com a
tšknh, ela opera para dar vida, de maneira visível, a uma representação que deve ser
apropriada à sua função. No caso da estátua de um imperador, por exemplo, a natureza
da imagem é concebida em relação com o essencial de sua função visível e invisível,
natureza que a tšknh desvela seguindo essa apropriação; em outros termos,
conformando-se o mais possível a ela. Portanto, ao que tudo indica, a tšknh visava
atingir a perfeição da tautologia com referência à natureza, não uma imitação pura e
simples. Tratava-se de uma espécie de redundância reveladora com respeito à natureza;
algo duplamente mais verdadeiro do que seu modelo, e dando a ver e a ouvir o que na
natureza da coisa continuaria opaco e mudo. Dessa perspectiva, poder-se-ia afirmar
como uma homonímia entre arte e natureza. Cf. VASILIU, A. “Nature, personne et image
dans les Traités Théologiques de Boèce”. In: GALONNIER, A. (ed.). Boèce ou la chaîne
des savoirs. Actes du Colloque International de la Fondation Singer-Polignac.
Louvain & Paris: Peeters, 2003, pp. 481ss.
312
ser à qual se chega necessariamente, segundo o quadro conceitual platônico,
quando se decide perscrutar os dados obtidos pelo conhecimento sensível;
essa relação “particularmente desconcertante e difícil de compreender”.
Ora, essa concepção da participação parece guardar muita proximidade
com o texto do DH de Boécio, pois, excetuando-se os casos em que ele
emprega o verbo participo, -are ou o substantivo participatio em sentido
explicita e tecnicamente substancial ou acidental, encontra-se um outro
emprego cujo sentido não é outro senão o da semelhança dessemelhante que
sustenta no ser. É evidente que ele não fala da participação das múltiplas
coisas nas Formas trascendentes. Ele fala da participação direta no primeiro
Bem, mas o esquema teórico parece ser o mesmo. Tomem-se, por exemplo,
duas ocorrências precisas: (1) a primeira refere-se a DH [65]; (2) a segunda,
a DH [125].
Na primeira, ao considerar a hipótese de que as coisas sejam bens
substanciais, ou seja, boas nisto que elas são, Boécio conclui que elas não
participariam da bondade, mas seriam a bondade ela mesma, pois, para elas,
seria o mesmo ser e serem boas. No limite, elas se igualariam a Deus, o que
é uma conclusão nefasta. Ora, ao apontar para o caráter nefasto dessa
conclusão, Boécio faz ver que a bondade das criaturas não pode ser
substancial como é substancial a bondade divina; trata-se de uma bondade
própria das criaturas. Por outro lado, como se sabe, a bondade das criaturas
não pode ser por participação, porque Boécio já havia montado o problema
associando participação e acidentalidade. Contudo, ao descartar a hipótese
de que as coisas sejam bens substanciais, e ao dizer que, se essa hipótese
fosse plausível, então as coisas não participariam da bondade, Boécio,
visando mostrar o absurdo da conclusão final, revela um emprego livre do
verbo “participar” em que este parece aceitável de algum modo. Seria como
se ele afirmasse que, na consideração dessa hipótese, elas não seriam boas
por participação, mas por substância, e que, não sendo viável que elas
sejam por substância, elas então poderiam ser por participação.
313
Um emprego semelhante observa-se na segunda ocorrência, quando, ao
dizer que, se o ser das coisas não fosse “pelo” primeiro Bem, então elas
talvez pudessem participar do bem, mas não teriam seu ser mesmo bom.
Essa construção hipotética (“talvez participasse”), com o imperfeito do
subjuntivo mais o advérbio forsitan, parece indicar que, de fato, as coisas
participam do primeiro Bem. Quer dizer, considerando-se a hipótese em
questão, elas “até poderiam participar”, mas não do mesmo modo como
participam.
Seja como for, ao inviabilizar a afirmação de que as coisas sejam boas
por participação, Boécio tem em vista a participação acidental. Com efeito,
como se mostrou no capítulo 1 do presente trabalho, as coisas não podem
ser boas nem acidentalmente nem substancialmente (ao modo do ser bom
próprio de Deus). Trata-se de um “ser bom substancialmente ao modo das
criaturas”. Ora, se se considera a variação de sentido da noção de
participação nos axiomas do próprio DH, há que se distinguir entre uma
participação acidental (P3) e uma participação substancial (P6), o que
permitiria associar a participação substancial com isso que se denominou
aqui de o “ser bom substancialmente ao modo das criaturas”. Em outras
palavras, trata-se daquela participação primeira (radical, fundamental) que
Boécio designa pelos verbos suscipio, -ere e accepto, -are, e que faz o ente
subsistir. Do ponto de vista semântico, acceptio liga-se diretamente ao
sentido de “tomar parte”, “receber”, “participar”, indicado também pelo
metalamb¢nein platônico, e, dessa perspectiva, não parece casual que
Boécio, no DT, insista em chamar as formas imanentes de imagines,
reservando o termo forma para as Formas transcendentes.
Além disso, não se pode negar que, mostrando como o mundo sensível
se torna inexplicável caso se afaste a presença do primeiro Bem, a
argumentação do DH evoca o procedimento platônico que faz as imagens
remeterem às Formas, e as Formas, por sua vez, remeterem à Idéia
fundamental do Bem. Numa palavra, tanto para Platão como para Boécio, é
a própria consideração do real que solicita a afirmação de um fundamento
314
primeiro. Em ambos os casos, o que articula a cadeia argumentativa que vai
da experiência sensível de captação das imagens até a afirmação do
primeiro Bem é a noção de participação
674
. Dessa perspectiva, o conjunto da
obra de Boécio, empregando também o vocabulário aristotélico, não deixa,
no entanto, de transparecer a influência visível de Platão.
4.2. Hierarquia das formas.
Essa perspectiva de compreensão dos entes a partir de uma teoria da
participação implica que nem todas as formas tenham o mesmo grau e o
mesmo valor ontológico. Com efeito, no vértice do “mundo das formas”
está a Forma divina, que se possui a si mesma perfeitamente, em seu ser
simples, como forma de todas as formas e como fonte de todos os seres
675
.
Há, em seguida, as Formas transcendentes, arquétipos das formas
imanentes, cuja existência se supõe, por exemplo, em IDI I, 22, 6-11. É à
imagem dessas Formas que Deus ordena e informa a matéria indeterminada
674
Num breve parêntese, poder-se-ia também evocar, aqui, o texto do De ente et essentia
de Tomás de Aquino, pois nele se encontra um procedimento muito semelhante. Com
efeito, nesse opúsculo de juventude, o trabalho de Tomás de Aquino consiste em mostrar
como a consideração do ente enquanto ente leva necessariamente à consideração de um
primeiro princípio de todos os entes, a que todos chamam Deus. Sua argumentação
refaz, portanto, o nexo existente entre o conhecimento do ente visualizado enquanto
ente (objeto próprio do conhecimento humano) e o conhecimento do primeiro princípio
(objeto proporcionado). Nesse sentido, ao distinguir essência e existência nas
substâncias, ele se vê obrigado a afirmar a existência de uma causa primeira na qual se
confundam forma e ser. Por conseguinte, ao tratar das substâncias intelectuais e
corporais, Tomás demonstra a diferença entre uma causalidade infinita, explicada
inapropriamente pela distinção de forma e matéria, e uma causalidade própria às
inteligências puras e aos anjos, fundada sobre a distinção de ato e potência. Nesse
sentido, Tomás evita algumas tentativas, anteriores a ele, de abordar a questão de Deus,
pois elas lidavam com pré-concepções que não permitiam dizer-se estabelecida
“racionalmente” a existência do ser primeiro. Assim, segundo a ótica da Suma
theologiae, o argumento ontológico de Anselmo de Cantuária, por exemplo, será
marcado por uma certa “religiosidade” ou recurso a um princípio que, formulado
positivamente, não se impõe de imediato à razão. Na contrapartida, a semelhança de
Tomás de Aquino com Boécio é inquestionável. Enfim, parece possível dizer que tanto o
De ente et essentia como a Summa, embora empreguem uma linguagem e um quadro
conceitual visivelmente aristotélicos, não deixam de refletir, em sua estrutura
argumentativa, um certo caráter platônico.
