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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
PÓS
-
GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, ARTE E HISTORIA DA CULTURA
O SANGUE NA OBRA DE ARTE
:
como imagem, como
meio
de expressão
e suas implicações no fazer artístico
ANTONIO XAVIER DE QUEIROZ
São Paulo
2010
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AN
TONIO XAVIER DE QUEIROZ
O SANGUE NA OBRA DE ARTE
:
como imagem, como meio
de expressão
e suas implicações no fazer artístico
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie como parte das exigências
para a obtenção do título de Mestre em Educação,
Arte e História da Cultura.
ORIENTADOR
: Prof.
Dr.
Norberto Stori
São Paulo
2010
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ANTONIO XAVIER DE QUEIROZ
O SANGUE NA OBRA DE ARTE
:
como imagem, como meio
de expressão
e suas implicações no fazer artístico
Disserta
ção apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie como parte das exigências
para a obtenção do título de Mestre em Educação,
Arte e História da Cultura.
Banca Examinadora
___________________________
Prof. Dr. Norberto Stori
_____________________
_______
Prof. Dr. Ermelindo Nardin
____________________________
Profa. Dra. Ingrid Hö
tte Ambrogi
Q3s
Queiroz
,
Antônio Xavier de
.
O sangue na obra de arte: como imagem como veiculo de
expressao e suas implicaçoes no fazer artístico
/
Antô
nio Xavier de
Queiroz
2010.
231
f. : il. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Educaçao, Arte e História da Cultura
)
-
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao maior bem que possuo:
minha
família, e aos maiores mestres que tive na vida: meus pais,
Vital Xavier de Queiroz e Expedita Ferreira de Queiroz,
falecidos, que me ensinaram e me deixaram como herança
princípios importantíssimos, como amor e respeito, e que
cultivar amizades é virtude de suma importância para a uma
vida sadia.
Aos meus irmãos, que adotaram comportamentos que são
sinônimos de solidariedade, amizade, amor, e tolerância,
nunca se mostrando incomodados ou cansados com os
meus problemas e lamentações. E que estão sempre atentos
aos meus passos e, mesmo à distância, mantêm a em
mim.
Às pessoas mais maravilhosas e importantes que conheci,
amo e sempre amarei. Embora distantes, povoam
diariamente os meus pensamentos.
Aos poucos amigos que tenho, que também têm espaço
aqui, por terem me escolhido e permitido que eu os
escolhesse para fazerem p
arte de minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço em especial ao meu orientador Prof. Dr. Norberto
Stori, pela paciência e carinho. Por ter me escolhido e
aceitado o projeto de pesquisa por mim proposto. Por
proporcionar momentos de reflexão, conduzindo-me a
caminhos onde encontrei alicerces importantes para o
desenvolvimento deste estudo. Agradeço sua dedicação,
confiança e amizade ao longo deste processo. A cada
encontro nosso, me sentia ainda mais renovado, motivado e
entusiasmado pela pesquisa e pela vida acadêmica. Sua
postura e receptividade perante o novo o identificam como
um professor de idéias inovadoras, o que contribuiu para que
eu me conscientizasse de que hoje educar é ser ousado e
que assuntos instigantes se desenvolvem com posturas
renovadas
.
Agradeço aos Profs. Drs. Ermelindo Nardin e Ingrid
tte
Ambrogi, pela presença, disponibilidade, dedicação e
consideração precisa no momento da qualificação, em que
um caloroso, significativo e instigante debate proporcionou a
tomada de novos caminhos importantes e fundamentais para
a pesquisa. As sugestões de novas leituras muito
enriqueceram este estudo.
Agradeço à minha amiga, Hânia Cecília Pilan, seu marido,
Ewerton de Castro e
Dona
Enir da Silva Pilan,
que dedicaram
muitas horas de tempo em leituras dos meus ensaios e
também auxiliaram com empréstimos de livros, apoio que
encontramos nos grandes amigos. Muito obrigado pela
amizade.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Educação,
Arte e História da Cultura, aos professores doutores, que
muito contribuíram com seus valores intelectuais em sala de
aula, ampliando nossos conhecimentos em relação aos
assuntos que contemplam as áreas de saberes referentes à
temática do curso, dando condições de criar relações entre
diferentes linguagens em ar
te, como também na vida.
Agradeço ao
MACKPESQUISA
(Fundo Mackenzie de
Pesquisa) e
CENP
(Coordenadoria de Estudos e Normas
Pedagógicas) do Estado de São Paulo, por ter
em
financiado
parcialmente este trabalho, proporcionando maiores
facilidades na obtençã
o de materiais para a pesquisa.
“(...) o mundo dos fenômenos, tal como o percebemos com os
nossos sentidos, é uma geleia amorfa, e, atrás desses fenômenos,
encontram
-se ocultas as formas eternas, imutáveis, que podemos
perceber graças à perspectiva suprassensível da teoria”. (
Vilém
Flusser
-
A Filosofia da Caixa Preta
2007
, p.23)
.
RESUMO
Esta pesquisa é um convite à “ação”, ao exercício do olhar, a um olhar atento,
diferenciado sobre o elemento orgânico “sangue”, que ora é representado, ora é
apresentado e materializado como veículo expressivo na obra de arte, em diferentes
momentos da história da Arte. Serão analisadas obras de diferentes artistas, tais como
Pietro Lorenzetti, Mathias Grünewald, Annibale Carracci, Michelangelo Merisi,
Caravaggio, Artemisia Gentileschi, Francisco Goya, Pedro Américo, Gustave Moreau,
Frida Kahlo, Hermann Nitsch, Ana Mendieta, Gina Pane, Chris Burden, Artur Barrio,
Karin Lambrecht, Marc Quinn, Betina Sor, Vanessa Tiegs e Regina José Galindo, em
trabalhos em que o “sangue” se faz presente.
PALAVRAS CHAVES: arte contemporânea; “ação”; sangue; corpo como suporte;
analise de pintura; materiais precários; materiais perecíveis; campo de ação;
performances;
instalações.
ABSTRACT
Th
is research is an invitation to the act of looking, or, in other words, to an intimate
"action" towards such a different organic element called Blood, which can be either
represented, or materialistically presented as a significant vehicle in the artwork
at
different times of Art History. Such evolution of Blood as a sthetic material will be done
by analyzing the works of different artists such as: Pietro Lorenzetti, Mathias Grünewald,
Annibale Carracci, Caravaggio, Artemisia Gentileschi, Francisco Goya, Pedro Américo,
Gustave Moreau Frida Kahlo and Candido Portinari. Hermann Nitsch, Ana Mendieta,
Gina Pane, Chris Burden, Artur Barrio, Karin Lambrecht, Marc Quinn, Betina Sor,
Vanessa Tiegs e Regina José Galindo are contemporary artists, most of them
repre
sentative either of the so called Body Art or of other innovative styles born after
the Second World War or of Vietnam War or after 1968 movements. Anyway, all of them
have blood as a fundamental and meaningful element, and this is what will be focused in
this work.
Key Words: contemporary art; "action"; Blood; body as a support; analysis of painting;
precarious materials; perishable materials; field action; performances; Installation.
LISTA DE ILUSTRAÇÃO
Figura 01 - Bisão, c. 15000 10000 a. C. Pintura em Caverna; - Altamira, Espanha.
GOMBRICH, 2008, p. 40 .............................................
.................................
.................
34
Figura 02 - c. 15000 10000 a. C. Pintura em Caverna; Caverna em Lascaux
França. GOMBRICH
, 2008, p. 42........................................................
.......................
....35
Figura 03 Corça Ferida, (S/d)Laugerie Basse, França. www.historiadaarte.
com.br/imagens/corcaferida.jpg. Acesso em 03/10/2008........................
....
...................
.37
Figura 04
Deposição)
c. 1320 Pietro Lorenzetti, têmpera sobre madeira, 44x31 cm,
Museu do Louvre, Paris. ARGAN, 2003, p. 73..........................................
......................42
Figura 05
“A Crucificação”
, 1510/15
15 -
Mathias Grünewald, óleo sobre madeira, 270
x 305 cm; Museuo d’Unterlinden, Colmar. GROMBRICH, 2008, p.
351..........................................................................................................................
.........
49
Figura 06 “O açougue, 1585 Annibale Carracci, óleo sobre tela, 185 x 266 cm,
Christ Church, Oxford, Inglatera. ARGAN, 2003, p. 257...........................................
......59
Figura 07 - “Judite e holofernes, 1598 Caravaggio, óleo sobre tela, 145 x 195 cm,
Galeria Nacional de Arte Antiga Roma -
Itália.
estado
-
darte.blogspot.com/.../
judite
-e-
holofernes
.html. Acesso em 20/10/2008...............................................................
.........
65
Figura 08
– “
Judite e Holofernes
”, c. 1620
Artem
ísia Gentileschi, óleo sobre tela, 199 x
162 cm, Galleria Degli Uffizi, Florença, Itália. ARGAN, 2003, p.
266..........................................................................................................................
........
68
Figura 09 O Fuzilamento de Três de Maio, 1808”,
1814
Goya, óleo sobre tela, 266
x 345 cm, Museo do Padro, Madri, Espanha. COLEÇÃO FOLHA GRANDES MESTRES
DA PINTURA, 2007, p. 80...................................................................
.....................
......
.
74
Figura 10 “Tiradentes esquartejado” , 1893 Pedro Américo, óleo sobre tela, 270 x
165 cm, Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora
MG.
pt.wikipedia.
org/wiki/
Pedro
_
Américo
. Acesso em 05/01/2008...................................................
......
..
82
Figura 11 - “L’apparition” ( A Aparição) - 1876 - Gustave Moreau, Aquarela
105 x 72 cm, Museu do Louvre, Paris, França.
aart.free.fr/
Moreau
.htm. Acesso em
03/08/2008
..........................................................................
....................................
.........
88
Figura 12 – Uns Quantos Golpes” , 1935 - Frida Kahlo, Óleo sobre metal, 38 x48,5 cm,
coleção Dolores Olmedo, Cidade do México. KETTENMANN, 2001, p.
39.........................................................
...................................................................
.........
95
Figura 13 “O Hospital Henry Ford ou A Cama Voadora”, 1932 - Frida Kahlo,
Óleo
sobremetal, 30,5 x 38cm, coleção Dolores Olmedo, Cidade do México.
KETTENMANN,
2001, p. 37.......
............................................................................
...................................
.98
Figura 14
– “1
st
action, Vienna”,
1962
Hermann Nitsch,
Performances
, catalogo Museu
Hermann Nitsch, 2007, p. 51, foto de Richard Niederba
cher
Vienna College Of
Graphic Art/Archiv Nitsch…………………………………………
………………………..
..115
Figura 15 - painting performance,Vienna Secession”,
1987
Hermann Nitsch, Pintura
Performances
, catalogo Museu Hermann Nitsch, 2007, p. 137, foto de Richard
Niederbacher
C. F. A.
Nitsch………………………….....…………
...................
………117
Figura 16 - “Litografia”, 1984 folder, “Arquitetura do Teatro de Orgia e Mistério
Teatro III, Hermann Nitsch,
Performances
, catalogo Museu Hermann Nitsch, 2007,
p. 134, foto de Fre
d Jahn, 106x75cm, Viena, 1992.....................................
...............
...
118
Figura 17 -
122
nd
action, Burgtheater, 2005 - Hermann Nitsch,
Performances
, catalogo
Museu Hermann Nitsch, 2007, p. 190, foto de Georg Soulek, Viena,
2005………………………………
……...................................................................
.....
....119
Figura 18 - 80
th
Action, 3-day play, 1984 - Hermann Nitsch,
Performances
, catalogo
Museu Hermann Nitsch, 2007, p. 128, Archiv-
Cibulka
-Frey, Viena,
1984………………..……………………....
.............................................................
.....
....120
Figura 19
“2
nd
action Vienna”, 1963, Hermann Nitsch
Performances
, catalogo Museu
Hermann Nitsch, 2007, p. 53, Galeria Dvorak, foto de Richard Niederbacher, Viena,
1963………………..……………
.................................................................
................
....121
Figura 20
-
“Action, 3
-
day play’, 1984, Hermann Nitsch,
Performances
, catalogo Museu
Hermann Nitsch, 2007, p. 124, Archiv-
Cibulka
-Frey, Viena, foto de Richard
Niede
rbacher, Viena, 1963………………..…………...........................................
.....
......122
Figura 21
-
“122
nd
Action , Burgtheater, 2005, Hermann Nitsch,
Performances
, catalogo
Museu Hermann Nitsch, 2007, p. 187-189, foto de Georg Soulek C. F. A.
Viena,
2005…....................................................................................................................
.......124
Figura 22 “Untitled (Hotel Principal)”, 1973, Ana Mendieta,
Performance,
foto/documentação: Hans Breder, 20 x 13 ¼ polega
das.
www.stephenfosterfinearts.com/.../cowheart
-
200.jpg. Acesso em 06/10/2009.....
.....
..130
Figura 23
Untitled”
(Rape Scene
)
(Cena de Estupro), 1973 Ana Mendieta,
Performance
The estate of ana mendieta collection. Courtesy: gallery lelong, new yo
rk
(A “herança” de Ana Mendieta. Cortesia: Galeria Lelong.
www.3.bp.
blogspot.com/_4m62iwPmxiU/ScsDZVvEEPI/AA. Acesso 23/09/2009................
.....
...133
Figura 24 Silueta Works in Mexico”, (Silhueta trabalhada no México) Ana Mendieta,
Performance
197320x13 cm. www.virginiamiller.com/.../1990s/images/ AM2.jpg.
Acesso em 23/09/2009.........................................................................
....................
.....135
Figura 25 Enfoncement d’un rayon de soleil”, (Enterrando um raio de
Sol)1969
-
Gina Pane, Performance, Campo em Eco, França. ALMEIDA,
2001.p.430...........................................................................................................
.....
.....137
Figura 26 “Azione Sentimentale” (ação Sentimental) (1974
)
- Gina Pane,
Performance,
Bologna, Galeria de Arte Moderna, foto Françoise Masson, Paris
concessão da revista “Data”, Milão, 30/10/76. Catalogo - ARTE POVERA,
COMPORTAMENTO BODY ART, CONCEITUALISMO (s/d).............................
.....
.....140
Fi
gura 27 “Esclade non-
anesthesièe”
(Escalada não anestesiada) de 1971 -
Gina
Pane, Performance, Estúdio Gina Pane, Paris. ALMEIDA,
2001.p.430............................................................................................................
.....
....143
Figura 28 – “
Shoot”
, 1971 - Chris Burden, Performance, F Space, Santa Ana,
California, USA; 19 de novembro, 1971. Catalogo Chris Burden, Ed. Thames &
Hudson, 2007, p. 10/210......................................................................
.............
.....
......147
Figura 29
Through the Nigt Softly”
(Através do cair da Noite. Tradução nossa), 1973
-
Chris Burden,
Performance
, Registro em Preto e Branco, 16mm, 10 segundos.
Catalogo Chris Burden, Ed. Thames & Hudson, 2007, p.
03......
.......................................................................................................................
.....
.149
Figura 30 ““Trans Fixed” (
Trans
-
fixo)1974
- Chris Burden,
Performance
, foto e
coleção de Jasper Johns, New York, USA, 6 7/8 X 61/4 X 61/4 cm. Catalogo Chris
Burden, Ed. Thames & Hudson, 2007, p. 31/296/297 .......................................
.....
....151
Figura 31 - “Situação T-T.1, Belo Horizonte”, 1970–Artur Barrio, Peformace /
Instalação,
foto: Cesar Carneiro. CANONGI
A, 2002, p. 22/23.............................
.......................
...
.158
Figura 32 “Livro de Carne, 1979 Artur Barrio, foto/Registro: Beto Felício.
CANONGIA, 2002, p. 56...............................................................................
.......
..
159/160
Figura 33 “Livro de Carne, 1979 Artur Barrio, foto/Registro: Beto Felício.
CANONGIA, 2002, p. 57.........................................................
......
.........................162/163
Figura 34 - “Morte eu sou teu”, 1997 -
Kari
n Lambrecht, Sangue de Carneiro sobre
toalha e desenho, 170-171x15 cm, foto Fernando Zago. www. vivigil.blogspot.com/
2008_01_01_archive.html. Acesso em 09/09/2009..................................................
..
.
168
Figura 35 “Sem Titulo”, Bagé, 16 de maio de 2001, quarta-feira. Onze horas da
manhã. Lua minguante. Karin Lambrecht, foto Karin Lambrecht. Eu e Você, 2001, p.
28...........................................................................................................................
.
..
...
..171
Figura 36 “Momento do descarneamento do animal, 2001, quarta-feira. Onze horas
da manhã. Lua minguante. Karin Lambrecht, foto Karin Lambrecht. Eu e Você, 2001,
p.02...............................................................................
....................
...........................
..172
Figura 37 “Pulmão”, 16 de maio de 2001, quarta-
feira
- Karin Lambrecht, foto Yole
Chapman. Eu e Você, 2001, p.43/45...................................................................
.....
....
173
Figur
a 38 “Sem titulo”, 2001 - Karin Lambrecht, Instalação com vestidos brancos,
Sangue de carneiro, expressões de vísceras de carneiro sobre papel e fotografia de
Mãos com Vísceras, foto de Fabio Del Re. Catalogo XXV Bienal de São Paulo.
www.
bienalsaopaulo.
globo.com/artes/artistas/artistas.asp. Acesso em 03/11/2009
....
..
174/175
Figura 39/40 -
Self”
(autorretato), 1991 Marc Quinn, 82 X 25 cm -
Sangue
-
aço
inoxidável, Perspex, refrigeração, foto Stephen White.
Catalogo MARC QUINN, MARCO
Electa, 2006, p
. 63/64/65..............................................................
....................
.............1
82
Figura 39/40 -
Self”
(autorretato), 1991 Marc Quinn, 82 X 25 cm -
Sangue
-
aço
inoxidável, Perspex, refrigeração, foto Stephen White.
Catalog
o MARC QUINN, MARCO
Electa, 2006, p. 63/64/65......................................................................
....................
.....183
Figura 41 -
Sky
(Céu) -
2006
Marc Quinn, 82 X 25 cm - Placenta humana, cordão
umbilical, aço inoxidável, pers
pex
e sistema de refrigeração – 205 x 65 x65 cm, coleção
Jay Jopling/ White Cube, Londres, foto Stephen White. Catalogo MARC QUINN,
MARCO Electa, 2006, p. 184/185/186/187188/189........................
...............
.
184/185/186
Figura 42 Cristo Velato” ( Cristo velado), 1753 Giuseppe Sanmartino, Marmore,
Capela Sansevero de Nápoli Itália.
www.thais.it/scultura/sammgius.htm
. Acesso em
30/10/2009................................................................................
............
......
........
...........187
Figura 43 Memoria y balance - Simplesmente Sangre”, 1997 Betina Sor,
Toalhas
femininas, roupa intima manchada, preservativos e cera usada e absorventes com
Sangue, caixa de acrílico.
www.pagina12.com.ar/.../00
-
07/00
-
07
-
23/nota4.htm
. A
cesso
em 12/01/2009.................................................................
...........................................
...190
Figura 44
Menstrala
- Timandra & Bulis”
(n/d)
-
Vanessa
Tiegs,
Sangue menstrual
sobre Masonite.
www.osdeusesdevemestarloucos.com/i
nde
x.../
vanessa
-
tiegs
-
menstrala/
. Acesso em 28/11/2009...................
..........................................
.................197
Figura 45 A pesca Milagrosa”, 1515/16 - Rafael Sanzio, Tempera 360 x 400 cm.
historiadaarte.pbworks.co
m/
Rafae. Acesso em 03/12/2009........................
.................19
7
Figura 46 “Seeing Through Other Eyes” (Vendo Através de outros Olhos)
(n/d)
-
Vanessa
Tiegs,
Sangue menstrual sobre Masonite. www.osdeusesde vemestar
loucos.com/i
nde
x.../
vaness
a-
tiegs
-
menstrala/
. Acesso em 28/11/2009..............
......
....19
8
Figura 47 Galaxy Gronssing” (Extrapolando Galáxias),
(n/d)
-
Vanessa
Tiegs,
Sangue menstrual sobre Masonite.
www.osdeusesdevemestarloucos.com/
i
nde
x.../
vanessa
-
tiegs
-
menstrala/
. Ace
sso em 28/11/2009................................
..........
19
9
Figura 48 “If My Thoughts Had Wings” (Se os Meus Pensamentos Tivessem Assas),
(n/d)
-
Vanessa
Tiegs,
Sangue menstrual sobre Masonite.
www.osdeusesde
vemestarloucos.com/i
nde
x.../
vanessa
-
tiegs
-menstrala/
.Acesso em 28/11/2009..
......
..
199
Figura 49 “PERRA” (cadela), 2005 Regina José Galindo,
Performance,
Guatemala.
Registro em vídeo, Catalogo Corpos Estranhos, curadoria de Claudia
Fazzolari,
10/09/2009..........................................
...................................
.....................
..................
.206
Figura 50 Quíen puede borrar la huellas? (Quem pode apagar os traços?), 2003”
Regina José Galindo,
Performance,
Guatemala. Registro em vídeo, foto: Victor Pérez.
Catalogo Corpos Estranhos, curadoria de Claudia
Fazzolari,
10/09/2009.......................................................................................................
......
.
203
/204
Figura 51 El peso de La sangre” (O peso do sangue), 2004 Regina José Galin
do,
Performance, Praça Central, Guatemala. Registro em vídeo, foto: Victor Pérez.
WWW.revista.escaner.cl/node/917
.
Acesso em 03/01/2010...............
.................
..
209
/210
SUMÁRIO
RESUMO
...............................................................
...
.....
..................................................08
ABSTRACT
...................................................................
.....
.............................................09
LIST
A
DE ILUSTRAÇÃO................................................
....
.....
.......................................10
INTRODUÇÃO
...................................................................................
.....
........................
19
CAPITULO I
O sangue apresentado e representado
por
artistas nos diferentes contextos
históricos
..............................................................................................................
.........
32
CAPITULO II
O sangue materializado na obra de arte e o corpo que fala
.............................
.......
102
CONCLUSÃ
O
..................................................................................................
............21
2
BIBLIOGRAFIA
..............................................................................................
...............
218
REFERÊNCIAS BI
BLIOGRÁFICAS
... ........................................................
.......
.........
.220
REVISTAS
...............................................................................................
......
................
226
MONOGRAFIAS, DISSERTAÇÕES E TESES
.
............................................
......
..........22
7
CATÁLOGOS
............................................................................................
....................228
SITES
.......................................................................................................................
.....2
29
VÍDEOS
..........................................................................................................
...............23
1
VI
SITAS
.................
..
.................................
..............................................................
.....
..2
31
19
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa focaliza a presença do elemento “sangue” na obra de arte. A
escolha deste tema se deveu ao reconhecimento da sua recorrência na
Arte
Contemporânea, com artistas preocupados em explorar novos materiais e suportes
para o objeto artístico. Em síntese, nas mais variadas linguagem artística foi possível
constatar que, de alguma forma, o “sangue” estava presente, o que me incentivou a
aprofundar os conhecimentos
a esse respeito.
Até o ano de 2002 eu via a Arte Contemporânea como algo estranho devido à
sua complexidade apesar de algumas instituições da área promoverem cursos com o
objetivo de esclarecer o real significado dos acontecimentos relacionados ao cenário da
História da Arte, nos quais o conceito supera o produto final em função da ruptura com
os modelos tradicionais de arte.
O “sangue”, neste trabalho, tem como matéria somente a sua imagem e a
representação iconográfica de seu uso. E, neste contexto, a palavra “sangue”, por sua
vez, significa toda e qualquer imagem que faça referência ao referido elemento. Se, ao
longo da História da Arte, foi sempre notória a presença do sangue, fosse como signo,
como símbolo ou como ícone, é possível constatar que essa presença se intensifica a
partir dos anos 60, com o surgimento dos novos suportes, além do corpo do artista,
presente na obra para a construção/produção poética e, também com o uso de
diferentes locais para a exposição da obra de arte.
Esta ruptura cria uma intrincada rede de possibilidades na forma de compreender
a obra de arte contemporânea. Sua representação ou “ação”, pela proximidade em
relação ao nosso tempo, ainda não foram totalmente absorvidas, causando maior
dificuldade de relação entre público/obra/artista, estando a obra, inclusive, sujeita a
novas formas de fruição, dado que até mesmo o próprio corpo pode passar a funcionar
como suporte do objeto estético. Além disso, por conta da diversificação dos locais para
a exposição, do uso de novos suportes e da utilização de outros elementos naturais,
como o sangue, a necessidade de uma teoria explicativa, para melhor compreensão
da arte.
20
Em primeiro lugar convém distinguir entre
representação
e
apresentação,
pois a
partir do século XX a primeira foi gradativamente cedendo espaço à segunda. Quanto à
palavra “apresentação”, o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986), define
-
a como “ato” ou “efeito” de mostrar, apresentar através da manifestação, “ação”, do
artista sobre suas obras.
Quanto à representação das obras, deve ser entendida considerando o seu valor
político ou contexto social. Bourriaud define a representação como momento M do
real”, pois toda imagem é “um momento”, todo ponto no espaço é a “lembrança de um
tempo X”, e imagens que não contêm nenhum futuro, nenhuma “possibilidade de vida”
são imagens mortas. Seu comentário sobre a representação da arte atual é:
(...) a arte tem por finalidade reduzir a parte mecânica em nós: ela
almeja destruir todo acordo apriorístico sobre o percebido (...)., o
sentido é o produto de uma interação entre o artista e o
espectador, e não um fato autoritário. Ora, na arte atual, eu,
enquanto espectador, devo trabalhar para produzir sentido a partir
de objetos cada vez mais leves, mais voláteis e inta
ngíveis. Antes,
o decoro do quadro fornecia formato e moldura; hoje muitas vezes
temos de nos contentar com fragmentos, não sentir nada é não ter
trabalhado o suficiente. (BOURRIAUD, 2009, p. 113).
Os múltiplos espaços escolhidos ou construídos para as experiências vividas
pelos artistas e seus objetos carregados de simbolismo, não podem ser considerados
simplesmente pelo seu caráter estético. Para Pareyson:
(...) nas artes figurativas, reivindicando não o primado do tratamento
do assunto, mas também o primado da expressão sobre a pura e
simples representação: o que interessa na arte não é tanto o “quê”
quanto o “como”, e o como dependendo do sentimento inspirador, isto é,
da expressão (...), de obras em que o assunto se tornava mero pretexto
(...), uma vez que se começou a ver seu significado não tanto na
aderência do tratamento como na expressão de um sentimento.
(PAREYSON, 1997, p. 70).
Tendo em mente essas reflexões, o objetivo desta pesquisa é o exercício
(manobra, ação) do olhar diferenciado (ou interpretativo) sobre o elemento orgânico
s
angue
em diferentes momentos da História da Arte, quando representado ou
21
apresentado na obra, ou ainda quando se tornar materialidade na obra de um
determinado artista.
Tal abordagem do objeto artístico que representa ou tem o sangue como
instrumento de representação não tem a intenção de limitar
-
se a apenas um sujeito, um
local ou mesmo uma obra. A proposta é pensar” o sangue na obra de arte dos artistas
aqui selecionados, na tentativa de compreender essas novas poéticas, em que o
sangue é o elemento “primeiro”, na comunicação desses artistas (o suporte material das
novas composições).
No decorrer da História da Arte verifica-se que o poder de expressão objetiva ou
subjetiva de algumas obras que contêm o sangue está presente de formas
diferenciadas, ora representado, ora apresentado nas pinturas do passado e
materializado como
tinta
para a pintura e em
performances
em que
o corpo é o suporte,
como ocorre na
Body
Art
.
No passado as pinturas foram de grande importância. Foi através dessa
linguagem que chegaram até nós as marcas da existência do homem. Foi usada na
Pré
-História, como objeto mágico-religioso, no culto ao sagrado, que hoje entendemos
como arte; na Idade Média, século V a XV (476 a 1453 d.C.) como disciplinadora e
divulgadora de dogmas religiosos cristãos da Igreja Católica, cumprindo regras
estabelecidas pelo clero.
no Gótico tardio ou início do Renascimento, final do século XV e início do
século XVI, o sangue nos é apresentado de forma diferente, rompendo com as
regras impostas pela Igreja. Os temas religiosos são representados mais
realisticamente,
desprezando
-se os conceitos de beleza estabelecidos à época e
passando a enfocar o sofrimento, a dor e o sangue, como
“A
Crucificação
(1510
-
1515),
de Mathias Grünewald (1470
-
1480/1528).
No final do Renascimento (entre o século XIV e o século XVI
),
marcado por
grandes mudanças e conquistas culturais na Europa,
valoriza
-se a representação da
figura humana e até mesmo do homem em sua totalidade. O humano ganha um outro
valor na forma de representação na pintura. Nessa época alguns artistas passam a
in
ovar na representação imagética do sangue: ele já não é tão simbólico
-
religioso e está
mais ligado a fatos comuns do cotidiano.
22
No Barroco, movimento ocorrido desde meados do século
XVI
até o século
XVIII
(
1580
a 1756), o tema bíblico é retratado de forma mais realista e dramática, o humano
é representado com verossimilhança e o sagrado implícito na composição, de forma
mais intelectualizada. A figura feminina é apresentada como heroína nos temas
trágicos, o que se verifica nas obras de Artemísia Gentileschi (1593
-
1652).
na transição para o Neoclassicismo, entre o final do século XVIII e a
primeira
metade do século XIX
, situações geradas pela guerra e os problemas sociais e políticos
são trazidos para o quadro com maior realismo e dramaticidade. O artista deseja
representar os seus monstros e indignação perante os acontecimentos reais do
cotidiano de sua época. Representações pictóricas que podem ser identificadas nas
obras de Francisco Goya Lucientes (1746-1828), em que sonhos, demônios, dor e
morte são temas recorrentes. No caso do Neoclassicismo brasileiro, no século XIX, um
acontecimento monstruoso gerado pelo poder político foi retratado por Pedro Américo
(1843/1905). Com o olhar de singularidade sobre a Inconfidencia Mineira, construiu em
1893 o quadro, “Tiradentes esquartejado”, em que o herói, Joaquim José da Silva
Xavier, o Tiradentes (1746-1792), é representado em pedaços. Essa obra chocou e
causou estranhamento entre os críticos cariocas à época de sua apresentação ao
público.
Talvez aqui seja oportuno um sucinto comentário sobre este personagem da
nossa história. Tiradentes, órfão aos onze anos, fica sob a tutela de um padrinho, que
exercia a profissão de cirugião. Tendo fracassado em vários caminhos profissionais,
em 1780 ingressa no serviço militar e, no ano seguinte, é nomeado comandante do
destacamento dos Dragões na patrulha do “Caminho Novo”, estrada pela qual se
transportava até a cidade do Rio de Janeiro toda a riqueza produzida nas Minas Gerais.
Até o ano de 1787 permanece no posto de alferes, função que lhe proporcionou
contato com grupos que critivam o governo da época.
Muda
-se para o Rio de Janeiro (capital) e desenvolve ali projetos urbanos, que
não são concretizados por não serem de interesse politicos. Frustado e descepcionado
retorna a Vila Rica, MG, onde manifesta o seu desejo de libertar Minas Gerais das
amarras portuguesas. Sua intenção não era libertar todo o país e sim criar um país
indepente no territorio de Minas Gerais. Para isso, organiza com a elite e o clero local
23
um movimento de conspiração contra o sistema de governo, divulgando também nas
regiões vizinhas ideias que eram frutos da independência dos Estados Unidos da
América e inspiradas nos ideais iluministas franceses (as informações sobre esses
acontecimentos chegaram a Vila Rica por meio de fil
hos da elite mineira que estudavam
na Europa). O movimento adquiriu forças, contando com o apoio do povo e de tropas
subversivas.
Descobertos, a conspiração não teve sucesso, os envolvidos foram presos e
sentenciados por crime de “lesa-majestade”. Após a prisão são levados para o Rio de
Janeiro e, durante o inquérito, todos negaram a conspiração, com exeção do alferes
Joaquim José da Silva Xavier, que assumiu a chefia do movimento.
Em 18 de abril de 1792, todos foram sentenciados à morte, mas, no dia
seguinte, D.Maria I, por decreto, os enviou a uma colônia portuguesa na Africa -
menos
Tiradentes, que foi enforcado em 21 de abril daquele mesmo ano. “Ação”, que foi
transformada em demonstração de força da coroa portuguesa, a sentença foi lida para
a po
pulação e essa leitura durou doze horas.
Depois de executado e esquartejado, sua cabeça foi colocada em um poste em
Vila Rica, tendo sido roubada e nunca mais encontrada. O restante de seu corpo foi
espalhado pela estrada do Caminho Novo, que ligava o Rio de Janeiro a Vila Rica. A
confirmação de sua sentença foi lavrada com o seu próprio sangue.
A inconfidência mineira transformou-se em símbolo de resistência para os
mineiros, e a morte de Tiradentes foi usada mais tarde como símbolo do ideal
republicano
do Brasil. Desta feita, Tiradentes se transformou em um herói nacional, e o
quadro em que é representada a cena de seu esquartejamento e morte não condiz com
sua posição de herói. O quadro apresenta “o herói em pedaços”, sem a representação
da “pose”, ou
melhor, sem as regras estabelecidas pelo gosto brasileiro da época.
na Europa, em meados do século XIX, as regras neoclássicas estavam
sendo “violadas”, pois vários artistas trocam as regras da academia pela liberdade de
construir uma poética própria, criando, assim, vários movimentos ligados ao
Modernismo nas Artes.
O movimento Simbolista é um deles. Seu propósito era resgatar para o cenário
artístico do período uma arte que pertencesse apenas ao espírito: “(...) é a separação
24
entre o “belo” dos “aspecto visível da natureza” (...), esses aspectos ou além dele, um
“belo” que se revela apenas às “almas belas”, aos artistas.” (ARGAN, 2004, p. 138).
Em “L’apparition” (A aparição)
(1874
-6), de Gustave Moreau
(1826
-1898), que define
bem esse movimento, mais uma vez o sangue está representado na decapitação, de
São João Batista.
Esta aparição de São João Batista decapitado é o retrato mórbido de
uma recompensa, a certidão de óbito “daquele que a ignorou”, uma representação que
se assemelha à dos guilh
otinados durante os anos do terror, como comenta Moraes:
No final do Século XVIII, durante os anos do terror, alguns
gravuristas franceses passaram a dedicar-se a um gênero
particular de representação da figura humana: o retrato do
guilhotinado. A maior parte dessas gravuras focalizava a cabeça
de uma vitima, ainda sangrando, supensa pelas mãos sombrias e
anônimas de um carrasco, numa evocação do gesto triunfante de
Perseu ao segurar a cabeça monstruosa de Medusa” (MORAES,
2002, p. 17).
Gustave Moreau apresenta Salomé, um dos seus temas preferidos, tal qual um
“carrasco” ou um Perseu com a cabeça de Medusa. A fêmea fatal, de caráter falso e
sensual, diferente da representação de Judite como uma “heroína”, feita anos antes por
Artemisia Gentilesch.
em meados do século XX o elemento sangue é representado com
dramaticidade, associado à dor, à angústia, ao sofrimento, congelando a morte. Se a
arte é expressão, Frida Kahlo
(1907/1954)
é o sinônimo deste sentimento. Suas
atitudes contêm a espiritualidade e “pessoalidade” contida duplamente na obra,
retratando
-se e sendo retratada “per” si, comprovando as palavras de Pareyson (1997
)
de que a obra é o retrato da pessoa que a realizou. Acerca da obra de Frida Khalo,
diz
Almeida:
(...). As obras dão um testemunho atormentado do seu sofrimento
físico e mental de uma forma tão pertubante que as torna
inesquecíveis (...). Em criança Kahlo esteve presa à cama durante
nove messes devido a paralisia infantil, deixando-a com uma
ligeira deformação num pé. Aos 18 anos de idade, sofreu acidente
de viação (...). A sua vida foi uma luta constante entre a vida e a
morte (...). A abordagem visual do quadro de Kahlo ultrapassa o
nível do sonho para entrar no mundo do pesadelo (...) Em 1950,
25
foram amputados cinco dedos do pé, fez varios transplantes
ósseos e sete operações cirúrgicas na coluna vertebral (...) Na
curta vida de apenas 44 anos, teve um enorme sofrimento físico
(...). (ALMEIDA, 2001, p. 252)
Para um número muito grande de artistas, a produção artística é uma forma de
autoconhecimento: “por estar sempre é o que mais conhece”, diz Frida Kahlo. O
artista cria para si uma forma de comunicação através de suas feridas”: a
imaginação
ou o real não têm limites claros, podem ter múltiplas interpretações, envolvendo tanto a
dor física, quanto as espirituais, traduzindo a sua condição de mulher, enquanto
“enferma” e/ou traída. Seu modo de ver e sentir o mundo como artista pensante
documenta a condição feminina perante a violência do universo masculino, em um novo
formato do fazer artístico, rompendo com as formas tradicionais e com o “gosto” de seu
tempo.
Na contemporaneidade, acontece uma ruptura mais drástica com as linguagens
tradicionais de Arte. Essa ruptura tem origem nos experimentos herdados do dadaísmo
de
Marcel Duchamp (1887-1968), os
ready
-
mades,
cujo objetivo era derrubar os limites
modernistas, propondo o uso de linguagens e ações interdisciplinares que
possibilitassem o recurso a diferentes materiais industrializados na confecção do objeto
artístico.
Os artistas objetivavam o abandono do suporte tradicional, tanto da pintura
como também da escultura, adotando novas atitudes e novos experimentos na busca
do que ainda poderia ser definido como “obra de arte”.
Um dos problemas para a compreensão dessa nova estética pode ser atribuído
ao material utilizado, substância que transforma a obra em “sujeito real”, corpóreo e
sensível dotado de sentidos ltiplos, gerado por ideias, além da trajetória histórica e
questões relacionadas a técnicas.
Tendo Duchamp como pano de fundo, Bourriaud, em
Estética
Relacional
(2009),
argumenta que a arte é um jogo e que, em função dos jogadores, não fim da
“história” nem “fim da arte” possível, uma vez que o prélio” (partida) recupera o
contexto social:
(...) quando o contexto social muda radicalmente, o que se
anuncia é uma nova partida, sem que seja colocado em questão o
sentido do jogo em si. Mas esse jogo
inter
-
humano
que constitui
26
nosso objeto (Duchamp: “A arte é um jogo entre todos os homens
de todas as épocas”). (...), a estética relacional constitui não uma
teoria da arte, que suporia o enunciado de uma origem e de um
destino, e sim uma teoria da forma. (BOURRIAUD, 2009, p. 26)
Pareyson (1997), em seu livro Os Problemas da estética”, afirma que a
produção de objeto artístico significa transformar o dizer e o exprimir no fazer e que ler
ou interpretar uma obra de arte é fazer com que a própria face da obra fale. “(...) um
exprimir que não se apresente como fazer não é artístico (...), assim um significado que
não
seja
sinal físico não pertence à obra (...)”. (PAREYSON, 1997, p. 64). Para ele, o
termo “linguagem”, na obra de arte, tem o sentido metafórico, e a ênfase deverá cai
sobre o adjetivo e não sobre o substantivo.
Quando se contemplam obras de arte contemporâneas de diferentes linguagens,
como performances, pintura e instalações, atentos à qualidade intrínseca do objeto,
como ocorre na obra “Sem Titulo” (2001), de Karin Lambrecht, que esteve na XXV
Bienal de São Paulo de 2002, surgem várias indagações: a um primeiro olhar a obra
causa estranhamento; em seguida, a transitividade da obra dificulta a relação que
sempre é necessário estabelecer com algo ou alguma coisa do nosso convívio, uma
procura constante para justificar a existência da obra, algo da subjetividade do
observado. Mas se o contemplador se apropriar da história de vida dos artistas, do
contexto social no qual estavam inseridos, poderá compreender e até compartilhar de
suas ideias, considerando que não se trata apenas de obras com sangue, e sim d
a
poética pessoal do artista, de sua sensibilidade e visão de mundo, e que o seu
significado vai além do seu valor estético.
Esse novo modo do fazer artístico utilizando novos materiais e novos suportes,
como o sangue e outros elementos naturais perecíveis e precários materializados no
objeto, o corpo do artista ou do modelo sendo o suporte, sujeito da ação, receptor de
emoções, elimina a distância entre o artista e a obra, entre o sujeito da ação e o objeto
de criação.
Essas obras provocadoras e instigantes trazem para o universo da interpretação
a possibilidade de reflexão sobre a Arte em um sentido mais amplo, colocando o público
em contato com seu verdadeiro propósito, a comunicação. E, para que esta aconteça, é
27
necessário compreender que não se trata apenas de obras com sangue, mas,
principalmente, a sua contextualização e a poética dada pelos seus respectivos artistas.
É necessário embasamento teórico para a compreensão de obras de arte de
diferentes épocas, uma vez que a obra nunca esta completa. Quem a conclui é o
observador com o seu olhar. Assim compreende Bourriaud:
A transitividade, tão antiga quanto o mundo, constitui uma
propriedade concreta da obra de arte. Sem ela, a obra seria
apenas um objeto morto, esmagado pela contemplação (...). Essa
noção de transitividade introduz no domínio estético a desordem
formal inerente ao dialogo; ela nega a existência de um “lugar da
arte” especifico em favor de uma discursividade sempre inacabada
e de um desejo jamais saciado de disseminação. (BOURRIAUD,
20
09, p. 36).
A transitividade formal contida na obra de arte cria uma discursividade ad
infinitum”,
pelas múltiplas linguagens em arte e todas as suas possibilidades de
feitura”
do objeto. São formas de apresentação e representação nas Artes Plásticas q
ue
conduzem a uma experiência estética inovadora.
Diante desse contexto instigante e convidativo, a proposta, aqui, é a de “
pensar”
a
presença do sangue enquanto elemento vital na obra de arte em diferentes momentos
da História da Arte. O diálogo que se pretende estabelecer poderá ajudar a
compreender certos aspectos estéticos da Arte Contemporânea, principalmente quanto
à sua forma de apresentação/representação. A intenção é a de provocar uma
experiência sensorial inovadora e não simplesmente
voyeurismo
.
Os artistas escolhidos
apresentam os seus objetos de formas diferentes, poder-
se
-ia até dizer, trágicas. São
situações nada comuns, em que se projetam características da época atual, como
afirma Vázquez:
O desagrado, a repugnância ou o asco se produzem quando o sujeito
se situa esteticamente ante o objeto real que considera feio. E a
fealdade, o ressaltamos, é uma categoria estética. (...) Podemos
contemplá
-los guiados, sobretudo pelo que neles se representa,
perdendo de vista que não se trata de uma duplicação da fealdade
natural, real, mas sim da que foi produzida ou criada pelo artista.
(VÁZQUEZ, 1999, p. 226
-
227).
28
Sangue, carne, excremento humano e animal e outros tipos de elementos
orgânicos surgem na obra de arte como formas de interpretar fatos, não da
imaginação, mas também da produção social, política e pessoal, sem nenhuma
preocupação com a fealdade. Para Hume (1
999, p.
47), “Todos os objetos da razão ou
da investigação humana podem dividir-se naturalmente em dois gêneros, a saber:
relações
de ideias e de fatos”. Diante desta afirmativa, pode-se acrescentar que, além
da razão, também a produção íntima do ser vivo, em especial o humano, é passível de
investigação e contemplação. Nas obras escolhidas, o caráter dramático atinge o
espectador pela presença do sangue que escorre, atestando a ausência de vida, seu
simbolismo.
Essas emoções e sentimentos provocam críticas diferenciadas e se manifestam
no meio social de formas variadas, porém o sangue, sua materialidade e/ou imagem n
a
ob
ra
a ser contemplado se fez presente em vários momentos da História da Arte. E,
para tornar possível compreender melhor todo esse contexto, foi necessário escolher
um caminho metodológico que possibilitasse o trânsito por várias áreas do
conhecimento.
O recorte pelo qual se optou neste trabalho refere-se a uma parte da produção
artística contemporânea, onde o corpo é o suporte. Em alguns acontecimentos o
sangue do artista é o material para a realização da obra; em outros, é o sangue de
animal que é utilizado como tinta para a construção poética, numa nova atitude diante
do “fazer artístico”, em que a ideia/conceito tem um valor maior que o produto final,
gerando uma complexidade para o entendimento do objeto artístico.
Considerando o exposto, o objetivo é aprofundar o conhecimento sobre o tema,
tendo como foco da pesquisa o estudo de artistas que deram valor excessivo ao
sacrifício do corpo e à representação/materialização do sangue como elemento para a
elaboração da obra de arte. Essa abertura para a utilização de diferentes materiais e
suportes na construção da obra, a poética leva a várias indagações: As atitudes
adotadas pelos artistas que se apropriavam de materiais não convencionais para a
feitura da obra de arte tradicional, assim como o sangue ou objetos apar
entemente
incompreensíveis, são capazes de estabelecer relações verdadeiras com a sociedade,
com a história e com a cultura? É possível estabelecer um entendimento sobre
29
algumas das vertentes da Arte Contemporânea
:
performance,
instalações e objetos de
arte
que utilizam o sangue como matéria? Estas vertentes da
Arte Contemporânea
têm
como princípios a tentativa de entender as mudanças no contexto social, cultural e o
seu propósito é o de apontar os problemas gerados por esta mudança? A intenção
destes ar
tistas com suas obras, quando
utilizam o s
angue como elemento materializado
na obra e o corpo como suporte, é a de mostrar a situação social em que estão
inseridos, ou o propósito é causar estranhamento? São indagações que só serão
passiveis de resposta e
compreensão através de um laborioso estudo.
O sangue, explorado de formas variadas, foi usado como fio condutor” na
construção poética de vários artistas e, para uma melhor compreensão desta proposta,
também se fará uso do mesmo “fio condutor”. Imagens e artistas de várias épocas
serão apresentados ou relembrados, possibilitando que se reflita sobre as várias
mudanças na Arte a partir dos anos 1960.
O foco central deste estudo é calcado na interpretação investigativa de diferentes
teóricos da arte: Agnaldo Farias, Arnold Hauser, Ernst Gombrich, Fernando
Cocchiarele, Giulio Carlo Argan, H. W. Janson e Anthony F. Janson, Kátia Canton,
Ligia
Canongia, Roselee Goldberg, Rudolf Arnheim, Wendy Beckett.
Esta dissertação será dividida em dois capítulos. O primeiro apresentará imagens
de artistas escolhidos, em que a representação do sangue se faz presente na obra,
desde as de cunho mágico na Pré-História, às narrativas bíblicas e históricas do
Barroco, até as alegorias do Modernismo, ou simplesmente as que nos passam dor,
angústia ou morte, propondo um diálogo sobre as atitudes e formas de
apresentação/representação do sangue dadas pelos artistas em suas obras.
O segundo capítulo trata da produção de alguns artistas contemporâneos, desde
o período que compreende os
anos 1960 aos dias de hoje, focalizando um momento da
História da Arte em que o sangue, não sua representação, mas o sangue em sua
realidade material, é apresentado/usado como veículo de expressão.
Este estudo não tem a pretensão de dar por encerrada esta investigação, nem
mesmo abranger todos os artistas que, em algum momento, trabalharam o sangue em
suas obras, pois esse assunto não se esgota. O que se pretende aqui é lançar um olhar
diferenciado e cuidadoso sobre este tema que me é tão caro.
30
A pesquisa constará de investigação bibliográfica, conforme orienta Umberto
Eco, em COMO FAZER UMA TESE (2007). Trata-se de um processo de investigação
atenta, que envolveu estudos analítico-interpretativos de artigos e livros pertinentes ao
assunto, de imagens de reproduções de obras de arte, bem como levantamento
bibliográfico dos artistas contemplados na pesquisa, visita a museus, consulta na
internet, catálogos de exposições e uma sorte de outras informações que enriqueceram
o conteúdo, na busca de resolver as indagações levantadas. Assim foi sendo
construído o texto num processo de ordenação de dados, examinando aspectos mais
profundos sobre o tema, empregando geralmente procedimentos interpretativos.