675
Cf. DT II [80].
315
e caótica, dando origem à cosmogênese, como canta Boécio no CP
676
.
Segundo a linguagem do FC, poder-se-ia dizer que a sede das Formas
transcendentes é o Verbo de Deus, pois foi por ele que Deus produziu os
céus e criou a terra, fazendo naturezas dignas do céu e da terra
677
. Em
outros termos, Deus se exprime em seu Verbo, e este contém, em si,
eternamente, os modelos arquetípicos de todos os seres possíveis, suas
Formas, as quais são eternas e incriadas porque correspondem ao próprio
pensamento de Deus. Elas seriam consubstanciais a Deus pela própria
consubstancialidade do Verbo
678
. Essa afirmação se põe em continuidade
com o evangelho de João
679
e a carta de Paulo aos Colossenses
680
,
principalmente porque o seu sentido não admite qualquer referência a uma
causalidade instrumental, como acontecia com o demiurgo platônico, mas,
ao contrário, funda-se na concepção da causalidade do Verbo como operante
e, ao mesmo tempo, exemplar, na linha da igualdade, coeternidade e
consubstancialidade com o Pai.
Por fim, há as formas das substâncias finitas, cuja função é a de
informar e estruturar a matéria sensível, constituindo com ela a substância
individual. Trata-se do esse, princípio do id quod est, que deriva, mediante
o ato criador, das Formas puras do conhecimento divino. Na condição de
forma imanente, o esse chama-se, mais apropriadamente, imago
681
.
676
Cf. CP III, ps. IX.
677
Cf. FC [60].
678
É inegável, aqui, a semelhança com Agostinho. Cf. GILSON, E. A filosofia na Idade
Média. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 151-152.
679
Cf. Jo 1, 3.
680
Cf. Col 1, 15-20.
681
Para Bruno Maioli, as Formas puras e as formas-imagens de Boécio, remetem, por
meio de Amônio e Porfírio, ao cwristÕn e•doj e ao œnulon e•doj, quer dizer, aos
inteligíveis primeiros e segundos da tradição neoplatônica posterior a Albino, que, por
sua vez, sintetiza, nestes termos, a leitura já assentada do Timeu. No seu dizer, as
Formas puras e as formas-imagens boecianas remetem ainda às intelligibiles species e às
species natiuae de Calcídio, na sua tradução e comentário do Timeu, bem como à
distinção entre as Ideae e o Idos da qual testemunha Sêneca (cf. Epistulae LVIII, 16-
22). Cf.: MAIOLI, B. Teoria dell´essere e dell´esistente e classificazione delle scienze
in M. S. Boezio. Una delucidazione. Roma: Bulzoni, 1978, pp. 45-46.
316
Embora imersas na matéria, as formas imanentes conservam um
estatuto ontológico inteiramente distinto dela. Com efeito, vale para todas
as formas (sobremaneira para as Formas transcendentes e evidentemente
para o primeiro Bem) o princípio segundo o qual formae uero subiectae
esse non possunt, ou seja, as formas não podem ser sujeitos, pois isto é
próprio dos seres materiais. Num certo sentido, porém, as formas imanentes
parecem constituir substratos de acidentes quando inerem a uma matéria e
compõem, com ela, a substância individual
682
, mas Boécio se apressa em
esclarecer que não é a forma que recebe os acidentes, e, sim a matéria. Essa
“ambigüidade” demonstra, por conseguinte, a impossibilidade prática de se
“definir” o indivíduo cindindo sua composição de forma e matéria. Com
efeito, quando a matéria subjacente a “humanidade” recebe algum acidente,
parece que a própria forma o recebe; contudo, isso não se dá senão no
substrato material
683
. Esse esclarecimento insiste na distinção entre o
princípio formal e o composto individual concreto (formado da matéria,
com os acidentes, e a forma), e partir daqui duas observações parecem
importantes para precisar a metafísica boeciana do concreto: (1)
considerando-se as formas, específicas ou genéricas, enquanto entidades
dotadas de um estuto ontológico próprio, deve-se lembrar que sua
hipostasiação somente se dá no interior da substância individual concreta;
(2) e, considerando-se os indivíduos, deve-se notar que somente variações
acidentais podem ocorrer no interior da identidade da espécie, a qual
consiste concretamente nos indivíduos.
Em ambas as afirmações, torna-se mais visível o pano de fundo da
metafísica boeciana, pois ele insiste não apenas na concepção das formas
como arquétipos e imagens, mas também como entidades dotadas de um
estatuto ontológico próprio (a subsistência), embora elas só possam vir a ter
substância no interior do ente. A afirmação da unidade do real parece
fundamentar-se, pois, na distinção ontológica entre as Formas subsistentes e
682
Cf. DT II [105].
683
Cf. idem, ibidem.
317
o id quod est, esclarecendo-se que, neste, toma substância a forma
imanente, cuja definição inclui as modificações acidentais.
318
CONCLUSÃO
O estudo do conjunto da obra de Boécio, embora não possa pretender
uma planificação das oscilações semânticas que nela se observam, permite,
no entanto, identificar a elaboração de uma metafísica do ser que se foi
explicitando, de maneira razoavelmente harmônica, desde os comentários
juvenis de Boécio à Isagoge de Porfírio, até a composição dos Opuscula
sacra e a Consolação da filosofia.
1. Ao problema de saber como as substâncias são boas nisto que elas
são embora não sejam bens substanciais, Boécio oferece uma resposta que
distingue entre o modo substancial de o primeiro Bem ser bom e o modo
substancial próprio de as criaturas serem boas: as coisas são boas em
virtude de existirem, porque procederam de uma realidade boa. Elas,
portanto, não são boas porque uma, dentre as várias formas das quais elas
participam, é também a da bondade. Sua bondade está associada ao seu ser,
ao seu ser “essenciado”, de maneira que cada ente participa do ser divino
participando diretamente da Forma que lhe dá o ser e que reside no espírito
divino. É exatamente nessa participação que parece dar-se a vinculação
entre o ser das criaturas e sua bondade, mas uma tal participação, como se
vê, refere-se à bondade mesma das criaturas, ao seu ser, que participa de
uma Forma transcendente.
2. Dizer isso, porém, esclarece um outro sentido para se falar
participação, pois aparentemente o DH lida apenas com uma participação
acidental. Trata-se, agora, de um sentido essencial, em que a participação
passa a ser concebida segundo uma dialética de recepção-doação na qual as
coisas são boas porque procedem de uma realidade boa que lhes comunica o
ser. O fundamento dessa concepção da bondade das criaturas parece estar na
distinção boeciana entre o ser ou a forma de ser (esse ou forma essendi), a
partir da qual se pode pensar que cada coisa concreta ou cada ente, pela raiz
319
de seu ser, participa do primeiro Bem, sem, entretanto, confundir-se com
ele. Esse fundamento remete a uma classificação dos seres segundo a qual
se pode falar de substâncias compostas e de substâncias simples: aquelas
resultam da composição de matéria e forma (ou ser); estas, possuem numa
unidade o seu ser e isto que elas são. Por sua vez, essa perspectiva de
compreensão dos entes faz situar-se, no vértice, a Forma divina, que se
possui a si mesma perfeitamente, em seu ser simples, como forma de todas
as formas e como fonte de todos os seres. Há, em seguida, as Formas
transcendentes, arquétipos das formas imanentes, à imagem das quais Deus
ordena e informa a matéria indeterminada e caótica, dando origem às
substâncias compostas. Por fim, há as formas das substâncias finitas, cuja
função é a de informar e estruturar a matéria sensível, constituindo com ela
a substância individual. Trata-se do esse, princípio do id quod est, que
deriva, mediante o ato criador, das Formas puras do conhecimento divino.
Na condição de forma imanente, o esse chama-se, mais apropriadamente,
imago.
3. Essa concepção metafísica exprime-se diretamente no vocabulário do
ser empregado por Boécio. Assim, apesar de algumas oscilações, pode-se
observar certa constância conceitual nas obras escritas em seus últimos 25
anos de vida. Para retomar aqui, a título de conclusão, apenas algumas de
suas principais posições semânticas, vale lembrar que, nas obras lógicas,
ele reconhece a correspondência literal entre tÕ Ôn e ens, mas, calcado na
construção aristotélica toàqÓper ™stˆn, prefere traduzir tÕ Ôn pela forma
id quod est, que, segundo consta, terá sido empregada pela primeira vez por
Hilário de Poitiers. Id quod est, portanto, mostra equivaler a ente, um ente
real capaz de fundar uma intelecção ou uma passio animae. Um ente
quimérico, como um hircocerco, por exemplo, não é um ente, mas uma res
non subsistens. Entretanto, id quod est, além de designar o ente concreto,
também pode designar a essência da coisa ou a substância segunda, e ainda
uma qualidade qualquer participada pela coisa. Por sua vez, esse também
varia de sentido, podendo indicar ora o fato de algo existir, ora a sua
320
natureza ou essência. O que importa notar é a “evolução” desses empregos,
pois id quod est, aos poucos, se impõe como designativo do ente (e é com
esse sentido que ele chega ao DH). Do mesmo modo, esse encaminhou-se
para um duplo emprego: em sua função copulativa, indica a participação do
sujeito no predicado ou a inerência do predicado no sujeito; quando
empregado de modo absoluto, corresponde à maneira como Boécio traduz o
e•nai de Aristóteles e indica o ser constitutivo de uma coisa, seu ser como
natureza ou essência. Dessa segunda perspectiva, esse passará a
corresponder à expressão tÕ t… Ãn e•nai de Aristóteles, sendo também, em
alguns momentos, intercambiado pela expressão id quod est esse. Nos
Opuscula sacra e no CP, esse corresponde sempre a forma, inclusive
quando se fala do primeiro Bem do qual procede o ser de todas as coisas
que são. Recebendo o esse, surge um ente ou id quod est, mas, como o esse
é sempre um esse aliquid, o id quod est remete ao ser determinado e
possuído por um ente concreto. Dessa perspectiva, o esse que informa o id
quod est é uma imagem das Formas que subsistem no espírito divino. Por
outro lado, Boécio conhece também a diferença que há entre a essência
concebida como a definição de algo (sua “qüididade) e sua existência, pois
investiga a possibilidade de se compor mentalmente um ente fictício e de se
errar, predicando existência de algo que é um não-ente. Mas, no que se
refere ao que existe, é preciso dizer que se trata de uma substância, e é
nesse sentido que se compreende o sentido da expressão exsistere actu, pois
ela não designa senão o existir ou o ser in rerum natura: trata-se do
resultado da composição de uma forma imanente ou uma imagem com a
matéria, produzindo-se o ente concreto.
4. Nesse sentido, a relação entre o esse ou a forma essendi com id quod
est ou o ens não é do mesmo gênero que a relação postulada por Tomás de
Aquino entre o actus essendi e a essentia. Em Boécio, tais conceitos
articulam-se ao modo do abstrato e o concreto; o conceito essentia, aliás,
não é, para ele, senão um abstrato de esse, traduzindo a oÙs…a de
Aristóteles. Se é assim, então Boécio não pode pretender que o esse ou o
321
exsistere distingam-se real ou conceitualmente da essentia; tais noções não
se bipolarizam como co-princípios. No limite, a distinção boeciana se
resolve no horizonte aristotélico da distinção entre a deÚtera oÙs…a e a
prèth oÙs…a.
5. Uma ambigüidade semelhante à do emprego aristotélico do termo
oÙs…a encontra-se, porém, em Boécio. Fato mais curioso, porém,
corresponde ao modo como ele se serve da terminologia do estagirita para
exprimir um pensamento cuja estrutura é mais claramente platônica ou
neoplatônica do que aristotélica. O interesse já “acadêmico” de Boécio
parece tê-lo levado a recorrer à terminologia de aristotélica para exprimir,
entretanto, uma concepção de ser que ele não pôde formular sem a ajuda de
Platão, Plotino, Porfírio e, principalmente, Proclo. O sentido de sua
filosofia parece, portanto, dado por esse seu “ecletismo” muito particular. E
é esse mesmo “ecletismo” que lhe terá permitido elaborar uma metafísica do
ser pelo cruzamento das noções de esse e id quod est, sendo que esse pode
remeter à Forma transcendente, subsistente no espírito divino (ou a qualitas
communis, segundo a linguagem do IDI, como humanitas, por exemplo), ou
à forma imanente que informa o ente concreto (quer dizer, a qualitas
singularis ou a platonitas, por exemplo, que é a forma do ente concreto
Platão). Dessa perspectiva, a qualitas singularis seria a imagem da qualitas
communis.
6. Ao fim desse itinerário, parece difícil atribuir, sem mais, a Boécio,
um caráter neoplatônico ou platônico, ou mesmo aristotélico. Talvez fosse
mais apropriado falar de um certo ecletismo boeciano, mas esse ecletismo
não consistiria em mero colhimento de dados e argumentos que porventura
lhe interessassem nas diferentes filosofias, e, sim, a busca de uma certa
unidade que ele considerava possível entre as posturas inspiradas em Platão
e Aristóteles. Com efeito, na trilha de Aristóteles, Boécio considera o
princípio de ser de cada ente como imanente à coisa concreta, a ponto de
falar de uma qualitas singularis. Por sua concepção da linguagem, vê-se
como, no seu dizer, é na consideração da coisa concreta (portanto,
322
material), que a inteligência pode descobrir esse mesmo princípio o ser ou
a forma de ser. Na contrapartida, entretanto, ele também não deixa de
afirmar, num estilo mais platônico do que aristotélico, a transcendência das
Formas, no espírito divino, como modelos que dão a identidade de cada
coisa individual pelo pertencimento a uma espécie e a um gênero. Em outras
palavras, o universal, para Boécio não possui uma inteligibilidade apenas
lógica, mas liga-se a um inteligível transcendente que é plenitude de
existência e subsistência pura. Assim, a atribuição, por exemplo, de escolha
e amor (para com a criatura) a essa realidade primeira que é fundamento de
todas as coisas e que é a sede das Formas transcendentes parece fazer do
pensamento de Boécio uma síntese cristã interessada por manter-se em
continuidade com a tradição especulativa grega. Percebe-se, pois, em
Boécio um interesse “acadêmico” pelo estudo das diferentes formas
assumidas pelo saber filosófico; não se trata de um interesse apologético ou
algo semelhante. Ele se serve da tradição e a reelabora. Certamente é por
este motivo que os medievais nunca o filiavam a alguma escola filosófica,
mas o consideravam sempre como um ponto de partida.