Percorrendo a história da Arte, foi possível perceber o sangue integrando uma
série de obras que, de alguma forma, envolvem o espectador no momento de sua
fruição. Desde os animais feridos nas cavernas retratados na História da Arte,
passando por “Deposição” (c. 1322), de Pietro Lorenzetti, “A Crucificação” (
1510
/
1515),
de Mathias Grünewald, “O Açougue” (1585), de Annibale Carracci, “Judite e Holofernes”
(1598), de Caravaggio, “Judite e Holofernes” (
c.1620
), de Artemisia Gentileschi, “O
Fuzilamento de Três de Maio de 1808” (1814), de Francisco Goya, “Tiradentes
es
quartejado” (1893), de Pedro Américo, “L’apparition” (A aparição)
(1874
-6), de
Gustave Moreau, “Uns Quantos Golpes” (1935), e O Hospital Henry Ford ou a Cama
Voadora” (1932), de Frida Kahlo, “1
st
action” (1962) e “2
nd
action”, Vienna (1963), de
Herman
n Nitsch, “Silueta” (1973), de Ana Mendieta, “Azione Sentimentale” (1973) de
Gina Pane, Shoot” (Tiro) (1971) e “Trans-fixed” (1974), de Chris Burden, “Trouxas
Ensaguentadas”
“Situação T/T 1” (1970), de Artur Barrio, “Sem Título” (1999) de Karin
Lambrech
t, “Self” (autorretrato) (1991) e
“Sky
”(Céu) (2006) “de Marc Quinn,
Memória
Y Balance”, “Simplesmente Sangre (1997), de Betina Sor,
Menstrala”
de
Vanessa
Tiegs,
“Quíen puede borrar La huellas? (Quem pode apagar os traços?) (2003)
PERRA”
(Cadela) (2005) e “El peso de La sangre” (O peso do sangue) (2004)
Performances
de Regina José Galindo, o sangue vem provocando reações variadas
nos que tomam contato com as obras mencionadas.
Assim, é intenção deste trabalho contribuir no sentido de criar subsídios
para
entender e discutir o elemento sangue na obra de arte de diferentes artistas que, com
poéticas próprias, construíram sua forma pessoal de ver e perceber o mundo,
31
possibilitando, desta forma, a interpretação através de registro das imagens,
Performance
s
e ou instalações, e a geração de reflexões sobre as várias mudanças que
ocorreram no campo da Arte desde a segunda metade do século XX.
32
CAPITULO I
O sangue apresentado e representado por artistas nos
diferentes contextos históricos
Este capítulo apresenta um recorte histórico da representação artística até a
década de 1960, porém restringindo o enfoque às obras de artistas que procuram
representar o sangue nos seus quadros.
Além das imagens da Pré-História, as obras e artistas escolhidos para este
capí
tulo foram: “Deposição” (c.1322), de Pietro Lorenzetti, “A Crucificação” (
1510/
1515),
de Mathias Grünewald, “O Açougue” (1585), de Annibale Carracci, “Judite e Holofernes”
(1598), de Caravaggio, “Judite e Holofernes” (
c.1620
), de Artemisia Gentileschi, “O
Fuzilamento de Três de Maio de 1808” (1814), de Francisco Goya, “Tiradentes
esquartejado” (1893), de Pedro Américo, “L’apparition” (1875), de Gustave Moreau,
“Uns Quantos Golpes” (1935) e “O Hospital Henry Ford ou a Cama Voadora” (1932), de
Frida Kahlo.
Para a escolha das obras, entre tantas em que o sangue surge como elemento
apresentado ou representado, recorremos primeiro a um olhar sensorial sobre o objeto,
deixando aflorar os sentimentos, buscando, em seguida, um caminho mais
esclarecedor. Neste processo verificamos quão grande tem sido a presença do
elemento sangue nas várias linguagens artísticas ao longo dos tempos. No entanto,
este trabalho se limitará à sua reprodução imagética apenas nas Artes Plásticas, pois
foi através desta linguagem que os primeiros seres humanos deixaram as primeiras
marcas registradas até hoje.
Os historiadores Arnold Hauser, Ernst Gombrich, Giulio Carlo Argan, H. W.
Janson e Anthony F. Janson e Wendy Beckett afirmam, em suas pesquisas, que os
primeiros seres humanos, além da preocupação com a sua sobrevivência, tinham
outros anseios e, na busca de significados, criaram crenças, mitos e cultuaram os
fenômenos da natureza.
(...) No plano religioso, essa fase coincide, aproximadamente, com a
passagem de uma concepção mágica, de total indistinção do ser
33
humano na realidade natural, a um conceito anímico, que reconhece a
existência de forças superiores que agem sobre, e determinam os
fenômenos da natureza e a existência humana. Associam-se à
concepção anímica e à formação de grupos sociais organizados à ideia
da sobrevivência do espírito além da morte e, por conseguinte, o culto
dos mortos. (ARGAN, 2003
, p. 21).
A condição criadora, qualidade inata no homem, levou estes indivíduos a
produzirem conhecimentos e técnicas visando atender seus interesses e necessidades,
no sentido de suprir uma carência não só espiritual, mas também material, porém
ambas ligadas entre si. E foi nas entranhas da terra que registraram, em desenhos e
pinturas nas paredes das cavernas, narrativas de seu mundo, as quais possibilitam,
hoje, compreender sua visão de mundo “e a sua presença nele”, seu modo de vida e o
sentido que estes povos deram à sua existência. Relataram ali seus desejos,
sentimentos e anseios. A sua criatividade é a chave que nos possibilitou desvendar
seus segredos.
Essas pinturas, trabalhadas diretamente na rocha, foram realizadas com
diferentes técnicas. Em alguns casos, com finas linhas com escuro (possivelmente o
de carvão vegetal ou de osso calcinado) colocado dentro de um pequeno caniço
oco, que era soprado para formar o desenho. Realizado o esboço, as tintas eram
aplicadas com um processo de fricção das mãos contra a parede, dando um resultado
delicado. Em outros casos, uma substância oleosa e aderente (como banha animal) er
a
adicionada aos pigmentos para uma posterior aplicação na pintura, utilizando-se de
pincéis feitos de cerdas. Rocha e Roth mencionam o sangue de animais como um dos
materiais utilizados para fazer as tintas: Desde a terra, que existe em toda parte e em
muitas cores, até o sangue de animais, o carvão e plantas de todo tipo”
(ROCHA/ROTH, 1992, p.7), além do ocre, um mineral que, ao ser socado, vira pó,
produzindo pigmentos vermelhos, marrons e amarelos. Outras fontes também fazem
constar o sangue como material de pintura: “O sangue, assim como o extrato de folhas
de árvores era utilizado para tingir silhuetas de mão e pés (...)”. (CENTRO CULTURAL
BANCO DO BRASIL, 2005,
p. 3)
.
No decorrer de sua evolução, os homens da Pré
-
História, criativos e criadores de
utensílios, de ferramentas e de cultos, inclusive ao adornarem o próprio corpo para os
rituais ou para, por esse meio, atribuir-lhes uma identidade, variaram no uso das
34
linguagens estéticas. Ao longo dos tempos, deixaram ricas expressões, com múltiplos
sign
ificados. Representaram animais vivos, mas na condição de “presas” para o
caçador; representaram ainda o corpo humano no espaço, em ação, expressando o
culto ao sagrado e à subsistência. Enfim, esses homens, sujeito criadores de cultura
nos mais diversos domínios de expressão, de alguma forma, necessitavam de um meio
de comunicação com o resto da tribo e com o “mágico”, e foi através da arte que
fizeram tais conexões.
Por meio da arte foi possível criar um mundo onírico, em que a relação entre
sujeito e “totens” é dupla; um simulacro fascinante envolvendo todos os membros da
tribo na cerimônia ritualística. Ainda hoje “(...), muitas tribos celebram festividades
regulares, nas quais se vestem como animais e, como eles, se movimentam em danças
solenes e rituais. Também acreditam que, de algum modo, isso lhes dará poder sobre
suas presas (...)”. (GROMBRICH, 2008, p. 42) Toda essa visão de mundo pode ser
atestada quando se contemplam imagens como a da Caverna de Altamira (Fig. 01, p
.
34
), na Espanha, descoberta n
o século XIX,
quando se atenta para sua composição.
F
Fig. 01
Bisão, c. 15000
-
1000 a. C
Altamira, Espanha.
35
A respeito da imagem de um touro, encontrada na Caverna de Lascaux, França
(Fig.
02, p. 35), Grombrich
(2008)
comenta: “(...) É estranha experiência descer nessas
cavernas, muitas vezes seguindo por corredores baixos e estreitos, mergulhar no
negrume do ventre da montanha e, súbito, ver a lanterna elétrica do guia iluminar a
imagem
de um touro”. (GROMBRICH,
p. 42).
Fig. 02
Caverna em Lascaux
França, c. 15.000
-
1000 a.C.
Na contemplação de tal representação imagética, várias interpretações seriam
possíveis, porém, aos “olhos” dos historiadores, “(...) não se trata de uma pintura de
representação, mas de ação. Não representa algo ocorrido e evocado, mas algo cuja
realização é desejada e antecipada com o pensamento (...).” (ARGAN, 2003, p. 25).
“(...) são às vezes pintadas ou entalhadas umas sobre outras, sem qualquer ordem
aparente (...).” (GROMBRICH, 2008, p.42). No mesmo sentido, Janson acredita que a
diferença entre realidade e imagens não estava muito clara para os homens daquele
período e ,“(...) ao retratarem um animal, pretendiam fazer com que ele fosse também
trazido ao seu alcance”. Também pensavam que, “ao ‘matarem’ a imagem, teriam
mat
ado o espírito do animal (...).”
(JANSON, 1997
, p. 15).
36
Contemp
lando essas imagens, verificamos de imediato a grandiosidade, o
aproveitamento da saliência da rocha e a representação de um grande número de
animais. À direita de quem olha, vemos a presença do sangue, que ainda escorre na
rocha, e a sua representação ou materialização na pintura expressa o seu valor
simbólico. Embora nenhum dos historiadores mencionados tenha comentado a
respeito, não assinalar a presença do sangue nesta composição poderia obscurecer o
valor da obra, pois o vermelho, na figura 02, p.35
,
não no animal à direita, como
também nos outros à esquerda, confere mais luminosidade à cena e engrandece a
imagem.
Como vem sendo amplamente divulgado pelos historiadores, a arte rupestre
apresenta a simbolização mágica da conquista de alimento para a sobrevivência, a
ação bem-sucedida do caçador sobre o animal derrotado, a “presa” abatida. Este jogo
de vida e morte está contido em várias partes da imagem, constituindo-se como
fragmentos “mágicos”. Tais recortes, como afirmam os autores, foram produzidos em
razão da construção do objeto, de acordo com a necessidade da “tribo”. Segundo
Argan, “(...) a prontidão e a segurança que o desenhista demonstrava ao captar o vulto
do animal na corrida corresponde à segurança e à rapidez da
percepção e da ação
(...)”
(2003
, p. 24).
As imagens representam como que exercícios de treinamentos para o combate
em campo com o animal. Além disso, a grandiosidade da “obra” pode ser avaliada
também pelo tamanho e qualidade de representação, pela dificuldade de iluminação do
local onde foi desenhada (construída), pelo “aproveitamento físico” da saliência da
ro
cha, tornado parte integrante da
pintura
”, e pela técnica utilizada.
No entanto, o criador não tinha a intenção de criar uma obra de arte. Nas
palavras de Hauser, “(...) Qualquer outra explicação da arte paleolítica, como seja, por
exemplo, a de considerar a arte como forma expressiva ou decorativa é insustentável
(...).”
(1972, p. 18.). O principal objetivo dessa manifestação era o culto ao sagrado. E
os homens daquela época, dotados de técnicas e anseios, concretizaram os seus
desejos em forma de pintura; fizeram dela uma prece pelo êxito nas suas ações, dentre
as quais a fundamental era a caça.
37
Fig. 03
Corça Ferida (s/d)
Laugerie Basse, França
Por exemplo, o sangrar do animal, na Figura 03, p. 37, simboliza a vitória do
caçador, o sucesso na caça. Ao matar a presa imageticamente, o sujeito cria sua
oração. E considerando-se esta prática como um ritual sagrado, a representação do
sangue torna-se imprescindível, pois, neste contexto, ele representa a ausência de vida
e a figurativização do sucesso da caça, além do desejo de que a prece seja atendida.
O sangue que escorre sobre a rocha é o sangue do animal a ser abatido.
Segundo Pedrosa, “(...) o processo sensível e intuitivo da observação, que é o seu,
ao pensamento mítico e aos ritos as coordenadas mágico-estéticas (...)” (1986, p.228).
E, segundo Hauser, arte e realidade, naquele contexto, tinham como objetivo primeiro
derrubar possíveis ba
rreiras que existiam entre ficção e realidade e “[a arte] se encontra
inteiramente a serviço da vida” (1972, p. 18). Podemos, então, concluir que o começo
da arte mistura-se com o surgimento do culto ao sagrado, de uma vida “carregada” de
simbolismo e magia.
A origem da imagem esligada aos rituais religiosos, dentro
dos quais nasceu a arte (...)”.
(
COCCHIARELE, 2007, p. 62).
38
Nas religiões do passado, as pinturas desempenharam um grande papel didático.
Na Pré
-
História, como objeto mágico
-
religioso; na Id
ade Média
1
(século V ao XV), como
disciplinador e divulgador de dogmas religiosos, um importante “instrumento”
doutrinador para a Igreja Católica, instituição que detinha o poder de filtrar todas as
produções científicas e culturais, influenciando muitos artistas, que produziram obras
com temáticas religiosas com o objetivo didático, pois a maioria da população medieval
era iletrada.
A compreensão do mundo medieval demanda um olhar retroativo para o
Império
Romano.
Em 395 d.C,
o
Imperador Teodósio dividiu
-o
em Império Romano do
Oriente e
do Ocidente, tendo havido, então, sucessivas ondas de invasões. Posteriormente a
essa divisão, o Império Bizantino (como acabou sendo denominado o Império Romano
do Oriente) se mantém, enquanto o Império Romano do Ocidente cai completamente
em poder dos invasores, no ano de 476 d.C. Esta data foi dada como marco do fim da
Idade Antiga e do início da Idade Média ou Período Medieval.
Segundo Hauser, a “unidade da Idade Média como período histórico é um
conceito puramente artificial” (1972, p. 181). Em função disso, é possível dividi-la em
três fases.
Na primeira, logo após as invasões bárbaras, acontece a destruição das cidades
e da cultura romanas. Com a vida urbana arruinada e esvaziada e o desaparecimento
das cidades, “a agricultura, com a grande propriedade e os coloni, continuam a ser a
base da produção(...)” (HAUSER,1972, p. 217) atividades que passam a ser a base
econômica, e os mosteiros tornam-se o centro cultural, administrando os saberes no
campo das ciências, da arte e da literatura. Tal situação proporcionou à Igreja Católica
o monopólio da educação, dando-lhe condições de exercer grande influência na
sociedade europeia.
A cultura cristã rompe, então, com as culturas greco-romanas, e o cristianismo
firma
-se através do “espírito”. Para que a Igreja Católica pudesse se afirmar em todos
1
H.W. JANSON e A.F. JANSON. Iniciação à História da Arte.
A
arte da Idade Média. “Os rótulos utilizados para referir aos
periodos históricos tendem a ser como os apelidos das pessoas; (...). Aqueles que cunharam o termo “Idade Média” pensaram nos
mil anos inteiros que vieram entre os séculos V e XV como uma idade das trevas, um intervalo vazio entre a antiguidade cássic
a e
seu ressurgimento, a Renascença italiana. Desde então, nosso modo de ver a Idade Média mudou completamente: não mais
pensamos no período como “envolto em trevas” mas como a “Idade da Fé”. (p.103).
39
os segmentos da sociedade, inclusive entre os iletrados, a arte foi usada como aliada.
E, para que atingisse melhor seu objetivo, o clero estabelecia aos artistas uma série
de convenções: a lei da frontalidade; a postura rígida das personagens sagradas, bem
como dos senhores e protetores que patrocinavam os artistas; o lugar de cada
personagem sagrada na composição e, ainda, seus gestos, dobras das roupas e
símbolos. Dessa forma, a arte emancipa-se completamente da realidade e é
apresentada com harmonia. As obras desse período tendem a se afastar cada vez mais
do mundo terreno.
Hauser, no que se refere à pintura, comenta:
(...) são considerados como próprios da arte medieval o desejo da
simplificação e estilização, a renúncia à profundidade e perspectiva
espaciais, o arbitrário tratamento das funções e proporções do corpo,
constituem, na verdade a única característica da primitiva Idade Média.
(
HAUSER,
1972, p. 181).
na segunda fase,
acontece
a transformação da economia agrícola em
enconomia monetária urbana e, nesta transição, surge, na arte, uma nova forma de
representação do “espírito”, visando atender à mudança de comportamento e
sentimento da nova sociedade urbana.
As cidades, com a referida transformação econômica, ganharam vida nova e se
transformaram em centros de grandes agitações comerciais. Os burgueses libertam-
se
dos senhores feudais e dos laços com a Igreja. Os nobres deixam os seus castelos
fortificados e vão morar nas cidades, com requinte e luxo, e exibem suas riquezas nas
cortes dos poderosos. Nesse clima de mudança, a arte se emancipa de suas
limitações. A Igreja, sem rival e com grande prestígio, continua a usar todos os recursos
disponíveis para exercer s
eu domínio sobre o povo:
(...) da primitiva para a alta Idade Média, a arte emancipa-se da maior
parte das limitações que lhe foram impostas, mas mantém ainda um
caráter espiritual profundamente religioso, sendo a expressão de uma
sociedade inteiramente cristã no sentido e hierática na organização.
Através de todo este período, o movimento espiritual do clero mantém-
se, apesar da heresia e do sectarismo, sem rival, e a Igreja, com o
prestígio do seu monopólio de meios de salvação, permance
essencialmente
como uma força inigualável. (Ibidem, p. 181
-
182).
40
A Igreja, através de sua retórica, cria ícones miraculosos; “(...) possuir uma
famosa imagem de um santo constituía um motivo de fama e uma fonte inexaurível de
riqueza para o mosteiro (...).
(HAUSER,197
2, p. 207), transformado, então, num
espaço de peregrinação.
Foi por meio desta e de outras estratégias que a Igreja estreitou seu vínculo com
os fiéis e tornou-se uma das instituições mais ricas, apta a remunerar muito bem o
trabalho dos artistas. Na busca de firmar-se como poder supremo e, para manter ou
mesmo conquistar novos fiéis, usa da arte, mais precisamente da pintura, tanto nos
afrescos como nas iluminuras. A esse respeito diz Ajzenberg:
(...) A Idade Média criara sua estética baseada no Teocentr
ismo,
tentando solucionar durante séculos o problema da representação de
Cristo entre triunfante e criador do Universo (Pantocrático), o deus feito
carne e humanizado (daí as inumeráveis Anunciação, Nascimento do
Verbo, Madonas ladeadas de Putti que apontam para o sexo do
menino
-deus e, por fim, decorrente das encenações medievais
pois
outra forma de dramaticidade fora proibida) o passo da Paixão de
Cristo seguido por Pietàs. (
AJZENBERG,
1998, p. 24).
No último período, com a emancipação da burguesia, i
nicia
-se o capitalismo
moderno. Não houve uma mudança de posição da Igreja; ela apenas se reafirma agora
no espiritualismo. Com as suas monumentais construções góticas, coloca o homem em
seu devido lugar: um ser reduzido, pequeno em relação ao poder de Deus e, é claro
que, por extensão, pequeno em relação ao poder da Igreja:
(...) Talvez algo da antiga atitude mágica em relação à imagem ainda
sobreviva no costume dos “retratos dos doadores” para nos lembrar a
tenacidade dessas crenças que encontramos no próprio berço da arte.
Quem poderá dizer se o doador não se sentiria um pouco tranquilizado
em meio às agruras da vida, na qual o seu próprio papel talvez nem
sempre fosse dos mais virtuosos, ao saber que em alguma igreja
ou
capela tranquila existia algo dele mesmo – um retrato aí colocado
graças à habilidade de um artista – na permanente companhia de
santos e anjos, e sem parar de rezar? (GOMBRICH, 2008, p, 215).
A produção da maioria dos artistas medievais era anônima, e o trabalho,
normalmente, era coletivo, coisa bastante comum à época, o que dificulta a
identificação de autorias individuais das obras do período.
41
Apesar de não ser fácil identificar os artistas, Pietro Lorenzetti (Pietro da Rimini)
(1280
-
1285
-1348) e seu irmão, Ambrogio Lorenzetti (1
290
-
1348)
, são dois pintores da
cidade de Siena que podem ser destacados, tendo trabalhado para implantar o
naturalismo na arte de seu tempo. As obras mais famosas de Pietro Lorenzetti são os
afrescos no interior da Basílica de São Francisco de Assis, na c
idade de Assis, na Itália.
“Em suas pesquisas plásticas e de tensão expressiva e estudando a escultura de
Giovanni Pisano (1250-1314). Era um caminho que levava a Giotto” (ARGAN, 2003, p.
33).
Giotto di Bondone
(1266
-
1337)
, do qual recebeu influências no “(...) estilo e no
peso de suas figuras (...)” (CHILVERS, 2001, p. 315).
Um dos elementos marcantes da História da Arte reside na dramaticidade da
pintura de Giotto. Segundo Gombrich, “(...) dos seus dias em diante, a História da Arte,
primeiro na Itália e depois em outros países, passou a ser também a história dos
grandes artistas” (2008, p, 205). Talvez isso não tivesse acontecido tão cedo, não fosse
o empenho desse grande artista
feito de que Pietro apropriou
-
se.
Embora os irmãos Lorenzetti tenham trabalhado juntos, ambos influenciados por
Giotto, em determinado momento de suas vidas cada qual encontrou um caminho
próprio.
Na figura
04, p
. 42
, “
Deposição”,
(c.1322)
,
isso pode ser percebido claramente.
Pietro ultrapassou as formas anteriormente utilizadas, exagerando na tragédia e
diferenciando
-se, assim, de seu irmão Ambrogio. O artista escolheu representar a vida
de Cristo de forma mais intelectualizada e mais dramática, com a preocupação de
estimular a sensibilidade do observador. Os pontos mais trágicos do registro da morte
de Cristo são apresentados no momento em que este está sendo retirado da Cruz. O
sangue de Jesus é mostrado ao observador de forma incomum até então nas artes
plásticas, fazendo reviver nos fiéis a lembranças da morte de C
risto.
O trabalho de Pietro assemelha-se ao de um ourives. O fundo é dourado, e as
figuras, pintadas em cores fortes, são construídas dentro de um círculo (presença de
linhas circulares contornando os personagens), dando “movimento” à composição e
fazendo
com que a linha que contorna o corpo de Cristo tangencie com todas as outras.
As linhas horizontais, verticais e inclinadas dão estabilidade à pintura; a cruz em
forma de “T” e a escada cortando todo o quadro conferem harmonia à representação
pictórica.
42
Fig. 04
Pietro Lorenzetti (Pietro da Rimini)
"Deposição", c. 1322
têmpera sobre madeira, 44x31cm.
Museu Du Louvre, Paris.
Fig. 04 detalhe
Fig. 04 detalhe
43
Fig. 04 detalhe
Fig. 04 detalhe
Fig. 04 detalhe
Fig. 04 detalhe
Fig. 04 detalhe
Fig. 04 detalhe
Quem contempla esta imagem poderá perceber que o método utilizado é o
estabelecido pelo clero. O humano continua um tanto irreal e simbólico; o rosto é
representado de forma estereotipada, com olhos oblíquos, nariz afinado e reto, boca
levemente curvada. Trata-se de um retrato” estilizado. No entanto, Pietro Lorenzetti
traz para a composição o sangue de Cristo, dando maior realidade e dramaticidade à
narrativa e envolvendo o espectador, não sem causar um certo estranhamento.
Cristo é frágil e a cor de sua pele contrasta com a das demais personagens da
cena. O seu tom amarelado é realçado pela cor rosa da roupa de quem o segura. A
parte inferior de suas pernas está suja de sangue e os cravos que prendem seus pés
estão sendo arrancados por outra personagem. O sangue ainda é líquido e escorre,
manchando a madeira da cruz onde Ele permaneceu até sua morte. Os braços são
longos, finos e delicados, as mãos lembram as de uma criança e a marca do cravo é
uma tatuagem de sangue que o tempo não será capaz de apagar.
Jesus é magro, o seu tórax tem as marcas das costelas, existe um corte
profundo no lado direito, mas não sangra mais, embora tenha sido
atra
vés desse corte
que os seus torturadores o fizeram sangrar.
44
Talvez na busca de mostrar aos fiéis a real tragédia da cena, Pietro Lorenzetti,
intencionalmente, duplicou Cristo, seu corpo é frágil e mortal, sua alma é forte e imortal,
“um espírito”. Mesmo com todos os horrores da crucificação, sua “carne” tendo sofrido
muito, nada foi capaz de eliminar a sua serenidade. Jesus não tem um rosto de
sofrimento; ao contrário, transmite tranquilidade e amor.
Lorenzetti coloca Cristo nas mãos dos homens da época, como uma
preciosidade. A maneira como estão tirando-o da Cruz e a delicadeza empregada
evidenciam o amor e respeito que têm por essa pessoa.
A parte inferior do corpo de Jesus está sob os cuidados das outras personagens
que estão à direita do contemplador. Mãos delicadas e cuidadosas vão ao encontro do
Seu corpo, sugerindo que estão para tocar em algo extremamente delicado e nobre. A
personagem que tira o último cravo dos pés de Jesus faz uma “operação” cuidadosa,
executa um processo brando. A concentração é intensa; parece que, para ele, nada
mais existe a não ser o cravo que está a arrancar dos pés de Cristo. O sangue escorre
do peito do aos dedos, indo para a madeira, espalhando-se e mudando a coloração
da parte inferior da Cruz.
Esse sangue, líquido vermelho do organismo, que contém o “pigmento”
responsável pela fixação do oxigênio necessário à respiração, escorre dos pés
delicados, frágeis, bem delineados; pés perfeitos que Pietro idealizou para Cristo, mas
atados a pernas magras e amareladas, um joelho pontudo realçando a bil magreza
ligada a tragédias.
A ausência de musculatura nas coxas talvez tenha sido proposital - um ventre
inchado, um corpo sem sexo. Parece que, nesta pintura, não representar o sexo é
também intencional: talvez Lorenzetti tenha tido o desejo de “retratar” a parte mediana
do corpo como uma figura “andrógina”: mescla de homem e mulher, ambos, segundo os
Evangelhos, cuidados para sempre por Ele.
Pietro traz para esta representação iconográfica a figura de Cristo, simbolizand
o
o Ser Divino e o Espírito Santo. Logo no início da Bíblia se que o Espírito está
associado a Deus, possui todas as características de uma pessoa e é um dos membros
da Trindade, um Ser Poderoso.
45
No quadro, Cristo, mesmo fisicamente fraco, é superior a todas as demais
figuras. As duas gotas de sangue na parte superior do quadro, nas extremidades da
cruz, acima da cabeça dos humanos, devem estabelecer relações particulares com
cada um a sua maneira.
Num outro momento da História da Arte – o Gótico Tardio
2
ou início do
Renascimento
- uma obra com a mesma temática religiosa - Cristo na cruz -
que
também contém o sangue, é apresentada num formato diferente. Trata-se da
pintura “A Crucificação” (
1510/
1515)
, fig.05, p.49
de Mathias Grünewald
Mas
antes do comentário desta pintura, é oportuno fazer a contextualização do
momento histórico em que o pintor executou essa obra.
As primeiras manifestações do estilo gótico se deram nos meados do século XII,
na França, e restringiram-se principalmente à arquitetura, com as construções de
grandes catedrais, e às artes, com os vitrais destas catedrais e as iluminuras. No século
seguinte expande-se pela Europa, firmando-se como estilo até o surgimento do
Renascimento italiano, no início do século XVI.
A burguesia, então fortalecida, acaba por assumir o poder econômico e político e
deseja uma arte mais próxima da realidade. É justamente a pintura de Giotto que se
aproxima desta visão humanista do mundo, que vai cada vez mais se firmando até
alcançar sua pleni
tude no Renascimento.
Desse modo, o Gótico Tardio constitui uma transição entre o Gótico e
Renascimento, o que acarreta uma situação não muito clara. Alguns historiadores
apontam Giotto e seus contemporâneos em Siena como os primeiros pintores
renascentis
tas, descartando a denominação de Gótico Tardio. No entanto, outros
países adotaram este movimento, hoje denominado Gótico Tardio ou Internacional,
como ponto de partida para um novo estilo de pintura, provocando a ruptura com o
passado. Ressalte-se que, no Norte, a ruptura foi menor do que no Sul, como pode ser
comprovado com a pintura do retábulo do Cordeiro Místico, pintado entre 1426 e 1432
pelos
irmãos Van Eyck para a igreja de São Bavão, em Gand, na Bélgica.
2
W.
BECKETT
. HISTÓRIA DA PINTURA A pintura Gótica Tardia, (...) as obras preservam vínculos com a tradição gótica,
(...) sofreram forte influência da Renascença italiana. Assim, duas vertentes, a arte gótica e a renascentista, coexistiram no norte
da Europa
na primeira metade do século XVI. (p.71)
46
Nesta obra, é possível constatar a influência da arte da ilustração dos
manuscritos, pois são evidentes as minúcias e a preocupação com os detalhes das
roupas das figuras, dos adornos das cabeças ou dos elementos da natureza. Mas, por
outro lado, é possível observar também a superação do espírito da miniatura, pois os
artistas abrem o universo da pintura para o mundo exterior e revelam os efeitos de
diferentes distâncias na percepção visual dos seres representados, mostrando certo
realismo na pintura. Este realismo exerceu uma influência decisiva sobre a pintura pré-
renascentista, sendo admirado na Itália, tanto quanto em seus países de origem.
A forma de produzir símbolos na pintura foi evoluindo, sempre com esforços do
artista no intuito de esclarecer e valorizar o “divino”, por meio da ênfase de ações e
incidentes de personagens, destinadas a desenvolver o imaginário do espectador. Foi
um estilo explicativo, com tendências emocionais e expressionistas. As palavras de
Osborne de que “a arte não é imitação do mundo fenomênico num sentido comum, m
as
a criação de uma beleza que a alma reconhece graças “a um antigo conhecimento” e
através da qual aspira a unir-se ao divino” (1974, p. 82-83) cabem bem para expressar
a função da arte do Gótico Tardio.
Os artistas que trabalhavam no trânsito entre os moldes medievais e a influência
dos novos modelos renascentistas estavam seguros de que ainda existia campo
suficiente para mostrar seus “originais”, mesmo fazendo uso de temas e modelos
explorados por outros. Apoiados nos modelos ou temas já executados em épocas
anteriores, tinham capacidade e suficiente liberdade criativa para transmitir o que de
essencial no divino.
Osborne, sobre o mundo medieval, acrescenta que o mundo visível não teria
significado nem importância se não fosse concebido como uma r
epresentação
simbólica do divino. O artista, para que a imagem traduzisse sua relação com a
natureza divina, não poderia se apegar ao naturalismo do mundo perceptível. A
natureza divina, segundo o autor, é o motivo dominante da vida e da filosofia religio
sa:
“durante toda a Idade Média, foi o desejo de ascender do mundo sensual das sombras
e das imagens à contemplação direta da perfeição divina, a fim de mirar a sagrada
realidade da verdade suprema (...)”. (OSBORNE, 1974, p. 119).
47
É o que se observa também nas obras de Mathias Grünewald
(1470
-
1480
-
1528).
Embora grande parte de sua produção tenha se perdido, sabe-se que a obra aqui
enfocada data do período entre 1510 e 1515, pertencendo, portanto, ao mesmo período
dos irmãos van Eick. Um fato instigante, quando se a respeito do artista, é que,
mesmo sendo o único que poderia ser comparado a Albrecht Dürer
(1471
-
1528),
pela
maestria e grandeza, ficou esquecido por um grande período. No século XVII, Joachim
von Sandrart (1610
-
1668) escreveu uma biografia
a seu respeito, cometendo equívocos
até mesmo em relação ao seu nome.
Gombrich, em seu livro, cita que, na biografia de Grünewald, escrita por “um
certo” escritor do século XVII, a menção ao artista é confusa, a ponto de nem sequer
deixar claro o seu nome: “(...) nenhum documento ou registro do período menciona a
existência de um pintor chamado Grünewald” (GROMBRICH, 2008, p. 350). no
século XX, com o aparecimento do expressionismo, esse pintor foi considerado como
um dos mais surpreendentes de sua época, tendo estimulado o interesse dos artistas
expressionistas.
De Mathias Grünewald, “A Crucificação” (1510-1515) é um dialogo visual que
expressa a subjetividade de seu criador e estimula a imaginação do observador: é como
se estivesse sendo narrada a passagem da crucificação de Cristo. Uma representação
rica e inusitada, pois são desprezados os conceitos de beleza estabelecidos em sua
época, até se poderia dizer que “a sua maestria era uma forma muito moderna” para o
seu tempo, inovando a forma de apresentar os temas religiosos, focando o sofrimento,
a dor e o sangue.
Grünewald certamente manteve contato com as novas atitudes adotadas pelos
artistas italianos à época, mas fez uso delas simplesmente para ajustar suas ideias: “O
impulso ou veemência que deriva da tristeza, da compaixão, da indignação recebe uma
nova direção dos sentimentos de beleza” (HUME, 1999, p. 328). A representação
imagética não poderia reduzir-se à busca da beleza, deveria ir além, pois tinha o
mesmo propósito da arte religiosa da Idade Média, ou seja, apresentar/fornecer “um
sermão ilustrado”, com a preocupação de provocar no espectador a vontade de criar
relações entre indivíduos racionais e a “realidade” divina. Porém, para que esse sermão
48
surtisse efeitos, foi preciso desenvolver uma compreensão e uma habilidade de
interpretação.
Grombrichi (2008) afirma que foi na Grécia que teve início a representação das
“atividades da alma”. Na Idade Média, o artista, por mais habilidoso que fosse no
desenho e no modo de interpretar os temas bíblicos, sem essa herança não teria tido
condições de usar tais imagens. Nas palavras do autor:
(...) Os artistas gregos do século V a.C. estavam principalmente
interessados em realizar a imagem de um belo corpo. Para o artista
gótico, todos esses métodos e estratagemas eram tão-somente o meio
para alcançar um fim, que consistia em narrar a história sagrada de um
modo mais comovente e mais real. Não narra apenas para divulgar,
mas para nos transmitir uma mensagem, e para consolo e edificação
dos fiéis
(...).(GROMBRICH, 2008, p.193)
Estes primeiros passos, tímidos e simples, foram a abertura para o liberalismo da
Idade Moderna, rompendo com os liames que “estreitavam a vida medieval”.
Verifica
-se que as regras que começam a ser criadas no Gótico Tardio e
Internacional e passam a ser usadas em sua totalidade no Renascimento não foram
adotadas por completo nesta obra de Mathias Grünewald, que não poupa o olhar do
observador do horror da crucificação, criando ligações verossímeis entre a forma
retratada
e o “acontecido”.
De fato, a “ A Crucificação” (1510
-
1515) (Fig. 05, p
. 49
) retoma o uso de algumas
regras da Idade Média, como a importância do tamanho das figuras que compõem o
quadro, que varia conforme a relevância que têm na cena representada: “(...)
retorna
deliberadamente aos princípios dos pintores medievais e primitivos, que variam o
tamanho de suas figuras de acordo com a importância delas no quadro.”
(GROMBRICH, 2008, p.353). Esta pintura de Grünewald pode ser encontrada na parte
superior do alt
ar do mosteiro de Antonino de
Isenheim,
Colmar, na Alsácia, (no “Altar de
Isenheim") e tinha como objetivo servir de consolo aos pacientes do hospital monástico,
que tratava de doenças da pele.
49
Fig. 05
-
Mathias Grünewald
-
“A Crucifi
cação” (1510
-
1515)
270x305 cm
-
Painel do altar de Isenheim;
óleo sobre madeira, 269 x 307 cm;
Musée d’Unterlinden, Colmar
Fig. 05 detalhe
Fig. 05 detalhe
50
Fig. 05
detalhe
Fig. 05 detalhe
Fig. 05 detalhe
Fig. 05 detalhe
Fig. 05 detalhe
Fig. 05 detalhe
Grünewald representa Cristo abatido, sujo, pele inchada, cheia de chagas, em
consequência do processo de tortura que sofrera. Beckett comenta, acerca desta obra
,
que “Nenhum outro expôs de forma tão terrível e verdadeira o horror do sofrimento e,
ainda assim, afirmou diante de nós, a certeza da salvação” (1997, p. 75). Apresenta ao
observador o sofrimento através das feridas, do corpo agonizante, distorcido,
malt
ratado, violentado: trata-se de uma figura coberta por úlceras e coroada com a
coroa do flagelo, o sangue vermelho-escuro contrastando com a tez descorada de uma
carne molestada. Na “ação” do olhar constata-se o duplo sentimento, o do criador e o
de quem por ventura vier a contemplar a imagem. Pareyson, sobre esta duplicidade na
obra de arte, diz o seguinte:
Desta forma, admite
-
se uma
dúplice
presença do sentimento na arte: de
um lado os sentimentos contidos na obra (...), sentimentos
contemplados, não atos da vida prática, mas invenção da fantasia, não
elementos biográficos, mas devaneios poéticos; de outro, um
51
sentimento concomitante com a atividade artística, e é a alegria de
criar, o amor pela beleza, a paixão pela arte (...) trata-se de uma
“catarse”,
que purifica os sentimentos de seu caráter passional, numa
espécie de distanciamento imperturbado e de uma “universalização”
(...). (PAREYSON, 1997, p. 85).
O sangue, que provoca sentimentos múltiplos, ainda escorre do corpo de Jesus.
E, examinando as ações desses corpos apresentados no quadro e os efeitos gerados
no contemplador, chama a atenção o desespero da figura feminina (possivelmente
Maria Madalena), retorcendo as mãos e, à sua frente, o vaso de unguentos aos pés da
cruz, logo na boca de
cena, do lado esquerdo de quem olha o quadro. Em síntese, tudo
parece ser dor e angústia, tomando para si todo o sofrimento do personagem na cruz.
A obra de Grünewald traz vários símbolos que aqui devem ser levantados. O
cordeiro que sangra, símbolo do sacrifício de Cristo; a profecia de S. João Batista, com
o Santo representado do lado direito de quem olha a pintura, com o dedo indicador da
mão direita desproporcional e, na mão esquerda, um livro; entre o dedo indicador e seu
rosto, uma inscrição em latim (“Convém que ele cresça e que eu diminua”
Evangelho
de São João III, 30). Do lado esquerdo de quem olha a imagem, duas faces de mulher
perante a morte, Maria Madalena aos pés da Cruz e a Virgem Maria apoiada no
desproporcional braço direto de São João Evangelista, envolta em um manto branco de
viúva, expressa a dor, trazendo a angústia da mãe que vê o filho morto.
Mathias antecipa uma aproximação em relação ao pecado e ao valor da vida
perante os valores impostos pela humanidade, como se a “ordem dos sentidos” e a
racionalidade tornassem apreensível pela razão, dando a pintura proporções de
sentidos, apropriando-se da cognição sensorial. Convida-nos a uma reflexão sobre a
vida, sobre o sagrado e sobre a história deste homem que morreu na cruz e ainda “no
s
olha”. O artista traz o sangue de Jesus como símbolo da Igreja Católica, como veículo
de purificação do homem.
As mãos e nervos dos braços e pernas de Cristo, pregados na cruz, são
representados de forma realística, os braços esticados e magros, manchados, e toda a
musculatura já rígida pela crucificação. O seu abdômen é tão vazio que cria uma
silhueta feminina. Cristo está quase nu, coberto apenas por um pano velho e rasgado,
as suas pernas estão quase secas, assim como todo o seu corpo; os seus pés e m
ãos,
52
presos por cravos, estão sujos, metatarsos caídos e espremidos entre si, dedos
calejados que ainda sangram.
No seu rosto, uma boca seca, esbranquiçada, um pescoço que não tem forças
para sustentar o peso da cabeça, onde uma coroa de espinhos faz sang
rar. Grünewald,
mesmo tendo representado Cristo sujo, feio, com chagas, representa um semblante em
que a tranquilidade está implícita, é serena. O quadro traz a paz do Senhor, segundo a
Escritura Sagrada (1998).
Um peito magro, mostrando todos os ossos das costelas, e, do lado direito, um
buraco por onde jorra o sangue, este sangue que, ao sair do corpo, deixa-o sem vida, o
que constitui mais um símbolo importante. Sem sangue, Jesus morre, morre por todos,
na cruz, morre pela salvação dos homens. “Eis o C
ordeiro de Deus”, segundo a profecia
de São João Batista.
O “cordeiro” é outro símbolo presente na obra e diretamente ligado à figura de
Jesus. Está do lado direito, na parte inferior de cor branca e é símbolo de pureza. O
Cordeiro que sangra o sangue sag
rado
, da purificação. Este homem que morreu na
cruz será o cordeiro, o salvador: “Agnus Dei qui tollis pecata mundi”. (Cordeiro de Deus
que tirais o pecado do mundo). O Santo Graal o cálice usado por Jesus Cristo no
episódio da Última Ceia), aos pés do cordeiro, apara o sangue que será o sangue
salvador do homem. “(...) João viu Jesus que vinha a ele e disse: ‘Eis o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo (...)’”. (BÍBLIA SAGRADA, 1998, João 1
-
29, p.1385).
A Idade Média e o Gótico Tardio ou Internacional, fortemente ligados à religião,
vão ficando para trás, abrindo espaço para um novo formato de arte, que valoriza o
Homem e a figura humana. Este novo momento da arte foi denominado Renascimento
e, como Annibale Carracci está inserido nesse contexto, será importante trazer, mesmo
que sucintamente, para uma melhor compreensão da obra, comentários sobre o
período em que esse artista viveu e produziu sua obra.
A ideia de Renascimento na Itália ganhou força desde a época de Giotto di
Bondone (1266-
1337).
Foi uma ideia de ressurreição da “grandeza de Roma”, um
período intermediário entre Idade Média e Idade Moderna, com os olhos voltados para a
Idade Clássica. Uma mudança que o próprio estilo gótico presenciou e da qual
participou.
53
Os italianos, convencidos de que tinham sido os bárbaros que haviam destruído
o florescimento da arte, da ciência e do saber da Idade Clássica, deveriam fazer
renascer as glórias do passado, adotando posturas de pesquisas sobre esse universo
“perdido”.
Para os mestres do Renasc
imento, os estudos sobre os “novos” achados em arte
e ciência não poderiam ser um fim em si mesmos, deveriam ir além de seu espírito e
significados.
(...) É inteiramente errado, porém, imaginar que esse estudo da arte
grega e romana
causou
o renascimento ou “Renascença”. A verdade é
quase o oposto. Os artistas em redor de Brunelleschi ansiavam com
tanta veemência por uma renovação da arte que se voltaram para a
natureza, a ciência e os remanescentes da antiguidade a fim de
realizarem seus novos objetivos.
(GROMBRICH, 2008, p. 235).
Com o desejo de renovação na arte e a possibilidade de autonomia, os artistas
encontram formas novas para suas representações. A arte não é mais mecânica, mas
intelectual. A sua liberdade ideológica e cultural, que, por numerosos motivos, fora
aceita pela Igreja, lhe proporciona aberturas para a realização de seu trabalho:
(...) Essa sobriedade moderada, esse desprendimento religioso, têm o
apoio da Igreja, que prega a dogmática e é auxiliada pelo
direcionamento das ordens mendicantes por caminhos úteis tanto à
Igreja como à alta burguesia. (ARGAN, 2003, p. 97)
O Renascimento foi um período cheio de contrastes, reformulando os conceitos e
transformando os valores na política, na religião, no pensamento filosófico e cientifi
co,
além das artes. Além disso, teve o grande mérito de fundar a estrutura cultural da
Europa moderna. A política não está mais centrada no poder de Deus; agora se baseia
numa hierarquia e numa busca de equilíbrio. Com a revolta luterana, a Igreja Católica
se obrigada a rever suas estruturas, mas ainda busca ansiosamente o “poder de
Deus” sobre a alma humana, responsabilizando o indivíduo e suas escolhas perante o
“Divino”. Assim, a arte deixa de ser simples objeto de contemplação e representação
com modelos a ser seguidos, assumindo a pesquisa sobre natureza, numa
transformação constante de si mesma e em prol da história.
54
Os novos paradigmas, voltados para a revitalização dos conhecimentos
difundidos no século XV pelos humanistas (indivíduos que se esforçavam para
modificar e renovar os estudos ministrados tradicionalmente nas universidades), têm
como objetivo, segundo afirma Sevcenko:
(...) atualizar, dinamizar e revitalizar os estudos tradicionais, baseado no
programa dos studia humanitatis
(estud
os humanos), que incluíam a
poesia, a filosofia, a historia, a matemática e a eloquência, disciplina
esta resultante da fusão entre a retórica e a filosofia (...). (SEVCENKO,
1999, p.14).
Essa “revitalização dos estudos” é centrada nos textos dos autores da
antiguidade clássica, excluindo todos os medievais, além das línguas clássicas (latim e
grego) e posteriormente árabe, hebraico e aramaico, propondo um desafio cultural e
gerando a elaboração de uma nova cultura.
Embora os humanistas fossem cristãos, eram desejosos de uma nova
interpretação da mensagem do Evangelho. Buscavam nos valores da antiguidade
pressupostos para propor ou sugerir um novo estilo de vida aos europeus, uma forma
de vida com base na vontade, no desejo, na conquista do novo.
A Igreja prega a submissão do homem a Deus. Os humanistas exaltavam o valor
divino de cada um, incentivando o indivíduo a expandir suas forças para criar e produzir
algo no mundo, com a intenção de transformá-lo de acordo com sua vontade e o seu
interesse. Propõe para as artes a criação do belo, ato sublime de que o homem é
capaz, não a imitação da natureza, mas sua superação em sentido de perfeição
absoluta, que é possível através de conhecimentos rigorosos de leis e propriedades,
mediante a elaboração mat
emática precisa.
Os humanistas pregavam ainda a retomada de valores que haviam ficado
adormecidos durante a Idade Média. Essa mudança de comportamento, que se pode
chamar de científica, está ligada a todos os segmentos da cultura renascentista,
envolveu to
dos os domínios do saber: na anatomia, com a dissecação de cadáveres; no
desenvolvimento de técnicas agrícolas; nos projetos práticos nos campos da hidráulica
e da hidrostática e, na arquitetura, com as novas técnicas de construção.
55
Pregavam uma nova concepção do saber, contra os dogmas medievais, voltada
para o homem, para os problemas práticos, através de estudos que abordassem uma
observação direta, numa época em que o saber, o poder e os lucros andavam juntos
numa nova sociedade.
Esse crescente desenvolvimento e a consequente mudança na visão de mundo
afetaram não as artes, mas também outras formas culturais e atingiram
particularmente a alta burguesia dominante em Florença. Trata-se de uma burguesia
formada por exportadores e financistas, que, vitoriosos sobre a nobreza por meio de
recursos próprios, assegurando poderes econômicos e políticos, podem agora elevar
seu status quo com a contratação de artistas para realização de obras de arte para
suas casas, palácios e para doações.
Em busca de notoriedade, a alta burguesia oferecia objetos de arte à sociedade,
usando a Igreja e o Estado para perpetuar o próprio nome e adquirir um monumento
para dignificar a sua existência terrena. Nessa ocasião, os papéis se invertiam: em
épocas anteriores, o príncipe concedia favores ao artista; agora, o artista decide se
aceita ou não a encomenda. Finalmente, a arte torna-se livre das amarras medievais;
nasce uma nova arte, decorrente deste modo de olhar e sentir o mundo, elevando,
assim, os ganhos dos artistas e a p
ossibilidade de prestígio.
Porém, mesmo com prestigio e com maior liberdade de criação, os artistas ainda
encontravam preconceitos por serem sujeitos que executavam tarefas com as mãos,
posição que lembrava o
status
social dos artistas gregos, um desafio a enfrentar, que
foi superado graças aos grandes mecenas, que os ajudaram a derrubar tais
barreiras. As pequenas cortes italianas existentes à época necessitavam impor-
se
socialmente, eliminar a visão cultural medieval que condicionava o povo a reputá-l
as
como desimportantes, almejavam desesperadamente criar “uma nova imagem da
sociedade na qual ela, a burguesia, ocupasse o centro e não as margens do corpo
social (...)”. E foi através das artes plásticas que isto se deu: “(...) As artes plásticas,
atravé
s de seu desenvolvimento, atraíram para si todas as tendências culturais do
Renascimento, além dos impulsos mais marcantes do processo de evolução das
relações sociais e mercantis.” (SEVCENKO, 1999, p. 25).
56
Durante algum tempo, a posse do conhecimento de ciência e da arte antiga
(clássica) ficou sob a tutela dos artistas italianos do Renascimento. No entanto, os
artistas da mesma geração do Norte, ao tomarem conhecimento desta nova forma de
arte fiel à natureza, são por ela influenciados. As grandes invenções da arte italiana
que causaram impressões profundas nos povos ao norte dos Alpes foram três: a
descoberta da perspectiva cientifica; o conhecimento e a representação de um corpo
humano belo e perfeito e o conhecimento das formas clássicas de construção.
A este cenário artístico pertencem Leonardo da Vinci (1452
-
1519), Miguel Ângelo
(1475
-1564), Rafael Sanzio (1483-1520), Ticiano Vecellio (1490-1576), Antonio
Correggio (1489-1534) e Giorgione (Giorgio Barbarelli da Castelfranco
(1477
-1510)); no
Norte,
Alb
recht Durer
(1471
-
1528)
e
Hans Holbein, o Jovem
(1497
-
1498
-
1543)
, além
de tantos outros mestres, pintores e, por que não dizer, cientistas da arte. Para estes
homens, coisa nenhuma tinha aspecto incomum, o que muitas vezes os motivou a
descobrir e constr
uir coisas que pareciam improváveis.
Os artistas desse período recorrem à matemática para o estudo da perspectiva, à
anatomia para o estudo do corpo humano, na busca de descobrir a sua construção e o
seu funcionamento, registrando, através de desenhos, as suas descobertas. Foi o
momento que deixaram de ser artesãos, adquirindo autonomia, fama e glória, que
era possível alcançar através de estudos das leis secretas do universo e dos mistérios
da natureza. A ciência se rebela contra os dogmas do Cristianismo e propõe um estudo
com base na razão, com o valor centrado no homem. A prática de dissecação iniciada
na Grécia liga arte e ciência, desvendando os mistérios da criação do homem, a sua
corrente sanguínea, a sua estrutura óssea e muscular.
Essas muda
nças na arte italiana e, por continuidade, em Flandres, produziram, já
no começo do século XVI, rumores que emocionaram e contagiaram toda a Europa.
Surgia uma arte que deixava de estar exclusivamente a serviço da Igreja, para contar
as histórias sagradas, mas ligadas à realidade de seu tempo, refletindo sobre os
fragmentos do mundo real; um espírito de aventura e experimentos, na busca de
extraordinários efeitos.
A valorização do homem está na base do pensamento que fundamenta estas
mudanças. Os artistas imbuídos deste pensamento, desta “nova época”, valorizam a
57
representação da figura humana e inovam na forma imagética de lidar com o sangue.
Ele não é mais tão simbólico-religioso, esmais ligado a fatos comuns do cotidiano.
Essas mudanças são bem percebidas em várias obras, como em “O Açougue” (1585),
(Fig. 06, p.
59
) de Annibale Carracci (1560
-
1609).
Annibale Carracci, irmão de Agostino Carracci (1557-1602) e primo de Ludovico
Carracci (1555-1619), vem de uma família de pintores que faz oposição à
artificialidade
da pintura italiana da época. Ele e o irmão trabalharam juntos, o que dificulta a distinção
de suas obras.
Nos finais de 1580, a família Carracci, abriu uma academia particular, que em um
curto prazo tornou-se um centro de arte. Inicialmente chamada de Accademia dei
Desiderosi (Academia dos Desejosos), mudou seu nome mais tarde para Accademia
degli Incamminati (Academia dos Encaminhados). O ensino desse centro dava ênfase
ao desenho de observação dos acontecimentos diários, um desenho estabelecido a
partir da vida:
Na academia desenha-se a realidade não tanto por um gosto analítico
quanto para afirmar em relação a essa realidade o desenho e o colorido
dos grandes mestres dos Quinhentos, eliminando assim a
convencionalidade das regras que
o maneirismo instaurara para aquelas
formas (...). (ARGAN, 2003, p. 244)
Para a academia, a “(...) técnica de reprodução é, portanto, uma técnica de
análise, de pesquisa estrutural (...).” (ARGAN, 2003, p.245). Uma das preocupações do
grupo era com o uso
da teologia, “divulgar” através de suas narrativas um alerta sobre a
“tentação da carne”.
Ainda Argan, em seu livro História da Arte Italiana (2003), argumenta que as
pinturas (afrescos) religiosas de Annibale, na galeria Farnese, exprimem emoções
completa
mente diversas das pagãs, dando fidelidade aos textos sacros, opondo-se ao
rigor contrarreformista e maneirista, somando a força da imaginação e “ficção”, em que
presença de dor, amor, alegria, enfim dos sentimentos que são próprios do homem,
chegando a uma composição que se aproxima da “poesia”, ou melhor, que mais parece
uma poesia.
58
Não podemos negar, a arte acompanha a vida, a visão de mundo, a
experiência do homem. Esta inseparabilidade é a manifestação da moral, da
política, da religião, que está contida no corpo da obra, revelando o tempo de sua
concepção, tem o individuo como tema e o ambiente como conteúdo, uma
representação “fiel” concebida pelo homem e para o homem, “(...) tem como autor
quem soube interpretar a alma popular, recolher seus temas, realizar suas
aspirações precisar seus gostos (...)”. (PAREYSON, 1997, p. 118).
Annibale Carracci, em determinado momento de sua vida de artista,
ultrapassou a preocupação ou incentivo religioso e reorganizou, de forma integral,
os reais problemas do valor cultural. Construiu uma arte preocupada em registrar a
tradição italiana de sua região, dialogando com o cotidiano e, em uma de sua forma
de apresentação, nos conta como eram as “Casas de Carnes” desse tempo.
Verificamos a presença do sangue como o foco da narrativa do artista, que ainda
qualifica o produto a ser comercializado com o elemento sangue. O humano ganhou
um outro valor em suas composições, não era herói nem protagonista, mas a
pessoa comum, perceptível como as outras coisas. Como podemos perceber em “O
Açougue”, do final do século XVI.
Embora na composição os elementos humanos (“os açougueiros”) não
apresentem manchas vermelhas em suas roupas, a cor da carne, o sangue está
contido em sua massa. Um ambiente que parece até ter cheiro, gosto de sangue,
com suas características dinâmicas, como se fosse a “parte de dentro” de um ser
vivo, concentrando todas as células animais.
Num primeiro momento a obra parece alegórica, mas atentando para outras
questões, como o abate de uma ovelha indefesa amarrada, percebemos a
dramaticidade do quadro. Trata-se de algo muito pessoal, pois, como diz Hume,
“Sentimentos diferentes despertados pelo mesmo objeto são todos certos,
porque nenhum sentimento representa o que realmente está no objeto
(1999, p. 335).
59
Fig. 06
Annibale Carracci
– “
O Açougue
- (
1585)
Óleo sobre tela, 185x266 cm
Christ Church, Oxford.
Fig. 06 detalhe
Fig. 06 detalhe
Fig. 06 detalhe
Fig. 06 detalhe
60
Fig. 06 detalhe
Fig. 06 detalhe
A análise dessa obra poderia ser feita por outros vieses técnicos, tais como
perspectivas, porém a nossa análise será outra, será sobre o sangue que está na
composição.
A pintura trata de um tema cotidiano, os açougues da Renascença, uma
ambientação realística da sua estrutura. Um espaço sem nenhuma condição de higiene,
aberto, onde se realizam vários tipos de atividades, tanto o comércio como o abate de
pequenos animais.
Ao olharmos a imagem, verificamos de pronto que a maioria dos personagens
está de frente, todos no primeiro plano, todos têm a mesma importância. A cena
acontece como se fosse em um palco. Se fixarmos a atenção um pouco mais diante da
imagem, é possível até ouvir a conversa entre esses homens, o ranger dos ossos
de
um quarto de um animal a ser pendurado em um gancho, o choro da pequena ovelha
(ainda viva) que será morta, o som musical emitido pela balança, o barulho das moedas
ainda no saco de dinheiro do comprador. um clima de troca, entre mercadoria e
moeda.
Um ambiente que contém outros ambientes.
À direita de quem olha, um homem está pendurando um quarto de um animal,
cuja coluna pode ser vista com detalhes, os ossos partidos com precisão e o sangue,
agora presente, dialoga conosco sobre a importância que teve, quando vivo o animal
que o carregava, e na “atualidade” é o elemento primeiro para a classificação do objeto
a ser consumido. A sua liquidez possibilita a circulação entre ossos partidos e carnes a
serem fatiadas; aquilo que circulou pelo corpo do
animal, esse líquido orgânico que num
processo complexo transportou oxigênio pelo sistema vascular, circula no ambiente
61
com mais liberdade; é a cor mais vibrante da pintura, é ele que dá o verdadeiro valor de
mercado à carne, certificando
-
a como fresca.
A
nnibale documentou o abate!
A obra é a prova, ali mesmo comprovada. Observamos, também, que ali mesmo,
dentro da “loja”, é realizado o abate de animais menores. O homem ao centro do
quadro, de joelhos, segura firmemente uma ovelha com as patas dianteiras e traseiras
amarradas, apoia-se com a mão e o joelho direito, pronto para matar o animal; na sua
mão esquerda uma ferramenta que o auxiliará para o sucesso de suas ações. O
sangue, então, jorrará no ambiente em questão de minutos. À esquerda dele, um outro
personagem segura a balança que contém em suas pontas um pedaço de carne, onde
a cor da gordura contrasta com a cor da carne que ainda está encharcada” de sangue,
sinal de que a morte aconteceu há pouco.
Ao lado do que está com a balança nas mãos, o consumidor, um homem vestido
com uma indumentária que contrasta com a de todos os outros, usa um chapéu com
pena e mantém a preocupação em segurar o enorme cajado. Ele tira de seu saco
(carteira da época) o dinheiro para o pagamento da mercadoria. Logo atrás dele, com a
balança, uma mão, possivelmente a mão de um ladrão, prestes a pegar um pedaço de
carne.
No fundo, um
macelaio
(açougueiro) pegando um objeto fora dos limites da
representação imagética do quadro, porém a sua mão esquerda segura o pedaço de
carne que possivelmente o
rapinatore
(ladrão) estava tentando furtar. Observando essa
parte do quadro e a posição das duas mãos, a do ladrão e a do açougueiro, podemos
crer que a atitude do indivíduo que tem a intenção de tomar para si um pedaço de
carne, sem
despender de quantia alguma, irá gerar uma tremenda confusão.
Nesse ambiente a mistura de pessoas, mercadorias, abates. É uma obra que
documenta, “fotografa” um tempo. “A sua arte reflete (...) as fluctuações derivantes da
sua cultura (...)”. (RONCI, 1
954, p.54).
Annibale Carracci, quando de sua chegada a Roma, o centro do mundo civilizado
à época, ficou encantando com a produção de Rafael. Desejoso de se apropriar da
simplicidade, harmonia e beleza deste artista. Mas esta admiração não nos faz
62
confundi
r a sua obra com as pinturas do Renascimento, a forma como usa a luz
incidindo sobre os objetos é bem diferente, está intimamente ligado ao Barroco.
Outro artista, intimamente ligado a este período, o Barroco e que também renega
os padrões de beleza de su
a época é Caravaggio.
O conteúdo de sua pintura normalmente é o drama, suas representações são
ações teatrais, de forte expressividade, de luminosidade intensa e de contrastes
cromáticos fascinantes.
Nos dizeres de Grombrich, as “(...) ideias que adquiriam cada vez mais
importância na arte do século XVII: a ênfase sobre a luz e a cor; o desprezo pelo
equilíbrio simples e preferência por composições mais complicadas (...) não é apenas
um prolongamento do estilo maneirista.” ( 2008, p. 390).
A origem da arte barroca se deu no século XVII, entre 1600 a 1750, na Itália.
Período de mudanças significativas na historia da humanidade ocidental, que marcou
profundamente a Idade Moderna. Quando do seu surgimento recebeu as seguintes
denominações: “irregularidade, contorcido, grotesco”. Durante a primeira metade do
século XVIII prolifera-se por outros países da Europa e cruza o oceano Atlântico, com
os espanhóis e portugueses chegando ao continente americano.
A sua origem, segundo Janson (1996), foi em Roma, num momento que
acontecia a Contra-reforma na Historia do Cristianismo, exprimindo o espírito desta
agitação religiosa. Porém, para um melhor entendimento, devemos buscar nas suas
origens, ou no século XVI, o acontecimento mais importante, que foi a Reforma
Protest
ante, iniciada na Alemanha e expandindo-se por outros países europeus,
gerando uma “guerra” entre Protestantismo e Catolicismo.
É preciso também não deixar de atentar para o fato de que o estilo Barroco
“(...) difundiu-se tão rapidamente pelo Norte protestante, que devemos ter o cuidado de
não enfatizar em excesso o seu aspecto de Contra-Reforma (...)” (JANSON, 1996, p.
250).
Beckett (1997) em História da Pintura, afirma que a Igreja Católica vitoriosa volta
a investir em obras de arte, com a pretensão de deixar a cidade de Roma a mais bela
do mundo cristão. E, para isso, atrai jovens artistas, deixando a cargo dos mesmos a
tarefa de transformar a Escritura Cristã, em uma composição de fácil entendimento,
63
através de uma linguagem realista, representando os conteúdos de forma mais
emocionante, mas convincente, na busca de recuperar ou conquistar novos fiéis.
Não dúvidas de que com o estilo Barroco, as pinturas ficaram mais
“rebuscadas”, “enredadas”, mas não podemos negar que ficaram mais ricas, mais
lum
inosas
.
O Barroco expandiu-se para além da Igreja, diferindo conforme o espaço que
ocupava. Hauser, sobre este assunto, comenta:
(...) o Barroco abraça tantas ramificações de caráter artístico, aparece
em tão diversas formas, nos diferentes países e esfera de cultura (...),
barroco palaciano católico, numa tendência sensualista e monumental
decorativa, no tradicional significado do “barroco”, e num estilo mais
estrito, formal e rigorosamente “classicista”. (...) encontra-
se,
subsequentemente, imanente na arte de todos os mestres importantes
(...) (1972, p. 555)
O período barroco foi marcado por impactantes acontecimentos revolucionários:
sociais, intelectuais, políticos e religiosos, um artista envolvido com essa época,
Michelangelo Merisi, o Caravaggio
(1571
-1610), que propomos apresentar.
Caravaggio é um artista italiano, nascido na cidade de Caravaggio, na província
de Bergamo. O local de nascimento é confuso; Argan diz que ele nasceu na região da
Lombardia; já no Catálogo da Exposição de 1954 do Ministério da Instrução Pública
DE CARAVAGGIO A TIEPOLO
pintura italiana nos Séculos XVII E XVIII, está dito que
nasceu na província de Bergamo. Explosivo, por questões de brigas e assassinato e
seu próprio temperamento, foi obrigado a mudar-se muitas vez
es.
De Roma para
Nápoles, Malta e Sicília, para fugir da justiça e rivais, mas isso não comprometeu sua
obra, sua arte. É um artista que brinca com o real, propondo em suas obras um
extraordinário realismo, uma verdade “plena”.
Caravaggio renegava a fealdade na obra de arte, julgava uma lisura desprezível.
Estava em busca da verdade como era capaz de vê-la e senti-la, não era simpatizante
dos modelos clássicos e não via sentido na beleza ideal nas pinturas antigas, talvez
Caravaggio tenha estudado muito a Bíblia e, com base nas mensagens sagradas, “(...)
quis ver os eventos sagrados com os próprios olhos, como se estivessem acontecendo
na casa do vizinho”. (GROMBRICH, 2008, p. 393).
64
Embora contemporâneo de Annibale, são considerados pelos críticos da
época
como diferentes em seus modos de expressão. Grombrich (2008), sobre a
relação de Carracci e Caravaggio, nos conta que eram amigos, porém a relação
deveria ser bastante difícil considerando o temperamento de Caravaggio.
(...) Contrapõe-se o seu naturalismo ao classicismo dos Carraci e
chegou
-se a rever sua triste vida para encontrar estranhas
concordâncias entre as sua adversidades e as imagens coruscas das
suas pinturas, (...) se foi um naturalista ou um realista o foi devido
unicamente ao facto de ter sentido nas coisas em todas as coisas
uma religiosidade moral, a sua sia (sic) simples reprodução mecânica,
(...) talvez foi barroco unicamente por se ter, ele também, recusado a
seguir a tradição do Renascimento (...). Mas o barroco de Caravaggio foi
mui
to diferente do de todos os outros artistas do século XVII (...),
(RONCI, 1954, p.48).
As suas obras apresentam um antagonismo em relação ao ideal
renascentista; o artista cria uma ilusão, um ideal como realidade das aparências
físicas, nos apresenta a verossimilhança dos fatos, nos coloca diante de uma
cena como se fosse um espetáculo teatral, em que a ação do artista e a
participação passiva do espectador se unissem em um espaço temporal
especial, que muitas vezes é trágico.
Na obra “Judite e Holofernes” (1598) (Fig. 07, p.
65
) Caravaggio vai da
beleza ao “horror”; em uma ação violenta Judite decapita o general assírio
Holofernes. Junta à “ficção”, o conhecimento bíblico e a maestria técnica e conta
com detalhes todo o plano e sucesso dessa mulher. Na p
intura, o antes, durante
e depois, também são passíveis de serem entendidos. O jogo de sedução usado
pela assassina é nítido, pois Holofernes está despido sobre o leito. Ao acariciar a
sua “presa”, a heroína golpeia-o com uma espada, fazendo jorrar o sangue; sua
cúmplice, a criada, tem nas mãos um saco para levar a cabeça do “abatido”.
65
Fig. 07
Caravaggio
-
Judite e Holofernes
-
(1598)
Galeria Nacional de Arte Antiga
Roma
-
Itália.
Fig. 07 detalhe
Fig. 07 detalhe
66
Fig. 07 detalhe
Fig. 07 detalhe
Fig. 07 detalhe
Fig. 07 detalhe
Os braços musculosos da “presa” não foram capazes de libertá-lo da morte. O
sangue jorra do pescoço da “vítima”, manchando o lençol branco. Judite segura-o pelos
cabelos, com toda a força, usando a mão esquerda para garantir o sucesso de suas
ações. Na mão direita segura a espada afiada, com tanta força que podemos notar os
nervos e músculos de seu braço rígido, fazendo um corte da nuca em direção ao
queixo. O sangue, na presente composição, embora não seja abundante, certifica a
ausência de vida no rosto de Hol
ofernes.
Judite está segura e determinada, todo o seu corpo trabalha para o sucesso de
seu intento, a expressão do rosto, posição do tórax, dos quadris, todo o seu ser
está
empenhado em derramar o sangue do general assírio e acabar com a sua vida
em troca
da libertação de seu povo.
67
O tema do trabalho em questão influenciou outra artista, Artemísia
Gentileschi,
(1593
-1652), filha do pintor romano Orazio Gentileschi (1563-
1639)
.
Segundo historiadores, a obra desta mulher está situada no período barroco e
el
a é a única mulher no cenário artístico mencionada no período. Artemísia
adquirou respeito e independência financeira como pintora, situação nada
comum para uma mulher de sua época. Grande parte de sua vida profissional
concentrou
-se em Florença. O primeiro trabalho datado e assinado por ela é de
1610, mas foi no início de 1612 que o pintor Agostinho Tassi
(1578
-
1644)
a
aceitou como aprendiz. No início de sua carreira foi-lhe negado o ingresso na
Escola de Arte de Roma, reservada apenas às figuras masc
ulinas. Mesmo com o
reconhecimento do público, muitas de suas obras foram atribuídas ao seu pai.
A respeito da pintura de Artemisia, diz Argan:
(...) é um dos intermediários entre o Caravaggianismo romano e a
corrente cavaggiana que se formara em Nápoles (...). A nota pessoal na
lírica pictórica de Artemisia é a ambígua, sombria beleza que se
acompanha, em contraste tipicamente barroco, de imagens de sangue e
de morte: motivo originalmente caravaggiano, mas retomado com uma
complacência literária bem distante da angústia autêntica de
Caravaggio.
(ARGAN, 2003, p.256).
A pintura de Caravaggio influenciou muito a produção de ArtemÍsia
Gentileschi. Ela
se deixou influenciar por ele
utilizando o mesmo tema,
ao fazer
a
obra “Judite e Holofernes, de 1598”. Além do tema, apropria-se também do uso
calculado da luz e da sombra, do cheio e do vazio, da expressão da substância
pelo uso da cor e dos contrastes de luz. Num olhar de relance é até possível
confundir as obras: a iluminação utilizada por Caravaggio, (Fig. 07, p.
65
) é
trazida para a composição pictórica de Artemísia, (Fig. 08, p
.68
) o tema, o
cenário e o número de personagens são o mesmos, mas se olharmos com mais
atenção, verificaremos como são diferentes.
68
Fig. 07 –
Caravaggio
Fig. 08
Artemísia Gentileschi
-
Judite e Holofernes, c. 1620.
óleo sobre tela, 199x162 cm,
Galleria degli Uffizi, Florença
Itália
69
Fig. 08 detalhe
Fig. 08 detalhe
Fig. 08 detalhe
Fig. 08 detalhe
Fig. 08 detalhe
Fig. 08 detalhe
No quadro de Artemísia, a noite está presente com muito mais intensidade: o
fundo é negro, as personagens estão agrupadas em forma de triângulo. A
dramaticidade do quadro é mais forte e real, o sangue é um elemento que se destaca
logo no primeiro olhar, manchando não o lençol, como está representado em
70
Caravaggio, mas manchando também Judite e sua ajudante. A criada, nesta
composição, é uma figura ativa, tão heróica quanto Judite: as responsabilidades são
divididas e as duas lutam contra o Holofernes (Marechal assírio).
Tanto na obra de Artemísia quanto na de Caravaggio, Judite está vestida para
seduzir. Porém, no quadro da artista, Judite é apresentada como uma mulher maior e
mais forte, com uma força que está presente não nas mãos e rosto, mas em todo o
corpo, o que pode ser bem percebido pela projeção dada ao corpo das duas mulheres
sobre a do homem.
Judite não segura os cabelos da cabeça de Holofernes, mas apoia a mão
esquerda sobre o seu rosto, impossibilitando-o de girar. A cabeça da vítima, ao centro,
está apoiada na linha horizontal que corta todo o quadro. O lençol que cobre o colchão
está coberto do sangue que escorre sobre a cama,
mas também esguicha em direção à
heroína Judite. A ação parece ter sido muito bem planejada, as mãos de Judite estão
livres para executar o assassinato, enquanto que a criada joga-se sobre Holofernes
para impedi-lo de sair do lugar. O corte é feito da nuca em direção ao queixo, como no
quadro de Caravaggio, porém Holofernes não tem forças para gritar, como é o que ele
parece fazer na outra composição. O seu olhar é de impotência, a espada afiada
acabou com a sua vida. Holofernes está vencido e a sua cabeça é o troféu de Judite.
Em breve será apenas um corpo sem sangue. A heroína Judite levará consigo a cabeça
daquela figura demoníaca que estava aterrorizando e destruindo o seu povo.
Outro artista que também retratou os sofrimentos e os demônios” que
ator
mentaram o seu tempo e povo foi Goya (Francisco Goya y Lucientes (1746/1828),
artista considerado fora de qualquer escola ou “ismos”, pintor, gravador, que retratou,
de forma contundente, a tragédia de seu tempo e o retrato dramático do seu povo.
Goya
nasc
eu em 30 de março de 1746, em Saragoça, antiga capital do reinado
de Aragão, filho de pai dourador
3
. Com 14 anos de idade, inicia o seu aprendizado
artístico na oficina do decorador de igrejas José Luzan y Marinez, na sua cidade natal, e
trabalha por três anos. Em seguida estuda com o pintor Francisco Ayeux por mais
dois anos consecutivos. Tenta uma bolsa de estudos na Academia Real de Madri, não
3
Dourador é o artesão incumb
ido de cobrir com finíssimas folhas de ouro os ornamentos e molduras das igrejas.
71
obtendo sucesso. Aos dezenove anos viaja para a Itália, fixando-se em Roma e Parma.
Participa de concursos e recebe menção honrosa por um trabalho inscrito.
Volta à Espanha em 1771 e inicia a sua carreira artística. O seu país encontrava-
se em franca decadência, em consequência de perdas das antigas colônias, de suas
minas de ouro e prata, além do domínio sobre os comércios com os Paises Baixos.
Atrasada tecnologicamente, era incapaz de desenvolver uma indústria própria,
tornando
-se um dos países mais retrógrados da Europa. A principal fonte de renda do
país nessa época passa a ser a arrecadação de impostos, para manter o governo, a
Coroa e a Igreja.
A monarquia absolutista e soberana exercia o poder sobre a vida dos ditos, e
todos lhe deviam lealdade. A Igreja detinha o monopólio da educação e da censura,
dominando a vida espiritual das pessoas - até o rei se curvava diante dela. A Inquisição
impunha a confissão como um ato obrigatório, ditando regras como a obtenção anual
do certificado da comunhão, uma espécie de documento, sem o qual nenhum outro
documento poderia ser expedido pelos órgãos oficiais.
O cotidiano da maioria dos compatriotas de Goya era de fome, e a sobrevivência
era muitas vezes garantida pela sopa fornecida pelos mosteiros. De um lado, o povo
miserável, e de outro, a corte, com suas festas suntuosas e exuberantes, e a Igreja
cheia de pompas, vivendo da exploração de fiéis. Esta situação gerava uma
proliferação generalizada de corrupção. Foi assim que Goya encontrou seu país.
Diante deste cenário político e social, o artista tinha dois caminhos, ou
trabalhava para a Igreja ou para a Coroa. Assim, Goya retorna a Saragoça, para
trabalhar na Igreja de Nossa Senhora do Pilar, onde executa um afresco que tem como
tema Cristo crucificado. Foi uma obra realizada conforme os padrões Clássicos e
Barrocos, por imposição da Igreja.
Goya casou-se em 1773, retornando a Madri em 1776, quando da fundação da
Real Fábrica de Tapeçaria, que concorria com as fábricas de Gobelins, na França.
Tapeçarias decorativas destinadas a atender a carência dos aposentos reais. Goya
trabalha nessa fábrica por doze anos, produzindo imagens de temas alegres e festivos
que eram transformadas em tapetes.
72
Convencido de que não havia mais sentido em permanecer nessa função pelas
limitações artísticas impostas, demite-se. Em 1783 retrata o Duque de Florida Blanca e
é com essa obra que as portas dos palácios da nobreza e da corte se abrem, tornando-
o conhecido num curto prazo de tempo. Em 1789 é nomeado pelo rei Carlos IV como
pintor da Câmara Real, posição de mais alta honra para a vida profissional de um
pintor.
Embora a data de muitas de suas produções coincida com a do movimento
Barroco, Goya é tido por alguns críticos como o primeiro dos pintores modernos, dos
tantos que a Espanha gerou. Contrapondo a realidade do belo teorizado pelos
clássicos, Goya, em suas representações imagéticas, colocou-se como “testemunha do
seu tempo e, segundo Argan, não é culpa sua se é uma testemunha de acusação (...)”
(ARGAN, 2004, p.40). Registra uma época de guerras, revoltas e de grandes
transformações sociais na Europa, juntando em sua obra as virtudes e fraquezas
espanholas
, “(...) essa alma feita de violências tempestuosas (...), (MARTINS,
1978
,
p.143), os seus retratos são de um realismo cruel, sem a preocupação de embelezar; o
modo de pintar não tem pena do modelo, não poupa o dramático, o monstruoso, o
grotesco e nem a realeza. Seus retratos são crueis e reais.
Wendy Beckett assim define a obra de Goya:
(...) A arte do pintor estava menos afinada com o idealismo disciplinado
dos neoclássicos que com a mistura barroca de forma clássica e
ex
pressão pessoal emotiva (...). Goya possuía dois dons extraordinários.
Conseguia penetrar a aparência superficial de todo e qualquer retratado,
desmascarando a verdade interior, um dom perigoso para quem não
seja prudente. O artista, porém, combinava-o a um maravilhoso senso
decorativo (...). (BECKETT, 1997, p. 248)
Goya projeta um novo sentido de beleza na obra de arte. Embora os conteúdos de
suas obras sejam trágicos e dramáticos, como foi apresentado em seus demônios, sombras
e morte, ele consegue repre
sentar o “sublime” de forma magistral.
Sonhos, demônios, dor e
morte são temas recorrentes em suas obras. Porém, limitar-
nos
-emos a discorrer sobre
uma entre tantas monstruosidades que esse artista representou.
Como falamos acima, a Espanha de seu tempo era um país bastante
enfraquecido devido aos insucessos com guerras do passado, além de intrigas e inúmeros
73
acontecimentos políticos. Em 1807, as tropas de Napoleão passaram pela Espanha a
caminho de Portugal. Carlos IV, sabendo da real condição de seu país e apavorado, abdica
da coroa, passando o trono a seu filho Fernando VII, que não foi reconhecido pelos
franceses como rei da Espanha. Napoleão fez um jogo de negociação com Carlos IV, onde
ficou acertada a venda da coroa aos franceses pela soma de “30 milhões de reales (...)
Deste modo, José Bonaparte, irmão de Napoleão, foi coroado Rei da Espanha”
(OSTROWER, 2003, p.97).
Esse acontecimento revoltou o povo espanhol. O novo rei não era bem visto pelos
espanhóis em geral, pois deixava Madri politicamente subordinada aos interesses gerais do
Império Napoleônico, ferindo o orgulho, sentimento de patriotismo e honra espanhóis. Por
essa razão, em 2 de maio de 1808, ocorreu uma pequena gritaria e insultos aos guardas;
as patrulhas de Murat foram atacadas de todos os lados. Tiros, objetos, água e azeite
fervendo foram jogados pelas janelas contra os soldados estrangeiros. Nas ruas, os
habitantes de Madri usavam o que tinham nas mãos, ferramentas e qualquer outro objeto,
para atacar os franceses. Os madrilenhos vagavam encolerizados, o objetivo era eliminar
os “intrusos”.
Nesse clima de desordem e violência, numa revolta anárquica e sem comando, na
luta corpo a corpo, os espanhóis, com seus objetos contra as espadas cortantes dos
franceses, logo foram dominados cruelmente. As ruas e vielas da cidade transformaram-
se
num imenso matadouro a céu aberto.
Murat fez a cidade calar-se. “Na manhã seguinte, Murat convocou uma corte
marcial e ordenou o fuzilamento sumário de qualquer cidadão que fosse encontrado
portan
do armas ou aparentando (...)”. (OSTROWER, 2003, p.97). De sua casa, Goya
assistiu, impotente, às execuções. Segundo Ostrower (2003), Goya iniciou o trabalho em
duas grandes telas, uma das quais é O Fuzilamento de Três de Maio de 1808 (Fig. 09, p.
74
). O quadro retrata o acontecimento, a revolta, de maio de 1808. Para Goya “O
verdadeiro realismo consiste em pôr para fora tudo o que tem dentro, não esconder nada,
não escolher(...)”, (ARGAN, 2004, p.40). É o que fez ao retratar o fuzilamento dos
compatriot
as. Ninguém captou melhor o sentimento de ódio e de vingança pelas
humilhações sofridas pela gente de Madri naquela ocasião, do que Goya o, numa série de
gravuras em metal denominadas de Los desastres de la guerra
(1810
-1820), e no quadro
que analisaremos
a seguir.
74
A composição é “sangue”, dor, humilhação, violência e morte. Se for considerado o
julgamento de muitos estetas, as imagens e os espaços ambientais que os artistas
retratam, extrapolam o campo da “ficção” e invadem o campo da poesia. O que Goya
construiu durante a sua existência foram reproduções de relatos reais, sonhos horrendos e
poesias.
Na figura 09, p. 74, Goya nos apresenta o medo da morte, a ansiedade, a
angústia, a humilhação, os cadáveres. O sangue, em diferentes contextos, ora manchand
o,
como poças, o chão, ora aparecendo na pele ferida e de forma já coagulada, e, por que não
dizer, no interior do corpo alterando a sua circulação, em razão das emoções acima
mencionadas.
Essa representação do massacre dos seus compatriotas retrata a fragilidade real do
povo madrileno naquele instante, diante da força avassaladora dos franceses. Traz-nos um
assunto real, o “tema” é o seu motivo inspirador: um fato histórico “carregado” de
sentimentos, seu modo de ver ou de sentir este acontecimento está implícito na obra, cujo
conteúdo é a sua inteira espiritualidade expressa na composição pictórica.
Goya cria um estilo “cheio” de humanidade. Esta construção espiritualizada,
devemos entendê-la como uma obra completa, “(...) são obras
representativas
aquel
as em
que estão presentes todos os três elementos, mais precisamente, aquelas em que assunto
e tema são distintos.” (PAREYSON, 1997. p.70). É redundante, porém necessário, afirmar
que, nesta obra, estão contidos os elementos imprescindíveis para qualificá-la como
representativa, ou seja: assunto, tema e conteúdo.
Fig. 09
-
Francisco Goya
- “
O fuzilamento de Três de Maio (1808)
”,
(1814)
2,66x3,45 cm
-
Museu do Prado
Madri.
75
Fig. 09 detalhe
Fig. 09 detalhe
Fig. 09 detalhe
Fig. 0
9 detalhe
Fig. 09 detalhe
Fig. 09 detalhe
No exercício do olhar, temos a possibilidade de fragmentar o quadro em três
partes. Na realidade, na somatória de gestos dos sujeitos da composição, de pr
onto
podemos verificar que talvez a intenção de Goya tenha sido a de transmitir a ideia de
que todos os “compatriotas” foram protagonistas da cena, tanto os que estão no centro,
ao fundo da pintura, quanto os demais.
várias possibilidades de leitura deste “texto imagético”. O primeiro bloco de
pessoas no centro da composição, que tem atrás delas uma cidade e uma igreja
sombria, pelo que parece a instituição religiosa desempenhou um papel de destaque na
76
rebelião. A afirmativa justifica-se pela presença de um padre prestes a ser fuzilado. No
centro desse bloco de pessoas, o homem está com suas mãos no rosto, como se
estivesse recusando-se a ver as barbaridades; as pernas parecem frágeis, a ponto de
deixá
-lo cair, o horror está tomando conta de todo o seu ser. a necessidade da
própria anulação como testemunha ocular da situação. Os outros, que estão na mesma
condição de vítima das ordens de Murat (Napoleão), possuem a fragilidade de criança,
agarram
-
se
a si mesmo num abraço de despedida, como se fossem para uma viagem
sem retorno.
Do lado direito de quem olha o quadro existe uma fila, uma muralha de soldados,
sujeitos sem personalidade, são simplesmente soldados sem rosto, não têm definição,
todos são iguais, tanto na anatomia como na indumentária. Apontam armas, também
idênticas, a mesma posição, os mesmos gestos. Na frente desses soldados que não
são sujeitos, mas soldados, pelotão de fuzilamento, um homem com os braços em
posição de crucificação, embora o seu olhar e a sua boca transmitam a impressão
de
medo, assim como o pescoço tenso, uma musculatura rígida, o seu corpo demonstra
coragem e orgulho pela luta, uma atitude heróica. O sangue ferve!
Às suas costas, uma montanha iluminada pela luz da lamparina do exército
francês. As cores que Goya usa no contraste cromático nessa imensa pedra fazem
realçar a camisa branca do homem, com os braços em posição de crucificação
que
será fuzilado; a
maior iluminação da imagem recai sobre a sua figura, a sua
camisa que
em breve terá manchas de sangue, será banhada pelo líquido que o mantém vivo, que
o faz impor-se na frente dos “soldados-máquinas”. Este sujeito atrai para si, num
primeiro momento, a atenção do observador, para depois conduzi-lo às demais
extensões do quadro.
Atrás e ao lado do homem, vemos dois outros personagens, um com as mãos
protegendo o rosto, cobrindo a visão, e o outro fechando as mãos com força, como se
estivesse segurando o grito. Um pouco mais à frente um indivíduo que parece distante
dos acontecimentos, mas que dele faz parte, um olhar de indiferença, nada o incomoda
ou nada ele entende.
O padre procura a última prece sobre uma poça de sangue, na mão direita
segura o crucifixo, na outra os punhos fechados, como se estive em posição de defesa.
77
No primeiro plano, à esquerda de quem
olha,
uma pilha de cadáveres, onde o sangue é
a marca da morte.
na boca de cena, o homem morto parece ter sido torturado antes de receber
como prêmio tiros de misericórdia. No rosto traz marcas de golpes, a testa parece
despelada, embora a sombra, cobrindo parte de seu rosto na altura da boca, não é
capaz de esconder o inchaço. O seu sangue mancha a terra, transformando-se num
lençol, que cobre o seu leito do sono eterno. As outras vítimas, um grupo variado e
desesperado, aguardam indefesas para serem fuzil
adas.
Quando, em 1848, Goya morreu no exílio em Bordeaux, na França, quase
ninguém, exceto alguns amigos íntimos, sabia de sua existência e de sua obra
profética.
No século XIX e no seguinte, Goya renasce” acompanhado de suas
sombras. Inicia-se então uma proliferação de modos de expressividade artística,
influenciados pela ousadia de Goya -
sua profecia entusiasmou gerações posteriores.
Na arte, independentemente do tipo de linguagem que o artista usa, tem-se o
poder de reproduzir frutos da imaginação ou lembranças, com o objetivo de comunicar-
se. Mais do que nunca, o artista está livre para trazer sua personalidade e a sua
espiritualidade para o conteúdo da obra:
(...) Colocada sob o signo da arte, a personalidade do artista torna
-
se ela
própria energia formante, vontade e iniciativa de arte, ou melhor, modo
de formar, isto é,
estilo
(...) modo tão eloquente e definitivo, que a
respeito da espiritualidade do autor é bem mais reveladora a sua obra
do que qualquer documento ou confissão ou testemunho direto
sobre
sua vida (...).(PAREYSON, 1997, p. 62).
Estas possibilidades de liberdade criativa e criadora, que selam o “estilo” de cada
artista, abrem as portas para uma expressividade individual, em que a obra, por si só, é
documento que autentica a ideia que
o artista faz do tema que representa ou apresenta.
Cada um, de modo singular, interage de formas variadas com as coisas ao seu redor.
No Brasil, não é diferente.
A História da Arte nos mostrou que o artista, quando
bom, é impiedoso, não pouca o olhar do observador, assumindo para si a
responsabilidade de sua obra. Sujeito com visão de mundo diferenciada da dos
espectadores. O seu modo de interpretar fatos, o seu estar no mundo e fazer
78
parte dele difere da de outros profissionais. Deixa de lado honra, or
gulho,
decência, segurança, felicidade, para construir sua poética.
No final século XIX, Pedro Américo, com o olhar de singularidade sobre a
Inconfidência Mineira e, mais particularmente, sobre
Tiradentes
, herói nacional,
retratado diferentemente por muitos artistas, pintou, em 1893, o quadro, “Tiradentes
esquartejado” (Fig. 10, p.
82
).
Diante do tema, Pedro Américo deixa transparecer
primeiro sua poética,
apresentando
-nos um herói em pedaços, para depois permitir que
aflore o seu gênio de pintor.
Pedro Américo, pintor e poeta brasileiro, nasceu em Areia Paraíba. Filho de uma
família ligada às artes, foi estimulado desde cedo pelos pais e parentes, iniciando
precocemente o seu desenvolvimento artístico. Foi conhecido quando criança como o
“Pequeno Prodígio” por reproduzir, em desenhos, obras dos grandes mestres da
História da Arte.
Américo retratou um momento histórico trágico, no qual a luta por liberdade e
igualdade levou muitos à morte. Não são os mesmos fatos que influenciaram Goya, são
outros, mas não menos nacionalistas. A obra Tiradentes e
squartejado
(1893),
chocou e causou estranhamento aos críticos cariocas, sendo recusada no salão por
não representar conforme os desejos dos líderes e das classes dominantes de sua
época.
O olhar do artista capta de forma incomum os acontecimentos históricos da
Inconfidência Mineira e representa-os no quadro de forma não vista na história da arte
no Brasil aentão. O artista mostra o depois, o herói em pedaços. Bem, mas aqui é
necessário compreender o que foi a Inconfidência Mineira e o porquê de elevar
Tiradentes à condição de herói.
A Inconfidência Mineira foi um movimento revolucionário ocorrido em 1789,
organizado por “Tiradentes” e pela elite da cidade de Vila Rica, Minas Gerais. Estes
revolucionár
ios “inconfidentes”, insatisfeitos com o regime de “governo” da região,
com a “Derrama” (uma taxação compulsória em que a população deveria completar
a cota imposta por lei de 100 arrobas de ouro (1.500 quilogramas) anuais quando
esta não era atingida), com o veto a toda e qualquer atividade fabril ou artesanal e
com a imposição de taxas sobre os produtos vindos da Metrópole. Revoltaram-se e
79
se mobilizaram no sentido de separar Minas Gerais das amarras da Coroa
Portuguesa.
As mudanças impostas pela Coroa Portuguesa não foram aceitas de bom
grado pela classe mais rica de Minas Gerais (proprietários rurais, intelectuais,
clérigos e militares), justamente os mais atingidos, o que os motivou a inicar
reuniões para conspirar contra Portugal. Os principais Inconfidentes são: os padres
José da Silva e Oliveira Rolim (1747-1835) e Carlos Corrêa de Toledo (
1731
-
1803)
,
o cônego Luís Vieira da Silva, os poetas Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e
Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), os coronéis Domingos de Abreu Vieira (?-
?)
e Francisco Antônio de Oliveira Lopes (1750-1794), o sargento-mor Luís Vaz de
Toledo Pisa (1740
-
?), o minerador Inácio José de Alvarenga Peixoto ( 1744
-
1793) e
o alferes Joaquim José da Silva Xavier, apelidado de "Tiradentes"( 1746
-
1792).
Tir
adentes, como foi dito na introdução, fica orfão aos onze anos, sob a
tutela de um padrinho, que exercia a profissão de cirugião; aprendeu com este
algumas de suas técnicas, razão de seu apelido. Porém, pelas dificuldades
financeiras, acaba por ingressar no serviço militar em 1780; no ano seguinte, é
nomeado comandante do destacamento dos Dragões na patrulha do “Caminho
Novo”, estrada pela qual transportavam toda a riqueza produzida nas Minas Gerais
até a Cidade de Rio de Janeiro. Permanece no posto de alferes até o ano de 1787,
função que lhe proporcionou contato com os intelectuais da época. Decepcionado
com os demandos de Portugal, junta-se à elite e ao clero local, começando o
movimento de conspiração contra o sistema de governo, com ideias que se
propagaram também nas regiões vizinhas.
Descobertos, a conspiração não teve sucesso, tendo sido sentenciados à
morte. Todos negaram o envolvimento, com exceção do alferes Joaquim José da
Silva Xavier, que assumiu a chefia do movimento e foi sentenciado à morte por
esquartejamento. Com toda a repercussão deste ato de bravura pelo país, a morte
de Tiradentes foi usada mais tarde como símbolo do ideal republicano do Brasil.
80
Esta grandiosidade que cerca a figura de Tiradentes não aparece no quadro
que
aprese
nta “um herói em pedaços”, não condiz com sua posição de herói,
principalmente para os modelos e normas
da pintura, utilizada
a época no Brasil.
Pedro Américo, artista de formação neoclássica, influenciado pelo
Romantismo e Realismo, trabalhando com um tem
a nacionalista, é influenciado pela
pintura realizada por Théodore Géricault (1791-1824), como afirma Regilene
(2007)
:
“a obra ‘A balsa da Medusa’, pintada, em 1819, a parte do naufrágio de uma fragata
francesa na costa africana três anos antes, é uma forte influência sobre Américo”.
P
orém
a sua é uma poética própria:
O artista concebeu a sua representação do corpo com tratamento
realístico, com atenção para detalhes anatômicos, como cor da pele,
unhas e musculatura. “Mesmo representando o corpo por partes e
inclusive por separá
-
las em diferentes estruturas, o artista ainda mantém
uma relação de proporção entre elas e demonstra essa preocupação
nos estudos a grafite que antecederam a obra (SARZI-
RIBEIRO,
2007,
nº 228).
A figura de Tiradentes, ou melhor sua imagem, tornou-se ainda mais
consistente como herói nacional, quando Pedro Américo “(...) com a simbologia
cristã: o sangue e o corpo do redentor que morrera pela nação (...)” (CHRISTO,
2005, p. 47), autentica esta posição. Mesmo assim, a obra não circulou no meio
artístico da época até 1998.
O quadro foi doado à Câmara Municipal da cidade de Juiz de Fora Minas
Gerais, fica distante dos olhos do público até 1922, quando foi doado ao recém-
criado Museu Mariano Procópio. O quadro ficou na parede do museu até 1998, ano
em que foi emprestado para duas importantes exposições:
Um novo olhar recaiu sobre a tela de Pedro Américo,
Tiradentes
esquartejado
, em dois momentos privilegiados: a XXIV Bienal
Internacional de São Paulo (1998) e a Mostra do Descobrimento,
Brasil
500 anos (2000), ambas no Ibirapuera. (CHRISTO, 2005, p. 15)
Christo (2005) comenta sobre a participação do quadro na exposição da XXIV
Bienal de São Paulo “Antropofagia e Histórias de Canibalismos”. A obra de Pedro
81
Américo foi incluída nesse contexto pelo Núcleo Histórico da instituição,
apresentando ao público, como o registro de uma das mais importantes
cenas
“históricas brasileiras”, e que a personagem Tiradentes é a exuberância simbólica
do Brasil
-
colônia, que tinha um sistema de governo cani
bal, situação é ilustrada pela
obra de Américo.
Sabemos que Pedro Américo foi uma importante figura brasileira, mas os
textos escritos sobre ele no início do século XX, incluindo o escrito por Gonzaga
Duque em 1905, quanto da época de sua morte, não fazem menção à obra
“Tiradentes esquartejado”. Ao longo do século XX, as publicações que se
debruçaram sobre as obras de Pedro Américo reservaram um espaço marginal para
Tiradentes esquartejado”, produção do período republicano. O sucesso do pintor
oficial do Império projetou um grande silêncio sobre sua obra posterior (...)”.
(CHRISTO, 2005, p. 15).
Por lei federal no ano de 1965, a imagem de Tiradentes nas repartições
públicas tornou
-
se obrigatória, por ter
-
se firmado como o patrono da nação brasileira
-
é
certo que as imagens fixadas nestas repartições não eram a de Pedro Américo.
Durante o regime militar (ditadura no Brasil), a representação de Tiradentes
realizada por Pedro Américo foi pouco usada. No entanto, em Belo Horizonte, a
cabeça do nosso herói nacional foi esculpida em tamanho natural. O material usado
para a confecção foi: cera, cabelo natural, para que a reconstrução da cabeça de
Tiradentes transmitisse ao espectador a sensação de estar em frente ao
personagem heróico.
O quadro de Pedro Américo começou a circular muito timidamente a partir
de 1970 nos livros didáticos. De aproximadamente 684 tipos existentes, aparece em
apenas em 11, a primeira reprodução datando de 1982, após a lei 6.683, de 28
de agosto de 1979, conforme os argumentos de Christo (2005): “A visão da
violência sobre o corpo não é própria da pintura histórica. O artista foi muito
corajoso, sobretudo se pensarmos que nesse momento Tiradentes se afirmava
como um herói nacional” (CHRISTO
,
2005, p.18)
82
Fig. 10
-
Pedro Américo
(1843
-
1905)
-
“Tiradentes esquartejado”
, 1893.
Óleo sobre tela, 270x165cm. Museu Mariano P
rocópio
Juiz de Fora
MG.
83
Fig. 10 detalhe
Fig. 10 detalhe
Fig. 10 detalhe
Fig. 10 detalhe
Fig. 10 detalhe
Fig. 10 detalhe
A análise da obra poderia tomar vários caminhos, interpretações múltiplas,
sociais,
políticas e culturais, porém o que propomos é um olhar “sensorial”, com o
intuito de gerar no observador a necessidade de dialogar com a imagem. Não podemos
negar que o quadro trouxe para o cenário da arte nacional brasileira um número
significativo de componentes novos, incomuns para o neoclassicismo.
Observando a imagem, percebemos de pronto a relação que Américo faz da
figura de Tiradentes com a de Cristo. O pequeno crucifixo, à direita de quem olha o
quadro, mostra Jesus com um olhar tímido em direção aos pés. O mesmo olhar
também é reproduzido no rosto de Tiradentes. A barba e o meio perfil das cabeças são
84
muito semelhantes. Cristo e Tiradentes são parecidos, a representação do tórax de
ambos também é similar. A região do estômago simboliza o sofrimento, mostra a
ausência de alimento, uma alusão aos dias de fome à espera da morte.
O sangue presente nos ferimentos do corpo de Cristo, no pequeno crucifixo, é
trazido para o corpo de Tiradentes com força visual e dramaticidade muito maior. Se
olharmos com atenção para o corte do pescoço na decapitação, dele ainda parece
escorrer o liquido da vida, o licor que move a existência humana, que circula sobre
veias e artérias e que faz bombear o coração do homem, agora fora do corpo, mas
ainda não coagulado. Esse elemento orgânico, vital a todo animal, mancha o lençol
branco, um vermelho vibrante rubi.