ANEXO 1
TRADUÇÃO DO DE HEBDOMADIBVS
(TRADUÇÃO DE JUVENAL SAVIAN FILHO)
325
Quomodo substantiae in eo quod
sint bonae sint cum non sint
substantialia bona
< De hebdomadibus >
Postulas ut ex Hebdomadibus
nostris eius quaestionis obscuritatem,
quae continet modum quo substantiae
in eo quod sint bonae sint, cum non
sint substantialia bona, digeram et
paulo euidentius monstrem; idque eo
dicis esse faciendum, quod non sit
omnibus notum iter [5] huiusmodi
scriptionum. Tuus uero testis ipse
sum quam haec uiuaciter fueris ante
complexus. Hebdomadas uero ego
mihi ipse commentor potiusque ad
memoriam meam speculata conseruo
quam cuiquam [10] participo, quorum
lasciuia ac petulantia nihil a ioco
risuque patitur esse seiunctum.
Prohinc tu ne sis obscuritatibus
breuitatis aduersus, quae cum sint
arcani fida custodia tum id habent
commodi, quod cum his solis qui
digni sunt conloquuntur. Vt igitur in
mathematica fieri solet [15]
ceterisque etiam disciplinis,
praeposui terminos regulasque quibus
cuncta quae sequuntur efficiam.
Como as substâncias, nisto que elas
são, são boas, embora não sejam
bens substanciais
< Septenários >
< Prólogo >
Pedes que eu dissipe a obscuridade
daquela questão como provém dos
nossos Septenários que envolve o modo
pelo qual as substâncias, nisto que elas
são, são boas, embora não sejam bens
substanciais, e exponha com um pouco
mais de clareza. E, dizes, isso deve ser
feito porque o itinerário [5] percorrido
nesse tipo de escrito não é conhecido de
todos. De fato, eu mesmo sou testemunha
da vivacidade com que abraçaste essa
discussão. De minha parte, na verdade,
comento comigo mesmo os Septenários e
conservo as especulações em minha
própria memória, em vez de participá-las
a um desses [10] cuja leviandade e
impetuosidade não suportam nada do que
não seja jocoso e risível. Por isso, não
sejas contrário às obscuridades da
concisão, as quais, sendo guardiãs fiéis do
mistério, têm a vantagem de dialogar
somente com aqueles que são dignos.
Como, pois, se costuma fazer na
matemática e [15] nas outras disciplinas,
preestabeleci definições nominais e
axiomas, com os quais desenvolverei tudo
o que segue.
326
I. Communis animi conceptio est
enuntiatio, quam quisque probat
auditam. Harum duplex modus est.
Nam una ita communis est, ut
omnium sit hominum, [20] ueluti si
hanc proponas: “Si duobus
aequalibus aequalia auferas, quae
relinquuntur aequalia esse”, nullus id
intellegens neget. Alia uero est
doctorum tantum, quae tamen ex
talibus communis animi
conceptionibus uenit, ut est: “Quae
incorporalia sunt, in loco non esse”,
et [25] cetera; quae non uulgus sed
docti comprobant.
II. Diuersum est esse et id quod est;
ipsum uero esse nondum est, at uero
quod est, accepta essendi forma, est
atque consistit.
III. Quod est participare aliquo
potest, sed ipsum esse [30] nullo
modo aliquo participat. Fit enim
participatio cum aliquid iam est; est
autem aliquid, cum esse susceperit.
< Os princípios >
P1. Uma concepção comum do espírito
é uma enunciação que todos
aprovam, tão logo ela seja ouvida.
Pode ser de dois modos: uma delas
é tão comum, que é de todos os
homens, [20] como quando dizes,
por exemplo, “Se de dois iguais tu
retiras grandezas iguais, as
grandezas que restam serão também
iguais”, e ninguém que entenda isso
poderá negá-lo; a outra, no entanto,
mesmo vindo daquelas concepções
comuns do espírito, é apenas dos
doutos, como, por exemplo, “O que
é incorpóreo não é no espaço” [25]
etc. essas concepções apenas os
doutos as comprovam, não o vulgo.
P2. Diversos são o ser e isto que é; com
efeito, o ser mesmo ainda não é,
mas, por certo, isto que é, recebida a
forma de ser, é e subsiste.
P3. Isto que é pode participar de algo,
mas o ser mesmo [30] não participa,
de modo algum, de algo. A
participação, portanto, se dá quando
algo já é, mas algo é porque já
recebeu o ser.
327
IV. Id quod est habere aliquid
praeterquam quod ipsum est potest;
ipsum uero esse nihil aliud praeter se
habet admixtum.
V. [35] Diuersum tantum esse aliquid
et esse aliquid in eo quod est; illic
enim accidens hic substantia
significatur.
VI. Omne quod participat, eo quod
est esse, ut sit; alio uero participat,
ut aliquid sit. Ac per hoc id quod est
participat eo quod est esse, ut sit; est
uero, ut participet [40] alio quolibet.
VII. Omne simplex esse suum et id
quod est unum habet.
VIII. Omni composito aliud est esse,
aliud ipsum est.
IX. Omnis diuersitas discors,
similitudo uero [45] appetenda est; et
quod appetit aliud, tale ipsum esse
naturaliter ostenditur quale est illud
hoc ipsum quod appetit.
P4. Isto que é pode ter algo além do que
ele mesmo é; mas o ser mesmo não
tem nada de misto, para além de si.
P5. [35] Apenas ser algo é diverso de
ser algo nisto que é; aquele significa
o acidente, este, a substância.
P6. Tudo o que participa do que é o ser,
para ser, participa, também, de
outro, a fim de ser algo. E, por isso,
isto que é participa do que é o ser,
para ser; mas é, para que participe
[40] de algum outro.
P7. Tudo o que é simples possui, numa
unidade, o seu ser e isto que é.
P8. Para todo composto, um é o ser;
outro, o próprio “é”.
P9. Toda diversidade é discorde, ao
passo que a semelhança é desejável;
[45] e o que deseja algo mostra ser,
ele mesmo, naturalmente, tal qual
aquele mesmo que ele deseja.
328
Sufficiunt igitur quae
praemisimus; a prudente uero
rationis interprete suis unumquodque
aptabitur argumentis.
Quaestio uero huiusmodi est. Ea
quae sunt bona [50] sunt; tenet enim
communis sententia doctorum omne
quod est ad bonum tendere, omne
autem tendit ad simile. Quae igitur
ad bonum tendunt, bona ipsa sunt.
Sed quemadmodum bona sint,
inquirendum est, utrumne
participatione an substantia.
[55] Si participatione, per se
ipsa nullo modo bona sunt; nam quod
participatione album est, per se in eo
quod ipsum est album non est. Et de
ceteris qualitatibus eodem modo. Si
igitur participatione sunt bona, ipsa
per se nullo modo bona sunt: non
igitur ad bonum [60] tendunt. Sed
concessum est. Non igitur
participatione sunt bona sed
substantia.
Quorum uero substantia bona
est, id quod sunt bona sunt; id quod
sunt autem habent ex eo quod est
esse. Esse igitur ipsorum bonum est;
É suficiente o que preestabelecemos
até aqui; cada um desses princípios será
adaptado aos argumentos pelo intérprete
prudente do assunto.
< A questão >
A questão apresenta-se, pois, da
seguinte maneira: as coisas que são são
boas; [50] a sentença comum dos sábios
ensina, pois, que tudo o que é tende para
o bem, e tudo tende para o semelhante.