Embora seja recatada a sombra da barba do rosto de Tiradentes sobre o
vermelho do sangue no lençol branco que cobre parte da madeira, esta é uma das
partes da pintura que chama mais a “atenção”:
Ao representar o esquartejamento, o artista impede a associação
construída pelo movimento republicano entre Conjuração Mineira,
Independência e a própria República. O quadro congela a morte e
impede a “ressurreição” dos ideais do herói. (CHRISTO, 2005, p.4)
Como vimos, a arte e, por consequência, o artista, abre um leque de
possibilid
ades, se solta das amarras e agora pode se dar ao luxo de usar de diferentes
temas, formas, formatos e meios para sua construção poética/plástica. É na Europa, em
meados do século XIX, numa maior intensidade na França, que estas “inovações”,
denominadas mais tarde de movimentos, acontecem e tomam conta do meio cultural
em praticamente todos os segmentos.
Como observou Beckett (1997), um destes movimentos foi o
Simbolismo,
originário da literatura, “contaminando” logo em seguida as artes visuais e rompendo
com as formas limitadas de representação do realismo e do impressionismo. Os
principais poetas desse período foram os franceses: Stéphane Mallarmé (1842-
1898),
Paul Varlaine (1844-1896) e Arthur Rimbaud (1854-1891). Surge uma pintura com
cenas exóticas e oníricas, com imagens estilizadas e cores emotivas, obras com
características sombrias, tristes e de propensão sinistra. Segundo Argan (2004, p. 138)
85
esse movimento não tinha a pretensão de alterar o caráter nem o aspecto da arte, ao
contrário tinha c
omo propósito resgatar uma arte que pertencesse apenas ao espírito. O
movimento, segundo o mesmo autor, se explica facilmente do ponto de vista
sociológico: a arte torna-se uma atividade de compreensão da elite, constituída de
intelectuais contrários à burguesia capitalista com tendência a dominar a cultura. O
Simbolismo era apreciado por uma classe que se opunha aos modelos industriais,
criando ou contemplando objetos artísticos que distanciam do controle da razão,
valorizando o imaginário, embora ligado
s aos fenômenos da existência das coisas.
O Simbolismo é o resultado de uma evolução iniciada no Romantismo, com a
descoberta da metáfora, que influenciou o imaginário impressionista, repudiando o
Impressionismo do ponto de vista materialista e o Romantim
o pelo convencionalismo de
sua linguagem metafórica. O Simbolista acredita que a função da poesia é a de exprimir
qualquer coisa que não seja capaz de moldar-se numa forma definida ou direta. Funde
imagem e ideia. Uma “(...) combinação dos diferentes dados dos sentidos e a ação
recíproca entre as várias formas de arte (...), o seu ponto de vista irracionalista e
espiritualista (...)” (HAUSER, 1982, p. 1076).
A transformação da imagem conduz à mudança da ideia, expressão que permite
a si própria criar o material e o ideal no mundo dos sentidos. Este novo objeto que se
constrói a partir desta experiência não poderá ter um significado direto: o seu objetivo é
ser indefinivel e inexaurível. Mas isto não é a finalidade única do artista. Hauser
comenta:
Mes
mo sendo verdade que, até certo ponto, tenhamos que perder o
nosso contacto com a realidade para cairmos sob o encantamento da
arte, não é menos verdade que, no final, toda a arte genuína nos
reconduz, por um desvio que pode ser mais longo ou mais curto, à
realidade (...).” (HAUSER, 1988, p. 12).
Concluímos que o movimento simbolista renega uma distinção clara entre as
diferentes linguagem em arte, em que a poesia deve ser visual e musical, a pintura
deve ser musical e poética e a música deve ser poesia e pintura. Assim, podemos
compreendê
-lo como uma superação do impressionismo; uma exploração do mundo
86
real, mesmo estando além da realidade da existência, mas ligada aos fenomenos
existenciais.
No simbolismo, o sangue nos é apresentado de forma realista, uma poesia
imagética, uma representação metafórica do ideal da sedução, da beleza, da fêmea
perfida, que povoou o imaginário de poetas e conquistou a simpatia de leitores e
artistas plásticos no final do século XIX.
O artista sobre o qual discorreremos a seguir foi envolvido pela magia da
literatura metafórica francesa, que o levou a produzir encantadores objetos imagéticos.
Gustave Moreau
(1826
-
1898),
pintor
francês, iniciou sua carreira artística como
pintor realista. Posteriormente, recebeu influência dos impressionistas e, mais tarde,
adota novas atitudes na forma de representação, a sua pintura tornando-se mais
romântica e espítualista. A sua aparição pública data de 1852. Os seus tema
s
prediletos eram os bíblicos, principalmente a história de Salomé.
As obras de Moreau são repletas de seres fantásticos: feras incomuns, mulheres
predadoras (mito de deusas assassinas de homens), cenários de atmosferas místicas
em uma ambientação mágica. Representou mulheres de uma rara beleza,
extraordinárias. A iluminação utilizada na composição nos leva a um mundo fantástico,
irreal, porém com presença de coisas do mundo real.
como esclarecimento, a história de Salomé influenciou muitos escritores,
entre eles Oscar Wilde (1854-1900) que escreveu uma peça, censurada no final do
século XIX, na Inglaterra, que proibia temas bíblicos, mas de grande sucesso na
Franca no século seguinte. Wilde levou o mito para o início século XX, em 1905, com
música do compositor Richard Straus (1864-1949). Em Portugal, no ano de 1896,
Eugénio de Castro (1869-1944) escreveu o poema “Salomé”, em que a descrevia
assim
:
Radioso véu, mais leve que um perfume,
Cinge
-
a, deixando ver sua nudez morena,
Dos seus dedos flamej
a o precioso lume
E em cada mão traz uma pálida açucena.
E a infanta avança. Ao som dos burcelins...
Como sonâmbula perdida
Em encantos, místicos jardins,
87
Dir
-
se
-
ia que dança desmaiando
Ao perfume das flores que estão em roda...
Dir
-
se
-
ia que dança e está sonhando...
Dir
-
se
-
ia que a estão beijando toda...
O mito de Salomé, mulher malvada e sedutora, persistiu no imaginário e
encantou a Europa no final do século XIX, inspirando a literatura, as Artes Plásticas, a
Poesia
e a
Música
. No Evangelho segundo São Mateus não se encontra descrição
extraordinária sobre a clareza de inteligência, ou de ter despertado no seu padrastro
qualquer sentimento de desejo, o que encontramos é um descrição sobre a festa de
aniversário do nascimento de Herodes. Assim é a descr
ição:
(...) a filha de Herodíades dançou no meio dos convidados e agradou a
Herodes. Por isso, ele prometeu com juramento dar-lhe tudo o que lhe
pedisse. Por instigação de sua mãe, ela respondeu: “Dá-me aqui, neste
prato, a cabeça de João Batista”. O rei entristeceu-se, mas como havia
jurado diante dos convidados, ordenou que lha dessem; e mandou
decapitar João na sua prisão. A cabeça foi trazida num prato e dada à
moça, que a entregou à sua mãe. Vieram, então, os discípulos de João
transladar seu corpo, e o enterraram. Depois foram dar a noticia a
Jesus. (Biblia Sagrada, 1998, p 1301
Mateus 14
-
6,7,8,9,10,11,12)
Este mito de mulher fatal também influencia Gustave Moreau, que, muito
temporalmente próximo dos realistas e impressionistas, optou por seguir o seu próprio
estilo. Em “L’apparition”
(“A Aparição” (1876)
(Fig. 11, p. 88
) , aquarela que se encontra
no museu do Louvre, nos é apresentado o sangue através da representação da
decapitação de São João Batista.
Em sua reperesentação imagética, o artista nos mostra uma mulher de tão
grandes encantos, que sua aparência é capaz de enfeitiçar qualquer homem, e este,
enfeitiçado por ela, perde a cabeça literalmente. Quem a retratou, influenciado pela
literatura, também foi vítima dos seus encantos, “perdeu” a “cabeça” por ela, a
ponto de “retratá-la” inumeras vezes, “(...) mais de setenta quadros e desenhos ao
tema (...).” (MORAES, 2002, p. 26)”. Salomé foi o assunto preferido de Moreau.
88
Fig. 11
-
Gustave Mo
reau
“L’apparition” ( A Aparição)
-
1876
Aquarela, 105 x 72 cm
-
Museu du Louvre
Paris
-
França.
Fig. 11 detalhe
Fig
. 11 detalhe
89
Fig. 11 detalhe
Fig. 11 detalhe
Fig. 11 detalhe
Fig. 11 detalhe
Fig. 11 detalhe
Fig. 11 detalhe
Fig. 11 detalhe
Diante desta imagem somos levados pelas múltiplas formas de interpretação que
conhecemos, pois a pintura contém signos de vida, morte, luxúria, sedução, numa
90
ambientação mágica. Embora a figura de Salomé seja maravilhosamente bela, é a
cabeça de São João Batista que “irradia” luzes.
O cenário da composição é um local místico e, do lado direito do espectador,
está a cabeça de São João Batista; ao centro e, logo atrás dele, uma figura masculina,
sem o rosto nítido, envolto por um pano vermelho, talvez um guarda do palácio,
segurando com ambas as mãos uma espada que vai desde o solo até a altura de seus
ombros. Atrás destes dois,
duas colunas que formam um arco gótico e, entre elas, uma
parede arredondada, cujo teto parece desabar; ao centro destas colunas, um objeto
rebuscado, uma pilastra baixa, em forma de pirâmede de base quadrada, ornada com
pedras e com desenhos em relevo d
ourado.
Do lado esquerdo vemos a imagem da mulher, uma bailarina, ricamente vestida
com finos tecidos transparentes bordados, o corpo adornado de pequenos objetos que
parecem joias, entre fios dourados e pedras azuis, que também encontramos nos
bordado
s da indumentária; os ornamentos do corpo e da roupa estão também no
turbante que a dançarina usa na cabeça. Atrás desta figura, mais ao centro, um mulher
sentada num degrau, tocando um instrumento musical de cordas, talvez um alaúde,
vestes opacas de cor marrom, sobre a cabeça um manto ocre, que deixa transparecer
parte de sua cabeleira.
Atrás da figura (Salomé), à esquerda, dois outros personagens, uma mulher
sentada, em uma cadeira, usa roupas nas cores azul e vermelho; sobre a sua cabeça
uma tímida coroa. Num plano superior encontramos uma figura masculina sentada em
uma cadeira dourada, e no alto do encosto uma pedra azul; a sua indumentária de cor
branca envolve todo o seu corpo, e a mão direita esta apoiada sobre os joelhos, a
cabeça também está envolvida por um tecido branco, ornamentado com pequenos
objetos dourados e azuis, o pescoço e peito estão cobertos por uma veste de cor
escura.
A coluna, logo atrás da figura feminina do primeiro plano, é de cor azul e
ornamentada com desenhos em rel
evo dourado. Mais ao centro encontramos uma poça
de sangue, e nela também os restos do decapitado, em uma coloração mais escura.
Na composição encontramos linhas horizontais e verticais que dão estabilidade
ao quadro, do meio para a direita existe um círculo, que parece estar em constante
91
movimento. A parte mais luminosa da pintura, de onde saem os raios indicando para
onde nossos olhos devem caminhar, transportam
-
nos para as outras parte do quadro. A
linha inclinada que sai do braço da bailarina e que vai até seu dedo indicador aponta
para o corte da cabeça, a decapitação, aproximando as duas figuras principais da
cena.
A bailarina é Salomé, a personagem bíblica predileta de Gustave Moreau. A
sedutora dançarina nos é apresentada por ele como uma assassina, que aponta para
a sua vítima, indicando o local do corte, golpe fatal. A cabeça ainda sangrando flutua,
suspensa pela “magia” da predadora. Embora sua cabeça esteja inclinada em direção
ao chão, o seu olhar está fixo no corte e na decapitação de São João Batista. O
sangue que escorre do corte respinga e mancha o chão, onde a “deusa” dos encantos
delirantes irá pisar.
O sangue, neste poema visual de Moreau, é um convite para nos aventurarmos
no seu arriscado mundo de fantasia. Neste jogo do
olhar é que se encontra o veredito.
Se não conhecermos a história bíblica da dançarina, será difícil julgá-la inocente ou
culpada. Se a julgarmos culpada, a representação é uma agonia humana, o sangue
que banha parte do solo manchará para todo o sempre a história dessa mulher; se a
julgarmos inocente, o quadro não passará de uma alegoria, em que uma bela mulher
dançará sobre uma poça de sangue.
Esta personagem bíblica, associada sempre à morte de São João Batista, traz
consigo o sangue do santo como o certificado do sucesso de sua
performance
, da
ação que a transformou em eterna vedete” , perpetuada no imaginário de muitos, que
carrega consigo o sangrento e mórbido retrato da recomprensa de sua primeira dança.
A essa “deusa” às avessas das celebrações sombrias é que Gustave Moreau
nos convida a contemplar, para que juntos possamos delirar com sua beleza incomum:
é o anjo da sedução, de pele aveludada como pêssego, leve como o vento, envolvida
por joias e tecidos transparentes, com um corpo escultural quente como o sol que
produz luz propria e ofusca nossos olhos. Foram estas qualidades que usou para
conseguir a execução de São João Batista.
O quadro nos mostra a luxúria e a morte transitando numa atmosfera mística e
mágica, mesclando santidade e
sangue. São João Batista tem a luz divina atrás de sua
92
cabeça, que ainda sangra, e o seu sangue banha o ambiente, misturando-se a
pequenas flores no solo. Salomé parece não tomar conhecimento de que o chão está
sendo molhado pelo que ela arrancou de dentro de São João Batista, criando com ele
um elo que jamis o tempo irá apagar. Salomé e São João Batista misturaram-se no
tempo e construiram histórias juntos. Salomé seduziu e seduz homens ainda hoje, mas
foi seduzida pela cabeça e pelo Sangue de São João Batista, ficando submersa nessa
história.
Podemos concluir que o quadro representa uma forma de sacrifício eterno, ali
num instante magicamente selado para sempre na cabeça flutuante e no sangue que
flui, inegostável. E, num sentido metafórico, estará sempre junto a Salomé, manchando
o caminho da “deusa” dançarina, congelando um momento da história.
Outra artista, que congela um momento da história é Frida Kahlo. Com
dramaticidade, dor, angústia, sofrimento, congela a morte, apresentando e
representa
do o elemento sangue.
Magdale
na Carmen Frida Kahlo Calderón
(1907
-
1954)
nasceu em Coyoacán,
mais tarde um subúrbio da Cidade do xico. Teve uma vida marcada por tragédias
pessoais. Com seis anos de idade, contraiu poliomielite, a primeira de uma série d
e
doenças, acidentes, lesões e operações que marcaram a sua trajetória de vida.
Artista mexicana, sua arte é uma das chaves mais importantes para desvendar a
trajetória de vida, seus sentimentos e pensamentos. Frida nos deixou também um
diário, relatos iniciado no ano de 1940. Um registro cronológico, desde a infância,
passando pelas experiências como artista, até o final de sua vida, focando temas como
a sexualidade, a fertilidade, a magia e o esoterismo, além de registro de seu sofrimento
físico e psíqu
ico.
As obras de
Frida
Kahlo
,
sendo a maior parte delas, autorretratos de pequenos
formatos,
que ainda podemos denominar o diário imagético de Frida, que demonstra
seus sofrimentos físic
os e psíquicos e, como ela mesma
nos diz, sua pintura, “(...) não é
revolucionária: Por que me hei-de iludir a mim própria com o espírito combativo?” (apud
ALMEIDA, 2002, p.255).
A paralisia infantil deixou sequelas que carregou consigo por toda a vida, uma
pequena deformação num dos pés. Em setembro de 1925, com 18 anos de
idade,
93
sofreu um acidente de ônibus, que deixou marcas profundas, eliminando a possibilidade
de levar uma vida normal e de ser mãe. Nesse acidente sofreu perfuração, fraturas na
coluna vertical, na bacia e nas pernas.
Frida Kahlo difere da maioria dos pintores porque não começou a pintar cedo.
Iniciou a sua trajetória de pintora durante a transição entre a doença e o
restabelecimento da saúde; o seu primeiro registro imagético foi sobre o acidente,
seguido de uma sequência de autorretratos. A primeira pintura é datada de 1926.
Kahlo em sua representação pictórica, traça a sua existência desde o pré-natal, mostra
a sua vida desde o momento da concepção na obra Os Meus Avós, Os Meus Pais e
Eu, 1936
.”
Em razão de estar sempre só, pinta autorretratos e, como ela mesma afirmou, o
faz por ser o assunto que melhor conhece. Suas angústias, suas vivências, seus medos
e, principalmente, seu amor pelo marido, é a sua poética visual. Casou
-
se em 1929 com
Diego Rivera (1886-1957), famoso pelas suas monumentais pinturas murais, que criou
para o partido comunista em seu país. Tanto ele quanto Frida eram membros do Partido
Comunista.
Frida foi uma apaixonada pela Revolução Mexicana (1910-1920). Esse
acontecimento tinha um significado muito forte para ela, a ponto de dizer que o ano de
seu nascimento coincide com a data do acontecimento, ou seja, 1910. É engajada com
a política social de seu país.
No início da década de 1940 a situação política mundial tornava-se cada vez
mais explosiva, com a Segunda Guerra Mundial. O reflexo desta situação europeia
sobre o México afetou a política econômica e cultural, momento em que a artista torna-
se mais conhecida pelo publico mexicano.
Graças a essa popularidade junto ao público mexicano, foi nomeada para um
cargo público, na função de professora. Eleita em 1942 como membro do Seminário
de Cultura Mexicana Ministério da Educação Pública que contava com a participação
de vinte membros, entre artistas e intelectuais, tinha como compromisso reformular o
ensino de arte, promover a cultura mexicana através de divulgações e exposições.
Permaneceu por pouco tempo, pois, por motivo de saúde, foi obrigada a ficar em casa,
em Coyoacán. Mesmo em casa ministrou aulas. Os alunos que permaneceram fiéis
94
foram: Arturo Estrada, Arturo García Bustos, Guillermo Monroy e Fanny Rabel, que se
tornaram conhecidos como “Los Fridos”.
1935 foi um ano em que a artista produziu pouco, dois trabalhos ao todo, um
deles foi Uns Quantos Golpes”, (Fig. 12, p.
95
), e é particularmente apelativo pela sua
nature
za dramática. Narra um acontecimento real, extraído do noticiário de um jornal da
época. Nessa pintura, inspirada pelo noticiário do assassinato de uma mulher pelo
amante embriagado, golpeada vinte vezes com uma faca, Frida representa o fato social,
fazend
o uma referência simbólica à violência sofrida, além de registrar a fragilidade da
mulher perante a força física masculina, deixando entrever uma relação com o seu
emocional.
No primeiro esboço dessa pintura, existia uma pomba segurando a faixa,
com uma frase de uma canção popular mexicana. o quadro em si nos apresenta
duas pombas segurando a faixa, cujos dizeres ironiza o depoimento do assassino
em: “Unos Cuantos Piquetitos”. Este quadro, além de estar associado ao estado
emocional da artista, apresenta, através do sangue da “outra” (a mulher
assassinada), o peso da vida. Entre tantos infortúnios, Frida tinha também um
marido infiel; um fato que provocou o divórcio de Frida e Diego Rivera foi o fato de
que ele tomara para si como amante a irmã de Frida, Cristina Kahlo.
Conforme
Kettenmann, “o ato violento é uma referência simbólica à situação pessoal de Frida
Kahlo: o seu marido Rivera envolvera-se há pouco com a irmã dela, Cristina”.
(
KETTENMANN, 2001, p. 39).
A mulher, ao centro do quadro, em primeiro plano, picotada pelos golpes
sofridos pelo amante “enciumado”, simboliza a fragilidade feminina diante da
violência masculina. O sangue, neste contexto, é o “selo” da morte, documenta a
condição feminina perante a violência do universo masculino, que foi, mais tarde,
questionada nas obras de Gina Pane, Ana
Mendieta e Regina José Galindo.
Ao contemplarmos esta imagem, é inegável o impacto que ela nos causa pela
presença do sangue. Bartra (1994) destaca a coragem da artista na sua forma de
representação, uma estética ilimitada de situações sangrentas, como no caso deste
e outros temas dramáticos que são recorrentes de sua pintura. O quadro como
95
entendimento político, social e pessoal é um desafio constante, um desrespeito aos
valores da ideologia dominante. Um corpo morto retrato por uma cabeça confusa,
num corpo doente. A morte, no contexto do quadro, tem duplo sentido: por um lado,
entendemos como o registro do fato ocorrido na cidade da artista, por outro, “o
espírito” de Frida no momento da leitura sobre o assassinato, fazendo relação com
o sem momento.
Fig.
12
-
Frida Kahlo
-
“Uns Quantos Golpes”
(1935)
Óleo sobre metal, 38 x48,5 cm
coleção Dolores Olm
edo
Cidade do México.
Fig. 12 detalhe
Fig. 12 detalhe
96
Fig. 12 detalhe
Fig. 12 detalhe
Fig. 12 detalhe
O corpo vazio do essencial líquido da vida. A cor vermelha contrasta com o tom
da pele amarelado. O sangue está presente em quase toda a composição, no chão,
no lençol branco, na camisa do “amante” assassino, na moldura do quadro. Ampliando
o cenário da imagem, ultrapassando o limite, regra que, mesmo na arte pós-
moderna,
não foi quebrada. O “Anjo da Guarda” que segura a faixa com o bico metamorfoseou-
se; antes era branco, depois passa a ser negro. Conforme KETTENMANN (2001): O
assassino havia, então, justificado os seus atos perante o juiz com as palavras: « Mas
foram apenas uns quantos golpes »
Diante desta representação, com um olhar mais cuidadoso percebemos o quanto
a mão estendida da mulher morta, sob o leito, nos faz recordar os pés de Cristo,
que
Mathias Grünewald, nos representou em
“A
Crucificação
(1510
-1515) (Fig. 05, p.
49
),
em que o Sangue ainda escorre, manchando a parte inferior da madeira da cruz. O
braço direito da mulher, relaxado e sem vida, a palma da mão aberta, uma ferida que
ainda sangra, o sangue, com sua força própria, escorre pelos dedos, manchando o
chão amarelado. Nesta pintura, como em outras imagens de Frida, a passagem do
ficcional para o real está sobre a marca de sangue.
97
No quadro, o tema da pintura é apresentado através do estatuto feminino,
expressando o valor da mulher em uma sociedade machista. O sangue, elemento
orgânico essencial para a vida de qualquer animal, tão comum no universo feminino,
por meio dos seus fluidos menstruais, nos é apresentado/representado por Kahlo
através das feridas no corpo da mulher morta. Embora a imagem do sangue seja
encontrada em
muitas
pinturas do passado,
nas
Artes Plásticas, tenha sido pouco
questionado
o seu valor na composição
, quando mostrado pelo artista. Situações na
arte, que com o surgimento da Arte Contemporânea
torna
-se notório e gera
uma
dialética da sua importância no objeto artístico.
Um outro autorretrato da artista, em que a imaginação, o real e familiar não
têm limites, o mundo objetivo, visível e o invisível se entrelaçam, é a obra “O
Hospital Henry Ford ou A Cama Voadora”, 1932.
Os seus quadros, como percebemos, refletem o momento pelo qual ela
passava. Em 1930, Frida Kahlo teve que fazer um aborto por questões de saúde. O
desejo de ser mãe, conforme o relato de Kettenmann (2001), fez Frida insistir na ideia
de levar a gravidez até o fim, embora alertada pelos médicos de suas reais condições
físicas. Devido a esses problemas, em 4 de julho de 1930, abortou.
Fig. 13
-
Frida Ka
hlo
-
“O Hospital Henry Ford ou A Cama
Voadora”,
1932
-
Óleo sobre metal, 30,5 x 38cm
-
coleção
Dolores Olmedo
-
Cidade do México.
98
Nos três decepcionantes dias no hospital iniciou a construção do quadro. Num
primeiro momento registrou as suas angústias a lápis, mais tarde o desenho
transformou
-se no quadro a óleo O Hospital Henry Ford ou A Cama Voadora (Fig. 13 p.
97
).
A imagem nos mostra a frágil nudez da artista sobre a cama, coberta com um
lençol branco, embaixo de seu quadril está uma poça de sangue que nos faz refletir
sobre a morte do bebê, sugerindo ao observador uma viagem pelo mundo das
angústias, da tristeza, da decepção, da solidão; a perda é a mensagem primeira da
obra. As veias e artérias cheias de sangue que são o fio da vida ramificam e Frida tenta
segurá
-
las. O braço na barriga é com
o um apoio para aumentar a força e dar equilíbrio.
Essas veias estão ligadas a seis diferentes símbolos em suas pontas, sugerindo
Fig. 13 detalhe
Fig. 13 detalhe
Fig. 13 detalhe
Fig. 13 detalhe
Fig. 13 detalhe
Fig. 13 detalhe
Fig. 13 detalhe
Fig. 13 detalhe
99
que são “símbolos da sua sexualidade e da gravidez falhada” (KETTENMANN, 2001,
p.33).
A artéria, ainda cheia de sangue, que passa por cima da barriga de Frida na
direção da pélvis, osso fraturado no acidente, flutua sobre a poça de sangue na cama,
transformando
-se em cordão umbilical e direcionando o nosso olhar para o feto
masculino que paira sobre o leito, na direção do olhar da mãe. É um feto muito grande
e, conforme a biografia da artista, a gravidez era recente, logo o tamanho é
desproporcional em comparação ao tamanho da cama e de Kahlo.
Em cima da cabeceira da cama, à direita, a presença de um caracol que
também flutua no ambiente. Simboliza a interrupção da gravidez, objeto presente em
outros trabalhos da artista “como um símbolo de vitalidade e sexualidade. A sua casca
protetora levara as culturas índias a ver o caracol como um símbolo da concepção,
da gravidez e do nascimento” (KETTENMANN, 2001, p. 37). Para Kettenmann, Frida
fez correlação entre objeto e sexualidade, do ciclo feminino com a saída da lesma do
caracol, período que representa as fases da lua, ou seja, crescente e minguante.
“O modelo anatômico da parte de baixo de um corpo, de cor salmão, que está
por cima dos pés da cama, assim como o modelo de osso em baixo, à direita, indica a
causa do aborto: o dano da coluna e da pélvis, que impossibilitou Frida de ter um filho”
(Ibidem, p. 34).
O objeto que parece uma máquina na boca de cena, à esquerda, também pode
ser entendido como um dos provocadores do trágico acontecimento. Provavelmente
representa uma parte de um “esterilizador a vapor, como os que se utilizavam nos
hospitais naquele tempo” (Ibidem) Certamente Kahlo, no período que esteve no leito do
hospital, deve ter feito uma relação daquele objeto com a sua condição física, que a
impediu de levar a gravidez até o fim.
A flor no centro e embaixo da cama pode ser vista e entendida como outro
símbolo
de sentimentos, sexualidade e emoções, provavelmente um presente de seu
marido, em uma de suas visitas.
A veia que também está ligada à vida, liga
-
se ao signo de “paixão”.
Ao fundo, pela paisagem industrial abandonada que se no horizonte, perante
a qual a cama parece flutuar, a pequena figura da artista evoca, tão vulnerável numa
100
cama enorme, a representação da cidade, reflete a solidão, a inutilidade, os próprios
sentimentos do vazio. Sem dúvida, a causa é o fato de ter perdido o bebê. Retrata sua
fr
agilidade, o quanto ela se sente impotente em relação ao acontecido.
Ainda agarrada às artérias, que são ao mesmo tempo vida e morte, a sua figura
é por demais pequena para dar conta do que o destino lhe reservou. Isso fica ainda
mais claro quando olhamos para a linha do horizonte ao fundo, a paisagem de uma
grande metrópole, uma cidade industrial, desenvolvida tecnologicamente, porém fria e
indiferente.
O quadro é rico em símbolos, porém não se pode negar que o elo entre Kahlo e
eles é o sangue. O sangue é poça, é artéria. Artéria que leva à vida e também leva à
morte. Na obra analisada, a realidade da vida é evitada, como se fosse um registro com
precisão fotográfica, comunica o que é proposto, o assunto. Para Frida, a cópia do real
não tem o mesmo peso emocional que as produções que traz para a obra, o estado de
espírito do artista.
Sua obra, embora fosse bastante "forte", nunca foi surrealista, como havia escrito
em 1938, André Breton (1896-1966), que qualificou sua obra de surrealista em um
ensaio para a exposição de Kahlo na galeria Julien Levy de Nova Iorque. Frida nunca
pintou sonhos.
Frida, na maioria de suas composições, distanciou-se do realismo da vida real,
mas não de sua realidade de mulher, das suas condições físicas limitadas, pintava uma
realidade difícil de se compreender, tamanha desventuras ali existissem. Os objetos
utilizados de seu meio são trazidos para a composição e transformados em mbolos.
Para a artista, é mais importante reproduzir o seu estado emocional, interpretação” da
realidade que ela experimentara do que registrar uma situação real com precisão
fotográfica.
Kahlo é a pintora dos crimes, do aborto, do parto, do aleitamento materno, do
suicídio, de acidentes, de pesadelos, de flores, de dores físicas e mentais, porém, t
inha
muito amor pelas coisas simples da vida, como seus bichos de estimação.
As abordagens visuais dos quadros de Kahlo ultrapassam o nível do sonho para
entrar no mundo do pesadelo. Osborne (1974) coloca que o assunto de uma
representação imagética, não precisa ser necessariamente parte de um mundo. A obra
101
pode modificar ou deformar o mundo real, sem perder o sentido de comunicação, pode
refletir verdades ou aspirar um mundo ideal, ou criar um mundo de verdade absoluta do
artista, “acima e além do mundo real que conhecemos (...). “(OSBORNE, 1974, p. 73).
Tanto o realismo como o naturalismo poderão ser um idealismo artístico, podendo
modificar ou deformar o mundo conforme o desejo do artista.
Apoiados em vários autores que comentam a obra de Frida, somos levados a
crer que são as coisas comuns da vida (animais, crianças, flores, o campo) que mais
interes
savam a ela. Kahlo se autorretratou acompanhada por um, ou vários, dos
animais de estimação que tinha em sua casa (papagaios, macacos, veados e cães
etc.
).
No decorrer de sua vida após 1950, passou a ter tantas dores que não conseguia
trabalhar. O seu quadro de saúde foi se agravando e, em 1954, houve momentos em
que simplesmente não conseguiu pintar e nem se expressar politicamente. Em fevereiro
de 1954, ano de sua morte, foi-lhe amputada a perna e, a esse respeito, Frida
manifestou
-
se profundamente angustiada.
Sete dias após completar 47 anos faleceu Frida Kahlo. Na tarde de 13 de Julho
de 1954, “(...) o seu caixão foi colocado no
hall
de entrada do Palacio de Bellas Artes,
acompanhado por uma guarda de honra. Como em muitas das suas aparições públicas
em vida, até esta última criou um grande rebuliço.” (KETTENMANN, 2001, p. 84).
Este capitulo a discussão foi um recorte histórico que se limitou em algum
as
obras, cujas poéticas dos artistas escolhidos, o sangue, sua imagem nos é apresenta e
representa pelos seus autores “carregado” de dramaticidade. O Capitulo seguinte, o
nosso discurso focara a materialização do sangue na obra de arte e o corpo como
su
porte (o corpo que fala).
102
CAPITULO II
O sangue materializado na obra de arte e o corpo que fala
Este capítulo apresenta obras de artistas contemporâneos que não têm a
pretensão de reviver nenhum movimento que os antecedeu. A proposta deles não
envolve nem o revival nem o retorno a um estilo, mas sim a apropriação de uma
abertura de um espaço de discussão acerca dos acontecimentos e experiências
artísticas do final dos anos de 1950; acerca dos experimentos herdados do Dadaísmo
de Marcel Duchamp (1887-
19
68), que atravessaram as décadas de 1960 e 1970,
quando, no campo da Arte, o sangue começou a ser usado como matéria; o corpo do
artista passou a ser o suporte e, muitas vezes, o seu próprio sangue, o material. Esses
artistas, iniciando suas experiências na segunda metade do século passado, continuam
influentes no cenário artístico de hoje.
Estudando esses acontecimentos, como as
Performance
4
da Body Art
5
, uma das
vertentes da Arte Contemporânea em que o sangue humano e-ou de animais se
materializa nas obras de artistas como Hermann Nitsch (1938) na Austrália, Gina Pane
(1939
-1990) na França, Chris Burden (1946) nos Estados Unidos, Betina Sor (1963) na
Argentina, Artur Barrio (1945), Karin Lambrecht (1957) no Brasil, Ana Mendieta (1948-
1985),
Vanessa Tiegs (????) nos Estados Unidos, Regina JoGalindo (1974) na
Guatemala, será possível fazer comparações e investigações teóricas e compreender o
uso do sangue na arte. Observa-se que, nas obras desses artistas, qualquer que seja a
atitude adotada para a construção de suas obras, a tentativa é a de “(...) aprender a
4
(...) A
Performance
pode ser uma série de gestos íntimos ou uma manifestação teatral com elementos visuais em
grande escala, e pode durar de alguns minutos a muitas horas; pode ser apresentada uma única vez ou repetida várias
vezes, com ou sem um roteiro preparado; pode ser improvisada ou ensaiada ao longo de meses (...)”. In:
Goldberg,
R.
A arte da Performance. I
2006, p. VII.
5
(...) O artista reivindica, então, um direito ao corpo, à emoção carnal, mesmo que tenha de passar pelo sofrimento
a Body Art põe em cena o corpo torturado do artista - o inaceitável, o feio, o sujo, mesmo o pavoroso. Como
qualquer corpo, do qual ela seria a expressão, a obra é efêmera, convive com a escatologia, o dejeto e o lixo. In:
CAUQUELIN, A.
Arte contemporânea.
Uma
introdução
.
(p.148).
103
habitar o mundo em vez de tentar construí-lo a partir de uma ideia preconcebida da
evolução histórica.” (BOURRIAUD, 2009, p.18).
No passado, uma das funções da arte era apontar ou “profetizar” um novo
universo. Hoje, com suas múltiplas formas de expressão, é possível criar vários tipos de
mundos. Esta nova concepção artística, que se originou da mudança da capital mundial
da arte de Paris para Nova York (com a emancipação da arte americana), possibilitou
uma abertura para um novo fazer artístico, com novos materiais e suportes. Essa nova
arte não podia mais “ser agrupada em torno da adesão a princípios plástico-
formais”
(COCCHIARELE, 2007, p.73-74). Foi uma abertura possibilitada, principalmente, por
Marcel Duchamp, um europeu radicado nos Estados Unidos, em 1955. O responsável
pela criação dos
ready
-
mades
6
acreditava que o formalismo, as convenções e os
valores burgueses ainda se faziam presentes nos acontecimentos modernos, o que era
inaceitável. Por isso impôs uma arte de subversão e, com seu
ready
-
made
, fruto da
crise, da previsão de morte da pintura, debatendo sobre essas questões, anuncia o
efeito da nova arte como ideia.
Marcel Duchamp, artista e teórico da arte francesa, produziu poucas obras e,
mesmo assim, é tido como o personagem mais influente da arte do século XX. A sua
primeira manifestação contra a arte ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial (1939-
1945), quando se aproximou do grupo dos dadaístas, que renegavam os valores
existentes e colocavam toda a cultura internacional em crise, concebendo a arte não
mais como um meio de produzir valores. Renegavam a lógica das coisas, deixando que
“acontecesse” ao acaso; apropriavam-se de qualquer objeto, fatos ou instrumentos que
não produzissem valor, para assim, usá
-
los na construção do objeto artístico. “Uma arte
que é sempre diferente de si mesma” (ARGAN, 2004, p. 353), considerando estético
tudo que fosse gratuito. O acaso produzia coerência, a arte passa a ser um sinal de
vida, quando tudo parecia morto, torna
-
se o registro de um processo mental.
6
Ready
-
made
(...)
é uma manifestação radical da intenção de
Marcel Ducha
mp
de romper com a maneira tradicional
da operação artística, uma vez que se trata de apropriar-se de algo que está feito: escolhe produtos industriais,
realizados com finalidade prática e não artística (urinol de louça, pá, roda de bicicleta), e os el
eva à categoria de obra
de arte.
In ARGAN
, C. G.
ARTE
MODERNA. p.358
104
Duchamp foi um opositor dos cubistas; tinha como objetivo destruir a analogia
cubista através de suas observações sobre o funcionamento da arte, da máquina e da
fisiologia. Com Picabia (1879-1953), Man Ray (1890-1976) e Alfred Stieglitz (1864-
1946), cria a revista
291
, focando assuntos dos dadaístas, que se somaram em 1918.
Esta vanguarda negativa que foi o Dadaísmo tinha a pretensão de mostrar a
impossibili
dade de criar relação entre arte e sociedade, pois a verdadeira arte é a
antiarte, que nega os valores e a função do objeto artístico.
A situação da Europa na época era contraditória, principalmente no que se refere
ao progresso social. Os intelectuais contrários à Guerra teriam de tomar uma atitude.
Se a considerassem como um acontecimento que se opunha à “racionalidade” dos fatos
e um desvio fatal em todos os sentidos, deveriam conduzir a sociedade à “razão”
adotando posturas mais ou menos enérgicas através de reformas ou revolução. Então,
adotando ações perturbadoras, utilizaram de forma absurda as coisas a que a
sociedade atribuía valores. Renegaram as técnicas artísticas e usaram toda sorte de
materiais retirados da indústria, mas evitando empregá-
los
de maneira corriqueira e
sempre buscando romper com as regras sociais.
Conforme Argan (2004), ser artista já não demandava mais uma habilidade ou
experiência técnica, mas sim tornar
-
se livre. No projeto dadaísta, a lógica e o acaso são
categorias distintas, mas estabelecem uma discussão; a lógica é uma interpretação,
entre inúmeras possibilidades da “lei do acaso”.
Duchamp, quando abandona a pintura, torna-se uma das figuras principais do
movimento
dadaísta
.
Em 1913, um ano depois de ter exposto o “Nu descendo uma
escada”, no Armory Show, em Nova York, a obra ainda gera “(...) consequências
profundas nos Estados Unidos, país em que a passagem do ambiente natural para o
ambiente tecnológico fora mais rápida e traumática do que na Europa.” (ARGAN, 2004,
p.438). Em função disso tudo, este artista está entre os poucos de sua geração que
revolucionou os conceitos de arte e beleza do século XX. Segundo relato de Cipola a
respeito de Duchamp, “Tentou, sem sucesso (como ele mesmo reconheceu), destruir a
mística do
gosto e desmontar o conceito de beleza estética, e, em 1962, disse: “Quando
descobri os
ready
-
mades
pensei em desencorajar a estética...” (CIPOLA, 2001, p. 163).
O seu valor consiste principalmente em ter sido um “revolucionário” da estética artística,
105
um
sujeito muito à frente de seu tempo. A sua originalidade e a fecundidade de suas
ideias desvendaram o que estava sob a censura de uma sociedade moderna.
numa versão mais atualizada, Bourriaud (2009) observa que, para os artistas
deste movimento e os atuais que desta prática fazem uso, a apropriação de um objeto
significa interpretá
-lo para uma nova função, e o uso de produtos ou elementos naturais
muitas vezes trai o conceito para o qual ele foi criado. O ler, assistir, olhar uma obra de
arte é um tip
o de pirataria; é, em suas palavras, “o grau zero da pós
-
produção”.
A obra de arte passa a ser uma linguagem própria do artista, que, com o material
utilizado, cria novas declarações (funções) e não um produto final; cria um objeto que
gera reflexão e numerosas interpretações - o importante é o que se fará com estes
elementos que agora estão à sua disposição.
Desta maneira, apropriando-se dos elementos da cultura, pois a sociedade é um
texto cujas regras se originam da produção, o artista internamente dita as regras sobre
como utilizar tais objetos de pós-produção, ou seja, os objetos do meio urbano dos
quais se apropria para dar outro uso. Nas palavras de Bourriaud:
A arte do século XX desenvolve-se num esquema semelhante; ela
mostra, ainda que tardiamente, os efeitos da Revolução Industrial.
Quando Marcel Duchamp, em 1914, expõe um porta-garrafas e utiliza
como “instrumento de produção um objeto fabricado em série, ele
transporta o processo capitalista de produção (trabalho a partir do
trabalho acumulado) para a esfera da arte, ao mesmo tempo
inscrevendo o papel do artista no mundo das trocas: de repente ele
parece um comerciante, cujo trabalho consiste em transferir um produto
de um local para outro (...) (BOURRIAUD, 2009, p. 19
-
20).
Considerando a afirmação do autor, a escolha, por si só, é uma ação artística,
tal como fabricar, pintar ou esculpir. Esta atitude “atribui uma nova ideia” a um objeto,
isto é, uma produção: ao inseri-lo num novo contexto, cria-se um novo significado para
o objeto, com
o uma figura numa “história”.
As obras que surgiram da experiência dadaísta usavam diferentes materiais
industrializados e, para Bourriaud, os objetos retirados do cotidiano faziam com que a
obra dialogasse com a realidade, atestando:
106
(...) uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos
postulados pela arte moderna (...); essa evolução deriva, sobretudo, do
nascimento de uma cultura urbana mundial e da aplicação desse
modelo citadino a praticamente todos os fenômenos culturais (...).
(2009, p. 19
-
20).
Na medida em que os artistas se apropriavam e experimentavam esse novo
modo de fazer arte, com os
ready
-
mades
, “(...) foi, sem dúvida, um dos grandes trunfos
da experiência dadá e, sobretudo, de Marcel Duchamp”. (CANONGIA, 2005, p. 23)
,
quebravam as barreiras ainda presentes no modernismo.
Para os artistas envolvidos nesses experimentos tudo era arte, não havendo
mais diferença entre o banal e o artístico. Com essa nova proposta de arte, construíram
o seu próprio real, tendo como referência o modo de vida cotidiano, observações sobre
a nova condição que as sociedades pós-industriais impunham ao ser humano. A
experiência do
ready
-
made
teve como objetivo derrubar as barreiras dos limites
modernistas, incorporando ações interdisciplinares. A semente estava lançada,
germinando em todos os segmentos da arte.
A arte como ideia, os
ready
-
mades,
proliferaram rapidamente pelos EUA.
Duchamp manifestara-se, juntamente com o artista e fotógrafo Man Ray, em
publicações sobre a estética individualista do Expressionismo Abstrato
7
e sua
defasagem em relação à cultura urbana em expansão, reforçando sua posição contra a
operação pictórica. Quanto a isto, Stangos acrescenta que:
Duchamp, em sua desilusão, acertou tanto na diferença quanto na
semelhança. Pa
rece
-me que um dos aspectos enigmáticos da arte pop
e aquele que mais urgentemente necessita de explicação é a sua
evidente frieza, sua ausência de envolvimento com o tema de que trata.
À primeira vista, há um ressurgimento de técnicas dadaístas, de truque
s
dadaístas, mas sem o menor respaldo na filosofia dada (...).
(STANGOS, 1991, p. 162).
No campo da música, John Cage (1912-1992), compositor experimentalista
norte
-americano, foi o responsável pela criação da musica
ready
-
made,
no início dos
7
.
Expressionismo abstrato
,
“(...) uma concepção que supra a necessidade de certa compreensão confiável das
preocupações formais e técnicas dos pintores e de suas relações com a arte que os precedem, sem que se negue, ao
mesmo tempo, a possibilidade de discernimento intuitivo das noções mais gerais e mais “metafísicas” dos pintores
sobre o significado de suas ações e de suas asserções.” ( N.STANGOS.
CONCEITOS DA ARTE MODERNA
p.122)
107
anos 50, utilizando, em suas experiências, sons extraídos do cotidiano: ruídos, vozes e
também o silêncio. Foi no final dos anos de 1950 e início da cada de 1960 que elas
passaram a ser reconhecidas como obras de arte. Ampliando a sua pesquisa, Cage
criou outros H
appenings
8
, unindo, em um espetáculo, diferentes artistas e
linguagens. Entre os seus parceiros estava o bailarino e coreógrafo norte-
americano,
Merce Cunningham (1919-2009), que rejeitava a hierarquia do procedimento
coreográfico tradicional e, ao invés disso, utilizava gestos banais e eliminava a
diferença entre os gestos coreográficos. Cunningham criou a dança
ready
-
made
, de
caráter experimental e que valorizou durante toda a sua vida.
Tais acontecimentos, além das mudanças ocorridas na esfera da Ar
te,
culminaram numa nova concepção de arte, que se apoiava do cotidiano, apropriando
-
se
dele, da objetividade da vida e do consumismo urbano. Essas tendências inovadoras
desembocam na Pop Art
9
, no final da década de 1950, quando têm origem os
acontecimento
s contemporâneos que geraram profundas mudanças estéticas nos EUA
e influenciaram artistas de outros países.
Semelhante panorama promoveu a agregação do sentido do banal à Arte; foram
rompidos os limites entre as linguagens e muitas delas podiam integrar o mesmo objeto
estético, usando-o para expressar um novo modo de fazer artístico e comunicar
informações e realidades inovadoras. Os artistas dos anos de1960, da Pop Art
mundial
(incluindo a brasileira), apresentavam um certo humor negro. Canongia diz a re
speito
deles:
(...) com toda a sua exuberância iconográfica e cromática, havia ali um
certo humor negro. (...) Pop colocou o mundo da arte ao mundo da
experiência real. E, ao fazê-lo, destruiu os últimos rastos de aura que
revestiam a obra de arte e a figura do artista. (CANONGIA, 2005, p. 45-
46).
Uma crítica a toda aura que reveste a arte e a tira da convivência humana, de
8
O
Ha
ppening
que literalmente significa acontecimento, evento – é apresentado e criado sob a forma de
multilinguagem, funcionando como captador e processador de novas tendência e está diretamente associado aos
conceitos de experimental e anárquico. PIRES, B.
F.
O corpo como suporte da arte
.
Piercing, implante,
escarificação, tatuagem.
2005, p. 69.
9
N. STANGOS,
CONCEITOS DA ARTE MODERNA. Pop Art, ou Arte Pop. (...)
O termo em si foi usado pela primeira vez pelo
crítico brit
ânico Lawrence A
lloway, em 1954, com
o um rótulo conveniente par a “arte popular” que estava sendo criada pela cultura
de massa. Alloway ampliou o termo em 1962 para incluir a atividade de artistas que estavam procurando usar
imagens populares em um contexto de “belas
-
artes”. Desde então surg
iu uma série de outros rótulos concorrentes,
mas este foi o que vingou, apesar dos protestos (ocasionais) dos próprios artistas. (1991, p.160)
108
onde ela nunca poderia separar-se, mesmo que esta esteja submetida às ideias e
aspirações de um certo período histórico, e isso pode bem ser confirmado com o
pensamento de Fischer:
Um momento de humanidade que promete consonância no
desenvolvimento. (...) Coisas antigas, aparentemente muito
esquecidas, são preservadas dentro de nós, continuam a agir dentro de
nós
frequentemente sem que as percebamos e de repente vêm à
superfície e começam a nos falar” (
FICHER,
1973, p.17)
Na sociedade pós-industrial ocorreram grandes mudanças: exacerbou-se o
consumo da massa, a evolução das mídias, a publicidade de produtos produzidos em
série,
fazendo com que a singularidade perdesse campo para o plural. Um mundo novo
surgia, onde o múltiplo ganhava valor de original. o prenúncio da morte da arte
tradicional, “(...) instaura a obra como sintoma de um suicídio, da
persona
e da arte”.
(CANONGIA, 2005, p. 44). Os artistas indagam, então, sobre os valores da identidade
do sujeito e do objeto.
Nesse universo de questionamentos sobre objetos e sujeitos, as imagens de
consumo do dia-a-dia foram trazidas para a obra, desumanizando a imagem, fazendo
a
arte equiparar-se a qualquer produto do meio urbano. Nivelando-se os objetos,
assumiu
-se uma postura crítica, que obrigou o observador a olhar com distanciamento
para a obra. Segundo Stangos, “(...) O que os artistas
pop
fizeram (...) foi encontrar
alg
uma coisa positiva nesses gestos de oposição, alguma coisa a partir da qual fosse
possível construir”. (1991, p 162).
Fazendo uma ponte com o que apresentamos até o momento, propomos um
recorte sobre a Arte Contemporânea, seu papel e sua função. Pois,
seg
uindo o
pensamento de Pedrosa, “na arte pós-moderna, a ideia, a atitude por trás do artista é
decisiva”, assim como o uso das múltiplas linguagens. (1986, p.236).
A Arte Contemporânea apresenta sua raiz na Pop Art e, diversamente do que
ocorreu com a arte moderna, não teve um campo especializado. Dialoga com todas as
linguagens. Assim é o entendimento de Cocchiarele:
(...) Não é por acaso que os discursos teóricos sobre a arte moderna,
109
assim como os dos artistas também tenderam ao formalismo. A arte
contemporânea, de modo inverso e na contramão dessa tendência,
esparramou
-se para além do campo especializado construído pelo
modernismo e passou a buscar uma interface com quase todas as
outras artes e, mais, com a própria vida, tornando-se uma coisa
espr
aiada e contaminada por temas que não são da própria arte
(
COCCHIARELE,
2007, P, 16).
Assim, a Arte Contemporânea desempenha funções diferentes, utilizando, para
isso, novos suportes de representação, além dos meios tradicionais, gerando novos
tipos de relações com a vida. Nas palavras de Cocchiarele, “É como se, num processo
de integração entre arte e vida, a arte tivesse doado tanto sangue para a estetização da
vida que ela se
desestetizou”.
(2007, p.39). Na atualidade, com o mundo em rede, a
influênci
a na vida cultural é decisiva, não sendo mais permitido um desenvolvimento
isolado em nenhuma atividade: ao contrário, hoje são impostas ações interdisciplinares,
com vistas a um desenvolvimento global. O ser humano vai se modificando, se
reconstruindo, se recriando à medida que os meios de comunicação e expressão, cada
vez mais mecanizados, o atingem de forma mais profunda. A televisão e o Computador
(internet), es
te
s
mecanismo
s, cada vez mais avançados tecnologicamente, invade a
vida contemporânea e vai, ao mesmo tempo, distanciando-se e aproximando-se das
múltiplas possibilidades de se jogar nas fantasias e nos embalos da imaginação, o que
também incentiva as mudanças. Se entendermos esta “invasão” como algo positivo,
semelhante abertura proporciona um terreno fértil no que se refere à mudança de
valores, de critérios críticos em face de mudanças de comportamento perante o mundo.
Assim, “(...) como os problemas e as formas artísticas (...), se interpenetram de maneira
fecunda (...) de país a país (...) for
ma
-se um estilo internacional; a noção de arte
mundial assume contornos nítidos.” (
PEDROSA,
1986, p. 230). Nessa época as
mutações ocorrem em ritmo acelerado, tanto no campo tecnológico como no social e
humanista, o que demanda, do homem contemporâneo, o desenvolvimento da
capacidade de executar ações planetárias em todos os sentidos.
São mudanças complexas em vários campos do saber, que nos afetam
cotidianamen
te. Não se trata de um campo de resultados únicos, mas de um espaço de
luta entre linguagens e interpretações, muitas vezes tendenciosas, seja na ciência, na
cultura, na estética ou na arte. Porém, pensando
-
se pelo lado do contato humano, estas
110
multiplicid
ades dos meios de comunicação criam restrições ás relações, em razão de as
pessoas estarem, muitas vezes, “enclausuradas” dentro de seus lares, destruindo os
possíveis vínculos sociais.
A arte, como se sabe, não vai além das inquietações de seu tempo, coloca o
homem diante da realidade que a gerou, mas, através de ligações, mesmo que tímidas,
tenta “(...) abrir algumas passagens obstruídas, pôr em contato níveis de realidade
apartados, uma vez que o vínculo social se tornou um produto padronizado.”
(BOURRI
AUD, 2009, p. 11).
As obras de arte contemporânea abriram-se “(...) a um mundo plural e
polissêmico, sem se deixar dominar ou estigmatizar, refutando normas do agir e do
fazer, já bem distante das restrições disciplinares modernas”. (CANONGIA, 2005, p.11)
.
O fazer artístico, hoje, deriva de uma atividade fecunda de conhecimentos das práticas
sociais, contrária à padronização de comportamentos impostos pela dia. A arte tem
agora um novo “estatuto” de representação, rompendo com a ideia da obra estática e
preocupando
-se com um relacionamento direto com a vida, com o propósito de desviá-
la do domínio da imagem pura e de desmistificar o culto da obra. Nas artes plásticas,
como também na música, a construção poética da obra tem uma intenção clara, o
propósito
de abrir de vez a caixa de pandora
10
e mostrar a todos a real situação política
e social do país.
Essas transformações ocorrem em várias localidades, muitas vezes de forma
totalmente diferente, mas com um mesmo propósito: colocar a arte a serviço da vida,
acima de tudo da vida urbana, assumindo uma nova função. E seu modo de
apresentação tem agora uma durabilidade maior para ser vivenciada ou fruída, como
uma brecha a gerar infindáveis discussões; é um símbolo real do histórico social a que
“pertence” o artista. Bourriaud observa:
10
(...) Epimeteu caracteriza-se pela irreflexão e insensatez. Apesar de advertido pelo irmão para não aceitar qual
quer
presente de Júpiter, não pôde resistir quando o pai dos deuses lhe ofereceu Pandora como esposa. p. 61. Ibidem, (...)
Chamaram
-na Pandora, que significa “aquela que tem todos os dons”. Júpiter entregou-lhe uma caixa fechada e
enviou
-
a à terra para s
eduzir os mortais e levá
-
los à perdição (...). Pandora tornou
-
se esposa de Epimeteu (...) recebeu
a caixa de pandora e abriu-a. Imediatamente todos os males espalharam-se sobre a humanidade”. In CIVITA, V.
Dicionário de mitologia greco
-
romana
. 1976, p.143.
111
(...) ela cria espaços livre, gera durações com um ritmo contrário ao das
durações que ordenam a vida cotidiana, favorece um intercâmbio
humano diferente das “zonas de comunicação” que nos são impostas
(...), a arte contemporânea realmente desenvolve um projeto político
quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relações.
(
BOURRIAUD,
2009, p. 23).
O fazer artístico e cada artista, à sua maneira, tomaram novos rumos. Hoje não
mais a necessidade de o artista confeccionar a sua obra com as próprias mãos; é
“(...) a invenção ou a ideia que qualifica a autoria (coisa mental)”. (COCCHIARELE,
2007, p. 33). O uso de outros profissionais para executar a sua obra não faz perder a
autoria.
É importante compreender essas mudanças para se conseguir penetrar no
momento da história da Arte que está em foco neste trabalho, quando se deu a
utilização do sangue como matéria para a construção do objeto artístico.
O ano de 1968 representa um marco nessa nova maneira de ver e sentir o
mundo e o cotidiano. Foi um ano de mudanças políticas sociais e artísticas tanto no
Brasil quanto na Europa e nos Estados Unidos, estimulando grandes transformações no
modo humano de atuar no mundo.
Segundo Golberg,
(...) assinalou, prematuramente, o
início da década de 1970 (...)”(2006, p.142) e as conquistas sociais mundiais de então
ainda repercutem na sociedade de hoje. Foi uma luta pela igualdade de direitos civis,
pela liberdade sexual, pelo reconhecimento de lutas estudantis e diversidades cult
urais.
Este clima de lutas e revolta estendeu-se por todo o ano, mas foi o mês de maio que
tomou força e, por meio da televisão, disseminou
-
se de um país a outro.
No Brasil, a música de protesto com o
slogan
“É proibido proibir”, apresentada no
Festival Internacional da Canção da Rede Globo de maio de 1968, de Caetano Veloso
,
foi vaiado pela plateia. Em resposta, Caetano pergunta: “Mas é isso que é a juventude,
que diz que quer tomar o poder?
” E, em outubro daquele mesmo ano, os estudantes da
UNE são presos na cidade de Ibiúna, pelos militares, que ficaram no poder por mais
dezessete anos. Na França, o que provocou a revolta foi o fechamento da Universidade
de Nanterre, nos arredores de Paris, em 2 de maio. Os estudantes protestavam
contra a burocracia da instituição e contra a proibição de se dividir quartos com
colegas do sexo oposto. Em pouco tempo, a revolta ganha apoio dos estudantes da
112
Universidade de Sorbonne, invadindo as ruas de Paris. Os manifestantes tinham
como arma a palavra, espalhando, em cartazes e pichações, frase do tipo: “ceder
um pouco é capitular muito” ou “A humanidade será feliz quando o último
capitalista for enforcado com as tripas do último esquerdista”, inspiradas pelo
pensamento de intelectuais como Herbert Marcuse (1898-
1979)
e Guy Debord
(1931
-1934). Os trabalhadores das fábricas, com o apoio dos sindicatos, também
aderiram à revolta, solicitando melhores salários e condições de trabalho. Esta
revolta foi apoiada por artistas locais e cineastas, inspirando composições musicais
com “Revolution”, dos
Beatles,
e “Street fighting man”, dos Rolling Stones. Nos
Estados Unidos, à revolta das comunidades negras, gerada pela morte de Martin
Luther King (1929
-
1968), somou
-
se outra, envolvendo toda a população americana,
depois a televisão ter exibido imagens da ofensiva do Tet, em que os vietcongs
atacaram as tropas americanas. Chocada, a população passa a rejeitar a Guerra:
Vietnã X EUA.
Na Tchecoslováquia e no México, os acontecimentos foram mais serenos. No
primeiro país, os ideais do “socialismo humano” de Alexandre Dubcek (1921-
1992)
foram impedidos por tropas soviéticas, num período que ficou conhecido como
Primavera de Praga. no segundo, à véspera da realização dos jogos Olímpicos,
durante os protestos inúmeros estudantes foram
agredidos, dissipando o movimento.
Esta forma de ver e estar no mundo gerou uma nova forma de arte, com o
ressur
gimento, no cenário artístico,
da
Performance
,
uma das vertentes da arte
contemporânea. Outra inovação é que, nos anos 1960, o sangue eleva-
se
à categoria
de elemento da arte, como matéria, tendo, muitas vezes, o corpo do artista como
suporte.
A P
erformanc
e, assim como o
Happening
e a Instalação
11
, tiveram suas origens
com
os Environments
12
(ambientes), práticas artísticas de exposição que surgiram
nos
11
A
Instalação
é (...) Uma prática artística cuja denominação nasceu nos anos 1970. (...) Pode-se defini-la como um
dispositivo plástico de objetos, de elementos multimídia ou não, investindo os recursos de um dado espaço
tridimensional. É truísmo dizer que, hoje, muitos artistas “instalam”. Desde muitos anos, o verbo hegemônico nas
artes plásticas é “instalar”. In NAZARIO, L. & FRANCO, P. Concepções contemporâneas da Arte. 2006
,
p.17. (...)
A instalação, portanto, é um cenário que constrói um disposi
tivo que é um mundo e pretende ser um mundo enquanto
tal, isto é, um conjunto que provoca uma cesura (sic), um corte com relação ao resto (do mundo). Ibidem, p.25.
113
anos 20, com os
espaços
Proun
(Projeto para a afirmação do novo)
de
El
Lissitzky
, e no
fim dos anos 30, com as exposições surrealistas.
A prática do
Environment
é ligada ao
Happening
por usar os mesmos elementos:
teatro, artes visuais e música. O que difere um do outro é que, de um modo geral, na
Performance,
o público não participa, enquanto no
Happening
a participação do público
ocorre de forma mais ativa. É aceita como meio de expressão independente a partir das
décadas de 1960 e 1970, quando do desenvolvimento da Pop Art, do Minimalismo e da
Arte Conceitual.
Allan Kaprow (1927-2006) usou dessa prática nos finais dos anos 1950 e, a esse
respeito, diz que “a Instalação é cenográfica, enquanto a
Performance
é teatral (...). O
E
nvironment
era cenográfico por vestígios, mas favorecia o procedimento do fazer e do
fabricar, não o resultado final” (apud NAZARIO & FRANCO, 2006, p. 18). Kaprow
reprovou ainda a instalação por julgá
-
la intelectual. O
s Environments
não transportavam
do ateliê o objeto pronto; encontrado o lugar, dava-se o cruzamento entre objetos,
materiais, ambiente e, com a presença do humano, os elementos transformavam-
se em
outra coisa, em obra de arte.
Nesse novo momento da História da Arte, as Instalações, os
Happenings
e as
Performances
ampliaram
-se, utilizando em suas práticas, na tentativa de se
relacionarem com as coisas do mundo, materiais tanto do mundo natural quanto do
cotidiano urbano (pós
-industrial).
À medida que a Historia da Arte evolui, a intelectualização do real e a utili
zação
de diferentes materiais e suportes modificam-se, a ponto de usar a matéria para
representar
-apresentar a si mesma, na busca do retorno da “realidade”, em um jogo
que se através da representação do signo e a sua apresentação
concomitantemente.
Out
ra realização emblemática desta evolução foi a Body Art, com o
Actionismus
,
centrado nas P
erformances
ritualísticas de um grupo de artistas de Viena. O
Acionismo
Vienense caracterizou-se pela concepção do uso da violência contra o próprio corpo
12
O conceito de
Environments
envolvia a intenção de escolher lugares alternativos e seus espaços de exposição (ou
ações artísticas). Se a
instalação
contemporânea precisa de uma investigação de seus antepassados históricos é
porque estes (os
environments),
na sua ambição originaria, continham um desejo de espalhamento do produto
plástico que levava o projeto ambiental a âmbitos críticos. A passagem da denominação
environments”
à
denominação “instalação” parece consagrar uma mudança de rumo. Ibidem p. 18
114
como obra de arte, colocando a negação absoluta da estética, do artista e da própria
arte sob o lema da redenção e da liberdade, assumindo, assim, um papel transgressor
e, ao mesmo tempo, messiânico e redentor.
O referido grupo dogmático desenvolveu-se em Viena entre 1965 e 1970 e teve
o artista Hermann Nitsch (1938) como um de seus protagonistas. O objetivo era
transgredir, quebrar os tabus corporais e mentais, numa busca catártica de libertação.
O próprio corpo era o suporte da obra e os materiais usados eram instrumentos de
corte e perfuração; as facas se convertiam em pincéis; e principalmente o sangue e as
secreções do próprio “corpo
-
suporte” eram o material para a construção da obra. Desse
modo, o corpo era a pintura, a escultura, enfim, o objeto plástico, renunciando assim, a
qualquer tipo de mercantilização da obra, criando a ideia de destruição como elemento
fundamental.
Hermann Nitsch, nos anos de 1960, criou um projeto de “arte total”, atuando com
outros jovens artistas também motivados pela rejeição e pelo puro ódio. Para Hermann,
tanto na arte como na ciência, a evolução acontece com mudança de paradigmas, que
geram novos paradigmas a serem compartilhados por uma comunidade, momento em
que os tipos vigentes entram em crise, e um novo paradigma se organiza. Dele, toda
uma comunidade de intelectuais se apropria e se encarrega de transmiti-lo a gerações
futuras, o que corresponde a um acontecimento que, nas artes, se nota com mais
“facilidade”, especificamente nas artes plásticas, após os anos de 1960.
A arte desenvolvida pelo Acionismo vienense objetivava envolver e
estimular todos os sentidos, utilizando diferentes linguagens, além do sangue
materializado. Sua intenção era representar uma estética semelhante à dos rituais de
sacrifícios. Foi nos fins de 1962 que Hermann, com a colaboração de Otto Muhl (1925),
pintor vienense, iniciou um processo performático, 1
st
action,
Vienna, 1962 (Fig. 14, p.
115
), com 32 minutos de duração. Vestido numa túnica branca, preso à parede em
forma de cruz por argolas de corda, é banhado com sangue por seu amigo Muhl. Foi a
partir dessas primeiras performances que amadureceu a ideia da criação do Teatro de
Orgia e Mistérios.
115
Fig. 14
-
Hermann Nitsch
“ 1
st
action”
Vienna, 1962
Hermann, na busca de uma pintura espontânea e gestual, após vários anos de
pesquisas e cada vez mais preocupado em criar uma obra com estas características,
funda o Teatro “Orgiástico” (Teatro de Orgia e Mistérios), desprezando os tabus sociais.
Talvez aqui seja necessário falar um pouco do artista. Nascido na cidade de
Viena, Áustria, em 1938, teve uma infância marcada pela morte e crueldade, numa
Viena destruída pelas bombas e tanques de guerra. Juntamente com sua mãe, vai para
a Suíça, um país neutro, onde ouviu calorosos discursos sobre arte contemporânea e
sobre artistas americanos e europeus. Retornou a Viena, Áustria e, com vinte anos de
idade, havia se formado na “Faculdade de Viena Gráfica”. Em suas buscas, explorou
a arte, a filosofia, a literatura e a música. Traba
lhou como designer assistente no Museu
de Tecnologia de Viena, paralelamente preparando-se para sua primeira pintura ação,
P
erformances
. Após a sua primeira aparição em público com os Accionistas, começa
cultivar a ideia de criar um “evento” com duração mais longa. Participou de duas
Documenta Kassel: Documenta 5 e 7. Em 1972, na Documenta 5, Hermann Nitsch (e
os Accionistas de Viena) apresentaram-se para uma plateia internacional. Na
116
Documenta, 7, em que concorriam a prêmios, o grupo de Viena foi derrota
do por Josef
Beuys (1921
-
1986).
Hermann Nitsch tornou-se um dos mais importantes artistas da segunda metade
do século XX, mas o reconhecimento de seu trabalho na Áustria aconteceu na
década de 1970, com as medidas de liberação que foram implantadas. E
sse
reconhecimento se refletiu em inúmeras homenagens e prêmios oficiais, porém o artista
foi confrontado por uma campanha de difamação sem precedentes entre artistas vivos.
É importante lembrar que Hermann foi condenado a uma pena de prisão e forçado a
de
ixar o país, a Áustria, logo após suas primeiras
Performances,
por causa de seu
protesto contra as estruturas sociais implantadas em consequência da Guerra Fria.
Como artista, Nitsch sempre enfatizou a importância de se manter em sintonia
com a sua terra, com a vida simples, com sua Weinviertel. E foi nessa região, no
castelo de Prinzendorf, situado a poucos quilômetros de Mistelbach, que encontrou o
seu próprio "
Iifeworld
" (vidamundo).
A cidade de Mistelbach testemunhou a criação de uma forma completame
nte
nova de museu regional, o Museu Hermann Nitsch, também conhecido como Museu
Mistelbach Center. Hermann criou no interior do prédio a sua casa, um mundo artístico,
nas oficinas desativadas da antiga fábrica Heger de máquinas agrícolas, um tipo de loja
de ferreiro que funcionava desde o século XVII. Ali funcionava também um centro
escolar de medicina e hoje é o quarto novo museu na Baixa Áustria. Nitsch obteve
amplo apoio da Província da Baixa Áustria para a criação do Museu e a cidade de
Mistelbach, que, durante muito tempo, foi uma região de fronteira e definida como tal,
hoje reivindica uma posição nova e promissora no seio da Europa. Outro detalhe
importante é que o vinho é um produto cultural da região, e Hermann Nitsch se apropria
dele em sua obra,
criando um elo de sintonia com a terra “local”.
O texto de Christian Resch, à página 16 do Catálogo de 2007, do acervo do
Museu Hermann Nitsch, traz a ideia de “Ressurreição!”. Esta ideia serve bem para
definir o trabalho do artista que pode estar relacionado com a ressurreição de toda uma
região
- a Áustria. “De uma região que foi muitas vezes definida como sendo "situada
em algum lugar atrás de Viena", que está agora a desenvolver-se em uma área-
chave
da Europa Central e passando por uma metamorfose que irá vê-lo emergir como
117
multicoloridas borboletas, local de prosperidade econômica, artística e cultural, variada.”
Essa necessidade de ressurreição da cidade-local pode ser encontrada nas obras do
Teatro de Orgia e Mistérios.
Fig. 15
-
Hermann Nitsch
– “
Painting Performance”
(pintura
performance
)
Vienna Seccession, 1987.
Fig. 16 - Hermann Nitsch
“Litografia”,
1984
folder “Arquitetura do Teatro de
Orgia e
Mistério
Teatro III -1
06x75cm
Foto de
Fred Jahn
Viena, 1992.
Nos espetáculos do Teatro de Orgia e
Mistérios, as obras são planejadas
como imagens, não são criados ao
acaso, ou sobra de uma ação.
118
Nos espetáculos do Teatro de Orgia e Mistérios,
utilizavam
-se restos de animais e
de sangue, num projeto de
“(...) Cerimônias, mistérios (...
), (GOLDBERG, 2006, p. 153).
O caráter definitivo dessas ações concretizou-se em 1981, e a proposta era
proporcionar uma interação do indivíduo consigo mesmo, o que somente era capaz de
se cumprir com a ação da sua dor e desejo misturado aos objetos num estado de
embriaguez, “permeando em mim, e através de mim”. Para Hermann, o envolvimento
do corpo com o sangue, além dos outros elementos orgânicos do animal, atuaria como
um fio condutor da liberação das energias reprimidas e também como um ato de
purificação através do sofrimento.
Fig. 17
Hermann Nitsch
-
“122
nd
action
-
Burgtheater, 2005
A música é apenas mais uma linguagem que integra o Teatro de Orgia e
Mistérios, assim como o desenho, a arquitetura e o roteiro. a pintura tem um papel
119
fundamental, pois atrai o sentido de visão, que é o primeiro dos cinco sentidos a reagir
a um estímulo, conduzindo aos outros sentidos: audição, paladar, olfato, tato. Diante
desta afirmação, a pintura, na obra de Nitsch, é mais importante que a música, mesmo
que este último elemento tenha um
status
mais elevado, por ser capaz, em outras
situações, de levar o humano a “viagens” de sentimentos íntimos.
Essas pinturas não são concebidas por meio de um processo silencioso e
meditativo como normalmente é a pratica de um artista, que se tranca na solidão de seu
ateliê, mas, ao contrário, são o resultado de uma Performance de pintura. O sangue
usado num primeiro momento seca e uma coloração marrom; em seguida, aplica-
se
outro pigmento vermelho, cuja cor permanece inalterada. A esse respeito comenta
Hermann: ()
...as minhas primeiras imagens desenvolveram-se através de uma gama
de cores. As minhas pinturas são desenvolvidas em ações, retirei vários
tons, usados como uma substância ... a cor de carne, sangue, intestino
tornou
-se essencial. Os tons de vermelhos tornaram-se dominantes...
tudo centrado na cor do êxtase, do sacrifício, da paixão, do sangue, da
carne ... (NITSCH
, 2007, p.232
. Tradução nossa
)
Fig. 18
-
Hermann Nitsch
– “
80
th
Action,
3-
day play
”,
(3º dia de jogo)
,
1984
.
120
No Teatro de Orgia e Mistério, as P
erformances
eram ou são “pinturas
gestuais” resultantes de uma “ação”, uma arte que soma outras linguagens, criando
a expressão artística. Estimulado pelos sentidos, o espectador comporta-se ora um
consumidor passivo, ora como um testemunho envolvido num volume de sangue
que verte. O participante da situação hesit
a e, ao envolver
-
se nesse processo, se dá
um novo sentido, transformando-se em co-autor, co-produtor, através de suas
sensações “ocultas” no inconsciente, assumindo atitudes que se convertem em
formas que inspiram exemplos sociais.
Entende
-se que, nesse “intercâmbio”, ao participar desta atividade artística, o
espectador estabelece de antemão um diálogo de duplo sentido: percebe-
se,
comenta
-se, desloca-se no espaço e no tempo da realização do “evento”. Nesse
momento, ele estabelece uma troca com as ações que geram a
performance,
que
proporcionam a abertura das pequenas “fendas” internas no inconsciente do
indivíduo, pelas quais o participante poderá libertar todos os seus “demônios”, os
seus desejos, as suas “loucuras”. Como comenta Bourriaud:
(...) a obra de arte representa um interstício social. O termo interstício
usado por Karl Marx para designar comunidades de troca que
escapavam ao quadro da economia capitalista, pois não obedeciam à
lei do lucro: escambo, venda com prejuízo, produções autárquicas
etc.
(...) maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema global,
sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema
(...). (2009, p.22).
São “simulacros”, emoções originadas de um estado de êxtase, exteriorização
de sentimentos adormecidos no “interior”. O participante, espectador ativo,
consome na obra o seu mundo, apropriando-se deste momento como algo sagrado.
Bourriaud (2009) observa que este processo é uma abertura para acolher a
experiência do observador, como uma película mental, um conjunto de informações
que lhe desperta na memória como uma seção psicanalítica.
121
Fig. 19
-
Hermann Nitsch
“ 2
nd
action”
-
Vienna, 1963.
A princípio as Performances de Nitsch se restringiam a pequenos espaços
privados; posteriormente as suas apresentações “invadem” os espaços públicos, além
de museus e galerias. Após a compra do Castelo de Prinzendorf, “O Teatro de Orgia e
Mistérios” adquiriu um novo formato, com apresentações de duração bem mais longa.
A inauguração do Museu, patrocinada pelo governo austríaco, se deu no ano de
1998, com uma grande
performance
- além de grande no sentido de espaço, também o
foi na questão de tempo, com duração de seis dias. Foi prestigiada pelo chanceler
austríaco, além de outros ligados a este governo, que se entusiasmaram com o
trabalho, que mescla mito e realidade, na busca de liberdade interior.
Nas obras de Hermann Nitsch, o sangue é a matéria, um elemento pronto com
suas leis, com suas cláusulas, apresentando o seu poder de vida e morte. Aparece
como embrião artístico, impondo o peso da autoridade ou da sua significação perante a
“tradição”, exigindo do artista atitudes audaciosas e de obediência. Trata-se de uma
obra que nasce num determinado tempo histórico, gerando uma situação que não é um
reviver da história, mas uma apropriação dela para extrair elementos que a nutram e
sustentem a “ação”, fixando valores “intemporais” para o futuro, valores universais
infindáveis. Através de seus valores, a obra sugere ao contemplador formas múltip
las
de interpretação.
122
Fig. 20
-
Hermann Nitsch
“Action, 3
-
day play”,
(3º dia de jogo)1984
O sangue é um elemento que, pelo seu valor na vida, não faz parte do material
usual na arte. Porém, desde o surgimento da representação pictórica, na Pré-
História,
vem sendo apresentado-usado, ora de modo implícito, ora explicitamente na obra em
sua “fisicidade”. E foi na contemporaneidade, neste caso nas obras de Hermann Nitsch,
uma vez mais usado na sua forma material, firmando o seu caráter espiritual,
assumindo o seu lado “mágico” e dando à obra uma energia cósmica “sobrenatural”: é a
“cola” essencial para a comunicação da ideia do artista. O sangue, neste ca
so, constitui
um elemento que se apresenta como forma e conteúdo ao mesmo tempo. Os objetos
de arte de Hermann Nitsch parecem obedecer às leis físicas do sangue, vida-
morte,
mas o seu uso é de forma não-natural, mas em prol da arte. Por outro lado, també
m
123
pode ser “sentido”, entendido, como conteúdo que resulta de sua matéria, criando
linguagens. Bourriaud observa:
(...) expõe o inconsciente da produção humana e o eleva á condição de
um material de construção (...) sua arte esta “fora de qualquer rela
ção
de mercado, entre cliente e fornecedor”. O trabalho de Nitsch representa
o encontro do universo da arte com universo do homem, cruzando num
espaço repleto de símbolos e energia, onde o sangue, o sacrifício animal
é o agente condutor desta troca (...).
(2009, p.89
-
92)
Na obra de Hermann Nitsch, o ato de representar poderá ser
entendido como a substituição de apresentar. O animal, quando trazido por ele e pelos
colegas, é pendurado de cabeça para baixo, de forma que parece estar crucificado.
Com um grande corte na frente do animal, esvaziado de seu sangue, tiram-lhe as
vísceras e outra quantidade de sangue jorra de dentro do animal, boi ou porco,
banhando também o modelo, que se encontra na mesma posição, ou seja, crucificado.
Este recebe parte desse
elemento orgânico, sangue, misturado a vinho tinto e vinagre.
Fig. 21 detalhe
Fig. 21 detalhe
Hermann Nitsch
-
122
nd
Action , Burgtheater, 2005
124
Com esta ação, a “fé” de Hermann, concentra-se na exteriorização das
en
ergias reprimidas, como um ato de purificação. Lembra a obra de Francis Bacon
(1909
-
1992),
“Cabeça entre os quartos de um boi” (1954), e enfatiza que o ato de
matar animais foi eliminado da experiência moderna. Nas suas obras é do corpo
que exalam as possibilidades de transcendência da memória, a busca da
inconsciência adormecida. Goldberg comenta:
(…) Os trabalhos do artista austríaco Hermann Nitsch, iniciados em
1962, envolviam ritual e sangue, tendo sido descritos como “uma forma
estética de oração”. Antigos ritos dionisíacos e cristãos eram
reencenados em um contexto moderno, supostamente ilustrando o
conceito aristotélico de catarse através do medo, do terror e da
compaixão”. (GOLDBERG, 2006, p.153).
Hermann,
nesse
processo
artístico
em que mistu
ra
o sangue com outros
elementos
naturais,
transformando
-o em um só corpo, cría um corpo real. Nas
palavras do próprio artista: “
quando
utilizo o
sangue
, derramo
na
superficie da
imagem e misturo com os pigmentos;
não
vejo
isso
como
efeito
de pintura, mas
como uma entidade real que
tem
consistencia
física
,
cor
,
cheiro
…” (NITSCH, 2007,
p. 90). O efeito colateral desse processo de provocação é a relação entre míticos e
rituais de sacrifício, que estão enterrados no inconsciente coletivo. Para ele, a razão
da
prática de rituais de sacrifício sadomasoquista, consiste na necessidade de que o
acontecimento seja “puro”, para que aja a comunicação com o inconsciente.
É de conhecimento geral que as artes performativas são uma cultura orgânica
no espaço. Com suas práticas, Hermann Nitsch, tem a capacidade de interferir em
todas as camadas da sociedade. As suas atitudes,
performances,
ações corporais
radicais dentro do sistema social, são uma busca de “reviver” (simulacro) situações
traumáticas (guerra), místicas de um povo, através de experiências em que o
sangue é um elemento indispensável para transportar o observador ao seu
inconsciente adormecido.
Após a Segunda Guerra Mundial, acontecimento sangrento da história da
humanidade, que deixou um saldo altíssimo de mortos, entre os doloridos anos de
125
1939 e 1945, foi possível ver a capacidade humana de reinventar, reconstruir, fazer
ressurgir da destruição, sobre a sombra do drama, das catástrofes e de múltiplas
dificuldades. O corpo é o veiculo que conduz a essa “estrada” da reconstrução.
Através de uma encenação concreta, transforma-se o corpo “vazio" (esquecido)
num corpo presente, social, orgânico, político.
Nesse sentido, as ações de Hermann estão associadas aos rituais, aos
“transes”, gerando, aos olhos desprepa
rados, a criação do teatro da crueldade, pois,
entre outras barreiras que se rompem, o artista parece fugir da lógica racional ao
evocar o mito dionisíaco
13
em prol da liberação de um estado mais puro e “primal”,
que lembra a prática do sadomasoquismo.
Sad
omasoquismo é uma palavra que Hermann utiliza com frequência na
publicação de 2007 do Museu Hermann Nitsch. É definida por ele como um costume
imprescindível para os rituais pagãos em homenagem à Mãe Natureza, consistindo
na prática de autocastração, amputação de seios, talhos e autoflagelação do corpo
em prol da fertilização do animal da deusa.
Nas suas P
erformances
, as ões são como um ato de magia; distanciam-
se
da moral, transformam
-
se em outra ordem, “(...) expõem o inconsciente da produção
humana e o elevam à condição de um material de construção (...)” (BOURRIAUD,
2009, p. 89)
A arte de Hermann Nitsch se apropria de “coisase questões do mundo real,
articulando
-as com mitos e usando de diferentes linguagens: música, corpo, pintura,
animais, elementos orgânicos, o sangue, através de rituais sangrentos, no sentido
13
Paglia (1992) define o deus Dionísio como energia desenfreada, loucura, êxtase, histeria,
promiscuidade,
indiscriminação, empático, uma emoção simpática que nos leva ao encontro com outras pessoas, lugares ou tempos.
Apático à ideia ou prática, introduz na matéria movimento e energia, os objetos são vivos, e as pessoas bestiais. o
princípio
violento do culto de Dionísio, a sua origem é o
sparagmós,
que, em grego, significa “rasgar, despedaçar,
estropiar”. Para estes cultos, o corpo do “Deus” ou seu substituto, humano ou animal, é feito em pedaços, para serem
comidos ou distribuídos como sementes na vegetação. Acreditavam que comer a carne humana crua os levaria a
internalizar a divindade: “(...) A antiga religião de mistérios baseava-se na imitação do deus pelo fiel (...). Antes de
ser preso, Jesus rasga o pão da Páscoa para seus discípulos: ‘Tomai, Comei; isto é meu corpo’ (Mateus 26:26). Em
todo oficio cristão, hóstia e vinho transformam-se no corpo e sangue de Cristo, consumidos pelo fiel. No
Catolicismo, isso não é simbólico, mas literal. Transubstanciação é canibalismo (...). (
In;
PAGLIA,
C.
Personas
Sexuais
. Arte e decadência de Nefertiti a Emily Dickinson São Paulo: Cia das Letras,
1992, p. 98
-
99)
126
da construção de uma consciência coletiva, “uma arte para a vida real”. O seu
processo era, a princípio, orientado para a pintura, mas, depois, foi muito além; criou
uma nova forma de representação imagética - pintura de ação - para a ação em si.
Na década de oitenta deixou para trás definitivamente o apego à tela, penetrando na
“terceira dimensão”, que envolve a manipulação de objetos no espaço físico, atitude
necessária para a criação o
u aperfeiçoamento do “Teatro de Orgias e Mistérios”.
Outra artista performática ritualística é Ana Mendieta, (1948-1985), nascida
em Havana e exilada nos Estados Unidos em 1961, época da Revolução Comunista
em Cuba, durante o acontecimento que ficou conhecido como “Operação Peter Pan”
(realizado pelos EUA à época do início da Revolução para tirar milhares de crianças
de Cuba Radio Habana Cuba N-D). A solidão do exílio foi traumática, agravada
ainda pelo fato de ser mulher latino
-
americana e ambos fora
m como “sementes” que
germinaram em sua arte. Na sua trajetória de artista, realiza trabalhos nos EUA,
Cuba, México e Itália, ampliando suas atividades para espaços públicos e privados,
com a pretensão de atingir um público maior. Seu objetivo era atingir
os
“despreocupados” com os tabus que giravam em torno do corpo feminino,
questionando a inseparabilidade de nascimento, sexualidade e morte.
Sua poética é diferenciada, pois liga vida, corpo, sangue e outros elementos e
fenômenos da natureza; trata-se de uma arte de “terra-
corpo
-espírito”, pois faz
esculturas que remetem à origem do humano, construídas diretamente na terra,
com a qual o seu corpo em contato, deixando nela “as suas marcas”. Mergulhando
o corpo na natureza, criou “esculturas corporais de t
erra”, como se ela mesma fosse
um elemento da natureza: um corpo feminino, a fonte primeira de vida e
sensualidade, o que promove a criação de relações com antigas “deusas”
paleolíticas.
Em suas apresentações públicas enfrentou várias dificuldades. Era um
desafio mostrar obras radicalmente inovadoras, de caráter fortemente feminista, em
que está presente a violência masculina sobre o corpo da mulher, tal como se
também nos trabalhos de Gina Pane, Frida Kahlo e, de certa forma, de Marina
127
Abramovic (1946)
.
Mendieta, na década de 1970, desenvolve uma obra tanto “espiritual” como
física, que recebeu o nome de Silueta” (“Silhueta”). São esculturas realizadas em
areia, terra ou lama, imprimindo o seu corpo no solo, estabelecendo contatos
diretamente com a terra, deixando as marcas de si. São silhuetas nas superfícies,
interagindo com a natureza. O uso de elementos naturais e orgânicos, tais como o
sangue, o fogo, a água, a terra, a vegetação e outros, além de seu próprio corpo,
incorporam
-se de vez em sua obra. Esses elementos foram essenciais em seu
vocabulário de artista e de pessoa.
Ana Mendieta, assim como os outros artistas deste capítulo, desenvolveram
uma arte de “ação” corporal (Body Art), ritualística. Tanto os
ready
-
mades
de
Duchamp como as pinturas gestuais de Jackson Pollock (1912-1956) são fontes
importantes para a evolução desse tipo de arte. A contribuição de Duchamp, como
foi discutido anteriormente, se deu por ter incorporado os
Objets Trouvés
. Já Pollock
contribuiu com seu caráter cênico no ato de pintar, distanciando-se da forma
convencional dos pintores, abandonando os pincéis e optando por um processo de
respingar ou jogar a tinta na tela em uma atitude corporal. O gestual de seu trabalho
envolve todo o corpo, uma pintura de ação, fazendo uso de enormes telas, as quais
se transformavam em espaços cênicos, em que a expressão corporal do artista
tornava
-
se imprescindível para a realização do objeto de arte.
Na reflexão de Alan Kaprow, estas ações ocasionaram uma nova forma de
expressão, em que o movimento, o espaço, a vida e o corpo iriam mesclar-se na
arte do futuro. Após Pollock, o corpo do artista abriu-se para a arte que “cresce”,
“aventurando por outros caminhos”, uma arte mais “espiritualizada” que se deu a
partir dos anos de 1960.
Ana Mendieta anda por caminhos diferentes, apropria-se desse novo modo
de produção artística, tal como fez Hermann Nitsch. O inconsciente está
incorporado, migrando para um mundo “espiritual”, a sua “subjetividade”, um retrato
íntimo embriagado de emoções, mostrando seu entendimento de mundo. Questiona
128
a violência e a repressão da mulher perante o universo masculino, além do fato de
ter sido arrancada de seu “útero materno”, Cuba.
Ana desenvolveu a sua vida pessoal e sua trajetória de artista nos Estados
Unidos, explorando o corpo como uma afirmação de si mesma, que “perdera” a
identidade quando retirada de Cuba. Sua integração no ambiente se sob a forma
de ações que se articulam no espaço natural.
A força interior da alma de artista de Ana Mendieta, produtora de grandes
feitos e efeitos, favorecidos pelos objetos, pela natureza, acontecimentos exteriores,
dados pelo cotidiano, pela beleza ou pelos horrores da vida, convidam a
compartilhar ativa ou passivamente, uma vez que apresenta aos nossos olhos uma
inquietude, tirando-nos, mesmo que por alguns instantes, a tranquilidade, a
felicidade, a alegria, o humor, transportando-
nos para o nosso próprio conhecimento
de mundo.
É a própria Mendieta quem diz: “O ponto de viragem na minha arte foi o ano
de 1972, quando percebi que as minhas obras não eram suficientemente reais em
relação àquilo que pretendia que a imagem representasse” (apud ALMEIDA, 2001,
p. 342). Suas obras a partir de 1973, data do início de suas primeiras intervenções,
são ações em espaço público ou em locais fechados e, a um olhar descuidado,
“parecem” ações do grupo de Viena
(Actionismus),
em especial de Hermann Nitsch.
Mas a um olhar mais atento verifica-se que sua arte está misturada a sua vida,
incorporando
-se o seu físico e seu espírito para firmar a sua identidade. São
“ações” diferentes da magia do “Teatro de Orgia e Mistério” de Hermann Nitsch, pois
não buscam nos antigos deuses a sua poética, mas são ações solitárias, que
representam o “seu sempre”, suas inquietações feministas e sua trajetória, quase
que prenunciando o desaparecimento de sua figura nos trabalhos posteriores, nos
quais o que restará serão apenas as suas Silhuetas. São obras que hoje podemos
afirmar que se transformaram em mito ou em uma espécie de poesia testemu
nhada
pela natureza.
“Os efeitos realistas que pretendia obter nesses primeiros trabalhos são tanto
129
mais desconcertantes quanto, vistos retrospectivamente, parecem antecipar a sua
própria morte violenta, atirando-se de uma janela em 1985.” (ALMEIDA, 2001,
p.
347). A interpretação a princípio poderá girar simplesmente em torno da obra,
discorrendo sobre o material utilizado para a sua construção, o local da exposição,
condições climáticas, e outros argumentos que normalmente se utilizam para uma
análise objetiva do objeto de arte, mas o nosso sensório nos leva além, pois, se
considerarmos o histórico de vida da artista, a sua subjetividade em outras poéticas,
torna
-
se impossível deixar de fazer alusões a sua morte.
Nesta obra, Untitled (Hotel Principal)
Performances
-
Silueta”
(1973) (Fig. 22,
p.130
), Ana apresenta o seu sentimento de forma tão ousada que torna o seu
trauma ainda mais trágico. Um órgão sobre si, um mbolo de saudade, perdas, um
coração voltado para o “ontem” para o “antes” ainda “cheio” de “amor” e “angústia”,
repousando sobre o peito da figura morta. Conforme o comentário de Bell:
(...) Tais símbolos sintetizam uma possível direção para o feminismo.
(...) Ao chamar sua sucedânea corpórea de “ilha”, ela apontava para
Cuba, o país de que fora expulsa aos doze anos de idade (...), ela se
tornou o tipo de declaração essencial sobre a “mulher” que outra ala
mais teórica do movimento feminista estava procurando desmistificar,
sobretudo por meio de práticas documentais.” (BELL, 2008, p. 439).
O vigor da obra consiste na expressão simbólica, uma forma dialética que
estabelece uma discussão através da própria forma, gerada em uma “rede” não-
verbal; trata-se de significados emocionais, sentimentos dela, uma arte
“pessoalíssima”. O contato com estes objetos é passível de silenciar-se ou de gerar
interpretações infindáveis.
130
Fig 22
-
Ana Mendieta
Untitled (Hotel Principal)” 1973
Performance
, foto/document
ação: Hans Breder,
20 x 13 cm ¼ polegadas.
Este corpo manchado, da cabeça aos pés, pelo sangue, em uma linha
contínua, com uma pequena poça se formando na parte inferior das pernas e
131
escorrendo para a calçada, é o resto de símbolo de vida da mulher, morta em
razão de uma ação violenta.
A crítica social estabelecida pela artista passa pelo “filtro”
de sua subjetividade, num questionamento similar ao que podeser encontrado na
obra
Azione Sentimentale,
de
1974, de Gina Pane, desempenhando o papel ce
ntral,
para mostrar o seu sentimento perante os meios pelos quais a sociedade desenvolve as
“tramas” de suas atividades. Para que essa ideia possa ser compartilhada, a artista
apropria
-se de um “(...) local específico em que se desenrolam suas atividades,
segundo os princípios de um
materialismo
analítico
de inspiração (...)”. (BOURRIAUD,
2009, p. 81
-
82).
Um olhar mais cuidadoso possibilita até fazer uma relação entre a obra Untitled
(Hotel Principal) (Fig.22 p.
130
) e o prenúncio de morte da artista. Em sua última
performance
na calçada de Nova Iorque, Ana Mendieta, andando na contramão,
despreza o simulacro de suas ações anteriores e suicida-se. O acontecimento de 1985
deixa
-
nos um registro mórbido de sua derradeira
performance
, sua “despedida”.
Untitled
é como uma “profecia” desse ato, sua última ação, que é de provocar arrepios. A sua
singularidade e intensidade nessa silhueta, em que jaz um corpo já quase esvaziado de
sangue, fazem crer que ainda o sangue, mesmo que timidamente, brota deste corpo
para banhar a calçada e a si próprio. O questionamento implícito diz respeito ao valor
do corpo da mulher, um corpo com capacidade de esvaziar-se na nossa presença.
Nesta
performance
um tipo de horror, uma negação da vida. Por outro lado, a
denúncia, a cobr
ança de mudanças sociais.
Assim, como forma de expressar sua poética, Ana Mendieta usa o corpo, este
volume que está diante de nós, semelhante a nós, porém morto, impedido de seguir o
próprio destino. O conteúdo é a negação da vida, a morte, propondo a
in
separabilidade
de forma e conteúdo, como observa Pareyson em sua definição sobre forma e conteúdo
na obra de arte:
(...)
trata de inseparabilidade de forma e conteúdo, porque entre a
espiritualidade do artista e o seu modo de formar há, precisamente,
iden
tidade,
assim a própria matéria formada é, de per si, conteúdo
expresso. Como o modo de formar do artista é a própria espiritualidade,
traduzida em termos operativos e tornada gesto do fazer, assim não é
mais possível separar a consideração dos valores formais da
132
consideração do significado espiritual e vice-versa(...)”. (PAREYSON,
1997, p. 63).
No mesmo ano, a artista apresenta e representa um acontecimento que fez
vir à tona as suas inquietações sobre a condição da mulher no mundo, cujo
conteúdo e forma giram em torno do estupro seguido de assassinato de uma jovem
colega da Universidade de Iowa. Uma explosão interna se fez presente, após a
leitura desse fato, estupro, produzindo logo a seguir dois trabalhos performáticos
“Rape Scenes” (cena de estupro), um para o ambiente interno e outro para o
ambiente externo.
Em ambiente interno, Ana Mendieta cria uma
Performance
em que
permaneceu dias em seu apartamento recebendo visitantes: a obra era o seu corpo,
seminu, ensanguentado, “a sua cabeça sob uma poça de sangue e a parte inferior
do corpo nua, manchada de sangue, com tudo partido a sua volta. ”(ALMEIDA,
2001, p. 347) Foi uma representação viva do fato ocorrido, um convite a reflexões,
estabelecendo uma relação entre vida, morte e violência urbana
.
Ao enfatizar a violência, o ódio, o sofrimento, a humilhação, a presença do
sangue é uma sublimação da tragédia; reviver por dias o ato violento, com o
propósito de criar relações com sua natureza de mulher e provocar no outro este
sentimento torna o fato real; aos olhos do espectador, o fato torna-se ainda mais
dramático. Através de seu trabalho e com a convicção de compartilhar uma força
própria do universo feminino, Ana expõe as suas inquietações, suas angústias, sua
visão social e seu descontentamen
to em relação ao acontecimento.
É o que se pode verificar na imagem da
Performance,
de 1973 (Fig. 23,
p.133
), em que expõe a parte inferior de seu corpo e, entre as suas pernas, o
sangue escorre, documentando a violação e a agressão ao corpo feminino. Emb
ora
a cabeça da “vitima” esteja fora dos limites imagéticos da foto, a obra é um
documento entre tantos outros, que registra fatos com este contexto verídico.
133
Fig. 23
-
Ana M
endieta
– “
Untitled
(
Rape Scene
)” –
(Cena de
Estupro),
1973
- T
he estate of ana mendieta collection.
Courtesy:
gallery lelong, new york (A “herança” de
Ana Mendieta. Cortesia:Galeria Lelong)
Nessa obra, Ana Mendieta o trata de uma simples simulação e, sim, procura
expor, à sua maneira, o que esteve sempre no inconsciente das mulheres, como que
um “registro” formado pelo conhecimento e pela sua criatividade emocional e feminina,
algo “que vem de dentro”.
O sacrifício, a criminalidade, a opressão, a humilhação, tudo isso é para onde a
obra da artista, com suas ações performáticas nos transporta. Pode-se dizer que o seu
propósito é o de apresentar, além de outras insatisfações suas, a problemática
134
enfrentada pela mulher em um universo machista, onde a força bruta masculina opera
sobre a fragilidade física feminina. Até se poderia afirmar que Ana Mendieta impõe um
pecado incondicional ao homem, o “macho” de visões distorcidas sobre o que significa
a mulher no mundo.
Para a artista, o corpo, e, por extensão, o sangue que dele faz parte, é o
instrumento perfeito para buscar a própria identidade perdida no tempo. O sangue se
faz presente na maioria de suas obras, um elemento orgânico que, segundo diz Betina
Sor em seu blog (2009), é familiar na vida feminin
a.
O local também está ligado às suas formas de denunciar. Para a exposição-
criação, é de suma importância um espaço de produção convertido em ponto de
encontro, “(...), de simulação de liberdades e de experiências (...). Um modelo, um
laboratório, um espaço lúdico: em todo caso, nunca o símbolo de coisa alguma, e
menos ainda uma metonímia.” (BOURRIAUD, 2009, p. 82)
A obra de Ana Mendieta expressa uma consciência politica feminina, é o dialogo,
como afirma a artista, entre a paisagem e seu corpo, ou o corpo feminino, com base
nas suas próprias silhuetas. E expressa ainda a angústia de viver entre dois “mundos”,
duas culturas. Quando de sua segunda viagem a Cuba, em declaração a uma
entrevista, expressa a vontade de realizar trabalhos em sua terra natal,
em
razão de ter
sido tirada dali na pré
-
adolescência.
Aliás, em relação a isso, seu interesse não é o de manter contato com o outro; na
série
Siluetas
(Silhuetas), seu interesse é pela terra, que lhe fora negada quando era
ainda menina. Nesta série, atr
avés de seu corpo transmite emoções encantadoras, com
preocupações voltadas para o seu universo de mulher desterrada, de sua própria
identidade de mulher e artista cubana. Desde os anos de 1970, a sua poética está
voltada para uma dialética com a natureza, um meio que encontrou para transformar
em realidade a sua vontade de afirmar as suas raízes e de conceituar a cultura cubana.
E nessa busca de suas origens ou, na tentativa de recordá-las, além dos
mencionados elementos naturais, como o fogo, flores, terra, lama, folhas, o sangue,
existem segundo sua irmã, Raquelin Mendieta, relações com a religião afro-
cubana
Santeria’s orishas”; um sistema religioso que une crenças católicas com a religião
tradicional de Iorubá praticada por escravos e seus descendentes em Cuba,
135
semelhante ao candomblé no Brasil.