Com efeito, todas as coisas que tendem
para o bem são, elas mesmas, boas. Mas,
deve-se perguntar de que modo são boas;
se por participação ou por substância.
[55] Se por participação, de modo
algum, então, são boas por si mesmas,
pois o que é branco por participação não é
branco, por si, nisto que ele mesmo é. E o
mesmo se dá com as outras qualidades.
Se, então, são boas por participação, elas
mesmas não são, de modo algum, boas
por si: não tendem, pois, para o bem. [60]
Mas isso já foi concedido. Por
conseguinte, não são boas por
participação, mas por substância.
Ora, das coisas cuja substância é
boa, isto que elas são são bens; isto que
elas são, elas o recebem do que é o ser. O
ser delas, com efeito, é bom;
329
omnium igitur rerum [65] ipsum esse
bonum est. Sed si esse bonum est, ea
quae sunt in eo quod sunt bona sunt
idemque illis est esse quod boni esse;
substantialia igitur bona sunt,
quoniam non participant bonitatem.
Quod si ipsum esse in eis bonum est,
non est dubium quin substantiali cum
sint [70] bona, primo sint bono
similia ac per hoc hoc ipsum bonum
erunt; nihil enim illi praeter se ipsum
simile est. Ex quo fit ut omnia quae
sunt Deus sint, quod dictu nefas est.
Non sunt igitur substantialia bona ac
per hoc non in his est esse bonum;
non sunt igitur in eo quod [75] sunt
bona. Sed nec participant bonitate;
nullo enim modo ad bonum
tenderent. Nullo modo igitur sunt
bona.
Huic quaestioni talis poterit
adhiberi solutio. Multa sunt quae,
cum separari actu non possunt, animo
tamen et cogitatione separantur; ut
cum triangulum uel cetera [80]
subiecta materia nullus actus separat,
mente tamen segregans ipsum
triangulum proprietatemque eius
praeter materiam speculatur.
e, assim, [65] o ser mesmo de todas as
coisas é um bem. Porém, se o ser é bom,
aquelas coisas que são nisto que são, são
bens e, para elas, é o mesmo ser e serem
boas; são, pois, bens substanciais porque
não participam da bondade. Entretanto, se
o ser mesmo, nelas, é bom, não há dúvida
de que, sendo boas substancialmente, [70]
sejam semelhantes ao primeiro bem e, por
isso, serão esse mesmo bem; afinal, nada
lhe é semelhante além dele mesmo. Disso
decorre que todas as coisas que são sejam
Deus, o que é nefasto de dizer. Não são,
pois, bens substanciais e, por isso, não há
nelas um ser bom; não são, pois, boas
nisto que são. [75] Mas também não
participam da bondade; por isso, não
tenderiam, de nenhum modo, ao bem.
Portanto, não são boas de nenhum modo.
< A solução >
A essa questão poder-se-á dar a
seguinte solução: muitas são as coisas
que, por não poderem separar-se em ato,
separam-se, entretanto, pelo espírito e o
pensamento; por exemplo, [80] nenhum
ato separa da matéria subjacente o
triângulo ou outra figura geométrica,
embora, separando-se-o com a mente,
observe-se o triângulo mesmo e sua
propriedade para além da matéria.
330
Amoueamus igitur primi boni
praesentiam paulisper ex animo,
quod esse quidem constat idque ex
omnium doctorum indoctorumque
[85] sententia barbararumque
gentium religionibus cognosci potest.
Hoc igitur paulisper amoto ponamus
omnia esse, quae sunt, bona atque ea
consideremus quemadmodum bona
esse possent, si a primo bono minime
defluxissent. Hinc intueor aliud in
eis esse quod bona sunt, [90] aliud
quod sunt.
Ponatur enim una eademque
substantia bona esse alba, grauis,
rotunda. Tunc aliud esset ipsa illa
substantia, aliud eius rotunditas,
aliud color, aliud bonitas; nam si
haec singula idem essent quod ipsa
substantia, idem [95] esset grauitas
quod color, quod bonum, et bonum
quod grauitas: quod fieri natura non
sinit. Aliud igitur tunc in eis esse,
aliud aliquid esse, ac tunc bona
quidem essent, esse tamen ipsum
minime haberent bonum. Igitur si
ullo modo essent, non a bono ac
bona essent, ac non [100] idem
essent quod bona,
Afastemos, então, do espírito, por
um pouco de tempo, a presença do
primeiro bem, o qual certamente consta
ser (e isso se pode saber tanto pela
opinião de doutos e indoutos, [85] como
também pelas religiões dos bárbaros).
Removido, então, por um instante, o
primeiro bem, estabeleçamos que todas as
coisas que são são boas e consideremos
como elas poderiam ser boas se não
procedessem do primeiro bem. Daqui,
vejo que, nelas, “serem boas” [90] é
distinto de “serem”.
Suponha-se, então, que uma única e
mesma substância seja boa, branca,
pesada e redonda. Nesse caso, uma coisa
seria aquela substância mesma, outra, a
sua redondez, outra, a cor, outra, a
bondade; pois, se cada uma dessas
características fosse igual à substância
mesma, [95] a gravidade seria o mesmo
que a cor, a cor o mesmo que o bem e o
bem o mesmo que a gravidade o que a
Natureza não admite. Daí que, nessas
coisas, um seria, então, o ser; outro, o ser
algo; nesse caso, elas seriam boas, mas
não teriam o ser mesmo bom. Por
conseguinte, se, de algum modo, elas
fossem, não é pelo bem que elas seriam
boas ou que [100] elas não seriam
331
sed eis aliud esset esse aliud bonis
esse.
Quod si nihil omnino aliud
essent nisi bona neque grauia neque
colorata neque spatii dimensione
distenta nec ulla in eis qualitas esset,
nisi tantum bona essent, [105] tunc
non res sed rerum uiderentur esse
principium, nec potius uiderentur sed
uideretur; unum enim solumque est
huiusmodi, quod tantum bonum
aliudque nihil sit.
Quae quoniam non sunt simplicia,
nec esse omnino poterant, nisi ea id
quod solum bonum est esse [110]
uoluisset, idcirco quoniam esse
eorum a boni uoluntate defluxit, bona
esse dicuntur. Primum enim bonum,
quoniam est, in eo quod est bonum
est; secundum uero bonum, quoniam
ex eo fluxit cuius ipsum esse bonum
est, ipsum quoque bonum est. Sed
ipsum esse omnium [115] rerum ex
eo fluxit quod est primum bonum et
quod bonum tale est ut recte dicatur,
in eo quod est, esse bonum. Ipsum
igitur eorum esse bonum est; tunc
enim in eo.
idênticas a bens, mas, para elas, um seria
o ser, outro o serem boas.
Ora, se elas não fossem
absolutamente nada além de boas, e não
fossem pesadas nem coloridas nem
distendidas numa dimensão do espaço, e
se não houvesse, nelas, qualquer outra
qualidade senão apenas a de serem boas,
[105] então elas não pareceriam ser
coisas, mas princípio de coisas; por isso,
de preferência, diga-se “pareceria”, em
vez de “pareceriam”, pois um único é
desse modo, apenas bom e nada mais.
Mas, porque essas coisas não são
simples, elas sequer teriam podido ser,
caso isto que é apenas bom não tivesse
querido que elas fossem; [110] assim,
porque o ser delas procede da vontade do
bem, diz-se que elas são boas. O primeiro
bem, então, porque é, é bom nisto que é;
já o bem segundo, porque flui disto cujo
ser mesmo é bom, é, ele mesmo, também
bom. Mas o ser mesmo de todas [115] as
coisas flui disto que é o primeiro bem e
que é bom a ponto de ser corretamente
dito bom nisto que é. Com efeito, o ser
mesmo delas é bom; de fato, portanto, é
nisto.