Nos anos de 1974 e 1975, apresenta seu corpo sobre a água do mar. Num
processo de construção de suas
Siluetas”,
Ana Mendieta permitiu a ação da natureza
sobre suas obras, ao mesmo tempo em que agia sobre ela, gerando ações recíprocas
sobre a prática artística. A natureza passa a ser co-autora de sua obra, como se pode
ver na imagem
da figura 24, p.
135
.
Fig. 24
-
Ana Mendieta
-
Silueta Works in Mexico,
( Silhueta trabalhada no México)
-
20x13 cm, 1973.
As obras de Ana Mendieta são um tributo à natureza, uma oração, um rito, uma
136
magia, em que a artista se oferece por inteiro para a terra ou deixa-se consumir pelo
peso do sangue, com suas leis de vida e morte. E com um olhar mais cuidadoso e,
andando na contramão, quebrando as regras de uma leitura objetiva sobre o objeto
artístico
, permitimos que estas obras movimente
os
nossos pensamentos, e, a cada
novo olhar sobre a mesma, descobri
re
mos outras possibilidades de interpretação. São
poemas visuais “carregados” de metáforas, gerando em cada pessoa um entendimento
que se soma a cada novo contato.
O objeto artistico de Ana Mendieta é o exteriorizar de suas angústias, carências
impossiveis de suprir, uma dor incurável, sem remédio. Mendieta apropria-se destes
sentimentos sem solução. A construção poética da obra da artista não “(...) é, assim,
consequência de algum impulso irreprimível para exprimir o que vai por dentro dela;
isso é elemento importante na formação da personalidade, mas se trata de ato psíquico
muito anterior ao ato estético criador.” (PEDROSA, 1986, p.15).
A sua subjetividade foi uma “conquista” contínua e
sua característica artística, um
território (um mundo) emblemático para firmar a sua existência de pessoa, de artista e a
sua forma de participar do mundo. A sua poética se deu pelo uso de seu corpo como
veiculo de expressão pessoal e social, dando ênfase sobre o corpo feminino,
desafiando a tradição masculina do nu feminino idealizado.
Outra grande artista performática foi Gina Pane (1939
-
1990),
nascida em Biarritz,
França. Como morou na Itália por um longo período, muitos lhe atribuem uma
nacionalidade í
talo
-
francesa”.
Sua primeira exposição individual foi realizada em 1966,
após a conclusão do curso na “École des Beaux Artse no Atelié d’Art Sacré Arnoldi”
em Paris (1961
-
63), conforme as palavras de Almeida (2001),
Pane inicia o seu trabalho como escultora em meados da década de
19
60, mas
muda a sua forma de expressão, construindo Performances, que punham em evidência
questões ecológicas de proteção à natureza, “um jogo entre mítico e estético” de uma
espiritualidade extremada. Tratava-se de um trabalho voltado para questões
ambientais, ligado à superação da lógica do objeto, misturando-se com o ambiente.
Nesse período, o tema ambientalista estava em primeiro plano e a artista estabelecia
um diálogo íntimo com a natureza, mesclado às suas preocupações c
om a conservação
e a responsabilidade ambiental. Essa arte de caráter imediatista convida o público a
137
confiar naquilo que afirma: as obras são invisíveis, mas existem. Na fig. 25, p.
137
, tem
-
se a performance de Gina, intitulada: “Num campo e com a ajuda de dois espelhos,
enterrei um raio de sol na terra” (GINA, apud ALMEIDA, p. 430). Tal
performance
foi
realizada ao meio
-
dia de 12 de julho de 1969, em Eco, na França.
Fig. 25
-
Gina Pane
- “
Enfoncement d’un rayon de soleil”, (Enterrando um
r
aio
de Sol)1969
-
Performance
,
Campo em
Eco, França.
O corpo da artista nessas primeiras
performances
nos é apresentado como
veículo de expressão, transformando
-
se, posteriormente, em suporte para as ações que
se sucederiam. Com atitudes nada convencionais, o seu corpo passa a ser um
elemento indispensável, isto é, o suporte, e o seu sangue torna-se a matéria da criação
artística. O corpo transforma-se em objeto de arte e isso é o que faz a obra de Gina
Pane ser atual.
Em suas obras indagava sobre os temas centrais de nossa civilização. No
entanto, foi nos anos de 1970 que sua estética masoquista a fez conhecida, com
suas ações enaltecidas pela consciência da auto-agressão e da dor, que tornam visível
a violência da vida contemporânea. Passa, então, a ser uma das figuras de maior
importância da
Body Art
.
138
A ação de autoflagelação a leva a produzir cortes em seu próprio corpo, a sua
carne picotada gerando dor e angústia, em meio à carga do sofrimento e utilizando
deste para exaltar “a morte” (a palavra morte, neste caso, é metafórica), como as dos
Santos expostos pela Igreja Católica, como relicários. Assim como os santos a artista
estabelece uma comunicação com o mundo por meio das feridas, ressuscitando na
Historia da Arte a dor e angustia. Enfatizando que o sangue é digno de ser
ressuscitado a qualquer momento no objeto de arte .
A arte corporal de Gina Pane é constituída de obras impactantes, de ações
enigmáticas. A artista utiliza-se de objetos familiares aos olhos do observador,
pr
ovocando
-lhe estranhamento e desconforto; apresenta-lhe, através do seu corpo, da
sua dor, do seu sangue, a sua forma de estar no mundo e de entendê-lo. É uma obra
complexa e dramática, cujo conteúdo não pode ser informado por meio de legendas;
uma arte que tem o objetivo de dialogar com a vida. Neste contexto, na obra
“Azione
Sentimentale” (Ação Sentimental
)
(Fig. 26
p.140
), o sangue que escorre(u) da(s)
ferida(s), num ritual que apresenta afinidades com o misterioso e com o mitico, exprime
também uma sensualidade iniciada, como um atributo à exigência plástica. Essa obra,
fruto de uma concepção plástica, exemplifica a preocupação extrema da artista na
busca da justa realização entre luz, corpo e espaço
-
ação.
Gina Pane escolheu a denominação "ação" para os seus trabalhos por
considerar que o termo
performance
era demasiado demonstrativo e implicava uma
certa teatralização. No uso de seu corpo procurou reativar toda a potencialidade
metafórica da arte, uma energia, o princípio informativo da obra, em que o sangue e
seus signos, materializados no objeto artistico, caracterizam a obra, ampliando
universalmente a significação do relacionamento morte
-
vida
.
As atividades da artista são frutos de sua subjetividade no mundo objetivo da
natureza das coisas; em função dessa concepção, cria eventos únicos, impossíveis de
ser repetidos. Por trás dessa dialética, dessas ações sugere um novo comportamento e
um novo mundo. Nas palavras de Dehó (1998), trata-se de um tipo de arte ligado
aparentemente à espontaneidade e ao
contato direto com o público. São manifestações
artísticas autorreflexivas, que requerem uma atenta análise linguística. Neste sentido,
Gina Pane é como uma mestra para americanos como Chris Burden e para europeus
139
como Marina Abramovic. Ensina-lhes por meio de um trabalho que utiliza as estruturas
primárias do humano.
Tronche (1998), referindo-se às obras de intervenção na natureza, na paisagem,
afirma que os trabalhos de Gina Pane são de uma extraordinária energia psíquica.
na Body Art
trata
-se de testemunhar uma experiência interior, gerada no mais profundo
recanto do pensamento, tornando-se próxima da verdade e de uma consciência pura.
Explorando as categorias expressivas de diferentes fatos, ações efêmeras, rituais,
gerando feridas em que o sangue sublimação à obra, essa modalidade de arte leva
a reflexões e transcende a esfera do sentir, da capacidade da fala que conduz ao
entendimento, atingindo uma zona onde se cria uma linguagem nova e refletindo sobre
novos signos capazes de mudar as leis das emoções. Mostra-nos, enfim, as ações
unidas do visível e do invisível, o encontro das ações no corpo e sobre o corpo. Enfim,
na Body Art Gina Pane analisou de imediato as ciladas que ameaçam a nossa
civilização.
Entre tantas outras, evidenciou a insatisfação com a situação social
feminina no universo masculino.
As obras da artista são como “misturar” sangue ao leite, uma exigência sempre
crescente em Gina Pane, de dar voz a sua própria interiorização e dar ao público o que
se diz silenciosamente a si mesma. A artista, na busca de alcançar os seus
objetivos, cria, com suas
performances,
passagens, transforma formas de pensamento
em outra coisa dos sentidos, das emoções, um imaginário que evolui diante do
exercício do olhar de “uma verdade” sobre o corpo, a carne e o sangue. Assim
comenta Dehó:
“As ações de Gina Pane são exercícios espirituais à maneira de Santo
Ignazio di Loyola. E o tema do corpo, da anulação de trabalhos, com
Mon corps
.
Pierres de corps (1970), no qual a artista transforma par
te
da paisagem num duro deslocamento, se faz pedra entre as pedras,
transforma qualquer coisa de menos místico e silencioso, menos
presença camuflada em uma natureza selvagem e não humanizada, e
cada vez mais tentando a conquista de elevação espiritual. A dor é o
seu preço.” (DEHÓ, 1998, p. 24
-
26. Tradução nossa)
Vescovo (1998) nos diz que o trabalho de Gina Pane se apresenta como um
modo linguístico que nasce da artista possuída (“endemoninhada”/demoníaca) da
140
potencialidade física e da possibilidade de provar a potencialidade cerebral do ser,
desencadeando, a partir das forças do inconsciente, uma guerra entre o movimento
sádico e os prazeres masoquistas, entre fantasia e tendência libertina. O corpo da
artista está envolvido num jogo da vida da consciência e da memória”, porém não
como um instrumento de ação, mas também como uma possibilidade de deixar
evidentes aqueles processos psicofísicos que, na busca de significados de expressão,
em um cerimonial cruel, frio e cristalino, enfatizam a dor, o sangue, a ferida, uma
situação traumática de autoflagelação. Operando diretamente com e sobre o corpo, a
artista explora, através do sangue, o estigma (marcas), definindo como lugar da dor do
sofrimento, da desilusão e da esperança, do desespero e da ilusão, da loucura e da
lucidez.
Segundo Vescovo (1998), a felicidade, para Pane, é “ser humano”, pois, quando
a artista a marca do sangue junto à ferida, acorda do sono. A descoberta da ferida,
do sangue, é também a descoberta da cor. O vermelho do sangue move-se junto à “cor
do mundo”.
Fig. 26 detalhe
Fig. 26 detalhe
Fig. 26
-
Gina Pane
-
“Azione Sentimentale”
(
ação Sentimental) (1974)
Performance
141
Na figura 26, p.
140
, o corpo é parte de um todo que a artista não pode mudar,
não deve aceitá-lo como está. Assim, em Azione Sentimentale (Ação sentimental),
Gina Pane, vestida de branco, segura em suas mãos uma maço de rosas vermelhas e
de rosas brancas, o vermelho assumindo uma simbologia do sangue, morte-
vida,
amor
-guerra. Gina nos mostra que estas flores são meios também de procurar dores,
como se fossem um recipiente que contém sangue. O sangue é o “Coração Sagrado”
da vida interior, em meio às flores brancas, que simbolizam a “pureza”, a virgindade e a
luz.
Para Vescovo:
“Não dúvida de que entre estas cores se esconde uma simbologia
sensual, uma simbologia de aproximação com o outro, uma relação com
a outra parte de nós mesmos; consequentemente, uma abertura do eu
para liberar, em parte, a loucura que está dentro de cada um; a
sensualidade tem a ver com os limites ontológicos que são o nascimento
e a morte.” (VESCOVO, 1998, p.66
-
70. Tradução nossa).
Nas ações de Gina Pane, a gestualidade é uma representação da vida, tudo que
de possível para ser representado. A artista, através da sua subjetividade, buscava
ideias que pudessem ser comunicadas, deixando entrever que através de uma
ruptura, de uma ferida que a marca de seu sangue unia, estavam abertas as vias de
acesso para a construção do novo
.
Com o olhar atento, sensorial, podemos perceber que os gestos usados por
Pane conotam situações da vida, falam por meio de uma linguagem não-verbal, nos
contam que a dramaticidade dos gestos ou a auto-agressão produzindo feridas,
trazendo o seu sangue num ritmo seu, íntimo, uma gestualidade que não é uma
“dança”, ou gestos calculados, nada disso é um “evento” dionisíaco, mas sim situações
construídas através de um laborioso estudo, pois sabemos que a vida é farta de gestos
expressivos e gestos repress
ivos, gestos que dizem verdades e gestos que mentem.
A artista, com seu gesto, as posições e modos de comportamento que assume a
cada gesto, tem o corpo falando uma linguagem que antecipa e ultrapassa as
expressões verbais. Talvez Gina, nesse trabalho, além de questões sociais como a
situação da mulher, a liberdade e a repressão, mostre-nos o duplo que dentro de
142
nós, que se resolve normalmente com uma gestualidade artificial que não fala de nós,
mas simplesmente das nossas funções.
Fig. 26 detalhe
O duplo e a pluralidade presentes na vida urbana nos são apresentados por Gina
Pane nesta obra como um jogo que “desfala”, a cada momento, da paz, do amor, da
liberdade, da sensualidade, da virgindade, do feminismo, do machismo, do peso da
vida, desmistificando e deixando transparece o valor do humano, um simples e frágil
“cristal” que se relaciona com a sociedade. Sobre essa posição política do corpo
Ajzenber observa:
Essa política do corpo aparece nas contraculturas. O feminismo advoga
a reapropriação do corpo por parte da mulher, expropriado, como sua
propriedade, pelo machismo. Ela exige seus direitos corporais ao
autodomínio da reprodução, ao prazer, ao respeito diante da
mercantilização comercial e ao assédio sexual (...). Na base do
processo, o corpo constitui um dos eixos fundamentais da cultura atual.
Pode
-se dizer que expressa o perfil da civilização contemporânea.
(AJZENBER
G, 1998, p. 15)
.
Percebemos também que, nessa obra, Gina Pane se coloca como que em
“guarda”, contrária a unir-se ou retirar-se da vida em uma ação contínua, múltipla e
provocante, traduzindo o que ela entende de mundo: uma robótica cheia de gente em
143
nossa “vida”, o que equivale a funcionar, homologar toda a realidade, os afetos e os
desejos, “que não é outra coisa, que o reflexo dos mitos criativos da sociedade... O
corpo (a sua gestualidade), é, em si, uma escritura, um sistema de signos com que
representamos, com que traduzimos a busca infinita do outro...” (PANE apud
VESCOVO, 1998, p. 70).
Num outro momento de sua trajetória artística, na obra “Escalade non-
anesthesiée”
(“Escalada não anestesiada”), de 1971 (Fig. 27, p.
143
), na subida em
meio à do
r física, o “espírito” faz uma referência ao tema do martírio, equivalente àquele
dos santos, recordando a iconografia religiosa, num momento de espiritualidade santa,
como aqueles que a arte representou.
Fig. 27
-
Gina Pane
-
“Esclade
non
anesthesiè
e”
(Escalada não anestesiada) de 1971.
Performance
Nessa obra também fica subentendido que não se trata de uma interpretação
dogmática. É a artista que decide quando e como deixara o seu sangue visível e
escorrendo sobre o objeto de sacrifício. Para Pa
ne, nesse momento de sua trajetória de
vida de artística, o silencio do corpo equivale a silenciar
-
se perante um mundo cheio de
problemas para quem dele faz parte. Com as suas diferenças sociais “gritantes”,
silenciar poderá ser o fim da pessoa como cidadão, será diminuir-se a ponto de se
tornar tão pequeno que o sistema não o verá. A artista, ao manifestar o seu sentimento
de pertencimento ao mundo, gera uma situação contrária ao bom senso, misteriosa.
Porém o seu corpo não é abandonado a ele mesmo, possui um valor de origem, mas,
ao mesmo tempo, tem em si uma tatuagem que a cultura colocou: A
Performance
e a
144
arte corporal não trabalham com os corpos, mas com os discursos dos corpos”
(GLUSBERG apud DEHÓ, 1998, p. 26). Gina Pane também via claro este probl
ema:
Não é fácil ocupar-se do corpo como linguagem, pelo menos para quem
percebe que possui uma estrutura linguística. Mesmo aquele que
apresenta uma estrutura linguística. A mensagem corporal possui uma
massa e um peso, aquele que tentar desmitificá-
lo
provocara
dificuldades e alarme”. (PANE apud DEHÓ, 1998, p. 26. Tradução
nossa).
Gina Pane abandona as ações corporais no início dos anos de 1980. Cria, então,
uma nova forma de comunicação com o público e começa uma produção de objetos
escultóricos e desenhos. Os novos materiais são: o metal, o vidro, a madeira. Cria
também um ateliê de
Performance
junto ao Centro Georges Pompidou, em Paris,
iniciando o ciclo de
partitions”
(partições), um processo que explora as estruturas
geométricas do espaço. São i
nstalações construídas a partir de registros fotográficos de
suas “ações”.
O norte-americano Chris Burden foi outro artista que abriu possibilidades
múltiplas de dialogar com coisas da vida, interagindo com o meio ambiente urbano
através de suas
performan
ces
e usando o seu corpo como suporte. Sua atividade
artística também envolveu ações perigosas, autoflagelações, atitudes agressivas;
presença de objetos que colocam a vida em perigo, também foi utilizado como material
para a construção de suas poética. Na busca de expressar a sua visão de mundo,
oferecia ao público, a sua carne o seu sangue.
Burden nasceu em Boston em 1946,
estudou
artes visuais, Física e Arquitetura e,
no período entre 1969 e 1971, frequentou o curso de pós-graduação, recebendo o titulo
de Mestre pela Universidade da Califórnia, em Irvine. É figura central de uma geração
de artistas contestadores que rompeu com a dimensão do pudor, das regras, da
inacessibilidade e da alienação causada pelas restrições sociais. Em suas obras coloca
o corp
o como sujeito da ação, receptor e emissor de emoções. Não há separação entre
o artista e a obra, entre o sujeito da ação e o objeto de criação, fundindo
-
se numa única
coisa, o objeto de arte. A obra é o sujeito que não deixa de ser objeto e sujeito, não
importando o local e nem o tempo onde acontece a ação.
145
A “luz” permeia o trabalho de Burden. Na verdade, são “luzes” que fascinam pela
capacidade de elucidar aspectos da experiência humana e da consciência. Nas
palavras de Fred Hoffman (2007), as obras têm significantes diferenciados, abrem-
se
para uma ampla gama de significados e temas, incluindo mitos e metáforas para o
conhecimento, a autoridade das práticas institucionais, especialmente de ciência e
tecnologia, a política do espaço social e a guerra, as energias misteriosas das forças
naturais, e as questões da moral, da ética e do anverso. Todos esses temas têm como
parceiras a escuridão e a luz.
A obra de Chris Burden nos é apresentada como um objeto (situações -
ações)
sinistro, expondo o letal por meio da visibilidade e invisibilidade do potencial dos gestos
corpóreos e materiais nocivos à vida. A “luz” de suas ideias são especulações,
inferências, revelações e “iluminação divina”, como se verifica na performance Trans-
fixo, de
1974 (Fig
. 30
, p.
15
1
).
A sua obra apresenta/representa a relação que o artista constrói a partir de
conhecimentos adquiridos, evidências empíricas nas dimensões observáveis dos fatos,
acontecimentos de seu tempo (anos 1970). Não podemos negar que a dimensão
fundamental do seu trabalho se em razão do “exagero”, quando trabalhou o seu
próprio corpo, o seu sangue, com intensidade de vida e morte. A realidade crítica que
estabeleceu em suas
performances
-instalações, “ações” gerou recepções
atormentadas, com cenas de “fúria para o caos”, em que perigos, riscos, extremo
masoquismo, pura renúncia aos modos tradicionais de arte e sobrevivência, são
conceitos, princípios representados em seu trabalho, temas que dão qualidades e
condições a sua arte. No entanto, o perigo distingue as condições materiais do seu
fazer artístico, cujas pretensões violentas obrigavam a si mesmo e seus espectadores a
agir com responsabilidade e confiança mútuas.
Uma das características também de sua poética é a indiferença à dor, à tristeza,
ao medo, à fome e ao frio, resultando em percepções sensoriais de sua presença física,
exigindo do observador uma forma de sentir por outros meios, que não simplesmente o
olhar. Para tanto, a intenção é conduzi-lo a conectar-se a visibilidade para a
invisibili
dade (sensações). O espectador, diante de tais situações, poderia testemunhar
e validar como verdade o que está diante de si, ampliando a necessidade de novas
146
sensações, tanto corpóreas como psíquicas. Assim, esse espectador poderia perceber,
sentir e compartilhar com o artista e suas ações, as sensações de que algo estava
errado no mundo.
Kristine Stiles (2007) observa que Burden usou de seu corpo para realçar os
sentimentos, enfatizando os métodos visuais do saber (vivências, conhecimentos do
artista),
ativando a percepção do espectador, a sua “função do eu”. A autora chama a
atenção para o fato de que a percepção é um mecanismo do sistema nervoso central
que rege a consciência, por determinar e identificar os estímulos que permitem tomadas
de decisões necessárias ao humano. Essa é uma característica de que o artista faz
uso, mas que muitas vezes é esquecida por se tratar de receptores que estão
escondidos em nós.
Considerando estas reflexões de Hoffman (2007) e Stiles (2007), as obras de
Chris Burden focam na busca de verdades que constitui a força interior. O fundamento
ético de seu trabalho se baseia no vínculo de confiança que cria com o público,
estabelecendo um compromisso com a realidade social, compartilhando a
responsabilidade comum e a própria aceitação de seu “lugar no mundo”. O artista
elabora uma obra preocupada com o engajamento social, ignora as convenções e não
obedece a nenhum código moral ou comportamental. Pode-se afirmar que a ética de
Burden consiste em uma estética do conhecimento corporal com base nas verdades de
seus próprios pensamentos e sentimentos experimentais.
Na obra
Shoot
, de 1971 (Fig. 28, p. 1
47
), Burden nos apresenta o sangue como
objeto de arte, revestido da sua “acusação” implícita de responsabilidade. De fato, o
trabal
ho de Burden é repleto, conforme Stiles (2007), do tema de “responsabilidade” do
espectador, que interage com o espaço-ação, por meio da divisão de visibilidade e de
ação. A sua poética, no período, abordava com frequência temas de cumplicidade com
o esp
ectador em varias outras formas de
performances.
Na obra em questão, como em
outras apresentações potencialmente letais, é baleado no braço esquerdo por um
amigo, a quinze metros de distância.
Em vista disso, podemos pensar que o seu trabalho é um mecanismo de
sobrevivência, a “chave” do corpo, em que ele discute o sistema nervoso, as fibras
musculares e a circulação do seu sangue.
Segue o comentário de Stiles a respeito:
147
(...) O legado deste momento de consciência critica é representado mais
profundame
nte em sua performance
Shoot,
que é particularmente
relevante neste contexto. Para este evento, Burden encontrou um amigo
(...) disposto a “atirar” em seu braço a uma distancia de cerca de 15
metros, enquanto outros observavam o “crime” (STILES, 2007, p.
29)
Fig. 28
-
Chris Burden
- “
Shoot”
, 1971
Performance
Fig. 28 detalhe
148
O local da exposição e a “cumplicidade” do público tornam-se, sem dúvida, o
ponto central da proposta do artista, configurando uma forma de comunicação direta
com o espectador. Embora nenhum dos autores que discutem as obras do artista no
livro CHRIS BURDEN (2007) (Fred Hoffman, Lisa Le Feuvre, Paul Schimmel, Kristine
Stiles
e Robert Story) faça referências à Guerra do Vietnã ou crie relações das obras do
artista com esse período em que milhares de jovens americanos deixavam o país para
fugir da possibilidade de serem recrutados para tal guerra e em que um
descontentamento
geral dos americanos, a data dessa obra (embora posterior aos
protestos que se generalizaram no mundo inteiro) e as “ações” de Burden nos levam a
crer, que mesmo indiretamente, os acontecimentos dos Estados Unidos e do resto do
mundo estão implícitos. As afirmações de Arruda-Piletti (1996), quando comentam
sobre a Ofensiva do
Tet e Body bags,
levam a
crer numa possível inter
-
relação
:
No final de 1967, os americanos estavam bastante otimistas (...). Mas
houve uma surpresa. Durante as festas de Ano Novo Vietnamita
festa
do Tet 80.000 guerrilheiros e soldados comunistas atacaram em todas
as frentes. Em Saigon, a própria embaixada americana foi tomada. Foi
uma tremenda demonstração de força do inimigo (...)” ( ARRUDA-
PILETTI, 1996, p. 373)
O gove
rno americano, por meio de novos investimentos em tecnologia de guerra,
material bélico e financeiros, proporciona ao seu exército, por meio de suas tropas, a
recuperação do poder de defesa no campo de batalha, mas perde campo no que se
refere à opinião pública interna sobre estes conflitos. Foi uma época em que a mídia
divulgava diariamente cenas horríveis sobre estes “eventos” e noticiava o retorno de
soldados americanos mortos e entregues às famílias ensacados. Arruda-
Piletti
acrescenta:
Body bag
s
era o nome do saco de plástico preto no qual era colocado o
corpo do soldado morto. Com a escalada da guerra, um número cada
vez maior de famílias americanas via chegar à porta de casa o carro
trazendo o corpo do filho morto (...). Os americanos não supo
rtavam
mais aquela guerra num pequeno país distante, cara e desastrosa (...).”
( ARRUDA
-
PILETTI, 1996, p. 373)
149
No ano de 1968, no mês de maio iniciaram-se, em Paris, as negociações entre
os representantes do governo norte-americano e do governo do Vietnã do Norte.
Porém, só em meados do ano de 1969, foi anunciado que as tropas americanas
começariam a sair do território vietnamita. Em 1970, nos Estados Unidos,
intensificaram
-se os protestos, as pessoas iam para as ruas pedir a saída dos Estados
Unidos do conflito e o retorno imediato das tropas. O governo americano, sem o apoio
da população, aceita o Acordo de Paris, que previa o cessar fogo em 1973. Mas em
1975 é que ocorreu a retirada total das tropas americanas. A vitória do Vietnã sobre os
Estados
Unidos deixou mais de um milhão de mortos entre civis e militares e o dobro de
mutilados e feridos. Pode
-
se conjeturar que o tiro dado em Burden pelo amigo seja uma
“referência”, uma memória póstuma, um “tributo” aos soldados mortos em conflitos na
Guerra.
Outra obra que poderá nos levar à semelhante entendimento é a
performance
realizada na noite 12 de setembro de 1973, numa rua principal de Los Angeles,
Califórnia, EUA. Chris Burden, segurando as mãos nas costas, rastejou sobre um piso
coberto por cacos de vidros, num percurso de 50 metros. (Fig. 29, p.
149
). No local
havia poucas pessoas que poderiam contemplar o seu trabalho; a maioria eram
transeuntes. A obra, ação,
Performance,
foi registrada em filme de 16 mm.
Fig. 29 -
Chris Burden
- “
Through the Nigt Softly”
-
(Através do cair da Noite.
Tradução nossa)
Performances
-
12 de setembro de (1973)
150
Nesta
performance,
(Fig. 29, p.
149
)
o artista nos apresenta o sangue por meio de
uma metáfora, uma poesia de campo de guerra. Se considerarmos os referenciais que
temos sobre os campos de batalha, onde soldados rastejam em campos minados de
bombas, podemos pensar que talvez a intenção de Burden fosse a de retratar de forma
mais realista esse fato, ou seja, mostrando a carne, o sangue, a luta pela sobrevivência
e o valor da vida destes indivíduos que enfrentam os perigos em nome de uma
“vaidade” nacional. E que alguns segundos é um longo tempo” para quem está
tentando fugir de um predador. Partindo deste ponto de vista e tendo como referência
as palavras de Hofmann (2007), esta obra e todas as outras desse período de produção
do artista, os papéis de propriocepção (termo utilizado para nomear a capacidade em
reconhecer a localização espacial do corpo, sua posição e orientação, a força exercida
pelos músculos e a posição de cada parte do corpo em relação às demais, sem utilizar
a visão), são de suma importância para o seu fazer artístico.
Esta percepção proprioceptiva permite a manutenção do equilíbrio postural e a
reali
zação de diversas atividades práticas. Resulta da interação das fibras musculares
que trabalham para manter o corpo na sua base de sustentação, de informações táteis
e do sistema vestibular, localizado no ouvido interno. Sabemos que o sistema nervoso
centr
al alerta o organismo do perigo e, neste sentido, a utilização do corpo e a liberação
do sangue pelo artista como um meio estético, como outras de suas ações, se
apresentam ao público como um discurso sutil, mas vital, sobre a experiência da
sobrevivência.
A propriocepção, nas obras de Burden, refere-se ao ar molecular da
presença invisível do perigo, na medida em que se utilizou do corpo-mente e em que o
corpo responde aos estímulos da propriocepção, despertando o psicofísico em relação
ao sentido e à presença do local, o espaço e o tempo. Esta obra pode ser entendida
como uma sintonia com o mundo circundante e, desta forma, pode contribuir para a
preparação da mente no sentido de ajudar a habilidade do corpo, para tornar-se alerta
em circunstâncias extre
mas.
151
Fig. 30
-
Chris Burden
-
“Trans Fixed” (
Trans
-
fixo)
Performance(1974)
Fig. 30 detalhe
-
Chris Burden, crucificado
s
obre
um automóvel, em
23 de abril de
1974,
na Avenida Venez (Venice),
Califórnia
Fig. 30 detalhe
-
Chris Burden
-
“Cravos”, objeto
utilizado na
Performance
(23
de abril de 1974)
152
Outra importante obra de Chris Burden é Trans Fixed
(Trans
-fixo), de 1974
,
perf
ormance
em que o sangue do artista permanece invisível aos nossos olhos, mas é
“apresentado” através da crucificação, por meio das marcas dos “cravos” em suas mãos
(Fig. 30, p.
151
), em evidentes referências cristãs. Nas palavras de Hofmann (2007), o
espe
táculo impressionante da salvação e condenação, tantas vezes evocado na liturgia
e nas práticas da Igreja Católica, teve um impacto sobre a juventude do artista. Burden,
ainda segundo Hoffmann, quando da realização dessa obra lembrou-se de procissões
em que ele e o irmão mais novo marchavam com uma velha bandeira balançando e
velas nas mãos. Cometendo uma “infração” e passando por cima dos princípios da
liturgia católica, o artista, em sua obra, faz uso simbólico e psicológico da iluminação,
evocando a figura de Cristo como “a luz do mundo”: “Falou-lhes outra vez Jesus: “Eu
sou a Luz do mundo; aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da
vida.” (João: 8:12. Bíblia Sagrada, 1998, p. 1395). Deus é Absoluto e a essência pura
da luz encontrando também a sua expressão na crença em que o filho de Deus é
definido com “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus” (BURDEN apud
STILES, p. 31). na arte de Burden, tal ponto de luz assume um caráter totalmente
diferente; é como redes fixas, cuja luminosidade consiste no poder de comunicação
implícito no objeto dialogando com o observador. O artista, como Cristo, é crucificado,
porém, sobre um Volkswagen, que saiu de uma garagem escura para a luz solar. Na
Escritura Sagrada, o termo escuridão está associado às trevas, pecado, enquanto a
claridade faz referência à pureza, à santidade, à luz divina, à paz eterna.
o Carro, que o artista descreveu, nas palavras de Stiles (2007), como
“gritando para mim”, é objeto associado ao consumo urbano. O título “Trans Fixed” é
um jogo de palavras, como transporte e implicando também o efeito transfixante
(atravessando de um lado a outro), um transportador de sentidos sobre a vida e a
morte, da transgressão, entre a escuridão e a Luz. A obra, uma saída violenta de uma
experiência radical de ameaça física em um ambiente comum, suburbano, repressivo.
O termo, e a ideia do artista de ser fixado, é uma alusão à cultura local de Los Angeles,
com seu culto ao carro.
Entre tantas obras que o artista produziu, escolhemos estas
performances
-
Instalação para enfatizar e deixar claro que, desde o início de sua carreira, Chris
153
Burden vem jogando com questões essenciais, focando a fragilidade e a preservação
do seu estado psicológico no contexto real e na experiência vivida. Desenvolveu um
método de organização criando obras impactantes, as singularidades de sua prática e
poética dão significado permanente nos seus objetos de arte. Após 1981, Burden
achou que havia chegado o momento de mudar o rumo de sua arte, utili
zando
-se de
problemas gerados por acidentes na modernidade, tais como: Tale of Two Cites
(Contos de Duas Cidades) (1981), um holocausto nuclear, ativando a consciência ética
do espectador.
A obra de Chris Burden, hoje, deriva expressamente de sua capacidade de
despertar a propriocepção como uma resposta localizada, no “eu”, com o propósito de
aproximar a sua poética do público, como se este fizesse parte do trabalho, propiciando
ao espectador experiências possíveis, desqualificando os aspectos de espetáculo com
os quais havia se associado no início de sua carreira.
Retornando ao início da década de 1970, temos Artur Barrio (1945), artista
português, nascido na cidade do Porto e radicado no Brasil, iniciou uma série de
experimentos até chegar à construção de Trouxa Ensanguentada, ou
T.E
(Fig.
31,
p.
157
, 159, 160), de 1970, instalação feita fora das instituições, libertando-se das
linguagens tradicionais.
Não sentido em negar que os mecanismos modernos formais da Europa e da
América foram utilizados como agentes iniciadores de uma nova forma de processar o
entendimento de mundo aqui no Brasil, propiciando reflexões construtivas em vários
campos do saber, ações interdisciplinares, levando a descobrir o rumo e atingir, sem
dúvida, uma identidade e independência tanto cultural e social quanto artística. Este
novo ambiente cultural, propício à inovação, abriu caminho para uma nova formar de
ver, sentir, representar, apresentar, vivenciar, experimentar, provocar novas atitudes,
ideias complexas nas atividades artísticas, possibilitando a democratização e a
utilização de múltiplas linguagens nas artes plásticas, que se libertaram do ranço
acadêmico de uma arte representativa, das Belas Artes, conforme as palavras de Artur
Barrio (2002).
Tendo como referencial Gina Pane, na Europa, com suas feridas sangrando, e
Chris Burden, nos Estados Unidos, com sua
Performances
, os artistas brasileiros
154
iniciaram verdadeiras experimentações laboratoriais, saindo de seus ateliês, “invadindo”
os espaços públicos, espaço reais, produzindo obra performáticas que eram
registradas, em vídeos, filmes, fotografias, que se tornavam não apenas a memória do
objeto, mas o próprio objeto em si. São manifestações anti-acadêmicas, que têm em
Artur Barrio a figura de precursor e protagonista, compartilhando com o espectador a
sua criação, uma comunicação direta entre obra e fruição, em que o observador não
contempla o objeto, mas vive-o, tocando-o, caminhando em torno do objeto de arte e
sob ele, numa relação recíproc
a imprescindível para adquirir sentido a sua criação.
Artur Barrio desponta na cena nacional em plena efervescência das
transformações que abalaram aquele entre-décadas. E logo impõe um
novo paradigma, uma referência inaugural, no que tange à radicalid
ade
de seus processos. (...) deu à experimentação um caráter demolidor,
errático e energético, dilatando a capacidade perceptiva e sensorial em
níveis inéditos. O caráter provocativo e transgressor de seu trabalho
ultra
passou em potência expressiva todos os atos de rebelião que
conhecíamos historicamente no Brasil. (...) (CANONGIA, 2005, p. 83-
84).
Artur Barrio fez parte de um grupo de artistas que se rebelaram contra todos os
critérios institucionais da arte brasileira e que operavam de forma ofensiva sobre o
mercado de arte, Participou de um manifesto que ocorreu no final da década de 1960,
do qual s
urgiu uma nova forma de expressão artística. Esses artistas, assemelhando
-
se
aos inventores ou cientistas antigos, que se nutriam de ideias e deixavam-se e
mbriagar
pela imaginação ingênua, como a de uma criança, ou infectavam
-
se pelas desgraças do
mundo, construíram e constroem objetos que confundem vida, magia, arte e ciência.
Conforme Pedrosa (1986), o artista contemporâneo cria objetos como se fossem frut
os
de um “desespero” interior, convida os outros a participarem de sua obra e apresenta
uma arte dinâmica, que ultrapassa os muros dos museus e invadem o meio ambiente.
No final de década 1960, Artur Barrio confrontou o público e as instituições de
arte,
com o firme propósito de pôr em desequilíbrio a sua resistência, contestando o seu
poder de crítica. Criou um manifesto em que defendia o uso de materiais precários e
efêmeros no lugar de materiais caros e de origem estrangeira, considerando a realidade
de
um ponto de vista sócio
-
econômico de país de terceiro mundo, em que tais produtos
não estavam de acordo com o seu poder de compra, assim como de muitos outros
155
artistas na mesma condição financeira: em síntese, a contestação girava em torno de
uma liberdade de ão para a criação. Com base em tais alegações, passa a utilizar
diferentes materiais, desde papel higiênico, lixo, urina, cabelo, excremento, sangue,
entre outros elementos perecíveis, substituindo os convencionais e contradizendo a
estética bur
guesa, quebrando, assim, as barreiras dos padrões de beleza.
Tratava-se de um momento em que as condições sociais e culturais do Brasil
eram “carregadas” de ambiguidades: as situações envolviam conflitos entre a repressão
política, decorrente do regime militar, e uma “revolução” comportamental
cumulativa/evolutiva, iniciada nos anos 1968, arrancando” os artistas de seus
“calabouços” frios e sombrios e levando-os para a “luz” do meio ambiente, fazendo com
que interagissem com o todo da vida de uma socie
dade em construção.
Esse novo modo de ver e sentir o mundo havia contaminado grande parte da
população e um número considerável de artistas criticavam o sistema oficial de
circulação das obras, manifestando o desejo de rompimento com a ideia da obra
es
tável. Inicia
-
se a valorização/respeito pelas ideias, não só no campo da estética como
também no da ciência, gerando lutas e conquistas, tímidas, mas significativas, em prol
de uma nova sociedade brasileira.
Os objetos de arte que surgiram eram declarados como “manifestações
políticas”, porém, diferentes das expressões artísticas da década anterior. O que
importava no momento era a reflexão do próprio agir do artista politicamente,
produzindo obras em que a capacidade intrínseca do objeto dialogasse com a
realidade
urbana. Os artistas apresentavam ao espectador objetos efêmeros, precários, disformes
e até invisíveis, numa “desconstrução” que se assemelha ao conceito de antiarte
dadaísta, questionando as transformações profundas no próprio processo da arte c
omo
linguagem. Para Burger:
Não se trata da continuidade do desenvolvimento, mas da ruptura de
uma tradição (...), o que distingue a categoria do novo das utilizações
anteriores e absolutamente legitima da mesma categoria é a
radicalidade da ruptura com o que até então foi vigente. Não são mais
negados os procedimentos artísticos e princípios estilísticos até então
possuidores de validade, mas toda a tradição da arte. (2008, p. 126-
127)
156
Esta nova linguagem que aparece no cenário artístico brasileiro, por meio da
inclusão de fragmentos extraídos da realidade e também do corpo humano ou animal,
como o sangue, transforma de maneira radical a obra de arte, que adquire um outro
status
, frente à realidade social. A relação que estabelece com o espectador é be
m
diferente das características da arte tradicional; as obras não retratam uma realidade,
pois elas são a própria realidade: “Não a realidade, em sua variedade concreta,
penetra na obra, como a própria obra não se fecha mais contra a realidade (...) o
limite
do efeito político das obras continua a ser esfera descolada da práxis vital.” (BURGER,
2008, p. 180)
Trata
-se de uma ideia de arte que se dá na experiência, algo como um
processo dialógico entre artista-
materiais
-
sujeito
-
objeto
-natureza, expandin
do
-
se
para o espaço vivido, onde o artista compartilha com o espectador as suas
especulações, visões dos “fatos”, “acontecimentos”, interpretações e expressões da
vida, um plano de criação que se realiza com os materiais e suas formas
adquirindo forte presença física no território tridimensional. Esse é um objeto visual,
incompleto, impactante e provocante, que, num processo evolutivo, através da ação,
da contemplação e da fruição do espectador, torna-se um elemento ativo e
participativo da criação, deci
sivo para a conclusão da obra.
Uma verdadeira arte “ambiental” que se realizava com a presença do outro e
com a atuação da natureza, em que o tempo, o espaço e a pessoa eram os
elementos primeiros, acomodando e permitido a presença do estranho (obra) ne
ste
espaço de transeuntes, gerando asco, repulsa, sentimentos importantíssimos para a
efetivação prática da ideia do artista. Um conjunto de materiais orgânicos e
perecíveis, fragmentos residuais, tais como cortes de carne, chumaços de cabelo,
pedaços de pão, urina, excrementos, pedaços de unhas, sangue etc foram
amarrados dentro de sacos e lançados nas ruas de Belo Horizonte e Rio de Janeiro,
interferindo no meio ambiente urbano, suscitando estranheza, perplexidade e asco
nos espectadores.
157
Fig. 31 detalhe
Fig. 31 detalhe
Artur Barrio
Situação T
-
T.1, Belo Horizonte, 1970.
Foto: Cesar Carneiro.
Uma das funções da arte é a de comunicar, porém, diante dessa obra,
Trouxas
Ensanguentadas
, ou as
T.E
, mesmo que sejam reproduções fotográficas, sentimos o
seu poder expressivo, l
evando
-nos a divagar por outros mundos, em caminhos
enviesados. Cremos que
a imaginação do artista, no momento da concepção da obra
in
loco, foi capaz não de criar um objeto que dialogasse com a realidade social e
política, como também de conduzir no observador a uma esfera de interpretações
múltiplas.
Fig. 31 detalhe
Embora Artur Barrio, em momento algum de suas declarações, nem em
entrevistas nem em textos, se posicione como engajado nos movimentos sociais e
158
políticos da sua época, com suas
Trouxas
Ensang
u
entadas,
intencionalmente provoca
no observador um olhar diferenciado sobre as coisas do mundo. O espectador, ao
interagir com a obra e, por sua vez, com coisas relacionadas à vida, pois aquele
momento da nossa história era marcado por sangue, morte, mutilações em nome de um
poder ditadorial, um regime militar, era levado a reflexões através do estranhamento.
Por que motivo um artista que viveu em uma época de liberdade vigiada, de censuras,
em que todas as formas de expressões eram tolhidas pelo poder político, construiu
obras enigmáticas como as suas trouxas? Nas palavras de Barrio, não poderia, de
maneira nenhuma, afirmar que o seu objetivo seria simplesmente o querer fazer a
qualquer custo uma obra diferente. Farias nos responde à indagação acima da seguinte
maneira:
As trouxas ensanguentadas espelhadas pelo Rio de Janeiro e Belo
Horizonte, em 1970, justificavam-se parcialmente como comentários
sobre os subterrâneos hediondos da ditadura militar. Mas não se
esgotavam como denúncia (...). Cada saco, embora pleno de matéria e
energia, metamorfoseia-se em simples receptáculo de dejetos. Lixo
entre lixos. Esse é o destino das coisas que colocamos à margem da
experiência ou q
ue dela restaram.” (FARIAS, 2002, p. 23)
Talvez possa ser feita uma alusão entre essa obra e o crime e a cultura violenta
dos subúrbios ou com a “facção” do Esquadrão da Morte, que agiu durante o período do
regime militar no Brasil. Esta facção, segundo Bicudo (2002), foi uma organização que,
sob os cuidados de seu comandante, Mariel Mariscot de Matos, começou no Estado
da Guanabara, no final dos anos 1960, com o intuito de eliminar supostos bandidos
comuns. Os integrantes dessa organização, patrocinada pelo empresariado, eram
conhecidos também como os “Homens de Ouro da Polícia Carioca”, e abrangiam
políticos, pessoas do Poder Judiciário, policiais civis e militares. Esta facção, em curto
espaço de tempo, proliferou por todo o país. Segundo Canongia, “O crime e a paixão
na cultura da violência suburbana, assim como na cultura política da opressão, foram
afinal os motivos de fundo da Nova Figuração, que não nos um comentário
jornalístico como no pop americano, mas antes um pedaço brutal da vida. (2005, p.
52).
159
Fig. 31 detalhe
Ainda nas palavras de Bicudo, por ordem do Exército, este grupo, após o ano de
1970, passou a ser usado na luta contra comunistas e membros da luta armada. E,
segundo o mesmo autor, esses esquadrões, ainda que sob outras denominações,
continuam a praticar o mesmo tipo de controle no Espírito Santo.
Voltando a Artur Barrio,
o artista em momento algum fez qualquer referência a tal
violência, a esse grupo de exterminadores” profissionais ou qualquer outro tipo de
homicídio. No entanto,
Trouxas
Ensanguentadas
foi construída com objetos
perecíveis, restos da produção do corpo humano e outros materiais parecidos que,
ocultados dentro de um saco e associados à evidência do sangue, que realça a
dramaticidade da cena, poderiam muito bem criar relações com o corpo humano. A
presença do objeto parece ser, então, a representação do resultado de uma ação de
“violência”, transportando
-
nos ao Brasil do passado, nos finais de 1960 e i
nício de 1970,
quando estávamos sob as amarras dos militares desde o golpe de Estado de 1964,
período em que os artistas se sentiam pressionados a assumir posturas políticas em
razão da perseguição e da censura. Tais preocupações refletiram na cultura de
forma
revolucionária, desencadeando o surgimento de trabalhos mais engajados com o
conteúdo da crise social do que com questões formais da arte. Era também um
momento de nossa história em que os fatos apontavam para a imparcialidade do
sujeito, tornando-
o
sem voz, transformando-o simplesmente em números e coisas.
Vivíamos ainda sob as regras impostas por Costa e Silva (1899-1969), que tinha a seu
160
favor o AI
-
5 (Ato Institucional nº 5, editado em 13 de dezembro de 1969), o resultado de
manifestações estudantes; lutas operárias entre outros descontentamentos da
população em relação ao regime de governo. O apoio da classe media ao governo
neste período diminuiu consideravelmente. Porém este isolamento favoreceu o
crescimento da linha dura dentro das Forças Armadas. O AI-5 dava ao Presidente da
República plenos poderes, inclusive o de desconsiderar as limitações previstas na
Co
nstituição, conforme o artigo do AI-5. Este documento foi revogado em 1979,
pelo então Presidente General Ernesto Geisel. Diante testa situação as nossas
urgências eram outras, conforme as palavras de Canongia:
No final da década de 1960 e início da seguinte, em apenas cinco anos
que se condensaram entre 1967 e 1972, aconteceu, no Brasil, uma
reviravolta espantosa em direção ao espírito verdadeiramente
contemporâneo. Período que Mario Pedrosa descreveu como de
intensa “experimentalidade livre” foram anos em que inúmeras
transformações substanciais ocorreram na práxis artística. O termo
“experimental” servia tanto para designar a livre experimentação com
novas mídias e novos procedimentos, quanto para pontuar a experiência
sensível, que passa necessariamente pelo corpo.”(CANONGIA. 2005, p.
55).
Fig. 31 detalhe
A obra de Barrio, entre outras da mesma linha, transforma o observador em co-
autor do objeto e lhe oferece uma possibilidade de fruição que ultrapassa o poder
visual, agindo sobre outros campos dos sentidos, em consequência da presença
161
orgânica e de seus fluidos que deisseminam na atmosfera, o aroma pérfido da
decomposição. Uma experiência que cremos ser possível levar o espectador a construir
relações com os acontecimentos do cotidiano, podendo também levá-los a criar novos
significados para o objeto, mesmo que a razão não sustente a sua inte
rpretação.
Nas palavras de Araujo (2007), “Trouxas Ensanguentadas” nos oferece a face
oculta do objeto” através do visível-invisível, uma visão de mundo baseada na
destruição e brutalidade, construída com vurmo (secreção purulenta em feridas ou
úlceras
supurada) e cujo “acabamento” é feito com sangue, produzindo inúmeros
significados. Este objeto de arte propicia ao espectador a condição de produzir uma
vivência e um estranhamento em relação a si mesmo. É um trabalho que não tem a
finalidade didática,
cuja interpretação tem significados múltiplos, o verbal não sustenta o
conteúdo. Nele, o projeto do artista é fundamental, porém com a participação do
público é que se completa e se sentido à ideia do autor. Claro, não podemos negar
que Artur Barrio, num estado “espiritual”, falava do “mundo” e com o “mundo”. A
respeito disso, Hume observa :
(...) a criação artística é um processo mental e a obra de arte está no
espírito do artista. O caráter obsessor do impulso do artista para
expressar o seu sentimento em forma artística deriva menos do desejo
de comunicar o seu sentimento a outros homens do que da necessidade
de apreen
-
lo ele próprio (...).”