332
Qua in re soluta quaestio est.
Idcirco enim, licet in [120] eo quod
sint bona sint, non sunt tamen similia
primo bono, quoniam non, quoquo
modo sint res, ipsum esse earum
bonum est, sed quoniam non potest
esse ipsum esse rerum nisi a primo
esse defluxerit, id est bono, idcirco
ipsum esse bonum est nec est simile
ei a quo [125] est. Illud enim quoquo
modo sit bonum est in eo quod est;
non enim aliud est praeterquam
bonum. Hoc autem nisi ab illo esset,
bonum fortasse esse posset, sed
bonum in eo quod est esse non
posset. Tunc enim participaret
forsitan bono; ipsum uero esse, quod
non [130] haberent a bono, bonum
habere non possent. Igitur sublato ab
his bono primo mente et cogitatione,
ista, licet essent bona, tamen in eo
quod essent, bona esse non possent,
et quoniam actu non potuere
exsistere, nisi illud ea quod uere
bonum est produxisset, idcirco et
[135] esse eorum bonum est et non
est simile substantiali bono id quod
ab eo fluxit;
Uma questão, porém, há nessa
solução. Com efeito, ainda que as coisas
sejam boas [120] nisto que elas são, elas
não são, por outro lado, semelhantes ao
primeiro bem, porque o ser mesmo delas
não é bom em não importa qual modo
elas sejam, mas, porque o seu ser mesmo
não pode ser senão enquanto tenha
procedido do primeiro ser, isto é, do bem,
então, por esse motivo, o ser mesmo delas
é bom, mas não semelhante àquilo pelo
qual é. [125] Este último, não importa o
modo que seja, é bom nisto que é, pois
não é nada além de bom. Aquele, porém,
a menos que fosse por este, talvez
pudesse ser bom, mas não poderia ser
bom nisto que é. Nesse caso, então, talvez
participasse do bem; mas o ser mesmo,
que as coisas não [130] teriam pelo bem,
elas não o poderiam ter como bom.
Assim, removido dessas coisas o primeiro
bem, pela mente e o pensamento, ainda
que elas fossem boas, elas não poderiam,
entretanto, ser boas nisto que seriam e,
porque não puderam existir em ato sem
que aquilo que é verdadeiramente bom as
produzisse, então [135] tanto o ser das
coisas é bom, como não é semelhante ao
bem substancial aquilo que dele flui;
333
et nisi ab eo fluxissent, licet essent
bona, tamen, in eo quod sunt, bona
esse non possent, quoniam et praeter
bonum et non ex bono essent, cum
illud ipsum bonum primum [est] et
ipsum esse sit [140] et ipsum bonum
et ipsum esse bonum, ut non etiam
alba, in eo quod sunt, alba esse
oportebit ea quae alba sunt, quoniam
ex uoluntate dei fluxerunt, ut essent;
alba, minime. Aliud enim est esse,
aliud albis esse; hoc ideo, quoniam
qui ea ut essent effecit, bonus
quidem [145] est, minime uero albus.
Voluntatem igitur boni comitatum est
ut essent bona in eo quod sunt;
uoluntatem uero non albi non est
comitata talis eius quod est
proprietas, ut esset album in eo
quod est; neque enim ex albi
uoluntate defluxerunt. Itaque quia
uoluit esse ea [150] alba, qui erat
non albus, sunt alba tantum; quia
uero uoluit ea esse bona, qui erat
bonus, sunt bona in eo quod sunt.
e, a não ser que fluíssem dele, as coisas,
ainda que fossem boas, não poderiam,
entretanto, ser boas nisto que são, porque
não apenas teriam sido fora do bem,
como não teriam sido a partir dele, dado
que esse mesmo primeiro bem [é] tanto o
ser mesmo, [140] como o bem mesmo e o
ser bom mesmo.
< Objeções e respostas >
Por isso, também não convirá que as
coisas brancas sejam brancas nisto que
são, elas que são brancas porque fluíram
da vontade de Deus para ser. Brancas, em
absoluto. Um, com efeito, é o ser, outro, o
ser branco; isso porque, na verdade, quem
fez essas coisas, para que fossem, é
certamente bom, [145] mas de modo
algum branco. Portanto, acompanhou a
vontade do bem que as coisas fossem
boas nisto que são; mas uma propriedade
como é a de que algo seja branco nisto
que é não acompanhou a vontade daquele
que não é branco; as coisas, com efeito,
não procederam da vontade do branco.
Assim, [150] porque aquele que não era
branco quis que essas coisas fossem
brancas, elas são apenas brancas; mas,
porque quis que elas fossem boas aquele
que era bom, elas são boas nisto que são.
334
Secundum hanc igitur rationem
cuncta oportet esse iusta, quoniam
ipse iustus est qui ea esse uoluit? Ne
[155] hoc quidem. Nam bonum esse
essentiam, iustum uero esse actum
respicit. Idem autem est in eo esse
quod agere; idem igitur bonum esse
quod iustum. Nobis uero non est
idem esse quod agere; non enim
simplices sumus. Non est igitur nobis
idem bonis esse quod [160] iustis,
sed idem nobis est esse omnibus in
eo quod sumus. Bona igitur omnia
sumus, non etiam iusta. Amplius
bonum quidem generale est, iustum
uero speciale nec species descendit
in omnia. Idcirco alia quidem iusta,
alia aliud, omnia bona.
Segundo essa razão, convém, então,
que todas as coisas sejam justas porque é
o próprio justo quem quis que elas
fossem? [155] Também não é assim, pois
ser bom concerne à essência, ao passo
que ser justo concerne à ação. Ora, é o
mesmo, nele, ser e agir; portanto, o
mesmo é ser e ser justo. Para nós, porém,
não é o mesmo ser e agir, pois não somos
simples. De fato, para nós, não é o
mesmo ser bom [160] e ser justo, mas,
nisto que somos, é o mesmo, para todos
nós, ser. Somos todos, portanto, bens,
mas não coisas justas. Com efeito, o bem,
mais amplo, é geral, enquanto o justo é
específico e a espécie não se aplica a
todas as coisas. Por isso, há, certamente,
algumas coisas que são justas, outras, que
são outras coisas, e todas são boas.
ANEXO 2
TRADUÇÃO DOS TEXTOS GREGOS
335
Texto 1
Mais comment naît-il alors que celui-ci demeure inchangé?
En chaque chose, il y a un acte qui appartient à la réalité et un acte qui provient de la
réalité; l’acte qui appartient à la réalité est la chose elle-même, et l’acte qui provient de
la réalité doit à tous égards en être la conséquence nécessaire, tout en étant différent de
la chose elle-même. Ainsi en va-t-il du feu, pour lequel il y a la chaleur qui constitue sa
réalité, et une autre chaleur qui naît de la première puisque le feu exerce l’acte qui est
naturellement inhérent à sa réalité tout en restant du feu”.
PLOTINO, Enéadas V, 4, 2 (Tratado 7). In: ________. Traités
7-21. Tradução dirigida por Luc Brisson e Jean-
François Pradeau. Paris: Flammarion, 2003, pp. 22-23.
Texto 2
“Esiste certamente un centro e intorno ad esso un cerchio che ne deriva irraggiando, e
intorno a questo un altro cerchio: luce da luce. Oltre questi, il nuovo cerchio non è più
un cerchio di luce perchè manca di luce propria, e perciò ha bisogno di luce estranea:
esso è piuttosto come una ruota o meglio come una sfera che dal terzo posto riceva
poiché gli è contigua tutta la luce che da esso emana”.
PLOTINO, Enéadas IV, 3, 17 (Tratado 27). In: ________.
Enneadi. 5ª ed. Trad. de Giuseppe Faggin. Milão:
Rusconi, 1999, p. 587.
Texto 3
“We must consider whether a thing is the same as, or different from, what being is for
it”.
ARISTÓTELES, Metafísica 1031a15-16. In: _________.
Metaphysics. Books Z and H. Trad. de David Bostock.
Oxford: Clarendon Press, 1994, p. 8.
Texto 4
“In the case of things which are spoken of in their own right, is it necessary that they
should be the same as what being if for them? for instance, if there are substances
such that no other substance is their substance, and no other nature is prior to them, as
some say holds of the Forms? For if goodness-itself and what being is for a good thing
are different, and similarly animality-itself and what being is for an animal, being-itself
and what being is for a being, then there will be other substance and natures and Forms
over and above those mentioned, and these other substances will be prior, if what-
being-is is substance. And if on the one hand the two are divorced from one another,
then the form will be unknowable, and the what-being-is will not be a being. (By
“divorced from one another” I mean that being for a good thing does not belong to
goodness-itself, and being good does not belong to being for a good thing.) For first, we
know a thing when we know what being is for it; and second, the case of goodness is no
different from any other, so that if being for a good thing is not good, nor will being for
a being be a being, nor being for a unity be a unity. But all cases of what-being-is are
or are not equally, so that if not even being for a being is a being, nor will being for
anything else be a being. Further, that to wich being for a good thing does not belong is
not good. It must be, then, that goodness and being for a good thing are the same, and
similarly beauty and being for a beautiful thing. Generally, the same result will hold for
anything that is primary and spoken of in its own right, and not in virtue of something
else. Indeed this is itself sufficient even if they are not forms or, perhaps one should
say, even if they are forms. (At the same time it is also clear that if the Forms are as
some people say, what underlies will not be substance. For the Forms must certainly be
substances, but not because something underlies them; if that were so, they would exist
only by being participated in.) These are some arguments to show that what being is for
a thing and the thing itself are one and the same, and not coincidentally. Another is that
to know a thing just is to know what being is for it, so that even by exhibition of cases
it must follow that the two are one and the same”.
336
ARISTÓTELES, Metafísica 1031a28-1031b22. In: _________.
Metaphysics. Books Z and H. Trad. de David Bostock.
Oxford: Clarendon Press, 1994, pp. 8-9.
Texto 5
“E, diz, há identidade entre cada coisa e aquilo que era o ser de cada coisa: com efeito,
cada coisa não é diferente de sua própria essência; aquilo que era o ser é a essência, e,
por isso, cada coisa não é outra com respeito à própria essência, mas é idêntica. A
identidade entre a coisa e aquilo que era o ser é válida para aquilo que é dito por si
mesmo, como ‘homem’ e ‘ser homem’”.
ALEXANDRE DE AFRODÍSIAS. Alexandri Aphrodisiensis In
Aristotelis Metaphysica commentaria. Ed. Michael
Hayduck. Berlim: Georg Reimer, 1891, p. 479, linha 36,
à p. 480, linha 3 (1031a15). Tradução de Juvenal
Savian Filho.
Texto 6
“Nelle cose composte, infatti, c’è differenza tra l’avere questa essenza e l’essere
questa cosa: la cosa composta, infatti, è l’essere questa cosa, vale a dire Socrate,
mentre la forma di Socrate è l’avere questa essenza. Le cose immateriali e non
contaminate dalla materia sono dunque le prime e di per sè buone e belle (...) Da qui si
rivolge (Aristotele) a coloro che considerano le idee più importanti e dicono che esse
sono sostanze autosussistenti, guardando alle quali il demiurgo fa ciò che fa. Dice
dunque che, se vi sono le idee come alcuni dicono, cioè sostanze e non discorsi, non vi
sarà il sostrato, vale a dire la cosa composta: queste idee, infatti, se esistono
precedentemente, devono necessariamente essere sostanze, ma non sono considerate nel
sostrato con le sostanze composte, perché così verrebbero ad essere per partecipazione,
mentre essi le vogliono immateriali (...) Da questi discorsi, dice, abbiamo appreso che
nelle cose composte non sono una sola ed identica cosa l’essenza e la singola cosa”.
ASCLÉPIO. Asclepii in Aristotelis Metaphysicorum libros
A Z commentaria. Ed. Michael Hayduck. Berlim:
Georg Reimer, 1888, p. 393, linha 23, à p. 394, linha 9
(1031a30 1031b15). Tradução de Claudio Micaelli,
apud: MICAELLI, C. Il De hebdomadibus di Boezio, op.
cit., pp. 36-37.
Texto 7
“Se há, pois, diz ele, essências propriamente ditas que subsistem por si mesmas, como
afirmava Platão; e se dessas essências não há outras essências ou outras naturezas que
lhe sejam anteriores (...); e se elas são, pois, essências por si mesmas, como alguns
dizem ser as Idéias, então, pergunta-se, são diversos ou não o “bem em si”, quer dizer,
o “bem mesmo”, e o “ser bem” ou o “ser bom mesmo”? E, diz, se há diferença entre o
“viver em si” e o “ser o viver em si”, e entre o “bem em si” e o “ser o bem em si”, ou
entre o “ser em si” e o “ser o ser em si”, então haverá outras essências, naturezas e
idéias diferentes daquelas nomeadas; elas serão anteriores e elas sim serão essências:
se, com efeito, a essência é principalmente aquilo que era o ser, e se aquilo que era o
ser é o ser do homem, então a essência é principalmente o ser do homem; e se isso é
verdadeiro, também a essência do homem em si será o ser do homem em si, que (e aqui
eu falo do ser do homem em si) é a essência do homem em si e aquilo que era o ser do
mesmo. Mas, para aqueles que falam das Idéias não parece verdadeiro que haja
essências anteriores às essências ou às Idéias.”
ALEXANDRE DE AFRODÍSIAS. Alexandri Aphrodisiensis In
Aristotelis Metaphysica commentaria. Edição
Hayduck, p. 481, linhas 8-22 (1031a28ss). Tradução de
Juvenal Savian Filho.
Texto 8
“Ma come? Non è quello che è? Non è dunque padrone di “essere quello che è”, o di
“essere al di là”? Ecco, l’anima mia, non persuasa dalle ragioni precedenti, si trova
nell’incertezza. A questa obiezioni si deve rispondere così: ciascuno di noi, in quanto è
337
corpo, è lontano dall’essenza; ma in quanto siamo anima e noi siamo soprattutto
anima siamo partecipi dell’essenza e siamo una certa essenza; cioè, per così dire, un
composto di differenza e di essenza: non siamo dunque vera essenza, né essenza in sé,
perciò nemmeno siamo padroni della nostra essenza. Infatti, l’essenza è differente da
noi, poiché non siamo padroni della nostra essenza ma è l’essenza padrona di noi, in
quanto essa aggiunge anche la differenza. E poiché, in un certo senso, noi siamo “ciò
che è padrone di noi”, così potremmo dire che noi siamo, anche quaggiù, padroni di noi
stessi. Ma l’Essere, che è assolutamente ciò che è e non è distinto dalla sua essenza, in
quanto è quello che è ed è padrone di sé, non è relativo ad altro, perché è ed è essenza.