(HUME, 1999, p. 217)
Pode
-se dizer que Artur Barrio, ao construir a obra, escolheu um espaço aberto
para apresentá-la, uma interferência em locais públicos, espaço-ação, com o
propósito de descortinar o cotidiano de forma rápida, gerar no indivíduo reflexões sobre
a vida, abalar os seus alicerces e, ao mesmo tempo, revolucionar os seus sentidos,
além da visão, tais como olfato, audição, tato, paladar. É importante considerar que,
neste tipo de ação, expressão, a matéria por si não é o elemento primeiro da obra e
sim passa a ser a sua circunstância causadora, manipulada como se fosse um corpo
que começa a fazer parte da paisagem; uma poética que se construía e investia em
outro tipo de dinâmica, por meio da junção entre espaço físico
-
objeto
-sujeito-
artista.
A interação do espectador, num momento que envolvia a convergência de todos
os seus sentidos para a obra de arte, num comportamento-atuação, gerava uma
162
situação de suma importância para a construção do sentido da obra pelo artista. Este,
a uma certa distância, ou no meio do povo, registrava os efeitos provocados pelo objeto
fruto de sua criação
em quem o contemplava.
Fig. 32
-
Artur Barrio
“Livro de Carne” (1979)
Registro: Beto Felício
Fig. 33 detalhe
-
Artur Barrio
- “
Livro de Carne
” (
1979
)
R
egistro: Beto Felício
163
Fig. 33 detalhe
-
Artur Barrio
-
“Livro de Carne” (1979)
-
Registro: Beto Felício
Quanto ao Livro de Carne, (Fig. 32 e 33, p.
162/163
)
de
1979, nas palavras de
Farias, (2002), nenhum leitor, por mais fascinado que seja, encontrou um livro tão vivo,
cujas páginas são de uma textura que não em outros, além da variação de
tonalidade de vermelho e o “azul”, que traz o sangue ora umedecendo a massa
(carne), ora apresentado como pequenos coágulos, dando-nos a sensação de que
temos nas mãos algo vivo. Talvez o ato de manipular este objeto possa nos causar
certa repulsa ou asco, mas temos que pensar que, quando lemos, criamos uma
situação juntamente com a obra literária, que nos permite devorá-la, entrar nela,
vivenciando os acontecimentos; então nos transformamos em protagonistas da história.
Com este livro também acontecerá algo parecido; quando os seus “leitores” (vermes) se
apropriarem de seu “conteúdo” “irão devorar suas páginas de carnes no decorrer dos
tempos até que desapareça. ” (FARIAS
, 2002, p. 23)
Este tipo de obra, de ação artística,
performance
-instalação, constitui um evento
de durabilidade que ultrapassa o momento de exposição ou apresentação,
demandando que o seu registro seja por meio de fotos, filmes ou vídeo. Quando
rev
ivido, apropria-se do espaço do revival, além de tomar para si os outros espaços por
onde circula.
164
Na época atual, muitos artistas trabalham com o sangue, dando a este os mais
variados significados. É o caso da brasileira Karin Marilin Haessler Lambrecht,
pintora,
desenhista, gravadora e escultora nascida em Porto Alegre-RS, em 1957, que
desenvolve obras denominadas “Registros de Sangue”. Seu primeiro contato com o
mundo das artes foi com Danúbio Gonçalves (1925), no Ateliê Livre da Prefeitura
Municipal de sua cidade, com quem estudou no período de 1973 a 1976. Nos anos de
1977 e 1978 fez curso de gravura e, em 1979, graduou-se em Desenho e Gravura pelo
Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
-
IA
-
UFRGS.
A sua vida profissional inic
ia
-se no mesmo ano de sua formatura, quando realiza
a sua primeira exposição individual no Espaço 542. No começo dos anos 80, estuda
pintura na Alemanha, com Raimund Girke (1930-2002). De volta ao Brasil, em 1986, na
Galeria Tina Presser, em Porto Alegre,
faz exposição individual e, em 1988, conquista o
Prêmio Ivan Serpa, da Funarte.
Os materiais retirados do cotidiano, inclusive os restos industriais, aparecem em
seus trabalhos logo no ano de 1980. Nessa fase dedica-se também à pintura, com a
preocupação
de buscar novas formas de expressão artística, “modificando” o seu
suporte tradicional. Costura retalhos de tela, juntando um a um, construindo uma nova
peça. Sua arte, nesse período, é fortemente influenciada pela
Arte
Povera
e pelo
Neo
-
Expressionismo
ale
mão:
(...) o acesso a pinturas dos chamados ‘novos selvagens alemães’,
como Salomé e Middendorf, (...) não a tocou tanto quanto a obra de
outro alemão, mais proeminente, como Joseph Beuys. Dele, Lambrecht
pode ter assimilado, não o sentido antropológico de sua Escultura
Social, que inclui a interferência política e a educação pública, mas a
vontade de retomar na arte a sua dignidade espiritual e simbólica,
através de ações intuitivas, do retorno ao mundo natural, da
religiosidade e da transcendência.” (CO
CCHIARELE, 2006, p. 22)
Karin Lambrecht, neste período, realiza um trabalho gestual, que extravasa e fere
os próprios princípios naturais da pintura, uma atitude laboratorial, em que prevalece a
experiência, desprezando o cavalete tradicional em troca da
interação com a natureza e
sobre ela, permitindo também que esta aja sobre o seu trabalho. A artista deixa os seus
objetos ao bel-prazer da força ativa que estabelece a ordem natural da existência,
procedimento que Artur Barrio, com a obra “Trouxas Ensanguentadas ou T.E” de 1970,
165
havia adotado. Com linguagens diferentes seu trabalho também se aproxima do de
Ana Mendieta, tem propósitos parecidos, pois a natureza, fenômenos e/ou seres vivos
se transformam em co
-
autores do projeto artístico, através de sua
s ações sobre e sob o
objeto, como as gotas de orvalhos, a presença constante do vento, a chuva, o sol, a
poeira, pegada de pássaros, restos de insetos, transformando esse objeto deixado aos
“cuidados” do tempo e do espaço em obra de arte.
Uma nova situação se cria, um relacionamento com a natureza. Deixa os objetos
ao prazer do tempo real, para que os mesmos tomem novas formas sem a participação
da artista, uma ação gerada pela “intuição”, pela reflexão sobre o que esperava de cada
trabalho, num procedim
ento de integração com os fenômenos naturais, no qual o acaso
também era de igualmente importância para o resultado final.
Certamente o que motivou Karin Lambrecht a utilizar-se de materiais pobres e
precários, além do período de estudo na Alemanha, foi o
seu envolvimento com o Nervo
Óptico e o Espaço N.O, dois grupos de artistas que atuaram em Porto Alegre em
meados dos anos 1970 e início de 1980. Os experimentos desse grupo não se
limitavam a certos materiais ou suportes nem a um procedimento formal. (.
..)
Trabalhavam a partir de materiais ‘pobres’, com ênfase no efêmero, no caráter lúdico e
no estranhamento de situações e signos familiares ancorados em uma concepção de
arte como ‘pesquisa’”. (CARVALHO, 2004, p. 34)
O objetivo primeiro era o de legitimar o verdadeiro valor da arte, através da
investigação, não importando o suporte utilizado, nem os procedimentos adotados,
fossem eles da área da pintura, do desenho ou de qualquer outra linguagem das artes
plásticas, desde que o artista estivesse consciente da importância da pesquisas e dos
próprios limites, para
desmistificar os meios e as técnicas, os conteúdos e “sentimentos”,
para, em seu lugar, e ao mesmo tempo, redescobri-los em outros
planos, reformulados, renovando-os no imprevisto, como proced
imento.
Assim, o comportamento é que é por si artístico e tem por finalidade a
determinação do valor, do fundamento e da significação (...) de “arte
(Ibidem, p. 45).
166
O que singularizava a produção do grupo era a sua multiplicidade na forma de
expressão,
isto é, a arte adquiria um caráter experimental, tanto em termos dos meios
empregados como nos processos adotados para a construção do objeto, não
importando qual material era usado ou o conceito que poderia gerar a produção.
Tratava-se de uma experimentação livre de todos os estilos ou tendências, não
estabelecia limites para a comunicação, entre diferentes linguagens visuais, quebrando
suas particularidades culturais. Outro aspecto de suma importância para a produção
artística era o espaço da exposição e sua integração com o público, procedimento
indispensável para a real conclusão do objeto de arte. O período, segundo a própria
artista, era de “(...) tempos ainda difíceis, nos quais nada podia ser diferente, não se
podia falar diferente, pensar diferente (...) Tempos de homogeneização, de extrema
“ordem”, de uniformização. (...) Era preciso reaprender a falar, a pensar, a se
manifestar. (LAMBRECHT apud CARVALHO, 2004, p. 25
-
26).
Talvez seja possível perceber que, para Karin, o cerceamento da liberdade e,
em
consequência, de sua criatividade foi muito traumático, refletindo diretamente em sua
obra. Foi nesse período, década de 1980, que a pintura de Karin Lambrecht foi
consagrada, tornando-se um trabalho que prenunciava suas obras futuras, densas, que
passa
ram a ser mais “carregadas” de indagações.
A partir de 1990, sua obra inclui gradativamente novos materiais, agora
orgânicos. São elementos retirados da produção corporal do animal, que se juntam aos
elementos produzidos pela natureza, tais como grãos de terra retirados de diferentes
lugares e tonalidades, carvão, sucatas de metal e plástico, fotos, cinza, ferro, flores.
Araújo (2008), em sua dissertação, afirma que, no ano de 1997, a artista começou a
utilizar o sangue como elemento para a sua construção poética. No final dos anos 90,
Karin Lambrecht iniciou uma sequência de trabalhos, “Projetos de
Sangue”,
que
buscavam as derradeiras manchas de sangue do abate de carneiros para o consumo
da carne no sul do Brasil, Uruguai, Chile e Argentina.
A materialização desse elemento orgânico, o sangue, como elemento pictórico
“carregado” de simbologias, engrandeceu a obra e se tornou o material primeiro em
muitos de seus trabalhos futuros.
167
Como já dissemos, as obras de Karin Lambrecht apresentam indagações e
proble
matizações do cotidiano, tratam de temas como consumo e alimentação, como é
o caso dos abates de carneiros, para ela um ritual em que a prática do sacrificar
animais não fere a religiosidade. No entanto, no momento em que o animal se esvazia
do líquido que o mantém vivo, o silêncio toma conta do espaço, como de um local
“sagrado” e todas as atenções se voltam para a ação agonizante do carneiro, o
prenúncio e a efetivação da morte que alimentará outras vidas, entre estas, a obra. O
clima da ausência de vida
também é o de nascimento, nascimento do objeto de arte.
O sangue nesse “Projeto de Sangue” é a sublimação da obra de Lambrecht.
Nessas obras a objetividade total é impossível de ser “alcançada”, trata-se de obras
cuja objetivação quer “ultrapassar” a arte. Contrapondo-se a muito do que hoje se faz
em nome da arte, eles se recusam a ser visto como objetos de ornamentação, assim
como também não se deixam esgotar em suas notáveis atribuições formais (...).
(FARIAS, 2002, p. 55).
Quando a artista utiliza de mitos que fazem referência ao mundo natural das
coisas, nos convida a voltar às nossas origens, em que religião e cultura se cruzam.
Karin Lambrecht constrói objetos que nos transportam para um mundo mítico, utiliza
de cinzas, terra, sangue, “por serem passíveis de transformação, convocam a um
retorno e uma inovação, ligando os processos do corpo aos ciclos da natureza.”
(ARAÚJO, 2008, p.48). Reviver, recriar, referenciar os mitos, talvez justifiquem uma
das problemáticas centrais da artista, que tenta localizar e “re-utulizar” a
interpretação primitiva do mundo e sua origem. Cocchiarele observa:
A ideia do sacrifício, da transitoriedade da vida e da religião está injetada
no ‘corpo’ mesmo da obra, através da sua materialidade e de sinais
recorrentes como o da cruz. Também o uso das palavras tem sido
explorado pela artista, reforçando o entendimento do ‘subtexto’ da obra,
de sua metáforas. Tanto podemos ler termos diretos e crus (‘coração’,
‘rins’, ‘pulmão’) em alusão imediata à fragmentação e à dissecação
dos
corpos, quanto termos abstratos (‘conceptio’, ‘putrefactio’, separatio’)
que, juntos não remetem à carne material da natureza, como à carne
material da pintura,(...).” ( 2006, p. 23)
Para Farias (2002), é uma busca que consiste em resgatar o imaginário da
humanidade através do sacrifício e do ciclo da vida, uma simbologia cristã, uma vez
168
que a presença da cruz, uma peça em evidência e com frequência usada em suas
obras, muitas vezes um simples pedaço de pau no formato de cruz, enfatizam e
singulariz
am sua pintura.
A obra “Morte, eu sou teu” (1997), (Fig. 34, p.
168
), é a primeira obra que
discutiremos. Essa obra foi a que deu início ao projeto de trabalhar com o sangue,
expandindo o campo da pintura, cuja realização ultrapassa a classificação da ob
ra
de arte no que se refere a essa categoria. Fruto de seu primeiro contato com o
abate e o “carneamento” (dissecação) de Carneiro, para o consumo doméstico da
carne, no interior do Rio Grande do Sul.
Karin amplia o campo de atuação nas artes plásticas, in
do além das fronteiras
do ateliê e das instituições, desenvolve um projeto que aponta para um processo de
criação, que foge dos cuidados, ritmo, estrutura, e regularidade e “esquemas” pré-
estabelecidos de “padronização” para a produção artística. A sua obra é uma
poética gerada na observação, na exploração, na investigação da vida e da morte,
resultante de uma ação compartilhada entre a artista, o carneador, o carneiro e o
espaço de atuação (meio ambiente), fragmentos de um momento real, restos de um
acon
tecimento que não pode ser retocado, revivido, refeito. Severo observa:
(...) Ao relacionar-se com a arte, Karin Lambrecht relaciona-se com a
vida e mostra que o importante não é apenas justificar o movimento,
refletir ou analisar a ação, como método criativo ou produto artístico,
mas viver seu trabalho como um processo de comunicação estética
com o mundo (...).” (SEVERO,2001, p.17
-
18).
Fig. 34
-
Karin Lambrecht
-
“Morte eu sou teu”,
(1997) Sangue de Carneiro sobre toalha e
desenho
-
170
-
171x15 cm
-
Foto de Fernando
Zago
169
Para construção dessa obra, Karin Lambrecht criou um suporte num formato de
tabuleiro (quadrado) de madeira, que cobriu com duas tolhas brancas de mesa
colocadas uma sobre a outra - peças de algodão velhas, herdadas de sua avó; objeto
comum do dia-a-dia da vida familiar, toalhas que acompanharam inúmeras reuniões no
seio da família da artista cobrindo mesas para que depositassem as vasilhas com
alimentos e que agora estão transformadas em objeto de arte. Cremos que tal objeto
(toalha), mesmo “modificado”, manchado de sangue, não se desvincula da sua origem
por pertencer à sua família. De certa forma representa também a corrente sanguínea à
qual a artista pertence. Este objeto têxtil (toalhas), após o processo conduzido por
Karin Lambrecht, adquiriu o
status
de obra de arte, em razão de ter ficado embaixo do
corpo do animal no momento de seu abate: enquanto o sangue esvaía-se sobre a
estrutura (suporte) em um vermelho de cor vibrante, que ao secar transformou-se num
ma
rrom escuro. Presume-se que, após a fase agonizante do carneiro, e com este
esvaziado de sangue, a artista retirou a estrutura do local, em que se aparava o líquido
vital ao animal, e, em seguida, o excesso de sangue foi retirado do suporte com folhas
de papel, proporcionando o surgimento do processo de impressões e desenhos com
sangue, procedimento presente em todas a série, de forma contínua em seu projeto de
“Registro de Sangue”.
Nesse “acontecimento” (o sacrifício do Carneiro), o peão “matou o animal à
semelhança do rito judaico, isto é, sangrando-o, sem matá-lo antes (...).” (ROLF
WICKER, 2001, p.79). Este experimento da artista evidencia o caráter de “apropriação”
semelhante ao dos
ready
-
mades
, que se justifica com a utilização das tolhas de
al
godão, além do uso do sangue do animal, num processo de distanciamento da vida e
de uma aproximação da morte, tanto quanto o de “deslocamento”, pois a artista vai ao
encontro de uma ação rotineira na fronteira do sul do Brasil entre Chile, Uruguai e
Arge
ntina, momento em que Karin Lambrecht transforma a sua ação gestual, a do
carneador (açougueiro), mais o elemento orgânico que colheu, o sangue, no seu fazer
artístico, que resulta na “pintura”.
Em “Entrevista Karin Lambrecht-Pintura, desenho e anotação”, realizada na
galeria Nara Roesler, em junho de 2008, Roteiro e Produção de Paula Braga,
(www.youtube.com
-watch) Karin Lambrecht define a pintura como uma ação, um
170
processo no qual não separação entre corpo e a pintura, isto é, a artista junta o
corpo ao pensamento, ou seja, o corpo do pintor vai estar sempre ligado ao objeto. É
como um embate numa arena. Em todas as etapas sempre estará presente o corpo de
quem executou a pintura. Já, essa nova forma de pintura gestual, que nos lembra as
obras de Pollock (1912-1956), é construída por meio do sangue. Podemos até dizer
que é uma possibilidade de conservar a existência do animal e de provocar a
consciência humana, para que reencontre, ou que em busca de suas origens. Um
processo de reflexão da artista, uma experimentação, que vem a contribuir com a
História da Arte brasileira e mundial. Burger comenta sobre a nova forma de construção
artística:
(
...) O que as diferencia das técnicas de composição pictórica
desenvolvida desde o Renascimento é a inserção, (...) de
fragmentos de realidade, isto é, de materiais que o foram
elaborados pelo próprio artista (...) assim, é rompido um sistema de
representação que se apoiava na reprodução da realidade, isto é,
no principio de que o sujeito artístico deve
operar a transposição da
realidade.” (
BUGER, 2008, p.153
-
154)
Esse novo procedimento, em que o sangue derradeiro do animal,
simultaneamente cor e pigmento, é colhido pela artista para realização de seus
projetos e se materializa quando derramado nos tecidos, toalhas e indumentárias
feminina, e estes são, segundo Araújo (2008) apresentadas como os próprios
suportes da pintura. Diante desses objetos de arte e com um olhar crítico, podemos
perceber que o resultado final deste objeto é ao mesmo tempo, pintura e escultura,
ou um objeto que está na pintura e não é pintura, ou ainda, uma escultura que não é
uma escultura, um objeto diferente de arte, uma forma nova de produção artística.
Outra obra (Fig. 35, p.
171
) sem título da série “Eu e você” (2001) “(...) é o
registro de uma ação desenvolvida pela artista dentro do Projeto AREAL (...)”.
(SEVERO, 2001, p. 15), um processo experimental que envolveu um grupo de
amigos, convidados, artistas, mais a proprietária do local (fazenda), nos arredores
do município de Bagé-RS. Foi uma investigação artística ativa, que acumulou
esforços e meios, numa ação em que prevalece a experiência direta do eu com o
171
“espectador”, os participantes, por meio uma interação direta em face da construção
da obra, gerando debates
in loc
o
sobre a forma de apresentação dos objetos da arte
contemporânea. Foi um processo de conhecimento e troca de experiências, que se
fundamenta na desvinculação da instituição de arte dos grandes centros urbanos e
instituições culturais, convidando o observ
ador a refletir sobre a ação, numa reflexão
que gira em torno de uma situação transitória, a partir deste território referencial,
dando possibilidade de levar esta experiência local a uma experiência artística por
meio do envolvimento com a cultura local e a paisagem da fazenda, onde os
tecidos, após serem banhados” pelo sangue do animal, podem ser expostos ao ar
livre para que sequem.
Fig. 35
-
Karin Lambrecht
-
Bagé, 16 de maio de 2001,
quarta
-
feira
-
Onze
horas da manhã
-
Lua minguante.
Foto de Karin Lambrecht
172
A imagem
fig. 35, p. 171,
é a consequência do envolvimento da artista com “(...)
o campo, o homem, o animal, a carne e o sangue, concebidos como elementos indiciais
de sua relação com o resíduo, a
natureza, a religião e uma incessante busca de sentido
para a vida e a arte (...)”. (SEVERO, 2001, p. 16). É uma obra que não pode ser
desvinculada do momento em que foi gerada, é “(...) como se o tempo parasse
esperando a consumação de um fato (...)”. (ARAÚJO, 2008, p.34); um procedimento de
apropriação, exploração do Sangue do animal, uma investigação, observação da vida e
da morte, assim como da atitude do peão (carneador), sujeito “responsável” por um
momento de ansiedade que trata da aproximação da morte e do tempo de duração da
vida. Foi um projeto desenvolvido no dia 16 de maio de 2001, com duração de
aproximadamente trinta minutos, um registro do real, que foi a ação responsável pelo
desenvolvimento de um pensamento artístico, em que uma vida se vai, mas continuará
a existir na obra.
Fig. 36
-
Karin Lambrecht
-
Momento
do descarneamento do animal (2001)
Foto de Karin Lambrecht
Ao olharmos a imagem (Fig. 37, p.
173
), percebemos como são perfeitos os
órgãos internos, retirados de dentro do corpo do animal, do carneiro; de uma coloração
173
maravilhosa, que imaginamos ser parecidos com os nossos, o pulmões de um rosa
delicado.
Fig.37
detalhe
-
Karin Lambrecht
Pulmão
-
Bagé, 16 de maio de 2001,
quarta
-
feira
-
Foto de Yole Chapman
Fig.37 detalhe
-
Karin Lambrecht
Pulmão
-
Bagé, 16 de maio de 2001,
quarta
-f
eira
-
Foto de Yole Chapman
Esta obra desmistifica o imaginário de muitos, que acreditam que o nosso
sangue fica em qualquer lugar, mas não é assim! Ele circula dentro dos vasos
sanguíneos. O sangue, dentro do corpo humano ou animal, é “sagrado”, responsável
pela vida, habita na escuridão, aquecido pelo calor de nosso corpo. Esta pintura, ou
melhor, esta impressão sobre papel, nos a sensação de um corpo que fica
“descompromissado” com a vida, livre. É a ausência de resistência, uma massa morta,
onde vida-morte nos é apresentada simultaneamente compondo uma obra viva, que
utilizou de um órgão morto. A artista nos apresenta, de forma muito simples e clara,
este esvaziamento e surgimento de vida, através deste objeto, com as tramas de
pequenas veias, em que outrora circulou o sangue, elemento responsável pela vida
animal.
Outra obra que discutiremos a seguir foi construída também seguindo o mesmo
procedimento, ou seja, imediatamente após o abate do carneiro. A obra em questão foi
mais tarde incorporada à instalação “Sem título”, na XXV Bienal de São Paulo de 2002
(Fig. 38, p.
174/175
). A artista apresenta, manchados com sangue, vestidos femininos.
Contrastando com o branco das indumentárias, (o branco, uma cor com significados
174
múltiplos, como virgindade, pureza, cujo uso normalmente está associado aos rituais de
passagem ou de iniciações de uma nova etapa da vida, tais como o batismo e o
casamento) o sangue fica mais forte, impactante, robusto, valente, resistente e sólido,
carregado de energia. Com base nesta reflexão, a obra de Lambrecht “profetiza” um
acontecimento. Tanto as vestes manchadas como as impressões expostas no chão
fazem alusão ao ciclo da vida feminina. Num primeiro contato, nos causa
estranhamento, mas com o “olhar” sobre a trajetória de vida da artista, uma vida cheia
de experimentações e pesquisas, a análise da obra poderá tomar outros rumos,
conduzindo
-nos a múltiplas interpretações, a várias indagações, para as quais talvez
as palavras de Araújo sejam uma resposta convincente:
(...) Lambrecht atribui ao sangue usado em suas obras uma qualidade
metafórica que remete a lugares específicos, ao sul do Brasil e à região
platina, e a uma história comum, marcada pelas disputas por terras e
fronteiras. Evoca ainda o costume anacrônico no modo de sacrificar o
animal para o consumo da carne, presente nesses lugares. E, de forma
mais ampla, remete a questões do feminino, das vivências do corpo, da
vida e da morte, e de ritos religiosos que visam desde sempre a atribuir-
lhes sentidos.” (ARAUJO, 2008, p. 41).
Fig. 38
-
Karin Lambrecht
“Sem titulo” ( 2001)
-
Instalação com vestidos
brancos,Sangue de carneiro, expressões de
vísceras de carneiro sobre papel
e fotografia de Mãos com Vísceras
-
Foto de Fabio Del Re
175
Fig. 38 detalhe
-
Karin Lambrecht
“Sem titulo” ( 2001)
Instalação com vestidos brancos,Sangue de carneiro,
expressões de vísceras de carneiro sobre papel e
fotografia de Mãos com Vísceras.
Foto de Fabio Del Re
Na tentativa de complementar os dizeres de Araújo (2008), fazendo uso da
“ação” do olhar, mais o poder de investigação e sentimentos que todos nós temos
diante de qualquer coisa que olhamos, percebemos nesse objeto a representação do
símbolo feminino, através das indumentárias presentes na composição. O uso de
vestidos femininos utilizados pela artista, para “mostrar”, sugerir a presença do corpo de
mulher, que tem sido representado em diferentes momentos da História da Arte, é
trazido por Karin Lambrecht como um corpo invisível, porém, presente e carregado de
simbologias, sugerindo ao observador diferentes possibilidades. É como um jogo que a
artista estabelece conosco, onde origens e a transitoriedade da vida feminina nos são
176
apresentadas pelo viés do sangue, um elemento comum no universo da mulher, seja
através do ciclo menstrual, do nascimento ou da morte em diferentes contextos, além
dos inúmeros acontecimentos de agressão que a figura feminina sofreu no decorrer da
história da humanidade.
Este trabalho é formado e exposto numa estrutura de madeira que sugere a
presença de cruz, no entanto duas cruzes reais, de tecidos manchados de sangue, que
estão colocadas no chão. Nas palavras de Farias (2002)
, além de signo da cristandade,
a cruz é como o gesto que fazemos da testa para o tronco, de um ombro para o outro,
uma demarcação de território ou a afirmação do lugar onde estamos. Estes vestidos
são uma substituição e sugestão do corpo, atuando também como suportes para a
pintura da artista, num total de quatro unidades, sendo que somente um deles não
apresenta a mancha de sangue - numa interpretação simplista poderíamos afirmar que
é o retrato da virgindade, da paz, da pureza e da transição também. os outros
manchados de sangue poderão nos conduzir a um entendimento de que se trata de
uma representação dramática, evocando o corpo mutilado pela agressão, ou remeter a
ritos religiosos, ou à fragilidade da vida, seu lugar no universo e peso da morte.
Essas indumentárias presentes no trabalho da artista muitas vezes nos são
apresentadas através de fotografias, nas quais um corpo de mulher as veste, em outras
“montagens” (instalações) estes vestidos são expostos sobre uma estrutura de
madeira, “o que lhes confere diferentes sentidos nas obras (ARAÚJO, 2008, p.62).
Presumimos que estes objetos manchados de sangue provocam reações diferenciadas
no observador: enquanto para uns este elemento parece ser imperceptível, para outros
é uma heresia, uma agressão
para os olhos, um insulto ao inconsciente.
A obra de Lambrecht é fruto de incansáveis investigações e pesquisas, uma arte
contemporânea que Pedrosa define como pós
-
moderna:
(...) predominância da pesquisa sobre tudo o mais, na busca afanosa e
febril de novos meios expressivos, a pintura extravasa a cada instante
seus elementos próprios, rompendo tela, suprimindo a moldura,
abandonando o cavalete, desprezando as cores tradicionais (...) e, ao
cabo, não se sabe se estamos em presença de uma pintura ou de
qualquer outro gênero ou meio expressivo inédito (...).”
(PEDROSA,1986, p. 127).
177
Diante dessas reflexões, percebemos que a artista apropriou-se do elemento
orgânico que se esvaía do animal, o sangue, da ação do carneador (empregado da
fazenda), mas sem nada mudar do local onde constrói sua obra, respeitando os
costumes locais para a construção poética dos acontecimentos-ações provocados pelo
homem ao sacrificar o animal. Verificamos, de antemão, o “grau de honestidade
através dos registros fotográficos, nos quais se verifica que a artista, em momento
algum, interferiu nas ações do carneador, e sim fez uso da consequência de seus atos
ao matar o animal: utilizou do sangue e das vísceras para construir objetos de arte.
Karin Lambrecht “(...)
se libertou de todas as conformações pictóricas, coerções e
regras da criação, (...). Deve-se destacar, desse panorama a produção direta do
acaso (...). (BURGER, 2008, p. 137), que sua obra não é resultado de um
processo cego e livre, mas, ao contrário, é um procedim
ento gerado pela reflexão
do que se esperava de um objeto de arte.
Contemporâneo
de Karin Lambrecht, Marc Quinn também se libertou de todas
as amarras. Artista conceitual, britânico,
nascido em Londres em 1964,
trabalha o corpo
de forma diferente dos escultores tradicionais. Uma das características de sua
produção, cujas representações tridimensionais focam o não comum, são as diferentes
escolhas de seus modelos, que variam entre os ditames da beleza e do grotesco.
(normalmente são reproduções de pessoas com defeito físico). É hoje uma das
celebridades londrinas do mundo artístico, criador da escultura Sphinx (Esfinge) (2005),
de Kate Moss: "É uma escultura que não é Kate Moss”, mas sua imagem. Uma
representação do ícone da beleza feminina, uma estatua da top Model, retratada em
uma posição contorcionista, que estimula o imaginário sobre uma das figuras mais
belas do Ocidente. O cânone da beleza é indagado pelo artista, que coloca em
discussão os modelos estéticos consolidados, apropriando-se de uma leitur
a
desestabilizante.
A poética de Marc Quinn reveste a noção de natural e antinatural em razão do
uso de materiais clássicos como o mármore, a cera, a prótese tecnológica na
representação de corpos que apresentam anomalias: são citações de mutilações,
cruel
dade e morte. A sua obra não cultiva o belo da arte clássica, mas faz uso de sua
técnica para construir toda uma série de oposições entre a beleza ideal e a real,
178
evidenciando a ausência das mais comuns das noções de beleza representadas nas
esculturas gr
egas e renascentistas. Sua arte é o reflexo de sua cultura e conhecimento,
usa destes instrumentos para contradizer o pensamento do homem em relação à
imortalidade e a perpetuação do próprio homem.
Marc Quinn, aos quatorze anos de idade, vai estudar e morar na escola Millfield,
instituição existente até os dias de hoje. No ano de 1981 estuda em Paris, com o
escultor Barry Flanagan (1941-2009), de quem se torna assistente e aprende a técnica
de trabalhar o bronze e toda a sua potencialidade de transformaçã
o. Em 1982 ingressa
na Universidade de Cambridge, Inglaterra, no curso de História da Arte. Esta formação
lhe proporcionou grande conhecimento da História da Arte e amplo poder de criação
artística, que influenciou e ainda hoje influencia profundamente a sua linguagem
artística.
Nos seus trabalhos atuais, de um lado é capaz de conciliar o prévio
conhecimento prático em escultura e História da Arte, de outro é capaz de redefinir esta
linguagem para a contemporaneidade. Marc Quinn encontrou inspiração nas obras de
Auguste Rodin (1840-1917), no neoclassicismo de Antônio Canova (1757-1822) e nas
pinturas flamengas (pintura que surgiu no início do século XV e que se estendeu até o
século XVII, na região de Flandres, no norte da Bélgica e nos Países Baixos. Os
pintores mais significativos desse movimento são: Jan Van Eyck (1390-1441), Hans
Memling (1430
-
1440
-
1494) e Hugo Van Der Goes (1440
-
1482)).
Em meados da década de 1980, muda-se para Londres, local onde havia uma
“agitação” cultural que favoreceu o nascimento de uma nova geração de artistas. Em
1988, Marc Quinn torna-se o primeiro artista emergente londrino e favorito de Jay
Jopling (1963), fundador da galeria londrina White Cube (Cubo Branco). Nesse mesmo
ano, o artista realiza a sua primeira obra de título emblemático:
Faust”,
em que inicia
a
utilização e experimentação de diferentes materiais. Em 1991, por cinco (05) meses
consecutivos, retira de seu corpo cinco litros de sangue para criar a obra
Self”
(autorretrato)
(1991) (
Fig. 39/40, p.
182/183
). Em e
xposição na Jay Jopling
-
Grob Gallery
na amostra “Out of Time” (fora do tempo),
Self
em 1994, tornou-se o emblema de uma
nova geração de artistas ingleses e signo do imaginário coletivo.
179
Em 2006 nasce
SKY
(céu) (Fig. 41 p,
184/185/186
), seu segundo filho, e sua
segunda obra ainda mais impactante. Realiza o cálculo da cabeça do bebê, seu filho e,
em seguida, a modela fazendo uso da placenta, do cordão umbilical e de um sistema de
refrigeração. Registro de uma realidade sua, é o tema do retrato com sangue. E
labora
seu retrato “histórico”, “como se conhecesse verdadeiramente a origem humana”, único
conhecimento, quem sabe, possível: o de si mesmo.
Entre tantas obras produzidas, escolhemos Self (1991) e Sky (2006),
por
contemplarem o assunto desta pesquisa, não tirando o mérito de outras produções do
artista. Dono de uma vastíssima produção de obras de grande qualidade técnica, em
que encontramos uma constante investigação sobre o valor da vida, dos
acontecimentos do cotidiano, associada à História da Arte e da humanidade. O
mecanismo das obras de Marc Quinn sobrevive do corpo humano, da vida e de sua
conservação; são obras de forte impacto visual e sensorial, nas quais nós,
espectadores, somos convidados a enfrentar o tema do objeto que reativa a nossa
memória,
sobre a consequência da morte e do espaço deixado pela passagem
inesgotável do tempo e da vida terrena.
Talvez uma das formas mais adequadas de entendermos as obras deste artista
seja nos perguntando: Quem disse que a vida é um sonho? Sabemos que o indi
víduo,
num estado de vigília, quando pensa em seus sonhos e desejos, tem como resposta
sobre estes sentimentos seu conhecimento prévio de mundo. Cria um liame para
realizar estas situações: como adquirir um bem ou a “insanidade” utópica de querer
modificar
o pensamento de uma geração articulando o “querer” em um lugar protegido
de qualquer invasão. Talvez o “lugar” dos devaneios de Marc Quinn esteja em uma
posição “intelectualizada”, que não se esgota em si mesma, estando acima de
quaisquer combinações poss
íveis.
Para Oliva (2006), sonho é algo que quebra a lógica de qualquer acontecimento,
uma cadeia de eventos gerada pela memória, através da ação do “pensamento”, que
nos múltiplas possibilidades de soluções e nos arrasta a “aventuras” perigosas,
colocando
-nos dentro de um funil escuro, em que a única possibilidade é a de assistir
tranquilamente ou com angústia os nossos devaneios. O sonho permite uma
representação de superfície, um escorrimento de imagens que flui em todos os
180
segundos na direção de códig
os (signos) da vida. Muitos destes sonhos presentes entre
os artistas, que ousam criar “imagens” tão grandiosas como o sopro do vento, circulam
entre o sonhador de imagens e o confeccionador das mesmas, que conta a todos
olhando nos olhos deles e sussurr
ando
-
lhes nos ouvidos.
A arte de Marc Quinn é uma linguagem, um instrumento de representação e a
própria representação ao mesmo tempo. Artistas que seguem o mesmo caminho de
Quinn, que criam objetos, que estabelecem os artifícios, são os deuses dos sonho
s e os
deuses que sonham. Segundo Oliva (2006), nesse processo de criação não existe a
censura, a porta fechada ou a porta aberta, os artistas ficam sempre com as mãos
presas às maçanetas, não por precaução, mas por maravilhar-se com coisas da vida e
desco
brem que as mãos são as próprias maçanetas.
Neste contexto, a sua arte é a linguagem que se sente universalmente
potente, assumindo a indumentária da linguagem visual, discorrendo de forma
figurativa e nos incitando a uma reflexão critica do mundo e de nós mesmos. Um
trabalho que atravessa muitos “territórios”, que se desenrola em imagens e formas
tridimensionais. São “pedaços” seus, uma luz interna e intensa, de constante
retorno, de um lugar a que cremos pertencer e que, ao mesmo tempo, circula na
terra
de ninguém.
Não é o artista, dono de imagens de arte, que sonha, é a própria arte que
sonha e faz sonhar. Seu movimento não é a busca de imitar o mundo, nem de
simular o movimento nem a prisão, nem a fuga e nem a sua paralisação. A arte é a
linguagem, que se sente universalmente potente para a sua real função: a
comunicação.
O seu trabalho é a união entre a visualidade técnica do Renascimento e os
signos da contemporaneidade, estabelecendo uma harmonia de aparição, que
conserva dentro e fora, um fantasma de si mesmo (
Self
, 1991). Finalmente, uma
luta para manter a vibração inicial dentro dos limites de uma linguagem.
Eccher (2006) observa que a obra de Marc Quinn mora na terra de ninguém,
lugar de dúvida e de esperança da verdadeira transformação, da su
rpresa
inquietante de um enigma “sem solução” e, portanto, inevitável de se ver. A arte de
181
Quinn testemunha primeiramente a coragem de uma pesquisa que não se limita ao
próprio objeto, mas que se concentra sobre o processo do próprio objeto. As suas
observ
ações com fluídos corporais exprimem certamente a “exigência” de afirmar a
singularidade do elemento (Placenta e Sangue) e seus signos. Materiais que são
cultivados
-utilizados e materializados em seu estado original. Quinn comenta sobre
a escolha de materi
ais:
Eu gosto muito de escolher sempre o material para realizar qualquer
ideia (...) Agora penso que seja interessante que também o material num
certo sentido seja oculto, de modo que quando o olhar, não seja
imediatamente evidente a presença do material-objeto (...).” (QUINN
apud MENHAN, 2006, p.138
-
139. Tradução nossa)
Para Marc Quinn, o dado existencial se afirma na cadeia de escolhas, que
vão sendo eliminadas e criam outras possibilidades de soluções, na inquietante
dúvida que move, passo a passo, o interior da trama da criação, para a construção
do objeto de arte. “(...) Penso que o significado do material na obra atravessa o seu
propósito de uso, ajustando profundamente ao tema. Assim o trabalho é diferente,
diverso, e me salva do stress (...)” (QUINN apud MENHAN, 2006, p. 140. Tradução
nossa).
A grandeza da obra consiste na harmonia plástica que não cede ao abandono
pela própria apresentação, não é um objeto preso a sua beleza, é um retorno, uma
viagem num território da origem da vida humana-
animal
, que foca também o
sofrimento. É ainda em Mengham que temos o depoimento de Marc Quinn:
A coisa fantástica para mim hoje é que não são verdadeiros os limites e
tudo é uma disposição (...), gosto da escultura de carne e a ideia de que
Rodin passou toda a sua vida a trabalhar a argila como se fosse carne,
eu penso que o que faço é uma versão mais contemporânea daquele
processo, (...) (QUINN, apud MENGHAM, 2006, p.144. Tradução nossa).
O pêndulo poético do artista tem, no seu interior, a ligação e o envo
lvimento
do próprio vulto embebido em sangue e placenta, o justo êxtase de uma visão
182
sublime. Embora a presença do sangue possa nos levar a certa tristeza, a placenta
pode nos levar a uma profunda melodia em relação à vida.
Segundo Eccher (2006) no fazer artístico de Marc Quinn, a “porta” para a
criação permanece sempre aberta, uma liberdade que antecede a escolha, no
tempo em que o passo supera o obstáculo, colocando o foco no seu sangue, na
vertigem da retina, numa “loucura” cortinada entre vida e morte
.
Fig. 39
-
Marc Quinn
-
“Self”
(autorretato) (1991)
-
82 X 25 cm
-
Sangue
-
aço
inoxidável, Perspex, refrigeração
-
Foto de
Stephen White
183
Self”
-
Autor
retrato (1991) é uma escultura em forma de cabeça, cópia de sua
efígie. Para construí-la usou cinco litros de seu próprio sangue, congelado no formato
de sua construção. Para que não voltasse ao seu estado líquido e não perdesse
seu
formato, a obra permaneceu conectada a um sistema de frigorífico e é exposta dentro
de uma vitrine de Perspex refrigerada.
Fig. 40
-
Marc Quinn
-
“Self” (autorretrato) (1991)
Sangue
- S
istema de refrigeração
-
205 x65x65 cm
coleção
Arario Galeria Cheonan, Corea do Sul
Fig. 40 detalhe
184
Tanto em
Self”
(1991) como em Sky (2006) (Fig. 41, p.184/185/186), o seu
sangue representa um íntimo diário, assim como na obra de Betina Sor Memoria y
balance
Simplesmente Sangre (1997). De uma linguagem primordial, que não é
articulada e nem se aproxima de seu fim, é um elemento, uma intimidade ciumenta de
um segredo seu, o seu DNA. A escolha, apare
ntemente macabra, por compor a própria
imagem ou a do próprio filho, utilizando os próprios fluidos corporais, é a primeira de um
perigoso processo linguístico, uma escolha conceitual, estocada no misterioso cálculo
de uma cultura na qual tudo pode perecer: o artista materializa-
representa
-
apresenta,
através do líquido amniótico e do sangue, elementos indistintos, confusos”, em que
habitam a vida e a morte, a harmonia da beleza com a desarmonia da “deformidade”.
No espaço sobre o qual se delineia a obra “Sky”, imagem de uma criança, é
apresentada ao observador a origem oculta do ser. O espectador é quem decide
quanto a desviar ou não o próprio olhar do ponto em que a imagem, um rosto
despelado, ainda parece estar em processo de construção, em que mil aparências são
agora possíveis, na dúvida de uma realidade que parece ainda não ter nascido.
Fig. 41 - Marc Quinn -
Sky
(Céu) -
2006
- Placenta humana, cordão
umbilica
- aço inoxidável,
perspex
e sistema de refrigeração 205 x
65 x65 cm - coleção Jay Jopling/
White Cube, Londres –
Fotografia:
Stephen White
185
Fig. 41 detalhe - Marc Quinn -
Sky
(Céu) -
2006
- Placenta humana, cordão umbilical, aço inoxidável,
perspex
e sistema de refrigeração 205 x 65 x65 cm - coleção Jay Jopling/ White Cube, Londres
Fotografia: Stephen White
186
Fig. 41 detalhe
-
Marc Quinn
-
Sky
(Céu)
-
2006
Placenta
humana, cordão umbilical, aço inoxidável,
perspex
e sistema de refrigeração
205 x 65 x65 cm
coleção Jay Jopling/ White Cube, Londres
Fotografia: Stephen White
A obra de Marc Quinn é mórbida e cria uma relutância em olhar. Tudo aquilo que
podemos evidenciar na obra realizada pelo líquido corporal é o resultado sublime de
uma “elegância” “saudável” e sofisticação técnica. Eccher (2006) a classifica como uma
obra “pungente”, dramaticamente bela, imersa em um refrigerador que o congela a
sua extraordinária beleza
da imagem epifânica
14
da graça de viver, que, na realidade, já
14
Epifania é a festa cristã em que se comemora o aparecimento de Jesus, principalmente o aparecimento
dos três Reis Magos.
187
consumou o seu próprio fim. Marc Quinn recorre a um vocabulário de
apresentação/representação de raras sugestões.
A
perfeição formal deste trabalho, elaborado com grande “sabedoria” e seu
surpr
eendente virtuosismo técnico, recorda a obra de Cristo Velato (Cristo Velado)
(Fig.42, p. 187
)(1753), de Giuseppe Sammartino (1695-1750). Também nesta o
refinamento estilístico se conjuga em uma fascinante habilidade, que surpreende a
história: o que prend
e a atenção, que captura o olhar, não é o corpo de Cristo morto, e
sim a ficção da presença do véu que lhe cobre. Do mesmo modo, nas obras
Self
e
Sky
(Fig. 40/41)
, o espetáculo consiste na presença do sangue e de placenta(s) no
objeto.
Fig. 42
-
Giuseppe Sanmartino
- “
Cristo
Velato
( Cristo velado) (1753)
- Mármore
Capella Sansevero de Nápoli
Itália
188
Marc Quinn trabalha com o propósito de restituir a ideia estatutária de um
reconhecimento humano. Não é uma estrada sem acesso a sublimação do sofrimento,
ou dor individual,
mas a difícil situação de suportar a dolorosa condição desenhada com
nome e sobrenome. Não é simplesmente liberar o significado de uma imagem, nem tão
pouco distraída e superficial e nem inútil. O artista reconstruiu o percurso do
significante, mas não o faz através do itinerário cultivado das sugestões literárias, e sim
através de um
conhecimento
“vulgar”, cultivado pelo cotidiano duro e preciso, universal
na própria história, mas sem retorno na sua ocorrência individual, no seu nome e
sobrenome.
Os elementos se dispõem segundo os ditames da co-presença e da epifania,
segundo o senso da iluminação e da aparição improvisada. Marc Quinn não fez
imagens de finalidade peremptória, mas imagens prontas a desmoronar-se na trama de
muitos itinerários. As atitudes do artista não giram somente em torno de uma simples
representação de oposição, e sim na utilização de uma linguagem perversamente
polimorfa (que se apresenta sob várias formas). No exercício do olhar para as obras
escolhidas, percebemos que, no processo d
e criação intencional, o artista eleva a morte
“superior” (morte da obra), a morte inferior do cotidiano (do homem). Com um olhar
mais atento sobre o seu trabalho, descobrimos que estes objetos não são para uma
simples contemplação, pois se trata de um processo de criação, um convite à reflexão
sobre o desejo de imortalidade que a arte “incuba” dentro de si, uma ambiguidade
intrínseca ao objeto; é a pratica de uma linguagem, que por sua natureza carrega
consigo a imortalidade e, portanto, também a morte.
Natureza e morte são, portanto, a essência da linguagem recorrente nas criações
do artista. O uso de diferentes matérias como: o rmore, o sulfato, a cera glicose,
gelatinas várias e fluidos corporais (placenta, cordão umbilical, sangue) são também,
respo
nsáveis pela singularidade de seus objetos de arte.
Betina Sor nascida em Buenos Aires, Argentina, em 1963, busca em sua obra
pensar sobre a identidade feminina. Assim como Marc Quinn e Vanessa Tiegs (s.d)
nos apresentam o sangue, através de seus fluidos corporais, Betina Sor utiliza, para a
representação
-representação de seu objeto de arte, elementos-objetos do universo da
189
mulher que, normalmente, são jogados fora de forma mais cuidadosa e, quando
mostrados à luz, causam estranhamento, repulsa, escândalo
, rejeição.
Seu primeiro contato com o fazer artístico aconteceu quando cursava o curso
secundário num ateliê de cerâmica e escultura, onde despertou o seu gosto pela arte,
que perpetua até os dias de hoje. As maiores produções de Betina Sor são objetos
em
cerâmica.
A artista cursou a escola de Belas Artes Prilidiano Pueyrrdón, na cidade de
Buenos Aires, graduando-se com o título de professora nacional de Escultura.
Especializou
-se em Escultura e História da Arte. Em 2004, conclui a Licenciatura em
Artes
Visuais pelo Instituto Universitário Nacional de Arte (IUNA), com a tese:
VANDALISMO
-MONUMENTOS Y ESCULTURAS EN EL ESPACIO PUBLICO”
(VANDALISMO-MONUMENTOS E ESCULTURAS NO ESPAÇO PUBLICO).
Paralelamente a sua formação acadêmica, inicia a sua vida profissional em 1986, como
guia do
Museo de Calcos
, onde permanece até o ano de 1989. Em 1990, trabalha como
guia do Patrimônio Estável do M.N.A.D (Museu Nacional de Arte), período em que
começa a participar de diversos eventos artísticos, exposições temporárias, prática que
se estendeu até 2003, quando ingressa como professora titular do Instituto
Universitário Nacional de Arte (IUNA). Participa da Nova Bienal de Jovens, no ano de
1991 e conquista o primeiro lugar. Nesse mesmo ano de 1991 realiza a sua primei
ra
exposição individual no Centro Cultural Recoleta, dando início a sua trajetória de artista.
Betina Sor possui obras que fazem parte de acervos dos seguintes museus:
Fundación Federico Jorge Klemm,
Argentina;
Museu de Artes Plastica “Pompeo
Boggio” de Chivilcoy, Pov. De Bs. As; El Planetario de La Ciudad de Buenos Aires
“Galileo Galilei”; El Municipio de Carlos Casares, Prov. De Bs. As (Plaza Central); El
Banco de La Provincia de Buenos Aires; Colonia de Vacaciones em Tanti, Prov. De
Córdoba; Museo de Artes de Santa Rosa, “La Pampa”; além de integrar o acervo de
colecionadores particulares.
A artista produziu também obras literárias, textos, artigos de crítica de arte,
publicados na RAMONA, Revista de Artes
Visuales
, Argentina. Sobre a exposição
intitul
ada
“Memoria y balance Simplesmente Sangre” (Fig. 43, p.
191
), Juan Carlos
Romero (2000) comenta que a frase “Tener Menstruación” (Ter Menstruação), inscrita
190
na tampa de um “caixão” de acrílico, é um cemitério do amor / morte, em que
preservativos usados certamente querem dizer que se trata de um livro que nos dá,
segundo ele, um segundo título ao show: a tragédia real de querer amar e ser amado. A
partir daí, ainda podemos entender Romero, nós começamos a uma viagem através de
roupas íntimas femininas, vestígios de sangue e fluidos de todos os tipos do sexo
feminino e somos conduzidos a um complexo jogo de revelação.
Pedrosa comenta a respeito da nova forma de produzir objetos de arte:
(...) a revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o
amargo (a parte mais íntima de uma pessoa ou coisa) do indivíduo, sua
alma, não virá senão quando os homens tiverem novos olhos para
olhar o mundo, novos sentidos para compreender suas tremendas
transformações e intuição para superá
-
las ( PEDROSA, 1986, p.
247).
Fig. 43
-
Betina Sor
– “
Memoria y balance
Simplesmente Sangre” (1997)
Toalhas
femininas, roupa intima ma
nchada,
preservativos
e cera usada e absorventes
com Sangue,
caixa de acrílico
.
191
Em “Memoria y balance”,
Betina Sor utiliza-se de materiais retirados da
própria
vida, com o propósito de promover um diálogo com a realidade social e
histórica a que pertence e instigar novas investigações. Trata-se de um objeto
composto de
absorvente feminino, roupas íntimas manchadas, preservativos e cera.
Os absorventes com sangue, quando da época da amostra, despertaram as reações
mais díspares entre os visitantes.
Percebemos, ao contemplar a imagem, que, além de outras questões, a artista
fala da saúde feminina e do ensaio de uma possível gestação após o ciclo menstrual. É
um divagar sobre a maldição e a felicidade, sobre o tabu e a desmistificação da
intimidade feminina, como um diário pessoal que traz as mais íntimas informações
sobre o corpo, como uma tentativa de derrubar os tabus milenares. Uma das questões
centrais da obra é, nas palavras da autora em seu blog, “a ausência de uma
antropologia, sociologia e história da menstruação” e que ainda hoje é discutido sobre
a premissa da vergonha e dissimulação” (SOR, 2009) - assunto sobre o qual
normalmente os homens ainda são mud
os.
Os absorventes O.b., que costumam ser tirados às escondidas, são agora
expostos na obra como material, numa narrativa poética da artista, um clarão que
produz rejeição por se tratar de sangue menstrual, fluido corporal da mulher, que,
quando reconhecido, assume a característica de um ímã, que toca esta intimidade com
tabus. Com esta criação e exposição, pela artista, de algo que, pelos costumes, deveria
permanecer em segredo, Betina Sor quebra as barreiras e mostra o oculto. Algo que
poderia ser lido como a intimidade da mulher, a artista tona visível, numa experiência
significativa do universo feminino, a que normalmente os homens não expressam. O
objeto desmistifica o “imaginário” social masculino.
Pavon (2007) observa que um absorvente como o O.b. nunca patrocinaria uma
imagem como a de Betina Sor porque, na nossa cultura, a menstruação como
experiência feminina se encontra ainda distorcida e carregada com o estigma da
maldição. Em uma linguagem clara, a autora comenta que as evidências mais claras
para essa hipótese são as “doentes” de nossas “avós”, quer dizer: a autora afirma ter
escutado recentemente de um grupo de garotas adolescente de classe alta que se trata
192
de uma doença. E questiona sobre a falta de informação para estas jovens, e que este
conceito universal associando este estado da mulher como maldição (em inglês a
palavra que se usa para falar de regras, é usada para referir
-
se a uma maldição).
A autora, ao referir-se à teoria feminista, comenta que esse “assunto” resulta no
esvaziamento,
na ausência de uma disciplina que tenha sido estudada de forma clara
para a juventude, com exceção dos termos puramente médicos a que normalmente os
jovens não têm acesso, o que resulta numa carência de dados acerca de questões
práticas, relacionadas com
a menstruação, como se tratasse de um segredo muito bem
guardado, um acordo tácito com os tempos e lugares.
Pavon (2007) ainda traz para o seu discurso outros costumes associados à
menstruação em outras épocas, comentando o quanto é curioso que um tema
tão
importante para uma parte tão grande do “gênero humano”, mesmo sendo em uma
sociedade letrada, ainda hoje integre os casos do folclore, e que estas questões o
tenham sido tratadas pelas ciências sociais como de suma importância para o
conhecimento geral, corroborando as afirmações da artista de que não temos uma
antropologia, uma sociologia ou uma história da menstruação, conceitos que estão
sendo construídos por Zaqued Remedios. “É um paradoxo que, em uma cultura em que
todos os tabus sexuais se dizem derrubados, as publicações de produtos de “higiene
feminina” ainda sejam construídas com base na premissa básica da vergonha e do
encobrimento”. (REMÉDIOS apud PAVON, 2007).
A distorção e a divulgação que normalmente são trazidas pelas propagandas no
q
ue se refere à experiência da menstruação são ainda mais preocupantes: são exibidas
cenas de garotas (meninas) correndo pela praia com seus minúsculos biquínis, como se
nada estivesse errado e não falam sobre o que realmente acontece durante a
menstruação.
Nestes dias uma mudança física, sensorial, emocional, que é
transmitida através da cultura como algo negativo, odioso, uma maldição, que deve
tentar esquecer o mais rápido possível. Sua ideia é que os dias menstruais implicam
uma transformação do corpo em relação ao psíquico, que poderia ser aproveitada
positivamente pelas mulheres para experimentar este estado e sensação que
aparece neste momento, e, para recuperar uma identidade de si mesma, relacionada
193
com o sentido do ciclo. Isto é inevitável; as mulheres, ao contrário dos homens, são
ciclos, afirma Pavon (2007).
As pesquisas de uma identidade feminina constituem um dos temas centrais da
obra de Betina Sor, que, sobre a caixa de acrílico, exibe os restos de um corpo em que
se lêem mensagens que buscam reafirmar uma posição: “Tener menstruación”, “Tener
pechos”, “Tener útero”, “Tener poemas de amor” (“Ter menstruação”, “Ter peitos”, “Ter
útero”, “Ter poemas de amor”). Esta ansiedade de posição de atributos femininos pode
ler
-
se como uma necessidade
de reapropriar
-
se de um corpo colonizado.
É interessante, neste sentido, o trabalho de releitura de um símbolo
paradigmático como é o útero. A imagem de um útero como um “vácuo” (limpo), em que
não ainda nenhum feto, fala de uma intenção de recuperação, por parte da mulher,
de um órgão expropriado e codificado nos discursos sociais como mero “receptor de
fetos”. A imagem da obra, quase que automaticamente, é associada com a ausência
de gravidez. A artista, através desse objeto, fala do ter óvulos, porque as mulheres não
podem dizer que têm útero: a coisa mais próxima disso é ter ovários, mas isto é por
parte dos órgãos femininos que se assemelham aos testículos masculinos.
A gravidez como tarefa primeira atribuída à mulher é outro assunto que Zagueb
,
na fala de Pavon (2007), relaciona com a suspensão da menstruação como experiência
positiva. Ao contrário da ejaculação, que é
vista
como uma afirmação vital e positiva da
virilidade, a menstruação sempre se associa a uma ideia de gravidez fracassada. Ou
tro
assunto que a autora comenta é sobre a masturbação; segundo ela, o fato de um
menino masturbar é natural e que tudo está muito bem com ele, porém a menstruação
de uma menina só é celebrada quando há a ausência de gravidez. Isto é quase sempre
associad
o a uma cultura influenciada por religiões monoteístas e outras em que a
menstruação é vista como signo de impureza.
Pavon (2007) ainda afirma que, em outras culturas, em vez de ser ignorada, a
menstruação é considerada como um tempo especial e sagrado para as mulheres. A
abundância de símbolos relativos à mulher encontrados em escavações realizadas em
lugares antigos da Europa e Oriente Médio sugerem, de maneira enfática, que estas
culturas eram matriarcais e veneravam a deusa da fertilidade e os processos do corpo
194
feminino. Já a palavra ritual vem do RTU, que, em Sânscrito
15
, significa menstruação. O
sangue menstrual era sagrado para os Celtas
16
. Em tribos indígenas americanas, as
mulheres se retiravam durante seu período menstrual a um recinto especial e
eram
consultadas pelo chefe da tribo sobre questões cruciais, como as que eram
consideradas como poderes especiais de vidência e lucidez durante esse ciclo.
A mistura de objetos sujos de menstruação e os poemas que nos apresenta
Betina Sor, em que material e símbolo são colocados no mesmo plano, são também
uma espécie de ritual, embora essa obra de Betina Sor não seja um ritual: “tenho
certeza que uma vez, que as mulheres pintadas com seu sangue menstrual”, diz a
artista em seu blog (2009), é uma visão que tem a ver com a decisão de utilizar seu
próprio sangue na criação dessa obra, como parte de seu projeto de “conscientização”.
Pavon (2007) observa que Zagueb construiu um calendário à sua maneira para
monitoramento do ciclo menstrual de um grupo de mulheres, que são acompanhadas
durante 28 (vinte e oito) dias por um gráfico das fases da lua, e entregue como uma
espécie de trabalho de campo, para outras mulheres que entrevistou mais tarde. Os
resultados foram positivos. Segundo ela, muitas confessaram haver-se sentido
libertadas ao adquirir uma consciência mais profunda das mudanças que os dias
menstruais propiciaram, ao ter prestado mais atenção a algo que anteriormente
tratavam com ignorância.
Betina Sor, com sua subjetividade, coloca os homens mudos, sem palavras;
as mulheres, no entanto, pensamos, sentem uma empatia e encaram a obra com
mais naturalidade.
Em busca de novos artistas que trabalham com o tema desta pesquisa,
encontramos o trabalho de Vanessa Tiegs (s.d), artista americana, ex-
bailarina
profissional, que mora atualmente em São Francisco, EUA. Recebeu o título de
15
O Sânscrito faz
parte do conjunto das 23 línguas oficiais da Índia. É uma das línguas mais antigas da família indo
-
europeia.
16
Os Celtas foram a primeira das várias culturas existentes na Idade do Bronze. Expandiram-se pela maior parte da
Europa continental e britânica e, na sua expansão, abrangeram áreas que vão desde a Espanha até à Turquia.
Reverenciavam a natureza que era a sua companheira, louvavam as pedras e montanhas, os campos e florestas, os
rios e oceanos. O nome “celta” surgiu da tribo dominante dos Halstatt, e
tornou
-se um conceito unificador para toda
a cultura.
195
mestre com a dissertação sobre o ciclo menstrual intitulada: Spiraling Moon:
System for Menstrual Insight(Lua em espiral: Sistema para a Compreensão Menstrual
, s.d), estudo de respostas de mulheres sobre os seus ciclos menstruais; relatos das
condições de mulheres sobre as suas condições sociais e físicas.
O discurso sobre esta artista consiste em uma análise de textos consultados
em sites e um olhar sensorial sobre as suas obras, publicações na internet, fugindo
de qualquer referência bibliográfica sobre a artista. Vanessa Tiegs iniciou-se no
mundo das artes ao cinco anos de idade, estudando balé clássico, atividade à qual
se dedicou intensamente. Anos mais tarde experimentou outras linguagens
artísticas, tais como: pintura, desenho e fotografia.
A sua formação profissional de bailarina se deu na American Ballet Theatre
School
”, um dos diretores de suas
Performances
foi Rudolf Nureyev (1938-
1993),
em
“Don Quixote”, além de outros “eventos” ligados à dança. Alem da dança
estudou no Smith College” (Colégio Smith), graduou-se em Design pela “Phi Beta
Kappa” (?) (s.d) e em Arquitetura, profissão que exerceu por um bom tempo,
prestando serviços a empresas americanas.
Na arte, Vanessa trabalha com um tema ligado ao universo feminino, o
sangue advindo da menstruação, fluido corpóreo que, para ela, é o elemento
primeiro de sua poética atual. Sabemos que ela não foi a primeira a desenvolver
trabalhos com o sangue menstrual, pois Betina Sor, em 1997, cria, por meio desse
elemento orgânico, um diálogo com o espectador, com a obra “
Memoria y Balance
Simplesmente Sangre”, gerando, no observador, um sentimento de inquietação,
assim como “
Menstrala”,
de Vanessa.
Os objetos de Vanessa Tiegs foram construídos num período de 03 (três)
anos. O elemento orgânico, o sangue menstrual, foi colhido durante 36 (trinta e seis)
ciclos menstruais, que a artista denomina como processo de renovação, que a
artista não associa o sangue menstrual a al
go vergonhoso, ao contrário disso.
Podemos dizer que a obra de Vanessa Tiegs, pinturas (Fig. 44,46,47,48,
p.197/198
/1
99
) são criações de imagens positivas da menstruação, se
considerarmos que vivemos em um universo de inúmeros ciclos. Neste universo
196
femin
ino, as mulheres experimentam um ciclo inovador e renovador que se
assemelha ao da lua em volta da terra.
A ideia da construção desses objetos, segundo a artista, surgiu após a leitura do
livro Blood, Bread & Roses: How Menstration Created the World” (
Sa
ngue, Pão &
Rosas: Como a Menstruação Criou o Mundo
)
de Judy Gran (1940), leitura que
transformou a sua relação com o sangue menstrual, com o mundo, com a forma de ver
a mulher, com a sua condição feminina e consequentemente com o seu ciclo menstrual.
O contato com este livro foi tão significante para Vanessa Tiegs que a motivou a ousar
em outros “territórios”. Em busca de informações, a pesquisa estendeu-
se à arqueologia
e, posteriormente, fazendo uso deste conhecimento, cria inúmeros encontros
(conferênci
as), com o objetivo de passar informações para um número significativo de
mulheres em diferentes lugares, tais como Holanda, Reino Unido, Malta, Grécia e
Estados Unidos.
São obras que não permitem a indiferença do espectador, provocando
sensações de admiração ou de repulsa. Diante da imagem (Fig. 44, p.
197
), de pronto
verificamos o quanto é belo este casal de pássaros, uma pintura harmoniosa, cativante,
lírica, misteriosa, que nos lembra as aves da composição “A Pesca Milagrosa” (1515-
16) de Rafael Sanzio
(1483
-1520) (Fig. 45, p.
197
), que também contemplam o
aparecimento de Jesus, alongando os seus pescoços e abrindo as suas asas (o abrir
dos bicos nos faz crer que estão a emitir sons de louvor). O tom vermelho das imagens
(pinturas) de Vanessa Tiegs difere e muito dos trabalhos de Karin Lambrecht, em seu
projeto de Sangue. Nos trabalhos de Karin, o sangue, depois de seco, tem uma
coloração marrom; nas imagens de Tiegs o sangue permanece de um vermelho vivo
- talvez isso se justifique pela mistura de uma substância acrílica ao sangue menstrual,
mistura que tira o cheiro característico deste fluido corpóreo, permanecendo apenas um
ligeiro cheiro de tinta acrílica.
197
Fig.
44
-
Vanessa Tiegs (n/d)
-
Menstrala (n/dd)
Timandra & Bulis
-
Sangue menstrual sobre Masonite
Fig.45
-
Rafael Sanzio
– “
A pesca Milagrosa
(1515/16)
Te
mpera 360 x 400 cm
198
Fig.45 detalhe
-
Rafael Sanzio
“A pesca Milagrosa” (1515/16)
Tempera 360 x
400 cm
O observador poderá sentir-se incomodado diante dessas imagens a partir do
momento em que tomar conhecimento do material com que foram construídas, mas não
poderá deixar de contemplar a beleza plástica, a leveza da composição, a doçura dos
mot
ivos como nos são apresentados.
Fig. 46
-
Vanessa Tiegs
-
Menstrala
“Seeing Through Other Eyes”
(Vendo Através de outros Olhos) (n/d)Sangue menstrual sobre Masonite
199
Fig. 47
-
Vanessa Tiegs
-
Menstrala
“Galaxy
Gronssing” (
Extrapolando Galá
xias) (s/d)
Sangue menstrual sobre Masonite
Vanessa Tiegs simultaneamente nos apresenta e representa o seu sangue
menstrual em suas obras. São pinturas-imagens de “seres” cativantes representados
com o fluido que “reveste” o seu útero, um elemento simplesmente biológico, uma
produção mensal corpórea, materializados em sua poética. A artista o transforma em
obras belíssimas, em objeto de arte. Essas pinturas têm como suporte
Masonite”
no
lugar da tradicional tela, material que proporciona um resultado mais vibrante. A artista,
para construir suas obras, não usa de pincéis, substitui
-
os por objetos com ponta.
Fig. 48
-
Vanessa Tiegs
Menstrala
“If My Thoughts Had Wings”
(Se os Meus Pensamentos Tivessem
Assas)
(s/d) Sangue menstrual
sobre Masonit
e
200
Do “garimpo” de imagens de obras de arte ao longo da História da Arte, imagens
em que o sangue é utilizado como material para a construção poética apresentando-
se
como substância indispensável e insubstituível para a confecção do objeto de arte nos
depa
ramos com trabalhos de grandes singularidades expressivos. Entre eles podemos
citar também os de Regina José Galindo, nascida na Guatemala, no ano de 1974, uma
das artistas jovens mais audaciosas de seu país. Escritora e artista performática,
também usa o seu próprio corpo como forma de expressão para criticar uma sociedade
conservadora.
Os trabalhos de Regina José Galindo o extremamente radicais e prolíficos,
com forte presença no cenário artístico internacional. Uma carreira em expansão,
recentemente
iniciada, há pouco mais de uma década. Embora tenha conquistado
prêmios internacionais com sua arte, ainda hoje vive em seu país de origem,
convivendo com a presença constante da violência urbana, principalmente contra as
mulheres. Alguns de seus trabalhos apresentam tendências à metáfora literária. A
maioria de suas obras deixa uma impressão assustadora, “confronta a violência e
estabelece estratégias concretas de convivência marginal”. (FAZZOLARI, 2009). A sua
obra é uma poesia em constante movimento, um solfejo evocando notas de dor e o
sofrimento físico, em prol do sofrimento do outro, são vozes que “ecoam” de seu corpo
e que de outra forma poderiam não ser ouvidas.
No ano de 2005 foi premiada com o Leão de Ouro na categoria de artista jovem
na Bienal de Veneza, a única artista latino-americana que recebeu este prêmio. “(...)
ganhadora do prêmio de melhor artista jovem da Bienal de Veneza, com polêmica
performance
na qual flagela o próprio corpo, parece apontar para a não existência de
fronteiras entre arte, política e vida.” (MARTINEZ, 2005, p. 15). Entre as obras que
foram apresentadas nesta Bienal, encontra-se o Vídeo da
Performance
Himenoplastia”
(2004), uma gravação do momento da operação de reconstrução de seu próprio hímen,
uma denúncia, uma forma de se manifestar contra uma situação ainda vigente em seu
país, em que a virgindade é um dos requisitos mais essenciais para o matrimônio.
As suas
performances
abriram os pesados portões da fronteira da Guatemala e
mostram ao mundo o universo ao qual pertence a mulher em seu país. Demonstra em
seu percurso de artista que é “uma mulher atenta a sua realidade (...), em todos os seus
201
trabalhos é a protagonista da obra levando as últimas consequências as suas ações, na
busca de emancipar o corpo.” (FAZZOL
ARI, 2009
MAC, 29
-
09
-
09).
Quando ouvimos ou lemos sobre a Guatemala e seu povo, percebemos que
ainda se trata de um país que cultua o poder masculino. A artista, quando se refere a
sua terra, seja em texto ou em palestras, transmite uma visão de inconformismo com a
situação social, indagando sobre questões de violência contra o corpo da mulher,
condenando o culto do poder machista que ainda hoje impera. Representa esta visão
inconformista, de forma metafórica, na obra
PERRA
(cadela)
, (
2005)
(Fig. 49, p.
206
),
construída em memória às mulheres violentadas diariamente e assassinadas em seu
país, mutiladas e mortas brutalmente em número cada vez maior; apresenta e
representa em sua obra uma visão crítica do modelo social atual.
Martinez (2005) comenta que a obra da artista é uma crítica radical ao poder
patriarcal e às políticas ditatoriais. Por meio de suas ações nos espaços blicos, meio
ambiente urbano, em diferentes “eventos” que realiza se posiciona como mulher e
pertencente a esta realidade que critica e o faz utilizando de seu próprio corpo. Em
muitos destes acontecimentos o sangue é materializado na obra, carregado de
simbolismo enfatizando que a arte nunca é pura e que está profundamente enraizada
nos valores sociais de seu tempo.
Para isso apropria-se de forma
revival”,
de uma das vertentes da arte
contemporânea, responsável, entre outras, pela ruptura com os modos tradicionais de
arte, das
Performances
, apresentando aos espectadores de forma metafórica o real
valor da vida dos guatemaltecos, em especial os das mulheres. Regina é como outros
tantos artistas se distanciaram dos salões e museus, apropriando-se dos espaços
públicos, interagindo com o meio ambiente. O uso de múltiplas linguagens em sua obra
é uma ousadia de suma importância para a sua c
onstrução, preocupação primordial em
sua poética. Bourriaud comenta:
(...) a arte atual assume e retoma plenamente a herança das
vanguardas do século XX, mas recusando seu dogmatismo e sua
teleologia (...). hoje não se procura mais avançar por meio de
pos
ições conflitantes, e sim a invenção de novas montagens, de
relações possíveis entre unidades distintas, de construção de
alianças entre diferentes parceiros (...). da mesma forma, a arte
202
não tenta mais imaginar utopias, e sim construir espaços
concretos.”
(BOURRIAUD, 2009, p. 63).
Estas invenções, relações e utilizações de todas as formas de linguagens,
estimulam e incitam a sensibilidade coletiva na busca de um sentimento compartilhado.
Ao assistirmos às
Performances
de Regina José Galindo, não podemos negar que sua
poética nasce da observação de seu cotidiano; são obras que tratam de questões
sociais, problemas de um país onde a população convive com a violência brutal. A
artista utiliza do caos que infecta o dia-a-dia dos guatemaltecos, para criar os
seus
objetos, que são ações em que é o corpo que fala, e o sangue nos apresenta as
consequências desta realidade, como retrato da “pulsação” dessa violência que quebra
o “frágil” fio que liga o humano a vida, conduzindo
-
o a outra dimensão, a da passividade
eterna, a morte.
A
Performance
Quíen puede borrar la huellas?” (Quem pode apagar os traços?)
(2003)
(Fig. 50, p.
203
/204
), que documenta, dialoga com o tormento e suplício
histórico da Guatemala, estabelece uma relação de insatisfação com o poder
político
de seu país. Neste trabalho a artista carrega uma bacia de ágata branca, com 02 (dois)
litros de sangue humano. Andando pelo centro histórico da cidade, vai deixando as
marcas de seus pés ao longo do caminho; a cada passo, Regina molhava os pés p
ara,
logo em seguida, marcar as ruas e calçadas com sangue - metaforicamente é o sangue
dos guatemaltecos. É uma tentativa de reviver situações em que muito sangue humano
foi derramado em prol de um poder político. Caminha deixando as marcas de seus pés,
c
omo que carimbando com sangue o chão, até a suprema Corte do Palácio Nacional na
cidade da Guatemala, em resposta, segundo a própria artista em Neira (2008), à
decisão do Tribunal de Justiça em permitir que o General Ríos Montt (1926) disputasse
a eleição presidencial de 2003. Montt foi quem liderou em 1982-3 o genocídio dos
indígenas da Guatemala, grupos maias massacrados pelo general, que deixou um
saldo de milhares de mortos e muitos desabrigados.
203
Fig. 50
-
Regina José Galindo
Quíen puede
borrar la
huellas?
(Quem pode apagar os
traços?) (2003) Performance
Guatemala
Foto: Victor Pérez
Fig. 50 detalhe
Regina José Galindo
Quíen puede
borrar la huellas?
Fig. 50 detalhe Regina José Galindo
Quíen puede
borrar la huellas?
Fig. 50 detalhe Regina José Galindo
Quíen
puede borrar la huellas?
204
Fig. 50 detalhe Regina José Galindo Quíen puede
borrar la huellas?
Fig. 50 detalhe Re
gina José Galindo
Quíen puede
borrar la huellas?
A
Performance
(Fig. 50, p.
203
/204
), realizada em 23 de julho de 2003, são
pisadas silenciosas, mas que criam um ruído que propõe reviver o sofrimento de todas
aquelas vitimas que morreram durante o conflito armado. Um gesto simbólico e crítico
sobre o esquecimento desse acontecimento mórbido e também uma critica sobre a
“descarada” pretensão do presidente do Congresso à época, Efraín Ríos Montt
(segundo a artista, o maior genocida na história de seu país) de ser candidato a
presidente na eleição de novembro (2003).
205
A artista também “lembra” que a Constituição da Guatemala proíbe a todos os
que tenham participado em golpes de Estado o beneficio de privilégios como o de
candidatar
-se a presidência, mas Ríos Montt e seus seguidores organizaram um
movimento na Capital, através da Frente Republicana Guatemalteca (FRG), e por meio
de corrupção junto aos magistrados e da desestabilização da sociedade, encontrando
uma abertura para alcançar estes objetivos. Porém, para muitos guatemaltecos, a
pretensão a candidatura deste é um atentado contra os processos democráticos, a
integridade civil, a segurança e a paz social, uma verdadeira promoção de atos de
violência.
Para Barrios (2003), as imagens do trabalho de Regina J
osé Galindo, juntamente
com as da comunidade de artistas de seu país, que se uniram para neutralizar os
sintomas doentios do General e seus seguidores, expressam a rejeição aos atos
violentos encabeçados por este ex-golpista, contribuindo para a derrota de Ríos Montt
para a presidência da República, sendo eleito naquele ano Óscar Bergar Perdomo
(1946).
Se cada ação humana tem uma intenção, as de Galindo nos apresentam um
aspecto da realidade, são atos que querem denunciar ou questionar, e não se findam
em
uma atitude crítica ao sistema político, não é também politicagem, e sim um
compromisso com o social. As suas práticas artísticas contemplam a sua visão
moderna de sociedade, na tentativa de retificar a história, projetando imagens
embebidas de violências. São atitudes em que um corpo solitário, individual, em
confrontação com a resistência, traduz a metáfora do corpo universal. Pareyson
comenta:
(...) colocada sob o signo da arte, a pessoa se torna vontade e
iniciativa de arte, assume inteiramente uma di
reção
artística,
traz,
de per si, uma vocação formal, torna-se uma carga de
energia
formante.
No exercício de tal atividade, desaparece inteiramente
nesta, tornando-se seu ato, ou melhor, seu gesto: (...). E se no
operar artístico a pessoa do autor tornou-se, ela mesma o seu
próprio e insubstituível modo de formar (...),bem se pode dizer que
a obra, a que o processo artístico leva a cabo, é a própria pessoa
do artista encarnada completamente num objeto físico e real, que
é, justamente, a obra formada (...)(
PAREYSON, 1997, p. 107).
206
Fig. 49
-
Regina José Galindo
-
“PERRA”
(cadela), 2005
Performance, Guatemala
Ao assistirmos este registro em vídeo (
Performance)
(Fig. 49, p.206), vemos a
artista em um vestido negro, todo fechado. Parece se tratar de uma jovem viúva, sem
maquilagem no rosto, sem salto alto, nem meias, nem acessórios que ornamentem a
cena, apenas uma cadeira. Ela senta-se descobre a sua perna esquerda, enterra a
lâmina de uma faca em sua carne até que comece a verter sangue. Primeiro o
sangue
aparece como pequenas gotas, como minúsculas sementes vermelhas, e, em seguida,
transforma
-se em pequenos sucos a manchar a perna, em que lentamente se percebe
a ação de uma escrita. A operação não dura mais que 15 (quinze) minutos. Na primeira
let
ra, a mão de Regina treme e se detém por um segundo, mas logo prossegue a ação.
A artista escreve a palavra PERRA (Cadela)
,
(2005).
O registro em vídeo permite ver que também os músculos da perna ferida
tremem. A sua cabeça baixa não deixa à vista o seu rosto, porém a dor não é
imaginado por nós, mas fica instalada na retina de quem assiste ao vídeo. “(...) Assim, a
sobreposição do tempo real e da filmagem gera um potencial narrativo (...).”
(BOURRIAUD, 2009, p. 60). Este trabalho, segundo Neira (2008), foi criado pela artista
207
em memória das mulheres mortas, mutiladas e assassinadas brutalmente na
Guatemala no ano de 2005, quando se tornou vulgar o aparecimento de corpos
femininos violentados, em cujas carnes estavam estampadas palavras obscenas.
Durante
o conflito armado, o dano à população feminina era parte de uma estratégia,
um jogo de poder ainda vigente no país.
A arte de Galindo é um jogo entre identidade e nacionalismo, implicando uma
abordagem política e social da arte, utilizando estratégias de transgressão e
estranhamento por meio de “distorção”. Não se trata de distorcer os fatos e sim
trabalhar a forma de apresentação dos “fatos” ocorridos em seu país, “descrevendo” a
realidade da Guatemala, com seu corpo, com o sangue, com a autoflagelação.
Pa
reyson observa:
(...) Nesse sentido, a obra de arte é expressiva enquanto é forma,
isto é, organismo que vive por conta própria e contem tudo quanto
deve conter (...). Ela exprime, então, a personalidade do seu autor
(...) reveladora acerca da pessoa de seu autor do que qualquer
confissão direta, e a espiritualidade que nela se exprime está
completamente identificada com o estilo. A forma é expressiva
enquanto o seu ser é um dizer, e ela não tanto tem quanto, antes
é um significado
(...).
(PAREYSON, 1997,
p. 23).
Galindo não vai em busca de resgatar a forma de apresentação de uma arte
puramente representativa; ela mergulha, exprimindo sua personalidade no inferno
contemporâneo em seu entorno, incorporando e comentando sobre a vida como ela é
em sua “mesquinhez” camuflada pela “grandeza” arquitetônica citadina de seu país,
descortinando, trazendo à tona as diferenças sociais e suas consequências. Um
universo onde impera o poder hostil. Talvez a sua ideia seja realmente a de mostrar ao
espectador a “cara” d
e sua nação e a problemática enfrentada pela população diante de
um sistema de governo vigente e também o reflexo desse sistema político sobre a
sociedade, uma influência negativa e violenta para o povo. Como ela mesma comenta:
“Durante o conflito armado,
o dano à população feminina era parte de uma estratégia de
guerra para incutir temor na população, porque, ao matar uma mulher se mata também
a possibilidade de vida.” (GALINDO, APUD. NEIRA, 2008, p. 4) Esta afirmação é
208
verdadeira! Não podemos negar, “ainda”, são as fêmeas que procriam, que nos dão a
vida. Quanto a isto Paglia complementa:
Intrinsecamente, a mulher é superior
todo ser humano sai do ventre de
uma mulher. Percebendo isso, o homem passa a vida toda tentando
superar sua limitação. Seu corpo carrega uma ansiedade biológica
latente que o faz desafiar o mundo para vencer a opressão que sente
em relação a esse poder da mulher. Isso o faz enérgico, criativo,
obsessivo (...).” (PAGLIA apud, CANTON, 2001, p.27).
O corpo de Regina José Galindo é um conjunto de “instrumentos”
estabelecendo jogos multifacetados de conteúdos, manipulando e materializando
sentimentos e fluidos corporais criando conexões imediatas com o cotidiano e com a
sua identidade de mulher, questionando a violência que passou a fazer parte da
realidade das guatemaltecas, de proporção cada vez maior, onde mulheres são
diariamente assassinadas brutalmente. A presença de corpos de homens também é
existente, aparecem degolados, com tiros, apunhalados, asfixiados, porém o das
mulheres
normalmente apresenta evidências de haverem sidos violentadas e
torturadas antes de ser assassinadas.
Na construção deste “jogo” de sentimento, a artista doa o seu corpo para nele
se materializarem comentários sobre estupro, morte, decadência, desrespeito
,
genocídio, mutilação, de forma catártica. Em suas
performances,
o corpo é um
elemento indispensável (o suporte), que Regina desnuda e oferece ao espectador
com a cumplicidade e a intimidade de quem abre um diário. Este corpo “mutante”,
que assume diferentes acontecimentos, simulacros, o reviver de violações e
violências e da solidão presente na vida urbana, do sentido que se instaura de sua
própria ausência, este corpo desmaterializa o lugar de fisicalidade e intimidade do
corpo físico e orgânico, para t
ransformá
-lo em um corpo social. Nele, questões
como identidade e condição social e política se expandem, saindo do campo
individual para abarcar uma universalidade globalizada.
Os atos violentos de Regina constroem poéticas que desafiam o olhar e
gravam
na retina a violência da vida urbana, em um retrato contemporâneo da sua
209
“civilização”. Procurando dar sentido a esse universo complexo, reacionário,
violento e confuso, que gera inconformismo e tédio, a artista, na tentativa de
libertar
-se da impotência que o poder público impõe, joga-se no abandono, no
deslocamento, no “escândalo silencioso” da
Performance
, numa experiência que
expressa a sua subjetividade. Nesse contexto, estabelece uma relação com os
acontecimentos políticos, exteriorizando a sua insatisfação, constrói um quadro com
ações de violências históricas, que estavam anestesiadas; emoldurando com
fragmentos da realidade circundante.
Fig. 51
detalhe
- Regina José Galindo “El peso de La sangre” (O peso do sangue) (2004) -
Sangue
hum
ano
-
Performance
Guatemala.
210
Fig. 51 detalhe
-
Regina José Galindo
“El peso de La sangre” (O peso
do sangue)
(2004)
-
Sangue humano
-
Performance
Guatemala.
Na
Performance El Peso de La Sangre (O peso do sangue
)
(2004) (Fig. 51, p
.
209
/210
), a artista recebe sobre a sua cabeça um litro de sangue humano, gota a gota,
e vemos imagens que nos remetem tanto à história política como religiosa da
Guatemala: o local em que foi realizada a
Performance
é uma praça central da cidade
em frente a uma catedral, centro símbolo do poder público e militar. Cada gota de
sangue que cobre o rosto da artista e seu corpo nos recorda tanto as vítimas da guerra
civil como a iconografia da Semana Santa, os sofrimentos de Cristo, especificamente o
211
seu rosto ensanguentado, demonstrando que o derramamento injusto de sangue pesa
sobre todos, já que todos são passivos perante esta rea
lidade.
Se todos somos resultado de nossa história, do nosso contexto social, do espaço
e do ambiente onde nos desenvolvemos, Galindo não é diferente, mostra-nos em suas
obras um país de grande violência geral e uma violência de gênero fora de todos os
l
imites, segundo a própria artista.
Outra artista que trabalhou com temas semelhantes e que usa como poética para
a construção de suas obras o corpo e o sangue e, por consequência, a dor foi Gina
Pane, que demonstra a condição feminina da mulher nos anos 70. Também a obra de
Ana Mendieta pode ser relacionada à de Regina, quando pensamos no abuso da força
física masculina em relação ao corpo físico feminino.
Sua arte, ações ativas com a vida, desestabiliza os limites estéticos e éticos
vigentes, criando outros. A artista desce ao inferno dialogando com o cotidiano do seu
país, afirma que ainda hoje crianças indígenas e descendentes de escravos usam
uniformes para que a sua condição social seja evidente. Na conferência no Instituto
Cervantes,
em 2009, comenta: “eu não sou ativista... um ativista tem fé, eu não tenho
fé”.
A poética de Regina José Galindo, assim como dos outros artista apresentados
neste capitulo, não espaço para exclusões; são projetos de investigação-
experimentação com o espaço e o tempo conjugando uma nova dimensão
contemporânea, trazendo o real de outras realidades de tempo, fragmentos sociais
retratados em seus corpos, reconstruídos por realidades “paralelas” que nos são
apresentadas e representadas por eles em suas Performances metaforicamente como
se fossem um lamento, um rito religioso, onde a autoflagelação as feridas e o s
angue
fluem embebidos de simbolismo. Um espetáculo que, felizmente, não paralisa no seu
desenvolvimento. Uma combinação certa, com a consciênci
a de que tudo é indefinido e
a escolha incerta. Neste mundo mutante a realidade atravessa inconscientemente no
brevíssimo espaço de tempo de um brilho, a poesia da arte, pista insuspeita de uma
viscosidade que arrasta memórias, imagens, emoções.
212
CONCLU
SÃO
:
Nossa intenção primeira foi a de que esta dissertação pudesse ser um dos
agentes estimuladores da reflexão e do
pensamento
sobre a arte contemporânea,
cujos objetos produzidos criam relações com a vida, em um liame em que arte e vida
se confundem. Para isso, entre tantos elementos que, apresentados de formas
diferentes durante o percurso da História da Arte, escolhemos um que surge
materializado na obra de arte contemporânea: o
sangue.
Este
elemento
foi
representado/apresentado e materializado no o
bjeto artístico.
Optamos por um caminho que compreende desde os primeiros registros
imagéticos que o homem deixou “impresso” nas paredes das cavernas, como um
documento, prova de sua existência, perpassando diferentes acontecimentos artísticos
até os dias
atuais, para melhor entendimento de sua utilização.
Este assunto não se esgota. Portanto, tratamos de uma parte da produção
artística em diferentes momentos da História da Arte. Não tivemos a pretensão de
abranger todos os artistas que, em algum momento, utilizaram do sangue como agente
primeiro para a sua poética, por ser nesta ocasião inviável, tamanha a proporção que
este trabalho tomaria, pois, durante a busca apresentou-se um numero significativo de
obras nas quais este elemento orgânico, o sangue, se faz presente. Diante deste fato
tivemos que “pinçar” desse “universo” extraordinário apenas algumas obras e artistas
em vários períodos. Desconsideramos apenas os períodos em que não foram
encontradas imagens e obras em que este elemento orgânico, o sangue, foco dessa
pesquisa, foi retratado.
Nesta ação de busca da melhor compreensão do uso do sangue na Arte, o
“garimpar” o “pinçar” na História da Arte foi necessário.
Se a História da Arte pode ser lida como “a história” dos sucessivos
acontecimentos cul
turais
, foi de suma importância o retorno à Pré
-
História, um mundo
onírico. O sangue, então, é apresentado e representado nas pinturas de animais nas
paredes das cavernas. São comuns as cenas em que o animal sangra, e a imagem
transforma
-se em um objeto
gico
-religioso, como uma oração, o sagrado, um ritual,
que concilia a força bruta da natureza com o propósito de distanciar o medo que esta
213
gerava, e garantir o sucesso do caçador. O sangue está diretamente ligado à
sobrevivência no período pré-
histórico.
Na Idade Média, a pintura foi usada como um “instrumento” didático, disciplinador
e divulgador de dogmas religiosos da Igreja Católica. O sangue é trazido para a imagem
no corpo de Cristo e aviva na mente do fiel toda a história de sofrimento, levando o f
iel a
uma submissão a Cristo, personificado nesse período como a Igreja Católica, reiterando
uma ligação forte entre a Igreja e seus seguidores, possibilitando ainda criação de
ícones miraculosos, condições para que o Cristianismo se firmasse através do “E
spírito”
Divino, provocando nos fiéis o desejo de imitar e buscar união com seu Deus. Com o
fortalecimento da burguesia, a arte aproxima-se mais da realidade, e foi com a pintura
de Giotto que esta nova visão humanista do mundo é apresentada.
Este novo estilo, nomeado de Gótico Tardio ou Internacional, vai provocando
uma ruptura com o passado, possibilitando uma nova percepção visual em suas obras,
trazendo novos mbolos para valorizar a ação do “Divino”, enfatizando a presença
espiritual e suscitando nos fiéis a lembrança constante dos acontecimentos relativos a
Cristo e às histórias bíblicas. O sangue é, com certeza, um dos elementos mais valiosos
nestas obras imagéticas. “A Crucificação” (1510/1515), de Mathias Grünewald, que não
poupa o olhar do observador, é um exemplo. Apresenta o horror da Crucificação, em
que o sangue, elemento simbólico/religioso está presente nos pés, no corpo, na cabeça,
no cordeiro que, parece, ainda sangra.
O Renascimento na Itália, quando a arte deixa de ser mecânica, transfo
rmando
-
se em algo mental e intelectualizado, constitui um período cheio de contrastes,
reformulando os conceitos e transformando os valores na política, na religião, no
pensamento filosófico e cientifico, e na própria arte. A política não está mais centrad
a
no poder de Deus, agora se baseia numa hierarquia e na busca de equilíbrio. Os
problemas da filosofia, como da nova ciência, são questões relativas à vida real, e o
ensino deve ser científico. A arte deixa de ser simples objeto de contemplação e
represen
tação de modelos a ser seguidos, assumindo a pesquisa sobre a natureza,
numa transformação constante em si mesma e em favor da história.
Este novo paradigma, voltado para a revitalização de conhecimentos, difundido
no século XV com os humanistas, propõe um desafio cultural à arte, que não deve
214
imitar a natureza, mas superá-la, no sentido da perfeição absoluta, em um estudo com
base na razão, com o valor centrado no homem, gerando, assim, a elaboração de uma
nova cultura: a da ciência.
A arte ligada à realidade de seu tempo reflete sobre os fragmentos do mundo
real. Um espírito de aventura e experimentos, na busca de extraordinários efeitos. Os
artistas embriagados por esta nova época” valorizam a representação da figura
humana e inovam na forma imagética de lidar com o sangue. Ele já não é mais tão
simbólico
-religioso, mas, ao contrário, está mais ligado a fatos comuns do cotidiano. O
humano não é representado como herói nem protagonista, mas perceptível como todas
as outras coisas. Como vemos na obra de Annibale Carracci, “O Açougue”, de 1585,
que registra a tradição italiana e dialoga com o cotidiano. A presença do sangue, como
foco da narrativa da pintura, está contida na massa da carne, qualificando o produto a
ser comercializado. O ambiente comum, uma “casa de carne” da época, parece ter
cheiro e gosto de sangue, com todas as suas características.
As representações imagéticas transformam-se, na pintura o humano vai
perdendo a sensação de fazer parte integrante do ambiente natural. A realidade tornou-
se
irreal. A arte, interpretando de modo “especial” os fatos, apresentando um
antagonismo em relação ao ideal renascentista, passa a ser a do Barroco. É neste
período que a imagem nos é apresentada como se fosse um espetáculo teatral, uma
cena que apresenta a verossimilhança dos fatos e, ao mesmo tempo, uma ilusão, em
que a ação do artista e a participação passiva do espectador se unem em um espaço
temporal especial. O sangue se reafirma como um veículo trágico/real/contundente.
Tanto Caravaggio como Artemísia Gentileschi nos convidam a compartilhar da obra
através do sangue imagético ali representado/apresentado na decapitação de
Holofernes
. O sangue está intimamente ligado à recuperação da dignidade e do poder
de um povo contra seus algozes.
Com um tema compl
etamente diferente, Francisco Goya traz um novo formato de
apresentação do sangue em sua obra. Morador de Madri, viu as ruas serem
transformadas em um imenso matadouro. Em “
O Fuzilamento de três de maio de 1808”
,
obra que nos apresenta outro massacre, depois da revolta de 02 de maio de 1808,
Goya expressa tudo o que tinha dentro de si, o sentimento de ódio e de vingança pelas
215
humilhações sofridas pelos madrilenhos naquela ocasião, extrapolando o campo da
“ficção” se jogando no campo da poesia. Através da
re
presentação/apresentação do
s
angue, reproduziu relatos reais, sonhos horrendos e poesia.
No Brasil, assassinato, humilhação e tortura também fizeram parte da história.
Pedro Américo, em 1893, pinta Tiradentes esquartejado”, apresentando-nos um herói
em pedaços, como que construindo um relato de um acontecimento monstruoso, o
esquartejamento de “Tiradentes” em 21 de abril do ano de 1792. O sangue, nessa
pintura, esta em todo o corpo esquartejado, na decapitação, na madeira da forca, na
camisa, quase como e
m um filme de horror, e proporciona ao espectador um desalento,
seu herói está morto, em pedaços e esvaziado de sangue.
Outro artista que traz o sangue para a composição é Gustave Moreau. Em
L’apparition”
(1874
-
6),
assim como na obra “Tiradentes”, de Ped
ro Américo, o sangue é
apresentando na decapitação do outro personagem histórico, São João Batista, um
“herói” bíblico. O sangue, nesta obra, está em evidência no corte que separa a cabeça
do pescoço. A vitima, ainda sangrando, é mostrada suspensa pela magia da pérfida
bailarina.
Nos meados do século XX, década de 1950, a arte, que é a expressão do autor,
e passa a retratá-lo. Nesse caminho que escolhemos e percorremos, o sangue vem
acompanhando a trajetória de vida dos artistas, como é o caso de Frida Kahlo, que tem
em toda sua obra imagética uma autobiografia, representando/apresentando suas
angústias, dores, sofrimentos, congelando o momento, e por que não a morte, como
verificamos na obra o “Hospital Henry Ford, ou a Cama voadora, de 1932”, o sangue
atra
vés das artérias, ligando vida/morte, além de outros signos que fazem parte da vida
da artista.
Verificamos, durante essa busca, que após os anos de 1960, especificamente no
final dessa década, começa um novo “momento” da História da Arte, o artista adota
novas atitudes para o seu fazer artístico, utilizando de inúmeros materiais que não eram
próprios da arte tradicional, incorporando objetos e imagens do cotidiano urbano
(materiais industriais), elementos naturais perecíveis, precários e o sangue animal e
humano, como também os fluidos corpóreos. O sangue é materializado e o corpo do
artista ou do modelo transforma
-
se em suporte.
216
Foi nas
Performances
e Instalações que os artistas nos apresentaram o valor do
sacrifício do corpo, transformando-se em sujeito da ação, receptor de emoções,
eliminando a distância entre o artista e a obra, entre o sujeito da ação e o objeto de
criação, em que a idéia/conceito tem um valor maior que o produto final, e a
materialização do sangue torna-se um elemento indispensável para a elaboração da
obra, gerando, assim, uma complexidade para o entendimento do objeto artístico, que
foi possível ser solucionada, após um laborioso estudo sobre os acontecimentos
posteriores a esta data.
A arte contemporânea rompe com a ideia da obra estática, preocupando-se com
um relacionamento direto com a vida, com o propósito de desviá-la do domínio da
imagem pura e de desmitificar o culto da obra, construindo sua poética com a intenção
clara de abrir de vez a Caixa de Pandora e mostrar a todos
a real situação do mundo.
Neste contexto, a obra de arte é a linguagem que se sente universalmente
potente, assumindo a indumentária da linguagem visual, discorrendo de forma figurativa
e nos incitando a uma reflexão crítica do mundo e de nós mesmos. São objetos que
atravessam vários “territórios”, que se desenrolam em imagens e formas
tridimensionais.
A discussão que se criou com esta pesquisa foi a de que toda produção da razão
e investigação humana normalmente divide-se em relações de ideias e de fatos e que
também a produção íntima do humano, pensando em Marc Quinn, Betina Sor e
Vanessa Tiegs, é passíveis de contemplação e investigação. As obras que escolhemos
e analisamos relacionam-se com o espectador pelo caráter dramático que a presença
do sangue p
roporciona, sangue que ora escorre sobre a superfície da madeira, em uma
cruz e forca, ora sai das feridas do corpo do próprio artista.
Diante destas reflexões, o objetivo proposto, a princípio, nesta pesquisa foi o de
um exercício (manobra, ação) do olhar diferenciado sobre o elemento orgânico sangue,
em diferentes acontecimentos da História da Arte, exercício este que não se por
encerrado, ao contrário propicia novas formas de compreensão para este nosso mundo
contemporâneo.
Nesse processo descobrimos que os objetos de arte, não são para uma simples
contemplação, pois não há memória de exclusões, na contemporaneidade todas as vias
217
são possíveis. Espaço e tempo se dilatam em uma nova dimensão, em que o fragmento
pode reconstruir um todo diverso, trazendo o real de outras realidades de tempo,
fragmentos sociais retratados em seus corpos, reconstruídos por realidades “paralelas”
que nos são apresentadas e representadas por elas em suas
Performances
metaforicamente, como se fossem um lamento, um rito religioso, em que a
autoflagelação, as feridas e o sangue fluem embebidos de simbolismo. Um espetáculo
que, felizmente, não paralisa no seu desenvolvimento. Uma combinação certa, com a
consciência de que tudo é indefinido e a escolha, incerta. Neste mundo mutante, a
realidade atravessa inconscientemente no brevíssimo espaço de tempo de um brilho,
um clarão, a poesia da arte, uma pista insuspeita de uma viscosidade que arrasta
memórias, imagens, emoções.
218
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