E a lui, in quanto è primo nell’ordine dell’essenza, è dato di essere padrone di sé”.
PLOTINO, Enéadas VI, 8, 12 (Tratado 39) Edição Faggin,
p. 1315.
Texto 9
Nous constatons que toutes les choses que l’on dit être sont composées, aucune n’est
simple, qu’elle soit produite par la technique ou constituée par la nature.
PLOTINO, Enéadas V, 9, 3 (Tratado 5) ed. Brisson &
Pradeau, p. 201.
Texto 10
Or, non seulement Dieu n’est rien de qualifié, mais encore le fait qu’il soit antérieur à
l’essence le rend étranger à tout être et à tout ‘Il est’”.
PORFÍRIO, In Parmenides X, 23-25 (ed. Hadot). In: HADOT,
P. Porphyre et Victorinus. Vol. II (Textes). Trad. de
P. Hadot. Paris: Études Augustiniennes, 1968, p. 96.
Texto 11
“Egli invece è Uno senza il “qualcosa”, perché se fosse “qualcosa di unitario”, non
sarebbe Uno in sé, poiché “in sé” è prima del “qualcosa”. Perciò Egli è, in verità,
ineffabile”.
PLOTINO, Enéadas V, 3, 12-13 (Tratado 49) Edição
Faggin, p. 845.
Texto 12
“Potremmo dire che quaggiù l’esser bello viene dal di fuori, poiché gli elementi in cui
l’ordine consiste sono differenti; lassù, invece, le idee sono buone di per sé. Ma perché
sono buone di per sé? Non è sufficiente credere che le idee vengano da Lui per risolvere
la questione. Che gli esseri provenienti da Lui siano preziosi bisogna certo ammetterlo;
ma il ragionamento desidera sapere in che cosa consista il loro bene”.
PLOTINO, Enéadas VI, 7, 18 (Tratado 38) ed. Faggin, pp.
1247 e 1249.
Texto 13
Autre extrait des mêmes Hymnes érotiques. ‘Mais ramenons derechef toutes ces
puissances à l’unité et disons qu’il n’existe qu’une Puissance simple, productrice
d’union et de cohésion, qui est le principe spontané de son propre mouvement, et qui du
Bien jusqu’au dernier des êtres, puis de nouveau de cet être même jusqu’au Bien,
parcourt sa révolution cyclique à travers tous les échelons, à partir de soi, à travers soi
et jusqu’à soi, sans que cesse jamais, identique à soi-même, cette révolution sur soi-
même’”.
PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA, Os nomes divinos IV, 17,
713D (ed. Suchla, p. 162). Trad. de Maurice de
Gandillac (ed. Gandillac, p. 110).
Texto 14
“Chi fa sussistere il tutto è Dio; ciascun Dio agisce con il suo stesso essere; chiunque
agisce con il proprio stesso essere fa una similitudine di sé; colui che fa sussistere il
tutto crea il mondo come sua imagine: se questo è vero, ha in sé, in forma di modello, le
cause del tutto, e queste sono le idee. (...) I nostri pensieri, infatti, certamente non sono
338
in grado di attingere il concetto di “Uguale in sé” e di “Simile in sé” e tutti i concetti di
questo genere, ma la Mente demiurgica non ha in sé l’idea di “Uguale in sé” e di
“Giusto in sé” e di “Bello in sé” e, analogamente, di “Buono in sé”, e neppure tutti i
concetti di tale genere”.
SIRIANO, Comentário à Metafísica de Aristóteles, 894b35-
37; 895a19-23. In: ________. Syriani in Metaphysica
commentaria. Ed. Guilelmus Kroll. Berlim: Georg
Reimer, 1902, pp. 109 e 110 (1079a4). Tradução de
Claudio Micaelli, apud: MICAELLI, C. Il De
hebdomadibus di Boezio, op. cit., pp. 45-46.
Texto 15
“For if it bestows by mere existence, and so makes the bestowal from its own essence,
then what it bestows is inferior to its essence, and what it is, it is more greatly and
more perfectly, by the principle that whatever is productive of anything is superior to
its product. Thus the character as it pre-exists in the original giver has a higher reality
than the character bestowed: it is what the bestowed character is, but is not identical
with it, since it exists primitively and the other by derivation. But if they had a
commom definition, the one could not be, as we have assumed, cause and the other
resultant; the one could not be in itself and the other in the participant; the one could
not be the author and the other the subject of a process. And if they had nothing
identical, the second, having nothing in common with the existence of the first, could
not arise from its existence. It remains, then, that where one thing receives bestowal
from another in virtue of that other’s mere existence, the giver possesses primitively the
character which it gives, while the recipient is by derivation what the giver is”.
PROCLO, Elementos de teologia, prop. 18. In: _______. The
elements of theology. 2ª ed. Ed. e trad. de E. R. Dodds.
Oxford: Clarendon Press, 1992, p. 20.
Texto 16
De tout cela, il est aisé de conclure que le Démiurge crée éternellement, que le Monde
est sempiternel selon la sempiternité coextensive à la totalité du temps, qu’il est
toujours en train de naître bien ordonné, que, bien qu’impérissable, il n’est pas
toujours, mais devient toujours, étant rendu bon par le Père, sans être bon de lui-même,
comme le Père qui l’a créé: car tout ce qui est dans le Monde est en état de devenir, non
en état d’être, comme dans le cas des êtres éternels”.
PROCLO, Comentário ao Timeu 111D, 30A (ed. Diehl, p.
366). Trad. de A. J. Festugière. In: _______.
Commentaire sur le Timée. Tomo II, livro II. Paris:
Vrin & CNRS, 1967, p. 226.
Texto 17
Vois donc si Platon n’a pas aussi l’air de quelqu’un qui laisse entendre un
enseignement caché: car l’Un, qui est au-delà de la substance et de l’Étant, n’est ni
Étant, ni substance, ni acte, mais plutôt il agit et il est lui-même l’agir pur, en sorte
qu’il est lui-même l’Être, celui qui est avant l’Étant”.
PORFÍRIO, In Parmenides XII, 22-27 (ed. Hadot, p. 104).
Texto 18
“E comme le lettere scritte non sono le medesime per tutti, così neppure le voci
pronunciate sono le medesime per tutti; ciò tuttavia di cui queste sono in primo luogo
segni, sono per tutti le medesime affezioni dell’anima e ciò di cui queste sono immagini
sono cose che sono già esse stesse le medesime”.
ARISTOTELES, Perì hermeneías 16a5-8. In: ____________. De
interpretatione. Trad. de Attilio Zadro. Nápoles:
Loffredo Editore, 1999.
Texto 19
(...) la nature a été instruite et contrainte par les choses mêmes, recevant d´elles des
leçons multiples et variés, et qu’ensuite le raisonnement, à ce qui a été transmis par
339
elle, ajoute la précision et fait de nouvelles découvertes (...). D’où aussi: les noms ne
sont pas nés au début par convention, mais les natures mêmes des hommes, subissant
selon chaque peuple des affections particulières et recevant des images particulières,
faisaient sortir d’une manière particulière l´air émis sous l’effet de chacune des
affections et images, de sorte qu’enfin il y ait la différence entre les peuples suivant
les lieux. Ensuite, en commun dans chaque peuple, les particularités du langage furent
fixées, afin que les désignations soient, pour les hommes entre eux, moins incertaines et
plus brièvement exprimées”.
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WIRTH, J. “L’image chez Boèce”. In: L’image médiévale. Naissance et
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ZINGANO, M. “L’homonymie de l’être et le projet métaphysique d’Aristote”.
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